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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Ciências Sociais
Faculdade de Direito
Ricardo Tadeu Penitente Genelhú
A influência do discurso médico no poder punitivo
Rio de Janeiro
2010
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Ricardo Tadeu Penitente Genelhú
A influência do discurso médico no poder punitivo
Dissertação apresentada, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
direito, ao Programa de Pós-Graduação em
Direito, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração:
Transformações do Direito Privado, Cidade e
Sociedade.
Orientador: Prof. Dr. Nilo Batista
Rio de Janeiro
2010
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CCS/C
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde
que citada a fonte.
____________
___________________________ _____________________
Assinatura Data
G326i Genelhú, Ricardo Tadeu Penitente.
A influência do discurso médico no poder punitivo / Ricardo Tadeu
Penitente Genelhú - 2010.
294 f.
Orientador: Nilo Batista.
Dissertação (mestrado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Faculdade de Direito.
1. Pena (Direito) - Teses. 2. Medicina - Teses. 3. Direito penal – Teses. I.
Batista, Nilo. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de
Direito. III. Título.
CDU 343.23
Ricardo Tadeu Penitente Genelhú
A influência do discurso médico no poder punitivo
Dissertação apresentada, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
direito, ao Programa de Pós-Graduação em
Direito, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração:
Transformações do Direito Privado, Cidade e
Sociedade.
Aprovada em: 17 de novembro de 2010
Banca examinadora:
___________________________________________________
Prof. Dr. Nilo Batista (Orientador)
Faculdade de Direito da UERJ
___________________________________________________
Prof. Drª. Vera Malaguti Batista
Faculdade de Direito da UERJ
___________________________________________________
Prof. Dr. Geraldo Luiz Mascarenhas Prado
Faculdade de Direito da UFRJ
___________________________________________________
Prof. Dr. Jorge Luís Fortes Pinheiro da Câmara
Faculdade de Direito da UERJ
___________________________________________________
Prof. Livre Docente Jurandir Sebastião Freire Costa
Instituto de Medicina Social da UERJ
Rio de Janeiro
2010
DEDICATÓRIA
A DEUS.
A meu pai TALISMÃN PEREIRA GENELHÚ (in memoriam) que, conquanto leigo
em Direito, sempre soube ser justo.
À minha mãe MARLENI PENITENTE GENELHÚ, bastião.
À minha irmã KARLA MAGELA PENITENTE GENELHÚ, anjo travestido de
mulher.
À CLÉZIA GRAZIELLY RODRIGUES VIEIRA, ao meu lado mesmo nos
intermináveis instantes em que, involuntariamente, eu estava sozinho.
AGRADECIMENTOS
Dedico esta dissertação a pessoas sem as quais sua confecção, ainda - permitam-me o
reforço no advérbio ainda -, que indireta, dos bastidores, não teria sido possível. Seriam
elas:
Dona ENEIDA DALLA BERNARDINA DE PINHO e REINALDO DALLA
BERNARDINA DE PINHO que me acolheram, respectivamente, como a um filho e a um
irmão postiços.
Professor HUMBERTO DALLA BERNARDINA DE PINHO que, por prescindir do
uso da bacia de Pilatos, e, ainda que por conta de uma desimportante questão como a minha,
não se insubmeteu aos riscos do acadêmico capricho gastronômico de Salomé.
Professor NILO BATISTA, cuja gentileza e humildade me fizeram acreditar -
inocentemente e debalde -, que essa dissertação é mais minha do que dele.
Professora VERA MALAGUTI BATISTA, por, com sua ternura, abastecer as nossas
forças na luta contra o poder punitivo.
Professor GERALDO LUIS MASCARENHAS PRADO, por colmatar com seu
conhecimento e tirocínio minhas evidentes deficiências intelectuais.
Professor JORGE LUIS FORTES PINHEIRO DA CÂMARA, por me mostrar que no
caminho do Direito existem muitas pedras filosofais.
Professor JURANDIR SEBASTIÃO FREIRE COSTA, por ouvir e ler as minhas
loucuras e, mesmo assim, não me considerar um louco.
A todos, o meu inadimplível obrigado.
O senhor poderá ficar tal como estava antes, nem mais rico nem mais sábio, a não ser
que a noção de ter feito um favor a um homem tomado por mortal aflição possa ser
considerada uma espécie de riqueza da alma.
Robert Louis Stevenson, O médico e o monstro.
RESUMO
GENELHÚ, Ricardo Tadeu Penitente. A influência do discurso médico no poder punitivo.
2010. 294 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2010.
Esta dissertação discute a relação entre a medicina, a psiquiatria, a psicologia, o poder
punitivo e o Direito Penal, bem como a influência que o discurso de uma produziu no outro, e
vice versa. Defende a idéia de que a medicina é um espetáculo de poder que, acasalado com o
poder punitivo, e interagindo com, e sobre, o indivíduo, invade e se apropria do seu corpo
para, usando-o como instrumento de dominação política, discipliná-lo de acordo com a
conveniência, sobretudo, da higiene e, naquela sua relação espúria com o poder punitivo,
diferenciá-lo e controlá-lo social e penalmente. Sustenta, ainda, que, malgrado o acasalamento
não tenha sido intencional, o Estado via na medicina o instrumento para reforçar o seu poder,
enquanto essa via naquele o apoio para o seu espraiamento, embora Medicina e Estado
tenham convergido, mas também divergido, por vezes tática e estrategicamente, porquanto
nem sempre os dois poderes reconheceram o valor da aliança que haviam estabelecido. Então,
defende a tese de que o Estado acatou a medicalização das suas ações políticas e admitiu o
valor político das ações da medicina, e com vantagens para ambos que, dividindo o poder,
conquistaram. É que, a medicina, mais rápida e mais adequada aos problemas salutares
apresentados, ajudava-o a se imiscuir no corpo para a permanência parasitária daquela. E,
para manter seu direito ao discurso, sustenta que a medicina reinventou constantemente uma
necessidade para, diante dela, apresentar-se como única solução, tendo conseguido isso
mediante a apresentação de uma retórica dominial eloquente, mas, sobretudo, tecnificada, é
dizer, inacessível ao dominado. Com isso, a disciplina, o controle e a repressão do indivíduo,
penal e medicamente, estavam prontas, pois, Direito e Medicina, aquele com a lei, esta com o
remédio, juntos, dominaram e dominam os destinos do indivíduo, e da coletividade.
Demonstrou, ainda, que os higienistas nunca se desocuparam de suas funções. E, por fim, que
os princípios penais devem, independente da qualificação que se os dê, sempre refrear o poder
punitivo.
Palavras-chave: Medicina. Psiquiatria. Psicologia. Poder punitivo. Direito Penal. Discurso.
Dominação. Princípios. Funcionalismo redutor. Contenção.
ABSTRACT
This dissertation discusses the relationship between the medicine, the psychiatry, the punitive
power and the Penal Law, as well the influence that the one’s speech produces in the other,
and vice versa. Argues the idea that the medicine is an spectacule of power that, with the
punitive power, and interacting with it, and above, the individual, invades and apropriates of
their body for, using it as instrument of political domination, disciplin it according with the
convenience, mainly, of the hygiene and, in that spurious relationship with the punitive
power, diferenciating and controlling it social and criminally. Maintains, even, that, despite
the union not have been intentional, the State saw in medicine an instrument to enforce its
own power, while medicine saw in State the suport for its propagation, despite Medicine and
State have converged, but also diverged, sometimes, tactically and strategically, because not
allways the both powers recognized the value of the alliance that they have just established.
So, defends the thesis that the State accepted the medicalization of its public actions and
admitted the political value of the medicine actions, and with the advantage for both that,
sharing the power, they won. It means that, the medicine, more fast and more appropriate to
the relevant problems presented, helped the State to interfere in the body, insofar the State,
with its hegemonical power, opened gaps into its own body to the remaining parasitic of the
other onte. And, for keeping its right of speech, argues that the medicine reinvented
frequentlly a necessity for present itself as the only solution, getting it by the presentation of
one dominial eloquent rhetoric, but, mainlly, technified, or, inaccessible to the dominated.
With it, the discipline, the control and the repression of the individual, penal and medically,
were ready, because, Law and Medicine, that one with legislation, and this one with drugs,
together, dominated and still dominate the destinys of the individual, and collectivity.
Demonstrate, more, that the hygienists never stopped their functions. And, finally, the penal
principles must, independently of the given qualification, allways stops the punitive power.
Keywords: Medicine. Psychiatry. Psychology. Punitive power. Penal Law. Speech.
Domination. Principles. Functionalism reducer. Containment.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
09
1
HISTÓRIA DO DIREITO PENAL E DO DIREITO PENAL MÉDICO
29
1.1
Uma anamnese com quem redigiu e com quem proferiu o discurso que
acasalou medicina e direito
29
2
O INÍCIO E O(S) MEIO(S), MAS (E) NÃO (A) O FIM (FINALIDADE),
DA INTERVENÇÃO MÉDICA NO PODER PUNITIVO BRASILEIRO
61
2.1
O embate entre o discurso médico oficial e o inoficial: alternância e
miscelânea dominiais discursivas
62
2.2
A medicina e as instituições nacionais impressionantes de sequestro e
adestramento contínuo
74
2.3
O programa seletivo-higienizador da medicina e o médico execut(or)ivo
78
2.4
Vacinophobos sediciosos e a sublevação contra a vacina
94
2.5
O contingenciamento de mão de obra e o embranquecimento da população,
via medicina
117
2.6
As putas deveriam ficar em uma triste memória
139
2.7
O controle, a disciplina e a neutralização da loucura a favor de um
mercado de trabalho dominado pelo capital
145
2.8
Absolvidos e bem pagos, e, ainda, seletivos?
156
3
O MÉDICO E OS PRINCÍPIOS (MEIOS OU FINS?) BÁSICOS DO
DIREITO PENAL
170
3.1
Os princípios (meios ou fins?) da legalidade e da reserva legal
173
3.1.1
O princípio (meio ou fim?) da legalidade e a lei (a)tempor(ã)al 178
3.1.2
O princípio (meio ou fim?) da legalidade e a lei penal em branco 191
4
OS PRINCÍPIOS (MEIOS OU FINS?) DA SUBSIDIARIEDADE E DA
FRAGMENTARIEDADE
224
5
O PRINCÍPIO (MEIO OU FIM?) DA CONFIANÇA
237
6
OS PRINCÍPIOS (MEIOS OU FINS?) DA OFENSIVIDADE, DA
BAGATELA E DA INSIGNIFICÂNCIA
252
7
CONCLUSÃO
255
8
REFERÊNCIAS
271
9
INTRODUÇÃO
Dois grandes saberes-ciências, aparentemente, dominam o mundo, é dizer, o
indivíduo, a população, mas, sobretudo, o corpo e a vida, há séculos. Seriam eles a Medicina
e o Direito, embora não necessariamente nessa ordem.
Sempre esposados, conquanto muita vez em uma relação desarmônica, beirando as
vias de fato, ou quase o divórcio, Direito e Medicina aproveitaram-se, respectiva e
simultaneamente, dos discursos um do outro com o escopo da dominação total sobre o corpo
do indivíduo, e sobre a sua vida, alvos inesquiváveis da retórica daquelas ciências.
Com efeito, e no princípio, ainda que muita vez sem o saber, a disputa velada pela
dominação discursiva entre Medicina e Direito se apropriou indelevelmente do corpo como
objeto moldável e instrumento infatigável a ser utilizado no espetáculo fantástico encenado
nos anfiteatros das instituições totais e das casas de justiça, ambas dirigidas pelo Estado.
E, a apropriação do corpo pelo Direito e pela Medicina se deu primeiro com a
desculpa de que, em uma petição de princípio vergonhosa, era ali que estava o porquê da
atuação de ambos, os dois representantes do Estado que, erigido responsável pela felicidade
do indivíduo, precisava se fazer presente nos pontos em que sua fragilidade se esquadrinhava;
depois, porque era ele, corpo, que representava a célula que poderia engendrar a metástase
social.
Apropriação histórica, mas também atual, então, do corpo para fins de custódia e
guarda, e posterior execução e, assim, exemplo aos demais; para fins de escravidão e
utilização forçada da mão de obra; para fins de observação post mortem e subsequente
autópsia, com aplicação de conhecimento adquirido no corpo vivo, visando seu tratamento;
para fins, novamente, de utilizá-lo como mão de obra dócil, aprisionando-o, e reutilizando-o
como exemplo, e como mão de obra útil, reescravizando-o mediante o pagamento de salários
vergonhosos, embora nenhuma dessas apropriações tenha se dado, necessariamente, nessa
ordem, tampouco qualquer delas tenha sido estanque.
Depois, houve uma apropriação da vida do homem, estatizando-a, ou melhor, de
acordo com FOUCAULT, “um dos fenômenos fundamentais do século XIX foi, é o que se
poderia denominar a assunção da vida pelo poder: se vocês preferirem, uma tomada de poder
sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos,
uma certa inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização do biológico.”
1
1
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa da sociedade. 4. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 285-286.
10
Com o contrato social, e assunção pelo Estado do controle total, passou esse a decidir,
exclusivamente, sobre o corpo e a vida dos seus súditos, inaugurando, assim, a soberania que,
embora paradoxal
2
, continha o direito de vida e de morte, agora excluído como fenômeno
natural, porque passado a fenômeno político e de exceção
3
, à regra
4
-, que começa a encarar o
ser como algo neutro, nem vivo, tampouco morto, assumindo a vida ou a morte o feitio, e
surgindo no momento, que mais concorde com a conveniência do soberano.
5
Seria esse direito, então, pela sua própria aparente natureza, uma exceção? Referindo-
se, aduz AGAMBEN, inclusive contestando FOUCAULT, que: “Uma das teses da presente
investigação é a de que o próprio estado de exceção, como estrutura política fundamental, em
nosso tempo, emerge sempre mais ao primeiro plano e tende, por fim, a tornar-se a regra.”
6
Mas, como funciona esse arbítrio vital e mortal? Obviamente, por razões naturais, ele
funciona sobre a morte, e não sobre a vida apesar de que, mais tarde, “vai ser preciso... baixar a
morbidade; vai ser preciso encompridar a vida; vai ser preciso estimular a natalidade”
7
-, pois, enquanto é
aquela acessível ao soberano, esta, não lhe é. Todavia, pesando a balança sobre a morte,
indiretamente, é sobre a vida que também se estará decidindo. Então, é podendo matar que se
intromete sobre a vida.
8
“Não há, pois, simetria real nesse direito de vida e de morte. Não é o
direito de fazer morrer ou de fazer viver.
9
Não é tampouco o direito de deixar viver e de
deixar morrer. É o direito de fazer morrer ou de deixar viver.”
10, 11
Ora, o direito de fazer morrer se expressa diretamente quando o Estado, mediante suas
agências policiais despreparadas, e. g., permite a execução sumária, de agora corpos
inservíveis ao controle mercadológico da mão de obra; diretamente, também, quando
civilmente condena os invisíveis sociais a uma vida, aliás, à personificação através de um
corpo sem vida, desprovido de quaisquer direitos; ainda diretamente, quando condena os
2
Com referência ao paradoxo, veja, citando SCHMITT, AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2.
reimpressão. Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 23: “O paradoxo da soberania se enuncia: ‘o soberano está, ao mesmo tempo,
dentro e fora do ordenamento jurídico’. Se o soberano é, de fato, aquele no qual o ordenamento jurídico reconhece o poder de
proclamar o estado de exceção e de suspender, deste modo, a validade do ordenamento, então ‘ele permanece fora do
ordenamento jurídico e, todavia, pertence a este, porque cabe a ele decidir se a constituição in toto possa ser suspensa’
(SCHMITT, 1922, p. 34). A especficação ‘ao mesmo tempo’ não é trivial: o soberano, tendo o poder legal de suspender a
validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. Isto significa que o pradoxo pode ser formulado também deste modo: ‘a lei
está fora dela mesma’, ou então: ‘eu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei’.”
3
A exceção como “estado” pode ser vista em AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 23: “A exceção é aquilo que não se pode
reportar; ela subtrai-se à hipótese geral, mal ao mesmo tempo torna evidente com absoluta pureza um elemento formal
especificamente jurídico: a decisão.”
4
Sobre isso, veja AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 27.
5
Nesse sentido, FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 286.
6
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 27.
7
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 293.
8
Mutatis mutandis, FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., pp. 286-287.
9
Sobre as origens históricas, desse direito, veja AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 95.
10
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 287.
11
Mais sobre o assunto pode ser consultado em AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 16: “Protagonista deste livro é a vida nua,
isto é, a vida matável e insacrificável do homo sacer, cuja função essencial na política moderna pretendemos reivindicar.”
11
inempregáveis ou indóceis a penas voltadas a uma (re)(s)socialização que se adequa mais a
uma morte lenta, dolorosa e esquecida; indiretamente, o direito de fazer morrer se realiza na
permissão velada do empregador que, explorando vergonhosamente seus empregados,
expõem-los a uma vida, melhor seria dizer, morte anunciada, e com dia e hora marcados; ou
quando não assume suas funções protetivas, securitárias, salutares e alimentares, deixando ao
deus dará..., a sorte desses infelizes.
Ao contrário, todos que não entraram nessa economia estatal foram, simplesmente,
“deixados viver”.
Durante o século XIX, porém, um outro poder se imiscuiu naquele antigo da
soberania, qual sendo, o de “‘fazer’ viver e de ‘deixar’ morrer”
12
, o que, na contabilidade da
soberania, não muda em nada o que foi escrito acima, porquanto aqueles descontados e
excluídos da aritmética estatal tiveram a sorte de terem sido feitos viver, enquanto que os que
tiveram o azar de nela serem considerados, foram deixados para morrer.
E, onde estaria aquele paradoxo da soberania afirmado acima? Estaria na contradição
fundacional da soberania, baseada na proteção da vida contra perigos e a favor da supressão
das necessidades, e o direito soberano a deixar morrer, absurdamente aceito como cedido a
ele pelo indíviduo. É a vida quem funda o poder do soberano, embora ele não deva entrar na
sua conta.
13
Então, trata-se de um contrato adesivo, contendo cláusula leonina disposta no
direito de fazer viver e deixar morrer.
Nas mais doutas palavras de FOUCAULT, o contrassenso é imanente ao próprio biopoder,
é dizer:
“Biopoder... do qual logo podemos localizar os paradoxos que aparecem no próprio limite de seu
exercício. Paradoxos que aparecem de um lado com o poder atômico, que não é meramente o
poder de matar, segundo os direitos que são concedidos a todo soberano, milhões e centenas de
milhões de homens (afinal de contas, isso é tradicional). Mas o que faz que o poder atômico seja,
para o funcionamento do poder político atual, uma espécie de paradoxo difícil de contornar, se
não totalmente incontornável, é que, no poder de fabricar e de utilizar a bomba atômica, temos a
entrada em cena de um poder de soberania que mata mas, igualmente, de um poder que é o de
matar a própria vida. De sorte que, nesse poder atômico, o poder que se exerce, se exerce de tal
forma que é capaz de suprimir a vida. Ou ele é soberano, e utiliza a bomba atômica, mas por isso
não pode ser poder, biopoder, poder de assegurar a vida, como ele o é desde o século XIX. Ou,
noutro limite, vocês m o excesso, ao contrário, não mais do direito soberano sobre o biopoder,
mas o excesso do biopoder sobre o direito soberano. Esse excesso do biopoder aparece quando a
possibilidade é técnica e politicamente dada ao homem, não só de organizar a vida, mas de fazer a
vida proliferar, de fabricar algo vivo, de fabricar algo monstruoso, de fabricar no limite vírus
incontroláveis e universalmente destruidores. Extensão formidável ao biopoder que, em contraste
com o que eu dizia agora pouco sobre o poder atômico, vai ultrapassar toda a soberania
humana.”
14
12
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 287.
13
Nesse sentido, FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 287.
14
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 303.
12
Essa maldita cláusula, historicamente, advém da passagem de uma técnica de poder
setecentista e oitocentista que controlava sobretudo o corpo do indivíduo como corpo que
ocupa um espaço e que, por isso, deve ser visível e, assim, controlável e dulcificável para fins
de economia disciplinar trabalhista, para uma técnica de poder que, ainda que incidindo sobre
o corpo, objeto veicular da vida, se dirige a esta, é dizer, ao homem vivo, e não ao homem
corpo. Homem vivo que, compondo uma massa, interfere na massa e, por isso, deve sofrer
uma disciplina massificante, pois somente assim poderá o Estado, censitariamente, levantar,
vigiar, disciplinar, controlar e repreender os que representem perigo ao seu domínio. Aqueles
corpos, agora amontoados, representam organicamente, e seguindo as pegadas darwinistas,
uma espécie que precisa ser protegida da extinção, sob pena de o Estado perder mais que sua
função, senão, os objetos sobre que incide ela. Da observação anatômica do corpo passa-se,
então, à observação da anatomia do conjunto, que, minimamente amorfa, atrai a atenção do
Estado e seu poder biopolítico restaurador e regenerador.
15
Com efeito, a estatística e as teorias darwinistas foram o paquímetro que mediu por
dentro e por fora
“processos como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade
de uma população, etc. São esses processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade que,
justamente na segunda metade do século XVIII, juntamente com uma porção de problemas
econômicos e políticos..., constituíram... os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de
controle dessa biopolítica. É nesse momento, em todo caso, que se lança mão da medição
estatística desses fenômenos com as primeiras demografias.”
16
Ou seja, o Estado não podia perder o controle e, por isso, mapeava, para, depois, atuar,
mas, não mais contra as epidemias, senão, contra as endemias que, estacionando sobre uma
população, subtraíam forças, diminuindo o tempo de trabalho.
17
E isso advém do fato de que, conforme HANNAH ARENDT, “o homo laborans e, com este,
a vida biológica como tal” passaram “a ocupar progressivamente o centro da cena política do
moderno.”
18
E, como a força dos braços é o combustível motriz do Estado,
“são esses fenômenos que se começa a levar em conta no final do século XVIII e que trazem a
introdução de uma medicina que vai ter, agora, a função maior da higiene pública, com
organismos de coordenação dos tratamentos médicos, de centralização da informação, de
normalização do saber, e que adquire também o aspecto de campanha de aprendizado da higiene e
da medicalização da população. ...O outro campo de intervenção da biopolítica vai ser todo um
conjunto de fenômenos dos quais uns são universais e outros acidentais, mas que, de uma parte,
nunca são inteiramente compreensíveis, mesmo que sejam acidentais, e que acarretam também
consequências análogas de incapacidade, de pôr indivíduos fora de circuito, de neutralização, etc.
Será o problema muito importante, no início do século XIX (na hora da industrialização), da
15
Mais ou menos por aí, FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., pp. 288-289.
16
Ainda, mais ou menos por aí, FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 290.
17
Com algumas alterações, Mais ou menos por aí, FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 290.
18
Apud AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 11.
13
velhice, do indivíduo que cai, em consequência, para fora do campo de capaciade, de atividade. E,
de outra parte, os acidentes, as enfermidades, as anomalias diversas.”
19
O problema é que esta matemática social, onde se pertence e se não pertence, ou
melhor, pertence-se sem se estar incluído, e inclui-se sem se pertencer dependendo do
capricho luxurioso da vontade soberana da ocasião, gera uma “indiferença entre
excrescência... e singularidade..., algo como uma paradoxal inclusão do pertencimento
mesmo.” Nesse sentido, veja o que diz AGAMBEN, escorando-se vez ou outra em BADIOU:
“Na teoria dos conjuntos distingue-se pertencimento e inclusão. Tem-se uma inclusão quando um
termo é parte de um conjunto, no sentido em que todos os seus elementos são elementos daquele
conjunto (diz-se então que b é um sub-conjunto de a, e se escreve b c a). Mas um termo pode
pertencer a um conjunto sem estar incluído nele (o pertencimento sendo a noção primitiva da
teoria, que se escreve: b є a) ou, vice-versa, estar nele incluído sem pertencer a ele. Em um livro
recente, ALAIN BADIOU desenvolveu esta distinção, para traduzi-la em termos políticos. Ele faz
corresponder o pertencimento à apresentação, e a inclusão à representação (re-apresentação). Dir-
se-á, assim, que um termo pertence a uma situação se ele é apresentado e contado como unidade
nesta situação (em termos políticos, os indivíduos singulares enquanto pertencem a uma
sociedade). Dir-se-á, por sua vez, que um termo está incluído em uma situação, se é representado
na metaestrutura (o Estado) em que a estrutura da situação é por sua vez contada como unidade
(os indivíduos, enquando recodificados pelo Estado em classes, por exemplo, como ‘eleitores’).
BADIOU define normal um termo que está, ao mesmo tempo, apresentado e representado (isto é,
pertence e está incluído), excrescência um termo que está representado, mas não apresentado (que
está, assim, incluído em uma situação sem pertencer a ela), singular um termo que está
apresentado, mas não representado (que pertence, sem estar incluído) (BADIOU, 1988, p. 95-115).
E como fica a exceção soberana neste esquema? Poderíamos pensar, à primeira vista, que ela se
encaixe no terceiro caso, ou seja, que a exceção configure uma forma de pertencimento sem
inclusão. E assim é certamente do ponto de vista de BADIOU. Mas o que define o caráter da
pretensão soberana é precisamente que ela se aplica à exceção desaplicando-se, que ela inclui
aquilo que está fora dela. A exceção soberana é, enão, a figura em que a singularidade é
representada como tal, ou seja, enquanto irrepresentável. Aquilo que não pode ser em nenhum
caso incluído vem a ser incluído na forma da exceção. No esquema de BADIOU ela introduz uma
quarta figura, um limiar de indiferença entre excrescência (representação sem apresentação) e
singularidade (apresentação sem representação), algo como uma paradoxa inclusão do
pertencimento mesmo. Ela é aquilo que não pode ser incluído no todo ao qual pertence e não
pode pertencer ao conjunto no qual está desde sempre incluído. O que emerge nesta figura-limite
é a crise radical de toda possibilidade de distinguir com clareza entre pertencimento e inclusão,
entre o que está fora e o que está dentro, entre exceção e norma.”
20
Voltando. Como a biopolítica pretendia espraiar o campo de intervenção do seu poder,
ela expandiu seu saber para além dos corpos e da vida dos indivíduos ao condicionar o bem
estar desta à preocupação com o “meio geográfico, climático, hidrográfico”
21
vivente; em
resumo, preocupou-se com a cidade, é dizer, com o espaço mas, espaço soberano
22
-, e, em
última medida, com a população
23
enquanto amontoado de corpos e vidas quantificável, cujo
perigoso volume exigia controle.
19
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 291.
20
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., pp. 31-32.
21
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 292.
22
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., pp. 26-27: “O ‘ordenamento do espaço’, no qual consiste para SCHMITT o Nómos soberano,
não é, portanto, apenas ‘tomada de terra’ (Landnahme), fixação de uma ordem jurídica (Ordnung) e territorial (Ortung), mas,
sobretudo, ‘tomada do fora’, exceção (Ausnahme).”
23
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 292.
14
De sorte que, tudo que fugia ao anormal
24
seria alvo da atenção da biopolítica que
receava perder seu poder, seja mediante a assunção por outro pela própria população -, seja
mediante a exposição escancarada pela anormalidade, ainda que eventual -, da sua fragilidade e
incompetência como promotora de felicidade e bem estar.
Passou-se, assim, da disciplina individual à regulamentação global, que colimava o
“fazer viver” e “deixar morrer”
25
. Mas, fazer viver com o fim de manter úteis durante mais
tempo os braços destinados ao mercado de trabalho, deixando morrer os imprestáveis, ou
melhor, controlando sua mortalidade, porquanto a morte, agora, passou a representar uma
perda de poder, uma ineficiência de poder, devendo, então, ser escondida
26
nos escuros e
apertados claustros das carceragens, ou nos obsoletos e esquecidos quartos asilares, ou, ainda,
nas inassépticas e insuficientes quadras hospitalares, repositórios de uma morte olvidada a um
momento e um lugar em que não estejam os demais súditos, tampouco se faça presente a
biopolítica, protegida, assim, de ter que explicá-la a estes.
Entrementes, as duas técnicas de poder da soberania, a disciplinar individual e corporal
-, e a regulamentadora coletiva e vital -, se entrelaçaram e se confundiram no tempo e no
espaço, justapondo-se
27
durante longo tempo. Uma, voltada para a docilização e utilização do
corpo, a outra, voltada para a administrativização de riscos.
28
É dizer, “a medicina é um saber-
poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população, sobre o organismo e
sobre os processos biológicos e que vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos
regulamentadores.”
29
Por sua vez, o poder punitivo foi o braço direito desta, encerrando os corpos dos
dissidentes e matando física, moral, civil e socialmente, a vida deles.
Mas, qual teria sido seu cimento? Qual teria sido a liga que as vinculou, que as
harmonizou, que lhes possibilitou atuar em todas as frentes, dominando o corpo, a alma, a
vida, a população, o passado, o presente e o futuro dos súditos?
24
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 293: “A biopolítica vai se dirigir, em suma, aos acontecimentos aleatórios que
ocorrem numa população considerada em sua duração.”
25
Sobre o parágrafo, veja FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 294.
26
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., pp. 295-296.
27
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 299: “...esses dois conjuntos de mecanismos, um disciplinar, o outro
regulamentador, não estão no mesmo nível. Isso lhes permite, precisamente, não se excluírem e poderem articular-se um com
o outro. Pode-se mesmo dizer que, na maioria dos casos, os mecanismos disciplinares de poder e os mecanismos
regulamentadoes de poder, os mecanismos disciplinares do corpo e os mecanismos regulamentadores da população, são
articulados um com o outro.”
28
No mesmo sentido, FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., pp. 297-298.
29
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 302.
15
poderia ser um poder fantástico, adveniente também do Estado, o poder de
polícia
30
, agência disciplinadora, controladora e repressora do poder punitivo por excelência,
agora à disposição, também, da Medicina!
Nesse sentido, escreveu FOUCAULT:
“Temos, pois, duas séries: a série corpo – organismo – disciplina – instituições; e a série
população processos biológicos mecanismos regulamentadores Estado. Um conjunto
orgânico institucional: a organo-disciplina da instituição, se vocês quiserem, e, de outro lado, um
conjunto biológico e estatal: a bio-regulamentação pelo Estado. ...E, depois, elas adquirem
facilmente uma dimensão estatal em certos aparelhos como a polícia, por exemplo, que é a um
tempo um aparelho de disciplina e um aparelho de Estado (o que prova que a disciplina nem
sempre é institucional).”
31
Isso ainda não é suficiente para demonstrar porque e como Medicina e Direito
conseguiram se unir contra os matáveis-excluíveis. Então, qual teria sido o denominador
comum que justificou a atuação policial médica e punitiva? Acreditamos, seguindo AGAMBEN,
que, porém, vai em outra direção, que tenha sido a culpa,
“mas a culpa (não no sentido técnico que este conceito tem no direito penal, mas naquele original
que indica um estado, um estar-em-débito: in culpa esse), ou seja, precisamente, o ser incluído
através de uma exclusão, o estar em relação com algo do qual se foi excluído ou que não se pode
assumir integralmente. A culpa não se refere à transgressão, ou seja, à determinação do lícito e
do ilícito, mas à pura vigência da lei, ao seu simples referir-se a alguma coisa.
32
Obviamente, esta é uma culpa que vem de fora, determinada pelo soberano (Medicina
e poder punitivo), mais do que de dentro, porquanto ela representa e tem a ver com quem foi
excluído, e não com quem se excluiu com sua decisão a favor ou contra o ilícito. Não é aquela
culpa schmittiana, narrada por AGAMBEN
33
, senão, é dizer, é uma exceção da culpa, pois, o que
importa não é saber se o matável-excluível está dentro ou fora da lei, senão, se ele será ou não
abandonado, seja pela Medicina, seja pelo Direito, mas, sempre pela mão, antes ou depois,
das agências policiais, e sempre em razão de um interesse regulamentador, ordenador,
violentos, sem os quais o Estado perderia o controle mais facilmente.
Sendo que, abandonar significa:
“remeter, confiar ou entregar a um poder soberano, e remeter, confiar ou entregar ao seu bando,
isto é, à sua proclamação, à sua convocação e à sua sentença. Abandona-se sempre a uma lei. A
privação do ser abandonado mede-se com o rigor sem limites da lei à qual se encontra exposto. O
abandono não constitui uma intimação a comparecer sob esta ou aquela imputação de lei. É
constrangimento a comparecer absolutamente diante da lei, diante da lei como tal na sua
totalidade. Do mesmo modo ser banido não significa estar submetido a uma certa disposição de
lei, mas estar submetido à lei como um todo. Entregue ao absoluto da lei, o banido é também
30
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 13: “O ponto em que estes dois aspectos do poder convergem permaneceu, todavia,
singularmene à sombra na pesquisa de FOUCAULT, tanto que se pôde afirmar que ele teria constantemente se recusado a
elaborar uma teoria unitária do poder. Se FOUCAULT contesta a abordagem tradicional do problema do poder, baseada
exclusivamente em modelos jurídicos (‘o que legitima o poder?’) ou em modelos institucionais (‘o que é o Estado?’), e
sugere ‘liberar-se do privilégio teórico da soberania’ (FOUCAULT 1976, p. 80), para construir uma analítica do poder que não
tome mais como modelo e como código o direito, onde está, então, no corpo do poder, a zona de indiferenciação (ou, ao
menos, o ponto de intersecção) em que técnicas de individualização e procedimentos totalizantes se tocam?”
31
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., pp. 298-299.
32
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 34.
33
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 35.
16
abandonado fora de qualquer jurisdição... O abandono respeita a lei, não pode fazer de outro
modo. (NANCY, 1983, pp. 149-150)”
34
Assim, uma conexão entre a vida nua “insacrificável e, todavia, mátável”
35
-, do homo
sacer homem santo e maldito
36, 37
-, e a violência que impõe e conserva a culpa, cuja pena,
acendendo duas velas, vai expiar a sua culpa, atendendo ao poder punitivo, e purificar a sua
falta, atendendo aos interesses médicos.
Com isso, o Estado mata não somente, ou não necessariamente, o corpo do homem,
sua vida natural, senão sua vida politicamente reconhecida, sua vida social, mesmo que o
deixe vivo fisicamente.
38
Com efeito, “tudo acontece como se os cidadãos varões devessem
pagar a sua participação na vida política com uma incondicional sujeição a um poder de
morte, e a vida pudesse entrar na cidade somente na dupla exceção da matabilidade e da
insacrificabilidade.”
39
Então, ou se mata o corpo, ou se mata o homem, ou se mata ambos,
seja usando-se do poder punitivo, seja da Medicina.
Mas, qual o problema da regulamentação baseada na informação, é dizer, na estatística
que se esquadrinhou antes? Primeiro, que com ela o indivíduo não passava de um mero, de
importância dependente da sua posição antes ou depois da vírgula que dividia os aptos e os
inaptos ao trabalho. Segundo, que nela o racismo encontrou campo fértil. Terceiro, que ela foi
a porta de entrada do quarto dos fundos do positivismo.
Sobre o primeiro, as evidências são incontestes.
Sobre o segundo, pelo ângulo de visada da separação e da diferença, sobretudo porque
o controle estatal equivocadamente, advirta-se -, pressupõe disparidade, anormalidade, é que se
pode dizer, antes de se discutir sobre a influência do racismo, que:
“De uma forma mais geral ainda, pode-se dizer que o elemento que vai circular entre o disciplinar
e o regulamentador, que vai se aplicar, da mesma forma, ao corpo e à população, que permite a
um tempo controlar a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatórios de uma
multiplicidade biológica, esse elemento que circula entre um e outro é a ‘norma’. A norma é o que
pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer
regulamentar.”
40
Acima se acenou para as contradições do biopoder, bem como para o recuo da
soberania diante do avanço deste. Pois bem. Pergunta-se FOUCAULT se, “então, nessa tecnologia
de poder que tem como objeto e como objetivo a vida..., como vai se exercer o direito de
34
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 66.
35
Em torno da vida nua, escreveu AGAMBEN, Giorgio. Homo..., pp. 90-91: “A vida insacrificável e, todavia, matável, é a vida
sacra. ...Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é,
matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera.
36
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 86.
37
Sobre a contradição, escreveu AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 88: “Na vida dos conceitos, há um momento em que eles
perdem a sua inteligibilidade imediata e, como todo termo vazio, podem carregar-se de sentidos contraditórios.”
38
Em parte, assim, AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 96.
39
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 98.
40
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 302.
17
matar e a função do assassínio, se é verdade que o poder de soberania recua cada vez mais e
que, ao contrário, avança cada vez mais o biopoder disciplinar ou regulamentador?
41
E as
inquietações do saudoso escritor não cessam. “Como um poder como este pode matar, se é
verdade que se trata essencialmente de aumentar a vida, de prolongar sua duração, de
multiplicar suas possibilidades, de desviar seus acidentes, ou então de compensar suas
deficiências?
42
Intranquilo, continua. “Como, nessas condições, é possível, para um poder
político, matar, reclamar a morte, pedir a morte, mandar matar, dar a ordem de matar, expor à
morte não seus inimigos mas mesmo seus próprios cidadãos?
43
Além disso, “Como esse
poder que tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? Como exercer o
poder da morte, como exercer a função da morte, num sistema político centrado no
biopoder?
44
Foi para resolver essas questões emergenciais
45
, cuja contradição implodia-o e, de
corolário, desmontava-o externamente, que começou a ser utilizada pois ela existia, embora
com outro funcionamento
46
-, a técnica do racismo
47
, pautada em questões estatísticas que, em
última medida, gabaritavam aqueles que deveriam ser eliminados ou proscritos, pois era isso
que ia “deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura.”
48
Foi naquele momento de emergência, hoje tornado perene, dizia-se,
“que o racismo se inseriu como mecanismo fundamental do poder, tal como se exerce nos Estados
modernos, e que faz com que quase o haja funcionamento moderno do Estado que, em certo
momento, em certo limite e em certas condições, não passe pelo racismo. Com efeito, que é o
racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domíno da vida de que o poder se
incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da
espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças como boas e de outras, ao
contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico
de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em
relação aos outros. Em resumo, de estabelecer uma cesura que será do tipo biológico no interior
de um domínio considerao como sendo precisamente um domínio biológico. Isso vai permitir ao
poder tratar uma população como uma mistura de raças ou, mais exatamente, tratar a espécie,
41
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., pp. 303-304.
42
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 304.
43
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 304.
44
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 304.
45
Essa mesma emergência desloca a questão para lado oposto, segundo AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 19: “Hoje, em um
momento em que as grandes estruturas estatais entraram em processo de dissolução, e a emergência, como BENJAMIN havia
pressagiado, tornou-se a regra, o tempo é maduro para propor, desde o princípio em uma nova perspectiva, o problema dos
limites e da estrutura originária da estatalidade. Posto que a insuficiência da crítica anárquica e marxista do Estado era
precisamente a de não ter nem mesmo entrevisto esta estrutura e de assim ter deixado apressadamente de lado o arcanum
imperii, como se este não tivesse outra consistência fora dos simulacros e das ideologias que se alegaram para justificá-lo. No
entanto, acabamos cedo ou tarde nos identificando com o inimigo cuja estrutura desconhecemos, e a teoria do Estado (e em
particular do estado de exceção, ou seja, a ditadura do proletariado como fase de transição para a sociedade sem Estado) é
justamente o escolho sobre o qual as revoluções do nosso século [século XX] naufragaram.”
46
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 304.
47
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 308: “Em linhas gerais, o racismo, acho eu, assegura a função de morte na
economia do biopoder, segundo o princípio de que a morte dos outros é o fortalecimento biológico da própria pessoa na
medida em que ela é membro de uma raça ou de uma população, na medida em que se é elemento numa pluralidade unitária e
viva. Vocês estão vendo que aí estamos, no fundo, muito longe de um racismo que seria, simples e tradicionalmente,
desprezo ou ódio das raças umas pelas outras.”
48
Sobre a citação e o parágrafo, veja FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., pp. 304-305.
18
subdividir a espécie de que ele se incumbiu em sub-grupos que serão, precisamente, raças. Essa é
a primeira função do racismo: fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo biológico a que
se dirige o biopoder. De outro lado, o racismo terá sua segunda função: terá como papel permitir
uma relação positiva, se vocês quiserem, do tipo: ‘quanto mais você matar, mais você fará morrer,
ou ‘quanto mais você deixar morrer, mais, por isso mesmo, você viverá’. E diria que essa relação
(‘se você quer viver, é preciso que você faça morrer, é preciso que você possa matar’) afinal não
foi o racismo, nem o Estado moderno, que inventou. É a relação guerreira: para viver, é preciso
que você massacre seus inimigos’. Mas o racismo faz justamente funcionar, faz atuar essa relação
de tipo guerreiro ‘se você quer viver, é preciso que o outro morra’ -, de uma maneira que é
inteiramente nova e que, precisamente, é compatível com o exercício do biopoder. De uma parte,
de fato, o racismo vai permitir estabelecer, entre a minha vida e a morte do outro, uma relação que
não é uma relação militar e guerreira de enfrentamento, mas uma relação do tipo biológico:
‘quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais
forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mais eu não enquanto
indivíduo mas enquanto espécie viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei
proliferar’. A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha
segurança pessoal a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, do
anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura. ...A raça, o
racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização. Quando
vocês têm uma sociedade de normalização, quando vocês têm um poder que é, ao menos em toda
a sua superfície e em primeira instância, em primeira linha, um biopoder, pois bem, o racismo é
indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a vida dos outros.
A função assassina do Estado pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do
biopoder, pelo racismo.”
49
Aqui se evidencia, portanto, a junção perfeitamente voltada para o mal, entre
estatística e evolucionismo, também usados pelo poder punitivo para legitimar a normalização
porquanto, de acordo com AGAMBEN, “o direito tem caráter normativo, é ‘norma’ (no sentido próprio de
‘esquadro’) não porque comanda e prescreve, mas enquanto deve, antes de mais nada, criar o âmbito da
própria referência na vida real, normalizá-la
50
-, que, por sua vez, legitima o biopoder, o racismo, a
medicina seletiva e o poder punitivo em um círculo vicioso sem começo nem fim.
Ora, continua FOUCAULT:
“A partir daí... se pode compreender certo número de coisas. Pode-se compreender, primeiro, o
vínculo que rapidamente eu ia dizer imediatamente se estabeleceu entre a teoria biológica do
século XIX e o discurso do poder. No fundo, o evolucionismo, entendido num sentido lato ou
seja, não tanto a própria teoria de DARWIN quanto o conjunto, o pacote de suas noções (como:
hierarquia das espécies sobre a árvore comum da evolução, luta pela vida entre as espécies,
seleção que elimina os menos adaptados) -, tornou-se, com toda a naturalidade, em alguns anos do
século XIX, não simplesmente uma maneira de transcrever em termos biológicos o discurso
político, não simplesmente uma maneira de ocultar um discurso político sob uma vestimenta
científica, mas realmente uma maneira de pensar as relações de colonização, a necessidade das
guerras, a criminalidade, os fenômenos da loucura e da doença mental, a história das sociedades
com suas diferentes classes, etc. Em outras palavras, cada vez que houve enfrentamento,
condenação à morte, luta, risco de morte, foi na forma do evolucionismo que se foi forçado,
literalmente, a pensá-los.”
51
Lá atrás se dizia que a morte pelo poder soberano poderia ser indireta, e realmente o é,
porque, agora:
“Vocês compreendem, em consequência, a importância eu ia dizer a importância vital do
racismo no exercíco de um poder assim: é a condição para que se possa exercer o direito de matar.
Se o poder de normalização quer exercer o velho direito soberano de matar, ele tem de passar pelo
racismo. E se, inversamente, um poder de soberania, ou seja, um poder que tem direito de vida e
de morte, quer funcionar com os instrumentos, com os mecanismos, com a tecnologia da
normalização, ele também tem de passar pelo racismo. É claro, por tirar a vida não entendo
49
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., pp. 304 a 306.
50
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 33.
51
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., pp. 306-307.
19
simplesmente o assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o ato de
expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte
política, a expulsão, a rejeição, etc.”
52
Mas, qual seria, realmente, no fundo, o mote dessa economia do biopoder? Talvez seja
aquilo que CARNELUTTI, saudoso processualista italiano, disse sobre o interesse e, de
consequência, sobre a necessidade:
“O conceito de interesse é fundamental tanto para o estudo do processo quanto para o do Direito.
Interesse não significa um juízo, mas uma posição do homem, ou mais exatamente: a posição
favorável à satisfação de uma necessidade. A posse do alimento ou do dinheiro é, antes de tudo,
um interesse, porque quem possui um ou outro está em condições de satisfazer a sua fome. Os
meios para a satisfação das necessidades humanas são os bens. E se acabamos de dizer que
interesse é a situação de um homem, favorável à satisfação de uma necessidade, essa situação se
verifica, pois, com respeito a um bem: homem e bem são os dois termos da relação que
denominamos interesse. Sujeito do interesse é o homem e objeto daquele é o bem. ...Se o interesse
significa uma situação favorável à satisfação de uma necessidade; se as necessidades do homem
são ilimitadas, e se, pelo contrário, são limitados os bens, ou seja, a porção do mundo exterior
apta a satisfazê-las, como correlativa à noção de interesse e à de bem aparece a do conflito de
interesses. Surge conflito entre dois interesses quando a situação favorável à satisfação de uma
necessidade excluir a situação favorável à satisfação de uma necessidade distinta. Se Tício tem a
necessidade de se alimentar e de se vestir, e possui apenas o dinheiro para conseguir uma das duas
coisas, existe conflito entre os dois interesses correspondentes. Se Tício e Caio têm necesidades
de alimentar-se e não há alimento mais que para um apenas, nos encontramos perante um conflito
de interesses entre duas pessoas.”
53
Em um mundo onde cada vez o mais escassos os bens que oferecem felicidade ao
indivíduo, a busca pelos mesmos bens por pessoas diferentes enseja um interesse, uma disputa
que pode ser resolvida pela guerra ou pelo biopoder mediante a técnica do racismo
54
, onde
o Estado, assumindo a função magistral de árbitro do conflito, decide quem deverá sucumbir à
vontade de quem, não sendo preciso revelar, novamente, o vitorioso, qual sendo, o mais forte,
o mais inteligente, o mais rico, o mais apto doce -, ao trabalho manual ou intelectual, em
suma, aquele que, em termos racistas, servirá melhor ao Estado
55
e, sendo atendido por este, e,
assim, animado com a ilusão de que, com isso, fez-se justiça, contra ele não se sublevará
buscando asssumir a hegemonia do poder.
O evolucionismo, portanto, teve efeitos extremamente deletérios na sociedade,
porquanto, aliado à estatística, reforçou a idéia equivocada de que havendo conflito de
interesses, um deve ganhar e o outro perder, necessariamente!
E as consequências não param por aí. Em seu Homo sacer, AGAMBEN diz que “em
particular, o desenvolvimento e o triunfo do capitalismo não teria sido possível, nesta
52
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 306.
53
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de Direito Processual Civil: introdução e função do processo civil, v. I. São Paulo:
Classic Book, 2000, pp. 55 e 60.
54
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 314: “Quando se trata simplesmente de eliminá-lo economicamente, de fazê-lo
perder seus privilégios, não se necessia de racismo. Mas, quando se trata de pensar que se vai ficar frente a frente com ele e
que vai ser preciso brigar fisicamente com ele, arriscar a prórpia vida e procurar matá-lo, foi preciso racismo.”
55
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 309: “Portanto, o racismo é ligado ao funcionamento de um estado que é
obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação da raça para exercer seu poder soberano. A justaposição, ou
melhor, o funcionamento, através do biopoder, do velho poder soberano do direito de morte implica o funcionamento, a
introdução e a ativação do racismo. E é aí, creio eu, que efetivamente ele se enraíza.”
20
perspectiva, sem o controle disciplinar efetuado pelo novo biopoder, que criou para si, por
assim dizer, através de uma série de tecnologias apropriadas, os ‘corpos dóceis’ de que
necessitava.”
56
Algures, na tentativa de ajustar a teoria de FOUCAULT, assenta AGAMBEN, que:
“A tese foucaultiana deverá, então, ser corrigida ou, pelo menos, integrada, no sentido de que
aquilo que caracteriza a política moderna não é tanto a inclusão da zoé na pólis, em si
antiguíssima, nem simplesmente o fato de que a vida como tal venha a ser um objeto eminente
dos cálculos e das previsões do poder estatal; decisivo é, sobretudo, o fato de que, lado a lado com
o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado
originariamente à margem do ordenamento, vem progresivamente a coincidir com o espaço
político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato entram em uma zona de
irredutível indistinção. O estado de exceção, no qual a vida nua era, ao mesmo tempo, excluída e
capturada pelo ordenamento, constituía, na verdade, em seu apartamento, o fundamento oculto
sobre o qual repousava o inteiro sistema político; quando as suas fronteiras se esfumam e se
indeterminam, a vida nua que o habitava libera-se na cidade e torna-se simultaneamente o sujeito
e o objeto do ordenamento político e de seus conflitos, o ponto comum tanto da organização do
poder estatal quanto da emancipação dele. Tudo ocorre como se, no mesmo passo do proceso
disciplinar através do qual o poder estatal faz do homem enquanto vivente o próprio objeto
específico, entrasse em movimento um outro processo, que coincide grosso modo com o
nascimento da democracia moderna, no qual o homem como vivente se apresenta não mais como
objeto, mas como sujeito do poder político. Estes processos, sob muitos aspectos opostos e (ao
menos em aparência) em conflito acerbo entre eles, convergem, porém, no fato de que em ambos
o que está em questão é a vida nua do cidadão, o novo corpo biopolítico da humanidade.”
57
Terceiro, se escrevia acima, a regulamentação foi a porta de entrada do quarto dos
fundos do positivismo. Em Médicos e assassinos na Belle Époque, DARMON exemplificou
muito bem os equívocos desta escola, citando os erros avaliativos dos casos de HELDER e da
Ogra de Goutte-d’Or
58
e que, por si sós, demonstram o perigo da manutenção das suas
idéias, tão mal representadas hoje em dia nas medidas de segurança.
O corpo foi, então, a catacrase do biopoder, e, mesmo não se podendo assim
pronunciar, afirma-se equivocadamente ter passado a existir entre aquele e este uma
metonímia. E o equívoco advém da silepse de gênero inscrita na discordância entre os valores
que deveriam ser observados naquele, é dizer, sua substantivação, e a adjetivação imposta
neste. Nesse diálogo, portanto, existe uma elipse representada pela omissão de toda uma
oração, melhor seria dizer, de todo um discurso que teima em subliminarmente imiscuir-se na
vida das pessoas dando a falsa sensação prosopopéica de que os corpos das pessoas, tornados
inanimados pela medicina, e imóveis pelo poder punitivo possuem uma linguagem e um
sentido imanente às pessoas. Infeliz, vetusto e caro engano!
Direito e Medicina se apropriaram do corpo, da mente, da alma, da vida das pessoas,
do seu presente medicalizando-as, encarcerando-as, torturando-as -, passado observando seus
cadáveres -, e futuro determinando o que lhes seria melhor, higiênica e saudavelmente, e prescrevendo-lhes
56
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 11.
57
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., pp. 16-17.
58
Respectivamente, sobre os mesmos, veja DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque: a medicalização do
crime. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 191, pp. 22 e 247.
21
o que era proibido. Mas, essa usurpação teve consequências endógenas e exógenas, quase
sempre desfavoráveis ao indivíduo.
Exógena foi a influência que o corpo sofreu quando, utilizado como instrumento,
serviu ele de exemplo para a teoria da prevenção geral positiva e negativa, neutralizando o ser
como fim ao reduzi-lo a um mero meio, como quando nos espetáculos de execução era e é ele
exposto, ou quando nele se procurava a razão e o motivo de uma contaminação qualquer,
inviabilizante da vida em sociedade.
Endógena se deu quando seu corpo sofreu o influxo da procura pelo ponto diabólico
que reverberava sua criminalidade, ou quando nele se observavam quaisquer anomalias,
porquanto, para a Medicina “os sintomas no corpo devem [deveriam] ser observados por
longo tempo para serem descritos detalhadamente para uma intervenção moral e curativa.”
59
No mais, requente-se, graças ao racismo houve um corte interno na vida, decidindo quem
deveria viver e quem deveria morrer.
60
Segundo VERA MALAGUTI BATISTA,
“O que morre faz com que o bom viva mais puro e mais sadio através de uma relação biológica,
de eliminação de perigos internos e externos: ‘é a condição para que se possa exercer o direito de
matar’. É que FOUCAULT compreende o vínculo entre a teoria biológica do século XIX e o
discurso do poder com relação à sexualidade, à criminalidade, à loucura, à infância etc.”
61
De sorte que, “no contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a
distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de
outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de incumbir; uma maneira
de defesa, no interior da população, uns grupos em relação aos outros.”
62
Mas, parece prudente insistir nos motivos e razão de como teria sido possível à
Medicina apropriar-se do corpo do indivíduo e, depois, da sua vida, e, mais tarde, de toda a
população, do seu passado, do seu presente e do seu futuro? E, como teria sido possível ao
Direito, mediante o poder punitivo, invadir a esfera corporal e, dela também se apropriando,
passar a decidir sobre “o direito de fazer morrer ou de deixar viver”
63
?
“FOUCAULT”, requenta VERA MALAGUTI BATISTA,
“ao trabalhar a guerra como ‘gabarito de inteligibilidade dos processos históricos’, afirma que um
dos fenômenos fundamentais do século XIX foi a ‘assunção da vida pelo poder’, uma ‘estatização
do biológico’ que se diferencia das soberanias anteriores: se o soberano exercia seu poder pelo
59
BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2. ed. Rio de Janeiro:
Revan/ICC, 2003, p. 152.
60
Mais em BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., pp. 156-157.
61
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 157.
62
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 156.
63
FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 162.
22
direito de matar, uma das revoluções do direito político do século XIX seria ‘o poder de fazer
viver e de deixar morrer’.”
64
Ora, continua VERA MALAGUTI BATISTA,
“nos séculos XVII e XVIII aparecem as técnicas e dispositivos de poder centrados no corpo, na
tecnologia disciplinar que instituía a ‘distribuição espacial dos corpos individuais’ (postos sob
vigilância asilar, penitenciária, médica etc.) para enquadrá-los e hierarquizá-los: aparece, análoga
à visão médica, uma visão jurídica, a do contrato social constituído em poder soberano, forçado
pelo ‘perigo ou pela necessidade’ para proteger a vida. FOUCAULT afirma que na segunda metade
do século XVIII surge uma outra tecnologia de poder que não destitui a anterior mas que a
incorpora e amplia. Ela se dirige ao homem-espécie, não mais apenas ao homem-corpo mas à
multiplicidade dos corpos individuais que devem ser ‘vigiados, treinados, utilizados,
eventualmente punidos’. Se a primeira tomada de poder foi feita sobre a individualização do
corpo, ela agora é dirigida a uma massa global: o processo que ele denomina ‘biopolítica’ da
espécie humana ‘trata-se de um conjunto de processos como a proporção de nascimentos e dos
óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população etc... primeiros objetos de saber e
os primeiros alvos de controle dessa biopolítica’; a doença aparece como fenômeno de
população.”
65
Bem. A Medicina, após inventar o patológico, o anormal, apresentou-se como
técnica
66
inacessível pois, revela VERA MALAGUTI BATISTA, “são as influências científicas nos processos
biológicos e orgânicos que tornarão a medicina uma ‘técnica política de intervenção, com efeitos de poder
próprios’”
67
-, e única capaz de normalizá-lo, entregando felicidade ao indivíduo. O Direito,
por sua vez, com o exercício do poder punitivo, imprescindiu do uso das normas para veicular
seu discurso pseudoprotetivo. É dizer, imantados pela presença do Estado, que viu em ambos
a vereda confortável que levaria à manutenção e à ampliação da sua posição como dominador,
Direito e Medicina convergiram em suas intenções usando, para tanto, o denominador comum
da norma, que, em última medida, ainda que inconscientemente, repousa na falsa sensação de
que não mais motivo para se ter medo.
68
Aquela relação muita vez espúria, portanto, entre
Medicina e Direito explora e se constrói sobre a luta pelo assenhoreamento do saber e do
poder sobre o medo.
69
Norma para um, como normalização, norma para outro, como
normatização, mas, sempre, norma. Essa foi a ceteris paribus que possibilitou o conúbio
celebrado pelo Estado entre Direito e Medicina, cuja prole mais infeliz foi e ainda não estaria
sendo? -, o positivismo.
64
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 155; enquanto que, na fonte, FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 164.
65
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 153; e, na fonte, FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 166.
66
Mas, segundo FOUCAULT, Paul-Michel. Em defesa..., p. 296: “...mediante um poder que não é simplesmente proeza
científica, mas efetivamente exercício desse biopoder político que foi introduzido no século XIX...”.
67
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 156.
68
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 153: “FOUCAULT nos fala de um medo que surge no meio do século XVIII,
formulado em termos médicos mas animado por um fundo moral. Este medo, metáfora do assombro do horror medieval, vem
das fantasias geradas pelas casas de internamento. ‘Bem antes de formular-se o problema de saber em que medida o desatino
é patológico tinha-se constituído no espaço do internamento e por uma alquimia que lhe era própria, uma mistura entre o
horror do desatino e as velhas assombrações da doença’. É este medo que conduzirá ao aparecimento de, segundo FOUCAULT,
um dos grandes temores do século XIX, a degeneração.”; no original, FOUCAULT, Paul-Michel. História da loucura: na idade
clássica. In Estudos. São Paulo: Perspectiva, 2008, n. 61, p. 355.
69
Escudando-se em ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Curso de Criminologia. Rio de Janeiro: UCAM, mimeo, 2000 apud BATISTA,
Vera Malaguti. O medo..., p. 146.
23
Mas, o que fazer diante de eventuais desvios e desobediências? Era preciso
restabelecer a ordem. Para isso, era preciso convocar-se uma agência mais rápida, arbitrária e
próxima do corpo, cuja função e atuação imediatas e desburocratizadas impediriam a
expansão da rebeldia corporal contra a vontade estatal. Essa função era a policial. No início, a
Medicina se valeu da polícia médica para instituir um
“novo poder que se arma trabalha[ndo] basicamente em duas frentes: uma associada à idéia de
saneamento e urbanização, e outra dirigida ao exercício da medicina, à hegemonia do poder de
curar. A Intendência Geral de Polícia, criada em abril de 1808, conjugava o policiamento em si
com o zelo pela saúde da população; a guarda real se encarregava de tarefas relativas a aterros,
calçamentos, encanamentos etc.”
70
Enquanto que o poder punitivo da mesma se utilizou para levar a cabo seu arbítrio
evolucionista. Hoje, mantidas as funções e alterados em pequena medida os objetivos, ambos,
Medicina e Direito se utilizam da polícia para justificar as medidas de segurança, v. g., o que
já não é pouco.
Mas, como explicar, então, que a norma viabiliza a atuação estatal excepcional,
decidindo quem vive e quem morre se esta decisão reflete um ato, repita-se, de exceção que,
em toda medida, contraria o normal, a regra?
Bem. Sobre isso escreveu AGAMBEN, que:
“O caso de exceção torna evidente do modo mais claro a essência da autoridade estatal. Aqui a
decisão se distingue da norma jurídica e (para formular um paradoxo) a autoridade demonstra que
não necessita do direito para criar o direito... A exceção é mais interessante do que o caso normal.
Este último nada prova, a exceção prova tudo; ela não só confirma a regra: a regra mesma vive
da exceção... Um teólogo protestante que demonstrou de que vital intensidade seria capaz a
reflexão ainda no século XIX, disse: ‘a exceção explica o geral e a si mesma...’.”
71
De sorte que seria mais correto, então, inverter-se a equação para se dizer que: A
norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta... Neste sentido, a exceção é
verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente
excluída.”
72
Aqui, portanto, não seria aberrante traduzir exceção por excesso, visto que: “Diante do
excesso, o sistema interioriza através de uma interdição aquilo que o excede e, deste modo,
‘designa-se como exterior a si mesmo’ (BLANCHOT, 1969, p. 292).”
73, 74
Assim, o Estado pôde, excluindo os desinteressantes ao mercado de trabalho, incluí-
los posto que se deve chamar de relação de exceção a esta forma extrema da relação que inclui alguma
70
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 161.
71
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 24.
72
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 25.
73
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 26.
74
Embora, em outra passagem, AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 26: “Na exceção soberana trata-se, na verdade, não tanto de
controlar ou neutralizar o excesso, quanto, antes de tudo, de criar e definir o próprio espaço no qual a ordem jurídico-política
pode ter valor.”
24
coisa unicamente através de sua exclusão
75
-, nas instituições totais ou na contabilidade dos
matáveis, usando, para tanto, as agências policiais punitivas e médicas, mas, sempre, agências
policiais, ou, quando menos, funções policiais.
E o Estado se valeu, repita-se, da estatística - médica e policial -, criada para atender
mesmo seus interesses, a princípio, logo após a metade do século XVII, e que, ganhando foros
de ciência vai contabilizar, mediante probabilidades, as taxonomias, também as corporais,
cuja redundância no afastamento do leigo quanto ao que acontece e acontecerá com o seu
corpo, viabiliza a aproximação da Medicina como instância técnica inalcançável a ele. Por
outro lado, as idéias evolucionistas de CHARLES ROBERT DARWIN, como visto acima, que
eclodiram na metade do século XIX, também iriam influenciar a Medicina que via na teoria
da seleção natural a arma que faltava para justificar e remarcar as diferenças entre mulheres e
homens
76
, afro-descendentes e brancos, anormais e normais, doentes e sadios, e, assim,
abocanhar um pouco mais de reconhecimento, expressão e terreno. Estatística e seleção
natural, portanto, matematicamente providenciaram e prepararam o campo para, em nossa
materialidade histórica tardia, pontua VERA MALAGUTI BATISTA, “o projeto eugênico do
biopoder, obra de arte do nazismo e da medicina genética do capitalismo tardio” que
“recolhe sua força das políticas de saúde de massa, na regulação das ‘fragilidades e anomalias
biológicas’ pela medicina e higiene social. O problema da loucura no século XIX era como
caracterizar uma patologia que não se caracteriza por lesões anatômicas. Uma das saídas
possíveis foi a incorporação das idéias que se introduziram nas ciências naturais de origem e
evolução: ambas se inscrevem na episteme da história que se destacou, como disse FOUCAULT,
como o modelo forjador da modernidade’.”
77
Pois bem. tínhamos a inacessibilidade da tecnificação médica, a força do poder
punitivo, a norma, a polícia, a estatística e a seleção natural. Agora, já se podia contar com a
classificação, a repressão e a disciplina corporal nacionais. Mesmo porque, “as representações
das áreas fronteiriças do corpo... alertam para o perigo dessas fronteiras que, desprotegidas,
impõem a entrada do caos. ‘Estabelecer categorias e policiá-las é, portanto, assunto sério’.”
78
De sorte que, repita-se, estatística e seleção natural viabilizaram a economia do corpo
vazada em uma burocracia que atravancava a liberdade de viver como se desejasse, sendo
possível apenas viver de acordo com um paradigma estatal previamente determinado, cujas
consequências matemáticas e métricas podem ser acompanhadas seguindo o que escreveu
VERA MALAGUTI BATISTA, i. e.,
75
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., pp. 26 e, literalmente, 29: “...a exceção é... uma exclusão inclusiva (que serve, isto é, para
incluir o que é expulso).”
76
Para saber mais, veja BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 147.
77
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 154.
78
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 147.
25
“esta tentativa de mapear, esquadrinhar, classificar através da observação, mensuração e
comparações, viria a se cristalizar na frenologia (arte de medir o caráter pelas medidas do crânio)
e a fisiognomonia (medir o caráter pela aparência facial), que abriria caminho para a criminologia
lombrosiana décadas mais tarde. O que se gestava na ciência, seguia as pegadas da observação
dos hereges, das feiticeiras, da construção de um discurso científico que abriria caminho para
dispositivos jurídicos de demarcação e eliminação do mal.”
79
Então, “este processo”, o do controle pela biopolítica “produz as preocupações com a
higiene pública, com a centralização das informações, sua normalização e coordenação, com
as pedagogias da higiene e com a medicalização.”
80
De sorte que, com arrimo na estatística, ciência cuja função, requente-se, foi
originalmente voltada em favor do Estado, este, necessitando controlar seus súditos, via nela a
chance de poder não arrolar a situação atual dos corpos domesticáveis, senão, a
oportunidade de escandir e preparar previamente seus planos censitários, e de controlá-los,
pondo estes em prática, no momento oportuno, surgindo, assim, a higienização.
“a medicina, como a teoria do direito, terá [teve] que lidar com um ‘novo corpo’, múltiplo; a
população como problema político, biológico e científico. Esta biopolítica implanta novos
mecanismos, pensados na categoria do tempo, da duração, em série: previsões, estatísticas,
mediações. Esses mecanismos visam a maximizar forças e extraí-las não mais na perspectiva
somente do corpo individual mas nos estados globais de equilíbrio, de regularização do corpo-
espécie; assegurando não uma disciplina, mas uma regulamentação que pode incidir sobre a
multidão urbana trabalhando sua espacialidade, sua poupança, sua velhice, sua higiene, sua
sexualidade.”
81
Continuando. No realismo marginal brasileiro, desde a colônia, passando pelo império,
até hoje, segundo VERA MALAGUTI BATISTA, ancorando-se em GIZLENE NEDER e NILO BATISTA, “o
controle social penal” foi “‘realizado dentro da unidade de produção’ num ‘poder punitivo
que se exerce sobre o corpo de sua clientela’”.
82
Naquele tempo, a apropriação do corpo era feita fisicamente, mediante a imposição de
marcas plasticamente indeléveis, cuja visibilidade classificava e revelava uns em cotejo com
outros.
83
Ademais, esclarece VERA MALAGUTI BATISTA, “até o final do século XIX o discurso
jurídico-policial e o discurso médico se entrelaçariam para criar a criminologia” ciência nova
que, naqueles idos, e antes deles, vincularia poder punitivo e Medicina para, citando NILO
BATISTA, “estabelecer-se a disposição e os dispositivos de cura contra os hereges. Ainda que a
cura fosse a morte.”
84
Cura e morte essas determinadas pelos juízes eclesiásticos e exercidas sobre o corpo
que, durante a Inquisição, precisou “de um cirurgião para a descoberta do punctum
79
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., pp. 152-153.
80
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 155.
81
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 156.
82
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., pp. 124-125.
83
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 134.
84
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 146.
26
diabolicum. Colaborando com o trabalho dos juízes, os médicos se transformam na autoridade
que estará à frente de uma nova repressão...”.
85
Passados os mais de oito séculos de inquisição, o ponto diabólico precisava ser
reencontrado, agora - e com descoberta mais difícil, porquanto em local escondido -, sob o signo da
doença mental
86
ou da incapacidade para o trabalho.
Mais tarde, é dizer, voltando àquele século XIX, mas ainda perante um projeto
medicalizador, “o que a medicina brasileira... enfrentava era então a ameaçadora configuração
de uma população negra, índia, majoritariamente mestiça, e portanto inferiorizada,
degenerada, patologizada e perigosa. Como regenerá-la?”
87
Sobre isso, e voltando ao projeto higiênico,
“pode-se afirmar que o processo de medicalização da sociedade, quando ‘a medicina investe
sobre a cidade disputando um lugar entre as instâncias de controle social’, aconteceu na mesma
conjuntura em que se erigia a ordem jurídico-penal. São processos concomitantes e análogos, que
se intensificam no pós-Independência para dar conta do controle desta nova e pujante categoria: o
povo brasileiro.”
88
Nessa época, para a tardia materialidade histórica brasileira, pontua VERA MALAGUTI
BATISTA,
“o discurso jurídico penal e o médico se encontram para um controle regular, efetivo e científico
que transitará pelo século XIX até se transformar num discurso específico: a criminologia. Unidos
agora pela polícia, o mundo jurídico e o mundo médico voltarão a se dividir, se especializar e se
enclausurar nos seus dogmas. As duas corporações ainda hão de lutar no território sombrio da
medicina-legal para disputar poder de polícia, que acabará por se constituir num outro mundo,
num outro discurso. Mas isso já serão coisas do século XX.”
89
É durante o século XIX que, também, o conceito de saúde sofreu mutações, rompendo
com a noção que este detinha na colônia, passando a institucionalizar-se mediante a
interferência na população que passou a receber um planejamento e uma execução médica e,
simultaneamente, política, higienizando não só os lugares, mas as pessoas, todos necessários à
normalização e viabilização governamentais.
90
E isso se deveu, repita-se, àquele medo de que nos conta FOUCAULT, porquanto, em
O medo na cidade do Rio de Janeiro, ensina VERA MALAGUTI BATISTA que,
“a cidade malsã, com seus vapores pérfidos, suas ruas de escravos e de medo, seus dejetos à
deriva, sua sujeira, começa a constituir-se em preocupação permanente. O medo das multidões,
instaurado a partir do Grande Medo de 1790, da Revolução Francesa, se espraia no Império
Brasileiro de forma mais difusa, mais vaga e mais insidiosa. No censo de 1849, o Rio de Janeiro
85
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 146.
86
BATISTA, Nilo. A lei como pai. In Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. Rio de Janeiro,
jan. 2010, v. 2, n. 3.
87
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 157.
88
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 160 e, também citando MACHADO, Roberto et alii. Danação da norma: medicina
social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. 18.
89
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 162.
90
Tudo de acordo com BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 161.
27
tem a maior população escrava negra das Américas. O medo dos miasmas se soma ao medo da
africanização.”
91
Mas, e quais seriam aquelas coisas do século XX, que se dizia atrás?
Em O corpo diante da Medicina, ANNE MARIE MOULIN afirma que:
“a história do corpo no século XX é a de uma medicalização sem equivalente. Ao assumir e
enquadrar um sem-número de atos ordinários da vida, indo além daquilo que fora anteriormente
imaginável, a assim chamada medicina ocidental tornou-se não apenas o principal recurso em
caso de doença, mas um guia de vida concorrente das tradicionais direções de consciência. Ela
promulga regras de comportamento, censura os prazeres, aprisiona o cotidiano em uma rede de
recomendações. Sua justificação reside no progresso de seus conhecimentos sobre o
funcionamento do organismo e a vitória sem precedentes que reivindica sobre as enfermidades,
atestada pelo aumento regular da longevidade. Esse domínio da medicina encontrou o seu limite
em uma resistência da população a abdicar de sua autonomia. A multiplicação de suas
intervenções, algumas delas tocando a integridade da pessoa, seus modos de reprodução e sua
maneira de morer, suscitou a inquietação na própria corporação, que permitiu a seu lado um lugar
para a sociedade civil e para as autoridades políticas e religiosas. A história do corpo no século
XX é a de uma expropriação e de uma reapropriação que talvez chegue um dia a fazer de cada um
o médico de si mesmo, tomando a iniciativa e as decisões com pleno conhecimento de causa.
Sonho encorajado pela idéia de uma transparência do corpo, um corpo totalmente exposto,
explorado em suas profundezas e, afinal, diretamente acessível ao próprio sujeito.”
92
Sendo assim, não nos parece que estaria certo, ao menos em parte, OLIVIER FAURE
quando em O olhar dos médicos, explica que:
“hoje em dia não nos é possível falar de nosso corpo e de seu funcionamento sem recorrer ao
vocabulário médico. Para nós, o corpo é ‘naturalmente’ um conjunto de órgãos-sede de processos
fisiológicos e bioquímicos. Nós designamos e localizamos nossas doenças de acordo com uma
geografia e uma terminologia de influência médica, mesmo que não recubram perfeitamente a
nosologia oficial. Longe de ser inconsequente, essa terminologia orienta nossa representação e
nossa experiência do corpo. O vocabulário técnico que utilizamos nos permite fazer de nosso
corpo um objeto exterior com o qual podemos tomar um mínimo de distância e afastar as
inquietações que ele nos inspira. Também não resta dúvida de que este quadro analítico
condiciona a escuta de nosso corpo e nos torna mais atentos aos distúrbios audíveis pelo médico
do que aos demais. Contudo, seria exagerado acreditar que a leitura de nosso corpo seja
unicamente uma leitura médica. ...Diversamente do que se poderia acreditar, tais atitudes não são
apenas resíduo de crenças irracionais antigas ou sinais de resistência a uma medicina tecnicista e
despersonalizante. Com efeito, elas se alimentam amplamente de representações medicais dos
últimos dois séculos, que fazem do corpo um organismo dependente de seu ambiente e de
comportamentos daquele que o possui. Assim, a visão médica contemporânea do corpo está longe
de reduzi-lo a uma série de órgãos, de células e de mecanismos gerados por leis psicoquímicas. A
idéia de que a medicina ocidental teria aniquilado, dois séculos, a existência do enfermo e a
autonomia do indivíduo ao despedaçar o corpo e a doença é, sem dúvida, uma visão caricatural.
Se o esquema médico tornou-se dominante em nossas maneiras de falar e viver o corpo é, talvez,
porque ele é mais complexo do que certo vulgarismo denuncista o tenha afirmado. ...Se a
medicina transforma-se no principal guia de leitura do corpo e da doença é porque a ciência
médica se elabora no seio da sociedade e como resposta a seus questionamentos, e não num
universo científico totalmente subtraído da realidade.”
93
E não nos é possível nos referirmos a nosso corpo sem a intervenção médica por causa
de uma intervenção onde a Medicina, apresentando-se como técnica imprescindível,
conseguiu impor seu discurso como único capaz de melhorar a vida das pessoas. Aqui, o cão
rotaciona atrás da própria calda, pois, não foi a presença da Medicina que justificou e provou
91
BATISTA, Vera Malaguti. O medo..., p. 163.
92
In CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: as mutações do olhar: o século XX.
2. ed. 3. v. Petrópolis: Vozes, 2008, pp. 15-16.
93
In CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: da revolução à grande guerra. 2. ed.
2. v. Petrópolis: Vozes, 2008, pp. 13 a 15.
28
sua imprescindibilidade, senão, foi sua presença que demonstrou sua pujança em um campo
onde não prescindível era apenas o respeito à liberdade corporal.
Além disso, ele não está certo porque, em A história do corpo, aduzem ALAIN CORBAIN,
JEAN-JACQUES COURTINE e GEORGES VIGARELLO:
“trata-se de um trabalho mais sombrio do que evocado por FOUCAULT: o de um corpo concebido
como alvo do poder, objeto tão profundamente investido e modelado por ele que segrega uma
visão do mundo e do social. O corpo sujeito a normas é inclusive um corpo ‘corrigido’, no qual a
sujeição física produz uma consciência também ela subjugada. Daí a história dessas disciplinas
desenvolvidas no curso dos séculos para tornar os indivíduos sempre mais ‘dóceis e úteis’, esta
lenta construção de influências físicas sempre mais insinuantes, substituindo as apreensões do
corpo quase violentas no começo da modernidade por um jogo discreto e ‘ininterrupto de olhares
calculados’.”
94
A medicina, então, foi e é a grande válvula que, respectivamente, regulava e continua
regulando a permanência dos que interessam ao mercado de trabalho e dos que desinteressam
a esse, independentemente da condição pessoal de nele estar-se inserido ou mesmo da vontade
de a ele se integrar. Infelizmente, essa é uma das suas grandes contribuições, mas, certamente,
a menos feliz de todas.
Não bastasse, ela faz uso e é usada pelo poder punitivo que, com suas técnicas
militarizadas, apropria-se do corpo, da carne, do osso e do sangue do indivíduo, mas, também,
da sua alma, da sua vida nua, matável a um golpe quando exponha a perigo a
regulamentação que poderia pôr a nu um Estado que, eleito e dependendo da vida dos seus
súditos, despreza-os não somente perante si, senão, uns perante os outros.
É isso, talvez, o que mais dói, na alma e no corpo dessa gente miserável!
Infelizmente, e, por fim, a quadra não parecesse alvissareira, pois, adverte AGAMBEN,
“até que, todavia, uma política integralmente nova ou seja, não mais fundada sobre a
exceptio da vida nua não se apresenta, toda teoria e toda praxe permanecerão aprisionadas
em um beco sem saídas, e o ‘belo dia’ da vida só obterá cidadania política através do sangue e
da morte ou na perfeita insensatez a que a condena a sociedade do espetáculo.”
95
94
In CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: da renascença às luzes. 2. ed. 1. v.
Petrópolis: Vozes, 2008, p. 12.
95
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 19.
29
1 HISTÓRIA DO DIREITO PENAL
96
E DO DIREITO PENAL MÉDICO
1.1 Uma anamnese com quem redigiu e com quem proferiu o discurso que
acasalou Medicina e Direito
Sobre a história do Direito Penal eu poderia dizer o seguinte, e logo explicarei o
porquê dessa afirmação.
A despeito de alguém haver sustentado que, antanho, fora possível sim, uma
existência e, até mesmo, uma evolução, além de pré-social
97
, social pré-jurídica
98
, parece
pouco provável que o Direito, como meio compositor de conflitos que, tecnicamente, sempre
tentou ser, não tenha se instalado, pari passu e, definitivamente, na ilha situada entre o Brasil
e a África que DANIEL DEFOE escolheu como estada, por mais de cinco lustros, para o náufrago
ROBINSON CRUSOÉ “símbolo do capitalista”
99
primitivo -, após o encontro desse com o silvícola
SEXTA-FEIRA.
100
Com efeito, enquanto é perfeitamente aceitável que a coexistência de ambos
naquela ilha atlântica próxima ao Caribe não autorizaria, por si só, o reconhecimento da
presença de uma ordem jurídica formal
101
, senão a de uma que, a despeito de rudimentar,
impunha deveres e outorgava direitos, todos recíprocos, a partir da convivência destas
personagens passa a ser imperativa a admissão de que um Direito, inclusive Penal
102
,
96
Quem não detiver sua curiosidade sobre a dinâmica histórica da programação criminalizante no Brasil, deverá ler a
descortinante e impressionantemente realista obra de ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR,
Alejandro. Direito Penal brasileiro: teoria geral do Direito Penal, v. 1. Rio de Janeiro: Revan, 2003, sobretudo a partir da
página 359.
97
CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal: parte geral, v. I. Campinas: Lzn, 2002, p. 29.
98
GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; CINTRA, Antonio Carlos Araujo. Teoria Geral do Processo. 26.
ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 25.
99
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias dos pensamentos criminológicos. In coleção pensamento criminológico. Rio de
Janeiro: Revan/ICC, 2008, n. 15, p. 203.
100
Nesse sentido, conquanto implicitamente, PETIT, Eugène. Tratado Elementar de Direito Romano. Campinas: Russell,
2003, p. 19: “O homem está dotado de uma vontade livre que lhe permite desenvolver suas faculdades naturais. No entanto,
em sociedade, essa liberdade está forçosamente limitada pelo respeito à liberdade de outros. Disso resulta a necessidade de
regras que garantam a cada membro do corpo social, com uma medida igual, o exercício de sua atividade. A teoria desses
princípios constitui o direito, em sua acepção mais extensa. A palavra direito é derivada, com efeito, de dirigere, e implica
uma regra de conduta. Considerado desse modo, o direito é o conjunto de regras que regem as relações sociais.”
101
Sobre a formalização dos meios de controle social, veja HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito
Penal. Porto Alegre: SAFE, 2005, pp. 412 e seguintes.
102
Por enquanto, e em atenção ao conteúdo que esta expressão detinha antigamente, prefere-se ainda não alertar para o fato
de que ela deve ser interpretada como “poder punitivo”, conforme a lição de ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro;
SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal: parte general. 2. ed. 1. reimpressão. Buenos Aires: EDIAR, 2002, pp. 4-5, é dizer: “El uso
de la expresión derecho penal es equivoco: con frecuencia se la emplea para designar una parte del objeto del saber del
derecho penal, que es la ley penal. La imprecisión no es inocua, porque confunde derecho penal (discurso de los juristas) con
legislación penal (acto del poder político) y, por ende, derecho penal con poder punitivo, que son conceptos que es menester
separar nítidamente, como paso previo al trazado de un adecuado horizonte de proyección del primero. ...El sistema
orientador que le propone a los jueces debe tener por objeto contener y reducir el poder punitivo. El poder punitivo no es
ejercido por los jueces sino por las agencias políticas (legislativas) y que el poder jurídico (judicial) no logra contener. El
poder de que disponen los jueces es de contención y a veces de reducción. La función más obvia de los jueces penales y del
derecho penal (como planeamiento de las decisiones de éstos), es la contención del poder punitivo. Sin la contención jurídica
30
adviria inevitável
103
e simultaneamente
104
, ainda que sob um formato injusto.
105
Todavia, o
reconhecimento de um direito afivelado à sociedade
106
, mesmo que composta por dois
indivíduos, não admite, ainda, sua consideração sequer como um gérmen do Direito Penal,
sendo, mesmo assim, menos seguro dizer que esse - além de ainda não ter, até hoje, sua paternidade
definitivamente reconhecida, pois se uns entendem que ele foi precedido pela religião
107
, alguns a ele atribuem
uma concepção arrimada, necessariamente, na “natureza humana”
108
, enquanto outros, mais otimistas, nele
enxergam uma confusão do profano com o religioso
109
-, como controle social - dos dominados pelos
dominantes -, pseudo-formalizado, mesmo que bastantemente pouco aperfeiçoado, somente
surgiu quando a sociedade percebeu que a prática de certos atos alterava sobremaneira a paz
(judicial), el poder punitivo quedaría librado al puro impulso de las agencias ejecutivas y políticas y, por ende, desaparecería
el estado de derecho y la República misma.”
103
MOMMSEN, Theodor. Derecho Penal romano. 2. ed. Colombia: TEMIS, 1999, p. 88: “Si en general puede decirse que el
orden jurídico del Estado es más antiguo que la ley formulada, esta afirmación es aplicable, ante todo, al derecho penal, que
toma su base en la moralidad de la naturaleza humana.”
104
Contra essa simultaneidade, porque insatisfeito com a mera associação fraterna, exigindo o pressuposto de uma
“sociedade civil”, CARRARA, Francesco. Programa..., pp. 32-33: “Mas tal missão (a do Direito Penal) não podia ser
executada pelo indivíduo desagregado, nem mesmo pelos homens reunidos em uma mera associação fraterna constituída no
princípio da igualdade absoluta. Ainda aqui, a diversidade de vontades e a paridade do poder tornariam impossível a
proibição, a sanção e o julgamento dos fatos humanos; e, por outro lado, a sanção e o julgamento constituem o complemento
indispensável da lei moral na parte em que esta regula os deveres do homem para com a coletividade. Esse complemento,
apenas a sociedade civil poderia dá-lo.”
105
Abstraindo o pano de fundo temporal do referido romance, verbi gratia: “Tábua II – Si nox furtum factum sit; si aliquis
occisit jue caesus esto” (Se alguém comete um furto à noite, que seja morto e aquele que o matou não sofra nenhuma pena).”
In MEIRA, Silvio A. B. A lei das XII tábuas: fonte do direito público e privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972, pp. 72-
73.
106
Religiosamente, cumpre anotar que os mandamentos foram dedicados ao homem, antes mesmo da retirada de uma das
suas costelas, logo substituída por carne, havendo, ao menos sob essa ótica impagã uma determinação dirigida a um ser
solitário, i. e., uma ordem jurídica pré-evolutiva-social: “E Iahweh Deus deu ao “homem” este mandamento: “Podes comer
de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela
comeres terás que morrer... Iahweh Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe
corresponda... Então Iahweh Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e fez crescer
carne em seu lugar. Depois, da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem.” In A
Bíblia de Jerusalém, Gênesis 2. São Paulo: Paulinas, 1980, pp. 33-34.
107
CARRARA, Francesco. Programa..., pp. 42-43: “O Direito Penal tem a sua gênese e a sua norma numa lei que é absoluta,
porque constitutiva da única ordem possível à humanidade, segundo as previsões e a vontade do Criador... As suas
demonstrações não derivam da palavra do homem, mas devem ser deduções lógicas da razão eterna, da qual Deus, por
admirável inspiração, revelou aos homens o quanto era necessário para regular-lhes a conduta perante seus semelhantes na
terra.”
108
O que é necessariamente mais correto, haja vista que a motivação do crime e a sua punição, encontravam hospitalidade
mais adequada no instinto humano, pois, a princípio, o homem, desconhecedor de qualquer entidade superior, cometia um ato
criminoso em atenção às suas necessidades alimentares, enquanto o ofendido retribuía a ofensa, ou afastava-a, sustentado na
mesma necessidade.
109
Creditando a TOMÁS DE AQUINO, por sua Suma Teológica, parte dessa confusão, ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p.
49: “Para TOMÁS DE AQUINO, existia certamente um direito divino – ou lei eterna – que emanava diretamente da razão de
Deus e, portanto, só por este e pelos santos entendíveis, mas também existia um direito natural mais intelígível e que
participava do eterno. A justificativa do poder se baseia na suposta existência desse direito natural, da qual derivaria o direito
humano e, com ele, o delito, visto como uma violação a esse direito natural que determina que se deve praticar o bem e evitar
o mal. A associação entre delito e pecado é absoluta, mediante este ‘direito’ que compreendia o espiritual e também, e
sobretudo, o terreno. O delito seria, pois, uma demonstração do estado em pecado e, além disso, seria algo ‘anti-natural’ (pois
a tendência natural seria a de fazer o bem e quem comete um delito faria o mal). Em todo caso, é desta forma que a noção de
delito ingressa nos pensamentos ocidentais.”; também, SOLER, Sebastian. Derecho Penal argentino, v. I. 5. ed. 11.
reimpressão. Buenos Aires: TEA, 1999, pp. 62-63: “El problema que en este punto se plantea no consiste en destacar una
forma externa de reacción, sino en buscar las raíces profundas de lo que después há venido diferenciándose como Derecho
Penal. Para ello, lo más importante es relacionar la idea de Derecho Penal con la de lo prohibido en grado supremo. Esta
idea se muestra en la prehistoria constantemente vinculada a un sistema sumamente extendido y complejo, en el cual lo
prohibido se confunde en un solo principio mágico, fundamentalmente religioso, al cual modernamente se le ha dado el
nombre de prohibiciones tabú, tomándose esta palabra de diversos dialectos polinésios.”
31
comum, do que acreditar que a prática destes mesmos atos incomodava quem dominava o
discurso. E isso, notadamente, se deu antes mesmo de alguma imaginação ou percepção
humana de uma divindade qualquer, ou, quando muito, arrimada em uma prestidigitação
inexplicável, porém, aparentemente, sensível.
110
O que, por si só, afasta sua inconsistente
origem religiosa, evidentemente diante do caráter de alteridade que o Direito Penal possui,
inexistente nos comandos não secularizados. E, tanto é assim que, dando-nos conta do seu
surgimento, mais tarde, como ramo incipiente do saber jurídico durante o século do
humanismo, na época, como Direito, então, Criminal, afirma ANITUA que a especialização
teria a ver com o melhor manejo de uma técnica especialmente complicada.”
111
Todavia, com a percepção, evidentemente falsa, embora não para a época
112
, de que os
comandos religiosos
113
, sozinhos - e, a hoje, nenhum outro -, não seriam páreo para o
desmantelamento das condutas ditas criminosas
114
, ou quiçá fosse melhor dizer, inaceitas -
mormente por condicionarem sua eficácia ao talante de um ser superior
115
que, inclusive, podia variar a
quantidade, a modalidade e a rapidez do castigo, inclusive para casos idênticos, ao sabor de elementos
incompreensíveis
116
, porém, incrivelmente inegociáveis
117
-, é que se passou a solicitar uma resposta
110
O que, à toda evidência, demonstra que não basta a coexistência humana, senão, que é necessária, também, a apreensão do
sentido da própria existência, e desta para com pelo menos mais um outro. Parecendo acompanhar essa afirmação, SOLER,
Sebastian. Derecho..., pp. 61-62: “La interpretación racional de los fenómenos, tan característica de una cultura
evolucionada, basada en la construcción conceptual, no explica claramente los hechos sociales primitivos, porque la cultura
del hombre primitivo no estaba construida sobre una base científica, naturalista y experimental, como la nuestra, que
descansa, ante todo, en los principios de identidad, contradicción y razón suficiente. La idea de causalidad, tan influyente en
todas nuestras actividades, se muestra totalmente rudimentaria, y gran parte de los fenômenos son explicados no por esa ley
sino por princípios mágicos... La manera de explicitar las relaciones parece basarse en asociaciones elementales de ideas;
la semejanza y la contiguidad desempeñaban la funcion de la causalidad. Diríase que la interpretación de los hechos era
totalmente metafórica.
111
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 77.
112
ASÚA, Luis Jiménez de. Tratado de Derecho Penal, v. I. 5. ed. Buenos Aires: Losada, 1992, pp. 58-59: “Parece hoy
suficientemente demostrado por los estudios etnológicos y sociológicos, que el hombre primitivo no rigió su conducta
conforme a los principios de causalidad y de conciencia del yo. La retribución y la magia, de una parte, y la psicología
colectiva de otra, configuran la cosmovisión del alma primitiva.”
113
As etapas da justiça punitiva podem ser assim resumidas, segundo FRANZ VON LISZT: “a) primera época. Crimen es
atentado contra los dioses. Pena, medio de aplacar la cólera divina; b) segunda época: crimen es agresión violenta de una
tribu contra otra. Pena, venganza de sangre de tribu a tribu; c) tercera época: Crimen es transgresión del orden jurídico
establecido por el Poder del Estado. Pena es reacción del Estado contra la voluntad individual opuesta a la suya.” In LISZT,
Franz von. Die Kultur der Gegenwart (pp. 195-196) apud ASÚA, Luis Jimenez de. Tratado..., p. 245.
114
Obviamente, não no sentido das teorias preventivas de há pouco tempo. Mais do mesmo pode ser encontrado em
CARRARA, Francesco. Programa..., p. 32: “Para completar a atuação da lei da ordem na vida terrena, era mister, portanto, um
fato ulterior, em razão do qual a lei moral fosse fortalecida, na Terra, por uma coação e uma sanção sensíveis, a fim de que o
preceito moral, que impunha ao homem respeitar os direitos do próximo, não fosse palavra vã, e o mundo moral, presa de
contínua desordem, não estabelecesse feio contraste com a ordem que impera no mundo físico. Essa força coatora e
repressiva, que a lei moral não possuía em si mesma, não podia ser encontrada senão no próprio braço do homem.”
115
E, justamente, porque não havia, a não ser recorrendo-se à fé, qualquer prova inequívoca de que a pena possuía qualquer
ligação com o (a) crime (criminalização) levado a termo (etiquetada).
116
SOLER, Sebastian. Derecho..., p. 62: “En la producción de los fenômenos se creia ver la directa actuación de fuerzas
anímicas misteriosas de las cuales el individuo era un simple ejecutor.”; imprecisão esta que, porém, não era desmentida
nem mesmo pela certeza da inter-relação entre o precedente e o conseqüente, de acordo com LÉVY-BRUHL: “Esa relación
entre el hecho ejecutado y el mal que por él ocurrirá es tan íntima, que tiene una forma perfectamente reversible: si se viola
el tabú ocurrirá la desgracia x; si ocurre tal hecho desgraciado es que fue violado el tabú x.” apud SOLER, Sebastian. Op.
cit., p. 64.
117
Nesse sentido, LÉVY-BRUHL e FAUCONNET, citados por SOLER, Sebastian. Derecho..., pp. 64-65: “La infracción engendra
sus consecuencias independientemente de las intenciones del agente, y de manera, diríamos, automática.”
32
que, embora rigorosa em excesso
118
, principalmente sob o ponto de visada da pacificação,
atendia aos anseios da rapidez e da certeza
119
de que o criminoso
120
- que podia, inclusive, ser
protagonizado por um objeto, algo imaterial ou mesmo por um animal
121
-, estava pagando pelo que havia
feito
122
, ou não, na hipótese, sempre corrente na ocasião, em que terceiros, malgrado alheios
ao fato eram também reputados criminosos
123
, respondendo por um resultado para o qual não
haviam sequer contribuído.
124
Somente depois de algum tempo é que o Direito Penal - que
ainda prefiro não chamar de poder punitivo -, rudimentar, atentando para a necessidade sonegada ou
não percebida, de mantença de braços guerreiros e de mão de obra -, de que o castigo incidisse,
exclusivamente, sobre a pessoa do criminoso então, passado a único responsável
125
-, permitiu à
118
E, aqui, sequer se está falando, ainda, na pena de talião, onde se proclamava a conhecida fórmula do olho por olho, dente
por dente, mão por mão que, em toda medida, malgrado seu atual paradoxo, naquele contexto dito evolutivo representou sim,
um avanço na humanização das penas. Se não, vejamos o que diz SOLER, socorrendo-se, implicitamente, dos ensinamentos de
von HIPPEL que interpretou o talião “como el paso a la pena púlica”: “El sistema talional, supone la existencia de un poder
moderador y, en consecuencia, envuelve ya un desarrolho social considerable. Por él la venganza se limita en una cantidad
exactamente equivalente al daño sufrido por el ofendido: ojo por ojo, diente por diente, según la enunciación de la ley
mosaica.” In SOLER, Sebastian. Derecho..., pp. 66-67, e nt. 24.
119
ASÚA, Luis Jimenez de. Tratado..., pp. 240-241: “Parece hoy suficientemente demostrado por los estudios etnológicos y
sociológicos, que el hombre primitivo no rigió su conducta conforme a los principios de causalidad y de conciencia del yo.
La retribución y la magia, de una parte, y la psicología colectiva de outra, configuran la cosmovisión del alma primitiva...
Nos es incorrecto llamar a esas prohibiciones las leyes de los dioses que no deben ser infringidas. La penalidade, por la
desobediencia de esos mandatos tácitos, es el retiro del poder protector de la divinidad... Busquemos ahora la causa y
origen de ese temor a los dioses y al terrible tapú al que dan poder. Esa causa puede expresarse brevemente: era el hecho de
que las ofensas contra los dioses se castigaban en este mundo, no en el porvenir de los espíritus.”
120
Sobre a diferença entre criminoso e criminalizado, BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal:
introdução à sociologia do Direito Penal. In coleção pensamento criminológico, n. 1. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2002,
pp.. 85-86: “...pelo menos dentro de certos limites, a adesão a valores, normas, definições e o uso de técnicas que motivam e
tornam possível um comportamento ‘criminoso’, são um fenômeno não diferente do que se encontra no caso do
comportamento conforme à lei. A distinção entre os dois tipos de comportamento depende menos de uma atitude interior
intrinsecamente boa ou má, social ou anti-social, valorável positiva ou negativamente pelos indivíduos, do que da definição
legal que, em um dado momento distingue, em determinada sociedade, o comportamento criminoso do comportamento
lícito.”; de outro lado, tão crítico quanto cético, HASSEMER, Winfried. Introdução..., pp. 105-106: “O problema central do
labeling approach reside justamente no setor cujo domínio ela reclama para si: esta teoria, que se compreende como
sociológica (criminal), emprega suas questões crítícas a um ponto no qual entram em jogo as explicações sociológicas. Se
pronunciássemos a criminalidade como resultado de uma definição, então seria de total relevância saber sob quais
pressupostos se define alguém como criminoso.”
121
A imaturidade desse regime pode ser descortinada na seguinte passagem de ASÚA, Luis Jimenez de. Tratado..., p. 242: “Se
es responsable por el mero efecto dañoso y no importa que el sujeto haya quebrantado las prohibiciones conciente o
inconcientemente. El tabú violado exige la expiación. Y como debe purificarse el ambiente del malefício, también los objetos
inanimados y las bestias deben responder del mal que produjeron.”
122
SOLER, Sebastian. Derecho..., p. 65: “La responsabilidad no es siempre individual y ni siquiera exclusivamente humana.
No consiste en una relación entre el sujeto y su acción, sino en un estado, en una impureza, atribuible tanto a un hombre,
como a un animal, como a una cosa.”; enquanto ASÚA, Luis Jimenez de. Tratado..., p. 242: “Y como debe purificarse el
ambiente del malefício, también los objetos inanimados y las bestias deben responder del mal que produjeron.”
123
ASÚA, Luis Jimenez de. Tratado..., p. 245: “Una forma de éste es el castigo en la persona de los siervos”.
124
Era, pois, corriqueiro, infelizmente, que, muita vez, toda a família do condenado custeasse sua falta, consubstanciada em
um crime, então, espraiado a todos. Nestes termos, elucidativo SOLER, Sebastian. Derecho..., pp. 62 e 65: “Por otra parte, la
clara separación de los individuos entre si, como entidades autónomas, autoconcientes, no parece asumir esa importância
típica de nuestro tiempo; el individuo recibe sus características del grupo, clan o tribu a que pertenece, y el hecho por él
ejecutado no tiene el sello de una obra individual, propria, sino colectiva. La reacción determinada por la lesión no cae
sobre un individuo sino sobre todos aquellos que corresponden al mismo grupo... La responsabilidad no es siempre
individual... La infracción producida por un individuo de determinado totem podia ser vengada contra cualquiera
perteneciente al mismo totem.”; estranhamente, e aqui deve ser perdoada a ironia, a programação criminalizante primária
brasileira, séculos mais tarde, repetiu os mesmos erros, a que tivemos notícia graças à impagável obra de ZAFFARONI,
Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, especialmente pp. 359 e seguintes.
125
Obviamente, aqui não se estão considerando os crimes praticados em concurso, ou seja, fática ou dominialmente por mais
de uma pessoa.
33
tribo e, de corolário, à família do condenado o direito de serem absolvidos de com ele custear
um concurso apenatório que, inclusive, desconhecia limites sanguíneos atingindo, quase
sempre, mesmo os parentes mais distantes
126
, o que se dava mediante um abandono noxal.
127
No dizer de ANITUA,
“não havia uma reação pública diante do dano, mas sim aquele que afirmava tê-lo sofrido devia
indicar o suposto responsável como adversário. Em todo caso, o grupo respondia ao dano - e à
denuncia do dano -, mediante a perda da paz do ofensor que, assim, era expulso da comunidade e
ficava à mercê da reação da vítima ou da família da vítima. Isso nem sempre significava que
ocorreria a morte. Na verdade, os afetados costumavam exigir uma compensação. Tal
contraprestação econômica soía resolver o conflito.”
128
Contudo, isso não equacionou a questão de um Direito Penal brutal que teimava em
pairar, incisivamente, sobre as sociedades antigas, sobretudo retribuindo um mal com outro
igual ou superior.
129
Havia, ainda, o problema probatório a ser resolvido, entregue durante até
bem pouco tempo a todo matiz de julgadores, incluindo-se nesse rol desde deuses, semi-
deuses
130
e, o que é pior, entregue à propria composição física do condenado, ou à propria
natureza
131
, mediante o manejo de rmulas messiânicas, duelares, esportivas, ou mesmo
126
Castigo que acontecia quando um indivíduo, que não pertencesse à tribo, perturbava esta, um ou vários de seus membros.
Nesse sentido, ASÚA, Luis Jiménez de. Tratado..., p. 242: “...aparece sobre todo, como un combate contra el extranjero y
contra su gens, como una venganza de sangre que se ejerce de tribu a tribu, como venganza colectiva, que termina con la
desaparición de una de las dos partes contendientes.
127
SOLER, Sebastian. Derecho..., pp. 67-68: “Correspondiendo a las primitivas formas colectivas de venganza, parece
admisible la hipótesis de que la expulsión de la paz constituye también un progreso hacia la individualización de la pena.
Según este modo de interpretar la institución, la tribu, al retirar su protección al autor del delito, lo deja librado a la
venganza del ofendido y de los suyos; pero al mismo tiempo queda ella libre, por medio de esta espécie de abandono noxal,
de que la persecución recaiga sobre otros miembros de la colectividad. La expulsión de la paz representaria así un paso
torpe y rudimentario, lo mismo que el talión, hacia la limitación de la venganza en su sentido extensivo.”
128
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., pp. 43-44.
129
Paradigmático quanto a isso, ASÚA, Luis Jimenez de. Tratado..., pp. 244-245: “El desenvolvimiento posterior de la pena
nos muestra con la aceptación de domicilio fijo y el conseguiente relajamiento de la tribu propiamente dicha, la
dulcificación de la reacción aniquiladora dirigida contra el criminal, que originariamente, careciendo de medida y de
finalidad, era impetuosa y violentíssima... Entonces la gravedad de la pena infligida por el Estado, comienza a graduarse
por la gravedad de la lesión jurídica. La idea eclesiástico-religiosa del Talión (ojo por ojo, diente por diente), da al instinto
de venganza una medida y un objeto. El talión no es pena, como creyó Lardizábal que lo incluye entre lo géneros de ésta.
Talión es, según San Isidoro: “La similitd en la venganza, a fin de que cada uno padezca talmente como lo hizo”.
130
COULANGES, Fustel. A cidade antiga. 4. ed. 2. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 133: “Os deuses tomavam
muitas vezes forma humana, e mostravam-se aos mortais. Algumas ocasiões vinham assistir às suas lutas e tomar parte nos
seus combates...”, na maioria das vezes, obviamente, decidindo-os, e, não menos obviamente, de forma fantasiada.
131
Em introdução à obra de EUGENIO FLORIAN. De las pruebas penales, v. I. 3. ed. 4. reimpressão. Colômbia: Temis, 2002,
pp. 21-22, escreve PIETRO FREDAS: “Sembrado de espinas, empapado de sangre y regado de lágrimas se nos presenta el
largo camino que las pruebas penales tuvieron que recorrer en los diversos pueblos, siempre, como es bien sabido, en medio
del constante vaivén de las condiciones sociales, políticas y sobre todo sicológicas de las naciones. Considerada en su más
íntimo significado, la evolución externa de los hechos sigue y refleja la evolución interna de los sentimientos y las
concepciones ideológicas que sucesivamente van prevaleciendo. Reuniendo idealmente los momentos generales sintomáticos
que nos pueden suministrar los testimonios históricos, las formas arcaicas de las pruebas se nos presentan impregnadas de
superstición mística o religiosa. Los pueblos primitivos, rudos e inexpertos, desconocedores de las causas de los fenómenos
naturales y de los hechos humanos, no podían explicarse el terrible problema del delito, ni vencer las dificultades de
comprobar las causas y de descubrir el significado de la delincuencia ni a los reos, problema y dificultades que, si son
grandes en nuestros dias, en esos tiempos remotísimos debían aparecer como insuperables. Por lo tanto, se inclinaban o,
mejor, se veían llevados a buscar fuera del hombre, en una potencia suprema, alguna solución, en médio de extraordinario
estupor. De ahí que solo en la divinidad nuestros lejanos progenitores, impulsados por su fe, podían encontrar socorro y
ayuda. Ciertamente no se dirigían a la divinidad porque consideraran el delito como una ofensa contra ella, sino porque el
candor de su fresca imaginación los llevaba a pensar que las potestades divinas podían descubrirlo todo e intervenir en la
contienda para revelar la verdad y proteger al inocente. Así surgieron los juicios de Dios, las ordalías y el juramento del
acusado, expedientes empleados con suma frecuencia y con grande crédito entre los pueblos jóvenes.”
34
fortuitas, porém, todas tarifadas e objetivas e, o que é pior ainda, de razoabilidade
incontrolável pelos interessados, ou por terceiros.
132
Era mister que a sociedade reconhecesse,
e isso demorou bastante - para sermos muito otimistas, pois, ao que parece, a solução ainda não existe ou,
quando muito, não é aplicada -, que o Direito Penal não existe apenas para se auto-proteger, como
pretende, felizmente sem sério sucesso
133
, convencer JAKOBS
134
, senão, que o seu destino, e o
da sociedade que tenciona proteger o mais se compadecem com previsões que, desprovidas
de uma lógica adequada e plausível entre a conduta e a reação escandida pelas agências
políticas e executivas
135
, já se encontram in fieri falidas, ou em estado não impassivo.
136
Assim, da objetiva
137
e desproporcional
138
apenação, passando-se pela
proporcionalidade da pena
139
e, também, pela pessoalidade
140
desta - todas ilegítimas -, após a
indelével intromissão estatal
141
chegou-se, atualmente, ao entendimento de que, embora
alterada a função
142
do Direito Penal
143
, os meios de obter sua otimização ou arrefecer os
132
MONTANELLI, Norberto. Responsabilidad criminal médica. Buenos Aires: García Alonso, 2005, p. 26: “Las malas praxis
eran atribuidas a desgracias o fatalidades del destino, ya que la medicina era considerada un sacerdocio; apuntalado por un
“statu quo” dentro de ese grupo social con absoluto privilegio, aunado a un ejercicio profesional “irrestricto” dentro de la
hasta entonces “ciencia-arte”, liberada absolutamente de toda posibilidad de ser observada y mucho menos juzgada por sus
pacientes.”
133
Pois, em certa medida, o professor alemão não está totalmente errado, conforme denuncia a teoria da prevenção geral
positiva fundamentadora, à qual ele adere em parte. Sobre isso, veja BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal:
parte geral, v. 1. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, pp. 90 e seguintes.; por sua vez, falando em prevenção de integração,
HASSEMER, Winfried. Introdução..., p. 423.
134
JAKOBS, Günther. Derecho Penal: parte general, fundamentos y teoría de la imputación. 2. ed. Madrid: Marcial Pons,
1997, pp. 13-14.
135
Para tanto, consulte ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I,
passim.
136
Mas, esta questão interessante, atual e importantíssima, merece ser melhor estudada nas obras de criminologia, cuja defesa
e sustento em nosso país, na pessoa do professor NILO BATISTA, encontra representação invejável, devendo o interessado,
necessariamente, não deixar de consultá-las todas, sob pena de, inescapavelmente, dogmatizar-se de maneira arrefecida e
cega.
137
ASÚA, Luis Jimenez de. Tratado..., p. 242: “Se es responsable por el mero efecto danoso y no importa que el sujeto haya
quebrantado las prohibiciones conciente o inconcientemente.”
138
ASÚA, Luis Jimenez de. Tratado..., p. 242: “Cuando las diversas tribus conviven unidas por vínculos de sangre, sobre el
mismo territorio, se cambia la forma de la reacción social, apareciendo dos géneros de pena igualmente primitivos: a) El
castigo de un miembro de la tribu, que en el interior de la misma ha cometido una infracción contra ésta o alguno de sus
miembros; b) Castigo del individuo no perteneciente a la tribu, que ha perturbado la actividad o la voluntad de aquélla o de
uno o varios de sus miembros... En el segundo caso aparece sobre todo, como un combate contra el extranjero y contra su
gens, como una venganza de sangre que se ejerce de tribu a tribu, como venganza colectiva, que termina con la desaparición
de una de las dos partes contendientes.”
139
Proporcionalidade objetiva que, naquela época, nem sempre respeitava, quantitativamente, a ofensa deflagrada.
140
Proporcionalidade subjetiva que, naquela época, nem sempre respeitava a pessoalidade, porquanto um crime provocado
por um único agente, desde que atingisse duas ou mais pessoas poderia ricochetear em penas que abrangessem idêntico
quantum de parentes do mesmo.
141
As etapas da justiça punitiva podem ser assim resumidas, segundo FRANZ VON LISZT: “a) primera época. Crimen es
atentado contra los dioses. Pena, medio de aplacar la cólera divina; b) segunda época: crimen es agresión violenta de una
tribu contra otra. Pena, venganza de sangre de tribu a tribu; c) tercera época: Crimen es transgresión del orden jurídico
establecido por el Poder del Estado. Pena es reacción del Estado contra la voluntad individual opuesta a la suya.” In LISZT,
Franz von. Die Kultur der Gegenwart (pp. 195-196) apud ASÚA, Luis Jimenez de. Tratado..., p. 245.
142
Que, atualmente, comporta, inclusive, transações - que, embora restrinjam algum direito do concordante -, não têm
qualquer resquício sancionatório na técnica acepção deste termo, ou mesmo delações premiadas, simbolicamente
absolvitórias.
143
Apesar de, por boa parte do texto, estar-se falando em pena, porquanto ser impossível desvincular-se a história do Direito
Penal da sua conseqüência por excelência - qual sendo, a sanção -, e, mesmo porque, no princípio, e até bem pouco tempo, o
Direito Penal era, somente, pena, com esta se confundindo, evidentemente, não se deve confundi-la, hoje, com o próprio
35
danos advenientes de seu uso precisam, contrabalançando e compensando, amoldar-se a uma
sociedade que, partindo do capitalismo industrial migrou para o capitalismo de serviços
144
,
onde as exigências de quantidade foram substituídas pelas da qualidade, em razão de que “as
crises” passaram a adquirir
“outras formas de manifestações e ameaças, visíveis, por exemplo, na exclusão de milhões de
braços do mercado de trabalho (essa força produtiva arcaica e em vias de superação), sobre os
quais recai, então, o jugo de um robusto e crescente sistema punitivo, cuja função é ‘ordenar’ o
caos resultante da continuidade dessa forma de sociedade em decomposição.”
145
Mas, esse capitalismo de serviços retrata uma sociedade pós-moderna
146
, desservindo,
portanto, para revelar a origem do Direito Penal Médico, cujas raízes, inescapavelmente, se
deitam em passado bem mais remoto
147
, conquanto de um obscurantismo simbólico
igualmente penetrante na carne e no osso da sociedade, pois, tempos, deve-se ser
convinhável reconhecer junto com BOURDIEU, “a violência simbólica é uma violência que se
exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com frequência, dos que a
exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la.”
148
Do empirismo médico ao cientificismo puro, passando-se, antes, pelo tecnicismo
científico, a vinheta, então, das condutas médicas desde a ideologia do Direito e, em
particular, desde a do Direito Penal, pode aparecer como um tema recente mas que, em
verdade, não foi desprezado pelas civilizações mais antigas
149
que entenderam a importância
desta particular tarefa que tem como característica fundamental a de poder afetar bens
jurídicos essenciais ao ser humano.
150
Ora, se por um lado no Direito antigo inexistia uma
separação – ao menos ôntica
151
-, entre o que era Direito Penal e o que era Direito Penal Médico,
Direito Penal, tratando-se a mesma de uma mera faceta do poder punitivo, enquanto aquele, muita vez, cuida de outros
institutos diversos da pena em si, como é de sabença cediça.
144
Mais do mesmo pode ser visitado em TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria do injusto penal. 3. ed. Belo Horizonte:
Del Rey, 2003, pp. 185-186; veja, também, CABRAL, Juliana Maria Diniz. Os tipos de perigo e a pós-modernidade: uma
contextualização histórica da proliferação dos tipos de perigo no Brasil comtemporâneo. Rio de Janeiro: Revan, 2005,
passim.
145
MENEGAT, Marildo. O olho da barbárie. In coleção trabalho e emancipação. São Paulo: Expressão Popular, 2006, pp. 33-
34.
146
CABRAL, Juliana Maria Diniz. Os tipos..., passim.
147
Sobretudo, após a veiculação das experiências médicas conduzidas pelos médicos nazistas da segunda guerra mundial.
148
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão: seguido de a influência do jornalismo e os jogos olímpicos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1997, p. 22.
149
CUMPLIDO, Manuel José. Consentimiento informado: derecho médico, evolución histórica desde la antigua Grecia a la
actualidad, aspectos jurídicos y legales nacionales e internacionales, teoría del consentimiento informado, información al
paciente. Córdoba: Mediterránea, 2005, p. 26: “En la antigua Grecia las personas que se dedicaban a curar las
enfermedades dejaron de ser empíricos para convertirse en técnicos, cuando lograron dar a los demás una explicación al
porqué y para qué de seu hacer. Es decir, cuando la práctica empezó a sustentarse sobre los conocimientos científicos.”
150
CHAIA, Rubén A. Responsabilidad penal médica. Buenos Aires: Hammurabi, 2006, p. 17.
151
Mutatis mutandis, nesse sentido, verbi gratia, escreve BATISTA, Nilo. Um réquiem para Leide. In Punidos e mal pagos:
violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 54: “... à míngua
de uma qualificação pelo resultado morte no artigo 26 ou de um tipo autônomo de ‘morte por radioatividade’, temos que
recorrer ao crime comum contra a vida. O homicídio, obviamente não intencional e sim culposo, de Leide e sua tia não se
diferencia em nada daquele que teria ocorrido se uma substância venenosa qualquer houvesse sido negligentemene
abandonada numa lixeira habitualmente vasculhada ou vasculhável (nessa última distinção, o grau de culpa). Efetivamente,
36
esta se fazia presente, eventualmente, nesta ou naquela regra prescritiva voltada,
exclusivamente, para a proteção do paciente
152
, ou, mais rudimentarmente, do submisso-
cliente-consumidor. Se bem a medicina foi considerada, em princípio, como uma questão de
caridade, de beneficência ou como meio de procurar o bem estar público, isolando e
controlando os enfermos, vetores de um perigoso contágio, a prática médica se assemelhava
mais a uma arte que a uma profissão, a tal ponto de elevar à categoria de sacerdotes aqueles
que a exerciam, o que não impediu a compilação, durante anos, de regras em relação com a
forma de proceder que ao serem contrariadas traziam aparelhados severos castigos que
incluíam a pena de morte.
153
Com efeito, em uma época em que a medicina se traduzia e
vazava em sortilégios, o feitiço mal conduzido se voltava contra o feiticeiro, podendo dar azo
a uma morte certa do interventor, contra uma eventual do submetido. Contudo, mesmo antes
de qualquer prescrição normativa propriamente legislada - ainda que pouco elaborada
154
-,
desenvolveu-se nas sociedades primitivas - mas não mediante atos criminosos dos adivinhos,
sacrificadores
155
, exorcistas, pajés etc.
156
, que, exercendo a função de mágicos
157
ou feiticeiros
158
, depois, de
parece que os responsáveis pela clínica radiológica estão mais próximos da linha de imputação desses homicídios (em
concurso formal, pois uma só ação produziu mais de um resultado criminoso - artigo 70 do Código Penal), embora, consoante
seus deveres para com a guarda do produto radioativo, não escapem desde logo ao artigo 26.” O que está se tentando afirmar
é, tão somente, a inexistência antiga de a ausência de um reconhecimento legislativo - primitivo, obviamente, e, por isso,
destoante do modelo atual -, que segregasse Direito Penal e Direito Penal Médico, o que, todavia, não significa que muitas
daquelas regras, como a apropriação indébita pelo médico, por exemplo, não fossem aplicadas aos esculápios.
152
RODRIGUEZ, Jose M. Martinez-Pereda. La responsabilidad penal del médico y del sanitário. Madri: Colex, 1997, p. 25:
Ulpiano – Digesto 9, 2, 7, 8 -: ‘...si un médico hubiese operado con impericia a un esclavo, compete la acción de locación o
la ley de Aquilia’. Lo mismo vale, dice Gayo – Digesto 9, 2, 8 -: ‘si hubiese usado mal un medicamento. Sin embargo, el que
hubiere operado bien y hubiese abandonado la curación, no estará exento, sino que se considerará reo de culpa”.
153
CHAIA, Rubén A. Responsabilidad..., p. 17.
154
CHAIA, Rubén A. Responsabilidad..., pp. 17-18: “Diador de Sicilia da cuenta que en Egipto existió un compendio, una
especie de protocolo profesional denominado Libro Sacro, el cual compilaba conocimientos y reglas a las que debían
atenerse los que practicaban la medicina. A fin de mantener esa tradición, luego de tratar al enfermo y en el supuesto en que
este fuera curado, el médico de aquel entonces concurría al templo de Canope o de Menfi, donde se consignaba el curso de
la enfermedad, y se procuraba exponer en el Libro Sacro la mayor cantidad de datos obtenidos a partir del caso concreto.
Por el contrario, si el resultado era desfavorable el médico debía demostrar haber seguido el temperamento que la regla
profesional del Libro Sacro imponía, lo que pone em evidencia la existencia de una verdadera obligación de médios. Si
llegaba a verificar-se la muerte del paciente, se presumia la culpa del médico cuando este había violado las reglas del libro
y, en ese caso, el proprio curador era condenado a muerte. En Grecia, la responsabilidad médica se concibió bajo un
riguroso control ejercido desde la ética del juramento hipocrático, emblemático punto de referencia que demuestra
acabadamente la conciencia de los médicos de la época y la necesidad de autoreglamentar el ejercicio de la medicina, de
modo tal que se eliminen o se atenúen los inconvenientes profesionales, técnicos y deontológicos. El Derecho romano
también previó y sancionó la responsabilidad médica fundada en el abandono de los cuidados al enfermo luego de una
intervención, en la imperícia por haber operado mal e incluso en la inoportuna administración de medicamentos.”
155
SOURNIA, Jean-Charles. História da Medicina. In coleção história e biografias. Sem local: Instituto Piaget, sem data, p. 30:
“Muitos deles exercem funções oficias, na corte, no templo, onde se consagram às tarefas de veterinário, apreciando a
qualidade dos animais destinados aos sacrifícios ou à alimentação.”
156
SOURNIA, Jean-Charles. História..., p. 26: “Na Ásia ocidental... adivinhos, sacerdotes, sacrificadores, médicos, todos eles
tratam os doentes.”
157
No Egito, de acordo com SOURNIA, Jean-Charles. História..., p. 30: “Alguns clínicos designaram-se a si próprios como
médicos-mágicos ou médicos-sacerdotes.”
158
ALVES, Rubem. O médico. 7. ed. Campinas: Papirus, 2002, p. 17: “Antigamente, os médicos eram também feiticeiros.
‘Mestre, diga uma única palavra, e minha filha será curada...’.”
37
curandeiros
159
, acumuladas mais tarde com a de sacerdote
160
, junto com sua autoridade
161
sequer cometiam
crimes, mesmo porque toda a sorte ou azar eram creditados a um ser superior ou a algo incompreensível ou
inatingível
162
-, a convicção de que o adivinho e o curandeiro, então exercendo a função
rudimentar de médicos - que só mais tarde se desvinculariam da autoridade advinda da magia e da
divindade
163
-, podiam, simplesmente, errar
164
- embora sob a função de intervenientes, no caso,
incompetentes, de um ser messiânico, esse sim, perfeito -, recebendo, a partir de então, uma sanção,
cuja natureza primeira, como é de sabença cediça, era a pena, inicialmente voltada a aplacar a
ira dos deuses.
Antes de continuar, porém, é preciso fazer uma advertência. No início, afirmou-se que
se poderia dizer tudo isso sobre o Direito Penal. Poder-se-ia sim. Mas, isso não é importante,
ou, quando menos, deveria ser encarado com o devido desconto, porquanto isso é apenas uma
história fabricada que tenta a nós ser imposta pelo próprio peso da autoridade que ela - ou os
seus agentes
165
-, somado o tempo da sua repetição, insiste em possuir. Outrossim, isso é apenas
159
Sobre o curandeirismo em parte da história brasileira, veja SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Sortilégio de saberes:
curandeiros e juízes nos tribunais brasileiros (1900-1990). São Paulo: IBCCrim, 2004, n. 29, passim.
160
SOURNIA, Jean-Charles. História..., pp. 15 e 16: “Diz-se que as medicinas primitivas tomavam muita coisa de empréstimo
à magia, antes de se tornarem primeiro sacerdotais e depois científicas. Cada um destes termos mereceria esclarecimentos
mais aprofundados, pois a sua conotação pejorativa ou apologética não corresponde provavelmente ao medo milenar do
homem perante a doença e o sofrimento. ...Admite-se geralmente que a medicina, a princípio mágica e depois religiosa, se
teria tornado pouco a pouco científica, isto é, resultante de observações precisas e racionais fundadas na experimentação.”
161
SOURNIA, Jean-Charles. História..., p. 17: “Este ‘agente de comunicação’ possui o saber ou um dom e desfruta de uma
autoridade sobre o clã ou a tribo devido à sua fortuna ou por hereditariedade. Torna-se o ‘parlamentar’, designado ou eleito, e
desempenhará o papel de sacerdote ou de médico, por vezes de ambos.”
162
NAVA, Pedro. Capítulos da História da Medicina no Brasil. São Paulo: Ateliê; Paraná: Eduel; São Paulo: Oficina do Livro
Rubens Borba de Moraes, 2003, pp. 193-194 e 196-197: “Em resumo, podemos considerar na medicina do nosso índio a
existência de certo número de conhecimentos empíricos e de um lastro muito maior de idéias mágicas, as quais dominavam
na terapêutica dos pajés - onde o chocalhar do maracá tinha um lugar muito mais importante que a administração dos
medicamentos que podiam ter alguma virtude. ...A este elemento juntar-se-ia logo em seguida o subsídio cultural
importantíssimo trazido pelo negro. Semelhante elemento seria tanto mais rapidamente assimilado quanto chegava sem
arestas, antes mostrando nos seus feitiços e contra-feitiços, nas suas mandingas, orixás, ‘coisas-feitas’, nos seus amuletos e
mágicas, aquela identidade profunda e aquela similitude essencial que facilitariam sua fusão com as práticas e crenças da
medicina sobrenatural do índio e da medicina popular do lusitano. ...Deus e o demônio desempenham um papel na
causalidade mórbida, como a considera o nosso sentimento popular. Castigo de um ou astúcia do outro. ...A cura
sobrenatural, um dos dogmas de nossa medicina popular, é reminiscência das obtidas por intermédio do padre exorcista, do
pajé e do quimbanda: os orixás, já o dissemos, confundem-se neste terreno com os santos do hagiológio católico.”
163
Contraditoriamente CAIRUS, Henrique F.; RIBEIRO JÚNIOR, Wilson A. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença.
In coleção história e saúde, clássicos e fontes. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005, pp. 11-12 e 31: “Por volta de 500 a. C., os
médicos gregos já haviam começado a dissociar a medicina das práticas mágico-religiosas dos séculos anteriores (Edelstein,
1937; Sarton, 1953; Irwin, 1989).... No final do século V, a. C., porém, os médicos se empenhavam energicamente em
desvincular a medicina da filosofia e em reconhecê-la como uma... ‘arte’ autônoma (CH, Da arte; Irwin, 1989).... É preciso
abandonar a idéia de que Hipócrates retirou a medicina das mãos dos sacerdotes, dos curandeiros (guérisseurs) e dos
charlatães. Uma medicina que se apóia sobre observações e raciocínios existe paralelamente a uma medicina mágico-
religiosa muito antes de Hipócrates.”; embora, narre SOURNIA, Jean-Charles. História..., p. 17: “A França exaltava há poucos
anos os curandeiros filipinos, que afirmavam conseguir operar um tumor do abdómen ou do tórax sem fazer qualquer incisão
na pele. Os seus talentos de prestidigitadores só encontravam comparação na ingenuidade dos seus pacientes.”
164
SOURNIA, Jean-Charles. História..., p. 25: “Apesar deste imponente arsenal de identificação do mal, o paciente mostra-se
frequentemente decepcionado, à semelhança deste anônimo: ‘O adivinho, com a adivinhação, não determinou o futuro; o
consultor, com uma fumigação, não desvendou a minha sorte; abordei o necromante mas este nada me revelou, e o mago com
o seu ritual não me libertou da minha cólera’ -, quando não é roubado. No século XXVIII a. C., um soberano de Lagash era
conhecido por ter punido certo número de adivinhos culpados daquilo que hoje chamaríamos um ‘abuso de honorários’.”
165
Bem abrangente, BOURDIEU, Pierre. Sobre..., p. 82: “Em cada um dos campos, o campo universitário, o campo dos
historiadores etc., há dominantes e dominados, segundo os valores internos do campo.”
38
o que as agências que dominam o poder querem que saibamos, é o que elas nos deixam saber.
É apenas a parte legível do discurso escrito no anverso da bula. Existe muito mais além disso,
mas que fica escondido no verso desta, em letras miúdas, confinado, sob disciplina rígida, a
pão e água, a sonífero e leito.
E essa sistemática de dominação é tão vetusta que, comentando sobre o direito à
guerra, para os romanos, escreve MOMMSEN que el rey daba, sí, leyes que obligaban a los
miembros componentes de la comunidad, pero que no le obligaban a él mismo ni a sus
sucesores.”
166
Tanto quanto o é a sonegação da mesma, camuflada nas fossilizadas falsas
garantias do princípio da legalidade, visto que, alerta FOUCAULT,
“seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é feita para todo mundo em nome de todo
mundo; que é mais prudente reconhecer que ela é feita por alguns e se aplica a outros; que em
princípio ela obriga a todos os cidadãos, mas se dirige principalmente às classes mais numerosas e
menos esclarecidas; que, ao contrário do que acontece com as leis políticas ou civis, sua aplicação
não se refere a todos da mesma forma; que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um de
seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona outra fadada à
desordem.”
167
Hic Rhodus, hic salta. Então, poder-se-ia ter dito aquilo tudo e ainda assim não se
estar errado isso, se não for melhor concordar com DEBORD quando ele escreve que “o fato de não ter
contestação conferiu à mentira uma nova qualidade”
168
, quiçá aquela a que se referiu PAUL JOSEPH GOEBBELS, o
marqueteiro nazista -, mas, cum grano salis, estar-se-ia incompleto, pois aquilo seria apenas a
mise-en-scène que distrai o público enquanto um outro espetáculo - que teima em não sair de
cartaz, sobretudo porque, como escreveu DEBORD, “a mais velha especialização social, a especialização do
poder, encontra-se na raiz do espetáculo”
169
-, desenvolve-se por trás das cortinas, mormente porque
no estado de polícia em que vivemos, “onde todos os habitantes estão subordinados ao poder
daqueles que mandam”
170
, fica evidente que há um monopólio
171
, um domínio do discurso
172
-
se bem que eu não tenho certeza, como também não o tem HANNAH ARENDT, quando, escrevendo sobre a guerra,
duvida se ao final dela algum vencedor, merecendo, por isso, a adesão de SCHWARCZ
173
-, e que esse
domínio, além de possuir origem não democrática e de insubmeter-se à lei, tampouco submete
166
MOMMSEN, Theodor. Derecho..., p. 18.
167
FOUCAULT, Paul-Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 35. ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 229.
168
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. 9. reimpressão. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2007, p. 176.
169
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 20.
170
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 41.
171
No caso da medicina, veja o que escreveu PEREIRA, José Carlos de M. A explicação sociológica na medicina social. São
Paulo: Unesp, 2005, p. 175: “Realmente, nas sociedades ocidentais pelo menos, ele tem o monopólio legal da prestação de
serviços médicos.”
172
A alternância do domínio do discurso entre direito e medicina, naquilo que interessa ao presente texto, obviamente, é
inconteste. Sobre ela, veja SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., pp. 211-212: “...desdobrava-se sob outra forma a disputa
entre direito e medicina. Afinal, quem era o responsável pelo arbítrio sobre o crime? Os juízes de direito aptos a aplicar a lei,
ou os médicos peritos, que com sua ciência diagnosticavam o ‘doente criminoso’?”
173
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 238: “Difícil imaginar um único discurso vitorioso.”
39
todos à mesma lei - o que seria um apanágio do estado democrático e social
174
de direito
175
-, vencendo
sempre a classe burguesa porquanto, e aqui deve-se acompanhar, “o esquema linear perde de
vista, primeiro, que a burguesia é a única classe revolucionária que sempre venceu; ao mesmo
tempo, é a única para quem o desenvolvimento da economia foi causa e consequência de seu
domínio sobre a sociedade.”
176
Como é sabido, aliás, como é sonegado, mesmo que nem todos tenham percebido, a
maioria das pessoas abertas a renunciar ao adestramento, quando despertada da modorrência
em que se encontra, reconhece que o poder punitivo
177
, tal como está - visando um embate
classista, cuja vitória sempre se concentra na mesma mão -, dirige-se às classes pobres - mesmo porque,
segundo DEBORD, “a aparência fetichista de pura objetividade nas relações espetaculares esconde o seu caráter
de relação entre homens e classes....”
178
-, e, ou, coloridas - pois o branco é a ausência de cor -, mesmo
que in fieri isso insista em parecer com aquela realimentação, que eu chamo de “teoria da
carapuça com elástico” – assim confeccionado pelo poder punitivo para não correr o risco de não caber! -,
consistente na metáfora vaticínica de ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, de que
“os atos mais grosseiros cometidos por pessoas sem acesso positivo à comunicação social acabam
sendo divulgados por esta como os únicos delitos e tais pessoas como os únicos delinquentes. A
estes últimos é proporcionado um acesso negativo à comunicação social que contribui para criar
um estereótipo no imaginário coletivo. Por tratar-se de pessoas desvaloradas, é possível associar-
lhes todas as cargas negativas existentes na sociedade sob a forma de preconceitos, o que resulta
em fixar uma imagem pública do delinquente com componentes de classe social, étnicos, etários,
de gênero e estéticos. O estereótipo acaba sendo o principal critério seletivo da criminalização
secundária. Daí a existência de certas uniformidades da população penitenciária associadas a
desvalores estéticos (pessoas feias), que o biologismo criminológico
179
considerou causas do
delito quando, na realidade, eram causas da criminalização, embora possam vir a tornarem-se
causas do delito quando a pessoa acabe assumindo o papel vinculado ao estereótipo (é o chamado
efeito reprodutor da criminalização ou desvio secundário).”
180
Ou seja, embora seu uso não tenha sido solicitado, a carapuça coube, e quem a ostenta,
ao perceber a recorrência do seu uso nesse baile de máscaras promovido pelo poder punitivo,
passa a não se incomodar em ser mais um.
174
MARTÍN, Luis Gracia. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para a crítica do
discurso de resistência. Porto Alegre: SAFE, 2005, p. 138: “É evidente que hoje a teoria do Estado que deve figurar como
referente do sistema jurídico em geral, e do penal em particular, não pode ser de modo algum a do Estado liberal de Direito,
mas só – necessária e obrigatoriamente -, como nos ensinou e devemos agradecer a Mir Puig, a teoria do ‘Estado social e
democrático de Direito’, da qual ele partiu para derivar seu sistema jurídico-penal e que deve ser compreendida como uma
referência indispensável para a definição do método.”
175
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 41: “O estado de
direito é concebido como o que submete todos os habitantes à lei....”
176
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 57.
177
Não é possível saber se é perceptível, mas aqui já se passa a utilizar a nomenclatura correta, distinguindo poder punitivo
de Direito Penal.
178
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 20.
179
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 48: “A versão poligenista permitiria, por outro lado, o fortalecimento de uma
interpretação biológica na análise dos comportamentos humanos, que passam a ser crescentemente encarados como resultado
imediato de leis biológicas e naturais. Esse tipo de viés foi encorajado sobretudo pelo nascimento simultâneo da frenologia e
da antropometria, teorias que passaram a interpretrar a capacidade humana tomando em conta o tamanho e proporção do
cérebro dos diferentes povos.”
180
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 46.
40
Fora desse despertador quase inaudível, todos permanecem não insones, acreditando
que somente aquele estereótipo pessoal comete crimes e, portanto, é criminoso, sendo eleito,
por isso, nosso inimigo
181
, inclusive a ponto de o sentenciarmos com uma dicotomia que não
nos ruboriza. Para ele, o Direito Penal, para os outros, o Direito Civil. Para ele, a prisão, para
os outros, a multa. Para ele, a inútil e injustificada retribuição, para os outros, a reparação.
Dualidade a que não permaceu alheio HASSEMER, sobretudo quando dividiu o uso daqueles e
destes não conforme seus destinatários, senão, consoante critérios objetivos que prefiram
alternativa ao encarceramento.
182
Acontece que, grande parte da culpa dessa generalizada e
impensada - para não dizer, hoje, instintiva -, tomada de posição, pelo lado do criminalizado - e
aqui não adiro, descaradamente, ao sociologismo
183
-, pode e deve ser atribuída em muita medida à
própria sociedade - co-responsável
184
, sobretudo quando, além de desabastecê-lo com o mínimo de
cidadania
185
, enquadra-o, por isso, no estereótipo de criminoso criado, previamente, pelas agências de
programação criminalizante primária
186
-; enquanto que, por outro lado, ela pertence à histórica
disputa pelo discurso de dominação, visto que a eloquência médica somente convenceu a
maioria, até o presente momento, em razão da sua retórica impetuosa, tecnificada, habitual e
oportunista.
É dizer, aproveitando GRACIA MARTÍN,
“como nos ensinou FOUCAULT - e, segundo ele mesmo, como ‘a história não cansa de nos ensinar’ -
o discurso é ‘aquele que traduz as lutas ou os sistemas de dominação’, mas, sobretudo, é ‘aquele
pelo qual, e por meio do qual se luta, aquele poder do qual alguém quer apoderar-se’.”
187, 188
181
Os porquês da eleição de inimigos no Direito Penal podem ser encontrados em ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no
Direito Penal. In coleção pensamento criminológico, n. 14. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2007, passim.
182
HASSEMER, Winfried. Introdução..., pp. 388 a 401.
183
Sociologismo significa, segundo WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 158, nt.
42, que: “...a criminalidade teria antes causas sociais do que individuais.”; em outra oportunidade, porém, WACQUANT, Loïc.
As prisões..., p. 45: “...‘uma nova política do comportamento individual’, desvencilhada dos resíduos do ‘sociologismo’ que
até aqui viciou toda abordagem do problema, supondo exageradamente que a miséria tinha causas sociais, suplanta ‘a
reforma social’.”
184
A favor de uma co-culpabilidade, ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho..., pp. 656-
657: “La culpabilidad por la vulnerabilidad reconoce un antecedente importante en el concepto de co-culpabilidad, que
aunque se pretendió considerarlo producto del Derecho Penal de los países del socialismo real, tiene origen muy anterior a
éste. La idea central a que responde es que, dado que ninguna sociedad tiene uma movilidad vertical tan libre que
proporcione a todos sus miembros el mismo espacio social, el reproche de culpabilidad debe adecuarse en cada caso al
espacio social que la persona há tenido y, por consiguiente, la sociedad debe cargar con la parte que le fue negada (es co-
culpable en esa medida). Es incuestionable que esta idea tiene el mérito de introducir en una construcción de la culpabilidad
normativa, que usualmente reconoce raigambre idealista, un potente componente de realismo.” Ainda, vinculando-a à teoria
da pena, HASSEMER, Winfried. Introdução..., p. 426; “A prevenção especial não se reduz à adaptação, senão pode ser
compreendida como forma de uma relação humana com o desvio, como proposta de co-responsabilização social face aos
delinquentes.”
185
Sobre o assunto, veja WACQUANT, Loïc. As prisões..., passim.
186
Agência e criminalização primária são temas que podem ser garimpados em ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo;
ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, capítulo I, § 2°.
187
MARTÍN, Luis Gracia. Prolegômenos..., p. 117.
188
No original, veja FOUCAULT, Paul-Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2
de dezembro de 1970. In coleção leituras filosóficas. 16. ed. São Paulo: Loyola, 2008, p. 10.
41
Mas, para quê? Só pode ser para o exercício de um poder! Mas, como funcionaria esse
artefato? Bem, como explica GRACIA MARTÍN,
“é de fundamental transcendência não ignorar... que o funcionamento real de todo discurso tem
uma dupla positividade material, e daí a grande importância que tem ter o poder de disposição do
discurso. Por um lado, o discurso define os objetos de discurso e as condições dos enunciados
sobre eles. Mas, por outro lado, o discurso, ao mesmo tempo em que define - e isso é tão
importante ou mais que o anterior -, também exclui de seu campo discursivo outros objetos e, por
isso mesmo, os enunciados sobre os objetos excluídos. Por exemplo, o discurso da criminalidade
define e, com isso, constitui um campo discursivo de objetos de criminalidade, mas ao mesmo
tempo exclui desta todos os demais objetos não definidos em seu campo discursivo. Por isso, é
perfeitamente compreensível a transcendência que tem ter o poder de disposição do discurso. Na
medida em que o discurso é poder de definição e de exclusão da criminalidade, o mero fato de
possuí-lo constitui para quem o tenha a condição decisiva da possibilidade de incluir no discurso
da criminalidade a criminalidade de quem não tem esse poder, mas, simultaneamente, também a
possibilidade de excluir daquele a criminalidade própria.... A constituição do Direito Penal como
disciplina é um caso paradigmático de formação do discurso - aqui, de criminalidade -, como
resultado de uma luta por ele na qual são impostos alguns objetos e enunciados determinados e
são excluídos outros que também lutavam por se assenhorear do discurso.”
189
Literariamente, em O alienista”, MACHADO DE ASSIS expõe cruamente essa questão ao
escrever, que: “a câmara, que respondera ao ofício de SIMÃO BACAMARTE com a ressalva de que
oportunamente estatuiria em relação ao final do § 4°, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi
adotada sem debate uma postura, autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas
que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. ...O vereador FREITAS
propôs também a declaração de que, em nenhum caso, fossem os vereadores recolhidos ao
asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e incluída na postura.”
190
É aquilo que aqui se denominará de “teoria do faça o que eu digo, mas não faça o que
eu faço”, ou, “teoria do manda quem pode, obedece quem tem juízo” e, para um ou outro
resquício do positivismo biológico, “até quem não o tem”. Caso contrário: teje preso!
191
Com efeito, arremata o escritor espanhol, “a formação do discurso de uma
determinada forma, e não de outra distinta, é sempre consequência do desenlace da luta pelo
discurso”
192
, cujas consequências em desfavor dos invisíveis sociais, com auxílio, muita vez,
da medicina e da psiquiatria, não descartada uma boa intenção, são inegáveis.
Infelizmente - porque, esclarece DEBORD, “o proletariado poderá ser o poder se ele se tornar a
classe da consciência”
193
-, as classes poderosas, burguesas e capitalistas sempre conseguiram o
domínio do discurso sobre as classes proletárias e socialistas
194
, passando a dizer, ipso facto, o
que seria reputado crime - sendo mais correto dizer criminalização -, e o que não seria, quem seria
considerado criminoso - sendo mais correto dizer criminalizado -, e quem estaria forro desse
189
MARTÍN, Luis Gracia. Prolegômenos..., p. 119 a 121.
190
ASSIS, Machado de. O alienista. 4. reimpressão. São Paulo: Martin Claret, 2010, p. 64.
191
Parte do título de um dos inefáveis artigos do professor BATISTA, Nilo. Sem documentos? Teje preso! In Punidos e mal
pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 116.
192
MARTÍN, Luis Gracia. Prolegômenos..., p. 120.
193
DEBORD, Guy. A sociedade..., pp. 58, in verbis, 78 e 81.
194
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 57; pormenores, ainda, em MARTÍN, Luis Gracia. Prolegômenos..., pp. 121 a 124.
42
adjetivo pejorativo, naquilo que se convencionou alcunhar de labeling approach, ou teoria do
etiquetamento ou do interacionismo
195
, rótulo amiúde em voga nessas épocas de consumo
neoliberal in(dis)criminador.
O Estado, com seu poder punitivo, valendo-se da medicina, e essa, valendo-se
daquele, em um hibridismo quase incestuoso sem precedentes, conceberam um discurso nada
infértil onde a medicina, ancorada pelo Estado, e arrimada em sua tecnicidade sua, inacessível
ao controle da maioria, aproveitou-se de um vazio oratório existente em certa ocasião para
impor sua retórica à laia de melhorar as pessoas e o mundo onde elas viviam quando, em
verdade, era o estabelecimento, a mantença e, ad futurum, a expansão do seu poder o que ela
colimava. E a quadra era alvissareira! O Estado, valendo-se da medicina, ou mesmo essa,
sponte sua, espraiou sua longa manus atingindo o corpo e a mente dos seus súditos-clientes,
ainda mais convencidos, então, da imprescindibilidade da intervenção daquele, por intermédio
daquela, ou da intervenção desta, em suas vidas. Não que SCHWARCZ estivesse certa quando
escreveu que “...desdobrava-se sob outra forma a disputa entre direito e medicina. Afinal,
quem era o responsável pelo arbítrio sobre o crime? Os juízes de direito aptos a aplicar a lei,
ou os médicos peritos, que com sua ciência diagnosticavam o ‘doente criminoso’?”
196
,
porquanto nunca se tratou de uma disputa, senão, de um casamento com cláusula pactuando a
inviabilidade, unilateral ou bilateral, do divórcio, sobretudo porque o representante da religião
proclamou a inseparabilidade “na alegria e na tristeza, e ...na doença”.
É dizer, ensina FREIRE COSTA, aproveitando-se em parte do que escreveu AMARO F. N.
ARMONDE, que
“se, no período pré-higiênico
197
, os crimes estavam, indissociavelmente, referidos à lei do
soberano, à lei do pai ou à lei de Deus, agora eles também podiam ser julgados à luz de novos
preceitos e de uma nova lei: a lei da humanidade, a lei do homem: ‘seja estadista ou artista,
médico ou advogado, professor ou operário, é preciso primeiro que tudo (e é esta a melhor
garantia da ordem na sociedade) que o homem seja homem, isto é, que tenha consciência da sua
missão, do grau de utilidade que tem para os seus semelhantes ...este homem, como é visível,
pairava acima de classes e raças
198
; sua existência permitiu aos higienistas falarem de
humanidade, dando uma dupla conotação ao termo: a espécie biológica, a raça, e a de organização
política, o Estado. Os crimes contra o Estado poderiam, em consequência, converter-se em
atentado à raça e vice-versa. O ilegal e o ‘antinatural’ confundiam-se, fundiam-se, formavam a
195
BARATTA, Alessandro. Criminologia..., pp. 85 e seguintes.
196
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., pp. 211-212.
197
Usando a nomenclatura arcaica, embora mantida a acepção, SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 190.
198
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 47: “Com efeito, o termo raça é introduzido na literatura mais especializada
em inícios do século XIX, por GEORGES CUVIER, inaugurando a idéia da existência de heranças físicas permanentes entre os
vários grupos humanos (Stocking, 1968:29).”
43
matriz teórica do anormal que autorizou a medicina higiênica
199
a converter-se em ortopedia
moral ou medicina do comportamento”
200
,
sendo que, consoante SCHWARCZ, “nas grandes cidades a entrada desse ideário cientificista
difuso se faz sentir diretamente a partir da ação de grandes programas de higienização e
saneamento”, verdadeiros “projetos de cunho eugênico
201
que pretendiam eliminar a doença,
separar a loucura e a pobreza.”
202
“Um novo argumento se esboçava”, finaliza ela, “higienizar
o país e educar seu povo, é assim que se corrige a natureza e se aperfeiçoa o homem.”
203
Parece residir aí, o nascimento do Direito Penal Médico brasileiro, cujo percurso, interação e
posterior modificação, ocorrida quando descoberto o poder que a dominação do discurso
simbólico enseja, tentar-se-á ensaiar a seguir.
Se abaixo se procurou demonstrar o porquê da superação do discurso informal pelo
oficial, agora é hora de chamar a atenção daqueles que, tentando se debruçar sobre as origens
daquela, não conseguiram perceber que a institucionalização da medicina apropriada pelo
Estado, menos que a preocupação com a saúde das pessoas colimou um, ainda que velado,
puro exercício recidivo daquilo que BOURDIEU alcunhou de poder simbólico.
204
De maneira
que, na fase do contágio da medicina pela política, e vice versa, após a assunção pelo
Estado da dirigibilidade da vida das pessoas, a tensão advinda da imbricação daquelas duas
não poderia produzir senão calor suficiente para permitir e promover, na visão de MEDEIROS
PEREIRA, “a realização de algum tipo de atividade”, porquanto
“as razões que estão em jogo são de natureza bastante pragmática: manutenção ou redistribuição
do poder. Não importa que o fim pareça ser o bem estar e a justiça social: é o poder que está
norteando a ação. Assim também em relação aos serviços de fomento, preservação ou
recuperação da saúde da população promovidos pelo Estado. Ele está tentando cumprir uma das
tarefas que, modernamente, todos os segmentos sociais dele esperam. A não satisfação dessa
tarefa, portanto, redundaria em consequências negativas para os grupos politicamente dominantes.
Ou seja, eles precisam prestar tais serviços para evitar ou diminuir essas consequências.”
205
Ou melhor, para maquiar a sua verdadeira e real finalidade mediante uma eventual
prestação, ou omissão, médica satisfatória de uns poucos escolhidos que, respectiva e
antecipadamente, e desde que nasceram, foram adestrados a não se compadecerem com a não
cura, ou resignarem-se com a insolubilidade da morbidade, mas não em perceberem todos eles
que a medicalização, no discurso ideológico médico, pressupõe a doença ou dela prescinde! É
199
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 96: “Marcado pelos ensinamentos genéticos de MENDEL e pelo culturalismo
norte-americano de FRANZ BOAS, ROQUETE-PINTO sustentou o argumento de que o ‘problema brasileiro seria uma questão de
higiene e não de raça.”
200
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 5. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2004, pp. 149-150.
201
Sobre eugenia, veja SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., pp. 60-61 e 190.
202
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., pp. 34 e 230, in verbis: “Guardando uma certa especificidade, no Brasil, a
questão da higiene aparece associada à pobreza e a uma população mestiça e negra.”
203
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 169.
204
Com relação ao poder simbólico, veja BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007,
passim.
205
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 190.
44
dizer, em grande medida, no fundo, o objetivo é, e sempre foi, a ampliação do discurso de
dominação, o que parece
“bastante evidente no campo da assistência médica. Sua oferta ampliada (leitos hospitalares,
medicamentos, exames laboratoriais e aparelhagens correspondentes, permitindo novas cirurgias,
especialidades médicas etc.) tende a gerar uma procura anteriormente inexistente. Sem que se
compreenda essa característica da produção capitalista, não se compreenderá o porquê da
expansão acelerada da assistência médica nesse tipo de sociedade.”
206
Ora, como aquela via em que trafegam a política e a medicina é sempre de mão dupla,
é preciso advertir que o Estado, com seu poder punitivo, valeu-se da medicina para
equacionar seus problemas capitalistas, imiscuindo-se na aferição, no controle e na disciplina
da mão de obra, ou melhor, como quer MEDEIROS PEREIRA, intercalando-se com DONNANGELO,
“o que mais importaria ressaltar seria a extensão da prática médica, quer em termos de ‘ampliação
quantitativa dos serviços e [de] incorporação crescente das populações ao cuidado médico’, quer
de ‘extensão do campo da normatividade da medicina por referência às representações ou
concepções de saúde e dos meios para se obtê-la, bem como às condições gerais de vida’. Essa
extensão se relaciona à continuidade do processo de acumulação capitalista. Imediatamente, pode-
se perceber uma das formas possíveis assumidas por tal relacionamento: a reprodução da força de
trabalho e o aumento de sua produtividade. Ou seja, ‘proporcionar cuidados de saúde ao
trabalhador - direta ou indiretamente produtivo -, com vistas a objetivos econômicos imediatos’.
Mas tal objetivo não responde pela integração crescente de grupos etários e de categorias sociais
marginalizados do processo de produção aos cuidados médicos. Uma das possíveis explicações
estaria no fato de que os novos elementos materiais que compõem o processo terapêutico ‘devem
ser considerados como mercadorias cuja produção é externa à medicina, mas cujo consumo se
efetiva através dela’. O efetivo monopólio da prática médica sobre as ações de saúde lhe garante
‘uma posição central na distribuição e consumo dessas mercadorias e, portanto, na realização de
seu valor’.”
207
Não bastasse, fica desde alinhavado que a medicina - assim como o poder punitivo e o
Direito Penal -, não está alheia a interferências sociais input que, inclusive, ricocheteiam
output
208
, pouco se limitando ao trinômio hipocrático doença, doente e médico
209
, é dizer,
como ensina MEDEIROS PEREIRA,
“historicamente, a medicina tem sido um exemplo interessante de uma disciplina que tem
procurado estabelecer a convergência entre explicações sociais e ‘naturais’, mostrando como a
manifestação do fenômeno doença depende, frequentemente, de condições suficientes, de
natureza social. Que ela se individualize em determinados organismos biológicos já é uma
consequência do fato de esses organismos serem membros participantes de determinadas relações
sociais.”
210
Elementos sociais que, notadamente influenciam, decisivamente, tanto a forma
discursiva, quanto a sua intensidade. Conquanto, de todos eles, e isso é uma constatação, o
dinheiro tenha se mostrado o de maior evidência, o mais espetacular! Do contrário, tentar
entender a equação entre a medicina e o poder punitivo irrelevando todos os dados
206
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 219.
207
DONNANGELO, M. C.; PEREIRA, L. Saúde e sociedade. São Paulo: Duas Cidades, 1976, pp. 33 e 37-38 apud PEREIRA, José
Carlos de M. A explicação..., pp. 251-252.
208
Sobre essas interferências, e sobre o funcionalismo social, veja PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 144.
209
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 25: “Os fatores socioeconômicos e culturais podem, muitas vezes, ser
determinantes na produção de ambas as condições (saúde ou doença).”
210
PEREIRA, José Carlos de M.; RUFFINO NETO, A. Saúde-doença e sociedade: a tuberculose – o tuberculoso. In Revista
Medicina (Ribeirão Preto), v. 15, n. 1, 1982 apud PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 18.
45
sociológicos - sem esquecer, adrede, dos econômicos
211
-, equivaleria a rir, desgraçadamente, da
anedota matemática de BACHELARD, pois estar-se-ia seguro da terceira decimal; sobre a
primeira é que se teria dúvidas.
212
Ou seja, quem assim procedesse estaria tentando desvendar
algumas causas e algumas consequências, olvidando, todavia, muitas outras, não menos
importantes.
213
Não se pode esquecer, portanto, e. g., que
“a empresa médica, por sua vez, ainda que se distinga de outras empresas capitalistas pelo fato de
ter de se pautar por uma série de normas às quais suas congêneres não estão obrigadas,
evidentemente, orienta-se, na prestação de seus serviços, pela obtenção de lucros. O Estado, um
dos principais responsáveis pela prestação de serviços desse tipo, da mesma forma, não estará
voltado, necessariamente, apenas para a consecução dos fins ideais da medicina, mas também
para a manutenção ou alteração de determinadas relações de poder. Mesmo os homens cuja saúde
a medicina busca preservar, ou cuja doença ela procura curar, ao participarem de ações médicas
estarão, fundamentalmente, atentos à necessidade de ganhar a vida. Ainda nessa linha de
raciocínio, uma vez que a atenção médica é hoje em grande parte institucionalizada, ela constitui
uma atividade largamente efetuada sob a égide de normas burocráticas e com a participação de
burocratas. Em consequência disso, é perfeitamente plausível que esse pessoal passe a agir
burocraticamente. Muitos dos próprios médicos, funcionários ou assalariados terão, igualmente,
uma visão burocrática em vez de médica de seus atos. Por tudo isso, há uma alta probabilidade de
o sanitarista ser o ator mais interessado na legalidade própria da esfera médica, por não lidar tão
frequentemente com pacientes individuais, e por se interessar, primordialmente, pelo fomento da
saúde e prevenção da doença. Em suma poderíamos, por exemplo, no caso de certas associações
de caráter econômico voltadas para a prestação de serviços médicos, alterar nosso interesse e
ordenar a relação social investigada mais por seus elementos econômicos que propriamente
médicos.”
214
Afinal, arremata MEDEIROS PEREIRA,
“vistos apenas do ângulo médico, os comportamentos dos agentes pareceriam irracionais, uma
vez que não visariam atender às necessidades presentes e futuras da população na área da saúde e
da doença. Só considerando a consecução dos outros objetivos pretendidos por tais agentes
(obtenção de lucros, salários, honorários, prestígio, obediência às normas burocráticas de uma
instituição, manutenção das relações de poder existentes etc.) é que poderemos perceber a
coerência de tais ações, portanto, sua racionalidade. O desencontro entre objetivos se esclarece,
adquirindo sentido. Na Idade Média, período em que as relações aqui discutidas eram menos
complexas e o discurso dos participantes menos elaborado e hipócrita, ou mais sincero e
espontâneo, os objetivos conectados à ação médica, possivelmente, se patenteavam melhor. A
esse respeito são esclarecedoras algumas informações prestadas por R. P. NOGUEIRA. Afirma que
‘as questões de honorários eram tratadas sem rodeios pelos médicos medievais’. Seu mote seria
‘cobrar durante a dor’. O autor mencionado cita BERNARD DE MANDEVILLE, que não era médico,
diga-se de passagem, o qual afirma, agora no começo do século XVIII, que ‘assim como a
preocupação principal do paciente é a cura, a do cirurgião deve ser o recebimento de honorários
compensadores’. Portanto, era consequente sua opinião de que ‘o tratamento preventivo, embora
seja o mais útil ao paciente, costuma ser mal remunerado’, por isso não é aconselhável.
211
Tanto em um sentido (negativo, mediante a desaceleração da ambição por honorários elevados), quanto em outro
(positivo, mediante a remuneração incondicionada a qualquer elemento). Nesse último sentido, PEREIRA, José Carlos de M. A
explicação..., p. 200: “Esse ponto seria o fundamental. O médico teria de ser remunerado independentemente dos atos
médicos que realizasse. Tornado inexistente o elo econômico entre ambos os participantes da relação (como também outras
conexões e sentido apontadas como deturpadoras), ela poderia se tornar exclusivamente médica. Dificilmente, no entanto, tal
mudança ocorrerá numa sociedade capitalista, como nos parece evidente.”
212
BOURDIEU, Pierre et al. El ofício de Sociólogo. Buenos Aires/México/Madri: Siglo XXI, 1975, pp. 22-23 e nt. 15 apud
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 30.
213
Citando R. B. BRAITHWAITE, PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 49: “É preciso sempre ‘olhar a totalidade da
cadeia causal e não, meramente, seu estado final’.”
214
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., pp. 179-180.
46
Colocações como essas, em muitos casos, ainda têm plena ou até maior vigência quando estamos
diante de uma medicina de mercado.”
215
Ademais, como toda sociedade por classes assim se mantém seja em razão de algum
motivo - no nosso caso, a marcação de passo da ideologia do discurso médico dominante -, ou para
atender a alguma finalidade, e como toda finalidade, em uma sociedade por classes como a
nossa, dirige-se ao menos à mantença de si própria e, quando muito, à ampliação das suas
condições, parece evidente que isso ou aquilo possui um custo, e que essa despesa deve ser
custeada por alguém que se utiliza - ou melhor, encontra-se espoliado, porque a conta lhe é apresentada
em seu momento de maior fragilidade, física ou sentimental -, de algum valor equivalente e suficiente.
Por outro lado, ainda que se esteja referindo a uma sociedade classista, heterogênea por
excelência, é imprescindível que a mesma seja coesa, sob pena de desintegrar-se, sendo que
sua liga somente pode ser alcançada por um valor, nominal ou real, reconhecido por todos.
Sendo o dinheiro, talvez, o único valor que possui tal característica - não podendo ser esquecida a
“força de trabalho”, estudada por MARX
216
-, parece igualmente inegável que a ele tudo se reduza,
não fugindo dessa regra a prestação médica.
Todavia, de acordo ainda com MEDEIROS PEREIRA, que vez ou outra se escora em WEBER,
é possível dizer que,
“especificamente, a tensão entre as esferas médica e econômica não se estabelece pelo simples
fato de os médicos terem se transformado em assalariados ou funcionários. Dado o tipo de
organização econômica do mundo ocidental, que se orienta pela troca, envolvendo pagamento
monetário, o cumprimento da ética médica ficará, inevitavelmente, adstrito à existência de
pessoas ou instituições que paguem os serviços do médico, ainda que este desejasse sujeitar-se
integralmente àquela ética. Ou seja, a situação independe de não haver intermediários entre
médico e paciente, como na medicina dita liberal. Sempre terá o médico de se voltar, no modo de
produção capitalista, para a necessidade de atender às suas próprias necessidades de ordem
econômica, por meio de um ganho obtido no mercado. Mesmo que parte de seu tempo seja
dispensado à assistência médica caritativa, o sentido dessa sua ação poderá não ser estritamente
médico: por seu intermédio, ele poderá ter em mira o aumento de seu prestígio social, a satisfação
de ambições políticas, a realização de atos que, de acordo com suas crenças, lhe garantam sua
salvação eterna etc. Em todo caso, isso sempre constituiria uma situação excepcional, porque
ninguém, em tal tipo de regime econômico, poderá se transformar num trabalhador não-
remunerado sem dispor de outra fonte regular de rendimentos. Assim, a efetivação dos ideais da
medicina, segundo os quais se deveria fazer todo o possível para manter a saúde do ser humano -
independentemente de qualquer característica desse ser, possa ele pagar ou não, seja de um sexo
ou de outro, tenha a idade, ocupação, religião etc. que tiver -, fica limitada pelo fato de que os
homens, em tal tipo de sociedade, lutam num mercado em que seus serviços e bens são avaliados
em termos de preços. Uma característica às vezes atribuída à maneira de o médico ganhar a vida e
que o diferenciaria de outros sujeitos econômicos, mas que não lhe tira o caráter essencial de uma
atividade econômica, está no fato de que sua profissão foi sacralizada. Ainda que, originalmente,
tal peculiaridade lhe tenha sido dada por razões de ordem mágico-religiosa, esse caráter se tem
mantido por tradição. Isso é compreensível. Se, frequentemente, os homens procuraram
metamorfosear até mesmo uma orgia num sacramento, transformando-a num ato religioso e
dando-lhe significação metafísica, por exemplo, ...com muito mais razão podem sacralizar uma
215
NOGUEIRA, R. P. Medicina interna e cirurgia: a formação social da prática médica. Rio de Janeiro: 1977 (dissertação de
mestrado). Instituto de Medicina Social. UERJ apud PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 197.
216
Apud PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 217: “O enigma, nos diz, só se pode resolver descobrindo no mercado
uma mercadoria de natureza especial, cujo valor de uso consista precisamente em criar valor de troca. Esta mercadoria existe
em realidade: é a força de trabalho. O capitalista compra a força de trabalho no mercado e a põe a trabalhar a seu serviço,
para vender logo seu produto.”; e, no original, MARX, Karl. O capital. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969, p. 244.
47
profissão como a de médico. É que ela, como as demais profissões individuais, ‘foram
originalmente de caráter carismático (mágico), determinando-se logo a seguir o resto da
articulação profissional por obra da tradição’. ...Dessa origem decorre seu ‘caráter
especificamente pessoal e carismático’ e ‘o ensino tradicional em associações cerradas’. Em face
dessas considerações, no caso da assistência médica dominada por profissionais independentes,
torna-se até inevitável a sua hierarquização econômica, uma vez que os homens (que precisam
pagá-la) são social e economicamente desiguais. Nessa forma de assistência, o propósito
econômico posto na realização do ato médico fica patente. Como, na medicina dita liberal, os
médicos são remunerados principalmente por serviços prestados a indivíduos (sobretudo doentes),
eles tenderão a forçar o caminho também individual de resolução dos problemas de saúde e de
doença
217
, distanciando-se da medicina preventiva, que mais se aproxima dos fins ideais que
validam a ordem médica.
218, 219
Além do mais, nela exacerbam-se as características corporativas
da profissão (ao contrário de quando a assistência é institucionalizada), agravando a situação em
que ela é prestada. De fato, toda corporação tende a limitar o número de seus membros, a
restringir as possibilidades de qualificação, a estabelecer níveis elevados de remuneração etc.. A
respeito dessa questão, deve-se dizer que, de certa forma, o grupo profissional médico goza
daquilo que WEBER chama de ‘situação estamental’, na qual as possibilidades de certos grupos
sociais alcançarem ‘honras sociais são determinadas primordialmente pelas diferenças nos estilos
de vida desses grupos e, portanto, principalmente, por diferenças na educação’. De modo geral,
secundária e tipicamente, está associada a essa situação a pretensão, por parte da camada que a
goza, de assegurar o monopólio legal de oportunidades de obter renda e lucro de um determinado
tipo. No caso específico dos médicos, tal ‘situação estamental’ repercute, decididamente, em sua
‘situação de classe’, ou seja, em suas ‘oportunidades de obter manutenção e renda determinadas,
primordialmente, por situações típicas, economicamente relevantes’. Em tais condições, a luta do
grupo constituído pelos médicos para obter um ganho no mercado se diferencia daquela que é
travada por outros grupos ocupacionais. Tal ganho está assegurado pelo monopólio legal de uma
determinada atividade, limitando as possibilidades de outros de com aquele grupo competir. A
esse monopólio, além do mais, os membros da associação acrescentam outras limitações aos
possíveis concorrentes, como o estabelecimento de restrições ao exercício de especialidades.
Porém, essas características corporativas limitam também as possibilidades de os pacientes se
rebelarem contra a não obediência, por parte dos médicos, às normas de ordem médica.
Realmente, esse tipo de associação se caracteriza pela ‘autocefalia’, governando-se por meio de
dirigentes internamente escolhidos, e pela ‘autonomia’, por meio da qual ela se impõe à própria
ordem. Todas essas facetas protegem os médicos de interferências externas à associação. Em
virtude delas, pareceria que eles, na maior parte das vezes, estariam voltados apenas para a
realização dos fins da medicina. Como qualquer outro grupo que procura defender seus interesses,
também no caso dos médicos esse conjunto de regras é apresentado como meio de proteger os
próprios doentes (embora, de fato, esse aspecto esteja presente). Mas nos parece inegável que
pretendendo monopolizar a cura dos corpos (como as associações hierocráticas procuram
monopolizar a cura das almas), sua associação visou, sempre e principalmente, transformar-se no
único grupo legitimamente capaz de exercer a atividade médica, monopolizando-a e afastando
todos os que não obedeçam às suas regras de inclusão nela.”
220
217
Sobre o assunto, esclarecedor PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 198: “Contudo, seria conveniente considerar
que, mesmo havendo condições político-econômicas favoráveis à medicina preventiva e social, os que a ela se dedicam
encontrariam algumas dificuldades de monta para implementar certas medidas, inclusive partidas da própria população
beneficiada, se esta tivesse que delas participar direta e conscientemente. É que dadas sobretudo as condições culturais
vigentes, geralmente é no aqui e agora que os homens estão interessados. Querem coisas bastante sólidas, visíveis de
imediato. Diz WEBER que ‘os virtuosos religiosos viram-se obrigados a ajustar suas exigências às possibilidades de
religiosidade cotidiana a fim de conseguir e manter a preferência ideal e material das massas’. Da mesma forma, os que
orientam suas ações por aquele tipo de medicina terão também de se ajustar aos costumes tradicionais no que diz respeito à
esfera social.”
218
Nesse sentido, veja PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., pp. 197-198: “Na verdade, as ações médicas (na acepção
ampla do termo) tendem a se aproximar mais dos ideais da medicina à medida que se vinculam, também mais estreitamente,
à medicina preventiva e social. É claro que, mesmo aí, podemos nos deparar com conexões de sentido que se afastam dos
modelos de conduta característicos da ordem médica (pode-se clorar água ou vacinar as pessoas por conta de objetivos
diversos daqueles que, se supõem, sejam inspirados por tal ordem). Mas nos parece que, nesses atos, predomina, sem dúvida
nenhuma, mais que naqueles ligados à medicina dita curativa, a orientação puramente médica. Em consequência, no caso
deles, seria menor a tensão com outras esferas do social.”
219
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 199: “De qualquer forma, parece-nos que as ações médicas só poderão se
pautar completamente pelo conteúdo de sentido da ordem médica quanto menor as relações médico-paciente forem medidas
pelo dinheiro.”
220
WEBER, Max. A psicologia social das religiões mundiais. In WEBER, Max. Ensaios de sociologia. (Organiz.) GERTH, H.
H.; MILLS, C. Wright. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, sem data, p. 321; WEBER, Max. Economía y sociedad. México: Fondo de
Cultura Econômica, 1944, pp. 146 e 345 apud PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., pp. 180 a 183.
48
De toda sorte, “na análise funcionalista... é muito mais relevante a busca dos motivos e
fins sociais inconscientes do que reter a referência àquilo a que as ações, instituições e
estruturas sociais pareçam manifestamente se destinar.”
221
Sendo que, voltando ao assunto da interferência social na equação medicina-poder
punitivo,
“para possuir essa visão, não é preciso, certamente, participar do entendimento de BERLINGUER,
para quem a única doença ‘não-social’ de que soube foi ‘a febre intermitente que ROBINSON CRUSOÉ
contraiu de 19 de junho a 3 de julho, no primeiro ano de sua estadia (sic) na ilha, antes de
encontrar Sexta-Feira’. Isso porque, ‘depois desse encontro, as doenças de um e de outro
assumiram caráter social, porque modificaram relações interpessoais’.”
222
Em certa medida, portanto, se a medicina não só recebe influência social, mas também
devolve-a à sociedade, e como toda sociedade composta por classes, como a nossa, pauta-se
por uma ordem discursiva, muita vez sediciosa - pois não se deve ter “uma excessiva confiança na
capacidade de a legislação vir a resolver problemas médico-sociais”
223
-, parece inegável, a fortiori, que
alguém, vez ou outra - e o método dialético marxista admite isso
224
-, tente dominar o discurso
225
,
seja realmente, seja simbolicamente. Com a medicina não foi diferente porque de dominada
ela passou a dominante, e em curto espaço de tempo. Mas, esse traslado não foi tranquilo, e
sobretudo porque, como afirmado atrás, envolvendo uma impostação e uma ordem
discursivas, era natural que a medicina, para tanto, se politizasse, enquanto que a política,
visando se manter, medicalizasse seus instrumentos, em uma relação em que ambos os lados
gostaria de estar dominando sozinho. O que, em toda medida, e daí a intranquilidade referida,
supõe a existência de atrito entre ambas.
226
É que, mesmo que haja um beneficiamento
recíproco impressionante advindo da relação medicina-poder punitivo, implicitamente sempre
haverá, também, uma luta pelo domínio do poder hegemônico, auspicioso em angariar a favor
de outro ou de um, a última palavra eloquente.
“Desse modo, em grande parte, os serviços de saúde estatais serão prestados segundo os ideais da
medicina apenas à medida que assim interesse aos grupos governamentais dominantes.
Exemplificando: ainda que o fomento da saúde e a prevenção da doença sejam o objetivo ideal
básico da medicina, a atuação do Estado nessa direção dependerá muito dos dividendos políticos
que dela poderão advir. Se certas obras de saneamento, por ficarem invisíveis, produzirem
resultados políticos inferiores a medidas na área da medicina curativa, estas, provavelmente, virão
221
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 141.
222
BERLINGUER, G. Medicina e política. São Paulo: Cebes/Hucitec, 1978, p. 181 apud PEREIRA, José Carlos de M. A
explicação..., p. 55.
223
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 23.
224
Sobre ele, consulte PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., pp. 201 e seguintes.
225
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 199: “Consequentemente, alcançar os objetivos dessa medicina, que se
confunde com os ideais ‘da medicina’, dependerá em especial, de medidas de caráter coletivo postas em prática pelo Estado.
Este, por sua vez, como se pode supor, só procederá assim se for suficientemente pressionado pela população interessada ou
por uma parte dela suficientemente poderosa para se fazer ouvir.”
226
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 190: “Nessas condições, a ordem médica inevitavelmente sofrerá arranhões
uma vez que, enquanto ela diz que se deve atender às necessidades médicas e promover a saúde de todos, independentemente
de outras considerações, as razões políticas são de outra índole. Tanto assim que se pode dizer que a ética está ausente da
política, no sentido de que as ‘razões de Estado’ calcam-se em relações de poder, e não num suposto ‘direito’ ético.”
49
a ser preferidas. Nesse caso, os políticos optarão pela máxima da ordem política, que diz que
‘obras públicas não devem ser enterradas’, em vez de seguirem a máxima da medicina, segundo a
qual, ‘é melhor prevenir que remediar’.”
227
E essa dominação pari passu ambivalente - como dominada e como dominante -, refletiu nas
ideologias de um poder ao menos simbólico que tem dirigido a vida das pessoas ao sabor de
um cientificismo que, além de não conseguir mais resolver os problemas médicos, tem
refletido, a fortiori, em problemas penais para a sociedade. Veja o que escreveu MEDEIROS
PEREIRA:
“em todas as situações, a ideologia terá um papel relevante: nos períodos de estabilidade, por
representar a maneira como as classes sociais dominantes se vêem e ao seu mundo social e
natural, acaba sendo compartilhada pelas demais classes. Nos períodos de mudanças, porque
certa luta entre as próprias classes dominantes (luta que se reflete na ideologia), ou porque grupos
e classes sociais dominadas, mais ou menos revolucionárias, surgem no palco da história,
inovando também o campo das idéias. De qualquer forma ...a ideologia estará presente nas idéias
científicas, ainda que nelas esteja penetrando pela porta dos fundos da investigação. É que, quase
necessariamente, o trabalho analítico ‘começa com material fornecido pela nossa visão das coisas,
e tal visão é ideológica quase por definição’.”
228
Dada a importância da questão, parece necessário continuar a ver, então, como isso se
deu, se dá e, quiçá, deverá ou não continuar se dando.
Ora, a obtenção ou a ausência de dominação do discurso simbólico pode decorrer da
competência ou fragilidade qualitativa ou quantitativa do orador. Com efeito, leciona FREIRE
COSTA
229
,
“historicamente, até o séc. XIX
230
, a figura social do médico era relativamente desprestigiada.
...Essa baixa conotação social derivava da insuficiência do conhecimento e da inexpressividade
numérica dos profissionais. Até o final do século XVIII, a racionalidade do saber médico pouco
se distinguia do conhecimento empírico dos jesuítas, pajés, curandeiros, entendidos etc. A prática
curativa era essencialmente a mesma: sangria, purgativos, infusões com plantas e pós, dietas etc.
Pobres no saber eles também o eram em número. Comparados com a massa de curiosos leigos,
formavam um grupo pequeníssimo. A formação podia ser feita na Europa. Não havia escolas
de Medicina no Brasil até a chegada de D. JOÃO. Em 1794, no Rio de Janeiro, sede do Vice-Reino,
existiam apenas 9 físicos e 29 cirurgiões.
231
A assistência efetiva à população fazia-se através da
medicina popular.”
232
Como na lição de KÖNIG, “um dos motores da competição por vantagens sociais e
econômicas através do enriquecimento e refinamento no convívio social é a expansão
numérica dos representantes das classes dominantes”
233
, foi justamente o aumento
quantitativo dos oradores - favorecido, em parte, como conta FREIRE COSTA, pela “renhida luta travada
227
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 190.
228
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 84.
229
Críticas infundadas ao trabalho deste autor podem ser encontradas em PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 123 e
seguintes.
230
Sobre parte da história da medicina no Brasil, veja SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., pp. 189 e seguintes.
231
As diferenças entre físicos e cirurgiões, bem como quanto às suas atribuições, podem ser encontradas em PEREIRA, José
Carlos de M. A explicação..., pp. 244 a 246.
232
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 74.
233
KÖNIG, René. Sociologie de la mode. Paris: Payot, 1969 apud COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 105.
50
contra curandeiros e homeopatas...” quando da “...disputa de mercado”
234
-, e aprimoramento da sua
técnica de eloquência que possibilitou aos médicos assumirem o poder emblemático.
Então, ainda que de maneira inconsciente, a prática da medicina, exclusivamente pelos
médicos, requente-se, reforça, reproduz e estabiliza, nos diz MEDEIROS PEREIRA, “as condições
sociais prevalecentes em sua sociedade”. E isso porque, continua ele,
“de fato, de um lado, os grupos economicamente dominantes estão interessados não só, por
exemplo, que a assistência médica conserve e repare, o mais rapidamente possível e aos menores
custos, a saúde, principalmente daqueles que constituem a força de trabalho, mas que tal
assistência adquira a conotação de um serviço prestado a membros de classes sociais subalternas.
Porém, aos grupos politicamente dominantes, também interessa que essa assistência mantenha as
relações de poder existentes, de modo que surja aos olhos dos dominados como uma concessão do
poder. Evidentemente, seria difícil aos médicos, em especial quando funcionários ou empregados,
retirar da assistência médica que prestam, conotações como as citadas, mesmo quando delas
tivessem plena consciência. No entanto, essa assistência, independentemente das relações de
trabalho a que se acham submetidos os médicos, de modo geral tende, de fato, a reproduzir as
relações de dominação vigentes. Poderíamos até ir além e dizer que, como grupo e no limite, os
médicos, se inteiramente obedientes aos ideais da medicina (de fomento, preservação e
recuperação da saúde), poderiam considerar que os objetivos decorrentes desses ideais deveriam
se sobrepor de tal modo aos demais (que são buscados por outros grupos e classes sociais), que se
criaria algo assemelhado a uma ‘mediocracia’ ou a uma ‘medicarquia’. Segundo essa visão
extremada, teríamos uma procura de alteração das ditas relações, mas apenas para que os médicos
se substituíssem aos grupos dominantes, transformando-se no principal deles. Exageros à parte, é
perfeitamente possível, entretanto, notar, na ação dos médicos em geral, uma postura que, de uma
forma ou de outra, acaba reproduzindo as relações de dominação-subordinação em vigor. Com
efeito, como grupo profissional que possui um conhecimento superior sobre uma porção da
realidade geralmente tida como altamente relevante pela maioria das pessoas (por se referir a
assuntos vitais como a saúde, a doença e a morte), os médicos tendem a reivindicar uma certa
superioridade social sobre os demais, em especial quando doentes e de classes sociais
subordinadas. É claro que tal pretensão está alicerçada, por sua vez, no fato de que a maior parte
dos médicos provém das classes mais altas, e porque - ou quando não -, a ‘situação estamental’ de
que gozam lhes propicia uma ‘situação de classe’ que os situa entre elas. Em consequência,
tenderiam a atuar, medicamente, como se fossem membros das classes dominantes perante
membros das classes dominadas, e interessados na manutenção dessa dominação da mesma forma
que os demais participantes dessas classes. Portanto, o frequente autoritarismo dos médicos
confunde-se e decorre do poder que a sociedade (pelos seus grupos social, econômica e
politicamente dominantes) os investiu, do conhecimento específico que possuem e do fato de,
muitas vezes, pertencerem, por origem ou por situação social, às classes superiores (sobretudo no
passado recente). Não é de estranhar, pois, que nas ações médicas, estejam também presentes
conexões de sentido como as indicadas. De qualquer forma, estejam os médicos a serviço dos
interesses de outros ou porque seus próprios interesses de grupo, de classe até estamentais o
indicam, sua postura é geralmente autoritária nas relações médico-paciente. Espera-se que este
último permaneça”
235
,
agora escorando-se, vez ou outra, em BOLTANSKI,
“‘tão modesto, tão ingênuo, tão confiante na presença do médico’ como (alterando o sentido dado
pelo autor) o fiel diante da autoridade religiosa, ambos ‘detentores de segredos inacessíveis aos
profanos’. O autoritarismo médico é bastante perceptível no caso da hospitalização, situação em
que é considerado bom paciente (do ponto de vista dos serviços hospitalares) o que não reclama
do processo de despersonalização a que geralmente é submetido. Esse autoritarismo, que,
certamente, muitos julgam intrínseco ao poder da profissão, e legítimo por derivar de um
determinado tipo de conhecimento, é ainda mais evidente em instituições totais, como no caso de
certos estabelecimentos sanatoriais para tratamento de doenças mentais, onde os asilados ficam,
praticamente, à mercê da vontade de médicos e paramédicos. Poder-se-ia dizer que esses
exemplos não constituem a regra, e que, em relações normais médico-paciente, não se usaria a
ação social de caráter médico para reforçar o processo de dominação social vigente. Talvez, de
fato, o fenômeno não ocorra com essa nitidez, mas dificilmente essas relações, quando o paciente
é membro de classes sociais subordinadas, não reproduzem e reforçam as relações de classe
234
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 211.
235
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., pp. 193 a 195.
51
existentes. É sabido que, apesar de os ideais da medicina preconizarem uma relação entre o
médico e seu paciente que não leve em consideração a classe social deste, isso permanece no
nível do ideal, não sendo realmente o que ocorre. Diz BOLTANSKI a respeito: como a confissão de
uma modificação no comportamento do médico conforme a classe social do doente viria
contradizer os princípios de uma ética médica de inspiração evangélica..., os médicos pretendem
adaptar suas atitudes não às características sociais de seus doentes, mas ao ‘caráter’ particular de
cada um deles ou, se preferirmos, à sua ‘natureza’. Tudo se passa, no entanto, como se a
percepção que tem o médico do doente, longe de ser imediata e espontânea, fosse uma percepção
seletiva e organizada, que se operasse através de um número limitado de categorias que o jovem
médico adquiriu durante sua formação e seus primeiros anos de exercício da profissão, e que lhe
permite catalogar os doentes dentro de um número restrito de tipos psicológicos.”
236
“Em suma”, volta a dizer com exclusividade MEDEIROS PEREIRA, “mesmo por meio das
relações médico-paciente correntes, os médicos, ainda que de maneira inconsciente, estão
frequentemente buscando reconhecimento à sua autoridade e aos de sua classe (ou à classe
elevada com a qual eles tendem a se identificar).”
237
Por isso, é que a eloquência médica precisa, para se manter e se expandir, invadir o
corpo e a mente do etiquetado como doente ou inservível, ou melhor, como quer DONNANGELO,
interpolada por MEDEIROS PEREIRA,
“o objeto da prática médica não é a ciência do corpo, mas o próprio corpo, tanto o saudável como
o patológico. Ora, esse corpo, socialmente falando, não se limita aos aspectos anátomo-
fisiológicos, sendo, antes de tudo, um agente de trabalho. Além do mais, sob tal aspecto, ele não é
homogêneo. De fato, ‘em sociedades determinadas, os diversos corpos não têm significatividade
igual, mas, ao contrário, se dimensionam e adquirem significados particulares, quer no plano das
representações, quer ao nível da forma pela qual são incorporados à estrutura da produção social’.
É sobre esse corpo, tanto biológico como social, que o trabalho médico se exerce. Tanto que,
examinando a forma assumida pela prestação de serviços médicos, podemos identificar a que
categorias sociais se destinam, pois se estruturam para atender a diferentes ‘corpos sociais’.”
238
Dessa maneira, agora se pode dizer que o discurso penal, divulgado a nós
consumidores das agências, propagandeia que somos iguais, embora reste patente - acredito que
pelo menos depois dos parágrafos anteriores -, que uns são mais iguais que outros, aritmética essa
tornada inconteste depois do que disse DEBORD, i. e., “o crescimento econômico libera as
sociedades da pressão natural, que exigia sua luta imediatamente pela sobrevivência; mas,
agora, é do libertador que elas não conseguem se liberar”
239
, bem como após a investigação de
FOUCAULT, cujo resultado afirma que
“nessas condições seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é feita para todo mundo em
nome de todo mundo; que é mais prudente reconhecer que ela é feita por alguns e se aplica a
outros; que em princípio ela obriga a todos os cidadãos, mas se dirige principalmente às classes
mais numerosas e menos esclarecidas; que, ao contrário do que acontece com as leis políticas ou
civis, sua aplicação não se refere a todos da mesma forma; que nos tribunais não é a sociedade
inteira que julga um de seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona
outra fadada à desordem.”
240
236
BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Graal, 1979, pp. 47 e 49-50 apud PEREIRA, José Carlos de M.
A explicação..., pp. 195-196.
237
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 196.
238
DONNANGELO, M. C.; PEREIRA, L. Saúde e sociedade. São Paulo: Duas Cidades, 1976, pp. 26 a 28 apud PEREIRA, José
Carlos de M. A explicação..., pp. 250-251.
239
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 29.
240
FOUCAULT, Paul-Michel. Vigiar..., p. 229.
52
Em tons reais, verbi gratia, parodiando o estado policial, e relatando episódio do qual
foi parte, MURILO DE CARVALHO conta que,
“de início, podemos verificar que ...a igualdade de todos perante a lei, estabelecida no artigo 5°,
da Constituição em vigor, é balela. Quem define a cidadania, na prática, é a polícia. Na curta
conversa de dez minutos com um agente da lei, com alguém que deveria implementar os
dispositivos constitucionais, descobrimos que ele estabelece, por conta própria, três classes de
cidadãos, a saber: o doutor, o crente, o macumbeiro. Doutor é o cidadão de primeira classe, titular
dos direitos constitucionais, merecedor do respeito e da deferência dos agentes da lei. O crente
vem em segundo lugar: pode ter alguns direitos violados, mas ainda merece algum respeito. Por
fim, o macumbeiro: não tem direitos, nem pode ser considerado cidadão. ...o que vale mesmo é a
constituição da Animal Farm (A revolução dos bichos), a famosa criação de GEORGE ORWELL;
como todos sabem, após a reforma constitucional de Animal Farm feita pelos porcos, a
constituição daquele país aparentemente imaginário reduziu-se a um artigo: “todos os animais são
iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros.”
241
De sorte que, não serve de alento sequer o princípio da legalidade, ainda que acolhido
constitucionalmente porquanto, mesmo por ele, e com ele, é possível manter-se a
desigualdade discursiva. Se não, vejamos como, acompanhando, para tanto, a lição de GRACIA
MARTÍN. Para as classes poderosas, diz o escritor espanhol, a legalidade funciona como uma
garantia formal e material, pari passu, pois:
“a) é uma garantia de proteção de ‘suas’ esferas de liberdade material abundante ou
superabundante frente a todos os possíveis ataques das classes sociais subordinadas e relegadas
por aquelas esferas de liberdade material escassa ou superescassa; b) ao mesmo tempo, as
garantias penais liberais - em especial o princípio de legalidade -, duplicam seu valor para as
classes poderosas mediante seu funcionamento discursivo material como garantias de exclusão
das ações materialmente criminosas do discurso de criminalidade; c) não obstante, esta última
garantia opera, por sua vez, também como garantia de expansão das esferas de liberdade material
abundante ou superabundante de tais classes sociais, pois a exclusão de sua própria criminalidade
do discurso lhes garante uma completa liberdade de atuação criminal (no sentido material) que
atua como um motor dessa ‘expansão’.”
para as classes subalternas e dominadas, ele representa apenas uma garantia formal,
porque, materialmente, ele e os demais princípios “funcionam como instrumentos de
classificação, disciplina e repressão de seu sistema material social de ação contra os bens
jurídicos de cuja posse e fruição são excluídas em virtude do domínio superabundante dos
mesmos pelas classes sociais poderosas”, é dizer, continua ele,
“concretamente, para as classes sociais submetidas, o princípio de legalidade opera
materialmente: a) como instrumento de classificação, disciplina e repressão de sua existência
condicionada pelas estruturas sociais, no sentido de que através dele as classes sociais poderosas
traçam os limites dentro dos quais as classes submetidas poderão fazer uso de sua liberdade
material (de ação) escassa ou superescassa; b) como instrumento de privação de sua liberdade
material (de ação) escassa ou superescassa no caso de qualquer uso desta que transcenda os
limites daquela disciplina; c) mas ao mesmo tempo, e em virtude do princípio, que quero formular
aqui, de que o volume ou quantidade total de liberdade teoricamente aceitos entre todos e cada um
dos seres humanos é constante e invariável, a realização efetiva da garantia de expansão que
implica o princípio para as classes poderosas produz de imediato, e de um modo necessário,
efeitos de ‘contração’ ou redução das esferas de liberdade material, escassa ou superescassa, das
classes sociais subordinadas, pois qualquer expansão da liberdade de uma classe social é
imaginável à custa da redução da liberdade da outra.”
242
241
Para entender o contexto da narrativa, veja CARVALHO, José Murilo de. Brasileiro: cidadão? In Pontos e bordados:
escritos de história e política. 2. reimpressão. Belo Horizonte: UFMG, 2005, pp. 275 e seguintes.
242
MARTÍN, Luis Gracia. Prolegômenos..., pp. 126 a 128.
53
Reflexo dual a que a legalidade se submete quando as agências, dela se valendo,
programam a criminalização primária que se volta, com efeito, contra as classes proletárias e
dominadas, excluindo as dominantes e burguesas, bem como quando da programação
criminalizante secundária, em que as agências do segundo escalão - somente na teoria, pois, na
prática às vezes ocupam o primeiro lugar seletivo junto daquela, servindo como exemplo os grupos
parapoliciais de extermínio ou as condenações judiciais sem prova -, preferem perseguir aquelas
243
, e
não estas, mesmo quando suas ações médicas, destas, encontram-se previamente legiferadas
como criminalizadas ou criminalizáveis.
Muito bem. Em decorrência disso, e como tinha razão DEBORD quando sentenciou que,
“sempre que haja representação independente, o espetáculo se reconstitui”
244
, é que ainda
existem os subsistemas penais subterrâneos, encenados abaixo do palco, corroendo, como
cupins, suas estruturas. Especificamente, existe, para não fugir da regra, um subsistema penal
médico infrasuperfície que se apresenta quando o poder médico desvia órgãos transplantáveis,
burlando a fila (que)de (des)espera - e que, normalmente, por si só, devia ser um uso social praeter
legem, respeitado -, mas, também, quando o corpo médico de um hospital - exercendo funções
administrativas -, frauda um certame licitatório, ou desvia verbas públicas em detrimento do
menor preço, ou apresentando uma conta que não passa de um embuste, respectivamente.
Detrás das cortinas ainda pode se apresentar um espetáculo de poder, inclusive com disputas
internas, cujo exercício em si, em quase toda medida porém, colima manter, essencialmente, a
hegemonia do discurso médico, não se descartando, entrementes, de lambuja, se possível,
quem sabe ampliá-lo, o que acontecerá, e aqui me aproveito do que disse WACQUANT para
outra situação, com “a segunda parte da inovação tecnológica, em matéria de... biometria,
telemedicina etc.
245
Portanto, é assim que o Direito Penal Médico, insaciavelmente,
autoalimenta-se - e com direito a um nidro na nossa face, após o jantar! -, realizando aquela piadinha
sem graça onde aquele arremedo de médico, numa paródia de exercício ético da medicina,
admoesta o próprio filho que, recém-formado, cura o doente cuja manutenção do estado de
morbidez, escandida adrede pelo pai, custeou-lhe os estudos.
Ora, não bastasse isso, como restará demonstrado mais à frente, a invasão e a
apropriação do corpo do indivíduo pelo discurso médico visou a interesses mais remotos dos
individuais, que dos coletivos burgueses, reelaborados agora em neoliberais, tendo razão
243
Quanto à seletividade das agências de programação criminalizante secundária, veja GROSNER, Marina Quezado. A
seletividade do sistema penal na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: o trancamento da criminalização secundária
por decisões em habeas corpus. São Paulo: IBCCrim, 2008, n. 45, passim.
244
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 18.
245
WACQUANT, Loïc. As prisões..., p. 89.
54
FREIRE COSTA quando sustenta que se a dependência da família burguesa para com agentes
educativo-terapêuticos remonta às elites oitocentistas, sua atualmente idêntica dependência
também é inegável, tutelando a medicina social, mediante uma política higiênica, aquela que
pouco a pouco contentou-se em reduzir-se ao apelo para os especialistas médicos a fim de
resolverem seus problemas domésticos.
246
Indiciariamente, “isto prova que os atos
insignificantes preparam os mais importantes.”
247
Outrossim, com a ascenção da burguesia, que passou a reter o domínio do discurso, “a
vida privada dos indivíduos foi atrelada ao [seu] destino político...; ...o corpo, o sexo e os
sentimentos conjugais, parentais e filiais passaram a ser, programadamente, usados como
instrumentos de dominação política e sinais de diferenciação social daquela classe.”
248
A
questão é saber se a medicina higiênica foi causa ou efeito nesse contexto
249
, sem esquecer, o
que não significa considerar, o que disse WEBER, i. e., “a ação social real se desenvolve,
normalmente, com escassa ou nenhuma consciência do sentido por parte dos agentes
participantes; eles antes ‘sentem’ do que ‘sabem’.”
250
Agora, o leitor deve estar se perguntando, quiçá ansiosamente, se o que realmente se
está sustentando, e com uma desfaçatez surpreendente, é que a medicina, sobretudo a social,
significou um mal para o povo brasileiro. Em resposta a essa suposta indagação, deve-se
inclinar a responder, absolutamente, que não e que sim. Que sim, porque, admoesta FREIRE
COSTA,
“quando observamos os resultados da educação higiênica, uma conclusão se impõe: a norma
familiar produzida pela ordem médica solicita de forma constante a presença de intervenções
disciplinares por parte dos agentes de normalização. De fato, muitos dos fenômenos apontados,
hoje em dia, como causas da desagregação familiar, nada mais são que consequências históricas
246
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 12.
247
Citando, ADOLPHO ALVES SIMÕES BARBOSA, COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 203.
248
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 13.
249
Criticando, prima facie, JURANDIR FREIRE COSTA que a entende como causa, mas, ao final, parecendo aceitar suas
conclusões, veja PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., pp. 124-125 e 129-130: “Às vezes, a análise resvala para o
terreno perigoso de tomar a higiene como causa das transformações às quais se faz referência. Mas de modo geral, ela se
mantém fiel à consideração de que as medidas higienizadoras constituíam um efeito das transformações socioeconômicas
relativamente profundas (e que são dadas por conhecidas) que se produziram no Brasil, com sua integração mais intensa ao
capitalismo mundial. ...O autor, no nosso entender, exagera na racionalidade que atribui ao Estado brasileiro na utilização dos
higienistas como instrumento de modelação da família burguesa. ...Em relação ao trabalho de JURANDIR FREIRE COSTA,
poder-se-ia fazer aqueles reparos já mencionados. O primeiro, de atribuir aos agentes sociais da história, principalmente ao
Estado, uma racionalidade praticamente impossível de ocorrer em condições sociais concretas. O segundo, de imputar à
higiene a característica de condição por demais determinante, sem se referir à sua característica funcional: a de efeito. É como
se ela tivesse sido, por si só, um dos fatores mais significativos na adequação dos hábitos, costumes e comportamentos da
família burguesa do Rio de Janeiro de meados do século XIX. Pela análise do material histórico utilizado, fica claro que esse
papel foi importante. Mas tendo sido alteradas as bases econômicas da vida social, as relações sociais e a ideologia que as
sustentava teriam, inevitavelmente, de acompanhar a mudança fundamental. Nesse sentido, a própria revolução da higiene,
representada pela nova maneira de encarar o corpo e as relações sociais, constituiu um fruto daquelas transformações. Em
outras palavras, a higiene fazia parte de um complexo de causas e efeitos. O autor a tratou como condição determinante em
vez de efeito, porque foi essa a perspectiva que adotou. Sem dúvida, tal tratamento produziu resultados interpretativos
interessantes e aceitáveis.”
250
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 167.
55
da educação higiênica. Em outros termos, as famílias se desestruturaram por terem seguido à risca
as normas de saúde e equilíbrio que lhes foram impostas.”
251, 252
Também, porque a medicina, e o como negar isso, inventou, ou, ao menos,
aproveitou-se da doença para vender seus préstimos como únicos úteis a debelá-la, assumindo
a dominação do discurso preventivo e curativo e, em última medida, a dominação não do
corpo, senão, da vida das pessoas.
Que não, por outro viés, porque não sei se o domínio discursivo - atrelado a um
cientificismo que impede os médicos de perceberem que o exercício da lex artis tem sempre, e necessariamente,
um reflexo político, bem como de reverem as matrizes sociais da ciência médica
253
-, retirado da medicina
não cairia em mão menos habilidosa, ou mesmo se o exercício da medicina, de per se,
olvidando seu poder simbólico, não teria algo, realmente, de bom. Resumindo, parece ter
razão FREIRE COSTA quando afirma “que a família sofre e precisa ser ajudada, não
dúvida!”
254
, e,
“no que diz respeito ao progresso científico da higiene, seus benefícios para os indivíduos são
inegáveis. Não se trata de negar ou desvalorizar a importância destes fatos. O que importa é notar
que a própria eficiência científica da higiene funcionou como auxiliar na política de
transformação dos indivíduos em função das razões de Estado. Foi porque a medicina era, de fato,
empírica e conceitualmente científica que sua ação política foi mais operante
255
. Diante de um
saber colonial estribado em noções médicas dos séculos XVI, XVII e XVIII, pré-experimentais e
em sua quase totalidade filosóficas e especulativas, a higiene surgiu arrasadoramente convincente.
No entanto, é preciso sublinhar que sua força foi impulsionada pelo interesse político do Estado
na saúde da população. No caso brasileiro esta evidência é incontestável. O Estado brasileiro que
nasce com a abdicação
256
é o moto-propulsor do súbito prestígio da higiene.
257
A atividade
médica coincidia e reforçava a solidez de seu poder. Por isso recebeu seu apoio.”
258
De bom, portanto, parece que seria aquele algo que, afastando o controle terapêutico
arrimado numa fabricada fragilidade do indivíduo em razão da sua insubmissão às normas de
saúde - como o cão que rotaciona amiúde, perseguindo a calda -, entende a medicina não
imprescindível ao invés de não prescindível, porquanto o contrário, segundo FREIRE COSTA - i.
e., “mais exercícios físicos, mais educação sexual, mais ginásticas mentais e mais esforços intelectuais” -,
251
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 15.
252
Apontando, equivocadamente, exageros nesta concepção, veja PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., pp. 124 a 130.
253
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 16.
254
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 17.
255
Outros motivos, porém, podem ser encontrados em COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 63.
256
Sobre o assunto, veja COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 148.
257
Citando MACHADO, Roberto et alii. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de
Janeiro: Graal, 1978, p. 71, veja COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 57: “Coincidindo com a ascensão do Estado nacional, a
higiene médica experimentou um significativo progresso em sua expansão. Em 1829 é fundada a Sociedade de Medicina e
Cirurgia do Rio de Janeiro. Essa entidade representava o grupo médico que lutava por se impor junto ao poder central como
elemento essencial à proteção da saúde pública e, por extensão, à ordenação da cidade. Em 1832 este grupo obtém uma
vitória expressiva em seus avanços para o poder. Naquela data as sugestões contidas nos relatórios da Comissão de
Salubridade, setor da Sociedade, são incorporadas ao Código de Posturas Municipais do Rio de Janeiro. Aproximadamente
vinte anos depois, em 1851, o Estado cria a Junta Central de Higiene Pública, que confirma e estende a participação da
higiene nos cuidados da população.”
258
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 32.
56
ensejaria “inevitavelmente... maior disciplina, maior vigilância e maior repressão”
259
, em
sinonímia, maior poder de dominação discursivo-simbólica que, inclusive, alcançou “matas,
pântanos, rios, alimentos, esgotos, água, ar, cemitérios, quartéis, escolas, prostíbulos, fábricas,
matadouros e casas.
260
Então,
“não se trata de negar a desorientação e o sofrimento emocional que perseguem os indivíduos
urbanos às voltas com seus dilemas familiares. A dúvida consiste em saber se os remédios
propostos, ao invés de sanarem o mal, não irão perpetuar a doença. O problema começa quando
percebemos que a lucidez científica das terapêuticas dirigidas às famílias escondem, muitas vezes,
uma grave miopia política. Miopia que tende a abolir, no registro do simbólico, o real adjetivo de
classe existente em todas estas lições de amor e sexo dadas à família.”
261
Todavia, seria embalde dizer que o direcionamento assumido pela medicina foi
volitivo, porque, sinceramente, não parece ser plausível acreditar que o tenha sido. E
realmente não o foi porque o poder emblemático, como sabido, é exercido por e contra
pessoas que desconhecem essas suas respectivas condições de dominantes e dominados.
Portanto, como ensina FREIRE COSTA,
“é quase supérfluo notar que não houve intencionalidade finalista no manuseio recíproco desses
interesses. Medicina e Estado convergiram, mas também divergiram, por vezes, tática e
estrategicamente. Nem sempre os dois poderes reconheceram o valor da aliança que haviam
estabelecido. historicamente é possível perceber que em meio a atritos e fricções,
intransigências e concessões, estabilizou-se um compromisso de mão dupla vazado na
salubridade: o Estado aceitou medicalizar suas ações políticas, reconhecendo o valor político das
ações médicas”
262
,
e, quase sempre, com vantagens para ambos
263
que, dividindo o poder, conquistaram. A
medicina, mais rápida e mais adequada aos problemas salutares apresentados na ocasião e,
alerta FREIRE COSTA, “servindo-se de técnicas análogas às da militarização”
264
, suprimia a
“inoperância da burocracia”
265
, enquanto o Estado com seu poder hegemônico, cuja amplidão
e descentralização impediam um controle atuarial mais escorreito, abria brechas em seu corpo
para a permanência parasitária daquela.
259
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., pp. 16 e 184 a 187.
260
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 30; especialmente alcançando as residências, veja o que diz CANDIDO, Francisco de
Paula. Relatórios sobre as medidas de salubridade reclamados pela cidade do Rio de Janeiro, citado por FREYRE, Gilberto.
Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 16. ed. São Paulo: Global, 2006, pp. 433-
434 apud COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 110: “Do ponto de vista da higiene, a habitação antiga prestava-se a todo tipo
de crítica. Sua arquitetura fechada, impermeável ao exterior, elaborada para responder ao medo dos ‘maus ares’, ventos e
miasmas foi duramente atacada pelos médicos como insalubre e doentia: ‘As casas do Rio de Janeiro parecem destinadas
antes à Lapônia ou à Groenlândia do que à latitude tropical... uma fatal alcova, dormitório predileto; escura e modesta sala
com um corredor escuro; uma sala de jantar, de costurar, de tudo, exceto de saúde, pouco mais escura que a sala da frente,
mas munida de infalível alcova, mediante ou não outro corredor, a cozinha térrea.”
261
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 17.
262
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., pp. 28-29.
263
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 64: “Os trabalhos médicos sobre a higiene mostram como, no nível do saber, essa
troca de favores entre medicina e Estado foi teorizada. Um mesmo eixo lógico orientava todos eles. De início, o fenômeno
físico, cultural ou emocional era aspirado e convertido em fato médico e, em seguida, reinjetado no tecido social conforme a
articulação prevista. Desta forma, o repertório de sentimentos e conduta antes administrado pela família era encampado pela
medicina e, através dela, devolvido ao controle estatal.”
264
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., pp. 29 e 48.
265
Nesse sentido, COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 29.
57
Como o tema merece mais atenção, deve-se aproveitar, agora, de uma passagem de
DEBORD escrita para outra situação, para se dizer que não era hora de idéias, era hora de
fatos e atos
266
; que “a ignorância... nunca deixou de servir ao poder estabelecido”
267
, malgrado
a mediação entre teoria e prática possibilitasse que os proletários deixassem “de ser
espectadores dos acontecimentos ocorridos em sua organização, mas conscientemente”
268
passassem a escolhê-los e vivê-los
269
; que “os fatos ideológicos nunca foram simples
quimeras, mas a consciência deformada das realidades, e, como tais, fatores reais que exercem
uma real ação deformante”
270
; que, outrossim, “o fato de não ter contestação conferiu à
mentira uma nova qualidade”
271
; e que, uma das características do discurso espetacular, no
dizer do mesmo, é reconstituir-se sempre que haja representação independente
272
. É dizer, o
discurso médico simbólico higienizador, suscitando, como percebeu FREIRE COSTA, “o interesse
do indivíduo por sua própria saúde”
273
, difundiu-se, assustadoramente, ampliando seu alcance
através de uma via de mão única, porquanto se a medicina vendia uma novidade é óbvio, e
aqui plagia-se DEBORD para se interpolar e dizer, que ela tinha “todo o interesse em fazer
desaparecer o meio de aferi-la”
274
, exclusivamente com o intuito de, prescindindo do poder
punitivo, assumir, sozinha, o monopólio do discurso
275
e, assim, poder catequizar - pois a
medicina utilizou-se de uma “pedagogia jesuíta”
276
-, medicamente, também sozinha, os novos
conversíveis das necessidades neoliberais, domesticando-os mediante um adestramento
pautado pelos interesses da nova elite urbana.
Como é preciso, para manter a estrutura dominal adquirida - porquanto, ensina DEBORD,
“a estrutura é filha do poder”
277
-, manter, pelo menos, o quantum de poder simbólico obtido,
embora o mister de mais poder, comumente insatisfazível, sempre recepciona bem qualquer
266
DEBORD, Guy. A sociedade..., pp. 62-63.
267
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 199.
268
DEBORD, Guy. A sociedade..., p.78.
269
DEBORD, Guy. A sociedade..., p.78.
270
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 137.
271
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 176.
272
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 18.
273
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 29; As razões disso e como isso foi conseguido, estão em COSTA, Jurandir Freire. Op.
cit., p. 63.
274
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 178; em sentido contrário, ancorando-se em JOAQUIM JOSÉ DOS REMÉDIOS MONTEIRO,
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., pp. 213-214: “Julga-se que o vulgarizar a medicina pelo povo poderia induzi-lo a praticá-la
e fiar-se de si mesmo em vez de recorrer aos profissionais; o contrário porém é o que sucede. As pessoas mais instruídas
nesta matéria são ordinariamente as mais dóceis e as que buscam os conselhos dos médicos, enquanto os ignorantes são os
mais ousados em exercitar a arte e mais prontos a desconfiar dos médicos.”
275
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 76: “No séc. XIX, a medicina vai lutar tenazmente contra esta situação, procurando
monopolizar o saber e condensar na figura do médico o direito de assistir os doentes.”
276
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 48.
277
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 131.
58
aumento
278
- pois é o poder que recria o poder -, parece evidente, requente-se, que a medicina
tenha reinventado - ainda que reincidindo, copiosamente, nas mesmas características da morbidade original
-, constantemente, uma necessidade para, diante dela, apresentar-se como única solução.
Então, invertendo a advertência de DEBORD, fica permitido afirmar que: também é possível
conservar a coisa quando o nome foi mudado em segredo.
279
Com efeito, parece incontestável
FREIRE COSTA quando, menos ou mais nesses mesmos termos, expõe que
“essa estratégia, no entanto, criava seus próprios limites e exigências. Os higienistas, para
manterem viva a situação de tradutores exclusivos do obscuro, vão ser obrigados a inventar, cada
vez mais, fatos, distinções e classificações novas do corpo dos indivíduos e do sentimento da
família. As diferenciações vão tender para o infinito. O nominalismo da higiene, como já se pôde
observar, correspondia à persistência da medicina classificatória do século XVIII no interior da
medicina anátomo-clínica do século XIX. No caso da psiquiatria, esse fato é, particularmente,
expressivo. Entretanto, outros motivos explicavam a insistência da medicina higiênica em
dominar e classificar, exaustivamente, fenômenos físicos e sentimentais. A necessidade de
apresentar o banal sob o signo do insólito era uma condição necessária à implantação da
hegemonia médica. A medicina social criava o fato médico inédito e apresentava-o à família que,
atônita, descobria no saber higiênico a prova de sua incompetência.”
280
Oportunistas, os médicos, mormente os da higiene, sempre souberam aproveitar o
momento consentâneo - nunca sem o pressuposto autorizativo do Estado, seja por ação, seja por omissão -,
para, estrategicamente, fomentar seu poder infinitamente. Eles, nos fala FREIRE COSTA,
“faziam um jogo duplo: por um lado, mostravam o mundo como fascinante. Por outro, como
perverso. Procuravam demonstrar que para abordá-lo era preciso prudência, mas, sobretudo,
ciência. A imoralidade e o sofrimento espreitavam incautos, prontos a tragá-los. A cidade
burguesa que, através da higiene, ia sendo saneada de pestes e epidemias, via-se agora, através da
mesma higiene, contaminada por uma infinidade de misérias morais.”
281
E, quando percebiam que estavam perdendo prestígio, reinventavam
282
os argumentos
que convenciam os terceiros da sua necessidade, como no caso do “mundo obsceno,
moralmente destrutivo [que] foi inventado para criar na família terror ao exterior e ternura
pelo convívio íntimo. Este artifício desacelerava o movimento de sociabilidade que parecia
fugir ao controle médico.”
283
Os médicos, que estavam
“sempre à mão, aproveitavam cada consulta para resolver certos problemas e deixar plantados os
germes de novas dificuldades. Observados os efeitos do que eles próprios criavam, reforçavam a
278
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 147: “O outro tipo de ganho resultou de um compromisso. Medicina e família,
enquanto se batiam, foram chegando, aos poucos, a um acordo. A primeira tiranizava a segunda, que se deixava dominar,
mas em troca da participação no próprio poder médico. Após capitular diante da medicina, de reconhecer o valor do corpo e
da moral sadia, a família passou não só a consumir como a difundir serviços médicos. De consumidora passiva, passou a
produtora e comerciante. Começou a produzir seus próprios médicos. Começou a enaltecer sua figura. Alterou o sentido de
seus investimentos: em vez do ‘filho-padre’, o ‘filho-doutor’. O ‘médico de família’ foi uma vitória da higiene; o ‘filho-
médico’ foi um tratado de armistício entre os dois poderes. Apropriando-se do médico, o grupo familiar não mais se opôs à
higiene. Pelo contrário, ajudou-a a expandir-se, pois já estava participando dos seus lucros.”
279
Sobre o original, DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 193: “É possível conservar o nome quando a coisa foi mudada em
segredo (seja cerveja, bife ou um filósofo).”
280
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 71.
281
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 134.
282
E, aqui, qualquer semelhança com a “renormatização” não é mera coincidência.
283
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 136.
59
convicção de que a prática confirmava a teoria. Acreditavam que, em todos estes momentos,
intervinham como solícitos portadores de neutras soluções científicas.”
284
Por outro lado, não se deve ter tanta certeza, hoje, sobre a posição sobranceira da
medicina, senão, deve-se de novo reconhecer que DEBORD estava certo quando dizia no
segundo terço do século passado que
“a medicina moderna, por exemplo, conseguiu se fazer considerada útil por algum tempo, e os
que haviam vencido a varíola ou a lepra eram bem diferentes dos que capitularam
vergonhosamente diante das radiações nucleares ou da química agroalimentar. É cil perceber
que hoje a medicina já não tem o direito de defender a saúde da população contra o ambiente
patógeno, porque isso significa opor-se ao Estado
285
, ou apenas à indústria farmacêutica. Mas
não é pelo que ela é obrigada a calar que a atual atividade científica confessa aquilo que se
tornou. Muitas vezes é também pelo que ela tem a simplicidade de dizer. Ao anunciar em
novembro de 1985, após uma experiência de oito dias com quatro doentes, que talvez tivessem
descoberto um remédio eficaz contra a Aids, os doutores EVEN e ANDRIEU, do hospital Laënnec,
provocaram dois dias depois, quando os doentes morreram, certas reservas por parte de médicos
menos progressistas ou talvez invejosos, quanto ao modo precipitado como os dois pesquisadores
logo registraram o que não passava de uma aparente vitória - algumas horas antes da derrocada.
Os dois se defenderam sem se perturbar, afirmando que ‘afinal, mais vale uma falsa esperança do
que esperança alguma’. Em sua imensa ignorância nem perceberam que esse argumento é, em si,
a negação completa do espírito científico: ele sempre serviu, historicamente, para encobrir as
lucrativas quimeras dos charlatães e feiticeiros, na época em que não lhes entregavam a direção
de hospitais.”
286
Ou seja, em certa medida, no embate pelo poder hegemônico, a medicina parece estar
perdendo o domínio sobre o discurso e, parafraseando RADBRUCH, aqui posto em dúvida, para
ser substituída por algo melhor do que ela? Ou, quem sabe, exorcizando o diabo com o
belzebu.
287
Enfim, não é inoportuno comungar com BOURDIEU quando ele diz:
“como não evocar... o caso dos juristas que, à custa de uma ‘piedosa hipocrisia’, estão em
condições de perpetuar a crença de que seus vereditos encontram seu princípio não em restrições
externas, sobretudo econômicas, mas nas normas transcendentes de que são os guardiães? O
campo jurídico não é o que acredita ser, isto é, um universo puro de todo comprometimento com
as necessidades da política ou da economia. Mas o fato de que consiga fazer-se reconhecer como
tal contribui para produzir efeitos sociais inteiramente reais e, em primeiro lugar, sobre os que
têm por profissão dizer o direito. Mas o que será dos juristas, encarnações mais ou menos sinceras
da hipocrisia coletiva, caso se torne de notoriedade pública que, longe de obedecer a verdades e a
valores transcendentes e universais, eles estão trespassados, como todos os outros agentes sociais,
por restrições como as que exercem sobre eles, subvertendo os procedimentos e as hierarquias, a
pressão das necessidades econômicas ou a sedução dos sucessos jornalísticos?”
288
Mutatis mutandis, o mesmo vale para os médicos e para a medicina.
Em resumo, na lição de SCHWARCZ,
“é hora de refletir. ...Aí estão os ‘homens de direito’ e de ‘medicina’. Uns com a lei, outros com o
remédio. Em ambos apenas uma certeza: a vontade de ter nas mãos o comando dos destinos dessa
pobre nação. Visto por este prisma, talvez o debate tenha mesmo se concentrado entre as escolas
de direito e medicina. Instaurada uma espécie de disputa pela hegemonia e predomínio científico,
284
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 139.
285
Historicamente, dava-se o contrário. Se não, veja COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 63: “Todo o trabalho de persuasão
higiênica desenvolvido no séc. XIX vai ser montado sobre a idéia de que a saúde e a prosperidade da família dependem de
sua sujeição ao Estado.”
286
DEBORD, Guy. A sociedade..., pp. 198-199.
287
HASSEMER, Winfried. Introdução..., p. 432.
288
BOURDIEU, Pierre. Sobre..., p. 116.
60
percebem-se dois contendores destacados: de um lado o remédio, de outro a lei. O veneno
previsto por uns, o antídoto na mão dos outros.”
289
289
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., pp. 238 e 241.
61
2 O INÍCIO E O(S) MEIO(S), MAS (E) NÃO (A) O FIM (FINALIDADE), DA
INTERVENÇÃO MÉDICA NO PODER PUNITIVO BRASILEIRO
No Brasil, a medicina, ao menos aquela vinculada às questões penais, pode ser
avaliada sob três aspectos que parecem imprescindíveis para o entendimento mais claro e real
da situação médico-penal nacional atual. Embora ambos pressuponham uma medicina
coletiva
290
- ainda que aplicada individualmente
291
-, voltada para as questões higienizadoras - e,
muita vez, camufladamente higiênica -, um deles se refere a um domínio do discurso médico
dirigido à higienização dos espaços públicos e da gente que o ocupa, enquanto os outros dois
se voltam para a higienização eugênica do povo - entre nós desde 1934, dentro de uma constituição
democrática
292
-, encontrando-se eles sob a vertente étnica e, ou, genética. Todos, porém, não
passaram e não passam de um exercício de poder que insiste em se impor, arrimando-se no
inegável, embora indesejável, domínio advindo ou de uma linguagem, uma indumentária e um
local de atendimento espetaculares
293
, específicos e inacessíveis aos não médicos, ou de uma
necessidade terapêutica e preventiva inventada - ou, quando menos, espetacularizada com o intuito de
desesperar -, por eles ou, ainda, pelo simples usufruto do poder per se, que tanto anima e ufana
o ser humano, insistindo em se impor, dizia-se, a todos aqueles excluídos em razão do
descarte higiênico e trabalhista promovido pelas conveniências da atual política neoliberal
294
que pretende se sustentar mediante uma self fulfilling prophecy.
295
290
Entendendo que os problemas médico-sociais estão no entorno da medicina coletiva, e não da individual, DONNANGELO,
M. C.; PEREIRA, L. Saúde e sociedade. São Paulo: Duas Cidades, 1976, p. 33 apud PEREIRA, José Carlos de M. A
explicação..., p. 251.
291
Os problemas advindos da medicina individual curativa podem ser garimpados em PEREIRA, José Carlos de M. A
explicação..., p. 196: “As tensões apontadas no decorrer de nossa exposição entre a esfera médica e outras esferas sociais
ocorrem fundamentalmente no caso da medicina curativa e individual. Esta, pelas razões indicadas, dispõe-se, com
frequência, a contrariar a ênfase que, em termos estritamente ideais, a medicina coloca no fomento da saúde e prevenção da
doença. É sobretudo nesse tipo de medicina que motivações outras, não médicas, dão sentido econômico, político,
burocrático etc. aos atos médicos. Sobretudo nela é que médicos (como os atores sociais privilegiados das relações sociais
orientadas pelo conteúdo de sentido da ordem médica), empresas capitalistas (voltadas para a prestação de serviços nesse
setor), o Estado e demais participantes de menor relevância das relações sociais em pauta, podem buscar a realização de
objetivos estranhos aos ideais da medicina. Mas é exatamente em decorrência disso que se criam muitos dos impasses
discutidos.”
292
Aparentemente, entendendo incompatíveis a eugenia e a democracia constitucional, CARVALHO, José Murilo de. A utopia
de Oliveira Viana. In Pontos e bordados: escritos de história e política. 2. reimpressão. Belo Horizonte: UFMG, 2005, p. 204.
293
Sobre esses elementos como fatores de formalização do discurso, no caso, jurídico, embora extensíveis ao médico, mutatis
mutandis, veja HASSEMER, Winfried. Introdução..., pp. 412 a 418.
294
Como exemplo, cito WACQUANT, Loïc. As prisões..., p. 105: “‘A nova organização das penas’, observa o criminologista
THIERRY GODEFROY, é estabelecida ‘em relação com o controle de uma população crescente, jovens adultos em situação de
espera entre escolaridade e trabalho’, ao passo que se deixa disponível uma reserva de mão de obra desqualificada e pouco
exigente ‘útil para o desenvolvimento do setor dos serviços assim como para as novas formas de organização da produção,
que se aproveitam em grande medida da precariedade e da mobilidade’. Essa reconfiguração da punição provoca o aumento
da ‘pressão penal não sobre as ‘classes perigosas’ stricto sensu, mas sobre os elementos marginalizados do mercado de
trabalho (particularmente os jovens e os estrangeiros) aos quais são oferecidas como perspectiva apenas a aceitação de uma
inserção no mercado dos empregos inseguros ou sanções carcerárias, sobretudo em caso de reincidência.”
295
Advertindo sobre ela, R. K. MERTON, citado por PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 65: “Mas é nas ciências
sociais, possivelmente, que ocorre a maioria dos casos de teorias proféticas que se autocumprem, validando conhecimentos
62
2.1 O embate entre o discurso médico oficial e o inoficial: alternância e
miscelânea dominiais discursivas
Acima, ficou alinhavado que a medicina não oficial foi suplantada pela invulgar. É de
crer-se que o tema agora merece um pouco mais de detença. Primeiro, vejamos como a
medicina formal-oficial conseguiu adquirir a primazia do discurso médico, sabendo de
antemão, por FREIRE COSTA, que “o médico, nessa corrida para o poder, tropeçava a todo
instante na incômoda herança dos tempos coloniais”, porquanto, “a medicina, mesmo quando
possuía um conhecimento de racionalidade bem superior à que orientava a prática curativa
leiga, teve que enfrentar o descrédito da cultura.”
296
Pois bem. Tanto a resistência a ele - visto
que os médicos, desde o século XIX, esforçaram-se para se livrar do passado combatendo, “desesperadamente,
curandeiros, parteiras, homeopatas e tentavam, a todo custo, riscar da memória histórica a antiga submissão à
burocracia e mesmo à religião”
297
-, quanto a dominação por esse discurso obtida pela
exclusividade de apresentar um saber médico, sobretudo formal-oficial, vendido ao paciente-
consumidor com o rótulo da inabdicabilidade, encontram raízes mais fundas que o
descobrimento do Brasil, estando fincadas em solo português e nacional - nesse caso, também
literalmente, em razão da participação intensa que a nossa flora desempenhou no nosso processo de
medicinalização e medicalização -, bem como em sociedades ou mesmo pessoas dirigidas por
tradições - folclórias, religiosas etc. -, de natureza diversa e, ou, antagônica, numa disciplina cuja
dualidade, ou mesmo trialidade de influências repercutiu sobremaneira na composição do
discurso médico formal-oficial, a despeito deste, ao final, remanescer como dominante,
mesmo que com pouco folga, porque amalgamado pelos constantes e poderosos influxos que
ele sofreu, e sofre, projetados a partir da medicina não invulgar. Um pequeno percurso
histórico pode indicar o porquê disso, é dizer, o porquê de o discurso médico formal-oficial
haver se sobreposto aos demais, e nessa condição haver se mantido até hoje, quando não
ampliou seu poderio. Se não, vejamos.
errôneos ou, inversamente, de profecias suicidas, por evitarem, uma vez vindas a público, o acontecimento previsto, dando,
consequentemente, a impressão de serem errôneas, quando, na verdade, são corretas. ...É mais difícil a ocorrência de tais
profecias diretamente no campo da saúde. No entanto, poderão ocorrer muitos casos de situações inversas, ou seja, de
profecias suicidas. Elas se produzem em todos os campos de atividade social, uma vez que os homens, ao agirem para
prevenir a ocorrência do fenômeno previsto, impedem-no efetivamente de se realizar. Estão nesse caso todas as epidemias
previstas e não-acontecidas por terem sido tomadas as medidas convenientes, como vacinações em massa, por exemplo.
...Uma dificuldade acessória na análise científica dessas profecias suicidas está em que, se podiam ser corretas (só não se
produzindo o evento previsto em razão da ação desencadeada em decorrência da própria previsão), também poderiam ser
falsas, não sobrevindo o acontecimento previsto, não por causa das medidas tomadas, mas simplesmente porque, realmente,
não ocorreria de maneira nenhuma. Seria o caso de uma epidemia que não se produziu não porque as pessoas foram
vacinadas, mas porque não ocorreria de qualquer modo.”
296
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 76.
297
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 76.
63
Desde seu descobrimento, o Brasil Colônia, porque sob a vigência de uma legislação
lusa que proibia a manufatura fabril, a imprensa e as escolas, foi despido de ambiente
confortável para qualquer expressão de ciência e inteligência
298,
299
, bem ao conforto da
modernidade que mais tarde adveio da Revolução Industrial e que, necessitada do uso da
máquina, privilegiava a mecânica e a matemática aos fatores subjetivos
300
, embora fosse, tão
logo, modificada essa conjuntura pela influência dos positivistas que “chegaram a formar a
aristocracia do pensamento brasileiro, a nossa intelligentsia.”
301
Ainda em 1792, a intromissão
dos avanços médicos do engenho francês incorria na tipagem do contrabando da literatura
que, inacessível à maioria, abria espaço ao exercício do curandeirismo, notadamente
rudimentar e primitivo, mix da tradição popular invasora com a magia e o empirismo do
escravo e do autóctone, com uma aqui e outra ali práticas dos jesuítas e com a técnica de uns
poucos licenciados.
302
O aumento do quadro de curandeiros
303
se acentuava na medida em que
a quantidade de doentes aumentava em relação aos médicos existentes
304
que, por sua vez,
diminuíam na proporção do afastamento que o clima e outras dificuldades realizavam nos
esculápios alienígenas, pouco importados tanto quanto eram exportados os nacionais que
quase nunca podiam custear seus estudos ultra-mar.
305
Não se reduzindo somente à logomaquia, “além do mais”, sustenta FREIRE COSTA,
“o que denominamos hoje em dia médico não encontrava correspondência em nenhum outro
grupo profissional da Colônia. A função de curar, mesmo entre aqueles que tinham o exercício da
profissão legalmente reconhecido, era repartida em uma infinidade de categorias: ‘os profissionais
que praticaram a medicina no Brasil, nos três primeiros séculos até princípios do XIX,
denominaram-se ‘físicos’
306
ou ‘licenciados’, ‘cirurgiões-barbeiros’, ou ‘cirurgiões-aprovados’,
ou ‘cirurgiões-examinados’. Os primeiros, os médicos, propriamente ditos, formados em escolas
européias, principalmente portuguesa e castelhana, ocuparam quase todos os cargos de físicos da
Coroa, do Senado da Câmara, do ‘partido’, da tropa. Reduzidos em número e saber residiam eles
nas principais cidades e vilas, e nas sedes das capitanias. Os segundos, os cirurgiões barbeiros,
compuseram a maior parte dos profissionais da medicina, dada a escassez de sicos. Como estes,
moravam nas cidades e vilas, ocupando muitos deles cargo na tropa, no Senado da Câmara e
outros na administração. Ainda mais ignorantes da Arte do que os físicos, encontraram nos
‘barbeiros’ os seus maiores concorrentes. Estes últimos, que também se submetiam a exame para
os atos de sangria, sarjação, aplicação de ventosas e arrancamento de dentes, distribuíram-se por
298
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. 30. reimpressão. São Paulo: Cia. das Letras, 2008, p. 83: “Nos
seus Estudos do bem comum, publicados a partir de 1819, o futuro visconde de Cairu propõe-se mostrar aos seus
compatriotas, brasileiros ou portugueses, como o fim da economia não é carregar a sociedade de trabalhos mecânicos, braçais
e penosos. E pergunta, apoiando-se confusamente numa passagem de ADAM SMITH, se para a riqueza e prosperidade das
nações contribui mais, e em que grau, a quantidade de trabalho ou a quantidade de inteligência.”
299
NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 151-152.
300
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 84.
301
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 159.
302
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 152.
303
Cuja relação, ainda que mínima, pode ser encontrada em NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 153.
304
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 152: “A ausência de médicos e de cirurgiões habilitados determinava fatalmente sua
substitução pela chusma de curiosos que encheu a crônica dos tempos da colônia e mesmo de épocas mais recentes.”
305
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 152: “Repetindo o que afirma ALFREDO NASCIMENTO, podemos dizer que ‘a carreira
científica era quase vedada aos brasileiros’.”
306
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 193: “Atente-se ao fato de que os novos centros proveriam a Colônia de
cirurgiões, mas não de ‘físicos’, já que só Coimbra continuaria a diplomar em medicina, mantendo dessa forma o controle em
todos os vastos domínios e reinos de Portugal.”
64
todos os outros povoados, freguesias, vilas e cidades. Sem qualquer instrução, de baixa condição
social, entre os barbeiros contavam-se negros
307
escravos e mulatos libertos. Arvoravam-se
também em médicos quando podiam. Sendo poucos os profissionais habilitados e muito vasta a
extensão territorial, juntamente com esses praticavam a medicina ainda os boticários e seus
aprendizes, os aprendizes de barbeiros e de cirurgiões barbeiros, os ‘anatômicos’, os ‘algebristas’,
os ‘curandeiros’, os ‘entendidos’, os ‘curiosos’ e outros que tais.”
308
Uma lançada d’olhos nesse campo aberto vislumbra desde sangradores, aliciados junto
aos escravos que do eventual lucro nada usufruíam, entregando-o aos seus senhores, barbeiros
no lugar de cirurgiões, parteiras caboclas ou negras senis que cumulavam a habilidade de
aparadeiras com a de ginecologistas, utilizando-se, para tanto, de terapêuticas primitivas que
foram exemplificadas por NAVA como “rezas, esconjuros e invocações cabalísticas”, e com a
de “abortadoras e de enjeitadeiras, de feiticeiras e de bruxas, de alcoviteiras e de alcofas dos
amores coloniais e menos confessáveis dos velhos cariocas.”
309
Quiçá devido à colonização pelo povo português
310
- vocacionado à cristandade, à
solidariedade e ao auxílio que o homem deve prestar ao homem
311
, mas, também não menos, advirta-se, mais à
feitorização que à colonização
312
-, os brasileiros colonizados, igualmente cultivando sentimentos
mais nobres, sedimentaram um maior número de meios pelos quais eles se manifestariam, não
ficando a eles infensa a medicina que, abastecida também com outros recursos, e até mesmo
outras influências
313
, ganhou em riqueza, seja na sua vertente douta, seja na popular.
314
Tudo
isso, porém, perde em força quando, acompanhando NAVA, resta patente consignar que
“o lastro que vai constituir a suma de sabedoria popular no tocante à medicina é formado pela
prática intuitiva, analógica e empírica do diagnóstico, do prognóstico e dos tratamentos - lastro
constantemente aumentado pelas informações fornecidas pelo médico
315
ao doente e aos que o
cercam. Não sábio que tenha mais curiosidade sobre o fenômeno que é a moléstia que o
próprio paciente, máxime o que é observador e inteligente e, depois deste, as pessoas nas mesmas
condições de sagacidade a ele vinculadas pelo interesse e pela afeição. Por isso, todo prático que
307
No caso de citação, manter-se-á a expressão “negro” por fidelidade ao respectivo autor recorrido. Todavia, para outros
casos, ela será substituída pela expressão “afro-descendente”, mais correta e respeitosa, em todos os sentidos.
308
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 75.
309
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 153.
310
NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 39-40 e 171: “A medicina em Portugal, nos séculos XII e XIII, era exercida pelos
eclesiásticos, naturalmente influídos por sentimentos de solidariedade mística, útil decerto como caridade, mas de poucas
resultantes no progresso verdadeiramente científico da medicina. ...A medicina que predomina... é, por parte dos cristãos,
uma medicina mística, tendente a minorar os sofrimentos da alma mais que a socorrer decididamente os padecimentos do
corpo.”
311
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 172: “Pode ser apresentado como exemplo dessa generalização o caso do povo português. À
medida que se lhe firmava o pensamento cristão, ao influxo do apostalado exercido em sua terra, desde o século XIII, pelos
monges e frades cistercienses, ominicanos e franciscanos, multiplicavam-se na mesma os lazaretos, as corporações de
‘mesteres’, as confrarias, os hospitais, e depois as Misericórdias - por intermédio das quais eram praticadas a caridade e a
fraternidade no sentido evangélico.”
312
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 107.
313
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 172: “Cabe considerar aqui que a presença do mouro e do judeu e sua influência sobre o
comportamento da gente lusitana não colidia com os princípios da sua solidariedade cristã, sentimento que era antes
reforçado pelos que ditavam aos israelitas o seu hábito de visitação aos enfermos e sua tradição de hospitalidade e, aos
árabes, o dever de proteger os pobres, as crianças e as viúvas, como está explícito na letra do Cortão (sic).”
314
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 172.
315
Porém, nem tanto assim, como aponta NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 186: “Além do aspecto conservador, estável e pouco
susceptível de acolher a novidade, apresentado pela medicina popular, referimo-nos antes à sua curiosa característica de
resistência de classe, à sua fisionomia de surda revolta partida de baixo contra o que lhe parece vir de cima. Revolta e talvez
inconsciente posição revolucionária.”
65
conversa com o enfermo ou com sua família sobre a causa dos seus males, sobre o modo por que
eles se manifestam, sobre as suas consequências próximas ou remotas, sobre suas complicações e
sobre o recurso para dominá-los, está espalhando ensinamentos aos que a necessidade torna mais
receptivos e atentos para eles. Esses ensinamentos são captados pelo indivíduo principalmente no
que diz respeito ao sintoma dominante, ao sinal prognóstico e ao agente curativo. Justamente a
tríade que mais interessa a quem está doente ou teme por um doente. E esses preceitos é que vão
ser transmitidos pelo seu detector leigo, sempre que uma analogia flagrante (entre a situação
mórbida que está vendo com a situação mórbida que viu) determinar que fale a experiência que
vai sendo incorporada ao patrimônio da sabedoria coletiva pela repetição, na palavra veiculada
pelos pais, pelos idosos, pela conversa das mulheres velhas.”
316
Pela repetição, ou mesmo pelo exemplo, como o de
“deixar nas igrejas, com o ex-voto, a história do mal e do milagre que curou para que aqueles
atingidos pelo mesmo possam apelar para a intervenção do santo que advogou a graça. Aliás, as
primeiras observações de doenças que nos ficaram de eras remotas são justamente os relatos
votivos deixados nos templos como reconhecimento aos deuses
317
e para a edificação dos que
deles tomassem conhecimento.”
318
Conhecimento popular este, inclusive, influenciante ainda hoje
319
, e a fortiori na época
do colonialismo, na própria medicina dita douta.
320
De sorte que, com arrimo na sua mantença
atual referida influência mostrou-se poderosa, chegando a determinar a confusão entre o que
era, e é científico e o que era, e é popular
321
, o que, em toda medida, outorga razão ao que
disse NAVA, i. e.,
“se a crendice, a superstição e a religiosidade agem tão poderosamente sobre a medicina douta,
com mais razão terão de agir sobre os ensinamentos dessa medicina douta no momento em que
eles passam a fazer parte da experiência coletiva como conteúdo médico-popular de sua
cultura.”
322
De maneira que, o relativamente recente direcionamento dos olhares para fenômenos
espetaculares como a epilepsia, alienação e histeria
323
robora referida influência na medida do
influxo que a suscetibilidade - pouco mitigada
324
no Brasil de hoje
325
-, de uma determinada
316
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 173.
317
O elenco de santos para quem os católicos rogam a intercessão em cada doença, pode ser descortinado em NAVA, Pedro.
Capítulos..., pp. 177-178: “Os povos católicos, se não admitem, como os grupos da Malásia, um demônio para cada doença,
em sentido ‘oposto mas justaposto’, aceitam a ação curativa dos santos - e praticamente de um para cada moléstia.”
318
NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 173-174.
319
Embora referindo-se à medicina popular, e não à douta, é inegável a influência daquela nesta, ainda hoje, pelo que diz
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 186: “A medicina popular do português, transportada pelo navegador, pelo degredado, pelo
soldado e pelo colono, aqui iria ser o elemento mais forte e dominante da nossa arte curativa popular. Essa influência sente-se
até hoje - pura e quase livre de deformações na sua transmissão escrita e verificada nos livros de que tratamos e, interpolada
de contribuições indígenas e negras, no espírito com que é ministrada pelos nossos curandeiros e recebida pelo grosso dos
pacientes.”
320
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 174.
321
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 174: “Realmente há um instante da evolução da Arte, em Portugal, em que é difícil traçar
um limite entre o seu setor cultivado e o seu setor popular - entre a magia, a superstição, a feitiçaria e a religiosidade de um
lado e a medicina científica do outro.”
322
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 175.
323
SZASZ, Thomaz S. O mito da doença mental: fundamentos de uma teoria da conduta pessoal. São Paulo: Círculo do Livro,
sem data, pp. 24 e seguintes.
324
Historicamente, e, depois, em termos mais atuais, NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 183: “Assim como aquele ‘curão’ de que
fala LEITE DE VASCONCELLOS, os curandeiros e feiticeiros brasileiros são também uma autêntica revivescência da medicina
antiga, principalmente da portuguesa dos século XVII e XVIII. Isto pode ser verificado pela leitura dos breviários de onde o
nosso povo tira atualmente a maior parte dos seus conhecimentos médicos, explorados editorialmente e espalhados aos
milhares pela Livraria Quaresma e que são: O Grande e Verdadeiro Livro de S. Cypriano, O Livro da Bruxa e O Livro do
Feiticeiro ou a Scientia do Juca Rosa Revelada. Aos que estranharem a vulgaridade destas fontes de estudo, lembramos
apenas a advertência de PROUST quando ele diz que ‘(...) on peut faired’aussi précieuses découvertes que dans les ‘Pensées’
66
sociedade admite que a doença foi desafivelada por algo sobrenatural
326
, dependente,
portanto, de uma causa alheia à compreensão do doente e dos que o rodeiam
327
, cuja eventual
repulsa
328
, advirta-se, não se contrapõe à difusão do iter
329
, desde a morbidez até a cura ou a
morte, passando pelo diagnóstico, pelo prognóstico e pela terapêutica, de uma geração para a
posteridade.
Mas, continua NAVA, “a medicina de base natural... sempre lutou contra a idéia da
origem diabólica ou divina das doenças. O meio-termo e um como que ecletismo tem sido
procurado pelos que querem manter um aspecto místico-teúrgico no corpo das doutrinas
médicas... contra os que se firmaram no etiologismo natural”, tolerando “que se possa ser
epiléptico ou lunático sem ser possesso, mas, raciocinando com um biotipologismo todo seu,
acreditam que esses doentes, pelo fato de o serem, oferecem um terreno especial e propício à
insinuação demoníaca.”
330
Acontece, porém, que “o etiologismo sobrenatural puro ou misturado ao que soma ao
natural
331
e ao sobrenatural... traz sempre consigo a necessidade de tratamentos maravilhosos
para males que são de essência supraterrena. E a partir deste ponto de vista o doente é presa
inevitável do feiticeiro, do taumaturgo, do médico-sacerdote, do padre exorcista e do
charlatão.”
332
A medicação desta medicina é ministrada mediante uma mise-en-scène de mistério e magia,
de Pascal, dans une réclame pour un savon.” A leitura atenta destas brochuras (cuja influência, a julgar pelo número de suas
tiragens, excede a de qualquer obra brasileira da medicina douta) mostra, ao lado do enunciado de princípios pueris de magia
negra, de cartomancia, de buena-dicha, de litomancia, de astrologia e de informações primárias sobre o magnetismo, a
catalepsia e o hipnotismo - toda uma série de ensinamentos popularizados na Arte erudita portuguesa.”
325
Mais atualizadamente, ainda, NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 186: “E é essa a sabedoria consultada pelos curandeiros
brasileiros para exercerem em pleno século XX!”
326
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 178: “...a arte curativa popular, como expressão da cultura de um grupo, não pode deixar de
ser influenciada poderosamente pela interpretação religiosa do universo adotada por essa coletividade.”
327
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 175.
328
Um pouco despido de credulidade, diz NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 176: “O nosso povo, sem muita consciência disso,
parece admitir ainda hoje coisa semelhante a esses demônios ou então a uma individualização anímica equivalente das
doenças, particularmente das de essência mais repugnante e mortífera ou temíveis pela incurabilidade, pelo seu caráter
familial e hereditário - quando evita dar-lhes o nome que elas têm. Lepra, tuberculose, cancro - são vocábulos
cuidadosamente evitados, contornados ou substituídos por expressões de menor poder verbal, por palavras que apenas dão a
entender em vez de indicarem claramente a tara, a mácula, a desgraça, o ‘demônio’ que se procura espantar com a perífrase.
Ao morfético dar-se-á o nome de miraculado irmão de MARTA ou de MARIA, ou, usando do modismo de Minas Gerais, dele
se dirá que é macuteno (de ‘mal cutâneo’); do tísico, que ‘sofre do peito’ ou apenas que ‘está fraco’; do neoplásico, que tem
um tumor, um processo, ou uma ferida de ‘mau caráter’. E mais ainda, quando alguém indica sobre o próprio corpo o
tamanho e a localização da lesão de outro, sempre neutraliza o gesto capaz de atrair, com a expressão exorcismadora ‘lá nele’
- como quem diz que lá continue e que para si não venha: ‘Ele está com uma úlcera que vem daqui até aqui... lá nele...’.”
329
NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 178-179: “E tanto mais arraigado quanto convém ao intermediário entre o mundo e o
desconhecido cultivar este estado de coisas pelo lucro e pelo prestígio que sempre auferiu o que cura, do paciente libertado de
seus males.”
330
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 178.
331
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 182: “A capacidade que tem a medicina popular de incorporar os ensinamentos da medicina
erudita mostra que sua relutância em aceitar as novidades não pode ser considerada como uma regra geral. São repelidas as
que chocam com a tradição, mas são recebidas aquelas cujo aspecto de inovaçao vem coberto pelo fundo de prática arraigada
que não entra em conflito com as idéias habituais, nem com os costumes consagrados.”
332
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 178.
67
“onde o gosto por essa mistura do humano com o divino está patenteado nas invocações, nas
preces simples ou seguidas de imposições manuais e de gestos de esconjuro. ...No rudimento de
atos sacrificiais praticados sobre animais vivos. No esboço de penitência e castigo buscados no
remédio estercorário e imundo, que acompanham a administração corriqueira de suadouros. De
purgas..., de infusos, cozimentos e tinturas. ...De fórmulas”
333
tão ao sabor do positivismo jurídico - que dá sinais de recrudescimento, se é que algum dia foi
inumado
334
ao menos nas prateleiras -, porquanto, a penitência e o castigo, os rituais de purificação
e limpeza da medicina popular “onde a cura muitas vezes depende de que se purgue o
indivíduo da sujeira da doença, que é o lote de suas contravenções morais, dos crimes de sua
alma”
335
, parecem ainda estar em certa voga.
Ipso facto, equivoca-se quem, prematuramente, entende por haver encontrado a
diferença entre o médico formal e o praticante inoficial na nomenclatura que os rotula, ou
mesmo na legitimação que o acesso social comunicativo, mediante as agências de
adestramento reconhecidas, outorgam àquele e não a este. É que,
“dentro do sem-número de charlatães e de curiosos que no nosso interior e nas nossas cidades
concorrem com o médico, é preciso distinguir o espertalhão, o contraventor, o explorador da
ingenuidade e da crendice do povo, da figura mais complexa do curandeiro que exerce por uma
espécie de gosto inato, de tendência e de vocação. Se o primeiro só cuida de aguçar a sua
capacidade para o engano e o dolo, o segundo consegue muitas vezes uma prática que não é para
desprezar numa terra onde vastas zonas do interior não contam com qualquer assistência médica
governamental ou civil. O gosto do povo concorre também para o aparecimento destes tipos que
lhe são muito mais próximos e acessíveis que o profissional, cujos serviços têm preços que os
transformam em mercadoria proibida para o grosso de nossa população. Além do mais, a
medicina dos curiosos com todo o seu lastro de superstições, de rezas, de amuletos, de ervas e o
seu lado antigo e humano fala muito mais ao espírito popular que uma medicina oficial pouco
acessível, exercida por tantos técnicos com indiferença e de modo mecânico, através de um
sistema de assistência hospitalar geralmente obsoleto e de ambulatórios na sua imensa maioria
completamente inoperantes. A escassez de médicos ou, quando existe o médico, a
inacessibilidade dos seus preços são os elementos principais a favorecer o exercício curativo dos
nossos farmacêuticos no interior e nas cidades. Do mesmo modo que a do curioso, a terapêutica
sintomática do boticário não deixa de ter a sua utilidade para aqueles que não podem dispor de
socorro mais adequado para suas doenças.”
336
E isso, como é evidente, arrefece parte do discurso simbólico médico oficial, como
oficial, mas não como discurso médico pragmático, haja vista sua operatividade exigir ainda
uma certa técnica.
Daí, tanto a resistência pelo discurso médico oficial quanto, pari passu, o aumento das
idéias hahnemannianas da homeopatia e dos cerimoniais religiosos de ascendência negra
sendo, na lição de NAVA, a “medicina dos candomblés... a mais conservadora possível”, nela
333
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 179.
334
Sobretudo em razão da sua associação, indissociável, à cultura dos povos, conforme NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 180:
“Se os processos curativos do povo, de acordo com a tese que sustentamos, fazem parte do seu complexo cultural, da mesma
forma que seus sentimentos religiosos, seus hábitos de preparação alimentar, suas manifestações artísticas, sua posição de
espírito em face dos antepassados, da morte, da sucessão paterna ou materna, da fraternidade associativa ou de sangue, seus
preconceitos e proibições, é natural que esses processos curativos matenham o mesmo caráter de imutabilidade com que são
transmitidos através da via sucessiva das gerações.”
335
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 179.
336
NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 207-208.
68
se podendo “encontrar todas as crenças e superstições amalgamadas pelas raças que se
misturam no Brasil”, cujo realismo marginal, sobretudo penal, desencadeia e acentua uma
“insurreição surda e latente introduzida profundamente pelas desigualdades sociais na essência de
início apenas religiosa das macumbas e que agora é uma componente entranhada e inseparável
delas (a brutalidade com que a ordem estabelecida combate policialmente as manifestações da
religião negra e do baixo espiritismo servem de contraprova à hipótese que estamos aventando)”,
aditada a um “estado psicológico de insubordinação contra o que está de cima”, concorrendo
“provavelmente na resistência oferecida à medicina oficial e, mutatis mutandis, na
manutenção e na preferência pelas formas de curar incorporadas à cultura do povo”, recebida,
ad instar do medicamento, pela sua “representação de maravilhoso.”
337
Inobstante resultar dessa pseudomedicina uma “prática menos nociva e um exercício
mais aproveitável”
338
, porque, diluindo a formalização da técnica médica aproxima-a dos seus
destinatários, sua análise no contexto das instituições
339
destinadas aos doentes, instituições
totais de confinamento
340
- das quais são aquelas desprovidas -, demonstra que foi graças a essas
que aconteceu a difusão - perseguida, advirta-se
341
-, “de uma medicina superior à arte curativa
popular”
342
e, outrossim, o controle, a disciplina e a neutralização da massa trabalhadora
desinteressante ao mercado, pois, segundo DEBORD, infelizmente, “...a mercadoria que a
burocracia controla é o trabalho social total, e o que ela revende à sociedade é a sobrevivência
como um todo.”
343
Daí, poder-se dizer, junto com WACQUANT - que se escora em ROBERTO DA MATTA e
PAULO SÉRGIO PINHEIRO -, em última medida e tout court, que
“ela apóia-se numa concepção hierárquica e paternalista da cidadania, fundada na oposição
cultural entre feras e doutores, os ‘selvagens’ e os ‘cultos’, que tende a assimilar marginais,
trabalhadores e criminosos, de modo que a manutenção da ordem de classe e a manutenção da
ordem pública se confundem.”
344
Indetenível a curiosidade, por outro lado pode-se perceber que foi também graças ao
surgimento destas instituições de sequestro que, sob o u da medicina, muitos crimes foram
cometidos, sonegados ou camuflados, como no caso da instituição “Recolhimento de Nossa
Senhora do Parto, vulgarmente chamada Recolhimento do Desterro”
345
, datada de 1742, que,
337
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 210.
338
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 154.
339
Sua relação pode ser surpreendida em NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 154.
340
Analisadas em FOUCAULT, Paul-Michel. História da loucura: na idade clássica. In coleção Estudos. São Paulo:
Perspectiva, 2008, n. 61, pp. 45 e seguintes.
341
Ancorando-se em JOAQUIM JOSÉ DOS REMÉDIOS MONTEIRO, COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., pp. 213-214: “Julga-se que o
vulgarizar a medicina pelo povo poderia induzi-lo a praticá-la e fiar-se de si mesmo em vez de recorrer aos profissionais; o
contrário porém é o que sucede. As pessoas mais instruídas nesta matéria são ordinariamente as mais dóceis e as que buscam
os conselhos dos médicos, enquanto os ignorantes são os mais ousados em exercitar a arte e mais prontos a desconfiar dos
médicos.”
342
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 154.
343
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 43.
344
WACQUANT, Loïc. As prisões..., p. 9.
345
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 155: “A 24 de agosto de 1789 esse imóvel, cujas paredes deviam ocultar muita violência,
muita arbitrariedade e muita injustiça, ardeu. Diz a tradição que o incêndio fora ateado por uma recolhida, revoltada contra o
69
em verdade, tratava-se de um asilo para pecadoras e servia também para nele serem
internadas senhoras e moças pela autoridade dos maridos descontentes e dos pais
desgregados”
346
, representada como instituição de controle neonatal daqueles inocentes que,
carregando os vícios de que eram acusadas as mães, portanto, já contaminadas, tinham destino
certo, qual sendo, o estoque de corpos indesejados, depósito de incógnitos cuja alternativa,
sempre imposta, seria mudar-se da instituição de confinamento fechada para a aberta, o que
não era muita coisa, pois em ambas haveria exclusão por inclusão regra básica, da exceção
347
,
porquanto esta é “uma exclusão inclusiva (que serve, isto é, para incluir o que é expulso)”
348
-, inclusive do
ser em sua fase ainda intrauterina, configurando um sequestro bis in idem.
Outro exemplo infeliz do poder médico formal-oficial seletivo, colhido em NAVA,
advém da aglomeração em asilo, superintendida pela Irmandade do Sacramento da Freguesia
da Candelária, cuja incapacidade recepcionadora, limitada a 52 vagas, nunca desocupadas,
inadmitia, paradoxalmente - o que não deixa de ser uma estratégia dos sistemas de poder -, a entrada de
outros “morféticos que continuavam a pulular na cidade”, levando o Conde da CUNHA a pedir
fossem eles abrigados em “um casarão abandonado do mesmo bairro de SÃO CRISTÓVÃO, antiga
propriedade dos Jesuítas”, cuja concessão, em 1765, albergou a transferência dos “doentes de
suas velhas choças para o novo lazareto”, e onde o “serviço era feito por condenados tirados
da cadeia e por mendigos vindos do asilo.”
349
Eram os não aceitos no mercado de trabalho
cuidando dos menos aceitos ainda, e às escondidas. Com isso, evitava-se a divulgação dos
subterfúgios usados pelo poder médico, bem como inexigia-se deslocar mão de obra servível
da disciplina agrícola e fabril para aquela de nenhuma importância. “Por mais revoltante que
isso pareça”, continua NAVA,
“é preciso que nos lembremos que várias instituições do Governo exploram ainda hoje outros
desajustados provenientes de um albergue, v. g., fazendo-os trabalhar em troca de comida e da
promessa de uma colocação efetiva - promessa que nem sempre é cumprida com a presteza que
seria a única justificativa dessa inqualificável maneira de recrutar trabalhadores para o serviço
hospitalar. Essa prática pode ser admitida se colocada, exclusivamente, dentro da intenção de dar
trabalho reajustador e imediato a quem não tem profissão. Fora daí, quando tarda a remuneração
desse trabalho ou quando ele é pago apenas com a manutenção de quem o faz, o que passa a
existir é uma prática abusiva e uma especulação inqualificável contra a qual todos os protestos são
poucos.”
350
Então,
“se a resistência oferecida pelo nosso povo à medicina oficial dependia e depende de fatores
psicológicos que lhe são próprios, por outro lado concorriam e concorrem para mantê-lo nessa
tratamento desumano ali dispensado. Mas logo o Vice-Rei fez reparar os traços do fogo e a 8 de dezembro do mesmo ano
suas portas tornaram-se a fechar sobre as reclusas que, em procissão que se fez solene, voltaram à sua prisão do Desterro.”
346
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 155.
347
O trocadilho entre exceção e regra não é adrede.
348
AGAMBEN, Giorgio. Homo..., p. 29.
349
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 156.
350
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 156.
70
situação primitiva de mentalidade a incúria dos poderes pela sua educação e a escassez do socorro
médico-hospitalar com que pode contar. A forma de educação que ele conhece mais de perto é a
orbiliana - representada pelo casse-tète e pelo cano de borracha. E dos nossos hospitais,
insuficientes na quantidade e quase sempre na qualidade, o que se não basta como propaganda
e como determinante à preferência pela medicina oficial. É por isso que ele apela,
desesperadamente, para a de sua classe, para a medicina maravilhosa dos curandeiros, dos
rezadores, dos médiuns, dos macumbeiros e que arrasta a sua carne furada pelas úlceras,
chumbada pelas paralisias, escurecida pela cegueira, roída pela lepra, minguada pela fome
crônica, deformada pelo trabalho e dessorada pela sífilis, pelo verme, pela malária e pela
tuberculose à única possibilidade que se lhe apresenta como solução: o milagre.”
351
Quiçá, por isso, conclui NAVA, estejamos sempre à procura de “compensações vivas”
para nossa constante “falta de uma retaguarda de médicos e de enfermeiras.”
352
Portanto,
“a luta contra as moléstias, nos albores da vida coletiva dos cariocas, teria sido uma luta
individual e sem o auxílio dos médicos. Esses eram inexistentes como parte da sociedade ou tão
escassos que sua ação perde em importância. No Rio incipiente, como no resto do Brasil e em
toda a América colonial - e isto foi um fenômeno inevitável e característico -, o curandeiro, o
entendido, o expediente teriam sido uma necessidade. E sua presença, certamente salutar, era
melhor que nada
353
. Medicina popular portuguesa, medicina indígena
354
, medicina dos religiosos
e feitiçaria devem ter entrado em sincretismo e começado a amalgamar o que ficou até hoje como
nossa medicina popular. Esta constituía-se tanto da experiência coletiva, como de ensinamentos
advindos de livros destinados a fazer os leigos suprirem bem ou mal a escassez ou a ausência dos
médicos.”
355
Em verdade, realmente entraram - mas, readvirta-se, não com força suficiente para desbancar o
discurso médico formal-oficial -, e graças, segundo BUARQUE DE HOLANDA, à incapacidade dos
portugueses de “não terem sabido ou podido manter a própria distinção com o mundo que
vinham povoar”, de sorte que “sua fraqueza foi sua força”, porquanto
“mais do que nenhum outro povo da Europa, cedia com docilidade ao prestígio comunicativo dos
costumes, da linguagem e das seitas dos indígenas e negros. Americanizava-se ou africanizava-se,
conforme fosse preciso. Tornava-se negro, segundo expressão consagrada da costa da África.”
356
Agora, a situação parece um pouco menos pior.
“Quem contempla no esplendor de hoje e compara a modéstia de sua origem com a atualidade de
sua grandeza, quem quer investigar as razões dessa progressão e compreendê-la, tem de atentar
aos elementos que se juntaram historicamente para favorecer o advento dessa medicina carioca, a
um tempo original e receptiva, autóctone e eclética, local e universal. Não é difícil apontá-los.
Foram a legislação, quase sempre favorável. O espírito reformista e dialético do nosso ensino
médico. A tendência à criação de faculdade depois de faculdade. O aparecimento e a ampliação
de nossa literatura técnica. A compreensão da necessidade de se multiplicarem os hospitais e se
abrirem sempre mais associações científicas para o debate e a controvérsia. E coloquemos ainda
como razão paradoxal de avanço o estímulo de nossas pestilências, o desafio do nosso gênio
endemoepidêmico - de que resultaram a pesquisa científica no Brasil e no Rio. O sentimento ético
coletivo do português, introduzido nas Ordenações do Reino, uma legislação extremamente
351
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 211.
352
Encontrando a compensação, NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 211.
353
SILVA, Manoel Vieira da; PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. A saúde pública no Rio de Dom João. Rio de
Janeiro: Senac, 2008, p. 13: “Os colonizadores não endossavam tal conduta. Seu objetivo era cristianizar os índios e, para
isso, tinham de eliminar a influência dos pajés. Assim, os jesuítas assumiram o cuidado dos doentes.”
354
Que por si só já misturava magia e religião, segundo MOACYR SCLIAR em introdução à reedição de dois opúsculos da
época em que D. João esteve no Rio de Janeiro, in SILVA, Manoel Vieira da; PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. A
saúde..., p. 13: “Quando adoeciam, o que provavelmente era raro, recorriam - dentro de uma concepção mágico-religiosa da
doença, comum às culturas ditas primitivas - aos curandeiros tribais, os pajés que tratavam as enfermidades não só mediante
procedimentos ritualísticos, mas também fazendo uso de produtos vegetais e animais.”
355
NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 225 e 227.
356
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 64.
71
complexa sobre médicos e boticários, eriçada de imposições e endurecida de penalidades góticas
mas cujo espírito foi historicamente favorável, uma vez que refletia a necessidade de proteger o
doente contra os abusos e a concorrência do charlatão desautorizado.
357
Esses dois postulados
nos vieram de Portugal e do seu regime ultramarino através das imposições, cerceamentos e
franquias ditados pelas juntas do Protomedicato, da Fisicatura e da Cirurgicatura Mores, pelos
Senados das Câmaras, pelos editos de Polícia. Foram se formalizando, codificando melhor e
perdendo a brutalidade das suas sanções, com as legislações imperial e republicana, mas seu
espírito propício permaneceu e deixou-se configurar uma profissão liberal capaz de permitir o
desenvolvimento e a eclosão individual em toda sua pujança. ...Tampouco sejamos pessimistas
com a evolução que vai conduzindo a uma estabilização cada vez mais sensível da profissão entre
nós. As leis que regulam são um tanto opressivas para o médico mas, verdade das verdades,
protege melhor a saúde coletiva. A regulamentação da chamada ‘livre escolha’ melhorará a
situação do médico carioca. Com uma condição: que seja realmente livre escolha e não liberdade
cerceada e condicional, igual à do pater familias que deixava o filho casar com quem quisesse
contanto que fosse com a Maria... Essa, não!”
358
Então, embora parcialmente correto, entende NAVA que, “do ponto de vista de sua
civilização e cultura o Brasil é um país de dupla personalidade,”
359
conquanto pareça mais
certo entendê-lo como de tripla personalidade, concentradas, todas, no início da nossa
colonização original, na portuguesa, na brasileira - indígena -, e na africana. Todavia, como
visto, engana-se quem acredita que Portugal conseguiu decalcar, fielmente, aqui, a medicina
da metrópole. Aliada àquela miscelânia personalista quando da época colonial, “a
incorporação precoce de nossa flora às possibilidades das duas medicinas exercidas no Brasil
- a erudita e a vulgar -, é a maior influência desempenhada sobre as mesmas ou pelo jesuíta,
ou pelo índio
360
, ou pela ação conjunta de ambos”
361
, nunca desapegada da portuguesa, por
nós herdada
362
, dificultando sobremaneira - o que não necessariamente significa uma desvantagem -,
357
SILVA, Manoel Vieira da. Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para melhorar o clima da
cidade do Rio de Janeiro, in SILVA, Manoel Vieira da; PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. A saúde pública no Rio
de Dom João. Rio de Janeiro: SENAC. 2008, p. 69: “A causa da saúde pública em todos os tempos tem merecido as primeiras
atenções dos grandes legisladores; quando o número dos indivíduos sociais tem diminuído, impossibilita-se a execução da lei,
muda o seu objecto e, em conseqüência, a sua natureza, que deve ser relativa ao estado da população; e se o descuido chega a
permitir a reunião de todas as causas capazes de atacar rapidamente o princípio vital, a sociedade em muito pouco tempo é
quase toda vítima do seu fatal estrago. De que oxalá existissem tantos exemplos. Os nossos soberanos amantes sempre de
promover, quanto lhes fosse possível, a felicidade dos seus vassalos, tinham promulgado na capital, e em todo o reino, as
mais providentes leis a esse respeito; mas a distância imensa entre a sede do trono português e os seus vassalos do Brasil
impossibilitou até agora a execução da sua vontade. Chegou, contudo, a feliz época, que os faz sair da desgraça, que os
rodeava, e entrar na história das nações policiadas.”
358
NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 234-235.
359
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 23.
360
Sobre os índios, disse MOACYR SCLIAR em introdução à reedição de dois opúsculos da época em que D. João esteve no
Rio de Janeiro, in SILVA, Manoel Vieira da; PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. A saúde pública no Rio de Dom
João. Rio de Janeiro: SENAC. 2008, pp. 7 a 9: “Os índios... quando adoeciam... recorriam... aos curandeiros tribais... fazendo
uso de produtos vegetais e animais.”
361
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 21.
362
NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 219-220: “Para traçar a história da medicina de qualquer coletividade, é necessário um
conhecimento acurado das fontes classicamente admitidas como indispensáveis àquela interpretação. Essa verdade de
Monsieur de la Palisse vem aqui, à guisa de preâmbulo, para uma afirmação de caráter negativo; é impossível dizer como
começou a medicina, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro - por falta de documentos indicativos. ...E disso, o que
poderia existir, quando as primeiras naus portuguesas tocaram águas de nossa baía? Praticamente nada. A medicina do tempo
seria a Medicina Portuguesa do século XVI, isto é, tudo fora adquirido dos árabes, dos judeus, da tradição greco-latina e que
estava refletido nos ensinamentos. ...Esse conhecimento, entretanto, é inútil no estudo da história médica do Rio de Janeiro,
porque essa medicina portuguesa, assim acabada e completa, não se transferiu para cá com os portugueses. E não se
transferiu, porque a presença de um ou de outro médico é impotente para transplantar o edifício complexo de um sistema
médico. Ainda a medicina do tempo a seria dos índios. Mas o que falar das pobres práticas rituais e das tristes pajelanças de
um selvagem, nos primeiros degraus da evolução humana?”
72
ao menos no início do nosso processo dito civilizatório, o estabelecimento de um homogêneo
discurso médico impositivamente vitorioso - ao menos nos moldes de uma medicina formal-oficial
como a que conhecemos hoje -, em detrimento de outro dominado - no caso, o prosaico-inoficial. Por
outro lado, misticamente falando, se “nossa organização jurídica e nossa religião aparentes
são de origem genuinamente européia e portuguesa”
363, 364
, “por baixo disto, uma outra
concepção do direito pessoal, da reivindicação e da crença sobrenatural, comprimidas pela
força e que explodem às vezes, dramaticamente, na criminalidade individual e
particularíssima do mestiço e do negro, na delinquência coletiva”
365
, embora não a ponto de
sobrepujar o famigerado discurso da medicina metropolitana que abafou, mas não sem muito
esforço, qualquer tentativa de desprestígio. Não é menos verdade, porém, como ensina NAVA,
embora com um certo exagero e parcialidade, que
“o negro... criou também no Brasil uma religiosidade compósita... e este o ponto a que queríamos
chegar, que influi de um modo poderoso sobre a nossa curandeiragem e sobre a nossa medicina
popular... as quais, nas suas componentes etiológicas e terapêuticas, são uma autêntica
revivescência de medicina mágica e místico-teúrgica. Resulta disso uma maneira particular do
nosso povo encarar as coisas, manifestada num duplo aspecto. Primeiro, o da sua relutância em
aceitar as soluções individuais ou coletivas da terapêutica e da higiene oficiais - vistas na
resistência oferecida às medidas e aos ensinamentos partidos dos médicos clínicos e dos médicos
sanitaristas, no horror que recentemente tem diminuído em aceitar a hospitalização, na
desconfiança mostrada especificamente a certos tratamentos e que a análise psicológica
demonstra radicada num estado mental que estacionou nas categorias primitivas do pensamento.
Em segundo lugar, o da resultante fatal desta situação que é a responsável provável da agravação
de nossos problemas nosológicos e de um sem-número de mortes e que reside no gosto popular
pela medicina de aspecto sobrenatural ministrada pelos ‘pais de santo’, feiticeiros, curiosos,
médiuns, herboristas e homeopatas. Tudo isto vem do espírito coincidente à deformação religiosa,
de que o negro é um dos fatores principais, e vem das nossas sessões de baixo espiritismo e de
macumba onde permanece e vive um descomunal e antiquíssimo lastro primitivo de práticas e
crenças de origem caldaica, semita, mediterrânea, cristã, indígena e africana.”
366
“Daí, talvez”, conclui NAVA, “o modo de ver do nosso vulgo que encara de um ponto
de vista místico-teúrgico análogo ao da medicina pré-hipocrática, tanto a moléstia quase
sempre tida como castigo divino, como o tratamento quase sempre dominado pelas
dominações do sacrifício e da purificação.”
367
Contudo, dizer que a visão mística do afro-descendente, do mestiço ou do índio está
integralmente incorreta é compactuar com a mantença do discurso médico formal-oficial
opressor e de fabricada hegemonia, pois, como visto, ainda hoje, nem todos com ele
363
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 23.
364
Já insufladas com exagerada seletividade extraída do folclore. Sobre isso, veja NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 26: “Os
contos de fadas, os dos irmãos GRIMM, os de ANDERSEN e de PERRAULT que na sua maioria foram apenas coligidos pelos que
passam por seus autores, mas que na realidade são lendas, alegorias e mitos velhíssimos transmitidos de geração a geração da
tradição oral, estão cheios de monstros, de ogres, de gigantes e de anões, onde se pode achar a individualização de muito tipo
de degenerado e de doente cujo aspecto fere ao vivo a imaginação popular. Para não multiplicar exemplos basta que
chamemos a atenção para dois tipos: um, tirado dos contos de PERRAULT, o do príncipe Riquete da Crista - que giboso,
pequeno, contrafeito e retorcido de pernas é bem uma observação característica de raquítico; outro, da farsa italiana, o do
Polichinelo - onde não é difícil descobrir os traços de um acromegálico.”
365
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 23.
366
NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 23-24.
367
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 24.
73
concordam, e outros tantos a ele não se submetem, estando correto - encaixando a exceção quando
entende cabível a supressão gradual pelo esclarecimento e educação, porquanto não garantias de que os
métodos levados a efeito por aqueles sejam menos acertados e eficazes -, NAVA quando diz que
“este problema que, pelas suas decorrências, merece a maior atenção do poder público, tem sido
tratado no Brasil da maneira mais inepta. Nenhuma atenção se a suas causas profundas, raros
têm sido os inquéritos procedidos no sentido de sua elucidação e, em vez de se cuidar de sua
supressão gradual pelo esclarecimento e pela educação, o que se vê é a sua repressão pela
boçalidade policial - como se se tratasse de um delito. O crime praticado em grande escala, no
caso de Canudos, é repetido cada dia em atentados praticados pelas autoridades, de modo diluído
ou, para usar uma expressão da homeopatia, ‘dinamizado’ ao centésimo, ao milésimo, ao décimo
de milésimo.”
368
Mas, todo misticismo que interferiu - repito, nem sempre negativamente -, na construção da
medicina colonial, advirta-se, não pode ser creditado aos afro-descendentes e, ou, aos
aborígenes. De fato, na época do descobrimento oficial do Brasil, por Portugal, neste país e
em toda a Europa, ensina NAVA,
“a cirurgia era o que poderia ser uma arte sem base anatômica, pois o preconceito contra as
dissecções cessaria no fim do século XV quando começam a funcionar, autorizadamente, os
cursos com demonstração sobre o cadáver. A clínica era uma sutilização em torno dos caracteres
do pulso e do aspecto da urina e todos os diagnósticos e prognósticos eram buscados na ciência da
esfigmologia e da uroscopia. A terapêutica ficava na ‘derivação’, na ‘revulsão’ e na medicação
chamada ‘alterante’.”
369
Além disso, continua ele, “os autores dessa fase levavam muito em conta os preceitos
astrológicos determinantes dos dias fastos e nefastos à evolução das doenças”
370
, sendo que,
por outro lado, a caridade do povo português, derivada da sua cristandade
371
, muita vez levada
ao extremo “pôde transformar o desejo de ser útil no exercício da medicina empírica”
372
,
apresentando-se este como um
“fenômeno da máxima importância para nós, porque o influxo médico inaugural da Metrópole
sobre o Brasil em formação não se deu por via da erudição qualificada de seus físicos
373,
374
e
cirurgiões, mas por intermédio dos conhecimentos e da experiência de medicina popular
possuídos pelos navegadores, pelos imigrantes, pelos degredados e pelos padres que aqui
aportaram nos primeiros anos de nossa vida.”
375, 376
Via de mão dupla foi, então, a partir do século XVIII, a construção da medicina que,
pari passu, de invulgar passou a informal - sob a batuta de uma legislação, bem como do
aproveitamento dos médicos formados lá fora -, e de formal tornou-se prosaica, democratizando-se, i.
368
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 24.
369
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 38.
370
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 40.
371
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 40: “A medicina que predomina... é, por parte dos cristãos, uma medicina mística, tendente a
minorar os sofrimentos da alma mais que a socorrer decididamente os padecimentos do corpo.”
372
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 40.
373
SILVA, Manoel Vieira da; PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. A saúde pública no Rio de Dom João. Rio de
Janeiro: SENAC. 2008, pp. 13-14: “...existiam os físicos, termo então usado para designar os médicos.”
374
A confusão entre físicos e médicos pode ser encontrada em GORDON, Noah. O físico: a epopéia de um médico medieval.
Rio de Janeiro: Rocco, 1988, passim.
375
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 40.
376
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 45: “É natural que o povo português incorporasse dos ensinamentos médicos aqueles mais
fáceis de serem assemelhados pelo seu temperamento supersticioso, fantasista e crédulo.”
74
e.,“a medicina inicialmente ministrada no Brasil, salvo no caso e nos lugares onde
esporadicamente existia um médico ou cirurgião formado ou licenciado
377
- o que era raro
durante o período colonial -, foi e tinha de ser um simples auxílio do homem ao seu semelhante,
com a aplicação de conhecimentos de uma arte empírica de curioso”
378
que, ainda que
adviesse ou copiasse ensinamentos recentes dos médicos, era transformada em conhecimento
vulgar com a mesma rapidez com que se aproximava da tradição todo-poderosa
379
. Antes
disso, porém, o trânsito medicinal trafegou por via de mão única porquanto a Medicina
Portuguesa oficial - quase sempre em nada diferente da paralela “popular”
380
-, só foi nos influenciar,
quiçá porque imposta por uma legislação, a partir, requente-se, do século XVIII, com a vinda
para dos médicos e cirurgiões cuja formação estava disposta a favor da tropa
381
, não
deixando de compreender, segundo NAVA, “a influência portuguesa sobre a medicina praticada
no Brasil”
382
, a intervenção “direta do povo por intermédio da sua medicina empírica e vulgar;
da ciência oficial por intermédio dos médicos portugueses para aqui trasladados, ao lado dos
quais devemos colocar os basileiros que iam estudar no Reino e que voltaram para clinicar em
sua terra; e, por intermédio dos instrumentos de legislação e fiscalização sanitárias.”
383
2.2 A medicina e as instituições nacionais impressionantes de sequestro e
adestramento contínuo
Assim, se antes, como veículo para a viabilização da expansão da Colônia mediante o
tratamento das tropas
384
, ou agora, ela serve - quando deveria desservir -, ao manter a mão de obra
produtiva em termos economicamente úteis, de favor para poucos beneficiados pela política
neoliberal
385
, no Brasil, especialmente, entendeu ela em assumir função ainda superior e mais
377
SILVA, Manoel Vieira da; PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. A saúde pública no Rio de Dom João. Rio de
Janeiro: SENAC. 2008, pp. 13-14: “Além dos padres, existiam os físicos, termo então usado para designar os médicos. Os
físicos eram licenciados, ou seja, possuíam diploma, fornecido por uma das universidades da Península Ibérica, como
Coimbra ou Salamanca.”
378
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 45.
379
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 46.
380
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 56: “Apesar destes exemplos que servem para a reabilitação do espetáculo melancólico
oferecido pela prática no século XVIII - o que domina na paisagem da sua Medicina é mesmo uma terapêutica oficial
molieresca que valia tanto quanto a sua rival popular - oferecida por toda sorte de charlatães, de profetizadores, de
mesmeristas, de convulsionários, de eletroterapeutas, de ocultistas e de escamoteadores, cujo grande sucesso eram as curas
milagrosas obtidas sobre as mil maneiras por que se apresenta o proteu histérico.”
381
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 46.
382
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 49.
383
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 49.
384
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 198: “...com a guerra do Paraguai, afluíam em massa doentes e aleijados que
demandavam a atuação imediata de um corpo de cirurgiões.”; além disso, veja NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 47: “Os corpos
de tropa contavam com profissionais soldados pelo Reino para atender as praças.”
385
Transformando essa exceção em regra, equivocadamente, e ratificando o discurso médico-político até então em voga,
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 47: “A assistência ao doente é um dever indeclinável do Estado, cuja única razão de ser é servir
75
ambiciosa, muita vez, que aquela que lhe cabe, como quando levou a termo projetos
higiênicos travestidos de higienizadores, quando não, racistas
386
, de que se falará em breve.
Função essa propiciada, ao início, pela “imigração da Família Real para a grande colônia
americana”
387
, fugindo das tropas comandadas por JUNOT, quando da invasão de Portugal por
NAPOLEÃO e, mais tarde, pela “criação das Escolas Médico-Cirúrgicas de São Salvador e de
São Sebastião... de onde sairiam depois as nossas duas Faculdades mais antigas”
388
,
instituições de sequestro temporário que, utilizando-se do sistema de inclusão, mediante
inclusão na comunicação social, ensinavam, por meio do adestramento, a como manter o
discurso de superioridade da medicina, e dos médicos, bem como a continuar a incluir, agora
por exclusão, todos aqueles inservíveis e inempregáveis
389
que depreciavam a valorização da
mais-valia, aumentando a oferta, ainda que desqualificada, ou melhor, desinteressante, de mão
de obra, barateando-a. E isso, justamente pelo fato de que ao discurso médico não bastava
uma propaganda espetacular, ele precisava, também, de um lugar impressionante
390
para
divulgá-la, e esse lugar era o nosocômio, essa “grande instituição branca, antecâmara da
morte”
391, 392
, com toda aquela apropriada arquitetura panóptica aproveitada dos mosteiros,
sede incipiente da instalação dos primeiros hospitais. Ajustadas as folgas, sobre o assunto
vem a calhar a advertência de DEBORD que, conquanto referindo-se a outra edificação e época,
ensina que,
“pela primeira vez uma arquitetura nova, que em cada época anterior era reservada à satisfação
das classes dominantes, acha-se diretamente destinada aos pobres. A miséria formal e a extensão
gigantesca dessa nova experiência de hábitat provêm ambas de seu caráter de massa, implícito
tanto por sua destinação quanto pelas condições modernas de construção. A decisão autoritária,
que planeja abstratamente o território como território da abstração, está bem evidente no centro
dessas condições modernas de construção. Nos lugares onde se inicia a industrialização dos países
à coletividade que representa. E esse dever deve ser encarado utilitária e materialmente porque restituir à saúde um indivíduo
é restituir à sociedade um membro produtivo, cuja inatividade só representa ônus e diminuição.”
386
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 186: “Afinal, ante o problema agudo da mão de obra, como entender esse tipo
de limitação [importação de certos trabalhadores] senão em função de um projeto de cunho racista que visava ‘depurar a raça
limpando a nação da interferência de sangues estranhos ao do branco ariano’? A medida revela uma visão ainda mais
complexa acerca da imigração.”
387
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 49.
388
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 49.
389
Usando esse termo distinto de desempregáveis, WACQUANT, Loïc. As prisões..., p. 143; e BATISTA, Nilo. Entrevista à
Unirio, por TUTTMAN, Malvina; SCHREIBER, Simone. In Nilo Batista: a luta pelo Direito. Rio de Janeiro: Chronos, publicação
da Unirio, 2007, ano 2, n. 4, p. 138.
390
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 140: “...por causa das possibilidades, dessas instituições, de explicação
científica e de atuação aparentemente apenas técnica sobre unidades relevantes do sistema social.”
391
GONÇALVES, R. B. M. Medicina e história: raízes sociais do trabalho médico. São Paulo, 1979, dissertação de mestrado,
Faculdade de Medicina – USP -, p. 199 apud PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 242.
392
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 247: “A transformação dos hospitais, de ‘morredouros’ em agências
terapêuticas eficazes, foi magnificamente analisada por FOUCAULT na conferência ‘O nascimento do hospital’. Ele associa a
mudança de seu caráter ‘às políticas de expansão comercial e de fortificação do poderio militar, peculiares ao Estado
absolutista e ao mercantilismo’. Sua absorção pela organização social da medicina fez do hospital um ‘elemento de corrosão
de sua ordem corporativa’. É que, ‘na medida em que visava atender a necessidades novas, impostas pelo Estado e pela
sociedade em transformação, teve força para destituir o saber abstrato de seu posto de autoridade; e substituiu a velha
hierarquia social das profissões médicas pela cooperação dentro de uma divisão técnica do trabalho.”
76
atrasados, aparece a mesma arquitetura, terreno adequado ao novo gênero de existência social que
se deseja aí implantar.”
393
Muito bem. Enquanto ainda Colônia, recebia o Brasil os soldados que, à procura de
terras americanas, aqui desembarcavam sempre doentes em virtude das más condições
ocasionadas pela viagem, cuja hospitalidade em casa de famílias abastadas do Rio de Janeiro
logo se mitigou à míngua de procedimentos menos incômodos daqueles, nunca
indenizados.
394
A vultosidade das reclamações despejou-os no hospital construído pela
Irmandade da Misericórdia
395
, esboço inconcluso
396
, ao menos inicialmente
397
, no Rio de
Janeiro, da “primeira instituição nosocomial de caráter militar”
398
e, indiretamente, de
sequestro fático que logo se transformaria em pedagógico quando, transferida a Família Real
Portuguesa para terras de cá, passou ele a ser a sede do ensino médico-cirúrgico regular no
Rio de Janeiro, então capital, mediante anexação da Escola Cirúrgica.
399
A partir daí, essa
instituição total pôde espraiar seu discurso colimando, sobretudo, suplantar definitivamente a
medicina vulgar que insistia em esgueirar-se pelos cantos ditos pobres, fétidos, escuros e
criminosos da cidade, ameaçando tomar-lhe o lugar de destaque, medo esse que não era
debalde, porquanto se a maioria da população era assim considerada, e por assim o ser, via-se
excluída da parcela dos que podiam ser favorecidos pela medicina formal-oficial - seja
custeando-a, seja merecendo-a por outros motivos, dentre eles, o de não ser descartável à economia, primeiro
agrícola, depois fabril, motes controladores do quantum de mão de obra interessante, financeiramente, para o
mercado -, ela precisava se socorrer da medicina prosaica. Aproveitando todas as brechas e
todas as oportunidades, bem à laia de sociedades dominadas por classes que pautam seus
discursos, ainda que dissimuladamente, pela economia e pelo lucro
400, 401
- no nosso caso, a
393
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 114.
394
NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 78-79.
395
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 79.
396
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 81: “Como não quisesse concordar com elas, reportou-se então às ordens emanadas da
Metrópole, em 1702, e instituiu em caráter provisório, no Quartel das Naus, na vizinhança do Morro de São Bento, o
primeiro hospital autônomo para militares que funcionou na cidade fluminense.”
397
NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 81-82: “Os inconvenientes do local onde estava o hospital provisório, o fato de ser ele o
foco de pestilência apontado pelos historiadores, as condições execráveis de sua instalação que obrigavam, pela exigüidade
do espaço, a colocar, muitas vezes, dois doentes num mesmo leito, indicavam a necessidade de sua substituição por
construção mais adequada. Sua mudança foi indicada para o prédio construído pelos Jesuítas em 1567, no Morro do Castelo.
Este edifício fora ocupado pelos padres da Cia., dessa data até o ano de sua expulsão, em 1760. Serviu depois como albergue
de famílias necessitadas por resolução do Governador GOMES FREIRE DE ANDRADA. O Conde da Cunha pensou utilizá-lo
como residência dos Vice-Reis, mas finalmente teve o destino de ser a sede do que foi chamado Hospital Real Militar e
Ultramar, ao mesmo tempo um hospital de Marinha e hospital do Exército, pois nele eram recolhidas praças de uma e de
outra força.”
398
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 80.
399
NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 83-84.
400
A realidade disso pode ser desafivelada em PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., pp. 147-148: “Por exemplo, se se
trata de ações médicas, podemos compreender o sentido das ações que estão sendo realizadas em termos de sua congruência
com as regras dos procedimentos técnica e cientificamente recomendados pela medicina. No entanto, a compreensão
verdadeiramente explicativa do motivo, dada pela descoberta da conexão de sentido, depende da integração de tais ações num
processo em que se pode estar buscando obter salários, honorários, lucros, prestígio, poder etc. Em suma, a conexão de
sentido implica compreender o desenvolvimento real da ação em termos de um processo, e não de uma ação isolada.
77
médica -, aquela instituição total impressionante de adestramento para o adestramento
402
, com
efeito, podia servir tanto como microamostra para o treinamento do exercício de poder
403
por
parte dos alunos, adestrando docentes, discentes e cobaias para a manutenção de um discurso
que, fora dali, obedeceria aos papéis para que foram treinados, quanto como instituição de
sequestro neutralizante, porque tornava inofensivos, ao excluí-los por inclusão, aqueles
inaproveitáveis à equação lucrativa do mercado de trabalho.
No Brasil, as duas primeiras grandes instituições totais de sequestro - invejosas da
“famosa personagem” de MACHADO DE ASSIS, “SIMÃO BACAMARTE, médico alienista que asilou uma cidade
inteira
404
-, foram o Hospital da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, que no dizer
parcial de NAVA “não pode ser considerado apenas no valor representado pelas suas paredes:
senão que é a casa matriz da Medicina, da Cirurgia e da Obstetrícia brasileiras; a casa onde
aprenderam e ensinaram os maiores práticos e mestres
405
de que se honra, no Brasil, a tradição
e a história de nossa Arte”
406
, e, parelhas à importância dessa instituição no “estudo da
história do exercício e do ensino da medicina no Brasil, devemos colocar uma institução que
data de época mais recente. É a Policlínica Geral do Rio de Janeiro”
407
, cuja
sacramentalização e descortino, com a presença do Imperador D. Pedro II, ocorreu em 28 de
junho de 1882.
408
Dando início aos projetos domésticos higienizadores totais, que do corpo do indivíduo,
bem como da cura da sua doença, passavam ao corpo social, menos, porém, para a prevenção
geral daquela do que para a manutenção de um discurso de poder mediante o qual os médicos,
por meio da medicina, e espalhando espetacularmente não o mal em si, mas o desespero da
sua adveniência - mediante a propaganda dos seus efeitos escatológicos -, entendiam que eles eram os
únicos capazes de livrar o país dos seus males - e que, arrogantemente, sequer se limitavam às
morbidades -, essas duas instituições, precipuamente voltadas ao tratamento massivo e, como
pressuposto, ao adestramento coletivo, permitiram ao Brasil finalmente e, diretamente,
...Entendemos, assim, a segunda afirmação de WEBER: ‘explicar’ significa... para a ciência que se ocupa do sentido da ação,
algo assim como: captação da conexão de sentido em que se inclui uma ação, já compreendida de modo atual, em termos de
seu sentido ‘subjetivamente visado’.”
401
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 211: “Os higienistas procuravam intrometer-se nas famílias de elite pelos motivos
mais prosaicos que se possa imaginar: ganhar clientes.”
402
Sobre os lugares impressionantes de pedagogia do adestramento, ou agências de adestramento científico, veja SCHWARCZ,
Lilia Moritz. O espetáculo..., pp. 141 e seguintes, e 189 e seguintes.
403
Em torno do assunto, veja FOUCAULT, Paul-Michel. Microfísica do poder. 26. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008, passim.
404
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 28; para o quantitativo correto, veja no original ASSIS, Machado de. O
alienista..., pp. 61-62: “De fato o alienista oficiara à câmara expondo: 1° que verificara das estatístics da vila e da Casa Verde
que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento.”
405
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 90: “Ali se hospedou a nossa errante Faculdade....”
406
NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 89-90.
407
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 90.
408
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 95.
78
desbancar praticamente duas epidemias que o afligiam, uma, a varíola, quase desde o
descobrimento
409, 410
- e que, felizmente, não foi mais detectada desde 1977 -, a outra, a febre amarela,
irrompida entre 1849 e 1850
411
, e, indiretamente, além de atualizar o discurso médico formal-
oficial como panacéia
412
para os anseios da sociedade, fixando-o e estabilizando-o como
dominante, encobrir, mediante as práticas médicas, é dizer, de forma legitimada aos olhos da
maioria apedeutista, todos os objetivos mercadológicos da sociedade brasileira que descobriu
como a medicina podia ser útil como avalizadora de depósitos e controladora de estoques de
mão de obra, ao excluir, mediante inclusão, todos aqueles inempregáveis, ainda que
temporariamente, ou mesmo declarar empregáveis mesmo não o sendo -, aqueles
impossibilitados de participar da disciplina agrícola e, ou, fabril, seja por um etiquetado
defeito físico ou mental.
2.3 O programa seletivo-higienizador da medicina e o médico execut(or)ivo
Até aqui tentou-se demonstrar, além de outras coisas, como o discurso médico formal-
oficial, escondido atrás do véu do mister, fixou-se e estabilizou-se como dominante, bem
como, en passant, os reflexos negativos desse domínio no mercado de trabalho, poucas vezes
incontestado. Agora, é hora de tentar demonstrar como uma das modalidades desse discurso, a
higienizadora, cuja boa intenção também contribuiu para lotar o inferno, indiretamente ajudou
na restauração dos marcos do discurso dominial médico ou, quando muito, na ampliação da
sua geografia.
Abandonados o olfato como detector, até então in these infalível, das áreas perigosas à
(re)ordenação da urbe e, de corolário, as teses dos miasmas, mormente por que vieram as
descobertas pasteurianas, começaram a ser questionadas as estratégias até então
implementadas, passando os médicos, agora sob o influxo da usual nomenclatura microbiana,
a indicar a doença como advinda de fontes não mais impessoais e a transportar o indivíduo de
409
Confusamente, NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 101: “Só no século XV ela estende-se à Alemanha e no século XVI invade a
Dinamarca e a Suécia, enquanto os espanhóis a transportam para a terra americana.”; e, em outra oportunidade (idem, p. 102):
“O continente negro estava praticamente contaminado de leste a oeste e de norte a sul... quando se estabeleceram entre ele e a
América Portuguesa as comunicações tão freqüentes durante o período de nossa colonização. Daquelas terras e por
intermédio desse intercâmbio marítimo veio a varíola para o Brasil.”
410
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 101: “Em 1563 a varíola aparece na Ilha de Itaparica, ganha São Salvador, dilata-se por toda
a Bahia, mata 30.000 índios e devasta seis colônias jesuíticas.”
411
Os dados sobre essa epidemia podem ser encontrados em CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte
imperial. 4. reimpressão. São Paulo: Cia. das Letras, 2006, p. 61; sobre o assunto, veja, também, NAVA, Pedro. Capítulos...,
pp. 99-100.
412
Verbi gratia, COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 114: “...os médicos ganhavam terreno, ocupavam espaços vazios,
tentavam apresentar-se como úteis, necessários, indispensáveis à sanidade de todos os locais físicos e sociais do universo
urbano.”
79
vítima a suspeito em potencial
413
- e que suspeito nas mãos dos positivistas! -, bem como a acusá-lo
de carregar o micróbio vade mecum. Nessa fase de doença a tiracolo, “autorizada por seu
caráter científico, a medicina higiênica - como a medicina mental -, vai constituir um discurso
sobre todas as instâncias da vida, invadindo a esfera das relações pessoais para moldá-las
segundo os propósitos da ordem e da disciplina urbanas.”
414
Em uma petição de princípio que,
na medicina equivale ao tratamento pela sintomatologia, “a cidade doente surge como objeto
construído pelo saber da medicina e privilegiado na prática do médico.”
415
Para sustentar esse
aparato, convocou-se a função policial da medicina
416
ou, quando menos, aliás, quando muito,
tão só a própria polícia
417
- talvez por lembrança de que “JOSEPH FOUCHÉ, ministro da polícia do populismo
bonapartista, ...era temido pelo próprio NAPOLEÃO
418
-, sem a qual a implementação conduzida pelos
médicos perderia em imposição ou, agora quando menos, verteria o convencimento advindo
da sua qualidade científica em mera abordagem parcial de um grupo seleto de intelectuais
que, olhando do seu viés, interpretavam a desordem simplesmente como algo fácil e,
convenientemente, conversível à nomenclatura médica ora em voga, ratificando, assim, a
mantença do seu poder e da sua evidência sem qualquer lastro plausível. Com efeito, diz
ENGEL, ancorando-se mais tarde em FOUCAULT, que
“a partir do século XIX, a medicina passaria a assumir um caráter político; deixando de ser apenas
‘o corpus de técnicas de cura e do saber que elas requerem’, a medicina passaria a compreender
também ‘um conhecimento do homem saudável, isto é, ao mesmo tempo uma experiência do
homem não-doente e uma definição do homem-modelo. Na gestão da existência humana, toma
uma postura normativa que não a autoriza apenas a distribuir conselhos de vida equilibrada, mas a
reger as relações físicas e morais do indivíduo e da sociedade em que vive’.”
419
Na esteira dessa intervenção médico-administrativa, a medicina brasileira do século
XIX não agiu sobre o corpo doente, muita vez curando-o, senão que, em um ambiente
420
e
413
ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). 1. reimpressão. São
Paulo: Brasiliense, 2004, p. 137: “Desde a primeira metade do século passado, o perigo representado pela ‘cidade-
esconderijo’, onde se tornava cada vez mais difícil distinguir escravos, libertos e pretos livres, determinou a adoção e a
disseminação da estratégia da ‘suspeição generalizada’ pelos administradores da cidade do Rio de Janeiro.”
414
CUNHA, M. C. P. O espelho do mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 35 apud, ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 48,
nt. 68.
415
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 48.
416
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 49: “O conceito de polícia médica surgiu na Alemanha, onde foi utilizado pela primeira
vez por WOLFGANG THOMAS RAU, em 1764. A obra de JOHANN PETER FRANK, System einer vollständigen medizinischen
Polizei – cujos seis primeiros volumes foram publicados entre 1779 e 1817 e os três últimos, postumamente, entre 1822 e
1827 -, foi fundamental para a cristalização do referido conceito e sua difusão para outros países – Hungria, Itália, Dinamarca
e Rússia. Em fins do século XVIII e princípios do XIX, a idéia de polícia médica apareceria também na França, Grã-
Bretanha e Estados Unidos, onde, em condições sociais e políticas distintas, sofreu modificações.”
417
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 62: “De acordo com a posição assumida pela Comissão de Saúde da Câmara, a repressão
e o controle da prostituição no Rio de Janeiro não se configurava como um problema pertinente à área de saúde pública –
como muitos médicos vinham defendendo -, mas sim como uma questão exclusivamente da alçada policial.”
418
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 212.
419
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 50.
420
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 51: “Foi preciso, ainda, excluir da tarefa o curandeiro e o charlatão, já que somente ao
saber científico, único legítimo, caberia cumpri-la.”
80
mediante um cotejo que lhe era convinhável, também considerando mórbida
421
, ou melhor,
desordenada a cidade, pretendeu curá-la consoante uma ordenação prática pautada pela
definição prévia da saúde e da higiene até então não vigentes
422
, revelando-se no exagero
detectado por ROBERTO MACHADO et alii, vazado em que “todos os componentes urbanos, todos
os lugares, objetos e elementos devem estar sob controle e sob seu (do médico) [e da
medicina] controle”
423
, de que serve como exemplo, como se verá, a prostituição, considerada
doença
424
- i. e., associada às moléstias venéreas
425
-, e, ipso facto razão da invocação e dita
legitimação da “atuação saneadora do médico”
426
-, motivo de desordem
427
, extraindo daí sua
periculosidade social a aliciar, a final, a atividade do médico, então também protetor e
ordenador urbano, ainda que em sentido bifurcado, ora em favor da sua regulamentação
sanitária, ora, ou mesmo pari passu, em desfavor da sua não proibição
428
, cabendo como
outro exemplo a negação do vínculo entre escravidão e falta de emprego para os livres e sem
posses, onde os médicos, numa visão romântica e minimalista da miséria nacional, atribuíam
a pobreza dos escravos à indolência, enquanto na europa industrializada esta caberia à
ausência de trabalho e aos salários diminutos.
429
em 1890 houve uma mudança dessa ótica
passando a falta de emprego e os baixos salários pagos às mulheres a ser a pedra de toque da
motivação da prostituição, porquanto aqueles fatores sociais condicionavam aquelas a optar,
segundo um médico coevo, entre “a miséria ou a desonra.”
430
De sorte que, qualquer diagnóstico que, fundamentado cientificamente, atribuísse um
caráter perigoso a uma atividade ou a alguém
431
serviria como credencial a justificar o mister
da intervenção e do controle médicos.
432
Mesmo porque, conforme advertiu ZAFFARONI, “trata-
421
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 53: “A perspectiva adotada na abordagem médica destas questões se orienta no sentido de
definir o Rio de Janeiro como uma cidade doente, ou seja, como um espaço infectado que deve ser conhecido e tratado.”
422
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 51.
423
MACHADO, Roberto et alii. Danação..., p. 260 apud ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 54.
424
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 66: “A concepção da prostituição como principal meio de produção e difusão das
moléstias venéreas definia-a, antes de tudo, como doença, inserida seguramente no campo dos estudos de higiene médica e
saúde pública.”
425
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 64.
426
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 64.
427
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 58: “...o Dr. JOÃO MACEDO JÚNIOR defendia, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,
a tese Da prostituição no Rio de Janeiro e da sua influência sobre a saúde pública, onde mesmo caracterizando a
prostituição como um ‘cancro hediondo, que salientemente se destaca no quadro das misérias sociais’, situava o seu estudo,
antes de tudo, como um ‘importante ponto de higiene pública’.”
428
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 104: “Quanto às formas de tratamento prescritas, o discurso médico sobre a prostituição
apresenta, portanto, uma certa heterogeneidade marcada pela presença de duas tendências: a defesa e a oposição à
regulamentação sanitária da prostituição pública.”
429
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 96.
430
Dr. COSTA FERRAZ, citado por ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 97.
431
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 138: “Assumindo uma perspectiva no sentido de civilizar a cidade para convertê-la em
espaço higienizado, os médicos incorporam como objetos de investigação todas as situações e pessoas que, consideradas
geradoras e/ou disseminadoras da desordem, são colocadas sob suspeição.”
432
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 102.
81
se de uma lei que se repete: quando se transfere um problema social, segue-se a transferência
da ideologia de controle.”
433
Fragilidade política, desorganização e desprestígio das instâncias ordinárias de
acompanhamento, impuseram ao governo colonial uma dificuldade no controle da população
citadina que foi possível, então, graças à disciplina que a medicina higiênica impôs aos
indivíduos.
434
Separada, mas ainda tentando divorciar-se do regime colonial desde o início do
século XIX, pôde a medicina, arrimando-se no novel sistema governamental, implementar seu
discurso higiênico que, leciona FREIRE COSTA, “administrando antigas técnicas de submissão,
formulando novos conceitos científicos, transformando uns e outros em táticas de
intervenção”
435
, viabilizou a integração da população à cidade, mediante um discurso que ao
mesmo tempo em que assustava e ameaçava com a contaminação de pragas e doenças aqueles
que o desafiassem, prometia a defesa daqueles que a ele aderissem verbo ad verbum.
Historicamente, a manutenção pela força da tradição de um ruralismo, de um
patriarcalismo e de uma hierarquia, mesmo após o avanço da modernização depois de 1870
436
,
como afirma MURILO DE CARVALHO, deve ser encarada cum grano salis, porquanto, de acordo
com o próprio escritor, a partir dali, “novas correntes foram importadas também da Europa,
como o evolucionismo, o materialismo, o positivismo.”
437
Enquanto isso, continua o
historiador,
“a nova versão da idéia de progresso ainda maior ênfase à ciência e à técnica como fatores de
transformação social. A ênfase era reforçada pelo próprio avanço da ciência, pelas novas
descobertas na física, na biologia, na engenharia mecânica. Mas no caso brasileiro talvez se
devesse mais ainda ao surgimento de um grupo social urbano e educado que se sentia sufocado na
sociedade escravista e rural.
438
Sua única credencial para ascender socialmente era a competência
técnica. Estes grupos cresceram a partir da criação da Escola Politécnica, no Rio de Janeiro, de
Minas em Ouro Preto, e, no século XX, do Instituto de Manguinhos no Rio e Instituto Butantã
em São Paulo, dedicados às investigações médicas e biológicas. Em Manguinhos impera OSWALDO
CRUZ, o saneador do Rio de Janeiro, dirigindo brilhante equipe reconhecida internacionalmente.
Cresce o número de engenheiros civis, geólogos, médicos sanitaristas, higienistas, legistas e
criminólogos que acreditavam na possibilidade de usar a moderna fisiologia na análise e
tratamento dos delinquentes.”
439
De toda sorte, ressalta evidente que o projeto higienizador não se limitava à mantença
do discurso médico dominante, pretendendo, em verdade, ainda que de lambuja, espraiá-lo
para uma clientela muito maior - que de individual passava a coletiva -, mediante a aglutinação da
remediação com a prevenção, não necessariamente nessa ordem. Ocorre, porém, que esse era
433
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crime organizado: uma categorização frustrada. In Discursos Sediciosos, Crime, Direito e
Sociedade, 1° semestre 1996, ano 1, n. 1, p. 56.
434
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 28.
435
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 28.
436
CARVALHO, José Murilo de. Brasil 1870-1914: a força da tradição. In Pontos e bordados: escritos de história e política. 2.
reimpressão. Belo Horizonte: UFMG, 2005, p. 107.
437
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 108.
438
Sobre isso, veja COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., pp. 52-53.
439
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 109.
82
o motivo do programa higienizador primário. O escopo do programa higienizador
secundário era outro, qual sendo, o de viabilizar o controle censitário da população pobre -
que, no entender de FRANCO, historicamente, tinha menos direitos que os próprios escravos
440
-, e, por esse
motivo, reputada criminosa e, assim, poder aferir aqueles que deveriam permanecer
disponíveis ao mercado de trabalho e aqueles que dele deveriam ser alijados. E isso foi feito
mediante um programa modernizador que se manifestou, segundo MURILO DE CARVALHO, em
“várias campanhas civilizadoras, verdadeiras missões” por meio das quais
“grupos de técnicos e cientistas procuravam civilizar as populações da periferia urbana ainda
presas ao que consideravam superstição e atraso. Os novos missionários saíam das escolas de
Medicina, da Politécnica, da Escola de Minas, da Escola Militar. Usavam métodos distintos de
catequese, mas o evangelho era o mesmo: o progresso, a civilização, a modernidade.”
441
Civilização, todavia, com seletividade suficiente para demonstrar que certo escritor
não tinha razão quando disse que “perante os homens doentes, o aparelho médico
representaria ‘o lugar privilegiado, onde, diante da objetividade do saber, as diferenças
devidas à origem familiar, profissional etc.’, desapareceriam.”
442
Ou seja, segundo MEDEIROS
PEREIRA,
“nas condições concretas de atuação do médico, a decisão quanto a quem será atendido, e como
se dará essa atenção, será tomada em níveis alheios à própria medicina. Em outras palavras, em
termos societários, econômicos e políticos, algumas vidas têm mais significado que outras. Ou
porque os homens que as vivem têm mais condições de pagar a assistência que recebem. Ou
porque podem exigi-la, dado o poder de que estão investidos. Ou, ainda, porque são considerados
economicamente mais produtivos que outros, em vista dos investimentos sociais neles feitos.
Decorre, daí, em grande parte, a diversidade da assistência médica. Consequentemente,
conflitos com objetivos situados em esferas sociais diversas, mas que se refletem na médica,
embora esta pareça ser o nível onde se dão as decisões. Segundo os pressupostos da ordem
médica, o objetivo é, de fato, diminuir o sofrimento e manter a vida, independentemente de que
pessoa se trate, mas diante, por exemplo, da escassez de recursos, faz-se necessário decidir a quais
homens serão destinados esses recursos tidos como escassos (de acordo com um determinado
ponto de vista), de modo a mantê-los vivos e sadios. E essa decisão, como qualquer outra
assemelhada, é fundamentalmente política, mas também calcada em valores de esferas
socioeconômicas, culturais e outras.”
443
Daí, a inevitável pergunta.
“Por qual valor o médico se orientará voluntariamente ou será ele compelido a optar
prioritariamente? Nas sociedades capitalistas, em que um quase completo domínio dos
interesses econômicos (entre outros) das pessoas pertencentes a umas classes sociais sobre outras,
os valores alheios à ordem médica, de modo geral, orientarão a decisão no sentido de beneficiar o
mais rico, o de status mais elevado, e aquele que possua mais poder. Portanto, se a medicina, em
virtude do modelo de conduta pelo qual devem pautar os que a exercem, ‘não se propõe a questão
de saber se aquela vida merece ser vivida e em que condições’, outros modelos de orientação
decidem por ela, e até contra seus ideais. Assim, porque as condições de existência de alguns pais
são precárias, é possível que eles e o médico sejam obrigados a aceitar que a vida de seu filho não
440
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4. ed. 1. reimpressão. São Paulo: Unesp, 1997,
p. 104: “Parece claro que para inocentar seus escravos, que têm valor como mercadoria e não convém paralisar com uma
condenação, o fazendeiro faz recair a culpa sobre o homem livre, que nenhuma relevância tem para os seus interesses.... Essa
completa ausência do reconhecimento social do homem pobre vai mesmo à afirmação de sua insuficiência para o exercício
dos mais elementares direitos do cidadão, como o recurso à Justiça.”
441
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 110.
442
Interpolando SILVA, M. G. R. da. Prática médica: dominação e submissão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1976, p. 49 apud
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 175.
443
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 176.
83
merece ser vivida, enquanto a uma outra criança, concebida num ‘útero privilegiado’, se reserva o
direito à vida.”
444
Enfim, “ao agir medicamente... ele pode estar, igualmente, atrelado à necessidade de
obedecer às normas da ordem econômica, no caso de ser funcionário de uma empresa.
Dependendo da situação na qual se veja envolvido, a orientação que acaba prevalecendo nem
sempre será a médica.”
445
Pois bem. A continuar, em razão da pobreza e morbidade nacionais, a devassa
detectora, seletiva, censitária, disciplinadora e confinante, mas quase sempre sanitária,
malgrado menos violenta
446
- ao menos fisicamente -, invadiu a intimidade do povo com a escusa
do saneamento - limitado à porta de entrada -, que encontrou em MONTEIRO LOBATO “um eficiente
divulgador da idéia de que o País era um grande hospital.”
447
Com isso, acreditava-se que - ou
melhor, foi imposta a verdade de -, ensina MURILO DE CARVALHO, “a salvação nacional vinha da
ciência e dos cientistas de Manguinhos”, que detinham autoridade suficiente para transformar
- tanto a personagem da literatura como a vida das pessoas, ambos marionetes cujo destino é conduzido pela
luxúria e vaidade dos dominantes -, “o matuto doente e abúlico... uma vez tratado... em um
empresário de estilo ianque”, convencendo-o, e a nós também, até hoje, “do valor da ciência:
o que disser ‘nhá Ciência”, ele [nós] obedece.”
448, 449
Um pouco antes, a extinção da escravatura, de per se, não poderia pasteurizar a
população, pois ela confundiu, indistintamente, brancos e afro-descendentes, ricos e pobres, a
despeito de ter havido uma homogeneização do discurso simbólico
450
dominante contra os
últimos e os afro-descendentes, incapazes de esquivar-se dele, mormente por ele lhes ser
imperceptível, como entende FRANCO.
451
Em uma sociedade de classes que pretende, por seus
dominantes, manter nítidas suas camadas sociais, era preciso resgatar e manter a
heterogeneidade, aviventando os apanágios daquelas divisões apagadas pela abolição, o que
444
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 177.
445
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 179.
446
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 110.
447
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 111.
448
O erro na concordância deste verbo com o pronome pessoal “nós” é adrede.
449
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 111.
450
Sobre discurso e poder simbólicos, veja FOUCAULT, Paul-Michel. A ordem..., passim; e BOURDIEU. O poder..., passim.
451
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens..., pp. 111-112: “O outro caminho trilhado pelo homem pobre teve seu ponto
de partida no caráter prescindível desse sujeito na estrutura socioeconômica. Essa existência dispensável levou-o, em última
medida, a conceber sua própria situação como imutável e fechada, na medida em que as suas necessidades mais elementares
dependeram sempre das dádivas de seus superiores. Assim, em sua vida de favor, a dominação foi experimentada como uma
graça e ele próprio reafirmou, ininterruptamente, a cadeia de lealdades que o prendia aos mais poderosos. Desprovida de
marcas exteriores, sua sujeição foi suportada como benefício recebido com gratidão e como autoridade voluntariamente
aceita, fechando-se a possibilidade de ele nem sequer perceber o contexto de domínio a que esteve circunscrito. ...Fechando
esse caminho, está, novamente, a existência dispensável vivida pelo homem pobre do século XIX. As condições de sua
sujeição advieram justamente por ser quase nada na sociedade e exatamente esse vazio não poderia fornecer-lhe uma
referência a partir da qual se organizasse para romper as travas que o prendiam e para constituir um mundo seu.”
84
só foi em parte possível graças à parafernália científica da engenharia e da medicina
452
, ambas
sob a batuta do positivismo, “que via a história da humanidade como marcha contínua em
direção ao progresso sob o impulso da ciência.”
453
Ocorre que, como aquela referida confusão
se dava em ambiente non domino - qual sendo, a cidade do Rio de Janeiro -, era mister, ainda, que
aquele discurso alcançasse todo o lugar
454
, impressionando. Aquele lugar impressionante
outrora composto pelo hospital, agora passa a assumir uma dimensão espacial total - toda a
cidade do Rio de Janeiro -, compatível com a espetacularização do discurso médico, também
agora eloquente a todos, mesmo aqueles de ouvidos moucos.
Alhures, se disse que o lugar originalmente impressionante - o nosocômio -, passou
para o ambiente aberto - a cidade -, onde todo ele era objeto de observação, fiscalização e
atuação dos higienizadores. Em que pese isso, é bem verdade que algumas áreas eram mais
hospitaleiras ao discurso espetacular que outras, porquanto umas, ao contrário das demais,
aglutinavam o pobre, o criminoso e o doente, repita-se, aglutinavam, ou seja, concentravam
numa pessoa que, coincidentemente, era, ou passaria a ser, aos olhos médicos, inservível à
disciplina econômica do trabalho. Sobre esse assunto, voltar-se-á em breve. Antes, é preciso
avançar um pouco mais para entendermos os motivos, muita vez inventados, e os efeitos,
quase sempre evitáveis, respectivamente, para e do discurso médico, aqui, sanitário.
Debruçando-se sobre o assunto, ensinam ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR que,
“na metade do século XIX, constituíra-se a medicina social: ‘o médico torna-se planejador
urbano’.
455
,
456
‘Além de diagnosticar a doença presente no espaço insalubre, propõe-se um novo
452
Mais ou menos neste sentido, e citando FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977
apud CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 121.
453
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 122.
454
Discutindo a obra de DONNANGELO, diz PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., pp. 252-253: “No segundo item do
capítulo, ‘Raízes da medicalização’, MARIA C. F. DONNANGELO examina o modo como, a partir do século XVIII, a medicina
se vincula ao poder político e econômico, reorientando suas práticas. Com os governos absolutistas surge uma ‘medicina de
Estado’, que se preocupa não exatamente em medicar a população, mas o ambiente. O domínio da burguesia, já no século
XIX, produz, no bojo da reforma geral das instituições, a reforma da medicina. No período revolucionário haviam-se
sucedido os projetos de tal reforma, visando à reestruturação dos hospitais, à instauração da assistência obrigatória e gratuita
aos enfermos. Esses projetos sugerem ‘não apenas a intensificação do combate à enfermidade, mas também o engajamento da
medicina em uma tarefa política de correção dos males sociais, a opressão e a pobreza, entre outros.”
455
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 12: “Lembre-se, ainda, que a perspectiva médica de ordenar a desordem urbana,
viabilizando as mudanças que anunciavam a construção de uma ordem burguesa na sociedade brasileira, se fez presente de
um modo particularmente significativo nas reformas que marcaram a administração do prefeito PEREIRA PASSOS, entre 1902 e
1906.”
456
Quiçá por entender que o ambiente influenciava sobremodo a saúde ou a doença. Parecendo transitar por essa direção,
sem a dedução acima, porém, MOACYR SCLIAR, em introdução à reedição de opúsculos sobre medicina publicados na época
em que D. João este no Rio de Janeiro, in SILVA, Manoel Vieira da; PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. A saúde...,
pp. 21-22: “Como resultado dessas circunstâncias desfavoráveis, os habitantes do Rio de Janeiro apresentam várias doenças:
‘O aparelho gastrico apresenta pouca energia, o appetite he pouco desenvolvido (...); há precisao de associar-lhe a pimenta,
ou outros condimentos.’ E há mais: ‘A respiração he mais laboriosa e fatigante’; ‘o processo de sanguificação, ou
transmutação do chylo [o alimento digerido] a sangue faz-se lentamente’. As pessoas são fracas, têm pouca energia,
mostram-se doentias. É verdade, diz o autor, que ‘depois da Feliz Chegada de nosso Augusto Soberano e de sua Real Familia,
o Rio de Janeiro tem adquirido um melhoramento indizível’, mas é preciso eliminar as ‘causas morbificas’, e Guimarães
Peixoto cita várias, algumas curiosas. Por exemplo, ‘as numerosas officinas de ferraria no interior da Cidade, as quaes
desenvolvem, pela combustão, grande quantidade de gaz acido carboico, augmentão consideravelmente a temperatura
athmosferica’. Uma precoce identificação do efeito estufa? O autor também denuncia ‘o abuso de liquores espirituosos, de
85
tipo de prática, organiza-se como poder político, torna-se um braço a serviço da prosperidade e
segurança do Estado’.
457
Podemos ter uma idéia de como este poder médico-policial se exerce,
‘devassando corpos, casas e quintais’, mirando apenas dois espisódios: a demolição
458
do cortiço
Cabeça de Porco
459
, em 1893
460
, sob os auspícios da Inspetoria
461
Geral de Higiene
462
(dos
bebidas fermentadas e dos prazeres de Venus’, o café, o mate, o chá, e, surpresa, ‘os banhos (...) tomados todos os dias’. Ou
seja, uma mistura de equívocos com medidas acertadas. ... É muito significativo que as duas obras tenham em vista
primariamente a saúde pública, e não a Medicina individual.”; verbo ad verbum, PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães.
Aos sereníssimos Príncipes Reais do Reino Unido de Portugal e do Brasil, e Algarves, os senhores D. Pedro de Alcântara e
D. Carolina Josefa Leopoldina oferece, em sinal de gratidão, amor, respeito, e reconhecimento estes prolegômenos, ditados
pela obediência, que servirão às observações, que for dando das moléstias cirúrgicas do país, em cada trimestre, in SILVA,
Manoel Vieira da; PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. A saúde..., pp. 87 a 91, 104 e 107-108: “O homem, desde o
momento de sua fecundação até o seu nascimento, desde essa época até o termo fatal de sua existência, vive
indubitavelmente debaixo da influência dos agentes que o rodeiam. ...Um sem-número de causas morbíficas e muito diversas
nos podem afetar com maior ou menor prontidão, imprimindo em nossa organização um modo de existir muito diferente e
análogo à sua ação... É fora de dúvida que ar atmosférico pelas qualidades físicas, as diversas estações do ano, a situação dos
países em que se vive, os alimentos de que se faz uso, as paixões, as profissões, os hábitos etc. imprimem em nós uma
disposição tão variável quanto diferentes são as impressões que eles nos fazem. ...Que série de afecções mórbidas mais ou
menos determinadas, não explicam a condição do nosso corpo, que se dispõe a tal ou tal moléstia, sob a influência de tal ou
tal causa? ...Que vantagens incalculáveis não recebemos nós, quando fazemos a justa aplicação desses agentes tão numerosos
à nossa natureza, às nossas precisões e às moléstias que nos atacam. ...por isso que estamos sujeitos às impressões de
inumeráveis objetos, que nos cercam, e quando o poder de vida que nos anima é inferior à extraordinária ação com que eles
nos tocam, forçosamente sucumbimos. ...Assim, o aparelho gástrico apresenta pouca energia, o apetite é pouco desenvolvido,
a quantidade de massa alimentar necessária para reparar as perdas diárias é pequena relativamente; há precisão de associar-
lhe a pimenta, ou outros condimentos, que desafiem o apetite; as matérias alimentares são elaboradas muito lentamente; a
digestão é incômoda e penosa; a absorvência dos elementos nutritivos faz-se com escassez, em conseqüência do que é maior
a abundância de seus resíduos. ...Todos sabem que, depois da Feliz Chegada do Nosso Augusto Soberano e de Sua Real
Família, o Rio de Janeiro tem adquirido um melhoramento indizível e nunca esperado; de um país malfazejo e inabitável, por
assim dizer, se tem tornado um país mais saudável....”
457
A ponto de, arrolando as causas morbíficas, interferir na administração, no comércio, na economia etc., conforme
PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. Aos sereníssimos Príncipes Reais do Reino Unido de Portugal e do Brasil, e
Algarves, os senhores D. Pedro de Alcântara e D. Carolina Josefa Leopoldina oferece, em sinal de gratidão, amor, respeito,
e reconhecimento estes prolegômenos, ditados pela obediência, que servirão às observações, que for dando das moléstias
cirúrgicas do país, em cada trimestre, in SILVA, Manoel Vieira da; PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. A saúde...,
pp. 108 a 111.
458
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. 3. ed. 17. reimpressão. São
Paulo: Cia. das Letras, 2008, p. 18: “A ‘absoluta falta’ de casas, especialmente para os pobres, foi salientada em 1892 pela
Sociedade União dos Proprietários e Arrendatários de Prédios, que a atribuía à imigração. A sociedade solicitava à Inspetoria
de Higiene que fosse mais cautelosa ao mandar fechar habitações, pelas consequências que a medida poderia acarretar.”
459
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 15: “Era o dia 26 de janeiro de 1893, por volta das seis horas da tarde, quando muita
gente começou a se aglomerar diante da estalagem da rua Barão de São Félix, n° 154. Tratava-se da entrada principal do
Cabeça de Porco, o mais célebre cortiço carioca do períogo: um grande portal, em arcada, ornamentado com a figura de uma
cabeça de porco, tinha atrás de si um corredor central e duas longas alas com mais de uma centena de casinhas. Além dessa
principal, havia algumas ramificações com mais moradias e várias cocheiras. Há controvérsia quanto ao número de habitantes
da estalagem: dizia-se que, em tempos áureos, o conjunto havia sido ocupado por cerca de 4 mil pessoas; ...Seja como for, o
que se anunciava na ocasião era um verdadeiro combate. Três dias antes os proprietários do cortiço haviam recebido uma
intimação da Intendência Municipal para que providenciassem o despejo dos moradores, seguido da demolição imediata de
todas as casinhas. A intimação não fora obedecida, e o prefeito BARATA RIBEIRO prometia dar cabo do cortiço à força. Às sete
horas e trinta minutos da noite, uma tropa do primeiro batalhão de infantaria, comandada pelo tenente SANTIAGO, invadiu a
estalagem, proibindo o ingresso e a saída de qualquer pessoa. ...Consumado o cerco policial à estalagem, e posicionados os
técnicos e autoridades, surgiram mais de cem trabalhadores da Intendência Municipal, adequadamente armados com picaretas
e machados. ...Os esforços se concentraram primeiramente na ala esquerda da estalagem, a que estaria supostamente
desabitada havia cerca de um ano. ...Terminada a demolição da ala esquerda, os trabalhadores passaram a se ocupar da ala
direita. ...Os trabalhos de demolição prosseguiram pela madrugada, sempre acompanhados pelo prefeito BARATA. Na manhã
seguinte, já não mais existia a célebre estalagem Cabeça de Porco.”; por sua vez, CARVALHO, José Murilo de. Os
bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi.3. ed. 17. reimpressão. São Paulo: Cia. das Letras, 2008, pp. 30-31 e
p. 39, respectivamente: “Em termos concretos, a prevenção republicana contra pobres e negros manifestou-se na perseguição
movida por SAMPAIO FERRAZ contra os capoeiras, na luta contra os bicheiros, na destruição, pelo prefeito florianista BARATA
RIBEIRO, do mais famoso cortiço do Rio, a Cabeça de Porco, em 1892.”; “...o cortiço Cabeça de Porco seria destruído em
autêntica operação militar por ordem do republicano histórico BARATA RIBEIRO.”
460
Há um conflito desta data com 1892. Para tanto, veja nota acima. Contudo, quer parecer que no texto de MURILO DE
CARVALHO, há apenas um equívoco, pois a data correta é 26 de janeiro de 1893.
461
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 55: “...antiga Junta - de Higiene.”
462
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 50-51: “Foi nesse contexto, em abril de 1892, que um higienista ascendeu à presidência
da Intendência Municipal, e posteriormente, em dezembro do mesmo ano, foi nomeado para a prefeitura da Capital Federal.
86
destroços do cortiço nascerão os casebres da primeira ‘favela’
463
no vizinho morro de Santo
Antônio;
464
,
465
a palavra ‘favelaestará disponível, nesta acepção, quatro anos mais tarde,
quando tropas vindas de Canudos estacionarem no morro da Providência).”
466
- ou seja, indiretamente, colimando o desmonte de mais um
467
“esconderijo”
468
para os grupos que,
recentemente, haviam lutado contra a escravidão, bem como a desarticulação dos mesmos
469
, também
perigosos ao novo regime, com a comutação da petição de liberdade pela, agora, aquisição de cidadania, ou
mais cidadania
470
e, diretamente, para atender aos interesses de empresários do ramo imobiliário
471
-, em
cujo evento os absurdamente nominados “sujeira”
472
, teriam sido varridos para debaixo do
tapete, pois “nem bem se anunciava o fim da era dos cortiços, e a cidade do Rio já entrava no
século das favelas”
473
; enquanto o outro episódio seria, continuam ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA
CÂNDIDO BARATA RIBEIRO, médico baiano, 49 anos, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, havia obtido o
título de doutor, em 1877, com uma tese intitulada Quais as medidas sanitárias que devem ser aconselhadas para impedir o
desenvolvimento e propagação da febre amarela na cidade do Rio de Janeiro? ...Torna-se evidente, portanto, que ao ordenar
a demolição do Cabeça de Porco, entre outros cortiços, BARATA RIBEIRO estava apenas colocando em prática a sua opinião
histórica a respeito desse tipo de habitação popular.”
463
CUNHA, Euclides da. Os sertões: campanha de Canudos. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 74, nt. 395: “Favela:
fava pequena, planta leguminosa, abundante em canudos; deu nome a um morro local. O morro da Favela, no Rio de Janeiro,
recebeu esse nome por assemelhar-se ao morro do sertão baiano.”
464
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 15: “O destinos dos moradores despejados é ignorado, mas LILIAN FESSLER VAZ, autora
do melhor e mais completo estudo sobre a história dos cortiços do Rio, levantou recentemente uma hipótese bastante
plausível. O prefeito BARATA, num magnânimo rompante de generosidade, mandou ‘facultar à gente pobre que habitava
aquele recinto a tirada das madeiras que podiam ser aproveitadas’ em outras construções. De posse do material para erguer
pelo menos casinhas precárias, alguns moradores devem ter subido o morro que existia lá mesmo por detrás da estalagem.
Um trecho do dito morro já parecia até ocupado por casebres, e pelo menos uma das proprietárias do Cabeça de Porco
possuía lotes naquelas encostas, podendo assim até manter alguns de seus inquilinos.”
465
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 40: “As reformas tiveram como um dos efeitos a redução da
promiscuidade social em que vivia a população da cidade, especialmente no centro. A população que se comprimia nas áreas
afetadas pelo bota-abaixo de PEREIRA PASSOS teve ou de apertar-se mais no que ficou intocado, ou de subir os morros
adjacentes, ou de deslocar-se para a Cidade Nova e para os subúrbios da Central.”
466
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 443; ainda sobre
parte do assunto, CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 15: “Poucos anos mais tarde, em 1897, foi justamente nesse local que se
foram estabelecer, com a devida autorização dos chefes militares, os soldados egressos da campanha de Canudos. O lugar
passou então a ser chamado de ‘morro da Favela’.”; também, CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 18: “Anote-
se ainda o impacto do crescimento populacional acelerado sobre as condições de vida, com as consequentes pressões sobre a
administração municipal. Agravaram-se muito os problemas de habitação, tanto em termos de quantidade quanto de
qualidade.”
467
Sobre a não novidade dessa questão, veja CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 30: “Em setembro de 1853, a comissão de
posturas da Câmara analisou um projeto de ‘Regulamento de Estalajadeiros’, que lhe fora encaminhado pela Secretaria de
Polícia. É lógico que a preocupação das autoridades policiais era ‘prevenir que pessoas suspeitas achem fácil abrigo nas casas
a que ele [o regulamento] se refere, mais ainda a evitar desordens, e outros crimes que por ventura possam ser cometidos.”
468
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 28-29: “...misturar-se à população variada de um cortiço pode ser um ótimo
esconderijo, caso houvesse a opção pela fuga.”
469
Mais ou menos nesse sentido, CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 26.
470
Abusando, em proveito próprio, das palavras de CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 29: “...o que estou querendo sugerir é
que o tempo dos cortiços no Rio foi também o tempo da intensificação das lutas dos negros pela liberdade, e isto
provavelmente teve a ver com a histeria do poder público contra tais habitações e seus moradores.”
471
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 54, 55 e 88: “Em 1891, o Conselho de Intendência Municipal havia fechado um
contrato com o engenheiro CARLOS SAMPAIO, que ficava encarregado de prolongar a rua dos Cajueiros, a rua do Dr. João
Ricardo e ainda abrir um túnel no morro do Livramento. É desnecessário dizer que a realização da obra dependia da
destruição completa do Cabeça de Porco. ...Acabaram descobrindo que o mal infestava toda a área central da cidade, e
passaram a defender planos de tranformação radical do espaço urbano - para o bem da saúde pública e, como se revelou, para
o prazer de certos investidores.”
472
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 17 e 55, in verbis: “...imundície supostamente característica do cortiço....”
473
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 17.
87
e SLOKAR, “a revolta da Vacina
474
, em 1904”
475
, ano que acomodou, também, as reformas
urbanas que no dizer de BRETAS, acompanhado por SEVCENKO
476
,
“reduziram drasticamente o número de casas disponíveis no centro da cidade
477
, deixando como
opções as favelas que começavam a se desenvolver nas encostas dos morros da cidade, as
moradias no subúrbio, que exigiam tempo e dinheiro para chegar ao trabalho, ou as casas de
cômodos que ocuparam as antigas residências da elite colonial, abandonadas por melhores
moradias fora do centro da cidade”,
casas essas que “eram divididas em muitos quartos, acomodando grande quantidade de
pessoas, gerando os problemas de compartilhar as áreas comuns e experimentando uma total
ausência de privacidade.”
478
Foi nesse entorno temporal, também, que o autoritarismo tecnocrático republicano
479
,
valendo-se da recuperação financeira advinda da política deflacionista de CAMPOS SALES, mas,
sobretudo, conforme MURILO DE CARVALHO, de “um médico sanitarista” que “foi encarregado
das medidas de higiene pública” - relegando ao passado o desleixo arquitetônico comum ao povo
português
480
-, e de “Pereira Passos, na ânsia de fazer da cidade suja, pobre e caótica réplica
tropical da Paris
481
reformada por HAUSSMANN
482, 483
- ambos com o mesmo mote de ampliação da
474
BATISTA, Vera Malaguti. Cuidado: os higienistas estão voltando! In Discursos Sediciosos, Crime, Direito e Sociedade, 2
semestre 1996, ano 1, n. 2, p. 307: “Um dos maiores motins populares, a revolta da vacina de 1904, trazia no seu bojo a
manutenção das concepções africanas e afro-brasileiras personalizadas em Omulu. Dentro da idéia de controle dual, Omulu
tinha o poder de provocar e também de obstaculizar a doença. Assim, a população do Rio aceitava a ‘variolização” e as
técnicas de combate à doença por curandeiros e ‘curiosos’, mas se rebelava contra os métodos violentos e autoritários que o
serviço de vacinação empregava contra as ‘classes perigosas’. É montado um cerco aos ‘vacinophobos’, implantado um
sistema de vacinação domiciliar compulsória, em geral acompanhado de autoridade policial. Para compreender as metáforas
daquele tempo, CHALHOUB recorre à publicação de ELYSIO DE CARVALHO, de 1912, ‘Giria dos gatunos cariocas’. Neste
vocabulário, vacinar aparece como esfaquear ou golpear, e ‘sabido’ (malandro) que se preza não se deixa vacinar.”
475
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 443.
476
SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. In história em aberto. 3. impressão. São
Paulo: Scipione, 2001, pp. 62, e, especialmente, 63: “Para essa espécie de periferia insalubre é que iriam se transferir as
doenças e endemias expulsas, junto com os humildes, do centro da cidade, destinado a tornar-se sadio, ordeiro, asseado e
exclusivamente burguês.”
477
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 18: “Anote-se ainda o impacto do crescimento populacional acelerado
sobre as condições de vida, com as consequentes pressões sobre a administração municipal. Agravaram-se muito os
problemas de habitação, tanto em termos de quantidade quanto de qualidade.”
478
BRETAS, Marcos Luiz. O informal no formal: a justiça nas delegacias cariocas da República Velha. In Discursos
Sediciosos, Crime, Direito e Sociedade, 2 semestre 1996, ano 1, n. 2, p. 218.
479
CARVALHO, José Murilo de. Entre a liberdade dos antigos e a dos modernos: a República no Brasil. In Pontos e bordados:
escritos de história e política, 2ª reimpressão. Belo Horizonte: UFMG, 2005, p. 84: “Os temas do interesse do indivíduo e de
grupos, da nação, da cidadania, encarnados na idéia de república, estavam no centro das preocupações dos construtores da
República brasileira. Como país exportador de matérias-primas e importador de idéias e instituições, os modelos de república
existentes na Europa e na América, sobretudo nos Estados Unidos e na França, serviram de referência constante aos
brasileiros.”
480
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., pp. 109-110: “A rotina e não a razão abstrata foi o princípio que norteou os
portugueses, nesta como em tantas outras expressões de sua atividade colonizadora. ...A cidade que os portugueses
construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha
da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse significativo abandono que exprime a
palavra ‘desleixo’ - palavra que o escritor AUBREY BELL considerou tão tipicamente portuguesa como ‘saudade’ e que, no seu
entender, implica menos falta de energia do que uma íntima convicção de que ‘não vale a pena...’.”
481
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 35.
482
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 95.
483
Atribuindo essa empreitada ao espírito aventureiro dos portugueses, HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., pp. 46-47:
“Procurando recriar aqui o meio de sua origem, fizeram-no com uma facilidade que ainda não encontrou, talvez, segundo
exemplo na história.”; embora, continuando (idem, p. 47), admita, que: “Habituaram-se também a dormir em redes, à maneira
dos índios. Alguns, como VASCO COUTINHO, o donatário do Espírito Santo, iam ao ponto de beber e mascar fumo. ...Aos
88
segurança contra amotináveis, facilitada pela indisciplinada geografia citadina de então
484
-, que foi
saneada e embelezada a cidade do Rio de Janeiro, décalque xenomaníaco de itinerário
transatlântico que, embora ambiciosa, ainda tinha muito a dever à invejada região da galícia
485
haussmannianamente reurbanizada, cuja cópia, quiçá rococó, atendendo a uma aspirada
“aprovação dos outros
486
, aqui remarcou uma decupagem mal feita, explicável pelo que disse
BUARQUE DE HOLANDA, ou seja, a
“tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais,
se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade
brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas
formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em
ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa
terra.”
487
Com efeito, a fim de arrefecer a “febril agitação”
488
em que se encontrava a capital
fluminense na primeira década após os eventos de 1888 e 1889, e amenizar o paradoxo
consistente na disparidade de tratamento entre contratantes que, em tese, deveriam ser
reputados iguais, vieram os intelectuais-médicos, amparados por um messianismo
desafivelado pelos ortodoxos
489
, e ufanando-se de uma autoconfirmadora
490
e
autopredicada
491
experiência técnica inalcançável a terceiros - pois isso também facilita a proteção
do monopólio do discurso -, no que diz respeito à “prevenção e tratamento”
492
- para eufemizar uma
arrogância
493
mesmo, pois “estavam sempre, inabalavelmente, convencidos de que a sua receita poderia
salvar o paciente”
494, 495
, quiçá embalados pela vaidade de que, enclausurados em seus lugares não físicos
índios tomaram ainda instrumentos de caça e pesca, embarcações de casca ou tronco escavado, que singravam os rios e águas
do litoral, o modo de cultivar a terra ateando primeiramente fogo aos matos.”
484
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., pp. 57-58.
485
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 39-40: ”Entrou-se de cheio no espírito francês da belle époque, que
teve seu auge na primeira década do século.”
486
A expressão, e seu grifo, são de HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 166.
487
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 31.
488
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 15.
489
CARVALHO, José Murilo de. A ortodoxia positivista no Brasil: um bolchevismo de classe média. In Pontos e bordados:
escritos de história e política, 2ª reimpressão. Belo Horizonte: UFMG, 2005, p. 200.
490
O vocábulo não é nosso, senão, de CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 44.
491
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 106: “Estes predicados visam a intimidar ou seduzir estranhos, incapazes de avaliar a
verdadeira força social de quem os aparenta.”
492
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 248.
493
Na época, e ainda que velada, era ela generalizada, podendo a prova dos nove ser tirada em CHALHOUB, Sidney. Cidade...,
pp. 45-46: “Em suma, os higienistas imaginavam que sua Ciência pairasse acima dos homens e para além da moral e da
política....”; mal do qual, é mister ser convinhável, também não escaparam os juristas, conforme se depreende de SCHWARCZ,
Lilia Moritz. O espetáculo..., pp. 187 e 232: “Confiante em sua posição de ‘missionários’, buscavam os juristas brasileiros
cunhar para si próprios uma representação que os distinguisse dos demais cientistas nacionais. Eram eles os ‘eleitos’ para
dirigir os destinos da nação e lidar com os dados levantados pelos demais profissionais de ciência. Na sua visão,
encontravam-se distanciados do trabalho empírico dos médicos, das pesquisas teóricas dos naturalistas dos museus, da visão
eclética e oficial dos intelectuais dos institutos históricos e geográficos. Entendiam-se como mestres nesse processo de
civilização, guardiões do caminho certo. ...Não é com leis que se corrigirá o povo... Só o médico pelo conhecimento que tem
do homem, pode influenciar na decisão... (BM, 1912:24-5)”.
494
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 29.
495
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 150: “...esses intelectuais compartilhavam da sensação de que a ‘sciencia tudo
pode’ (RAFDR, 1894:195) e de que existiria uma verdadeira tarefa, uma missão a ser cumprida.”
89
impressionantes
496
, doctores certant
497
-, facilitada pela noção de que “os pobres ofereciam também
perigo de contágio”
498
, pela “noção de que os pobres são, por definição, perigosos”
499
,
sanitariamente falando - termo cuja imprecisão no trato “aumenta, infinitamente, a possibilidade da
suspeição e de uma intervenção
500
arbitrária
501
, mediante o acasalamento prepotente entre medicina e
executivo municipal, cujo retumbante, conquanto efêmero sucesso higienista em 1904, arrimado no
acossamento, muita vez estando de atalaia, dos vacinophobos às suas casas e comunidades, à laia de uma
velada vacinação obrigatória, como vimos, pode ter potencializado o deslanche da revolta da vacina, para
usar esse exemplo
502
-, e pela noção de que a cidade poderia ser gerida “tecnicamente ou
cientificamente”
503
- porquanto a nomeação de prefeitos, embora buscados em outros Estados pelos
Presidentes da República, se dava, ordinariamente, em pessoas presumida ou realmente competentes, num
caminho sem volta para um autoritarismo que, de ilustrado, ao menos no começo, não tinha o nome
504
-, é
que vieram os intelectuais-médicos, dizia-se, impor o seu discurso definitivamente salvador!
A medicina social - após ter sido convidada pela política de então
505
que, incompetente em
questões higiênicas
506
, nela encontrava a única maneira capaz de enveredar a população e a urbanidade pelo
“caminho da civilização”, e que também a reputava neutra o suficiente para estar “acima dos interesses
particulares e dos conflitos sociais”
507
-, que, usufruindo esse modelo, valeu-se da nomeação, não
sem adrede, de médicos para ocuparem aquele famigerado cargo
508
, e que, muito
provavelmente, confundiram o munus administrativo com o profissional, e sob a desculpa -
496
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 37: “...esses intelectuais guardavam, porém, certa identidade que os unia: a
representação comum de que os espaços científicos dos quais participavam lhes davam legitimidade para discutir e apontar os
impasses e perspectivas que se apresentavam para o país.”
497
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 85: “...a validade objetiva do trabalho científico é assegurada,
simplesmente, pelo acordo dos próprios cientistas a respeito de como ver a realidade....”; sob outro prisma, CARVALHO, José
Murilo de. Brasil..., p. 121: “Os reformadores se viam como messias, salvadores de um povo doente, analfabeto, incapaz de
ação própria, bestializado, se não definitivamente incapacitado para o progresso.”
498
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 29.
499
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 19 e 22.
500
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 39-40.
501
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 48-49: “...os funcionários da Higiene estavam agindo de forma intempestiva, exigindo a
interdição em casos onde os melhoramentos eram possíveis, e desrespeitando assim o direito de propriedade. ...feita a
vistoria, o proprietário recebia uma lista dos reparos que precisava fazer em seu cortiço; acontece, todavia, que a Intendência
Municipal resolvia indeferir o pedido de licença para a realização das obras. Nesse caso, o dono do cortiço ficava sem saída,
à mercê da Inspetoria da Higiene.”
502
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 162.
503
BATISTA, Vera Malaguti. Cuidado..., p. 306; bem como CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 19-20: “...surgimento da idéia
de que uma cidade pode ser apenas ‘administrada’, isto é, gerida de acordo com critérios unicamente técnicos ou científicos.”
504
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 35.
505
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 47: “O fato, prém, é que o regulamento sanitário concentrava poderes demais nas mãos
dos doutores da Inspetoria de Higiene, e estes, devidamente incentivados pelo ministro, não se fariam de rogados.”
506
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 44: “O problema aqui são as implicações políticas claras - e inevitáveis? - dessa crença
na possibilidade de gestão científica da sociedade: nenhum ‘outro’ político tinha as qualificações necessárias para interferir
na condução dos negócios públicos porque não detinha o saber técnico-científico pertinente.”
507
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 35.
508
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 35: “Não por acaso, muitos dos chefes do governo municipal no
período em foco foram médicos ou engenheiros. Dos seis primeiros, quatro foram médicos, um engenheiro militar e apenas
um tinha a formação tradicional da elite política brasileira, a jurídica.”
90
muita vez inocente
509
e sincera
510
-, de porem a sociedade sob égide contra o que fosse perigoso e,
portanto, instabilizador da normalidade - aqui, sob a indumentária das higidezes física e mental, é dizer,
da capacidade de “autocontrole” -, possibilitou a medicina social, requente-se, mediante os
auspícios de repor a ordem perdida, ou instaurar uma nova
511
, a exclusão dos indesejados sem
o pressuposto de haverem praticado qualquer crime
512
, mas, repita-se, com um atestado
médico inconteste, mormente em uma conjuntura como essa em que, saturando um ambiente
carregado, engenheiros e médicos acumularam um imenso e deletério poder na
“administração pública, especialmente após o golpe militar republicano de 1889.”
513
Com
isso, e aos poucos, “o pessoal da Inspetoria de Higiene adquiria um certo ar triunfalista.”
514
Diante da condição da ausência de participação popular na administração citadina, os
médicos governantes, dizendo-se preocupados com o bem público - melhor seria dizer que
exerciam poder mediante o poder punitivo penal
515
, porquanto o famigerado Código de Posturas, que abaixo
será evidenciado, “era uma lei que ou não se aplicava
516
, ou se aplicava pela violência”
517
, inclusive, e sem
prévia autorização do Ministério, convocando a polícia, sempre pronta para lhe atender
518
-, e ancorados
em um positivismo ajustado aos interesses republicanos que, segundo MURILO DE CARVALHO,
“enfatizava, de um lado, a idéia do progresso pela ciência e, de outro, o conceito de ditadura
republicana...”, contribuindo “...poderosamente, para o reforço da postura tecnocrática e
autoritária”, sendo “o primeiro exemplo de tal mentalidade”, “o Código de Posturas
Municipais de 1890” que, revisitando um “esboço... legado pela Monarquia”, foi colocado em
vigor para o fim de regular “em pormenores várias atividades, especialmente as referentes a
casas de aluguel e de pasto”, quase todas incumpríveis pela população às quais se dirigiam
519
,
509
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 28: “É quase supérfluo notar que não houve intencionalidade finalista no manuseio
recíproco desses interesses.”
510
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 36: “Não há dúvida de que grande parte das medidas era bem-
intencionada e buscava beneficiar a população em termos de maior conforto e maior higiene....”
511
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 253.
512
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 238.
513
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 35.
514
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 50.
515
Porquanto o descumprimento do Código de Posturas ensejava sanções penais. Assim, CARVALHO, José Murilo de. Os
bestializados..., p. 36: “As penalidades pelo descumprimento dos dispositivos iam desde multas até prisão por 30 dias.”
516
Ad instar de outros documentos higienistas como, e. g., narra CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 33: “O Ministério do
Império encaminhou o documento em questão [ofício enviado pela Secretaria de Polícia da Corte ao Ministério dos Negócios
do Império] à Câmara Municipal, e parece que lá ele não suscitou nenhum efeito prático. ...A mudança já se anunciava em
outro projeto bastante detalhado para a adoção de posturas referentes a cortiços, apresentado à Câmara Municipal da Corte
pelo Dr. JOSÉ PEREIRA REGO, em fevereiro de 1866. ...A Câmara não adotou de imediato as sugestões do vereador e
higienista....”
517
Avisos no mesmo tom davam conta, segundo CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 46-47: “...o governo estava disposto a
lançar mão ‘de meios coercitivos mais enérgicos’ para cumprimento das determinações do inspetor....”; nessa esteira,
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 36.
518
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 47-48.
519
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 36: “Mas as medidas eram inteiramente irrealistas para a época. Muitas
delas, como a exigência de caiar as paredes duas vezes por ano, azulejar cozinhas e banheiros, arejar quartos com aparelhos
de ventilação, limitar o número de hóspedes, envolviam melhoramentos até hoje inexistentes em muitas residências. ...Para
91
deixaram, eles, médicos governantes, repita-se, “transparecer a preocupação republicana com
o controle da população marginal da cidade”, podendo-se “imaginar o impacto dessas
medidas, especialmente no velho centro”, pois “o Rio possuía, em 1888, 1.331 estalagens e
18.866 quartos de aluguel, em que moravam 46.680 pessoas, incluindo todo o vasto
contingente do mundo da desordem”, aliciando, estes mesmos médicos governantes, não
um controle administrativo total, senão, principalmente, o controle sobre o corpo do
indivíduo, gerindo-o cientificamente, e com o auxílio de sanções penais para eventuais
desrespeitos, sendo que, com isso, “de uma hora para outra, todos teriam registro na polícia,
ou ficariam sem onde morar, caso os proprietários cumprissem rigorosamente a lei.”
520
Enfim,
“era inegável o crescente poder de sedução da ideologia da Higiene sobre alguns setores da
sociedade da época”
521
, e justamente porque “os higienistas imaginavam que sua Ciência
pairasse acima dos homens e para além da moral e da política”
522
, e a ponto de a
cientificidade e a alegada neutralidade dessas posturas advindas trazerem “sempre em seu
cerne a violência contra a cidadania”
523
, cujas consequências deletérias podem ser explicadas
pelo que disse DEBORD, i. e, “a ideologia é a base do pensamento de uma sociedade de classes,
no curso conflitante da história. Os fatos ideológicos nunca foram simples quimeras, mas a
consciência deformada das realidades, e, como tais, fatores reais que exercem uma real ação
deformante.”
524
E o higienismo sanitário, urbano e administrador burocrático continuava precisando de
novas desculpas para a sua intervenção. Exempli gratia, a febre amarela, importada “por
intermédio do brigue norte-ameriano Brazil
525
e, inicialmente inadmitida
526
, malgrado já
justificar a afirmativa, basta dizer que incluía a proibição de que hotéis, hospedarias e estalagens recebessem pessoas
suspeitas, ébrios, vagabundos, capoeiras, desordeiros em geral. Exigia-se ainda o registro de todos os hóspedes, com anotação
de nomes, empregos e outras características. As listas deviam ser entregues à polícia no dia seguinte até as nove horas da
manhã.”
520
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 35-36.
521
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 45.
522
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 45-46.
523
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 58.
524
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 137.
525
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 107.
526
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 108: “A Academia, consultada pelo Governo sobre a natureza das febres em questão, ou
seja, a que estava lavrando na Bahia e a que irrompera no Rio de Janeiro, respondeu dizendo não ter elementos para ‘formar
um juízo seguro sobre a identidade dos seus symptomas e os indicados pelos autores como representando a febre amarella ou
tipho icteroide. Como se vê, nossa mais alta corporação médica assumia uma posição cautelosa, não se comprometendo em
admitir tacitamente que as epidemias reinantes tivessem o significado alarmante de que alguns desconfiavam. Aliás, os
próprios fatos foram a princípio mais ou menos tranqüilizadores. A doença progredia com uma lentidão e com uma
benignidade que não deixavam augurar nada da tragédia que se desenrolaria logo depois. Porque a situação agravou-se
subitamente, numa verdadeira progressão geométrica - tanto no número quanto na gravidade dos casos.”
92
epidêmica desde 18 de novembro de 1849, teve sua admissão oficial designada para 19 de
janeiro de 1850.”
527,
528
“O Rio de Janeiro dessa época, a Rua da Misericórdia, o beco dos Ferreiros, o beco do Guindaste
e o beco da Fidalga formavam uma espécie de centro de hospedarias, albergues e valhacoutos
529
,
onde procuravam pousada mendigos, embarcadiços, rebombeiras e vagabundos. Foi numa destas
casas de dormida - o Public-House Frank -, situado no primeiro logradouro citado, que
enfermaram os dois marinheiros norte-americanos recolhidos a 27 de dezembro de 1849 à Santa
Casa da Misericórdia. Eram ambos tripulantes da barca estadunidense Navarre, chegada
recentemente na Bahia. À internação desses dois doentes segue-se, no referido hospital, a de mais
quatro pessoas que com eles tinham convivido.”
530
Incipiente, se o contra-ataque médico prestado pela assistência clínica era
improdutivo, quando, muita vez, não agravava a condição mórbida apresentada
531
, mais tarde,
arrimado no apanágio etiológico da morbidade - e no embate contra o agente infectante
532
-, acabou
encontrando vitória na dedicação de OSWALDO GONÇALVES CRUZ
533
, não antecipada em décadas
graças ao infeliz desprezo às conclusões tiradas no início do século XIX por MANOEL VIEIRA
DA SILVA
534
, que sugeria um mero aterramento das regiões pantanosas. E, embora visasse com
isso melhorar o ar e, de efeito, eliminar aquilo que entendia a origem das doenças, por via
transversa
535
“atacou a doença por dois lados, pela extinção dos mosquitos e pelo isolamento
dos doentes nos hospitais”
536
, acabando com os verdadeiros vetores.
Muito bem. Eleitos currais expiatórios, consoante CHALHOUB, de “uma epidemia
537
de
febre amarela, em 1850, e outra de cólera
538
, em 1855”, altamente mortais
539
- em que pese ser
527
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 108: “A 10 de janeiro de 1850, o Dr. LALLEMAND, médico da Enfermaria de Estrangeiros da
Santa Casa de Misericórdia, apresentava à Academia Imperial de Medicina, convocada em sessão extraordinária, uma
comunicação que abrangia oito casos e dava notícia do ‘desenvolvimento de uma febre grave em marinheiros vindos da
Bahia, e sua transmissão a outros indivíduos que com eles moravam.”
528
Citando JOSÉ PEREIRA REGO, porque elogioso aos médicos e ao governo no trato da febre amarela que grassou o Rio de
Janeiro, veja NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 107 e 109.
529
Conquanto o mais importante deles, o Cabeça de Porco, situa-se na Rua Barão de São Félix, n° 154.
530
NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 107-108.
531
O porquê disso pode ser consultado em NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 111-112.
532
Como disse OSWALDO GONÇALVES CRUZ, repetido por NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 118: “O mosquito é o único
transmissor provado da febre amarela.”
533
NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 111 e 118.
534
SILVA, Manoel Vieira da; PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. A saúde..., p. 17: “Dentro desse enfoque, VIEIRA
DA SILVA dá-se conta do risco representado à saúde pelas regiões pantanosas; é um seguidor da antiga teoria do miasma,
segundo a qual o ar de regiões insalubres poderia causar doenças, entre elas a malária (a constatação estava certa, mas por
motivos equivocados: à época não se conhecia a transmissão da enfermidade por meio do mosquito), e sugere que essas áreas
sejam aterradas.”
535
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 69: “Como os doutores não sabiam quais eram exatamente essas causas, eles podiam
estar acidentalmente próximos do perigo - mas, na verdade, ainda longe de desvendar o problema -, quando reclamavam de
pântanos e águas estagnadas.”
536
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 94; além de, CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 65-67.
537
Que não tardou em ascender ao cargo de “endemia”, segundo CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 69.
538
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 93: “A cólera foi descrita como um flagelo que escolhia suas numerosas vítimas entre os
escravos e ‘indivíduos de ordem inferior’ - uma clara referência a libertos e homens livres de cor. A doença não respeitava
‘condições de aclimação, antes ferindo com mais força os aclimados’, particularmente ‘as classes inferiores da sociedade’,
que viviam em piores condições higiênicas.”
539
Chegando a ser chamada de “epidemia reinante”, conta-nos CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 61-66: “As estimativas
indicam que mais de um terço dos 266 mil habitantes do Rio contraíram febre amarela no verão de 1849-50. O número oficial
de mortos nesta primeira epidemia chegou a 4.160 pessoas, mas tudo indica que o total indicado foi consideralvelmente
subestimado. Houve quem falasse em 10 mil, 12 mil, 15 mil vítimas fatais.”
93
“a ‘tísica’, isto é, a tuberculose, a que ameaçava ‘tornar-se moléstia endêmica do país’”
540
e que, de certo
modo, mormente pela classe médica, se encontrava vinculada diretamente à miserabilidade da população
541
-, porque se entendia acumularem condições insatisfatórias de higiene, foram os cortiços alvo
visível e próximo da “Junta Central de Higiene, órgão do governo imperial encarregado de
zelar pelas questões de sáude pública”, passando a Câmara Municipal da Corte “a discutir
medidas destinadas a regularmentar a existência das habitações coletivas”, e, de sobra,
possibilitar o controle social e a vigília policial dos pobres, e o controle e a vigília policial-
médica sobre os suspeitos e perigosos, representados pelos hóspedes ou moradores, ao obrigar
o proprietário a “possuir um livro de controle de entrada e saída”, no qual aqueles “estariam
cuidadosamente identificados”, e sequestrados mediante uma exclusão por inclusão que ia e
vinha mediante o vai e vem de “um portão de ferro, que se fecharia ao toque de recolher”,
sendo que, “a partir dessa hora, um dos habitantes passaria a servir de porteiro, ficando com a
obrigação de abrir a porta para os outros moradores e de comunicar as eventuais
irregularidades ao inspetor de quarteirão.”
542
Menos votada, aum período, a questões de higidez que de melhoramento da vida
dos pobres mediante “a formulação de uma política destinada a promover o conserto, ou ‘a
edificação de habitações cômodas para o povo’”
543
, qualificando-as com benfeitorias úteis,
necessárias e nada voluptuosas, até um tom aceitável de habitabilidade - sob pena de reabertura
vinculada, exclusivamente, aos melhoramentos necessários
544
-, passou-se da preocupação - que em certos
casos não foi aquém de um arbitrário exercício de poder médico-policial
545
-, com a forma da moradia
para com o espaço, mas não em termos geométricos
546
, que por ela era ocupado.
547
É dizer,
havia uma “estratégia que se resumia cada vez mais numa condenação tout court da própria
presença de habitações populares e, obviamente, de seus moradores nas áreas centrais da
cidade”
548
, e isso independente da alcunha que aquelas recebessem, seja quartos, pequenas
540
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 57: “Durante todos esses anos de crise aguda de saúde pública na cidade do Rio (entre
aproximadamente 1850 e 1920), a tuberculose matou muito mais do que quaisquer das outras doenças epidêmicas.”
541
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 32 e 56-57.
542
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 29 a 31.
543
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 33.
544
Aviso à Inspetoria Geral de Higiene, referindo-se ao art. 83, do regulamento sanitário de 1890, citado por CHALHOUB,
Sidney. Cidade..., p. 46.
545
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 49: “...feita a vistoria, o proprietário recebia uma lista dos reparos que precisava fazer em
seu cortiço; acontece, todavia, que a Intendência Municipal resolvia indeferir o pedido de licença para a realização das
obras.”
546
Para estes, mas não em medidas, consulte CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 38-39.
547
Citando projeto da época, CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 33: “...‘é absolutamente vedado construir novos cortiços’ em
toda uma extensa área compreendendo boa parte das freguesias centrais da cidade, ‘ainda mesmo dentro dos quintais ou
chácaras....’.”
548
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 42.
94
casas ou casinhas, ou mesmo outros nomes quejandos.
549
De sorte que, a higiene como
ideologia métrica da definição de civilização, primeiramente se preocupou com “civilizar” o
espaço público urbano, fazendo-o mediante a “submissão da política à técnica”, arquitetônica
e médica, advirta-se, únicas capazes de alcançarem aquele escopo.
550
Tal atitude, porém, desaguou no embate, inaugurado pelo pacto liberal, entre os
higienistas que, arrimados em Aviso do Ministério do Império de 1879, estavam decididos a
fechar todos os cortiços e equivalentes “quer os que ameacem ruína, quer os que, pela
permanência têm-se tornado nocivos à saúde pública”
551
, e os proprietários daqueles, cujos
direitos, muita vez escorados em decisões judiciais - de maior fartura ao tempo do Império
552
-,
restringiam a atuação dos agentes da higiene
553
, embora fossem “as decisões da Inspetoria a
respeito dos cortiços... irrecorríveis”
554
, tornando “uma ordem de fechamento de estalagem
determinada pelos esculápios”, imodifícável ou intangível - “talvez por descuido”, sustenta
malogradamente
555
um parecer da época tentando contrabalançar o absurdo mediante também uma técnica
diferenciada de interpretação teleológica de artigo constante em regulamento sanitário imperial de 1886,
entendia pela sua mantença perante a vigência do regulamento republicano de 1890
556
-, inclusive perante
o próprio Ministro do Interior, malgrado hierarquicamente superior à Inspetoria de Higiene.
557
Nesse sistema inquisitório, os agentes da higiene acusavam e julgavam, e a condenação, quase
sempre certa, mas, certamente sempre a seu cargo, era res iudicata.
2.4 Vacinophobos sediciosos e a sublevação contra a vacina
Como antes ficou sustentado, muita vez, os dominados, ainda que em menor número,
ou ainda que desprovidos da técnica de comunicação social, tentam inverter a ordem do
discurso a seu favor, valendo-se, para tanto, da retórica, da violência ou, muito
improvavelmente, do acordo. Também é preciso dizer que, como é comum em disputas pelo
poder hegemônico os dominados pelo discurso, outra ou vez, percebendo a dominação em si,
549
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 44.
550
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 35.
551
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 45.
552
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 45: “Pelo menos durante a vigência da monarquia, permaneceu sempre difícil adotar
medidas mais duras contra os cortiços. No caso do Cabeça de Porco, por exemplo, segundo o relato da Gazeta de Notícias
por ocasião da demolição, tentativas anteriores de destruí-lo haviam esbarrado exatamente em medidas judiciais.”
553
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 45.
554
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 47.
555
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 50: “Aquilo que o burocrata do ministério do Interior considerava um absurdo era
exatamente o que valia; naquele momento, a Inspetoria de Higiene parecia o quarto poder da República.”
556
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 49-50.
557
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 47-49.
95
bem como as vantagens dela advinda, animam-se em, invejando a nova esquerda
558
punitiva -
de que os camponeses argelinos de que nos fala FANON
559
são o exemplo inevitável -, e invertendo os pólos
do discurso, passar de oprimidos a opressores. Das inúmeras tentativas de tomada do poder
por outros discursantes - no caso, os políticos oposicionistas ou militares insatisfeitos -, ou de sua
reestruturação pelos dominadores da ocasião, ambas frustradas - conquanto sempre manipulantes
da massa popular de manobra, pois eram outros os pretendentes daquele
560
-, a mais contundente
investida e parcialmente mais útil e exitosa, embora menos quanto a alterações políticas
561
imediatas que a interrupção da vacinação propriamente dita
562
, adveio como ricochete da
obrigatoriedade dessa, apesar do fato de que esse procedimento vinha sendo realizado no
“Brasil cem anos e de se terem vacinado no Rio mais de 150 mil pessoas ente 1846 e
1889.”
563
Mas, insista-se, teria esse sido o motivo real, ou o putativo?
564
Quais interesses
velados esconderia, se é que escondia, a revolta contra a vacina? Bem. Alguns afirmam que
seus motivos eram econômicos, servindo ela como mero pano de frente, o que parece pouco
provável.
565
Tempestivamente, em 1904, época em que o discurso médico havia se aperfeiçoado
sobremaneira, e em que, conforme MURILO DE CARVALHO, os “militares e setores populares não
representavam interesses compatíveis com os do grande comércio e da grande agricultura
566
”,
malgrado não terem “condições de impor um governo que extrapolasse os limites do Distrito
Federal”
567
, e exigindo uma descentralização da administração com vantagens para ambas as
partes
568
, aqueles militares e setores populares, dizia-se acompanhando o escritor mineiro, em
558
Chamando a atenção para, vez em quando, inexistir limites entre esquerda e direita, BOURDIEU, Pierre. Sobre..., pp. 43, e
48, in verbis: “Direita e esquerda, isso é relativo por definição.”; entendendo-as, ambas, aproveitadoras da situação, a
esquerda e a direita, WACQUANT, Loïc. As prisões..., p. 13, sobretudo, nota 1, pp. 18, 32, 40, 75, 86, 133, 135 e 138.
559
ARENDT, Hannah. Sobre la violencia. Madrid: Alianza, 2005, pp. 21 a 25.
560
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 156: “Mas na política a cidade não se reconhecia, o citadino não era
cidadão, inexistia a comunidade política. Diante desta situação, não era de estranhar a apatia e mesmo o cinismo da
população em relação ao poder.”
561
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 145: “Revelou antes convicções sobre o que o Estado não podia fazer
do que sobre suas obrigações. De modo geral, não eram colocadas demandas mas estabelecidos limites.” Mais tarde, idem, p.
146: “Mas as queixas não revelavam oposição ao Estado. Eram antes reclamações contra o que se considerava ação
inadequada, arbitrária, por parte dos agentes do governo. Ou então contra a falta de ação do poder público. Revelavam que
havia entre a população certa concepção do que deveria constituir o domínio legítimo da ação do Estado.”
562
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 139.
563
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 128-129.
564
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 138: “Independentemente da intenção real de seus promotores, a revolta
começou em nome da legítima defesa dos direitos civis.”
565
Informando e, depois duvidando dessa teoria, CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 129.
566
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 49: “Em realidade, só com alguma reserva se pode aplicar a palavra
‘agricultura’ aos processos de exploração da terra que se introduziram amplamente no país com os engenhos de cana.”; e, em
outra oportunidade (idem, p. 53): “Ou, como já dizia o mais antigo dos nossos historiadores, queriam servir-se da terra, não
como senhores, mas como usufrutuários, ‘só para a desfrutarem e a deixarem destruída.”
567
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 32.
568
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 423 e 426: “A
compreensão da programação criminalizante que teve seu núcleo no Código Criminal do Império do Brasil, de 1830, bem
como do sistema penal montado a partir dela, pode ser facilitada pela análise de dois grandes eixos, no primeiro dos quais
96
uma tentativa governamental “desencadeada pela própria presidência da República”
569
de - à
laia de um “despotismo ilustrado”
570
, e sob os auspícios de que ela “era de inegável e imprescindível interesse
para a saúde pública”
571
-, compelir à vacinação e, paradoxalmente, no momento em que “os
esculápios conseguiram o seu melhor resultado em um século de serviço de vacinação”
572
,
uma reação - ou melhor, uma guerra
573
, ou melhor ainda, “uma ação política exemplar, no sentido político e
moral, da população: a Revolta da Vacina”
574
que, durando uma semana, foi deflagrada em novembro de
1904
575
, “num momento decisivo de transformação da sociedade brasileira”
576
, e que teve como “pretexto
imediato... a campanha de vacinação em massa contra a varíola”
577
-, desencadeada, na visão de OLAVO
BILAC, pela “matula desenfreada” e pelos “ignorantes explorados pelos astutos”
578
, e que na
interpretação de SEVCENKO “não foi contra a vacina, mas contra a história”
579
, ou melhor,
“contra as condições da sua aplicação e acima de tudo contra o caráter compulsório da lei”
580
,
“se constituiu numa das mais pungentes demonstrações de resistência dos grupos populares
encontramos a contradição entre o liberalismo e a escravidão, e no segundo o movimento político de descentralização e
centralização, que se valeu intensamente do processo penal. ...Quando a reforma da Guarda Nacional (Lei n° 602, de
19.set.850) deslocar também para o ministro da Justiça seu comando, a obra de centralização estará concluída. O pacto
político que a presidiu foi assim sintetizado: ‘longe de terem sido destruídos pelo governo central, os chefes locais teriam se
aliado a ele, com benefícios para os dois lados: o governo ganhava sustentação nas bases rurais, os senhores territoriais
legitimavam seu domínio político em nível local’.”; sobre o assunto, leia, também, CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p.
116: “O resto do mundo era o reino dos coronéis que dominavam os partidos republicanos estaduais e davam sustentação ao
governo federal e estabilidade à república oligárquica.”; ainda, BOURDIEU, Pierre. Sobre..., pp. 131, 132, in verbis, e 138: “...o
coronelismo é, então, um sistema político nacional, baseado em barganhas entre o governo e os coronéis. O governo estadual
garante, para baixo, o poder do coronel sobre seus dependentes e seus rivais, sobretudo cedendo-lhe o controle dos cargos
públicos, desde o delegado de polícia até a professora primária. O coronel hipoteca seu apoio ao governo, sobretudo na forma
de votos. Para cima, os governadores dão seu apoio ao presidente da República em troca de reconhecimento por parte deste
de seu domínio no Estado.”; e, CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 32-33: “A maneira indireta de neutralizar
a capital e as forças que nela se agitavam era fortalecer os estados, pacificando e cooptando suas oligarquias. Era reunir as
oligarquias em torno de um arranjo que garantisse seu domínio local e sua participação no poder nacional de acordo com o
cacife político de cada uma. ...O próprio presidente resumiu claramente seu objetivo: ‘É de lá [dos Estados] que se governa a
República, por cima das multidões que tumultuam, agitadas, nas ruas da capital da União’. E prosseguindo: ‘A política dos
Estados ...é a política nacional’ (grifo de CAMPOS SALES).”; bem como, SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., pp. 38-39.
569
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 10.
570
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 36.
571
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 14.
572
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 161 e 162, verbo ad verbum: “Ou seja, o motim ocorreu quando o serviço estava
vacinando pessoas como nunca conseguira antes.”
573
Na visão de CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 97.
574
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., pp. 227 e 230; além de, CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 13; e,
também, CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 117.
575
Genérico, CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 97: “Rio de Janeiro, novembro de 1904.”; mais preciso, ainda que tomando
como referência o episódio de violência mais emblemática, CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 103: “No dia
13, domingo, o conflito generalizou-se e assumiu caráter mais violento.”; precisamente temporal, SEVCENKO, Nicolau. A
revolta..., pp. 10 e 13: “A inssurreição... ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, então Capital Federal, no ano de 1904... O fator
imediatamente deflagrador da revolta da vacina foi a publicação, no dia 9 de novembro de 1904, do plano de regulamentação
da aplicação da vacina obrigatória contra a varíola.”; já com um referencial temporal desvinculado do ápice da violência, veja
idem, p. 120: “No dia 11 de novembro, já iniciadas as manifestações....”; por outro lado, com uma referência episódica, veja
idem, p. 131: “De acordo com uma versão dos acontecimentos, a revolta teria começado com uma vaia dirigida contra
OSWALDO CRUZ.”
576
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 9.
577
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 10.
578
Apud CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 115.
579
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 88.
580
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 14.
97
do país
581
contra a exploração, a discriminação e o tratamento espúrio a que eram submetidos
pela administração pública nessa fase da nossa história”
582
, caracterizando-se, segundo
MURILO DE CARVALHO, por uma “revolta fragmentada de uma sociedade fragmentada”
583
,
realizando, antecipadamente, a previsão pessimista de DEBORD, i. e., de que “o espetáculo
reúne o separado, mas o reúne como separado”
584
- mas que contou com aproveitamento do grosso da
população que a apoiou abertamente ou, no mínimo, foi simpático a ela
585
, recebendo aderência, atesta MURILO
DE CARVALHO, “mesmo de setores que poderiam ser considerados modernos, como os operários das fábricas de
tecidos”, bem como de “setores chamados marginais, como ambulantes, capoeiras, malandros, prostitutas,
[que] formaram a linha de frente da luta”
586
-, e, na visão de SEVCENKO, por “reações indignadas da
população”, e por setores da oposição política, que desde um longo tempo vinham
articulando um golpe contra o governo”
587
, e que, em razão daquilo, no sentir de RUI BARBOSA,
era justa
588
, principalmente porque aqueles seus contemporâneos comungavam do mesmo
temor que ele para com a vacina.
589
Justamente porque, no dizer de OSWALDO GONÇALVES CRUZ, “só tem varíola quem
quer”
590, 591
, é que se escancararam as portas - porque imposta a terapêutica em ambiente exagerado de
medicina popular
592
, é dizer, usando palavras da época, de “despotismo sanitário”, que tentava,
desesperadamente, manter a fantasia absolutista de controle absoluto, seja por meio de um monopólio médico,
seja reeditando, ou melhor, renormatizando uma legislação, acusada de inconstitucionalidade
593
, que
“reintroduzisse a obrigatoriedade”
594
da vacinação -, à “revolta da vacina”
595,
596
, episódio tristemente
581
Aproveitável, mutatis mutandis, FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens..., p. 108: “Postos à margem do arranjo
estrutural e dos processos essenciais à vida social e econômica, agregados e camaradas foram os mais desvalidos dos homens
livres e os mais qualificados para enfrentar a ordem estabelecida.”
582
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., pp. 10-11.
583
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 138; nesse sentido, historicamente, FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho.
Homens..., p. 113: “Sua inexistência como ser social permitiu uma única escapatória nos momentos em que as forças
constritivas se faziam sentir mais duramente: a revolta de cada indivíduo, solitário em seu desafio à ordem estabelecida,
entregue às suas próprias forças para afirmar-se.”
584
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 23.
585
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 117.
586
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 117.
587
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 10.
588
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 115.
589
A incompreensível insegurança de RUI BARBOSA pode ser visitada em SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 15.
590
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 106.
591
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 95: “Neste ambiente, teve início a luta pela implantação da vacina
obrigatória contra a varíola, a terceira epidemia no alvo de OSWALDO CRUZ.”
592
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 182: “...a injeção de um simples é mal tolerada até hoje, justamente porque sugere a
penetração na economia da coisa heteromorfa, daquele mesmo ‘corpo estranho’. O vulgo prefere sempre o remédio a ser
introduzido pelas vias naturais. O que acontece com a vacina antivariólica é outro exemplo muito elucidativo do que estamos
afirmando: sua imposição às coletividades civilizadas ou meio civilizadas foi feita quase que à força, enquanto certos grupos
selvagens rejubilavam-se com a prática e procuravam-na com açodamento, porque o mecanismo da introdução da linfa
sugeria o das escarificações rituais, o da leitura dos adornos cicatriciais e das tatuagens - integrados nas suas culturas.”
593
Artigo de primeira página do jornal O Commercio do Brazil, intitulado Direito à resistência, conforme noticia CARVALHO,
José Murilo de. Os bestializados..., p. 97.
594
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 96.
595
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 442 a 444.
596
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 106.
98
indelével do nosso passado em que triunfou, mas não sem resistência e alguma desforra contra
a dor, o sofrimento, o desprezo, a subordinação, a exploração, a segregação e a humilhação, a
“exploração da política desalmada sobre a boa-fé de uma minoria e sobre a ignorância da
massa popular”
597
- ignorância, até certo ponto, tendenciosa
598
, ou mesmo, pouco inocente
599
ou, até
mesmo, envolvida pelo discurso implícito nas programações higienizadoras primária e secundária -, ou, na
versão governista moderada da época, “como exploração inescrupulosa da população
ignorante por parte de políticos e militares ambiciosos”
600
, aqueles, opositores dos governos
civis paulistas ou, ainda, sob um ângulo de visada mais radical, “como obra de uns dois mil
vagabundos
601
recalcitrantes
602
, presos e condenados várias vezes que fingiam de povo... obra
do ‘rebotalho ou das fezes sociais, do facínora, do ladrão, do desordeiro de profissão, do ébrio
habitual, da meretriz, do cáften, do jogador, do vagabundo e do vadio”
603
, mas que, de todo
modo, não estava completamente desamparada de aliados intelectuais
604
, conquanto mais
597
Citando LIMA BARRETO, oferece SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 67: “O motim não tem fisionomia, não tem forma, é
improvisado. Propaga-se, espalha-se, mas não se liga. O grupo que opera aqui não tem ligação alguma com o que tiroteia
acolá. São independentes; não há um chefe geral nem um plano estabelecido. Numa esquina, numa travessa, forma-se um
grupo, seis, dez, vinte pessoas diferentes, de profissão, inteligência e moralidade. Começa-se a discutir, ataca-se o Governo;
passa o bonde e alguém lembra: vamos queimá-lo. Os outros não refletem, nada objetam e correm incendiar o bonde.”;
quanto às origens históricas do afirmado, veja HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 61: “O peculiar da vida brasileira
parece ter sido, por essa época, uma acentuação singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional, e uma
estagnação ou antes uma atrofia correspondente das qualidades ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadoras.”; enquanto,
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 106; implicitamente, concordando com o texto, SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 57: “As
várias facções políticas em que se dividia essa oposição deram-se conta do enorme grau de dificuldades e transtornos que
causavam ao governo, incitando a turbulência dessa massa instável e dirigindo todo o rancor oriundo do seu mal-estar contra
as representações concretas e simbólicas do poder vigente.”
598
Contra essa tendência, HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 61: “...a grande massa do povo recebeu-as com
disciplicência, ou hostilidade.” A favor dela, CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 116: “Com exceção, portanto,
dos participantes e simpatizantes, que viam o povo em geral envolvido conscientemente na revolta, os outros depoentes ou
não viam entre os rebeldes o que consideravam povo, ou definiam o povo envolvido como ignorante e manipulado. A
primeira visão, não fosse interessada, tenderia para a abstração e o romantismo; a segunda trai a incapacidade de
representantes do governo e de elementos da elite educada em ver legitimidade e poder de discernimento no comportamento
político da massa.”
599
Porquanto incluiu seus incitadores, as facções políticas, como alvos, conforme se vê em SEVCENKO, Nicolau. A revolta...,
p. 57: “...o ódio popular, nos limites de sua extensão, se voltaria contra eles mesmos, que na realidade representavam também
uma das dimensões da elite governante.”
600
Veja próxima nota. No mais, consulte CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 115.
601
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 98: “JOSÉ MURILO DE CARVALHO, por exemplo, se declara interessado em desvendar
‘aspectos da mente popular’ em seu texto sobre a revolta, exprimindo talvez uma atitude mais geral entre os historiadores do
tema nos últimos tempos. Tal perspectiva visa certamente corrigir visões anteriores que interpretavam as ações dos revoltosos
de 1904 simplesmente como coisa de desordeiros e vagabundos, ou como objeto de manobras ou manipulações de políticos
oportunistas, ou ainda como sintoma de ignorância de uma população que não podia entender os benefícios da ‘civilização’ -
com o seu cortejo de verdades científicas e procedimentos técnicos correspondentes.”
602
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 117: “O próprio chefe de polícia confessou, e os jornais o atestam, que
no final da revolta foi feita uma limpeza na cidade para prender os que a polícia considerava vagabundos. Quando este agente
do governo fala, por exemplo, nos dois mil vagabundos recalcirantes, ele está sem dúvida se baseando nas estatísticas
criminais de 1904, que indicam a prisão de 2.128 pessoas por vadiagem e 73 por capoeiragem. Mas, essas pessoas foram
presas principalmente após a revolta, e não há indicação de que prova ou suspeita de participação tivessem sido o motivo da
prisão. Mesmo admitindo-se que muitas delas tivessem participado, e tudo faz crer que o fizeram....”
603
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 115.
604
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 160: “É curioso notar-se que os movimentos aparentemente reformadores, no
Brasil, partiram quase sempre de cima para baixo: foram de inspiração intelectual, se assim se pode dizer, tanto quanto
sentimental. Nossa independência, as conquistas liberais que fizemos durante o decurso de nossa evolução política vieram
quase de surpresa; ...Os campeões das novas idéias esqueceram-se, com frequência, de que as formas de vida nem sempre são
expressões do arbítrio pessoal, não se ‘fazem’ ou ‘desfazem’ por decreto.”
99
moderados
605
- justamente por, jazendo no leito do romantismo, importado platonicamente da metrópole,
“ainda quando se punham a legiferar ou a cuidar de organização e coisas práticas, os nossos homens de idéias
eram, em geral, puros homens de palavras e livros; não saíam de si mesmos, de seus sonhos e imaginações”
606
-, e que, como diz MURILO DE CARVALHO, arrimando-se em dois pontos, um científico, outro
filosófico... interpretavam o pensamento de COMTE
607
como tendo sido contrário à teoria
microbiana das doenças...” e “...não aceitavam qualquer intromissão do governo
608
...no
domínio da saúde pública, reservado ao poder espiritual”
609
; além de outros, um mais técnico,
vazado na “falta de competência do poder público para invadir o recesso dos lares, seja para
inspeção, seja para desinfecção, seja para remoção de doentes, ou sequestro”
610
, e outro
menos louvável, amparado por improvadas reações colaterais como “convulsões, diarréias,
gangrenas, otites, difteria, sífilis, epilepsia, meningite, tuberculose.”
611
Entrementes, o mote maior do rebuliço, sustenta MURILO DE CARVALHO, se ancorava na
“obrigatoriedade da vacina” que, se por um lado, recalcava, remarcando especificamente os
maus exemplos que vieram da campanha anterior pela extinção da febre amarela
612
-
desmentindo o que disse um certo naturalista norte-americano sobre os pobres, i. e., de que “a pobreza defende-
os, de algum modo, contra os maus costumes”
613
-, por outro, evidenciava a “grande irritação popular
com a atuação do governo na área da saúde pública
614
, de modo especial no que se refere à
vistoria e desinfecção das casas”, pois estas ocasionavam “a invasão das casas, a exigência de
saída dos moradores para desinfecção, o dano causado aos utensílios domésticos”, além do
“medo desenvolvido em relação à vacina propriamente dita”
615
, de que comungava RUI
BARBOSA, como visto acima. De qualquer forma, a revolta também ficou pontuada pela dúvida
605
Mormente em um dos incidentes violentos que representaram a revolta. Para isso, veja CARVALHO, José Murilo de. Os
bestializados..., pp. 102-103: “Em ambiente tumultuado por provocadores da polícia, falou LAURO SODRÉ... e pediu ao povo
que se retirasse em paz. BARBOSA LIMA falou no mesmo sentido. VICENTE DE SOUZA... seguindo LAURO SODRÉ e BARBOSA
LIMA, pediu prudência. ...VARELA falou da janela de sua casa aconselhando o povo a dissolver-se....”; sobre a atuação de
ambos, veja SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 20.
606
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 163.
607
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 158: “É certo que, em suas construções políticas, os positivistas imaginavam
candidamente respeitar nosso ‘estado preexistente’, nossa feição própria, nossos antecedentes especiais.”
608
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 118: “O avanço do Estado na regulamentação da vida das pessoas foi uma das
causas mais frequentes de revoltas populares, sobretudo porque ele se dava sem a contrapartida do aumento da participação
política.”
609
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 97-98.
610
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 98.
611
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 98 e 131: “De início, os líderes da oposição apelavam principalmente
para os perigos reais ou imaginários que cercavam a vacinação. BARBOSA LIMA e outros faziam verdadeiro terorrismo sobre
tais perigos.”
612
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 14.
613
Referindo-se a HERBERT SMITH, HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 181.
614
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 118: “Não há dúvida de que a reação popular se deveu à prevalência entre a
população de valores incompatíveis com os que presidiam à ação do governo.”
615
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 130-131.
100
quanto ao aplicador - de per se de atuação “bastante agressiva, especialmente em relação aos cortiços”
616
-, reforçada por uma interessada oposição moralista
617
que explorava a teoria da invasão, dita
degenerescente, dos corpos, acentuada em um regime governamental inicialmente de
representação feminina
618
, pois logo cuidaram de prostituir essa figura edênica.
619
Estava,
então, o médico do governo, personificador da devassidão moral das mulheres, sob o jugo de
uma sociedade altamente, e por tradição
620
, machista
621
- embora o machismo tenha sido
enfraquecido, justamente, pela medicina higiênica que fragilizou o poder paternal e auxiliou a esposa a dirigir-
se contra o marido
622
-, representada pela proibição do marido, de CAPITU expor, publicamente,
os braços nus
623
- manipulável e manipulada pelos líderes oposicionistas que apelavam para uma
moralidade e um efeito colateral advenientes da vacinação, e que lhe davam o tom
624
, mais agudo e grave
naquela
625
, do que nesse. Sociedade patriarcal essa que, segundo MURILO DE CARVALHO, sob a
batuta de Vicente de Souza em reunião no Centro das Classes Operárias visando a fundação
da Liga contra a Vacina Obrigatória
626
, sentiu-se irresignada quando ele disse que “ao voltar
do trabalho... o chefe fica ‘sem poder afirmar que a honra de sua família esteja ilesa, por haver
616
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 158; e, SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 14: “Os interlocutores da oposição,
enraivecidos, respondiam ao governo que, no caso da lei brasileira, os métodos de aplicação do decreto de vacinação eram
truculentos, os soros e sobretudo os aplicadores pouco confiáveis e os funcionários, enfermeiros, fiscais e policiais
encarregados da campanha manifestavam instintos brutais e moralidade discutível.”
617
Sobre os argumentos oposicionistas, moralistas ou não, veja SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., pp. 14-15; outrossim,
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 118: “Havia, para começar, fortes e rígidos padrões de moralidade familiar, aplicados
especialmente às mulheres.”
618
CARVALHO, José Murilo de. Brasil: nações imaginadas. In Pontos e bordados: escritos de história e política. 2.
reimpressão. Belo Horizonte: UFMG, 2005, p. 244: “A república não teve dúvida em adotar a representação feminina
seguindo a inspiração francesa. ...talvez a explicação esteja... no fato de que a figura feminina também servisse para
representar a liberdade, como no famoso quadro de RUDÉ, A Liberdade Guiando os Povos.”
619
CARVALHO, José Murilo de. Res-pública. In Pontos e bordados: escritos de história e política. 2. reimpressão. Belo
Horizonte: UFMG, 2005, pp. 313-314: “A República brasileira tem longa e atribulada relação com a mulher. Ao ser
proclamada, ela quis representar-se na figura solene de deusas gregas e romanas, símbolos grandiosos da guerra, da paz, da
sabedoria. A República queria ver-se no espelho de Atena, ou na alegoria feminina da liberdade inspirada na Revolução
Francesa. Mas a prática do regime logo esvaziou a alegoria. Passado o carnaval financeiro do Encilhamento, a festa instalou-
se em palácio: um ministro da Fazenda da segunda presidência civil, às voltas com o combate à especulação e à inflação
herdadas do Encilhamento, mandou colocar nas cédulas do tesouro o retrato de uma beldade, sua amante. O episódio
determinou a troca de alegorias. Os caricaturistas não tiveram dúvidas: o símbolo da República não era Atena, não era
Marianne, não era a Liberdade de Delacroix. Era a cocote, a mulher da vida, a prostituta. A República não era a virtude
pública, era a mulher pública.”
620
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens..., p. 45: “Não obstante, a organização familiar nessas camadas inferiores
inclui vários caracteres do tipo patriarcal, transferidos do modelo oferecido pelas camadas altas.”
621
Sobre o porquê do machismo no Brasil, veja COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., pp. 251 a 253 e 260-261; ainda,
comentando a entrevista de um “preto” ao repórter do jornal A Tribuna, logo após a revolta, diz CARVALHO, José Murilo de.
Os bestializados..., p. 139: “Para ele, a vacinação em si não era importante - embora não admitisse de modo algum deixar os
homens da higiene meter o tal ferro em suas virilhas.”
622
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., pp. 115 e 120.
623
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Martin Claret, 2002; bem como SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 15.
624
Nesse sentido, CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 131.
625
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 131: “Mas o que talvez mais tenha atingido a população foi o tom
moralista emprestado à campanha....”
626
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 18: “Ela fora fundada... a 5 de novembro, sob a presidência de LAURO SODRÉ, no
Centro das Classes Operárias.”
101
penetrado desconhecido amparado pela proclamação da lei da violação do lar e da
brutalização aos corpos de suas filhas e de sua esposa’.”
627
Retórica acentuada quando, ao continuar seu discurso, pondera dizendo que, “‘a
messalina
628
...entrega-se a quem quer, mas a virgem, a esposa e a filha terão que desnudar
braços e colos para os agentes da vacina’.”
629
O que, em toda medida, explorando bem a
ausência do chefe de família propagandeou
630
, de forma devastadora
631
, uma nudez diante de
estranhos bem à eroticidade-anatômica brasileira.
632
Como disse BOURDIEU, “é preciso palavras extraordinárias; de fato, paradoxalmente, o
mundo da imagem é dominado pelas palavras.”
633
Então, a invasão, praticada seja pelo
médico oficial, seja pelo ad nutum, e delivery, ou mesmo em praça pública, dava azo ao temor
da indelével ofensa à honra, temor esse muito maior do que aquele difundido pela eloquência
médica ao tentar impor a manutenção do seu discurso, mediante a necessidade da
vacinação.
634
Então, ainda que por pouquíssimo tempo, na disputa pelo poder, o discurso
hegemônico médico formal-oficial foi derrotado e dominado.
Embora, sejamos convinháveis, tudo isso poderia tentar ser contestado pelo argumento
de incredulidade de CHALHOUB que não acha crível que a maioria da população engajada no
quebra-quebra que se seguiu tivesse sido motivada por tal tipo de ‘justificativa moral’”
635
mesmo que ele aceite o pressuposto de uma “modernização sem mudança”
636
-, pois, citando MARTHA
ESTEVES, noticia - ao comentar o estudo dela sobre “os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro na
Belle Époque” -, que “o mapa da ‘mente popular’ sobre tais assuntos era muito mais tortuoso e
incerto, e certamente bem diverso da moralidade burguesa de plantão
637
na mente dos
627
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 1118: “A visita de médicos na possível ausência do chefe da famíla e,
principalmente, a hipótese de um estranho tocar fisicamente mulher e filhas ou simplesmente ver partes de seus corpos soava
como uma violação do lar, como agressão à honra do marido, como desmoralização insuportável.”
628
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 131: “A expressão ‘messalina’ usada por VICENTE DE SOUZA na reunião
do Centro deve ter tido efeito devastador.”
629
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 100-101.
630
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 132: “...os líderes da revolta espalhavam agentes pelos centros
populares com o fim de salientarem os perigos da vacina e dizerem que seria aplicada nas coxas das mulheres e filhas, junto à
virilha.”
631
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 132, inclusive tabela X.
632
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 131.
633
BOURDIEU, Pierre. Sobre..., p. 26.
634
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 98.
635
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 100; escorando-se, ao contrário, na moralidade como vetor desimpediente da intervenção
médico-higienista, COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 66.
636
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 179.
637
Em sentido contrário, veja SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., pp. 9-10: “A constituição de uma sociedade
predominantemente urbanizada e de forte teor burguês no início da fase republicana, resultado do enquadramento do Brasil
nos termos da nova ordem econômica mundial instaurada pela Revolução Científico-Tecnológica (por volta de 1870), foi
acompanhada de movimentos convulsivos e crises traumáticas, cuja solução convergiu insistentemente para um sacrifício
cruciante dos grupos populares.”
102
políticos do período”
638
, de sorte que, na sua visão, TERESA MEADE teria feito a melhor
interpretação do movimento, contextualizando-o em “uma tradição popular de resistência a
iniciativas do poder público”, pois
“no caso das políticas de saúde pública, principalmente, havia uma desconfiança de longa data
em relação à atuação de funcionários da higiene - sempre apoiados no aparato policial -,
visando promover desinfecções, despejos e demolições de cortiços e moradias pobres em geral,
isolar doentes e conduzi-los aos temidos hospitais, e a historiadora poderia ter acrescentado,
reprimir práticas populares de cura”
639
,
ou mesmo, de outro lado, pela identidade dos revoltosos, pois, se é mesmo verdade que
muitos deles eram garotos vendedores de jornais, garotos de cortiço, operários desocupados,
capangas de políticos e vagabundos da Saúde, todos promovidos a povo pelos
conspiradores”
640
- fato desacreditado, convincentemente, por MURILO DE CARVALHO
641
, sobretudo quando se
ancora em estatísticas e censos da época, que demonstram uma maior participação de operários na
insatisfação
642
-, não é menos verdade que os mesmos não tinham qualquer motivação
machista. Ademais, em outro momento arremata dizendo que “os esculápios lanceteiros
pensavam apenas que lutavam contra ‘preconceitos’ e ‘ignorância’”
643
, em uma época - mais
precisamente em 1840 -, em que “a linfa estava degenerada e a vacina andava não pegando; a
postura tampouco.”
644
Insistindo, diz-nos MURILO DE CARVALHO que a revolta, que durou uma semana
645
,
baseou-se “tanto em valores modernos como tradicionais”, tendo sido esses recebidos da
nossa colonização ibérica
646
- mas, não só dessa, senão, daquela dualidade, ou mesmo trialidade a que me
referi acima, advinda da tripla nacionalidade, a dizer de portugueses, afro-descendentes e índios, que compôs,
inicialmente o Brasil, e que rebocou suas respectivas tradições, dentre as quais os tabus, os tributos, as crenças
e as descrenças -, bem como em valores almejados pelas classes populares e aqueles idealizados
pelas mais altas, em tudo compatíveis entre si, mas, sobretudo, no “respeito pela virtude da
638
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 100: “É claro que havia na época uma insatisfação popular constante com as repetidas e
cada vez mais agressivas invasões de higienistas e policiais e suas comunidades - bairros populares, cortiços, locais de cultos
religiosos afro-brasileiros etc. -, mas isto é bem diferente de imaginar que arroubos retóricos como as ‘messalinas’ de
VICENTE DE SOUZA pudessem ‘ter tido efeito devastador’ entre ‘o povo’, tornando-se assim importantes para a eclosão da
revolta.”
639
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 101.
640
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 115-116.
641
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 116: “Com exceção, portanto, dos participantes e simpatizantes, que
viam o povo em geral envolvido conscientemente na revolta, os outros depoentes ou não viam entre os rebeldes o que
consideravam povo, ou definiam o povo envolvido como ignorante e manipulado. A primeira visão, não fosse interessada,
tenderia para a abstração e o romantismo; a segunda trai a incapacidade de representantes do governo e de elementos da elite
educada em ver legitimidade e poder de discernimento no comportamento político da massa.”
642
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 117, in fine, e seguintes.
643
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 149-150.
644
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 153.
645
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 97.
646
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 39: “A bem dizer, essa solidariedade, entre eles, existe somente onde há
vinculação de sentimentos mais do que relações de interesse - no recinto doméstico ou entre amigos.”
103
mulher e da esposa, a honra do chefe de família, a inviolabilidade do lar”
647
, todos redutíveis à
inadmissibilidade “à interferência do governo além de limites aceitáveis”
648
- ou, o que é pior,
contradizendo os próprios motivos que teriam ensejado a convergência da Monarquia em República, como a
intangibilidade
649
injustificada e ilegal dos direitos dos cidadãos, essência tanto do positivismo que, antes, de
um lado, prometera incorporar, socialmente, o vasto proletariado
650
, e, de outro, desavergonhar-se de si mesmo
e de sua realidade biológica
651
, quanto do liberalismo
652
, mediante não a mínima
653
, mas a máxima
intervenção estatal e, outrossim, não a máxima, mas a média liberdade
654, 655
da cidadania
656, 657
-, e todos
representando o exercício de uma vinheta eloquente que remarcava, embora marcando
passo
658
, uma retórica liberal em voga.
Extraídos um ou outro exagero, quer parecer que a vacina era apenas a representante
de um papel coadjuvante
659
em um contexto onde não só a fala importava mais que a
personagem, mas, mais uma vez, o protagonista era o “bandido”, ou melhor, o “outro”
660
- por
não ser aquilo que também não somos, mas gostaríamos de ser, apesar de não exigirmos isso de nós mesmos,
senão, apenas dele -, representando a opressão do Estado em sua faceta médica formal-oficial.
647
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 136.
648
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 138: “Havia, no entanto, uma espécie de pacto informal, de
entendimento implícito, sobre o que constituía legítima interferência do governo na vida das pessoas.”
649
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 146: “...havia entre a população certa concepção do que deveria
constituir o domínio legítimo da ação do Estado. Pelo conteúdo das reclamações pode-se deduzir que este domínio girava em
torno de problemas elementares, como segurança individual, limpeza pública, transporte, arruamento.”
650
Contrariamente, em outro lugar, CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 145-146: “De modo geral, não eram
colocadas demandas mas estabelecidos limites. Não se negava o Estado, não se reivindicava participação nas decisões do
governo; defendiam-se valores e direitos considerados acima da esfera de intervenção do Estado, ou protestava-se contra o
que era visto como distorção ou abuso.”; sobre o que compunha o proletariado (idem, p. 159): “A grande presença escrava,
por outro lado, acrescida mais tarde dos imigrantes do país e do exterior, formou a massa proletária de que falamos.”
651
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 166.
652
A formidável fusão entre liberalismo e racismo pode ser resgatada em SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., pp. 14 e
181.
653
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 146: “É importante não interpretar os movimentos de revolta popular
em sentido liberal clássico como exigência de redução ao mínimo da ação do Estado, ou de ilegitimidade desta ação onde
coubesse a iniciativa particular.”
654
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 147: “Permanece, no entanto, o fato de que entre as reivindicações não
se colocava a de participação nas decisões, a de ser ouvido ou representado. O Estado aparece como algo a que se recorre,
como algo necessário e útil, mas que permanece fora do controle, externo ao cidadão. ...É uma visão antes de súdito que de
cidadão, de quem se coloca como objeto da ação do Estado e não de quem se julga no direito de a influenciar.”
655
CARVALHO, José Murilo de. Escravidão e razão nacional. In Pontos e bordados: escritos de história e política. 2.
reimpressão. Belo Horizonte: UFMG, 2005, p. 58: “Nos Estados Unidos, a escravidão exercia seus efeitos abaixo dos limites
da libertas romana; entre nós seus efeitos pesavam também dentro e acima da esfera da civitas.”
656
Nesse sentido, CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 136-137, e 161, verbis: “Nossa República...
consolidou-se sobre a vitória da ideologia liberal pré-democrática, darwinista, reforçadora do poder oligárquico.”
657
Em sentido contrário, citando JOAQUIM NABUCO, CARVALHO, José Murilo de. Escravidão..., p. 58: “Enquanto houver
escravos, argumenta ele, fica diminuído o próprio título de cidadão dos livres. A abolição, portanto, deve fazer-se no
interesse de todo o País, no interesse de livres e escravos. A abolição é condição necessária para evitar a dissolução social e
fundar uma sociedade liberal baseada no trabalho livre, fortalecida em suas energias próprias, menos dependente do Estado.”
658
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 154: “O avanço liberal não foi acompanhado de avanço igual na
liberdade e na participação.”
659
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 10: “Seu pretexto imediato foi a campanha de vacinação em massa contra a varíola,
desencadeada por decisão da própria presidência da República.”
660
Sobre a diabolização do outro veja GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. 2. ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2001, p. 98.
104
Mais importante, porém, que esse escorço histórico é a dedução de que todo esse qui
pro quo serviu, em última medida, requente-se, ainda que indiretamente e em atendimento à
programação higienizadora secundária, como recenseamento e posterior controle das classes
subalternas e desinteressantes, diga-se ao passar.
661
Mas, como isso teria sido realizado?
Primeiro, como já visto en passant acima, guardando, mutatis mutandis, a tradição
662
da
vacinação - que em 09 de novembro de 1904, com o plano de regulamentação
663
de sua aplicação contra a
varíola, a “humana lei”
664
tornou obrigatória, deflagrando-se, por isso, a revolta
665
-, “o projeto de
regulamento mantinha a opção de vacinação por médico particular, mas o atestado teria de ter
firma reconhecida.”
666
Exigência irrelevante diante do cerco contrafático que encarcerava a
vida das pessoas ao condicionar à existência, e à posse desse documento único, a “matrícula
em escolas, emprego público, emprego doméstico, emprego nas fábricas, hospedagem em
hotéis e casas de cômodos, viagem, casamento, voto etc.”
667
, bem como ricocheteadora na
assumida e indelével condição de gado vacum, pelo povo, que se sentia, obrigatoriamente,
vacinado por um governo de latifundiários
668, 669
que, tratando-os como animais, não se
preocupou, no dizer de SEVCENKO, “com a preparação psicológica da população, de quem só se
exigia a submissão incondicional”, governo esse cuja “insensibilidade política e tecnocrática
foi fatal para a lei da vacina obrigatória.”
670
A requentar, o resultado de tudo o que foi dito, mas, sobretudo do “Regulamento da
Lei” da lavra de OSWALDO GONÇALVES CRUZ - aquele que condicionava o exercício da cidadania, como
matrícula em escolas, arranjo de emprego etc.
671
-, não poderia ter sido outro: houve uma violenta
reação da população, como descrito - em parte, talvez explicável, historicamente, e aqui interpola-se
FRANCO que não escreveu para essa situação, por uma tradição cabocla de culto às soluções violentas,
661
E, ao que parece, a situação não mudou muito a partir de então, podendo a realidade ser enxergada em CHALHOUB,
Sidney. Cidade..., p. 148: “...o estudo também concluiu que havia uma desconfiança generalizada em relação às ações
governamentais, associadas normalmente à cobrança de impostos e ao recrutamento militar.”
662
Historicamente, CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 110: “Na verdade, há mesmo possibilidade de que a principal função do
serviço de vacinação do governo nos primeiros tempos fosse a imunização dos escravos, sendo provável que a parte mais
abastada da população procurasse o alvitre junto a seus médicos particulares.”
663
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 16: “E foi justamente essa regulamentação que desencadeou a revolta.”
664
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 14.
665
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., pp. 13 e 14, in verbis: “A pequena oposição parlamentar, a imprensa não-governista e a
população da cidade por outro lado, procuravam resistir obstinadamente à sua implantação.”
666
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 99.
667
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 99; sobre o assunto, veja o que diz SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p.
17: “O regulamento era extremamente rígido, abrangendo desde recém-nascidos até idosos, impondo vacinações, exames e
reexames, ameaçando com multas pesadas e demissões sumárias, limitando os espaços para recursos, defesas e omissões.”
668
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 102.
669
Sobre um pouco do porquê econômico-mercadológico dos latifúndios no Brasil, veja HOLANDA, Sérgio Buarque de.
Raízes..., pp. 47, e seguintes.
670
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 17.
671
Sobre o Regulamento, veja CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 99.
105
transferida para a cidade
672
-, contra a vacinação obrigatória, concentrada muita vez na Praça
Tiradentes
673
(antigo Largo do Rocio), onde ficava o Ministério da Justiça, mas logo depois
espraiada - inclusive com apoio de aliados do governo, embasbacados com o rigorismo oswaldiano
674
-,
para, tomando as ruas, com disposição até para usar de fogo nada artificioso
675
, não mais se
conter, mesmo diante da atitude governamental tardia de adotar um projeto de regulamento
substitutivo, porquanto, uma vez provocada a massa de manobra, posteriormente inclusive
quase desidentificável
676
e descontrolável - pois, como ensina BAUDRILLARD, “o efeito de massa está além
da manipulação e sem comum medida com as causas
677
-, “nada disto importava mais”.
678
Contudo, atentemos para um pormenor. Como dito acima, acompanhando MURILO DE
CARVALHO, e aqui novamente, a vacinação obrigatória não passou de um motivo, logo
inumado
679
, “para desencadear um protesto muito mais vasto e profundo”
680
, continente de
um “possível crescendo de manifestações populares iniciado em 1903”
681
, onde
“desabrocharam, então, várias revoltas dentro da revolta”
682
, todas elas conteúdos que,
lastreados em questões econômicas - como sempre tem sido -, não obtiveram a dimensão e a
profundidade da revolta da vacina que, embora morrendo como motivo, não teve seu féretro
672
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens..., pp. 37, 51, 55 e 63: “Vê-se, ainda, como as soluções violentas aparecem
como um comportamento estandartizado (sic), e isto se conclui do fato de não ficarem restritas àqueles sujeitos
imediatamente envolvidos, mas se propagarem rapidamente, ocorrendo reações uniformes em todo o grupo...; o que sobressai
como padrão de comportamento é a violência, correspondendo, como se verá, a todo um sistema de valores centrados na
coragem pessoal...; Virtude, destemor e violência não se excluem...; A importância desse conjunto de valores é revelada na
preocupação em construir e conservar uma reputação de valentia...; A valentia constitui-se, pois, como o valor maior de suas
vidas.”
673
Dispersando o tumulto, SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 18: “Grandes ajuntamentos tomaram a Rua do Ouvidor, a
Praça Tiradentes e o Largo de São Francisco de Paula.”
674
Mormente em um dos incidentes violentos que representaram a revolta. Para isso, veja CARVALHO, José Murilo de. Os
bestializados..., pp. 102-103.
675
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 100: “LAURO SODRÉ falou contra a lei ‘iníqua, arbitrária e deprimente’,
a que se devia resistir mesmo à bala.”; Idem, pp. 100-101: “A seguir falou VICENTE DE SOUZA... Contra a violência, apelava
para a legítima defesa ‘e essa se faz com as armas na mão’.”
676
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 113-114: “No Brasil, em casos de revoltas populares, nunca havia
processo contra o grosso dos presos. Processavam-se apenas os líderes, muitas vezes elementos da elite. Os restantes eram
simplesmente colocados em navio e desterrados para algum ponto remoto. Nem mesmo passavam pela Casa de Detenção,
onde teriam ficado registrados seus dados pessoais. ...Dos outros 945 presos, uns foram soltos, outros deportados sem
processo. Não nos foi possível recuperar nem ao menos os nomes de todos.”; embora, este mesmo autor, em outro momento
(idem, p. 117), descreva, que: “Há outras fontes que nos podem levar um pouco mais adiante. Comecemos pelo relatório do
chefe de polícia. Há nele alguma informação sobre os presos. Foram detidas ao todo 945 pessoas. Destas, 461, depois de
terem sido identificadas como possuindo antecedentes criminais, foram deportadas. As restantes 484 foram soltas. Segundo o
chefe de polícia, os arquivos da Casa de Detenção informavam que os 461 deportados possuíam 949 nomes e haviam sido
presos 1.852 vezes, das quais 1.535 por contravenção e 317 por crime (141 contra a pessoa, 176 contra a propriedade). Para o
exterior foram deportados, por sentença, sete estrangeiros.”
677
BAUDRILLARD, Jean. Telemorfose. Rio de Janeiro: Mauad, 2004, p. 38.
678
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 103.
679
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 133: “...após as escaramuças iniciais e particularmente após o fiasco da
revolta militar, os discursos e palavras de ordem contra a vacina assim como os ataques contra os símbolos da ação do
governo na área da saúde pública - agentes sanitários, carroças e prédios -, desapareceram completamente.”; mais tarde
(idem, p. 157): “Poucos meses após a revolta da vacina, ela já era objeto de celebração carnavalesca, sem falar no fato de
terem começado as agitações por uma farsa teatral montada por pivetes.”
680
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 134.
681
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 134.
682
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 138.
106
acompanhado por aquela que, ao menos para o historiador mineiro, seria sua principal
fundamentação, qual sendo, “a justificação moral”
683
que, ainda que vinculada ao centenário
da vacinação antivariólica que precedeu 1904, não pode ser tida como suficiente, i. e., não
passou de “simples pretexto para uma revolta que tinha motivos outros e mais relevantes.”
684
É que, historicamente, segundo elucida CHALHOUB, para começar, “a história do
combate à varíola é a história da inoculação e, posteriormente, da vacina”, que se valia de um
entendimento antigo de que “se determinada moléstia grave normalmente atacava um
indivíduo apenas uma vez, era altamente desejável provocar um ataque atenuado do mal para
assegurar a proteção das vítimas em potencial”
685
, embora essa técnica, mesmo depois de algo
aperfeiçoada, tenha se tornado, logo, “matéria de controvérsias virulentas”
686
e, em última
medida, dela podendo ser dito mesmo que “a prática da variolização consistia em obstáculo
poderoso à propagação da vacina”
687
, porquanto pugnava discursivamente contra os métodos
vacinogênicos aplicados pela medicina formal-oficial, e de maneira mais tradicional e muito
mais acessível às classes perseguidas pelos vacinadores-higienizadores.
Tendo poupado ao menos a massividade em Portugal que, em razão de seus escassos
números ali, estendeu sua desatenção para nós, malgrado, diz-nos CHALHOUB, ter sido
“frequente no tráfico negreiro e nas colônias”, não deixou de aqui ser introduzido o método da
variolização quando do “final da década de 1790.”
688
Inseguro e problemático, o que
enfraquecia a sustentação do discurso médico como único - ou pelo menos, também -, capaz de
debelar a necessidade propagandeada espetacularmente, esse método logo foi substituído pela
vacinação que aqui foi domesticada a partir de 1804, e repassada de “braço a braço”
689
-
incrustando de corolário, na pele e na carne, pari passu, a pedagogia da imposição da técnica médica, o que
muito contribuiu para sua difusão e remanescência do seu domínio, reativada toda vez que se olhasse para a
cicatriz deixada pela injeção -, com todas as eventuais mazelas que poderiam advir desse
683
Sobre esse entendimento, veja CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 135.
684
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 101: “Como vimos, para SEVCENKO a revolta ‘não foi contra a vacina, mas contra a
história’, para CARVALHO, ‘o inimigo não era a vacina em si mas o governo, em particular as forças de repressão do
governo’; para NEEDELL, a lei da vacinação obrigatória foi apenas a faísca que ateou por fim o incêndio; para TERESA
MEADE, a oposição popular originara-se de um leque bastante amplo de ressentimentos, apenas teria se concentrado em
determinado momento na questão da vacina. Nenhum desses autores investiga a questão da história prévia do serviço de
vacinação antivariólica, e só CARVALHO se preocupa em apontar a lacuna: ‘Não há estudo mais detido sobre as tentativas de
implantação da vacina obrigatória e sobre as razões do fracasso da ação do governo’.”
685
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 102-103.
686
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 103-104: “Rapidamente se reconheceu que ela às vezes causava a morte dos
inoculados... e a observação cuidadosa trouxe a constatação de que, sem a rígida segregação dos inoculados, a prática podia
até agravar em muito a intensidade de uma epidemia já em curso.”
687
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 130.
688
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 105.
689
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 106-107.
107
compartilhamento da parafernália instrumental
690
, e em franca coincidência com o fato de que
“o período de implantação da vacina jenneriana na Corte fora também sua idade de ouro”
691
,
pois, influenciados por verborragia
692
gálica publicada entre 1855 e 1856 onde “um certo Dr.
VERDÉ-DELISLE... provara com fatos e estatísticas irrefragáveis que a vacina tem causado a
degenerescência física e moral da espécie humana”
693
, os vacináveis, como era de se esperar,
debandando para esse novo discurso que, enfim, ao mesmo tempo que os alforriava da
intromissão governamental injetável, avalizava suas tradições, passaram - não menos, também,
por conta do “método de inoculação braço a braço e da forma como o serviço de vacinação estava estruturado
na Corte”
694
-, a inaceitar a vacinação, sendo que, ao final dessa renitência e “após a virtual
cessação dos serviços de vacinação devido à revolta, o Rio assistira a sua pior epidemia de
varíola de todos os tempos - em 1908, com mais de 9 mil mortes”
695
- por si só já aumentada em razão
da impossibilidade de o serviço de vacinação, bem recebido no início, “acompanhar o ritmo de crescimento da
população”
696
, revelando “uma tendência de recuo na aceitação da vacina”
697
-, acentuada pelo mau
grado dos vacinados, ou mesmo plasmada na resistência - com influência negativa, inclusive, no
estoque
698
-, a retornar ao local da vacinação “para que o extraído de sua pústula fosse utilizado
na vacinação de outras pessoas”
699
, atitude para eles, demorada e incômoda
700
, havendo ainda
aqueles que, vivendo naquela época, testemunharam que “o povo... se achava então sob o
triste preconceito de que a vacina, em tempo de epidemia, longe de ser um grande benefício
era pelo contrário um passo dado para contrair a moléstia.”
701
I. e., “a população local, muita
vez, menos por apedeutismo que por influência, ou até mesmo, fomento
702
das próprias
690
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 120: “Mais preocupante era a possibilidade de os vacinadores estarem transmitindo a
sífilis braço a braço.”
691
Citando PLÁCIDO BARBOSA e CÁSSIO RESENDE, que demonstraram a simpatia da população pela incipiente vacina,
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 114.
692
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 161: “Em seus relatórios, os diretores do instituto discutem as razões que levariam as
pessoas a não retornarem após os oito dias marcados e, previsivelmente, concluem que o povo era ‘indolente’, ‘ignorante’,
‘egoísta’ etc....”; BARBOSA, Placido; RESENDE, Cassio Barbosa de. Os serviços de saúde pública no Brasil, especialmente na
cidade do Rio de Janeiro de 1808 a 1907: esboço histórico e legislação. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1909, 2 vols.
apud CHALHOUB, Sidney. Idem, p. 114: “...controvérsias surgidas em Portugal a respeito do método jenneriano”, por onde se
“procurou desacreditar a grande descoberta de JENNER e incutir no povo falsas e errôneas idéias sobre os seus efeitos.”
693
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 121.
694
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 121.
695
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 108.
696
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 112-113.
697
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 113.
698
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 117.
699
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 115.
700
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 114 e 121: “O indivíduo que se deixava vacinar sabia que depois teria os vacinadores e
a autoridade policial nos seus calcanhares para que retornasse no dia marcado para a verificação e a extração do líquido da
pústula. Como já mencionei anteriormente, esta volta era bastante incômoda. Os doutores achavam mais eficiente extrair a
matéria do braço do vacinado e inoculá-la imediatamente no paciente seguinte. Tal preferência dos esculápios tornava o
processo de vacinação lento e certamente desconfortável - talvez bastante doloroso -, para aqueles que estavam fornecendo a
linfa. As descrições se referem a horas de disponibilidade necessária nesta volta dos vacinados.”
701
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 125.
702
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 131.
108
autoridades
703
, inclusive médicas
704
, achava, e algumas vezes com certa razão
705
, que ‘a
vacinação produz[ia] varíola’”
706, 707
, quiçá pela identidade procedimental da “inoculação do
pus variólico e vacínico.”
708
Além de que, ao final, era pelo menos “razoável imaginar que tal
procedimento”, id est, o de que “os vacinadores estavam procurando encurralar os
vacinophobos em suas casas”, “deva ter auxiliado em muito a exaltação dos ânimos em torno
da vacinação naqueles anos anteriores à revolta de 1904.”
709
É sensato crer que a questão da revolta da vacina, a maior de todas que o país
experimentou, ainda comporta um pouco mais de explicação, mormente no que pertine à
influência que ela teve na dificuldade experimentada pela medicina formal-oficial em se
estabelecer como dominante, consideradas as cargas tradicionais da raça indígena, mas,
principalmente, da raça negra. Ensina CHALHOUB que, “é preciso reconhecer, em primeiro
lugar, que houve resistência à vacina no interior da própria classe dos proprietários e
governantes”
710
, desinteressados em proteger sua propriedade humana, cuja descartabilidade,
desde que em pequena medida, era inversamente proporcional ao enfadonho de preocupar-se
aqueles com esses. Era a principal lei da economia sendo usada plenamente, é dizer, um maior
rendimento com um custo menor possível, onde os proprietários se utilizaram do discurso
médico para gerir sua contabilidade, eficientemente. Outrossim, em razão da diferente visão
que brasileiros e africanos - estes e aqueles, volitivamente, limitados por uma monocromaticidade
intransigente
711
-, tinham das doenças e das curas
712
, cujo passado - com suas “concepções populares
sobre doença e cura”, fora amiúde atacado pelo poder público
713
-, testemunha da crença de que aos
olhos dos afro-descendentes os brancos visavam dizimá-los usando, para tanto, os médicos -
703
JACINTHO REYS, citado por CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 130.
704
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 146: “tudo isso me lembra o médico francês, Dr. DELISLE, cujo trabalho foi destacado
em editorial do Jornal do Commercio em meados dos anos 1850; o genial gálico culpava a vacina pela degenerescência da
espécie, e defendia a hipótese de que a varíola era uma fase necessária da vida humana, assim como a dentição ou a
menstrução, sendo prejudicial a interferência dos médicos para evitar que as pessoas, principalmente as crianças, a
contraíssem.”
705
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 132-133: “Com efeito, um problema perene para a propagação da vacina era a falta de
doutores que a inoculassem pelo interior, o que fazia com que a tarefa fosse rotineiramente entregue a boticários ou leigos de
variada espécie. JACINTHO REYS e seus pares achavam que tais indivíduos eram os principais responsáveis pelos insucessos
da vacina, pois inoculavam linfa imprestável e não sabiam avaliar a qualidade da pústula vacínica - isto quando se
preocupavam em exercer a função que lhes havia sido confiada. É possível, portanto, que esses leigos não soubessem bem o
material que inoculavam, havendo talvez exemplos concretos de casos em que, como dizia a população, a vacina era a
varíola.
706
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 126 e 130.
707
Em outra passagem, porém, CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 131: “...mas torna-se difícil entender a recusa à vacinação
por esta ser confundida com a variolização se há testemunhos inequívocos de que a inoculação do pus variólico era conhecida
e bastante praticada no país. Em suma, as razões registradas pelos médicos para a resistência à vacina nos deixam a
dificuldade de explicar o porquê de tantas pessoas recorrerem à variolização.”
708
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 132.
709
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 161.
710
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 131.
711
Para entender o porquê dessa afirmação, veja CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 135-136.
712
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 134.
713
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 167.
109
todos brancos -, explica a busca de socorro junto a curandeiros, também de cor. Também, por
conta do folclore africano - mas, também, conquanto em menor medida, do catolicismo popular
714
-,
muito atrelado a acreditar e creditar as doenças menos a causas naturais que a eventos
provocados sobrenaturalmente - aí incluídos os esculápios brancos e os comissários vacinadores, vetores,
aos seus olhos, inclementemente cromofóbicos -, o que era realçado por alguns acontecimentos
ocorridos no Rio de Janeiro como a epidemia de febre amarela - melhor não seria dizer febre
branquela?
715
-, no verão de 1850 - vingança do santo negro abandonado pelos brancos
716
-, fechando-
se, com isso, o desgraçado ciclo da self fulfilling prophecy que, aos olhos dos afro-
descendentes, sejamos convinháveis, não mais podia ser iridescente.
Como o de vingança vivem os deuses e como nunca é o santo de casa quem
opera o milagre, SÃO BENEDITO - num sistema de “controle dual
717
que... também estava presente entre os
povos centro-africanos: [em que] da própria fonte do flagelo surge a possibilidade da purificação e da cura”
718
-, era enaltecido por desviar a doença ou, no mínimo, realizar a sua cura de maneira
igualmente espiritual, em flagrante desprestígio de qualquer expediente terreno alegado pelo
pragmatismo branco que, inclusive, poderia interferir no normal andamento do procedimento
doença-cura, concentrado em um poder sobrenatural
719
, historicamente estimulado, em grande
medida, por nossos antepassados afro-ascendentes - embora, para os sacerdotes o motus fosse
vergonhosamente econômico
720
-, em seus respectivos países de origem.
721
Mudam-se os santos e
o milagre é o mesmo. Com OMOLU, que em carioquês deu ABALUAIÊ e OBALUAIÉ, orixá da
varíola extensamente prestigiado
722
, ficavam os afro-descendentes, acreditavam eles,
protegidos contra - ou até mesmo, segundo BASTIDE, por
723
-, qualquer praga amarela - neste último
714
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 145.
715
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 138: “...a febre amarela era devastadora entre os brancos e poupava a população negra de
incômodos mais sérios.”
716
Para essa histórica, veja CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 137-138.
717
Citando BASTIDE, CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 150: “...o orixá possui a ‘força’ de espalhar a doença e também de
proteger contra seus efeitos....”
718
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 149.
719
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 139 e 151, verbo ad verbum: “Sendo a etiologia da varíola de ordem sobrenatural, a
cura teria de acontecer prioritamente por meio de práticas rituais....”
720
Comentando período bem mais recente, veja CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 148: “A situação foi considerada grave
pelas equipes da OMS. Elas avaliavam que os féticheurs tinham interesses econômicos que os tornavam inimigos das
campanhas de vacinação - a eles cabiam os bens das pessoas que morriam de varíola.”
721
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 148: “As equipes da Organização Mundial de Saúde encontraram ‘resistência
generalizada à vacina’ nesses países, especialmente nas áreas rurais. A resistência foi atribuída à existência de um ‘culto
fetichista da varíola’, chamado Vodu-Sakpate ou Sopona. O problema é que sacerdotes fetichistas hereditários - os féticheurs,
considerados pela população como capazes de provocar ou prevenir a ocorrência das bexigas -, realizavam tradicionalmente a
variolização em rituais dedicados à divindade.”
722
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 141.
723
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 145: “...a varíola é considerada às vezes prova de amizade, um sinal da vontade desse
Deus....”
110
caso, servindo como purificadora
724
-, ou melhor, dos brancos, podendo prescindir das, ou mesmo
evitar as, portanto, vacínicas intervenções médicas alvejadas, embora não mais alvejantes.
Embora a substituição do santo não altere o milagre, a advocacia da graça, ou melhor, o
discurso nem sempre permanece idêntico. Esse mudou e a tal ponto que interferiu e continua a
interferir na pretendida hegemonia do espetáculo médico formal-oficial.
O acasalamento entre a vacinação e a assunção de funções administrativas
higienizadoras pelos médicos desaguou na ratificação da intervenção conjunta da medicina
com o Estado, sequiosos em ampliarem, cada um a seu modo e parasitando-se, seu domínio
no corpo físico e social da população.
É dizer, além de desencadeada em desfavor da vacinação, a sublevação ganhou foros
de entrave - e isso era inadmissível -, a um projeto médico-higienizador maior descortinado
quando da transição
725
do governo descentralizador
726
de CAMPOS SELOS - aliás, SALES,
economicamente recessivo
727
mediante a conjugação da ausência de empregos com o aumento da tarifação
728
-
, para RODRIGUES ALVES
729
que, não antevendo as críticas de OLIVEIRA VIANA
730
e apoiado por
um pouco mais de sorte que aquele, bem como desmentindo o apelido de “Soneca”
731
, valeu-
se dos serviços - homologados com selo ditatório
732
-, do engenheiro PEREIRA PASSOS
733
- portador de
724
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 145: “...os horrores da varíola... [são] percebidos antes como ‘purificação’ do que
castigo.”
725
CARVALHO, José Murilo de. Entre..., pp. 102-103: “Era a época em que o ministro das Relações Exteriores, Rio Branco,
procurava exibir ao exterior um País com cara branca e européia. Era a época em que boa parte da intelectualidade, sobretudo
no Rio, era cooptada pelo governo e se perdia num consumismo exacerbado dos produtos da cultura européia.”
726
BOURDIEU, Pierre. Sobre..., p. 132.
727
Não concordando que a questão econômica tenha sido o motivo da revolta da vacina, CARVALHO, José Murilo de. Os
bestializados..., p. 129.
728
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 92; embora, mais tarde, advirta esse autor que os motivos econômicos
não foram o seu mote, podendo o leitor, conferi-lo em idem, p. 129: “Uma das explicações afirma que a vacina foi apenas
pretexto. A revolta de 1904 teria sido de natureza essencialmente econômica. Suas ‘verdadeiras’ origens estariam na
indiferença do governo em relação aos sofrimentos da população. A tese nos parece duvidosa. É verdade que o governo de
CAMPOS SALES deixara o país em crise geral. Mas, como já vimos, o novo governo iniciara a retomada do crescimento.”; no
campo da intenção, primeiro, e depois no da realidade, veja o que diz SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 37: “...o objetivo
maior... de CAMPOS SALES foi o de recuperar o país do descalabro econômico em que as aventuras fiduciárias (Encilhamento)
e as agitações militares (Revolta da Armada, Revolução Federalista, Canudos) haviam-no submergido. ...Foi com esse
espírito que CAMPOS SALES contratou, com agentes bancários londrinos, a renegociação de uma dívida externa galopante, que
não se conseguia mais saldar e que já espantava nossos credores, deixando o país a descoberto de novos empréstimos. ...As
condições pareciam ser vantajosas, diante da situação lastimável em que se encontrava o crédito brasileiro. Mas, para fazer
jus a elas, o governo teve de se comprometer a realizar um drástico processo de deflação e arrocho da economia interna.”
729
Sobre a transição, veja SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., pp. 36-37.
730
CARVALHO, José Murilo de. A utopia..., pp. 209 e 219, respectivamente: “O que queria [OLIVEIRA VIANA] era um
cuidadoso exame das condições locais para que a adaptação de instituições estranhas não causasse efeitos inesperados, se não
contrários, aos pretendidos. Qualquer leitor de OLIVEIRA VIANA conhece a virulência com que criticava o que chamava de
idealismo utópico de nossas elites políticas, o deslumbramento com idéias estrangeiras, o analfabetismo quando se tratava da
realidade brasileira. ...Um tema recorrente em sua obra era a acusação de idealismo, de alienação, de marginalismo, de
ignorância das elites em relação à realidade nacional, era a denúncia da mania de macaquear idéias e instituições
estrangeiras.”
731
Como disse AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO “O povo via ainda em RODRIGUES ALVES o dorminhoco lendário”, in
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 36.
732
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., pp. 117 e 121.
733
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 45.
111
uma “carta in albis
734
, e de um testemunho visual e sensitivo do projeto haussmanniano
735
, imprescindível ao
nosso fugente
736
decalque tropical do anverso parisiense
737, 738
-, e do médico
739
OSWALDO GONÇALVES
CRUZ - o menos exigente
740
-, para, empreendendo uma prometida
741
e gradeada
742
reforma
urbana
743
, despida da pobreza demodé e voltada para as elites
744
- que, não conseguindo se furtar
aos influxos do vetusto e insistente modelo da família patriarcal, acarretou, mediante a instalação, a “passos
734
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., pp. 45-46: “...PASSOS exigiu plena liberdade de ação para aceitar o cargo, sem estar
sujeito a embaraços legais, orçamentários ou materiais. RODRIGUES ALVES lhe concedeu então carta branca, através da lei de
29 de dezembro de 1902.”
735
CARVALHO, José Murilo de. Da cocotte a Foucault. In Pontos e bordados: escritos de história e política. 2. reimpressão.
Belo Horizonte: UFMG, 2005, p. 393: “O ambiente geral do fim do século, a idéia de que a cidade se civilizava, prendiam-se à
noção de maior aproximação com a França, especialmente com Paris. A reforma urbana da cidade, feita no início do século,
seguiu o modelo parisiense de HAUSMANN. Até no aspecto físico a cidade procurava copiar Paris. Tornou-se a ville
merveilleuse, nome dado, suprema glória, por uma poetisa francesa.”; é bem verdade, porém, que a antropofagia francesa é
bem mais antiga que isso. Se não, vejamos o que diz o mesmo autor, pp. 390 e 391, in verbis, e 392-393: “A segunda invasão
francesa do Rio deu-se após a vinda da Corte portuguesa em 1808. Pela época da Independência do País, em 1822, os
franceses já tinham construído na Rua do Ouvidor uma fortaleza mais sólida que o forte de Coligny do século XVI. Era a
fortaleza da moda. Visitantes estrangeiros, inclusive franceses, já se referiam nesta época à Rua do Ouvidor como “rue
essentiellement française”. Era comum a comparação da Ouvidor com a Rue Vivienne de Paris. A única coisa que nela
lembrava o Brasil, lamentavam os cronistas, era a presença dos negros. ...Seja como for, a influência francesa ampliou-se ao
longo do século XIX, atingindo o auge durante a belle époque no Rio fin-de-siècle.”
736
Isso porque a europeização logo cedeu passo à americanização, havendo substituição do dândi pelo sportman, esse sempre
ocorrente no cinema. Nesse sentido, CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 250: “Os Estados Unidos eram vistos como
alternativa à influência européia nos campos político, econômico e cultural. Eram a imagem da liberdade, da iniciativa, da
riqueza, do progresso técnico; enfim, do novo mundo americano em oposição ao velho mundo decadente europeu.”
737
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 58: “Não parece, pois, muito casual o fato de o engenheiro encarregado da reforma do
Rio ter sido justamente o Prefeito PEREIRA PASSOS, que esteve em Paris e acompanhou de perto a ampliação do novo projeto
urbanístico da cidade.”; aliás, de acordo com CARVALHO, José Murilo de. Da cocotte..., p. 390: “O Rio de Janeiro foi francês
antes de ser português ou brasileiro.”
738
Desautorizando essa idéia, COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 210: “Entretanto, esse amor ao país não era uma simples
réplica dos programas médico-políticos dos higienistas europeus. Tampouco eram simples enunciados abstratos
desvinculados da realidade. A ação patriótica da higiene não era uma cópia-carbono da política. Não era um simples efeito de
intromissão do político no científico. A ciência fazia parte da política. Era um dos seus momentos. Uma de suas estratégias
específicas. Os médicos, conscientemente, punham à disposição dos governos o que sabiam ou podiam fazer para levarem os
indivíduos a compactuarem com a ordem estatal.”
739
Há tempos os médicos também faziam as vezes, dentre outras, de arquitetos, como pode ser visto em COSTA, Jurandir
Freire. Ordem..., p. 114: “Sem suas considerações higiênicas sobre as habitações, PEDRO JOSÉ DE ALMEIDA procurava
determinar a escolha do lugar da casa (se em planícies, montanhas, colinas, florestas, praias, vizinhanças de rios e águas
correntes, centro de cidades ou arrabaldes, a que distância de pântanos, etc...); a técnica de construção (qualidade do terreno,
materiais, etc...); a disposição das peças da habitação (andares, assoalhos, paredes, cobertura ou telhados, dimensões,
janelas, portas, iluminação, ordem, asseio, ornatos, etc...), e assim por diante. Um outro médico, FELIPPE NERI COLLAÇO, em
sua ‘enciclopédia’ de conhecimentos indispensáveis na vida prática’, mostrava até onde ia essa intervenção. O autor pretendia
ensinar qual a maneira higiênica de organizar: a habitação (limpeza, asseio, construção, decoração, destruição de insetos,
iluminação, escolha de lustres, sofás, papel de parede).”; mais sobre o assunto em idem, p. 130.
740
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., pp. 52-53.
741
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 16: “O Presidente RODRIGUES ALVES havia adotado como um dos principais itens da
plataforma de seu governo o saneamento completo e a extinção das endemias da capital.”; e, em outra passagem: “Confessou
ao médico responsável pela higiene pública na capital paulista, seu grande amigo LUÍS PEREIRA BARRETO, quando embarcava
no trem que o levaria para assumir a presidência da República no Rio de Janeiro: ‘O meu programa de governo vai ser muito
simples. Vou limitar-me quase exclusivamente a duas coisas: o saneamento e o melhoramento do porto do Rio de Janeiro’.
Que trajédias indescritíveis se ocultavam, entretanto, por trás desse projeto supostamente modesto!” (idem, p. 39).
742
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 65: “A imagem da grade é fundamental. Nesse período seriam reformadas,
modernizadas e ampliadas as instalações presidiárias, penitenciárias, os manicômios e hospitais públicos. São grades que se
somam às dos parques e jardins urbanos e que se destinam ao mesmo fim: conter, isolar, segregar. Não foi a velha cidade que
desapareceu; foi uma outra, totalmente nova que foi imposta no meio dela; cidade de prazeres, luxo e abundância, composta
de palácios refinados, recobertos de verniz, mármore e cristal, cujo acesso era vedado aos membros da comunidade
primitiva.”
743
Não concordando que a reforma urbana tenha sido um dos motivos da revolta da vacina, CARVALHO, José Murilo de. Os
bestializados..., pp. 129-130; CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 65: “foram os philosophos infeccionistas, na verdade, que
produziram o arcabouço ideológico básico às reformas urbanas realizadas em várias cidades ocidentais na segunda metade do
século XIX e nas primeiras décadas do século XX.”
744
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 121.
112
largos”, de uma ditadura sanitária, “um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje”
745
-,
e sanitária citadina
746
- à laia de transformar o Rio de Janeiro em “vitrina” de um porto que exigia
melhorias urgentes
747
, e cujo povo, atuando como manequim de indumentária figurinista desconforme com o
cenário circundante, “não se enquadrava nos padrões europeus nem pelo comportamento político, nem pela
cultura, nem pela maneira de morar, nem pela cara”
748
, tampouco pela higiene e saúde
749
-, repita-se,
visando efetivar uma reforma urbana sanitária e, sobretudo, civilizatória
750
, mas que, ao
fundo, de acordo com FREIRE COSTA, “procurava atender, exclusivamente, ao bem estar e ao
enriquecimento da aristocracia portuguesa e do capitalismo europeu”
751
- a ponto de disciplinar
“o modo de se comportar e vestir em público”
752
, o que denota menos uma democratização que uma
aristocratização
753
-, não renunciar ao uso de força policial.
754
E nem poderia, considerado, na
visão do discurso médico-higiênico, o seu utilitarismo saneador, pois “de que adiantaria
reformar o porto e replanejar a cidade se ninguém quisesse atracar no primeiro e nem adentrar
na segunda?”
755
, em razão das doenças ali instaladas.
Força policial essa que serviria “para prevenir resistências dos moradores”
756,
757
,
“aventureiros, mestiços, negros e imigrantes pobres, que ao primeiro grito de motim forravam
745
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 145.
746
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 92-93.
747
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 40: “E de nada adiantaria reformar, ampliar e modernizar o porto, se a cidade
continuasse tolhendo a possibilidade de movimentar as suas mercadorias com rapidez, desembaraço e em grande volume. Ou
seja, o projeto de melhoramento do porto era indissociável de um outro, muito mais ambicioso, mais drástico e de terríveis
consequências sociais: o de remodelação urbana do Rio de Janeiro.”
748
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 162.
749
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 40: “Mas havia ainda um outro problema, em íntima conexão com esses dois
primeiros. A cidade era foco endêmico de uma infinidade de moléstias: febre amarela, febre tifóide, impaludismo, varíola,
peste bubônica, tuberculose, dentre outras. ...A febre amarela, em particular, manifestava toda a sua violência para com
estrangeiros e migrantes de outros estados. Sua fama era internacional, sendo o Rio de Janeiro conhecido no exterior, por sua
causa, como o ‘túmulo dos estrangeiros’.”
750
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 114: “A higiene ministrava a seu público ensinamentos que iam desde aqueles da
alçada de um engenheiro ou de um arquiteto até aqueles da competência de um mentor de etiqueta social.”; também,
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., pp. 111-112: “A mais espetacular missão urbana foi a reforma e o saneamento da
cidade do Rio de Janeiro, empreendidos pelo engenheiro PEREIRA PASSOS e pelo médico OSWALDO CRUZ, a partir de 1903.
Um novo porto foi construído, ruas foram alargadas ou abertas, centenas de casas demolidas. Uma avenida rasgou o ventre da
velha cidade colonial expulsando gente, alterando o transporte, mudando a cara da cidade. O prefeito PEREIRA PASSOS quis
ainda mudar os hábitos da população para que a cidade também nisto se parecesse com o modelo parisiense. Recolheu
mendigos, mandou tirar vacas e cães das ruas, proibiu cuspir nas ruas e dentro dos veículos. OSWALDO CRUZ, empregando as
novas descobertas da pesquisa médica e biológica, atacou a febre amarela, a peste bubônica e a varíola. Brigadas sanitárias
percorreram a cidade inspecionando, limpando, desinfetando, mandando reformar ou derrubar casas. Sua ação culminou com
a introdução da vacina obrigatória contra a varíola que levou à revolta popular de 1904. Era a euforia: o Rio civilizava-se.”
751
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 55.
752
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 118.
753
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 121.
754
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 158: “As incursões dos higienistas eram tensas, e com frequência só a ajuda policial
podia garantir o cumprimento das determinações das autoridades.”; e, CARVALHO, José Murilo de. Cidadania a porrete. In
Pontos e bordados: escritos de história e política. 2. reimpressão. Belo Horizonte: UFMG, 2005, p. 308: “Questão social era
com a polícia mesmo, era no sarrafo.”
755
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 41.
756
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 94.
757
Quanto à reforma urbana, essa não encontrou muita resistência. Sobre o assunto, veja CARVALHO, José Murilo de. Os
bestializados..., pp. 129-130: “Outra explicação atribui a razão da revolta à reforma urbana. Mas a reforma não aparece como
objeto da ira popular. ...Uma das poucas referências à reforma que nos foi possível localizar em jornal operário não é de
crítica às obras em si... O Libertário, jornal anarquista, considera as obras ‘melhoramento material de incontestável valor’....”
113
a cidade de barricadas e punham em xeque as forças do governo”
758
que, pretendendo invejar
os alienígenas, encarou aqueles como o prescindíveis ao saneamento e, em última medida,
como prefere SCHWARCZ, à civilização
759
e à nacionalização
760
, inclusive, seguindo CARVALHO,
mediante “a interferência do poder público... levada para dentro da casa
761
dos cidadãos, seu
último e sagrado reduto de privacidade”
762
- certamente, segundo CHALHOUB, em cumprimento a
determinado contrato que deixava “claro que a visita domiciliar passava a ser talvez a principal estratégia dos
higienistas para conseguir a propagação da vacina”
763
, mas, em toda medida, sendo menos incerto que “a
mudança nos métodos de atuação do poder público provocou ressentimentos”
764
-, aguçando “na
percepção da população pobre”
765
- alvo não indiferente, por excelência, da devassa sanitária
766
-, que
“a lei
767
ameaçava a própria honra do lar ao permitir que estranhos vissem e tocassem os
braços e as coxas de suas mulheres e filhas”
768
, tendo, porque “alicerçada na antipatia pelo
novo regime”
769
republicano, merecido de um estadista o epíteto de “vocação suicida”
770
da
nossa gente - que conseguiu interrompê-la -, algo impensável hoje - graças à mudança de composição
da população outrora insurgente e a ausência de motivos justificadores
771
-, época em que difundida a
vacinação, e exigida
772
nos quatro cantos
773
, ainda que para manutenção, requente-se, do
domínio do discurso médico.
Enfim, menos reflexiva ou exemplificante que interventiva, constitui a história da
medicina no Brasil - sobretudo a da varíola, a da vacinação e a da revolta contra essa -, verdadeiro
758
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., pp. 57 e 58, verbo ad verbum: “Pode-se deduzir, portanto, que a transformação do plano
urbano da capital obedeceu a uma diretriz claramente política, que consistia em deslocar aquela massa temível do centro da
cidade, eliminar os becos e vielas perigosos, abrir amplas avenidas e asfaltar as ruas.”
759
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 111: “Com relação à população negra vigorava uma visão evolucionista mas
determinista no que se refere ao ‘potencial civilizatório dessa raça’: ‘Os negros representam um exemplo de grupo
incivilizável’, afirmava um artigo público em 1891; ‘As populações negras vivem no estado mais baixo de civilização
humana’, ponderava um ensaio de 1884.”; veja, ainda, idem, pp. 112-113.
760
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 13: “Nesse como em outros casos, a mestiçagem existente no Brasil não só
era descrita como adjetivada, constituindo uma pista para explicar o atraso ou uma possível inviabilidade da nação.”
761
Sobre as vicissitudes porque passaram as residências no Brasil, socialmente falando, COSTA, Jurandir Freire. Ordem...,
passim, especialmente, p. 139: “A casa converteu-se em local permanente de inspeção de saúde, controle de doenças e
militância moral.”
762
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 91 e seguintes.
763
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 159 e 161, in verbis: “...a vacinação em domicílio tornara-se a principal estratégia do
pessoal da lanceta, chegando a representar mais de 80% das inoculações ministradas em 1898.”
764
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 179.
765
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 91 e seguintes.
766
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 95: “Tal atividade evidentemente provocou rebuliço na cidade e
perturbou a vida de milhares de pessoas, em especial os proprietários das casas desapropriadas para demolição, os
proprietários de casas de cômodos e cortiços anti-higiênicos, obrigados a reformá-los ou demoli-los, e os inquilinos forçados
a receber os empregados da saúde pública, a sair das casas para desinfecções, ou mesmo a abandonar a habitação quando
condenada à demolição.”
767
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 36: “...a lei da vacinação obrigatória” foi “votada pelo Congresso.”
768
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 91 e seguintes.
769
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 31.
770
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 106.
771
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 91.
772
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 106: “...o atestado de vacina é indispensável para quem quer estudar trabalhar ou viajar....”
773
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 106.
114
elemento componente dessa
774
, exposto num contexto de “(in)tolerância carioca e de
(des)governo da multidão no interior do movimento das políticas de domínio na sociedade
abrangente”
775
, repulsiva de qualquer tentativa de autonomia política e cultural, latente após a
extinção da escravidão. Havia, no entorno temporal estudado, “indícios sugestivos, como
mostrou JOSÉ MURILO DE CARVALHO
776
, de que a monarquia
777
gozava de popularidade
778
junto
aos afro-descendentes da cidade
779
, e que esta popularidade explicaria de certa forma alguns
atos de manifesta hostilidade da administração republicana contra os setores mais pobres
780
da
população
781
- perseguição a capoeiras
782
, bicheiros
783
, destruição de cortiços
784
etc., logo nos
774
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 167.
775
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 168.
776
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 29: “A euforia inicial, a sensação de que se abriam caminhos novos de
participação parecem não ter atingido este setor da população (capoeiras, bicheiros). Eu diria mesmo que a Monarquia caiu
quando atingia seu ponto mais alto de popularidade entre esta gente, em parte como consequência da abolição da escravidão.
A abolição deu ensejo a imensos festejos populares que duraram uma semana e se repetiram no ano seguinte, cinco meses
antes da proclamação da República.”
777
O que não equivale a patriotismo ou nacionalismo, como explica CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 239: “O
sentimento monarquista da população não significava necessariamente sentimento de brasilidade. Era antes fidelidade à
tradição monárquico-católica, de natureza religiosa e cultural antes que política. Para que se transformasse em patriotismo era
necessário que se vinculasse à figura do monarca como chefe da nação.”
778
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 176: “O trágico da situação está justamente em que o quadro formado pela
monarquia ainda guarda seu prestígio, tendo perdido sua razão de ser, e trata de manter-se como pode, não sem grande
artifício.”; e, CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., pp. 238-239.
779
Nesse sentido, CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 163: “A lealdade era possível em relação ao
paternalismo monárquico, mais de acordo com os valores da incorporação, não em relação ao liberalismo republicano.”;
também, em CARVALHO, José Murilo de. Entre..., p. 92: “Se o governo imperial contava com simpatias populares, inclusive
da população negra, era isto devido antes ao simbolismo da figura paternal do Rei do que à participação real desta população
na vida política do país.”; bem como, em CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 119; e, CHALHOUB, Sidney. Medo branco
de almas negras: escravos libertos e republicanos na cidade do Rio. In Discursos Sediciosos, Crime, Direito e Sociedade, 1°
semestre 1996, ano 1, n. 1, p. 170.
780
CARVALHO, José Murilo de. Entre..., p. 94: “As simpatias das classes perigosas do Rio de Janeiro estavam antes com a
monarquia.”; ainda, CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 155: “Era comum aparecerem portugueses e italianos
entre os presos por capoeiragem. E não só brancos pobres se envolviam. A fina flor da elite da época também o fazia.”; sobre
os membros ilustres da capoeiragem, veja, idem, pp. 155-156.
781
Certamente em razão de represália, na implícita observação feita por CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p.
30: “Permanece o fato de que os republicanos não conseguiram a adesão do setor pobre da população, sobretudo dos
negros.”; ARENDT, Hannah. Sobre..., p. 30.
782
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 18, 23 e 155: “...figura tipicamente carioca..., cuja fama já se espalhara
por todo o país e cujo número foi calculado em torno de 20 mil às vésperas da República.”, e, “único setor da população a ter
sua atuação comprimida pela República. ...Diferentemente do que se pensa, por exemplo, entre os capoeiras havia muitos
brancos e até mesmo estrangeiros. ...E não só brancos pobres se envolviam. A fina flor da elite da época também o fazia.”
783
Segundo CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 29: “O fato de a República ter favorecido o grande jogo da
bolsa e perseguido capoeiras e o pequeno jogo dos bicheiros sugere uma recepção diferente do novo regime por parte do que
poderia ser chamado de proletariado da capital.”
784
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 88: “A identificação dos cortiços como os focos geradores dos germes da febre amarela
foi fato de enorme significado simbólico e político.”; por outro lado, enquanto alguns consideram os cortiços uma forma de
estalagem, outros entendem-nos diferentes, devendo, para tanto, ser consultado idem, p. 38 e, textualmente a seguir, p. 88:
“...a tendência era considerar como tal qualquer habitação que, segundo os padrões instáveis dos sanitaristas, fosse vista
como imunda e apinhada de gente. Na realidade, logo que concluíram que a febre amarela era originária dos cortiços, os
higienistas iniciaram a luta para ampliar ao máximo a abrangência do conceito de cortiço.”; sobre os cortiços em si, veja
idem., pp. 26, 31 e 88: “A proliferação dos cortiços na cidade do Rio se deu a partir das décadas de 1850 e 1860. ...‘o preço
elevadíssimo das casas nesta Capital deu lugar à fundação de moradas, conhecidas pelo nome muito significativo de cortiços,
onde em pequenos quartos habita uma grande população das classes menos abastadas, como é sabido’. O aumento nos preços
dos aluguéis para as ‘classes menos abastadas’ estava certamente ligado às transformações na demografia urbana no Rio no
período...: o crescimento do fluxo imigratório de portugueses, o aumento do número de alforrias de escravos, e a prática cada
vez mais comum de permitir que os cativos residissem ‘sobre si’.”; ainda, CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p.
80: “O que o surto de antilusitanismo do início da República acrescentou foi a queixa contra o controle de prédios de aluguel,
especialmente das habitações coletivas, incluídos aí os cortiços.”
115
primeiros anos da República”
785
-, todos alvos já colimados quando do combate à febre
amarela
786
, início, quiçá, do nosso etiquetamento
787, 788
mediante um rótulo que tempos
os identificava como farinha do mesmo saco
789
ou, tecnicamente, e de forma igualmente
indistinta, vacinophobos, e que não se ruborizava ao reeditar em terra as mesmas condições
vergonhosas dos navios, outrora tidos como responsáveis pelas doenças que assolaram nossos
antepassados. Além desses, referida popularidade explicaria, ainda, “a reação popular
790
contra ações aparentemente benéficas do governo republicano, como a luta contra a vacina
obrigatória em 1904, por exemplo, sem dúvida o caso mais notório”
791
, e violento
792
, também
por deixar, provavelmente
793
, 23 mortos e 67 feridos
794
- mas, não mais que as revoltas parisientes
do século XIX
795
, mormente em razão da fragmentação
796
da população, ocasionada, antropologicamente, pela
785
CHALHOUB, Sidney. Medo..., p. 170.
786
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 152.
787
Em rubrica a um dos capítulos de seu livro, nomina SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 54: “3. O processo de segregação:
agonia.”
788
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 18: “...tais pessoas eram as que mais compareciam nas estatísticas
criminais da época, especialmente as referentes às contravenções do tipo desordem, vadiagem, embriaguez, jogo. Em 1890,
estas contravenções eram responsáveis por 60% das prisões de pessoas recolhidas à Casa de Detenção.”
789
Sobre o assunto, veja ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p.
46: “Os atos mais grosseiros cometidos por pessoas sem acesso positivo à comunicação social acabam sendo divulgados por
esta como os únicos delitos e tais pessoas como os únicos delinquentes. A estes últimos é proporcionado um acesso negativo
à comunicação social que contribui para criar um estereótipo no imaginário coletivo. Por tratar-se de pessoas desvaloradas, é
possível associar-lhes todas as cargas negativas existentes na sociedade sob a forma de preconceitos, o que resulta em fixar
uma imagem pública do delinquente com componentes de classe social, étnicos, etários, de gênero e estéticos. O estereótipo
acaba sendo o principal critério seletivo da criminalizçaão secundária; daí a existência de certas uniformidades da população
penitenciária associadas a desvalores estéticos (pessoas feias), que o biologismo criminológico considerou causas do delito
quando, na realidade, eram causas da criminalização, embora possam vir a tornarem-se causas do delito quando a pessoa
acabe assumindo o papel vinculado ao estereótipo (é o chamado efeito reprodutor da criminalização ou desvio secundário).”
790
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 98: “Durante a discussão (da lei), várias listas de assinaturas contra a
obrigatoriedade foram enviadas ao Congresso... Ao todo, umas 15 mil pessoas assinaram. Cerca de 10 mil o fizeram dizendo-
se operários, em listas organizadas por empresas ou por associações operárias.”
791
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 29 a 31; bem como CHALHOUB, Sidney. Medo..., p. 170.
792
Sobre o porquê desse adjetivo, além de como é lamentável como as coisas se repetem, pois, qualquer semelhança com os
atuais incendiários de ônibus na capital fluminense não é mera coincidência, tampouco recalque lombrosiano, advirta-se, veja
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 103-104, especialmente quando refere, à página 104, que: “O dono de um
armazém da rua do Hospício foi preso, acusado de fornecer querosene e dinheiro aos queimadores de bondes.”; enquanto
(idem, p. 134), foi ainda mais remoto: “Nova quebra de bondes deu-se em 1901. ...No dia 15 de junho, 26 bondes da Cia.
foram assaltados e queimados.”
793
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 9: “Nunca se contaram os mortos da revolta da vacina. Nem seria possível, pois
muitos... foram morrer bem longe do palco dos acontecimentos. Seriam inúmeros, centenas, milhares, mas é impossível
avaliar quantos.”
794
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 118; já CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 97: “O saldo da refrega,
segundo os jornais da época: 23 mortos, dezenas de feridos, quase mil presos....”
795
A contabilidade da violência de ambas as cidades pode ser encontrada em CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados...,
p. 126.
796
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 138: “...os consumidores de serviços públicos acertaram velhas contas
com as Cias.; os produtores mal pagos fizeram o mesmo com as fábricas; a classe popular dos aventurosos e belicosos, como
os chamou VICENTE DE SOUZA, retomou em dimensões mais heróicas seu combate cotidiano com a polícia. E todos os
cidadãos desrespeitados acertaram as contas com o governo. Era a revolta fragmentada de uma sociedade fragmentada. De
uma sociedade em que a escravidão impedira o desenvolvimento de forte tradição artesanal e facilitara a criação de vasto
setor proletário. A fragmentação social tinha como contrapartida política a alienação quase completa da população em relação
ao sistema político que não lhe abria espaços.”; e, em outra ocasião (idem, p. 145): “Epítome dos movimentos de massa da
época, a revolta da vacina mostrou claramente o aspecto defensivo, desorganizado, fragmentado, da ação popular.”
116
essência dos nossos colonizadores ibéricos
797
e pela nossa pretérita escravidão
798
, mas, sobretudo, pela
ausência, em nossa população, de uma “ética individualista associativa”
799
, aliada à característica da capital
fluminense como cidade consumidora
800
-, bem como, finalmente, serviria de explicação para a
demolição da cortiçaria
801
na intenção de “melhorar as condições
802
de vida nos cortiços
existentes, fazendo com que ‘esses lugares’ deixassem de ser ‘focos de enfermidadas’”
803
, e
de morredouros de alienígenas - encorajando, com isso, a entrada de imigrantes que suavizariam a
transição entre o trabalho escravo e o livre
804
, mais barato que aquele
805
, admitidas discordâncias
806
-,
embora o tempo tenha mostrado que “ele [o governo republicano] tinha razão”
807, 808
nesse seu
projeto talvez mal conduzido
809
- mas, muito mais mal intencionado, pois sua estrutura serviria, ao final,
797
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 33: “A falta de coesão em nossa vida social não representa, assim, um
fenômeno moderno.”
798
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 125.
799
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 59: “O que sobretudo nos faltou para o bom êxito desta e de tantas outras
formas de labor produtivo foi, seguramente, uma capacidade de livre e duradoura associação entre os elementos
empreendedores do país.”; também, CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 151-152.
800
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 152.
801
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 88: “Quanto aos cortiços... o sonho era demoli-los a todos.”
802
Era contraditório que, naquela época, a demolição da cortiçaria se arrimasse nas condições ambientais desses lugares
quando, por outro lado, imaginava-se que, ao menos quanto à varíola, aquelas eram irrelevantes. Para tanto, veja CHALHOUB,
Sidney. Cidade..., p. 177: “Quanto à varíola, os esculápios pensavam que ela tinha características constantes, o que tornava os
seus assaltos independentes de variações ambientais ou de predisposições individuais dos sujeitos.”; embora, em outra das
suas passagens, diga-nos idem, p. 178, citando CHERNOVIZ, Pedro Luiz Napoleão. Dicionário de medicina popular. 6. ed.
Paris: 1890, verbete “bexiga”, que: “As causas das bexigas não são conhecidas; só se sabe que esta moléstia se comunica não
só pelo contato, pela simples aproximação, mas até pela habitação nos mesmos lugares.”
803
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 32 e 51, lembrando as palavras vasadas na tese de doutoramento de BARATA RIBEIRO:
“Compreende-se desde logo o papel que representam na insalubridade da cidade estas habitações, quando nos lembrarmos
que além de todas as funções orgânicas dos seres que o povoam, no cortiço lava-se, engoma-se, cozinha-se, criam-se aves,
etc.”
804
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 89-90.
805
CARVALHO, José Murilo de. Escravidão..., pp. 39 e 50: “O primeiro a fazer cálculos completos comparando a rentabilidade
dos dois tipos de trabalho talvez tenha sido BENJAMIN FRANKLIN. Concluiu ele, em 1755, que, nos Estados Unidos, o trabalho
do escravo era mais caro do que o do imigrante europeu. Mais tarde, ADAM SMITH daria a essa tese a autoridade de seu nome,
embora não condenasse a escravidão como matéria e princípio. ...A posse do escravo leva ao desperdício. Causa raiva ou
riso, diz JOSÉ BONIFÁCIO, ver vinte escravos transportarem vinte sacas de açúcar, tarefa que uma carreta com dois bois
poderia facilmente executar. Vinte enxadas nas mãos de vinte escravos poderiam ser substituídas por um arado. Embora sem
fazer cálculos precisos de custos, como os de BENJAMIN FRANKLIN, JOSÉ BONIFÁCIO sugere que os lucros dos senhores
deveriam ser muito menores do que o por eles imaginado.”; além de CARVALHO, José Murilo de. As batalhas da abolição. In
Pontos e bordados: escritos de história e política. 2. reimpressão. Belo Horizonte: UFMG, 2005, p. 66: “...o trabalho escravo,
comparado ao trabalho livre das sociedades de mercado, era improdutivo, continha elementos de irracionalidade e impedia o
desenvolvimento tecnológico. Era improdutivo porque o escravo não tinha motivação para trabalhar, era irracional porque o
escravo tinha que ser mantido mesmo nos momentos em que seu trabalho não era necessário; era obstáculo ao avanço
tecnológico porque o escravo era incapaz de operar máquinas complexas. Daí constituir a escravidão um sistema produtivo
condenado a desaparecer por obsoleto frente às forças do mercado que a partir dos países centrais expandiam sua supremacia
pelo mundo.”
806
CARVALHO, José Murilo de. As batalhas..., pp. 67-68: “Pesquisas mais recentes têm colocado em séria dúvida a posição
desses autores. Estudos empíricos cuidadosos sobre a escravidão, tanto nos Estados Unidos, como no Brasil e no Caribe, têm
demonstrado que até seus anos finais o sistema escravista se mostrava lucrativo, que o comportamento dos proprietários de
escravos era perfeitamente racional e que certo avanço tecnológico era compatível com o trabalho escravo. ...Todos visavam
ao maior lucro possível. Cálculos feitos para a província do Rio mostram que os proprietários não estavam equivocados, que,
mesmo nas regiões consideradas decadentes do Vale do Paraíba, a produção de café com mão de obra escrava era ainda o
melhor investimento.”
807
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 106.
808
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 34.
809
Em sentido aparentemente contrário, parecendo elogioso quanto ao projeto de reurbanização, SEVCENKO, Nicolau. A
revolta..., pp. 58-59: “E, com efeito, a medida mostrou-se adequada: a revolta da vacina foi o último motim urbano clássico
117
como apontamento, mediante uma fácil detecção, de “toda a multidão de humildes, dos mais variados matizes
étnicos, que constituíam a massa trabalhadora, os desempregados, os subempregados e os aflitos de toda
espécie que povoavam a cidade”
810
-, porquanto “com o agravamento da crise habitacional na
Corte nas décadas de 1870 e 1880 - devido à migração interna e à chegada de imigrantes, especialmente
portuguess destinados ao setor comercial da capital -, a densidade populacional nos cortiços parece
ter aumentado ainda mais”
811
e, não sem coincidência, a partir de meados daqueles anos
oitentas, reorganizou-se o serviço de vacinação
812
, estribando-o sobre o seguinte tripé:
“primeiro, aprofundara-se a convicção de que os principais locais de cerco aos vacinophobos
eram as habitações coletivas; segundo, vencer aos poucos a idéia da vacinação a domicílio...;
terceiro, fez-se o esforço, afinal bem-sucedido, de introduzir a vacina animal (cowpox) no país,
solucionando-se assim problemas técnicos que vinham comprometendo a eficiência da vacina
havia décadas.”
813
De sorte que, “hoje que estamos praticamente livres do flagelo e que estamos forros
para apontar como que uma responsabilidade pessoal para cada caso esporádico que explode
de quando em vez
814
, podemos acrescentar mais algumas palavras à frase do eminente
higienista: tem varíola quem quer - e quando e onde a administração pública o
consente
815
, sendo atribuíveis a ela todas as falhas ocorrentes, sobretudo a partir do momento
em que o Estado assumiu para si a proteção da saúde do indivíduo, e o discurso médico
formal-oficial, de seu lado, elegeu-se hegemônico e único competente.
Ora, como é de sabença cediça, quem assume o discurso, deve ser eloquente!
2.5 O contingenciamento de mão de obra e o embranquecimento da população,
via medicina
Quem se debruçar sobre a história médica e a realidade marginal no Brasil perceberá
que nem toda a medicina estava voltada para a ampliação do poder punitivo
816
, sobretudo
estatal, havendo aqueles que, a contrario sensu, pugnavam pela sua retração
817
, embora,
infelizmente, muitos destes, quanto daqueles, pendulavam entre aumento e diminuição
punitivos consoante uma menor ou uma maior necessidade do mercado por mão de obra - com
do Rio de Janeiro. Se o remédio foi eficaz, o diagnóstico foi exemplar. Esse processo de reforma urbana foi saudado com
entusiasmo pela imprensa conservadora, que a denominou de ‘a Regeneração’.”
810
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 59.
811
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 88.
812
Sem qualquer contradição, CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 157: “O serviço de vacinação passou por um período de crise
aguda na segunda metade dos anos 1880... Nos primeiros anos do regime republicano, houve muita atividade e muita
confusão no serviço de vacinação - o que de resto não surpreende naqueles anos conturbados.”
813
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 156.
814
Conforme antecipado acima, desde 1977 não se detectam mais casos de varíola no mundo.
815
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 106.
816
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 251: “Isso não pode deixar de ser visto como um avanço de ideologias
repressivas e, portanto, ‘de direita’ ou conservadoras.”
817
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 251.
118
os excedentes fiscalizados e controlados, outrora, pela censitária e repressora Inspetoria de Higiene
818
-,
podendo-se afirmar que hoje, assim como ontem, um ainda que velado higienismo mantém-se
como arma poderosa disponível à mão tanto de conservadores quanto de reacionários
819
,
mesmo que sob a bandeira das preocupações sociais
820
- e o problema da dengue neste século XXI é
exemplo inescondível disso -, haja vista que, para o discurso médico, o capitalismo e o Estado
seriam vistos como cura ou doença a partir dos “parâmetros ideológicos de julgamento.”
821
E, como a ampliação, ou criação, de justificativa para o discurso higiênico não afasta a
anterior, mantendo-se com ela, ao revés, compatível, inclusive ratificando sua conveniência, o
discurso médico dirigido aos pobres e doentes recrudescia a cada expansão ou nova
solicitação da intervenção médica.
Portanto, ainda que em menor medida a medicina tenha incidido sobre as elites
822
, foi
sobre os pobres - senão, também, com um mote racista, sobre os afro-descendentes, como adverte
SCHWARCZ
823
-, que ela exerceu um controle demográfico-policial mais intenso, permitindo “a
proliferação e a liberação de uma mão de obra politicamente dócil para o livre jogo do
mercado de trabalho.”
824
A medicina, então, foi e é a grande válvula que, respectivamente,
regulava e continua regulando a permanência dos que interessam ao mercado de trabalho e
dos que desinteressam a esse, independentemente da condição pessoal de nele estar-se
inserido ou mesmo da vontade de a ele se integrar. Infelizmente, essa é uma das suas grandes
contribuições, mas, certamente, a menos feliz de todas.
Por outro lado, o contraponto igualmente tecnológico, tecnológico no sentido médico,
obviamente, por trás de onde se esconde a programação higienizadora primária de que falei
acima, estava vazado, como visto, na “idéia de que uma cidade pode ser apenas
818
BATISTA, Vera Malaguti. Cuidado: os higienistas estão voltando! In Discursos Sediciosos, Crime, Direito e Sociedade, 2°
semestre 1996, ano 1, n. 2, p. 306.
819
Posição dúbia que pode ser perscrutada neste pequeno trecho de TEIXEIRA, Julius Martins. O homem síntese: crime e
loucura. In Discursos Sediciosos, Crime, Direito e Sociedade, 2° semestre de 1996, ano 1, n. 2, p. 143: “A reforma
psiquiátrica, no Brasil, precisa avançar mais do que este sociologismo crítico e superficial contra os asilos. Essa estratégia
comete o erro de induzir à progressiva desativação de leitos públicos e favorecendo, consciente ou inconscientemente, a
psiquiatria organicista massificante ainda adotada nas inúmeras clínicas privadas conveniadas, onde a população pobre é
reduzida a mero objeto de lucro. Nesse rumo a reforma psiquiátrica acaba reforçando, paradoxalmente, os pilares do projeto
neoliberal cujo fulcro é moldado na própria exclusão dos segmentos menos favorecidos da população.”
820
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 253.
821
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 254.
822
Ainda que para época específica, COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 69: “Poder-se-ia pensar... que a higiene tinha como
alvo a família pobre. Contudo, a maioria das teses em absoluto confirmaria esta hipótese. No sistema escravagista do séc.
XIX, seria quase ingênuo imaginar que as preocupações dos higienistas se voltassem para as famílias dos desclassificados da
ordem social. O discurso médico tinha endereço certo. Ele se dirigia à família de elite, letrada, que podia educar os filhos e
aliar-se ao Estado.”
823
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 18: “Em meio a um contexto caracterizado pelo enfraquecimento e final da
escravidão, e pela realização de um novo projeto político para o país, as teorias raciais se apresentavam enquanto modelo
teórico viável na justificação do complicado jogo de interesses que se montava. Para além dos problemas mais prementes
relativos à substitução da mão de obra ou mesmo à conservação de uma hierarquia social bastante rígida, parecia ser preciso
estabelecer critérios diferenciados de cidadania.”
824
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 52.
119
‘administrada’, isto é, gerida de acordo com critérios unicamente técnicos e científicos
825
:
trata-se da crença de que haveria uma racionalidade extrínseca às desigualdades sociais
urbanas, e que deveria nortear então a condução não-política, ‘competente’, ‘eficiente’, das
políticas públicas.”
826
Por , andaram-se misturando duas funções do Estado, uma repressiva e outra
pseudopaternalista
827
, todas prejudiciais à população excluída que não ganhava em cidadania,
obtendo, no máximo, aquilo que MURILO DE CARVALHO preferiu chamar de estadania, i. e., “a
incorporação ao sistema político pelo envolvimento na malha crescente da burocracia
estatal.”
828
Muito bem. Ensina BOURDIEU que,
“os fundadores da República, no século XIX, diziam, esquece-se disso, que o fim da instrução não
é unicamente saber ler, escrever, contar para poder ser um bom trabalhador, mas também dispor
dos meios indispensáveis para ser um bom cidadão, para estar em condição de compreender as
leis, de compreender e defender seus direitos, de criar associações sindicais... é preciso trabalhar
pela universalização das condições de acesso ao universal.”
829
De outro lado, narra BRETAS que
“a estrutura social do Rio de Janeiro no final do século XIX experimentava a visível
desorganização de seu modelo tradicional. O fim da escravidão e a mudança do regime político
provocavam uma necessidade de redefinir as fontes de autoridade, e de estabelecer novos papéis
que incorporassem os antigos escravos
830
e os imigrantes. Vindos das mais diversas culturas,
estes grupos”
- ao revés de antes, quando a relação era de hierarquia entre dono e propriedade
831
-, “tinham
comportamentos que entravam em conflito” - ficando sugerida, aqui, uma “rivalidade”, na acepção
que dela nos dá conta BUARQUE DE HOLANDA
832
-, “e era necessário estabelecer novas formas de
regulação. O medo da desorganização social se refletia no pensamento da elite, que se
825
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 44: “...haveria critérios objetivos, ‘científicos’, que poderiam nortear as medidas da
administração pública nessa área.”
826
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 19-20.
827
Oportuno, BATISTA, Nilo. A lei..., p. 20.
828
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 127.
829
BOURDIEU, Pierre. Sobre..., p. 96.
830
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 55: “Porque, diz a ordem de d. JOÃO V, “o defeito de ser pardo não obsta para
este ministério e se repara muito que vós, por este acidente, excluísseis um bacharel formado promovido por mim para
introduzirdes e conservardes um homem que não é formado, o qual nunca o podia ser por lei, havendo bacharel formado.”
831
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 55: “Com frequência as suas relações com os donos oscilavam da situação de
dependente para a de protegido, e até de solidário e afim. Sua influência penetrava sinuosamente o recesso doméstico, agindo
como dissolvente de qualquer idéia de separação de castas ou raças, de qualquer disciplina fundada em tal separação. Era
essa a regra geral: não impedia que tenham existido casos particulares de esforços tendentes a coibir a influência excessiva do
homem de cor na vida da colônia, como aquela ordem régia de 1726, que vedava a qualquer mulato, até à quarta geração, o
exercício de cargos municipais em Minas Gerais, tornando tal proibição extensiva aos brancos casados com mulheres de cor.
Mas resoluções como essa - decorrente, ao que consta, da conjuração dos negros e mulatos, anos antes, naquela capitania -
estavam condenadas a ficar no papel e não perturbavam seriamente a tendência da população para um abandono de todas as
barreiras sociais, políticas e econômicas entre brancos e homens de cor, livres e escravos.”
832
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., pp. 60-61: “Tanto a competição como a cooperação são comportamentos
orientados, embora de modo diverso, para um objetivo material comum; é, em primeiro lugar, sua relação com esse objetivo
o que mantém os indivíduos respectivamente separados ou unidos entre si. Na rivalidade, ao contrário, como na prestância, o
objetivo material comum tem significação praticamente secundária; o que antes de tudo importa é o dano ou o benefício que
uma das partes possa fazer à outra.”
120
inspirava no pensamento social e científico europeu do período, extremamente preocupado
com a degeneração
833
e a desordem expressos em formas de comportamento urbano.”
834
Por
isso mesmo, nem tão injustificado assim o receio de JOSÉ DE ALENCAR, quando disse que
“a abolição, feita antes que os brancos tenham grande superioridade numérica, seria... um
suicídio. No Brasil, diz ele, um terço da população é escrava (um exagero); nas seis províncias de
maior concentração, talvez a metade da população seja escrava (outro exagero). A população livre
não tem condições de conter o contingente escravo. Rompido o respeito imposto pela escravidão,
teremos a guerra social, de todas a mais rancorosa e medonha.”
835
Injustificado em parte porque, de outro lado,
“os escravos o eram máquinas nem animais. Reagiam, sistematicamente, à situação em que se
viam. Revoltas, fugas e assassinatos eram as noções mais espetaculares desta reação. Mas nem de
longe eram as mais frequentes e talvez nem mesmo as mais importantes. As condições de trabalho
eram constantemente negociadas com os proprietários. No Brasil o caso, raro mas revelador,
de uma verdadeira proposta de um pacto escrito feita por escravos a seu senhor. Aspectos das
relações de trabalho e da vida escrava em geral, como a chamada brecha camponesa, os dias de
descanso, o pecúlio, as festas, mesmo o pagamento de pequeno salário, tudo era objeto de pressão
escrava e de negociação com os donos.”
836
Então, durante a escravatura, precisavam os médicos higienistas resolver o problema
do afro-descendente escravo, reenquadrando-o na nova sistemática social empreendida pela
medicina, sem que, para isso, fossem-lhe concedidos quaisquer direitos, ad instar daqueles do
contrato social. Usufruindo, convenientemente, sua existência como ser aproveitável ao
talante caprichoso do seu dono, taticamente passou o afro-descendente escravo, mediante
manejo médico - que o considerou um “fantoche”
837
-, informa FREIRE COSTA, “de animal’ útil ao
patrimônio e à propriedade” a “‘animal’ nocivo à saúde.”
838
Após a proclamação da
independência, e aqui se volta um pouco no tempo, a partir de onde se começou a formar um
país realmente, a luta pela abolição da escravatura
839
- em que também não deixaram de contribuir
razões cristãs
840
, filosóficas
841
e antieconômicas
842
-, precisou mudar o enfoque, pois seu peso sobre
833
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 251: "A raça negra era inferior, e os mulatos, conforme afirmavam AGASSIZ,
GOBINEAU, GUSTAVE LE BOM, eram produtos degenerados.”
834
BRETAS, Marcos Luiz. O informal..., p. 215.
835
ALENCAR, José de. Ao Imperador: novas cartas políticas de Erasmo. Rio de Janeiro: Tipografia de Pinheiro, 1867 apud
CARVALHO, José Murilo de. Escravidão..., pp. 54-55.
836
CARVALHO, José Murilo de. As batalhas..., p. 69; por outro lado, COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 126, nota 95:
“...fruto do mais puro racismo, que divulgou a idéia de que o negro era submisso e conformista por natureza.”
837
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 126.
838
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 121.
839
Sobre alguns porquês da abolição, veja HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 74. Sobre sua dimensão, e função como
marco divisor (idem, p. 171): “Perto dessa revolução, a maioria de nossas agitações do período republicano, como as suas
similares das nações da América espanhola, parecem simples desvios na trajetória da vida política legal do Estado
comparáveis a essas antigas ‘revoluções palacianas’, tão familiares aos conhecedores da história européia.” Sobre o corolário
dela, veja CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 16: “A abolição lançou o restante da mão de obra escrava no
mercado de trabalho livre e engrossou o contingente de subempregados e desempregados. Além disso, provocou um êxodo
do Rio e um aumento na imigração estrangeira, especialmente de portugueses.”
840
CARVALHO, José Murilo de. As batalhas..., p. 7: “...a abolição era vista pela elite política como um fim em si, como a
libertação do País da obrigação de carregar um fardo incômodo perante o Ocidente cristão.”
841
CARVALHO, José Murilo de. Escravidão..., p. 49.
842
CARVALHO, José Murilo de. Escravidão..., p. 50; bem como em CARVALHO, José Murilo de. As batalhas..., p. 66: “O fim
da escravidão moderna era, então,... algo inevitável, consequência da expansão do capitalismo nas regiões escravistas.”
Embora, mais à frente, retomando o assunto afirme, que (idem, p. 68): “Conclui-se da nova historiografia que o fim da
121
o ombro dos cidadãos passou a ser percebido - quando se descobriu, outrossim, que “o lucro da
escravidão era ilusório
843
-, como entrave - o maior deles -, à constituição da nação mesma
844
, de
sorte que o grante mote da abolição não foi... a filantropia....; foi, segundo Nabuco, a razão
política.
845
Em outros termos, foi a razão nacional de José Bonifácio.”
846
com a abolição da escravatura - e a consequente transferência do centro gravitacional social
do domínio rural para o urbano
847
-, explica GIZLENE NEDER, “a emergência do individualismo
conduziu à idéia do mérito pessoal e provocou uma mudança na idéia de trabalho”
848
, equação
que foi negativamente influenciada por um quase que incontinenti desequilíbrio
849
- acentuado
a partir de 1889 -, imposto pelo fato de que, na lição de MURILO DE CARVALHO, “uma vez
libertado, o negro foi abandonado pelo governo, abandono que se acentuou com a República,
cujos valores se aproximavam mais do darwinismo
850
social do que do paternalismo
monárquico”
851
, o que ofereceu consequências indeléveis na ratificação do domínio do poder -
facilitado por um regime de governo que “não tinha povo”
852
-, porquanto,
“apesar da abolição da escravidão, a sociedade caracterizava-se por desigualdades profundas e
pela concentração do poder. Nestas circunstâncias, o liberalismo adquiria um caráter de
consagração da desigualdade, de sanção da lei do mais forte.
853
Acoplado ao presidencialismo, o
escravidão nos vários países não se deveu simplesmente à ação de forças macrossociais, não se deveu apenas ao avanço da
sociedade de mercado. O fim da escravidão foi essencialmente um fenômeno político que dependeu da ação de forças
políticas seja de dentro, seja de fora do sistema.”
843
CARVALHO, José Murilo de. Escravidão..., p. 51.
844
CARVALHO, José Murilo de. Escravidão..., p. 48.
845
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 123: “A condenação médica à escravidão fundamentava-se nas mesmas razões da
crítica política....”
846
CARVALHO, José Murilo de. Escravidão..., p. 57.
847
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 172.
848
Ao menos uma mudança legal, embora a mantença fática da situação anterior fosse evidente, conforme se infere de
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 56: “Os pretos e descendentes de pretos, esses continuavam relegados, ao menos
em certos textos oficiais, a trabalhos de baixa reputação, os negro jobs, que tanto degradam o indivíduo que os exerce, como
sua geração.”; sobre parte do contexto histórico da época, veja FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens..., p. 200: “No
momento em que estava para ser abolida a escravidão, o contingente da população livre e pobre não chegara realmente a ser
expropriado dos meios de produção: havia sido privado da propriedade da terra, mas não de seu uso.”
849
CARVALHO, José Murilo de. Entre..., p. 92: “Os abolicionistas mais lúcidos, os reformistas monárquicos, tinham proposto
medidas nesta direção, como a reforma agrária e a educação dos libertos. Mas no curto período de um ano que mediou entre a
Abolição e a República nada foi feito, pois o governo imperial gastou quase toda a sua energia resistindo aos ataques dos ex-
proprietários de escravos que não se conformavam com a abolição sem indenização.”
850
Sobre o assunto, veja SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., pp. 18, 42, 58, 60 e 65: “Do darwinismo social adotou-se o
suposto da diferença entre as raças e sua natural hierarquia, sem que se problematizassem as implicações negativas da
miscigenação. Das máximas do evolucionismo social sublinhou-se a noção de que as raças humanas não permaneciam
estacionadas, mas em constante evolução e ‘aperfeiçoamento’, obliterando-se a idéia de que a humanidade era uma.
Buscavam-se, portanto, em teorias formalmente excludentes, usos e decorrências inusitados e paralelos, transformando
modelos de difícil aceitação local em teorias de sucesso. ...Introduzido de forma crítica e seletiva, transforma-se em
instrumento conservador e mesmo autoritário na definição de uma identidade nacional (VENTURA, 1988:7) e no respaldo a
hierarquias sociais já bastante cristalizadas. ...Denonimada ‘darwinismo social’ ou ‘teoria das raças’, essa nova perspectiva
via de forma pessimista a miscigenação, já que acreditava que ‘não se transmitiriam caracteres adquiridos’, nem mesmo por
meio de um processo de evolução social. Ou seja, as raças constituiriam fenômenos finais, resultados imutáveis, sendo todo
cruzamento, por princípio, entendido como erro. As decorrências lógicas desse tipo de postulado eram duas: enaltecer a
existência de ‘tipos puros’ - e portanto não sujeitos a processos de miscigenação - e compreender a mestiçagem como
sinônimo de degeneração não só racial como social.”; ainda, ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 242.
851
CARVALHO, José Murilo de. As batalhas..., p. 78.
852
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 120.
853
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., pp. 244-245.
122
darwinismo
854
republicano tinha em mão os instrumentos ideológicos e políticos para estabelecer
um regime profundamente autoritário”
855
,
pois a modernidade, que para o nosso povo de então, ainda segundo aquele escritor, “era
alérgica”, consagrou nesse novo regime governamental “as teorias racistas, consideradas
avanços da ciência”, difundindo “a descrença na capacidade da população negra e mestiça
para a civilização.”
856
Teorias racistas essas cujo aporte tardio
857
foi compensado por uma
“entusiasta acolhida, em especial nos diversos estabelecimentos científicos de ensino e
pesquisa”, lugares impressionantes de adestramento, e “que na época se constituíam enquanto
centros de congregação da reduzida elite pensante nacional”, como sustenta SCHWARCZ.
858
Em outras palavras, leciona CHALHOUB, embora
“o desmoronar da escravidão e da política de produção de dependentes
859
foi [tenha sido] em
grande parte obra deles, escravos e homens livres pobres... à vitória se seguiu a experiência
histórica de derrota de qualquer perspectiva de mudança na lógica perversa de uma sociedade
cujo sentido essencial continuava a ser a naturalização das diferenças e a reprodução das relações
sociais desiguais”,
é dizer “ao contrário dos amos e senhores às diligências policiais, dos escravos às ‘classes
perigosas’, do domínio senhorial da coisa pública à coisa pública dominada pelo racismo
científico, o que se via era a construção da nova arena da luta de classes, a invenção dos
novos significados sociais gerais que iriam instituir o lugar dos conflitos numa sociedade sem
mudança.”
860, 861
Passadas a “objetos de ciência”, as classes perigosas”, como repete SCHWARCZ,
tiveram suas diferenças e inferioridades dissecadas, expostas e justificadas cientificamente.
862
I. e., para arrematar, “ao libertar-se, o negro permaneceu dentro desta sociedade que não tinha
lugar para as idéias de igualdade e de liberdade. Ele não podia fugir para fora desta sociedade.
854
Sobre as consequências do discurso evolucionista, veja SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 28.
855
CARVALHO, José Murilo de. Entre..., p. 93.
856
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 120.
857
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 41: “...quando chega ao Brasil, a ‘bossa racial’ vivia na Europa um claro
processo de descrédito, o que em si já indica uma apropriação tardia.”
858
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 14.
859
Mas, antes disso, o caminho era inverso, conforme COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 36: “A família escrava foi
destruída pela violência física e a dos homens livres pobres, pela corrupção, pelo favor e pelo clientelismo.”
860
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 179.
861
Menos dramático, embora comentando situação pior, CARVALHO, José Murilo de. As batalhas..., pp. 72-73: “Quem fugia
para o Rio, por exemplo, fugia para o coração da sociedade brasileira. E o que era esta sociedade? Certamente, estava longe
de ser um quilombo português. Pelo contrário. Ela reproduzia, se não reforçava, valores metropolitanos que se ligavam ao
sentido de hierarquia, de desigualdade, de obediência. Era uma sociedade em que, mesmo entre a população livre, havia
pouca noção, e nenhuma prática, dos direitos individuais, da cidadania. Ao escapar da escravidão pela fuga ou pela
libertação, o ex-escravo brasileiro fazia uma transição muito menos dramática do que o ex-escravo sulista nos Estados
Unidos. Ele apenas subia um degrau na extensa hierarquia social. ...A distância entre escravidão e liberdade era no Brasil
apenas um degrau, embora importante, na hierarquia social.”
862
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 28.
123
A escravidão desapareceu, foi abolida, mas as características hierárquicas e autoritárias da
sociedade permaneceram.”
863
Como o exercício do poder pressupõe, quase sempre, um planejamento e uma visão do
porvir, parece evidente que os oradores dominantes, antevendo as consequências da
abolição da escravatura, prepararam o terreno para, inobstante ela, manterem aquela
dominação discursiva que migrou do corpo social para o natural. Daí, dizerem ZAFFARONI,
BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, que
“no próprio ano da abolição, a Câmara dos Deputados votava um projeto de criminalização da
vadiagem - com privação da liberdade até 3 anos para reincidentes -, tentando exorcizar os medos
da conjuntura: no campo, ‘hordas’ de libertos que vagariam pelas estradas a furtar e a
rapinar’
864
, nas palavras de um parlamentar, e, na cidade, as maltas de capoeiras
865
e todos
aqueles pobres desocupados dos balcões comerciais ou não admitidos na disciplina fabril.
866
No
discurso deste novo sistema penal, a inferioridade jurídica do escravismo será substituída por
uma inferioridade biológica
867
; enquanto a primeira, a despeito de fundamentos legimantes
importados do evolucionismo, podia reconhecer-se como mera decisão de poder, a segunda
necessita de uma demonstração científica.”
868
Demonstração científica essa que buscou ancoradouro seguro no discurso médico - pau
para toda obra -, mas, também, em outros não menos seguros, como o discurso político, embora
863
CARVALHO, José Murilo de. As batalhas..., p. 79.
864
Parece que a defesa da propriedade, há tempos, tem esse absurdo efeito criminológico. Se não, dialogando sobre a
Reforma e a Contrarreforma, e os resultados absolutistas envolvidos na discussão, veja o que narra ANITUA, Gabriel Ignácio.
Histórias..., p. 96: “Isso seria notável em relação à repressão das classes populares e na defesa da propriedade, como está
exemplificado no livreto de LUTERO contra os bandos de camponeses ladrões e assassinos, de 1525, escrito para justificar a
matança dos camponeses e a tortura e execução de THOMAS MÜNTZER (1490?-1525) e para defender a autoridade das igrejas
e Estados ameaçados por esses camponeses.”
865
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 21: “A crise da escravidão não modificaria o quadro de defasagem entre oferta e procura
de mão de obra. Pelo contrário, este quadro seria agravado, à medida que o contingente de mão de obra disponível na cidade
do Rio de Janeiro tendesse a aumentar, não só pela permanência do ex-escravo, como também pelo advento de muitos
libertos provenientes das zonas rurais da província.”
866
ENGEL, Magali. Meretrizes..., pp. 20-21 e 23: “Restava, pois, à grande parcela que não encontrava uma ocupação regular,
buscar a sobrevivência através dos mais variados expedientes. ...E aos que ficavam à margem do mercado de trabalho restava
apenas viver de expedientes.
867
Se é que as duas andaram separadas alguma vez. Citando o deputado MAC-DOWELL, e advertindo para os efeitos quase
indeléveis que o titubeio daquele enseja, diz CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 24: “Há o dever imperioso por parte do Estado
de reprimir e opor um dique a todos os vícios que o liberto trouxe de seu antigo estado, e que não podia o efeito miraculoso
de uma lei fazer desaparecer, porque a lei não pode de um momento para outro transformar o que está na natureza.”; em
sentido indireto, e antes da abolição, MOACYR SCLIAR, em introdução à reedição de opúsculos da época em que D. JO
vivera no Rio de Janeiro, in SILVA, Manoel Vieira da; PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. A saúde..., p. 17: “Dentro
desse enfoque, VIEIRA DA SILVA... propõe também a construção de um local para quarentena dos escravos (estes
habitualmente vistos como portadores de doenças).”; e, textualmente, SILVA, Manoel Vieira da. Reflexões sobre alguns dos
meios propostos por mais conducentes para melhorar o clima da cidade do Rio de Janeiro, in SILVA, Manoel Vieira da;
PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. A saúde..., p. 77: “Trata-se por ora de mostrar a necessidade de um lazareto
onde desembarquem os pretos, e estes façam quarentena, que chegam no estado de saúde, até que se conheça, que eles estão
livres das moléstias de que pode haver suspeita, bastando para estes o intervalo de oito dias: essa demora não pode fazer-se
com utilidade a bordo das embarcações em razão da falta de asseio, e tratamento, e grande número de indivíduos, que a
ambição obriga a ajuntar em um curto espaço.”
868
O que durante a implementação da medicina social, composta dentre outras pela polícia médica, não foi difícil, sobretudo
com a fixação da prostituição como pano de fundo para a cena em que as doenças venérias implementavam uma capitis
deminutio contra as meretrizes. Nesse sentido, citando FOUCAULT, Paul-Michel. História da sexualidade: a vontade de saber.
3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1977, pp. 111-112 apud ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 77: “...a análise de hereditariedade
colocava o sexo (as relações sexuais, as doenças venéreas, as alianças matrimoniais, as perversões) em posição de
‘responsablidade biológica’ com relação à espécie; não somente o sexo podia ser afetado por suas próprias doenças mas, se
não fosse controlado, podia transmitir doenças ou criá-las para as gerações futuras; ele aparecia, assim, na origem de todo um
capital patológico da espécie.”
124
vazado nas indecisas palavras de um certo deputado que, vacilando entre atribuir os vícios dos
afro-descendentes ao seu estado antigo - quais sendo, a inadaptabilidade à vida de liberdade em razão
do conforto das condições do cativeiro -, ou vinculá-los à própria natureza daqueles - indesfazível pela
legislação -, saltita, acrobaticamente, na corda bamba enodada de um lado pela escravidão e, de
outro, pela onticidade, caindo, ao final, no lamarão das teorias racistas, da qual não pôde - ao
revés do Barão de Munchhausen
869
-, ou melhor, não quis, puxando-se pelos próprios cabelos,
ainda sair.
870
“Neste sentido”, continuam ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, amarrando o
discurso penal ao médico,
“poderíamos afirmar que o racismo tem uma explicável permanência no discurso penalístico
republicano
871
, que se abebera nas fontes do positivismo criminológico italiano e francês para
realizar as duas funções assinaladas por FOUCAULT: permitir um corte na população administrada, e
ressaltar que a neutralização dos inferiores ‘é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais
sadia e mais pura’. A contribuição do pensamento médico, neste transe de seu acasalamento
872
com a técnica policial
873
,
874
,
875
, merece especial atenção.”
876
869
RASPE, Rudolf Erich; BÜRGER, Gottfried August. As aventuras do barão de Münchhausen. São Paulo: Círculo do Livro,
sem data, p. 33.
870
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 25.
871
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 33: “Até a década de 1880, a persistência de relações escravistas revelou-se um obstáculo
concreto na diferenciação entre o trabalho e o não-trabalho, concebidos de acordo com padrões burgueses. Além disso, a
delimitação de fronteiras mais precisas entre o trabalho e o não-trabalho constituía-se numa tarefa difícil, na medida em que,
muitas vezes, a situação de miséria apresentava-se como um traço comum a ambos. O desenvolvimento do Rio de Janeiro,
marcado não só pelo crescimento populacional, mas também pela complexificação da estrutura social e econômica da cidade,
processou-se de modo a tornar menos nítidas estas fronteiras: o trabalho e o não-trabalho tendiam a compartilhar o mesmo
espaço físico da cidade.”
872
Outro acasalamento, o da medicina com o Direito, pode ser encontrado em várias edições da Revista da Faculdade de
Direito de São Paulo, concentradas por SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., pp. 179 e 190: “‘A Medicina Pública é uma
auxiliar para o bom desempenho do advogado. De bôas leis resultam os bons governos. E como para se ter bôas leis é preciso
observar, pelo menos nesse particular a medicina contribui para o ensino do Direito’. O auxílio do profissional médico era
relevante, mas a autonomia e a primazia do jurista eram garantidas, uma vez que a este último cabia a decisão final. ‘É vasta
a missão do jurista’, finalizava um artigo sobre um caso de defloramento, ‘tão nobre quanto a do médico ambas caminham
parallelamente. A Medicina cumpre prevenir as moléstias antes que cural-as. Ao Direito cumpre prevenir e resolver os delitos
antes que punil-os’ (RFDSP, 1908:104). Sobressaía uma visão que, se de um lado apostava na importância da medicina
pública, de outro, buscava restringir sua capacidade. Ou seja, se conjuntamente com o direito a medicina tinha um papel
central para o progresso do país - ‘A Medicina Pública é chamada a desempehar seu papel nas sociedades civilizadas...
visando sanear a sociedade’ (RFDSP, 1914:11) -, o sanitarista e o médico público, no entanto, não deixavam de ser vistos
como técnicos, a quem caberia um papel auxiliar e complementar. ...Quando contrastado com as faculdades de direito, com a
fala do bacharel, o discurso médico ganha mais outra conotação. Trata-se agora de perceber a existência de uma querela -
mais ou menos formalizada - acerca de áreas de saber, projetos profissionais, ou mesmo formas diversas de conceber o país.
Na ótica médica o objetivo era curar um país enfermo, tendo como base um projeto médico-eugênico, amputando a parte
gangrenada do país, para que restasse uma população de possível ‘perfectibilidade’. O ‘homem de direito’ seria um assessor
que colocaria sob forma de lei o que o perito médico já diagnosticara e com o tempo trataria de sanar. Nas faculdades de
direito, as posições praticamente se invertem: cabia ao jurista codificar e dar uma forma unificada a esse país, sendo o médico
entendido como um técnico que auxiliaria no bom desempenho desses profissionais das leis.”
873
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 12: “O papel efetivo que o saber médico desempenharia neste sentido parece evidenciar-
se no fato de que as demais abordagens da prostitução na cidade do Rio de Janeiro - literárias, policiais, jurídicas etc. -,
tendiam a se orientar em torno dos eixos estabelecidos pelo enfoque médico da questão.”
874
Em 1808, escrevia SILVA, Manoel Vieira da. Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para
melhorar o clima da cidade do Rio de Janeiro, in SILVA, Manoel Vieira da; PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. A
saúde..., pp. 69 e 71: “Os nossos soberanos amantes sempre de promover, quanto lhes fosse possível, a felicidade dos seus
vassalos, tinham promulgado na capital, e em todo o reino, as mais providentes leis a esse respeito; mas a distância imensa
entre a sede do trono português e os seus vassalos do Brasil impossibilitou até agora a execução da sua vontade. Chegou,
contudo, a feliz época, que os faz sair da desgraça, que os rodeava, e entrar na história das nações policiadas. ...O Morro do
Castelo será tão prejudicial à cidade como até agora se tem suposto! Deverá entrar no plano da polícia do Rio de Janeiro a
sua demolição?”
125
Sobretudo porque, como noticia NILO BATISTA em um artigo nominado de A lei como
pai,
“os inúmeros encontros, em distintas circunstâncias históricas, entre os saberes jurídico-penal e
médico, compõem uma inconclusa novela de terror, que podemos tentar compreender a partir de
duas importantes estações de longo percurso: a inquisição e o positivismo criminológico. A
primeira aplicava a pena como cura; o segundo impunha a cura como pena. ...Na segunda metade
do século XIV, o meticuloso inquisidor NICOLAU EYMERICH falava de uma ‘salvação eterna’ que
também significava ‘saúde eterna’, que o radical etimológico é o mesmo: saúde provém ‘do
latim salutesalvação’. ...Os cirurgiões que, no século XVII, procuravam no corpo dos suspeitos
o ponto diabólico aquele sinal insensível à prospecção com agulhas, com o qual o coisa-ruim
marcava na pele seu vassalo ou por onde nele penetrara prestavam um importante serviço aos
juízes, porém o decidiam. Para que a decisão médica se nivelasse à decisão judicial,
praticamente vinculando-a, para que a indicação clínica da alta do paciente se equiparasse à
expedição jurisdicional do alvará de soltura, seria preciso esperar pela invenção das medidas de
segurança, cujos insumos teóricos seriam febrilmente elaborados ou incorporados pelo
positivismo criminológico, a partir do último quartel do século XIX. ...Doravante, o magistrado
disporia de duas varas: a velha vara da pena, para os culpados, e a nova, da medida de segurança,
para os perigosos. Contudo, para brandir esta segunda vara, o magistrado necessitava,
imprescindivelmente quando o caso envolvesse a saúde mental do sujeito, de um saber psi, de
uma sonda que, a exemplo da agulha em busca do ponto diabólico, pudesse tatear os estratos
internos inacessíveis à tosca redução fenomenológica da reconstrução processual-probatória do
delito (quando não se tratasse de uma perigosidade extradelitual). Os saberes jurídico-penal e
médico passavam a dispor de um aparelho de Estado intencionalmente, recorremos à categoria
difundida por ALTHUSSER - onde sua interlocução culminava por decidir concretamene sobre
controle e repressão mediante terapias punitivas (ou penas terapêuticas): o manicômio
judiciário.”
877
Considerando a acumulação histórica brasileira, na massa popular imprestável, aquela
que se deixava convencer pelo discurso, ou melhor, aquela utilizável - e, como numa espiral
viciosa que se autoconecta, que se deixou utilizar, pois, esclarece DEBORD, “numa sociedade em que ninguém
consegue ser reconhecido pelos outros, cada indivíduo torna-se incapaz de reconhecer sua própria
realidade”
878
-, de acordo com a conveniência dos dominantes como índex volátil da busca pelo
lucro, mas, ainda dentro daquela, não passaria o afro-descendente da graxa que, lubrificando a
embreagem, permitiria à cidade chegar mais confortável e rapidamente ao seu destino
vaticinado de alvejante e urbanamente europeu, e justamente porque nossos antepassados
perceberam, assim como DEBORD, que
“o urbanismo é a realização moderna da tarefa permanente que salvaguarda o poder de classe: a
manutenção da atomização de trabalhadores que as condições urbanas de produção tinham
perigosamente reunido. A luta sempre travada contra todos os aspectos dessa possibilidade de
encontro descobre no urbanismo seu campo privilegiado. O esforço de todos os poderes
estabelecidos, desde as experiências da Revolução Francesa, para ampliar os meios de manter a
ordem na rua culmina afinal com a supressão da rua. ...Mas o movimento geral do isolamento,
875
Citando FOUCAULT, veja ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 115: “FOUCAULT refere-se à união da técnica do
tratamento do leproso com a do tratamento da peste, já que ele estava interessado em observar a questão da medicina social.
O leproso, porém, é apenas um exemplo, um tipo ideal da grande maioria da população marginalizada, constituída por outros
doentes e em particular por incapacitados, loucos, mendigos e pelos acusados de cometer delitos ou de praticar outra fé ou
simplesmente por ser um colonizado.”
876
Técnica policial que foi exercida arbitrariamente já naquela época, ainda que sob a escusa da benfeitoria. Quanto ao texto
citado, veja ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal brasileiro:
teoria geral do Direito Penal, v. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 443. Para um esquadro do evento, veja NAVA, Pedro.
Capítulos..., pp. 155-156: “O número cada vez maior de lázaros que enchia as ruas do Rio, roçando os sãos e poluindo as
fontes, levou o Conde de Bobadela a recolher particularmente e por sua própria conta esses infelizes cuja presença
representava tanto perigo para o resto da população.”
877
BATISTA, Nilo. A lei..., pp. 20 a 38.
878
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 140.
126
que é a realidade do urbanismo, deve também conter uma reintegração controlada dos
trabalhadores, segundo as necessidades planificáveis da produção e do consumo. A integração no
sistema deve recuperar os indivíduos isolados como indivíduos isolados em conjunto....”
879
E, para finalizar, embora não seja fácil concordar com sua conclusão, ensina o saudoso
escritor que, “a idéia mais revolucionária a respeito do urbanismo não é uma idéia urbanística,
tecnológica ou estética.”
880
Nessa estética social, a cidade, com seus componentes arquitetônicos e humanos,
estava separada por um “paredão de ordem
881
, cuja engenharia imitava o efeito de um
prisma. Visto a partir do verso, as cores saltitavam iridescentes, todas belas e atraentes,
enquanto que através do anverso, o que se via era uma escuridão homogênea, feia e repulsiva.
Uma tragédia encenada à frente de um cromaqui negro, e para mirones indiferentes, visto que
esses observavam o espetáculo, enquanto desprezavam o pano de fundo. E, se acaso algum
contato houvesse, ele utilizaria o mecanismo da Casa dos Expostos, também conhecida como
Casa dos Enjeitados, ou Casa da Roda, onde a permissão das eventuais comunicações se dava
“sem que o depositário e o recebedor pudessem ver-se reciprocamente.”
882
Assim, enquanto BOURDIEU não se equivocava quando afirmava que “FLAUBERT
gostava” mesmo “de dizer: ‘é preciso pintar bem o medíocre’”
883
, no caso do Brasil, a pintura
monocromática dele chegava a estar borrada.
Portanto, e malgrado “o quadro político instituído no ano seguinte” ao da abolição
querer - pois, obviamente, não conseguiu -, “responder à conveniência de uma forma adequada à
nova composição social”
884
, mudou também a idéia de pobreza e de vagabundagem” - a
despeito de um prometido assistencialismo populista onde o Estado deveria conceder aos forros “pequena
sesmaria e auxílio para que se estabelecessem”
885
; o que, evidentemente, não aconteceu
886
, piorando em muito
sua situação em relação à escravidão
887
, onde, ao menos, tinham comida e dormida, em dramática realização
do vaticínio de JOSÉ DE ALENCAR quando disse que “a abolição imediata significaria para o escravo a miséria,
pelo abandono do trabalho, e o extermínio, por uma provável luta de raças”
888
-, sobretudo pela
879
DEBORD, Guy. A sociedade..., pp. 113-114.
880
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 118.
881
A expressão foi retirada de NEDER, Gizlene. Violência e cidadania. Porto Alegre: SAFE, 1994, p. 38.
882
Sobre essa instituição, veja COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 164.
883
BOURDIEU, Pierre. Sobre..., p. 27.
884
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 171.
885
CARVALHO, José Murilo de. Escravidão..., p. 51.
886
CARVALHO, José Murilo de. Escravidão..., pp. 63 e 77: “...consumada a abolição, nada foi feito em benefício dos ex-
escravos. ...A pessoa do escravo ou do liberto importava pouco, se importava alguma coisa. Daí terem sido inúteis os apelos
de abolicionistas como ANDRÉ REBOUÇAS no sentido de ser estabelecido um programa de assistência aos ex-escravos.
REBOUÇAS pedia terras e educação para os libertos. Nada foi feito.”
887
Entendendo pela igualdade no tratamento, CARVALHO, José Murilo de. Cidadania..., p. 308.
888
ALENCAR, José de. Ao Imperador: novas cartas políticas de Erasmo. Rio de Janeiro: Tipografia de Pinheiro, 1867 apud
CARVALHO, José Murilo de. Escravidão..., p. 55.
127
influência que a redação descritivo-estatística de um tal FRÉGIER
889
exerceu no preconceito
nada plástico com que se acotovelavam os parlamentares do entorno do pós-abolicionismo
que, preocupados sobremaneira em reprimir a nova ociosidade
890
, como visto, encamparam o
diagnóstico daquele, aliando-o - considerado o pêndulo dogmático-médico vigente no século XIX, e em
função de uma tendência, não inconteste
891
, ideológico-liberal
892
-, a uma infecciosidade ou anti-
contagiosidade que, primeiro, escorada nos miasmas, relata CHALHOUB, “fez com que os
infeccionistas, especialmente nas cidades, colocassem todo o ambiente - e as ‘classes
perigosas’ nele presentes - sob suspeição” - generalização essa, diga-se ao passar, cunhada mediante
“um dispositivo de atuação do poder público visando amputar as possibilidades de os produtores diretos não se
encontrarem rotineiramente atrelados ao processo de produção”
893
quando, da passagem para uma nova
ordem econômica não escravagista
894
, imprescindiu o poder público de assumir esse seu novo lugar de
destaque, nada estranho e, coincidentemente, estacionado no lado dominante -, “sob suspeição”, repita-se,
“e constante inspeção.”
895
Segundo, pelo lado econômico, via na quarentena - caso vencedora,
eventualmente, fosse a teoria do contagionismo
896
-, “para a classe ascendente de comerciantes e
industriais, uma fonte de prejuízos econômicos e uma arma intolerável do controle
burocrático.”
897
E, terceiro, como quer COOTER, “a teoria da infecção era constitutiva das
mudanças nas relações de trabalho características da emergência de uma sociedade capitalista
‘avançada’”
898
na qual, expropriando-se os conhecimentos e práticas populares sobre doenças
e curas mediante a rotulação sistemática de ilusórias e farisaicas, possibilitou ao saber médico,
889
A vinculação entre pobreza e periculosidade, embora anterior, foi inflamada pelos estudos do francês M. A. FRÉGIER,
aproveitados, comodamente, pelos parlamentares do nosso pós-abolicionismo que, citando-o, oportunamente, aduzem,
segundo CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 21: “As classes pobres e viciosas, diz um criminalista notável, sempre foram e hão
de ser sempre a mais abundante causa de todas as sortes de malfeitores: são elas que se designam mais propriamente sob o
título de - classes perigosas -, pois quando mesmo o vício não é acompanhado pelo crime, só o fato de aliar-se à pobreza no
mesmo indivíduo constitui um justo motivo de terror para a sociedade. O perigo social cresce e torna-se de mais a mais
ameaçador, à medida que o pobre deteriora a sua condição pelo vício e, que é pior, pela ociosidade.”
890
Sobre o assunto, veja CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 20 e 22, verbo ad verbum: “...para os nobres deputados, a
principal virtude do bom cidadão é o gosto pelo trabalho....”
891
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 171: “MARGARET PELLING, por exemplo, demonsta que ACKERKNECHT exagera
visivelmene a hegemonia dos infeccionistas na comunidade cintífica britânica....”
892
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 171.
893
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 175.
894
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 179: “Quanto ao método, convém enfatizar que a intensificação do cerco aos
vacinophobos no último quartel do século ocorreu no bojo da crise e desmantelamento das políticas de dominação senhorial.
Os higienistas que então se incrustavam no poder público iam aos poucos deixando de recorrer a “Pais, Tutores, Curadores,
Amos, e Senhores” na tentativa de propagar a vacina. Passaram a combinar estratégias indiretas, como a proibição de acesso
a empregos públicos ou a estabelecimentos de ensino às pessoas não-vacinadas, com as ações diretas e agressivas
características da vacinação domiciliar - levadas a efeito com especial esmero nas habitações coletivas.”
895
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 170.
896
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 170: “Em suma, o contagionismo, estando associado à ampliação dos poderes das
burocracias governamentais, tornara-se suspeito aos apologistas da ideologia liberal - interessados estes na superação de
entraves ao livre desenvolvimento das relações de mercado.” Veja, também, pp. 174 e seguintes.
897
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 170.
898
COOTER, Roger. Anticontagionism and history’s medical record. In WRIGHT, Peter; TREACHER, Andrew. The problem of
medical knowledge: examining the social construction of medicine. Edinburgh, 1982, pp. 87 a 108 apud CHALHOUB, Sidney.
Cidade..., p. 172.
128
com relativo sucesso
899
- pois o domínio senhorial, de si desmantelado, foi substituído pelo então
qualificado conhecimento médico que na época passou a ocupar o lugar de dominante não do empregado,
mas, também, do produtor direto
900
-, o monopólio dirigente da produção, dos trabalhadores e dos
consumidores, subordinados, pela via abstrata do modelo infeccionista, à vontade dos
higienistas
901
- cujo poder, diz FREIRE COSTA, por sua vez, subordinava-se, intrinsecamente, “à decolagem do
consumo e da [à] oferta de serviços médicos privados”, recrudescida “quando nas famílias privilegiadas
começou a medrar uma desconfiança permanente quanto aos riscos de doença, e uma insatisfação permanente
quanto ao estado de saúde”
902
-, embora em todo caso evidenciasse “que o debate entre médicos
contagionistas e infeccionistas era constitutivo do processo histórico mais amplo de
transformações sociais e econômicas pelas quais passava o mundo ocidental no período”
903
,
sem igual preocupação em separar as classes pobres das classes perigosas.
Ou melhor, nessa pseudoconfusão, havia, segundo CHALHOUB, uma “impossibilidade”,
até mesmo pela forma com que as coisas estavam dispostas, “de delimitar com precisão as
fontes das ameaças à ordem social” eleitas “o próprio centro da definição de um novo projeto
de ordenamento social”
904
, cujo papel, leciona GIZLENE NEDER, segundo MAX WEBER, “do
calvinismo na transformação da mendicidade, que passou a ser vista como um pecado de
indolência e violação dos deveres de amor fraterno”
905
, foi decisivo, porquanto, diria MURILO
DE CARVALHO, essa nova idéia de ocupação, repetidora de um maniqueísmo agostiniano
insatisfatório, “como todas as dicotomias aplicadas ao fenômeno social”
906
, “levou”, relendo
GIZLENE NEDER, “à diferenciação entre mendigos aptos e inaptos para o trabalho.
907
Por quase
todas as formações históricas européias a ‘mendicidade apta’ para o trabalho passou a ser
condenada social, jurídica e politicamente”
908
- acrescentaria eu, valendo-se todos, para tanto, do
discurso médico formal-oficial -, numa relação sequencial absurdamente inevitável, e o
899
É que, essa desqualificação do conhecimento popular, proposta por COOTER, é, em nosso caso, desmentida pela revolta da
vacina, arrimada, outrossim, no conhecimento popular do binômio doença-cura, e na forma, segundo a visão médica, de
contágio daquela, e não, como pretende o autor, na de infecção. Para tanto, veja CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 176: “...o
simples fato de a maior revolta popular motivada por políticas higienistas no Rio ter ocorrido devido à vacinação
antivariólica, sugere que uma doença tida e havida por contagiosa no conhecimento médico do século pasado esteve também
no centro das lutas sociais em torno da interpretação das doenças e das práticas de cura.”
900
Menos conciso, CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 175.
901
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 173.
902
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 211.
903
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 171.
904
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 175.
905
NEDER, Gizlene. Absolutismo e punição. In Discursos Sediciosos, Crime, Direito e Sociedade, 1° semestre de 1996, ano 1,
n. 1, p. 199.
906
Embora com outra comparação, veja CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 10.
907
Tese retomada, mutatis mutandis, para a nova política social na era do pós-welfare, segundo LAWRENCE, citado por
WACQUANT, Loïc. As prisões..., p. 47: “supressão da divisão em classes sociais, vantajosamente substituída pela oposição
técnica e moral entre os ‘competentes’ e os ‘incompetentes’, os ‘responsáveis’ e os ‘irresponsáveis’....”
908
NEDER, Gizlene. Absolutismo..., pp. 199-200.
129
contrafática
909
, por o prescindir de qualquer demonstração empírica, entre ociosidade,
pobreza, vício, criminalidade e, o que é pior, doença, que se religa, por sua vez, àquelas,
cerrando o círculo desvirtuoso
910
, caracterizador do desvio secundário.
911
Para tentar aparar um pouco daquele qui pro quo, apresenta-se como oportuno um
pouco mais de detenção sobre o assunto. Se não, vejamos.
Ora, a arrogância dos sanitaristas públicos não era suficiente para que o projeto
higienista - ou melhor, higiênico
912
, na visão daqueles -, não malograsse. Era mister, como dito
acima, que afagando as finalidades burguesas em mais um acasalamento, dessa classe
obtivessem fundos que aos mesmos reverteriam em lucros certamente reflexivos, na prática,
daquela sugestão metaforizada por LOÏC WACQUANT: “é como se se tratasse de um sinistro
programa habitacional para os novos pobres”
913
, escória humana promíscua e doentia, mas,
muita vez, em atendimento à conveniência, quiçá aproveitável como entulho para preencher
as sapatas, sempre escondidas, do imobiliário da nova cidade
914
, empreendimento tornado
interessante - sobretudo com o auxílio de vereadores, muita vez coincidentes com esses
915
-, aos
empresários “atentos às oportunidades de investimentos abertas com a expansão e as
transformações da malha urbana da Corte”
916
- tanto viária, quanto imobiliária
917
-, sequiosos em
909
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 22: “Uma vez cometida essa abstração, ou essa imprecisão, na origem do raciocínio -
abstração ou imprecisão porque os deputados obviamente não podiam encontrar dados de realidade que fundamentassem a
asserção de que todo trabalhador honesto necessariamente escaparia à pobreza -, o resto se segue como que naturalmente....”
910
Sobre esse histórico, veja CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 22.
911
Para ficar a par do que é desvio secundário, consulte ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro;
SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 46.
912
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 61: “O prefeito age livremente durante o período de plenos poderes. ...regula a
construção e consertos de prédios; proíbe que os mendigos perambulem pela cidade; cria serviços de turmas que percorrerão
as ruas da cidade, acompanhadas de um ou mais caminhões de limpeza pública. As visitas domiciliares serão feitas
sistematicamente em todas as habitações e, daí, tudo quanto for encontrado no seu interior, que seja julgado prejudicial à
higiene, será incontinenti ‘removido para aqueles carros’. Posteriormente, lança a campanha pela extinção dos cães vadios’.
Perseguição às vacas, mendigos, cães, tudo revela um horror da autoridade ao que não é estável, fixo, imediatamente
controlável.”
913
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos (a onda punitiva). In coleção
pensamento criminológico. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, n. 6 apud ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA,
Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 488.
914
SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., pp. 54-55: “O refluxo para o Rio de pessoas egressas de fazendas arruinadas no Vale do
Paraíba após a lei da Abolição, as miríades de migrantes internos atraídos pela febre fiduciária do Encilhamento e pelas
promessas do que se apresentava concretamente como o maior mercado de trabalho, comercial, industrial e de serviços do
país; além, é claro, dos grandes contingentes de imigrantes estrangeiros despejados anualmente naquele porto, atraídos pela
avidez infrene dos cafeicultores e empurrados pela desventura implacável da própria miséria. Como puderam esses magotes
inquietos, de gente sobressaltada com a incerteza do seu destino, somar-se com uma população local já excessivamente
volumosa e ajustar-se aos estreitos limites físicos da cidade? A enorme pressão por habitações levou os proprietários dos
grandes casarões imperiais e coloniais, que ocupavam a região central da cidade, a redividi-los internamente em inúmeros
cubículos, por meio de tabiques e biombos, os quais eram então alugados para famílias inteiras.”
915
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 52-53.
916
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 52.
917
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 52-53: “...primeiro, alguns empresários conseguem o monopólio na exploração de
serviços públicos – no caso, concessões para a operação de linhas de bonde; paralelamente, outros grupos empresariais, ou
até os mesmos, adquirem terras pouco valorizadas na periferia da cidade; finalmente, concluídas as linhas de bonde e feito o
loteamento dos terrenos, os investidores conseguem uma remuneração astronômica para o seu capital.”
130
abocanhar os valorizados terrenos cobertos pelos cortiços
918
mas, antes de mais, também
tornada interessante em razão do discurso higienista
919
ou, de forma requentada, higiênico,
numa aliança indesquitável - hoje, indivorciável -, entre “a ciência e o capital”
920
que inaceitou
um concubino pobre mais do que um mero voyeur, espectador passivo das transformações
urbanas.
Preocupados com o ricochete depreciativo no mercado burguês e na mão de obra para
a burguesia
921
- porquanto, na lição de DEBORD, “a burguesia está ligada ao tempo do trabalho, pela
primeira vez liberado do tempo cíclico. O trabalho se tornou, com a burguesia, trabalho que transforma as
condições histórias. A burguesia é a primeira classe dominante para quem o trabalho é um valor. E a burguesia
que suprime todo privilégio, que reconhece valor decorrente da exploração do trabalho, identificou
justamente com o trabalho seu próprio valor como classe dominante. Fez do progresso do trabalho o seu
próprio progresso. A classe que acumula as mercadorias e o capital modifica continuamente a natureza ao
modificar o próprio trabalho, ao promover sua produtividade”
922
-, advindo da propagação de doenças,
pois assustava
923
e preferia
924
os imigrantes
925
, novos admitidos na manufatura disciplinar
burguesa fabril por conta da abolição escravagista
926
, enquanto “atacava de forma mais
benigna os africanos e a população negra”
927
, via a administração, mormente na febre amarela
- credencial então disfarçável, diz CHALHOUB, de uma “crise nas relações de trabalho no Brasil da segunda
metade do século” XIX, apresentada para a entrada e mantença da “interdependência entre pensamento médico
918
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 54.
919
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 56: “...higienistas e agentes imobiliários estavam unidos pelas reformas urbanas e contra
os corticeiros.”
920
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 56.
921
Que só pôde ser sentida com a alteração da conjuntura mercadológica e de trabalho, segundo CHALHOUB, Sidney.
Cidade..., p. 76: “...como o fim do tráfico ocorrera num contexto de superabundância de mão de obra escrava devido à
intensificação do negócio dos negreiros nos últimos anos da década de 1840, não havia preocupação imediata com a questão
do suprimento de força de trabalho para as áreas de plantation. [isso aliado]... à constatação de que a febre amarela não era
grave ameaça à propriedade escrava porque os negros resistiam bem à doença, fizeram com que não houvese entre os
governantes uma preocupação excessiva com o assunto nos anos 1850. Ao menos, não ocorre então nada comparável à
obsessão com a praga amarela que passará a viger nos anos 1870.”
922
DEBORD, Guy. A sociedade..., pp. 97-98.
923
Sobretudo em razão de discursos xenofobistas, que merecerão o resumo do Dr. ROBERTO LALLEMANT, conforme garimpou
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 77: “‘Haveis de morrer, vós, estrangeiros’!”
924
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 77-78: “...na década de 1850, a circunstância de a febre amarela escolher suas vítimas
principalmente entre os imigrantes e estrangeiros de passagem pela Corte era interpretada como fator atenuante da ameaça
social que a doença comportava; nos anos 1870, como veremos, a febre amarela havia se transformado no problema de saúde
pública do Império exatamente porque vitimava prioritariamente os imigrantes.”
925
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 19: “O ano de 1891 foi particularmente trágico, pois nele coincidiram
epidemias de varíola e febre amarela, que vieram juntar-se às tradicionais matadoras, a malária e a tuberculose. Nesse ano, a
taxa de mortalidade atingiu seu mais alto nível, matando 52 pessoas em cada mil habitantes. Até 1896, a mortalidade
permaneceu acima de 35 por mil, com a única exceção de 1893. A cidade tornara-se, sobretudo no verão, um lugar perigoso
para viver, tanto para nacionais quanto para estrangeiros. Nos meses de maior calor, o corpo diplomático fugia em bloco para
Petrópolis a fim de escapar às epidemias, nem sempre com êxito. O governo inglês concedia a seus diplomatas um adicional
de insalubridade pelo risco que corriam representando Sua Majestade.”; CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 61, 76, 77 e 85:
“Petrópolis e outros municípios ‘serra acima’ eram refúgios recomendados pelos médicos. ...Nessas ocasiões, os recém-
chegados deveriam ser conduzidos diretamente para locais elevados – ‘serra acima’ -, onde ficariam aguardando o
encerramento do surto epidêmico.”
926
Preferiu-se usar a expressão “abolição escravagista” a “abolição da escravidão”, por entender que a abolição não encerrou
o escravismo, apresentado sob nova indumentária. Sobre o texto, veja CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 16.
927
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 71: “A população branca... e mormente os imigrantes foram aqueles que mais sofreram
com a tragédia em termos de perdas de vidas humanas.”
131
e ideologias políticas e raciais”
928
, pautadas e justificadas naquela discriminação biológica
929
da morbidade
colorida, i. e., da praga amarela mas que, em última instância, não passaram de uma desculpa tímida ascendida
à razão vazada numa conveniente aclimatação
930
acomodada “no bojo da crise da instituição da escravidão
[que] aumentaria o interesse de proprietários e governantes na promoção da imigração européia em massa
para o país”
931
-, o vetor impediente - embora trafegando em terras alienígenas somente
932
, porque
arrimado no embuste
933
propagandista da superior resistência dos afro-descendentes, “concebidos pela
natureza para suportar a doença e o trabalho sob o escaldante calor tropical”
934
-, do
embranquecimento
935
que, aqui recorre-se a LACERDA, “em um século” seria a “saída e
solução”
936
para o Brasil, pois depuraria, no dizer de RUI BARBOSA, “as veias da mestiçagem
primitiva”
937
, livrando o novo poder hegemônico, ensina VERA MALAGUTI BATISTA, da mão de
obra escrava recém ‘emancipada’”
938
, menos barata que a imigrante, a ponto de a oferta dessa
suplantar a demanda.
939
Inegável que é, quem se debruçar sobre a relação da medicina com a política não sem
facilidade perceberá que a intromissão médica, não dificultada por aquela, não conheceu
limites. A programação higienizadora secundária - e, porque não, muita vez, racial
940
-, porquanto
928
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 62.
929
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 71.
930
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 85: “Na verdade, a defesa da idéia de aclimatamento tornou-se a posição ‘oficial’ do
governo imperial.”
931
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 83, para o texto acima, e 89, para a citação que segue: “Para encurtar uma longa
história, o que estava ocorrendo na década de 1870 era que a febre amarela, com os infalíveis estragos que provocava entre os
imigrantes recentes, passou a ser percebida como um empecilho à idéia dos cafeicultores de ‘suavizar’ - por assim dizer -, a
transição do trabalho escravo para o trabalho ‘livre’ por meio da imigração européia.”
932
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 80: “Tais argumentos, então correntes entre doutores do sul dos Estados Unidos e da
Europa, não estão presentes - até onde pude verificar -, na literatura médica brasileira da década de 1850.”
933
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 89: “...na verdade, os negros morriam em números ainda maiores de doenças, tai como a
tuberculose e a varíola, que as autoridades públicas não estavam preparadas para - ou não queriam? -, sequer perceber, quanto
mais priorizar e combater.”
934
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 78, para a citação acima e para a próxima: “Um dos mais conspícuos defensores desse
ideário [no sul Estados Unidos da América foi] o Dr. SAMUEL CARTWRIGHT, de Nova Orleans....”
935
Que embranquecimento, se nossos próprios colonizadores eram mestiços? Se não vejamos o que narra HOLANDA, Sérgio
Buarque de. Raízes..., p. 53: “‘...pelo fato de serem os portugueses, em parte, e já ao tempo do descobrimento do Brasil, um
povo de mestiços. Ainda em nossos dias, um antropólogo distingue-os racialmente dos seus próprios vizinhos e irmãos, os
espanhóis, por ostentarem um contingente maior de sangue negro. ...Neste caso o Brasil não foi teatro de nenhuma grande
novidade. A mistura com gente de cor tinha começado amplamente na própria metrópole’.”; ainda sobre o tema, CARVALHO,
José Murilo de. Brasil..., p. 251; e, CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 57.
936
LACERDA, João Batista. Sur les metis au Brésil. Paris: Imprimerie Devougue, 1911 apud SCHWARCZ, Lilia Moritz. O
espetáculo..., p. 11, e outras subsidiárias, como as pp. 94, 122, 130, 136-137 e 170.
937
Veja nota anterior e, também, comparando a febre amarela com a tuberculose, citando, para tanto, RUI BARBOSA,
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 57: “A febre amarela significava basicamente o oposto: além de não acometer Paris e
deflagrar o Rio anualmente, era um verdadeiro flagelo principalmente para os imigrantes. RUI BARBOSA descreveu assim as
características da febre amarela: ...Conservadora do elemento africano, exterminadora do elemento europeu, a praga amarela,
negreira e xenófoba, atacava a existência da nação na sua medula, na seiva regeneratriz do bom sangue africano, com que a
corrente imigratória nos vem depurar as veias da mestiçagem primitiva, e nos dava, aos olhos do mundo civilizado, os ares de
um matadouro da raça branca.”
938
BATISTA, Vera Malaguti. Cuidado..., p. 306; outrossim, CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 63 e 89: “Tal eliminação se
produziria através da promoção da vinda de imigrantes, do incentivo à miscigenação num contexto demográfico alterado pela
chegada massiva de brancos europeus, pela inércia, e também pela operação de malconfessadas políticas específicas de saúde
pública. ...a idéia era enfrentar as incertezas do processo de emancipação dos escravos inundando o mercado de trabalho com
imigrantes europeus.”
939
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 89.
940
Questão que pode ser visitada em SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., pp. 208-209.
132
seu escopo era o de controlar a mão de obra, não se ressentiu, ainda mais porque estava
previamente franqueada a tanto, de aumentar literalmente a sua dose quando percebeu que
isso viabilizaria, de forma velada e omissivamente intencional
941
, um embranquecimento
942
da
população. Primeiro, porque a varíola grassava com mais quantidade e qualidade nos homens
de cor
943
- daí, um escurecimento, temido, daquela -, certamente menos pelo colorido que pela falta
de higidez corporal e ambiental que circundava quase todos, tornados, portanto, vítimas
esquecidas tanto de um higienismo cromático - invejoso e copioso da psicologia de “H. MAGNUS e sua
teoria sobre as cores, que supunha uma hierarquia natural na organização dos matizes de cor”
944
-, quanto
de disputas médicas posteriores, e, segundo, por conta de barreiras culturais e religiosas
945
-
mas não sem antes passar por um folclore de boataria em que se transmitia, já não de braço em braço, senão de
boca em boca, que poderia a “vacinação transferir aos homens as doenças dos quadrúpedes”
946
ou, quando
muito, a crença de que vacinar-se era adquirir a própria varíola
947
, consensualmente -, pois, em 1840 um
relatório “admitiu francamente ‘a degeneração da pústula vacínica’.”
948
Enquanto o tempo passava, a interferência médica se espraiava ainda mais. Como é de
sabença cediça, sobretudo depois do estudo de FOUCAULT
949
, alerta GIZLENE NEDER, “as casas de
correção viabilizaram a substituição das penas pecuniárias ou corporais, dando origem às
penas de prisão”
950
, estando a origem dessa diretamente justificada pelas necessidades
disciplinares”
951
, que, conforme ANITUA, de um “projeto religioso puritano”, logo é
aproveitada pelo “projeto liberal democrático que necessita de homens capazes de governar a
si mesmos para assegurar um voto o mais amplo possível.”
952
Tudo isso desrespeitado pela
941
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 134: “DAWSON acreditava que doenças como a varíola e a tuberculose, que ‘dizimavam’
(‘decimated’) habitualmente as tais raças coloridas, tinham um importante papel a desempenhar neste processo de
purificação.”
942
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 212; ainda, em CARVALHO, José Murilo de. Entre..., p. 103: “Quanto a esta [a
população negra] prevalecia, seja implícita, seja explicitamente, a idéia de que o futuro do Brasil exigia o embranquecimento
da raça. As teorias racistas européias, importadas via LAPOUGE e GOBINEAU, exerciam ainda influência poderosa. A elite
intelectual do País ainda se envergonhava de seu povo.”
943
Mudando poucamente o tom, CHALHOUB, Sidney. Cidade..., pp. 133 e 134, in verbis: “Os números levantados pelo
historiador SAM ADAMO sobre a mortalidade causada pela varíola na cidade do Rio no início do século XX confirmam que a
moléstia continuava a afetar mais gravemente a população negra neste período. Segundo esses dados, a taxa de mortalidade
por varíola era 30% maior entre os negros em comparação com os brancos no ano de 1904, e tal diferença chegaria a
ultrapassar os 50% na década de 1920.”
944
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 56.
945
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 146: “Enfim, havia tradições culturais as mais diversas - bantu, iorubá, católica,
‘negreira’, médica, e sei lá quantas mais -, convergindo para a noção de que era ‘dispensável e até ilegítima a intervenção do
médico no tratamento da varíola.”
946
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 128.
947
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 129.
948
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 116.
949
FOUCAULT, Paul-Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 35. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
950
NEDER, Gizlene. Absolutismo..., p. 200.
951
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 203.
952
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 204; não parece que referido liberalismo, no Brasil, conforme adiantado no texto
acima, pretendia, pelo voto, emancipar a população em geral, conforme assevera CARVALHO, José Murilo de. Os
bestializados..., pp. 45-46: “No Império como na República, foram excluídos os pobres (seja pela renda, seja pela exigência
de alfabetização), os mendigos, as mulheres, os menores de idade, as praças de pré, os membros de ordens religiosas. Ficava
133
República incipiente, onde “o número de eleitores foi mantido sempre em níveis
baixíssimos
953
, vinculado a uma função social inalcançável à grande massa excluída pela
exigência prévia de renda e alfabetização
954
, e onde o processo eleitoral foi totalmente
falseado pela intimidação, pela violência e pela fraude”
955
mediante aquilo que MURILO DE
CARVALHO apelidou de “estadania”
956
, e a tal ponto que “o uso tradicional de capoeiras,
capangas e malandros no processo eleitoral”
957
aproximou e envolveu esses “elementos da
desordem no próprio mecanismo de composição da representação política.”
958
Ilusoriamente,
porém,
“o jornal Voz do Povo... cuja publicação foi iniciada menos de dois meses após a proclamação da
República, referiu-se a uma nova era para o operário brasileiro trazida pelo novo regime,
comparável à que foi aberta pela Revolução de 1789. No regime antigo, segundo o articulista do
jornal, os operários eram os servos da gleba, a canalha, com todos os deveres e nenhum direito;
agora eram livres, iguais e soberanos, viam-se colocados na vanguarda do progresso da
pátria.”
959
Pois bem, naquele fin de siècle, percebendo a importância econômica daquelas
instituições de sequestro, a Igreja Católica, particularmente sujeita ao poder civil, no Brasil
960
- arrimada, consoante MURILO DE CARVALHO, na conjuntura imposta onde, os “altos índices de população
marginal e de migração, o desequilíbrio entre os sexos, a baixa nupcialidade, a alta taxa de nascimentos
ilegítimos são testemunhos seguros de costumes mais soltos”, parecendo “que o que antes era semiclandestino,
de fora da sociedade política a grande maioria da população. A exclusão dos analfabetos pela Constituição republicana era
particularmente discriminatória, pois ao mesmo tempo se retirava a obrigação do governo de fornecer instrução primária, que
constava do texto imperial. Exigia-se para a cidade política uma qualidade que só o direito social da educação poderia
fornecer e, simultaneamente, desconhecia-se este direito. Era uma ordem liberal, mas profundamente antidemocrática e
resistente a esforços de democratização.”
953
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 43-44: “As inovações republicanas referentes à franquia eleitoral
resumiram-se em eliminar a exigência de renda, mantendo a de alfabetização. O espírito das mudanças eleitorais republicanas
era o mesmo de 1881, quando foi introduzida a eleição direta. Até esta última data, o processo indireto permitia razoável
nível de participação no processo eleitoral, em torno de 10% da população total. A eleição direta reduziu este número para
menos de 1%. Com a República houve aumento pouco significativo para 2% da população (eleição presidencial de 1894).
Percebera-se que, no caso brasileiro, a exigência de alfabetização, introduzida em 1881, era barreira suficiente para impedir a
expansão do eleitorado.”; veja, ainda, idem, p. 84 e seguintes.: “A exclusão de 80% da população do direito político do voto
já é um indicador do pouco que significou o novo regime em termos de ampliação da participação. ...Pode-se dizer que a
República conseguiu quase literalmente eliminar o eleitor e, portanto, o direito de participação política através do voto.”; no
mais, idem, p. 91.
954
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 44.
955
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 34-35 e p. 37: “...desapontaram-se os operários, sobretudo sua
liderança socialista, com as dificuldades de se organizarem em partidos e de participarem do processo eleitoral....”; veja,
idem, pp. 87-88: “No caso do Rio de Janeiro, havia também outra boa razão para que os cidadãos não se aventurassem a
exercer seus direitos. Além de ser inútil, votar era muito perigoso. Desde o Império, as eleições na capital eram marcadas
pela presença dos capoeiras, contratados pelos candidatos para garantir os resultados. A República combateu os capoeiras,
mas o uso de capangas para influenciar o processo eleitoral só fez crescer. ...Assim, além de ser mínima a participação
eleitoral, o processo era totalmente deturpado.”
956
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 127.
957
Mas, não só aí. Para seus outros usos, veja CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 155: “Capoeiras e capangas
eram tradicionalmente usados também por políticos e poderosos em geral como instrumentos de justiça privada. Muitos
capoeiras integraram a Guarda Negra que dispersava comícios republicanos. A própria polícia fazia uso deles como agentes
provocadores ou informantes.”
958
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 155.
959
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 12.
960
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 118.
134
sussurrado, adquiriu com a República, se excetuarmos o governo de FLORIANO, foros de legitimação pública”
961
,
com uma popularização do pecado
962, 963
, que se personificou
964
-, como instrumentum regni
965
, delas
também tirou um vergonhoso proveito - porquanto, por elas, o trabalho obrigatório serviria para
disciplinar esses sujeitos, que pendulavam nas “tênues fronteiras entre a legalidade e a ilegalidade, às vezes
participando, simultaneamente, de ambas.”
966
Mas, não só ela, pois, mais tarde, vários outros
empreendedores morais da economia passaram a aproveitar-se daquelas para assegurar o
máximo da mais-valia - quiçá para contrabalançar as perdas econômicas e financeiras ocasionadas pela
abolição escravagista
967
-, puxando o salário para baixo também dos trabalhadores livres
968
-
embora de modo menos sensível nas “regiões onde a cultura do café preparara assim o terreno para a
aceitação de um regime de trabalho remunerado”
969
-, corolário inevitável da implacável lei
econômica da oferta e da procura. Lei econômica essa que, diante do “rápido crescimento
populacional”
970
- auxiliado “pela imigração, que ampliava a oferta de mão de obra
971
e acirrava a luta
pelos escassos empregos disponíveis”
972
, num ambiente hospitaleiro às oposições do governo, redundando num
“nativismo exacerbado”
973
e numa aversão “xenofobista floriana”
974
aos portugueses
975
, nominada de
“movimento jacobino”
976
-, e do anterior encilhamento
977
que, não se envergonhando do lucro
961
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 27.
962
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 118: “Como corporação, a Igreja podia ser aliada e até cúmplice fiel do poder
civil, onde se tratasse de refrear certas paixões populares....”
963
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 27.
964
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 27.
965
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 118.
966
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 17.
967
Sobre as contradições inerentes à abolição da escravidão, veja HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., pp. 77-78;
preferiu-se usar a expressão “abolição escravagista” a “abolição da escravidão”, por se entender que a abolição não encerrou
o escravismo, apresentado-o sob nova indumentária. Sobre o texto, veja CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p.
16. Sobre o assunto do texto, consulte CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 19.
968
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., pp. 117-119.
969
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 175.
970
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 17.
971
Se bem que tenha dito, quiçá para o início do processo de colonização-extração, HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes...,
p. 49: “ O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa
trabalho.”; e, citando CLENARDO, requenta (idem, pp. 49-50): “... se há algum povo dado à preguiça sem ser o português,
então não sei onde ele exista.”
972
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 21.
973
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 75: “E sabe-se que o nativismo lusófobo chegou a representar, direta e
indiretamente, uma ponderável influência no movimento para a supressão do tráfico.”; também, mas, textualmente,
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 64.
974
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 249.
975
CARVALHO, José Murilo de. Entre..., p. 101: “O alvo principal dos ataques jacobinos eram os portugueses, que constituíam
20% da população da cidade. Eram portugueses muitos comerciantes e banqueiros, mas também o eram muitos operários que
se viam assim excluídos da república jacobina.”; bem como, em CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., pp. 234 e 236-237;
ainda, em idem, p. 249; também, em CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 79-80: “De acordo com o censo de
1890, 30% da população da cidade (do Rio de Janeiro) era composta de estrangeiros. Destes estrangeiros, 70%, ou seja,
106.461, eram portugueses. A presença portuguesa era particularmente forte em alguns setores da população. Em 1890 eles
compunham 40% dos artesãos, 51% dos empregados no comércio e 53% dos empregados em transportes. Certas profissões
eram quase monopólio português. O embaixador de Portugal avaliou em 90% a participação de portugueses entre carroceiros
e cocheiros. A presença estrangeira era ainda muito forte entre a classe proprietária. Estrangeiros eram, em 1890, cerca de
30% dos proprietários, banqueiros e capitalistas. ...Em relatório escrito em 1893, um funcionário da legação portuguesa
calculava que seus patrícios controlavam cerca de 70% do capital financeiro, comercial e imobiliário do Rio.”
976
Sobre a composição das oposições ao governo, veja SEVCENKO, Nicolau. A revolta..., p. 10: “Essas oposições eram
constituídas basicamente de dois agrupamentos. O primeiro, muito difuso, se compunha genericamente do núcleo de forças
135
sem qualquer custo
978
, ou a todo custo de indiscrição e falta de ética
979
, não pôde não
acumular pessoas em ocupações mal remuneradas ou sem ocupação fixa”
980
. Nessa fase,
dizia-se acima, onde as instituições de sequestro foram percebidas como lucrativas, surgem os
primeiros indícios aproveitáveis e aproveitados pelo sistema penal, que se valeu muita vez do
discurso médico para transformar a sociedade em uma grande instituição sequestradora, sem
muros, limitada territorialmente apenas pela urbanidade seletiva que a cidade
esquadrinhava.
981
A influência do discurso médico na sociedade, porém, não parou por aí.
Historicamente, ele se acasalou muitas vezes com o discurso penal para, dessa união,
conceberem um produto que teima em continuar a proscrever todos aqueles que
desinteressam, seja lá porque motivo for e para o que quer que seja.
que ascenderam e se impuseram ao país durante a primeira fase do regime republicano, os governos militares de DEODORO
DA FONSECA e FLORIANO PEIXOTO - sobretudo este último. Tratava-se primeiramente de jovens oficiais, formados nas escolas
técnicas de preparação de cadetes, onde pontificavam as novas teorias científicas que propunham uma reorganização geral da
sociedade, inspirada na teoria de AUGUSTO COMTE, o positivismo, o qual preconizava uma nova civilização industrial,
administrada por gerentes de empresas, baseada numa legislação de proteção e assistência aos trabalhadores e governada por
uma ditadura militar. Acompanhavam esses jovens oficiais, que foram a base mesma do movimento que culminou na
proclamação da República, toda uma enorme gama de setores sociais urbanos, trabalhadores do serviço público, funcionários
do Estado, profissionais autônomos, pequenos empresários, bacharéis desempregados e a vasta multidão de locatários de
imóveis, arruinados e desesperados, que viam o discurso estatizante, nacionalista, trabalhista e xenófogo dos cadetes como
sua última tábua de salvação. Esse grupo era genericamente denominado de jacobinos (indicando sobretudo grupos de civis)
ou florianistas (referindo-se principalmente aos setores militares), ou ainda de republicanos vermelhos ou radicais. O outro
agrupamento dos conspiradores era formado pelos monarquistas depostos pelo novo regime.”; manuseie, outrossim,
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 21-23 e 64.
977
CARVALHO, José Murilo de. Entre..., pp. 97-98: “Ora, além de ter surgido em uma sociedade profundamente desigual e
hierarquizada, a República brasileira foi proclamada em um momento de intensa especulação financeira causada pelas
grandes emissões de dinheiro feitas pelo governo para atender às necessidades geradas pela abolição da escravidão. A febre
especulativa atingiu de modo especial a capital do País, centro dos acontecimentos que levaram à República. Em vez da
agitação dos especuladores, agitação que ela só fez aumentar pela continuação da política emissionista. O espírito de
especulação, de enriquecimento pessoal a todo custo, denunciado amplamente na imprensa, na tribuna, nos romances, dava
ao novo regime uma marca incompatível com a virtude republicana.”; de novo, CARVALHO, José Murilo de. Os
bestializados..., pp. 19-20: “Pelo lado econômico e financeiro, os tempos também foram de grandes agitações. ...Basta
lembrar que, devido à necessidade de aplacar os cafeicultores, especialmente do estado do Rio, e de atender a uma demanda
real de moeda para o pagamento de salários, o governo imperial começou a emitir dinheiro, no que foi seguido com
entusiasmo pelo governo provisório, este preocupado também em conquistar simpatias para o novo regime. Concedido o
direito de emitir a vários bancos, a praça do Rio de Janeiro foi inundada de dinheiro sem nenhum lastro, seguindo-se a
conhecida febre especulativa, bem descrita no romance de Taunay, O Encilhamento. ...Os anos de 1890 e 1891 foram de
loucura, segundo a expressão de um observador estrangeiro, o qual acrescenta ter havido corretores que obtinham lucros
diários de 50 a 100 contos e que uma oscilação de câmbio fazia e desfazia milionários. Por dois anos, o novo regime pareceu
uma autêntica república de banqueiros, onde a lei era enriquecer a todo custo com dinheiro de especulação.”
978
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 28: “A confiança na sorte, no enriquecimento sem esforço em
contraposição ao ganho da vida pelo trabalho honesto parece ter sido incentivada pelo surgimento do novo regime. É o que
revela o testemunho insuspeito de RAUL POMPÉIA: ‘Desaprendeu-se a arte honesta de fazer a vida com o natural e firme
concurso do tempo, do trabalho. Era preciso melhorar, mas de pronto: ao jogo pois!’, publicado no Jornal do Commercio, a 4
de janeiro de 1892.”
979
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 27.
980
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 17.
981
Para uma visão política e sociológica inicial e descomprometida da questão criminológica, veja CARVALHO, José Murilo
de. Os bestializados..., p. 12: “As cidades foram tradicionalmente o lugar clássico do desenvolvimento da cidadania. O
cidadão era, até etimologicamente, o habitante da cidade. Nelas se tornou possível a libertação do poder privado dos senhores
feudais. Nelas foi que aos poucos se desenvolveram a noção e a prática de um sistema de governo montado sobre o
pertencimento individual a uma coletividade. O burguês foi o primeiro cidadão moderno.”
136
Junto a isso, o fim do comércio negreiro representou, portanto, uma releitura do
trabalho e da sociedade na segunda metade do século XIX, porquanto obrigou a política,
valendo-se dos serviços médicos, a voltar novos olhares para a febre amarela
982
, única capaz
de, se não eliminada, impedir o embranquecimento - sem quarar ao sol -, via lusitanismo, do
nosso povo, sem o qual não avançaríamos agricolamente, dizia PEREIRA REGO.
983
Eleita,
portanto, doença do futuro, futuro incerto, advirta-se, a febre amarela obstaculizava uma mão
de obra mais barata, bem como uma urbanização e civilização mais europeizadas
984
que
encontravam no referido embranquecimento sem o uso de água - senão, mediante uma medicina -,
sanitária alvejante, uma velada significação étnica, propiciada por uma igual ideologia racial
que, concebida do esposamento da política com a medicina, viu na tuberculose e na varíola - a
despeito da volumosa morticidade
985
-, menos que na febre amarela, doenças que prescindiam de
atenção, porquanto “associadas a mestiços e pobreza”
986
- em um evidente “racismo por omissão”,
que conjugava auxiliar a natureza depurativa com o pressuposto da alteração do ambiente
987
-, enquanto
aquela, requente-se, restabeleceria a ordem trabalhista - mas, ainda sob o jugo do domínio, agora do
patrão, empreendedor moral por excelência -, não mais sussurada aos ouvidos pela gradual “idéia de
obter o barateamento do custo da mão de obra através da imigração e consequente inundação
do mercado de trabalho.”
988
Em vez disso, resolveram dar prioridade, gritando aos quatro
cantos, à desfaçatada idéia de substituir os afro-descendentes brasileiros por imigrantes
europeus em suas lavouras.
989
Nestes termos, aproveitando WACQUANT - que se ancora em BODÉ DE
MORAES e GARCIA DE SOUZA -, pode-se também dizer que “penalizar a miséria significa aqui ‘tornar
invisível’ o problema negro e assentar a dominação racial dando-lhe um aval de Estado.”
990
Nesse arco-íris que estava se tornando o Brasil, o preto não teria vez, ou melhor, no
retrovisor da história, os afro-descendentes, os pobres e os doentes, é dizer, os
desinteressantes e inempregáveis, deveriam ocupar o ponto cego!
982
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 92.
983
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 93.
984
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 93.
985
A estatística pode ser encontrada em SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., pp. 224-225; veja, ainda, CHALHOUB,
Sidney. Cidade..., p. 94: “Na cidade do Rio de Janeiro, a tuberculose matava implacavelmente todos os anos e o ano todo, e
desconfio que nas útlimas décadas do século fazia mais vítimas fatais do que todas as doenças epidêmicas de maior
visibilidade somadas. No entanto, nenhum plano de combate à doença foi jamais implementado na cidade ao longo do século
XIX. ...um plano, mesmo que modesto, de combate à moléstia havia sido elaborado por PAULA CÂNDIDO... ainda em 1859,
mas nem o próprio autor - ou qualquer outra autoridade -, parece ter pensado seriamente em aplicar as medidas
recomendadas.”
986
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 94.
987
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 95: “O trabalho da natureza, coadjuvada pela imigração e pela miscigenação, era a
eliminação paulatina da herança africana - isto é, a herança da ‘raça inferior’ -, presente na sociedade brasileira.”
988
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 95.
989
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 95.
990
WACQUANT, Loïc. As prisões..., p. 10.
137
Todavia, antes de continuar, é preciso pedir vênia a CHALHOUB para, acompanhando-o,
também dizer que “ao contrário de várias personagens presentes nesta minha história, eu não
tenho a mania da suspeição generalizada; isto é, eu realmente não acho que todos os
reformadores da cidade na virada do século eram movidos apenas por considerações
maquiavélicas e interesseiras.”
991
Naquele momento a que se estava referindo, em que a ascendente burguesia,
alvissareira em considerar todos os contratantes livres e iguais, tentava - e, sejamos convinháveis
que, naquele período, conseguiu
992
e, a hoje, continua conseguindo -, articular as contradições
inerentes a um discurso jurídico liberal - que pretendia equacionar a “radical incompatibilidade entre
as formas de vida copiadas de nações socialmente mais avançadas, de um lado, e o patriarcalismo e
personalismo fixados entre nós por uma tradição de origens seculares”
993
, de outro -, engajado no contrato
social, com as ordens inescondivelmente desigualitárias do capitalismo industrial e do seu
sistema de produção, reveladoras dessa farsa vazada na violência contra os desprovidos de
capital
994
, onde e quando, além disso, o novo regime republicano tentava organizar “outro
pacto de poder que pudesse substituir o arranjo imperial com grau suficiente de
estabilidade”
995
, “o discurso médico lhe foi especialmente útil”
996
, preenchendo, ainda que
remediadamente, os vazios desse denunciado farisaísmo igualitarista burguês mediante o
controle do homem descapitalizado.
997
Momento forjadamente propício - porquanto “os Haussmanns pululavam; projetavam-se
avenidas; abriam-se nas plantas squares, delineavam-se palácios, e, como complemento, queriam também uma
população cativa, limpinha, elegante e branca: cocheiros irrepreensíveis, engraxates de libré, criadas louras, de
olhos azuis, com o uniforme como se viam nos jornais de moda da Inglaterra; foi esse estado de espírito que
ditou o famoso projeto dos sapatos”
998
-, pontua VERA MALAGUTI BATISTA, pois, como alinhavado,
“é nesta época que pontifica o conceito de classes perigosas
999
...porque pobres
1000
, por
991
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 56.
992
Malgrado a interrogação de HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 78: “Como esperar transformações profundas em
país onde eram mantidos os fundamentos tradicionais da situação que se pretendia ultrapassar?”
993
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 79 e 160, in verbis: “Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo
democrático jamais se naturalizou entre nós. ...A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma
aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os
mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas.”
994
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., pp. 237 e 249.
995
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 31.
996
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 237.
997
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 237.
998
SANTOS, Joel Rufino dos. A lição de Péricles. In Discursos Sediciosos, Crime, Direito e Sociedade, 2° semestre de 1996,
ano 1, n. 2, p. 228.
999
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 20: “A expressão ‘classes perigosas’ parece ter surgido na primeira metade do século
XIX.”
1000
A vinculação entre pobreza e periculosidade, embora anterior, foi inflamada pelos estudos do francês M. A. FRÉGIER,
aproveitados, comodamente, pelos parlamentares do nosso pós-abolicionismo que, citando-o, oportunamente, aduzem,
segundo CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 21: “As classes pobres e viciosas, diz um criminalista notável, sempre foram e hão
138
desafiarem as políticas de controle social no meio urbano e também por serem consideradas
propagadoras de doenças”
1001
, classes essas comparáveis àquelas “perigosas ou
potencialmente perigosas de que se falava na primeira metade do século XIX.”
1002
De sorte
que O Jeca Tatu, de MONTEIRO LOBATO, em 1918 redefeniu os contornos dos perseguidos da
ocasião e o enredo do discurso, embora tenha ficado mantido o tom de voz e a posição
sobranceira do orador, sem que, todavia, tenha deixado de se passar, com efeito, de um
discurso racista para outro sanitário, pois, se “o matuto não era assim, ele estava assim”
1003
, e
se “o país era um vasto hospital que devia ser entregue aos cuidados dos sanitaristas, dos
cientistas, e não dos políticos”
1004
, é óbvio que ninguém mais adequado para o exercício desse
papel que o médico, oportunista, literalmente, de plantão!
Delinquência, vagabundagem, doenças venéreas e alcoolismo, eram as alcunhas
substitutivas da conjuntura para a lepra e a peste de outrora
1005
, incubadas em uns escolhidos e
etiquetados como perigosos - políticos, vagabundos, delinquentes, libertinos e prostitutas -, pelos
“médicos/estatísticos/policiais, de então [que] dedicaram-se a refletir sobre as causas que as
motivavam, e dessa forma configuraram a nova urbe como um extenso campo patológico a
ser estudado e reformado... para a manutenção da ordem social burguesa”
1006
, propiciada,
também em certa medida, pela vertente arquitetônica da medicina social que, na Inglaterra,
intervindo no desenho urbano, impôs-lhe a presença de parques públicos... capazes de gerar
ar puro e zonas de recreação, e ao mesmo tempo de dificultar as rebeliões populares e o
ocultamento de indivíduos suspeitos” e, na França, exigiria o alargamento das avenidas que,
além das funções médicas ditas próprias, impediria movimentos de descontrole por parte dos
descontentes
1007
, enquanto que, no Brasil, como visto, “desde 1870, percebeu-se uma
perseguição sistemática aos cortiços, que se transforma em histeria nas primeiras
administrações republicanas”
1008
, aguçadas pela ambição em retomar áreas centrais
de ser sempre a mais abundante causa de todas as sortes de malfeitores: são elas que se designam mais propriamente sob o
título de - classes perigosas -, pois quando mesmo o vício não é acompanhado pelo crime, só o fato de aliar-se à pobreza no
mesmo indivíduo constitui um justo motivo de terror para a sociedade. O perigo social cresce e torna-se de mais a mais
ameaçador, à medida que o pobre deteriora a sua condição pelo vício e, que é pior, pela ociosidade.”
1001
BATISTA, Vera Malaguti. Cuidado..., p. 306.
1002
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 18: “eram ladrões, prostitutas, malandros, desertores do Exército, da
Marinha e dos navios estrangeiros, ciganos, ambulantes, trapeiros, criados, serventes de repartições públicas, ratoeiros,
recebedores de bondes, engraxates, carroceiros, floristas, bicheiros, jogadores, receptadores, pivetes (a palavra já existia).”
1003
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., p. 255.
1004
CARVALHO, José Murilo de. Brasil..., pp. 255-256.
1005
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 245.
1006
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 243.
1007
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., pp. 243-244.
1008
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 25: “A destruição do cortiço carioca mais famoso da época não foi um ato isolado, e sim
um evento no processo sistemático de perseguição a esse tipo de moradia, o que vinha se intensificando desde pelo menos
meados da década de 1870, mas que chegaria à histeria com o advento das primeiras administrações republicanas.”;
referencialmente, também, BATISTA, Vera Malaguti. Cuidado..., p. 306.
139
privilegiadas cuja valorização imobiliária recrudescia
1009
, mas não sem a desculpa médica de
haver-se diagnosticado que “os hábitos de moradia dos pobres eram nocivos à sociedade, e
isto porque as habitações coletivas seriam focos de irradiação de epidemias, além de,
naturalmente, terrenos férteis para a propagação de vícios de todos os tipos.”
1010
Prenunciando um lamentável porvir e sem o saber, embora naquela época
contrariando o positivismo jurídico, DOMINGOS RIBEIRO DOS GUIMARÃES PEIXOTO, Barão de
Igarassu, em sua obra cujo título
“é tão comprido quanto bajulador: Aos Serenissimos Principes Reaes do Reino Unido de
Portugal, e do Brazil, e Algarves, os senhores D. PEDRO DE ALCANTARA e D. CAROLINA JOZEFA
LEOPOLDINA, offerece, em signal de gratidão, amor, respeito e reconhecimento estes prolegomenos,
dictados pela obediencia, que serviráõ ás observações, que for dando das molestias cirurgicas do
paiz, em cada trimestre etc.... começa por ‘indagar as prodigiosas causas que em hum Paiz podem
influir directa ou indirectamente na saude dos individuos’. Afirma que a vida depende
‘intimamente dos agentes exteriores, com os quais tem relações directas (...) o aparelho da
respiração por ex. necessita para o seu exercício do ar athmosferico, o da digestão, das
substâncias alimentares, e assim todos os mais’. Uma concepção hipocrática, portanto. Mas, em
um ponto, GUIMARÃES PEIXOTO discorda do Pai da Medicina: ele não aceita as ‘diatheses humoraes’.
HIPÓCRATES postulava a existência de quatro humores, o sangue, a linfa, a bile amarela e a bile
negra, cujo equilíbrio (ou desequilíbrio) condicionaria o temperamento da pessoa. GUIMARÃES
PEIXOTO acreditava antes em predisposição, constitucional ou herdada, para doenças como a tísica,
o raquitismo, a gota. A influência do ambiente reforça a importância da higiene, mais importante
que a terapêutica na concepção do autor. Ou seja, mais vale prevenir do que remediar.”
1011
Obviamente, algo havia por trás disso tudo, qual sendo, o fato de que “os republicanos
construíram todo um belo discurso como justificação de suas ações contra a cidade negra.
Agiram em nome da higiene, da moral e dos bons costumes, do progresso e da civilização.
Jamais admitiram que eram movidos também pelo medo.”
1012
2.6 As putas deveriam ficar em uma triste memória
1013
Entre, provavelmente, menos espanto que exagero, escreve VINÍCIUS BITTENCOURT, sem
o devido desconto, que ele sempre se revoltou
“contra o desapreço com que se encara a função social das putas. Sei que essa postura resultou,
como SCHOPENHAUER esclareceu, do corporativismo das mães e dos pais de família que precisavam
descartar suas filhas. Na época em que as mulheres estavam excluídas das profissões rendosas,
era necessária a união de todas para que o homem só pudesse consegui-las através do casamento.
Quando, pois, alguma entregava-se sem exigir matrimônio, a corporação sentia-se prejudicada em
seu monopólio sexual e hostilizava a infratora. Hoje, porém, quando os antibióticos e a pílula
anticoncepcional libertaram as mulheres, quando elas competem com os homens em todas as
atividades, não mais se justifica a conduta dos que depreciam as mulheres que optam pela
prostituição ou a ela são compelidas. Quando, numa zona boêmia, um jovem tentou esconder-se
de CATÃO, disse-lhe o severo censor romano que melhor seria ele ali permanecer, pois de outro
modo estaria pondo em risco a integridade sexual das moças de família. Essa função social que as
1009
BATISTA, Vera Malaguti. Cuidado..., p. 306.
1010
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 29.
1011
MOACYR SCLIAR, em introdução à reedição de opúsculos publicados, originariamente, na época em que D. João esteve no
Brasil, in SILVA, Manoel Vieira da; PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. A saúde..., pp. 20-21.
1012
CHALHOUB, Sidney. Medo..., p. 186.
1013
Aqui, faz-se reverência à obra de MÁRQUES, Gabriel Garcia. Memória de minhas putas tristes. São Paulo: Record, 2005.
140
putas exercem, ou seja, a de preservar a tranquilidade das famílias, não deveria ser esquecida
pelos seus beneficiários. Muitos estupros e casamentos temerários são evitados porque elas
suprem uma necessidade que a natureza impôs a todos os homens normais. As leis que
incriminam o lenocínio ou restringem a atividade das meretrizes servem para incentivar a
extorsão policial, encarecer os serviços prostibulares e degradar uma classe que todos deveriam
proteger e respeitar, porque sem ela estaríamos condenados à frustração, a convolar casamentos
inconvenientes ou ao onanismo. Sim, porque todos os homens devem às prostitutas o que o
teriam conseguido sem sua colaboração. Muitos se iniciaram sexualmente nos bordéis. Outros
livraram-se de psicoses recorrendo a essas clínicas de desafogo. Casamentos ainda perduram
porque os maridos podem, de vez em quando, livrar-se da monotonia conjugal em leitos
estranhos. Ademais, além de ser a mais barata, a mulher paga não tem ciúmes, não atormenta o
homem, não o enche de filhos, não pede pensão ou alimentos, nem comete adultérios porque a
ninguém pertence. Só a ingratidão e a hipocrisia podem explicar a hostilidade com que muitos se
comportam com relação a essa classe benemérita. Assim compreendendo, sempre tratei com
extrema cortesia essas mulheres e, quanto à sua remuneração, sempre entendi que dinheiro de
puta é sagrado. Em sua profissão, as putas são mais honestas do que as moças de família, porque
exigem do homem apenas o pagamento pelo serviço que lhe prestam. As vestais familiares,
porém, concentram no homem suas ambições e pretendem que ele satisfaça todos os seus
caprichos. Atuam como o icnêumone, cujas larvas devoram os tecidos do seu hospedeiro.
Mantêm permanente vigilância sobre a conduta do homem e aprovam as ações que a elas
beneficiam. Condenam tudo que o as favoreça ou concorra para libertar o prisioneiro. Em
suma, para concederem o que as putas vendem a preço de mercado, as moças de família simulam
ingenuidade e pureza, iludem o homem com promessas de amor eterno e o exploram a mais não
poder. Para DON JUAN, porém, que as conhecia, elas eram ‘santas na igreja e macacas na
cama’.”
1014
Bom. Como dito acima, de uma medicina individual passou-se, rapidamente, e por
razões alimentadas pela propagandeada necessidade de uma higienização dos espaços
públicos - porquanto, no século XIX, os segmentos sociais desclassificados
1015
eram associados pela
intelectualidade européia, dissociada politicamente da metrópole e, sobretudo, a partir da Constituição de
1824 e do Código Criminal de 1830, à idéia de desordem
1016
-, a uma medicina social
1017
a que logo
coube, relata ENGEL, “um lugar de destaque na tarefa de conter aquilo que era visto como o
‘caos urbano herdado do período colonial’, através da produção de um conhecimento que
continha a perspectiva de intervenção sobre todos os aspectos do cotidiano urbano”
1018
em
atendimento a prescrições republicanas exigentes de uma modernização das cidades, embora de acordo com
1014
ÁVILA, Vinícius Bittencourt de Souza. Falando francamente. In Falando francamente. Vitória: edição do autor, 1999, pp.
37 a 39.
1015
Sobre o conceito de desclassificação social, veja SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro. Rio de Janeiro:
Graal, 1982, p. 14 apud ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 23, nt. 11 e pp. 27-28: “Como observou LAURA DE MELLO E SOUZA,
a categoria dos desclassificados sociais - dentro da qual estão inseridas as prostitutas -, surge e se amplia na sociedade
colonial como produto da política metropolitana orientada no sentido de povoar o Novo Mundo através da utilização de
segmentos sociais que ameaçavam a estabilidade da sociedade metropolitana.”
1016
ENGEL, Magali. Meretrizes..., pp. 23-24 e 29: “Desde então, e de maneira intimamente referida à atuação policial, aqueles
que buscam organizar a ordem imperial passaram a distinguir três mundos: o Mundo do Governo, o Mundo do Trabalho e o
Mundo da Desordem.”
1017
Citando ROSEN, George. Da polícia médica à medicina social. Rio de Janeiro: Graal, 1980, pp. 49 e 50, veja ENGEL,
Magali. Meretrizes..., p. 50: “Segundo o referido autor, a idéia de medicina social surgiria, em 1833, a partir das reflexões de
JULES LEROUX e se desenvolveria nas obras sobre higiene social de J. A. ROCHOUX (1838) e de FOUCAULT (1844) (sic).
Contudo, somente em 1848 JULES GUÉRIN introduziria a expressão e definiria o conceito de medicina social que, reunindo os
campos da polícia médica, da saúde pública e da medicina legal, dividia-se em quatro partes: fisiologia social - que trataria,
por exemplo, da ‘relação entre as condições físicas e mentais de uma população e suas leis ou outras instituções sociais’;
patologia social - que compreenderia ‘o estudo de problemas sociais em relação à saúde e à doença’; higiene social - onde se
situaria a preocupação com a fixação de ‘medidas para a promoção da saúde e prevenção de doenças’; e terapia social - que
seria responsável pela investigação dos meios adequados ao tratamento da ‘desintegração social’ e de ‘outras condições que
as sociedades podem experimentar’.”
1018
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 12.
141
uma bitola européia importada
1019
-, “dentre os quais a prostituição”
1020
- mormente a partir de 1890,
em que fora incorporada como objeto da dedicação médica
1021
-, mas, que, no fim e, genericamente,
qualificava a todos como “indesejáveis e perigosos”
1022
e, por isso - é dizer, por serem “escravos,
mendigos, loucos, vagabundos, ciganos, capoeiras etc.
1023
-, assevera FREIRE COSTA, “a eles vão ser
dedicadas outras políticas médicas”, continuando entregues “à polícia, ao recrutamento militar
ou aos espaços de segregação higienizados como prisões e asilos.”
1024
Na esteira dessa intervenção médico-administrativa, a medicina brasileira do século
XIX não só agiu sobre o corpo doente, muita vez curando-o, senão que, em um ambiente
1025
e
mediante um cotejo que lhe era convinhável, também considerando mórbida
1026
, ou melhor,
desordenada a cidade, pretendeu curá-la consoante uma ordenação prática pautada pela
definição prévia da saúde e da higiene até então não vigentes
1027
, revelando-se no exagero
detectado por ROBERTO MACHADO et alii, vazado em que “todos os componentes urbanos, todos
os lugares, objetos e elementos devem estar sob controle e sob seu (do médico) [e da
medicina] controle”
1028
, de que serve como exemplo, como se verá, a prostituição,
considerada doença
1029
i. e., associada às moléstias venéreas
1030
-, e, ipso facto - razão da invocação
e dita legitimação da “atuação saneadora do médico”
1031
-, motivo de desordem
1032
, extraindo daí sua
periculosidade social a aliciar, a final, a atividade do médico, então também protetor e
ordenador urbano, ainda que em sentido bifurcado, ora em favor da sua regulamentação
1019
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 134: “Em meio às mudanças que alteraram, profundamente, o perfil do Rio de Janeiro,
no decorrer do século passado, os médicos se dedicavam a formular, ao lado de outros segmentos da intelectualidade, um
projeto de modernização da cidade, de acordo com padrões e valores burgueses importados da Europa.”
1020
Textual, ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 12; citando, em parte, HERCULANO AUGUSTO LASSANCE CUNHA, recorre-se a
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., pp. 122-123: “A escravidão... era tida como causa de prostituição: ‘A escravidão portanto
dos negros e seu avultado número são as causas que figuram em primeiro lugar na prostitução do Rio de Janeiro.’ ...A
escrava foi usada contra a mulher com o objetivo de culpá-la e torná-la responsável pela infelicidade, doença e morte dos
filhos. Foi, também, usada como lente deformadora da conduta sexual dos homens, que passaram a ver em seu corpo o perigo
das doenças venéreas e da degeneração da prole.”
1021
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 63.
1022
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 23.
1023
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 33.
1024
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 33.
1025
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 51: “Foi preciso, ainda, excluir da tarefa o curandeiro e o charlatão, já que somente ao
saber científico, único legítimo, caberia cumpri-la.”
1026
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 53: “A perspectiva adotada na abordagem médica destas questões se orienta no sentido
de definir o Rio de Janeiro como uma cidade doente, ou seja, como um espaço infectado que deve ser conhecido e tratado.”
1027
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 51.
1028
MACHADO, Roberto et alii. Danação..., p. 260 apud ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 54.
1029
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 66: “A concepção da prostituição como principal meio de produção e difusão das
moléstias venéreas definia-a, antes de tudo, como doença, inserida seguramente no campo dos estudos de higiene médica e
saúde pública.”
1030
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 64.
1031
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 64.
1032
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 58: “...o Dr. JOÃO MACEDO JÚNIOR defendia, na Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro, a tese Da prostituição no Rio de Janeiro e da sua influência sobre a saúde pública, onde mesmo caracterizando a
prostituição como um ‘cancro hediondo, que salientemente se destaca no quadro das misérias sociais’, situava o seu estudo,
antes de tudo, como um ‘importante ponto de higiene pública’.”
142
sanitária, ora, ou mesmo pari passu, em desfavor da sua não proibição
1033
, servindo como
outro exemplo a negação do vínculo entre escravidão e falta de emprego para os livres e sem
posses, onde os médicos, numa visão romântica e minimalista da miséria nacional, atribuíam
a pobreza dos escravos à indolência, enquanto na europa industrializada esta caberia à
ausência de trabalho e aos salários diminutos.
1034
em 1890 houve uma mudança dessa ótica passando a falta de emprego e os baixos
salários pagos às mulheres a ser a pedra de toque da motivação da prostituição, porquanto
aqueles fatores sociais condicionavam aquelas a optar, segundo um médico coevo, entre “a
miséria ou a desonra.”
1035
Por outro lado, continua ENGEL, “a análise do campo semântico das palavras
prostituição e prostituta... revela que o sentido da doença
1036
não se restringe ao aspecto
físico, compreendendo também uma dimensão moral
1037
e uma dimensão social.
1038
Assim, a
prostituição
1039
é classificada pelo médico como uma ameaça - pois, “incentivando o consumo e a
circulação do luxo na sociedade, a prostituta, inadvertidamente, entrava para a lista negra da higiene
1040
,
além disso, “as prostitutas cometiam... uma outra falta higiênica, a de perverterem com o exemplo desregrado
de suas vidas, a moral da mulher-mãe”
1041
-, “que, transcendendo a extensão física do corpo, atinge
a família, o casamento, o trabalho e a propriedade.”
1042
Doença e ameaça
1043
porque, na
1033
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 104: “Quanto às formas de tratamento prescritas, o discurso médico sobre a prostituição
apresenta, portanto, uma certa heterogeneidade marcada pela presença de duas tendências: a defesa e a oposição à
regulamentação sanitária da prostituição pública.”
1034
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 96.
1035
Dr. COSTA FERRAZ, citado por ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 97.
1036
ENGEL, Magali. Meretrizes..., pp. 80 e 86: “A noção de perigo disfarçado que caracteriza a prostitução, tal como esta é
concebida no discurso, revela-se também como um dos aspectos enfatizados na dissecação do corpo da prostituta. Caberia,
portanto, ao médico descobrir, por trás de uma aparência saudável e bonita, a doença e os defeitos físicos. ...no início do
século XVIII, J. B. SILVA esforça-se para justificar cientificamente essa convicção que, por si só, leva a considerar as
prostitutas como mulheres perigosas.”
1037
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 88: “Como a doença física, a doença moral também manifesta um caráter contagioso, o
que amplia o seu grau de periculosidade.”
1038
ENGEL, Magali. Meretrizes..., pp. 30 e 93: “Associada à vadiagem, mendicância e alcoolismo, a prostituição é situada,
nos textos legais que vigoraram durante o período imperial, no âmbito da desordem moral e social. ...Se devassar o bordel e a
intimidade da família implica a necessidade de proteger a instituição do matrimônio, perscrutar os espaços da sexualidade
expressa o compromisso da medicina com a verdade científica e o dever do médico de preservar a saúde não só física, mas
também moral, do corpo.”
1039
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 243: “O higienista mais conhecido foi o médico francês ALEXANDRE PARENT-
DUCHÂTELET (1790-1836), autor, no mesmo ano da sua morte, de um tratado sobre a prostituição, o grande tema dos
higienistas, na cidade de Paris.”
1040
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 266.
1041
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 265.
1042
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 16.
1043
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 98: “A prostituição é ainda definida como fonte da doença social em dois sentidos
básicos: seja enquanto espaço de reprodução da miséria, seja enquanto lugar de produção do luxo ilícito. Ambos constituem,
no discurso, os eixos fundamentais em torno dos quais o médico constrói a imagem da ameaça social que marcaria os
contornos da prostituição. ...Mas, no plano da ameaça social, o luxo e a miséria igualavam-se no perigo que representavam,
pois ambos simbolizavam a negação do trabalho.”
143
concepção da sociedade daquela época, a prostituição era equiparada à desordem
1044
, cuja
averiguação e terapêutica cabia ao médico.
Além dessa, contribuindo naquela ótica coeva e oblíqua para o efeito de desordem e de
periculosidade - presumida, o que é pior -, havia, requente-se, a presença de escravos e dos
setores livres desclassificados, representando uma ameaça cotidiana em razão do embate e da
confusão resultante do acotovelamento do mundo do trabalho com o mundo do caos, cuja
juzante se expressaria nas constantes epidemias citadinas.
1045
Daí, a necessidade de
(re)disciplinarização e (re)normativização - bem à maneira daquela dissertada por ZAFFARONI, BATISTA,
ALAGIA e SLOKAR
1046
-, capitaneadas, repita-se, pelo médico
1047
na busca de uma
(re)civilização.
1048
Dimensionar esse poder
1049
presenteado ao, ou conquistado pelo médico, implica
reconhecer que ele, imiscuindo-se no seio privado das pessoas, bem como no interior das
famílias, “usando argumentos de autoridade, respaldado na sua formação universitária e
científica... passava a opinar sobre tudo o que dissesse respeito à mulher: desde os aspectos
relacionados à sua constituição física e mental até a conveniência do vestuário e dos hábitos
da moda - como o uso de espartilhos, a frequência a bailes etc. -, para a sua saúde.”
1050
De maneira que, “a higienização das cidades, estratégia do Estado moderno, esbarrava
frequentemente nos hábitos e condutas que repetiam a tradição familiar e levavam os
indivíduos a o se subordinarem aos objetivos do Governo”
1051
, precisando, em razão disso,
o médico, penetrar no “espaço familiar e, através do estabelecimento da confiança e de um
contato mais íntimo com a mulher, ir tentando modificar, aos poucos, o perfil das relações
familiares”
1052
, porquanto, “a reconversão das famílias ao Estado pela higiene tornou-se uma
tarefa urgente dos médicos”
1053
, pois, sem ela, não conseguiriam espraiar sua atuação para
toda a urbe.
1044
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 32: “Desde 1830, quando foi criada a Câmara Municipal da cidade do Rio de Janeiro, as
Posturas Municipais seguiam, com relação à prostituição, a mesma linha de orientação que observamos na legislação
produzida pelo governo central, ou seja, a prática da prostituição não seria objeto de repressão, a não ser nos casos em que
ameaçasse a tranqüilidade e a moral públicas, podendo, assim, ser identificada à desordem.”
1045
Meio que por aí, ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 38.
1046
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal brasileiro: teoria geral
do Direito Penal, v. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 53.
1047
Que, embora fosse o segmento menos importante da classe dirigente, era o que possuía os rendimentos mais elevados. In
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 38, nt. 47.
1048
ENGEL, Magali. Meretrizes..., pp. 38-39.
1049
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 69: “...o saber médico buscou legitimar-se e consolidar-se ao longo do século XIX,
como uma nova instância de poder na sociedade.”
1050
ENGEL, Magali. Meretrizes..., pp. 43-44.
1051
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 30.
1052
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 44.
1053
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., pp. 30-31.
144
Daí que, como discurso dirigido aos despersonalizados da instituição aberta de
sequestro, confinamento e disciplina totais que se tornou a cidade, nessa empreitada
(re)organizadora votada à (re)construção de “estratégias disciplinares do cotidiano urbano”
1054
e
“fundamentados na antiga teoria dos miasmas
1055
, os médicos pintavam um quadro dramático,
onde a doença e a morte faziam parte do cotidiano urbano. Ruas estreitas e tortuosas, a presença
de morros e elevações dificultavam a renovação do ar, tornando-o pesado e insalubre. A
inexistência ou precariedade de um sistema de esgotos fazia indispensável a atividade dos
tigres
1056
, transformando as praias em depósitos de detritos. O lixo acumulado nas ruas, as
condições precárias de abastecimento de água, os mangues e pântanos, as aglomerações de
pessoas em habitações que não ofereciam as menores condições de salubridade - os cortiços, os
casebres dos morros de Santo Antônio e do Castelo, os casarões coloniais etc. -, eram aspectos
considerados essenciais na configuração de um ambiente propício ao surgimento e reprodução da
doença. As epidemias grassavam pela cidade - febre amarela, cólera, varíola etc.”
1057
Nessa época, em que as doenças não tinham mais origem sagrada ou divina, tampouco
era uma mais sagrada ou mais divina que outra
1058
, a origem de todas migrou,
inevitavelmente, para o meio ambiente - e, o que é pior, para o ser humano descartável, que também já
o compunha -, viés natural, a partir de então, que motivou tanto a dessacralização da morbidade,
quanto a sua atribuição e fixação em elementos, agora
1059
, exclusivamente naturais.
1060
Mas,
aqui se mantinha o mesmo erro de perspectiva de antes, qual sendo, o “ares, águas e lugares
não se dedica à terapia, apenas a sugere, ao identificar o mal.”
1061
1054
ENGEL, Magali. Meretrizes..., pp. 47 e 53: “As origens de uma produção médica voltada, prioritariamente para questões
relacionadas ao cotidiano urbano situam-se, como vimos, na década de 1830, com a criação da Academia Imperial de
Medicina e da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.”
1055
CAIRUS, Henrique F.; RIBEIRO JÚNIOR, Wilson A. Textos..., p. 65, nt. 87: “o termo miasma em nosso idioma - no qual essa
palavra significa ‘emanação deletéria’ - não tem o mesmo significado que no grego, onde designa a mácula moral hereditária
ou física (De flatibus, 5).”
1056
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 47, nt. 64: “Os escravos encarregados de remover as matérias fecais ficaram conhecidos
como tigres.”
1057
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 47.
1058
CAIRUS, Henrique F.; RIBEIRO JÚNIOR, Wilson A. Textos..., p. 143: “O problema que o tratado Ares, águas e lugares -
assim como o Da doença sagrada - propõe não é, portanto, a dessacralização da doença, mas a distribuição igualitária da
característica por todas as doenças....”; embora, em outra ocasião (idem, p. 145), afirmem, que: “Os tratados Da doença
sagrada e Ares, águas e lugares parecem tentar substituir o espaço do sagrado por uma patologia fisiológica...”
1059
Quanto ao “antes”, veja CAIRUS, Henrique F.; RIBEIRO JÚNIOR, Wilson A. Textos..., p. 138: “O solo, as águas e os ventos,
com as suas características, formam as contingências divinas com as quais os homens têm de conviver, dispondo as suas
vidas de acordo com essa realidade à qual nem o leigo nem o médico têm acesso.”
1060
Comentando dois tratados inseridos no “universo do século da tragédia”, dizem CAIRUS, Henrique F.; RIBEIRO JÚNIOR,
Wilson A. Textos..., pp. 131-132: “Para os dois tratados, determinadas doenças não podem ser mais sagradas do que outras,
ainda que nenhuma deixe de sê-lo. Para o autor dos tratados, o erro não é considerar as doenças sagradas ou divinas, mas
considerar uma especialmente mais divina do que outra. Os dois tratados partem do mesmo princípio: nenhuma doença é
mais divina, nem mais sagrada do que qualquer outra. Entretanto, cada um dos tratados dirige-se para uma direção diferente
na observação da doença. Poder-se-ia mesmo dizer que, quanto à idéia de sagrado, o discurso do Da doença sagrada é mais
negativo do que o do Ares, águas e lugares. Enquanto o primeiro parece ter por motivação a negação do caráter
especialmente divino de uma determinada doença, o outro procura essa sacralidade pelo viés da natureza do meio ambiente.”
1061
RIBEIRO JÚNIOR, Wilson A. In CAIRUS, Henrique F.; RIBEIRO JÚNIOR, Wilson A. Textos hipocráticos: o doente, o médico
e a doença. In coleção história e saúde, clássicos e fontes. Rio de Janeiro: Fiocruz. 2005, p. 133.
145
2.7 O controle, a disciplina e a neutralização da loucura a favor de um mercado
de trabalho dominado pelo capital
Como visto, mirando a civilização, bem como a disciplina da cidade, não se limitou a
intervenção médica ao corpo físico, contagiando, também, o corpo social. Mas, tal discurso só
foi possível mediante a substituição do contratualismo pelo organicismo que, ainda que sem
saber, apropriou-se da “fábula utilizada na antiga Roma por MENÊNIO AGRIPA para convencer os
plebeus a trabalhar para os patrícios e controlar sua revolta, visto que se tratariam dos
membros e da cabeça, respectivamente, de um mesmo corpo.”
1062
E o fez não alienando a
alienista psiquiatria que, inserida no discurso de uma medicina individual, e amasiada à sua
alma gêmea social - também chamada higienista -, não se incomodou em, não conseguindo
envergar aqueles física e mentalmente imodificáveis
1063
, romper-lhes, forçada e
indelicadamente, suas estruturas mesmo que à laia de destruí-las de forma indelével
1064
e sob
a escusa de um utilitarismo organicista
1065
, porque, na ocasião, subsidiado pelo controle
populacional
1066
tendente a fornecer cidadãos saudáveis aos fins burgueses, num movimento
pendular entre o crime e a doença
1067
e, respectivamente, entre o encarceramento e a
hospitalização, resumindo, um grande sequestro com fins de otimização e adequação, sem os
quais a cura, sobretudo mental, seria impossível.
1068
Com efeito, ensina MEDEIROS PEREIRA,
“sob essa... perspectiva, as instituições psiquiátricas são vistas... como exercendo funções
características de instituições sociais de controle; ou seja, inserindo-se entre o homem (como
cidadão ou não) e o sistema social (fundamentalmente representado pelo Estado ou por grupos
sociais dominantes), de modo a garantir que (ou pressionar para que) as pessoas sejam
1062
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., pp. 251-252.
1063
Embora mais à frente refira-se ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 239, ao seguinte: “A intenção seria a de modificar
o modificável. Era absurdo, nessa época, pensar-se em mudar o clima ou a geografia, mas era possível e desejável modificar
o habitat e, particularmente, as populações de um ponto de vista geral ou individual.”
1064
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 237: “Igualmente, e de maneira diretamente relacionada com a modificação do
indivíduo, o caráter e o meio social também podiam ser mudados.”
1065
Que olvidou a síntese dialética exposta por MIRA Y LÓPEZ apud TEIXEIRA, Julius Martins. O homem..., p. 138: “‘O ser
humano é, na verdade, um aglomerado de substância viva, uma imensa colônia celular, mas nela se observam, além das
atividades próprias da vida ‘elementar’ de cada uma de suas micropartes, outras - globais, individuais, inter e supracelulares
ou pessoais -, que lhe imprimem um peculiar modo de viver e comportar-se, assegurando não só sua sobrevivência no espaço
e no tempo, como sua expansão e transcendência em outro plano, mais recente: o plano superpessoal ou social.’ (Quatro
gigantes da alma, p. 3).”
1066
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 242.
1067
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 138: “...da definição e tratamento da doença mental poder-se-ia dizer o que
FOUCAULT diz da definição e punição das infrações, ou seja, que são feitas ‘para manter os mecanismos punitivos e suas
funções’.”
1068
Entendendo exagerada e equívoca essa conclusão, PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 130 e seguintes.: “...há
uma tendência acentuada (e errônea) de analisar a psiquiatria como se ela tivesse sido criada para sujeitar os que transgrediam
os valores da sociedade burguesa emergente às normas racionalizadoras criadas por essa mesma sociedade. Na verdade, os
fenômenos foram contemporâneos. A psiquiatria não nasceu para atender a uma necessidade da ordem burguesa.
Simplesmente seu aparente caráter técnico-científico era mais congruente com os valores dessa sociedade (quanto mais não
seja, porque sua origem é comum, obedecendo aos mesmos fatores causais), especialmente em relação ao entendimento e
tratamento daquilo que passou a ser considerado doença mental.”
146
convenientemente adestradas para o exercício de atividades que garantam a continuidade e a
integridade desse sistema.”
1069
Desafivela-se, portanto, a outra faceta do discurso médico, mais uma censitária,
fiscalizadora, controladora e neutralizante, qual sendo, a da detecção, exclusão por inclusão
nas instituições totais manicomiais, e neutralização dos mentalmente considerados anormais
para o mercado de trabalho. Disse-se, dos mentalmente anormais, apesar de a psiquiatria,
aliando-se à polícia, à igreja e à justiça, não se limitar, atualmente, mais a eles, alcançando e
controlando com sua órbita, segundo MEDEIROS PEREIRA, “condutas desviantes que
originalmente nada tinham a ver com a ‘anormalidade’ medicamente definida”, passando
“comportamentos tidos como ‘anormais’ ou ‘imorais’ na esfera da sexualidade, antes tidos
como pecaminosos e, portanto, sob autoridade decisória da Igreja - e também, às vezes, da
polícia -, ...para o seu campo.”
1070
Atingindo e alterando o indivíduo - nessa última hipótese, como
prefere ainda MEDEIROS PEREIRA, em razão de “o cumprimento de funções tão extensas” exigir do psiquiatra,
“como não poderia deixar de ser” “que o diagnóstico ‘de doença mental’ se tornasse tão ou menos ‘científico’
que na primeira metade do século XIX, baseando-se, ainda, no relato e nas denúncias de pessoas, grupos e
instituções interessadas na rotulação de alguém como ‘doente mental’”
1071
-, e, ou, atingindo-o e
sequestrando-o, alcançava-se, por ricochete, a sociedade que via no manicômio ou asilo
1072
a
instituição total
1073
da proscrição
1074
, repressão, disciplina e controle dos indesejados ou
inaptos à nova economia
1075
, leia-se, o “outro”
1076
que, sob o infeliz rótulo genérico,
sufragado no Código Criminal Imperial de 1830, e repetido no Código Civil de 1916,
continha, ou melhor, fazia conter os “loucos
1077
de todo o gênero”
1078
, alvos primeiros que,
outrora - i. e., no início da Idade Moderna -, da indistinção entre loucos e delinquentes, todos
1069
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., pp. 142-143.
1070
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 143.
1071
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 143.
1072
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 237.
1073
Equivalendo a nomenclatura e a função, WACQUANT, Loïc. As prisões..., p. 143.
1074
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 138: “De modo geral e fundamentalmente, atribuem-se às instituições
psiquiátricas asilares as mesmas funções atribuídas a uma série de instituições sociais voltadas para o controle social: isolar e
excluir do convívio com o meio social (para tratamento, punição etc.) pessoas ou grupos sociais determinados.”
1075
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., pp. 138-139: “Asilando, excluindo de alguma forma, ou ainda, simplesmente
imputando a uma pessoa o caráter de enfermo mental (frequentemente associado, no julgamento popular, ao ‘louco’), a
psiquiatria (por uma de suas facetas, a de instituição de controle) pode esvaziar o discurso do doente, impedir a frutificação
de exemplos de conduta e, até mesmo, evitar (ou pelo menos minorar) conflitos ou desentendimentos que podem surgir em
vários níveis (na família, no ambiente de trabalho, na vizinhança, na comunidade etc.), decorrentes da desobediência às
normas por parte das pessoas ou grupos nomeados como doentes mentais. Isso porque a questão relativa a essas pessoas é
tornada médica, o que é a mesma coisa que dizer que é tecnificada.”
1076
“Outro” que, verbi gratia, pode ser muito bem representado pelos, unanimemente, indesejados moradores do cortiço
Cabeça de Porco, inseridos no contexto da sua demolição desse, segundo CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 19; ainda,
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 248.
1077
Sobre quem, dizia BARRETO, Lima. O cemitério dos vivos. São Paulo: Brasiliense, 1956, pp. 151-152 apud CHALHOUB,
Sidney. Cidade..., p. 23: “...A polícia, não sei como e por que, adquiriu a mania das generalizações, e as mais infantis... [para
ela] todos os loucos hão de ser por força furiosos e só transportáveis em carros blindados.”
1078
No Código Civil de 1916, veja artigo 5°, inciso II, enquanto que no Código Criminal do Império, veja artigo 10, 2°.
147
“possuídos pelo demônio”
1079
, a psiquiatria
1080
, ramo da medicina mais em voga então, fazia
questão de, desfocadamente, não errar, principalmente quando o escopo último era seu
confinamento
1081
, sanção, afirma FREIRE COSTA, em última medida, supletiva daquela cabida,
mas inaplicável pela não responsabilidade
1082
, pelo rompimento do contrato social que,
determinada e executada pelo médico psiquiatra o deixava de respeitar, in these, os
preceitos humanitários.
1083
Em pormenor, como teria sido possível à psiquiatria agir desse modo?
“Atuando de forma a parecer a todos (aos dominados e aos próprios agentes sociais da
dominação, os médicos psiquiatras) que tal intervenção era inteiramente neutra em face dos
interesses das camadas sociais hegemônicas. Ou seja, a psiquiatria, diante de uma série de
problemas gerados pelo funcionamento ‘normal’ dessa sociedade, produzia um discurso
cientificista suficientemente coerente e capaz de mascarar e desarticular as relações entre a
alienação mental e a sociedade. ...Ancorada num discurso política e socialmente asséptico, a
‘Psiquiatria tornava-se necessária para recolher, através dos asilos, esses seres que eram
considerados obstáculos ao bom andamento da Ordem social’.”
1084
Não tendo a conjuntura mudado muito desde então
1085
, porquanto, se na Revolução
Francesa a loucura era atribuída a uma causa física
1086
exigente de cuidados e não de castigo,
a realidade terapêutica repete um tratamento obviamente punitivo
1087
, malgrado os avanços
que a psiquiatria, em sua inaugurada fase romântica, obteve desde JOHANN CHRISTIAN REIL, no
século XIX, quando este considerou “a doença mental um fenômeno predominantemente
psicológico.”
1088
Sendo que, para MEDEIROS PEREIRA, que parece adotar um funcionalismo
social, e não econômico, doença mental
1089
“poderia ser (e é), com certa frequência, encarada como uma ‘disfunção’, no sentido de as pessoas
manterem (ou não manterem) relacionamentos sociais que diminuem a adaptação ou ajuste do
sistema social, na definição de disfunção de MERTON. Ou seja, elas teriam uma conduta
divergente, sendo incapazes de exercer um papel social útil (ao sistema social existente) ou, então,
o exerceriam inadequadamente. Diga-se de passagem que PARSONS teve oportunidade de definir o
papel de enfermo em geral como um tipo de conduta divergente, tanto que, para legitimar
socialmente seu papel, o doente necessitaria do assentimento da coletividade, especialmente do
aval de seu representante técnico nesse campo, o médico. No caso do doente, principalmente
1079
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 246; genérica e historicamente, MUCHEMBLED, Robert. Uma História do Diabo:
séculos XII a XX. São Paulo: Bom Texto, 2001.
1080
Todavia, o termo “psiquiatria” só surge no século XIX, segundo ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 247; fixando,
ainda que indiretamente, a partir de 1830, COSTA, Jurandir Freire. História da psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. 5.
ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2007, p. 39.
1081
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 246.
1082
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 52.
1083
Nessa direção, ancorando-se em CASTEL, veja COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 51.
1084
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 140.
1085
Mesmo após a metade do século XIX, MOREL ainda “colocava a delinquência ao lado da loucura e da doença mental....”,
in ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 249.
1086
TEIXEIRA, Julius Martins. O homem..., p. 137: “ Durante a maior parte da história da humanidade o homem vem se
empenhando em desvendar cientificamente os fenômenos naturais, especialmente no mundo físico, secundarizando aqueles
que acontecem na sua subjetividade, como os afetos, isto é, os sentimentos e as paixões que formam a base do seu
comportamento psicossocial.”; mais tarde, conforme ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 248: “Chegava-se, assim, a
objetivar a loucura como um problema próprio de uma falha somática no cérebro ou como consequência da interrupção de
sua evolução.”
1087
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 247.
1088
TEIXEIRA, Julius Martins. O homem..., p. 143.
1089
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 131 e seguintes.
148
mental, atribuir-lhe a enfermidade a um comportamento divergente também teria funções sociais
(contribuição, agora, para o ajuste do sistema). Tal atribuição, por exemplo, retira do
comportamento o possível conteúdo de rebelião contra (ou simples indiferença aos) valores
estabelecidos e social e culturalmente aceitos. Como diz PARSONS, por meio desse mecanismo,
eliminam-se dois perigos: ‘A formação de um grupo de desviantes e sua pretensão em fazer
reconhecer sua legitimidade. Ligados a um grupo de não-desviantes, os doentes mentais formam
um grupo apenas estatístico, sendo-lhes recusada a possibilidade de constituir uma coletividade
solidária’, além de se atribuir ao papel uma condição pouco invejável.”
1090
Entrementes, é possível discordar desse reconhecimento apenas social do doente
mental como um desviado. Ora, doente mental ou não, socialmente ele é reputado neto, filho,
irmão e até mesmo pai, não sendo preciso parar por aí a relação de parentesco, sempre
reconhecível, além da condição de cidadão possuidor de todos os direitos, excluídos os
financeiros ou, ao menos, os redutíveis a essa categoria. Enquanto que é, como acabou-se de
rascunhar, economicamente
1091
- embora, na lição de WEBER, não o seja, nem o deva ser,
exclusivamente
1092
-, que seu desvio é reconhecido, classificado, realçado e disciplinado, agora
sim com o aval do médico, colimando-se proscrevê-lo do mercado de trabalho, depositando-o
como entulho desinteressante ao capitalismo. De todo modo, parece mais adequado, tout
court, considerar a condição de insatisfatório do doente mental, perante um marco referencial
socioeconômico, perceptível em três aspectos:
“na improdutividade dos próprios doentes; no obstáculo à expansão e dominação da ideologia
típica da sociedade industrial burguesa, representado pela não-adesão a ela (ou sua não-
concretização) por parte dos ‘alienados’; no impedimento maior ou menor, por parte destes, de
suas famílias trabalharem adequadamente, uma vez que, ‘inativos e mantidos em casa,
necessitavam de observação permanente e de cuidados, o que equivaleria a subtrair braços ao
processo de trabalho’.”
1093
De tudo isso, talvez, a única certeza seja que não pode haver rigidez entre normalidade
e loucura
1094
, se é que essa, como alertou THOMAZ SZASZ
1095
, realmente existe, mesmo
considerando-se que a inclusão por exclusão de uma pessoa nessa ou naquela categoria
depende quase que exclusivamente do preenchimento ou não de condições mais econômicas e
sociais
1096
que médicas.
1097
Essa rotulação - elaborada, tecnicamente, pelo médico, com o aval da
1090
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., pp. 130-131.
1091
A influência da questão econômica, do lado da medicina, pode ser encontrada em PEREIRA, José Carlos de M. A
explicação..., pp. 179-180: “Em suma poderíamos, por exemplo, no caso de certas associações de caráter econômico voltadas
para a prestação de serviços médicos, alterar nosso interesse e ordenar a relação social investigada mais por seus elementos
econômicos que propriamente médicos.”
1092
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 159: “Julga [WEBER], contudo, que teria sido fecunda e criativa a análise
dos fenômenos sob a perspectiva de seu condicionamento econômico. O que repele vigorosamente é aquela postura
metodológica segundo a qual um fenômeno histórico não fica devidamente explicado enquanto não forem encontradas suas
causas econômicas.”
1093
BIRMAN, Joel. A psiquiatria como discurso da moralidade. Rio de Janeiro: Graal, 1978, pp. 240-241.
1094
Sobre isso, veja PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 135.
1095
SZASZ, Thomas S. O mito..., passim.
1096
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 136: “...se verificaria a influência de fatores sociais como o grau de
instrução, posição social, religião etc., como variáveis que poderiam dificultar ou favorecer o surgimento de sintomas
identificados como de doença mental.”
1097
Ancorando-se em SINGER, P.; CAMPOS, O.; OLIVEIRA, E. M. de. Prevenir e curar. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 59,
veja o que diz PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 143: “Isso significa que a categoria ‘doença mental’ é elástica e
149
tecnicidade do discurso da medicina
1098
-, maquiaria, mediante a desqualificação dos interlocutores,
passados, então, a desqualificados, as contradições de um sistema social que teima tanto em
esquivar-se de uma autocrítica, tampouco em enxergar que sempre o comportamento anormal
é mais imposto que natural, estimulando, com efeito,
“o desenvolvimento de instituições de controle... as quais, extravasando seus limites iniciais,
poderão vir a controlar desviantes políticos (ao facilitar sua categorização como doentes mentais).
...Isso significa que, para decidir se um determinado fato social constitui uma função ou disfunção
seria preciso fazer um balanço de suas contribuições positivas e negativas e verificar qual o seu
saldo líquido para o ajuste ou desajuste do sistema social. Obviamente, nesse balanço, as funções
latentes (nem sempre devidamente reconhecidas pelos participantes do processo) devem ser
ativamente buscadas e analisadas. Isso nos levaria, por sua vez, à discussão do problema de quais
grupos, segmentos ou classes sociais seriam beneficiados, e quais seriam prejudicados por um
determinado entendimento da doença mental e pelas ações postas em prática para tratá-la.”
1099
Podendo ser acrescentado a esse balanço atuarial a questão econômica, mote principal
do lançamento contábil que se enquadrará na coluna dos anormais - e, para usar uma classificação
civilística -, imóveis para os efeitos legais, ou na dos normais, meros semoventes e, portanto,
úteis ao mercado de trabalho.
Marionete entre as exigências da cultura e da natureza, o homem ao longo do tempo
precisou equacionar umas e outras sob pena de ser reputado louco.
1100
Sendo que esse
equacionamento exigiu um constante reequilíbrio no sentido de ele se adequar menos às
normas naturais, aproximando-se cada vez mais das culturais de seu tempo, pois sua
anacronicidade ou ucronicidade - é dizer, sua “demora cultural”, no dizer de OGBURN -, o
enlouqueceria, ao menos aos olhos da sociedade, ansiosa em utilizar o homem miserável,
embora normal e culturalmente atualizado.
1101
Se bem que, ainda que veladamente, ab initio, e ainda hoje pela Igreja e, mais tarde,
também pelo Estado burguês já havia, estatisticamente, mediante um conhecimento anotado e
anotável, uma técnica de controle diretamente populacional, e, indiretamente econômico por
meio do registro dos nascimentos, batismos e óbitos
1102
em que, com o apoio do saber, podia-
que, apesar de criada por médicos, é influenciada pelos interesses do sistema social (o que é o mesmo que dizer interesses das
classes sociais dominantes), que poderiam ser afetados de alguma forma pela conduta desviante de pessoas que se recusam,
por exemplo, a cumprir ‘adequadamente’ seus papéis sociais, não importando se a recusa é um protesto ou uma
incapacidade.”
1098
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 139: “Pessoas e grupos sociais, ao terem seu comportamento desviante
devidamente rotulado, identificado e explicado por uma instituição técnica afeita a essa tarefa, acabam recebendo uma pecha
que os desclassifica como interlocutores válidos: a de marginas e insensatos. Seu discurso, e principalmente seu
comportamento, são avaliados superficialmente ou mesmo negativamente, dando-se a eles uma atenção e significado
diferentes daqueles que usualmente seriam atribuídos a pessoas tidas como normais. Porém, e nessa mesma linha de
raciocinio, a direção do doente mental pelo médico constituiria (teria por função) uma tentativa, por parte deste, de introduzir
no universo mental (e moral) daquele as normas e valores sociais vigentes na subcultura dominante (identificada com ‘a
cultura’). Em qualquer nível de atuação, as táticas instrumentais utilizadas pela instituição psiquiátrica visariam, em última
instância, no dizer de BIRMAN, transformar o alienado mental, no período que estudo, pelo menos em sujeito-das-normas.”
1099
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 137.
1100
BIRMAN, Joel. A psiquiatria..., p. 152 apud PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., pp. 133-134.
1101
BIRMAN, Joel. A psiquiatria..., pp. 240-241 apud PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 134.
1102
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 239.
150
se transformar o (in)transformável
1103
porquanto, em verdade, apenas o impróprio e
imprestável é que deveria submeter-se a um procedimento de mudança.
1104
Com a chegada do
legalismo, ou melhor, de um certo positivismo - e sua boa acolhida, “justamente por esse repouso que
permite ao espírito as definições irresistíveis e imperativas do sistema de COMTE
1105
-, e consequente
saída, ainda que pela porta dos fundos - que acesso a um novo cômodo desapegado nesse novo
ambiente social -, dos castigos
1106
, assumiu a polícia médica
1107
- visto que o Estado não podia,
descaradamente, violar as liberdades individuais, ancoradas na ideologia liberal
1108
-, a função
1109
ordenadora, é dizer, higienizadora e profilática dessa nova classe de desajustados à economia
nascente, cabendo sua terapêutica às instituições totais como os asilos, manicômios,
penitenciárias et reliqua
1110
, naquilo que “FOUCAULT chamou de ‘grande confinamento’.”
1111
Ainda quanto à dita loucura, a não facilidade contrafática de refutação ou
comprovação - empiricamente menos difícil que na frenologia -, pelo leigo, do acometimento de uma
doença mental - provavelmente em razão de a morbidez que acomete o cérebro estar encerrada em uma
caixa óssea inacessível, além da, muita vez, invisibilidade dos sintomas daquela -, escancarava os portões
para a entrada, nessa categoria, desde pequenas perturbações até desatinos efêmeros, tudo ao
sabor da conveniência do discurso médico e, de corolário, dos “métodos das ciências naturais
e do que será o ‘positivismo’”
1112
- que, em terras de cá, enebriavam-se por um “racismo científico” que
enxergava, por razões históricas coetâneas à adoção da etiqueta de classes perigosas, sobretudo nos afro-
1103
Embora ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., na passagem da página 239 para a 240, nos diga, que: “O saber, a ciência
ilustrada e a desse século de invenções aproximava-se cada vez mais da tecnologia, pois se trataria de um saber para
transformar.”; nesta mesma página revela, que: “Como se observa, havia, nessa intervenção estatal, mais intenção
conservadora do que intenção transformadora.”; todavia, ao final, elucida seu pensamento: “Para mudar algo com o objetivo
final de que o importante não deve ser modificado.”; de sorte que, em verdade, o que há é um relato, pelo autor, do diálogo
entre conservadores e progressistas. Daí, a dubiedade da palavra acima.
1104
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 240.
1105
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 158: “Para seus adeptos, a grandeza, a importância desse sistema prende-se
exatamente à sua capacidade de resistir à fluidez e à mobilidade da vida.”
1106
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 247: “...na realidade também se aplicará sobre o qualificado de louco uma tarefa
disciplinar que continuará mantendo traços em comum com a das orientações filantrópicas dos castigados.”
1107
Sobre essa instituição e suas funções, veja ROSEN, George. Da polícia médica à medicina social: ensaios sobre a história
da assistência médica. Rio de Janeiro: Graal, 1979, passim. Ainda, MACHADO, Roberto et alii. Danação..., p. 167 apud
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., pp. 32-33, nota 10: “‘Polícia médica passa a ser definida como o conjunto de teorias,
políticas e práticas que se aplicam à saúde e bem-estar da população, dizendo respeito a: procriação, bem-estar da mãe e
criança, prevenção de acidentes, controle e prevenção de epidemias, organização de estatísticas, esclarecimento do povo em
termos de saúde, garantia de cuidados médicos, organização da profissão médica, combate ao charlatanismo (...) É na obra de
JOHANN PETER FRANK, publicada de 1799 a 1817, que o conceito de polícia médica aparece sistematizado com maior
precisão. Pode-se ver como a sociedade como um todo se torna passível de regulamentação médica, que a saúde passa a ser
problema social. Daí a necessidade de autoridades constituídas para agir no sentido de preservá-las (...)’ A medicina,
integrada no Estado, adquire estatuto social ao fazer da sociedade seu objetivo. A polícia médica é sua expressão.”
1108
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 51.
1109
Sobre as funções da polícia médica, veja ROSEN, George. Da polícia médica à medicina social: ensaios sobre a história
da assistência médica. Rio de Janeiro: Graal, 1979, passim.
1110
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 238.
1111
FOUCAULT, Paul-Michel. História da loucura: na idade clássica. In estudos. São Paulo: Perspectiva, 2008, n° 61, p. 45 e
seguintes apud ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 238.
1112
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 248, e p. 249: “Todo delito seria definitivamente um fenômeno patológico,
causado pela interação de fatores biológicos hereditários e sociológicos ambientais. Isso se relaciona, evidentemente, com o
positivismo criminológico, presente particularmente em um livro posterior, Sobre a formação de tipos, de 1864.”
151
descendentes, alvos preferenciais da suspeição a partir de 1888, em razão da perda de controle, outrora voltado
à acumulação de riqueza do proprietário sobre o (ex)escravo
1113
, “‘hábitos condenáveis’ na sua maneira de
morar, vestir, trabalhar, se divertir e curar”
1114
, entendendo isso como algo congênito e inerente àqueles,
certamente em razão da observação de MURILO DE CARVALHO, de que “diziam os positivistas
1115
que os mortos
governavam os vivos, o passado o presente”
1116
, numa ressurreição recalcada onde os erros de antes voltariam
para atormentar aqueles que só erraram aos olhos dos etiquetadores de ontem e de hoje, porquanto, para ele “a
República não produziu correntes ideológicas próprias ou novas visões estéticas”, misturando correntes
ideológicas prontas “como o liberalismo e o positivismo”, malgrado impulsionando outras, “como o
socialismo”, e importando outras, “como o anarquismo”
1117
-, o que justificava, segundo ANITUA, o
imenso número de aprisionados, na época, sob aquela justificativa, autografada por uma
medicina muito mais policial - cujo mote era conjugar a ordem social com a saúde pública -, que
preocupada, necessariamente, com a doença e o doente.
1118
De sorte que, a suspeição
generalizada foi a parafernália substitutiva encontrada para, mantendo os dispositivos de
controle - outrora dispostos confortavelmente nas mãos de um senhor -, reestabilizar, agora fora da
unidade produtiva, os ganhos de ontem, ad instar de uma fetichização da mercadoria
1119
,
aferível, desde então, com arrimo em caracteres abstratos e impalpáveis, mas sem direito à
devolução como nos contratos de venda a contento!
Encarada como uma epidemia, ou melhor, uma endemia - ainda que grassando apenas na
geografia que convinhava à medicina formal-oficial -, a loucura
1120
, em toda generalidade que esse
termo encerra, inclusive hoje, mas, considerando-se, sobretudo, o que escreveu GIALLUISI DA
SILVA SÁ, ou seja, que “o que a sociedade rejeita é loucura não partilhada, a loucura ‘anormal’,
isto é, aquela que foge à insanidade comum” e que “tantas vezes têm sido classificados de
loucos comportamentos que, entretanto, nada mais são do que diferenças culturais não
assimiladas e nem admitidas”, sendo que, “as definições de loucura variam não de região
para região, como de família para família, em obediência a normas de comportamento que
1113
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 23.
1114
BATISTA, Vera Malaguti. Cuidado..., p. 307.
1115
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 159: “No Brasil, os positivistas foram sempre paradoxalmente negadores. Não
eram positivos – pode dizer-se -, em nenhum dos sentidos que a essa palavra atribui AUGUSTO COMTE em seu Discurso sobre
o espírito positivo.
1116
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 14.
1117
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., pp. 24 e 42.
1118
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 238.
1119
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 28: “O princípio do fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade por ‘coisas
supra-sensíveis embora sensíveis’, se realiza completamente no espetáculo, no qual o mundo sensível é substituído por uma
seleção de imagens que existe acima dele, e que ao mesmo tempo se fez reconhecer como o sensível por excelência.”; veja,
ainda, CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 24.
1120
SÁ, Domingos Bernardo Gialluisi da Silva. Ayahuasca: a consciência da expansão. In Discursos Sediciosos, Crime,
Direito e Sociedade, 2° semestre 1996, ano 1, n. 2, p. 168: “O que, um dia, foi definido como loucura, absurdo, herético ou
fantasioso e, por isso, até condenado à morte e queimado nas fogueiras, hoje integra, muitas vezes, o quadro das ciências ou
doutas formulações doutrinárias. ...E somos pródigos em condenar, como loucos, aqueles que percebem o que não
atingimos.”
152
acabam por codificar ‘a forma corrente de ser louco’”, chegando mesmo a observar “MARIA
JOSÉ DE QUEIROZ, acrescentando que para MICHEL FOUCAULT, ‘cada cultura faz da doença uma
imagem cujo perfil é desenhado pelo conjunto das virtualidades antropológicas que ela
negligencia ou que reprime’; e conclui: ‘há, em toda parte, a maneira conveniente ou aceitável
de ser louco’”
1121
; a loucura, estava sendo dito acima, promovia a transmissão da exceção
para a regra, onde a polícia médica, a todo instante, e sob qualquer indício intervinha a fim de
restaurar ou manter as ideologias do novo governo.
1122
Daí a passagem, pois repercutiu
essencialmente nas teorias da pena, para um defensismo social utilitarista, visto que sob um
ângulo de visada não mais contratual aquele que delinque “revela, desse modo, sua natureza
associal, isto é, trata-se de uma célula doente dentro do organismo”
1123
, merecendo ele, em
vez da retribuição, a cura ou, o que é pior, a eliminação
1124
mediante uma exclusão inclusiva.
Durante o século XIX, portanto, ou melhor, na virada desse para o XX
1125
- e, consoante
VERA MALAGUTI BATISTA, “é neste contexto que surge a ideologia da higiene”
1126
, que no início da República
transformadora urbana potencializou, ao ver de MURILO DE CARVALHO, “os velhos problemas de abastecimento de
água, de saneamento”, culminando no “mais violento surto de epidemias da história da cidade”
1127
fluminense
-, a transcendência de um Estado feudalista para um burguês remeteu a densidade
populacional existente no campo para os, em razão disso, grandes centros, ocasionando, de
corolário, também, um aumento demográfico nesses que passaram a ser uma única e grande
instituição total aberta - mas, não desvigiada -, de concentração
1128
que, aliada ao entendimento
da sociedade como um organismo vivo, diga-se ao passar, mas também doente - e, com efeito,
primeiramente exigente de controle
1129
-, podia ser tratada seja mediante a cura ou a eliminação do
indivíduo doente, seja mediante a cura de todo o organismo - sujeito, perigosamente, a um contágio
por todos aqueles desfavorecidos economicamente
1130
-, e isso podia, em uma união necessária,
irreversível e indelével entre saber e poder, obviamente, ser feito pelos únicos competentes à
época, quais sendo, os médicos que disciplinando os espaços públicos e particulares, à laia de
reorganizar o organismo, higienizavam-no
1131
, quando, em verdade, a programação
1121
Interpolando QUEIROZ, Maria José de. A literatura alucinada. Rio de Janeiro: Atheneu, p. 71 apud SÁ, Domingos
Bernardo Gialluisi da Silva. Derecho..., p. 161.
1122
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 239.
1123
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 242.
1124
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 242.
1125
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 36.
1126
BATISTA, Vera Malaguti. Cuidado..., p. 306.
1127
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 19.
1128
Os mais curiosos que pesquisarem a origem etimológica da palavra “concentração”, verão que sua alocação no texto não
é debalde.
1129
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 244: “Certamente, ‘controle’ era a palavra-chave deste movimento médico.”
1130
BATISTA, Vera Malaguti. Cuidado..., p. 306.
1131
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 242.
153
higienizadora secundária estava, em última medida, voltada para abastecer um sistema que
“precisava criar uma estragégia de repressão contínua fora dos limites da unidade
produtiva.”
1132
Esse lugar que acolheria referida repressão contínua seria o hospício, em mais um
acasalamento da medicina com agências envolvidas com a questão penal, qual sendo, a
polícia, dando no que deu, ou seja, na medicina legal e na psiquiatria.
Pois bem. O acasalamento entre o discurso médico e o penal chegou às bodas de
diamante. E a sua lua de mel começou, como visto, logo com um arrombamento, i. e., “o pé-
na-porta sanitário”, dizem ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, fundamentou-se
“num discurso cujas metáforas foram incorporadas por criminólogos e juristas, na conjuntura
favorável da invenção européia das medidas de segurança (as quais no entanto ingressarão
expressamente no Direito Penal brasileiro em 1940). Num livro de 1894, VIVEIROS DE CASTRO
divulga um pensamento segundo o qual o crime ‘é o effeito do contagio, transmite-se como um
micróbio’”
1133
,
quiçá o “micróbio da pândega”, de que nos fala MURILO DE CARVALHO
1134
.
Continuando, dizem ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR que,
“dois anos mais tarde, o futuro chefe de polícia, AURELINO LEAL, daria a lume seu Germens do
Crime; um oficial superior do Exército publicava em 1926, na edição inaugural da Revista
Policial, artigo intitulado O micróbio do crime. Como esses transportes são geralmente
recíprocos, um médico contemporâneo daquele oficial - a expressão higiene mental entrava em
moda -, se preocupava com as taxas de ‘incapazes, de mendigos
1135
, de criminosos, de anormais
de todo gênero que dificultam e oneram, pesadamente, a parte e produtiva da sociedade’.
1136
,
1137
A intervenção higienista, que das casas e quintais
1138
do ‘bota abaixo’
1139
,
1140
,
1141
1132
BATISTA, Vera Malaguti. Cuidado..., p. 306.
1133
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 443.
1134
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 28.
1135
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 28: “O aviltamento da idéia de trabalho, relacionado ao caráter escravista da sociedade
colonial, bem como o traço agroexportador da economia, conferem especificidade e abrangência ao significado das
expressões vadio e vadiagem, que serviam para designar todo o universo de atividades que se situavam fora da estrutura
básica da produção colonial. Assim, o controle dos desclassificados caracterizar-se-ia... pela ambigüidade da ação dos
poderes estabelecidos que, ora os concebendo como ônus, ora os concebendo como utilidade, oscilava entre a repressão,
através de mecanismos explicitamente violentos, e a sua utilização em serviços complementares, mas, contudo, essenciais.”;
foi o que aconteceu, por exemplo, com as prostitutas em Sorocaba, segundo informa idem, pp. 28-29: “Em 1771, por
exemplo, Dom LUIZ ANTÔNIO DE SOUZA recomendava ao Capitão-Mor JOSÉ DE ALMEIDA LEME a prisão e o desterro das
‘mulheres fadistas’ existentes em Sorocaba. ...A intenção da punição é clara: de perturbadoras da ordem, estas mulheres
seriam transformadas em elementos úteis, contribuindo para o povoamento de regiões desertas.”
1136
Ad exemplum, consulte o que diz ENGEL, Magali. Meretrizes..., pp. 100-101: “Apontada como um dos principais núcleos
de contaminação da doença física e/ou moral do corpo a prostituição apresenta-se como espaço de reprodução da
incapacidade para o trabalho. Degenerando física e moralmente corpos saudáveis, transforma-as em corpos inúteis,
socialmente doentes. ...Gerando incapacidade para o trabalho e a devastação da propriedade, produziria o indivíduo inútil, ou
seja, inabilitado para o exercício da cidadania.”
1137
Advertindo que o médico referido no texto não coincide com o que ora se cita, traz-se à lume os dizeres ofensivos, porém
reais, deste, sendo ele SILVA, Manoel Vieira da. Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para
melhorar o clima da cidade do Rio de Janeiro, in SILVA, Manoel Vieira da; PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. A
saúde..., p. 78: “Deixando aos homens de literatura as mais convincentes respostas a semelhantes argumentos, dizemos só a
bem da sociedade, juntando ao que fica dito: que se os pretos fossem mais caros, não haveria tanta gente miserável no Brasil,
que apenas por si, ou por outros, chegou a possuir um preto, ou dois, roubou-se todo o outro meio de indústria, vive
unicamente do trabalho daqueles miseráveis, entregando-se a uma vida ociosa, que se deve considerar a mais carinhosa mãe
dos vícios; e daqui se segue, que no estado de doença os miseráveis pretos morrem à míngua de alimentos e medicamentos,
porque, cessando os lucros deles, cessam as possibilidades dos donos.”
154
modernizador
1142
se deslocara para os próprios corpos, na revolta da Vacina
1143
, invadia agora a
subjetividade pelos caminhos da ‘degenerescência’
1144
,
1145
e da ‘higiene mental’; para a
viabilização política deste percurso, foi preciso que ela houvesse chegado à teoria da pena. No
livro de um dos fundadores da escola de Polícia do Rio, GIZLENE NEDER percebe essa chegada: ‘no
lugar do castigo, remédios’.
1146
Este saber médico, que influencia cada vez mais as decisões
judiciais criminais, e mesmo na prática decide diretamente uma parcela dos casos (inimputáveis
por doença mental), se acasalará clinicamente com a técnica policial”
1147
- inclusive utilizando, ambos, o mesmo discurso técnico-simbólico, favorável a todos
1148
-,
1138
Que de espaços de “ordem”, bem policiados e ordenados, na ruptura do vigilantismo proposta por COLQUHOUN, em seu A
Treatise on the Police of the Metropolis, passaram, evidentemente, a espaços de “ordenação”, obviamente, sem perda do
policiamento, deslocado, agora, aos higienistas. Sobre as idéias de COLQUHOUN, veja NEDER, Gizlene. Absolutismo..., p. 205.
1139
MOACYR SCLIAR, em introdução à reedição de opúsculos sobre medicina publicados na época em que D. João este no Rio
de Janeiro, in SILVA, Manoel Vieira da; PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. A saúde..., p. 21: “Feitas as condições
gerais, o médico analisa o caso particular do Rio de Janeiro, cuja topografia considera desastrosa: ‘Huma immensidade
prodigiosa de serras empinadas e horrorosas o cercão por todos os lados.’ Como VIEIRA DA SILVA, considera particularmente
nocivo o Morro do Castelo, que barra o caminho dos ventos e represa a água da chuva (mais um argumento a favor da
destruição do morro, que depois viria a acontecer). Os cursos d’água são poluídos; os prédios, mal construídos, as ruas,
estreitas; as ‘immundicias’ estão por toda parte. Parece que GUIMARÃES PEIXOTO preparava o terreno para o ‘bota-abaixo’, a
reforma urbana que PEREIRA PASSOS, com base no que fizera o Barão HAUSSMANN em Paris, levaria a cabo algumas décadas
depois.”
1140
SILVA, Manoel Vieira da. Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para melhorar o clima da
cidade do Rio de Janeiro, in SILVA, Manoel Vieira da; PEIXOTO, Domingos Ribeiro dos Guimarães. A saúde..., pp. 71 a 79:
“O Morro do Castelo será tão prejudicial à cidade como até agora se tem suposto! Deverá entrar no plano da polícia do Rio
de Janeiro a sua demolição? ...Temos demonstrado que a atmosfera própria desta cidade e o Morro do Castelo, considerados
isoladamente, são por si muito débeis obstáculos à saúde pública; ver-se-á agora a grande força que adquirem na sua reunião
as outras grandes causas. ...As águas estagnadas adquiriram pelas continuadas observações de todos os tempos o principal
lugar entre as causas da insalubridade de qualquer local; é logo para lastimar que o homem observador entrando nesta Cidade
a descubra por todos os lados cercada de lugares pantanosos. Nós sabemos que ali estão em digestão e dissolução substâncias
animais, e vegetais, as quais, na presença dos grandes calores, entrando em putrefação, dão origem a pestíferos gases, que
devem levar a todos os viventes os preliminares da morte, já pela sua ação imediata na periferia do corpo e na continuação
das suas membranas, já pela entrada nos órgãos da respiração. ...É por conseqüência da boa polícia o aterrar todos os lugares
pantanosos, o encanar as águas para aquelas valas que se julgarem suficientes ao seu despejo, e que devem participar das
alternativas da maré; ...é igualmente certo que a nutrição depende da boa dissolução dos alimentos, donde se forma o bom
quilo; porque, do contrário, segue-se a demora de substâncias degeneradas no estômago, de que se seguem as doenças que
mais reinam na cidade....”
1141
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 40: “As reformas tiveram como um dos efeitos a redução da
promiscuidade social em que vivia a população da cidade, especialmente no centro. A população que se comprimia nas áreas
afetadas pelo bota-abaixo de PEREIRA PASSOS teve ou de apertar-se mais no que ficou intocado, ou de subir os morros
adjacentes, ou de deslocar-se para a Cidade Nova e para os subúrbios da Central.”
1142
NEDER, Gizlene. Absolutismo..., p. 204: “Na passagem à modernidade temos um deslocamento do controle social que era
realizado dentro da própria unidade de produção (o feudo/o engenho/ou a fazenda de café) que passa a ser exercido pelo
Estado. O panoptismo passa a ter, portanto, uma forma mais difusa de organização e exercício de prática política”
1143
CHALHOUB, Sidney. Medo..., p. 187: “A luta entre estes modos diferentes de viver a vida deu-se nas ruas, e a revolta da
vacina em 1904 pode ter sido o último grito de protesto da cidade negra clássica - o grito estridente de consciências
diferentes, que chamavam apenas por um pouco de tolerância.”
1144
Sobre os caminhos da degenerescência no Brasil, veja SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., pp. 46 e 56-57.
1145
ENGEL, Magali. Meretrizes..., p. 15: “...assistimos, hoje, à transformação da AIDS num instrumento de controle da
sexualidade não menos sutil, nem tão distinto da sífilis, que vigorou durante o século XIX e princípios do XX. Não é, pois, de
se estranhar que, em 1987, o delegado aposentado, TELES DE MENEZES, inspirado nas velhas propostas de regulamentação
sanitária da prostituição - formuladas por médicos e chefes de polícia no século passado -, apresente um projeto para retirar
‘...todas as prostitutas da Boca do Lixo (SP) e colocá-las numa área cercada e identificá-las por número, com a presença de
policiais.”; outrossim, BRETAS, Marcos Luiz. O informal..., p. 221: “...esta parece ser a atitude comum da polícia em relação a
prostitutas, constrangê-las a mudar-se para outra área, de preferência as zonas de tolerância.”
1146
CAIRUS, Henrique F.; RIBEIRO JÚNIOR, Wilson A. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença. coleção história e
saúde, clássicos e fontes. Rio de Janeiro: Fiocruz. 2005, p. 71, nt. 114: “Mesmo que se considere que o termo ‘remédio’ é
semanticamente mais abrangente do que a palavra ‘medicamento’, a proximidade, em nosso vernáculo, entre esses
vocábulos, leva-me a considerar a ênfase no fato de se tratar de um procedimento terapêutico em sua íntegra, e não somente
na aplicação de um medicamento.”
1147
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 443-444.
1148
CHALHOUB, Sidney. Cidade..., p. 37: “Em primeiro lugar, as autoridades policiais utilizam uma retórica semelhante à dos
higienistas, e clamam por ação contra a suposta imundície de um cortiço e o despejo irregular de lixo. Esse tipo de
155
“num lugar arquitetônico especial: o anfiteatro dos institutos de medicina legal
1149
, na superação
da luta por poder travada entre a academia e as repartições médico-policiais, segundo um modelo
que NINA RODRIGUES implantaria na Bahia e AFRÂNIO PEIXOTO aplicaria no Rio. Bastem-nos tais
notas para a compreensão dessas trocas, que edificaram o manicômio judiciário
1150
; que ainda
hoje perduram, se já não nos salões nobres das universidades, onde viveram, certamente nos
obscuros laudos que cotidianamente orientam o poder punitivo; que prestamente acorreram à
épica moderna da eletricidade para inventar as terapias de eletrochoque, da eletrotortura e - no
país das grandes empresas e da pesquisa científica -, da cadeira elétrica.”
1151
Na sua concepção moral - com certeza a mais perseguida
1152
-, talvez pela confusão com
uma tentativa de higienização mental, melhor dizendo, de estandardização burguesa, pois tudo
aquilo que refugisse do modelo moral burguês, reputado normal, seria considerado anormal,
imoral, incível ou doente
1153
, atingiram os higienistas a penologia que não se limitava apenas
a propor o encarceramento do preso “num lugar isolado para que se ‘curasse’ mediante a
moralização”
1154
- servindo a casa, no caso das prostitutas, como padrão de instituição total de sequestro -,
copiando, desfaçatadamente, aspectos ideológicos e arquitetônicos das instituições totais
religiosas conhecidas à época, que também excluíam pelo confinamento. Por outro lado,
como não era impossível que uns poucos membros da burguesia fossem acometidos por
malefícios físicos ou morais - noticiando a passagem da invulnerabilidade
1155
para uma vulnerabilidade,
ainda que provisória -, as instituições totais nosocomiais foram divididas em aquelas destinadas a
alienados, cuja periculosidade indissociável lançava-os em espaços pouco distintos das
prisões, e aquelas dirigidas àqueles burgueses, ditas “‘balneários’ de cura
1156
, tentativa
infeliz, naquele tempo de, simbolicamente, demonstrar à massa hostilizada que a igualdade
burguesa não era somente formal, senão, também material, ou seja, de que não um bode
expiatório, senão, todo um rebanho expiado!
1157
procedimento se acentuará a partir da década de 1870; na verdade, higienistas e autoridades policiais estarão quase sempre do
mesmo lado da trincheira....”
1149
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 209: “A partir de inícios deste século [XX], os ensaios sobre medicina legal
tornam-se constantes. Neles, o objeto privilegiado não é mais a doença ou o crime, mas o criminoso. Abandona-se o
vocabulário estrito da medicina, para alcançar um linguajar que mais se aproxima da fala policial e dos discursos dos juízes
de direito.”
1150
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 218: “...oficializados... durante o Estado Novo.”
1151
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 444.
1152
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 244: “O higienismo sempre esteve impregnado de uma intenção moralizadora,
mediante a qual seriam impostos modelos ‘corretos’ de sexualidade e de vida cotidiana, uma das partes mais evidentes dos
seus objetivos.”
1153
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 245.
1154
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 244.
1155
Engraçado que, na lição de CESARE LOMBROSO, a invulnerabilidade constava dos “elementos physiologicos” mediante os
quais se podia, objetivamente, prever o tipo físico do criminoso. Para tanto, veja SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p.
166.
1156
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., pp. 245-246.
1157
Sobre o bode expiatório, veja ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro.
Direito..., v. I, pp. 54-55.
156
2.8 Absolvidos e bem pagos
1158
, e, ainda, seletivos?
Temporalmente,
“se a discussão sobre a higiene pública (que implicava uma grande atuação médica no dia-a-dia
das populações contaminadas por moléstias infecto-contagiosas) mobiliza boa parte das atenções
até os anos 1880, nos anos 1890 será a vez da medicina legal, com a nova figura do perito - que
ao lado da polícia explica a criminalidade e determina a loucura -, para nos anos 1930 ceder lugar
ao ‘eugenista’, que passa a separar a população enferma da sã.”
1159
Depois disso, surge um novo momento, aquele em que, conforme SCHWARCZ, “é hora
de voltar às clínicas [e] abrir mão dos projetos de maior inserção social.” Com efeito, continua
ela, esse “novo momento parecia marcar o final da figura do médico missionário, obstinado
pela ‘cura da nação’; [pois] sanadas [estavam] as grandes epidemias que molestavam a
população [e] oficializados a medicina legal e os manicônios judiciários durante o Estado
Novo.”
1160
Todavia, deve-se ser prudente em não encerrar em invólucros temporais estanques
as fases referidas, porquanto, junto novamente com SCHWARCZ,
“não se pode dizer... que essa interpretação médica da sociedade tenha desaparecido, assim como
certa atitude altiva e auto-suficiente, descendente das vitórias do início do século. Ainda em 1929,
MIGUEL COUTO - presidente da Academia Nacional de Medicina e professor emérito da escola
carioca -, defendia no Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia a tese de que a mistura racial
levaria à degeneração nacional. Seriam também os cientistas dessa faculdade que, aliados aos
profissionais de saúde da escola baiana, em 1933, na era Vargas, fundariam na capital federal o
primeiro instituto de identificação nacional, sob a responsabilidade do perito LEONÍDIO
RIBEIRO.”
1161
“Dessa forma”, continua SCHWARCZ,
“se de um lado é possível perceber - assim como nos demais estabelecimentos -, a crítica aos
modelos raciais e deterministas de análise social que ‘de muito não fazem mais fiéis entre os
profissionais médicos’ (BM, 1930:102), de outro lado permanece certa postura intervencionista,
herdeira dos modelos científicos da virada do século. Os médicos... continuarão a se reconhecer
em sua missão salvadora, a enaltecer a oportunidade de sua atuação. De fato, pensar a sociedade
como se pensava o indivíduo, fazer dela um grande hospital será ainda, nos anos 30, grande fonte
de inspiração.”
1162
Se, antanho, o discurso médico se difundia com o adjetivo da imprescindibilidade,
hoje sua retórica, seu público e seu espaço não são diferentes. Ainda é possível falar de uma
higienização étnica e racial. Naquela, na vertente de uma etnogenia pura, enquanto nessa,
também. Uma e outra buscando, quando menos, purificar o povo, ainda que miscigenado
como o nosso, ou depurar a raça, indecifrável como a brasileira. Tem servido a esse
propagandeado, ainda que veladamente, escopo, a genética mediante as seletivas células-
troncos, extraídas de indivíduos, exclusivamente, sãos - sendo, portanto, inservíveis os defeituosos,
1158
Esse subtítulo é uma paródia à satírica obra de BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública
e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
1159
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 190.
1160
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 218.
1161
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 235.
1162
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 235.
157
mesmo que minimamente -, e, outrossim, mediante a possibilidade, luxuriosamente vaidosa, de
escolha do sexo, da cor da pele, da dos olhos etc., do nascível, com o consequente descarte
dos embriões modés, controlando e dirigindo a natalidade para um futuro alvinitente
1163
,
inclusive, ainda que indiretamente, “lançando mão de estratégias compulsórias de
esterilização.”
1164
Seletividade, portanto, que descarta, in fieri, todos aqueles que se
acomodam no modelo rococó, inaceitável em uma sociedade, agora americanizada, onde a
pele branca, os cabelos louros e os olhos azuis ditam a moda intraindumentária.
De sobra, ainda a medicina coletiva explorada pelos planos de saúde que
coletivizam apenas os dispostos, ou melhor, os que podem custear as escusas do peso de um
serviço estatal cuja omissão é suprida pelo setor privado, em mais uma daquelas brechas que
o discurso, no caso o médico, aproveita para pedir a palavra. Sobre esses, cabe aqui um aparte
esclarecedor vindo de MEDEIROS PEREIRA:
“O que ocorre é que formas de organização, externamente semelhantes, podem produzir
resultados bastante diferentes. No caso da medicina institucionalizada, esses resultados são
benéficos ou negativos para o paciente, dependendo das conexões de sentido e da prioridade
quanto aos objetivos visados pelos participantes da relação social. A medicina institucionalizada
estatal e a capitalista, por exemplo, certamente divergem quanto a uma coisa e outra. No caso
específico das empresas capitalistas de prestação de serviços médicos, torna-se patente o objetivo
econômico da atividade. Enquanto, em se tratando de profissionais autônomos, pode-se dar um
significado elevado à atividade prosaica de ganhar a vida, sacralizando-a, a atenção médica levada
a cabo por intermédio delas despe-se da aura do sagrado. De qualquer forma, esse tipo de empresa
apresenta características específicas, quando comparada às demais empresas capitalistas. Uma
dessas características é que, dada a monopolização legal da assistência médica pelos médicos, as
empresas do setor podem trabalhar usando essa mão de obra. Outra característica diferencial
diz respeito à necessidade de se ajustarem às normas de outra esfera social (a médica), e não
apenas às da ordem econômica. Ou seja, as organizações estão limitadas legalmente quanto ao
modo de exercerem sua atividade e de buscarem lucros. Assim, quando intentamos compreender
de um modo atual o sentido das ações realizadas por meio delas, notamos que é o de prestar
assistência à saúde, aparentemene de acordo com os cânones da ordem médica. Só quando
procuramos compreender os motivos dessas ações, verificando sua conexão de sentido, é que
percebemos que a obediência às normas da ordem médica (e que a essas ações a possibilidade
de serem examinadas da perspectiva sociomédica) visa a outros objetivos, integrando-se nos
processos sociais de natureza econômica. Médicos de empresas médicas buscam salários, e elas
têm como fim a obtenção de lucros. Ambos, contudo, estão limitados tanto pelo conteúdo de
sentido da ordem médica como pela citada monopolização legal. No caso desses médicos
assalariados, eles o colocados diante de uma situação contraditória: a de terem, na mesma ação
social, de obedecer a concepções diferentes de ordem que dificilmente podem ser integradas, isto
é, a médica e a econômica. Frequentemente, ver-se-ão obrigados a prestar obediência antes à
segunda do que à primeira, se bem que a própria consecução dos objetivos econômicos exija um
mínimo de ajuste entre as duas esferas. A contradição apontada fica patente se considerarmos que
o objetivo primordial de uma empresa capitalista, voltada para a prestação da assistência médica,
é o mesmo que de qualquer outra empresa: a obtenção do maior lucro possível. Não importa que
suas atividades (econômicas) estejam se realizando num setor diferente daqueles em que atua a
maioria das demais (que se caracterizam por estarem quase sempre integralmente inseridas na
ordem econômica). Nessas condições, é de se supor que os pacientes que lhe são encaminhados
não sejam necessariamente tratados segundo normas estritamente médicas. Nada nos pode
garantir, desde que haja possibilidade de maior lucro (quando a empresa é retribuída pelo número
1163
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 213: “Um dos objetivos do repovoamento do Brasil foi, por conseguinte, o de tentar
criar uma população racial e socialmente identificada com a camada branca dominante. O controle familiar da higiene
inseriu-se nesta política populacionista. Os médicos higienistas, através da disciplina do físico, do intelecto, da moral e da
sexualidade visavam a multiplicar os indivíduos brancos politicamente adeptos da ideologia nacionalista.”
1164
Citando RENATO KEHL, STEPAN, Nancy. The hour f eugenics: Race, gender, and nation in Latin America. Ithaca: Cornell
University, p. 158 apud SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., p. 234.
158
de atos médicos praticados), que esses pacientes não ‘sofram’ assistência excessiva de seus
médicos assalariados (em termos de tempo e de atos médicos). Porém, se o contrato for por
captação (ou seja, se a empresa recebe por pessoa vinculada a ela e não por atos médicos), é
possível que o paciente, sofrendo dos mesmos padecimentos, seja devolvido às suas atividades
normais mais rapidamente que o tempo medicamente desejável. Em ambos os casos,
considerando-se o objetivo primordial da empresa, serviços médicos que não lhe rendam algo
deixariam de ser realizados; inversamente, outros que pouco proveito trariam ao paciente, o
seriam. A assistência médica proporcionada pode o ser, por vezes, mais que o objeto sobre o
qual se atua para que se produzam lucros. Haveria, conforme o caso, aumento ou diminuição do
número de atos médicos em relação ao ideal. Consequentemente, seriam deturpados os ideais da
medicina. No entanto, essas empresas, se forem racionalmente dirigidas, não poderão afastar-se,
exageradamente, desses ideais, porque as ações levadas a cabo terão de se ajustar (ainda que em
grau variável) aos valores sociais correspondentes à esfera médica. Ou seja, como quaisquer
outras, terão de procurar atingir seus fins econômicos usando meios que não divirjam
acentuadamente daqueles socialmente aceitáveis. Mais ainda: como as demais, elas teriam de
atuar de modo que suas ações do presente não repercutam negativamente sobre a possibilidade
futura de continuarem a alcançar seus fins econômicos. Assim, na verdade, a própria necessidade
de esse tipo de empresa manter uma situação favorável à consecução desses fins acaba se
constituindo, talvez, no principal fator responsável pela sua obediência aos modelos de conduta
próprios à ordem médica.”
1165
Aparte esse que tem a eloquência imposta pela própria necessidade, mas que socorre
apenas alguns, porquanto, entre mortos e feridos, nem sempre se salvam todos. Métodos,
outrossim, todos esses, excludentes, seletivos e confinantes, sobretudo pela dificuldade
enfrentada ao migrar-se de um plano para outro, e pela dificuldade inconteste em, a despeito
da contratual aderência - literalmente, malgrado o disposto no artigo 51, na Lei n° 8.078, de 11 de
setembro de 1990, vulgarmente conhecida como Código de Defesa do Consumidor -, conseguir merecer do
contratado uma atenção condizente com as cláusulas apregoadas no instrumento quando da
sua propaganda e assinatura.
Ao final, invadiram os médicos a própria sexualidade, seja na condução da escolha do
sexo do nascituro, seja na opção sexual dos homens e mulheres, condenando-os, inclusive - e,
porque esse alcunhado desvio é desinteressante aos interesses dos discursos, porquanto revela sua fragilidade
em domesticar e adestrar os dominados -, ao estigma de doentes que precisavam não de
medicamentos, senão, também, de educação mais rígida e controladora.
1166
De maneira que, com o surgimento, posterior reconhecimento, aquisição e, ou,
atribuição de poder e sedutora remuneração do ofício de facultativo, a medicina ganhou
proporções penais preocupantes. Primeiro, por conta da obsolescência da medicina de então -
vindo a calhar, hoje, a defesa genérica do “erro profissional” que a justifica como perfeitamente plausível em
consideração ao parco desenvolvimento da própria ciência médica, e acentuadamente obviada quando cotejada
com a conjuntura mórbida atual, tipologicamente imensurável -, e da inabilidade pessoal de alguns dos
1165
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., pp. 187 a 189.
1166
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., pp. 248-249: “A medicalização do homossexual obedecia à mesma tática coercitiva do
comportamento de celibatários e libertinos. Com uma vantagem: a de poder ser extrapolada e servir de incentivo à
domesticação da infância. Apresentando os homossexuais como ‘infames’ e afirmando que seu contingente era enorme e
tendia a crescer, a higiene obtinha das famílias a adesão aos seus programas de educação infantil. Por meios semelhantes,
buscava controlar medicamente a sexualidade adulta do homem, imputando à sífilis e às prostitutas a culpa pelo surgimento
do homossexualismo.”
159
seus intervenientes
1167
, que, visando à cura, finalidade naturalmente aguardada
1168
, quase
sempre promoviam a piora da morbidade e, não poucas vezes, o óbito do paciente. Depois, e
malgrado o avanço tecnológico que hoje nos espanta sem licença
1169
, tem-se observado, não
vezes raras, uma acentuada perda da qualidade de alguns dos agentes de repetição ideológica -
médicos -, com o consequente aumento de insatisfações de alguns dos agentes de recebimento
ideológico - clientes-consumidores-pacientes -, advindo, quando em vez, ora de uma reduzida
1170
,
mas significativa indiferença - por motivos de natureza vária
1171
-, dos profissionais da medicina
para com o cliente-consumidor-paciente e para com o seu próprio aperfeiçoamento técnico,
quando a culpa não é, exclusiva, ou, concorrentemente, das monopolizadoras agências de
reprodução ideológica
1172
- Universidades
1173
-, ora de uma maior reivindicação do cliente-
1167
MONTANELLI, Norberto. Responsabilidad..., p. 21: “Quizás la mala praxis de mayor antiguedad sobre la que se haya
tenido noticia, sea la del emperador Napoleón Bonaparte, qien como General victorioso llegó a dominar la mayor parte de
Europa. Pues bien, su deceso el 5 de mayo de 1821 en la prisión de la isla de Elba, terminó con su vida y una larga
enfermedad teñida de versiones históricas de conspiraciones para asesinarlo por medio del arsénico. A la fecha, un riguroso
estudio publicado en la prestigiosa revista New Scientist, asegura que Napoleón murió a causa de los médicos que lo
atendieron, quienes para aliviarlo de los fortíssimos dolores estomacales que sufría, lo sometieron a severas y múltiples
purgas. Además, el famoso arsénico encontrado en los cabellos del insigne militar francés (que alimentó variadas tesis
respecto a su asesinato) se debió a un tónico capilar de la época que lo contenía en bajas dosis.
1168
CHAIA, Rubén A. Responsabilidad..., p. 19, nt. 5: “El enfermo, la familia y la sociedad, en su fuero interno o de modo
subconsciente exigen siempre la curación, la devolución a una existencia plena y fructífera que valga la pena ser vivida y les
va en ello mucha ilusión, esperanza y expectativa, pero también desesperación, desconcierto, ansiedad, intranquilidad y
miedo. Highton, Prueba del daño por mala praxis médica, en Responsabilidad profesional de los médicos, p. 936).
1169
Quase sempre positivamente, conforme denunciam as maravilhosas descobertas médicas recentes.
1170
Mensurando também nesse quantum, porquanto não se tratar da maioria, FERRERES, Alberto R. El consentimiento
informado en la práctica quirúrgica. Buenos Aires: Ad-hoc, 2006, p. 13: “La conciencia de muchos médicos se puso de
manifiesto en los juicios por atrocidades luego de la Segunda Guerra Mundial y se inició una corriente internacional en
defensa de los derechos humanos. Estos derechos se profundizaron en el campo de la medicina, tanto en la investigación
como en el ejercicio clínico.
1171
Alguns, indicados por CHAIA, Rubén A. Responsabilidad..., p. 22: “Podemos afirmar entonces que la combinación de los
avances tecnológicos en matéria de salud y los cambios sociales e individuales (tanto en el profesional como en el paciente)
han forjado una realidad totalmente distinta e impensada hace unos años, andarivel por el cual necesariamente discure la
práctica médica diária.
1172
Com justificativas históricas, PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 245: “A defesa dos interesses corporativos
era feita pela própria universidade. Por meio do monopólio da reprodução do saber, ela garantia as prerrogativas profissionais
dos físicos. De situação bem diferente gozavam os cirurgiões, que ‘não dispunham de um organismo coletivo e supra-
regional semelhante às universidades’. Seu aprendizado se fazia mediante um relacionamento pessoal e singular, uma vez que
‘as universidades não permitiam que os cirurgiões organizassem uma instrução pública’. Ou seja, enquanto o regime
pedagógico dos físicos tinha um caráter coletivo e uniforme, o dos cirurgiões fundava-se sobre a prática privada de cada
mestre.”
1173
Respondendo, CUMPLIDO, Manuel José. Responsabilidad profesional del equipo de salud: manual de información para la
buena praxis. Córdoba: Alveroni, 1997, p. 38: “Ahora hay que preguntarse: ¿las facultades de medicina, cuando forman a
los estudiantes, los preparan para afrontar esta situación? La respuesta es no. La crisis de la educación hace que por la
gran cantidad de alumnos que cursan medicina la formación no sea lo que realmente debe ser. Los estudiantes egresan sin
tener los conocimientos suficientes y luego, cuando empiezan há recorrer el camino de tener que ejercer la profesión, están
expuestos a cometer errores que terminam en una demanda. No se les enseña a escribir una historia clínica con letra clara y
legible, sin tachas y enmiendas; a asentar permanentemente la evolución del paciente; a poner día y hora de cada consulta,
etc., elementos de fundamental importancia para su defensa si algún día tienen la mala suerte de ser demandados. No se les
informa que la mejor arma que tiene un médico o integrante del equipo de salud en caso de ser demandado, es una correcta
confección de la ficha o historia clínica que lleve de sua paciente. No se les enseña como corresponde todo el capítulo del
derecho médico, donde entra entre otros temas, el conocimiento de las leyes nacionales y provinciales que regulan el
ejercicio profesional. Tampoco se les informa del derecho de los pacientes, del consentimiento informado, del derecho a
rechazar un tratamiento, etc. Esto hace que al violar por desconocimiento estas disposiciones, reconocidas en todos los
países avanzados del mundo, se genere una demanda. No se les enseña a desprenderse de la soberbia que muchos médicos
tenemos y no queremos reconocer. Eso lleva a hacernos creer que el problema no es para nosotros, que nunca nos va tocar.
Tenemos información porque nos enteramos que lo padece el vecino. Actuamos igual que la población frente ao SIDA,
160
consumidor-paciente para com o reconhecimento de seus direitos
1174
, ora da natureza inexata
da medicina
1175
, ora da sub-rogação do vetusto médico de família
1176
pelo médico massivo
1177
,
siempre piensa que outro se puede enfermar y él no, entonces no toma las precauciones necesarias para evitarlo, y cuando lo
contrajo ya es tarde. En fin, no nos vacuamos a fin de crear los anticuerpos necesarios para luchar contra la enfermedad de
la demanda médica. En repetidas oportunidades he dado charlas y conferencias al respecto, y cuál há sido mi sorpresa al
ver que el auditorio tenía muchos espacios vacíos, lo que me demostró la indiferencia que existe sobre este problema que
afecta a la gran mayoría de los que ejercen la medicina en sus ditintas ramas.
1174
Quanto a isto, acompanhamos CUMPLIDO, Manuel José. Responsabilidad..., pp. 67-68, quando afirma: “Definición del
término: consideramos derechos de los pacientes aquellos que se derivan de los derechos humanos respecto a su dignidade
como persona, y a los que surgen de la normativa legal vigente. História del concepto: en la antiguedad clásica, donde
primaba una ética marcada por el respecto de la physis, de la naturaleza, el médico aplicaba la ética de la filantropía, cuyo
supremo objetivo es el bien del paciente, que éste profesaba en el sentido sacerdotal del término. Princípios clásicos como el
de no maleficencia (primun non nocere) han sido guías permanentes desde la medicina hipocrática en la actitud puesta de
manifiesto por los médicos para la defensa de los derechos de sus pacientes... Durante 25 siglos este modelo marcó la
relación médico-paciente; aquí el médico, aplicando el principio de no maleficencia, indicaba a su paciente qué es lo que
debía no hacer, de la misma forma que el padre aconsejava su hijo el buen camino a seguir. Este tipo de relación marcó el
modelo paternalista donde el enfermo no tenía ningún tipo de participacíon en el tratamiento seguido para curar su
enfermedad. Luego de muchos siglos de aplicación empezó a insinuarse poco a poco, con evolución muy firme, un cambio de
este modelo. Se comenzaron a reconocer los derechos civiles del hombre, y luego, con el correr de más años, sus derechos
como paciente. Esta evolución, que inicia su comienzo con la revolución francesa, cuando la Asamblea Nacional Francesa
reconoce los derechos del hombre y del ciudadano, marca el comienzo del cambio hacia lo que hoy conocemos y aplicamos
como principio de autonomía o de libertad del paciente, que le permite tomar decisiones junto con su médico en el proceso
terapéutico empleado para tratar su dolencia. Como reacción al paternalismo, el modelo de alternativa, como ya dije, es el
de autonomía del enfermo, como ocurre en Estados Unidos. La autonomía de la persona se inscribe aquí en el marco
jurídico y social de las libertades individuales. H. T. ENGELHARDT, uno de los teóricos del principio de autonomía en el campo
del derecho y de la ética médica, enunció los límites de la referencia moral de la profesión médica sobre la cual se funda el
paternalismo “combatido en la sociedad americana en general, caracterizada por el liberalismo radical” (individualismo y
Estado mínimo), la multiplicidad de las comunidades (especialmente religiosas) y el valor excesivo de las tecnociencias
operatorias eficaces. De esta manera, asistimos actualmente en esse país a una verdadera floración de grupos de pacientes,
cada uno ocupado de una enfermedad o síndrome determinado, en los que sobre todo se exhorta cada vez más la
participación del paciente en su propio tratamiento. Tal participación implica, por un lado, una negociación que
desemboque en una colaboración más estrecha con el médico, lo que el conjunto médico denomina “adhesión del paciente”,
y por otro lado, el autotratamiento. Esta tramitación constructiva há dado pie a una recomendación del Comité de Ministros
del Consejo de Europa, el 30 de abril de 1980, em los términos siguientes: “La transición de la sumisión a la cooperación
debe ser motivda por razones particulares: la relación que se establece entre enfermos y profesionales debe transformarse
en una relación de asociados basada en intercambios recíprocos {...} además convendría acentuar la {...} adopción de una
concepción dinámica de la participación del púbico en la protección de la salud y de las enfermedades y a su curación”. A
partir de los años 60 y como consecuencia de los cambios sociales de posguerra, la defensa de los derechos humanos y las
consecuencias del Juicio de Nuremberg, con la aparición de los movimientos reivindicativos de usuarios y abogados, se
instala u nuevo modelo de contrato en la relación médico-paciente, que remplaza la relación clásica antes descripta.
Comienza en los países anglosajones, inspirados en la filosofia de LOCKE, de MILL, y también en una gran cantidad de
trabajos bioéticos basados en el principio de “autonomía de la persona”. Aquí es bueno recordar las palavras del español
GRACIA GUILLÉN, cuando dice: ‘La no malefiencia es una versión del clásico principio de justiça, y las cuestiones de no
maleficencia y justicia son previas a la autonomía de las personas’. Este segundo nivel es un principio doble, que es
autonomía-beneficencia, porque no se puede hacer el bien a nadie en contra de su voluntad, y por esa razón habría que
decir que no hay beneficencia sin autonomía.
1175
CHAIA, Rubén A. Responsabilidad..., p. 208, nt. 18: “Recordemos que la ciencia médica es inexacta por naturaleza, que
no existen todas las respuestas a los fenómenos observables, incluso ni siquiera pueden ser observados todos os sucesos que
se producen a partir de un acto en el cuerpo humano, ya que la carencia de elementos técnicos, sumado a la lógica
ignorancia – que fogonea el progreso –, en la materia, impiden muchas veces ligar certeramente lo sucedido a un
acontecimiento. Por otra parte, se suceden acontecimientos extraños, azarosos, únicos y condicionantes, muchas veces
ligados a la estructura y composición de cada individuo; por tal motivo, hallar una ley o fórmula actual, única, universal,
cierta y utilizable en todo tiempo y lugar, por medio de la cual pueda extraerse un parámetro de medición en cada caso
concreto, es una tarea ilusoria. Prueba de ello es que las dudas insolubles del pasado no son más que hechos conocidos en el
presente, y muchos hechos ciertos del pasado, no son más que falsedades actuales.”
1176
A expressão não é nossa, senão, retirada de COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 147.
1177
CUMPLIDO, Manuel José. Responsabilidad..., pp. 35-36: “Sabemos que en estos últimos 20 años se han producido una
serie de avances y cambios en las ciencias médicas que prácticamente han modificado fundamentalmente el ejercicio
profesional. Esas modificaciones han contribuido a que se produzca una alteración en la relación médico-paciente.
Desapareció una figura respetable y respetada por toda la sociedad: el médico de familia. Cuando el médico era llamado
para asistir a un enfermo en su domicilio, toda la familia se preparaba para atender-lo. La dueña de casa ponía su hogar de
punta en blanco, se le recibía con las mejores ropas de cama, la famosa toalla planchada y almidonada, y con un respeto
161
além da impossibilidade de acompanhar, a passo e passo, toda a evolução das infinitas
doenças que afligem a humanidade, bem como todas as inovações preventivas e curativas;
tudo isso, aliado ao fato da iterativamente desumana condição laboral a que a maioria dos
esculápios
1178
, compelidamente, têm que se submeter.
1179
Decepcionando-se e lastimando essa mudança na condução profissional promovida
pelo médico, diz RUBEM ALVES, cotejando os efeitos da música no corpo com a atuação do
galeno, que “em outros tempos, os médicos e as enfermeiras sabiam disso. Cuidavam dos
remédios e das intervenções físicas - bons para o corpo -, mas tratavam de acender a chama
misteriosa da alegria; mas essa chama não se acende com poções químicas. Ela se acende
magicamente. Precisa da voz, da escuta, do olhar, do toque, do sorriso.”
1180
Noticiando, mais
tarde, e não sem tristeza - embora entendendo que a atual condição se compadece com a conjuntura social
e econômica do mundo moderno
1181
-, a transição do médico que, malgrado sempre haver sido e
continuar sendo um estranho, antes era cúmplice da dor e do sofrimento humanos e, hoje,
passou a estar emocionalmente distante das agruras do paciente e da sua família. Pena que ele,
RUBEM ALVES, se veja obrigado a revelar isso mediante uma crônica que, mesmo temperada
com sal ático, o que é mais assustador, advém da observação de um certo quadro que adorna
uma certa parede, como se o interpretasse, paradoxalmente, ad instar de FOUCAULT ao
vislumbrar o quadro de RENÉ MAGRITTE
1182
:
“Ao lado da menina, um estranho, assentado: o médico. Pois o médico não é um estranho?
Estranho, sim, pois não pertence ao cotidiano da família. E, no entanto, na hora da luta entre o
amor e a morte, é ele que é chamado. O médico medita. Seu cotovelo se apóia sobre o joelho, seu
queixo se apóia sobre a mão. Não medita sobre o que fazer. As poções sobre a mesinha revelam
que o que podia ser feito foi feito. Sua presença meditativa acontece depois da realização dos
atos médicos, depois de esgotados o seu saber e o seu poder. Bem que poderia retirar-se, pois que
ele fez o que podia fazer... Mas não. Ele permanece. Espera. Convive com a sua impotência.
Talvez esteja rezando. Todos rezamos quando o amor se descobre impotente. Oração é isto: essa
comunhão com o amor, sobre o vazio... Talvez esteja silenciosamente pedindo perdão aos pais
por ser assim tão fraco, tão impotente, diante da morte. E talvez sua espera meditativa seja uma
confissão: também eu estou sofrendo... Amamos o médico não pelo seu saber, não pelo seu poder,
mas pela solidariedade humana que se revela na sua espera meditativa. E todos os seus fracassos
absoluto. Su palavra era ley indiscutida y a nadie se le iba a ocurrir poner en tela de juicio su diagnóstico y tratamiento. Se
consultaba a otro colega únicamene por su indicación.”
1178
A origem deste nome pode ser garimpada em, SOURNIA, Jean-Charles. História..., pp. 39 e 41: “Enfim, o imortal QUÍRON,
o mais célebre, o mais sensato e o mais sábio dos centauros, ensina medicina e pratica mesmo a cirurgia no monte PÉLIO, na
Tessália. É ele que educa ASCLÉPIOS. ...Entre os deuses, mas ocupando uma posição inferior, invoca-se frequentemente
Asclépios, conhecido no Ocidente pelo nome latino de Esculápio. ...Finalmente, no decurso dos dois séculos que precederam
e se seguiram ao nício da era cristã, parece que Asclepíades, se teria tornado, primeiro, um apelido adoptado pelos médicos
ou dado pelos seus pacientes e, depois, um nome verdadeiro.”
1179
CHAIA, Rubén A. Responsabilidad..., p. 21, nt. 8: “Comande y Turchetti, destacan entre los principales factores que han
impactado en el aumento de la litigiosidade, al mejoramiento de la terapia, considerando que si bien la misma repercute en
una mejora del cuidado de la saud, ha provocado un aumento proporcional en las hipóteses de causar daños. Además,
asignan un valor importante al abandono de la lógica corporativista por parte de los médicos que son llamados a ser peritos
en los procesos, y por último, le asignan un importante valor a la mayor conciencia de parte de la opinión pública sobre sus
propios derechos (La responsabilità sanitária. Valutazione del rischio assicurazione, p. 7 y ss.).”
1180
ALVES, Rubem. O médico..., p. 10.
1181
ALVES, Rubem. O médico..., p. 20.
1182
FOUCAULT, Paul-Michel. Isto não é um cachimbo. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, passim.
162
(pois não estão, todos eles, condenados a perder a última batalha?) serão perdoados se, no nosso
desamparo, percebermos que ele, silenciosamente, permanece e medita, junto conosco. Hoje o
quadro não mais se encontra nas salas de espera dos consultórios médicos. A modernidade
transferiu a morte do lar, lugar do amor, para as instituições, lugar de poder. E os médicos foram
arrancados dessa cena de intimidade e colocados numa outra onde as maravilhas da técnica
tornaram insignificante a meditação impotente diante da morte. ...Antigamente a simples presença
do médico irradiava vida. Antigamente os médicos eram também feiticeiros. ‘Mestre, diga uma
única palavra, e minha filha será curada...’. A vida circulava nas relações de afeto que ligavam o
médico àqueles que o cercavam. Naquele tempo os médicos sabiam dessas coisas. Hoje não
sabem mais. Aquele médico ao lado da menina: não se parece ele com um cavaleiro solitário que
vai sozinho lutar contra a morte? Naquele tempo os médicos sabiam qual era seu destino. Havia
muito sofrimento, sim. Havia muito medo, sim. Medo e sofrimento são parte da substância da
vida. ...A imagem do cavaleiro solitário que luta contra a morte é uma imagem romântica. Bela.
Comovente. Quem o desejaria ser um? Criticam o romantismo. FERNANDO PESSOA comenta: mas
não é verdade que a alma é incuravelmente romântica? O médico de antigamente era um herói
romântico, vestido de branco. As jovens donzelas e as mulheres casadas suspiravam ao vê-lo
passar. Ainda bem que a consulta permitia o gozo puro do toque da sua mão. ...O cavaleiro
solitário que luta contra a morte é um santo. Quem, jamais, ousaria pensar qualquer coisa de mau
contra o médico? Hoje são comuns os processos contra os médicos por imperícia. Ser médico
transformou-se num risco. Porque ninguém mais acredita na sua santidade. Talvez porque eles
tenham deixado mesmo de ser santos... Mas naquele tempo as pessoas julgam que o médico era
um santo, e porque as pessoas pensavam assim, eles eram santos. Um dia fui ouvir uma palestra
do diretor do hospital da cidade de Princeton, NJ, onde eu estudava. Ele começou sua preleção
com esta afirmação que estilhaçou o quadro: ‘O hospital de Princeton é uma empresa que vende
serviços’. ‘Meu Deus!’, eu pensei. ‘Aquele médico não existe mais!’. E percebi que, agora, os
médicos se encontram lado a lado com os prestadores de serviço, os encanadores, os eletricistas,
os vendedores de seguro, os agentes funerários, os motoristas de táxi. É procurar na lista de
classificados. A presença mágica já não existe. O médico é um profissinal como os outros. Perdeu
sua aura sagrada. E me veio, então, uma definição do médico compatível com a definição que o
diretor dera para o hospital de Princeton: ‘um médico é uma unidade biopsicológica móvel,
portadora de conhecimentos especializados, e que vende serviços’. ...Nos tempos antigos todas as
pessoas eram espelhos para o médico. Todos o conheciam. Todos olhavam para ele com
admiração. Hoje, morto o médico do quadro, o médico é agora procurado não por ser amado e
conhecido, mas por constar no catálogo do convênio. Seus espelhos não são mais os clientes,
parentes, todo mundo. ...A relação do médico de hoje com seus espelhos é uma relação de inveja
e competição.”
1183
Como explicar essa aparente indiferença de uma minoria, tenho certeza, em uma época
como a nossa em que as descobertas médicas são cada vez mais vitoriosas, bem como esse
crescimento da criminalização dos atos médicos?
Muito bem. Embora essa realidade possa ser constatável pelo olho despido, e possa
aparentar uma
“tradição milenar de responsabilidade médica, é nos albores da modernidade que toma maior auge
uma corrente de pensamento que procurava localizar o princípio de ‘irresponsabilidade
médica’
1184
, evitando todo tipo de sujeição de parte dos profissionais da área a normas ou regras
que impliquem eventuais castigos provenientes de seu descumprimento ou não acatamento às
1183
ALVES, Rubem. O médico..., pp. 14 a 21.
1184
MONTANELLI, Norberto. Responsabilidad..., p. 26: “Desde mediados del siglo XIX y principios del XX, existía una regla
general que conducía a la más absoluta irresponsabilidad médica. Del contexto histórico cultural de una sociedad
personalista surge que el galeno se obliga no con sus pacientes sino con la sociedad toda. Surgiendo así una obligación
legal que “...una vez violada acarreaba la responsabilidad aquiliana” (responsabilidad extracontractual). En el siglo XIX
los tribunales europeos no diferenciaban acción delictual de acción contractual; los argumentos eran que: “el carácter
intelectual del trabajo se opone a la existencia de contrato entre el médico y su paciente”. La idea de ciencia-arte dava un
pátina de imprevisibilidad, con muy poco o ningún sustento para que un juez tomara cualquier determinación
opuesta/adversa o simplemente objetara las ciencias médicas. Cerraba esta “idea-fuerza” la absoluta presunción de
idoneidad que brindaba el título universitario y la total certidumbre/seguridad en los peritajes médicos que resolvían la litis.
Además los médicos gozaban de la total confianza de sus pacientes y estos ni remotamente pensaban en las interconsultas,
hoy tan frecuentes.”
163
regras preordenadas.
1185
Nesse aspecto, se pretendeu consagrar legislativamente essa questão,
por exemplo, no Código Civil francês, mediante um preceito que estabelecia que ‘os médicos e
cirurgiões não são responsáveis pelos erros que possam cometer de boa no exercício da sua
arte’. Um dos mitos mais utilizados a favor da irresponsabilidade era sustentar que a constante
evolução da medicina se veria paralisada por controles impostos por outras disciplinas, o que seria
uma espécie de limitação ao avanço da ciência, trazendo o consequente atraso na busca de
soluções à grande quantidade de enfermidades. Exibiu-se, também, como contrapartida daqueles
que pregavam a necessidade de investigar as condutas médicas, a suposta falta de preparação dos
juízes para poder julgar temas cnicos ou científicos, questão que, sem dúvida, conspirou na
busca de uma adequada resposta no sistema repressivo dos estados modernos.”
1186
Com efeito, a origem do Direito Penal Médico
1187
, em toda medida, desconhece
peculiaridade quando comparada com a do Direito Penal visto sob um ângulo de visada geral,
senão, quando menos, pode-se inclusive dizer, sem receio de incorrer em equívoco, que
aquele, em verdade, depois de algum tempo tornou-se apenas uma vertente especializada
deste aproveitando para si todo histórico por este arrecadado ao longo de séculos. Pois bem,
ultrapassada essa crise existencial pode-se dizer que à guisa dos demais ramos do Direito
Penal, digamos, geral, o Direito Penal dico também encontra seu passado concentrado em
um Direito Penal cuja unicidade, além de ser, até bem pouco tempo, sua característica
predominante é, de certa forma, reflexo menos da rudimentariedade das sociedades de então -
que quase sempre nunca foi obstáculo para a evolução científica do Direito Penal -, que de uma involução
propriamente interna que somente experimentou dividir-se com a especialização das tarefas
tribais e, de consequência, com o reconhecimento de que leis penais gerais, somente, não
eram mais suficientes para atender os apanágios que outro ou um caso demandava. Foi, então,
nesse habitat que misturava inadequação e insuficiência normativas, que o Direito Penal
Médico encontrou ambiente propício para ser concebido, porquanto, se por um lado mostra-
se-lhe praticamente inútil qualquer regra sobre, v. g., furto ou roubo, por outro, o
consentimento do ofendido, quase que imprevisto, a ele se acomodava amiúde e
confortavelmente.
O ângulo de visada mudou, pois, na lição de CHAIA,
“o certo é que, na atualidade, a medicina está vista como um serviço essencial ao qual o homem
tem direito a aceder, e desde essa ótica são cada vez menos os enfermos ou seus parentes que se
conformam ante o fracasso. Quando a arte médica não consegue a cura desejada se busca
sancionar o presumido responsável do prejuízo sofrido, solicitando sem hesitar a intervenção
penal com a idéia de que ela é o instrumento idôneo para resolver esse conflito. Ademais, dessa
mudança de concepção avançou-se tanto no terreno científico que muita vez - animados pelos
próprios profissionais -, o paciente ou o entorno que o rodeia está convencido que não pode existir
um risco desfavorável em seu tratamento e, desde essa posição, descarta qualquer tipo de
influência contrária a uma boa evolução, inclusive afasta a possibilidade de que possa se dar um
resultado negativo, o que, a efetivar-se, resulta reprovado a quem realizou a prática. Chega-se,
1185
GARAPON, Antoine. O juiz..., p. 24: “Vimos o juiz desempenhar um papel importante na vida moral; são-lhe submetidas,
principalmente em matéria de bioética, questões quase que impossíveis de serem julgadas.”
1186
CHAIA, Rubén A. Responsabilidad..., pp. 18-19.
1187
Aqui, adrede, retoma-se e mantém-se, por enquanto, a confusão, ao menos vocabular, entre poder punitivo e Direito
Penal, também, Médico.
164
inclusive, ao extremo de crer ou afirmar que não existe morte sem responsabilidade médica e,
desde esta particular visão, busca-se justiça no sistema penal.”
1188
Estamos hoje diante não de um capitalismo de serviços, mas de um capitalismo de
serviços de massa
1189
, que se ressente - e justamente porque o vaticínio de NIETZSCHE de que viver é estar
em perigo, confirmou-se -, de qualidade bastante para minimizar os riscos - que desde a obra de
ULRICH BECK
1190
ganharam atenção privilegiada -, que as intervenções médicas naturalmente
ensejam.
1191
E a antecedência disso foram os julgamentos por praxe, iniciados no final do
século XIX com um caso resolvido perante a Corte de Apelações do Estado de Nova York,
mais precisamente no ano de 1878
1192
. No entender de CHAIA,
“todos esses fatores, unidos entre si, fizeram variar a imagem que se tinha do médico que deixa de
ser um homem mágico, infalível, com resposta para todas as perguntas e cujas conclusões, longe
de ser questionadas, eram seguidas ao da letra, para converte-se em um elo, em um aparte do
enorme conjunto de serviços que o cidadão recebe e consome diariamente, em alguém a quem
controla - mesmo que com ele discuta e de quem, às vezes, desconfia -, tal como o faz com o resto
dos prestadores, adjudicando, desmedidamente, à sua incompetência todo fracasso na prática
médica realizada. Esse abandono da tradicional atitude de resignação trouxe aparelhado um
aumento exponencial de casos ventilados em sede judicial
1193
, e tem como contrapartida o lógico
temor do médico a ser submetido a um processo que examine sua responsabilidade, pondo-se em
prática um verdadeiro exercício da medicina defensiva, pelo que certamente se sobrepõe o
interesse do médico por prevenir futuros prejuízos ao tratamento para o padecimento apresentado
pelo paciente, destacando-se uma automática implementação de diversos e intermináveis estudos
que desde o início mesmo da relação conspiram contra uma adequada comunicação entre médico
e paciente, chegando muitas vezes a impedir este último de realizar uma explicação minuciosa de
sua sintomatologia, ação que certamente dificulta a inter-relação entre ambos.”
1194
Por outro lado, sejamos convinháveis em admitir com BUARQUE DE HOLANDA que, como
visto, “a inclinação geral para as profissões liberais” interpretada “como aliada de nossa
formação colonial e agrária, e relacionada com a transição brusca do domínio rural para a vida
urbana, não é, aliás, um fenômeno distintamente nosso”, pois, se “apenas, no Brasil... fatores
de ordem econômica e social - comuns a todos os países americanos -, devem ter contribuído
largamente para o prestígio das profissões liberais, convém não esquecer que o mesmo
1188
CHAIA, Rubén A. Responsabilidad..., pp. 19-20.
1189
CHAIA, Rubén A. Responsabilidad..., p. 20: “Ocurre también que la constante evolución a la que se ve sometida la
práctica y los permanentes cambios derivados tanto del obrar médico como de la forma en que las prestaciones son
brindadas por el centro asistencial, confluyen en una evidente mutación de la relación médico-paciente, pasando de un trato
digno y personificado a una práctica masificada, buscando de esa forma reducir costos y aumentar la rentabilidad.”
1190
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona/Buenos Aires/México: Paidós, 1998.
1191
CHAIA, Rubén A. Responsabilidad..., p. 201, nt. 5: “Son múltiples las actividdes humanas creadoras de riesgo, pero
indudablemente el ejercicio de la medicina, en cuanto incide directamente sobre la salud y la vida de las personas, a merced
del acierto o desatino de profesiones, conlleva un plus especial de exposición y contingente peligrosidad; la atención, perícia
y reflexión han de prodigarse en dosis mayores que en otros menesteres o dedicaciones. La práctica de la medicina exige
cuidadosa atención a la lex artis, sin sentar apotegmas absolutos dada la evolución constante de la ciência médica” (STS del
29/3/88).”
1192
CUMPLIDO, Manuel José. Responsabilidad..., p. 15.
1193
Com relação à Argentina, CUMPLIDO, Manuel José. Responsabilidad..., p. 15: “En la República Argentina, recién cuando
comienza la década de los años 80, aparece en nuestros tribunales un nuevo tipo de demanda: por actos médicos cometidos
con irresponsabilidad por los profesionales actuantes en los mismos.”
1194
CHAIA, Rubén A. Responsabilidad..., pp. 21-22.
165
prestígio já as cercava tradicionalmente na mãe-pátria.”
1195
Ademais, continua o saudoso
escritor,
“a dignidade e importância que confere o título de doutor permitem ao indivíduo atravessar a
existência com discreta compostura e, em alguns casos, podem libertá-lo da necesidade de uma
caça incessante aos bens materiais, que subjuga e humilha a personalidade. Se nos dias atuais o
nosso ambiente social não permite que essa situação privilegiada se mantenha cabalmente e se
o prestígio do bacharel é sobretudo uma reminiscência de condições de vida material que não
se reproduzem de modo pleno, o certo é que a maioria, entre nós, ainda parece pensar nesse
particular pouco diversamente dos nossos avós. O que importa salientar aqui é que a origem da
sedução exercida pelas carreiras liberais vincula-se estreitamente ao nosso apego quase exclusivo
aos valores da personalidade. Daí, também, o fato de essa sedução sobreviver em um ambiente de
vida material que já a comporta dificilmente. Não é outro, aliás, o motivo da ânsia pelos meios de
vida definitivos, que dão segurança e estabilidade, exigindo, ao mesmo tempo, um mínimo de
esforço pessoal, de aplicação e sujeição da personalidade, como sucede tão frequentemente com
certos empregos públicos.”
1196
E o prestígio relatado acima influencia sobremodo na dominação do discurso pelos
médicos e pela medicina. É que, como o discurso médico é técnico por excelência, e
justamente porque é somente como técnico que ele se indisponibiliza aos dominados - o ritual
de não-permutabilidade, de que fala FOUCAULT
1197
-, e como toda estratégia corre sempre o risco de,
repetindo-se, poder ter suas técnicas aprendidas e apreendidas por quem não retém, por
enquanto, o poder sobre o discurso - o ritual de apropriação de segredo, explicado por FOUCAULT
1198
-,
essa eloquência médica precisa se atualizar amiúde, evitando, assim, qualquer acessibilidade
dos não credenciados e não abastecidos, previamente, com uma comunicação social
suficiente.
Portanto, a detonação de estratégias interventivas pelo discurso médico, no poder
punitivo, se reitera a cada nova oportunidade, conforme percebeu NILO BATISTA, porquanto “os
inúmeros encontros, em distintas circunstâncias históricas, entre os saberes jurídico-penal e
médico, compõem uma inconclusa novela de terror.”
1199
Uma das últimas estratégias interventivas, mas, sem dúvida, uma das mais
espetaculares e impressionantes foi em 1940. Ano em que “o Estado Novo aprova o Código
Penal”.
1200
Como ensinam ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR,
“a história do código de 1940 e do sistema penal que se constitui tomando-o como referência
programadora axial tem raízes no conjunto de transformações implantadas a partir da chamada
revolução de 1930. Politicamente, 1930 exprime uma reação contra o federalismo exacerbado da
primeira República, que se materializou na ‘política dos governadores’ apoiada no mandonismo
local dos ‘coronéis’. ...Economicamente, 1930 marca a ruptura com a teoria liberal do estado
1195
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., pp. 156-157.
1196
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 157.
1197
FOUCAULT, Paul-Michel. A ordem..., pp. 40-41: “Mas que ninguém se deixe enganar; mesmo na ordem do discurso
verdadeiro, mesmo na ordem do discurso publicado e livre de qualquer ritual, se exercem ainda formas de apropriação de
segredo e de não-permutabilidade. ...Mas existem ainda muitas outras que funcionam de outra maneira, conforme outro
regime de exclusividade e de divulgação: lembremos o segredo técnico ou científico, as formas de difusão e de circulação do
discurso médico....”
1198
FOUCAULT, Paul-Michel. A ordem..., p. 40.
1199
BATISTA, Nilo. A lei..., pp. 20 a 38.
1200
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 463.
166
gendarme... e a consequente implantação de um estado intervencionista. ...Socialmente, 1930 é
sobretudo o ponto de partida para a ‘incorporação da classe trabalhadora ao cenário político da
sociedade brasileira. ...A incorporação do proletariado foi instrumentalizada pela legislação
previdenciária - que das Caixas de Previdência, em 1931, chegaria aos Institutos de
Aposentadoria e Pensões das diversas categorias profissionais, envolvendo assistência médica e
programas habitacionais -, pela organização sindical... e pelas leis trabalhistas. ...Paralelamente à
configuração dessa nova economia nacional... edifica-se um Estado intervencionista e
previdenciário. As cidades... começam a crescer, na razão direta da oferta de postos de trabalho
industriais.”
1201
Previdenciarismo, medicalização, habitação e sindicalização, todos conversíveis em
imediato controle.
Ora, a difusão político-administrativa, o quase abandono do modelo agro-exportador,
preterido pelo crescimento industrial, e a instalação de um intervencionismo estatal, sobretudo
previdenciário, explicam, em parte, os porquês de os crimes contra a vida constarem na
primeira rubrica capitulária - como sabido, a que elenca os crimes reputados mais ofensivos e importantes
-, da parte especial do nosso Código Penal quase septuagenário. É que o Estado
intervencionista, porque preocupado em controlar as relações de mercado, teve que se
imiscuir, mediante auxílio do discurso médico, no nosso capitalismo atrasado
1202
,
reequacionando e reequilibrando as diferenças sociais e trabalhistas.
1203
Ademais, alguém duvida que o artigo 121, que trata do homicídio simples, que o
artigo 121, § 1°, que tipifica o homicídio privilegiado, que o artigo 121, § 2°, inciso III, que
trata do homicídio qualificado, que o artigo 121, § 4°, que cuida do homicídio por
inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, é dizer, culposo, que o artigo 121,
§ 5°, que trata do perdão judicial, que o artigo 122, principalmente o inciso II, que trata do
induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, que o artigo 123, que trata do infanticídio, que o
artigo 124, que cuida do abortamento provocado pela gestante ou com o seu consentimento,
que o artigo 125, que tipifica o abortamento provocado por terceiro, que o artigo 126, que
prevê como crime provocar abortamento, sem o consentimento da gestante, que o artigo 127,
que trata da forma qualificada do abortamento, que, enfim, o artigo 128, que descriminaliza o
abortamento nos casos em que ele encerra, todos do Código Penal, o precisam, ou melhor,
in these, não precisariam de um parecer médico que avalizasse se o crime (a criminalização) e
o criminoso (criminalizado) podem ser assim rotulados, justamente? Pois não é o médico
quem afirma se a vítima está ou não morta, se o criminalizado estava dominado por uma
emoção violenta, se a morte se deu em razão de haver sido ministrado veneno à vítima, se o
1201
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 459 a 461.
1202
Sobre o capitalismo tardio, veja MELO, João Manuel Cardoso de. O capitalismo tardio. São Paulo: Unesp, 2009.
1203
E, tanto, que é nessa época que os sindicatos se organizam, é criada a Justiça do Trabalho e editada a Consolidação das
Leis do Trabalho. In ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p.
461.
167
colega médico agiu contra a lex artis, levando a vítima a óbito, se essa poderia, mentalmente,
ter sido induzida por este ou aquele apelo, se a progenitora encontrava-se sob estado
puerperal, se estava mesmo grávida e se o abortamento apresentava-se como meio exclusivo
de salvamento da gestante, ou era aquele autorizado em razão da concepção estupradora?
Em igual medida, alguém duvida que a interpretação do artigo 121, § 4°, do Código
Penal, que tipifica o homicídio culposo quando praticado por profissional médico, não terá
alguma dificuldade em não se deixar contaminar pelo corporativismo retórico do discurso
médico?
E, de acordo com o artigo 5°, inciso XXXVIII, alínea d, da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, por se tratarem todos esses crimes, dolosos, afeitos à
competência do júri, composto por juízes leigos, resta patente que, por não dominarem a
técnica do discurso da medicina, inaferível aos mesmos, a última palavra quanto à absolvição
ou condenação do criminalizado caberá ao médico, mesmo porque, como é sabido, ao
Magistado do Júri, não se ressentindo de quaisquer vícios processuais, resta tout court a
dosimetria da pena.
A fortiori, isso tudo acontece também porque a culpabilidade, montada sobre o da
potencial consciência da ilicitude, nada mais é que um pedido de socorro à medicina, à
psicologia e à psiquiatria, únicas capazes de afirmar com segurança - considerada a propaganda
do discurso médico, obviamente -, se a psique do criminalizado estava programada socialmente
para perceber o caráter rotulado de ilícito do ato levado a termo.
Mas a intervenção médica não pára aí. Quem se debruçar sobre os verbos do artigo
129, do Código Penal, logo perceberá que o discurso dominial médico nele se reitera. E, na
versão do § 1°, incisos I e III, e § 2°, incisos I, II, III, IV e V, para atender, quando da sua
criação, às finalidades de mão de obra de um Estado intervencionista, ainda hoje úteis, agora
ao neoliberalismo.
Foi em razão disso tudo que ocorreu outra detonação impressionante de estratégias
interventivas pelo discurso médico, em mais um de seus acasalamentos com a política.
Novamente, ensinam ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR que,
“as representações políticas comprometidas com as transformações econômicas e culturais que,
com raízes na crise de 1973, conduziriam ao que se costuma chamar de neoliberalismo ou
globalização, chegaram ao poder no Brasil em 1989 e nele se mantiveram até hoje. ...A
desaceleração do crescimento econômico - acompanhada, em países periféricos como o nosso, da
destruição de parques industriais -, a queda nos rendimentos dos trabalhadores que logram
escapar ao desemprego massivo ou se submetem à flexibilização de suas garantias ou ao sub-
emprego, em contraste com uma fantástica acumulação financeira, o desmonte de programas
assistenciais públicos característicos do estado previdenciário, tudo isso gera gravíssimas
consequências sociais. À reflexão jurídica acerca dessa conjuntura cabe, no âmbito penal, deter-se
sobre mutações na estrutura e funcionamento do sistema penal, e um dos indicadores mais
importantes reside na programação criminalizante. A hipótese de que o sistema penal do
168
empreendimento neoliberal, vertido para o controle dos contingentes humanos por ele mesmo
marginalizados, opera mediante uma dualidade discursiva que distingue os delitos dos
consumidores ativos (aos quais correspondem medidas despenalizadoras em sentido amplo) dos
delitos grosseiros dos consumidores falhos (aos quais corresponde uma privação de liberdade
neutralizadora) pode ser experimentada num rápido exame de dois grupos de leis penais
extravagantes. No primeiro destes grupos encontraríamos a lei 9.099, de 26.set.95 (criando os
Juizados Especiais Criminais, orientados à obtenção da reparação do dano ex delicto e à aplicação
de pena não privativa de liberdade..., introduzindo a transação penal e a suspensão condicional do
processo), a lei 9.268, de 1°.abr.96 (que alterou o artigo 51 CP para impedir a conversão da
multa não paga em privação de liberdade, além de amenizar as condições do sursis do condenado
que reparou o dano), a lei 9.714, de 25.nov.98 (que elevou de 1 para 4 anos a possibilidade de
substituição de penas privativas de liberdade aplicadas em crimes dolosos, acrescendo contudo a
exigência de que em tais crimes o interviesse violência ou grave ameça, e criando duas novas
penas restritivas de direito) e a lei 10.259, de 12.jul.01 (que, ao instituir os Juizados Especiais
no âmbito da Justiça Federal, dilargou o cabimento da supensão condicional do processo). Este
grupo de leis poderia legitimamente situar-se na linhagem daquele discurso tático de redução da
execução da privação da liberdade (ultima ratio), se não tivesse como contrapartida necessária
sua mais cabal negação. Podemos perceber com clareza esta ambiguidade na exposição de
motivos ministerial da mensagem que se converteria na lei n° 9.268, de 1°.abr.96: se o argumento
de que “a prisão não vem cumprindo o principal objetivo da pena, que é reintegrar o condenado
ao convívio social” fundamentava ali uma notável ampliação do uso substitutivo das penas
restritivas de direito, poucas linhas adiante o argumento desapareceria perante “agentes de crimes
graves cuja periculosidade recomenda seu isolamento do seio social”, pouco importando que a
prisão não viesse cumprindo seu objetivo, o qual, diga-se de passagem, jamais cumpriu. No
segundo grupo de leis encontraremos uma política criminal diametralmente oposta à do primeiro.
Podemos formatar boa amostragem” no que nos interessa aqui, com “as ‘leis Serra’ de 9.677,
de 2.jul.98 e 9.695, de 20.ago.98 (para alavancar a candidatura presidencial do ministro da
Saúde, a primeira delas eleva delirantemente as penas dos crimes contra a saúde pública, e a
segunda os inclui entre os ‘crimes hediondos’)....”
1204
A história do Direito Penal médico, portanto, estende-se desde a coisificação do
paciente, reputado mero objeto da atuação médica, até a sua consideração como sujeito
principal da relação médico-paciente, em que sua vontade deve ser relevada, à exceção das
situações em que está em posição sobranceira a tutela da saúde pública
1205
, mas, obviamente,
não como veículo para a manutenção e, ou, ampliação do discurso médico de per se.
Finalmente, você é ruim da cabeça ou doente do pé? Então, cuidado! Os médicos e os
higienistas voltaram! o vetor da dengue, as doenças ocasionadas pela falta de
saneamento básico, as viroses, mormente a SIDA, as septicemias hospitalares et reliqua, não
sabem disso ainda. Isso, se não for melhor admitir logo que elas fazem parte do repertório
político de necessidades mantidas, omissivamente, no armário dos venenos”
1206
, para,
depois, o governo vender sua atuação técnica - via medicina -, como a única útil e competente
1204
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 484-486.
1205
CHAIA, Rubén A. Responsabilidad..., p. 23.
1206
Onde eram guardadas as obras literárias de leitura proibida pelo nacional-socialismo. Para saber mais, consulte CONDE,
Francisco Muñoz. Edmund Mezger e o Direito Penal de seu tempo: estudos sobre o Direito Penal no Nacional-Socialismo.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 31: “A partir dos anos oitenta surgiu na Alemanha um renovado interesse por revisar a
vida e obra de famosos juristas que haviam desempenhado um papel preponderante na época nacional-socialista e que logo
depois da Segunda Guerra Mundial seguiram desempenhando-o já em plena época da República Federal. A isso contribuiu,
sem dúvida, a superação dos tabus e mistérios com que se rodeou o passado obscuro destes juristas, algumas de cujas obras
mais comprometidas desapareceram das bibliotecas públicas e da bibliografia dos livros melhor informados ou simplesmente
encerram sob sete chaves no que se chama ‘Giltschrank’ (armários dos venenos), guardado sigilosamente nos porões mais
recônditos das Faculdades de Direito. Mas também a desaparição física, ou, pelo menos, a aposentadoria destes já idosos
juristas, cuja presença ativa nos claustros universitários até bem entrados os anos sessenta e, às vezes, setenta, impediu
qualquer tipo de valoração das obras publicadas naquela época e a comparação com as escritas posteriormente.”
169
para eliminação daquelas, pois é preciso, antes de se tentar vender um serviço, demonstrar que
ele é necessário, o quanto, e para quem!
170
3 O MÉDICO E OS PRINCÍPIOS (MEIOS OU FINS?) BÁSICOS DO DIREITO
PENAL
Prima facie, e na esteira de um Direito Penal de contenção, tal qual vai-se,
declinadamente, defender, devem os princípios funcionar como excludentes, retentores ou
redutores dos marcos criminalizadores do insaciável poder punitivo - essa espécie de “guardião do
ânus do rei”
1207
-, que, insatisfeito, pretende abocanhar - e, para que uma boa tão grande? -,
inclusive mediante afastamento constitucional, parcela inapropriável de certos conflitos - se
não fosse, de todo, inapropriado o confisco realizado
1208
-, muita vez nem tão graves, mas que tenham
ganhado foro de significativa e indevida importância graças ao discurso propagandeado pelas
agências de comunicação midiática, sobretudo as comerciais - mormente porque “temos, todos,
dentro de nossas casas, a janelinha pela qual nos fita, extasia e controla, o olho do poder; chama-se televisão, e
este é o novo nome do Panótico; e algumas pessoas se admiram pelo fato de existirem, nas casas dos pobres
brasileiros, mais televisões que geladeiras; poderia ser diferente?
1209
-, que, mediante aquilo que
ZAFFARONI apelidou de “a caixa idiota”, têm veiculado a seletividade dos novos escolhidos
1210
-
os médicos -, como a pauta criminal oportuna para arrefecer e esconder a sucataria da saúde
pública nacional, estadual e municipal.
Todavia, “a seletividade punitiva não é de todo arbitrária, pois em geral se orienta
pelos padrões de vulnerabilidade dos candidados à criminalização”
1211
, desimportando se
referida vulnerabilidade é efêmera, ou mesmo quais seus reais ou sonegados motivos, não
podendo, tampouco devendo, ser desprezado que
“o sistema penal também pode ser usado - e normalmente o é -, como fator que interfere nas
disputas do poder hegemônico, subtraindo proteção àquele que é derrotado na pendenga: os raros
casos em que o sistema penal cai sobre alguém invulnerável se devem a que este perdeu sua
invulnerabilidade em uma luta hegemônica com outro competidor de quase igual poder.”
1212
1207
SOURNIA, Jean-Charles. História..., p. 34.”
1208
Sobre o confisco do conflito, veja ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo..., pp. 30 a 32; em sentido contrário, HASSEMER,
Winfried. Introdução..., p. 400: “Nós sabemos que o Direito Penal estatal não neutralizou a vítima de aproximar-se.”
1209
BATISTA, Nilo. Fragmentos de um discurso sedicioso. In Discursos Sediciosos, Crime, Direito e Sociedade, 1° semestre
1996, ano 1, n. 1, p. 73.
1210
O que, em nenhuma medida, autoriza entender que o poder punitivo tenha desistido, tampouco renunciado aos,
costumeiramente, escolhidos. Genericamente interessante, porque, implicitamente envolve a crise financeira que,
desembocando na crise da educação, exclui milhões de braços técnicos médicos do mercado de trabalho, viabilizando o
etiquetamento daqueles que já foram, previamente, envazados pelos sistemas penais, MENEGAT, Marildo. O olho..., pp. 33-
34: “As crises adquirem outras formas de manifestações e ameaças, visíveis, por exemplo, na exclusão de milhões de braços
do mercado de trabalho (essa força produtiva arcaica e em vias de superação), sobre os quais recai, então, o jugo de um
robusto e crescente sistema punitivo, cuja função é “ordenar” o caos resultante da continuidade dessa forma de sociedade em
decomposição.”
1211
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crime..., p. 57.
1212
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crime..., p. 57. Também, KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In Discursos Sediciosos,
Crime, Direito e Sociedade, 1° semestre 1996, ano 1, n. 1, p. 81: “...a retirada de cobertura de invulnerabilidade dos membros
das classes dominantes só se” dá “em pouquíssimos casos, em que conflitos entre setores hegemônicos permitem o sacrifício
de um ou outro responsável por fatos desta natureza, que colida com o poder maior, a que já não sirva.”
171
Ou, quando menos, para que ao menos um véu, ainda que transparente, impeça a visão
perfeita e direta da imagem que, uma vez tornada invisível, camufla alguns dos defeitos dessa
face caricatural, é dizer, conforme anuncia KARAM, “servindo o excepcional sacrifício,
representado pela imposição de pena a um ou outro membro das classes dominantes (ou a
algum condenado enriquecido e, assim, supostamente poderoso), tão somente para legitimar o
sistema penal e melhor ocultar seu papel de instrumento de manutenção e reprodução dos
mecanismos de dominação.”
1213
A final, qualquer semelhança com as contendas entre médicos e planos de saúde, com
evidente e inegável derrota daqueles, é mera coincidência.
Em termos médicos, seletividade que se pretende comparar, também, a uma
sintomatologia polimórfica, porque, despida de um estudo anatômico e fisiológico sérios -
inconfundíveis com um positivismo jurídico, advirta-se desde
1214
-, como base da morbidade, e, no
nosso caso, de um estudo biopsicossocial para a pretensa criminalização, caracterizador das
reais etiologia - bastante desbancada pelo interacionismo
1215
-, e patogenia - para mim,
“etiquetamento” mais ou menos à laia do que, mutatis mutandis, antanho nos dizia o saudoso GALDINO SIQUEIRA
da mulher cuja adulterinidade era corresponsabilidade do marido, vazada nos termos populares de que “a
mulher é uma cera que toma a forma que se lhe dá”
1216
, mesmo porque, consoante VOLTAIRE, “são as próprias
leis punitivas e as perseguições que criam os delitos que dizem perseguir”
1217
-, acaba desaguando em
terapêuticas criminalizadoras, penalizadoras e de prisonização generalizantes, veiculadas, de
acordo com NAVA, por “práticas de encantamento e quase completamente inoperante[s]”, ou
melhor, improfícuas, a partir do instante em que aceita os influxos exclusivos dos síndromos,
dos sintomas, das lesões aparentes, sentidas, quase sempre temporariamente, pelo doente-
lesado, ou pela sociedade-consumidora como condicionantes suficientes para, “professando
um etiologismo mágico dos mais primários”, representado por este nosografismo sintomático
primitivo, nomear-se como criminoso, muita vez sem o ser, este ou aquele profissional da
medicina, confundindo-se o nosologismo externo e evidente, com uma patologia interna que
sequer se conhece, ou reconhece a existência, ad instar do que faziam os íncolas colonizados
1213
KARAM, Maria Lúcia. A esquerda..., p. 81.
1214
Deve o leitor atento apreciar com a devida reserva as palavras utilizadas neste parágrafo, porquanto, obviamente, aqui se
quis apenas aproveitar a nomenclatura médica, ou mesmo darwinista, para, dando coesão vocabular ao contexto, sequer
pretender alavancar uma ressurreição do discurso positivista.
1215
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Política de segurança pública para um Estado de Direito democrático chamado
Brasil. In Discursos Sediciosos, Crime, Direito e Sociedade, 2° semestre 1996, ano 1, n. 2, p. 206: “Na nossa observação, a
questão da etiologia dos crimes teve a contestação mais enfática com a abordagem do ‘labeling approach’, conhecida como
teoria da rotulação social; para esse novo modelo teórico não teria sentido estudarem-se as causas do crime, apropriando-se
da metodologia das ciências naturais, já que o crime não era um ente ontológico e sim um fenômeno contingencial, que existe
como uma definição jurídico-penal, isto é, como definição de um determinado Código Penal.”
1216
O problema é que, na atualidade, os novos etiquetadores não assumem qualquer corresponsabilidade nessa tarefa. Quanto
ao texto acima apud BRETAS, Marcos Luiz. O informal..., p. 219.
1217
VOLTAIRE. Dicionário filosófico apud ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 136.
172
ao exemplo da “boca amarga”, da “dor de estômago”, do “arroto fétido” etc.
1218
, que,
evidentemente não podem servir para socorrer na perquirição da eventual culpabilidade dos
galenos e, o que é pior, tampouco serve para curar, ou melhor, desrotular, sobretudo quando o
remédio limita-se ao apego do critério analógico, como quando contra os “hemoptisos usava-
se a urupétauá (Boletus sanguineus), por causa da sua cor sanguinolenta; a casca escura,
avermelhada e rugosa de certas árvores, contra os exantemas e as crisipelas; a madeira
amarelada de outras, contra doenças do fígado; e a raiz ondulante e serpentina da ‘pereira
brava’, contra a picada das cobras.”
1219
Entrementes, embora os princípios devessem merecer uma orientação limitadora
absoluta, isso daria azo à sua violação amiúde, sobretudo perante o espaço bastante limitado
predisposto às agências judiciais ocupantes de uma função meramente de prosseguimento e
interrupção da criminalização, incidente, geralmente, sobre sua faceta secundária. De sorte
que, a eleição de princípios limitadores de aplicação absoluta incomodaria as agências de
programação criminalizante primária, responsáveis pela escolha dos selecionados e
inauguração da perseguição aos mesmos, de maneira terrânea ou mesmo subterrânea, que se
veriam desabastecidas da sua única e falida justificativa, qual sendo, a pena. Semelhante
desconforto implica aceitar, pacificamente, que o Direito Penal viole a Constituição - mantendo
íntegra a interpretação com evidente desprezo diferido de texto, v. g., do artigo 3
o
, do CP -, e o Direito
Internacional. Por outro lado, a gradiente absolutização da aplicação dos princípios, embora
ainda tímida, ganhará proporção direta na medida em que eles progridam como regras de
elaboração, aperfeiçoando-se e, com isso, aumentando sua eloquência, bem como quando se
apagarem os defeitos do Estado de direito, que insiste em pôr as agências punitivas a
cavaleiro das judiciais. Inexistindo um ius puniendi¸ senão um potere puniendi do Estado que,
mesmo assim, carece de contenção e redução, igualmente não pode existir uma catalogação
numerus clausus dos princípios solicitados para o exercício dessa retenção, tampouco uma
interpretação acabada dos mesmos que, quando menos, devem acompanhar a atualização das
novas pautas criminalizadoras prenunciadas pelas agências de comunicação, de repetição e
reprodução ideológicas e as políticas que, quase sempre na vanguarda, pegam de surpresa as
agências judiciais, cuja atuação, requente-se, previamente é pífia. Portanto, toda elaboração
desses princípios é transitória e perfectível e todo enunciado deles, provisório, porquanto
marca - e jamais poderá ser diferente -, uma etapa a partir da qual é necessário avançar em sua
1218
NAVA, Pedro. Capítulos..., pp. 189 e 191.
1219
NAVA, Pedro. Capítulos..., p. 192.
173
realização e na consequente contenção e redução do poder punitivo
1220
que, consoante VERA
MALAGUTI BATISTA, diante de “qualquer ameaça de diminuição”, é socorrido pelos “meios de
comunicação de massa” que “se encarregam de difundir campanhas de lei e ordem que
aterrorizam a população e aproveitam para reequipar a polícia para os novos tempos.”
1221
Daí,
seu ensaio exigir reparos e ajustes limitadores constantes, como obra inacabável que são,
sendo mister o manejo de uma peça do tabuleiro após - ou mesmo antes -, o avanço de outra pelo
poder punitivo.
3.1 Os princípios (meios ou fins?) da legalidade e da reserva legal
Certamente, hoje, tanto quanto ou mais do que antes, “não o limite da lei era [é]
necessário para habilitar o poder punitivo, mas também para que este, uma vez habilitado, não
se excedesse [exceda] em suas formas e conteúdos”
1222
, apesar de que, mediante ele, o
nazismo, com a fórmula vazada no § 2°, do seu Código Penal, elaborou e levou a termo
horrores inefáveis. É que, conforme FRAGOSO, “o § 2° do Código Penal alemão foi alterado em
1935, para permitir o emprego da analogia, sempre que o fato não expressamente previsto
merecesse punição ‘segundo os princípios fundamentais do direito penal’ e ‘o são sentimento
do povo’.”
1223
não fosse engraçado notar que a vinheta latinamente atemporal cunhada por
FEUERBACH - nullum crimen, nulla poena sine lege
1224
, cuja síntese converteu-se em seu enunciado
corrente
1225
-, em seus originariamente amplos termos, jamais teve a pretensão de excluir como
interpretação sua o princípio da reserva legal, tampouco limitar-se ao da legalidade
1226
- cujos
aspectos dúbios, favoráveis no Iluminismo, fragilizaram sua confiança no presente
1227
, desprestigiada, de
1220
Com pouquíssimas e indevidas interpolações, o texto, quase que por completo, pertence às penas de ZAFFARONI, Eugenio
Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 200-201.
1221
BATISTA, Vera Malaguti. Drogas e criminalização da juventude pobre no Rio de Janeiro. In Discursos Sediciosos, Crime,
Direito e Sociedade, 2° semestre 1996, ano 1, n. 2, p. 234.
1222
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 190.
1223
FRAGOSO, Cláudio Heleno. Oservações sobre o princípio da reserva legal. In Revista de Direito Penal, n. 1, jan-mar/1971,
e, também, em http://www.fragoso.com.br/cgi-bin/heleno_artigos/arquivo11.pdf.
1224
FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado de Derecho Penal común vigente en Alemania. In colección
criminalistas perennes, v. 1. Buenos Aires: Hammurabi, 1989, p. 63.
1225
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 202.
1226
Com o que parece concordar FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. 16. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, pp. 111-112: “A fórmula latina... resultou dos princípios assentados por FEUERBACH... O fato legalmente
ameaçado (o pressuposto legal) é condicionado através da pena legal (Nullum crimen sine poena legali)... Formulava, assim,
FEUERBACH, os princípios básicos do Direito Penal... O princípio da reserva legal recebia, desta forma, fundamentação
jurídica. Sob esse aspecto pode-se dizer que o princípio da legalidade é essencial à estrutura jurídica do crime e da pena no
Estado de Direito.”
1227
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 144: “O princípio da legalidade passaria então a definir os delitos e as penas.
Isso é algo complexo, pois certamente ao fazê-lo permite-se que um poder estatal limite a atividade individual, sempre sob a
174
acordo com VERA MALAGUTI BATISTA, por existir “uma renúncia expressa à legalidade penal, através de um
controle social militarizado e verticalizado sobre os setores mais pobres da população ou sobre os
dissidentes”
1228
-, autorizando, ao revés, considerar o vocábulo lege, como sói acontecer até
hoje, como sendo a lei formalmente produzida
1229
, única capaz de - sacramentalizando a
programação criminalizante primária -, alçar ao nível dos ilícitos criminosos um fato a que se
vinculará uma pena, alguns, alheios a isso, sequer consideram a reserva legal
1230
, sendo que
outros, conscientes disto, reconhecem a identidade entre o princípio da legalidade e este
1231
,
enquanto outros, porém, ad instar da nomenclatura, entendem-nos conteudisticamente
diferentes
1232
, além de haver aqueles que sustentam que este completa aquele
1233
, havendo,
outrossim, aqueles que sudividem o primeiro formal e materialmente.
Para os que vislumbram uma identidade, ambos não passariam do reconhecimento de
que a existência de um delito está condicionada ao surgimento de uma lei prévia, ou seja,
alguém poderá ser punido se houver comando legislativo anterior considerando seu
comportamento como criminoso. Assim, além de engendrar o princípio da legalidade (ou da
reserva legal) no inciso XXXIX, do art. 5
o
, da CRFB/88, o constituinte ao mesmo tempo
consolidou o princípio da anterioridade, sendo que, por este, o reconhecimento do delito
pressupõe a prática do fato após a entrada em vigor da lei incriminadora.
1234
Todavia, sob o
ângulo de visada da criminalização primária, eventual identidade entre um e outro não tem
serventia menor do que a de facilitar, descomplicando, a emissão e a recepção do discurso
justificativa de proteger outros indivíduos. A proteção dos direitos de terceiros foi o limite racionalizador, a dupla ferramenta
justificadora e limitadora, que o Iluminismo traçou.” Idem, p. 165.
1228
BATISTA, Vera Malaguti. Drogas..., p. 234.
1229
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 202: “De acordo
com este princípio, constrói-se o tipo normativo de lei penal constitucional, que serve para eliminar as restantes (as leis
penais ilícitas). A Constituição da República atribui privativamente à União competência para legislar sobre Direito Penal
(art. 22, inc. I, CR), atribuição que será exercida pelo Congresso Nacional (art. 48, CR), observados os procedimentos
constitucionais do processo legislativo (arts. 59, e seguintes., CR).”
1230
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2006, p. 19.
1231
Ao que parece, FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo. Diritto Penale: parte generale. 4. ed. Bologna: Zanichelli, 2004, p.
64; indistinguindo-os, ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general, fundamentos, la estructura de la teoría del delito, t. I. 2.
reimpressão. Madrid: Civitas, 2003, p. 137; PUIG, Santiago Mir. Derecho Penal: parte general. 7. ed. Montevideo/Buenos
Aires: B de f, 2004, p. 114; e PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro: parte geral, artigos 1° ao 120, v. I. 7. ed.
São Paulo: RT, 2007, p. 132; confusamente, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado..., p. 10; ao menos inicialmente,
porquanto, logo depois, submete-se a um giro a favor da diferença, BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 7.
ed. São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 127 e 254.
1232
STRATENWERTH, Günther. Derecho Penal: parte general I: el hecho punible. 4. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2005, p.
84. Ainda que sem utilizar a expressão “reserva legal” para promover a diferença, BACIGALUPO, Enrique. Derecho Penal:
parte general. Buenos Aires: Hammurabi, 1987, p. 90.
1233
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 202-203: “A
legalidade penal se completa com o princípio geral de legalidade, que PONTES DE MIRANDA preferia chamar de
“legaliteraliedade” e também costuma ser designado por princípio de reserva, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer
ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5
o
, inc. II, CR). Legalidade e reserva constituem dois indícios
da própria garantia de legalidade, correspondentes a um único requerimento de racionalidade no exercício do poder,
emergente do princípio republicano de governo.”
1234
Alhures, malgrado entendê-los complementares, vão neste sentido em outra oportunidade, ZAFFARONI, Eugenio Raúl;
BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 212-213; e, BULOS, Uadi Lammêgo.
Constituição..., p. 254.
175
punitivista em razão de uma pseudo-coincidência vernacular, gramatical e teleológica que
promove a sensação de que toda homogeneidade equivale a, e garante, certeza e segurança, é
dizer, a sensação de que tudo está bem, pois é mesmo inegável que no dorso do órgão
auricular externo do ser humano sempre vem estacionar aquele pulicídeo - pulex irritans -, toda
vez que algo pareça ser contraditório.
Ao contrário do que possa parecer, com e pela diferença entre princípio da legalidade
e princípio da reserva legal não se encontra incomodada a criminalização primária que dessa
se utiliza para, antecipando - e aqui lhe vale a reserva legal -, a criminalização dos outros, menos a
sua, guarnecer seus estoques de possibilidades criminalizáveis
1235
, que ficam de sobreaviso,
prontos para dispararem imediatamente - pois ultrapassados os inconvenientes da morosidade
legislativa -, contra quem encostar na arapuca armada e, ao mesmo tempo iludir os destinatários
fazendo-os acreditar que, conhecendo a lei, previamente, nela não se enquadrarão quando, na
verdade, não é o conhecimento, atrasado, ou desconhecimento da lei, pontual, que gera a
criminalização, senão, é a submissão ao discurso punitivo que pouco se importa com essas
questiúnculas. Usufruir o princípio da legalidade nessa conjuntura também não lhe é difícil,
visto que ele serve para autenticar, inobstante falsamente, que a lei é igual para todos, e que
isso lhes possibilita um controle mais factível sobre eventuais arbitrariedades do poder
punitivo, como se tudo que é visível pudesse ser mensurável ictu oculi, e tudo que é palpável
pudesse ser contido ao alcance da mão. Pura tinta e papel! Mas, não é só! É que, entender
como legalidade - e hoje o discurso dominante não quer admitir interpretação diferente -, somente a lei
que foi produzida pelo Congresso Nacional não mitiga, senão, pode acentuar o problema que
passará do produto para o fabricante, isso se não se mantiver a autorreferida responsalidade
solidária pelo vício oculto na manufatura, prevista nos artigos 12 e 13, da Lei n. 8.078, de 11
de setembro de 1990.
Pela diferença, dizia-se, sustenta-se que a reserva legal, inclusive com sede
constitucional, prescreve que em matéria penal não se imporão penas nem se punirão delitos
que não estejam vaticinados legalmente no momento de sua encenação pelo protagonista.
De outro lado, somente a lei - em sentido formal
1236
-, é fonte do Direito Penal, no sentido de que
somente ela
1237
determina o que é delito e que pena deve ser imposta ao crime previamente
1235
O pleonasmo é adrede, mesmo porque inevitável.
1236
Neste sentido, ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 203:
“Do ponto de vista formal, a legalidade significa que a única fonte produtora de lei penal no sistema brasileiro são os órgãos
constitucionalmente habilitados e a única lei penal é a formalmente deles emanada.” Ver, também, FIANDACA, Giovanni;
MUSCO, Enzo. Diritto..., p. 53.
1237
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 203: “A CR não
admite que a doutrina, a jurisprudência ou o costume sejam capazes de habilitar o poder punitivo.”
176
tipificado por lei.
1238
Todavia, a questão parece se enuviar à medida em que se coteja o artigo
5
o
, incisos II e XXXIX, da CRFB/88, com o artigo 59, da mesma. Ora, embora o processo
legislativo formal - visando prever crimes e impor penas -, disposto constitucionalmente de forma
genérica, englobe desde as emendas à Constituição até as resoluções, não sendo possível ao
intérprete, portanto, dissecá-lo em termos sacramentais, em normas distintas, quanto à
exigência de regra normativa obrigatória incriminativa ou apenativa, respectivamente
constante nos incisos II e XXXIX, do artigo 5
o
, pode-se sim, limitar sua confecção à lei em
sentido formal, i. e., nesses casos, inviabilizar seu espraiamento a todas as possibilidades
legislativas previstas no artigo 59, devendo a vox lei - agora em sentido material, abrangendo, de
efeito, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos, resoluções
1239
-, portanto, ser
interpretada não como qualquer fonte advinda da agência legiferativa federal, consoante
largamente, in fieri, parece autorizar o artigo 22, inciso I, da CRFB/88
1240
, senão, com bitola
restritiva, alcançando apenas as emendas à Constituição, as leis complementares e as leis
ordinárias
1241
, conforme impede, ao menos em parte, o gabarito do artigo 63, § 1
o
, inciso I,
alínea b, da CRFB/88.
1242
Por outro lado, nem se diga que o apego à literalidade da palavra lei, antevista nos
incisos II e XXXIX, do quinto artigo constitucional, esvaziaria e inutilizaria seus comandos,
pois, em toda medida, debalde se procurará no numerus clausus do artigo 59, da CRFB/88,
qualquer item que atenda aquela que, quando menos, é sucedida de um complemento
1243
que,
sejamos convinháveis, em muito modifica seu sentido. E, justamente por modificar o sentido
material da norma é que as que prevêem crimes e impõem sanções podem advir de lei em
sentido formal e material, com exclusão dos incisos IV a VII, do menu apresentado pelo artigo
59, da CRFB/88.
1244
Da legalidade, eflui, por sua vez, em respeito aos termos constitucionais,
1238
CONTRERAS, Joaquín Cuello. El Derecho Penal español: parte general, nociones introductorias, teoría del delito. 3. ed.
Madri: Dykinson, 2002, p. 175; PUIG, Santiago Mir. Derecho..., p. 118; conquanto implicitamente, FERRAJOLI, Luigi. Direito
e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 302: ...somente as leis (e não também a moral ou outras fontes
externas) dizem o que é delito...”
1239
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 203-204: “Perante
a Constituição da República, qualquer pretensa lei penal material emanada da administração é obviamente inconstitucional. A
matéria penal fica excluída das medidas provisórias (arts. 62 e 84, inc. XXVI, CR). Por conseguinte, do tipo normativo de
leis penais constitucionais devem ser excluídas todas aquelas não-emanadas dos órgãos legislativos do Estado dentro de suas
respectivas atribuições. Em nenhum caso o Poder Executivo, o Judiciário e a Administração em geral podem criar leis penais.
Somente o Congresso Nacional está habilitado para a programação criminalizante primária, refugindo portanto ao tipo
normativo de lei penal constitucional qualquer norma dessa natureza produzida pelas Assembléias Legislativas dos Estados
membros da Federação ou pelas Câmaras Municipais.”
1240
Com esta amplidão, embora dirigida a ordenamento alienígena, JAKOBS, Günther. Derecho..., p. 88: “Ley en el sentido del
principio de legalidad es toda norma jurídica escrita, bien se trate de una ley formal, de un reglamento o de un decreto.”
1241
Em sentido contrário, FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo. Diritto..., p. 54.
1242
Equivalente ao texto, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições..., p. 113.
1243
E. g.: II - leis “complementares”; III - leis “ordinárias” e IV - leis “delegadas”.
1244
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 212-213; e,
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição..., p. 254.
177
a impossibilidade de haver crime ou pena sem legislação e cominação legal formais e
materiais, esta, no sentido de “‘legalidade estrita’, que, como quer FERRAJOLI, requer, como
limite ao legislador para definir o que é delito, que a ação assim qualificada seja, em primeiro
lugar, uma ação externa, que lesione um bem jurídico de terceiro....”
1245
Finalmente, os que, subdividindo-o, outorgam ao mesmo um significado
ultraformalista visto que, embora se o respeite formalmente, pode-se, pari passu, vulnerá-lo
materialmente.
1246
Quanto a isto, o
“âmbito real do proibido se impõe na legalidade porque, ao contrário, a simples omissão das
agências políticas ampliaria fantasmaticamente as proibições. O punitivo é um âmbito que as
agências políticas podem planificar e aumentar mediante lei, e a omissão daquelas diante de
mudanças significativas no contexto cultural ou tecnológico não pode ser interpretada como
renúncia à sua função, como uma espécie de delegação aos juízes para fins de ‘atualização’ legal
constitucionalmente inadmissível. A criminalização primária
1247
se estabelece por ação - jamais
por omissão -, das agências políticas.”
1248
Evidentemente, tudo o que foi dito não se aplica ao Direito Penal favorável ao réu
médico
1249
, porquanto para ele não existem os impedimentos legais, tampouco os legais
reservistas, mormente por ser prescindível, nestes casos, a obrigação de o benefício advir,
exclusivamente, da lei e por lei.
1250
Aí, o direito também pode provir de um exercício de fato,
como no direito consuetudinário, ou da praxis da jurisprudência
1251
, como direito judicial
1252
,
desde que, obviamente, o faça em benefício do médico, sobretudo excluindo, retendo ou
limitando o poder punitivo.
1253
Todavia,
“tal garantia deve ser entendida de boa-fé, ou seja, não pode ser invertida em benefício da
arbitrariedade. O princípio significa que a doutrina e a jurisprudência não podem habilitar o poder
punitivo além da lei, mas de modo algum acarreta o cancelamento da supremacia constitucional,
mediante a pretensão de que a jurisprudência não pode limitar o poder punitivo, ao reduzir a
termos racionais o alcance meramente semântico da lei, ou de que a doutrina não pode propor às
agências judiciais essa redução. Isso tampouco significa que a jurisprudência e o costume sejam
indiferentes em outro sentido: se é verdade que não se proclama a derrogação da lei penal por
dessuetude, também é verdade que uma lei penal jamais aplicada ou interpretada pacificamente
em um determinado sentido proibitivo (ou prescritivo) não pode, de surpresa, ser esgrimida contra
1245
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 189; e, no original, FERRAJOLI, Luigi. Direito..., pp. 302 e seguintes.
1246
CONTRERAS, Joaquín Cuello. El Derecho..., p. 199: “La facultad de los órganos jurisdiccionales alemanes de aplicar la
ley penal por analogia en el régimen nazi estaba consagrada a nivel legal, en el proprio CP”. Outrossim, MANTOVANI,
Ferrando. Principi di Diritto Penale. Padova: Cedam, 2002, p. 3.
1247
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 43: “O processo
seletivo de criminalização se desenvolve em duas etapas denominadas, respectivamente, primária e secundária.
Criminalização primária é o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas
pessoas.”
1248
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 212.
1249
FERRAJOLI, Luigi. Direito..., p. 307: “Está claro que a “lei prévia” exigida por tais princípios é somente a lei propriamente
penal, quer dizer, desfavorável ao réu.”
1250
Exemplificando, embora de maneira mais estrita que no texto, ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA,
Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 203: “...os usos e costumes servem para estabelecer os limites da tipicidade
penal quando a própria lei, de modo tácito ou explícito, a eles se remete: limites da fraude no comércio, o conceito de “objeto
obsceno”, o devido cuidado em múltiplas atividades não-regulamentadas etc.” Mais do mesmo em FIANDACA, Giovanni;
MUSCO, Enzo. Diritto..., p. 56.
1251
Especificamente, sobre a influência da jurisprudência na interpretação e efetivação da criminalização secundária,
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 223-224.
1252
STRATENWERTH, Günther. Derecho..., pp. 82 e 93.
1253
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 203.
178
um cidadão, porque o poder desejou selecioná-lo. Um tipo penal não é um instrumento para
que o poder surpreenda os cidadãos com sua arbitrariedade. A indiferença absoluta das agências
de criminalização secundária
1254
ou mesmo sua compreensão da lei condicionam uma perda da
consciência de ilicitude e, por conseguinte, uma criminalização secundária omitida por longo
tempo não pode, sem aviso prévio, ser posta em funcionamento
1255
, ainda que somente pela
impossibilidade de reprovação da conduta, à visão da reiterada omissão ou indiferença anterior
das próprias agências criminalizantes.”
1256
3.1.1 O princípio (meio ou fim?) da legalidade e a lei penal (a)tempor(ã)al
Notável que seja a influência do princípio da legalidade, e dele como lastro para a
interpretação espacial e temporal da lei penal
1257
, nem sempre, porém, quando desta, tem ele
merecido o destaque que lhe cabe, pertencendo à maioria da doutrina a responsabilidade pelo
equívoco de interpretrar o artigo 3
o
, do Código Penal, desvinculado sistematicamente do
parágrafo único, do artigo 2
o
, do mesmo diploma, e desvestido do sobretudo constitucional.
Existem situações excepcionais ou transitórias que demovem a necessidade de uma legislação
definitiva, cuja permanência, ainda que despropositada, porém indevida, reclamaria
perigosamente, vez ou outra, o sacrifício inútil de um ou outro bem jurídico tributário da sua
agora e já por esse motivo, não tão debalde mantença, ficando atendidos, assim, os motivos
insatisfatórios de um Direito Penal em liquidação. Não que se abrangeriam todas as situações,
como nas leis penais atemporais - de vigência indeterminada -, senão, que essa legislação
promocional efêmera se contentaria em se vender por poucos fatos que mediante ela ainda
pudessem ser incriminados, saindo caro o benefício da sua indigna sobrevida. Costuma-se
afirmar, ao olvido da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que a
programação criminalizante primária temporal - sob pena de inutilizar-se e, assim, não alcançar, ao
menos a partir de determinado instante, qual sendo, o da irrealizabilidade do processamento e condenação de
fatos acontecidos, geralmente próximos do seu ocaso
1258
, uma aproximação quantitativa, mas nem sempre
qualitativa com a criminalização secundária, frustrando-se, com efeito, ainda que em certa medida, seus
objetivos criminalizadores -, precisa remarcar sua força seletiva, escolhendo dentre os
selecionáveis, aquele que representará a pujante, embora aparente, infalibilidade desse sistema
legal heterodoxo.
1254
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 43:
“...criminalização secundária é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas...”
1255
Ad instar do crime previsto no artigo 302, do CP brasileiro, sob a rubrica de “falsidade de atestado médico.”
1256
Abstraído o texto de ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p.
203.
1257
FERRAJOLI, Luigi. Direito..., p. 307: “A irretroatividade das leis penais é um corolário do princípio da mera legalidade...”
1258
Em termos meramente citatórios, ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro.
Direito..., v. I, p. 216: “O fundamento usual para o reconhecimento de tal exceção está na constatação de que, devido aos
trâmites do processo penal que supõem uma sucessão encadeada de atos procedimentais, tais leis jamais seriam na prática
aplicadas, se não dispusessem de ultratividade.”
179
Com isso, tem-se propalado que a programação criminalizante primária, quando
submetida aos caprichos do tempo, e apesar disso, espraia sua longa manus seletiva para após
o falecimento da sua vigência e, o que é pior, criminalizando condutas praticadas sob a
vigência de uma legislação penal autofagocitada, i. e., revogada pelo próprio decurso do
tempo, ou pelo encerramento das razões que a justificaram e a justificavam, enquanto
vigorante e aplicável legislação atual que favorece o médico (artigo 2
o
, parágrafo único, do
CP). Tudo isso colimando sustentar uma autopromoção e uma autoalimentação intimidativas.
Cabe, desde logo, refutar esse fundamento usual. Constitui logicamente uma petição de
princípio postular que se imponha a punição porque, caso contrário, não seria ela imposta.
Por outro lado, asseveram ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR que, “a preexistência de lei
criminalizadora é a própria condição política” - mas, não natural -,
“impostergável da criminalização, e está presente em todo e qualquer delito: o argumento de
vinculá-la aos delitos previstos nas leis penais temporárias ou excepcionais poderia ser expandido
para toda e qualquer lei penal, com afronta ao princípio da retroatividade benéfica. A fórmula
imperativa e incondicional mediante a qual a Constituição consagrou o princípio (artigo 5
o
, inciso
XL, da CRFB/88), questiona duramente a exceção aberta pela lei (artigo 3
o
, do CP), e a doutrina
brasileira começou, após 1988 houve quem o fizesse ainda na regência da Constituição de 1946
-, a caminhar na direção de compreender que também as leis penais temporárias e excepcionais
não dispõem de ultratividade em desfavor do réu. Corresponderá ao legislador, perante situações
calamitosas que requeiram drástica tutela penal de bens jurídicos, prover para que os
procedimentos constitucionalmente devidos possam exaurir-se durante a vigência da lei; o que ele
não pode fazer é abrir uma exceção em matéria que o constituinte erigiu como garantia
individual.”
1259
Referida exceção é inviável porquanto ela arrepia a segunda oração do artigo 5
o
, inciso
XL, da CRFB/88. De retroatividade se tratar, isso é inteligível com o mero encontro, ainda
que casual, da interpretação gramatical, aditada pelo disposto no parágrafo único, do artigo 2
o
,
do CP. E, justamente, por conta da condicionante do benefício que, evidentemente advindo da
lege lata posterior, ou, como sói acontecer, da não mais existência da legislação revogada por
seus próprios termos, adrede espraia seus efeitos libertários para trás, ficticiamente voltados
para época em que a sua vigência legal causal somente tencionava, visto que latente, existir ou
recrudescer. Então, sob o espeque constitucional, essa água pretérita não mais gira o moinho -
que movimentou, durante anos, também o artefato maquinário da tortura -, que produzia a criminalização
das condutas levadas a termo sob a vigência da programação criminalizante primária
provisória, pois, ainda que de auspicioso bom grado - inobstante a inumação das boas intenções
1260
haver abastecido a capacidade hoteleira do inferno -, deveria obrigatoriamente contar com a quase
inevitável morosidade da justiça que em nenhuma medida poderá ser usada como desculpa
1259
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 217.
1260
Usando a expressão “cemitério de boas intenções”, para outra ocasião, DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 55.
180
para sua ultratividade, requente-se, flagrantemente inconstitucional.
1261
Chegada, então, é a
hora de sermos convinháveis. Se a novel programação criminalizante primária - que tem o
mesmo efeito que a ausência a posteriori daquela dita transitória
1262
-, colide com fato outrora
embrulhado pela lei heterodoxa revogada, dando ensejo a uma melhora significativa da
situação do réu médico que, no mínimo, de condenável passa a, necessária e in continenti,
absolvido - e, não só, absolvível (artigo 2
o
, parágrafo único, do CP) -, é evidente que em respeito aos
termos constitucionais beneficie-se o médico expurgando do seu histórico qualquer mácula.
Se é para beneficiar, como viabiliza a Constituição, que retroaja, como é seu comando
ininterpretável sob quaisquer outras condições, sobretudo impeditivas, porquanto onde ela não
embaraça usufruir o direito, proibido ao intérprete usurpador, fazê-lo.
Assim, essa legislação induradoura, espremida entre programações criminalizantes
primárias, provavelmente mais amenas, cuja mantença sobre os efeitos do ato nela praticado
pretende a maioria, não sobrevive ao que determina o artigo 5
o
, inciso XL, da CRFB/88, que
apenas admite a possibilidade de condenação, ad instar de poder-se praticar tipicamente o ato,
exclusivamente durante a vigência da programação criminalizante primária temporária e
excepcional, obrigando a coincidência, portanto, da tipicização do ato, do seu processamento,
da sua condenação e da sua apenação, repita-se, antes da chegada do fim da sua vigência. E,
nem se diga que, com isso, remanesceriam frustrados seus intimidativos objetivos
programadores criminalizantes primários, com o consequente e integral esvaziamento da
secundária criminalização, haja vista que a criminalização de segundo plano, por representar-
se materialmente, e por revelar a falibilidade persecutória do próprio poder punitivo, por si
é suficiente para justificar o afastamento da primária, fragilmente disposta de maneira
formal. De sorte que a contenção da vigência post mortem da programação criminalizante
primária pode, ainda que com pouca vontade, ser realizada pela programação secundária
1263
,
1261
Pela inconstitucionalidade, ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito...,
v. I, p. 217. Em sede lusitana, entendendo pela inconstitucionalidade, conquanto com argumentos inimportáveis, visto que
igual e teleologicamente inconstitucionais, porque contrários à Constituição, ao menos à brasileira, DIAS, Jorge de
Figueiredo. Direito Penal: parte geral, questões fundamentais, a doutrina geral do crime, t. I. Coimbra: Coimbra, 2004, p.
192: “Uma vez mais deve este entendimento ser contestado pelas razões aduzidas no § 45, a propósito da limitação, em certos
casos, da aplicação da lei mais favorável pelo trânsito em julgado da sentença; e nomeadamente porque nem mesmo as leis
constitucionais (e ainda menos os seus silêncios) devem em caso algum ser interpretadas contra a sua teleologia e a sua
funcionalidade específicas.”
1262
Sendo oportuno lembrar sempre o que disseram ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR,
Alejandro. Direito..., v. I, p. 212.
1263
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 44: “Apesar da
criminalização primária implicar um primeiro passo eletivo, este permanece sempre em certo nível de abstração porque, na
verdade, as agências políticas que elaboram as normas nunca sabem a quem caberá de fato, individualmente, a seleção que
habilitam. Esta se efetua concretamente com a criminalização secundária... Desta maneira, elas estão incumbidas de decidir
quem são as pessoas criminalizadas e, ao mesmo tempo, as vítimas potenciais protegidas... Isto corresponde ao fato de que as
agências de criminalização secundária, tendo em vista sua escassa capacidade perante a imensidão do programa que
discursivamente lhes é recomendado, devem optar pela inatividade ou pela seleção.”
181
obediente, agora, aos reclamos constitucionais que prescrevem a retroatividade a benefício do
médico. Benefício este, advindo da agora inexistente legislação temporal e excepcional
criminalizadora. Mas esse aumento da contenção da programação secundária pelas agências
judiciais, predispostas e preparadas para tanto, à obviedade, não é fácil porquanto extrai
parcela significativa do poder das agências políticas - responsáveis pela criminalização primária -,
além de ser perigoso, pois muito provavelmente assanhará o interesse destas por mais poder,
em substituição ao perdido na medida em que se aumenta o poder das agências judiciais.
1264
Pensar em contrário
1265
, i. e., a favor da mantença da ultratividade do artigo 3
o
, do CP, seria
fazer tabula rasa de regra geograficamente constante da própria Constituição
1266
, e com lastro
em norma hierarquicamente inferior (art. 3
o
, do CP), que, ao que consta, não foi recepcionada
em 1988
1267
, ao menos mediante uma interpretação com desprezo diferido de texto, sobretudo
para fins de a lege lata temporalmente determinada alcançar, ad futurum, efeitos de fatos sob
ela praticados. Mesmo porque, a despeito de o artigo 3º, do CP, reverenciar o tempus regit
actum, deve-se dar prevalência ao comando constitucional posterior e hierarquicamente
superior, não havendo que se falar de qualquer relação entre regra e exceção, senão, de
determinação constitucional pautada pela retroatividade em benefício do réu, sem nenhuma
restrição infraconstitucional que não recebeu da Carta Política de 1988 qualquer convite de
hospedagem, gratuita ou onerosa. Igualmente, no âmbito infraconstitucional, do cotejo do
artigo 2
o
, parágrafo único, com o artigo 3
o
, ambos do CP, proporcionalmente deve-se dar
privilégio ao primeiro - malgrado ser ele a regra de que o segundo é a exceção -, por ostentar o mesmo
1264
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 40: “A mais óbvia
função dos juízes penais e do Direito Penal como planejamento das decisões judiciais é a contenção do poder punitivo. Sem a
contenção jurídica (judicial) o poder punitivo ficaria liberado ao puro impulso das agências executivas e políticas e, por
conseguinte, desapareceriam o Estado de direito e a própria república.”
1265
Entendendo pelo alcance post mortem da lei provisória, JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado de
Derecho Penal: parte general. 5. ed. Granada: Comares, 2002, p. 151: “la razón de ello reside en que la abrogación de la Ley
temporal sólo está motivada por la extinción de la causa que la originó pero no por un cambio en la concepción jurídica del
legislador.”; ROXIN, Claus. Derecho..., pp. 168-169; MANTOVANI, Ferrando. Principi..., pp. 33-34; DIAS, Jorge de Figueiredo.
Direito..., p. 192; CONTRERAS, Joaquín Cuello. El Derecho Penal español: parte general, nociones introductorias, teoría del
delito. 3. ed. Madrid: Dykinson, 2002, p. 251; TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal. 5. ed. 11.
tiragem. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 44; PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro: parte geral, artigos 1° ao
120, v. I. 7. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 199; e, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, v. I. 9. ed.
São Paulo: Saraiva, 2004, p. 151. Excepcionando a retroatividade, porque condicionada à previsão legal expressa da lei
restaurada, tal qual dispõe o novel CP espanhol, MIR, José Cerezo. Derecho Penal: parte general, obras completas I. São
Paulo/Lima: RT/ARA, 2007, pp. 287-288.
1266
Fazendo um levantamento da doutrina espanhola, favorável em sua maioria à retroatividade, ao menos antes da vigência
do novel CP espanhol e, embora, mediante uma ponderação de resultados, entenda pela irretroatividade, BACIGALUPO,
Enrique. Derecho..., pp. 131-132. Outrossim, a favor dessa consequência, COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de Direito
Penal, v. 1. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 29. Também, paradigmático, CARRARA, Francesco. Programa do curso de Direito
Criminal: parte geral, v. II. Campinas: LZN, 2002, p. 229.
1267
Pela falta de hospitalidade da Constituição para com o artigo 3
o
, do CP, ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo;
ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 217: “Cabe, pois, entender que o artigo 3
o
, do Código Penal não foi
recebido pela Constituição da República.”
182
conteúdo semelhante ao da Constituição, que não abriu a golpes de facão qualquer atalho
desviante da retroatividade benéfica.
Se a programação primária criminaliza a omissão de notificação compulsória de
conhecimento de determinada doença mediante legislação provisória, vigente apenas durante
o surto infeccioso, desmerecerá qualquer sanção o médico que, desrespeitando-a durante a sua
vigência, não é acusado, condenado e apenado também enquanto ela sobrevive, tal como
aquele que não a notifica antes ou após seu vigor temporal. A vigência deve, ipso facto,
abranger o iter que vai da prática do fato previsto até o cumprimento integral da sanção.
Senão, o é ele pico, ou não se acusa o médico, ou não se o processa, ou não se o condena
ou não se o apena, ou, quando menos, se o faz até a cessação da referida vigência da
programação criminalizante primária. Nesse ínterim, obviamente, ao contrário do que dito
acima, é a criminalização secundária quem deve obediência à sua antecedente.
Por fim, e voltando especificamente ao assunto, desmerece acolhimento o argumento
de que a retroatividade da lei mais benéfica - da programação (des)criminalizante temporalmente
conglobante -, anularia, ou mesmo afetaria sobremaneira a capacidade intimidatória da
legislação temporal
1268
, sobretudo considerando, equivocadamente por certo, que estas leis
são ditadas para reforçar em circunstâncias excepcionais a proteção de determinados bens
jurídicos
1269
, pois, como é de sabença cediça, ou, ao menos deveria ser, a programação
criminalizante primária não se presta a proteger bens jurídicos, senão, a proteger os bens
jurídicos de qualquer ofensa que lhes seja desinteressante. Daí que, uma vez ofendidos
quando da vigência da lei penal temporal, devem todas as condutas pressupostas ser
imediata
1270
e integralmente sancionadas - sem qualquer seletividade das que o serão sob a ainda
vigente legislação, e das que, in these, somente o seriam mais tarde, não mais sob a vigência da lei induradoura
-, e justamente porque, deixadas para depois, correm o risco bastante provável de a sanção
1268
Contraditoriamente, embora com outro argumento, igualmente inaceitável, JAKOBS, Günther. Derecho..., pp. 117-118:
Sin embargo, no se entiende qué hay de inconveniente en el desmoronamiento de la autoridad de una ley que pronto va a
perder vigencia. Así pues, este fundamento no se tiene en pie. En realidad, la ulterior ejecución de la conminación penal de
la ley temporal no es que se verifique porque, de lo contrario, la norma no pudiera imponerse en el tiempo de su plena
vigencia, sino porque el comportamiento pasado (el supuesto antiguo) se define aún en el momento del juicio como
defraudación de expectativa necesitada de garantía normativa... La única peculiaridad de la ley temporal es que en el
momento de la sentencia ya no se puede producir una defraudación de expectativa porque “los tiempos” han cambiado, bien
signifique esto que el suceso ya no se produce más, o que como nuevo suceso ya no llama la atención como algo que
decepcione.” De outro ângulo de visada, desconsiderando quaisquer expectativas, DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito..., p.
192: “Não existem por isso aqui expectativas que mereçam ser tuteladas, enquanto, por outro lado, razões de prevenção geral
positiva persistem.” A favor da eficácia intimidante, MANTOVANI, Ferrando. Principi di Diritto Penale. Padova: Cedam,
2005, p. 34. Ver, ainda, BACIGALUPO, Enrique. Derecho..., pp. 131-132.
1269
BACIGALUPO, Enrique. Derecho..., pp. 131-132.
1270
Não se está, com isso, pretendendo eliminar o procedimento penal mister para tal feito, senão, quiçá, abreviá-lo com a
consequente redução da quantidade e qualidade da sanção, como defende SILVA-SÁNCHEZ, Jesús María. A expansão do
Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. In série as ciências criminais no século XXI, v.
11. São Paulo: RT, 2002, passim.
183
posterior ao fim do prazo de vigência dever ceder passo à (não) sanção de condutas mais
atualizadas e, não porque estas instabilizam mais acesamente o discurso das agências
políticas, senão, porque, num confronto com aquela, devem estas ser selecionadas pelas
agências judiciais na razão direta da impossibilidade de atender a toda a seleção prévia das
agências políticas, bem como pelas exigências, indevidas, mas inafastáveis por hora, daquele
mesmo discurso que deve ser afastado gradualmente
1271
. Ademais, ultrapassado seu prazo
legítimo é que ela não terá mesmo qualquer função intimidatória, senão, meramente
retributiva, efeito este de muito postergado das funções programadoras penais por
representar, mediante puro e tosco exercício de poder e violência, pura vingança pública
1272
,
inútil, complemente-se, e que, ao contrário do que se tem sustentado não retribui o delito,
senão a inabilidade do selecionado, visto que embora um número muito grande de pessoas
protagonize delitos, o poder punitivo somente seleciona os inábeis.
1273
Pretende-se intimidar
e, quando não se intimida mediante a programação criminalizante primária, se o faz pela via
transversa da criminalização secundária seletiva, substitutiva da intimidação primária ineficaz.
Mas, mesmo esta, entre os delitos atuais e os obsoletos, seleciona os primeiros, refazendo seu
arremedo de discurso, autolegitimando-se. E, nem mesmo orientações de política criminal
pretendendo justificar o reforço da programação criminalizante primária temporal - que, nessas
circunstâncias, ao contrário do que se propagandeia, frustrar-se-iam de pronto -, conduzem ao
entendimento contrário, porquanto é esta mesma política criminal contencionista que deve
represar o poder punitivo em um sistema punitivo como o brasileiro, pautado em pôr a ordem
constitucional a cavaleiro da infra. Nestes casos, compete ao sistema civil e administrativo -
ou seja, não penal -, assimilar a eventual ofensa, sem olvidar que mesmo eles podem dar ensejo a
uma sanção ainda mais insuportável que aquela que outrora poderia advir do poder punitivo
criminal.
Debruçando-se sobre o tema, escreveu LUÍS GRECO, ancorando-se em TIEDEMANN, quase
que indesafiavelmente, que
1271
Pugnando por um afastamento gradual até chegar ao abolicionismo, passando-se, porém, pelo minimalismo, ZAFFARONI,
Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001,
passim.
1272
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 142: “...c) não se
explica tampouco que uma pessoa sofra o mal e que o Estado é que exija retribuição... Muito menos explicável é a pretensão
de que a pena tem função retributiva. Não se pode compreender uma função retributiva fora do marco de uma reparação,
porque a retribuição não é um fim em si mesma - nem sequer para KANT -, mas sim um meio que encontra sentido quando
associado a uma finalidade diferente, tal como a reparação ou a vingança. Nenhuma dessas duas finalidades, porém,
corresponde a um ente distinto do próprio ofendido como acontece com a pena.”
1273
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 142.
184
“a doutrina dominante continua a descrever e a defender a subsidiariedade entendida nos termos
acima expostos.
1274
Mas um grupo minoritário de autores, encabeçado por TIEDEMANN, vem
algumas décadas fazendo algumas colocações relevantes. Questiona-se, principalmente, a
premissa da qual parte o referido princípio, a saber: a de que a sanção penal seja sempre a mais
grave. Não está claro que o direito administrativo e o direito civil podem atingir o cidadão de
modo muito mais severo, com multas exorbitantes, sanções de perda do cargo no caso de
funcionário público, proibições de licitar e indenizações imprevisíveis – compare-se a cesta básica
paga em processos criminais de competência do juizado especial com o dano moral imposto
também no juizado, mas desta vez cível -, como também que o direito penal dispõe de muito mais
garantias, em especial de ordem processual, do que os dois outros ramos do direito. Ou seja,
muitas vezes a intervenção do direito penal far-se-ia necessária, não porque ele, como meio mais
grave, devesse sempre entrar em cena por último e sim porque elenão seria o meio mais grave.
Para TIEDEMANN, esta é a situação especialmente no direito penal econômico e ambiental.”
1275
Também, acolhida não terá o argumento de que com isso reduzir-se-ia, ilogicamente, a
vigência da lei em prazo mister para, assim, poder-se outorgar às agências policiais e judiciais
tempo suficiente para pesquisa, descoberta, coleta de dados, processamento e aplicação da
programação criminalizante primária, passando sua cláusula temporal a ter que viger com
uma redação que, de antemão, previsse, com base em estatísticas ou em períodos
processuais estandardizados, o necessário desconto temporal para sua efetivação.
1276
Isso é
um problema de estratégia organizacional, inatribuível e incobrável ao acusado!
Insuficientes que pareçam ser os problemas - cujo tratamento não difere muito daquele
prognosticado por ZAFFARONI, embora para outra questão, quando afirmou que “sempre é secundário e somente
merece atenção quando urge implantar alguma manobra clientelista e neutralizar algum prblema
desacreditador”
1277
-, que a questão indevida e inconstitucionalmente suscita, absurdamente
avoluma-os MANTOVANI quando entende pela constitucional desprodução de efeitos retroativos
beneficiantes da lege lata temporária ou excepcional posterior, mais favorável ao réu que sua
antecedente, para fatos praticados sob a vigência desta.
1278
Para início de conversa, embora pareça coerente diminuir a culpabilidade em épocas
de legislação transitória, ao fim da conta, o jogo acabará com um resultado fraudado,
sobretudo quando embargada a transferência desse tratamento beneficioso às condutas
praticadas sob a lei precedente. É que, conforme se tentará demonstrar, malgrado a
diminuição da culpabilidade, notadamente acontece, nessas épocas de legislação heterodoxa,
1274
GRECO, Luís Filipe. Breves reflexões sobre os princípios da proteção de bens jurídicos e da subsidiariedade no Direito
Penal. In BRITO, Alexis Augusto Couto de; VANZOLINI, Maria Patrícia (Coord.). Direito Penal: aspectos jurídicos
controvertidos. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 150 e seguintes.
1275
GRECO, Luís Filipe. Breves..., pp. 171-172.
1276
Mais do mesmo, em CARRARA, Francesco. Programa do curso de Direito Criminal: parte geral, v. II. Campinas: LZN,
2002, p. 229: “Tal sistema é justo, embora enfrente a objeção especiosa de que de tal modo a lei ditada por um ano jamais
durará um ano, mas sempre alguns meses ou algumas semanas menos, pela necessidade de um intervalo entre a sua violação
e o julgamento definitivo.” Já, JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado..., p. 151: “De lo contrario, además,
tan pronto como la vigencia de la Ley temporal fuera aproximándose a su fin dejaría de poseer autoridad alguna.” Por sua
vez, ROXIN, Claus. Derecho..., p. 169: “Además, si no existiera el § 2, IV, se podría infringir sin peligro una ley temporal en
la última fase de su período de vigencia, puesto que el autor estaría seguro de que ya no se le iba a juzgar antes de su
derogación.” Concorde, JAKOBS, Günther. Derecho..., p. 117.
1277
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crime..., p. 57.
1278
MANTOVANI, Ferrando. Principi di Diritto Penale. Padova: Cedam, 2005, p. 34.
185
um aumento do discurso criminalizante, abastecido pelas agências desburocratizadas
(mormente as de comunicação), ansioso por mais criminalização secundária, única que,
nessas ocasiões, pode ser majorada em termos práticos. Conforme entendem ZAFFARONI,
BATISTA, ALAGIA e SLOKAR,
“o Direito Penal se constrói, deste modo, como um discurso que racionaliza (legitima) o exercício
do poder punitivo pois, de acordo com a sociologia por ele criada, atinge a todos igualmente, é
exercido pelos juízes, através de mandato dos legisladores (representantes do povo) e se vale da
coação direta das agências executivas apenas segundo suas instruções. ...De acordo com o mundo
por ele criado, ensaia a planificação de todo o exercício do poder punitivo como se este se
adequasse às pautas dos teóricos. Como esta construção não respeita a realidade do poder, o
discurso que a enuncia se arvora em legitimante de um poder que não é jurídico, mas sim policial,
político, comunicacional e também subterrâneo (ilícito). ...De que necessitam hoje, os que
ascendem ao poder, afora uma boa milícia, aguardente e salaminho? - Necessitam de texto. Esta
afirmação de ANDRÉ GLUCKSMANN é exata: sem discurso o poder se desintegra. ...Assim sendo, o
Direito Penal preferiu exercer poder com o próprio discurso, em lugar de exercê-lo mediante
decisões adequadas à realidade por parte das agências jurídicas, sacrificando sua orientação
racional em favor da conservação do poder discursivo. ...A tática de poder empregada até
presentemente está começando a fracassar: o Direito Penal deve incorporar o discurso midiático
bélico, ou enfrentá-lo. No primeiro caso, ele se degradaria até acabar se diluindo no da mídia. No
segundo, ele deveria mudar sua tática e recompor-se como discurso jurídico, na condição de
orientador e enfatizador do poder direto das suas agências.”
1279
Francamente, essa situação que ali se contesta é realmente absurda e depõe contra uma
política criminal contencionista e consequencialista em que não pode haver uma discrepância
entre o discurso penal e a realidade do poder jurídico.
Dizer, ex hipothesy, que é justamente nas situações excepcionais e temporárias que o
réu deveria majorar o seu cuidado e atenção, agravando sua culpabilidade
1280
, equivale a
desprezar a potencial consciência da ilicitude, tão mitigada nesses tempos de hiperinflação
criminalizante primária, que remanesce diminuída - ou mesmo excluída, porquanto não é admissível
que se apene a quem não poderia conhecer a proibição
1281
, bastando imaginar o caso do médico de campanha
que durante uma epidemia sequer tem tempo de se inteirar da novel programação criminalizante primária
pertinente ao combate da morbidez em alastro, sendo descabido contraditar argumentando que o possível
conhecimento exigido não pode, sempre, ultrapassar o senso comum do certo e do errado
1282
, imanente a todo
ser humano imputável, porquanto aí, confundir-se-ia direito com moral ou ética, além de que, como é de
sabença cediça, hoje em dia existem inúmeras prescrições legais penais que sequer podem ser mensuradas
como certas ou erradas, não passando de meras exigências burocráticas das agências políticas que, não
conseguindo fiscalizá-las, tentam contê-las mediante a imposição de requisitos que, uma vez descumpridos,
ensejam não o temor da pena, que por si é fantasioso, mas a probabilidade da condenação, mediante um
discurso criminalizante secundário propagandeado como necessário e infalível para realimentar o poder
punitivo -, nesses casos, como é inegável, o que demandaria, à laia de logicidade e coerência, e,
1279
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 71 a 73.
1280
Concentrando o problema na culpabilidade, BACIGALUPO, citado por ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA,
Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 224: “Não se trata de uma questão de legalidade nem de tipicidade, mas sim
de culpabilidade, que deve ser apresentada como erro de proibição invencível.”
1281
Citando TAVARES, Juarez. ADCP, 1987, p. 767 apud ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro;
SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 224.
1282
É por isso que se fala em potencial consciência da “ilicitude”, e não do “tipo”.
186
por ricochete, um tratamento mais ameno aos criminosos da lei temporal, e não um mais
exigente.
Acontece, porém, que o consumidor das agências - condicionado pelo artigo 37, do Código
de Defesa Consumerista -, não pensa assim, fantasiando em sua psique, quiçá conduzido por um
discurso de massas amorfas, que, ao contrário do exposto, deveria haver sim, um aumento da
culpabilidade em consonância com um, no seu entender e sentir, aumento da demanda por
mais cuidado (por parte dos agentes) e proteção (por parte das agências) em épocas anormais.
Por outro lado, contraditoriamente, e aí se começa a marcar as cartas que vão fraudar as regras
da jogatina, o tratamento dissonante, então proposto, não desestimula a prática do crime pelo
médico antes da chegada da lei temporária e excepcional, tornando ainda mais irrazoável o
discurso penal, pois, sejamos convinháveis, nenhum médico deixará de praticar o crime seja
porque sequer sabe que a novel legislação benéfica chegará, seja porque, surgindo ela, não a
aguardará para, depois, quando da sua vigência, atuar. Por isso, o famigerado atrativo da
prática da ação somente após o início da vigência da lei temporal vantajosa, com o fim
exclusivo do benefício da pena diminuída, em conjuntura em que a menor bitola da
culpabilidade advém de não ter - sabe-se porque cargas d’água -, havido interesse das agências
políticas em atender a uma possível demanda especial por maior proteção contra ofensas aos
bens jurídicos, não atrai em nada, porquanto se destina ora àqueles que já praticariam o ato de
qualquer maneira, e ora, tardiamente, àqueles que, apressadamente, o praticaram. De sorte
que a menor ansiedade das épocas de tranquilidade em que o discurso seletivo não vende
comerciais, não atrai a atenção da mídia e, de consequência, dos seus consumidores, que não
se condicionam, porque imprevisível, a qualquer alteração legislativa favorável, sempre
meramente possível e inesperável.
1283
“Como é natural, tudo o que chama a atenção pública move os políticos a usá-lo no
campo do clientelismo e a polícia a lhe dedicar atenção preferencial”
1284
, servindo, como
assenta VERA MALAGUTI BATISTA, “os meios de comunicação em massa, principalmente a
televisão” como vetor “para o exercício do poder de todo o sistema penal, seja através dos
novos seriados enaltecedores do extermínio, seja através da ‘invenção da realidade’ no
noticiário para produção de indignação moral, seja pela fabricação de estereótipos do
1283
DUMAS, Alexandre. A pós-modernidade no Direito Penal brasileiro. In Nilo Batista: a luta pelo Direito. Rio de Janeiro:
Chronos, publicação da Unirio, 2007, ano 2, n. 4, p. 45: “Também não é segredo que os veículos de comunicação elegem os
assuntos que devem ser noticiados em função tanto de seus interesses - que podem variar dos mais nobres aos mais espúrios -
, quanto do aleatório gosto de seus leitores. É nesse imponderável universo de tantas variáveis que se opera a eleição daquele
que será perseguido pela polícia, pelo judiciário ou pelo sistema penitenciário. E, curiosamente, os eleitos nesse sinistro
sufrágio, de um modo geral, são sempre os mesmos: desempregados, camelôs, prostitutas e demais excluídos do programa
neoliberal em curso.”
1284
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crime..., p. 48.
187
criminoso.”
1285
Enquanto que a maior intranquilidade desencadeia a necessidade do aumento
do discurso que, se vier adstrito a uma diminuição da culpabilidade, igualmente não
convencerá seus destinatários que, indiferentes a isso, não se furtarão de incorrer em seus
crimes. Então, a solução da questão não está no discurso propagandeado, senão, na
necessidade de considerá-lo de um modo ou de outro, desde que o seja de maneira lógica e, à
laia de uma orientação racional, plausível, portanto, a atender aos reclamos que a realidade
impõe.
A culpabilidade, decomposta na potencial consciência da ilicitude, deve ser aferida
com arrimo na época em que o fato fora praticado, isso é verdade - mormente porque o contrário se
escancaria, à toda evidência, a um poder punitivo ainda irracional -, mas, também é verdade que essa
mesma culpabilidade, malgrado pressuponha uma análise subjetiva, possui limites máximo e
mínimo, somente dentro dos quais pode pendular o magistrado. Ocorre que, havendo uma
alteração desses marcos, tal qual na situação acima em que houve uma diminuição da
reputação da culpabilidade - pois passou a se contentar com menos culpabilidade -, pela legislação
transitória para níveis inferiores em relação aos da legislação revogada por ela,
obrigatoriamente deverá haver, outrossim, uma influência desse redimensionamento na
capacidade de manejo do julgador no que respeita àquela culpabilidade. Ora, embora prima
facie a culpabilidade delineadora, qual sendo, aquela a apreciar - que chamaremos de referida -,
devesse ser a inerente ao agente quando da prática do ato, ou seja, antes da entrada em vigor
da lei temporária, esta, por sua vez, reduzindo os lindes da culpabilidade delimitadora - que
chamaremos de referencial -, determina que a criminalização secundária, dirigida ao agente que
praticou o crime antes da vigência da lei heterodoxa, leve isso em consideração quando da
mensuração da culpabilidade (referida), de sorte que não haveria - e isso, à toda evidência, é
proposital -, como a culpabilidade referencial não influir na referida, principalmente porque,
repita-se, fora a própria agência política quem diminuíra seus marcos. Aliás, como disse
CONTRERAS, o fundamento de vigência da lei temporal não é o de assegurar a punição de fatos
do passado, como entende HASSEMER, senão, solucionar um conflito do presente, de acordo
com JAKOBS.
1286
Se a intenção é solucionar um conflito do presente, deve ele ser medido com
o instrumento do presente. Mas, o que se desprezar ou alterar a culpabilidade referida,
mas sim, vai-se, apenas, o que é muito, adequá-la a um novo gabarito, não se podendo
ultrapassar o da lei temporária, sobretudo para cima. E, é essa apreciação coetânea que
justifica a retroatividade das leis mais benéficas, porquanto é mediante ela que se moderniza o
1285
BATISTA, Vera Malaguti. Drogas..., p. 234.
1286
CONTRERAS, Joaquín Cuello. El Derecho..., pp. 252-253.
188
conflito, atualizando-o para o momento em que ele, realmente, será apreciado pelas agências
judiciais. Não se diga, porém, que essa é uma empreitada exclusiva dessas agências,
porquanto as políticas, as executivas, e até mesmo as subterrâneas, embora estas em menor
medida, porquanto motivadas por critérios mais apegados à vindita que à demagogia, também
amiúde atualizam suas pretensões, deixando de punir conflitos que não mais lhes interessam
na medida em que, aumentando sua remoticidade, diminuem seu poder de legitimar,
falsamente, o discurso que outrora selecionava os etiquetados e privilegiava os etiquetadores.
Essa é uma das grandes consequências do distanciamento entre a criminalização secundária e
a criminalização primária programada e prometida como eficaz.
Assim, desprezada qualquer intimidação - visto que notadamente fantasiosa sua pretensão,
pois nenhum médico deixará de cometer o delito por conta da fatigante leitura da programação criminalizante
primária de bolso -, esvaziada pela adveniência da lei nova transportadora de sanção mais
amena, deve a questão merecer o mesmo tratamento que a anterior, qual sendo, o da
retroatividade da lei mais benéfica, sobretudo porque deve haver uma mudança de concepção
da agência política que passará a entender que aquele crime, embora praticado antes, mas com
efeitos postergados, se praticado hoje, o mereceria a sanção mais dura da ocasião. Para se
sustentar, não pode o discurso criminalizante usar o argumento da necessidade de eliminação
ou diminuição dos crimes e dos seus efeitos e, em outro momento, em que diminuição
dessa necessidade - tanto que reduzida a culpabilidade -, manter a mesma partitura do discurso.
1287
Pensar em contrário é persuadir a prática do crime, teimosamente desejado pelo criminoso
que, agora sob a vigência da lei nova excepcional ou temporária, o levará a cabo com o aval
premiário do legislador, e num momento em que, com razão, estão realçadas as demandas -
então, não atendidas pelas agências -, por maior criminalização. Mas, essa contradictio in adiectio
é resolvida pela Constituição que admite, como visto, à laia de incondição, a incontinência da
retroatividade da lei favorável, haja vista que, por ela, a culpabilidade não deve interferir
como uma variável meramente formal e esporádica, porquanto se o próprio legislador, optante
da consideração da lei como temporária ou excepcional, e apesar disso, reputou a prática do
crime nela previsto - quanto à culpabilidade -, como mais amena - malgrado as exigências otimizadas
de atenção, cuidado e respeito pela inofensa ao bem jurídico -, parece óbvio que ele entendeu, também,
em conceder o devido desconto à culpabilidade levada a termo quando da vigência da lei
anterior, que merecerá sim o benefício advindo da lei heterodoxa ou de prazo determinado.
1287
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 200: “Se o sistema
não consegue evitar contradições internas, deve ser modificado ou substituído por outro que as evite sem afetar a validade
dos limites indicados para sua função: o sistema é um meio, e não um valor em si mesmo. Sua construção lógica reconhece,
dessa maneira, caminhos proibidos que derivam de sua função.”
189
Seja como for, realisticamente, ao final da operação aritmética nada disso importará, seja a
culpabilidade, seja a solução do caso presente etc., porquanto, de qualquer maneira - e esse não
é um discurso pessimista, mas de constatação -, a seletividade continuará sendo estrutural e, por
conseguinte, não há sistema penal no mundo cuja regra geral não seja a criminalização
secundária em razão da vulnerabilidade do candidato, sem prejuízo de que, em alguns, esta
característica estrutural atinja graus e modalidades aberrantes. Por isso, a criminalização
corresponde apenas supletivamente à gravidade do delito, que é o conteúdo injusto do fato,
sendo ela determinante somente quando, por configurar um fato grotesto, eleva a
vulnerabilidade do concorrente.
1288
Ora, os médicos, durante e em razão do seu múnus, além
de a princípio não comporem, por conveniência das agências, aquela parcela dita vulnerável,
seus atos, ainda que grosseiros, mas também prima facie e por conveniência, não deveriam
imiscuí-los nesse universo, tampouco deveriam aumentar sua vulnerabilidade, sempre
considerando, obviamente, a pauta punitiva atual.
Ocorre que, aqui, em desfavor do médico geralmente não se aquilo que, tomando
de empréstimo, designa-se de “efeito Doppler.”
1289
É dizer, as agências, observando a alteração - muita vez irrelevante, penalmente falando, ou
melhor, independente do que façam -, na frequência dos atos de alguns candidatos - mormente aqueles
desvalorados, estereotipados ou pior adestrados
1290
- que, apesar disso, permanecem domesticados -
tal qual aconteceu com os capoeiras que, não podendo ser destruídos, foram domesticados criando-se uma
conjuntura favorável à sua reinserção ao sistema de maneira menos indiscreta
1291
, alcunhada por MURILO DE
CARVALHO, como visto, de “estadania” -, ou imóveis - é dizer, nasceram e, muito provavelmente, continuarão
sendo ou pertencendo a uma classe social, étnica, etária, de gênero ou estética reputada criminalizável com
mais facilidade, dando a entender que são eles “os únicos delinqüentes” e que os seus atos seriam “os únicos
delitos”
1292
praticados -, “movimentam-se” constante e penalmente em direção àqueles - seja na
programação criminalizante primária, sempre produtiva e criativa, seja na criminalização secundária, tão
seletiva quanto aquela -, numa cruzada contra um mal que quase sempre existe como
justificativa para a acobertamento de um mal maior praticado por outros, menos vulneráveis e,
por isso, menos diagnosticáveis, ainda que intencionalmente. Nesse “trágico baile de
máscaras”, as agências conduzem o espetáculo punitivo - aplaudido de pelo próprio ANTOINE DE
1288
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 51.
1289
SOURNIA, Jean-Charles. História..., p. 380: “Modificação da freqüência de uma vibração, notada por um observador
móvel enquanto a fonte das vibrações se encontra fixa. O estudo deste efeito utiliza-se no diagnóstico das anomalias dos
vasos sangüíneos.”
1290
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 46 e 48.
1291
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados..., p. 23.
1292
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 46.
190
SERVAN, o penalista mais conceituado e técnico da França do século XVIII
1293
-, tendo como dançarinos,
exclusivamente, os etiquetados - ou, nem tanto, como no caso dos etiquetáveis, a quem se dirige, também,
os fins da punição
1294
-, que, mesmo trocando de personagem
1295
, e é isso que podem fazer,
infelizmente não conseguem se despersonalizar
1296
como inimigos, desempenhando sempre o
mesmo papel
1297
, previamente escrito.
Solução idêntica à elencada acima deve ser disposta quando houver uma sucessão de
leis temporárias, prevalecendo a antecedente, quando mais benéfica que a consequente, para
fatos praticados sob a vigência daquela, ou a sucedente, para fatos praticados sob sua vigência
ou sob a da anterior, quando essa beneficie o réu, retroagindo, portanto.
1298
Oscilante, todavia, parte da doutrina entende pela possibilidade, ou não, de
retroatividade em casos de sucessão de lei temporária ou excepcional por outra de igual
caráter, invocando como argumento para essa dependência, a natureza das leis em sequência.
Se se tratar de leis determinadas pela alteração de condições político-sociais, deve negar-se a
retroatividade da nova lei. Entrementes, continua afirmando esta parte da doutrina, se a
inovação legislativa for determinada pela necessidade de regular de modo mais racional e
equitativo a mesma matéria, permanecendo substancialmente inalteradas as circunstâncias
excepcionais que sugeriram a legislação precedente, impor-se-ia a retroatividade da lei mais
favorável.
1299
Desmerece sustento, advirta-se, a afirmação de que é a natureza da lei quem dirigirá
seu destino em caso de confronto com outra posterior de idêntico fundamento, porquanto,
além de o próprio inesquecível FRAGOSO dela se afastar quando afirma que não são leis
excepcionais as normas que prevêem fatos que podem ter lugar em situações excepcionais,
1293
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., pp. 168-169.
1294
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., pp. 109-110: “No entanto,... ao lado das técnicas secretas de averiguação da
verdade,... o poder também era exercido por outras técnicas públicas que foram denunciadas com igual vigor pelos
iluministas. Estas outras técnicas e justiça e governo, aplicadas pelo poder punitivo como atribuição do soberano, realizavam-
se por meio do espetáculo. Este espetáculo seria oferecido especialmente por ocasião da execução dos castigos, considerados
um direito do monarca e do Estado. O principal dispositivo através do qual se exercia este direito (com o objetivo de manter a
ordem), e que reproduzia o diagrama de poder, era o castigo mediante o suplício. Nele, o rei, através do carrasco, exercia
sobre o corpo do condenado a mutilação ou a morte diante dos olhos do público, a fim de que a marca no corpo individual se
gravasse nos corações dos outros indivíduos.”
1295
Em latim, persona, æ (donde se extrai o vocábulo “personagem”), significa máscara (de um ator no teatro). In Dicionário
de Latim-Português. 2
a
edição. Porto: Porto editora. 2001, p. 504.
1296
A imagem das máscaras se deve, também, ao que disse ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo..., p. 19: “É inevitável que o
Estado proceda dessa maneira, porque por trás da máscara acredita encontrar um inimigo, retira-lhe a máscara e com isso,
automaticamente, elimina-o do seu teatro (ou de seu carnaval, conforme o caso).”
1297
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo..., p. 104: “Aquele que pretende saber quem é o inimigo com um simples olhar para
o mundo minimiza ou nem sequer apercebe-se do risco da arbitrariedade política: o inimigo é quem é inimigo. Dessa
perspectiva, pode-se afirmar que qualquer pretensão do poder político de impor a etiqueta a quem não é inimigo seria
imediatamente desqualificada ao verificar-se empiricamente que o rótulo é falso.”
1298
Implicitamente, MIR, José Cerezo. Derecho..., p. 288.
1299
Ancorando-se em GRISPIGNI, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições..., p. 126.
191
a menos que estejam contidas em leis excepcionais
1300
, o que, em toda medida, de forma
inconteste, põe a fonte da lei acima do seu objetivo e conteúdo, a Constituição não fez
qualquer reserva ou ressalva à retroatividade, determinando-a a cargo, exclusivamente, do
benefício adveniável ao réu, e ponto final! Em palavras mais milimétricas, como dizia
CARRARA, em todo caso, tais são os princípios gerais sobre este assunto. Inspiram-se, em
substância, na regra da prevalência da benignidade, que pode dizer-se absoluta.
1301
3.1.2 O princípio (meio ou fim?) da legalidade e a lei penal em branco
Não se pode, sob o pretexto da vagueza imanente aos vocábulos que compõem as leis,
admitir o afastamento, ainda que para logradouro próximo, do princípio da legalidade
1302, 1303
-
tampouco sua aplicação integral
1304, 1305, 1306
-, que deve impor o seu respeito na proporcional e in
continenti medida da maior proximidade referencial funcional com o mandato de
determinação advindo da exigência de clareza no direito
1307
, sem o que remanesceriam os
1300
Ancorando-se em GRISPIGNI, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições..., p. 126.
1301
CARRARA, Francesco. Programa..., p. 230.
1302
No mesmo sentido, ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I,
pp. 206-207.
1303
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito..., p. 50: “...a transferência da competência legislativa para definir a conduta proibida
para o Poder Executivo, ou para níveis inferiores de atos legislativos, infringe o princípio da legalidade, como o afirma um
setor avançado da literatura penal - afinal, o emprego instrumental do Direito Penal para realizar políticas públicas
emergenciais é inconstitucional.”
1304
Apontando os inconvenientes dessas duas teses extremas, citando MAGGIORE e CARNELUTTI, diz o garantista FERRAJOLI,
Luigi. Direito..., p. 302: “‘Quando se produza um ato novo’, escrevia em 1939 o jurista moralista GIUSEPPE MAGGIORE, ‘que
seja substancialmente, mas não formalmente delito, porquanto não esteja incriminado por nenhuma disposição legal, o que
fará o Estado? O Estado liberal, frente a uma eventualidade semelhante, permanecerá inerte, paralisado pelo ordenamento
jurídico que lhe ordena nec plus ultra, e, ainda lastimando a impossibilidade de agir, tolerará que impere a completa
impunidade; o Estado totalitário, ao contrário, ordenará a seus juízes que punam, criando eles a norma que falta.’ E
FRANCESCO CARNELUTTI acrescentava: “‘Não existe nenhuma verdadeira razão pela qual um ato socialmente prejudicial
apesar de não expressamente encontrar-se previsto pela lei penal não possa ser punido’.” De outro lado, chamam a atenção
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 43-44: “A
criminalização primária é um programa tão imenso que nunca e em nenhum país se pretendeu levá-lo a cabo em toda a sua
extensão nem sequer em parcela considerável, porque é inimaginável. A disparidade entre a quantidade de conflitos
criminalizados que realmente acontecem numa sociedade e aquela parcela que chega ao conhecimento das agências do
sistema é tão grande e inevitável que seu escândalo não logra ocultar-se na referência tecnicista a uma cifra oculta. As
agências de criminalização secundária têm limitada capacidade operacional e seu crescimento sem controle desemboca em
uma utopia negativa. Por conseguinte, considera-se natural que o sistema penal leve a cabo a seleção de criminalização
secundária apenas como realização de uma parte ínfima do programa primário.”
1305
Citando COBO DEL ROSAL e VIVES ANTÓN, diz CONTRERAS, Joaquín Cuello. El Derecho..., p. 207: “Una concepción
particularmente rígida de la taxatividad en Derecho Penal es la sustentada por COBO DEL ROSAL/VIVES ANTÓN, para quienes
el principio de legalidad obliga a que la claridad y taxatividad de la ley excluya “la concreción efectiva de las infracciones o
de las penas” por el poder judicial, resaltando que, em su aspecto técnico, la “ley penal há de formularse perfectamente por
medio de conceptos descriptivos, evitando las cláusulas valorativas de contenido difuso” y “enunciados normativos difíciles
de precisar”.
1306
MIR, José Cerezo. Derecho..., p. 251: “El principio de legalidad de los delitos y las penas es un principio que nunca es
susceptible de plena realización. Esta exigiría un casuismo excesivo de las figuras delictivas y la utilización exclusvia de
elementos descriptivos. Por grande que fuera el casuismo, que haría a los Códigos penales sumaente farragosos, nunca
podría el legislador comprender la rica variedad de los hechos que ofrece la vida real. Las figuras delictivas se forman, por
ello, en virtud de un proceso de abstracción a partir de los hechos reales.”
1307
FERRAJOLI, Luigi. Direito..., pp. 304 a 306: “Da mesma forma que o princípio de mera legalidade, também o princípio de
estrita legalidade, que opera consoante a fórmula nulla lex poenalis sine necessitate, sine damno etc., como norma de
192
jurisdicionados reféns do programador criminalizante primário que, inclusive mediante o
atendimento, ao menos formalmente escorreito do processo legislativo
1308
poderia, mediante a
criação de um diploma legal penal - mormente quando fragmentado
1309
-, desobedecer a segurança
jurídica legitimando, por via oblíqua, o poder punitivo
1310
que, então, acabaria, ad absurdum,
habilitado no próprio tipo
1311
, mormente porque, “se se acrescentar a isso o fato de que ele
representa hoje uma via evidente de delegação da potestade punitiva por parte do poder
legislativo e que rompe a cláusula de ultima ratio, parece não haver muita coisa que discutir a
seu respeito.”
1312
O que não passaria de mera logomaquia cujo fundo arbitrário apresenta-se
encoberto por uma cobertura lanuginosa, virtualmente inocente.
1313
Muita vez, porém, a
desfaçatez na imposição do poder punitivo se escancara, chegando o programador
criminalizante primário a desobedecer os próprios limites legais, ora formalmente, ora
contenudisticamente, desprezando na composição do tipo qualquer certeza e determinação,
reconhecimento de todas as leis penais formuladas validamente e só destas, tem para o jurista o valor de uma regra
metacientífica, à qual poderíamos chamar de segundo postulado do positivismo jurídico: mais precisamente, na medida em
que condiciona a validade das normas penais à denotação taxativa das figuras de delito que elas definem, equivale a uma
regra semântica acerca das condições de uso da palavra “verdadeiro”, não só na prática penal, mas, da mesma forma, na
ciência jurídica. Também no plano científico são possíveis definições assertivas e juridicamente verificáveis do que seja
delito somente se as correspondentes definições legislativas satisfazem o princípio de estrita legalidade, quer dizer, se estão
dotadas de uma extensão tão determinada quanto seja possível. ...Com relação ao estatuto semântico das leis, tenho
distinguido, em primeiro lugar, entre estrita legalidade e mera legalidade, conforme as previsões legais das figuras delituosas
estejam mais ou menos dotadas de denotação empírica taxativa. Defini, depois, ...o princípio de estrita legalidade como uma
regra metajurídica de formação da linguagem penal que para tal fim prescreve ao legislador o uso de termos de extensão
determinada na definição das figuras delituosas, para que seja possível a sua aplicação na linguagem judicial como
predicados “verdadeiros” dos fatos processualmente comprovados. ...Acrescento agora que, ...o princípio da estrita
legalidade, no sentido que tem sido associado até o momento de metanorma que condiciona a validade das leis vigentes à
taxatividade de seus conteúdos e à decidibilidade da verdade jurídica de suas aplicações, é uma garantia que se refere só ao
Direito Penal. Efetivamente, somente a lei penal, na medida em que incide na liberdade pessoal dos cidadãos, está obrigada a
vincular a si mesma não somente as formas, senão também, por meio da verdade jurídica exigida às motivações judiciais, a
substância ou os conteúdos dos atos que a elas se aplicam. Essa é a garantia estrutural que diferencia o Direito Penal no
Estado ‘de direito’ do Direito Penal dos Estados simplesmente ‘legais’, nos quais o legislador é onipotente e, portanto, são
válidas todas as leis vigentes, sem nenhum limite substancial à primazia da lei. E é essa diferença que hoje marca o critério de
distinção entre garantismo e autoritarismo penal, entre formalismo e substancialismo jurídico, entre Direito Penal mínimo e
Direito Penal máximo.”
1308
FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo. Diritto..., p. 67: “Il principio di legalità sarebbe rispettato nella forma, ma eluso
nella sostanza, se la legge che eleva a reato un dato fatto lo configurasse in termini così generici da non lasciar individuare
con sufficiente precisione il comportamento penalmente sanzionato: appartiene, quindi, alla stessa ragione ispiratrice del
principio di legalità l’esigenza della tassatività o sufficiente determinatezza della fattispecie penale.”
1309
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito..., p. 50: “As leis penais em branco são tipos legais com sanção penal determinada e
preceito indeterminado, dependente de complementação por outro ato legislativo ou administrativo....”
1310
Perigo já advertido por FERRAJOLI, Luigi. Direito..., p. 392: “Inversamente, ainda que mais raramente, acontece de as
definições formalistas levarem até o fim operação contrária propondo-se como definições filosófico-prescritivas que não se
limitam a dizer que os delitos ‘estão’ prohibita, senão que afirmam também que precismente por isso ‘devem ser’
considerados peccata. Em suma, ...devem considerar-se peccata quia prohibita. Em ambos casos, temos uma confusão entre
direito e moral, ou entre legitimação interna e legitimação externa. O resultado político destas duas confusões opostas é o
mesmo: a legitimação externa conferida acriticamente aos conteúdos substanciais do direito positivo, seja considerando-os
válidos também porque são substancialmente justos, seja cosiderando-os justos somente porque são formalmente válidos. Em
qualquer caso, a associação entre delito e pecado ou entre antijuridicidade e anti-sociabilidade equivale a atribuir valor
externo às leis penais vigentes e, de fato, à negação do problema autônomo de sua justificação ético-política.”
1311
Mais claramente, ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p.
207.
1312
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 206.
1313
Sobre a diferença entre o princípio de mera legalidade e o princípio de estrita legalidade, veja FERRAJOLI, Luigi.
Direito..., p. 305.
193
preferindo privilegiar a incompletude e a dúvida
1314
, em flagrante desrespeito à sua
responsabilidade republicana.
1315
Socorrendo o respeito ao princípio da legalidade, deve-se pautar o controle da
insaciedade do poder punitivo pelos critérios da declaração de inconstitucionalidade
1316
da
referida lei penal cega
1317
, no todo ou só quanto ao tipo penal míope, e geralmente com
redução ou eliminação de texto
1318
, e pelo do princípio da máxima taxatividade
interpretativa.
1319
Não fosse a impossibilidade de conter a ansiedade com que o poder
punitivo, mediante suas apressadas agências, mormente executivas, pretende exercer o
usufruto advindo da vigência, ainda que provisória, da referida programação criminalizadora
primária indeterminada e incerta, com a imposição de prisões preventivas arbitrárias
1320
, e de
leis penais in albis, e. g, poder-se-ia muito bem, em atenção ao postulado de prudência,
relegar a alegada inconstitucionalidade a segundo plano.
1321
Mesmo porque, esposando a lição
de CIRINO DOS SANTOS, deve ficar aqui apontado que a inconstitucionalidade da lei penal em
branco não exclui sua eficácia concreta enquanto integrar a legislação penal.
1322, 1323
Aliás, não tão bem assim, servindo sem ajustes o que o professor JUAREZ TAVARES disse
para outra ocasião, ao afirmar que
“a questão da relação entre tipo e antijuridicidade, portanto, deve levar em conta, em primeiro
plano, este sentido delimitativo da norma penal em face do exercício do poder estatal, e não o
sentido de proibição ou de imposição de condutas. Em razão disso, essa relação pode ser
elucidada pela fixação das funções do tipo e das limitações da antijuridicidade naquelas duas
fases a que nos referimos como base da elaboração de uma teoria do injusto. Esse tratamento que
1314
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 207.
1315
Evidentemente, a expressão não é nossa, senão de ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro;
SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 208.
1316
A favor da inconstitucionalidade, ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro.
Direito..., v. I, p. 204. Contra esta, e sustentando que a cisão, mediante a técnica do reenvio do destinatário, para uma
disposição legal comportamental diferente daquela que estabelece a pena, mereceu a pronúncia de FIGUEIREDO DIAS no
sentido de que aquela prática não enferma a constitucionalidade, “pois nada na Constituição obriga à conexionação, na
mesma lei ou no mesmo preceito legal, da conduta proibida com a pena que lhe corresponde.”, veja PATRÍCIO, Rui. Erro
sobre regras legais, regulamentares ou técnicas nos crimes de perigo comum no actual direito português: um caso de
infracção de regras de construção e algumas interrogações no nosso sistema penal. Lisboa: AAFDL, 2000, p. 267.
1317
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 204: “...trata-se das
chamadas leis penais em branco (que também chamaram-se cominações penais cegas).”
1318
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito..., p. 51: “...porque a inconstitucionalidade da lei penal em branco não exclui sua
eficácia concreta enquanto integrar a legislação penal....”
1319
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 207 e seguintes.
1320
Preferimos este adjetivo a “discricionárias”, usado por ZAFFARONI e BATISTA, por entendermos que toda prisão
preventiva, à luz da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, é arbitrária, não derivando sua ilegalidade, tão
somente, de um procedimento de escolha que, em alguma medida, pode dar a entender que dependendo da seleção pode ela
estar legitimada ou não, com o que não concordamos. Seu encontro pode ser agendado em ZAFFARONI, Eugenio Raúl;
BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 208.
1321
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 207-208.
1322
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito..., p. 51.
1323
Problema prático decorrente, talvez, de um resquício de como eram entendidas e aplicadas as leis penais em branco,
quando do seu surgimento na Alemanha, em que as leis penais nacionais eram completadas pelas provinciais.
Narrativamente, ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 204:
“...quando se sustentou que a lei penal em branco tinha vigência independente da outra que a complementava, como resultado
da teoria das normas de BINDING... Deste modo, como a norma pertencia a um âmbito extrapenal, a lei em branco tinha
vigência desde sua sanção, enquanto que a sanção da norma era só um pressuposto para sua aplicação.”
194
se à norma penal evidentemente pressupõe uma tomada de posição sobre o exercício do poder
de punir. ...Retomando uma correta assertiva de MACKIE, a questão deve ser posta em dois níveis:
da liberdade individual e do poder de intervenção do Estado. Antes de mais nada, é preciso
ressaltar que a garantia e o exercício da liberdade individual não necessitam de qualquer
legitimação, em face de sua evidência. ...O que necessita de legitimação é o poder de punir do
Estado... e esta legitimação não pode resultar de que ao Estado se lhe reserve o direito de
intervenção. Isto seria falsear o problema, porque justamente aquele que está precisando legitimar
sua força - o Estado -, é que se autoconfere direitos e por isso se autolegitima. Nestes termos, a
legitimação seria manifestamente autopoiética. Com razão vem sustentando ZAFFARONI que o
sistema penal, no qual se inclui o poder de intervenção, é irracional e, pois, carente de
legitimidade. Mas, de qualquer modo, persiste a questão se e como se pode autorizar essa
intervenção. ...Se seguirmos nossa proposta de elaboração de uma teoria do injusto, de modo que,
numa primeira fase, devam ser questionados o tipo de injusto e os preceitos autorizadores da
conduta, em face dos direitos fundamentais, o tipo não pode mais desempenhar o papel de indício
da antijuridicidade. ...O injusto, entretanto, tem de ser analisado dialeticamente para que os
direitos individuais não se vejam tolhidos por intervenções inoportunas. A análise dialética
significa que os compartimentos do injusto - o tipo e a antijuridicidade -, não devem se situar
como numa relação de causalidade, de antecedente para consequente, mas dependendo do caso
concreto e da necessidade de proteção individual, possam ser apreciados separada ou
conjuntamente. Essa análise dialética do injusto é imperativa por dois fundamentos. Primeiro,
porque a delimitação dos poderes de intervenção do Estado não pode ser feita apenas com base
nos enunciados, ainda que precisos, das normas proibitivas ou mandamentos, senão igualmente
pelas normas permissivas. É que a função de delimitação que se atribui à norma não pode ser
enfocada apenas no seu sentido formal, mas principalmente no sentido material, que dirá acerca
da necessidade ou não da intervenção estatal. haverá ilicitude quando esgotados todos os
recursos em favor da prevalência da liberdade. A operação que se deve fazer, conclui o professor,
é exatamente no sentido inverso da que, normalmente, realiza a doutrina. Em vez de perquirir se
existe uma causa que exclua a antijuridicidade, porque o tipo de injusto a indicia, o que
constituiria uma presunção iuris tantum de ilicitude, deve-se partir de que só se autoriza a
intervenção se não existir em favor do sujeito uma causa que autorize sua conduta. Neste caso, o
tipo o constitui indício de antijuridicidade, mas apenas uma etapa metodológica de perquirição
acerca de todos os requisitos para que a intervenção do Estado possa efetivar-se. O segundo
fundamento decorre do princípio da presunção de inocência, hoje positivado no artigo 5
o
, LVII,
da Constituição. Caso se presuma que toda ação, embora criminosa, não possa ser atribuída com
esta qualificação a alguém, antes que se verifiquem todas as possibilidades de sua exclusão, isto
implica uma alteração na estrutura e na interpretação tanto das normas processuais penais quanto
as normas penais. Em virtude disso, não se pode considerar indiciado o injusto pelo simples fato
da realização do tipo, antes que se esgote em favor do sujeito a análise das normas que possam
autorizar sua conduta.”
1324
A estandardização - e daí, como se verá abaixo, estar o Direito Penal, infelizmente, mediante o
abuso da técnica da lei penal em branco, administrativizando-se cada vez mais
1325, 1326
-, e a rapidez
conveniente do modelo processual legislativo, quase sempre politicamente dirigido a atender
o discurso penal que, na ocasião, alimenta interesses demagógicos preocupados em sustentar
o empreendimento neoliberal
1327
- que, ad instar do liberal, “não se baseava, na prática, na falta de
1324
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., pp. 161-166.
1325
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito..., p. 50: “ As leis penais em branco exprimem a tendência moderna de
administrativação do Direito Penal, com transferência de poderes punitivos a funcionários do Poder Executivo, ou a
modalidades inferiores de atos normativos (o Decreto, a Resolução etc.)....”
1326
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 205-206: “...hoje,
sua presença é considerável e tende a superar as demais leis penais, como fruto de uma banalização e administrativização da
lei penal.”
1327
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 484 e seguintes:
“A hipótese de que o sistema penal do empreendimento neoliberal, vertido para o controle dos contingentes humanos por ele
mesmo marginalizados, opera mediante uma dualidade discursiva que distingue os delitos dos consumidores ativos (aos quais
correspondem medidas despenalizadoras em sentido amplo) dos delitos grosseiros dos consumidores falhos (aos quais
corresponde uma privação de liberdade neutralizadora) pode ser experimentada num rápido exame de dois grupos de leis
penais extravagantes. ...Num segundo grupo de leis encontraremos uma política criminal diametralmente oposta à do
primeiro. Podemos formatar boa amostragem com ...as “leis Serra” de n
o
9.677, de 2.jul.98 e n
o
9.695, de 20.ago.98 (para
195
intervenção estatal; pelo contrário, os Estados tornaram-se funcionais a esta forma de produção através da
contenção e do controle dos explorados...; ...tanto naquela época quanto no que é apregoado hoje em dia existe
uma profunda identificação entre Estado e interesses particulares que permite a extração ilegítima da mais-
valia ou, dito de outra forma, uma distribuição injusta do bem-estar geral”
1328
-, aliadas à indeterminação
imanente à própria natureza de certas condutas e relações intersubjetivas, referidas por si sós a
bens jurídicos reconhecidamente instáveis, inviabilizam, vez ou outra, a rigidez e a
completude do tipo penal que estaria natimorto, quase sempre, nestes casos, por
anacronicidade com a etapa social em que vigerá. Suficiente determinação - equivalente à
taxatividade, para alguns
1329
-, ínsita na lei se cobra quando se pretende assegurar a certeza do
Direito Penal, menos por exigência puramente racional que por garantia do favor
libertatis.
1330
Vinculado o princípio da reserva legal à fonte do Direito Penal, o da
determinação suficiente diz com a técnica de confecção da própria lei penal que deve ser,
obrigatoriamente, construída pelo legislador de maneira precisa e determinada
1331
, restando
claro e inconteste o que é e o que não é proibido e determinado.
1332
Represando aquele o
arbítrio legislativo, e este o judicial
1333
, a contenção do subjetivismo deste se afunila na
inversa proporção em que aquela se inobscurece - ou mesmo pode-se espraiar
1334
-, mesmo
porque, do contrário, uma certa função de garantia da programação criminalizante primária
estaria frustrada.
1335
Não que ao magistrado esteja furtada a interpretação
1336
que, em toda
medida, reconsiderando as acepções centrais e marginais de cada palavra componente do tipo
alavancar a candidatura presidencial do ministro da Saúde, a primeira delas eleva delirantemente as penas dos crimes contra a
saúde pública, e a segunda os inclui entre os “crimes hediondos”)....”
1328
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 202.
1329
FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo. Diritto..., p. 67, nt. 58: “È frequente in dottrina l’impiego dei termini “tassatività” o
“sufficiente determinatezza” come concetti equivalenti. A rigore, è operabile uma distinzione concettuale, nel senso di
riferire la “determinatezza” alla tecnica legislativa di formulazione della fattispecie incriminatrice, e la “tassatività” al
divieto per il giudice di applicare la norma penale a casi da essa non espressamente previsti.”
1330
MANTOVANI, Ferrando. Principi..., p. 20.
1331
MANTOVANI, Ferrando. Principi..., p. 21: “...per formulare le nuove leggi in modo costituzionalmente corretto, il
problema cruciale della tassatività è, pertnto, quello del grado di determinatezza della fattispecie, necessario e sufficiente
perché tale principio sia soddisfatto.”
1332
MANTOVANI, Ferrando. Principi..., p. 20.
1333
FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo. Diritto..., p. 67: “Mentre il principio di riserva di legge riguarda la gerarchia delle
fonti in materia penale, il principio di determinatezza coinvolge la tecnica di formulazione delle fattispecie criminose e
tende, precipuamente, a salvaguardare i cittadini contro eventuali abusi del potere giudiziario.”
1334
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 205: “...quando a lei
penal é complementada por norma pertencente a um âmbito jurídico que admite a analogia, motivo que a tornará sempre
inconstitucional.”
1335
Nesse sentido, MANTOVANI, Ferrando. Principi..., pp. 20-21. Para outra questão, embora igualmente envolvendo a lei
penal em branco, veja ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp.
205-206: “...não se pode afirmar que haja um tipo penal quando só existe uma pena legal, carente da ação típica, o que lhe
impede cumprir sua função de programação criminalizante. ...A massificação provoca uma mudança qualitativa: através das
leis penais em branco o legislador penal está renunciando à sua função programadora de criminalização primária, assim
transferida a funcionários e órgãos do poder executivo, e incorrendo, ao mesmo tempo, na abdicação da cláusula de ultima
ratio, própria do Estado de direito.”
1336
Por todos, veja STEIN, Friedrich. El conocimiento privado del juez. 2. ed. Colômbia: Temis, 1999, passim. Mas, também,
CONTRERAS, Joaquín Cuello. El Derecho..., p. 206: “La prohibición de indeterminación no puede ser plenamente satisfecha
por ningún legislador y, además, no es deseable un exceso de taxatividad, incompatible con la justicia individual a que debe
aspirar el Derecho Penal.”
196
penal, não impossibilita a reconstrução do seu sentido aditada à influência que a disposição de
cada uma delas na oração enseja e, com isso, certo alcance variegado de resultados
aplicativos
1337
que, debruçados sob a poeira da rigidez, demonstram uma utilidade advinda da
contradição das interpretações. Nas mais doutas palavras de MANTOVANI,
pertanto, la funzione garantista del principio di tassatività, realisticamente inteso, consiste non
nell’eliminare quell’indeterminatezza rispeto al caso concreto quale carattere insopprimibile
della sua ‘generalità’ e ‘astrattezza’, né l’ineliminabile soggettivismo interpretativo: ma nel
realizzare non la certezza assoluta, ma la maggiore certezza possibile. ...Il principio di tassatività
non postula, pertanto, um’incompatibilità logica con la formulazione delle fattispecie con
elementi elastici, valutativi o normativi, ma solo con quelli vaghi, normativi od emozionali, che
comportano la indeterminatezza del precetto.
1338
Fragilizada a barreira da legalidade, outrora intransponível até o instante em que
protegida pelo reboco do positivismo codificado, nela se intrometeram, e apesar da resistência
de remanescente camada ainda que fina deste, as leis penais em branco.
Agora já parece evidente que a lei penal em branco pode, conforme acenado alhures, e
dependendo da remessa
1339
que ela promova, se formal ou material
1340, 1341
, apresentar
seriíssimos problemas
1342
de legalidade, ou melhor, de constitucionalidade
1343
- cuja
preocupação se avoluma no paralelo do aumento da freqüência do seu uso
1344
-, é dizer, quando a
consignação da pena está condicionada, suspensivamente
1345
, à efetivação da conduta que, por
sua vez, encontra-se pormenorizada em outro diploma normativo, meramente material - pois
1337
MANTOVANI, Ferrando. Principi..., p. 22: “Poiché ogni parola di legge presenta, accanto ad um nucleo di evidente
chiarezza, um alone di significato variabile, l’interpretazione costituisce – anche nei sistemi improntati alla più rigorosa
legalità – un momento ineliminabile, che non si riduce ad una semplice oprazione “ricognitiva”, ma che ha in sé
um’insopprimibile margine di creatività e, quindi, di soggettivismo che nessun obbligo di tassatività puó interamente
sopprimere.”
1338
MANTOVANI, Ferrando. Principi..., pp. 22-23.
1339
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 205: “...não é
simples demonstrar que a lei penal em branco não configura uma delegação legislativa constitucionalmente proibida.”
1340
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho..., p. 115-116; e, ZAFFARONI, Eugenio Raúl;
PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 427.
1341
PATRÍCIO, Rui. Erro..., p. 265: “...cumpre notar que autores há que, numa perspectiva restritiva, consideram só caber com
propriedade a qualificação de norma penal em branco àquela que remete para uma disposição de nível inferior (v. g., um
regulamento), não já para aquela que remete para um preceito contido na lei penal ou em lei distinta da penal. Outros
reservam a qualificação apenas para a norma penal que remete para ordenamento diferente do penal, de nível igual ou
inferior, achando-se aí a norma ou parte da norma de comportamento.” Representando estes últimos, ASCENSÃO, José de
Oliveira. Direito Penal de autor. Lisboa: Lex, 1993, pp. 28 e 31.
1342
Em setembro de 1982, a AIDP concluiu, em Freiburg, mediante colóquio preparatório que: “6. A descrição das condutas
proibidas implica normalmente o recurso à técnica do reenvio, isto é, a identificação de factos relevantes por remissão para
fora do Direito Penal. O que comporta o perigo da falta de clareza e de rigor, bem como da delegação excessiva do poder
legislativo em favor da Administração. A conduta ou o resultado proibidos devem ser especificados pela própria lei penal. 7.
O Direito Penal... deve, na medida do possível, evitar as cláusulas gerais. Sempre que se utilizem cláusulas gerais deve, pelo
menos a conduta, ser rigorosamente descrita. In PATRÍCIO, Rui. Erro..., p. 266)
1343
PATRÍCIO, Rui. Erro..., p. 267.
1344
Frequência que aumenta proporcionalmente à administrativização do Direito Penal, como visto antes. Dando notícia do
aumento do seu uso, CONTRERAS, Joaquín Cuello. El Derecho..., p. 213; e, ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo;
ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 205-296: “...as leis penais em branco eram essas e insignificantes;
hoje, sua presença é considerável e tende a superar as demais leis penais, como fruto de uma banalização e
administrativização da lei penal.”
1345
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual..., pp. 427-428: “...se a lei penal em branco remete a uma
lei que ainda não existe, não terá vigência até que a lei que a completa seja sancionada.”
197
“a lei penal em branco sempre foi lesiva ao princípio da legalidade formal”
1346
-, porque emanado de
agência distinta do Congresso Nacional que observará, diante de seus olhos, o deslocamento,
mediante inconstitucional delegação legiferativa penal
1347
- artigo 22, inciso I, da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 -, da sua competência, agora exercida, sobretudo, pela
agência executiva homônima.
1348
É dizer, contracenando com CONTRERAS que,
el problema que plantean las llamadas leyes penales en blanco reside en que, a veces, la
remisión que el CP hace a otra norma jurídica no penal no está contenida en una lei sino en uma
disposición de rango inferior a ley, como p. ej. un reglamento. De esta manera, incorrectamente,
bastará que el Gobierno, no el Parlamento, cambie el reglamento, para que un comportamiento
se convierta en delictivo o deje de serlo.
1349
Mas, é isso, além de possível, aceitável sob o ângulo de visada do princípio da
legalidade?
1350
Respeitando o princípio da divisão de poderes de Estado, entenderam outrora
ZAFFARONI e PIERANGELI pela sua plausibilidade sustentando que “o Congresso Nacional não
pode legislar em matérias próprias do Executivo ou das legislaturas estaduais ou
municipais.”
1351
Mas, também não pode delegar, ainda que veladamente, sua competência
para as mesmas, numa inversão de assunção funcional igualmente inadmissível de papéis.
1352
Porque integra o tipo penal, deve a lei abastecedora, na mesma medida que aquele,
respeitar as estruturas lógico-reais
1353, 1354, 1355
, sob pena de, ao contrário, inviabilizar o todo,
1346
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 206. Embora em
outra passagem acrescentem estes mesmos autores que: “Existem casos nos quais a lei penal se limita a estabelecer uma
cominação, deixando que outra lei - que pode ser também uma lei em sentido formal, porém geralmente não é - determine ou
complemente a caracterização da ação proibida....” Op. cit., p. 204.
1347
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito..., p. 50: “...a transferência da competência legislativa para definir a conduta proibida
para o Poder Executivo, ou para níveis inferiores de atos legislativos, infringe o princípio da legalidade, como afirma um
setor avançado da literatura penal - afinal, o emprego instrumental do Direito Penal para realizar políticas públicas
emergenciais é inconstitucional.”; e, ainda que entendendo o argumento irresolúvel, conquanto válido, ZAFFARONI, Eugenio
Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 205: “...Argumenta-se que há delegação
legislativa indevida quando a norma complementar provém de um órgão sem autoridade constitucional legiferante penal....”
1348
Assim, também, ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual..., p. 427.
1349
CONTRERAS, Joaquín Cuello. El Derecho..., p. 213.
1350
Um levantamento da situação da questão, no sistema penal espanhol - apontando doutrinadores que entendem que as leis
penais em branco são totalmente incompatíveis com o princípio de legalidade, outros que as entendem imprescindíveis e
inobjetáveis, e outros, de entendimento intermediário, pois somente as admitem quando a lei penal estabelecer claramente o
conteúdo e o âmbito do desvalorado, enquanto que o regulamento se limitaria a formular, tecnicamente, o desvalor, pondo em
dia os fatos que incorporam esse desvalor e, finalmente, indicando aqueles que pugnam por uma concentração da regulação
de toda a matéria em uma única lei penal especial, tão detalhada quanto possível, e, por fim, outros que propõem regular em
uma lei geral de caráter administrativo, os objetivos de proteção de certos bens -, pode ser encontrado em CONTRERAS,
Joaquín Cuello. El Derecho..., pp. 214-215.
1351
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho..., pp. 113-114; e, ZAFFARONI, Eugenio
Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual..., p. 427.
1352
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho..., pp. 113-114; e, ZAFFARONI, Eugenio
Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual..., p. 427: “Inversamente, a lei penal em branco seria inconstitucional se dissesse:
‘Será punido com... aquele que comete ações contra a honra das pessoas, nos casos em que o Poder Executivo assim
determine por decreto’. Neste caso haveria uma delegação de funções legislativas não autorizada pela CF, porque entre as
atribuições constitucionais do Poder Executivo não se inclui a determinação dos casos em que devem ser punidas as ações
contra a honra.”
1353
MANTOVANI, Ferrando. Principi..., p. 22: “Le tecniche legislative più rispondenti alle esigenze di determinateza sono: 1)
inanzitutto, l’eucleazione delle fattispecie attorno a fondamentali tipologie ontologiche di aggressione....”
1354
MIR, José Cerezo. Derecho..., p. 251: “Las figuras delictivas se forman, por ello, en virtud de un proceso de abstracción
a partir de los hechos reales.”
198
já de si inutilizável enquanto não implementada a condição suspensiva plasmada na sanção da
lei integradora.
1356
Então, uma programação criminalizante coadjuvante - ou latente, como preferem
ZAFFARONI e BATISTA -, que não passa de um elenco de disposições normativas que, advindas de
agência executiva que gere a profissão médica, integrarão o programa criminalizante
primário, auxiliando-o na seletividade original dos facultativos - mediante a técnica da remissão
outorgada à lei penal em branco -, ou ajudando a criminalização secundária no mesmo fim, ou,
ainda, colimando a sua exclusão típica.
1357
Exemplo típico emerge de CIRINO DOS SANTOS
quando, conceituando as leis penais em branco, escreve que estas “são tipos legais com
sanção penal determinada e preceito indeterminado, dependente de complementação por
outro ato legislativo ou administrativo - como a identificação das doenças de notificação
compulsória (artigo 269, do Código Penal).”
1358
Episodicamente, então, pode acontecer de a
lei penal remeter um seu complemento a diploma normativo de cunhagem estrita
1359
, porque
de nível hierárquico inferior à da lei, qual sendo uma Portaria do Ministério da Saúde ou uma
Resolução do Conselho Federal de Medicina. O que não pode é jamais pretender-se justificar
essa técnica, de todo inconstitucional, com o argumento de que é a natureza do complemento -
por si instabilizado pela frequência da alteração seja social, seja técnica -, que eventualmente afasta
seu engessamento pelo legislador ordinário que, por conta da sua, muita vez, inevitável
vagarosidade e misoneísmo - a menos quando lhe for mais convinhável -, se mostra notavelmente
incapaz de acompanhar as sobreditas mudanças, estabilizando-as ou neutralizando-as pari-
passu. Ou seja, “o argumento das matérias instáveis que as leis penais em branco comumente
miram não neutraliza sua inconstitucionalidade, ao aduzir que as rápidas mudanças não
poderiam ser acompanhadas pelo legislador penal: não matéria que requeira mudanças tão
1355
SOURNIA, Jean-Charles. História..., p. 102: “Os intelectuais apaixonam-se então por uma questão que parece fútil ou
artificial aos nossos olhos porque mal colocada: os gêneros e as espécies têm existência em si mesmos, são pré-existentes em
relação aos indivíduos, são-lhes superiores? Esta ‘questão dos universais’ exprime em termos abstractos outras dificuldades
filosóficas já levantadas por PLATÃO e ARISTÓTELES. Ela evoca as relações entre a realidade e o pensamento e, em última
análise, entre o corpo e o espírito. Nem a religião nem a medicina poderão ficar alheias a este debate.”
1356
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho..., pp. 115-116; ZAFFARONI, Eugenio Raúl;
BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 205; e, ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI,
José Henrique. Manual..., pp. 427-428.
1357
Sobre a seletividade exclusiva da criminalização secundária, veja a monografia de GROSNER, Marina Quezado. A
seletividade..., passim.
1358
SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba: ICPC/Lumen Juris,
2005, p. 50.
1359
CONTRERAS, Joaquín Cuello. El Derecho..., p. 214: “La doctrina distingue entre ley penal en blanco en sentido amplio,
para referirse a toda remisión de la ley penal a outra disposición normativa, y ley penal en blanco en sentido estricto, para
referirse a remisiones de la ley penal a normas de rango inferior a ley, que son las más problemáticas desde el punto de vista
del principio de legalidad a la luz de la Constitución.”
199
rápidas e que seja, seriamente, carente de previsão punitiva; por outro lado, essa é
precisamente a irrenunciável função constitucional do legislador.”
1360
Afora os problemas que estes diplomas, ad instar das leis porque também redutíveis a
escrito - i. e., são compostos por palavras -, por si sós, oferecem quanto à certeza e à
determinação, apresentam eles outra questão que diz com a sua obrigatoriedade e obediência,
sobretudo quando alguma daquelas normas destinatárias se acopla à lege lata penal remissiva.
Está-se a falar da tipicidade, em razão da antijuridicidade, bem como da potencial
consciência da ilicitude. Mas, por quê? Vejamos. Da apreciação pari passu do injusto, é dizer,
da tipicidade e da antijuridicidade, realizada pela pena indeslizável de JUAREZ TAVARES, se
cogitou acima, onde este escritor sustenta que
“a análise dialética significa que os compartimentos do injusto - o tipo e a antijuridicidade -, não
devem se situar como numa relação de causalidade, de antecedente para consequente, embora,
dependendo do caso concreto e da necessidade de proteção individual, possam ser apreciados
separada ou conjuntamente. Essa análise dialética do injusto é imperativa por dois fundamentos.
Primeiro, porque a delimitação dos poderes de intervenção do Estado não pode ser feita apenas
com base nos enunciados, ainda que precisos, das normas proibitivas ou mandamentos, senão
igualmente pelas normas permissivas. É que a função de delimitação que se atribui à norma não
pode ser enfocada apenas no seu sentido formal, mas principalmente no sentido material que di
acerca da necessidade ou não da intervenção estatal. haverá ilicitude quando esgotados todos
os recursos em favor da prevalência da liberdade. A operação que se deve fazer, conclui o
professor, é exatamente no sentido inverso da que, normalmente, realiza a doutrina. Em vez de
perquirir se existe uma causa que exclua a antijuridicidade, porque o tipo de injusto a indicia, o
que constituiria uma presunção iuris tantum de ilicitude, deve-se partir de que se autoriza a
intervenção se não existir em favor do sujeito uma causa que autorize sua conduta. Neste caso, o
tipo o constitui indício de antijuridicidade, mas apenas uma etapa metodológica de perquirição
acerca de todos os requisitos para que a intervenção do Estado possa efetivar-se. O segundo
fundamento decorre do princípio da presunção de inocência, hoje positivado no art. 5
o
, LVII, da
Constituição.”
1361
A presunção de que toda ação,
“embora criminosa, não possa [pode] ser atribuída com esta qualificação a alguém, antes que se
verifiquem todas as possibilidades de sua exclusão, ...implica uma alteração na estrutura e na
interpretação tanto das normas processuais penais quanto das normas penais. Em virtude disso,
não se pode considerar indiciado o injusto pelo simples fato da realização do tipo, antes que se
esgote em favor do sujeito a análise das normas que possam autorizar sua conduta.”
1362
Por outro lado, diz MIR PUIG que para que una conducta antijurídica constituya delito
es preciso que sea penalmente típica, es decir, que se ajuste a alguna de las figuras de delito
previstas, generalmente, en los libros... del Código Penal o en leyes penales especiales.”
1363
E, quando afirma que a tipicidad no es un elemento independiente de la antijuridicidad
penal
1364
, aproxima-se bastante da posição de JUAREZ TAVARES, pois, para ele
la tipicidad no es sólo ‘indicio’ ni mera ‘ratio cognoscendi’ de la antijuridicidad penal, sino
presupuesto de la existencia (ratio essendi) de la misma. Ello no obsta a que el requisito de la
tipicidad - como parte positiva del supuesto de hecho penalmente antijurídico - no baste para la
antijuridicidad, que requiere además la ausencia de causas de justificación - como parte negativa
1360
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 206.
1361
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., pp. 161-166.
1362
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., pp. 161-166.
1363
PUIG, Santiago Mir. Derecho..., p. 161.
1364
PUIG, Santiago Mir. Derecho..., p. 164.
200
del supuesto de hecho antijurídico. La tipicidad es, pues, ratio essendi necesaria pero no
suficiente de la antijuridicidad penal. Del mismo modo que no todo hecho antijurídico es
penalmente típico, no todo hecho penalmente típico es antijurídico.
1365
Muito bem. Foi anunciado acima que outra questiúncula se refere à potencial
consciência da ilicitude. A despeito de a culpabilidade tempos não compor o injusto
1366
,
são inegáveis os reflexos da tipicidade e da antijuridicidade na sua avaliação, pois, sem eles, a
culpabilidade descambaria com maior facilidade - mas, não que com eles isso também não seja
possível; o é, embora em menor medida -, para uma culpabilidade de autor - tão ao sabor da atraente
seletividade -, e não, de ato. Então, quando JESCHECK diz que el autor actúa culpablemente
cuando la formación de su voluntad, que le ha conducido a la comisión del hecho
antijurídico, descansa sobre una actitud interna deficiente”
1367
, parece evidente que a
culpabilidade, consistente em se descobrir si un hecho puede ser personalmente reprochable
al autor”
1368
, é influenciada pelo injusto - tipicidade e antijuridicidade -, objetiva e
subjetivamente. É que, segundo o saudoso professor alemão, el autor actúa culpablemente
cuando la formación de su voluntad, que le ha conducido a la comisión del hecho
antijurídico, descansa sobre una actitud interna deficiente.”
1369
Ora, como é de sabença
correntia, a formação da vontade recebe influxos internos (biológicos e psíquicos), e externos
(físicos e sociais). Obviamente, portanto, a formação de uma vontade arrimada em uma
atitude interna deficiente - seja naturalmente, ou externamente impulsionada a tanto -, com o corolário
cometimento do delito, pode muito bem ter sido dirigida por uma representação equivocada
dos pressupostos fáticos
1370
(erro de tipo), ou jurídicos (erro de proibição), ou mesmo por um
desconhecimento da lei (ignorantia legis), ou da própria ilicitude. Sobre isso, escreveu
JESCHECK que básicamente, la concepción de que el objeto del juicio de culpabilidad consiste
en la ausencia de una actitud jurídica interna no se diferencia de otras teorías, según las
cuales, la culpabilidad hay que buscarla en la “motivación”, en el “poder (“Können”) de la
formación de la voluntad” o en la “expresión jurídicamente desaprobada de la personalidad
1365
PUIG, Santiago Mir. Derecho..., p. 164.
1366
JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado..., p. 456: “La separación entre antijuridicidad y culpabilidad se
remonta a la distinción que se hacía en la Ciencia penal del Derecho común entre imputación objetiva y subjetiva (imputatio
physica o facti e imputatio moralis o juris). A pesar de todos los cambios que se han sucedido en la historia de la Dogmática,
dicha separación ha perdurado esencialmente desde entonces y debe ser caracterizada como la piedra angular de la teoría
del delito. ... Son poco frecuentes las tesis que se desvían de la separación entre el injusto y la culpabilidad.”
1367
JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado..., p. 456.
1368
JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado..., p. 456.
1369
JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado..., p. 456.
1370
PATRÍCIO, Rui. Erro..., p. 77: “O exposto mostra como o conhecimento da realidade é elemento primordial e
indispensável do dolo criminal, pois a vontade (ou, ao menos, a aceitação) de lesão de um bem jurídico pressupõe,
necessariamente, o conhecimento dos elementos geradores (ao menos, potencialmente) dessa lesão. Assim sendo, uma
ausência de conhecimento ou um conhecimento infiel de tais elementos terão como consequência a ausência de dolo, pois
estaremos na presença da negação do elemento de conhecimento requerido pelo dolo, ou seja, o agente não conhece
elementos aos quais, segundo o tipo em causa, deve estender-se ao dolo.”
201
del autor”, puesto que todas estas deficiencias sólo son imaginables sobre la base de una
disposición frente ao Derecho de carácter reprochable.
1371
Com efeito, e à exceção de uma
culpabilidade como expressão juridicamente desaprovada da personalidade do autor - cobiçada
pelos sistemas penais autoritários -, seja pela falta de uma atitude internamente jurídica, ou seja,
conforme ao direito, seja em razão de uma motivação ou poder de formação da vontade, pode
receber a culpabilidade, requente-se, um input advindo de fatores externos, dentre os quais,
principalmente, encontram-se a tipicidade e a antijuridicidade que, quando viciadas por
ausência de determinação - como no caso de uma lei penal em branco contaminada por referido defeito -,
dificultam ou impedem a motivação ou o poder de formação da vontade de maneira consoante
ao direito, desmerecendo o médico qualquer reprovação. Então, quando se trata de lex
poenalis in albis, não se diga que somente a potencial inconsciência da ilicitude exclui a
culpabilidade por decorrência direta de um defeito na antijuridicidade, senão que, outrossim, a
potencial inconsciência da legalidade
1372, 1373
, por igual defeito no tipo penal, merece o mesmo
tratamento desculpável em favor do esculápio.
É certo que o erro sobre a legalidade, atingindo o tipo, exclui o dolo, mas, quando se
trata de poder punitivo o custa nada, mediante o expediente da instalação de mais uma
tranca, cerrá-lo mais seguramente, ainda que, de momento, em cômodo que, por espaçoso,
o tem acomodado confortavelmente.
Então, quanto ao problema da consciência da legalidade, que o erro sobre elementos
do tipo exclui o dolo, é inegável.
1374
Inegabilidade extraível dos traços deixados pela pena de
BELEZA e PINTO, quando escrevem que, “...a ignorância da norma penal em branco será um
problema da natureza intelectual (de falta de conhecimento da norma) e deverá ser tratada
como um erro sobre o tipo que exclui o dolo.”
1375
No mesmo sentido, dispõe VELOSO que,
“o desconhecimento de um aspecto da situação que corresponda a um elemento do tipo tem
obviamente como consequência o não haver dolo. Quer se trate de elemento descritivo, quer de
elemento normativo (de elemento de facto ou de elemento de direito, na linguagem do art. 16
o
), o
1371
JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado..., p. 458.
1372
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema da consciência da ilicitude em Direito Penal. 5. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p.
54, nt. 3, in fine: “...ainda hoje uma boa parte da doutrina italiana (cf. por outros PULITANÒ, RitalDPP 1967/65 ss.) continua a
considerar irrelevante o erro sobre qualificações normativas contidas em um tipo legal (erro que é de direito, mas não versa
sobre a proibição), na base de que tal erro se traduz em uma ignorância da lei penal.”
1373
Em parte citando, inclusive, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, veja PATRÍCIO, Rui. Erro..., p. 157: “...casos há em que nem
sempre basta para a correcta orientação da consciência-ética (para o problema da ilicitude da factualidade típica) o correcto
conhecimento da factualidade típica, sendo ainda necessário o conhecimento da proibição legal da conduta; ou seja, trata-se
de casos em que o problema do conhecimento de proibições legais está antes do problema da consciência da ilicitude e, em
boa verdade, fora dele, por serem as condutas em causa desprovidas da valoração axiológica que caracteriza os verdadeiros
casos de ilicitude, de ilicitude material - diga-se já.”
1374
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 264: “A primeira e segura conclusão a que se pode aspirar é a de que,
faltando ao agente a consciência ou conhecimento da realização típica, e portanto o dolo-do-facto, fica excluída toda a
possibilidade de lhe imputar uma culpa dolosa e de o fazer responder a este título.”
1375
BELEZA, Teresa Pizarro; PINTO, Frederico de Lacerda da Costa. O regime..., p. 53.
202
dolo fica excluído se ele for desconhecido; haverá, quando muito, crime negligente, se o erro for
culposo e se o crime negligente estiver previsto na lei.”
1376
Seguidos de perto por FIGUEIREDO DIAS que, assumidamente entende que, “...na medida
em que assim for e tomada neste preciso sentido, a lei penal em branco é sinal seguro de que
as condutas que atinge são axiologicamente neutras, sendo o erro sobre a proibição legal
integradora relevante, no sentido de excluir o dolo.”
1377
Quanto ao erro de proibição,
“será ele aceitável quando se tratar verdadeiramente de um problema de ignorância da norma por
falta de informação decorrente da técnica remissiva usada. Não pode, contudo, ser aceite em toda
a sua extensão, pois nem toda a ignorância de normas penais em branco corresponde a um
problema de conhecimento que funciona como condição da consciência da ilicitude do
agente.
1378
É o que acontece, desde logo, com os casos em que o agente conhece a norma
sancionadora (e por isso sabe que a conduta é penalmente relevante) mas ignora o conteúdo da
norma complementar. Um caso como este não pode ser resolvido como um problema de erro
intelectual, pois o conhecimento da relevância penal da conduta já existe, devendo-se o erro a um
problema de falta de diligência na obtenção da informação.”
1379
,
1380
Ocorre que a falta de consciência da ilicitude pode, muito bem, ter sido condicionada
pelo desconhecimento da lei penal
1381
que hoje não é mais o irrelevante quanto antanho
1382
,
ao menos não como fundamento em matéria de culpa e erro, senão, como consequência de
posições referentes a ambos.
1383
O que não autoriza considerá-lo facultativo, e até pela
periculosidade que isto encerraria, porquanto “a obrigatoriedade dos preceitos da lei se
independentemente do conhecimento ou desconhecimento dele por parte dos cidadãos,
1376
VELOSO, José António. Erro em Direito Penal. 2. ed. Lisboa: AAFDL, 1999, p. 15.
1377
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 385; e, também, BELEZA, Teresa Pizarro; PINTO, Frederico de Lacerda da
Costa. O regime..., p. 53.
1378
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., pp. 63-64: “Mas fica desde já a ideia de que, através da evolução apontada, um
princípio unicamente atinente aos fundamentos de validade do direito (ou da lei) se transformou, indevidamente, em princípio
normativo para a culpa e para a falta de consciência da ilicitude e havia de impedir, durante muito tempo, a livre explanação
do conteúdo jurídico-material do nosso problema.”
1379
BELEZA, Teresa Pizarro; PINTO, Frederico de Lacerda da Costa. O regime..., p. 54.
1380
PATRÍCIO, Rui. Erro..., p. 162: “Mas, ainda assim, não se tratando de casos em que há uma falta de consonância da sua
consciência ético-jurídica (que não chega a ser chamada) com os critérios de valor da ordem jurídica, poderá haver uma falta
de cuidado do agente, uma falta de cuidado traduzida no não cumprimento do seu dever de se informar ou esclarecer acerca
da proibição legal, falta de cuidado essa que estará na base do seu desconhecimento (aqui verdadeiro e próprio
desconhecimento, falta de ciência) da proibição legal, ou seja, pode estar em causa a censura própria da negligência (ou, se
nos quisermos inscrever num quadro pós-finalista, ainda que preservando a dupla função do dolo e da negligência na teoria
da infracção) a censura própria da culpa negligente.”
1381
Indiretamente, porque refutando a mantença do princípio da absoluta irrelevância do desconhecimento da lei penal, DIAS,
Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 55: “O primeiro passo na tentativa de encontrar fundamento para o princípio da
absoluta irrelevância do desconhecimnto da lei penal é dado quase sempre no sentido de uma irrefragável presunção de
conhecimento. Presunção a que se atribui, por vezes, mero caráter processual, ligando-a ao instituto da prova, mas a que as
mais das vezes se confere verdadeira natureza substantiva ou material, que para além do mais a furtaria ao regime a que a
teoria processual da prova submete as presunções. Ver no princípio uma norma processual que contém uma presunção
absoluta de conhecimento da lei penal envolve, com efeito, uma contradição com os mais elementares requisitos dentro dos
quais se admite a legitimidade de presunções probatórias.”
1382
Pode o percurso histórico ser encontrado em DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 53.
1383
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., pp. 60-61: “Assim, querendo o princípio da irrelevância da lei penal apontar só
a obrigatoriedade dos efeitos objectivos da lei independentemente do estado subjectivo do conhecimento e vontade dos
destinatários, e portanto, no que nos interessa, significa que estes não podem, pelo seu desconhecimento, furtar-lhe validade,
teremos que a sua intenção - como hoje cada vez mais se reconhece -, é completamente diversa da de oferecer qualquer
critério normativo para os problemas da culpa, do erro e da falta de consciência da ilicitude e apenas, exatamente, a de propor
um fundamento de validade do próprio direito.”
203
princípio este absoluto e sem limitações.”
1384
Mas, temperando com sal ático, sensatamente
condimenta FIGUEIREDO DIAS que,
“o pluralismo legislativo por um lado; o acentuado carácter técnico da lei, por outro; os
intrincadíssimos problemas (mesmo para especialistas) suscitados pela interpretação e aplicação -
tudo torna absolutamente impossível, nos nossos dias, a afirmação de que é normal o
conhecimento da lei. Pelo que a tese da presunção absoluta, a fundamentar-se em si e por si
mesma, viria afinal a desembocar em uma pura ficção - die lächerlichste aller Fiktionen, como
lhe chamou ANTON MENGER -, que só poderia ser conexionada com o problema da responsabilidade
do homem pelo seu comportamento dentro de uma mundividência crassamente positivista que
concebe a lei como produto de uma vontade arbitrária.”
1385
Sua fundamentação, para fins de manutenção, ainda que como presunção relativa de
conhecimento da lei deverá vir de fora
1386
, sob pena de continuar em inadmissível autopoiese.
Limitado pela possibilidade concreta de adimplência da obrigação legal pelo agente - ad
impossibilia nemo tenetur -, que somente permanece de na medida em que, sendo exigível,
evidentemente não o pode ser a todas as pessoas por inegável impossibilidade de
conhecimento do manancial legal, ainda que limitado ao ramo penal.
1387
De sorte que, pondo
a realidade a cavaleiro da ficção, admite com razão FIGUEIREDO DIAS, inclusive ancorando-se
em ENGISCH, ter “por exacto que a ‘inexigibilidade’ não é apenas um critério de culpa jurídico-
penal, mas também - máxime quando relacionada com a exigência do cuidado (objectivo) em
evitar a realização de um crime -, um critério apto a decidir, com sentido, da própria ilicitude
de um comportamento”
1388
, a que se pode interpolar, da própria culpabilidade, também.
A extração do exposto, emulsionado em casos de lei penal em branco, indica que
FIGUEIREDO DIAS tinha toda razão quando concluiu que,
“com o sentido e o fundamento que historicamente lhe devem ser atribuídos, o princípio da
irrelevância do desconhecimento da lei penal não decide, directa ou indirectamente, da relevância,
do tipo de relevância e do âmbito do problema da falta de consciência da ilicitude; não decide,
não ajuda a decidir, nem ao menos constitui critério normativo da decisão, pois que ele diz
unicamente respeito ao fundamento de validade da lei, à sua obrigatoriedade abstracta.”
1389
De sorte que a obrigatoriedade da lei é independente do conhecimento ou
desconhecimento desta que, por suas vezes, independem da consciência ou não da
ilicitude.
1390
1384
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 60.
1385
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., pp. 56-57.
1386
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., pp. 57 e 60: “Isto significa que a obrigação de conhecer a lei penal pode ser,
talvez, expressão do que haja de válido no princípio da irrelevância do desconhecimento daquela, mas não pode ser nunca o
seu verdadeiro fundamento.”
1387
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 58.
1388
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 59.
1389
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., pp. 64-65.
1390
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 65: “Neste enquadramento se torna patente a invalidade do princípio da
irrelevância do desconhecimento da lei penal para nos dizer onde e quando se levanta o problema da falta de consciência da
ilicitude.”
204
Portanto, haja vista que a lei penal em branco “não revela em princípio qualquer
peculiaridade, sendo produto de uma técnica legislativa fortuita a que não pode ancorar-se
uma diferença material em matéria de culpa e de erro sobre a proibição”
1391
,
“o erro sobre uma norma penal em branco pode incidir sobre aspectos diversos. Sendo as normas
penais em branco compostas pela norma sancionadora e a norma complementar (ou norma
integradora) é possível que o erro incida ora sobre aspectos da primeira, ora sobre aspectos da
segunda. A distinção relativamente ao objecto do erro é (...) relevante e consequente. Por outro
lado, algumas normas penais em branco são integradas por disposições concretas, como actos
administrativos ou ordens, o que coloca também o problema de saber como se deve tratar a
ignorância destes elementos.”
1392
Convertendo em pergunta, respondida por BELEZA e PINTO quanto ao direito lusitano,
questiona-se qual deve ser a resposta se se tratar de um erro intelectual sobre uma proibição
nova que preveja condutas axiologicamente neutras?
1393
Malgrado a resposta acima, dada por
FIGUEIREDO DIAS, é possível voltar, então, a reconstruir aquela outra barreira, dizendo, para
tanto, que a escusa se acentua na mesma medida em que o conteúdo do tipo penal se afasta de
condutas naturais - quais sendo, as lógico-objetivas ou valorativo-reais -, ou condutas ordinariamente
conhecidas e conhecíveis dos médicos - quais sendo, as lógico-apreensíveis -, enquanto se
aproxima cada vez mais, e mais perigosamente, de uma abstração encontrável em proibições e
determinações desprovidas de qualquer lastro real ou lógico
1394
. Daí, no dizer de VELOSO,
“...os crimes cuja punibilidade se não pode presumir conhecida de todos os cidadãos, nem é
sempre indesculpável que o não seja. Daí o regime mais benevolente de equiparação ao erro
sobre o facto. Estes crimes são os chamados “crimes artificiais”, “crimes de criação
meramente estatal”, “crimes meramente proibidos” ou mala prohibita.”
1395
O problema dessa afirmação é que ela despreza que todos os crimes, em verdade, são
artificiais, porque produtos exclusivos da luxúria caprichosa do legislador eventual!
Sopesados os materiais legislativos que servem de invólucro à prática criminosa, cabe
agora denunciar a inutilidade da distinção concernente a que,
“correspondendo as incriminações do Direito Penal de justiça a verdadeiros delitos a se’ ou
‘naturais’, o seu fundamento ético e o consequente desvalor da ilicitude são [seriam] tão evidentes
e indiscutíveis que tornam [tornariam] irrelevante o desconhecimento da proibição;
diferentemente no direito de mera ordenação, respondendo [onde responderiam] as suas
incriminações a motivos contingentes de mera oportunidade e sendo a ilicitude constituída pela
própria proibição, torna-se [tornar-se-ia] indispensável o conhecimento desta para que possa
afirmar-se [se pudesse afirmar] a consciência da ilicitude.”
1396
,
1397
1391
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 405.
1392
BELEZA, Teresa Pizarro; PINTO, Frederico de Lacerda da Costa. O regime..., p. 57.
1393
BELEZA, Teresa Pizarro; PINTO, Frederico de Lacerda da Costa. O regime..., p. 57.
1394
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 226: “A falta de consciência da ilicitude exclui a culpa, sendo portanto
incensurável, sempre que o agente, mesmo empregando a devida e esperada tensão da consciência-ética
(Gewissensanspannung), não pudesse ter alcançado o conhecimento da ilicitude da sua conduta.”
1395
VELOSO, José António. Erro..., p. 24.
1396
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 394.
205
Ora, escorando-se em FERRAJOLI, pode-se dizer sem receio que,
“a idéia de que não existe uma conexão necessária entre direito e moral, ou entre o direito ‘como
é’ e ‘como deve ser’ é comumente considerada um postulado do positivismo jurídico. O direito,
segundo esta tese, não reproduz nem mesmo possui a função de reproduzir os ditames da moral
ou de qualquer outro sistema metajurídico divino, natural ou racional -, ou ainda de valores
ético-políticos, sendo, somente, o produto de convenções legais não predeterminadas
ontologicamente nem mesmo axiologicamente. ...No século passado, entretanto, com o
consolidamento definitivo do monopólio estatal das fontes do direito, a doutrina da separação
entre direito e moral viu-se ofuscada. ...O direito positivo vigente, enfim reconhecido como o
único direito existente, tornou-se, para a cultura jurídica, qualquer coisa de ‘natural’ a ser
conhecida ou explicada, e não mais a ser justificada ou deslegitimada. E, assim, o problema da
justificação, ou seja, dos limites e dos fundamentos morais e políticos do direito penal, viu-se,
mais do que apartado, removido. ”
1398
E, é por isso que não se pode recusar, seriamente, que a criminalização não passa de
um apontar de dedos, uma rotulação que elege quem, o que, e, em que momento determinada
pessoa, objeto e situação servirão de sustento para aquilo que naquele instante receberá o
epíteto de criminoso e crime. De sorte que, qualquer vinculação moral, religiosa, ou ética,
bem como qualquer confusão entre estas e o poder punitivo, sobretudo para fins de
mensuração, para maior ou para menor, da consciência da ilicitude, não passa de
remanescência e manutenção de um Estado autoritário, excludente e seletivo que desconsidera
não a proposital inacessibilidade à comunicação da maioria das pessoas que repercute,
“ainda que indiretamente”, na potencial consciência da ilicitude -, mas, também, que referida diferença
entre mala a se e mala prohibita, trata diferentemente o mesmo instituto, qual sendo o da
“criminalização” que, ancorada no princípio da igualdade das pessoas, não pode se
compadecer com fundamentos, ainda que políticos – ou seja, prévios à legalidade -, diversos.
É dizer, na seletividade estatal punitiva, nessa escolha parametrizada, como que
uma arbitrariedade externa, e uma arbitrariedade interna, consequência da primeira, sendo
ambas inadmissíveis. A arbitrariedade externa é dirigida pelos interesses da ocasião, sendo
seu conteúdo composto por uma convergência entre o que foi elegido como criminalização e
seus fundamentos latentes, que foram camuflados por uma fundamentação evidente, esta sim
visível aos criminalizados e criminalizáveis. a arbitrariedade interna advém da divergência
1397
PATRÍCIO, Rui. Erro..., pp. 157 a 159: “Outros casos há, por seu lado, em que são trazidas ao domínio do Direito condutas
unicamente por motivos de organização política (lato sensu), ou por razões de divisão ou maximização do trabalho ou ainda,
cada vez mais, por razões ligadas à técnica que hoje marca (tão profundamente) as sociedades, condutas estas, todas, que não
correspondem a um fundamento ético para uma certa consciência moral, cultural ou social que a comunidade jurídica, num
certo tempo e lugar (e com isto o autor procura superar um jusnaturalismo ultrapassado - e de entono, cremos poder dizê-lo,
panglossiano -, cujas falhas há muito foram postas em evidência), reconhece. Casos estes em que, dito de outro modo, a
‘unidade de sentido’ que o tipo incorpora é constituída através da proibição. Em que a conduta, em si mesma considerada e
divorciada da proibição legal, é axiologicamente neutra, só deixando de o ser quando conexionada com ou valorada de
acordo com a proibição legal. Pelo que, faltando o conhecimento desta proibição legal, o agente não tem todos os dados para
o problema da ilicitude e para a correcta ou incorrecta orientação da sua consciência (ética). Não chega sequer a entrar em
campo aquela sua consciência, tal como nos casos de erro sobre a factualidade típica, por faltar um prius, um prius
indispensável (passe a redundância), qual seja, in casu, o conhecimento da proibição legal, único elemento que funda o
desvalor (ético, ético-jurídico) da conduta, sem ter tal conduta, paralelamente, um desvalor em qualquer outra ordem ou
esfera com relevância ética (moral, cultural, social).”
1398
FERRAJOLI, Luigi. Direito..., pp. 175 a 181.
206
dos motivos entre si, e das finalidades entre si, de um mesmo instituto. O afastamento daquela
tem a função de evitar criminalizações exogenamente absurdas, como as que tendessem a
criminalizar os médicos do setor público que, respeitando o percentual legal, participassem de
uma greve. o afastamento desta, colima evitar criminalizações endogenamente
inadmissíveis, como aquelas que pautam a montagem do delito em elementos idênticos,
embora ora vinculados à moral ou à ética, ora vinculados à lex artis.
Intranquilizados, ainda, perguntam-se BELEZA e PINTO se a ignorância dos actos
administrativos concretos ou ordens de diferentes entidades deve, para efeito de
enquadramento típico, ser tratada como um erro sobre o tipo, que exclui o dolo, como sugere
ROXIN?
1399
Tem-se afirmado que sim quando se tratar de lei penal em branco que, destoando
das condutas perceptivelmente ilícitas, elege como representante estandardizado uma ação ou
omissão somente condizente com uma, não respectivamente, determinação e proibição,
impalpáveis por si sós, ao senso ético, moral e jurídico do seu destinatário, excluindo,
portanto, o dolo, porque incidente sobre a base não legal, senão, fática que a compõe.
1400
Mas, não com toda medida quando tratar a lei penal em branco de um tipo que, naturalmente,
já exala um quê de ilicitude, apreensível a qualquer pessoa, sobretudo a um profissional.
1401
Ocorre, porém, que o equívoco dos escritores lusitanos advém de considerar alguma
diferença entre crimes artificiais e crimes naturais, quando é inegável que nenhum crime
possui lastro natural, visto que todo crime não passa de uma criminalização, é dizer, nada
mais é que um produto artificial, fabricado oportunamente para atender a interesses quase
sempre desnecessários, e cuja motivação vária somente encontra equivalente na variedade
criativa de um legislador descomprometido!
De forma insistente, o que isso significa para o plano da culpa, pergunta-se FIGUEIREDO
DIAS? Responde ele, incorretamente, embora com resultados, mutatis mutandis, úteis:
“Perante uma conduta axiologicamente neutra, se o agente desconhece a proibição legal e em
consequência disso não alcança a consciência da ilicitude, fica este erro a dever-se ainda a uma
falta de ciência, que não a um engano da sua consciência; esta, a consciência-ética, não é
1399
BELEZA, Teresa Pizarro; PINTO, Frederico de Lacerda da Costa. O regime..., p. 59, que, para o direito lusitano respondem
que: “Parece preferível partir da natureza do erro sobre estes elementos para encontrar uma solução adequada. Pode suceder
que a ignorância seja um problema de pura informação do agente ou, noutros termos, uma questão que se coloca como um
problema de conhecimento (por exemplo, o agente deveria ter sido notificado do acto e não o foi). Numa situação destas será
razoável aplicar o regime do art. 16
o
, n
o
1, in fine, pois o conhecimento do acto condiciona em absoluto o conhecimento da
proibição.”
1400
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 396: “...relativamente a certas incriminações - que correspondem grosso
modo ao âmbito do Direito Penal de mera ordenação -, o desconhecimento da proibição deve ser tratado essencialmente
como um ‘erro de facto’ ou ‘sobre a factualidade típica’, em suma, como um erro que exclui o dolo.”
1401
PATRÍCIO, Rui. Erro..., p. 163: “ Nos casos de condutas axiologicamente não neutras, o erro sobre a proibição legal é, de
todo em todo, irrelevante, por bastar para a correcta decisão do agente acerca do problema da ilicitude o correcto
conhecimento da factualidade típica, pois o desvalor ético da conduta é dado nas esferas moral, cultural ou social. O que
importará, nestes casos, não será, pois, se o agente conhecia a proibição legal, mas se actuou ou não com falta de consciência
da ilicitude, e, se sim, se tal falta (lhe) é ou não censurável....”
207
chamada a debate de forma esclarecida, não se exprime na conduta realizada e não pode ser
atingida pelo juízo de censura da culpa. Por isso fica excluído o dolo do agente e a punição a esse
título. Por outro lado, o que o desconhecimento da proibição legal de uma conduta
axiologicamente neutra põe em causa não é ainda a falta de destrinça entre o lícito e o ilícito, mas
a falta de um pressuposto indispensável daquela; não é ainda o problema da consciência da
ilicitude, mas do conhecimento necessário para que ela se alcance. O que pode censurar-se ao
agente não é uma falta de consonância da sua consciência-ética com os critérios de valor da
ordem jurídica, mas eventualmente uma falta de cuidado, traduzida na omissão do dever de se
informar e esclarecer sobre a proibição legal, que torna a sua conduta axiologicamente relevante:
a censura típica da negligência.”
1402
O reparo a ser feito se dirige apenas ao fato de que os resultados obtidos pelo professor
lusitano não devem divergir, quer se trate de conduta axiologicamente neutra, ou não!
Um outro controle, em atendimento ao funcionalismo redutor que se vem
escrevinhando, pode ser buscado na teoria da ofensa ao bem jurídico como motivo
imprescindível e suficiente para a inconstitucionalidade da lex poenalis in albis. Afora a
afirmação de ANITUA de que, “da mesma forma que a intervenção do poder punitivo não pode
assegurar que essa intervenção ponha o bem a salvo - não é possível comprovar
sociologicamente que a penalização proteja algo -, não é posível legitimar o poder punitivo
com a teoria do bem jurídico”
1403
, sobre esse assunto também noticiou SILVA-SÁNCHEZ que, “a
doutrina tradicional do bem jurídico revela - como mencionado anteriormente -, que,
diferentemente do que sucedeu nos processos de despenalização dos anos 60 e 70, sua
capacidade crítica no campo dos processos de criminalização como os que caracterizam os
dias atuais - e certamente o futuro - é sumamente bil.”
1404
O reflexo disso, continua esse, é
que se tem
“produzido certamente a culminação do processo: o Direito Penal, que reagia a posteriori contra
um fato lesivo individualmente delimitado (quanto ao sujeito ativo e ao passivo), se converte em
um direito de gestão (punitiva) de riscos gerais e, nessa medida, está ‘administrativizado’.
Vejamos o que se quer indicar com tal expressão. Como é sabido, as teses clássicas (ou do aliud)
distinguiam entre ilícito penal e ilícito administrativo, atribuindo ao primeiro o caráter de lesão
eticamente reprovável de um bem jurídico, enquanto o segundo seria um ato de desobediência
ético-valorativamente neutro. Posteriormente, todavia, foi se consolidando como doutrina
amplamente dominante a tese da diferenciação meramente quantitativa entre ilícito penal e ilícito
administrativo, segundo a qual o característico desse último é um menor conteúdo de injusto.
Como resumo desse ponto de vista, pode-se citar WELZEL, quando observa: ‘A partir do âmbito
nuclear do criminal deflui uma linha contínua de injusto material que certamente vai diminuindo,
mas que nunca chega a desaparecer por completo, e que alcança até os mais distantes ilícitos de
bagatela, e inclusive as infrações administrativas (Ordnungswidrigkeiten) estão a (...) ela
vinculados’. A perspectiva que se centra somente no injusto e sua conformação para distinguir o
âmbito do penal e do administrativo é, a meu juízo, errônea. Por isso era errônea a teoria clássica
de base ética. Mas também resulta incompleta a moderna teoria da diferenciação (meramente)
quantitativa. Com efeito, o decisivo da referida diferenciação não é (somente) a configuração do
injusto, senão os critérios desde os quais se contempla, os critérios de imputação desse injusto e
as garantias de diverso signo (formais e materiais) que rodeiam a imposição de sanções ao
mesmo. A esse respeito, é evidente que a sujeição a um juiz é uma diferença qualitativa, como o é
a impossibilidade de que a administração imponha sanções privativas de liberdade. Tais garantias
especiais, que rodeiam o penal e que têm a ver com a repercussão comunicativo-simbólica da
afirmação de que concorre uma ‘infração penal’, convergem favoravelmente à idéia de que
1402
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 400.
1403
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 145.
1404
SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 113.
208
procede introduzir uma perspectiva de diferenciação qualitativa que de ter reflexo, sobretudo,
na forma de entender a lesividade de uma e outra classe de infrações e nos critérios utilizados para
sua imputação. Como se verá, o decisivo aqui volta a ser o critério teleológico: a finalidade que
perseguem, respectivamente, o Direito Penal e o administrativo-sancionador. O primeiro persegue
a proteção de bens concretos em casos concretos e segue critérios de lesividade ou periculosidade
concreta e de imputação individual de um injusto próprio. O segundo persegue a ordenação, de
modo geral, de setores da atividade (isto é, o reforço, mediante sanções, de um determinado
modelo de gestão setorial). Por isso não tem por que seguir critérios de lesividade ou
periculosidade concreta, senão que deve preferencialmente atender a considerações de afetação
geral, estatística; ainda assim, não tem por que ser tão estrito na imputação, nem sequer na
persecução (regida por critérios de oportunidade e não de legalidade). Por esse motivo, quiçá
proceda, em suma, introduzir algum gênero de diferenciação qualitativa entre Direito Penal e
Direito Administrativo sancionador. Como mencionado, o Direito Administrativo sancionador
é o reforço da ordinária gestão da administração. Assim, também cabe afirmar que é o Direito
sancionador de condutas perturbadoras de modelos setoriais de gestão. Seu interesse reside na
globalidade do modelo, no setor em sua integridade, e por isso tipifica infrações e sanciona sob
perspectivas gerais. Não se trata aqui do risco concreto, como risco em si mesmo relevante e
imputável pessoalmente a um sujeito determinado, senão que o determinante é a visão
macroeconômica ou macrossocial (as ‘grandes cifras’; o ‘problema estrutural’ ou ‘sistêmico’).
Precisamente por ser essa sua perspectiva própria, o Direito Administrativo sancionador não
precisa, para sancionar, que a conduta específica, em si mesma concebida, seja relevantemente
perturbadora de um bem jurídico, e por tal razão tampouco é necessária uma análise de
lesividade no caso concreto. Do mesmo modo, tampouco parece haver óbices à aceitação de que o
Direito Administrativo sancionador não se oriente por critérios de legalidade na persecução dos
ilícitos, senão por puros critérios de oportunidade. O que é necessário, mais que tudo, é que o
gênero de condutas represente, em termos estatísticos, um perigo para o modelo setorial de gestão
ou, se se prefere, em termos menos tecnocráticos, para a boa ordem do setor de atividade
determinado. Nessa medida, o Direito Administrativo sancionador é essencialmente o Direito do
dano cumulativo ou, também, do dano derivado da repetição, que dispensa uma valoração do fato
específico, requerendo somente uma valoração acerca de qual seria a transcendência global de um
determinado gênero de condutas que viesse a ser considerado lícito. Em outras palavras, a
pergunta-chave é ‘o que aconteceria se todos os intervenientes neste setor de atividade
realizassem a conduta X - quando existe, ademais, uma séria probabilidade de que muitos deles o
façam -, caso fosse considerada lícita?’.”
1405
,
1406
É por isso que JUAREZ TAVARES, enfatiza que, “se deve descartar da noção de bem
jurídico a noção de função, que encerra atividades administrativas do Estado, referentes ao
controle sobre determinado setor da vida de relação ou de seu próprio organismo.”
1407
Ademais,
“como assinala PASCAL, no mundo barroco dos casuístas, graças à instituição do probabilismo
como teoria, chegava-se a equívocos extraordinários e sobretudo à organização de uma religião
que não conduzia à fé, ou à caridade, mas que queria, pela benevolência, receber no seu seio os
grandes e os nobres, agradá-los para receber o seu agradecimento. Tão intricado ficou o sistema,
que o Padre BAUNY, como nos diz PASCAL, pôde afirmar que: ‘Quando o penitente segue uma
opinião provável, o confessor deve absolvê-lo, ainda que sua opinião seja contrária à do
penitente.’ Este tipo de raciocínio que raia o absurdo e parece tirado da lógica de lonesco, é que o
jansenismo criticava.”
1408
Poderia, então, sem dúvida, a ofensa ao bem jurídico ser eleita, ad instar do que faz
JUAREZ TAVARES, para todo o injusto, como parâmetro retentor do poder punitivo
1409
, embora,
1405
SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão..., pp. 114 a 117.
1406
De maneira mais tecnicamente profunda ao analisar a relação bem jurídico e função, mas com semelhante resultado,
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., pp. 203 e seguintes.
1407
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 203.
1408
SANTIANO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In Discursos Sediciosos, Crime, Direito e Sociedade, 1° semestre
1996, ano 1, n. 1, p. 42.
1409
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., pp. 198 e 203: “O bem jurídico não se confunde, assim, nem com os
interesses juridicamente protegidos, nem com um estado social representativo de uma sociedade eticamente ideal, nem ainda
com mera relação sistêmica, e tampouco pode ser identificado como uma função integrada ao fim de proteção da norma. ...A
209
hic et nunc, sem prescindir da ontologicidade, mormente por se tratar ele da “‘relação de
disponibilidade’ do titular com a coisa.”
1410
Que a ofensa ao bem jurídico afeta, no sentido de
delimitar, o próprio tipo, bem como todos os demais componentes deste
1411
- incluída, portanto, e
sem favor algum, a norma remetida -, disso poucos ousarão duvidar, ainda que o condicionem aos
preceitos constitucionais.
1412
Também é insofismável que, sendo a ofensa ao bem jurídico um
valor
1413
- e não um ideal ou uma função -, que subordina sua eficácia delimitadora à demonstração
de uma ofensa ou perigo concreto desta - é dizer, a uma finalidade -, é evidente que ela, por tudo
isso, tem o condão de condicionar a própria validade da norma.
1414
Mas, condicioná-la não em
função do próprio bem jurídico, argumenta JUAREZ TAVARES, “senão da pessoa humana que é o
objeto final de proteção da ordem jurídica”, ou seja, “o bem jurídico vale na medida em
que se insira como objeto referencial de proteção da pessoa, pois nesta condição é que se
insere na norma como valor
1415
, parece inafastável. Com efeito, continua ele, considerando-
se que “a punição criminal é unicamente uma contingência de ultima ratio e que, como
adverte ROBBERS, “inexiste um dever absoluto de punir”
1416
, não se deve cair na tentação de se
usar, à semelhança do remédio que envenena, o bem jurídico como “legitimação da
incriminação, mas como sua delimitação, daí seguindo, no dizer de ZU DOHNA, a necessidade
de que seja determinado com precisão para que possa servir de barreira diante da
intencionalidade e da vacuidade.”
1417
Então, quando vinculada a critério de pura
oportunidade, despossui a função o caráter de universalidade, que somente é recuperado no
instante em que a função passa a servir, indistintamente a todos, no sentido de uma
universalidade e sua vinculação à própria estrutura do Estado, dá-lhe estabilidade e a converte
em bem jurídico, porque se constitui valor da pessoa humana.”
1418
Ainda segundo JUAREZ
necessária vinculação de um bem jurídico estatal à sua origem e finalidade pessoal é uma garantia do indivíduo de que sua
liberdade não será molestada por mera adoção de políticas públicas, no âmbito administrativo, econômico e social, ou por
finalidades eleitoreiras. Será preciso demonstrar, para tornar válida a eleição desta categoria de bem jurídico, que sua lesão
signifique um dano igualmente à pessoa e às suas condições sociais.”
1410
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual..., p. 440.
1411
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 198: “Bem jurídico é um elemento da própria condição do sujeito e de sua
projeção social, e nesse sentido pode ser entendido como um valor que se incorpora à norma como seu objeto de preferência
real e constitui, portanto, o elemento primário da estrutura do tipo, ao qual se devem referir a ação típica e todos os seus
demais componentes.”
1412
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 200: “Entendido como valor e não como dever, é o bem jurídico, pois,
reconduzido à condição de delimitador da norma. Essa condição delimitadora é que assinala a característica essencial do bem
jurídico e deve ser levada em conta em qualquer circunstância, ainda que sob a idéia de subordiná-la aos preceitos
constitucionais.”
1413
Apoiando-se em JÜRGEN HABERMAS, TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 199: “Seguindo a definição de
HABERMAS, podemos dizer que norma e valor se diferenciam basicamente em face de seus pessupostos: a primeira se vincula
a uma situação de dever; o outro, a uma finalidade.”
1414
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 198.
1415
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 199.
1416
Apud TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 201.
1417
In TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., pp. 201-202.
1418
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 212.
210
TAVARES, “não importa, assim, ao conceito de função que essa ou aquela atividade de controle
possa ser útil ou inútil, adequada ou inadequada.”
1419
Importante é que na confecção da lei
penal em branco se obedeça à eleição da ofensa ao bem jurídico como único valor funcional
estruturante do injusto
1420
que, represando o poder punitivo, garante a interferência deste na
vida humana somente em último caso, e nunca em razão de uma mera função, ou de um
simples dever. Com isso, ficam excluídos os hibridismos - norma remetente/norma remetida -,
eleitores de criminalizações de enquadramento administrativo mais adequado, sem qualquer
esteio nas estruturas lógico-reais
1421
- e que devem servir apenas para delimitá-los, jamais para legitimá-
los -, porque “o bem jurídico não pode perder, direta ou indiretamente, sua referência a um
dado do ser, isto é, sua existência como tal deve preceder suas características normativas”
1422
,
que, todavia, não podem ser desprezadas, porquanto a afirmação de estar ele reduzido a uma
característica da pessoalidade não o libera de apresentar uma substancialidade aferível por um
“procedimento de demonstração de que tenha sido lesado ou posto em perigo”.
1423
E,
justamente porque “o objetivo do Direito Penal, porém, não é o de simplesmente proteger
bens jurídicos, mas o de traçar, nitidamente, os contornos das zonas do lícito e do ilícito, do
proibido e do permitido, no sentido de justificar a intervenção do Estado sobre a liberdade
da pessoa humana, em casos de extrema e demonstrada necessidade”
1424
, é que, talvez, mais
importante do que a demonstrabilidade de estar a ofensa ao bem jurídico lastreada a um dado
do ser, anterior à normativização, é a demonstração da própria imprescindibilidade da
normativização mesma, porquanto sem ela, ou dependendo de como se a construa, o juízo de
refutabilidade poderá, com maior ou menor facilidade alcançar, ou mesmo não poderá
alcançar seu propósito de reduzir ou eliminar o poder punitivo, porque insujeitáveis as
conclusões deste - no sentido de eleger mediante uma lei penal em branco capenga e destituída de qualquer
1419
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., pp. 212-213.
1420
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 223: “Se, por um lado, se deve distinguir entre bem jurídico e função, por
outro, se pode divisar, como já se assinalou anteriormente, uma função própria ao bem jurídico, que é a de servir de elemento
estrutural do injusto....”
1421
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 39: “Diga-se de passagem que a dedução foi o método usado por EINSTEIN
na elaboração da sua teoria da relatividade. Seu médoto consistia unicamente em procurar uma teoria harmoniosa, do tipo que
a própria natureza escolheria.” Por outro lado, essa relação, na medicina, parece pender para outra direção, conforme, citando
R. B. BRAITHWAITE, PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., pp. 49-50: “É preciso sempre ‘olhar a totalidade da cadeia
causal e não, meramente, seu estado final’. De fato, esta, nas explicações teleológicas, seria ‘uma situação temporal de
quiescência’ (de descanso). Isso é inadequado porque, no caso dos organismos vivos, o que há são ciclos repetidos de
comportamentos para mantê-los assim, auto-regulando-se por meio de um mecanismo de feedback, de retroalimentação.
Chegar ao final não seria distintivo de uma atividade diretiva, porque também os processos inorgânicos movem-se na direção
de um termo final. O distintivo seria a persistência da atividade diretiva para alcançar a meta: por exemplo, manter o
organismo vivo. Insistir, no entanto, numa sucessão demasiado longa de porquês, no caso da explicação teleológica, poderia
transformá-la numa explicação finalista, em que se procurasse não só a direção, mas também o diretor, como nos parece ser o
caso do funcionalismo de TEILHARD DE CHARDIN. Isso extravasaria os limites da ciência, tal como ela é geralmente
entendida.”
1422
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 220.
1423
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 221.
1424
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 216.
211
ofensa a bem jurídico -, a uma contraprova.
1425
Daí, ser tão perigosa a lei penal em branco que,
enveredando pela avenida de complementos abstratos, ou meramente administrativos, mas,
todos funcionais ou deontológicos
1426
- é dizer, não contrafáticos
1427
-, integra o comando penal
remissivo desprovido de qualquer escopo protetivo do bem jurídico contra ofensas
1428
. É que,
por ela, quando ultrapassados todos os limites consignados acima, pode-se alcançar um
resultado de dessocialização da pessoa humana, ocorrente nos casos de incriminação,
desprovido de qualquer exame do dano social resultante de condutas lógico-objetivas.
1429
Com isso, da proporcionalidade que deve guardar a interferência do poderio punitivo estatal
com os efeitos decorrentes das condutas incriminadas na lei penal em branco, extrai-se mais
esse papel delimitativo da criminalização, qual sendo, perquirir da “legitimidade do próprio
direito de punir”
1430
a qualquer custo.
1431
Ainda segundo JUAREZ TAVARES, “o bem jurídico
pode ser considerado violado se esta violação se der na zona do ilícito” (rectius: injusto) e,
“como a norma penal é fundamentalmente uma norma de conduta, porque se destina a
demarcar as zonas do lícito e do ilícito em relação aos sujeitos e a delimitar o poder de
intervenção do Estado, a ação ou a omissão típica violadora de bem jurídico é sempre
representada por um verbo dotado de certo sentido.”
1432
Todavia, e ao contrário do que ele sustenta, embora não se adote aqui uma postura
finalista, senão funcional redutora, fica entendido que, ainda assim é possível, senão
imprescindível, retirar-se a manifestação volitiva e suas divisões da configuração ôntica da
1425
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 220.
1426
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 222: “A inserção da lesão ou do perigo de lesão a um bem jurídico como
pressuposto da incriminação torna, desde logo, incompatível com um Direito Penal democrático qualquer forma de elevar
uma função do Estado à categoria de seu objeto de proteção penal. Todavia, ao tomar-se o bem jurídico como objeto de
preferência, como valor e referência, no plano da sua lesão ou perigo de lesão, impossitilita-se a pretensão de utilizá-lo como
instrumento de proteção de funções ou de submetê-lo, hierarquicamente, àquelas. ...Na verdade, o objeto de tutela, aqui,
corresponderia a uma ordem pública ideal, insuscetível de apreensão conceitual, delimitação e juízo de refutabilidade.”
1427
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 221: “No setor do injusto, por isso mesmo, as funções não podem ser
havidas como pressupostos indeclináveis da incriminação ou objetos de proteção, porque carecem de substância e não podem
se submeter a qualquer exame ou demonstração empírica de que tenham sido lesadas ou postas em perigo.”
1428
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 221: “A exigência, portanto, de que esses bens venham de fato a sofrer
uma lesão ou um perigo de lesão, aferidas essas conseqüências no plano do real e não apenas do simbólico, constitui um
impedimento estrutural à adoção de uma política criminal destinada à proteção de funções.”
1429
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 223; em outro sentido, porém, TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria
do crime culposo. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, xvii: “Penso que em um Estado Democrático de Direito já não
mais se comporta uma submissão do normativo ao ontológico, pois a ideia básica que deve servir de orientação a toda
especulação jurídica será a de proteger a pessoa humana diante do poder de intervenção, o que, certamente, não poderá ser
obtido por uma postura que privilegie as chamadas categorias lógico-objetivas ou as características ônticas da conduta,
conceitos imprecisos, incertos e não suficientemente substanciais.”
1430
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., pp. 223-224.
1431
De acordo com DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 367: “Se, porém, tomarmos a sério a ideia de que o
legislador, ao construir as molduras penais dolosas e negligentes, só teve em vista os factos realizados, respectivamente, com
consciência da ilicitude e com negligência do facto, punir a qualquer título factos realizados sem consciência da ilicitude ou
com negligência do direito será desde logo violar o princípio nullum crimen sine lege.” Embora em outra oportunidade,
saliente DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 377, que: “Só haverá de acrescentar - de resto ainda em plena consonância
com BELEZA DOS SANTOS -, que tanto é doloso o facto cometido com consciência da ilicitude como o cometido sem ela,
quando esta falta se apresenta como censurável.”
1432
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 224.
212
ação, e não somente dos critérios de imputação
1433
, visto que estes devem pressupor aquela,
sob pena de, sim, escancararem-se as cancelas dos propósitos garantistas ao ataque
insaciável do poder punitivo. Então, deve-se tomar cuidado, pois, HANNIBAL, ad portas!
Assim, respondendo à pergunta acima, deve ficar entendido que a ignorância incidente
sobre atos administrativos concretos ou ordens normativas de diferentes entidades, para efeito
de enquadramento típico, deve ser tratada como um erro sobre o tipo, excludente do dolo,
porque o desconhecimento do complemento, que integra o próprio tipo, enseja e viabiliza - por
parte do, e ao médico -, um erro escusável sobre elementos desse mesmo tipo, mormente quando
se tratarem de normas regulamentares ou técnicas, pertinentes à lex artis. Mas, não porque
elas integram o rol das amiúde alcunhadas mala prohibita - é dizer, desvinculadas de qualquer lastro
lógico-real -, e, assim, dificultam
1434
por parte dos facultativos - haja vista que a construção
criminosa artificial derivada do legislador é ainda mais absurda, inalcançável e surpreendente -, conhecer
todos os componentes, sejam descritivos, normativos ou mesmo subjetivos específicos que
formam o tipo. Senão, porque o grau de abstratividade com que o legislador da ocasião
criminaliza, é dizer, etiqueta, pressupõe criminalização primária -, e colima criminalização
secundária -, uma certa culpabilidade pela vulnerabilidade que, no caso do médico, é diminuída
a vulnerabilidade, e não a culpabilidade -, em razão da tecnificidade da sua profissão, mas,
aumentada a vulnerabilidade -, na medida em que o erro é ocasionado pela omissão
informativa de outro, não podendo ficar presumida, deduzida ou induzida sua existência – a da
culpabilidade -, em razão de um defeito comunicacional - próprio ou mesmo da própria agência -, que
reflete decisivamente no irreconhecimento da potencial consciência da ilicitude.
1435
Com isso, remanesceria a tipificação por crime culposo para o caso de estarem
presentes todos os seus pressupostos, sendo um deles o fato de a desinformação - visto que o
“devia saber”
1436
configura culpa, e não dolo eventual -, dever ser atribuída à desídia do médico que,
vez em quando, para não dizer sempre, deveria, por exemplo, consultar a página eletrônica do
1433
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 225.
1434
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 227-228: “Só no âmbito das incriminações moralmente fundadas - e portanto
dos comportamentos que, segundo um princípio moral geralmente aceite e reconhecido, surgem como dignos de castigo e de
pena -, terá sentido afirmar-se que a censura se funda na possibilidade de o agente ter alcançado, através de uma ‘reflexão
axiológica’ que omitiu, a consciência da ilicitude do facto. Em toda a extensão das hipóteses restantes, porém, o papel da
consciência-ética desaparece, desta perspectiva, e a censura passa a ver-se fundada, exclusivamente, por uma ‘falta
intelectual’ que deriva de o agente não ter feito tudo aquilo que razoavelmente seria de lhe exigir no sentido de se esclarecer
ou informar sobre a ilicitude do facto.”
1435
BELEZA, Teresa Pizarro; PINTO, Frederico de Lacerda da Costa. O regime legal do erro e as normas penais em branco:
ubi lex distinguit.... Coimbra: Almedina, 2001, p. 59: “Pode suceder que a ignorância seja um problema de pura informação
do agente ou, noutros termos, uma questão que se coloca como um problema de conhecimento (por exemplo, o agente
deveria ter sido notificado do acto e não o foi). Numa situação destas será razoável aplicar o regime do art. 16
o
, n
o
1, in fine,
pois o conhecimento do acto condiciona em absoluto o conhecimento da proibição.”
1436
Nesse sentido, o saudoso NORONHA, Edgar Magalhães. Direito Penal: dos crimes contra as pessoas, dos crimes contra o
patrimônio. 31. ed. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 86: “Haverá culpa quando o sujeito ativo não tem ciência... mas devia
sabê-lo pelas circunstâncias.”
213
Conselho Federal de Medicina, onde são publicadas informalmente e onde são acessadas mais
facilmente as notícias desta autarquia. Não sendo improvável, de outro lado, configurar sua
conduta atípica por inexistência flagrante da repescagem culposa (artigo 18, parágrafo único,
do Código Penal).
É dizer, quem se debruçar sobre o seguinte exemplo não com muita dificuldade
perceberá a influência que a natureza e a origem do complemento - norma remetida -, projetam
no conhecimento da norma remissiva, afetando quase sempre o dolo, ora a culpa, cabível por
si senão como rebarba.
1437
Acompanhando FIGUEIREDO DIAS, “age sem culpa quem pratica o
facto sem consciência da sua ilicitude, se o erro lhe não for censurável; se o erro lhe for
censurável será o agente punido a título de dolo, podendo no entanto a pena ser especialmente
atenuada.”
1438
Se não, vejamos um exemplo fictício: O Conselho Federal de Medicina (CFM),
colimando disciplinar a atuação dos profissionais cirurgiões-plásticos, determina, mediante
Resolução a viger 15 dias após sua publicação, que aqueles deverão, para poderem continuar
exercendo sua labuta, registrar-se no CFM no prazo de 5 dias, sob pena de, realizando qualquer
cirurgia estética ou reparadora sem referido pressuposto, enquadrarem-se no crime de
exercício de atividade com infração de decisão administrativa (artigo 205, do Código Penal).
Acontece que o médico TÍCIO, extremamente atarefado, não consegue acessar a informação
trazida à tona pela Resolução, seja porque não assina qualquer jornal que publique notícias
oficiais, seja porque não pôde acessar, nesse período, a página eletrônica do CFM. O
facultativo MÉVIO, por sua vez, malgrado tenha tomado conhecimento do conteúdo resolutivo,
não se dispôs a, no prazo franqueado, registrar-se no CFM como determinado. o médico
SEMPRÔNIO, conquanto assine jornal que veicula informação pública e acesse a página
eletrônica do CFM todos os dias, por problemas de entrega, não recebeu o jornal daquele dia, e,
por defeito no seu provedor, que durou mais de semana, não conseguiu acessar referido sítio
eletrônico. Todos, após um mês da publicação da Resolução realizaram uma cirurgia
reparadora ou estética.
Mas, cometeram todos o fato típico previsto no artigo 205, do Código Penal?
Inicialmente, quer parecer que para todos vale o seguinte:
“a questão da censurabilidade do erro de direito ou sobre a proibição tem-se antes de mais
suscitado relativamente a factos relacionados com um certo ‘círculo de vida e profissional’ do
agente, para se notar que sobre este recai o dever de se informar cuidadosamente sobre as
prescrições legais que atingem as respectivas actividades; por isso a censurabilidade ou
evitabilidade do erro pode ter logo o seu fundamento em que o agente (v. g., um farmacêutico, um
1437
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., pp. 414-415: “Age sem dolo quem se não representa circunstâncias do fato que
correspondem a um tipo de crime, ou desconhece preceitos jurídicos cujo conhecimento seria indispensável para tomar
consciência da ilicitude do facto. Fica porém ressalvada a punibilidade da negligência.”
1438
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 390.
214
construtor civil etc.), por condução da sua vida profissional, omitiu aquele dever de
informação e esclarecimento. Por outro lado, quando haja dúvidas sobre a licitude ou ilicitude da
acção, acentua-se em geral não dever o agente remeter-se ao seu próprio juízo mas esclarecer-se
junto de pessoa competente; por isso pode a censurabilidade do erro radicar na escolha errada da
pessoa a quem se pede o esclarecimento, ou inversamente ser excluída porque houve o cuidado de
se socorrer de um jurisperito, ou de uma pessoa ou repartição que, sem culpa, o agente considerou
competente.”
1439
Como não se trata de um complemento ôntico, é dizer, lógico-objetivo, a
desinformação ou o defeito na informação deve receber um tratamento não se diria
diverso
1440
, mas sim, menos rígido no que tange ao erro sobre o tipo e sobre a proibição,
sobretudo em razão do que dito acima, ou seja, de que, nesses casos, a imensa artificialidade
da criminalização beira o absurdo e ocasiona a quase impossibilidade de previsão por parte do
etiquetável.
Partindo desse marco, mutatis mutandis, pode-se responder, e isso vale para todos,
com a sugestão notadamente funcional redutora de VELOSO:
“em caso de incriminação nova, deve-se conceder o regime do art. 16°
1441
, sem distinção entre
crimes em si ou meramente proibidos, por todo o período que seja necessário para conhecer a
nova norma. Isto independentemente da vacatio legis formal, que pode ser - entre nós está a ser -
muito insuficiente. A ampliação deve valer também para as pessoas que exercem certa actividade,
relativamente às normas reguladoras destas, embora neste caso o período de tolerância deva ser
mais reduzido do que para o cidadão comum. Estas soluções devem ser aplicadas analogicamente
ao desconhecimento de normas jurídicas que devam ser combinadas com o preceito legal
incriminador para obter a norma incriminadora completa.”
1442
Então, embora se trate TÍCIO de profissional cuja busca pelo conhecimento ou
atualização do conhecimento, ainda que burocrático lhe é sempre cabida
1443
- desde que não
impossível, obviamente, como quando o Conselho Federal de Medicina, hipoteticamente, deixa de publicar uma
Resolução -, a estreiteza da vacatio legis impediu-o de acessar a informação, não podendo o
sistema punitivo contraditar alegando, mesmo diante da sua confissão de desidioso quanto a
questões formais, que esta sua indiferença não diminuiria ou mesmo não se inverteria diante
de um prazo mais longo, porque tal não passa de presunção, rejeitável a todo modo em um
Direito Penal de ato. a indiferença de MÉVIO, mesmo porque de pronto excluído o
empecilho do aperto da vacatio legis - colmatada por um conhecimento inequívoco da resolução -,
autoriza a incriminação, ainda que se trate de norma penal em branco, remanescendo a
1439
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 324.
1440
BELEZA, Teresa Pizarro; PINTO, Frederico de Lacerda da Costa. O regime..., p. 53: “Um caso como este não adquire
qualquer especificidade em relação ao regime vigente do erro, devendo a solução ser encontrada em função da natureza do
erro e da natureza do objeto do erro.”
1441
Textualmente: “O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo
conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o
dolo.”
1442
VELOSO, José António. Erro..., p. 25.
1443
Nesse sentido, embora bastante cético, DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 226: “...a capacidade de
conhecimento da ilicitude afirmar-se-á (e com ela a censurabilidade do erro ou da falta de consciência actual da ilicitude)
sempre que o agente, ‘através do pertinente esforço da consciência-ética - de um esforço que se afere pela medida exigível
segundo as circunstâncias do caso e o concreto círculo de vida e profissional a que aquele pertence -, tivesse podido alcançar
um tal conhecimento.”
215
questão de, tratando-se de crime de perigo abstrato - visto que sua competência cirúrgica não pode ser
medida por mera exigência tecnocrática
1444
-, e, considerando o princípio da ofensividade, deveria
ou não ser ele absolvido.
1445
Quanto a SEMPRÔNIO, o defeito na informação é devido,
exclusivamente, a terceiro, não podendo ele acessar o conteúdo da norma remetida,
merecendo, de corolário, ser enquadrado em erro de tipo - porque atingido seu dolo -, ou, quando
menos, em erro de proibição, porque prejudicada, também, sua culpa. O mesmo resultado
mereceriam todos se o desconhecimento fosse devido, exclusivamente, ao Conselho Federal
de Medicina, por olvido na publicação da Resolução, principalmente em razão de se tratar de
norma que encerra um caráter de abstratividade quase inapreensível, mesmo se compararmos
o técnico (médico) e o leigo.
Por fim, que a lei penal em branco, enquanto jaz à espera da sua companheira - melhor
seria dizer, talvez, convivente -, remanesce latente, disso ninguém duvida, e assim é “porque não se
pode afirmar que haja um tipo penal quando existe uma pena legal, carente da ação típica,
o que lhe impede cumprir sua função de programação criminalizante.”
1446
Respeito, porém,
diz a outra questão, ao fato de a lei penal em branco, inobstante implementada formalmente a
condição suspensiva - qual sendo, o surgimento no mundo jurídico da lei destinatária complementadora -,
haver ou não - e por causa da indeterminação dos termos desta -, entrado, efetivamente, em vigor,
sendo mister a declaração da sua inconstitucionalidade, ou melhor, considerar-se que ela
sequer existiu, ainda que por lapso curto. Em que pese a cisão, mediante a técnica do reenvio
ao destinatário, i. e., para uma disposição legal comportamental diferente daquela que
estabelece a pena, ter merecido a pronúncia de FIGUEIREDO DIAS no sentido de que aquela
prática não enferma a constitucionalidade, pois nada na Constituição obriga à
conexionação, na mesma lei ou no mesmo preceito legal, da conduta proibida com a pena
que lhe corresponde
1447
, ficou espancado acima, com fartura, serem tais leis flagrantemente
inconstitucionais. Por outro lado, filosófica e fisicamente fica bastante difícil, senão
impossível, dizer que elas nunca existiram, o que tornaria, de corolário, intrincável tanto a
solução quanto a sonegação dos efeitos, ainda que inconstitucionais, delas advindos. Então,
1444
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., pp. 203 e 221: “A necessária vinculação de um bem jurídico estatal à sua
origem e finalidade pessoal é uma garantia do indivíduo de que sua liberdade não será molestada por mera adoção de
políticas públicas, no âmbito administrativo, econômico e social, ou por finalidades eleitoreiras. Será preciso demonstrar,
para tornar válida a eleição desta categoria de bem jurídico, que sua lesão signifique um dano igualmente à pessoa e às suas
condições sociais. ...A exigência, portanto, de que esses bens venham de fato a sofrer uma lesão ou um perigo de lesão,
aferidas essas conseqüências no plano do real e não apenas do simbólico, constitui um impedimento estrutural à adoção de
uma política criminal destinada à proteção de funções.”
1445
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., p. 226: “O que se exige, em um Direito Penal realista, é que ao imputado se
lhe abra sempre a possibilidade de demonstrar que o perigo pressuposto na lei não se poderia verificar no caso concreto, em
face da inofensividade de sua conduta.”
1446
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 205.
1447
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 220.
216
parece mais coerente, entendendo pela sua inconstitucionalidade, e atentando para os seus
inegáveis efeitos, absolver o médico por atipicidade global
1448
da conduta.
Agora, é preciso dizer que por trás de toda essa construção algo escondido. E a
questão sonegada tem a ver, justamente, com a culpabilidade.
Ficou consignado acima que na construção da criminalização primária, bem como na
atuação da criminalização secundária e terciária
1449
, os sistemas penais, valendo-se de um
discurso deslegitimado, dirigem o poder punitivo a um seleto grupo de etiquetados como
criminalizados, para os quais valeria o que teria dito o tardiamente arrependido inquisidor
ALONSO SALAZAR Y FRÍAS, ou seja, “não existiram bruxos nem enfeitiçados até que se começasse
a falar e a escrever sobre eles.”
1450
Embora o programa criminalizante primário jamais alcance
suas pretensões - em verdade, jamais pretenderá alcançá-lo sob pena de inviabilidade da vida social
1451
-,
ele destina seu arbitrário esforço em desfavor de impor previsões típicas que obedecem ao
sabor das suas conveniências político-econômicas de ocasião, não se preocupando, portanto,
com a harmonização social ao apontar seu poderoso arsenal para este ou aquele candidato que
tem, no momento, causado desconforto aos seus interesses. Esquartejadas, ab ovo, em
atendimento a uma divisão político-administrativa alemã
1452
, caíram as leis penais em branco
nas graças dos caprichos luxuriosos das agências da neoliberal empreitada que, num jogo
fraudado, usam-nas como vinheta para, abusando da capacidade operativa que detêm,
deturparem seus objetivos, inicialmente aceitáveis, ainda que em mínima medida. Então, afora
sua inconstitucionalidade, necessário é realçar que a confecção das leis penais em branco
esconde uma perseguição aos vulneráveis, ad instar de qualquer outro diploma legal. Mas,
sendo os médicos invulneráveis por excelência, seja em razão do seu status profissional, seja
em razão do seu status econômico, seja em razão de quaisquer outros sinais de ostentação da
sua posição - com origem remota no Estado absolutista, sobretudo no Ancien Régime, onde, “com o objetivo
de regular os ilegalismos
1453
,... para controlar... as falsas representações da condição social... os reis
absolutistas... impuseram a necessidade de as pessoas contarem com um passaporte para deslocar-se de seu
torrão ou para ingressar nas cortes ou nas cidades; os que não traziam esses papéis privilegiados, em troca,
1448
A construção da tipicidade conglobante pode ser pesquisada em ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR,
Alejandro. Direito..., v. I, v. II, I, p. 159; e, ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual..., p. 435 e
seguintes.
1449
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 43 e seguintes.
1450
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., pp. 60-61.
1451
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 44: “Embora
ninguém possa conceber seriamente que todas as relações sociais se subordinem a um programa de criminalização faraônico
(que paralisasse a vida social e convertesse a sociedade em um caos na busca da realização de um programa irrealizável)....”
1452
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 204: “Elas foram
teorizadas na Alemanha para os casos de leis nacionais complementadas por outras, provinciais....”
1453
Porém, em última medida, a intenção era assegurar a propriedade. Nesse sentido, ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p.
105.
217
tinham que causar efeito com roupas, penteados e outros sinais para identificar-se à primeira vista”
1454
-,
como é possível - sem que as agências plasmem uma arbitrária perseguição, denunciando seus espúrios
objetivos, porque estes seriam facilmente questionados pelos consumidores ativos, quais sendo, os médicos, cuja
capacidade de não se compadecer é maior que a dos consumidores falhos
1455
-, afirmar que a confecção
de leis penais em branco - que, atualmente, atinge uma cifra significativa -, selecionando-os, faz, ou
não, coincidir, em razão disso, a marca do suporte com o fiel da balança?
Em primeiro lugar, essa putativa igualdade
1456
não existe, sendo ela um mero produto
daquele jogo fraudado em que as agências, mediante um embuste, renomartizam
1457, 1458
o seu
arsenal e, com isso, iludem os consumidores ao oferecer-lhes uma falsa sensação social de
segurança
1459
- adveniente do ilusório fato de que é sempre o protegido pela lei quem irá dominar o discurso,
desta vez -, reafirmando assim o mito de que renormatizar é resolver
1460
, mito este quiçá
derivado de uma deturpação do verberte “leis”, inscrito em uma obra de que participou
VOLTAIRE, onde ele afirma que: “se querem ter boas leis a solução é fácil: atear fogo às
existentes e redigir novas”
1461
, requentando o que dizia POLÍBIO antes da era Cristã, ou seja,
que os ciclos constantemente se repetem.
1462
Last but not least, para desviar da afirmação de
que “os atos grosseiros cometidos por pessoas sem acesso positivo à comunicação social
acabam sendo divulgados por esta como os únicos delitos e tais pessoas como os únicos
delinqüentes
1463
, de quando em vez as agências políticas - arrimadas em uma clientela com poderio
primário inferior, mas que massificada de vez em hora ganha força
1464
-, assumem o risco de,
contrariando os formadores de opinião, selecionar uma mínima parcela dos empreendedores
morais - muita vez, se não sempre, para atender aos reclamos de uma clientela que detém um poder ainda
1454
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 104.
1455
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 45: “A empresa
criminalizante é sempre orientada pelos empresários morais, que participam das duas etapas de criminalização; sem um
empresário moral, as agências políticas não sancionam uma nova lei penal nem tampouco as agências secundárias selecionam
pessoas que antes não selecionavam.”
1456
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca..., p. 50: “Os raríssimos casos de falta de cobertura servem para alimentar a ilusão
de que qualquer pessoa pode ascender até a cúspide social a partir da própria base da pirâmide (self made man), e servem
também para encobrir ideologicamente a seletividade do sistema, que através de tais casos pode apresentar-se como
igualitário.”
1457
Sobre a renormatização, veja ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro.
Direito..., v. I, pp. 53 e seguintes.
1458
Comentando o juramento hipocrático, ventila SOURNIA hipótese de renormatização. SOURNIA, Jean-Charles. História..., p.
49: “Na verdade, são numerosas as profissões que praticam os mesmos costumes e as mesmas solidariedades. Quando uma
regulamentação ou uma revolução as destrói, refazem-se rapidamente sob outra forma.”
1459
Sobre a sensação social de “in”segurança, veja SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 30 e 32.
1460
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 54.
1461
Apud ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 135.
1462
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 137.
1463
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 46.
1464
Sobre os gestores atípicos da moral, consulte SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 62.
218
superior ao destes, concentrando em suas mãos a hegemonia das decisões
1465
-, ora usando como
desculpa uma brutalidade singular que, de momento, os torna vulneráveis, ora apelando a uma
forçada conversão da invulnerabilidade em vulnerabilidade, por haverem “levado a pior parte
em uma luta de poder hegemônio.”
1466
Ad exemplum, na época medieva, quando a reparação
econômica não resolvia o conflito, “o modelo da luta ou do combate judicial era utilizado
como ritualização ou simbolismo da guerra física.”
1467
Porém, isso ainda o justifica a criminalização dos médicos, invulneráveis por
excelência. Antanho, “o medo foi, sem dúvida, a ferramenta principal para garantir a
imposição das burocracias modernas, para impor o Estado e o mercado, e para impor o
sistema punitivo que continua existindo até hoje.... Esse medo era o medo do outro’, também
o medo do ‘poder’, mas, em última instância, e sobretudo, medo.”
1468
Hoje, de acordo com SILVA-SÁNCHEZ,
“nossa sociedade pode ser melhor definida como a sociedade da ‘insegurança sentida’ (ou como
sociedade do medo). Com efeito, um dos traços mais significativos das sociedades da era pós-
industrial é a sensação geral de insegurança, isto é, o aparecimento de uma forma especialmente
aguda de viver os riscos. ...Por tal motivo, é mais razoável sustentar que, por múltiplas e diversas
causas, a vivência subjetiva dos riscos é claramente superior à própria existência objetiva dos
mesmos. Expressado de outro modo, existe uma elevadíssima ‘sensibilidade ao risco...’”
chegando SILVA-SÁNCHEZ, PRITTWITZ e KAUFMANN a afirmar que ‘o medo e a insegurança se
converteram no tema do século XX’”
1469
, frustrando, com isso, o objetivo do Iluminismo que,
segundo ADORNO e HORKHEIMER, seria o de “tirar o medo dos homens e de convertê-los em
senhores.”
1470
Assim, diz ANITUA, numa época em que havia “‘emergências’ em sociedades
evidentemente em risco... de morte para indivíduos em particular e para elevadas
percentagens das populações”, parece natural que, “embora muitas dessas pessoas realizassem
auto-flagelações para ganhar o favor da sobrevivência, parecia mais cômodo, para a maioria,
flagelar um terceiro: um ‘outro’.”
1471
1465
Foi exatamente o que aconteceu, quando da candidatura à Presidência da República, do então Ministro da Saúde, JOSÉ
SERRA. Para mais detalhes, veja ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro.
Direito..., v. I, pp. 484 e seguintes: “A hipótese de que o sistema penal do empreendimento neoliberal, vertido para o controle
dos contingentes humanos por ele mesmo marginalizados, opera mediante uma dualidade discursiva que distingue os delitos
dos consumidores ativos (aos quais correspondem medidas despenalizadoras em sentido amplo) dos delitos grosseiros dos
consumidores falhos (aos quais corresponde uma privação de liberdade neutralizadora) pode ser experimentada num rápido
exame de dois grupos de leis penais extravagantes. ...Num segundo grupo de leis encontraremos uma política criminal
diametralmente oposta à do primeiro. Podemos formatar boa amostragem com ...as “leis Serra” de n
o
9.677, de 2.jul.98 e n
o
9.695, de 20.ago.98 (para alavancar a candidatura presidencial do ministro da Saúde, a primeira delas eleva delirantemente as
penas dos crimes contra a saúde pública, e a segunda os inclui entre os “crimes hediondos”)....”
1466
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 49.
1467
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 44.
1468
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 83.
1469
SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão..., pp. 32 a 41.
1470
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2. ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1986 apud ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 132.
1471
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., pp. 83-84.
219
Indiretamente, então, não se deve desprezar o que ainda continua por detrás desse
pano de fundo, i. e, seguindo CERQUEIRA FILHO e GIZLENE NEDER, “a incapacidade de suportar o
gozo do Outro”, o que, inclusive, levou SLAVOJ ZIZEK a identificar isso, embora referindo-se a
outra situação, como “a matriz da intolerância social”, é dizer, o “ódio (ao gozo do outro) e
medo (do outro) implicam situações afetivo-políticas que têm uma inscrição no ideário
político ocidental, complementarmente às questões relacionadas com o campo
psicológico.”
1472
De modo que, numa época em que há uma “dificuldade de obter uma
autêntica informação fidedigna em uma sociedade - a da economia do conhecimento -,
caracterizada pela avalancha de informações
1473
-, os médicos, classe que na visão da maioria
é, tanto intelectual, quanto financeiramente superior, passam a ser invejados - certamente em
razão do “modo social hoje dominante do ‘individualismo de massas’, no qual a ‘sociedade não é uma
comunidade, mas um conglomerado de indivíduos atomizados e narcisisticamente inclinados a uma íntima
satisfação dos próprios desejos e interesses’”
1474
-, e, por ricochete, passam a sentir-se atemorizados
com sua corolária, embora eventual, eleição como perseguidos da vez. É preciso dizer que,
atualmente, é bem possível que a mera participação em empreitadas, mesmo que lícitas, por si
pode desencadear a perseguição dos esculápios pelos sistemas penais arbitrários, onde a
confusão entre o risco socialmente aceitável (alguns poucos erros cirúrgicos, e alguns
resultados inevitáveis em medicina, por erro profissional) e a necessidade - inventada pelas
agências políticas -, de autoafirmarem seu poder - mediante a renormatização, ou o redirecionamento da
criminalização secundária contra os conspiradores, mesmo que involuntários -, reafirmam-nos perante
estatísticas que os desafiam e os desacreditam perante os clientes.
Também, não deve ser descartado que uma notória identificação da maioria - e aqui
desimporta a classe social, senão, a maneira como as agências de comunicação publicam a notícia -, com a
vítima dos delitos médicos, redundando na incapacidade dos consumidores em aceitar os
riscos outrora permitidos, na medida em que se inclinam cada vez mais como vítimas
potenciais que inaceitam um progresso a todo custo.
1475
Os avalones, quando desprovidos de
alimento, abastecem-se dos próprios excrementos! Para isso, além da renormatização
homóloga imprópria (recriação de novas normas penais), os sistemas punitivos se valem da
renormatização homóloga própria
1476
(criação de novas normas penais com conteúdo
1472
CERQUEIRA FILHO, Gisálio; NEDER, Gizlene. Quando o eu é um outro. In Discursos Sediciosos, Crime, Direito e
Sociedade, 1° semestre 1996, ano 1, n. 1, pp. 90-91.
1473
SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 34.
1474
SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão..., pp. 35-36.
1475
Quem desejar saber mais sobre o assunto, deve consultar SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão..., pp. 30 a 57.
1476
Aqui, obviamente, os advérbios impróprio e próprio se referem não ao fato de se considerar salutar a renormativização,
senão, ao fato de se reputar que, fora a administrativização do Direito Penal, para o caso nem sempre plausível de haver
220
administrativo ou civil), em que, acompanhando ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, a
administrativização do Direito Penal”, mostra-se patente, caracterizando-se esta
“pela pretensão de um uso indiscriminado do poder punitivo para reforçar o cumprimento de
certas obrigações públicas..., o que banaliza o conteúdo da legislação penal, destrói o conceito
limitativo de bem jurídico, aprofunda a ficção do conhecimento da lei, põe em crise a concepção
do dolo, vale-se de responsabilidade objetiva e, em geral, privilegia o Estado em sua relação com
o patrimônio dos habitantes. Nesta modalidade, o poder punitivo é distribuído mais por acaso do
que nas áreas tradicionais dos delitos contra a propriedade, tendo em vista que a situação de
vulnerabilidade ante o mesmo depende do mero fato de participar de empreendimentos
lícitos.”
1477
Não é à toa que a glândula odorífera da capivara-macho, demarcadora do seu
território, localiza-se acima, e não abaixo do focinho!
E, nada é mais oportuno a essa empreitada punitiva que as leis penais em branco,
mediante as quais se elegem como crimes tipos penais desassociados de qualquer concepção
moral, ética, social ou profissional, porque lastreados em meras obrigações públicas,
denotativas de pura formalidade incognoscitível e inapreensível aos destinatários médicos.
Ora, proscritos os amiúde utilizados argumentos de que as leis penais em branco se justificam
em razão de naturais motivos - quais sendo, a oportunidade e a contingência das matérias que elas tratam
que, por notadamente transitórias devem, de corolário, ser necessariamente neutras, pois, do contrário, seriam
uma contradictio in adiectio, onde a remissão a outras agências normativas, muito mais ágeis e muito menos
burocratizadas, perderia sua justificativa, podendo seu conteúdo ficar a cargo da agência legiferativa
constitucional
1478
-, e justamente pelas incontestes razões trazidas à baila por ZAFFARONI, BATISTA,
ALAGIA e SLOKAR, é dizer, as de que “o argumento das matérias instáveis que as leis penais em
branco comumente miram não neutraliza sua inconstitucionalidade, ao aduzir que as pidas
mudanças não poderiam ser acompanhadas pelo legislador penal”, pois, “não matéria que
requeira mudanças tão rápidas e que seja, seriamente, carente de previsão punitiva;” enquanto
que, “por outro lado, essa é precisamente a irrenunciável função constitucional do
legislador”
1479
, é que elas, também, não merecem ser reconhecidas.
Por elas, fica fácil aos sistemas punitivos remanejarem sua seletividade, e tanto na
criminalização primária, na secundária, quanto na terciária, visto que, revestidas de uma
legalidade formal - de todo inconstitucional -, passam a sensação à clientela de estar sendo feito o
que é certo, o que é melhor para elas, o que é mais justo, e o que é, temporalmente, mais ágil,
além de aparentar “a ilusão de irrestrita mobilidade social vertical, configurando a outra face
do mito de que qualquer pessoa pode ascender até a cúspide social a partir da própria base da
necessidade de renormativização, deve ela o ser pela via exclusivamente administrativa ou civil, mais própria que a
imprópria renormativização pura ou impuramente penal.
1477
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 50.
1478
DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema..., p. 406.
1479
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 206.
221
pirâmide (self-made man)” e de servir “também para encobrir ideologicamente a seletividade
do sistema, que através de tais casos pode apresentar-se como igualitário”
1480
, no momento
em que, com elas, arremeda-se a chance de que haverá iustitia, embora não qu sera tamen!
Todavia, ainda um pormenor que deve ser enfrentado para coerência do que até
aqui foi afirmado.
Ora,
“o cavaleiro solitário que luta contra a morte é um santo. Quem, jamais, ousaria pensar qualquer
coisa de mau contra o médico? Hoje são comuns os processos contra os médicos por imperícia.
Ser médico transformou-se num risco. Porque ninguém mais acredita na sua santidade. Talvez
porque eles tenham deixado mesmo de ser santos... Mas naquele tempo as pessoas julgavam que o
médico era um santo, e porque as pessoas pensavam assim, eles eram santos.”
1481
Se, como dito acima, os médicos são os profissionais vulneráveis da vez - mormente
diante das não menos perigosas pretensões da esquerda punitiva
1482
, pois, da sua disputa com os constituintes
da direita penal deu na lei de crimes hediondos
1483
, que igualmente descobriu, ou melhor, iludiu-se ao enxergar
no Direito Penal “poderosos instrumentos de manutenção e reprodução da dominação e da exclusão”, também
da “criminalidade dourada”
1484
, mediante os quais, assim, “procuram se defender dentro do mesmo círculo
férreo da violência, agora de antiviolência mimética”
1485
-, como explicar o fato de a maioria deles
não ser condenado, apesar de haver uma pletora de leis penais em branco desfavorecendo-os?
Será que a resposta estaria, analisando questão um tanto diversa, no que disse PAVARINI, ou
seja, que “os níveis efetivos de repressão... dependem bem pouco da distribuição desigual de
uma penalidade artificial no social, mas da demanda social de repressão, ou seja, da demanda
social por maior ou menor penalização.”?
1486
Primus, não se pode esquecer que eles, sendo também empresários morais, malgrado
não consigam, ao menos eventualmente, participar da formatação da criminalização primária,
influenciam, decisivamente - em razão de que a perda da invulnerabilidade é aparente -, na
1480
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca..., p. 50.
1481
ALVES, Rubem. O médico..., p. 18.
1482
Em verdade, trata-se esse movimento de algo pendular, como consta em GROSSI, José Gerardo. Nilo Batista: advogado e
abolicionista. In Nilo Batista: a luta pelo Direito. Rio de Janeiro: Chronos, publicação da Unirio, 2007, ano 2, n. 4, p. 16: “No
Brasil, a ‘direita’ e a ‘esquerda’ têm concorrido, permanentemente, ao troféu de ‘a mais punitiva’.”; veja, ainda, WACQUANT,
Loïc. As prisões..., p. 21: “Os mesmos - países, partidos, políticos e professores - que ontem militavam, com o sucesso
insolente que se pode constatar dos dois lados do Atlântico, em favor de ‘menos Estado’ para o que diz respeito aos
privilégios do capital e à utilização da mão de obra, exigem hoje, com o mesmo ardor, ‘mais Estado’ para mascarar e conter
as consequências sociais deletérias, nas regiões inferiores do espaço social, da desregulamentação do trabalho assalariado e
da deterioração da proteção social.”; veja, também, ARENDT, Hannah. Sobre..., p. 24.
1483
BATISTA, Nilo. A juventude acadêmica e a questão criminal: discurso de abertura do XXV° ERED - Encontro Regional
dos Estudantes de Direito. In Nilo Batista: a luta pelo Direito. Rio de Janeiro: Chronos, publicação da Unirio, 2007, ano 2, n.
4, p. 125: “... lei dos crimes hediondos, ...produto parlamentar de uma risível quizila entre constituintes da direita penal e da
esquerda punitiva.”
1484
KARAM, Maria Lúcia. A esquerda..., pp. 79-80.
1485
BOFF, Leonardo. A violência contra os oprimidos: seis tipos de análise. In Discursos Sediciosos, Crime, Direito e
Sociedade, 1° semestre de 1996, ano 1, n. 1, p. 104.
1486
PAVARINI, Massimo. O instrutivo caso italiano. In Discursos Sediciosos, Crime, Direito e Sociedade, 2° semestre 1996,
ano 1, n. 2, p. 69.
222
seletividade da criminalização secundária.
1487
De sorte que essa esporádica culpabilidade pela
vulnerabilidade pode ser, em certa medida, retida, controlada ou minimizada pelo esforço
pesoal do candidato à própria vulnerabilidade
1488
, ad instar do que ocorre, mutatis mutandis -
mudanças estas bem superficiais -, em fisiologia, com o chamado “efeito de ‘limiar’” em que “um
mecanismo químico se desencadeia quando um dos constituintes da reacção atinge um
certo nível de concentração”, de sorte que é “o estudo da depuração” - e aqui não nenhuma
ironia -, que “mostra a partir de que taxa alula renal exerce a sua acção, e com que
intensidade.”
1489
Secundus, inobstante sua episódica culpabilidade por uma vulnerabilidade forjada,
esta, na lição de ZAFFARONI, está condicionada e limitada pela culpabilidade pelo injusto
1490
-
sob pena de, ao revés, aceitar-se, passivamente, a irracionalidade do poder punitivo e despencar em um Direito
Penal de autor
1491
-, que, mesmo que alinhavado sob a forma de uma lei penal em branco -
notadamente inconstitucional, seja pela remissão legiferativa indevida, seja porque edificada com palavras
incertas e indeterminadas, impedindo, com isso, um acesso doloso típico por parte do agente -, facilita a
demarcação e a eliminação, pelas agências responsáveis pela secundariedade criminalizadora,
da própria culpabilidade pela vulnerabilidade, retirando-os daquela condição provisória de
engodo.
Tertius, o poder arbitrário exercido pelas agências começou a se descortinar, passando
a ser considerado como anormal pelos vitimizados, fragilizando-se com isso a normatização
atual que condiciona a mantença daquele poder ao reconhecimento de uma desnormatização
da lege lata e uma subsequente renormatização urgentes, reautenticando aquele status de
vitimizados, seja de maneira homóloga própria ou imprópria, como antevisto. Ao que consta,
e isso parece de uma evidência inafastável, entre a opção pela renormativização homóloga
própria civil e administrativa, têm preferido as agências políticas e os clientes-consumidores-
pacientes optar por aquela, ainda que, para tanto, utilizem-se, ambos - respectivamente, mediante
uma programação criminalizante primária ou secundária ratificadora da pretensão civil, e, mediante o
ajuizamento da ação penal antes ou pari passu com a cível, sobretudo para garantir a reparação econômica -,
da via indireta de uma renormativização subsidiária penal administrativizada.
1492
Opção essa
que, em nenhuma medida, desmente, no presente, a repetição de um talvez não infeliz passado
onde, diante da ocorrência de um dano provocado, “isso nem sempre significava que ocorreria
1487
Para tomar informação sobre isso, veja a monografia de GROSNER, Marina Quezado. A seletividade..., passim.
1488
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca..., pp. 49-50.
1489
SOURNIA, Jean-Charles. História..., p. 299.
1490
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca..., p. 279.
1491
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca..., p. 279.
1492
Sobre o assunto, veja ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I,
p. 53.
223
a morte; na verdade, os afetados costumavam exigir uma compensação. Tal contraprestação
econômica costumava resolver o conflito.”
1493
Ipso facto, o feitiço pode se virar em desfavor do feiticeiro ou, ao menos, servir de
contrafeitiço à sua própria magia. O que, sinceramente, não ajuda em nada, pois sempre se
tratará de poder punitivo, alterada apena a mão que o detem, mão essa que sabe, de antemão,
na percepção de VERA MALAGUTI BATISTA, que “utilizando amplamente o exercício de poder de
sequestro e estigmatização, o verdadeiro e real poder do sistema penal não é [será] o repressor
mas o exercício positivo, configurador.”
1494
1493
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 44.
1494
BATISTA, Vera Malaguti. Drogas..., p. 234.
224
4 OS PRINCÍPIOS
1495
(MEIOS OU FINS?) DA SUBSIDIARIEDADE
1496
E DA
FRAGMENTARIEDADE
1497
Segundo ROXIN, um e outro significam que
la protección de bienes jurídicos no se realiza sólo mediante el Derecho penal, sino que a ello
ha de cooperar el instrumental de todo el ordenamiento jurídico. El Derecho penal sólo es
incluso la última de entre todas las medidas protectoras que hay que considerar, es decir que
sólo se le puede hacer intervenir cuando fallen otros medios de solución social del problema -
como la acción civil, las regulaciones de policía o jurídico-técnicas, las sanciones no penales, etc
-. Por ello se denomina a la pena como la ‘ultima ratio de la política social’ y se define su misión
como protección ‘subsidiaria’ de bienes jurídicos. En la medida en que el Derecho penal sólo
protege una parte de los bienes jurídicos, e incluso ésa no siempre de modo general, sino
frecuentemente (como el patrimionio) sólo frente a formas de ataque concretas, se habla también
de la naturaleza ‘fragmentária’ del Derecho penal.
1498
Quem, porém, debruçar-se sobre o opúsculo vaticinador do escritor espanhol SILVA-
SÁNCHEZ e sobre a infeliz
1499
- embora não possamos desistir de derrotá-la ou, melhor, de reduzir seu
contingente, visto que a batida em retirada do poder punitivo, por conta da adoção do abolicionismo, pode dar
azo à preocupação de FERRAJOLI de que ele seria substituído pelo poder vindicativo
1500
, ou à efetivação do
receio do saudoso RADBRUCH, de que “com a abolição do Direito Penal todos cairão uns sobre os outros”, pois,
parece evidente que “esta espécie de abolicionismo quer exorcizar o diabo com o belzebu”
1501
-, expansão
do Direito Penal que perpassa todo seu livro, não com pouca facilidade perceberá que as
afirmações de BINDING - garimpador do princípio da subsidiariedade
1502
-, sobre a inafastabilidade
deste, até pouco repetidas acriticamente, estão perdendo seu posto. E, não porque
estivessem elas, na ocasião ou mesmo hoje, equivocadas, pois, em toda medida, tecnicamente
1495
NILO BATISTA enquadra, ambos (subsidiariedade e fragmentariedade), na vala incomum do princípio da intervenção
mínima: “Ao princípio da intervenção mínima se relacionam duas características do direito penal: a fragmentariedade e a
subsidiariedade.” In BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 85;
CLAUS ROXIN, por sua vez, entende-os contidos no princípio da proporcionalidade: “Esta limitación del Derecho Penal se
desprende del principio de proporcionalidad, que a su vez se puede derivar del principio del Estado de Derecho de nuestra
Constitución. Como el Derecho Penal posibilita las más duras de todas las intromisiones estatales en la libertad del
ciudadano, solo se le puede hacer intervenir cuando otros médios menos duros no prometan tener un éxito suficiente.” In
ROXIN, Claus. Derecho..., pp. 65-66.
1496
Apresentando sinônimos (princípio da ultima ratio, da acessoriedade, da intervenção mínima), e indicando autores que,
ao contrário, afirmam serem todos de conteúdo meramente semelhante, GRECO, Luís Filipe. Breves..., p. 150, nt. 344.
1497
Conquanto alguns escritores insistam em utilizar os termos “subsidiaridade” e “fragmentaridade”, parecem
gramaticalmente mais corretas as expressões conforme constantes no texto.
1498
ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general, fundamentos, la estrutura de la teoria del delito, t. I. 2. reimpressão. Madrid:
Civitas, 2003, p. 65.
1499
Indiferentemente de quantas velocidades vá possuir o Direito Penal, o que importa, infelizmente, é que todas elas, bem ou
mal, alargam a bitola usual desta ferramenta. Quem quiser saber mais sobre as referidas velocidades, ver SILVA-SÁNCHEZ,
Jesús-María. A expansão..., passim.
1500
FERRAJOLI, Luigi. Direito..., p. 201: “...defenderei, contra as hipóteses propriamente abolicionistas e contra aquelas
substitutivas, a forma jurídica da pena, enquanto técnica institucional de minimização da reação violenta à deviança
socialmente não tolerada e enquanto garantia do acusado contra os arbítrios, os excessos, e os erros conexos a sistemas não
jurídicos de controle social.”
1501
HASSEMER, Winfried. Introdução..., p. 432.
1502
Consoante BATISTA, Nilo. Introdução..., p. 86: “Quem registrou pela primeira vez o caráter fragmentário do Direito Penal
foi BINDING, em seu Tratado de Direito Penal Alemão Comum - Parte Especial (1896)...”
225
guardadas as devidas necessidades
1503
, deveriam as agências
1504
políticas - que são as
destinatárias primárias
1505
e quase exclusivas do mesmo, porque arbitrárias
1506
, inobstante o equivocado
respeito atualmente alcançado pela referência imposta pelo “bem jurídico”
1507
, desassociado da sua necessária
ofensa -, selecionadoras de produto
1508
e etiquetadoras marginais,
1509
passar a respeitar a sua
incolumidade contra ofensas
1510
- mas, nem sempre considerando a ofensividade ao bem jurídico,
tampouco, sempre, o bem em si -, no sentido de somente elegerem como crime aquelas condutas
essencialmente lesivas das relações intersubjetivas, preenchidas objetivamente pelo bem
jurídico - embora esteja havendo um importante recrudescimento do “direito subjetivo” como parâmetro -,
sem ficar autorizado qualquer desprezo ao fato de que “o princípio da lesividade a um bem
jurídico penalmente tutelado como limite à criminalização não deve, concomitantemente,
legitimar a criminalização nem obrigar, em todos esses casos, a imposição de uma pena.”
1511
Mas, repita-se, não é por qualquer obsolescência ou incorreção do princípio da
subsidiariedade que ele foi, descaradamente, posto de lado. Não mesmo. O fato é que o
1503
Como no caso em que a evolução social exige a tipificação de novos delitos, ad instar, dos informáticos. Modelar,
GRECO, Luís Filipe. Breves..., pp. 152-153: “Depois da 2
a
Guerra, o conceito foi retomado para exigir amplas
descriminalizações no campo do Direito Penal sexual, e a partir da metade da década de 70, passa ele a ser utilizado
sobretudo em sentido contrário, para exigir do Direito Penal que atue no sentido de proteger novos bens jurídicos, como o
meio ambiente ou o funcionamento da economia etc.”
1504
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, sobretudo a partir da
página 43: “A referência aos entes gestores da criminalização como agências tem como objetivo evitar outros substantivos
mais valorados, equívocos ou inclusive pejorativos (tais como corporações, burocracias, instituições etc.). Agência (do latim
agens, particípio do verbo agere, fazer) é empregada aqui no sentido amplo e dentro do possível neutro de entes ativos (que
atuam).”
1505
Conforme BATISTA, Nilo. Introdução..., p. 85: “O princípio da intervenção mínima não está expressamente inscrito no
texto constitucional (de onde permitiria o controle judicial das iniciativas legislativas penais) nem no Código Penal,
integrando a política criminal; não obstante, impõe-se ele ao legislador e ao intérprete da lei, como um daqueles princípios
imanentes a que se referia CUNHA LUNA, por sua compatibilidade e conexões lógicas com outros princípios jurídico-penais,
dotados de positividade, e com pressupostos políticos do estado de direito democrático.” Outrossim, sobre a fase pré-
legislativa, ver RIPOLLÉS, José Luis Díez. A racionalidade das leis penais: teoria e prática. São Paulo: RT, 2005, pp. 20 e
seguintes.
1506
ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general, fundamentos, la estrutura de la teoria del delito, t. I. 2. reimpressão. Madrid:
Civitas, 2003, p. 67: “Por ello el principio de subsidiariedad es más una directriz políticocriminal que un mandato
vinculante; es una cuestión de decisión de política social fijar hasta qué punto el legislador debe transformar hechos
punibles en contravenciones o si considera adecuada la desincriminación...”
1507
Fazendo um levantamento dos vários aspectos desta questão, decisivo ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general,
fundamentos, la estrutura de la teoria del delito, t. I. 2. reimpressão. Madrid: Civitas, 2003, pp. 67 e segs; tropicalizando a
teoria do bem jurídico, inclusive com influências infringentes na obra de ROXIN, a impressionante obra de TAVARES, Juarez
Estevam Xavier. Teoria..., p. 202 e seguintes.
1508
Tarefa na qual influenciam elementos de natureza vária como o medo e a opinião pública. Sobre isto, ver RIPOLLÉS, José
Luis Díez. A racionalidade..., pp. 20 e seguintes.
1509
ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general, fundamentos, la estrutura de la teoria del delito, t. I. 2. reimpressão. Madrid:
Civitas, 2003, p. 67: “A diferencia de lo que ocurre en la cuestión de la protección de bienes jurídicos, en que el legislador
está sometido a obligados límites relativamente estrictos, la idea de subsidiariedad deja abierto un amplio margen de juego
al arbitrio del legislador... Y si no hay certeza sobre si otros medios más leves (como las meras sanciones civiles) prometen o
no un éxito suficiente, al legislador le está atribuída además una prerrogativa de estimación.
1510
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho..., p. 486: “Se trata de una premisa que
consiste en un juicio falso: las normas protegen o tutelan bienes jurídicos. Este juicio, al verificarse la operatividad del poder
punitivo, al menos en la mayoria de los casos, resulta con un valor de verdad falso. ...El derecho penal recibe el bien
jurídico, ya tutelado y la norma que se deduce del tipo no hace más que anunciar un castigo para ciertas formas particulares
y aisladas de lesión al mismo, incluso cuando lo hace por expreso mandato constitucional o internacional. Estos mandatos
ordenan la crimnalización primaria de algunas acciones que los afectan, pero aunque no lo hiciesen, no por ello dejarían de
ser bienes jurídicos.”
1511
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., pp. 144-145.
226
legislador de ocasião, mais preocupado em justificar os meios com os fins
1512
, cria ou
endurece condutas penais que, à toda visão, deveriam compor o menu de outros ramos do
Direito, como o Civil, o Administrativo etc.
1513
- ou até mesmo, como pretende HASSEMER criando-se um
tertium genus, qual sendo um “direito de intervenção”
1514
-, encharcando o Direito Penal com regras
que não se compadecem, quase nunca, com o caráter subsidiário que este deve continuar
tendo, é dizer, de somente recepcionar aquelas condutas eminentemente graves porque
insuportáveis ao convívio social, pois delas não pode, ao menos o nessa mínima medida,
sequer dispor. Acontece, porém, que
“a criminalização primária é um programa tão imenso que nunca e em nenhum país se pretendeu
levá-lo a cabo em toda a sua extensão nem sequer em parcela considerável, porque é
inimaginável. A disparidade entre a quantidade de conflitos criminalizados que realmente
acontecem numa sociedade e aquela parcela que chega ao conhecimento das agências do sistema
é tão grande e inevitável que seu escândalo não logra ocultar-se na referência tecnicista a uma
cifra oculta.”
1515
Sabendo disso, e, apesar disso, insistem as agências políticas em entupir o Direito
Penal com mais crimes, desprezando o princípio da subsidiariedade, já tão maltratado.
Entrementes, não deve ser esquecida a notícia dada por LUÍS GRECO, de que, citando
KLAUS TIEDEMANN, haveria um grupo minoritário de autores “já algumas décadas fazendo
algumas colocações relevantes” no sentido de questionar, “principalmente, a premissa da qual
parte o referido princípio” (o da subsidiariedade),
“a saber: a de que a sanção penal seja sempre a mais grave. Não está claro que o direito
administrativo e o direito civil podem atingir o cidadão de modo muito mais severo, com multas
exorbitantes, sanções de perda do cargo no caso de funcionário público, proibições de licitar e
indenizações imprevisíveis - compare-se a cesta básica paga em processos criminais de
competência do juizado especial com o dano moral imposto também no juizado, mas desta vez
cível -, como também que o direito penal dispõe de muito mais garantias
1516
, em especial de
ordem processual, do que os dois outros ramos do direito. Ou seja, muitas vezes a intervenção do
direito penal far-se-ia necessária, não porque ele, como meio mais grave, devesse sempre entrar
em cena por último e sim porque ele já não seria o meio mais grave.”
1517
Acontece, porém, que a justificativa do surgimento deste princípio, e do mister da sua
mantença, remonta à necessidade de se evitarem cada vez mais as legislações de
1512
RIPOLLÉS, José Luis Díez. A racionalidade..., passim, e SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão..., passim.
1513
ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general, fundamentos, la estrutura de la teoria del delito, t. I. 2. reimpressão. Madrid:
Civitas, 2003, p. 66: “En otros casos - p. ej. en algunas formas de conductas nocivas para el médio ambiente - los deveres y
sanciones administrativas pueden ser a menudo más eficaces que la persecución penal, que en estos casos frecuentmente
tropieza con dificultades para aclarar la responsabilidad individual. También ofrece posibilidades que com mucho no se han
agotado aún a efectos de política jurídica la sustitución de soluciones penales por soluciones del Derecho Civil.”
1514
Que pela imprecisão já mereceu a crítica de SILVA-SÁNCHEZ: “O ponto-chave reside, pois, em admitir essa graduação da
vigência das regras de imputação e dos princípios de garantia no próprio seio do Direito Penal, em função do concreto
modelo sancionatório que este acabe assumindo. Algo que tem muitos pontos de contato com a proposta, certamente ainda
muito imprecisa, efetuada por HASSEMER e outros, de construir um Interventionsrecht (Direito de Intervenção), entre o
Direito Penal nuclear e o Recht der Ordnungswidrigkeiten, entre o Direito Civil e o Público, para ilícitos em matéria de
drogas, econômicos, ecológicos etc.” In SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 140.
1515
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 43-44.
1516
Chamada de “primeira velocidade”. Quem quiser saber mais sobre as acelerações do Direito Penal, ver SILVA-SÁNCHEZ,
Jesús-María. A expansão..., passim. Sobre o texto, ver GRECO, Luís Filipe. Breves..., pp. 171-172.
1517
GRECO, Luís Filipe. Breves..., pp. 171-172.
227
emergência
1518
, tão ao sabor fashion ditado pelo desespero da sociedade que, nesciamente,
clama pela atuação do Direito Penal que, de muito fetichizado, parece socorrer, ainda que
paliativamente, toda vez que alguma ocorrência mais chamativa alicia sua atenção da
mesma
1519
. De sorte que, a despeito do pesar que o pessimismo de NILO BATISTA encerra -
conquanto dirigido a outra especialidade
1520
-, assiste-lhe razão quando afirma que o princípio da
subsidiariedade perdeu a posição que ocupava, ou mesmo que pretendia ocupar, de retentor de
certas demandas que, se a princípio se cobririam com o manto do Direito Penal, a posteriori, e
por motivos incontáveis, ficaram a descoberto deste, com a cabeça e os pés fora do leito de
PROCUSTO, passando, portanto, a velar sua solução no leito mais amplo, e menos traumático do
Direito Administrativo, do Direito Civil et reliqua.
1521
Todavia, ainda que com outra mensura,
realmente o princípio da subsidiariedade sempre existiu e continuará existindo, mudando-se,
tão somente o formato e o tamanho do medidor responsável por dizer quais condutas
continuarão, e quais não, sob a égide do Direito Penal. Maior ou menor a veste, isso não
importa. Sempre será démodé a indumentária, pois as agências acabam selecionando aqueles
que circulam pelos espaços públicos com o figurino social dos delinquentes, prestando-se à
criminalização - mediante suas obras toscas - como seu inesgotável combustível.”
1522
Retornando, tanto antes, quanto agora, o Direito Administrativo e o Direito Civil,
exemplarmente, já abocanhavam grande parte de condutas que, sem qualquer problema,
poderiam muito bem amoldar-se, tecnicamente, a um crime
1523
- se é que isso seja possível, pois
não definição técnica de crime, senão escolha, pelo sistema punitivo, mediante suas agências primárias, do
que o será ou não -, não fosse isso por si indesejável, haja vista ser mister uma contenção
do poder punitivo, e não um seu aumento. E, tanto isso é verdade que muitas destas condutas
ilícitas civis ou administrativas, que até bem pouco tempo não eram consideradas crimes,
1518
Ou melhor, no dizer de SERGIO MOCCIA, a “perenização da emergência” apud SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A
expansão..., p. 151; também, FERRAJOLI, Luigi. Direito..., pp. 649 e seguintes.
1519
Sobre o assunto, e seus pormenores, ver a obra de RIPOLLÉS, José Luis Díez. A racionalidade..., passim.
1520
BATISTA, Nilo. Introdução..., pp. 89-90: “Especial cuidado deve ter o legislador da intervenção econômica do Estado,
evitando a tentação de socorrer-se permanentemente do Direito Penal; essa tendência penalística “inflacionária”, como a
denominou BRICOLA, pode questionar o princípio da intervenção mínima”.
1521
BATISTA, Nilo. Introdução..., pp. 86-87: “A subsidiariedade do Direito Penal, que pressupõe sua fragmentariedade, deriva
de sua consideração como ‘remédio sancionador extremo’, que deve portanto ser ministrado apenas quando qualquer outro se
revele ineficiente; sua intervenção se dá ‘unicamente quando fracassam as demais barreiras protetoras do bem jurídico
predispostas por outros ramos do Direito’. Como ensina MAURACH, não se justifica ‘aplicar um recurso mais grave quando se
obtém o mesmo resultado através de um mais suave: seria tão absurdo e reprovável criminalizar infrações contratuais civis
quanto cominar ao homicídio tão-só o pagamento das despesas funerárias’. Foi observado por ROXIN que a utilização do
Direito Penal ‘onde bastem outros procedimentos mais suaves para preservar ou reinstaurar a ordem jurídica’ não dispõe da
‘legitimação da necessidade social’ e perturba ‘a paz jurídica’, produzindo efeitos que afinal contrariam os objetivos do
Direito.”
1522
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 47.
1523
É o que acontece, v. g., com o furto de uso, onde a ofensa do bem jurídico, aceitável sob o ponto de vista penal-social,
não esbarraria em atécnica, se o legislador previsse o contrário. Não se podendo dizer o mesmo diante de um discurso que,
até o presente momento, temos sustentado como contencionista do poder punitivo!
228
agora, passaram a sê-lo.
1524
Portanto, o princípio da subsidiariedade continua existindo,
embora acomodado em vasilhame elástico, preenchido - in these -, por uma perfumaria nada
agradável advinda do aumento da proteção contra as ofensas a bens jurídicos nem sempre tão
exigentes
1525
sob o ponto de visada técnico
1526
, ou melhor, de um discurso racional e real. Em
síntese, a imensa disparidade entre o programa de criminalização primária e suas
possibilidades de realização como criminalização secundária obriga a segunda a uma seleção
que, em regra, recai sobre malfadadas reiterações de empreendimentos ilícitos que insistem
em seus fracassos, através dos papéis
1527
que o próprio poder punitivo lhes atribui ao reforçar
sua associação com as características de certas pessoas mediante o estereótipo seletivo.
1528
E
esse é mais um golpe a favor do princípio da subsidiariedade, cujo armamento é conduzido
pela divergência do discurso penal atual e a realidade - inexistente -, da qual ele se ressente.
Graças a essas defesas ainda que isoladas, quem, detivendo a curiosidade suficiente,
perscrutar a literatura doméstica e alienígena perceberá que grande parte da doutrina mantém-
no vivo ao conceituá-lo como sendo o princípio que pauta pela atribuição de somente outorgar
ao Direito Penal autorização de interferir de forma útil, adequada e suficiente naquelas
ofensas à liberdade dos cidadãos que não puderem ser resguardadas mediante meios estatais
ou privados - inclusive extrajurídicos, como os meios políticos e sócio-políticos
1529
-, igualmente úteis,
predispostos ou não, para coibir a prática destes comportamentos. A sociedade, não faz muito,
começou a perceber que o Direito Penal não poderia continuar servindo de panacéia
1530
para
males, digamos, nada ou menos ofensivos, devendo referidos ataques, involuntários ou não, a
certos bens jurídicos - tradicionalmente renunciáveis e irrelevantes, sobretudo em relação a seus titulares -,
ser custeados pelo funcionamento de outros meios igual e proporcionalmente menos
traumáticos, cujos reflexos no estancamento da hiperinflação legislativa, e no enxugamento
das normas penais existentes, infelizmente, tem demonstrado um contrassenso e, até
1524
Artigo 20, da Lei n
o
9.434, de 04 de fevereiro de 1997: “Art. 20. Publicar anúncio ou apelo público em desacordo com o
disposto no art. 11: Pena - multa, de 100 (cem) a 200 (duzentos) dias-multa.”
1525
Sobre essa evolução, e sobre o conceito e toda a discussão em torno do instituto “bem jurídico”, ver TAVARES, Juarez
Estevam Xavier. Teoria..., p. 179 e seguintes; veja, também, GRECO, Luís Filipe. Breves..., p. 150.
1526
Obviamente, na prática, não é este o discurso advindo das agências políticas promotoras de um Direito Penal máximo e
absoluto.
1527
Que nada têm a ver com aqueles escritos por LUHMAN, Niklas. Sociologia do Direito. In coleção biblioteca tempo
universitário, tt. I e II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, passim; sobre mais do mesmo JAKOBS, Günther. Tratado de
Direito Penal: teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 118; e, mais do menos, ZAFFARONI,
Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, v. II, I, p. 190.
1528
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 51.
1529
QUEIROZ, Paulo. Caráter subsidiário, p. 76 e seguintes apud GRECO, Luís Filipe. Breves..., p. 170, nt. 346.
1530
SOURNIA, Jean-Charles. História..., p. 40: “A tradição atribui-lhe (a ESCULÁPIO) uma descendência numerosa. Primeiro
duas filhas, cujos nomes figuram na nossa linguagem corrente: HÍGIA, que ensina as maneiras mais sãs de conduzir a nossa
vida e nos legou a higiene, e PANACEIA, ‘aquela que tudo cura’, que se encontra na origem dos medicamentos.”
229
mesmo, ou uma omissão
1531
velada, ou uma omissão conveniente movida por interesses
políticos vergonhosos.
1532
Aqui, deve-se chamar a atenção para um phenomeno que vem se
soerguendo perigosamente. Trata-se, referem ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, de “um
fenômeno relativamente recente... chamado administrativização do direito penal, que se
caracteriza pela pretensão de um uso indiscriminado do poder punitivo para reforçar o
cumprimento de certas obrigações públicas (em especial no âmbito fiscal, societário,
previdenciário etc.)”
1533, 1534
como e. g., no âmbito da medicina pública - onde funcionem os
famigerados aparatos organizados de poder
1535
-, “o que banaliza o conteúdo da legislação penal,
destrói o conceito limitativo de ofensa ao bem jurídico, aprofunda a ficção do conhecimento
da lei, põe em crise a concepção do dolo” e “vale-se de responsabilidade objetiva. ...Nesta
modalidade, o poder punitivo é distribuído mais por acaso do que, volitivamente, nas áreas
tradicionais dos delitos contra a propriedade, tendo em vista que a situação de vulnerabilidade
ante o mesmo depende do mero fato de participar de empreendimentos ilícitos.”
1536
. Mas, daí
dizer que o princípio da subsidiariedade visa a utilizar o poder punitivo para fins, digamos,
mais graves, em que somente a aplicação de uma das sanções previstas no art. 32, do Código
Penal, teria, in these, condão de intimidar, evitando sua prática, ou de retribuir, prevenindo a
reincidência geral ou específica - naturalmente contrafática -, se não existem dados reais
suficientes para delimitar e lastrear o que deveria ser por aquele atendido, é ir longe demais,
porquanto muita coisa estaria ficando na sala de espera da política criminal, em evidente e
periclitante trânsito sobre a tabula rasa do perigo que políticas idealistas, simbólicas e
promocionais apresentaram e anseiam reapresentar. Então, embora hoje se entenda que a
delimitação do horizonte de projeção do Direito Penal se concentra na explicação de
complexos normativos que habilitam uma forma de coação estatal, que é o poder punitivo,
caracterizada por sanções diferentes daquelas empregadas pelos demais ramos do saber
jurídico, ou seja, as penas
1537
, estas não podem ter qualquer influência no seu horizonte de
projeção, pois ele, como ramo do saber jurídico, mediante a interpretação das leis penais, deve
propor aos juízes um sistema orientador de decisões que contenham e reduzam o poder
1531
Para tanto, basta-se analisar a quantidade de novas leis penais que, frequentemente surgem, inclusive, ampliando ora os
tipos penais, ora as penas, em vez de diminuir ou eliminar pelo menos algum de ambos. Sobre o assunto, consultar SILVA-
SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão..., passim.
1532
Denunciando os inconvenientes de uma legislação modista, definitivas, desanimadoras, alarmantes, mas, sobretudo,
realistas, as palavras de RIPOLLÉS, José Luis Díez. A racionalidade..., passim.
1533
Exemplo palmar pode ser encontrado no artigo 20, da Lei n
o
9.434, de 04 de fevereiro de 1997: “Art. 20. Publicar
anúncio ou apelo público em desacordo com o disposto no art. 11: Pena - multa, de 100 (cem) a 200 (duzentos) dias-multa.”
1534
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 50.
1535
Sobre o tema dos aparatos organizados de poder, ver AMBOS, Kai. Direito Penal: fins da pena, concurso de pesoas,
antijuridicidade e outros aspectos. Porto Alegre: SAFE, 2006, p. 47.
1536
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 50.
1537
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 39.
230
punitivo para impulsionar o progresso do Estado constitucional de direito
1538
, e não, que o
ampliem.
O que, em toda medida, racionaliza a solução que, justamente por isso, não pode ser
considerada desimportante e, daí, abandonada.
1539
Não bastasse, não parece ter razão LUÍS
GRECO quando, ancorando-se na autorizada doutrina tedesca sustenta
1540
que o princípio da
subsidiariedade seria uma concreção do da proporcionalidade
1541
mediante o qual,
amparando-se na necessidade, haverá uma obrigação de eleição de qual meio será ou não
escolhido para fins restritivos, e qual ramo o disporá sob sua égide, e justamente porque, à
toda evidência, enquanto o princípio da proporcionalidade se apresenta caso a caso, o da
subsidiariedade é anterior a essa disputa, servindo, inclusive, como pressuposto para a própria
eleição prévia - confortando-se mais com a função primária descriminalizadora ou não criminalizadora das
agências políticas
1542
-, de qual delas, no caso sub examine, deverá ou não ser atendida pelo
magistrado da ocasião que somente pode acatar o escrutínio já legitimado por aquelas, quando
da criminalização secundária, sempre capenga. Por outro lado, enquanto o da
proporcionalidade pressupõe opções ou, pelo menos, alternativa, ou seja, é algo ainda por se
decidir, o da subsidiariedade é algo pronto, que as agências políticas observam considerando
estatísticas, vontades populares etc.
1543
Assim, o da subsidiariedade se encontra refletido,
exatamente, no poder punitivo atual, tal como posto, enquanto que, se a questão sub iudice se
encontra com o da proporcionalidade, é porque há algo ainda por fazer - mediante um processo de
escolha -, porque o da subsidiariedade não atuou, a tempo e modo, eficazmente!
Por outro lado, o da necessidade - que, de per se denota a falência do Estado, porquanto o
mister da criminalização, ainda que mínima, evidencia que esse não cumpriu o que prometera aos cidadãos-
contratantes -, também deve ser antecipado para aquele momento prévio à escolha legislativa -
pressuposto, portanto, da criminalização primária -, onde deverão ser levadas em consideração, não
1538
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 41.
1539
LUÍS FILIPE GRECO sustenta que o “fundamento do princípio da subsidiariedade seria o princípio constitucional da
proporcionalidade. Apesar de historicamente mais antigo, o princípio da subsidiariedade começa hoje a ser visto como uma
concretização da idéia de proporcionalidade, em especial do subprincípio da necessidade, segundo o qual entre restrições de
liberdade igualmente idôneas, só será legítima aquela que restrinja menos a liberdade do cidadão”. In GRECO, Luís Filipe.
Breves..., pp. 170-171. Todavia, isso, data venia, não realiza - ou, des-subjetiva -, o problema que continua à espreita de
alcançar, perigosamente, a mera vontade do magistrado de então. Daí, com razão o ilustre autor quando assinala, que: “O
princípio seria, assim, porta de entrada de dados empíricos, criminológicos e criminalísticos sobre a prevenção do crime na
discussão jurídica, permanente apelo a que se pense em alternativas à proibição e à sanção penal.” In GRECO, Luís Filipe. Op.
cit., ibidem.
1540
Pois, na verdade, apenas informa, não tomando explícito partido na questão. Quem pretender uma confirmação deve
pesquisar em GRECO, Luís Filipe. Breves..., pp. 170-171.
1541
Também, como quer ROXIN, Claus. Derecho..., p. 65.
1542
Por todos, GRECO, Luís Filipe. Breves..., p. 170: “Sua importância básica é de ordem político criminal, vez que ele serve
de orientação ao legislador, indicando-lhe quando deve recorrer à pena para coibir a prática de determinado comportamento e
quando deve dispensá-la.”
1543
RIPOLLÉS, José Luis Díez. A racionalidade..., pp. 20 e seguintes.
231
as necessidades do poder punitivo, mas aquelas necessidades que equacionem e compensem
as outras necessidades dos indivíduos, cuja satisfação, embora de obrigação estatal, foi
omitida. Do contrário, have uma manutenção do poder punitivo como paliativo-repressor
quando, na verdade, deveria haver uma política prevencionista reequilibrante, essa sim,
necessária!
Enfim, tudo isso não resolve o problema de quais ofensas aos bens jurídicos devam ou
não tentar ser protegidas pelo poder punitivo
1544
, porquanto qualquer referencial predisposto
pela doutrina e pelas agências judiciais de repetição intelectual, não tem sido respeitado pelas
agências políticas. Na falta de outro melhor, especialmente quanto ao Direito Penal Médico,
deve a aplicação desse princípio ser amplamente admitida - mormente em razão do paradoxal aviso
promovido pelas leis Serra, de n
o
9.677, de 2.jul.98 e n
o
9.695, de 20.ago.98, para alavancar a candidatura
presidencial do ministro da Saúde, sendo que a primeira delas elevou, delirantemente, as penas dos crimes
contra a saúde pública, e a segunda os incluiu entre os crimes hediondos -, mesmo se considerarmos que
o quantum estatístico de crimes dolosos na área médica sempre fora insignificante
1545
, porque,
de outro viés, a modalidade culposa tem recrudescido assustadoramente - e, justamente, porque o
ataque, involuntário
1546
, logicamente, vem de onde mais se espera a defesa
1547
-, visto que o desvalor da
ação, nesses casos, embora recorra a uma personalidade, ainda que inconscientemente quase
sempre voltada para o desprezo da proteção ao bem jurídico saúde, ela se dirige com menor
impacto contra a comunidade que, aliás, e aqui deve-se ser convinhável, geralmente, e quando
é isso possível, tem admitido uma indenização pecuniária
1548
- contrariamente ao Direito Penal
tradicional que, a partir da revolução mercantil, expropriou o conflito, excluindo a vítima
1549
, mas não a ponto
1544
Inegavelmente, esta não é uma crítica, pois, se o fosse, seria uma autocrítica, haja vista que eu não consigo resolver a
questão. Em que pese esta afirmação, e, a despeito de grande parte da doutrina nacional e estrangeira escudar-se no bem
jurídico, quando o correto seria fazê-lo na inadimplência da proteção do mesmo, basta uma passada d’olhos na literatura
nacional e estrangeira para se perceber o quão avançadas se encontram as teorias sobre o bem jurídico, quase todas voltadas
para sua eleição como objeto único de referência a um Direito Penal que tenciona ser justo, equilibrado e legitimado. Para
tanto, e a título de exemplo específico, veja TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., pp. 202 e seguintes.
1545
Inexistindo, aqui, obviamente, qualquer desrespeito ou desprezo pelas vítimas de crimes que tenham sido praticados sob
essa modalidade que, no texto, tem a conotação meramente mensurativa.
1546
Apesar de o vocábulo “ataque” possuir ínsita a idéia de volição - que é contrária à de involuntariedade -, no texto ele é
usado para confrontar-se à “defesa”, e nada mais que isso.
1547
SPROVIERO, Juan H. Mala praxis: protección jurídica del medico. 2. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1998, p. 269: “Es
muy cierto que el deber de cuidado es circunstancia básica y cuya observancia deve ser integral, y más aú en el caso del
profesional médico a cuya guarda se confía la salud.”
1548
BATISTA, Nilo. A juventude..., p. 120: “Constitui um lugar comum, na hoje extensa bibliografia vitimológica, observar
que antes da invenção histórica da pena pública as vítimas ou seus familiares dispunham de maiores e mais concretas
possibilidades jurídicas de verem reparado o dano proveniente do delito.”
1549
Sobre a expropriação do conflito, veja BATISTA, Nilo. A juventude..., p. 120: “Como se sabe, à invenção histórica da pena
pública correspondeu uma considerável perda jurídica para a vítima, despojada das expectativas composicionais que o direito
germânico espalhara por toda a Europa. No giro que promoveu o apagamento da vítima, assim desapropriada de seu conflito,
foi ela substituída pelo soberano. Passa a ter maior relevância a formal violação da lei penal imposta pelo soberano do que a
ofensa material à vítima, e, portanto, o protagonismo processual começa a ser ocupado por um ‘personagem novo’, o
procurador do rei; a vítima se afastará gradativamente do proscênio, até perder-se entre os vultos ansiosos que aguardam nos
corredores do foro o pregão do oficial de justiça, onde todos nós já a vimos. A partir da invenção da pena pública, como disse
magistralmente FOUCAULT, ‘em qualquer infração existe um crime de lesa-majestade, e no menor dos delinquentes existe um
232
de, emocionando o debate, não usar o sofrimento real dela para o fim de detonar campanhas de exasperação de
penas e endurecimento punitivo contra os criminalizados
1550
-, como retribuição pela dor sofrida com
o dano, renunciando com isso, francamente, a qualquer pretensão penal, ou mesmo,
implicitamente, quando esta não lhe caiba.
1551
A vitimização, portanto, tem papel decisivo na subsidiariedade do Direito Penal,
porquanto são os interesses dos clientes-consumidores-pacientes - e não os bens em si -, que
pautam as escolhas do sistema punitivo, que aumenta o seu poder na proporção direta do
aumento daquela ânsia consumerista. Principalmente isso acontece porque,
“assim como a seleção criminalizante resulta da dinâmica de poder das agências, também a
vitimização é um processo seletivo que corresponde à mesma fonte e reconhece uma etapa
primária. Na sociedade sempre pessoas que exercem poder mais ou menos arbitrário sobre
outras, seja de forma brutal e violenta, seja de forma sutil ou encoberta. Enquanto este poder for
percebido como normal não haverá vitimização primária (não existe nenhum ato formal das
agências políticas que confiram o status de vítima ao subjugado). Quando a percepção pública de
tal poder passe a considerá-lo anormal (desnormatiza-se a situação), urge o reconhecimento dos
direitos do subjugado e redefine-se a situação como conflitiva. As agências políticas podem
resolver tais conflitos mediante a habilitação de uma coação estatal que impeça o exercício desse
poder arbitrário (coerção administrativa direta), ou que obrigue quem o exerça a uma reparação
ou restituição (coerção reparadora civil). Mas quando as agências políticas - por qualquer motivo
-, não podem dispor de medidas que resolvam o conflito, elas se valem da renormatização da
situação conflitiva. Neste caso, esta não se resolve
1552
, mas se renormatiza por meio da
formalização de um ato programático declarativo de criminalização primária do comportamento
de quem exerce aquele poder e, ao mesmo tempo, de um ato de vitimização primária, que
reconheça o status de vítima ao subjugado. Deste modo, são tranquilizadas as pessoas que
reivindicam o reconhecimento de seus direitos lesionados em meio a essas situações conflitivas,
cujos explicáveis impulsos vindicativos passam a ser canalizáveis para a realimentação do sistema
penal, estimulando-se que a opinião pública se identifique com eles
1553
, e procurando que todos
aqueles que suportam ofensas análogas se satisfaçam com o reconhecimento de seu novo status
(de vítimas). Desta maneira, a situação desnormatizada se renormatiza (saindo do centro de
atenção pública).”
1554
potencial regicida’ (Surveiller et Punir, 1° P. cap. II). A invenção da pena pública foi um dos mais importantes insumos
políticos para a acumulação de poder punitivo que participaria da construção dos Estados nacionais europeus. Mas a pena
pública, tal como observou NILS CHRISTIE, reduziria a vítima a um não-ser (e o acusado a um objeto). Constitui um lugar
comum, na hoje extensa bibliografia vitimológica, observar que antes da invenção histórica da pena pública as vítimas ou
seus familiares dispunham de maiores e mais concretas possibilidades jurídicas de verem reparado o dano proveniente do
delito.”; bem como, ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., pp. 37 e 106, in fine: “Produzia-se, assim, a mencionada
expropriação do conflito, pois o procurador ‘duplicava’ a vítima e o ofensor era anulado e passava a ser um objeto – ‘réu’
vem do latim res, coisa -, da indagação.... O primeiro confisco do conflito, como se disse, realizou-se com as formas da
guerra.”; diametralmente oposto, e bastante otimista sobre a exclusão da vítima, veja, também, SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María.
A expansão..., p. 53: “A pena - se afirma -, significa muito para a vítima. ‘Não porque satisfaça necessidades de vingança,
pois na maioria dos casos não o faz. Senão porque a pena manifesta solidariedade do grupo social para com a vítima. A pena
deixa fora o autor e, assim, reintegra a vítima’.”
1550
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Política..., pp. 207-208; além de, BATISTA, Nilo. A juventude..., p. 121: “Há mais de
três séculos, PUFENDORF advertia que a pena não deveria oferecer ocasião para que a vítima se deleitasse com o sofrimento do
réu, porque - dizia ele - ‘esse tipo de prazer é absolutamente desumano’ (De officio hominis et civis, cap. XII, VI). Hoje,
observa-se que o sofrimento da vítima é sentimentalmente reciclado como argumento para intensificar o sofrimento do réu,
com o resultado real de expandir o sistema penal, de aumentar a vigilância e o controle sobre aqueles que já não encontraram
lugar à mesa do seleto banquete neoliberal.”
1551
Como é sabido, o artigo 24, do Código de Processo Penal prescreve que as ações penais de maior gravidade devem ser
manejadas pelo Ministério Público, independentemente da vontade da vítima, ou de seus parentes.
1552
Ao contrário do que, se bem interpretado, pensava VOLTAIRE, quando disse que: “se querem ter boas leis a solução é
fácil: atear fogo às existentes e redigir novas.” In Enciclopédia apud ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 135.
1553
Mais sobre a identificação da maioria com a vítima do delito, em SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão..., p. 50.
1554
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 53-54.
233
E, esse círculo vicioso se realça, aduzem ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, com “a
seleção vitimizante secundária (ou seja, as pessoas que, na realidade, são vítimas de fatos
criminalizados primariamente)” que “também se propaga como uma epidemia, segundo
tenham os candidatos poucas ou muitas possibilidades de sofrê-la; ou seja, existe uma paralela
distribuição seletiva da vitimização secundária de acordo com a vulnerabilidade ao
delito.”
1555
De todo modo, “estereotipar qualquer grupo fortalece... o desenho do poder
estatal.”
1556
É por isso que na relação entre o médico e o paciente tem havido um indevido
desprezo cada vez maior pela subsidiariedade que se nutre da falência escamoteada do seu
próprio discurso para pleitear mais tempo no palanque.
o princípio da fragmentariedade, por ser uma fragmentação - e aqui a petitio principi é
inevitável -, do da subsidiariedade - mudando, apenas, a bitola do filtro, e, portanto, dele não destoando
ontologicamente, apesar de o destacamento de uma parte de um “ser” poder sim, passar a ser parte diversa
deste mesmo “ser” -, encontra conforto no conceito de que o poder punitivo não se compadece
com a tentativa de promoção da proteção de todos os injustos, senão, somente daqueles que
agridem relevantemente este ou aquele bem jurídico, ficando o remanescente destes sob a
égide do Direito Civil, do Administrativo etc.
1557
, em uma escala de valores igualmente
predisposta pelas agências políticas. Então, dentro da carta de ilícitos
1558
, aqueles que
envolvam de um lado ou de outro, ou mesmo em ambos os pólos, a Administração Pública,
devem ser resolvidos nesta
1559
; aqueles que não se relacionem com ataques insuportáveis e
inadmissíveis, o devem ser pelo Direito Civil, Administrativo, Trabalhista, Eleitoral etc.
1560
;
e, finalmente, aqueles com os quais não se conforma a sociedade, irão exigir, assim, a
presença do poder punitivo.
À míngua de uma divisão estanque de todos esses ramos, que muita vez baralham
questões próprias com outras específicas de suas ramas irmãs, vem o ordenamento jurídico
primeiro afastar o que é lícito, depois o que, sendo ilícito, é irrelevante e, por fim, repartir a
1555
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, ibidem.
1556
ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias..., p. 57.
1557
Aqui, quer-nos parecer que não tem razão GRECO quando sustenta que “o direito penal não promove uma tutela global de
bens jurídicos contra toda forma de agressão... O Direito Penal limita-se a tutelá-lo contra certas modalidades de agressões...
deixando a proteção global por conta do Direito Civil”, porque, acreditamos, se por um lado o Direito Penal não tem esse
poder panacéico, por outro, o Direito Civil, tampouco qualquer outro ramo do Direito, igualmente não o tem. O que há, são
apenas divisões de tarefas, cabendo a globalidade da composição dos conflitos ao ordenamento jurídico como um todo. In
GRECO, Luís Filipe. Breves..., p. 170.
1558
Como vem sendo acriticamente apregoado, ontologicamente inexistiria diferença entre ilícito penal, ilícito civil e ilícito
administrativo, só para ficarmos com esses três. Insatisfeito com essa manutenção, SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María. A
expansão..., p. 115 e seguintes.
1559
Necessariamente, entretanto, sem desprezo ao art. 5º, XXXV, da CF/88, que sustenta o princípio da inafastabilidade,
visto não havermos adotado o contencioso administrativo à francesa.
1560
À toda evidência, vez ou outra, mesmo nesses ramos - à exceção do Direito Civil -, apresentam-se previsões criminais de
forma pontual.
234
competência entre os vários Direitos/poderes/funções de acordo com questões, ora de
competência, ora de matéria que, ao final, nada mais são do que um reflexo da eleição de
quais são ou não os pressupostos da gravidade do futuro ataque, sob a ótica oblíqua da
referência ao, e preferência do, sistema punitivo.
Ao final, parece interessante notar, ainda, um fenômeno que acontece mais
intensamente na América Latina - ironicamente, apenas em respeito à variância -, qual sendo, aquele
que chamaremos de subsidiariedade fática e jurídica em confronto com o da subsidiariedade
legislativa, que em Direito Penal Médico, per se, não se mostra nada tímido, haja vista a
parcimônia do legislador na seleção de delitos envolvendo, exclusivamente, facultativos.
Deste, o da subsidiariedade legislativa, cuidou-se de parcamente desenvolver acima
quando falei que o mesmo deveria gizar, por determinação legiferativa, a avocação do poder
punitivo somente para aqueles conflitos considerados insuportáveis ou mais graves. Embora
eles não se identifiquem, seu resultado desemboca, sempre, naquilo que foi alcunhado de
criminalização primária, e que seria a primeira etapa do processo seletivo de criminalização, i.
e., o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de
certas pessoas.
1561
a subsidiariedade jurídica e fática se apresenta todas as vezes que, malgrado a
eleição legislativa do crime - i. e., irrenúncia à subsidiariedade legislativa -, este não seja
considerado, ou pela agência judicial
1562
- subsidiariedade jurídica, de que é exemplo gritante o
princípio da insignificância
1563
-, ou pelos cidadãos - subsidiariedade fática, cuja v. g. seria a ausência de
representação nas ações públicas condicionadas a esta, ou mesmo a aceitação de contraprestação financeira
pelo inação nas ações de iniciativa privada.
Porém, ela se evidencia de maneira muito mais acentuada nas infindáveis e inevitáveis
hipóteses em que, apesar de a criminalização primária implicar um primeiro passo “seletivo” -
1561
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, p. 43.
1562
Em que pese à primeira passada d’olhos parecer entender o professor NILO BATISTA pela impossibilidade do controle
judicial do princípio da subisidariedade, porquanto geograficamente afastado este do texto constitucional de 1988, logo em
seguida também parece que o venerável escritor aceita que a interpretação judicial possa corrigir os excessos do legislador.
Se não, vejamos: “O princípio da intervenção mínima não está expressamente inscrito no texto constitucional (de onde
permitiria o controle judicial das iniciativas legislativas penais) nem no Código Penal, integrando a política criminal; não
obstante, impõe-se ele ao legislador e ao intérprete da lei...” In BATISTA, Nilo. Introdução..., p. 85. Contracenando, ainda que
timidamente, com este entendimento, CLAUS ROXIN: “Es cierto que teóricamente el principio de proporcionalidad es un
principio constitucional básico, por lo que la punición de una infracción insignificante podría ser nula por vulnerar la
prohibición de exceso.In ROXIN, Claus. Derecho..., p. 67.
1563
Rapidamente perceberá o leitor, ainda que menos satisfeito com o texto, que qualquer semelhança entre o princípio da
insignificância e o da subsidiariedade fática não representaria uma coincidência, senão, uma guinada no enfoque
deslegitimador que sobressai deste, mais profundo que daquele. É dizer, a subsidiariedade fática representa, nada menos,
nada mais, que a indefensável falência dos motivos que conduziram o legislador a optar pela eleição de uma conduta
inadmitida, a posteriori, pelos destinatários. Quem, preocupado em conhecer as razões da deslegitimação do discurso penal,
deixar de ler a extremamente lúcida obra de ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca..., passim, cometerá um imperdoável
equívoco.
235
e aqui, vem a semelhança entre aquilo que chamamos de subsidiariedade legislativa e a alhures designada
criminalização primária -, este permanece sempre em certo nível de abstração porque, na
verdade, as agências políticas que elaboram as normas nunca sabem a quem caberá de fato,
individualmente, a seleção que habilitam.
Esta seleção, por sua vez, efetua-se concretamente com a criminalização secundária -
que chamamos de subsidiariedade fática e jurídica -, porquanto, convergem ZAFFARONI, BATISTA,
ALAGIA e SLOKAR,
“embora ninguém possa conceber seriamente que todas as relações sociais se subordinem a um
programa de criminalização faraônico (que paralizaria a vida social, convertendo a sociedade em
um caos na busca da realização de um programa irrealizável), a muito limitada capacidade
operativa das agências de criminalização secundária não tem outro recurso senão proceder sempre
de modo seletivo. Desta maneira, elas são incumbidas de decidir quem são as pessoas
criminalizadas e, ao mesmo tempo, as vítimas potenciais protegidas”,
daí que “a seleção não opere somente sobre os criminalizados, mas também sobre os
vitimizados. Isto corresponde ao fato de que as agências de criminalização secundária” -
mediante a subsidiariedade fática e jurídica -, “tendo em vista sua escassa capacidade perante a
imensidão do programa que discursivamente lhes é recomendado, devem optar pela
inatividade ou pela seleção. Como a inatividade acarretaria seu desaparecimento, elas seguem
a regra de toda burocracia e procedem à seleção.”
1564
Obviamente, o contrário não seria possível, senão mediante arrepio inconstitucional do
princípio da legalidade e da reserva legal.
Não somente para não deixar para lá, ainda se pode dizer que qualquer semelhança
entre o princípio da insignificância – não do bem, mas da legislação -, e o da subsidiariedade fática
não representaria uma coincidência, senão, uma guinada no enfoque deslegitimador que
sobressai deste, mais profundo que daquele.
É dizer, a subsidiariedade fática representa, nada menos, nada mais, que a indefensável
falência dos motivos que conduziram o legislador a optar pela eleição de uma conduta
inadmitida, a posteriori, pelos destinatários.
Mas, qual a diferença entre as criminalizações primária e secundária e as
subsidiariedades legislativa, jurídica e fática?
Simplesmente, o fato de que estas são prévias àquelas, devendo ser analisadas antes
mesmo da hipotética criminalização, pois, após a análise consequencialista destas, se ficar
demonstrado que o princípio da subsidiariedade não foi respeitado, ou não está satisfeito,
devem aquelas ser afastadas de pronto, sem ao menos a possibilidade de qualquer conjectura
1564
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, pp. 44-45.
236
de perquirição da sua existência ou não, da sua validade ou não, do seu cabimento ou não, na
hipótese.
É dizer, enquanto a criminalização pressupõe a eleição, e daí, a sempre possível
concretização da previsão, do criminalizado ou da criminalização mesma, a subsidiariedade
está um passo antes - ou melhor, com o pé atrás -, para evitar que aquela sequer seja concretizável.
Com efeito, não se migra do possível para o real (criminalização), senão, da realidade para a
possibilidade (subsidiariedade).
Requentando, parece mais prudente e sensato – e, aqui, estou a falar da criminalização -, não
partir do discurso escolhido pelo legislador (possibilidade) e, posteriormente, proferido pela
polícia, promotoria e judicatura (possibilidade e realidade), senão, partir-se - e, agora, está se
referindo à subsidiariedade -, da conjuntura dos etiquetáveis pelo poder punitivo (realidade) e,
assim, chegar-se (possibilidade), sem pasteurização das discrepâncias sociais, aos
mecanismos de reajuste e desconto das diferenças entre quem domina o discurso, e quem é
por ele dominado!
237
5 O PRINCÍPIO (MEIO OU FIM?) DA CONFIANÇA
1565
Em decorrência da notória especialização que a medicina vem exigindo, ela se tem
voltado para uma modalidade de prestação de serviço que imprescinde da atuação
compartilhada de vários profissionais.
1566
De consequência, em atividades complexas, e em
particular naquelas potencialmente perigosas, mas em que haja uma exploração mediante a
exposição a um risco permitido, é frequente que o legislador imponha determinadas
exigências que vão desde a regra técnica - lex artis -, cuja violação - entendem alguns -, ainda tem
para a responsabilidade penal matiz meramente indiciário infelizmente, na prática -, até o
estabelecimento de padrões mínimos de organização na divisão do trabalho. Neste último
sentido, discorre NILO BATISTA, no âmbito da medicina, e. g.,
“o artigo 28 do Decreto n
o
20.931, de 11 de janeiro de 1932, estabeleceu que nenhum
estabelecimento de hospitalização ou de assistência médica ou privada poderia funcionar em
território nacional sem um ‘diretor técnico e principal responsável’. Outra norma tornou
obrigatória, nos anúncios de ‘casas de saúde, estabelecimentos médicos e congêneres’, a menção
à ‘direção técnica responsável’ (Dec.-Lei n
o
4.113, de 14.fev.1942); em caso de violação, a
Resolução CFM n
o
788, de 13 de maio de 1977, determina a instauração de procedimento ético-
disciplinar ‘contra o respectivo diretor-médico e principal responsável’. Outra Resolução CFM (n°
1.342, de 8.mar.91) afirma que ‘a prestação de assistência médica nas instituições públicas e
privadas é de responsabiliade do Diretor Técnico e do Diretor Clínico’ (artigo 1°). Os ocupantes
desses cargos ‘são responsáveis por problemas decorrentes da atuação dos acadêmicos’ (Parecer
CFM n° 21/96). Vale transcrever integralmente um dispositivo da Resolução CFM n
o
997/80: artigo
11. O Diretor Técnico Médico, principal responsável pelo funcionamento dos estabelecimentos de
saúde, terá obrigatoriamente sob sua responsabilidade a supervisão e coordenação de todos os
serviços técnicos do estabelecimento, que a ele ficam subordinados hierarquicamente.”
1567
Antes de continuar, é preciso esclarecer que se tem entendido que o princípio da
confiança, ou qualquer confiança no outro pressupõe uma ação racional por parte do
confidente, sendo que essa ação racional
“segundo fins, para WEBER, é a ‘determinada por expectativas no comportamento tanto de objetos
do mundo exterior como de outros homens, e utilizando essas expectativas como ‘condições’ para
a obtenção de fins próprios, racionalmente sopesados e perseguidos’; desse modo, ‘atua
1565
Pormenores sobre este tema podem ser encontrados na obra de ALBUQUERQUE, Mário Pimentel. O princípio da confiança
no Direito Penal: uma introdução ao estudo do sujeito em face da teoria da imputação objetiva funcional. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006, passim. Já, generalidades, em ROXIN, Claus. Derecho..., p. 1005; JAKOBS, Günther. Derecho..., p. 253;
STRATENWERTH, Gunther. Acción y resultado em Derecho Penal. Buenos Aires: Hammurabi, 1991, p. 522; FIANDACA,
Giovanni; MUSCO, Enzo. Diritto..., p. 514. Especialmente sobre o médico e o Direito Penal, ver BATISTA, Nilo. Parecer:
maus-tratos, omissão imprópria e princípio da confiança em atividades médico-cirúrgicas. In Novas tendências do Direito
Penal: artigos, conferências e pareceres. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 180.
1566
SOURNIA, Jean-Charles. História..., pp. 275-276 e 279-280: “Enquanto as tradições médicas anteriores apenas admitiam a
existência de duas disciplinas particulares, a dos litotomistas, que retiravam os cálculos da bexiga, e a dos oculistas, que
corrigiam as alterações da visão e operavam a catarata, vêem-se surgir outras especialidades. ...Os ‘especialistas’, como
começam a ser conhecidos, não tardam a fundar os seus grupos particulares e a criar sociedades que editam periódicos. Entre
estas especialidades, cujos próprios nomes nem sempre são estabelecidos, podemos citar a medicina infantil (mais tarde
pediatria), a oftalmologia, a urologia, a ginástica ou medicina física ou fisioterapia, a ginecologia, que umas vezes se associa
à obstetrícia outras se distingue dela, a ortopedia, que, contrariamente à sua etimologia, não se aplica apenas às crianças etc.
Por seu lado as infecções comuns ao nariz, à garganta e aos ouvidos justificam a criação da otorrinolaringologia. Estes
profissionais não estão ligados às suas disciplinas de forma tão estreita como o estarão os especialistas de hoje. Todos eles
frequentam tanto o laboratório como as enfermarias e todos eles, médicos ou cirurgiões, se interessam pelas disciplinas
vizinhas das suas e as praticam. Esta abertura de espírito explica a acuidade do seu olhar clínico e o sucesso do seu ensino.”
1567
BATISTA, Nilo. Parecer: maus-tratos..., p. 180.
238
racionalmente segundo fins que orientem sua ação pelo fim, meios e consequências implicados
nela, sopesando racionalmente os meios com os fins, os fins com as consequências implicadas e,
entre si, os diferentes fins possíveis.”
1568
Pois bem, a maioria, ao contrário do que se pode pensar, entende que vige nessas
divisões de trabalho o princípio da confiança
1569
, quando mais certo seria, no máximo, dizer
que, a princípio, há confiança.
O vocábulo “confiança” advém do latim confidentia e tem a acepção de “firme
esperança”.
1570
Então, como é de sabença coloquial, e tem sido propalado pela doutrina, é
termo que visa a representar uma relação, ou seja, um sentimento de alguém para com outro
ou outros, na medida em que aquele espera, e pode e deve mesmo esperar
1571
- mormente
considerando-se, estatisticamente, a desenvoltura de certas atitudes
1572
-, que outrem, cumprindo com o
seu dever, libere-o de cumpri-lo em nome, e no lugar deste, fazendo suas vezes. O que, em
nenhuma medida, porém, autoriza o confiante a não cumprir seu próprio dever, pois este,
inclusive, é pressuposto da exigência do dever do outro.
1573
Ao revés, somente pode exigir o
cumprimento do alter aquele que, antes, ou no mesmo instante, houver adimplido ou adimplir
com o seu, e mesmo assim lhe fica represada essa presunção de que o outro arcará com seu
dever na medida em que houver certeza, ou pressupostos indiciários concretos - ou mesmo
estatísticos
1574
-, de que o dever do outro não se apresentará a tempo e modo esperados.
1575
Daí,
porque o descumprimento da referida obrigação por parte do terceiro desonera o confiante de
qualquer responsabilidade penal, cabível, o somente, ao confiado. Mas, continua a doutrina,
das acepções que o termo comporta, mais do que conceder crédito a terceiro, demonstra ela
1568
WEBER, Max. Economía y sociedad. México: Fondo de Cultura Econômica, 1944 apud PEREIRA, José Carlos de M. A
explicação..., p. 164.
1569
Exemplarmente, STRATENWERTH, Gunther. Acción..., p. 522.
1570
Dicionário de latim-português. 2. ed. Portugal: Porto Editora, 2001, p. 166.
1571
“A primeira coisa que se pode dizer acerca da confiança é a profundidade e a universalidade de sua implantação no
coração do homem... Qualquer que seja tanto a índole daquilo em que se confia, como a interpretação teorética do fato de
confiar, ninguém poderá negar que a confiança, entendida como hábito de depositar expectativas em outrem, é um dos
sentimentos que mais profundamente definem e constituem a existência humana. Na medida em que nossa existência é
temporal e é imprevisível nosso futuro, nessa mesma medida nos vemos obrigados a confiar, e parece coisa certa, quando a
mente não se extraia da realidade nem o coração dos valores supremos, que na vida do homem a confiança tem um papel
fundamental como elemento aglutinador de energia que reforça o grau de coesão nos grupos humanos.” In ALBUQUERQUE,
Mário Pimentel. O princípio..., p. 87.
1572
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito, t. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 39: “A função do Direito está
ligada, pois, a expectativas; não a expectativas referidas à consciência individual, mas aquelas compartidas socialmente como
exigências da comunicação intra-sistemática.”
1573
ROXIN, Claus. Derecho..., p. 1005: “Más allá de lo anterior, muchas resoluciones parten de la base de que no puede
invocar el principio de confianza quien a su vez se comporta antijurídicamente.”
1574
Nesse sentido, embora fazendo certas concessões, ROXIN: “Según la jurispr., el principio de confianza debe retroceder
también en caso de infracciones de tráfico “que se cometen con tanta frecuencia que un conductor consciente ha de contar
razonablemente con ellas.” In ROXIN, Claus. Derecho..., ibidem. Como exemplo, poderíamos citar a travessia quase sempre
negligente de passageiros após desembarcarem dos ônibus. Nesse caso, ao avistar o coletivo parado no acostamento deve o
motorista, imediatamente, reduzir a velocidade, além de acionar a buzina, pois, certamente, deparar-se-á com a surpresa de
algum passageiro, agora transeunte, atravessando-lhe a frente sem o devido cuidado. Assim, por contar razoavelmente com
ela, não pode confiar que ela não ocorrerá.
1575
ROXIN, Claus. Derecho..., p. 1004.
239
que alguém pode, repita-se, ficar seguro de que este procederá conforme o esperado,
considerando-se, requente-se, resultados estatísticos que de certos atos ordinariamente
acontecem, e justamente porque o princípio da confiança “serve para a negação de um
incremento do perigo inadmissível.”
1576
Mas, é justamente aí, e por isso, que aqui se entende que o princípio da confiança é
inútil. É dizer, ele funciona numa teoria distributiva de papéis, como a de LUHMANN
1577
, ou
em um normativismo funcionalista sistêmico, como o de JAKOBS
1578
, que baseia todo seu
organismo teórico nas afirmações daquele autor, porquanto, ambos, arrimados em
expectativas, daí derivam toda imputação possível, inclusive com reflexos da e para a
confiança. Não há, segundo aqui se tem entendido, uma necessidade de pautar nossa conduta
na confiança de que o outro atenderá à sua própria, pois não é que reside nossa obrigação
social. Então, não é porque o outro se enquadrará ou o no papel de etiquetado, que eu
cumprirei ou deixarei de cumprir a minha obrigação, mesmo porque, meu papel também
está previamente definido pelo sistema penal. Nessa mise-en-scène, o outro possui um papel
definido, independente de eu possuir o meu. Ambos, eu e ele, devemos nos enquadrar nas
funções que as agências políticas e executivas nos destinaram. E, aqui, não se deve confundir
esse papel e essa função com aqueles do normativismo funcionalista sistêmico ou do sistema
autorreferencial de comunicação, visto que, enquanto estes se autoalimentam, aquele que
relatamos - mas, que não defendemos -, é imposto pelas agências que não fornecem qualquer
hospitalidade ao princípio da confiança. O papel de escritor, diretor, protagonista ou
coadjuvante nasce acabado, cabendo à personagem, tão somente, personificá-lo. Parece
mais correto, portanto, entender que em vez de um princípio da confiança, o que existe, em
verdade, não é uma obrigação das pessoas para com as criminalizações primária e secundária,
porquanto nenhum de nós deixa de incorrer no tipo penal por conta da sua exclusiva leitura -
mesmo porque, enquanto muitos de nós não cometem crimes, sem sequer havermos lido o Código Penal, outros,
ao revés, os cometem, malgrado sabê-lo de cor -, senão, uma imposição daquelas criminalizações
primária e secundária que não outorgam chances de delas nos desviarmos, configurando-se,
com isso, um poder punitivo de matiz estatal coativa. Parece mais que óbvio que todos
1576
ROXIN, Claus. Derecho..., p. 1004.
1577
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito, tt. I e II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983/1985, passim.
1578
JAKOBS, Günther. Derecho..., pp. 09-10: “Así como los hombres en su relación con la naturaleza sólo se orientan en la
medida que pueden encontrar regularidades, del mismo modo en los contactos sociales – los únicos que aquí interesan -,
sólo resulta posible la orientación si no hay que contar a cada momento con cualquier comportamiento imprevisible de la
otra persona. De lo contrario cada contacto social se convertiría en un riesgo impredecible. El mero hecho de iniciar un
contacto social es ya una señal de que no se espera ningún desenlace indeterminado. Si se decepciona esa expectativa, para
el decepcionado surge un conflito frente al que deve reaccionar, pues con la decepción se pone de manifiesto que el balance
entre los sucesos em cuya producción está interessado y aquellos otros que se realizan ya no cuadra: el modelo de
orientación del decepcionado deve someterse a revisión.”
240
possam e tenham que contar com comportamentos jurídicos dos outros quando da prática dos
seus. Do contrário, o discurso farisaico do sistema punitivo não convenceria, desmantelando-
se. Com efeito, a desconfiança, então reinante, paralisaria a todos. Portanto, fora alguns casos
de concurso de agentes, cada conduta deve ser analisada isoladamente, sem a coajuvância de
outra qualquer. Pensar diferente disso é erigir a confiança na norma como se fosse a própria
norma, enquanto esta, a norma, seria apenas um mero referencial para aquela. O que é
absurdo e frauda um jogo de cartas marcadas. Daí que, falar em princípio da confiança
onde inexiste possibilidade de escolha, parece-me uma paródia de verdade!
A maioria da doutrina, porém, alheia a tudo isso, entende que enquanto o princípio da
confiança encontra ambiente confortável nas relações intersubjetivas particulares isoladas
1579
-
em que esta relação não se apresenta amarrada por um contrato, uma lei ou uma assunção de segurança
advinda de vontade própria ou de atuação anterior, como no artigo 13, § 2º, alíneas a, b e c, do Código Penal -,
onde existe, ainda que de forma ambígua, um dever de garantia de um resultado, seja
praticando um ato que conduza a este, seja omitindo um que o viabilize pelo SICRANO ou
BELTRANO, a tal ponto que incuta na sua consciência, ou mesmo inconsciência, a representação
de que o resultado aguardado será alcançado com a conduta deste terceiro, sendo prescindível
sua, muita vez serôdia, substitutiva atuação, ele também não deixa de habitar, e não sem
razão, na maioria das vezes, nas relações coordenadas de um aparato distribuidor de tarefas. É
o que ocorre, exemplarmente, nas equipes médicas multidisciplinares
1580
, cirurgicamente
interventoras em que, como sói acontecer, participam anestesistas
1581
, cardiologistas,
cirurgiões et reliqua, e nas quais cada um destes especialistas pode confiar que o outro
procederá adequadamente no sentido de que todos os afazeres, isoladamente, convirjam para
um resultado comum, qual sendo, v. g., a operação satisfatória do paciente.
1579
Como é o caso do médico que, dirigindo seu veículo em via principal, pode contar que o automóvel, que advém de via
vicinal, não invadirá a sua frente, de inopino. Segundo ROXIN: “Por tanto quien, p. ej., tiene prioridad de paso en los cruces
no precisa reducir su velocidad en atención a posibles infracciones de tráfico de otros conductores, sino que por regla
general puede partir de la base de que se respetará su preferência de paso. Si ello no sucede y se produce una colisión,
únicamente existe imprudência en quien desatendió la preferência de paso.” In ROXIN, Claus. Derecho..., p. 1004. Esta
afirmação de ROXIN parece contraditória, pois, alhures também afirma ele: “Según la jurispr., el principio de confianza debe
retroceder también en caso de infracciones de tráfico “que se cometen con tanta frecuencia que un conductor consciente ha
de contar razonablemente con ellas”. In Op. cit., p. 1005. E, provavelmente, nenhuma infração automobilística é mais, ou
tão, frequente que os abalroamentos em cruzamentos!
1580
Paradigmático, ROXIN: “Aún está poco claro hasta qué punto puede extenderse el principio de confianza a otros ámbitos
o sectores de la vida. Se reconoce en principio su extensión al caso de la cooperación con división del trabajo, sobre todo em
el ámbito de la actuación médica (v. gr. en un equipo de operaciones).” ROXIN, Claus. Derecho..., p. 1005. Citatório, GRECO,
Luís Filipe. Cumplicidade através de ações neutras: a imputação objetiva na participação. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.
28.
1581
BATISTA, Nilo. Parecer: maus-tratos..., p. 177: “Assim, a figura do anestesista, que nos tempos de ENGISCH parecia-lhe
secundária, ganhou certa autonomia, não mais sendo visto como mero colaborador do cirurgião perante casos, por exemplo,
de choques anafiláticos.”
241
Ora, imagine uma conjuntura operatória em que o cirurgião, contando com o trabalho
anestésico esperado e adequado do facultativo dessa área, ao intrometer o bisturi no paciente,
descobre, tardiamente, que o anestesista não injetou o químico na dose correta, deixando em
perigosa sensibilidade o organismo do devassado. Ou que o cardiologista, em vez de realizar
os exames pré-operatórios necessários para a detecção do suporte e suficiência coronarianos
do paciente para determinada cirurgia, limita-se a submeter o operável a mero e exclusivo
teste de desforço, desacompanhado de qualquer avaliação sanguínea, por exemplo. Em ambos
os casos, não pode o cirurgião ser responsabilizado, criminalmente, pela desídia da lex
artis
1582
pelos médicos que o antecederam, pois ele, como qualquer outro esculápio, no seu
lugar
1583
, poderia contar com a atuação escorreita dos seus parceiros de jaleco.
1584
Mas, não só
poderia, como, também, deveria contar com a atuação adequada desses profissionais, pois se a
confiança, por um lado, pode gerar, vez ou outra, perigosos inconvenientes de segurança - na
medida em que, com base em estatísticas, ou no que normalmente acontece (artigo 335, do Código de Processo
Civil
1585
), deixa o profissional médico posterior de fiscalizar a atuação do seu antecedente quando ela
desencadeia um erro grosseiro
1586
, mormente porque, neste caso, estaria confrontada a confiança do paciente
na equipe, com prevalência sobre a de um membro desta em relação a outro -, por outro lado, uma regra
de desconfiança
1587
, acaso hipoteticamente reinante, ensejaria dúvidas de se a atuação do
antecessor ou colega estaria correta, e por um profissional que sequer é da mesma área, como
no caso em que o cardiologista pusesse sempre em dúvida a quantidade correta, e a natureza
de qual é, ou não, o anestésico apropriado, enquanto o paciente jaz, impaciente - perdoem-me o
trocadilho -, no leito operatório. Então, tem a doutrina afirmado que se deve afastar o princípio
da confiança somente naqueles casos de cooperação com divisão do trabalho em que um dos
intervenientes (v. g., o médico que dirige a operação) possui especiais deveres de vigilância
(por exemplo, frente ao médico assistente ainda inexperiente) ou outra missão de controle de
1582
Regras técnicas pertinentes a cada um dos serviços prestados em suas respectivas áreas, como as regras técnicas e
regulamentares da medicina, da engenharia, da advocacia, da contabilidade etc.
1583
Todavia, obviamente que, em certos casos, deve o mesmo exigir do paciente a apresentação dos resultados de todos os
exames, ocasião em que poderá aferir qual não foi realizado, devendo tê-lo sido.
1584
ROXIN, Claus. Derecho..., p. 1006: “...el BGH ha reconocido ya que en una operación “los médicos especialistas que
intervienen en ella pueden confiar en la colaboración correcta del colega de la outra especialidad.”
1585
Embora esse artigo se dirija à obrigação de o magistrado não declarar o non liquet (ou seja, “não julgarei, por não saber o
que fazer, pois não há lei que determine o que deve ser decidido), em não havendo normas jurídicas específicas para a
solução do caso, mormente quando proibida a analogia, e não, a terceiros particulares, como pretendido no texto acima, a
redação dele é a seguinte: Art. 335. Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará regras de experiência comum
subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a
esta, o exame pericial.
1586
Assim, novamente, ROXIN: “Por outro lado, también se corresponde sin embargo con el principio de confianza el que se
deba objetar y, en su caso, corregir los errores manifiestos de outro.” In ROXIN, Claus. Derecho..., p. 1006. Entretanto, não
se está aqui a falar daqueles casos em que o paciente, submetido a diagnóstico e tratamento por um facultativo, abandona
ambos, dirigindo-se a outro médico que, nesse caso, obrigatoriamente, deve refazer toda a bateria de exames, ou, quando
menos, averiguar a correção dos já realizados, bem como o tratamento indicado pelo seu antecessor.
1587
Que já vigeu antes mesmo da regra da confiança.
242
natureza vária.
1588
Por fim, referida obrigação de custódia e aferição do empreendimento
desempenhado por outro não pode ultrapassar o necessário ao cumprimento - como pressuposto
portanto, é dizer, limitado à realização da sua cota -, do dever que lhe coube, parceladamente, na
divisão do trabalho, sob pena de, deslocando-se horizontalmente a indumentária do santo
decumbente, descobrir-se uma das suas extremidades em favor da outra, outrora ao léu.
Esposando, em parte, esse entendimento, escreveram ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e
SLOKAR, que
“perante uma atividade regida pela divisão de trabalho, muitos desses problemas podem ser
resolvidos pelo princípio da confiança, segundo o qual não violação do dever de cuidado na
conduta de quem confia que o outro se comportará corretamente, desde que não existam motivos
para duvidar disso ou mesmo acreditar no contrário. A eficácia do princípio da confiança está
limitada, em geral, pelo próprio dever de observação: violaria o dever de cuidado manter a
confiança na atuação alheia quando existam sinais de que o outro não está se comportando
conforme deveria, sem que seja preciso esperar que ele perca o domínio do fato, e mesmo quando
o sujeito perceba os sinais da conduta deceptiva alheia excedendo sua própria incumbência de
observação fixada pela divisão do trabalho, seja por acidente, seja por suas características
obsessivas, seja por conhecimento ou habilidades pessoais. Não há falar-se em princípio da
confiança onde a tarefa do agente é precisamente exercer vigilância sobre a execução das tarefas
dos demais envolvidos na atividade compartilhada.”
1589
Mas, é justamente por isso que, perdoem a recidiva no assunto, entende-se aqui que o
princípio da confiança é imprestável, pois, não é pelo fato de eu contar ou não com a atuação
escorreita do médico, colega de trabalho, que será imputada a mim qualquer condenação e
sanção penais. A confiança não é e nem pode ser a baliza. É o conhecimento que eu possua da
atuação jurídica ou antijurídica do outro agente que me condenará ou absolvirá, graças a eu
haver atendido ou não a esse conhecimento prévio ou simultâneo. Dentro da disciplina geral
do princípio, convocando NILO BATISTA, seria descabido invocá-lo diante de situação na qual a
confiança pudesse ser temerária, ou seja, naquela em que o cirurgião não pudesse iniciar a
operação se percebesse que o anestesista está embriagado.
1590
Então, se eu, conhecendo sua
atução antijurídica, e conhecendo também que ela prejudicará o sucesso da minha, mesmo
assim atuo, cometo eu um ato criminalizável, pois a mim era exigível um comportamento
consoante ao direito. Agora, se eu, não conhecendo sua atuação antijurídica e, portanto,
desconhecendo que ela poderá refletir negativamente, malfadando a minha, mesmo assim
atuo, não cometo eu qualquer ato criminoso, senão, um ato inculpável por conta da
inexigibilidade de conduta diversa. E, nem se diga que na primeira hipótese o médico - se a
confiança é tão irrelevante como dizemos -, independente da atuação do seu colega, agiu
juridicamente, porquanto é sua atuação que deve, isoladamente, ser avaliada. Nada disso. A
1588
Mais do mesmo em STRATENWERTH, Gunther. Acción y resultado en Derecho Penal. Buenos Aires: Hammurabi, 1991, p.
524.
1589
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. I, v. II, I, pp. 330-331.
1590
BATISTA, Nilo. Parecer: maus-tratos..., p. 180.
243
culpabilidade tem como dois arrimos de seu tripé a potencial consciência da ilicitude e a
exigibilidade de comportamento conforme ao direito. Ambos não podem ser apreciados
apenas formalmente, devendo sê-lo, sobretudo, em seu teor material. É dizer, embora
praticando um ato, que isoladamente, seria jurídico, tem o médico a consciência de estar
atuando, ainda que por richochete, de forma antijurídica, pois sua conduta, aditada à anterior
ou simultânea a esta, ensejará um resultado criminoso. Servindo isso para refutar um
argumento expendido abaixo, pela doutrina, de que a confiança auxiliaria a imputação
objetiva a reduzir alguns casos que o finalismo mantém, injustificadamente, sob o manto
opaco do poder punitivo. Quanto à exigibilidade de conduta diversa consoante ao direito, vale
o mesmo. Embora, em princípio, formalmente não tenha o médico atuado desconforme ao
direito, no todo isso não é verdade, haja vista que ele, conhecendo a atuação do seu
precedente, materialmente podia haver atuado diversamente conforme ao direito da vítima de
não ver ofendido seu bem jurídico, então ofendido. Assim, a potencial consciência é da
ilicitude, não do tipo penal
1591
, enquanto a exigibilidade de comportamento conforme ao
direito, é, sobretudo, ao direito da vítima que não pode se ver refém seja da confiança de um
agente para com o outro, seja da apreciação isolada de uma conduta e de outra. É na aferição
do todo que se deve buscar a antijuridicidade ou não da conduta. A confiança, nestes termos, a
nosso ver, não tem qualquer importância para a culpabilidade, pois, entre esta mera
expectativa e o potencial ou real conhecimento da desenvoltura da situação antecedente ou
simultânea, deve prevalecer este. Atribuir mais valor àquela é desprezar a potencial ou mesmo
real consciência da ilicitude, proveniente da malfadada inicial confiança depositada na relação
de trabalho, além de fazer tabula rasa da exigibilidade de comportamento diverso que o
pode mais agora se impor, como originariamente se pretendia, mormente diante daquele
mesmo conhecimento de que a confiança se frustrara, devendo o médido promover uma
alteração na sua atuação, neste instante, mais condizente com a nova conjuntura.
Voltando ao entendimento majoritário da doutrina, consoante se pôde notar, o
princípio da confiança parece pressupor uma sequência de atos, sucessivos no tempo e modo,
em que um só poderia vir após o outro, porque do anterior é sempre dependente, numa relação
de prejudicialidade penal eximente. Porém, essa percepção, se não é errada é, ao menos,
parcialmente correta, pois é bem possível que o princípio da confiança protagonize situações
em que os vários profissionais atuam pari passu - sendo impossível qualquer vigilância, senão, sob
pena de esquecer-se a sua parcela laboral em prol do desvio da atenção em favor da fiscalização do outro -,
1591
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios..., p. 265: “Concluindo, falta de consciência da ilicitude e ignorância da lei são
noções distintas e não conflitantes.”
244
não servindo essa simultaneidade, portanto, como desculpa, nem para a afirmação de que
por isso - ou seja, por estar um profissional (cardiologista) ao lado do seu colega (anestesista), deveria ele
fiscalizá-lo e, não o fazendo incorreria, também, em culpa penal -, o faltante se esquivaria de qualquer
responsabilidade, ou dividiria com colega seu de equipe, uma sua responsabilidade que lhe é
individual e exclusiva, tampouco para a tentativa, malograda a priori de, com isso, atuar
desidiosa e desatentamente - i. e, com negligência
1592
-, na esperança de que esta sua indiferença
natural - e não finalista, portanto -, seja percebida, avisada, corrigida ou mesmo colmatada por
outrem. Por outro lado, tão perigoso quanto o excesso de confiança, se apresenta, assim, o
excesso de desconfiança, devendo o profissional médico pautar pelo meio-termo que encontra
ressonância segura na análise objetiva da formal competência do seu colega de equipe. De
sorte que, o cardiologista, e. g., pode, fiando-se no fato de que o anestesista possui formação
acadêmica adequada ao manejo desta especialidade, acreditar, sem a intranquilidade de uma
eventual ação penal condenatória, que este realizou, corretamente, seu múnus, enquanto este,
de seu lado, pode confiar que aquele, igualmente especializado em cardiologia, escudou-se em
toda sorte de exames possível antes de entregar o paciente à operação. No mais - e aqui se estará
referindo a uma parcela infinitamente pequena dos profissionais da área médica que em sua quase totalidade
são pessoas seriíssimas -, como quase sempre é invisível o diploma do colega, tampouco sua
especialização, a notoriedade de ambos, advinda de inúmeras práticas na sua especialidade -
como o médico que anestesia há anos, sem qualquer conduta profissional anestésica que o desabone até então -,
a participação contemporânea nos bancos da sala de aula da especialização, ou a prática
simultânea com este durante a residência de um e outro, por exemplo, pode muito bem suprir
aquela formalidade que, sejamos convinháveis, nas grandes cidades, onde nem todos os
médicos se conhecem, tem muito pouca utilidade, sobretudo diante da proliferativa
prostituição que tem surgido com a venda de diplomas de inúmeras áreas do saber
1593, 1594
. Por
1592
Sobre a preferência do termo “negligência”, aos demais “imprudência e imperícia”, mesmo em casos de atuação técnica,
como a médica, e sobre estarem estes, satisfatoriamente, englobados naquele, ver TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Direito
Penal da negligência: uma contribuição à teoria do crime culposo. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 3 e nt. 1; e,
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria do crime..., p. 3, nt. 1: “como se verá... atendendo a um preceito de ordem prática,
as expressões culpa, negligência ou crime culposo são usadas, indistintamente, como sinônimas, ainda que, cientificamente, o
termo negligência seja mais adequado a retratar esta modalidade de conduta.”
1593
O que nos faz lembrar semelhante acontecimento do passado, não muito diferente de hoje. Para tanto, consulte SOURNIA,
Jean-Charles. História..., pp. 105-106: “O número de universidades aumenta entretanto, pois as cidades vêem nelas um
elemento de prestígio e uma atraccção para os estudantes, que nelas despendem o seu dinheiro. A Igreja prefere criá-las e
controlá-las em lugar de as suportar e, sobretudo no século XIV, os príncipes mecenas multplicam-nas para efeitos de
propaganda. Deste modo, ao lado de universidades prestigiadas como Bolonha ou Pádua, Montpellier ou Paris, vêem-se
pequenas cidades francesas serem dotadas de universidades onde os professores, em número demasiado pequeno, praticam
um ensino medíocre e atribuem diplomas pouco apreciados fora da própria cidade. ...Os estudos médicos são portanto longos
e dispendiosos, mas o ‘doutor’ pode orgulhar-se do seu título e exigir honorários elevados. Se sair de uma universidade
conhecida, será recebido em outras escolas e colégios para praticar, mas se o seu título for modesto não conseguirá abandonar
a província.”
245
fim, sendo igualmente difíceis tais averiguações indiretas, obviamente devem ser culpados os
responsáveis pela clínica ou hospital, únicos obrigados a tal aferição de profissionalidade,
havendo, ainda, quem advogue pela responsabilização do próprio nosocômio.
1595
Para se evitarem - ou, pelo menos, se tentar evitar -, portanto, demandas por conta da
negligência de terceiros - pois é inegável que há cirurgiões que, apesar de poderem ter confiado na
conduta dos seus predecessores, se encontram respondendo pela negligência destes -, seria prudente que o
profissional, em sendo isso possível, integrasse equipes compostas de esculápios cuja
capacidade já conheça. Do contrário, ou seja, em não sendo isso possível - como muita vez
acontece em grandes hospitais públicos -, participando o facultativo de equipes médicas cujos
componentes jamais vira antes - evidentemente descontado o dissabor de toda uma tramitação judicial
tendente a provar-lhe a inocência -, restará patente que, nesses casos, o princípio da confiança se
transfira para a própria entidade - pública ou privada, mas, sempre penalmente inimputável -,
contratante destes pouquíssimos profissionais relapsos - que, requente-se, representam parcela
mínima da medicina -, ou mesmo, desprovidos de qualquer capacitação para o cargo que exercem
- como médicos sem diploma de graduação
1596
, ou sem o da residência naquela área específica -, pois é a
estas que cabe a obrigação de aferir a diplomação, a titulação e o preenchimento de todos os
requisitos formais
1597
para a atuação do facultativo.
Para esta doutrina, a consequência da atuação, no caso, do princípio da confiança
redunda no fato de que, tendo sido reconhecido, ex post, que qualquer médico no lugar do
acusado teria confiado no trabalho antecessor, ou simultâneo, do seu colega, o deságue
encontraria, necessariamente, a consideração de que ele agira licitamente. Ou, mais
tecnicamente, em atenção a um exercício regular do direito
1598
, sua conduta não seria
antijurídica ou censurável, do ponto de vista do Direito Penal, auxiliado, aqui e sempre, pela
1594
Tratando de questão mais leve, mas não menos importante, e não falando, necessariamente, de uma venda, expõe uma
discrepância formativa, muita vez, mas não sempre refletida no exercício da própria profissão, SOURNIA, Jean-Charles.
História..., p. 219: “A estas discussões entre profissionais vêem juntar-se as queixas dos médicos a respeito das desigualdades
da sua formação. Uma dezena de faculdades distribui diplomas controlados, após estudos sérios: Paris atrai os países
limítrofes, a Rússia e a Polônia vão para Göttingen e para Halle; Pádua, Bolonha e Montpellier recebem os países
mediterrâneos, a Europa do Norte vai para Leyde e a América para Edimburgo. Porém, ao lado destas universidades de
nomeada existem numerosas outras que, possuindo um número muito restrito de professores, se limitam a assegurar uma
formação rudimentar.”
1595
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito..., p. 326.
1596
Sobre a situação da titulação médica na França do século XIX, narra SOURNIA, Jean-Charles. História..., p. 247: “O
Consulado organiza igualmente o exercício da medicina. Só podem exercer esta arte os titulares de um diploma de
doutoramento atribuído pelas escolas de medicina; infelizmente, por influência de CABANIS e com o fim de dotar o exército
de clínicos em número suficiente mesmo mal formados, para regularizar situações incertas resultantes dos anos de convulsão
e assegurar a prestação de cuidados na província, cria-se uma categoria ‘transitória’: os oficiais de saúde. Tendo feito poucos
anos de estudos, a sua instrução é muito incompleta. O desajeitado CHARLES BOVARY é o seu herói literário mais célebre.”
1597
Já quanto aos requisitos materiais, parece que sua averiguação fica a cargo das instituições de ensino, não sendo de se
afastar a possibilidade de, como a Ordem dos Advogados do Brasil, o Conselho Federal de Medicina instituir uma prova de
averiguação de conhecimentos mínimos, ou melhor, suficientes para a inserção do profissional no mercado o que, em certa
medida, talvez sequer fosse útil.
1598
Artigo 23, inciso III, do CP.
246
política criminal contencionista do poder punitivo. Mesmo porque, o contrário - pois nenhum
médico admitiria trabalhar em conjunto com outro -, instabilizaria muito mais a sociedade que, repita-
se, intranquilizada pela insegurança que a prestação de serviços daria azo, se prostraria no
tempo, passando a inexistir qualquer prestação de serviço - ainda que somente a em forma de equipe
-, de qualquer modalidade, seja médica, seja advocatícia, seja contábil etc., cujo acalento
advindo da continuidade da atuação isolada não seria suficiente para atender todas as
demandas que a pós-modernidade crescentemente tem exigido, quais sendo, as de que os
profissionais atuem cada vez mais em equipe, cada qual contribuindo com sua especialidade
neste mundo onde o conhecimento - ao contrário do que pretendia JEAN FERNEL
1599
-, sobre muitas
coisas tem se rarefeito, e os profissionais têm se juntado para conseguirem atender mais
adequadamente o cliente-consumidor-paciente.
Por outro lado, continua parte da doutrina a afirmar, o princípio da confiança não
deveria ser afastado mesmo diante de uma criminosa atuação dolosa do membro da equipe,
desde que assim o tenha sido - porque o podia ter sido
1600
-, imprevisto, ou o tenha sido
1601
- ou,
mesmo diante da previsão, não tenha havido um “fomento ou favorecimento” sério, relevante e definitivo por
parte do médico imprudente, porquanto, nesse caso, sua cumplicidade
1602
, ainda que existente, não foi
preponderante quando cotejada com as demais condições para, por si só, incentivar ou realizar a conduta
1603
-,
imprevisível.
1604
Pensar em contrário seria inadmitir a permissão de riscos sem os quais - v. g.,
a venda de álcool, de gaze, de bisturi etc. -, o desenvolvimento social não encontraria confortável
assento. E, justamente, porque assumir ou suportar os perigos inevitáveis da venda desses
produtos - que, dolosamente, poderiam ser usados para o cometimento de crimes, inclusive por esculápios -,
atende a vantagens de natureza tanto individual, quanto social, mas todas advindas da adoção,
ainda segundo a doutrina, do princípio da confiança. É dizer, pela teoria da proibição de
regresso - que no entender de JAKOBS tem como hipótese particular o princípio da confiança -, inexistiria
1599
Médico francês nascido em 1497 que disse que o médico deveria saber tudo. Para tanto, veja SOURNIA, Jean-Charles.
História..., p. 169: “Que ninguém tente abordar a medicina desde o seu início se não tiver primeiro exercido cuidadosamente
estas disciplinas e não estiver perfeitamente imbuído delas (a matemática, a dialética e a gramática)...’. ‘É justo chamar-lhe a
arte universal’.”
1600
ROXIN, Claus. Derecho..., p. 1006: “Finalmente, el principio de confianza ha de regir también en cuanto que por regla
general se puede confiar en que otros no cometan delitos dolosos.”
1601
Enfatizando a percepção, escreve ROXIN, que: “Lo correcto es que el principio de confanza no puede regir ya cuando una
conducta fomenta la perceptible inclinación o propensión al hecho delictivo de un potencial autor doloso.” In ROXIN, Claus.
Derecho..., p. 1007.
1602
GRECO, Luís Filipe. Cumplicidade..., pp.7-8: “Por cumplicidade entender-se-á o auxílio, a contribuição, para que um
terceiro cometa um fato típico e antijurídico. Auxílio significa qualquer ação que “facilite, possibilite, intensifique ou
assegure” o cometimento da ação principal. Este auxílio pode ser tanto material... quanto psíquico.”
1603
ROXIN, Claus. Derecho..., p. 1007: “No obstante, ha de resultar improcedente la imputación imprudente, incluso en caso
de perceptible inclinación al hecho delictivo, cuando falte un “fomento o favorecimiento” porque la conducta del extraneus
solo se convierte en causal para el resultado mediante una combinación caprichosa de condiciones por parte del autor
doloso.”
1604
ROXIN, Claus. Derecho..., ibidem: “Pues la resolución al delito es un processo interno que en escasas ocasiones es
perceptible claramente al exterior.”
247
participação culposa em crime doloso, como no caso em que estafado após o término do
plantão, empresta o médico experiente um bisturi para outro - cuja condição de mero residente lhe é
desconhecida -, desqualificado a realizar uma cirurgia plástica, cujos resultados desastrosos,
portanto, não lhe poderão ser imputados.
1605
Diferentemente, se houver agido com
imprudência, porquanto, neste caso,
dado que en los delitos imprudentes rige el concepto unitário
1606
de autor, en el supuesto de
causación imprudente de un hecho doloso no se trata de una participación, sino de autoría
imprudente. Tampoco se puede negar sin más el nexo de antijuridicidad o de imputación
aludiendo a la própria responsabilidad del autor doloso, pues cuando un sujeto que actúa sin
dolo ha creado el peligro intolerabe de un delito doloso, no hay razón alguna para excluir la
posibilidad de una imputación imprudente junto ao delito doloso. La solución no consiste por
tanto en una prohibición absoluta de regreso, sino que se trata de trazar los limites del principio
de confianza y por tanto del riesgo permitido...” e, justamente, porque “precisamente a quien
todavia vacila no se le pueden ofrecer oportunidades para una más fácil comisión del
delito.
1607
Tomando assento no assunto, parece claro a NILO BATISTA que no atendimento massivo
de pacientes, seja em hospitais públicos ou privados - conveniados ou não com o Estado -, "a
divisão de trabalho constitui condição necessária da eficiência dos procedimentos médicos”
estando “el principio de división de trabajo reconhecido “hoy como una necesidad ineludible
del ejercicio de la medicina.... Por outro lado, a divisão de trabalho constitui uma referência
indispensável na ocasião, sempre infausta, de indagar-se sobre responsabilidade penal” e,
relembrando JEAN PENNEAU, pergunta
1605
Quanto às interpretações ultrapassada e atual da teoria da proibição de regresso, ver ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte
general, fundamentos, la estructura de la teoria del delito, tomo I, 1
a
edição, 2
a
reimpressão. Espanha: Civitas. 2003, p. 1006,
nt. 40. Sobre a interpretação original - portanto, ultrapassada, advirta-se desde já -, escreve LUÍS GRECO: “A original teoria
da proibição de regresso dizia que, se um terceiro intervém dolosamente após a prática de uma ação culposa, quem praticou
a ação culposa ficaria isento de pena. A ação dolosa culpável é livre, estando, por isso, além do domínio da lei causal, de
modo que não se poderia falar em causalidade. A ação dolosa culpável do terceiro interromperia, portanto, o nexo causal. A
cumplicidade e a instigação, como formas de participação legalmente previstas, seriam exceções legislativas a este princípio
de que a ação livre sempre inaugura per se uma nova cadeia causal, proibindo o regresso a causas anteriores.” Para, logo
adiante, atualizá-la, dizendo, com arrimo em ROXIN, que: “...a doutrina superou já há muito a idéia de interrupção do nexo
causal; o nexo causal não se interrompe, a causalidade ou está presente ou ausente, e ponto final... o possível cúmplice
causou o resultado, ou por ter sido uma conditio sine qua non do mesmo, ou uma condição conforme uma lei natural, ou uma
componente necessária de uma condição suficiente para ele. E é por isso que a proibição de regresso, nesta sua versão
clássica, praticamente não tem mais defensores na atualidade.” GRECO, Luís Filipe. Cumplicidade..., pp. 24-26. Enquanto, de
seu lado, ROXIN enfatiza: “Pues no es posible concebir un nexo causal simultáneamente como existente e “interrumpido”.”
In ROXIN, Claus. Derecho..., p. 1007.
1606
BATISTA, Nilo. Concurso de agentes: uma investigação sobre os problemas da autoria e da participação no Direito Penal
brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp. 71, 79, 81: “A primeira objeção que tal critério ensejaria,
especialmente para a doutrina brasileira ainda aferrada a uma teoria do delito de base causal, consistiria na impossibilidade de
construir-se um conceito unitário de autor para os delitos dolosos e culposos, que não poderiam ter uma só teoria da
participação. Para os finalistas, não há aí qualquer motivo de espanto, e espantoso seria, isto sim, a redução a esquemas
comuns de realidades tão distintas... Todo aquele que culposamente causa o resultado é autor; qualquer contribuição causal
culposa para o resultado representa autoria... Não há diferença entre autor direto e partícipe nos crimes culposos, porquanto a
causação culposa (isto é, com violação do dever objetivo de cuidado) importa sempre autoria... No Brasil, em algum
momento HELENO FRAGOSO esposou tal opinião: ‘Nos crimes culposos, em conseqüência, é autor todo aquele que viola o
dever objetivo de cuidado a que estava adstrito, provocando, isoladamente ou em concurso com outras pessoas, o resultado
típico. Como se percebe, nos crimes culposos há apenas autoria ou autoria colateral, mas não pode haver participação, porque
esta é sempre a realização de conduta atípica’.” Criticamente, em sentido contrário, SANTOS, Humberto Souza. Co-autoria em
crime culposo e imputação objetiva. São Paulo: Manole, 2004, passim.
1607
ROXIN, Claus. Derecho..., p. 1007.
248
“o que pensar da responsabilidade atribuída a um médico ou cirurgião quando a ofensa à
integridade corporal de seu paciente provém da negligência de um de seus prepostos ...que se lhe
reprova por não ter supervisionado suficientemente ...ou por ter escolhido mal? ...Perante tais
situações, o controle da imputação objetiva deve recorrer ao chamado princípio da
confiança.”
1608
Mas, esse será um problema se se utilizar - ainda que o seja como limitadora da objetiva
imputabilidade
1609
, abrangendo também os delitos dolosos -, a teoria da imputação objetiva que mais
de uma vez fora sustentada como prescindível perante o finalismo, mormente se
considerarmos com razão aqueles que afirmam que, ao contrário de outros, a imputação
objetiva não dispensa uma causalidade
1610, 1611
, tampouco uma finalidade. No mais, qualquer
criação ou implemento de risco nas atividades médicas compartilhadas também prescindirá da
imputação objetiva na medida em que um Direito Penal contencionista, voltado para uma
política criminal retentiva não deve buscar partir do pressuposto de que o médico é criminoso,
devendo o mesmo promover sua defesa e obter sua absolvição, senão que,
constitucionalmente, partindo da sua inocência, devem os órgãos persecutórios demonstrar a
objetividade e a subjetividade da imputação que se lhe não pode antecipar.
Sem receio do enfadonho, socorremo-nos de JUAREZ TAVARES para dizer que,
“a questão da relação entre tipo e antijuridicidade, portanto, deve levar em conta, em primeiro
plano, este sentido delimitativo da norma penal em face do exercício do poder estatal, e não o
sentido de proibição ou de imposição de condutas. Em razão disso, essa relação pode ser
elucidada pela fixação das funções do tipo e das limitações da antijuridicidade naquelas duas
fases a que nos referimos como base da elaboração de uma teoria do injusto. Esse tratamento que
se à norma penal evidentemente pressupõe uma tomada de posição sobre o exercício do poder
de punir. ...Retomando uma correta assertiva de MACKIE, a questão deve ser posta em dois níveis:
da liberdade individual e do poder de intervenção do Estado. Antes de mais nada, é preciso
ressaltar que a garantia e o exercício da liberdade individual não necessitam de qualquer
legitimação, em face de sua evidência. ...O que necessita de legitimação é o poder de punir do
Estado... e esta legitimação não pode resultar de que ao Estado se lhe reserve o direito de
intervenção. Isto seria falsear o problema, porque justamente aquele que está precisando legitimar
sua força - o Estado -, é que se autoconfere direitos e por isso se autolegitima. Nestes termos, a
legitimação seria manifestamente autopoiética. Com razão vem sustentando ZAFFARONI que o
sistema penal, no qual se inclui o poder de intervenção, é irracional e, pois, carente de
legitimidade. Mas, de qualquer modo, persiste a questão se e como se pode autorizar essa
intervenção. ...Se seguirmos nossa proposta de elaboração de uma teoria do injusto, de modo que,
numa primeira fase, devam ser questionados o tipo de injusto e os preceitos autorizadores da
conduta, em face dos direitos fundamentais, o tipo não pode mais desempenhar o papel de indício
da antijuridicidade. ...O injusto, entretanto, tem de ser analisado dialeticamente para que os
direitos individuais não se vejam tolhidos por intervenções inoportunas. A análise dialética
significa que os compartimentos do injusto - o tipo e a antijuridicidade -, não devem se situar
como numa relação de causalidade, de antecedente para consequente, mas dependendo do caso
concreto e da necessidade de proteção individual, possam ser apreciados separada ou
1608
Inclusive, citando GÓMEZ PAVÓN, BATISTA, Nilo. Parecer: maus-tratos..., p. 178.
1609
Como o interpreta PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro: parte geral, artigos 1° ao 120, v. I. 7. ed. São
Paulo: RT, 2007, p. 378.
1610
Assim entendendo, SOUZA SANTOS, Humberto. Co-autoria em crime culposo e imputação objetiva. São Paulo: Manole,
2004, p. 146: “Ao contrário do que afirmam alguns, a imputação objetiva não substitui a causalidade, mas a possui como
primeiro requisito.”; BATISTA, Nilo. Parecer: maus-tratos..., pp. 178-179. Aparentemente, neste sentido, JAKOBS, Günther.
Derecho..., p. 254: “El principio de confianza sólo se necesita si el que confia ha de responder por el curso causal en sí,
aunque outro lo conduzca a dañar mediante un comportamiento defectuoso.”
1611
Arrimando-se em JUAN BUSTOS RAMÍREZ, equivocadamente escreve JESUS, Damásio Evangelista de. Imputação objetiva.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 23: “Foi nesse contexto que surgiu a teoria da imputação objetiva como “verdadeira
alternativa à causalidade.”
249
conjuntamente. Essa análise dialética do injusto é imperativa por dois fundamentos. Primeiro,
porque a delimitação dos poderes de intervenção do Estado não pode ser feita apenas com base
nos enunciados, ainda que precisos, das normas proibitivas ou mandamentos, senão igualmente
pelas normas permissivas. É que a função de delimitação que se atribui à norma não pode ser
enfocada apenas no seu sentido formal, mas principalmente no sentido material, que dirá acerca
da necessidade ou não da intervenção estatal. haverá ilicitude quando esgotados todos os
recursos em favor da prevalência da liberdade. A operação que se deve fazer, conclui o professor,
é exatamente no sentido inverso da que, normalmente, realiza a doutrina. Em vez de perquirir se
existe uma causa que exclua a antijuridicidade, porque o tipo de injusto a indicia, o que
constituiria uma presunção iuris tantum de ilicitude, deve-se partir de que só se autoriza a
intervenção se não existir em favor do sujeito uma causa que autorize sua conduta. Neste caso, o
tipo o constitui indício de antijuridicidade, mas apenas uma etapa metodológica de perquirição
acerca de todos os requisitos para que a intervenção do Estado possa efetivar-se. O segundo
fundamento decorre do princípio da presunção de inocência, hoje positivado no artigo 5
o
, LVII,
da Constituição. Caso se presuma que toda ação, embora criminosa, não possa ser atribuída com
esta qualificação a alguém, antes que se verifiquem todas as possibilidades de sua exclusão, isto
implica uma alteração na estrutura e na interpretação tanto das normas processuais penais quanto
as normas penais. Em virtude disso, não se pode considerar indiciado o injusto pelo simples fato
da realização do tipo, antes que se esgote em favor do sujeito a análise das normas que possam
autorizar sua conduta.”
1612
De sorte que, sem razão JAKOBS quando sustenta que se não existisse o princípio da
confiança um determinado agente teria que viver controlando a atividade das outras pessoas,
em detrimento do exercício de suas próprias funções.
1613
Quem controla é o sistema punitivo
que, mediante o poder punitivo, pune os selecionados. Ora, se não existe a função de controle
por parte de alguém da equipe médica, como naqueles casos em que vários médicos,
desconhecidos, chegam ao local de um acidente automobilístico, haverá, quando muito,
autoria colateral, por conta da ausência de combinação, respondendo cada qual por sua
conduta. Se existe a obrigação de controlar os demais médicos - sempre dentro de limites
razoáveis
1614
, sob pena de aliciar a teoria da proibição de regresso -, o esculápio responsável pela
fiscalização deles, e pela custódia contra ofensas ao bem jurídico, responderá por haver
infringido, dolosa ou culposamente, essa sua função
1615
, e não por haver praticado, ele
próprio, a ofensa ao bem do paciente-vítima, a menos, é claro, que tenha agido com dolo ou
culpa pertinente ao próprio crime.
1616
O que, em toda medida, não pode desaguar no mesmo, a
não ser sob a pena de lançar no nariz de cera de um mesmo desvalor da ação, condutas
1612
TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Teoria..., pp. 161-166.
1613
JAKOBS, Günther. Derecho..., p. 255: “Como mínimo, el tener que dedicarse a controlar la actividad ajena excluiría la
dedicación plena a la actividad propia.
1614
Segundo ROMEO CASABONA apud BATISTA, Nilo. Parecer: maus-tratos..., p. 179: “...son supervisionados en general
dentro de unos límites razonables.
1615
BATISTA, Nilo. Parecer: maus-tratos..., p. 183: “A posição de garantidor deflui de uma relação vital, integrada a uma
assumida função de proteção do bem jurídico: essa relação vital, e só ela, promove a equiparação entre a causação do
resultado e sua não evitação. O garantidor especial da modalidade omissiva do crime de maus-tratos - v. g. -, é o sujeito
concretamente vinculado à finalidade de tratamento, sob cuja guarda se encontra a vítima. Este autor especial, que não pode
sequer ser automaticamente instituído a partir da posição organizacional de supervisão (diretor técnico), muito menos pode
ser deduzido do controle acionário da pessoa jurídica ou do desempenho de funções burocráticas nela. A ausência constante
do controlador interfere no requisito presencial, pressuposto indispensável para a possibilidade de atuar, mesmo em sujeitos
obrigados.”
1616
BATISTA, Nilo. Parecer: maus-tratos..., p. 181: “Uma boa prova disso é que, por mais que o Conselho Federal de
Medicina estabeleça a responsabilidde do diretor médico pelos ‘problemas decorrentes da atuação de acadêmicos’, como
vimos, a Justiça criminal irá responsabilizar o médico de plantão que confiou o paciente em situação delicada ao aprendiz
inexperto, procurando assim o garantidor a partir da relação vital.”
250
necessariamente desvaloráveis de forma diferente.
1617
O Direito Penal precisa eliminar essas
equiparações falsas. No mais, também
eso puede ser fundamentado con el principio de la autorresponsabilidad, según el cual el ámbito
de responsabilidad del individuo se limita básicamente a su próprio actuar y sólo en caso de
circunstancias especiales abarca también el actuar de otros, con la consecuencia de que, como
regla, no hay por qué tomar en cuenta la posibilidad del actuar descuidado y no precavido de
otros.
1618
FIANDACA e MUSCO, ao menos no geral, se dirigem no mesmo sentido quando afirmam
que,
in proposito, la regola generale da cui vanno prese le mosse è la seguente: ogni partecipante ad
uma attività medica di équipe risponde solo del corretto adempimento dei doveri di diligenza e di
perizia inerenti ai compiti che gli sono specificamente affidati, perché solo in questa maniera
ciascun membro del grupo è lasciao libero, nell’interesse del paziente, di adempiere in modo
soddisfacente alle proprie mansioni.”
1619
É claro - e tudo o que vimos sobre o princípio da confiança o corrobora - que não se pode
dessumir disso a responsabilidade criminal do diretor técnico por qualquer delito ocorrido no
ambiente hospitalar, pois isso configuraria a mais tacanha, e constitucionalmente vedada,
responsabilidade objetiva.
1620
Agora, tal qual faz LUÍS GRECO, cabe-nos unicamente perguntar se o referido princípio,
como ele é compreendido atualmente, pode fornecer a solução para o problema da
cumplicidade através de ações neutras. A primeira impressão, mais uma vez, é positiva, diz
ele. A princípio, para os casos em que constrói
“todos podem confiar que o terceiro se comportar licitamente. Afinal, o que o terceiro faz da
contribuição que lhe foi prestada é problema exclusivamente seu, e não importa mais a quem quer
que seja. Uma tal conclusão seria, entretanto, apressada. E isto fica evidente, a partir do momento
em que voltarmos as nossas atenções para aqueles fatos que são amplamente reconhecidos como
as limitações ao princípio da confiança: o primeiros deles é a hipótese de haver pontos de apoio,
indícios concretos no sentido de que o terceiro de comportar-se ilicitamente. E isto é
exatamente o que ocorre na quase totalidade dos casos de cumplicidade através de ações neutras.”
Nesse caso, continua, não se podia confiar que o delito não se cometeria.
“Ou seja, aplicar o princípio da confiança aos casos de ações neutras significaria considerá-las
proibidas em sua quase totalidade. Em síntese, o princípio da confiança, apesar de amplamente
aceito e reconhecido, não é capaz de lidar com os casos de cumplicidade através de ações neutras,
porque nestes costuma haver indícios de que o fato principal venha a ser cometido, o que
configura justamente uma das restrições à aplicabilidade do mencionado princípio.”
1621
Entretanto, ao entendimento de LUÍS GRECO deve ser dado o devido desconto, visto que,
como se tem insistido, não é preciso um princípio da confiança para resolver tais casos,
bastando-nos nos apegar à responsabilidade pessoal de cada agente, e ponto. De sorte que,
1617
Mas, não que se esteja desprezando a advertência de BATISTA, Nilo. Parecer: maus-tratos..., p. 181: “Seria contraditório
que aos dispositivos relativos à lex artis se outorgasse papel indiciário (jamais probante) do delito, e aos dispositivos sobre
divisão do trabalho se negasse qualquer relevo, ainda que modesto como aquele.”
1618
Apesar dessa afirmação, o próprio STRATENWERTH, logo em seguida, entende-a de aplicação bastante restrita, in
STRATENWERTH, Gunther. Acción y resultado en Derecho Penal. Buenos Aires: Hammurabi, 1991, p. 52 e seguintes.
1619
FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo. Diritto..., p. 514.
1620
BATISTA, Nilo. Parecer: maus-tratos..., p. 181.
1621
GRECO, Luís Filipe. Cumplicidade..., pp. 27-30.
251
deve-se sim, dimidiar a questão em duas vertentes, sendo a geral que parte do pressuposto de
um, ao menos inicial, princípio da confiança, e outra excepcional que, considerando indícios
sérios de futuro cometimento de crime, e ancorando-se na cumplicidade culposa ou mesmo
neutra do facultativo, prescreve dever o médico pressupor uma agora desconfiança de que a
conduta consequente será realmente lícita, com influência decisiva na potencial consciência
da sua ilicitude e na exigibilidade de conduta diversa. A não ação nesse sentido ensejará sua
cumplicidade. Portanto, a exceção não serve para afastar a regra geral da “confiança”, que
existe como mera expectativa, sem qualquer influência, senão, para reforçá-la, de novo, como
mera expectativa fática, porquanto uma vez esteja ela frustrada deve o médico apegar-se ao
seu potencial ou real conhecimento da nova situação, advinda desta frustração
1622
e, aí, decidir
se atua ou não.
Com efeito, mesmo diante das colocações anteriores, deve-se rechaçar a hipótese -
ultrapassada, a menos que haja, para a situação em questão, um frequente e ponderável aumento do risco
1623
-,
de se partir, nas relações médico-paciente, sempre de um princípio da desconfiança, sendo
mais correta a conclusão contrária, malgrado a confiabilidade no facultativo, antanho, fosse
muito mais facilmente espontânea, defensável e exigível. O que se tentou defender é,
exclusivamente que, invertida a situação de confiança para uma real ou potencial
desconfiança, deve o médico, agora, reavaliar sua conduta, agindo de acordo com essa novel
conjuntura, sob pena de, desrespeitando-a, praticar, ou participar de um crime.
1622
Nestes termos, FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo. Diritto..., p. 514: “Ne consegue che al chirurgo capo-équipe non può
muoversi alcun rimprovero se l’errore dell’urologo e dell’ostetrico si verifica in uma situazione di assoluta normalità, cioè
che non dà ragionevole motivo al chirurgo di dubitare dell’operato diligente dei suoi collaboratori. Se la dimenticanza dei
due medici direttamente responsabili della chiusura della operazione è invece dovuta ad uma situazione di difficoltà
conosciuta o conoscibile da parte del chirurgo capo-équipe (ad l’iter operatorio), la responsabilità colposa per il decesso
del paziente potrà gravare anche su di lui.”
1623
ROXIN, Claus. Derecho..., p. 1004: “Sin embargo, contra ello está el hecho de que en caso de un aumento del riesgo el
principio de confianza pierde de inmediato su primacia...”. Por aí, também escreve CHAIA, Rubén A. Responsabilidad..., p.
201, nt. 5, que: “Son múltiples las actividdes humanas creadoras de riesgo, pero indudablemente el ejercicio de la medicina,
en cuanto incide directamente sobre la salud y la vida de las personas, a merced del acierto o desatino de profesionales,
conlleva un plus especial de exposición y contingente peligrosidad; la atención, pericia y reflexión han de prodigarse en
dosis mayores que en otros menesteres o dedicaciones. La práctica de la medicina exige cuidadosa atención a la lex artis,
sin sentar apotegmas absolutos dada la evolución constante de la ciencia médica” (STS del 29/3/88)”.
252
6 OS PRINCÍPIOS (MEIOS OU FINS?) DA OFENSIVIDADE
1624
, DA
BAGATELA E DA INSIGNIFICÂNCIA
Antes de iniciarmos a discussão em torno destes princípios, vem a calhar um
esclarecimento prévio sobre sua nomenclatura que, vez ou outra, destoa da correta. Muito se
fala, erroneamente, antecipe-se, em crime de bagatela, esquecendo seus usuários que o uso
desta expressão, além de não exprimir o que ela realmente pretende, é dizer, aqueles crimes
cujo bem jurídico, malgrado importantíssimo à paz social (patrimônio, v. g.), é preenchido por
um objeto jurídico (agulha, v. g.) - material ou imaterial -, cuja ofensa é sempre de nonada,
pondo em segundo plano aquela agora ultrapassada importância - como, por exemplos, o furto
famélico de um pão deixado sobre a mesa da lanchonete do hospital, pertencente a um colega, ou, uma
ocasional e exclusiva via de fato entre um médico e um enfermeiro, por conta desse mesmo furto -, também
confunde as ofensas aos objetos jurídicos dos crimes com a consideração que a sociedade
presta aos mesmos - como, por exemplos, o roubo com uso de arma de uma ampola de medicamento de
baixo custo -, onde, evidentemente, a irrelevância da ofensa ao objeto - e, não do objeto em si
(imagine o contrário, onde um enfermeiro mata para roubar um bisturi) -, não autoriza à desconsideração
social do desvalor da ação que, levado a termo pelo agente, ofende importantemente o bem
jurídico. Com efeito, deve-se preferir o uso da expressão princípio da bagatela ou princípio
de nonada, ao invés de crime de bagatela.
Por outro lado, quanto ao princípio da ofensividade, o problema se inverte na medida
em que, malgrado inexistir incoerência entre ambas nomenclaturas, a quantidade de
sinônimos para o mesmo se avoluma a cada dia, dificultando, muita vez, o reconhecimento de
tratarem-se, todas, do mesmo princípio, facilitando, ao revés, o engodo do discurso penal.
tendo, e continuando a estar sendo alcunhado de princípio da ofensividade, de princípio da
bagatela e de princípio da insignificância, deve-se tomar cuidado para não incorrer no
equívoco de reputá-las referentes a institutos distintos, quiçá por excesso de capricho técnico,
e em atenção a eventuais pormenores, seguramente insignificantes e, aqui sim, não
inofensivos, inobstante isto favoreça o discurso penal a manter-se de pé com o afastamento de
um, como se estivesse englobando todos. Do contrário, daqui a pouco, e por mera luxúria
acadêmica, estarão dizendo que o princípio da ofensividade não contém os crimes de mera
atividade, tampouco os de perigo concreto, por inexistir, nestes, qualquer ofensa. Pois bem,
1624
Para saber mais sobre esse princípio, ver a obra de GOMES, Luiz Flávio. Princípio da ofensividade no Direito Penal. In
série as ciências criminais no século XXI, v. 6. São Paulo: RT, 2002, passim.
253
afora o crime de furto privilegiado
1625
, previsto no artigo 155, § 2º, do Código Penal, onde o
magistrado competente para o seu julgamento, obrigatoriamente, deve diminuir as
consequências penais da conduta, inclusive condenando o agente em mera multa quando as
circunstâncias o aconselhem
1626
, boa parte da doutrina, mais conservadora
1627
porém, ainda
não admite sua aplicação, talvez porque não consiga se desgarrar de uma atenção exclusiva do
desvalor da ação - mormente por entender que, muita vez, uma conduta irrelevante para a sociedade pode
não o ser para o indíviduo-vítima, como é o caso da médica, cleptomaníaca que furta, da colega de quarto, uma
bijuteria de contas marinhas, de valor ínfimo, mas que fora presenteada a esta pela mãe já falecida em ocasião
especialíssima, denotando um caráter sentimental inintrínseco ao próprio bem objeto da ação -, é dizer,
separado do desvalor do resultado que considerado o diminuto valor da ofensa ao bem, objeto
da ação, reboca para patamar suportável pela sociedade este mesmo desvalor, tornando-o
ínfimo para fins de eventual abalo social oriundo da prática do crime, nesse cabo de guerra em
que o desvalor da ão tem ganhado cada vez mais força em razão de um aumento do poder
punitivo que encontra mais conforto neste para promover seu embuste, do que no ambiente do
desvalor de resultado, onde o discurso estaciona numa realidade mais sensível.
Pelo princípio da insignificância o ilícito penal, como ilícito especialmente
qualificado, ilícito a que o Estado comina uma pena, deve apresentar certa gravidade, pois
as agressões mais intensas aos bens jurídicos mais valiosos consistirão ilícito penal. Daí
decorre que os tipos penais devem ser interpretados restritivamente de modo a retirar de seu
campo de aplicação aquelas atividades penalmente irrelevantes. A doutrina moderna parece
considerar este princípio uma máxima geral de interpretação, de importância, porém, bastante
modesta por motivo de seu baixo grau de precisão. Ele serviria, assim, principalmente, para
excluir do campo dos tipos aquelas condutas e resultados que, prima facie, sem qualquer
sombra de dúvida, carecem de qualquer carga de desvalor
1628
, desde que advenham de
condutas culposas.
Todavia, a maioria dos escritores penais hoje, despregando-se da análise isolada do
desvalor da ão
1629
, vêem na diminuição da importância da ofensa ao objeto jurídico
1625
Como o famélico, em que o criminoso furta - ou seja, não emprega violência ou ameaça -, alimentos para sua
subsistência, como um pão, uma fruta etc. Seria o caso, e. g., do facultativo que, quase ao final de seu plantão noturno, onde
não pudera alimentar-se por conta de novo acidente que vitimara inúmeras pessoas, encontrando-se prestes a adentrar na sala
de cirurgia, apreende uma maçã da sua colega plantonista, sem que esta saiba ou autorize.
1626
“Aconselhamento” que, em nenhuma medida, contradiz a afirmação anterior, pois a referida obrigação de tratamento
mais equânime ao criminoso primário, e que furta coisa de pequeno valor, sempre existirá, desde que - e aqui, vai o porquê da
segunda afirmação modal -, a situação em que o furto tenha se produzido, enquadre-se nas exigências legais do art. 155, § 2º,
do Código Penal, quais sendo, primariedade e valor diminuto do objeto apropriado.
1627
E, aqui, não vai nenhuma discriminação, senão, uma mera constatação.
1628
GRECO, Luís Filipe. Cumplicidade..., pp. 30-31.
1629
GOMES, Luiz Flávio. Princípio..., p. 35 : “Isso significa, claramente, que está vedada a possibilidade de o legislador
configurar o delito como uma mera desobediência ou simples infração da norma (imperativa) ou mesmo como simples
254
alcançado - ou seja, em consideração ao princípio da bagatela -, uma inofensividade que autoriza sim,
com suporte no princípio da ofensividade, a desconsideração do crime como algo socialmente
ilícito, esvaziando neste qualquer conteúdo de reprovação ou censura. Então, malgrado
remanesça típica a conduta irrelevante, sob o ponto de visada da antijuridicidade ela passa a
ser lícita, porque inofensiva e, por isso, aceita pela sociedade em geral. Ainda que o bem,
objeto jurídico do crime, de acordo com a justificativa dos conservadores, possua um valor
sentimental próprio do seu titular, ele não encontra repetição na sociedade que o encara,
apenas, como economicamente irrisório e perfeitamente fungível, partindo daí a
insignificância da sua ofensa, v. g.
Do embate dessas duas correntes, ao que parece, deve prevalecer a segunda, porquanto
o Direito Penal, atualmente, não pode mais servir de panacéia
1630
, avocando a pretensão de
solucionar todas as questões intersubjetivas.
Do exposto e ao revés do que prima facie poderia parecer, facilmente se percebe que
mesmo as condutas próprias dos médicos - como violação de segredo ou emissão de atestado falso -,
dificilmente não poderão se privilegiar com a aplicação do princípio da bagatela ou da
ofensividade que, advirta-se, não depende da natureza - patrimonial ou não, e. g. -, do bem
violado, tampouco da importância sentimental ou econômica que este possua para a vítima
pois, dez reais para um médico, não têm o mesmo valor que a mesma nota monetária para um mendigo, cuja
mendicância influencia rigorosamente na análise do cabimento, ou não, daquele princípio -, senão, sempre
da importância da sua ofensa para a manutenção do discurso do sistema penal bem como da
relevância que a sociedade lhe empresta, pois será isso que alimentará este mesmo discurso.
Por fim, como pode ser intuído, então não é possível o estudo dos princípios da bagatela e da
ofensividade descolados do da adequação social da conduta.
desvalor da ação (é o que se dá no perigo abstrato, por exemplo), sem considerar qualquer ofensa a um bem jurídico ou
mesmo a um autêntico bem jurídico.”
1630
Em respeito, inclusive, aos princípios da subsididariedade e fragmentariedade.
255
7 CONCLUSÃO
Se o é natural, ao menos uma passada d’olhos nos tipos penais descortina que o
discurso punitivo penal, vez ou outra, não se sustenta, apenas, em vetores penalísticos, senão,
muita vez, em outros componentes que, embora lhe sejam externos, nele intervêm
decisivamente. Assim, acontece com a medicina que, notadamente, tem intervindo no poder
punitivo, geralmente, ampliando-o, ora formalmente, ora de maneira camuflada. Afora,
portanto, uma intervenção discursiva médica evidente, como no caso do artigo 121, do CP,
onde quem decide se a vítima está ou não morta é a medicina, existe uma outra apresentação
do discurso médico, menos pomposa e aparente, mas não menos determinante. Além disso,
especificamente, existe, para não fugir da regra, um subsistema penal médico infrasuperfície
que se apresenta quando o poder médico desvia órgãos transplantáveis, burlando a fila
(que)de (des)espera - e que, normalmente, devia ser um uso social praeter legem, respeitado -, mas,
também, quando o corpo médico de um hospital - exercendo funções administrativas -, frauda um
certame licitatório, ou desvia verbas públicas, em detrimento do menor preço ou apresentando
uma conta que não passa de um embuste, respectivamente. Detrás das cortinas ainda pode se
apresentar um espetáculo de poder, inclusive com disputas internas, cujo exercício em si, em
quase toda medida, porém, colima manter, essencialmente, a hegemonia do discurso médico,
não se descartando entrementes, de lambuja, se possível, quem sabe ampliá-lo, o que
acontecerá, e aqui se aproveita do que sentenciou WACQUANT para outra situação, é dizer, com
“a segunda parte da inovação tecnológica, em matéria de... biometria, telemedicina etc.”
1631
Portanto, é assim que o Direito Penal Médico, insaciavelmente, autoalimenta-se - e com direito a
um nidro na nossa face, após o jantar! -, realizando aquela anedotazinha sem graça onde aquele
arremedo de médico, numa paródia de exercício da medicina, admoesta o próprio filho que,
recém-formado, cura o doente cuja manutenção do estado de morbidez, escandida adrede pelo
pai, custeou-lhe os estudos.
Ora, como restou demonstrado na dissertação, a invasão e a apropriação do corpo do
indivíduo pelo discurso médico visou a interesses mais remotos dos individuais que dos
coletivos burgueses, reelaborados, agora, em neoliberais, tendo razão FREIRE COSTA quando
sustenta que se a dependência da família burguesa para com agentes educativo-terapêuticos
remonta às elites oitocentistas, sua atualmente idêntica dependência também é inegável,
tutelando a medicina social, mediante uma política higiênica, aquela que pouco a pouco
1631
WACQUANT, Loïc. As prisões..., p. 89.
256
contentou-se em reduzir-se ao apelo para os especialistas médicos a fim de resolverem seus
problemas domésticos.
1632
Indiciariamente, “isto prova que os atos insignificantes preparam
os mais importantes.”
1633
Com a ascenção da burguesia, que passou a reter o domínio do discurso, “a vida
privada dos indivíduos foi atrelada ao [seu] destino político...; ...o corpo, o sexo e os
sentimentos conjugais, parentais e filiais passaram a ser, programadamente, usados como
instrumentos de dominação política e sinais de diferenciação social daquela classe [a
burguesia].”
1634
A questão era saber se a higiene foi causa ou efeito nesse contexto
1635
, não se
esquecendo, o que não significa considerar, o que disse WEBER, i. e., “a ação social real se
desenvolve, normalmente, com escassa ou nenhuma consciência do sentido por parte dos
agentes participantes; eles antes ‘sentem’ do que ‘sabem’.”
1636
Agora, alguém deve estar se perguntando, quiçá ansiosamente, se o que realmente foi
sustentado, e com uma desfaçatez surpreendente, foi que a medicina, sobretudo a social,
significou um mal para o povo brasileiro. Em resposta a essa suposta indagação, ficou
respondido, absolutamente, que não e que sim. Que sim, porque admoesta, um pouco
exageramente talvez, FREIRE COSTA: “quando observamos os resultados da educação higiênica,
uma conclusão se impõe: a norma familiar produzida pela ordem médica solicita de forma
constante a presença de intervenções disciplinares por parte dos agentes de normalização. De
fato, muitos dos fenômenos apontados, hoje em dia, como causas da desagregação familiar,
nada mais são que consequências históricas da educação higiênica. Em outros termos, as
famílias se desestruturaram por terem seguido à risca as normas de saúde e equilíbrio que lhes
1632
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 12.
1633
Citando, ADOLPHO ALVES SIMÕES BARBOSA, FREIRE COSTA, Jurandir. Ordem..., p. 203.
1634
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 13.
1635
Criticando, prima facie, JURANDIR FREIRE COSTA que a entende como causa, mas, ao final, aceitando suas conclusões,
veja PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., pp. 124-125 e 129-130: “Às vezes, a análise resvala para o terreno perigoso
de tomar a higiene como causa das transformações às quais se faz referência. Mas de modo geral, ela se mantém fiel à
consideração de que as medidas higienizadoras constituíam um efeito das transformações socioeconômicas relativamente
profundas (e que são dadas por conhecidas) que se produziram no Brasil, com sua integração mais intensa ao capitalismo
mundial. ...O autor, no nosso entender, exagera na racionalidade que atribui ao Estado brasileiro na utilização dos higienistas
como instrumento de modelação da família burguesa. ...Em relação ao trabalho de JURANDIR FREIRE COSTA, poder-se-ia fazer
aqueles reparos já mencionados. O primeiro, de atribuir aos agentes sociais da história, principalmente ao Estado, uma
racionalidade praticamente impossível de ocorrer em condições sociais concretas. O segundo, de imputar à higiene a
característica de condição por demais determinante, sem se referir à sua característica funcional: a de efeito. É como se ela
tivesse sido, por si só, um dos fatores mais significativos na adequação dos hábitos, costumes e comportamentos da família
burguesa do Rio de Janeiro de meados do século XIX. Pela análise do material histórico utilizado, fica claro que esse papel
foi importante. Mas tendo sido alteradas as bases econômicas da vida social, as relações sociais e a ideologia que as
sustentava teriam, inevitavelmente, de acompanhar a mudança fundamental. Nesse sentido, a própria revolução da higiene,
representada pela nova maneira de encarar o corpo e as relações sociais, constituiu um fruto daquelas transformações. Em
outras palavras, a higiene fazia parte de um complexo de causas e efeitos. O autor a tratou como condição determinante em
vez de efeito, porque foi essa a perspectiva que adotou. Sem dúvida, tal tratamento produziu resultados interpretativos
interessantes e aceitáveis.”
1636
PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., p. 167.
257
foram impostas.”
1637, 1638
Que não, por outro viés, porque restou patenteado que o domínio
discursivo - atrelado a um cientificismo que impede os médicos de perceberem que o exercício da lex artis
tem sempre, e necessariamente, um reflexo político, bem como de reverem as matrizes sociais da ciência
médica
1639
-, retirado da medicina poderia cair em mão menos habilidosa, e que o exercício da
medicina, de per se, olvidando seu poder simbólico, teria algo, realmente, de bom.
Resumindo, ficou consignado que tem razão FREIRE COSTA quando afirma: “que a família sofre
e precisa ser ajudada, não dúvida!”
1640
, e, “no que diz respeito ao progresso científico da
higiene, seus benefícios para os indivíduos são inegáveis. Não se trata de negar ou
desvalorizar a importância destes fatos. O que importa é notar que a própria eficiência
científica da higiene funcionou como auxiliar na política de transformação dos indivíduos em
função das razões de Estado.
Foi porque a medicina era, de fato, empírica e conceitualmente científica que sua ação
política foi mais operante.
1641
Diante de um saber colonial estribado em noções médicas dos
séculos XVI, XVII e XVIII, pré-experimentais e em sua quase totalidade filosóficas e
especulativas, a higiene surgiu arrasadoramente convincente. No entanto, ficou sublinhado
que sua força foi impulsionada pelo interesse político do Estado na saúde da população. No
caso brasileiro esta evidência é incontestável. O Estado brasileiro que nasce com a
abdicação
1642
é o moto-propulsor do súbito prestígio da higiene.
1643
A atividade médica
coincidia e reforçava a solidez de seu poder. Por isso recebeu seu apoio.”
1644
De bom, portanto, seria aquele algo que, afastando o controle terapêutico arrimado
numa fabricada fragilidade do indivíduo em razão da sua insubmissão às normas de saúde -
como o cão que rotaciona amiúde, perseguindo a calda -, entende a medicina não imprescindível ao
invés de não prescindível, porquanto o contrário, segundo FREIRE COSTA - i. e., “mais exercícios
físicos, mais educação sexual, mais ginásticas mentais e mais esforços intelectuais” -, ensejaria
1637
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 15.
1638
Sobre os exageros desta concepção, veja PEREIRA, José Carlos de M. A explicação..., pp. 124 a 130.
1639
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 16.
1640
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 17.
1641
Outros motivos, porém, podem ser encontrados em COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 63.
1642
Sobre o assunto, veja COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 148.
1643
Citando ROBERTO MACHADO et alii, veja COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 56: “Coincidindo com a ascensão do
Estado nacional, a higiene médica experimentou um significativo progresso em sua expansão. Em 1829 é fundada a
Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro. Essa entidade representava o grupo médico que lutava por se impor
junto ao poder central como elemento essencial à proteção da saúde pública e, por extensão, à ordenação da cidade. Em 1832
este grupo obtém uma vitória expressiva em seus avanços para o poder. Naquela data as sugestões contidas nos relatórios da
Comissão de Salubridade, setor da Sociedade, são incorporadas ao Código de Posturas Municipais do Rio de Janeiro.
Aproximadamente vinte anos depois, em 1851, o Estado cria a Junta Central de Higiene Pública, que confirma e estende a
participação da higiene nos cuidados da população.”
1644
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 32.
258
“inevitavelmente... maior disciplina, maior vigilância e maior repressão”
1645
, em sinonímia,
maior poder de dominação discursivo-simbólica que, inclusive, alcançou “matas, pântanos,
rios, alimentos, esgotos, água, ar, cemitérios, quartéis, escolas, prostíbulos, fábricas,
matadouros e casas.”
1646, 1647
Então,
“não se trata de negar a desorientação e o sofrimento emocional que perseguem os indivíduos
urbanos às voltas com seus dilemas familiares. A dúvida consiste em saber se os remédios
propostos, ao invés de sanarem o mal, não irão perpetuar a doença. O problema começa quando
percebemos que a lucidez científica das terapêuticas dirigidas às famílias escondem, muitas vezes,
uma grave miopia política. Miopia que tende a abolir, no registro do simbólico, o real adjetivo de
classe existente em todas estas lições de amor e sexo dadas à família.”
1648
Todavia, seria embalde dizer que o direcionamento assumido pela medicina foi
volitivo, porque, sinceramente, ficou demonstrado que o o foi. E não o foi porque o poder
emblemático, como sabido, é exercido por e contra pessoas que desconhecem essas suas
respectivas condições de dominantes e dominados. Portanto, como ensina FREIRE COSTA,
“é quase supérfluo notar que não houve intencionalidade finalista no manuseio recíproco desses
interesses. Medicina e Estado convergiram, mas também divergiram, por vezes, tática e
estrategicamente. Nem sempre os dois poderes reconheceram o valor da aliança que haviam
estabelecido. historicamente é possível perceber que em meio a atritos e fricções,
intransigências e concessões, estabilizou-se um compromisso de mão dupla vazado na
salubridade: o Estado aceitou medicalizar suas ações políticas, reconhecendo o valor político das
ações médicas”
1649
,
e com vantagens para ambos
1650
que, dividindo o poder, conquistaram. A medicina, mais
rápida e mais adequada aos problemas salutares apresentados na ocasião e, alerta FREIRE
COSTA, “servindo-se de técnicas análogas às da militarização”
1651
, suprimia a “inoperância da
burocracia”
1652
, enquanto o Estado com seu poder hegemônico, cuja amplidão e
descentralização impediam um controle atuarial mais escorreito, abria brechas em seu corpo
para a permanência parasitária daquela.
Como o tema merece mais atenção, aproveita-se agora de uma passagem de DEBORD,
escrita para outra situação, para dizer que como não era hora de idéias, era hora de fatos e
1645
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 16.
1646
Especialmente, alcançando as residências, veja o que diz FRANCISCO DE PAULA CANDIDO apud FREYRE, Gilberto.
Sobrados..., pp. 433-434: “Do ponto de vista da higiene, a habitação antiga prestava-se a todo tipo de crítica. Sua arquitetura
fechada, impermeável ao exterior, elaborada para responder ao medo dos ‘maus ares’, ventos e miasmas foi duramente
atacada pelos médicos como insalubre e doentia: ‘As casas do Rio de Janeiro parecem destinadas antes à Lapônia ou à
Groenlândia do que à latitude tropical... uma fatal alcova, dormitório predileto; escura e modesta sala com um corredor
escuro; uma sala de jantar, de costurar, de tudo, exceto de saúde, pouco mais escura que a sala da frente, mas munida de
infalível alcova, mediante ou não outro corredor, a cozinha térrea.”
1647
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., pp. 30 e 184 a 187.
1648
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 17.
1649
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., pp. 28-29.
1650
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 64: “Os trabalhos médicos sobre a higiene mostram como, no nível do saber, essa
troca de favores entre medicina e Estado foi teorizada. Um mesmo eixo lógico orientava todos eles. De início, o fenômeno
físico, cultural ou emocional era aspirado e convertido em fato médico e, em seguida, reinjetado no tecido social conforme a
articulação prevista. Desta forma, o repertório de sentimentos e conduta antes administrado pela família era encampado pela
medicina e, através dela, devolvido ao controle estatal.”
1651
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., pp. 29 e 48.
1652
Nesse sentido, COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 29.
259
atos
1653
, como “a ignorância... nunca deixou de servir ao poder estabelecido”
1654
, malgrado a
mediação entre teoria e prática, ainda segundo ele, possibilitasse que os proletários deixassem
“de ser espectadores dos acontecimentos ocorridos em sua organização, mas
conscientemente” passem [passassem] a escolhê-los e vivê-los”
1655
, como, ainda esposando o
mesmo, “os fatos ideológicos nunca foram simples quimeras, mas a consciência deformada
das realidades, e, como tais, fatores reais que exercem [exercessem] uma real ação
deformante”
1656
, como, outrossim, “o fato de não ter contestação conferiu à mentira uma
nova qualidade”
1657
, e como uma das características do discurso espetacular, no dizer do
mesmo, é reconstituir-se sempre que haja representação independente
1658
, o discurso médico
simbólico higienizador, suscitando, como percebeu FREIRE COSTA, “o interesse do indivíduo
por sua própria saúde”
1659
, difundiu-se, assustadoramente, ampliando seu alcance através de
uma via de mão única, porquanto se a medicina vendia uma novidade, é óbvio, e aqui plagia-
se DEBORD para interpolar e dizer, que ela tinha “todo o interesse em fazer desaparecer o meio
de aferi-la”
1660
, exclusivamente com o intuito de, prescindindo do Estado, assumir, sozinha, o
monopólio do discurso
1661
e, assim, poder catequizar pois a medicina utilizou-se de uma
“pedagogia jesuíta”
1662
-, medicamente, também sozinha, os novos conversíveis das
necessidades neoliberais, domesticando-os mediante um adestramento pautado pelos
interesses da nova elite urbana.
Como é preciso, para manter a estrutura dominal adquirida - porquanto, ensina DEBORD,
“a estrutura é filha do poder”
1663
-, manter, pelo menos, o quantum de poder simbólico obtido,
embora o mister de mais poder, sendo insatisfazível, sempre recepciona bem qualquer
aumento
1664
- pois é o poder que recria o poder -, parece evidente que a medicina tenha reinventado
1653
DEBORD, Guy. A sociedade..., pp. 62-63.
1654
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 199.
1655
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 78.
1656
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 137.
1657
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 176.
1658
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 18.
1659
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 29. As razões disso e como isso foi conseguido, estão em idem, p. 63.
1660
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 178; em sentido contrário, ancorando-se em JOAQUIM JOSÉ DOS REMÉDIOS MONTEIRO,
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., pp. 213-214: “Julga-se que o vulgarizar a medicina pelo povo poderia induzi-lo a praticá-la
e fiar-se de si mesmo em vez de recorrer aos profissionais; o contrário porém é o que sucede. As pessoas mais instruídas
nesta matéria são ordinariamente as mais dóceis e as que buscam os conselhos dos médicos, enquanto os ignorantes são os
mais ousados em exercitar a arte e mais prontos a desconfiar dos médicos.”
1661
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 76: “No séc. XIX, a medicina vai lutar tenazmente contra esta situação, procurando
monopolizar o saber e condensar na figura do médico o direito de assistir os doentes.”.
1662
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 48.
1663
DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 131.
1664
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 147: “O outro tipo de ganho resultou de um compromisso. Medicina e família,
enquanto se batiam, foram chegando, aos poucos, a um acordo. A primeira tiranizava a segunda, que se deixava dominar,
mas em troca da participação no próprio poder médico. Após capitular diante da medicina, de reconhecer o valor do corpo e
da moral sadia, a família passou não só a consumir como a difundir serviços médicos. De consumidora passiva, passou a
produtora e comerciante. Começou a produzir seus próprios médicos. Começou a enaltecer sua figura. Alterou o sentido de
260
- ainda que reincidindo, copiosamente, nas mesmas características da morbidade original -, constantemente,
uma necessidade para, diante dela, apresentar-se como única solução. Então, invertendo a
advertência de DEBORD, ousa-se afirmar que: também é possível conservar a coisa quando o
nome foi mudado em segredo.
1665
Com efeito, parece incontestável FREIRE COSTA quando,
menos ou mais nesses mesmos termos, expõe que
“essa estratégia, no entanto, criava seus próprios limites e exigências. Os higienistas, para
manterem viva a situação de tradutores exclusivos do obscuro, vão ser obrigados a inventar, cada
vez mais, fatos, distinções e classificações novas do corpo dos indivíduos e do sentimento da
família. As diferenciações vão tender para o infinito. O nominalismo da higiene, como já se pôde
observar, correspondia à persistência da medicina classificatória do século XVIII no interior da
medicina anátomo-clínica do século XIX. No caso da psiquiatria, esse fato é, particularmente,
expressivo. Entretanto, outros motivos explicavam a insistência da medicina higiênica em
dominar e classificar, exaustivamente, fenômenos físicos e sentimentais. A necessidade de
apresentar o banal sob o signo do insólito era uma condição necessária à implantação da
hegemonia médica. A medicina social criava o fato médico inédito e apresentava-o à família que,
atônita, descobria no saber higiênico a prova de sua incompetência.”
1666
Oportunistas, os médicos, mormente os da higiene, sempre souberam aproveitar o
momento consentâneo - nunca sem o pressuposto autorizativo do Estado, seja por ação, seja por omissão -,
para, estrategicamente, fomentar seu poder, infinitamente. Eles, nos fala FREIRE COSTA,
“faziam um jogo duplo: por um lado, mostravam o mundo como fascinante. Por outro, como
perverso. Procuravam demonstrar que para abordá-lo era preciso prudência, mas, sobretudo,
ciência. A imoralidade e o sofrimento espreitavam incautos, prontos a tragá-los. A cidade
burguesa que, através da higiene, ia sendo saneada de pestes e epidemias, via-se agora,
através da mesma higiene, contaminada por uma infinidade de misérias morais.”
1667
E,
quando percebiam que estavam perdendo prestígio, reinventavam os argumentos que
convenciam os terceiros da sua necessidade, como no caso do “mundo obsceno, moralmente
destrutivo [que] foi inventado para criar na família terror ao exterior e ternura pelo convívio
íntimo. Este artifício desacelerava o movimento de sociabilidade que parecia fugir ao controle
médico.”
1668
Os médicos, que estavam “sempre à mão, aproveitavam cada consulta para
resolver certos problemas e deixar plantados os germes de novas dificuldades. Observados os
efeitos do que eles próprios criavam, reforçavam a convicção de que a prática confirmava a
teoria. Acreditavam que, em todos estes momentos, intervinham como solícitos portadores de
neutras soluções científicas.”
1669
seus investimentos: em vez do ‘filho-padre’, o ‘filho-doutor’. O ‘médico de família’ foi uma vitória da higiene; o ‘filho-
médico’ foi um tratado de armistício entre os dois poderes. Apropriando-se do médico, o grupo familiar não mais se opôs à
higiene. Pelo contrário, ajudou-a a expandir-se, pois já estava participando dos seus lucros.”
1665
Sobre o original, DEBORD, Guy. A sociedade..., p. 193: “É possível conservar o nome quando a coisa foi mudada em
segredo (seja cerveja, bife ou um filósofo).”
1666
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 71.
1667
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 134.
1668
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 136.
1669
COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 139.
261
Por outro lado, concluiu-se que era realmente preciso reconhecer que DEBORD estava
certo quando dizia, já no segundo terço do século passado que
“a medicina moderna, por exemplo, conseguiu se fazer considerada útil por algum tempo, e os
que haviam vencido a varíola ou a lepra eram bem diferentes dos que capitularam
vergonhosamente diante das radiações nucleares ou da química agroalimentar. É cil perceber
que hoje a medicina já não tem o direito de defender a saúde da população contra o ambiente
patógeno, porque isso significa opor-se ao Estado
1670
, ou apenas à indústria farmacêutica. Mas
não é pelo que ela é obrigada a calar que a atual atividade científica confessa aquilo que se
tornou. Muitas vezes é também pelo que ela tem a simplicidade de dizer. Ao anunciar em
novembro de 1985, após uma experiência de oito dias com quatro doentes, que talvez tivessem
descoberto um remédio eficaz contra a Aids, os doutores EVEN e ANDRIEU, do hospital Laënnec,
provocaram dois dias depois, quando os doentes morreram, certas reservas por parte de médicos
menos progressistas ou talvez invejosos, quanto ao modo precipitado como os dois pesquisadores
logo registraram o que não passava de uma aparente vitória - algumas horas antes da derrocada.
Os dois se defenderam sem se perturbar, afirmando que ‘afinal, mais vale uma falsa esperança do
que esperança alguma’. Em sua imensa ignorância nem perceberam que esse argumento é, em si,
a negação completa do espírito científico: ele sempre serviu, historicamente, para encobrir as
lucrativas quimeras dos charlatães e feiticeiros, na época em que não lhes entregavam a direção
de hospitais.”
1671
Ou seja, em certa medida, no embate pelo poder hegemônico, a medicina parece estar
perdendo o domínio sobre o discurso e, parafraseando RADBRUCH, aqui posto em dúvida, para
ser substituída por algo melhor do que ela? Ou, quem sabe, exorcizando o diabo com o
belzebu.
1672
Enfim, deve-se comungar com BOURDIEU quando ele diz:
“como não evocar... o caso dos juristas que, à custa de uma ‘piedosa hipocrisia’, estão em
condições de perpetuar a crença de que seus vereditos encontram seu princípio não em restrições
externas, sobretudo econômicas, mas nas normas transcendentes de que são os guardiães? O
campo jurídico não é o que acredita ser, isto é, um universo puro de todo comprometimento com
as necessidades da política ou da economia. Mas o fato de que consiga fazer-se reconhecer como
tal contribui para produzir efeitos sociais inteiramente reais e, em primeiro lugar, sobre os que
têm por profissão dizer o direito. Mas o que será dos juristas, encarnações mais ou menos sinceras
da hipocrisia coletiva, caso se torne de notoriedade pública que, longe de obedecer a verdades e a
valores transcendentes e universais, eles estão trespassados, como todos os outros agentes sociais,
por restrições como as que exercem sobre eles, subvertendo os procedimentos e as hierarquias, a
pressão das necessidades econômicas ou a sedução dos sucessos jornalísticos?”
1673
Mutatis mutandis, o mesmo vale para os médicos e para a medicina.
Em resumo, na lição de SCHWARCZ,
“é hora de refletir.... Aí estão os ‘homens de direito’ e de ‘medicina’. Uns com a lei, outros com o
remédio. Em ambos apenas uma certeza: a vontade de ter nas mãos o comando dos destinos dessa
pobre nação. Visto por este prisma, talvez o debate tenha mesmo se concentrado entre as escolas
de direito e medicina. Instaurada uma espécie de disputa pela hegemonia e predomínio científico,
percebem-se dois contendores destacados: de um lado o remédio, de outro a lei. O veneno
previsto por uns, o antídoto na mão dos outros.”
1674
A história do Direito Penal Médico, portanto, estende-se desde a coisificação do
paciente, reputado mero objeto da atuação médica, até a sua consideração como sujeito
1670
Historicamente, dava-se o contrário. Se não, veja COSTA, Jurandir Freire. Ordem..., p. 63: “Todo o trabalho de persuasão
higiência desenvolvido no séc. XIX vai ser montado sobre a idéia de que a saúde e a prosperidade da família dependem de
sua sujeição ao Estado.”
1671
DEBORD, Guy. A sociedade..., pp. 198-199.
1672
HASSEMER, Winfried. Introdução..., p. 432.
1673
BOURDIEU, Pierre. Sobre..., p. 116.
1674
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo..., pp. 238 e 241.
262
principal da relação médico-paciente, em que sua vontade deve ser relevada, à exceção das
situações em que está em posição sobranceira a tutela da saúde pública
1675
, mas, obviamente,
não como veículo para a manutenção e, ou, ampliação do discurso médico de per se. Por outro
lado, sejamos convinháveis em admitir com BUARQUE DE HOLANDA, que, como visto, “a
inclinação geral para as profissões liberais” interpretada “como aliada de nossa formação
colonial e agrária, e relacionada com a transição brusca do domínio rural para a vida urbana,
não é, aliás, um fenômeno distintamente nosso”, pois, se “apenas, no Brasil... fatores de
ordem econômica e social - comuns a todos os países americanos -, devem ter contribuído
largamente para o prestígio das profissões liberais, convém não esquecer que o mesmo
prestígio já as cercava tradicionalmente na mãe-pátria.”
1676
Ademais,
“a dignidade e importância que confere o título de doutor permitem ao indivíduo atravessar a
existência com discreta compostura e, em alguns casos, podem libertá-lo da necesidade de uma
caça incessante aos bens materiais, que subjuga e humilha a personalidade. Se nos dias atuais o
nosso ambiente social não permite que essa situação privilegiada se mantenha cabalmente e se
o prestígio do bacharel é sobretudo uma reminiscência de condições de vida material que não
se reproduzem de modo pleno, o certo é que a maioria, entre nós, ainda parece pensar nesse
particular pouco diversamente dos nossos avós. O que importa salientar aqui é que a origem da
sedução exercida pelas carreiras liberais vincula-se estreitamente ao nosso apego quase exclusivo
aos valores da personalidade. Daí, também, o fato de essa sedução sobreviver em um ambiente de
vida material que já a comporta dificilmente. Não é outro, aliás, o motivo da ânsia pelos meios de
vida definitivos, que dão segurança e estabilidade, exigindo, ao mesmo tempo, um mínimo de
esforço pessoal, de aplicação e sujeição da personalidade, como sucede tão frequentemente com
certos empregos públicos.”
1677
E o prestígio relatado acima influencia sobremodo na dominação do discurso pelos
médicos e pela medicina. É que, como o discurso médico é técnico por excelência, e
justamente porque é somente como técnico que ele se indisponibiliza aos dominados - o ritual
de não-permutabilidade, de que fala FOUCAULT
1678
-, e como toda estratégia corre sempre o risco de,
repetindo-se, poder ter suas técnicas aprendidas e apreendidas por quem não retém, por
enquanto, o poder sobre o discurso - o ritual de apropriação de segredo, explicado por FOUCAULT
1679
-,
essa eloquência médica precisa se atualizar amiúde, evitando, assim, qualquer acessibilidade
dos não credenciados e não abastecidos, previamente, com uma comunicação social
suficiente.
Portanto, a detonação de estratégias interventivas pelo discurso médico se reitera a
cada nova oportunidade. Uma das últimas, mas, sem dúvida, a mais espetacular e
1675
CHAIA, Rubén A. Responsabilidad..., p. 23.
1676
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., pp. 156-157.
1677
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes..., p. 157.
1678
FOUCAULT, Michel. A ordem..., pp. 40-41: “Mas que ninguém se deixe enganar; mesmo na ordem do discurso verdadeiro,
mesmo na ordem do discurso publicado e livre de qualquer ritual, se exercem ainda formas de apropriação de segredo e de
não-permutabilidade. ...Mas existem ainda muitas outras que funcionam de outra maneira, conforme outro regime de
exclusividade e de divulgação: lembremos o segredo técnico ou científico, as formas de difusão e de circulação do discurso
médico....”
1679
FOUCAULT, Michel. A ordem..., p. 40.
263
impressionante foi em 1940. Ano em que “o Estado Novo aprova o Código Penal”.
1680
Como
ensinam ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR,
“a história do código de 1940 e do sistema penal que se constitui tomando-o como referência
programadora axial tem raízes no conjunto de transformações implantadas a partir da chamada
revolução de 1930. Politicamente, 1930 exprime uma reação contra o federalismo exacerbado da
primeira República, que se materializou na ‘política dos governadores’ apoiada no mandonismo
local dos ‘coronéis’.... Economicamente, 1930 marca a ruptura com a teoria liberal do estado
gendarme... e a consequente implantação de um estado intervencionista. ...Socialmente, 1930 é
sobretudo o ponto de partida para a ‘incorporação da classe trabalhadora ao cenário político da
sociedade brasileira.... A incorporação do proletariado foi instrumentalizada pela legislação
previdenciária - que das Caixas de Previdência, em 1931, chegaria aos Institutos de
Aposentadoria e Pensões das diversas categorias profissionais, envolvendo assistência médica e
programas habitacionais -, pela organização sindical... e pelas leis trabalhistas. ...Paralelamente à
configuração dessa nova economia nacional... edifica-se um Estado intervencionista e
previdenciário. As cidades... começam a crescer, na razão direta da oferta de postos de trabalho
industriais.”
1681
Ora, a difusão político-administrativa, o quase abandono do modelo agro-exportador,
preterido pelo crescimento industrial, e a instalação de um intervencionismo estatal, sobretudo
previdenciário, explicam, em parte, os porquês de os crimes contra a vida constarem na
primeira rubrica capitulária - como sabido, a que elenca os crimes reputados como mais ofensivos e
importantes -, da parte especial do nosso Código Penal quase septuagenário. É que o Estado
intervencionista, porque preocupado em controlar as relações de mercado, teve que se
imiscuir, mediante auxílio do discurso médico, no nosso capitalismo atrasado,
reequacionando e reequilibrando as diferenças sociais e trabalhistas.
1682
Então, como teria se dado, realmente, o conúbio entre medicina e direito? Qual teria
sido a amálgama que os uniu e os une em desfavor da liberdade do indivíduo e da sociedade?
Bem, agora já se pode concluir que esse esposamento pressupõe algumas coisas.
Uma delas é a passagem de uma medicina individual para outra coletiva. A outra, a
normalização e a regulamentação da vida, tanto advindas do direito quanto da medicina.
Outra, o novo conceito de tempo, advindo da burguesia. Por fim, a chegada de uma sociedade
de risco.
Mas, como aquela passagem foi possível? Bom. Aqui, o cão rotaciona atrás da calda.
Incipiente, a intervenção médica, bem ou mal, gerou certa sensação de conforto e segurança,
acreditando as pessoas, muito provavelmente de forma inocente, que, deixar-se medicalizar é
viver, viver mais e melhor. Ou pior, deixar viver a posteridade, gerando-se, com isso, filhos.
Assim, essa falsa sensação de melhoria corporal espraiou-se para além do indivíduo, indo
1680
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. 1, p. 463.
1681
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. 1, pp. 459 a 461.
1682
E, tanto, que é nessa época que os sindicatos se organizam, é criada a Justiça do Trabalho e editada a Consolidação das
Leis do Trabalho. In ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. 1, p.
461.
264
encontrar o outro que, receptivo e cheio de amor, ajudou a cunhar uma massa de futuros
despossuídos - ou desapropriados pelo liberalismo e pelo seu filho primogênito, o neoliberalismo -,
inservíveis naqueles momentos em que se percebe que “quanto mais liberdade se concede aos
negócios, mais cárceres precisam ser construídos para aqueles que padecem com os
negócios.”
1683
Enquanto isso, eles, alheios à armadilha que a medicina lhes pregava,
produziam mais e mais corpos que seriam dispostos ao controle trial mediante o manejo dos
seus corpos, das suas mentes e das suas almas.
Com isso, surgiu a massa. É dizer, como escreveu GALEANO em As veias abertas da
América Latina,
“o sistema não previu este pequeno incômodo: o que sobra é gente. E gente se reproduz. Faz-se o
amor com entusiasmo e sem precauções. Cada vez resta mais gente à beira do caminho, sem
trabalho no campo, onde o latifúndio reina com suas gigantescas terras improdutivas, e sem
trabalho na cidade, onde reinam as máquinas: o sistema vomita homens.”
1684
Todavia, essa massa, tanto no começo, quanto depois, foi de grande serventia para a
medicina. Talvez, em razão do que escreveu CANETTI:
“Somente na massa é possível ao homem libertar-se do temor do contato. Tem-se a única
situação na qual esse temor transforma-se no seu oposto. E é da massa densa que se precisa para
tanto, aquela na qual um corpo comprime-se contra o outro, densa inclusive em sua constituição
psíquica, de modo que não atentamos para quem é que nos ‘comprime’. Tão logo nos entregamos
à massa não tememos o seu contato. Na massa ideal, todos são iguais. Nenhuma diversidade
conta, nem mesmo a dos sexos. Quem quer que nos comprima é igual a nós. Sentimo-lo como
sentimos a nós mesmos. Subitamente, tudo se passa então como que no interior de um único
corpo. Talvez essa seja uma das razões pelas quais a massa busca concentrar-se de maneira tão
densa: ela deseja libertar-se tão completamente quanto possível do temor individual do contato.
Quanto mais energicamente os homens se apertarem uns contra os outros, tanto mais seguros eles
se sentirão de não se temerem mutuamente. Essa inversão do temor do contato é característica da
massa. O alívio que nela se propaga e do qual falaremos ainda, em outro contexto alcança
uma proporção notavelmente alta quando a massa se apresenta em sua densidade máxima.”
1685
No começo, serviu para reforçar e propagar a utilidade e imprescindibilidade do
discurso médico em todo canto onde se amontoasse gente. Depois, serviu de desculpa para a
intervenção higiênica da medicina, que via naquele ajuntamento a necessidade da
regulamentação e da normalização, regulamentação e normalização médicas. É dizer, como o
fornecimento de médicos crescia desproporcionalmente ao de pessoas, em tese, ditas doentes,
e, percebendo a medicina essa sua perda de terreno, passou ela a etiquetar todo amontado de
pessoas com o rótulo de organismo inasséptico e doente, oferecendo a idéia de que a
morbidez de um órgão contaminaria todo o organismo. Aí, o cão quase alcançou a calda. É
dizer, a medicina se aproveitou da própria massa humana que ela incentivou a criar para,
dizendo-a desregulamentada e desnormalizada, regulamentá-la novamente e renormalizá-la,
1683
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina, n. 900. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 17.
1684
GALEANO, Eduardo. As veias..., p. 21.
1685
CANETTI, Elias. Massa e poder. 2. reimpressão. São Paulo: Cia. das Letras, 2008, p. 14.
265
dando a falsa sensação de que renormalizar é curar, é tranquilizar.
1686
Ou seja, aproveitou-se
de um risco inventado para, ando azo ao medo, ao receio e à insegurança, imanentes à própria
massa, oferecer-se como exclusivo meio seguro de restabelecimento.
Ora, em Massa e poder, escreve CANETTI que “não nada que o homem mais tema do
que o contato com o desconhecido”.
1687
Com efeito, aquela mesma massa que viabilizou a
expansão e a ratificação da medicina poderia, agora, ser sua ruína. De sorte que, referido
ajuntamento e reprodução massivos começaram a dessintonizar e instabilizar o discurso
médico como suficiente, útil e seguro. Oportuno, continua CANETTI,
“tão subitamente quanto nasce a massa também se desintegra. Nessa sua forma espontânea, ela é
uma construção delicada. Seu caráter aberto, que lhe possibilita o crescimento, representa-lhe
também um perigo, a massa traz sempre vivo em si um pressentimento da desintegração que a
ameaça e da qual busca escapar através do rápido crescimento. Enquanto pode, ela absorve tudo;
uma vez, porém, que tudo absorve, tem ela também de, necessariamente, desintegrar-se.”
1688
Então, surge a solução tecnificada, inacessível aos leigos, para resolver o problema. A
medicina e o direito se apresentam, então, oportunamente, como ciências obscuras, de
controle inaferível aos dominados.
Ocorre, porém, que aquela massa não se desintegrou, e não somente porque medicina
e direito isso não permitiram, senão, também, ou principalmente porque quem assistia à
pregação certamente acreditava de boa-fé ser a pregação o que lhe interessava; tê-lo-ia
espantado e mesmo revoltado, talvez, que alguém lhe explicasse causar-lhe maior satisfação o
grande número de ouvintes presentes do que o próprio pregador.”
1689
A massa se sustentava por si. Direito e medicina perceberam, com efeito, que seu
campo de atuação era infindável.
Mesmo assim, ainda que homogênea, a massa não estava pasteurizada, podendo
desandar aqui e ali. Oportunista, o direito, ad instar da medicina, percebendo que a massa
poderia causar um inconveniente, ou ameaçar sua dominação discursiva, viu que era preciso
regulamentá-la, renormatizando-a, de vez em quando. assim, tudo pareceria normal. Foi
daí e por isso que surgiram as medidas de segurança, prontas a excluir tudo que não fosse
normal, ou melhor, aptas a excluir o anormal, o doente mental, aquele que, além de não
ajudar, auxiliando na normalização dos outros, poderia atrapalhar, contribuindo para a
sensação de que o anormal, mesmo em pequena quantidade, poderia ser o normal ou passar a
ser o ordinário. Medidas de segurança que, etiquetando aqueles perigosos ao discurso médico
e jurídico, continham, inscrita em letras pequeníssimas, essa advertência de CANETTI:
1686
Aqui se parodia a obra de ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, quando eles falam em “renormatização”.
1687
CANETTI, Elias. Massa..., p. 13.
1688
CANETTI, Elias. Massa..., p. 15.
1689
CANETTI, Elias. Massa..., p. 19.
266
“Dentre os traços mais notáveis na vida da massa encontra-se algo que se poderia denominar um
sentimento de perseguição, uma particular e irada suscetibilidade e irritabilidade em relação
àqueles que ela caracteriza definitivamente como inimigos. Façam estes o que quer que façam
comportem-se eles com rispidez ou simpatia, sejam solidários ou frios, duros ou brandos -, tudo é
interpretado como proveniente de uma inabalável malevolência, de uma disposição hostil à
massa: um propósito já firmado de, aberta ou dissimuladamente, destruí-la.”
1690
Essa foi mais uma propaganda enganosa.
Foi daí, e também é por isso, que o direito passou de um finalismo, onde o que valia
era a vontade dirigida a uma finalidade, porquanto nesse sistema o individualismo pode se
revoltar contra o controle médico da massa, para um funcionalismo, onde o que impera é a
detecção do risco, risco à massa como organismo normal, harmônico e saudável. E o fez, ad
instar da medicina, propagandeando que tudo que é regulamentado é previsível e, portanto,
controlável. Controle esse, sempre oferecido como necessário à mantença da condição
humana, mais como humana do que como condição. Logicamente, essa foi mais uma mentira
estatal.
Graças a esse tipo de pensamento, penal e médico, que medicina e direito puderam
higienizar a população doente e encarcerar nas instituições totais os anormais, os
imprestáveis.
A medicina, portanto, usou o indivíduo doente, e, portanto, perigoso, como exemplo
para a regulamentação da população, mediante o que não devia ser feito, e o que se devia
fazer, ambos sob a inspeção médica.
Enquanto o direito, com suas penas preventivas, também usou o indivíduo como
exemplo, e com o mesmo fim que aquela.
Um e outra, receando o descontrole da massa, preveniram-se automedicando-se ao
fazer uso de antibióticos em tradução arranjada “contra-os-olhos-dos-vivos” -, eficazes na
regulamentação do que pudesse parecer anormal.
Todavia, chegou um momento em que a massa não superou a oferta de medicina,
senão, também, a de bens que satisfizessem suas necessidades. Ora, adverte CANETTI:
“No princípio, o homem não pensou em sua própria multiplicação como desvinculada da dos
outros animais. Seu anseio por ela, ele o tansfere para tudo o que o cerca. Tanto quanto o compele
o impulso no sentido de aumentar seu próprio bando, provendo-o abundantemente de crianças, o
homem quer também mais animais e mais frutos, mais rebanhos e mais trigo mais, enfim, do
que quer que seja que ele se alimente. Para que ele prospere e se faça maior em número, é preciso
que tenha à sua disposição tudo quanto necessita para viver.”
1691
A insuficiência dos bens de consumo, da oferta de empregos e das vagas de
consideração como seres humanos normais, ensejou, na sociedade do risco beckiano, a
1690
CANETTI, Elias. Massa..., p. 21.
1691
CANETTI, Elias. Massa..., p. 109.
267
necessidade, falsa obviamente, de que era preciso cortar os trezentos e quarenta e dois gramas
da carne do mercador veneziano.
Enquanto o poder punitivo descontava a libra carnal, a medicina remediava a ferida.
Ainda assim, a massa poderia se descontrolar. Então, foi preciso uma regulamentação
total e um controle maior mediante uma disciplina e uma repressão mais genéricas.
Com a burguesia, e sua nova acepção de trabalho, o tempo ganha um novo conteúdo.
Por ele é possível medir o espaço horário da massa, e assim diagnosticar se este ou aquele
indivíduo, ou vários deles, deveriam e, por quanto tempo, poderiam ficar hospitalizados ou
encarcerados, sem prejuízo para a economia da pena e do capital burguês.
Ora, nessa sociedade de massas em que vivemos hoje, ainda vale o que disseram
RUSCHE e KIRCHHEIMER, em Punição e estrutural social, ou seja, “o número de desvalidos,
desempregados e despossuídos se alastrou em todo lugar.”
1692
Para ela, e nela, direito e medicina se valem do mesmo discurso, e com o mesmo
objetivo. Quem não obedece o regulamento médico, gerando risco social, ficará doente, ou
morrerá. Quem não obedece o regulamento jurídico, gerando risco social, será preso, ou
morrerá indiretamente.
De sorte que, medicina e direito, nessa sociedade de massa, não passam de
administradores de riscos, servindo o remédio não como panacéia, senão, como veículo para
a intromissão da vontade contida no discurso médico, vontade essa dirigida ao controle dos
rebeldes, daqueles que perceberam que o corpo, a alma, a vida lhes pertence, e não ao Estado.
Enquanto que a pena serve como imposição sacrificial e violenta de um regime de momento,
com seus caprichos luxuriosos, mas sempre controladores também.
De indivíduo, passou o componente da massa a perigoso, mas, não um perigoso aos
demais, senão, um perigoso ao regime da ocasião, cuja sorte dependeria da sua prestabilidade
ao mercado de trabalho, escandida com o microscópio ou pela balança.
Perigoso para a medicina por poder contagiar os demais, instabilizando seu discurso
panacéico. Perigoso para o direito por poder desequilibrar a equação da mão de obra, e, com
isso, fragilizá-lo como poder.
Foi assim que medicina social e direito penal médico se uniram, é dizer, quando
tiraram proveito das mesmas técnicas inacessíveis que, explorando a massa, viram no
indivíduo perigoso, inserido em uma sociedade de risco, a chance de, instrumentalizando-o,
mostrarem que suas respectivas ciências eram as únicas capazes de salvar o mundo,
1692
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. In coleção pensamento criminológico, n. 3. 2. ed., Rio
de Janeiro: Revan/ICC, 2004, p. 27.
268
regulamentando, disciplinando, controlando, e, depois, repreendendo, ora com remédios, ora
com penas.
Embora não estivesse descartada a hipótese, mais real que provável, do uso de uma
retórica que fazia o indivíduo acreditar que tudo estava sendo feito para o seu bem, pois,
medicalizando-o, faziam-no acreditar que ele melhoria e voltaria para a massa, enquanto que,
encarcerando-o, faziam-no acreditar que ele se re(s)socializaria, para a massa retornar.
Alguém continuará duvidando que o artigo 121, que trata do homicídio simples, que o
artigo 121, § 1°, que tipifica o homicídio privilegiado, que o artigo 121, § 2°, inciso III, que
trata do homicídio qualificado, que o artigo 121, § 4°, que cuida do homicídio por
inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, culposo, que o artigo 121, § 5°,
que trata do perdão judicial, que o artigo 122, principalmente o inciso II, que trata do
induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, que o artigo 123, que trata do infanticídio, que o
artigo 124, que cuida do abortamento provocado pela getante ou com o seu consentimento,
que o artigo 125, que tipifica o abortamento provocado por terceiro, que o artigo 126, que
prevê como crime provocar abortamento, sem o consentimento da gestante, que o artigo 127,
que trata da forma qualificada do abortamento, que, enfim, o artigo 128, que justifica o
abortamento, todos do Código Penal, não precisam, ou melhor, in these, não precisariam de
um parecer médico que avalizasse se o crime e o criminoso podem ser assim rotulados,
justamente? Pois não é o médico quem afirma se a vítima está ou não morta, se o
criminalizado estava dominado por uma emoção violenta, se a morte se deu em razão de
haver sido ministrado veneno à vítima, se o colega médico agiu contra a lex artis, levando a
vítima a óbito, se essa poderia, mentalmente, ter sido induzida por este ou aquele apelo, se a
progenitora encontrava-se sob estado puerperal, se estava mesmo grávida e se o abortamento
apresentava-se como meio exclusivo de salvamento da gestante, ou era aquele autorizado em
razão da homogante concepção estupradora?
E, de acordo com o artigo 5°, inciso XXXVIII, alínea d, da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, por se tratarem todos esses crimes, dolosos, afeitos à
competência do júri, composto por juízes leigos, resta patente que, por não dominarem a
técnica do discurso da medicina, inaferível aos mesmos, a última palavra quanto à absolvição
ou condenação do criminalizado caberá ao médico, mesmo porque, como é sabido, ao
Magistado do Júri, não se ressentindo de quaisquer vícios processuais, resta tout court a
dosimetria da pena.
Em igual medida, alguém ainda duvidará que a interpretação do artigo 121, § 4°, do
Código Penal, que tipifica o homicídio culposo quando praticado por profissional médico, não
269
terá alguma dificuldade em não se deixar contaminar pelo corporativismo retórico do discurso
médico?
A fortiori, isso tudo acontece também porque a culpabilidade, montada sobre o da
potencial consciência da ilicitude, nada mais é que um pedido de socorro à medicina
neurológica, à psicologia e à psiquiatria, únicas capazes de afirmar com segurança -
considerada a propaganda do discurso médico, obviamente -, se a psique do criminalizado estava
programada socialmente para perceber o caráter rotulado de ilícito do ato levado a termo.
Mas a intervenção médica não pára aí. Quem se debruçar sobre os verbos do artigo
129, do Código Penal, logo perceberá que o discurso dominial médico nele se reitera. E, na
versão do § 1°, incisos I e III, e § 2°, incisos I, II, III, IV e V, para atender, quando da sua
criação, às finalidades de mão de obra de um Estado intervencionista, ainda hoje úteis,
embora ao neoliberalismo.
Foi em razão disso que ocorreu outra detonação impressionante de estratégias
interventivas pelo discurso médico, em mais um de seus acasalamentos com a política.
Novamente, ensinam ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR que,
“as representações políticas comprometidas com as transformações econômicas e culturais que,
com raízes na crise de 1973, conduziriam ao que se costuma chamar de neoliberalismo ou
globalização, chegaram ao poder no Brasil em 1989 e nele se mantiveram até hoje. ...A
desaceleração do crescimento econômico - acompanhada, em países periféricos como o nosso, da
destruição de parques industriais -, a queda nos rendimentos dos trabalhadores que logram
escapar ao desemprego massivo ou se submetem à flexibilização de suas garantias ou ao
subemprego, em contraste com uma fantástica acumulação financeira, o desmonte de programas
assistenciais públicos característicos do estado previdenciário, tudo isso gera gravíssimas
consequências sociais. À reflexão jurídica acerca dessa conjuntura cabe, no âmbito penal, deter-se
sobre mutações na estrutura e funcionamento do sistema penal, e um dos indicadores mais
importantes reside na programação criminalizante. A hipótese de que o sistema penal do
empreendimento neoliberal, vertido para o controle dos contingentes humanos por ele mesmo
marginalizados, opera mediante uma dualidade discursiva que distingue os delitos dos
consumidores ativos (aos quais correspondem medidas despenalizadoras em sentido amplo) dos
delitos grosseiros dos consumidores falhos (aos quais corresponde uma privação de liberdade
neutralizadora) pode ser experimentada num rápido exame de dois grupos de leis penais
extravagantes. No primeiro destes grupos encontraríamos a lei 9.099, de 26.set.95 (criando os
Juizados Especiais Criminais, orientados à obtenção da reparação do dano ex delicto e à aplicação
de pena não privativa de liberdade..., introduzindo a transação penal e a suspensão condicional do
processo), a lei 9.268, de 1°.abr.96 (que alterou o artigo 51, do Código Penal. ...No segundo
grupo de leis encontraremos uma política criminal diametralmente oposta à do primeiro. Podemos
formatar boa amostragem”
no que nos interessa aqui, com “as ‘leis Serra’ de 9.677, de 2.jul.98 e n° 9.695, de
20.ago.98 (para alavancar a candidatura presidencial do ministro da Saúde, a primeira delas
eleva delirantemente as penas dos crimes contra a saúde pública, e a segunda os inclui entre
os ‘crimes hediondos’)....”
1693
1693
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito..., v. 1, pp. 484-486.
270
Finalmente. Você é ruim da cabeça ou doente do pé? Então, cuidado! Os médicos e os
higienistas já voltaram! E o artigo 131, do Código Penal é testemunha documental disso. o
vetor da dengue, as doenças ocasionadas pela falta de saneamento básico, as viroses,
mormente a SIDA, as septicemias hospitalares et reliqua, não sabem disso ainda.
Com efeito, negar a influência recíproca entre medicina e direito é negar a realidade
das coisas, o que não é possível, não sem ferimento à onticidade e, de consequência, à
razoabilidade.
Por fim, concluiu-se que os princípios penais devem, quando menos, servir de freio ao
poder punitivo, nesse seu esposamento com a medicina, averiguada, sempre, qual a melhor
estratégia para afastar o discurso repressivo que, aqui, arrimou-se em uma política criminal
funcional redutora.
271
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