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Universidade de Brasília
Instituto de Psicologia
Departamento de Psicologia Clínica
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura
A MEDIDA PROTETIVA DE AFASTAMENTO DO AGRESSOR DO LAR EM
CASOS DE ABUSO SEXUAL: IMPLICAÇÕES PSICOSSOCIAIS PARA O
AUTOR, FAMÍLIA E VÍTIMA.
EDUARDO CHAVES DA SILVA
Brasília/DF
2010
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ii
Universidade de Brasília
Instituto de Psicologia
Departamento de Psicologia Clínica
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura
A MEDIDA PROTETIVA DE AFASTAMENTO DO AGRESSOR DO LAR EM
CASOS DE ABUSO SEXUAL: IMPLICAÇÕES PSICOSSOCIAIS PARA O AUTOR,
FAMÍLIA E VÍTIMA.
Dissertação apresentada como
requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Psicologia.
EDUARDO CHAVES DA SILVA
Orientadora: Profª. Drª. Liana Fortunato Costa.
Brasília/DF
2010
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iii
Universidade de Brasília
Instituto de Psicologia
Departamento de Psicologia Clínica
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura
A Medida Protetiva de Afastamento do Agressor do Lar em Casos de Abuso Sexual:
Implicações Psicossociais para o Autor, Família e Vítima.
Banca Examinadora:
Presidente: Profª Drª Liana Fortunato Costa.
PPG PsiCC/PCL/IP/UnB
Membro: Profª Drª Maria Aparecida Penso
Universidade Católica de Brasília
Membro: Dr. Anderson Pereira de Andrade
Promotoria de Justiça de Defesa da Infância e da Juventude/MPDFT
Membro: Prof. Dr. Vicente de Paula Faleiros
Universidade Católica de Brasília
Brasília – DF, 17 de dezembro de 2010.
iv
À Tia Nice e Lúbis, in memoriam.
v
“Sempre que se está numa situação-limite como a que vivemos agora,
as soluções começam a beirar o fascismo.”
Marcelo Yuka.
vi
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, a Deus, por me dar forças, que nem eu mesmo imaginava ter,
para concluir essa etapa importante da minha vida em meio a tantos percalços. Sou-lhe
grato sempre, meu Pai.
À minha grande mãe, Cléo, a pessoa mais importante da minha vida, meu
exemplo de luta, força e superação. Sem teu amor e paciência, nada do que sou hoje
seria possível.
À minha família, meu pai Tião, irmãzinha Luísa “Chiquinha”, Matheus “Tipo
A”, Tio Ronaldo e suas meninas, Tio “Ferris” Farias e todos que torcem por mim.
Ao Leonardo, meu amigo, irmão e parceiro para a vida. Sou grato a Deus por tê-
lo em minha vida.
À Camila, que me acompanhou nesses últimos anos me dando força, alegria e
coragem para não desistir. Obrigado por tudo!
À professora Liana Fortunato, por me acolher, incentivar e me guiar por essas
“veredas interdisciplinares” que foi o mestrado. Sua competência, paciência e sabedoria
são exemplos que seguirei sempre daqui para frente. Este trabalho é nosso!
Aos meus amigos Marleide, Jana, Hudson, Carla Regina, Pedro, Andréia
“Deinha”, (P)Alexandre, Arthur (valeu, tradutor!!), Paula e Luiz Vasconcelos, Bia,
Davi, Paulo, Cláudio, Érika, Digão, Giulio, Juliana, Lucas, Nino, Kely, Luciano, Mari.
Um abraço especial ao Serjão e ao Renan, por terem estado comigo quando mais
precisei. Tamo juntos!
Ao Guga e ao Bartinho, por me mostrarem, todos os dias, faça chuva ou faça sol,
o que é amizade verdadeira e lealdade.
Aos amigos da Unidade de Liberdade Assistida do Paranoá e Itapoã, Jana,
Hudson e Gustavo e demais colegas da Secretaria de Justiça do Distrito Federal.
Aos alunos das disciplinas Psicologia Jurídica e Infância e Juventude na
Contemporaneidade. Foi muito enriquecedora e desafiadora a experiência docente e
vocês foram fora de série!
Aos amigos que viram meus primeiros passos rumo ao mestrado, queridos
profissionais do antigo NUPS do TJDFT. Um abraço carinhoso para todos, em especial
vii
ao Sérgio (que me “corrompeu” para a Psicologia!), Márcia Oliveira, Regina, Marília,
Valéria, Carla, Marilza e Lúcia Margarida.
Aos amigos do Grupo Violes, em especial à professora Maria Lucia Leal e
Maria Fátima Leal pelas oportunidades acadêmicas e profissionais.
Aos amigos do mestrado, principalmente ao Fabrício “Bill”, “veterano” e grande
amigo e à Karen, que de simples parceira de disciplina se tornou uma amiga especial.
Aprendi muito contigo por sua sensibilidade, dedicação e profissionalismo.
Às crianças e mães da “Oficina das Crianças”, pois cada sorriso e grito de “Tio
Edu!” renovavam minhas forças para continuar lutando pelos direitos da infância e ser
um profissional melhor a cada dia. Muito, muito obrigado! Um abraço especial às
“Tias” Samara Nogueira, Guida e Lili pela excelente parceria e amizade.
Ao Régis, Viviane, Cecy e todos os amigos do CEREVS, que me receberam de
braços abertos com toda sua competência e entusiasmo.
A todos os profissionais que me ajudaram nos últimos cinco anos de jornada
acadêmica e profissional: Professores/as Maria Lucia Leal, Luiz Fernando Viegas, Eva
Faleiros, Gláucia Diniz, Vera Coelho, Sonia Marise, Rosângela Azevedo, Marcos
Francisco, Benedito dos Santos, Teresa Cristina, Paulo Bareicha, Regina Gracindo,
Débora Diniz, Gérson Brea e Fátima Sudbrack; Ivonete Granjeiro; Laurez Vilela;
Marlúcia Carmo; Mário Volpi e demais amigos do UNICEF.
Aos professores Vicente Faleiros, Cida Penso e Dr. Anderson Pereira por
aceitarem participar da banca de defesa desta dissertação. Sinto-me honrado em ter o
trabalho lido por pessoas que me são referência profissional e acadêmica.
Agradeço também a todos os profissionais da Saúde que cuidaram de mim e da
Dona Cléo nesse ano. A gente conseguiu! Já podemos correr de novo! Afinal, esse é o
nosso trabalho...correr, correr e correr!
E por fim, a todas as pessoas que tiveram suas vidas mudadas pela Justiça, mas
cujas histórias puderam não apenas sensibilizar, mas possibilitar que a dor e sofrimentos
vivenciados por elas motivassem estudos que visam garantir os direitos da infância e da
adolescência. Vocês emprestaram suas histórias de vida, e eu espero poder ter
contribuído para que algo possa ser feito para proteger outras crianças e famílias do mal
que os assombrou.
viii
Chaves, Eduardo. (2010). A Medida Protetiva de Afastamento do Agressor do Lar em
casos de abuso sexual: Implicações Psicossociais para o Autor, Família e Vítima.
Dissertação de Mestrado. Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.
RESUMO
A aplicação de medidas de proteção, previstas no Livro II, Título II do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), é uma das principais ações que visam defender os
direitos da infância e adolescência no Brasil. No entanto, a simples adoção de
mecanismos previstos em lei não é fator de garantia do resgate da proteção, reparação
do dano do abuso à vítima e responsabilização do agressor, pois de se observar a
convergência entre a execução de uma medida protetiva com os princípios da prioridade
absoluta da infância e da Doutrina da Proteção Integral, instaurados pelo ECA a partir
de sua promulgação em 1990. Nesse sentido, este estudo visou discutir as implicações
psicossociais da medida protetiva de afastamento do agressor do lar em casos de abuso
sexual intrafamiliar, conforme prevê o Artigo 130 do Estatuto, analisando de que forma
um processo judicial motivado por tal medida garante os direitos dos sujeitos
envolvidos na dinâmica violenta e qual a resposta jurídica à demanda social de
enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes. Os sujeitos da
pesquisa foram uma família em situação de violência sexual que estava em estudo
técnico pelo Centro de Referência para Proteção Integral da Criança e do Adolescente
em Situação de Violência Sexual (CEREVS) da Vara da Infância e Juventude do
Distrito Federal (VIJ) em decorrência de determinação da medida protetiva: mãe,
padrasto, três filhas adolescentes. As informações foram organizadas na perspectiva da
análise documental e interpretadas em uma metodologia que ensejou a aproximação
entre a Teoria Sistêmica e o Materialismo Histórico-Dialético, a fim de desvelar o
fenômeno em seus meandros e para criar a interlocução entre os aspectos micro e
macrossociais do abuso sexual de crianças e adolescentes em sua totalidade complexa,
além de facilitar o diálogo entre Serviço Social e Psicologia. Os resultados da pesquisa
mostraram que a medida protetiva de afastamento se faz necessária no que tange à
quebra do ciclo de violência instaurado na família, mas que a resposta jurídica não está
totalmente convergente à Doutrina da Proteção Integral de crianças e adolescentes,
tampouco o Sistema de Garantia de Direitos é articulado de forma a fazer com que
aplicação da medida faça sentido para os sujeitos que estão em situação de
judicialização. Dessa forma, não grande significância às questões multifacetadas das
relações afetivas e emocionais que emergem de cada ação de proteção: o processo
interrompe a violência, mas lida de forma simplista às demais demandas dos sujeitos.
Em suma, a atuação do judiciário se pautou na garantia estrita do pilar de defesa dos
direitos da infância, dentro do Sistema de Garantia de Direitos, mas se configura como
pouco disponível ao diálogo com a sociedade no que tange à convergência de suas ações
às reais e concretas necessidades dos sujeitos, o que demanda uma maior compreensão e
aproximação aos pilares da promoção/prevenção e controle social para que se possa
observar a Doutrina da Proteção Integral e a Prioridade Absoluta da infância
efetivamente instaurada nos processos de Justiça.
Palavras-chave: Afastamento do agressor do lar; abusador sexual; abuso sexual;
Doutrina da Proteção Integral; Estatuto da Criança e do Adolescente.
ix
ABSTRACT
The application of the protective measures provided for in Book II, Title II of the
Statute of the Child and Adolescent (ECA) is one of the main actions designed to
defend the rights of children and adolescents in Brazil. However, simply adopting
mechanisms provided by law will not ensure the recovery of protection, the repair or
damages suffered by the victim and that the aggressor will be held accountable, as one
needs to note the convergence between the application of a protective measure and the
principles of absolute priority to children and of the Full Protection Doctrine,
established by the ECA when it was enacted in 1990. For this reason, the aim of this
study was to discuss the psychosocial implications of a protective measure meant to
remove the aggressor from the household in cases of sexual abuse, as provided for in
Article 130 of the Statute, analyzing how a lawsuit motivated by such a measure
guarantees the rights of the subjects involved in family violence cases and what legal
response is to be given to address the issue of sexual violence against children and
adolescents. Members of a family affected by sexual violence that was the object of a
technical study held by the Referral Center for Full Protection of Children and
Adolescents Facing Sexual Violence (CEREVS) of the Federal District’s Juvenile
Court (VIJ) due to a protective measure determination were the subject of the survey:
mother, stepfather and three adolescent daughters. The information was organized
using the document analysis method and interpreted using a methodology designed to
approximate the Systemic Theory and the Historical-Dialectical Materialism, with the
aim of unveiling the phenomenon’s essence, creating a link between the micro and
macro social aspects of sexual abuse of children and adolescents in all its complexity,
and facilitating the dialogue between Social Work and Psychology. The survey results
showed that the protective measure of removal is necessary to break the cycle of
violence within the family, but that the legal response is not fully consistent with the
Doctrine of Full Protection and that the Rights Assurance System is not articulated in
such a way as to make the application of the protective measure reasonable for the
subjects involved in a judicialization process. Therefore, the multifaceted issues of
emotional relationships arising from each protective measure should not be given
much importance: the process stops violence, but deals with the other subjects’
demands simplistically. In sum, the Judiciary Branch’s role was strictly to ensure the
defense of the rights of children within the Rights Assurance System, but it does not
appear to be willing to establish a dialogue with society on the consistency of its
actions with the subjects’ real and concrete needs, thereby requiring a greater
understanding and closeness to the promotion/prevention and social control pillars for
the Full Protection Doctrine and the Childhood Absolute Priority to be actually
established in Justice processes.
Key words: Removal of the aggressor from the household; sexual abuser; sexual
abuse; Full Protection Doctrine; Statute of the Child and Adolescent.
x
ÍNDICE
AGRADECIMENTOS....................................................................................................VI
RESUMO......................................................................................................................VIII
ABSTRACT....................................................................................................................IX
APRESENTAÇÃO............................................................................................................1
CAPÍTULO 1. REFERENCIAL TEÓRICO.....................................................................5
CAPÍTULO 2. CONSIDERAÇÕES PSICOSSOCIAIS E JURÍDICAS DO ABUSO
SEXUAL INFANTO-JUVENIL.........................................................................15
2.1. Da violência à proteção de crianças e adolescentes......................................15
2.2. A família e a vítima de abuso sexual intrafamiliar.......................................24
2.3. O agressor sexual de crianças e adolescentes...............................................31
2.3.1. Aspectos sócio-jurídicos................................................................33
2.3.2. Autor de violência sexual: questões particulares...........................38
CAPÍTULO 3. MÉTODO...............................................................................................42
3.1. Contexto da pesquisa....................................................................................42
3.2. Sujeitos..........................................................................................................44
3.3. Instrumentos..................................................................................................48
3.4. Procedimentos...............................................................................................49
3.5. Cuidados éticos.............................................................................................50
3.6. Método de análise das informações..............................................................50
CAPÍTULO 4. ANÁLISE DE DADOS E DISCUSSÃO DE RESULTADOS..............53
4.1. A medida de afastamento e a instauração da proteção: a intencionalidade do
processo judicial.......................................................................................55
4.2. Os sujeitos e o processo judicial: de números processuais à dualidade entre
ser sujeito ou objeto de direitos................................................................65
xi
4.3. Doutrina da Proteção Integral e a ação dos operadores do direito da infância:
da proteção (re)estabelecida à garantia de direitos?.................................87
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................105
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................117
ANEXOS.......................................................................................................................132
1
APRESENTAÇÃO
O presente texto traz os resultados e a análise crítica de pesquisas, observações e
conversas profissionais realizadas sobre o tema do afastamento do agressor do lar em
casos de abuso sexual. Interessa-me, destarte, discutir algumas das diversas questões
que envolvem os múltiplos e dialéticos significantes e significados de ordem social,
psicológica, cultural e política contidos nas relações e/ou mediações existentes em
famílias que vivenciam ou vivenciaram a participação em um processo judicial em
decorrência de violência sexual contra suas crianças ou adolescentes.
Primeiramente, é importante situar o lugar de fala deste pesquisador, tarefa que se
faz necessária uma vez que o olhar dado a determinado objeto carrega visões de mundo
e moldam o estudo da realidade de forma bem peculiar. Assim, as considerações a
seguir são de um assistente social, graduado pela Universidade de Brasília, que buscou
na interdisciplinaridade de um programa de pós-graduação em Psicologia Clínica e
Cultura ampliar o debate sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes, sem
perder de vista a formação acadêmica que me motiva a estudar o tema.
Durante a trajetória acadêmica, pude participar de diversas inserções na temática
da infância e adolescência. A primeira, que justamente me motivou ao estudo
interdisciplinar, foi em estágio curricular e extracurricular realizado no antigo NUPS do
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, nos anos de 2005 e 2006,
oportunidade esta que me possibilitou trabalhar com famílias em situações diversas de
violência. Concomitante a isso, o curso de graduação em Serviço Social foi concluído
com Trabalho de Conclusão de Curso sobre a temática do agressor sexual de crianças no
contexto sócio-jurídico.
Após esse período, no ano de 2008, além do ingresso no Programa de Mestrado
em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília, assumi o cargo de
Especialista em Assistência Social Assistente Social da Secretaria de Justiça, Direitos
Humanos e Cidadania, desde então realizando trabalho com adolescentes em
cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida e suas famílias nas
comunidades do Paranoá e do Itapoã. Em novembro do mesmo ano, na cidade do Rio de
Janeiro, atuei como Facilitador Nacional durante o III Congresso Mundial de
Enfrentamento à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, fomentando trabalhos
2
com grupos de crianças e adolescentes em processos de construção de propostas da
juventude para o referido Congresso.
A partir de 2009 aprofundei os estudos na área ao ingressar no cleo de Estudos
da Infância e Juventude, do Centro de Estudos Avançados e Multidisciplinares da
Universidade de Brasília (NEIJ/CEAM/UnB), atuando como pesquisador, supervisor de
estágio em Serviço Social e ministrando a disciplina de graduação “Infância e Juventude
na Contemporaneidade”. No mesmo período, coordenei técnica e metodologicamente
um trabalho com grupos de crianças e mães em situação de violência sexual (abuso e/ou
exploração) como proposta integrante da pesquisa “A trajetória social da criança e do/a
adolescente em situação de exploração sexual no Setor Comercial Sul e Rodoviária de
Brasília”, desenvolvida pela Universidade de Brasília (VIOLES/SER/UnB) em parceria
com a Biblioteca Nacional de Brasília (BNB) e financiada pela Secretaria Especial dos
Direitos Humanos (SEDH).
Essa trajetória profissional, apesar de curta, reflete o interesse em atuar
profissionalmente e academicamente no sentido de compreender a temática em sua
totalidade, entendendo que o caráter interdisciplinar do olhar é fundamental e fundante
dos ideais de mudança social, assim como nos dizeres de Marx - que entende toda
realidade contraditória o suficiente para ser superada –, e é exatamente isso que essa
contribuição pretende, ao fornecer subsídios para fomentar a ruptura com o pensamento
conservador que subjuga a infância frente aos anseios de um sistema de produção social
e material perverso e desigual.
Em vista disso, estudar as conseqüências psicossociais do afastamento do lar de
agressores sexuais de crianças vem ao encontro dos movimentos sociais de vanguarda,
que entendem a não eficácia das políticas policialescas de atenção aos sujeitos em
situação de violência sexual, seja em relação aos agressores, seja em relação às vítimas
que têm cotidianamente seus direitos escamoteados em prol do funcionamento do
aparato legal de proteção e responsabilização social.
É nesse lócus de intervenção, onde a família, a sociedade e o Estado atuam em
conjunto, que se situa a proposta desse trabalho. Em uma palavra, trata-se resgatar o real
e concreto ideal de empoderamento familiar, garantir direitos socialmente conquistados
e, principalmente, responder substancialmente ao abuso sexual com uma intervenção
pautada na não-violência. Não mais se admite a manutenção de ciclos de violência, que
acabam para uma vítima pois o seu agressor está afastado do lar -, mas que podem
3
voltar a se reproduzir a partir do momento que o foro privado consegue uma
reorganização que impede a sociedade de adentrar às suas questões íntimas, construindo
assim novos ciclos de violência.
Destarte, se revela a necessidade de conhecer os meandros da questão, que
envolve o estudo de famílias e autores de violência sexual em acompanhamento
psicossocial em uma instituição (a 1ª Vara da Infância e da Juventude do Distrito
Federal dos Territórios) que objetiva ser abrangente do ponto de vista de garantia de
direitos. Esse é um ponto imprescindível para situar tais procedimentos técnicos
(decisões judiciais, propostas de atendimento profissionais, dentre outros) como pré-
requisito para embasar qualquer discussão acerca dos limites e possibilidades desse
sistema e o seu papel no alcance dos objetivos preconizados pela Doutrina da Proteção
Integral e prioridade absoluta da infância e adolescência na formulação e avaliação de
políticas sociais.
Nessa perspectiva, tomando como objeto de estudo o afastamento do agressor do
lar em decorrência de denúncia de abuso sexual contra criança ou adolescente, em
acompanhamento pelo Centro de Referência para Proteção Integral da Criança e do
Adolescente em Situação de Violência Sexual (CEREVS) da Vara da Infância e
Juventude do Distrito Federal (VIJ), tem-se como objetivo geral analisar a dinâmica e
dilemas de família relativos ao afastamento do lar de autores de violência sexual contra
criança ou adolescente e sua relação com a garantia de direitos e a quebra da
impunidade.
Para tanto, os seguintes objetivos específicos foram elencados e serão
discorridos mais detalhadamente no decorrer do estudo:
a) Analisar o fluxo do andamento processual em casos de violência sexual,
sob a ótica das ações dirigidas ao suposto autor da violência, com o intuito de conhecer
como é construída a resposta social ao caso;
b) Compreender como são as relações familiares frente à situação de
afastamento;
c) Conhecer a atuação dos operadores do direito da infância e juventude e
sua convergência à Doutrina da Proteção Integral.
Para fundamentar teoricamente a pesquisa, apresentarei mais detalhadamente no
Capítulo 1 o referencial proposto pelo Materialismo Histórico Dialético (Marx, 2008;
4
Mészaros, 2008) e suas categorias fundantes, além de aproximar essa perspectiva ao
Pensamento Sistêmico (Vasconcelos, 2009; Costa, 2010) para criar a interlocução entre
os aspectos micro e macrossociais do abuso sexual de crianças e adolescentes em sua
totalidade complexa, além de facilitar o diálogo entre Serviço Social e Psicologia.
No Capítulo 2 apresento as discussões a respeito das categorias violência, abuso
sexual, família, agressor sexual e Doutrina da Proteção Integral, dialogando com
autores do Serviço Social, Psicologia, Direito e outras ciências no intuito de
fundamentar a necessidade de interlocução entre os saberes citados, findando por
significar a necessidade de um olhar de totalidade e sistêmico em relação à violência
sexual, ponto que considero incipiente e que merece maior atenção das produções
acadêmicas.
O Capítulo 3 traz as considerações metodológicas da pesquisa, que têm no
referencial de pesquisa qualitativa (Demo, 2006; González-Rey, 2010; Minayo, 2010),
balizada por estudo de caso instrumental (André, 2005), o aporte base para a
compreensão do objeto de estudo em questão. Este capítulo também apresenta os
sujeitos e o contexto de realização da pesquisa, assim como o referencial para análise de
resultados como proposto por Demo (2006) e Minayo (2010), a saber, análise dialética.
No Capítulo 4 encontram-se as análises de resultados da pesquisa empírica, que
traz discussões baseadas na análise de processo judicial e as implicações psicossociais
da medida de afastamento do agressor do lar, que foram subdivididos em categorias
analíticas, ou zonas de sentido, a saber: a intencionalidade do processo judicial; como os
sujeitos e suas falas/ações são apresentados durante e após o percurso de
acompanhamento psicossocial; e a convergência da medida de afastamento do lar e das
ações de proteção dos operadores do direito da infância subjacentes ao princípio da
proteção integral e prioridade absoluta da infância e adolescência.
Finalizando esta dissertação, são apresentadas as considerações finais, momento
este que destaco alguns pontos importantes da análise dos dados empíricos
conjuntamente a propostas teórico-práticas que emergiram no decorrer da elaboração
deste trabalho e que podem ajudar em vindouras discussões a respeito da proteção
integral de crianças e adolescentes.
5
CAPÍTULO 1:
REFERENCIAL TEÓRICO
A violência é um conceito multifacetado e multideterminado, cuja abordagem
varia conforme o prisma teórico ou enfoque privilegiado (sociológico, filosófico,
psicológico, etc), mas perpassa comumente em quase todas as dimensões a associação
desta com a agressão, com a repressão que visa obter autoridade e/ou obediência e, do
ponto de vista dos atingidos, o ferimento da dignidade.
Em termos antropológicos, por exemplo, a violência é analisada como “um filtro
que permite esclarecer certos aspectos do mundo social porque denota as características
do grupo social e revela o seu significado no contexto das relações sociais” (Gullo,
1998, p.105). A Sociologia, por sua vez, interessa-se mais na análise da violência
estrutural e institucional, que emergem a partir de decisões histórico-econômicas e
sociais (Lippi, 1990). Já o Serviço Social discute a violência como uma categoria
analítica que se objetiva de forma heterogênea e que não pode ser entendida fora das
condições sócio-históricas dos indivíduos (Silva, 2008). A Psicologia, por sua vez, tem
o entendimento da violência fundamentado na compreensão das subjetividades e das
relações intersubjetivas numa sociedade concreta cujas dinâmicas são eminentemente
complexas (Mello & Patto, 2008).
Essa divisão conceitual, na prática, não é linear, mas serve como norteadora da
construção de um pensamento geral sobre a violência. Por volta da década de 50 do
século passado se projetou a possibilidade de se construir uma abordagem teórica total
sobre violência, ao se tentar integrar contribuições das diversas ciências humanas e
sociais que partisse do pressuposto que possibilidade de explicar, sob um mesmo
prisma teórico, a violência desde o caráter individual às relações internacionais.
(Wieviorka, 1997). Esse projeto fracassou, não porque o reconhecimento da existência
de diversas formas de olhar um mesmo problema, mais pela confusão entre
possibilidades de generalizações ao tratar sobre violência – o que é, de fato, um
caminho utópico dada a multideterminação do tema -, e não se tratar do assunto em sua
totalidade, como um fenômeno universal que, em dadas circunstâncias e momento
histórico, se manifesta das subjetividades, ainda que não seja possível o desvelar
imediato dada a sua característica complexa (Silva, 2006).
6
Com efeito, a violência não pode ser enquadrada em um único conceito, uma vez
que suas manifestações de ordem social revelam a existência de fatores de ordem
individual, coletiva, histórica, psicológica, subjetiva ou objetiva, que tem impactos
econômicos, políticos e socioculturais. Nesse sentido, a violência pode ser definida
como o aniquilamento do outro, ao se desconsiderar suas vontades em prol do desejo do
mais forte (Faleiros, 2008a; Silva, 2006).
Esse entendimento remete, também, a existência de outra modalidade de
violência, a simbólica. Esta pode ser entendida como papel importante nos estudos
sobre abuso sexual intrafamiliar, uma vez que os mecanismos que possibilitam sua
ocorrência não denotam em todos os casos o uso de violência física, justamente por
haver certo tipo de consentimento entre os envolvidos, o que caracteriza algo que
apenas se reproduz tendo como alicerce a cumplicidade (Bourdieu, 1999).
Dessa forma, ao tratarmos do assunto “violência sexual”, adentra-se em um
território muitas vezes velado, tanto por parte dos envolvidos no ciclo da violência,
quanto pela produção acadêmica, muitas vezes incapaz de abordar todas as
manifestações dessa temática, seja por não conhecimento pleno do problema, seja por
pouca motivação em termos de produção do conhecimento em si. Assim, trataremos de
alguns conceitos trabalhados em termos de violência sexual, alocando as termologias
às suas respectivas formas de manifestação da violência, desde seu conceito geral até o
abuso sexual de crianças, evitando tratamentos focais ou excessivamente generalistas.
Essa análise da violência com postura investigativa em uma perspectiva de
totalidade reconhece que a violência se manifesta de forma imediata em todos os
sujeitos envolvidos, não apenas nas vítimas. Porém, por mais que haja dinâmicas
individuais inerentes a práticas violentas, a violência é caracterizada por ações
individuais de pessoas inseridas em determinada lógica social, histórica, política e
econômica que constituem o espaço para a formação das subjetividades (Silva, 2006).
Esse contexto abriga definições mais amplas a respeito da violência que nos levam
a refletir a sua importância ao considerarmos sua manifestação em rede, que ultrapassa a
questão do individual, o que coloca o problema como uma expressão da Questão Social
(Minayo, 2002). Nesse sentido, ao considerarmos a questão social como o conjunto das
expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, a violência sexual ganha
caráter de barbárie social (Leal, 2001), na qual novas configurações societárias que se
manifestaram principalmente a partir do século XIX, possibilitam o surgimento de
7
novos paradigmas referentes ao trato da violência e seus efeitos nesse novo modelo de
sociedade que se constitui, emergindo assim novos papéis que re-significam o lugar da
violência nas transformações sociais (Marx, 2008).
A opção por explicitar o local de análise deste objeto de estudo como expressão da
Questão Social, que de forma mais detalhada pode ser entendida como a síntese
reflexiva das desigualdades sociais, produzidas e reproduzidas em diversas formas de
pobreza, miséria e a controversa definição de exclusão social (Arcoverde, 2006), é
importante para mostrar que os estudos sobre violência no Brasil têm uma raiz
higienista e policialesca, seja para criminalizar as vítimas, ou para minimizar
responsabilidades individuais reduzindo-as a características ontológicas das pessoas,
naturalizando as relações de violentas.
Nesse sentido, é muito comum alocar a violência em uma gênese social que reflete
as desigualdades socioeconômicas e atribui relação de causa e efeito às suas
manifestações, muito em razão da forma que esta violência é tratada na mídia e pela
opinião pública baseada na famigerada “violência urbana”. De certo, esse não é um
pensamento hegemônico, especialmente na Psicologia e no Serviço Social, mas é
importante questionar até que ponto as manifestações da violência intrafamiliar se
relacionam com a ideia de exclusão social, que pressupõe a existência de pessoas à
margem de acesso aos seus direitos sociais, como crianças vítimas de violências sexuais
diversas.
Essa perspectiva demanda uma revisão conceitual breve, a respeito do termo
exclusão social. Não se trata de um simples remoque lingüístico, mas de uma retratação
às pessoas em situações diversas de vulnerabilidades. Levando em conta a raiz
higienista e policialesca, mencionada, que faz parte da história das políticas sociais e
públicas no Brasil, pensar em pessoas excluídas dos bens sociais como sujeito de
direitos é contraditório, uma vez que esse termo remete à condição de objeto de ação
coercitiva do Estado. Nesse sentido, adotaremos a definição de Castel (1998), que
considera essas pessoas em um processo de desfiliação social e vai além de pensar a
atenção do Estado apenas em relação ao processo de exclusão em si, mas considerando
todas as possíveis ramificações e novos processos de vinculação social a que estão
sujeitas as pessoas em situação de vulnerabilidades.
Sendo assim, ao considerarmos o contexto social como fator presente na
dinâmica reprodutora da violência sexual de modo geral, é preciso direcionar de que
8
forma esses atores sociais interferem nos ciclos de violência. Em termos de violência
sexual de gênero, há a discussão sobre o papel da mulher na dinâmica, seja como
vítima, apenas, ou como sujeito corresponsável pela reprodução da violência. (Santos &
Costa, 2004). Diferentemente disso, no caso de violência sexual contra crianças o
debate se faz de forma inversa, uma vez que a criança é uma pessoa em fase peculiar de
desenvolvimento, que necessita de cuidados especiais, fundamentando esse caráter pelo
princípio da Prioridade Absoluta, do Artigo 227 da Constituição Federal Brasileira,
assim como na Doutrina da Proteção Integral às Crianças e Adolescentes que não
permite a aceitação de corresponsabilidades (entre vítima e agressor) quando a vítima é
criança ou adolescente.
Segundo estudos realizados em 1998 pelo CRAMI Centro Regional de Atenção
aos Maus-Tratos à Infância e Adolescência (Campinas/SP), as crianças e adolescentes
são vítimas de quatro tipos mais específicos de violência intrafamiliar: violência sica,
abandono ou negligência, violência psicológica e abuso sexual. Violência sexual
configura-se como todo ato ou jogo sexual, hétero ou homossexual, entre um ou mais
adultos - parentes de sangue ou afinidade e/ou responsáveis - e uma criança ou
adolescente, tendo por finalidade estimulá-los sexualmente ou utilizá-los para obter uma
estimulação sexual sobre sua pessoa ou outra pessoa (exploração sexual); a violência
por abandono ou negligência representa uma omissão em termos de prover as
necessidades físicas e emocionais de uma criança ou adolescente, configurando-se, por
exemplo, quando os pais e/ou responsáveis falham em termos de alimentação e quando
tal falha não é resultado de condições de vida além do seu controle (Azevedo & Guerra,
1995);
Geralmente, a violência psicológica precede ou acompanha outros atos de
violência, incluindo, em seu repertório, atitudes como rejeição, frieza, xingamentos,
depreciação, falta de elogios e discriminação em público, valendo-se de linguagem
desqualificante. Esse tipo de violência não costuma deixar marcas visíveis, mas, assim
como a violência física, afeta profundamente o desenvolvimento subjetivo, o equilíbrio
psíquico, emocional, moral e social das vítimas (Azevedo, 2000).
Ademais, embora a incidência destas violências afete mais às crianças pobres, não
sentido em atribuir-lhe exclusividade de classe. Mesmo assim, questões de gênero,
raça, etnia, dentre outros, além da própria questão de classe, dão às vítimas de abuso
sexual mais alguns fatores de vulnerabilidade, pois por mais que a prática em si não seja
9
exclusiva de determinados grupos, a forma com que se deve tratar a questão necessita
de um olhar diferenciado. Estudos indicam que algumas conseqüências recorrentes nas
crianças timas de violência são: inquietação; baixa auto-estima; submissão;
agressividade; tristeza; insegurança; dificuldades para dormir; dificuldades de
aprendizagem; isolamento; fuga de casa; pensamentos e tentativas de suicídio (Duarte,
2005), que podem se manifestar de forma diferenciada ao considerarmos as
peculiaridades acima mencionadas.
Neste contexto, desde as últimas décadas do século passado e nestes primeiros
anos do novo milênio, a legislação brasileira - seguindo tendência mundial e devido a
pressões internas - vem gradativamente passando por um processo de revisão e mesmo
transformação no que se refere ao entendimento e tratamento das distintas violências
contra crianças e adolescentes (Rizzini, 2000). O Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), promulgado em 1990, representa juntamente com a Constituição Federal o mais
significativo marco legal nacional de defesa dos direitos da criança e adolescente,
regulamentando as diretrizes constitucionais de proteção e defesa destes grupos.
No que se refere ao tema em questão, o Artigo do Estatuto estabelece que
“nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei
qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais” (Brasil, 2005).
Neste estudo, abordar-sea manifestação de violência contra crianças em âmbito
intrafamiliar, que pode ser entendida como
“todo ato ou omissão de pais, parentes, outras pessoas e instituições capazes de causar
danos físicos, sexuais e/ou psicológicos a vitima. De um lado, implica uma transgressão no
poder/dever de proteção do adulto e da sociedade em geral e, de outro, numa “coisificação
da infância, isto é, numa negação do direito que crianças e adolescentes m de serem
tratados como sujeitos e pessoas em condições especiais de crescimento e
desenvolvimento” (Minayo, 2002, p.95).
De forma mais corrente e simples, o entendimento da violência como o “uso da
força com vistas à exclusão, ao abuso e ao aniquilamento do outro, seja este outro um
indivíduo, um grupo, um segmento social ou até mesmo um país” (Minayo, 2002, p.95),
ou, mais especificamente, como “o evento representado por ação ou omissão realizada
por indivíduos, grupos, classes, nações, que ocasionam danos físicos, psicológicos,
morais e espirituais a si próprio ou aos outros” (Brasil, 2000).
10
Concomitantemente, e especificando o objeto de estudo deste trabalho, existem
diversas definições para abuso sexual de crianças e adolescentes. As de âmbito
intrafamiliar, supracitada, se confundem às definições de maus-tratos, negligência e até
mesmo remetem à visão antropológica do tema, uma vez que a aceitação e legitimação
do abuso sexual contra crianças e adolescentes varia de população para população, pois
em determinadas culturas a violência sexual é aceita e reforçada pelos membros da
comunidade (Faleiros, 2000).
Sendo assim, a definição de abuso sexual como sendo o envolvimento de
crianças e adolescentes em atividades sexuais que não compreendem em sua totalidade,
para quais não estão aptos a concordarem e que violam as regras sociais e familiares de
determinada cultura (Glaser, 1991), tem no incesto uma variável de difícil observação.
Tendo em vista que a definição de incesto como sendo qualquer ato de exploração
sexual que fira a relação de confiança entre membros próximos no âmbito familiar
(sejam eles irmão, pais, padrastos, ou quaisquer outros membros que assumam tais
papéis), a ambigüidade existente frente ao tabu do incesto se deve ao fato de que o ser
humano é ao mesmo tempo um ser biológico e um ser social, sendo que esta
ambigüidade gera conflitos existenciais, como traumas internos e externos, que
dependem de características da vítima, como idade, sexo, dentro outros (Lévi-Strauss,
2009; Prado & Pereira, 2008).
É importante mencionar que em termos jurídicos a distinção entre abuso e
violência sexual. Nos termos da Constituição Federal (1988), o abuso é caracterizado
como sendo “o envolvimento de crianças e adolescentes em atividades sexuais
impróprias à sua idade cronológica ou se desenvolvimento psicossexual e as quais não
têm capacidade de compreender ou dar consentimento”. A violência sexual é entendida,
ainda de acordo com a CF, como ato de violência contra a liberdade sexual de criança
ou adolescente”. Entendemos, porém, que o trato da questão em seus aspectos de saúde
pública não menciona essa tênue diferença em termos de termologia.
Nesse sentido, Eva Faleiros (2000) realizou um estudo sobre a conceituação das
violências sexuais praticadas contra crianças e adolescentes. Neste trabalho, foi feita
referência a diversos autores, de variadas áreas de atuação dentro das ciências humanas
e sociais (Christoffel & Cols, 1992; Dorais, 1997; Farinati, 1990; Gabel, 1997; Grinblat,
1997; Ravazzola, 1997; Welzer-Lang, 1988), levando a uma síntese no que diz respeito
à definição de abuso sexual, a qual será adotada neste trabalho, como sendo
11
Uma situação de ultrapassagem (além, excessiva) de limites: de direitos humanos, legais, de
poder, de papéis, do nível de desenvolvimento da vítima, do que esta sabe e compreende,
do que o abusado pode consentir, fazer e viver, de regras sociais e familiares e de tabus. E
que as situações de abuso infringem maus tratos às vítimas (Faleiros, 2000, p.15).
Sendo assim, essa ressalva conceitual se justifica por ser por meio do arcabouço
legal (que traz consigo definições que refletem visões de mundo) que as reivindicações
e luta contra a violência e exploração sexual de crianças e adolescentes ganha
sustentabilidade social. Mesmo não sendo de suma importância essa diferenciação em
termos psicossociais, ao se fazer o levantamento da legislação sobre essa problemática
encontra-se tais diferenças, que por sua vez não invalidam outros tipos de abordagem.
No entanto, a tentativa de recorte conceitual mostra que é tênue o caminho para
diferenciar os tipos de abuso sexual, uma vez que os conceitos que o definem se
confundem com as práticas sexuais realizadas com crianças e adolescentes, pois esse
abuso ou violência sexual se manifesta de diversas maneiras. Em um primeiro
momento, é importante destacar que a violência sexual é muitas vezes resultado de
violência intrafamiliar, que é resultado de uma expressão extrema de distribuição
desigual de poder entre os membros da família (Leal, 1998), e considerando a já
mencionada peculiaridade da infância e adolescência, faz com que essa distribuição
desigual de poder tenda a ganhar maiores proporções quando crianças e adolescentes
envolvidos no clima de violência
1
.
Ainda nessa perspectiva, devido ao poder social que o autor de ato incestuoso
tem sobre a vítima, e devido também à forte pressão psicológica que este possa exercer,
muitas vezes não se consegue diferenciar se o ato foi conseqüência de uma ameaça
velada, uma imposição, um ato de condescendência ou um desejo do autor. Nesse
sentido, quando a criança abusada sexualmente em ato incestuoso rompe o silêncio, sua
fala é entendida como fantasia ou mentira (Leal, 1998).
O abuso sexual contra crianças e adolescentes, no âmbito familiar, foi reforçado
historicamente pelo modelo educacional adotado por volta do início do século XX, no
qual a idéia de punição como educação ganhou força. Segundo Leal, essa forma de
educar e manter as relações hierárquicas inalteradas colaborou para que houvesse
práticas institucionais que perpassavam as esferas pública e privada, reiterando a
1
O Clima de Violência é descrito por Leal (1998) como sendo o processo de envolvimento de outros
membros da família além do agressor na dinâmica de violência, seja agindo diretamente ou indiretamente,
como o silêncio e a não-denúncia, por exemplo.
12
necessidade de se manter algum nível de violência em operação dentro da família (Leal,
1998).
É importante ressaltar que, por mais que haja a preocupação em discutir o tema
em sua totalidade, não se questiona os danos diversos à vítima causados pelo abuso
sexual. As conseqüências para a vida da vítima não se restringem ao ato abusivo em si,
gerando seqüelas em outros campos da vida da pessoa que sofre essa violência. No
entanto, não se pode afirmar que essas manifestações de ordem individual de quebra de
direitos sejam relacionáveis a todas as vítimas de abuso sexual. Essas peculiaridades
devem ser observadas em diversos segmentos, como a idade da criança, contexto social
e econômico, o nível de coesão familiar em termos do supracitado segredo em torno do
abuso, dentre outros aspectos (Gabel, 1997).
Nesse sentido, uma abordagem terapêutica, que tem o intuito de desvelar as
significâncias subjetivas do abuso sexual, deve tornar imprescindível a transformação
do segredo familiar que cerca a violência em privacidade (Furniss, 1993). Isso quer
dizer que a intervenção profissional não necessariamente atua por romper com o caráter
privado da dinâmica familiar, mas que demonstra uma preocupação em se estabelecer a
proteção social da vítima de abuso por meio de uma resolução dita terapêutica.
Esse entendimento da violência sexual contra crianças e adolescentes exige um
esforço no que diz respeito a delimitar apostes teóricos para a análise do objeto
proposto, uma vez que diversos aspectos (e atores sociais) estão presentes no estudo, a
saber, família, infância e adolescência, violência, dentre outros, o que permite o apoio
de referenciais complementares que, em última análise, legitimam o caráter
interdisciplinar mencionado anteriormente.
Dessa forma, a Doutrina de Proteção Integral, preconizada pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente será o marco fundante das análises aqui proferidas, servindo
de norte para os constructos advindos da articulação com outros apostes legais, como o
Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes,
Plano Nacional dos Direitos Humanos, dentre outros, permeados pelo pensamento
teórico-metodológico que vislumbra a violência como uma totalidade concreta, com
mediações e peculiaridades historicamente correlacionadas que tendem a reproduzir
tanto sua dinâmica e estrutura, quanto a possibilidade de negação das manifestações da
violência enquanto quebra de direitos socialmente conquistados (Leal, 2009).
13
Para a análise das micro-interações familiares preconizando a reflexão como
gênese da ação em uma tentativa de interface com o materialismo histórico dialético a
fim de desvelar a complexidade do fenômeno e possibilitar o fomento de uma
construção democrática de diálogos, com o intuito de alargar o campo analítico do tema
em questão (Leal, 2009), adotar-se-á o pensamento sistêmico com o intuito de ampliar o
foco de observação, por se tratar de um fenômeno complexo, instável e intersubjetivo
que necessita ser contextualizado e focalizado em interações recursivas, considerando a
possibilidade de ruptura com o ciclo da violência e preconiza a co-construção de
soluções (Vasconcelos, 2009).
Essa aproximação é importante, pois as conjecturas familiares dispõem de
diversos aparatos específicos que se engendram nas relações interpessoais no seio
familiar, estando em constante movimento cíclico de distanciamento e aproximação
com os sujeitos, e por mais que tenham manifestações sociais e comunitárias, refletem
as conseqüências negativas na vivência de cada indivíduo. Assim, a centralidade da
abordagem sistêmica permite a aproximação com aspectos da dinâmica violenta que se
articulam entre o sujeito e todos os aspectos inerentes a sua vida em sociedade, a níveis
subjetivo, individual, social e cultural (Santos & Costa, 2007).
Nessa perspectiva, a aproximação entre a teoria sistêmica e o materialismo
histórico dialético possibilita que se possa analisar a realidade complexa sem que seus
elementos sejam reduzidos a categorias isoladas, mas sim como sistemas em constante
interação e movimento. Tais sistemas apenas são percebidos com profundidade a partir
do estudo de suas qualidades, que não são lineares e não se desvelam de forma imediata
por meio de expressões explícitas desses sistemas, como os conflitos e dinâmicas
intrafamiliares (González-Rey, 2006).
Nesse sentido, as categorias teóricas da dialética, mediação, contradição,
interdisciplinaridade, dentre outras, estão presentes para nortear as análises advindas
das leituras teóricas e da busca empírica.
Para tecer estas considerações e ponderações sobre o objeto em questão, a análise
dialética se apóia na interpretação e reinterpretação crítica. Essa análise inclui duas
fases: a primeira é a chamada standpoint epistemology ou análise culturalmente
plantada (Demo 2006), que significa a postura de esforço para o entendimento do outro
assim como o outro gostaria de ser entendido, valorizando assim o seu ponto de vista. A
segunda fase é a do questionamento próprio: interpretação do fenômeno observado em
14
tom desconstrutivo, para ir além do que se diz e das aparências do que se diz; se antes
estava em jogo o ponto de vista do outro, agora se salienta o ponto de vista ou
referencial teórico próprio. Este questionamento não significa, necessariamente, que o
pesquisador se contraponha ao discurso analisado em todos os aspectos.
Por se tratar de um estudo que privilegia a inserção do campo analítico de todos os
envolvidos na violência sexual agressor, vítima e família -, a categoria mediação se
faz determinante para a intervenção empírica, uma vez que é a categoria central da
dialética. Nesse sentido, essa perspectiva articula as nuances do conhecimento imediato
e dos entendidos como sigilosos muito presentes em famílias com vivência de abuso
sexual -, considerando os sujeitos e suas falas como partes integrantes e
complementares de um estudo com amplitude de determinações objetivas, interligações
e mediações complexas (Bottomore, 2001).
A categoria contradição permeia tanto as análises de discurso dos sujeitos de
pesquisa, quanto a própria inserção dos profissionais privilegiados neste estudo, a saber,
assistentes sociais e psicólogos. Esse aspecto é mais evidente por se tratar de profissões
comprometidas com a mudança social, de ruptura com as práticas sexuais entre
crianças/adolescentes e adultos, mas que estão vinculadas profissionalmente a
instituições sociais que, inevitavelmente, refletem a ideologia de reprodução da ordem
material vigente. Dessa forma, a contradição principal reside na dualidade entre a
repressão (contexto judicial) e a emancipação/empoderamento dos sujeitos (olhar do
Serviço Social e Psicologia), que não refletem uma contradição individual, mas de uma
contradição que emerge das características da existência social dos indivíduos
(Mészáros, 2009).
15
CAPÍTULO 2:
CONSIDERAÇÕES PSICOSSOCIAIS E JURÍDICAS DO ABUSO SEXUAL
INFANTO-JUVENIL
2.1. DA VIOLÊNCIA À PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Maus-tratos contra crianças e adolescentes são descritos pela literatura
aproximadamente cem anos, porém houve um aprofundamento nesse tema apenas em
meados da década de 70 do século passado. O abuso sexual caracteriza-se como uma
das manifestações de violência mais perversas, no entanto fatores culturais impedem um
avanço maior em termos de se construir mecanismos sociais que impeçam tais
violências, tanto por parte do Estado e da família, quanto da sociedade civil (Chauí,
1984).
Compreende-se que a dinâmica do abuso sexual traz à tona diversos sentimentos
tanto para os atores que o vivenciam, quanto para os profissionais que atuam junto às
famílias nos diversos momentos e instâncias de controle social e atendimentos
psicossociais.
Para a sociedade, lidar com o abuso sexual é, primeiramente, reconhecer em si
própria a existência de diversas violências reprimidas, o que caracterizam a dificuldade
em se publicizar o tema (Chaves, 2007). Dessa forma, os profissionais que atuam na
área são os eleitos para entrar em contato com algo execrável, que não pode ser dito e
que permanece em diálogo apenas em âmbito institucional (Ribeiro & Costa, 2007).
Por último, as políticas públicas polarizam a intervenção entre agressores versus
vítimas, pois mesmo não contemplando todas as peculiaridades da questão, também não
evidencia a falta de preparo do Estado para lidar com ela, reforçando ações paliativas de
combate ao abuso, como por exemplo, aumentando o cerco policial e medidas judiciais
no âmbito criminal (Souza, 2006).
Soma-se a essa gama de sentimentos, toda diversidade das mudanças pelas quais
a família passa ao longo do tempo, toda complexidade do arcabouço cultural brasileiro e
suas diversas facetas e, embora haja legislação específica, a falta do Estado no manejo
de recursos adequados no âmbito da saúde, educação e trabalho, impede o acesso das
pessoas a atendimentos de qualidade e contribui, em grande parte, para um quadro de
miséria e difícil acesso a uma melhor qualidade vida (Pereira, 1998). Tudo conclama,
16
portanto, para a necessidade de intervenção, compreensão e busca de apoio para as
famílias em situações de risco e violência, além do incremento das forças comunitárias e
empoderamento do grupo familiar.
O abuso sexual contra crianças é considerado, na literatura especializada, um
grave problema de saúde pública, pois tem manifestações complexas não apenas a
níveis do desenvolvimento individual, familiar e comunitário da vítima, mas também no
que diz respeito à mobilização de toda uma rede social, tanto de cunho jurídico-penal,
quanto de proteção e promoção da saúde sexual dos indivíduos. Ademais, o abuso
sexual infantil se destaca de outras formas de maus-tratos infantis pela sua manifestação
pouco focal em termos de prevenção. Em outras palavras, o abuso sexual dificulta a
atuação preventiva por seu caráter ilegal e clandestino, além de ser majoritariamente
doméstico (Leal, 1998).
Outrossim, a compreensão a respeito desse fenômeno se apóia em situar a
questão da violência sexual contra crianças e adolescentes não no pilar jurídico, mas
também com determinantes históricos, culturais, econômico e político. De acordo com
Leal, esses pilares fundamentam as dimensões concretas de manifestação da violência,
porém o foco de análise deste trabalho é a perspectiva da não-violência sexual contra
crianças sob a ótica da saúde pública, na qual considerar todos os membros envolvidos
nessa relação desigual de poder é necessário para se compreender o problema em sua
totalidade (Leal, 1998).
Na maior parte dos casos de abuso sexual não intervenção profissional, uma
vez que se estima que apenas de 10% a 15% dos casos são denunciados (Faleiros 1998;
Sanderson, 2005). Quando intervenção, a real idade do abuso se torna visível pela
palavra da criança e do adolescente, o que os torna tanto vítimas quanto testemunhas do
abuso sexual. Tendo em vista que em nossa sociedade, a palavra do adulto tem um
status mais significativo em detrimento do discurso infantil, mister se faz, por
conseguinte, considerar a fala da criança como uma reivindicação legítima, mesmo que
os sentimentos expressos sejam ambivalentes (Padilha & Gomide, 2004).
Tal ambivalência é previsível e esperada, que a criança ou adolescente pode,
ao mesmo tempo, expressar raiva ou revolta diante do relato da vivência do abuso, e
continuar nutrindo afeto pelo agressor, caso ele desempenhe um papel próximo em sua
vida, como pai, tio, irmão, primo, avô ou outro. Por isso, os adultos envolvidos na tarefa
17
de escutar as vítimas devem entender que os sentimentos podem ser confusos, mas não
necessariamente contraditórios neste sentido (Azevedo & Guerra, 2000).
A dinâmica desta forma de violência é, portanto, complexa, envolvendo aspectos
psicológicos, sociais e legais. Por estes motivos, evidencia-se a eficácia de um trabalho
que se apóie na articulação de redes de combate ao abuso e exploração sexual, além de
mobilização tanto das autoridades competentes, quanto da sociedade civil como um
todo, a fim de ampliar a compreensão desta realidade e oferecer alternativas
compartilhadas entre os atores mencionados. Nesse sentido, fomenta-se o
empoderamento dos sujeitos que poderão articular forças, mobilizar recursos e ações
autônomas, auto-organizadas e auto-reflexivas de enfrentamento da violência (Faleiros,
1998).
Em termos estatísticos, os casos de abuso sexual impressionam também pela sua
grande incidência, sendo considerado um importante problema de saúde pública.
Mesmo sendo consenso de que as estimativas existentes não abrangem a realidade em
si, uma vez que a maioria dos casos não é revelada ou é negada pelos envolvidos na
dinâmica do abuso sexual (Faleiros, 1998), entende-se que os dados atuais já são
alarmantes, e que a simples existência de suspeitas quanto a sua real representação em
termos de números totais, é sinal de que o problema da violência sexual deve englobar
as várias esferas de enfrentamento por parte da sociedade.
Nesse sentido, é muito recente historicamente a existência de qualquer amparo
legal ou suporte para preservação dos direitos das crianças e adolescentes. Nunca houve
substancial preocupação contra trabalho infantil, miséria ou violências contra crianças.
Houve avanços nesse sentido, mas nada que tenha abarcado de forma plena todas as
necessidades e direitos da infância no Brasil e no mundo (Rizzini, 2008).
Em termos legais, o Código de Menores de 1927 inaugurou a questão da
assistência e proteção às crianças e adolescentes, ainda entendidas como menores, ou
seja, inferiores de alguma forma, pois tinha como público alvo não a infância como um
todo, mas cuidar dos delinqüentes e abandonados, então uma ameaça à ordem pública.
Observa-se que a atenção do Estado para com essa população se dava em tom de
repressão, uma vez que a infância não era considerada como nos moldes atuais, nos
quais as crianças são sujeitos de direitos. Não havia políticas públicas para lidar com a
questão da chamada delinqüência juvenil. Dessa forma, institucionalizar os menores era
18
a forma indiscriminadamente usada, na qual a infância e a família ficavam a mercê das
decisões legais arbitrárias (Rizzini, 2008).
O Código de Menores de 1927 convergiu com a ideologia que subjugava a
infância dentro das correlações de força da época (Faleiros & Faleiros, 2006), situação
essa que foi renovada com o Código de Menores de 1979, que ao basear o trato à
infância pela Doutrina da Situação Irregular embora promova a inclusão de outros
determinantes além do abandono e delinqüência, como crianças e adolescentes com
problemas de saúde, educacionais ou familiares, além de supostas vítimas de
negligência ou violência parental -, reforçou a idéia de infância em si como um
problema, que prejudica a ordem social.
Destarte, a figura do juiz continuava a ser referência para determinar o futuro
dos menores e das famílias em conflito com a lei. As políticas assistenciais se limitavam
a ações de cunho religioso, que mesmo tendo o discurso de complementar o aparato
público, acabavam sendo referência no trato às questões da infância. Ainda, havia
internatos que realizavam a correção e repressão ao ato infracional dos menores quando
o aparato religioso não supria toda a demanda (Rizzini, 2008).
Nesse processo de instauração de procedimentos jurídicos destinados à infância,
foram surgindo novas demandas, até então camufladas por preceitos morais e culturais.
As crianças não mais sofrem apenas por abandono ou por serem colocadas em situação
de não-inclusão social
2
, como os meninos de rua, existem reivindicações para a inclusão
de outros direitos da luta de proteção à infância no Brasil (Castro, Aquino & Andrade,
2009).
Dessa forma, trazendo a discussão para o objeto desse estudo, o abuso sexual
contra crianças teve sua relevância política enaltecida no Brasil a partir do final da
década de 80 do século passado, com o agendamento no debate da sociedade civil e
diretamente em consonância com a luta global pelos direitos da criança e do
adolescente. Nesse sentido, pode-se citar a Constituição Federal (1988), a Convenção
Internacional dos Direitos da Criança (1989) e o Estatuto da Criança e do Adolescente
(1990) como marcos da proteção aos direitos da infância e da juventude.
2
Usamos o termo o-inclusão ao invés de exclusão por considerarmos que muitas vezes as crianças nem
estiveram incluídas em nenhum tipo de mecanismo de proteção institucional que lhes garanta direitos
básicos de alimentação, moradia, educação, lazer, etc. Dessa forma, a criança em situação de rua pode ser
um não-incluído, já que se pressupõe uma inclusão para haver exclusão.
19
É importante mencionar que a Constituição Federal (CF) tem em seu artigo 227
a convergência com a Declaração Universal dos Direitos da Criança, e postula:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança do direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito,
à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda a
forma de negligência, discriminação, exploração, violência e opressão”
Essa passagem foi o aporte legal que fomentou a submissão em cinco de
dezembro de 1989, pelo Senador Ronan Tito, o Projeto de Lei 193, que
regulamentava o referido artigo 227 da CF. De acordo com Rizzini (2000), o verso da
publicação do Projeto de Lei continha a seguinte mensagem:
Com Absoluta Prioridade o presente projeto de lei dispõe sobre o ESTATUTO DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE visa regulamentar o art. 227 da Constituição Federal.
Ele foi elaborado por um competente grupo de juristas, com participação de representantes
da FUNABEM e do FORUM DCA Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente
tendo sido ouvidas milhares de pessoas e diversas entidades governamentais e não-
governamentais. Este Projeto destina-se ao cumprimento do preceito constitucional de que
os direitos da criança e do adolescente devem ser garantidos com absoluta prioridade”
(Rizzini, 2000, p. 78)
Dessa forma, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que diferentemente dos
citados Códigos de 1927 e 1979, instaurou a doutrina da proteção integral às crianças e
adolescentes, elevando-os de uma condição abjeta em termos de direitos sociais, a um
patamar de sujeitos de direitos, que resguardadas suas peculiaridades, devem ter
atendidas todas suas necessidades para um pleno desenvolvimento de suas
potencialidades (Rizzini, 2008).
Cabe ressaltar que essa transição de abjeção à condição de sujeito de direitos não
foi simples. Os movimentos sociais de defesa da infância e adolescência travaram uma
luta que não terminou com a simples negação da abjeção desses sujeitos, mas que
também não permitia a atuação do poder público considerando essa parcela da
população como objeto de intervenção, corroborando assim com a doutrina da situação
irregular. Foi necessária uma compreensão para além do repúdio à barbárie que
ressiginificasse a percepção social sobre a criança e o adolescente (Rizzini & Pilotti,
2009).
Nessa perspectiva, o entendimento da violência sexual contra crianças e
adolescentes é particularmente complexo, uma vez que seu enfrentamento se insere em
20
um contexto não apenas de saúde da vítima, mas implica em toda uma articulação
histórico-social, considerando o fenômeno como algo engendrado na constituição da
figura humana. É nesse sentido que a definição de sujeito de direitos deve ser reiterada
na perspectiva jurídica, mas, sobretudo, na formulação de políticas públicas e sociais
para a infância e adolescência.
O arcabouço jurídico iniciado pela Constituição Federal de 1988 abriu portas
para o citado Estatuto da Criança e do Adolescente, a criação do Sistema único de
Saúde (SUS), lei 8080/90, da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) lei
8742/93, além da Lei de diretrizes e bases da Educação Nacional (LDB) – lei ° 9394/96.
Reforça-se assim o caráter de cidadania, não apenas colocando a criança como um ser
submisso e sem direitos sociais.
Cabe salientar, no entanto, que a maior dificuldade existente nesse processo de
preservação dos direitos da criança encontra-se na pouca notificação dos casos de abuso
sexual às autoridades competentes, mesmo havendo crescido o número de denúncias
que chegam ao contexto judiciário devido aos mecanismos de denúncia anônima (Costa,
Penso & Almeida, 2008). Ainda sim, as ações contra o abuso sexual podem não
corresponder à realidade dos envolvidos no processo de violência sexual intrafamiliar,
pois é nessa forma de ocorrência de abuso, em particular, que menos notificações
(Azevedo, 2007).
De acordo com levantamento do Laboratório de Estudos da Criança e do
Adolescente, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (LACRI/USP) em
2001, entre 78% e 80% dos registros de violência sexual contra meninas que foram
denunciados, investigados e comprovados no Brasil, os agressores se revelaram os
próprios pais e padrastos. Em 2001, o LACRI divulgou a estatística de 1.723 casos de
violência sexual doméstica contra crianças e adolescentes no país.
Ainda no ano de 2001, a Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente
(DPCA) registrou 83 casos de atentado violento ao pudor e 34 de estupro no Distrito
Federal. De acordo com as estatísticas do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente
CEDECA-BA, a principal causa de absolvição dos processos julgados em 2000 de
crimes contra crianças e adolescentes é a falta de provas, com 63,41%. Dos casos que
chegam à Justiça, 47% dos agressores são absolvidos e em 61,7% das notificações as
pessoas envolvidas, direta ou indiretamente, tinham conhecimento da existência do
abuso, porém não denunciaram (Habigzang, Koller, Azevedo & Machado, 2005).
21
Em pesquisa realizada em cinco cidades brasileiras de cinco regiões do País,
coordenada por Eva Faleiros e Vicente Faleiros, a constatação que a maioria dos
abusadores é composta por familiares (60,4%) ou ligados a familiares e conhecidos
(33,3%), na qual a convivência era muito próxima das vítimas, totalizando 93,7%
(Faleiros & Faleiros, 2006). Observou-se também que em apenas 02 (dois) casos o
agressor não era homem, o que nos remete inferir que se os dados mostram a realidade,
quando a agressora é mulher, fica mais difícil a sua caracterização, portanto, sua
representação é ainda mais complexa.
Esses dados mostram a dificuldade no enfrentamento de crimes sexuais no
Brasil. Além disso, o discurso dos envolvidos no ciclo de violência ainda é o de
desqualificação do ocorrido. Os agressores são vistos como cidadãos íntegros, e os
direitos das crianças agredidas sucumbem aos anseios da sociedade por um modelo de
família linear e sem maiores conflitos. Essa análise ganha força quando consideramos a
ocorrência de abuso sexual de forma velada, muitas vezes sem o uso de força física. O
agressor possuiu estratégias próprias de persuasão, com falas peculiares e atos discretos
(Schmickler, 2006). Nesse sentido, o ato legal é dificultado por considerar apenas como
prova o testemunho, pois não há evidências objetivas em muitos dos casos
3
.
Nessa perspectiva, Silva Júnior (2006) desenvolveu trabalho que mostrou a
existência de inúmeros danos psicológicos (ou psíquicos) em vítimas de abusos sexuais
que foram submetidas a exames de corpo de delito, sem que os resultados desses
exames não tivessem a constatação de conjunção carnal ou atos ditos libidinosos. O
autor elucida que em mais de 80% dos casos analisados foi possível constatar algum
indicador patológico relativo ao sofrimento psíquico decorrente da violência sexual
sofrida (Silva Júnior, 2006).
Devido a todos esses percalços, a violência sexual contra crianças ganha corpo
de um problema da saúde publica no Brasil. O atendimento a essas crianças vítimas de
abuso sexual se encontra pouco estruturado em relação a real ocorrência dessa
violência, seja por pouco preparo dos profissionais, seja pela pouca mobilização da
sociedade frente ao problema. Estatísticas mostram que a realidade da violência sexual
3
Isso porque o abuso sexual não se apenas com conotação carnal, no qual penetração. O abuso se
em atos de carícias, gestos e palavras que se caracterizam como abuso devido ao fato de satisfazerem
apenas ao agressor, pois a criança não é capaz de compreender a ambivalência do ocorrido, na qual
alguém que supostamente deveria protegê-la, age de forma a confundi-la, atacando de forma sutil suas
emoções e sentimentos.
22
contra crianças ainda é pouco abordada
4
, e aliado a isso existem questões legais que
escamoteiam as reais e concretas formas de manifestação e, sobretudo, de garantia de
direitos das pessoas em situação de violência sexual.
Em termos de legislação vigente, a defesa dos direitos das crianças e
adolescentes, além das respectivas punições para quem transgride esses direitos, está
pautada a Declaração sobre os Direitos da Criança (Genebra, 26/09/1923), Declaração
universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), Segunda Declaração Universal dos
Direitos da Criança (1959), Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), Declaração
de Viena (1993), além da Constituição Federal Brasileira (1988) e do Estatuto da
Criança e do Adolescente (1990).
Nessa perspectiva, os casos de abuso sexual de crianças figuram em passagens
do Código Penal Brasileiro que tratam dos crimes de violência sexual, mais
especificamente no Título VI - Dos Crimes contra a Dignidade Sexual, capítulos I a VI.
Dentre os crimes de abuso sexual, são considerados crimes contra a liberdade sexual o
estupro (art. 213), violação sexual mediante fraude (art. 215), assédio sexual (art. 216-
A), todos pertencentes ao capítulo I do Título VI. No capítulo II há referência à
corrupção de menores (art. 218), estupro de vulnerável (art. 217-A), Satisfação de
lascívia mediante presença de criança ou adolescente (art. 218-A), e favorecimento da
prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável (art. 218-B). Os
Capítulos III e IV também faziam referência ao tema, mas foram revogados pela Lei
12015 de agosto de 2009
5
(Brasil, 2009).
As alterações no Código Penal, como a Lei 12.015, são medidas necessárias para
considerar as especificidades do abuso sexual de crianças em âmbito intrafamiliar,
assim como leis específicas podem criar jurisprudência para atenção aos demais grupos
em situação de violência sexual
6
.
Os casos de abuso sexual contra crianças ainda podem figurar como sendo de
“menor poder ofensivo”, ou seja, com penas de até dois anos para o infrator. Por razões
descritas anteriormente, é difícil tipificar todos os aspectos do abuso sexual
4
Levantamentos feitos pelo Lacri, registros da DPCA, dentre outros.
5
Também conhecida como “Lei do Estupro”, que altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei n
o
2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1
o
da Lei n
o
8.072, de 25 de julho de 1990, que
dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5
o
da Constituição Federal e revoga
a Lei n
o
2.252, de 1
o
de julho de 1954, que trata de corrupção de menores.
6
A Lei 11340 de 7 de agosto de 2006, conhecida como “Lei Maria da Penha”, é enfática no que diz
respeito ao acompanhamento de toda a família, assim como do agressor.
23
intrafamiliar, fazendo com que após a denúncia do abuso e durante o processo criminal,
o juiz opte por trabalhar com “artigo em apuração”, ao invés de direcionar um
determinado artigo do Código Penal e Processual Penal, ou de acordo com o Artigo 61
da Lei de Contravenções Penais (LCP), que versa sobre “importunação ofensiva ao
pudor”, no qual casos prováveis de abuso sexual podem ser enquadrados.
Nesse sentido, como aspecto fundante do combate à violência sexual contra
crianças e adolescentes e que vai além da manifestação em termos de legislações
específicas, a citada Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada
pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro
de 1948 exerce papel central no que diz respeito ao empoderamento das pessoas em
relação ao pleno exercício da cidadania (Costa, 2004).
Os Direitos Humanos são, particularmente no Brasil, atrelados ao bem-estar
social e à noção de liberdade, assim como menciona o Art. da Declaração Universal
dos Direitos Humanos: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e
direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras
com espírito de fraternidade.” (Costa, 2004, p. 10). É nesse sentido que um adendo se
faz necessário, pois o contexto sociopolítico brasileiro, em especial a partir da década de
1980, mostrou que essa percepção de garantias gerais e universais de direitos não era
efetivamente vista na vida de todas as pessoas.
O imaginário social sobre Direitos Humanos é percebido de formas diversas
sobre o que são (e como são) esses direitos, o que demanda a compreensão sobre suas
definições e manifestações cotidianas tanto a nível coletivo quanto individual (Coimbra,
2001). Isso remete ao Art. 25, II, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que
menciona a infância como sendo detentora de direito a cuidados e assistência especiais,
corroborando com a ideia de prioridade absoluta mencionada anteriormente.
Nesse sentido, aliada à condição atual da infância e adolescência em situação de
violações de direitos, como a violência sexual, infere-se que tanto Estado e sociedade,
quanto a própria família, têm mostrado dificuldades em materializar a prioridade
absoluta. Isso porque a condição peculiar de desenvolvimento que se encontra a criança
e o adolescente é duplamente escamoteada quando referente à priorização absoluta, uma
vez que essa condição especial as deixa em situação de vulnerabilidade e as coloca em
posição menos favorável para exercer suas potencialidades e, consequentemente, a
defender seus direitos (Machado, 2003).
24
Essa perspectiva aproxima a Doutrina da Proteção Integral e da prioridade
absoluta da infância e adolescência do cotidiano dos sujeitos, uma vez que articula tanto
a ideia de atenção social básica (por meio de políticas públicas de assistência social
integrantes da proteção integral) quanto a consideração que as características
constitutivas, motoras, endócrinas, psíquicas, intelectuais (cognitivas), morais e sociais
das crianças e adolescentes são diferenciadas das de pessoas adultas, ressignificando a
necessidade de haver a separação da legislação desses seguimentos específicos, a fim de
corroborar com questões individuais desses sujeitos que diferem dos adultos, como a
importância para o desenvolvimento cognitivo da criança por meio do brincar e de
atividades lúdicas (Machado, 2003).
Destarte, o percurso entre a violência e a proteção da infância e adolescência
mostra que a intervenção profissional exitosa é aquela que considera o diálogo entre os
anseios dos indivíduos, da família, do Estado e da sociedade, pautando o olhar em
pensar a proteção como situada em totalidades complexas (em níveis micro e macro)
interconectadas e indissociáveis (Netto, 2005), para que as medidas adotadas como
sendo protetivas sejam geradoras de empoderamento dos sujeitos para que se rompa a
violência e, de fato, haja proteção da criança e do adolescente vítima de abuso sexual.
2.2. A FAMÍLIA E A VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR
A possibilidade de intervenção profissional em casos de violência sexual exige
que se faça uma análise desta violência extrapolando a ocorrência do fato em si a nível
estritamente em âmbito doméstico. Isso quer dizer que nem todas as violências sexuais
ocorrem neste âmbito, mas todas estas ocorridas contra crianças ou adolescentes têm
uma raiz na questão familiar, seja na prática do abuso sexual intrafamiliar, seja relativa
à exploração sexual comercial, na qual se evidencia a falta de preparo da família em
cuidar da proteção de suas crianças.
Nesse sentido, essas relações desiguais de poder estabelecidas em âmbito
familiar desencadeiam uma série de violências, como mencionado, mas que não têm
relação apenas com as dinâmicas relacionais da família. Aspectos sociais, como a
globalização, pobreza urbana, guetificação, entre outras, também funcionam como
25
fatores férteis para possibilitar a existência de relações violentas entre membros da
família (Leal, 2001).
Vale igualmente citar que a Doutrina da Proteção Integral, preconizada pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente, romperam com o viés conservador da Doutrina
da Situação irregular também no sentido de garantir o exercício do pátrio poder
independentemente das condições econômicas da família (Rizzini, 2000). Essa
perspectiva denota a prioridade da família no cuidado da criança, na qual a intervenção
do Estado é caracterizada pela relação tripartite com a própria família e a sociedade.
Nesse contexto, as redes sociais seriam um apoio às famílias que enfrentam
dificuldades em lidar com essas questões emergentes que, cada vez mais, se entrelaçam
entre os aspectos intra e extrafamiliar não apenas em termos de sua ocorrência, mas,
sobretudo, no que diz respeito à responsabilização, especialmente pelo Brasil ter um
sistema de justiça pautado na perspectiva retributiva, na qual se espera muitas vezes
contraditoriamente à percepção do ECA - combater determinada violação de direitos
caracterizando-a como um crime; nesse ponto, então, a sociedade deve ser ressarcida
por aqueles que violam as normas, seja direta ou indiretamente.
Nessa perspectiva, notam-se as várias dimensões presentes quando a
ocorrência de abuso sexual, demonstrando variáveis sociais, individuais, políticas,
econômicas, filosóficas, antropológicas que, com efeito, não permitem uma redução de
conceitos imediata. Isso remete a uma primeira questão: romper com a tendência de
senso comum (e muitas vezes da própria ciência) de naturalização das estruturas
familiares (Martins & Cols., 2007).
Estudos históricos mostram a mobilidade dos grupos familiares, na qual a
estrutura nuclear surgiu por volta do século XVIII. Esse período intensificou a questão
dos laços familiares ligados a reprodução material da sociedade, uma vez que o
casamento tinha como principal interesse a manutenção de bens e terras entre a mesma
família (Engels, 2009).
Em termos da dinâmica relacional, a família era um espaço para proteção de
seus membros, mas exigia em troca a não publicização de sua rotina, especialmente para
reforçar o caráter patriarcal estabelecido, tendo na figura do homem o papel de provedor
e da mulher a responsável por cuidar da prole (Bruschini, 2005).
26
Nesse sentido, é importante salientar que, embora o modelo de família nuclear
tradicional seja a referência independentemente de classe social, essa convergência com
o modelo burguês e as classes trabalhadoras se deu apenas a partir do final do século
XVIII, período no qual a estrutura burguesa (autoridade restringida aos pais, amor
parental pelos filhos, uso de ameaças de retirada de amor a título de punição, ainda que
aberta a legitimidade de castigo físico) foi aderida pela classe trabalhadora (na qual as
crianças eram socializadas nas fábricas, visto a necessidade de trabalho pela
precariedade das condições de vida, com mulheres trabalhando tanto em âmbito
doméstico quanto no mercado de trabalho) na medida em que as primeiras conquistas
trabalhistas foram observadas, permitindo à mulher se dedicar mais à vida doméstica
(Bruschini, 2005).
Uma questão levantada como crise da família do século XX reside no contexto
supracitado. A estrutura nuclear, que começou a se fortalecer em meados do século
XVIII e teve seu auge por volta da década de 1950 devido à influência da teoria
funcionalista estadunidense, foi entendida como a referência de família para grande
parte da população, configurando papeis que, contraditoriamente ao caráter não-natural
e mutável da família, seriam naturalizados e as divergências seriam entendidas como
disfuncionalidades (Parsons, citado por Bruschini, 2005).
Nessa perspectiva, a abordagem funcional não considerava a historicidade das
relações familiares, privilegiando a imediatidade da intervenção, ressignificando o
caráter patriarcal da família e dos papeis masculino e feminino. Assim, a mulher é cada
vez mais entendida como dona-de-casa, mãe e esposa, o que gera a chamada
“profissionalização” desses papeis. (Bruschini, 2005).
diversas discussões teóricas a respeito da ruptura desse modelo familiar. O
marxismo, feminismo e a teoria sistêmica, especialmente a partir da década de 1970, se
tornaram alicerces importantes para discutir as novas configurações familiares, uma vez
que diversos problemas enfrentados no que tange às violências ocorridas em família
careciam de análises mais aprofundadas (Bruschini, 2005).
Entende-se que a família pode representar tanto um lugar de risco quanto de
proteção, mesmo com a diversidade de construções de papeis existente (Lima &
Fonseca, 2008). Estando acordada a questão da mutabilidade e heterogeneidade das
estruturas familiares modernas em diversas correntes teóricas mesmo havendo a
multiplicidade de olhares para o mesmo objeto de estudo -, este estudo privilegiará a
27
noção de que as famílias têm recursos tanto para reiterar as dinâmicas que propiciam as
violências, quanto as que buscam romper o ciclo estabelecido pela violência.
Nesse sentido, um ponto principal desse pensamento é a questão do dilema entre
o caráter público e/ou privado das intermediações ocorridas em âmbito familiar. Dessa
forma, este estudo adotará uma abordagem que procure entender como o discurso da
prevenção (por parte do Estado e da sociedade) pode chegar às famílias além de
ponderar a necessidade de haver denúncia a um crime, indo ao encontro da proteção
integral da infância e não apenas munir essas famílias de artimanhas de vigilância
policialesca contra possíveis algozes.
No entanto, essas ponderações a título de observações macrossociais servem
como pano de fundo para a melhor compreensão do fenômeno e como a abordagem
profissional pode desenvolver mecanismos de proteção às crianças e adolescentes
vítimas, mas carecem de apontamentos no que diz respeito às conseqüências subjetivas
da violência para as vítimas e autores.
Essa interconexão entre aspectos micro e macrossociais produz uma série de
fatores de risco para a ocorrência doméstica do abuso sexual, assim como descritos pela
literatura recente (Brasil, 2001; Ferreira, 2002; Habigzang & Cols, 2005; Habigzang,
2006; Pelisoli, 2008). Esses fatores, tais como situações de crise como morte, separação
de pais, pouco contato com rede social externa à família, presença de modelo familiar
violento na história das pessoas envolvidas, uso e abuso de drogas lícitas ou ilícitas,
antecedentes criminais ou uso de armas, dependência econômica/emocional e baixa
auto-estima, dentre outros (Brasil, 2002), reiteram que a violência se estabelece de
forma sistêmica e transgeracional, significando a existência de um padrão violento em
famílias com vítimas de abuso sexual (Borges, 2007).
Nesse sentido, surge um novo agravante no enfrentamento da violência contra
crianças em âmbito intrafamiliar: o silêncio, ou segredo familiar. Embora haja o
respaldo legal de proteção à criança, a dinâmica familiar muitas vezes privilegia outras
formas de relações, como a manutenção do padrão parental e conjugal da família, pois
considerar a fala da criança como relevante, ou até mesmo como verdadeira, seria uma
ameaça à estrutura familiar constituída, uma vez que a punição de qualquer envolvido
no contexto de violência implicaria na perda de referencial para esta família (Costa &
Pereira, 2005; Leal, 1998).
28
Quando agressão sexual cuja vítima é maior de 14 anos, a lei considera a
vítima como capaz de optar e decidir pela prática sexual, o que gera inúmeras
implicações para os envolvidos. No caso da vítima, para haver qualquer tomada de
decisão judicial, de se considerar a existência de uma possível dependência afetiva e
financeira do agressor, a iminência desestabilização familiar e os mitos e estigmas que
circundarão a vítima e agressor após a publicização do ocorrido, visto que o agressor é
normalmente uma figura que perante a sociedade não transparece risco algum, além de
exercer pátrio poder sobre a vítima.
No entanto, quando a vítima é menor de 14 anos, não denúncia concomitante
à vontade dos envolvidos ou próximos à violência, é dever do Estado, por meio dos
promotores de Justiça, e da sociedade denunciar para que as providências cabíveis
sejam executadas, uma vez que a lei considera qualquer prática sexual com pessoas
menores de 14 anos um crime ou ato infracional. As campanhas de conscientização
ainda não são muito abrangentes, pois não atingem de forma ampla as vítimas e
familiares e tampouco os agressores.
Nessa perspectiva, o supracitado segredo familiar se faz presente a fim de zelar
pela manutenção da dinâmica familiar, dificultando a ação de agentes do Estado
(Faleiros, 1998) por ser uma das estratégias usadas pelas famílias a fim de não
transparecer os conflitos que, contraditoriamente aceitos socialmente, poderiam abalar o
status de família nos moldes aceitos pelos demais membros da sociedade. Dessa forma,
a violência sexual contra crianças e adolescentes no âmbito familiar é permeada por
sedução, culpa e diversos outros mecanismos que escamoteiam sua publicização (Gabel,
1997).
Nesse sentido, as conseqüências psicológicas do abuso sexual se manifestam de
forma igualmente multifacetada e foram relatados por diversos estudos (Amazarray &
koller, 1998; Furniss, 1993; Kendall-Tackett, Williams & Finkelhor, 1993; Lippi,
1990). A vítima de abuso sexual é suscetível a sentimento de culpa e/ou de isolamento;
depressão; ansiedade; dificuldades educacionais; baixa auto-estima; dificuldades em
relacionar-se socialmente; comportamento sexual inapropriado, dentre muitos outros
aspectos que podem se manifestar peculiarmente em decorrência de características
específicas de cada situação, como em relação à duração do abuso ou a idade da vítima,
por exemplo. Esse contexto causa a chamada dificuldade metodológica de identificação
do abuso por parte de profissionais, assim como acrescenta Azevedo (2000).
29
Ademais, Azevedo classifica em três categorias os problemas que ela considera
como sendo de adaptação psicossocial, a saber, a) dificuldades de adaptação afetiva; b)
dificuldades de adaptação interpessoal e c) dificuldades de adaptação sexual (Azevedo,
2000).
Essas categorias dizem respeito aos sentimentos gerados nas vítimas após o
abuso, como o sentimento de culpa, de auto-desvalorização e depressão (Azevedo,
2000). Esses sentimentos se devem em grande parte ao ciclo de segredo que a vítima
vivencia e podem ser agravados a depender do tempo de abuso, da proximidade com o
agressor (Amazarray & Koller, 1998) e o sistema de relação anterior à ocorrência do
abuso e o contexto familiar, aliado à reação dos pais e de outras pessoas da família ou
da comunidade (Farinatti, 1990).
Tais conseqüências são mais graves quando relativas à sexualidade da vítima de
abuso sexual, que tendem a se manifestar de forma não linear (Azevedo, 2000). No
entanto, mesmo na ciência que as manifestações psicológicas adversas podem ocorrer
tanto a curto quanto em longo prazo, os estudos críticos e teóricos ainda apontam para a
compreensão dos sujeitos enquanto adultos, deixando de lado as análises de vítimas
crianças e adolescentes nessa fase de vida (Azevedo, Guerra & Vaiciunas, 2005).
Nesse sentido, Azevedo e Cols (2005) realizaram estudo que apontaram diversas
conseqüências em curto prazo do abuso sexual. De forma sucinta, as autoras
identificaram as seguintes manifestações diretamente psicológicas: dificuldades de
adaptação interpessoal com pessoas em geral, com meninos, com amigos, com pais de
amigas e com irmãos (o que demonstra receio às figuras masculinas); dificuldades de
adaptação sexual, como masturbação
7
e medo de transar que podem estar ligados à
questão da aversão à intimidade; e dificuldade de adaptação afetiva, como sentimento
de culpa, idealização ou tentativa de suicídio e fixação em idéias de morte.
Ainda como conseqüências indiretamente psicológicas, os problemas relativos a
ensino e aprendizagem escolar aparecem com freqüência nas pesquisas sobre o tema
(Azevedo, 2000; Azevedo & Cols, 2005; Brino & Williams, 2003; Oliveira & Santos,
2006). Estas últimas autoras relatam que mesmo essas dificuldades indiretas podem ter
uma relação estrita com depressão e dificuldade de concentração, o que demonstra a
existência de características de vulnerabilização das vítimas em quase sua totalidade,
7
Embora as autoras não considerem a masturbação um ato prejudicial por si só, o sujeito de pesquisa
relata essa manifestação como problemática.
30
embora não se possa afirmar que todas possam, necessariamente, sofrer conseqüências
negativas do abuso (Azevedo & Cols, 2005).
Esses apontamentos também levam à apreciação das consequências fisiológicas
para as vítimas de abuso sexual, que invariavelmente podem aumentar os danos
psicológicos do abuso. Do ponto de vista da legislação, como mencionado, as
diferenças em termos de proteção às vítimas se mostram pouco diferenciadas quando se
trata de criança ou adolescente, alocando ambos os momentos de vida como uma
categoria única (Brasil, 2005). No entanto, a constituição anatômica da vítima pode
agravar os danos físicos e psíquicos do abuso, uma vez que quanto mais nova a criança
ou adolescente, menos condições fisiológicas ela possuiu para que haja a prática sexual,
com o agravante de ser não consentida por se tratar de uma violação de direitos
(Vitiello, 2000).
Esses danos orgânicos carregam consigo as complicações de cunho social e
psicológico, pois se ramificam em questões não exclusivas ao aspecto biológico. Nesse
sentido, Vitiello (2000) elencou as principais manifestações orgânicas em vítimas de
abuso sexual, como sendo lesões físicas gerais, lesões genitais, lesões anais, gestação,
doenças sexualmente transmissíveis e disfunções sexuais.
No campo das lesões supracitadas, estas demonstram ser a principal motivadora
de processos judiciais, uma vez que podem ser caracterizadas como provas do crime
perpetrado (Habigzang & Cols, 2005). Nesse sentido, danos objetivos ganham
ramificações subjetivas de aspecto psicossocial, especialmente quando referentes à
gestação decorrente do abuso, abortamento e contração de doenças sexualmente
transmissíveis (Vitiello, 2000).
Destarte, o conhecimento das questões subjetivas é fundamental para a
compreensão do fenômeno e, além disso, recorrer à intervenção psicossocial como
forma de prevenção e promoção da saúde dos envolvidos no abuso sexual intrafamiliar,
não apenas enquanto ato consumado e legitimado apenas com provas objetivas dos
exames médicos. O trabalho com as vítimas, por conseguinte, deve se pautar nessa
visão, não simplesmente como agente de significação de provas para o processo
criminal, que invariavelmente, tem se mostrado ineficaz na reparação do dano causado à
vítima de abuso sexual.
31
2.3. O AGRESSOR SEXUAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Nesse estudo, tratamos do agressor na perspectiva dos Direitos Humanos, via o
enfrentamento da violência sexual de crianças referendado pelo Plano Nacional de
Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil e pelas Normativas Nacionais e
Internacionais, que mencionam do tema como uma questão pública, à medida que a
sociedade organizada denuncia e se mobiliza no sentido de publicizar essa temática e
agendá-la nas discussões no âmbito do poder público e na sociedade civil como um
todo. É nesse cenário que as denúncias efetuadas pelos movimentos sociais e as
notificações, elencadas pelo sistema de defesa e responsabilização, demonstraram que o
abuso sexual é uma questão de saúde pública e de direitos humanos (Brasil, 2002).
O imaginário coletivo reflete as necessidades do próprio grupo social,
possibilitando a ele ter singularidade e legitimidade no que tange ao efetivo exercício da
cidadania. Nesse sentido, é por meio de seu estudo que a possibilidade de desvelo
dos mecanismos de construção e reconstrução dessas realidades sociais, dando a elas o
sentido que lhes confere peso e materialidade (Silva, 2002).
Naturalmente, essas relações vão se edificando no sentido de dar grau de
propriedade aos seguimentos sob julgo de poder, uma vez que se tende a inferiorizar o
objeto conquistado por meio das relações de poder desiguais em sociedade. Gramsci
(2005) argumenta que
“Essa tendência [a diminuir o adversário] é, por si só, um documento da inferioridade de
quem é possuído por ela. Na verdade, tende-se a diminuir raivosamente o adversário para
poder acreditar na segurança da vitória. Essa tendência traz, obscuramente, em si um
julgamento da própria incapacidade e debilidade (que quer tomar coragem) e se pode
também reconhecer nela um início de autocrítica (que se envergonha de si própria, que tem
medo de se manifestar explicitamente e com coerência sistemática).” (Gramsci, 2005. Pg.
108)
Em termos de violência de gênero, o imaginário social se manifesta,
concretamente, na forma de dar aos homens força, poder e superioridade, permitindo-
lhes apropriarem-se “legitimamente” de toda e qualquer mulher, desde que ela não
tenha, ainda, um proprietário. Ainda perpassa pelo imaginário popular que a mulher
existe se for possuída por um homem, mesmo que para isso ele use de violência contra
ela. Este mesmo imaginário possibilita culpar a mulher pela violência sofrida, fazendo-a
32
cúmplice. Assim, em uma sociedade como a brasileira, que tem por base as divisões de
gênero, raça, classe e faixa etária, a violência se manifesta contra o lado mais frágil,
prevalecendo a cultura de opressão do masculino sobre o feminino, reforçando outras
desigualdades fundadas no masculino com relação a outros agentes sociais, como
crianças, idosos, negros, pessoas com deficiência, dentre outros (Brito, 2007).
O fato é que o gênero masculino implica estereótipos de virilidade, força e
agressividade, que resultam na construção de violências no bojo das relações sociais.
Mais especificamente no âmbito familiar, as relações são construídas de forma a
distinguir as funções femininas das masculinas (Angeli, 2004). Os homens são
encarregados de trazer o sustento financeiro e as mulheres ficam em casa para cuidar
dos filhos, pois são supostamente incapazes de lidar com o mundo competitivo que se
constrói a passos largos (Souza, 2005).
No campo inter-relacional, é por meio da conquista, virilidade e violência que os
homens são levados a provar sua masculinidade, interiorizando desde a infância que o
gênero masculino tem que agir de forma a dominar os demais. Nesse sentido, a
masculinidade deve ser, além de provada, imposta pelo homem. Conforme este
pensamento, a mulher e os filhos são objetos que o homem possui, domina e exibe
(Botton, 2009).
No entanto, as instituições vêm sofrendo mudanças em sua estrutura, fazendo
que as relações sociais ganhem, gradativamente, nova roupagem. A ideia de que o
homem tem que provar sua masculinidade por meio de atos de competição, conquista e
violência, se contrapõe a nova demanda das mulheres em não serem mais submissas e
poderem buscar sua independência e, sobretudo, terem seus direitos garantidos e acesso
aos bens públicos como o sistema de justiça (Brito, 2007).
Certamente essa ideia representa um lugar contraditório, pois o mundo
masculino também tem sofrido transformações que devem ser lidas com perspicácia,
vez que novas práticas resistem ao patriarcalismo: homossexualidade, autonomia das
mulheres, perda de poder aquisitivo e vários novos papeis que fazem parte do mundo
masculino na contemporaneidade (Perucchi & Beirão, 2007).
Assim, o homem que agride sexualmente é o retrato de uma manifestação em
vértice do que não deve ser dito publicamente: a violência e a sexualidade. Essa
violência recorre duplamente às características masculinas que, outrora legitimadas,
33
atualmente são condenáveis em seus mais diversos âmbitos. Espera-se que o homem
não agrida, especialmente crianças e, ainda mais grave, por meio da sexualidade.
No entanto, é preciso cuidado na aproximação com os autores de violência
sexual no sentido de não reproduzir mitos sobre esses sujeitos, como por exemplo, a que
todo agressor foi vítima de violência sexual quando criança. Determinadas afirmações
demandam um entendimento particular de cada agressor, uma vez que a vivência do
abuso é particular tanto em relação a quem agride, quanto a quem sofre a violência,
tornando peculiar cada manifestação violenta (Jesus, 2006).
Nesse contexto de transição, a intervenção profissional deve pensar de que
forma é feita a aproximação com os agressores. Do ponto de vista pré-denúncia, esses
homens estão no imaginário social como alguém sedutor, de fácil relacionamento
interpessoal e carismático. Os agressores, pós-denúncia, ocupam um lugar ainda mais
confuso e genérico, pois ou estão na impunidade gerando revolta da sociedade -, ou
cumprindo pena por um crime sexual que, também no imaginário social (com fortes
indícios da prática), os faz sofrer sexualmente as barbáries a eles creditadas.
Dessa forma, a voz desses supostos autores de violência sexual é importante
tanto na restauração da dinâmica familiar e reparação do dano entre os membros
envolvidos, quanto na formulação de políticas públicas e sociais que visam a atenção
integral às vítimas de abuso sexual.
2.3.1. ASPECTOS SÓCIO-JURÍDICOS
As formas como a sociedade e suas instituições sociais lidam com a ocorrência
do abuso sexual demonstram que relações sociais e de gênero têm uma medida
diferenciada dentro da sociedade. Se na violência sexual contra mulheres tem-se na
figura masculina a expressão de uma construção histórica que deu ao homem a
capacidade de creditar a uma possível diferença biológica e status social o poder de
decidir pela vida sexual de mulheres,
a violência contra crianças e adolescentes tem um
agravante. Por mais que a maioria esmagadora de casos notificados de violência sexual
seja cometida por homens adultos, a infância ainda é a mais vulnerável, visto que na
construção de hierarquias em uma sociedade as crianças e adolescentes têm
34
historicamente menor poder de participar da construção dos papeis sociais em
comparação com outros agentes sociais (Faleiros, 2005).
Dessa forma, entende-se que relações entre adultos e crianças foram
historicamente construídas a fim de estabelecer uma relação vertical de poder. Sendo
assim, percebe-se que a discussão ganha moldes a serem trabalhados à medida que
novas visões de mundo vão sendo construídas (Leal, 1998). Na Grécia antiga, em que
relações entre mestre e aprendiz eram aceitas e estimuladas pela sociedade, além do
Brasil colonial em que crianças eram prometidas a fazendeiros em troca de influência na
sociedade local, chegando aos dias atuais, em que a exaltação da figura feminina jovem
em obras dramáticas
8
, deixa tênue a diferença entre o aceitável e o perverso (Chaves,
2007).
Vale igualmente citar que os agressores sexuais não são exclusivamente adultos.
Em primeiro lugar, é importante destacar que práticas sexuais entre crianças com idades
aproximadas são consideradas, pela literatura especializada no tema infância, como
parte do processo de amadurecimento e conhecimento do próprio corpo (Chartier &
Chartier, 1997). Neste trabalho, a discussão acerca de abuso sexual ganha corpo teórico
quando tratamos de relações entre crianças e adolescentes mais velhos, na qual versa a
definição de abuso que consideramos neste trabalho.
Nessa perspectiva, o estudo da violência sexual
Implica compreender a natureza do processo que seu caráter sexual confere a este tipo de
violência, ou seja, que a mesma (...) inverte a natureza das relações adulto/criança e
adolescente definidas socialmente, tornando-as desumanas em lugar de humanas;
desprotetoras em lugar de protetoras; agressivas em lugar de afetivas; individualistas e
narcisistas em lugar de solidárias; dominadoras em lugar de democráticas, dependentes em
lugar de libertadoras, perversas em lugar de amorosas, desestruturadoras em lugar de
amorosas (Faleiros, 2000. Pp. 19-20).
Essa passagem nos alerta para um problema sistêmico em torno da violência
sexual, pois mesmo havendo esse tipo de violência por parte até mesmo de
adolescentes, os estudos nesse sentido mostram uma raiz sócio-cultural e hierárquica
que nos remete à análise dos agressores enquanto adultos. Com efeito, essa perspectiva
desvela a existência de uma reprodução do caráter adultocêntrico da violência, em
8
Obras como “Presença de Anita”, de Mário Donato e “Engraçadinha”, de Nelson Rodrigues abordam a
sexualidade infantilizada de meninas-mulheres frente ao desejo sexual súbito das personagens
masculinas.
35
especial a cometida por homens que assimilam o uso da força como legítimo de acordo
com os dizeres e vivências sociais (Faleiros, 2004).
O crime em torno do abuso sexual se dá a partir do momento que alguma criança
é exposta a qualquer tipo de ato sexualizado (Furniss, 1993). Não se pode restringir de
liberdade ou punir judicialmente (pelo menos não esse dispositivo legalmente) uma
pessoa que declara sentir atração ou desejos sexuais por crianças. Mesmo que repudiado
socialmente, juridicamente isso não é considerado uma transgressão.
Aplicando essas ideias a fim de delimitar o termo agressor ou abusador sexual,
a literatura especializada sugere que tanto os autores diretos de práticas sexuais com
crianças, quanto os envolvidos com a divulgação (pornografia infantil) e agenciamento
(turismo e tráfico para fins sexuais) de crianças para fins sexuais, são considerados
agressores. Ainda nesse sentido, pode-se observar que o termo agressor é mais
frequentemente empregado para abuso sexual extrafamiliar, pois o que move a ação é a
agressividade em maior grau a possíveis relações afetivas, enquanto abusador seria
referente ao abuso sexual intrafamiliar, por permitir o uso e abuso de uma pessoa a
quem se tem algum grau de relação afetiva, indicando, portanto, uma possibilidade (uso
e abuso de) (Faleiros, 2000).
Não nos interessa entrar no campo do debate lingüístico, pois, com efeito, essa
discussão é irrelevante para esse trabalho. Dessa forma, mesmo considerando que os
termos empregados trazem consigo significações que expressam visões de mundo, nos
referiremos ao autor de violência sexual como agressor com o intuito de designar
àquele que agride sexualmente a responsabilidade pelo ato cometido, sem perder de
vista ambas facetas da questão que devem ser privilegiadas: responsabilização e a
perspectiva dos direitos humanos, tendo em vista que o agressor, cada vez mais, se torna
protagonista não apenas da consumação do ato abusivo, mas também na reparação do
dano causado à vítima ao ser olhado com a perspectiva de responsabilização para além
da simples sanção legal (Schmickler, 2006).
Nessa perspectiva, considera-se que um autor de violência sexual ocupa lócus de
diversas significâncias. O abuso sexual, em termos legais, adentra definições de crimes
de atentado violento ao pudor e estupro, categorizando um crime hediondo de acordo
com a Lei Federal 8.072/1990. É nesse contexto que se deve buscar o desvelar de um
sujeito imerso em sentimentos construídos social e historicamente que têm no termo
hediondo a manifestação do espúrio. Dessa forma, “buscar o sujeito real e concreto
36
escondido por trás dessa máscara conceitual e estigmatizada implica tomar por base
outros parâmetros que não se absolutizem como mera questão legal” (Carvalho &
Sousa, 2007, p. 100).
O Estatuto da Criança e do Adolescente considera a existência de crimes
envolvendo pornografia infantil, mais especificamente em seu artigo 240. A lei 11.829
altera o Estatuto no tocante aos artigos 240 e 241, aumentando a pena de reclusão para 4
a 8 anos, aumentada em 1/3 se o agente que comete o crime se prevalecer de relações
domésticas, de coabitação ou de hospitalidade (Lei Federal 11.829, Art. 240, § 2º, II).
É importante ressaltar que a legislação sobre exploração e o abuso sexual prevê a
punição dos agressores, ainda que apenas enquanto ato consumado. Nesse sentido, o
artigo 129 do Estatuto da Criança e do Adolescente preconiza medidas aplicáveis aos
pais ou responsáveis que vão além da simples sanção punitiva, tais como tratamento
psicológico ou psiquiátrico, perda da guarda, suspensão ou destituição do pátrio poder,
dentre outros. No entanto, é necessário averiguar em que medida este artigo tem sido
aplicado, pois demonstra um aspecto
ainda mais delicado da violência contra crianças,
que é a cometida por pais ou responsável. Ao considerar que a construção do abuso
sexual dentro de uma família é mais complexa do que a lei suprime, podendo necessitar
de intervenções que, mesmo mantendo a integridade física da vítima, as medidas
devem, de fato, ir além de apenas isolar o agressor do restante da família, como define o
Artigo 130 do ECA, o qual será abordado posteriormente.
Exatamente por isso, a previsão legal é um instrumento necessário para a prática
de prevenção. No entanto, o abuso sexual, assim como qualquer crime ou transgressão
em geral, não possui o dispositivo legal que impeça a satisfação da lascívia do autor de
violência, uma vez que a referida legislação não puna atos considerados moralmente
inaceitáveis se não consumados. Com efeito, não se pode prever a consumação de
qualquer pré-disposição. A discussão remete à possibilidade do potencial agressor de
procurar orientação, ou ainda, ao identificar qualquer característica ou comportamento
que remeta a práticas sexuais com crianças, que haja acompanhamento profissional a
fim de elucidar a essa pessoa que essas práticas sexuais são repudiadas pela sociedade.
Diversas vicissitudes ensejam cuidados no que tange a que abordagem
profissional será utilizada com um autor de violência sexual contra crianças. Situações
como vivências, por parte do agressor, de violências de diversos tipos ou até mesmo
transtornos psicológicos ou psiquiátricos podem ser fatores que influenciam na
37
reprodução da violência enquanto adultos. No entanto, essa perspectiva objetivista do
ato violento abriga mitos que, em última análise, recorrem ao ponto de fuga de
responsabilização. Entendendo que as decorrências do abuso sexual sofrido demandam
esforços que vão além da simples sanção penal ao agressor, a discussão a respeito da
ocorrência de violências transgeracionais é importante para compreender o ciclo de
violência, mas também não pode ser determinante no processo de atenção tanto de
vítimas quanto de autores de violência (Sousa & Carvalho, 2007).
Objetiva-se então delinear para a sociedade que, por mais moralmente
discutíveis, um doente não necessariamente tornar-se-á um criminoso, e uma vez se
tornando de fato, não se devem excluir as punições legais por invadir direitos alheios,
sendo necessário entender e analisar a questão considerando a mesma base legitimada
com lutas para as minorias, principalmente no que se refere aos direitos humanos.
Nesse contexto, um olhar dialético para análise do abuso sexual, em especial
quando o objeto de estudo envolve a percepção também para aquele que comete a
violência, significa e ressignifica a contrapartida teórico-metodológica pautada pelos
Direitos Humanos, uma vez que descortina o fenômeno e permite avançar na proteção
de crianças e adolescentes. Essa ressalva é necessária, uma vez que ainda é forte a
influência de perspectivas teóricas que consideram os indivíduos essencialmente
egoístas, mesquinhos, individualistas e movidos por desejos apenas (Lessa & Tonet,
2008).
Com efeito, os atributos de virilidade e força que as masculinidades
desempenham nas relações sociais estão em crise. Essa percepção é reforçada uma vez
que a ruptura com práticas violentas é cada vez mais observada, fazendo com que o
homem seja visto, muitas vezes, como algoz naturalizado e intermediário das relações
violentas, especialmente quando o assunto é violência sexual contra crianças
(Ceccarelli, 1998).
Nesse sentido, é necessário elucidar que nenhuma organização societária ou
ruptura de paradigma se finda antes que a própria sociedade desenvolva os mecanismos
e instrumentos para que ela seja efetivamente colocada à prova. Esses instrumentos de
avanço a um novo momento histórico são produzidos no interior dessa mesma
sociedade que é fértil para a reprodução da violência contra crianças (Mészaros, 2009).
Dessa forma, o arcabouço teórico que permite o estudo do tema considerando todos os
atores e, em especial, pensando a intervenção em um agente social tão pouco estudado
38
pela academia e por vezes esquecido na elaboração de políticas de Estado, é entendido
como um marco fundamental para a plena garantia de direitos da infância e
adolescência, pois demonstra a operacionalidade dada pela própria sociedade na
resolução do problema.
2.3.2. AUTOR DE VIOLÊNCIA SEXUAL: QUESTÕES PARTICULARES
Amparada pela noção de que os fenômenos humanos são interconectados no que
diz respeito ao estudo da violência sexual e, mais precisamente, que existem fatores
sociais, políticos, culturais, filosóficos, jurídicos e psicológicos que interferem na
ocorrência ou não de tal fenômeno, é notada também a pretensão de pender o olhar
resolutivo para um ou outro lado da relação conflituosa. Isso quer dizer que a atenção
dada para a violência sexual, em sua maioria, privilegia a vítima em detrimento do
agressor quando o assunto vai além do rigor legal de punição, o que ratifica a
marginalização desse sujeito no acesso aos bens públicos e, consequentemente, ao
melhor trato da questão como um todo ao não se investir com profundidade os nexos
que possibilitam a sua existência e ruptura (Schmickler, 2006)
Diversos estudos mostram as conseqüências cognitivas, comportamentais,
referentes à reprodução de violência sofrida na infância e a respeito da sexualidade do
agressor sexual (Esber, 2009; Schmickler, 2006). Essas caracterizações corroboram com
a construção de um perfil daquele que agride (ou ofende) sexualmente e são importantes
para se perceber o fenômeno em sua totalidade. No entanto, esses aspectos não podem
ter um fim em si mesmo no que diz respeito a uma visão sistêmica e de totalidade da
violência sexual, uma vez que os perfis psicológicos ocupam maior relevância nos
estudos de contextos médico-legais, que não demandam afinco no que diz respeito a
uma leitura mais ampla da questão (Serafim, Saffi, Rigonatti, Casoy & Barros, 2009).
Infere-se que as ciências humanas e sociais procuram não generalizar suas
afirmações, para tanto o uso de perfis dos sujeitos é entendido como ponto de partida
para a análise, sempre muito cuidadosa e preocupada com a real exposição de termos
referentes a esses sujeitos. Nesse sentido, essa preocupação se ressignifica uma vez que
39
o agressor sexual de crianças pode ter diversos vínculos com a vítima, especialmente
aquele que agride em âmbito familiar (Lima, 2009).
Em geral, as características dos agressores são permeadas por formas de adição
específicas, como a ciência que o abuso cometido é crime, moralmente errado e que
causa danos à saúde da tima, além de haver um processo de alívio de tensão - mesmo
não havendo primariamente uma sensação prazerosa -, a condução do processo pela
compulsão à repetição, o sentimento de culpa como catalisador de tentativa de parar
com os abusos e da existência de uma gratificação sexual do ato sexual que atua como
fator que evita a realidade e contribui para uma menor tolerância à frustração (Furniss,
1993).
Um cuidado metodológico que deve ser adotado diz respeito ao distanciamento
da busca por explicações ligadas exclusivamente aos aspectos de cognição de agressores
sexuais a fim de compará-los com os de não agressores, o que provoca uma ruptura com
os demais processos, sejam sociais ou psicológicos, relativos ao autor de violência
sexual contra crianças e adolescentes, tais como a emoção e a afetividade (Esber, 2009).
Essa tendência deve ser evitada, pois não pode haver o isolamento de questões
específicas, assim como a patologização do indivíduo, que findam por limitar o aspecto
da responsabilização do sujeito (Faleiros, 1998). Nesse sentido, a abordagem relativa
unicamente a aspectos cognitivos faz com que aconteça um duplo problema: a
justificativa do abuso, uma vez que se trata de um homem “doente” e a culpabilização
do sujeito em detrimento de co-responsabilidades, como a intervenção em rede e a
relação tripartite em termos que fazer valer o Art. 4º do Estatuto da Criança e do
Adolescente,
9
assim como a ruptura com a heteronormatização das relações sociais
(Esber, 2009).
Essa perspectiva se reforça na medida em que diversos aspectos relativos ao
agressor são desvelados na tentativa de melhor compreender a dinâmica do abuso.
Schmickler (2006) argumenta que a categoria trabalho está intimamente presente na
vida de agressores sexuais de crianças e adolescentes, não apenas como significância de
emprego propriamente dito, mas engendrando as relações desse sujeito com a família e
sociedade através da produção de bens sociais por meio de trabalho remunerado.
9
“É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta
prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação (...) e à
convivência familiar e comunitária” ECA, art. 4º.
40
No entanto, trabalhar é exercer sobre algo a condição de satisfação de alguma
necessidade imediata e, consequentemente, mediada pela relação estabelecida entre
quem vende sua força de trabalho e quem paga por ela (Antunes, 2004). Dessa forma,
quando se enxerga potencial de trabalho em uma criança, seja por parte de quem
explora, seja por familiares que compactuam, consequentemente há a contradição a
respeito da essência do ser criança (ou de sua condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento), justamente por colocá-la em uma relação estritamente desigual a
quem trabalha até mesmo quando se é adulto. Nesse caso, a relação de compra e venda
de força de trabalho em sua analogia à vida adulta, confere a mesma caracterização de
compra e venda da própria infância e o consequente o duplo aniquilamento da criança
enquanto sujeito.
Essa característica dialética do trabalho é permeada, no atual sistema de
produção social, pela mercantilização não apenas das relações de trabalho, mas,
especialmente, das relações entre as pessoas. Esta ciência explica a fetichização das
relações produzidas no seio familiar, que acabam por também permear as relações
abusivas ali praticadas (Demo, 2002).
Aliado a isso, tem-se a ideia, corroborada pela família e pela sociedade, de que o
trabalho é sempre algo que acrescenta positivamente à vida daquele que o exerce,
especialmente quando há condições de pobreza e demais fatores que levam à dita
exclusão social (Campos & Alverga, 2001; Ferreira, 2001).
Essa discussão foi levantada por Schmickler (2006), em estudo realizado com
agressores sexuais e que apontou vivência de trabalho infantil desses sujeitos, seja em
maior ou menor grau. Embora não se possa fazer uma relação de causa e efeito entre
trabalho infantil e abuso sexual, a autora também afirma que o trabalho infantil reduz a
socialização primária da criança com a família, além de provocar evasão escolar e
ausência de “investimentos afetivos e lúdicos absolutamente necessários para uma
criança” (Schmickler, 2006, p. 44).
Dessa forma, ao considerarmos a transgeracionalidade de diversos aspectos
relativos à reprodução da violência, esse descalabro das relações afetivas no seio
familiar finda por engendrar-se tanto na vida de agredidos quanto de agressores. Essa
análise é importante no sentido de possibilitar maior aproximação desse sujeito, pois
para compreender o significado do trabalho realizado na infância, assim como os
41
subjacentes esfacelamentos de questões subjetivas individuais, é de fundamental
importância perceber a lógica do fenômeno sob a ótima do agressor.
Outro aspecto importante em termos de transgeracionalidade que acometem
agressores sexuais de crianças é a vivência de relações violentas desde a infância.
Schmickler (2006), em mesma pesquisa citada anteriormente, argumenta que os sujeitos
da pesquisa “viveram experiências de dor, constrangimento e humilhação, em diferentes
momentos da infância, que foram muito mais severas do que poderiam suportar” (p.
60).
Embora a autora reafirme que não se pode fazer uma relação de causa e efeito a
respeito da repetição, enquanto adulto, da violência sofrida na infância, é importante
pensar em que medida a violência pode se ramificar nas diversas vivências da vida
adulta e mesmo não havendo relação direta que possa afirmar que uma vítima de abuso
sexual se tornará um agressor no futuro, a mera possibilidade de isso acontecer exige
esforços no sentido de dar relevância à violência sofrida e as suas conseqüências
subjetivas para o indivíduo.
Tais consequências subjetivas não podem, contudo, ser alocadas apenas na
esfera do inconsciente. Os modelos de socialização a que foram submetidos os
agressores podem também atuar como provocadores de repetição de violências sofridas
(Schmickler, 2006). Nesse sentido, a autora prossegue argumentando que os sujeitos da
pesquisa tiveram experiências na vida que foram construindo um chamado
“comportamento abusador”, reforçado por questões de transgeracionalidade de
comportamentos agressivos que findaram por significar relações assimétricas que se
rompem apenas quando colocados sob a custódia da lei.
42
CAPÍTULO 3:
MÉTODO
Este estudo trata de uma pesquisa qualitativa que objetiva analisar em que
medida o afastamento do agressor do lar em casos de abuso sexual é determinante para
ser tratada como convergente à Doutrina da Proteção Integral, considerando seus
aspectos históricos, sociais e psicológicos em movimento dialético, e o exercício
concreto entre pressupostos legais (medida de afastamento) e interpessoais (direitos
garantidos efetivamente na vida dos sujeitos).
Esse percurso metodológico, no entanto, considera o fenômeno como tendo duas
vertentes indissociáveis, a qualidade e a quantidade (Demo, 2006). Longe de almejar
generalizações inquestionáveis, este estudo considera que a perspectiva do ponto de
vista qualitativo deve respaldar e incitar a formulação de políticas sociais, muito devido
ao contexto da pesquisa, que será abordado posteriormente. Nesse sentido, a pesquisa
qualitativa deve propender a um nível de realidade que não pode ser quantificado, mas
que pode acometer todos os indivíduos, mesmo que a níveis diferenciados (Minayo,
2009).
Dessa forma, o estudo de caso instrumental foi realizado por amostra intencional
(André, 2005; Seidl de Moura & Ferreira, 2005), ao privilegiar uma família que
evidenciou, por meio do processo judicial, a necessidade da garantia de direitos não
apenas da vítima em questão, mas da infância e adolescência como um todo, que
outras crianças da família se encontravam em situação de vulnerabilidade, mesmo que
não tendo sofrido, até o momento da pesquisa, de violência sexual.
3.1. CONTEXTO DA PESQUISA
Além do caráter interdisciplinar desta pesquisa, faz-se necessária a
contextualização sociopolítica do estudo. Em termos práticos, é uma pesquisa
financiada pelo Estado, com inserção acadêmica na Universidade de Brasília, que é
fundamentada no caráter indissociável do tripé ensino/pesquisa/extensão. Por se tratar
43
de uma instituição pública, seus estudos demandam uma interlocução com as
solicitações da contemporaneidade, convergindo os resultados e objetivos de seus
trabalhos aos anseios da sociedade (Silva, 2001).
O trabalho de campo da pesquisa foi realizado no Centro de Referência para
Proteção Integral da Criança e do Adolescente em Situação de Violências Sexual
(CEREVS), da Vara da infância e da Juventude do Distrito Federal (VIJ), que se
configura como outra instituição pública que tem como missão
“Garantir os direitos da criança e do adolescente, no âmbito do Distrito Federal por meio da
prestação jurisdicional, assegurando-lhes condições para seu pleno desenvolvimento
individual e social, possibilitando um futuro mais justo para nossa cidade e nosso país
10
”.
O referido Centro tem como objetivos a garantia de pleno exercício dos direitos
violados na situação de violência sexual contra crianças e adolescentes por meio de
intervenções em rede; intermediar o diálogo e estimular a participação entre as
instituições que desenvolvem ações na esfera da defesa dos direitos da infância e
adolescência e fortalecer a rede de atendimento a crianças, adolescentes e familiares
envolvidos em situação de violência sexual
11
.
Dentro da estrutura organizacional da VIJ, o CEREVS
12
realiza assessoria
técnica em processos nos quais foi expedida ou para avaliar a necessidade de aplicação
alguma Medida Protetiva, conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente
em seus artigos 98 a 102, que podem gerar sugestão de aplicação das medidas descritas
nos artigos 129 (medidas aplicáveis aos pais ou responsáveis) e 130 (afastamento do
agressor da moradia comum).
Essa assessoria técnica se por meio de metodologia de trabalho
interdisciplinar, envolvendo Psicólogos, Assistentes Sociais, Pedagogos
13
, estagiários e
apoio técnico de nível médio, que têm como função contatar as instituições para
inclusão e participação na Rede de Proteção Integral às Pessoas Envolvidas em Situação
de Violência Sexual; manter fluxo de informações da Rede de forma continuada;
10
Informação obtida em 31/12/2009 de: http://www.tjdft.jus.br/trib/vij/vij_missao.asp.
11
Conforme informações obtidas em http://www.tjdft.jus.br/trib/vij/docVij/artigos/protecaoIntegral.pdf.
Acesso em 27/11/2009.
12
Centro criado por meio da Portaria Conjunta 25, de 15 de julho de 2008, que desmembrou as ações
da antiga Seção de Estudos Técnicos (SET) em duas novas seções: o CEREVS e a SEASIR (Seção de
Atendimento à Situação de Risco, na qual são atendidas vítimas de vulnerabilidades familiar e
institucional, bem como de maus-tratos domésticos diversos da violência sexual).
13
Durante a realização da pesquisa, a equipe do CEREVS não contava com pedagogos, apesar de esta
profissão estar prevista na organização regimental do órgão.
44
acolher as pessoas em situação de violência sexual encaminhadas pelas diversas portas
de entrada de denúncia ou pelo magistrado da VIJ; realizar avaliação das demandas
de atendimento dos envolvidos, com base em estudo psicossocial com o núcleo familiar;
elaborar parecer técnico e encaminhar ao magistrado da Vara da Infância, quando
determinado; encaminhar a criança ou adolescente e seus familiares para as instituições-
membros da Rede de Proteção Integral de acordo com as demandas evidenciadas e
acompanhar e avaliar os encaminhamentos realizados e os resultados obtidos.
3.2. SUJEITOS
Os sujeitos de pesquisa foram membros de uma família em situação de violência
sexual que estiveram, durante o período de 2008-2010, em estudo técnico no Centro de
Referência para Proteção Integral da Criança e do Adolescente em Situação de
Violências Sexual em decorrência de determinação da medida protetiva constante no
Art. 130 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a saber, afastamento do agressor do
lar comum.
A família em estudo será referida por nomes fictícios para preservar o
anonimato. Serão apresentadas informações quanto a nome, parentesco, idade,
escolaridade, ocupação e renda. Os dados se referem à época do início do processo e
foram apresentados no processo judicial e pela equipe técnica que avaliou o caso
durante o primeiro relatório técnico enviado ao Juiz da Vara da Infância. Também será
apresentado breve histórico da motivação do processo judicial e a história de vida
retratada no referido no processo, assim como os trâmites legais decorrentes das
medidas aplicadas à família.
45
Configuração do Núcleo Familiar
Nome Parentesco Idade Escolaridade Ocupação Renda (R$)
Bianca
Vítima
15 anos e
10 meses
Classe de
“Aceleração”
do ensino
fundamental
Estudante
Pensão
alimentícia
(valor não
informado)
Renata
Mãe 35 anos
5ª série
interrompida
Zeladora
R$25,00 por
dia
Caetano
Padrasto 38 anos
5ª série
interrompida
Autônomo /
pintura /
serviços
gerais
R$500,00 -
R$1500,00
Aline
Irmã 9 anos
3ª série em
andamento
Estudante
Sem renda
Adriana
Irmã 12 anos
5ª série em
andamento
Estudante
Sem renda
O processo judicial iniciou-se em abril de 2008 quando houve denúncia formal
registrada junto à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) pelo
Conselho Tutelar (CT) da cidade onde reside a família da vítima, após a direção da
escola onde a vítima estudava ter tomado ciência do fato. Tal denúncia referiu-se à
notificação de violência sexual praticada por Caetano contra sua enteada Bianca.
Após o momento de tomada de depoimento dos envolvidos, o caso foi
encaminhado para a Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal e dos
Territórios (VIJ), com a seguinte descrição da violência:
“(...) que começou a sofrer abusos sexuais por parte de Caetano quanto tinha
apenas onze anos de idade, logo após se mudaram para o DF, sendo que veio a ser
molestada por Caetano por diversas vezes, o qual geralmente se aproveitava dos
momentos de ausência de sua mãe, retirava suas roupas da cintura para baixo e a
tocava em sua vagina, nádegas e seios; Que Caetano não empregava violência ou
grave ameaça, mas ele tinha autoridade sobre a declarante (...); Que Caetano nunca
tentou introduzir o pênis no ânus ou na vagina da declarante, sendo que nunca houve a
prática de sexo vaginal, anal ou oral, exceto quando ele lambia sua genitália (...)”.
46
O afastamento do suposto agressor do lar foi determinado imediatamente pelo
Juiz da VIJ com base no Artigo 130 do Estatuto da Criança e do Adolescente, com
posterior determinação de realização pelo Centro de Referência para Proteção Integral
da Criança e do Adolescente em Situação de Violência Sexual de estudo de caso
aprofundado, devendo ser verificado se o agressor realmente se mantém afastado da
adolescente e irmãs, se necessidade de aplicação de medidas protetivas e de
manutenção da decisão de afastamento”, conforme mencionado no processo judicial.
Bianca é filha de Renata e Cássio, tendo o casal se separado logo após seu
nascimento. Dentro de aproximadamente dois anos, Renata se casou com Caetano,
relação esta que possibilitou o nascimento de duas filhas do casal, Aline e Adriana.
A família residia em uma cidade do nordeste do Brasil e posteriormente mudou-
se para o Distrito Federal quando Bianca completou onze anos de idade. Nesse período,
se iniciaram os abusos sexuais sofridos pela criança praticados pelo padrasto, situação
esta que era recorrente e com alta freqüência. Caetano entendia como oportuna a
ausência da esposa para praticar os atos abusivos, descritos por Bianca como por meio
de retirada de suas roupas da cintura para baixo e toques e beijos em sua vagina, seios,
boca e nádegas, sem que, no entanto, ela fosse obrigada a praticar felação ou houvesse
penetração.
A fim de viabilizar as práticas abusivas, Caetano oferecia dinheiro e presentes,
como roupas e sapatos caros, além de permitir que ela saísse com mais liberdade que as
irmãs. Nesse sentido, Bianca, apesar do desconforto com a situação, não relatava os
abusos à mãe, pois tinha medo de que o casal se separasse caso a violência viesse à
tona. Embora a genitora desconfiasse que algo estivesse acontecendo entre o marido e a
filha, tendo até mesmo questionado Bianca a respeito, a vítima mantinha o discurso de
negação. Além disso, a vítima não tinha conhecimento se as investidas abusivas do
padrasto se davam também em relação a suas irmãs, que ela não falava sobre o
assunto com ninguém.
Conforme Bianca ia crescendo e entrando na adolescência, Caetano começou a
mudar sua postura em relação a ela, aumentando a vigilância e atitudes de ciúmes,
dando cada vez menos liberdade como fazia antigamente e a proibindo de namorar ou ir
sozinha à escola ou a qualquer outro lugar. Tal situação teve o ápice quando Caetano se
dirigiu à escola de Bianca e pediu ao diretor, Sr. Mário, ficasse atento às amizades da
47
enteada e, caso a visse com alguma coisa incomum, que conversasse com a estudante e
lhe comunicasse posteriormente.
Após esse contato, o diretor Mário chamou Bianca para conversarem e a
questionou se ela estava fazendo algo de errado por pudesse motivar a preocupação do
padrasto. Nessa ocasião, Bianca respondeu ao diretor que Caetano agia daquela forma
por ciúmes e relatou que estava sendo vítima de abusos sexuais por parte dele. Ciente da
situação, o diretor chamou a Sra. Renata e lhe contou sobre o crime. Ela, por sua vez,
questionou o marido sobre a veracidade dos fatos narrados pelo diretor e pela filha,
ocasião esta que Caetano confessou ter praticado atos abusivos em relação à Bianca.
Diante de tal situação, a Sra. Renata se dirigiu ao Conselho Tutelar de sua cidade
e foi acompanhada pelo conselheiro tutelar até a Delegacia de Proteção à Criança e ao
Adolescente (DPCA) para registrarem ocorrência policial. Após o encaminhamento do
caso da DPCA para a Vara da Infância, e a consequente aplicação da medida de
afastamento, o Sr. Caetano foi morar na residência do irmão Adilson e sua esposa Ivana,
além das duas filhas do casal, Kátia e Katarina.
Após o acompanhamento do caso pelo judiciário, houve encaminhamentos para
a execução das ações de proteção tanto para Caetano, quanto para Bianca e Renata. A
fim de não expor tais instituições que foram oficiadas a cumprirem determinação do
magistrado da VIJ, este estudo vai ser referir a estas instituições da seguinte forma:
Instituição A: parte da sociedade civil que tem convênio com o Estado para realização
de ações e atendimentos à vítima e familiares em situação de violência sexual. Faz parte
da metodologia o atendimento individual, familiar e em grupo, com subseqüente
relatório técnico encaminhado ao juiz; Instituição B: parte da rede de proteção social da
Secretaria de Saúde do Distrito Federal que presta atendimento a mulheres vítimas de
violência. Também tem metodologia de atendimentos individuais, familiares e grupais;
Instituição C: clínica particular que realiza psicoterapia clínica para crianças, jovens e
adultos. Caetano foi encaminhado primeiramente a esta instituição, que possui convênio
com o Estado para atender a demandas da justiça por atendimentos desta natureza; e
instituição D: instituto privado que presta atendimentos psicoterápicos em abordagem
teórica específica. Caetano foi encaminhado posteriormente para acompanhamento,
após não haver continuidade na Instituição C.
48
3.3. INSTRUMENTOS
O referencial de análise documental se firmou pela utilização de um instrumento
balizador que foi formulado a fim de possibilitar a coleta de dados em convergências
com os objetivos geral e específicos propostos anteriormente, a fim de se criar um
corpus de modo a fomentar interconexões entre as informações obtidas (Flick, 2009),
conforme ilustrado a seguir:
Instrumento de Análise Documental
Indicador Informação no processo
Variação na renda
familiar
Se a fala da criança é
creditada
Possível ligação com
o Conselho Tutelar
Se a família
concorda com o
afastamento
Se a denúncia foi
feita por familiares
Se há relatos de
descumprimento da
medida
Se há aderência das
partes aos
atendimentos
técnicos
Como os sujeitos
aparecem nos
processos
Outros achados
Essa etapa teve o intuito de conhecer os procedimentos técnicos, assim como a
percepção profissional em relação à família e autor de violência atendidos. Assim,
foram ordenadas informações e, posteriormente, selecionadas aquelas que convergirem
com o enfoque proposto por este trabalho.
49
Logicamente, esta divisão do material de análise não é linear, visto que no
processo judicial estão contidos os relatórios técnicos analisados. No entanto, a
linguagem jurídica e específica de outros agentes estão presentes no processo como um
todo (Ministério Público, OnG’s, DPCA), assim como os relatórios técnicos refletem
uma abordagem profissional diferenciada e retratada apenas nesses instrumentos. Além
disso, é importante mencionar que o processo é contínuo em tempo (dois anos), o
primeiro relatório representa a primeira análise técnica psicossocial e, por fim, o
segundo relatório remete à condição da família e do agressor ao final de dois anos de
acompanhamento.
3.4. PROCEDIMENTOS
Em abril de 2009 o projeto de pesquisa foi apresentado à equipe do Centro de
Referência para Proteção Integral da Criança e do Adolescente em Situação de
Violência Sexual (CEREVS). Em junho do mesmo ano foi protocolado pedido formal
de autorização para realização da pesquisa junto à assessoria do Juiz da Vara da Infância
e Juventude do Distrito Federal e dos Territórios.
Após deferimento do pedido, foi realizado o acesso ao campo de pesquisa, dado
início à análise processual de 23 famílias que se enquadravam no Art. 130 do ECA,
conforme roteiro de analise documental mencionado. Dessa primeira análise, foram
selecionadas 10 famílias que tiveram maiores consistências em termos de
disponibilidade de dados, como presença aos atendimentos técnicos do CEREVS,
atendimento a todas as partes (agressor, membros da família e vítima) e elaboração de
Relatório Técnico da equipe responsável.
Dessa forma, o percurso da análise documental, conforme mencionado no
Capítulo 1 desde trabalho buscou, dentre os diversos pontos desvelados, as referências e
inferências aos sujeitos de pesquisa por meio da interpretação (do ponto de vista do que
é evidenciado; do ponto de vista crítico e da reinterpretação), precedendo a
contextualização sócio-histórica e a análise formal do que é observado, como termos
recorrentes; estrutura da maneira de pensar; modos de sustentação de argumentos; e as
contradições do discurso (Demo, 2006).
50
3.5. CUIDADOS ÉTICOS
A primeira etapa institucional da pesquisa foi a autorização para realização do
trabalho
14
dada pelo MM Juiz da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal
e dos Territórios em 25 de janeiro de 2010, uma vez que uma parte da coleta de dados
se deu nas dependências desta Vara, na qual todos os processos analisados correm em
segredo de justiça.
Por se tratar de um trabalho envolvendo seres humanos, o projeto foi aprovado
pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de
Brasília em 04 de maio de 2010, e foram observadas as limitações éticas, às quais este
estudo deverá considerar, além de resguardar os sujeitos da pesquisa conforme
prescreve a resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde (CNS, 1996) e o Código
de Ética Profissional do Assistente Social (CFESS, 1993) e do Psicólogo (CFP, 2005).
3.6. MÉTODO DE ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES
Para a composição de dados relativos à parte empírica do objeto em questão foi
adotado um instrumento específico conforme mostrado a seguir, a partir das
informações obtidas por meio dos instrumentos supracitados e cônscios de que estes
instrumentos para a realização de uma pesquisa dialética e sistêmica envolvem,
principalmente, a capacidade de compreensão e devem ter articulação teórica com os
dados obtidos, a fim de viabilizar a metodologia de estudo de caso instrumental
mencionada anteriormente (André, 2005; Demo, 2006; González-Rey, 2010; Minayo,
2009).
14
Termo de consentimento em anexo.
51
Análise das Informações
Indicador
Informação obtida:
Interpretação
a) No processo:
b) No primeiro relatório
técnico
c) No segundo relatório
técnico
Descrição do
abuso
Dinâmica
familiar
Procedimentos
realizados
Voz da vítima
Voz do
agressor
Descrição dos
sentimentos
dos sujeitos
Posição de
proteção à
vítima adotada
pelos
profissionais
Decisões do
Juiz
O primeiro momento da utilização do referido instrumento foi a categorização
inicial das informações encontradas tanto no processo judicial, quanto no primeiro
relatório cnico (realizado no inicio do cumprimento da determinação judicial) e no
segundo relatório técnico (realizado ao final do acompanhamento da família), a saber: a)
descrição do abuso; b) dinâmica familiar; c) procedimentos realizados; d) voz da vítima;
e) voz do agressor; f) descrição dos sentimentos dos sujeitos; g) posições de proteção à
vítima adotada pelos profissionais e h) decisões do Juiz
15
, conforme exemplificado
anteriormente.
Com os dados ordenados de forma horizontal, foram analisadas as semelhanças
entre as categorias e como são expostas nos três documentos analisados, além da
ordenação das informações importantes que apareciam no decorrer da análise. Essa
15
O indicador “decisões do Juiz” foi o único que não seguiu a padrão estabelecido, pois estava presente
no processo judicial sempre que alguma medida cabível deveria ser tomada, independente a indicação ou
sugestão técnica contida nos relatórios.
52
etapa proporcionou a interpretação vertical concomitante às informações horizontais
obtidas, reduzindo pela criação de três zonas de sentido, ou categorias de análise,
relativas ao material coletado, findando pela análise final (Demo, 2006; González-Rey,
2010; Minayo, 2010).
A partir disso e com as leituras transversais sugeridas, os blocos foram alocados
nas seguintes categorias analíticas, ou zonas de sentido, que servem de base para as
implicações psicossociais do afastamento do lar para o autor, família e vítima de abuso
sexual: a intencionalidade do processo judicial; como os sujeitos e suas falas/ações são
apresentados durante e após o percurso de acompanhamento psicossocial; e a
convergência da medida de afastamento do lar e das ações de proteção subjacentes dos
operadores do direito da infância ao princípio da proteção integral e prioridade absoluta
(Demo, 2006; González-Rey, 2010; Minayo, 2010).
53
CAPÍTULO 4:
ANÁLISE DE DADOS E DISCUSSÃO DE RESULTADOS
O Capítulo 4 aborda os principais resultados encontrados a respeito do
afastamento do agressor do lar em casos de abuso sexual e as conseqüências
psicossociais de tal Medida Protetiva, prevista no Art. 130 do Estatuto da Criança e do
Adolescente. Após as leituras de processos e os respectivos relatórios técnicos, os
indicadores de análise foram realocados e destrinchados sob a égide do Materialismo
Histórico-Dialético e da Teoria Sistêmica (González-Rey, 2006; Mészaros, 2009;
Vasconcelos, 2009). Para tanto, a partir dos indicadores, os dados foram apresentados e
analisados em blocos específicos, conforme propôs o instrumental de análise
documental anteriormente mencionado: descrição do abuso; dinâmica familiar;
procedimentos realizados; voz da vítima; voz do agressor; descrição dos sentimentos do
agressor, família e vítima; posicionamentos de proteção dos operadores da medida
protetiva; e as decisões do magistrado. É importante frisar que análises críticas relativas
à política de proteção à infância e outras questões de âmbito macrossocial serão
privilegiadas as incursões tendo como base o materialismo histórico-dialético, assim
como as ponderações a respeito das dinâmicas internas dos sujeitos e suas implicações
subjetivas decorrentes da vivência do abuso terão como pano de fundo uma análise
compreensiva, assim como propõem os fundamentos da teoria sistêmica.
Além disso, devido aos objetivos desde trabalho e após os contatos com o
processo e conversas com a equipe técnica que atendeu o caso, optou-se por não realizar
novas entrevistas aos sujeitos da pesquisa, visto que, após dois anos de envolvimento
com a Justiça, retornar à Vara da Infância e entrar em contato novamente com a situação
poderia gerar revitimização nos membros da família. Revelou-se que as repercussões da
medida de afastamento do lar, sob a ótica teórico-metodológica proposta, não trariam
contrapartida direta para os sujeitos caso eles fossem expostos reiteradamente a
momentos de entrevistas sobre o assunto que os trouxe à justiça.
Compreende-se que o sujeito da pesquisa deve ser o primeiro a se beneficiar
com o estudo acadêmico, seja por possibilitar outro momento de reflexão e cuidado com
seus sentimentos, seja por trazer objetivamente respostas ou soluções para os problemas
enfrentados por eles. Dessa forma, as informações obtidas pelo processo e relatórios
54
técnicos das equipes profissionais que atenderam o caso (e já haviam entrevistado as
partes) foram suficientes para assegurar a qualidade do estudo e, antes disso, garantir a
preservação dos direitos da vítima e demais familiares envolvidos no processo judicial,
direta ou indiretamente.
Também se notou que o afastamento do lar se firma como medida de proteção
no que tange ao seu significado social, que ao extrapolar as conseqüências na dinâmica
familiar para um problema concernente a articulação de redes sociais de proteção e
políticas públicas e sociais, pôde elucidar um fenômeno não na objetividade do ato de
abuso sexual ou na subjetividade inerente a qualquer individuo em situações como
estas, mas significando a pesquisa como ferramenta política de defesa dos direitos de
crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual (Faleiros, 2010).
Além disso, no que pode se inferir do autor de violência sexual, o caso
selecionado delineia um tipo ideal que uma visão funcionalista e positivista da questão
espera ter desse sujeito: trata-se de um homem que assume a autoria, entende os danos
causados à família, à vítima e a ele, relata dificuldades objetivas de controle de impulsos
e, além disso, em um possível acompanhamento ou tratamento psicológico uma
forma de reparar o dano causado. No entanto, esse mesmo tipo ideal é alguém que não
pode contar com ações de promoção e prevenção ao abuso sexual, assim como
atendimento especializado como política de Estado e não como filantropia e
benevolência de membros da sociedade civil, e mesmo considerando, em circunstâncias
excepcionais, válidas tais ações, estas deveriam ser subsidiárias das ações Estatais, não
o contrário (Esber, 2009; Salter, 2009; Santos, 2010; Schmickler, 2006).
55
4.1. A MEDIDA DE AFASTAMENTO E A INSTAURAÇÃO DA PROTEÇÃO:
A INTENCIONALIDADE DO PROCESSO JUDICIAL
A justiça é, sob muitos aspectos, infiel a suas origens éticas, incapaz de
preservar sua herança em toda a riqueza interna mas não pode esquecer
suas origens sem deixar de ser ela própria, a justiça. Zygmunt Bauman
A literatura especializada tem aumentado sua produção a respeito dos impactos
das vivências de famílias em contexto de violência sexual que chegam à justiça (Costa
& Lima, 2008; Habigzang & Cols, 2005; Pelisoli, 2008). Esses estudos mostram que o
processo judicial é fator de potencial revitimização, dada a necessidade processual que
diversos atores sociais tenham acesso à família. Não somente restringindo esse aspecto
delicado ao contexto judiciário, é importante salientar que desde o período pré-
denúncia, a Justiça se coloca como fator de tensão para os envolvidos, seja pela ameaça
ou medo de que o abuso se torne público, seja pelas consequências subjetivas que se
materializam nas relações intrapessoais, comunitárias e profissionais das pessoas em
situação de violência sexual.
O campo de atuação multidisciplinar na Justiça abriga diversos profissionais,
como psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, policiais, juízes, promotores, médicos,
enfermeiros e uma gama de pessoas que têm acesso, de alguma forma, às pessoas em
vivência judicial. Esse fator coloca em cheque a questão do segredo de justiça, pois
em uma rede de atendimento em que cada vez mais profissionais, em nome da
insuficiência de um único saber, manuseiam documentos que registram a vida de
pessoas e, além disso, podem vir a ter contato direto com elas até mesmo em corredores
de delegacias ou outras instituições (Costa & Lima, 2008; Penso, Costa, Ribeiro,
Almeida & Oliveira, 2008).
É nesse sentido, o de evitar que a necessidade processual e de incompletudes
profissionais, que o processo judicial compila as ações de seus objetivos a cada novo
procedimento. Isso quer dizer que a continuidade do processo é fator positivo para a
preservação dos sujeitos envolvidos, autor, vítima ou familiar, uma vez que nem todos
os atos formais demandam a exposição destas pessoas (Fávero, Melão & Jorge, 2008).
Dessa forma, tratando como objetivo principal de um processo judicial o fazer
justiça, nos leva a cabo contrapor essa perspectiva ao se buscar a compreensão de como
os sujeitos entendem e (re)produzem as concepções de justiça (Spadoni, 2009). Para
56
tanto, o segundo questionamento acima levantado será parte de vindoura discussão
neste trabalho. Por hora, nos ateremos às expressões construídas pelo processo que
buscam alcançar os preceitos de igualdade, fraternidade e liberdade, considerados os
ideais de justiça contemporâneos (Miranda Júnior, 1998).
Na sua realização, a pesquisa permitiu observar que houve um processo célere
em relação às primeiras medidas de proteção aplicadas pelo judiciário. Houve uma
sequência lógica de atenção dos operadores do direito, com atendimentos coerentes com
a boa conduta do tema e procedimento indicados respeitam os limites da situação em
questão.
Em termos processuais, o primeiro registro menciona o acolhimento da denúncia
por parte da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), que menciona
o Art. 224 do Código Penal Brasileiro (crime de atentado violento ao pudor, mediante
violência presumida), ainda em vigor antes de sua revogação pela Lei 12.015, de 07
de agosto de 2009. Nesse sentido, um processo célere de proteção à vítima (ao
encaminhar o caso à Vara da Infância e da Juventude) e em relação à responsabilização
do agressor, por meio de posterior indiciamento criminal.
No mesmo momento processual, o anexo da Ocorrência Policial, datada de 15 de
abril de 2008, menciona o período aproximado da duração da violência como sendo de
três a quatro anos. Nesse sentido, a trajetória de publicização do abuso compreendeu o
relato da vítima ao diretor de sua escola, Sr. Mário, que por sua vez acionou o Conselho
Tutelar da cidade, chegando a culminar na denúncia formal à DPCA.
Na referida ocorrência a descrição do histórico do caso, passando pela
menção de encaminhamento de Bianca ao Instituto Médico Legal (IML) para realização
de exame de corpo de delito, além do termo de declarações da vítima e de sua genitora.
Apesar de o termo de declarações ser o documento escrito do que é dito pelas partes
inquiridas pela autoridade profissional, este se apresenta, também, como um momento
no qual inferências são reduzidas a termo, notadamente imbuídas à forma literal do
relato.
Este contexto fica aparente quando é relatada a ocorrência do abuso, nomeado
como ato de molestar: (...) desde então veio a ser molestada por diversas vezes por
Caetano”. A seguir, há a descrição de como o ato abusivo acontecia, seguido de
Caetano não empregava violência ou grave ameaça, mas tinha autoridade sobre a
57
vítima”. Isso leva ao questionamento se durante a inquirição a tima utilizava,
literalmente, os termos ser molestada” e, ainda sim, relatar que não havia emprego de
violência. Pode-se discutir se o ato sexual por si é ou não violência sob a ótima da
vítima e muitas delas não vêem como violação de direitos a relação sexual com
adultos (Leal, Leal & Libório, 2007). No entanto, como aferir assertividade a termos
como “não empregava violência ou grave ameaça” se, para o aporte teórico-
metodológico adotada nesta pesquisa, a definição de violência abarca uma gama de
sentimentos, situações e vivências entre vítimas, agressores e seus familiares? Esse
aspecto observado pode gerar um quadro de revitimização por minimizar o abuso
sofrido a algo “não violento” ou praticado “sem grave ameaça”, reduzindo os
sofrimentos e angústias subjetivos que acometem uma vítima desse tipo de violência
(Dobke, 2001; Marques & Maio, 2007; Santos & Gonçalves, 2008).
Para além da supracitada discussão conceitual e do caráter mediato do discurso,
o referido documento apresenta a descrição clássica da relação de poder e submissão em
famílias em situação de violência sexual, especialmente quando agressor e vítima
coabitam (Furniss, 1993; Sanderson, 2005). A dinâmica é relatada e mostra o processo
de sedução, ambivalências de sentimentos do suposto agressor e da vítima, negação do
abuso, suspeitas não necessariamente as que cogitam abuso sexual de outros
familiares, o medo da vítima de o fato levar à ruptura afetiva entre os familiares, assim
como o receio de ver o desamparo financeiro em decorrência de conflitos vindouros,
dentre outros aspectos. Essa dinâmica é integrante do movimento de publicização do
abuso, pois há redução a termo do momento em que Bianca externa as agressões
sofridas.
Nesse sentido, existem duas implicações principais sobre a vida da vítima em
termos de sua relação com os atos abusivos. Para além da questão dos direitos sexuais
do indivíduo, o aspecto da saúde mental de uma criança que vive uma dinâmica abusiva
deve ser discutido, pois a vivência dos membros da família é alterada em torno do
abuso, mesmo que nem todos os membros saibam do que efetivamente acontece
(Furniss, 1993; Costa, Penso, Rufini, Mendes & Borba, 2007).
Essa necessidade de garantir os direitos da vítima, restaurar a proteção perdida
em razão da nova dinâmica familiar abusiva e preservar a saúde mental dos envolvidos
demanda o entendimento do processo de entrosamento desses diversos aspectos, que
devem coexistir. No caso de Bianca, o abuso sexual era algo que feria seus direitos
58
enquanto cidadã, logicamente, mas não houve tempo suficiente, ou não foi relatado no
processo judicial, algum dano psicológico ou ao seu desenvolvimento de modo geral.
Nesse sentido, lidar com os receios, medos e ambivalências familiares decorrentes do
abuso sexual não seria menos doloroso que as conseqüências judiciais de se revelar tal
abuso (Furniss, 1993).
Ainda de acordo com Furniss (1993), a dinâmica familiar que abriga essa gama
de sentimentos e ambivalências quanto à responsabilidade, culpa e segredos pode ser
entendida ao aprofundar a compreensão da família enquanto um núcleo sistêmico, com
características de circularidade interna, o que demonstra uma não abertura para questões
externas às produzidas no âmbito familiar. Assim, a responsabilidade pelo abuso e a
participação ou não de outros membros da família, assim como as relações de poder
inerentes e os sentimentos de culpa e medo são difundidos, o que dificulta a ruptura
com as práticas violentas; ninguém é culpado, ninguém é inocente, embora a construção
vertical de poder possibilite ao agressor maior possibilidade de negociação no sentido
de manter a dinâmica abusiva (Furniss, 1993; Faleiros & Faleiros, 2006).
Isso ocorre uma vez que as regras existentes na sociedade e reproduzidas no seio
familiar legitimam algumas características entendidas pelos membros como sendo
irrefutáveis por eles (Bruschini, 2005). Entretanto, a relação paternal entre um homem e
seu filho se estabelece de diversas formas, que podem variar em um espectro de pólos
positivos e negativos. Nesse sentido, um filho que tem uma relação de segurança, afeto
e carinho com seu pai, tem maiores chances de estabelecer relacionamentos íntimos
saudáveis e maduros. Entretanto, as experiências formativas e vivências cotidianas,
quando não devidamente manejadas pelos pais, é terreno fértil para a formação de
hostilidades entre eles na medida em que o filho começa a ter uma postura mais crítica e
de independência (Rebocho, 2007).
Esse ponto é especialmente importante, pois o estopim de ruptura com a
privacidade do abuso começou pela ação do suposto agressor ao dirigir-se ao diretor da
escola de Bianca e pediu-lhe que, caso a visse [Bianca] com alguma amizade ruim,
que conversasse com ela e lhe comunicasse [a Caetano]. Tal afirmação veio após
Bianca relatar que “Caetano demonstrava ciúmes da declarante [Bianca], sendo que
ele não permitia que namorasse ou fosse sozinha para a escola ou qualquer outro
lugar”.
59
Nesse momento, nota-se que a dualidade existente na dinâmica afetiva entre
Caetano e Bianca. Ao pedir que o diretor comunicasse a ele caso a enteada estivesse
com alguma “amizade ruim”, Caetano pode ter sido motivado tanto pela preocupação
paterna Bianca relata que sua mãe e Caetano vivem juntos desde que ela tinha dois
anos de idade quanto pelo sentimento de posse existente em homens violentos. Neste
caso, Caetano veria Bianca não como filha, mas nutria sentimentos existentes em uma
relação entre homem e mulher, típicos do padrão masculino rígido que tem atitudes
baseadas em modelos de controle e poder sobre a parceira (Brito, 2007; Guimarães,
2009; Guimarães, Chaves & Maciel, 2007).
Por conseguinte, há uma forte evidência nesse contexto de publicização do
abuso de que a relação que Caetano não queria romper era a de homem e mulher,
também pelo fato de não haver relatos de investidas sexuais de sua parte contra suas
filhas ou outras crianças. Nesse sentido, o agressor não pode ser alocado nas tipologias
e taxonomias elencadas por Rebocho (2007), em uma revisão extensa de diversos
autores a respeito da classificação de violadores sexuais. O exercício de poder pode ter
se dado em relação a uma possível perda da parceira sexual, e não somente pelo medo
de vir a público algo socialmente proibido (Esber, 2009; Rebocho, 2007; Schmickler,
2006).
De acordo com Bianca, quando o fato chegou a conhecimento da Sra. Renata por
meio do diretor da escola, esta procurou o Sr. Caetano e o questionou sobre a
veracidade do relato, momento este que ele confirmou como sendo verdadeira a fala da
enteada. No entanto, mesmo Bianca tendo mencionado que a mãe havia declarado não
ser possível a continuidade de sua união conjugal com o Sr. Caetano em virtude do
ocorrido, após o depoimento da genitora que será abordado a seguir -, a representação
da DPCA optou por considerar o desejo atual da genitora, que seria o de manter a união
com o suposto agressor.
De acordo com termo de declarações e a sugestão da DPCA após os
depoimentos, o ponto mencionado acima é um aspecto de divergência nos depoimentos
de mãe e filha. Se Bianca mencionou que a mãe não mais achava ser possível a
convivência, essa declaração da Sra. Renata foi dada logo depois que ela descobriu o
abuso e se direcionou ao Conselho Tutelar para fazer a denúncia. No entanto, como o
depoimento na DPCA foi realizado no mesmo dia, ela mudou a versão e relatou em
depoimento que queria continuar o relacionamento.
60
Pode-se inferir que essa vontade da Sra. Renata em continuar o relacionamento,
a princípio, é uma inferência da autoridade policial que sugeriu medidas protetivas ao
caso, conforme mencionado anteriormente. Isso porque a genitora, de acordo com seu
termo de declarações, mencionou apenas que ainda mora na companhia da declarante
[Renata]”, não trazendo referência a mudar ou não essa situação.
Outro ponto relevante é transcrito a seguir: “que cerca de dois meses, a
declarante [Renata] percebeu que o tratamento de Caetano com relação à Bianca
estava diferente, pois ele parecia se preocupar mais com ela.” E prossegue: que achou
estranha aquela situação, chegando a perguntar a Bianca se ela sabia de alguma coisa
com relação a Caetano, porém ela negou qualquer conhecimento de fato estranho com
relação a ele”. O primeiro ponto dessa passagem remete à negação de Bianca, assim
como ela relatou em seu depoimento o medo de externar o abuso sofrido. Já um
segundo ponto alude ao questionamento, por parte da Sra. Renata, a Bianca sobre
“alguma coisa com relação a Caetano”. Aqui se percebe que, ao haver suspeita, a
relação mãe-filha permitiu que a Sra. Renata fosse à filha para confirmar ou não tal
suspeita. No entanto, infere-se que a mãe, ao ouvir a negativa da filha, não procurou o
marido com o mesmo intuito. Dessa forma, ao questionar a filha por perceber que “o
tratamento de Caetano estava diferente, pois ele parecia se preocupar mais com ela”, a
mãe pode ter transitado entre os sentimentos de evitação, indiferença ou ambivalência,
(Santos & Dell’Aglio, 2009).
Ainda na redução a termo do depoimento da mãe, nota-se a menção ao termo
abusava dela”. Considerando que a Sra. Renata poderia tê-lo usado de forma geral
para dar sentido à violência ocorrida, pode-se inferir que a compreensão da DPCA, ao
justificar seu pedido de medida protetiva ao mencionar o Art. 98 em seu inciso II,
considera a existência implícita de vontade da vítima, pois em tese Bianca só se queixou
da violência quando Caetano abusou da relação entre eles ao ser ciumento e possessivo.
também cópia do ofício do Conselho Tutelar de encaminhamento de Bianca
à DPCA, que menciona “suspeita de ter sido vítima de abuso sexual”, continuando com
agressão cometida pelo padrasto”. Nesse ponto da denúncia, o Conselho Tutelar
havia ouvido o relato de abuso tanto pela Sra. Renata quanto por Bianca, que foram
juntamente com o diretor Sr. Mário para formalizarem a denúncia. No entanto, o
conselheiro optou por usar o termo suspeita”, mas afirma que a agressão foi
cometida” pelo padrasto. Se o abuso é uma suspeita, o padrasto seria também suspeito.
61
Dessa forma, infere-se que o encaminhamento à justiça privilegia a acusação formal de
alguém como parte do processo de proteção à vítima, mas que a simples suspeita de
abuso já denota a existência de um culpado.
O próximo andamento processual refere-se à decisão do juiz após vistas aos
procedimentos e relatos mencionados acima. Para tanto, nota-se a preocupação do
magistrado em justificar juridicamente a medida a ser aplicada, não apenas aplicando-a
subjetivamente.
Nesse sentido, a menção à violência em tela se dá como atentado violento ao
pudor praticado pelo padrasto”, o que demonstra a assertividade em relação à condição
de agressor, que mesmo abrindo espaço para que ele ainda seja tratado como suspeito, o
juiz cita termos em latim (fumus bonis júris e periculum in mora respectivamente
fumaça do bom direito e perigo da demora) que expressam a necessidade de proteção da
infância já na suspeita declarada. Observa-se também que o magistrado diverge da
indicação da DPCA em mencionar o inciso III do Art. 98 (em razão de sua conduta [do
adolescente]), conforme será abordado posteriormente, justamente ao considerar como
justificativa da aplicação da medida protetiva de afastamento do agressor do lar (Art.
130 do ECA) apenas o inciso II do mesmo artigo (por falta, omissão ou abuso dos pais
ou responsáveis), assim como a preservação de Bianca e suas irmãs mais novas, Aline e
Adriana contra possíveis novos abusos.
Além da medida protetiva de afastamento do agressor do lar, com o respectivo
encaminhamento do caso para equipe interprofissional/seção de estudos técnicos”,
comunicação à Sra. Renata que esta não poderia permitir “o retorno do afastado à
residência comum tampouco visitas ou qualquer outro tipo de acesso de Caetano à
adolescente Bianca e suas irmãs)”, o magistrado reiterou fortemente que Caetano fica
terminantemente proibido de voltar ao lar sem autorização judicial, sob pena do crime
de desobediência
16
”. Importante salientar também que o magistrado compreendeu o
inciso II, diferentemente da DPCA, como sendo alusivo ao Sr. Caetano e não à Sra.
Renata. Isso porque, mesmo afirmando que esta não poderia permitir que suas filhas
voltassem a viver situações de potencial perigo a sua integridade, não cita possíveis
sanções caso ela não obedeça, assim como o fez ao Sr. Caetano ao mencionar o crime
de desobediência.
16
Art. 359 do CPB com pena de detenção de três meses a dois anos, ou multa.
62
Dessa forma, o percurso de responsabilização do agressor tem novo ato com
ofício da DPCA informando ao Juiz da Vara da Infância a respeito da instauração de
inquérito policial contra o Sr. Caetano: “como incurso nas penas do Art. 214 c/c 224,
alínea a” e Art. 226, inciso II, todos do CPB”. A partir disso, o Sr. Caetano foi
indiciado, sendo aplicáveis as seguintes providências em relação a ele: “interrogar e
qualificar o indiciado, fazendo-se juntas sua folha penal e boletim individual estatístico,
e encaminhá-lo à identificação criminal, por força do Art. 3º, inciso I, da Lei n.
10.054/2000
17
.
Nesse momento, a Vara da Infância e o Ministério Público estão mais
efetivamente presentes no processo, seja para estudos técnicos relativos ao cumprimento
da medida, seja por ações de proteção e atenção psicossocial à vítima e familiares.
A partir disso, o primeiro Relatório Técnico da equipe do CEREVS, dentre
outros aspectos que serão tratados posteriormente neste trabalho, sugere ao Juiz que a
Instituição A “seja oficiada para que inclua a Sra. Renata em suas atividades grupais
de atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência sexual e que avalie e
informe se necessidade de continuidade no tratamento ou outro mais indicado”. Tal
sugestão é acolhida pelo magistrado e o próximo momento processual é Relatório
Técnico da referida instituição à Vara da Infância após ter atendido ao pedido de
atendimento a Sra. Renata, mas sem restringir a ela, pois Bianca também foi atendida.
No referido relatório, a descrição da atual dinâmica da família, por meio de
ação terapêutica. É dado destaque à vontade da Sra. Renata em manter o processo
judicial em segredo, assim como o temor de que uma possível condenação judicial
venha a tornar público o acontecido. No entanto, de acordo com o referido relatório, a
Sra. Renata, apesar de se sentir constrangida pela situação, acredita que o melhor para a
família é a volta do Sr. Caetano ao lar, ao afirmar que eu e a Bianca já perdoamos
ele”.
Nesse sentido, é importante destacar a forma que o olhar técnico corrobora as
informações do processo, mas particulariza e detalha as relações e aspectos da dinâmica
familiar, explicitando de que forma esta dinâmica é fator ora de risco, ora de proteção
para a vítima e potenciais vítimas do autor no processo.
17
Lei que dispunha sobre a identificação criminal e foi revogada pela Lei n. 12.037 de 01 de outubro de
2009, que dispõe sobre a identificação criminal do civilmente identificado, regulamentando o Art. ,
inciso LVIII da Constituição Federal (Art. , LVIII: o civilmente identificado não será submetido à
identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei).
63
Fica nítida que a intencionalidade do processo judicial de proteção à vítima e
responsabilização do agressor tem no percurso processual um fator de duplo
movimento. O primeiro diz respeito à condução das partes por meio das decisões e
sugestões de intervenção. O segundo refere-se ao fato de que o processo, muito em
razão da atuação do setor específico de análise técnica do CEREVS, que em primeiro
nível manifestou convergência com a percepção inicial do juiz em adendo à sugestão da
DPCA, ilustra seus procedimentos à luz da Doutrina da Proteção Integral.
Essa perspectiva fundamenta, também, a sugestão para a inclusão de um sistema
mais amplo no que diz respeito ao objetivo inicial da medida de afastamento. Isso quer
dizer que, ao ser sugerida a inclusão das irmãs de Bianca no processo judicial, que
estavam próximas à idade que ela sofrera abusos de Caetano, a fim de que a iminente
maioridade da irmã não se mostrasse como fator de risco para elas, que o processo
findaria quando a adolescente completasse 18 anos de idade, demonstra o olhar atento a
não reprodução dos abusos sexuais.
Percebeu-se também que desde o primeiro momento processual a medida
protetiva de afastamento do agressor do lar foi considerada fundamental por todos os
agentes defensores dos direitos da criança e do adolescente. Dessa forma, o processo
judicial teve seu objetivo cumprido por essa égide processual.
Entretanto, é importante ressaltar que o processo como um todo entende a
prioridade absoluta da infância, de certa forma, não totalmente vinculada à noção da
Doutrina da Proteção Integral, uma vez que, em nenhum momento do percurso
processual, menção a possível condição de vulnerabilidade a que as sobrinhas de
Caetano passam a ser expostas quando ele passa a morar com elas. Trata-se de duas
crianças, filhas do irmão do agressor, sendo que uma encontrava-se com idade de 12
anos, aproximadamente a mesma faixa etária em que Bianca começou a sofrer abusos
sexuais do padrasto.
Dessa forma, no que diz respeito apenas à vítima, o processo judicial tem
recomendações e sugestões claras e precisas a respeito da dinâmica sistêmica da família,
firmando coesão à análise técnica do CEREVS, e permite que se elenquem questões
para além do positivismo da lei, notadamente insuficiente para lidar com questão desta
amplitude. Tem-se, dessa forma, uma medida de ambivalência necessária, pois é a
partir disso que se desvelam os detalhes perdidos na formalidade ritualística de
64
depoimentos, requisições, encaminhamentos e demais elementos da ação do Estado na
vida das pessoas.
No entanto, o processo demonstra também um caráter limitado na observância
de questões para além dos números processuais, uma vez que a publicização de uma
violação de direitos deve, obrigatoriamente, servir como alerta para toda a sociedade e
para o Estado de que a infância está suscetível a constantes violações. E a partir dessa
publicização, medidas mais amplas devem ser tomadas, a fim de evitar que a Justiça
seja um mero âmbito de coleta de provas que visem ter alguém como culpado pelas
barbáries sociais diversas. Nos dois sentidos haverá algum tipo de cuidado com a vítima
e o anseio por responsabilização do autor da violência (embora isso não seja regra), mas
a ordem que está posta coloca o questionamento de até que ponto privilegiar a punição
de alguém é, de fato, eficaz para a proteção da infância como um todo (Beristain, 2000).
Por fim, as questões específicas relativas aos sujeitos serão abordadas a seguir.
Entretanto, a análise dos dados relativa á forma de instauração da proteção adotada pelo
processo judicial por meio da execução de uma medida protetiva, mostrou que as ações
objetivas de um processo judicial e as implicações complexas discutidas até aqui
demonstram a coerência teórico-prática existente no processo judicial que objetiva a
garantia de direitos de uma infância violada. Nesse sentido, embora o pilar da defesa
dos direitos da infância, conforme prevê o Sistema de Garantia de Direitos (Neto, 2001),
seja observado pelas ações da Justiça, que se pauta em provas e evidências para a
aplicação de medidas de proteção, não grande significância às questões
multifacetadas das relações afetivas e emocionais que emergem de cada ação de
proteção: o processo interrompe a violência, mas lida de forma simplista às demais
demandas dos sujeitos (Faleiros & Faleiros, 2006; Santos, Costa & Granjeiro, 2009).
65
4.2 OS SUJEITOS E O PROCESSO JUDICIAL:
DE NÚMEROS PROCESSUAIS À DUALIDADE ENTRE SER SUJEITO OU
OBJETO DE DIREITOS
“Criança indefesa
Eles te pegam pelas mãos para satisfazerem às suas próprias vontades.
Você será a mesma?
Um sorriso impudente
Para roubar de você a inocência que sangra.
Eles sentirão sua dor?”
James LaBrie (1997, p.10).
18
Como se trata de um processo judicial de caráter cível, houve maior menção à
Bianca nos procedimentos adotados e ações realizadas pelos operadores do direito. A
primeira referência a ela e as implicações geradas pelo abuso e processo judicial são
feitas pela DPCA, em ofício encaminhado à Vara da Infância. Destacam-se, como
mencionado anteriormente, frases como Que [Caetano] não empregava [no abuso]
violência ou grave ameaça”, “que [Caetano] lhe dava [a Bianca] mais liberdade e
presentes”, “Que [Bianca] não contava [sobre os abusos] porque tinha medo da mãe
se separar [de Caetano]” e “Que os abusos ocorriam quando os pais brigavam”.
Em um primeiro momento, a citação Que [Caetano] não empregava [no
abuso] violência ou grave ameaça” revela o interesse inicial do processo formal em
legitimar possíveis violências explícitas, como a física, por exemplo. Conforme já
foram discutidas neste trabalho as inferências do tomador de depoimento e a possível
desqualificação do abuso enquanto violação de direitos, percebe-se que o termo
violência pode ter sido utilizado de forma divergente para com o que sentia Bianca
durante a revelação do abuso. No entanto, o termo violência é comumente empregado
com denotação pejorativa e com forte carga negativa, o que pode dar a entender a
aversão de Bianca em falar do abuso como uma violência.
No momento de inquirição de Bianca, especialmente quando interrogada pelo
delegado da DPCA, ela consegue descrever o abuso e a dinâmica familiar com grau
relativamente alto de detalhes, contanto com minúcias as práticas que ocorriam ou não
ocorriam, como sexo anal, oral, felação, etc. Entretanto, esse detalhamento, em se
18
Trecho da canção Anna Lee, do grupo musical Dream Theater, que conta a história de uma menina
vítima de abuso sexual intrafamiliar. Letra original disponível em <www.dreamtheater.net>.
66
tratando do primeiro momento formal de coleta de informações, aponta para a questão
sobre a forma que as informações são retiradas das vítimas. Não como verificar com
acuidade se a adolescente realmente descrevia as práticas sexuais e, mais importante,
nos remete a pensar se é de fato pertinente adentrar o foro íntimo de uma adolescente de
forma tão diretiva. Uma vez havendo a denúncia, comprovação da mãe e da própria
vítima e confissão do agressor, a DPCA realmente poderia adentrar tantos assuntos sem
saber como tratar de todos eles, ou dar atenção profissional a possíveis feridas que
seriam abertas ao serem diretamente provocadas? Antes de “abrir” um assunto, a ação
terapêutica deve considerar se conseguirá “fechar” as questões que possivelmente
aparecerão, e não foi esse o caso do depoimento de Bianca no ambiente policial (Dobke,
2001; Penso & Cols, 2008).
Nesse contexto, no qual pode haver apenas um momento para se ouvir os
sujeitos, o entrevistador/inquiridor tem que aproveitar ao máximo a ida deles ao local de
entrevista (Costa, Guimarães, Pessina & Sudbrack, 2007). No entanto, é insuficiente
uma intervenção que busque apenas o rigor pericial ao lidar com a fala dos sujeitos, o
que demonstra a não preocupação em cuidar da vítima e sua saúde mental, evitando
possíveis revitimizações, mas sim em colher provas contra o agressor. Dessa forma, a
vítima é vista apenas como objeto de prova de algum crime e, possivelmente, peça
processual de condenação de alguém (Santos & Gonçalves, 2008).
Embora para o sistema judicial brasileiro crianças e timas não são
consideradas testemunhas, ainda sim seus depoimentos são considerados nos processos
judiciais (Santos & Gonçalves, 2008). Entretanto, o inquiridor inicial, como foi o caso
do profissional da DPCA, não pode simplesmente optar por não ouvir a criança ou
adolescente, pois para além de não haver certeza se a família comparecerá para novos
depoimentos, conforme anteriormente mencionado, essa atitude pode agir como parte da
síndrome do segredo em torno do abuso sexual, no qual a família por muito tempo
compactuou em resguardar o não-dito. Assim, novamente, é negada à criança a
oportunidade de quebrar o silêncio e, consequentemente, romper com as violências
sofridas. Essa suposta atitude de proteção (ao não inquirir), age aparentemente como
postura dos outros membros da família ao não publicizarem o abuso ou simplesmente
não tocar no assunto (Dobke, 2001).
No entanto, a primeira formalização da fala em âmbito da justiça nem sempre é
dada a um profissional capacitado para agir dentro da perspectiva acima. Este trabalho
67
não visa desqualificar a atuação dos profissionais da DPCA, que são importantes
agentes sociais no combate às diversas formas de violência. No entanto, observou-se
que a inquirição inicial privilegiou questões aquém das necessidades imediatas da
vítima e da família, demonstrando uma vocação positivista e redutora da realidade e do
sofrimento de pessoas em situação de violência sexual (Costa, Penso, Almeida &
Ribeiro, 2008).
Em casos de abuso sexual, o comparecimento à justiça pode evocar sentimentos
de medo, insegurança e repulsa, especialmente quando alguma ação judicial já foi
adotada, como é o caso do afastamento do agressor do lar (Goodman, Ogle, Troxel
Lawler & Cordon, 2008). Nesse sentido, Costa e Cols (2007) propõem uma
metodologia para atenção à família cujo contexto psicossocial demonstra a pouca
efetividade de trabalho a médio ou longo prazo, com três eixos principais de
intervenção: colher informações psicossociais para uma compreensão mais ampla dos
sujeitos; compreender a dinâmica familiar e possíveis elementos que sustentam ou não a
crise e; estimular a família a construir novas formas de relacionamentos contrárias às
que levaram à crise (Costa & Cols, 2007).
Entretanto, essas dimensões não têm espaço em uma inquirição policial,
principalmente em relação ao modelo jurídico brasileiro (delegacias, tribunais, etc). É
nesse sentido que a inquirição inicial deve privilegiar questões pontuais, essencialmente
importantes ao processo, motivando a família e a vítima a continuarem disponíveis a
buscar a ruptura completa com a situação de sofrimento vivida. Caso se obtenha sucesso
nesse momento, profissionais qualificados poderão agir para garantir um cuidado ético
às questões para além do formalismo da lei ou colheita de provas de delito (Brito,
2007).
Como adendo, pode-se inferir que em situações nas quais o agressor é alguém
tão próximo a vitima, como é o caso de Bianca e Caetano, afastamento do ofensor é
deveras importe e determinante para romper o abuso que pode vir se repetindo
bastante tempo. Nesse sentido, não está em discussão a necessidade dessa medida, pelo
contrário, esta deve ser adotada sempre que existir os chamados fumus bonis júris e
periculum in mora, mencionados anteriormente.
Mas, uma vez ocorrendo o afastamento do agressor da moradia comum, como
restabelecer a proteção já violada pela ocorrência do abuso? É perigoso pensar que a
proteção da vítima pode reduzir-se ao não contato com o ofensor, principalmente
68
quando este exerce outros papeis na vida dela, como discutido anteriormente (Viodres
Inoue & Ristum, 2008).
Dessa forma, o processo judicial de afastamento de Caetano do lar ensejou dois
pontos a serem conciliados: responsabilização do agressor e proteção da vítima, já
entendendo que a ocorrência de um não garante a efetivação do outro. Vale salientar
que o aparato legal de responsabilização tem como objetivo diminuir a dicotomia entre
os aspectos público e privado do abuso sexual, mas essa consideração demanda a
compreensão de que esse viés legal deixa brechas para que haja a preservação de
discursos desqualificantes em relação às reivindicações legítimas das vítimas que, no
caso de Bianca, ficam em dúvida quanto a manter a decisão de proteção adotada pelo
juiz, ou mais grave quando sequer chegam a fazer a denúncia devido à manipulação que
impede a divulgação dos fatos ou punição e tratamento do agressor (Darlan, 2006).
Nesse sentido, tentativas de anular o ato do abuso perante os mecanismos legais
de responsabilização o igualmente contraditórias a não-inclusão do agressor na
perspectiva do enfrentamento da questão, pois o simples fato de não haver conclusão da
ação criminal, não faz com que a questão seja compreendida de forma sistêmica e em
acordo com a Doutrina da Proteção Integral, conforme explicitado pelo caso em estudo.
Por seu turno, o agendamento da temática do agressor na pauta de discussão
sobre os direitos da infância e juventude ganha força, por mais que insipiente. No
Brasil, essa perspectiva de inclusão de um ator que é socialmente condenado - o que
nem sempre ocorre em termos de punibilidade legal como sujeito importante tanto na
perspectiva de acompanhamento psicológico da vítima (seja pela afirmação da
necessidade de se manter afastado da tima, seja por participar ativamente do processo
de (re)adaptação ao convívio social que não permite a ocorrência de tais atos), quanto
no que diz respeito a garantir o direito de plena defesa e de possível tratamento, caso
considere-se esse ofensor como um doente mental ou portador de algum distúrbio da
personalidade (Cohen, 2005).
Nesse sentido, a observância apenas do aspecto legal age como um processo que
tende a camuflar a violência e se respalda em possíveis lacunas na lei para desviar o
foco do processo de construção da violência sexual e legitimar, de certa forma, os atos
do agressor, protegendo-os de possíveis sanções penais e, um agravante, desviar
unicamente para a vertente legal do problema uma situação que demanda todo um
estudo e envolvimento de diversos profissionais, que após ou durante o processo penal,
69
trabalhariam no intuito de ampliar e articular a rede de proteção de direitos, tanto das
vítimas quanto dos agressores. No caso em questão, a observância apenas das medidas
legais possibilita que a tima entre em contato com o agressor pouco tempo depois de
seu afastamento, pois no período de tramitação do processo foi cogitada a volta ao lar,
ainda que condicionada ao tratamento, mas que efetivamente não acontecera.
Essa segunda discussão escamoteia a real intenção dos princípios da prioridade
absoluta da infância e da Doutrina da Proteção Integral do Estatuto da Criança e do
Adolescente. Concomitantemente aos atos abusivos em contexto intrafamiliar, os
ofensores geralmente se valem de artifícios, amparados em discursos de negação e
minimização de sua responsabilidade, que supostamente lhes tiraria sua
responsabilidade pela violência (Furniss, 1993; Sanderson, 2005).
Essas argumentações agem em dois aspectos prejudiciais ao enfrentamento da
violência sexual intrafamiliar. O primeiro diz respeito ao cerceamento dos direitos da
vítima, a partir do momento que sua palavra é ignorada ou desqualificada pelo agressor,
conforme se observou na fala de Caetano, o que causa a revitimização e,
conseqüentemente, atua no sentido de reproduzir as práticas abusivas. Ainda nesse
sentido, dificulta o aparato jurisprudencial de proteção por meio de mecanismos
burocráticos faz com que a criança, ao ter que narrar repetidas vezes o ocorrido, muitas
vezes para pessoas não qualificadas, faz com que o foco da intervenção se perca nessa
teia de burocracias (Santos & Gonçalves, 2008).
O segundo refere-se à compreensão de que forma a responsabilização do
agressor pode reparar o dano causado pelo abuso sexual. Os procedimentos legais,
embora tenham em sua maioria o caráter punitivo, não são de fácil escolha entre punir
ou tratar. Tilley (1989) expõe que mesmo no entendimento que ambas as ações devem
ser consideradas, cabe o argumento de que nem sempre essa articulação é o melhor a ser
feito uma vez que há várias formas de se intervir, assim como há inúmeras categorias de
agressores, mas não diretriz universal que abarque o trato de forma geral para todos
os casos. No entanto, o mais importante aspecto da punição ao agressor fica a cargo de
evidenciar a não aceitação da sociedade quanto à prática do abuso sexual (Tilley, 1989).
Fica, assim, evidente que o cunho punitivo do afastamento do agressor do lar é,
de certa forma, relevante apenas se o acusado tem em seu discurso a aceitação e
reconhecimento de que cometera algo repreensível, como é o caso de Caetano, que se
mostrou aberto à possibilidade de tratamento, mesmo ciente que isso não teria ligação
70
com a parte criminal do seu indiciamento por abuso sexual. Entende-se que no processo
pós-abuso sexual deve haver respeito integral ao ser humano, e que o agressor sofrerá
punição por ter infringido uma norma ou lei da sociedade. Dessa forma, pode-se
argumentar que o agressor “merece” uma punição proporcional ao seu ato,
independentemente do seu reconhecimento quanto a isso (Tilley, 1989). Porém,
novamente ao considerar o abuso sexual como sendo resultado de uma relação, mesmo
que desigual, o ato de punir apenas seria totalmente reparador se isso implicasse num
resultado totalmente satisfatório para a vítima, para o agressor e para a sociedade que
repudia certas condutas.
Pode-se alegar que a punição vai disciplinar ou reparar o agressor e que trará
proteção à vítima ao manter o acusado afastado do lar. No entanto, é importante
mencionar que a medida protetiva prevista no Art. 130 do ECA visa não somente a
proteção da vítima, mas manter em vista o percurso punitivo com o intuito de reparar o
comportamento socialmente inaceitável. No entanto, satisfazer os preceitos legais do
crime não é totalmente suficiente, especialmente em casos de abuso sexual, na qual as
medidas aplicadas, sejam na perspectiva de proteção, sejam visando punir, terminam
por penalizar a família.
Com efeito, punir o abuso sexual de crianças e adolescentes não deve impedir o
acompanhamento – seja cível ou criminal - individual do agressor, pelo contrário,
ambas as ações devem ser feitas de forma articulada. No entanto, esse tipo de ação se dá
em poucos casos, nos quais uma vez iniciado o processo penal, é mais comum que haja
o afastamento do lar ou o encarceramento preventivo (Oliveira & Sousa, 2007). De fato,
pode-se argumentar que associar qualquer atenção profissional à punição já determinada
(seja ela o afastamento ou detenção) pode infringir os direitos dos autores do crime,
que o caráter da ação legal deveria ter em foco a natureza do crime, não do agressor.
Destarte, obrigar o tratamento concomitante à punição ignoraria a integridade do
agressor como agente social que, em última análise, estaria pagando pelo crime que
cometera. Alguns agressores sexuais, por exemplo, uma vez que aceitam o direito do
Estado em puni-los por infringir uma lei, ainda sim podem não aceitar que exista algo
moralmente errado no seu ato, o que torna menos possível uma abordagem terapêutica
ou ação psicossocial diversa dos andamentos formais da legislação. Essa perspectiva
reitera que o reconhecimento do agressor enquanto sujeito de direitos é fator
fundamental para um trato humanizado da questão, considerando todas as
71
especificidades do abuso sexual (Jesus, 2007; Tilley, 1989), pois a aplicação de uma
medida de proteção não garante automaticamente a garantia de direitos da infância.
Nesse sentido, a revelação do abuso sexual demanda, no caso em estudo, pontos
de discussão distintos. O primeiro refere-se à idade que Bianca começou a sofrer abuso.
Aos 11 anos de idade, uma criança tem menos capacidade de vincular a relação abusiva
à violência propriamente dita (Sanderson, 2005). No entanto, com o passar do tempo,
Bianca vivenciou momentos de ambivalências emocionais, que fazem parte do contexto
afetivo de toda a família. Tal ambivalência pôde ser observada em diversos momentos
em cartas que Bianca endereçava a Caetano quanto este cumpria a medida de
afastamento: Os meus olhos procuram os seus. Eu te amo e o meu coração dispara
quando encontra o teu sorriso. Eu te amo e sinto ternura e carinho em seus braços”.
De fato, o intenso contato sexualizado entre Caetano e as filhas/enteada é terreno
fértil para que a ocorrência do abuso seja vista por Bianca como algo contraditório.
Dessa forma, o abuso ocorrido, por mais que gere aversão a ponto de ela externar o
desejo de que este cesse, há o sentimento de culpa subjacente. Considerando que Bianca
tinha quase 16 anos á época da revelação do abuso, essas ambivalências são ainda mais
fortes. Conforme menciona Sanderson (2005):
“Quando a criança experimenta prazer sexual e orgasmo, o impacto disso é que ela se sente
traída por seu corpo por ter ficado sexualmente excitada. O sentimento de culpa é reforçado
se a criança tem um orgasmo, levando-a a concluir que possivelmente quis a atividade
sexual. O fato se soma à confusão da criança e faz com que ela se sinta traída, não apenas
pelo abusador, mas também pelo seu próprio corpo” (Sanderson, 2005, p. 174).
Nesse sentido, Bianca queria se desfazer do mal que o abuso causava a ela, não
necessariamente ao homem a quem ela nutre tanto afeto e carinho. Assim, ao afirmar
que [Caetano] não empregava [no abuso] violência ou grave ameaça” é de certa
forma, proteger o agressor e não querer que ele seja punido, embora tendo apresentado
sentimentos de tristeza e ansiedade associados ao relato de suas experiências de
abuso sexual”.
Notadamente, a relação vertical de poder que o homem exerce sobre a criança é
repleta de significações relativas ao funcionamento da família (Rangel, 2009). Nesse
sentido, dada a ambivalência existente na relação entre Bianca e Caetano (ora paternal,
ora conjugal), o poder simbólico do agressor é duplamente exercido de forma
contraditória, pois o autoritarismo não tinha a mesma intensidade para com as outras
72
filhas e, por outro lado, tampouco era o mesmo da relação do agressor com sua esposa.
Assim, vítima e agressor estabeleceram objetivos em comum para manutenção do
segredo a fim de que as relações ambivalentes se colocassem em uma aparente
normalidade, embora o movimento de mudança estivesse em constante presença (Costa,
2010).
Esse duplo vínculo entre agressor e vítima, alimentado durante quatro anos, tem
um viés estático, no que tange a manutenção da relação abusiva, e um viés evolutivo,
pois permite que surjam novas interações que entram em equilíbrio com as demais
funções sociais de seus membros, fazendo com que as práticas violentas sejam
entendidas como parte da vida cotidiana, ou seja, sua ocorrência não é entendida como
algo estritamente antagônico às relações familiares, mas, sobretudo, são ações que
podem ou não ocorrer cotidianamente (Calil, 1987).
Esse equilíbrio de forças nas relações familiares possibilita que, em havendo
diminuição do nível de estresse e conflito da família em razão da relação abusiva entre
uns de seus membros, algum outro sintoma aparece em outro membro da família,
justamente pelo caráter cíclico das interações nos subsistemas familiares. Essas
interações, especialmente no caso em análise, são caracterizadas como tendo alto grau
de permeabilidade, que podem ser entendidas como as relações que envolvem níveis
diferenciados de dependência entre os membros e a variabilidade e indiferenciação no
exercício dos papeis familiares, além de baixa ou nenhuma autonomia de seus membros
para lidar com questões específicas da sociabilidade familiar (Calil, 1987).
Quando houve normatização da relação abusiva como parte integrante da
dinâmica familiar, conflitos existentes no casamento de Caetano e Renata eram
colocados como um sintoma negativo da relação marital dos dois, porém não era
discutido, o que levava a certa distância emocional entre o casal, concomitante à
aproximação afetivo-sexual com Bianca. Dessa forma, a vítima participa de uma relação
triangulada com o padrasto e a mãe, rompendo a fronteira geracional que impede a troca
de papeis dentro da família, a saber, o de filha pelo de amante/esposa (Calil, 1987).
Essa perspectiva se reforça na medida em que Bianca menciona no processo que
sofria violência também quando o padrasto se desentendia com sua mãe. Essa
constatação remete a dois questionamentos iniciais que demonstram mais ambivalências
para o padrasto: 1) com a relação conjugal de Caetano e Renata estando ruim, ele
buscava alívio com outra mulher. Nesse caso, fica em primeiro plano a relação de
73
homem e mulher que era estabelecida com Bianca, que poderia, inclusive, compreender
que ela estaria disputando espaço com a própria mãe; 2) o abuso poderia representar
uma forma de vingança de Caetano à esposa, que seria atingida por meio do sofrimento
de sua filha. Nesse caso, se evidencia a colocação de Bianca como objeto das ações do
padrasto.
Entretanto, não se trata simplesmente de obter alívios sexuais, ou construir um
relacionamento afetivo com outra mulher, como compreensão da triangulação amorosa
entre Caetano, a esposa e a enteada (Calil, 1987). Bianca, ao assumir um sentimento de
culpa para com a mãe e irmãs, demonstra uma maturidade não observada em Caetano,
pois a literatura especializada sustenta que problemas conjugais são relativamente
comuns e, em alguns casos, a imaturidade e dependência emocional da esposa são
fatores ligados à busca de satisfação sexual com crianças. Essa perspectiva é
evidenciada quando há um movimento de independência emocional por parte de Bianca,
que ao adentrar a adolescência começou a vivenciar necessidades e vontades que não
tinha quando era criança, já com a ocorrência dos abusos (Furniss, 1993).
O sentimento de Bianca em restaurar a união da família mesmo que ela se valha
de sofrer as conseqüências da relação abusiva é reforçado pela forma que se deu a
construção de seu papel como filha. Ao referir-se a Caetano como seu pai, Bianca tem
no sentimento de pertencimento uma das razões para não revelação do abuso e, quando
revelado, sofrer com as vontades ambivalentes decorrentes do processo judicial.
Nesse sentido, pôde-se observar que a relação mãe-filha era permeada por uma
não completa confidencialidade, seja quando Bianca negou que havia algo estranho
quando questionada por sua mãe a respeito da postura de Caetano, seja pelo sentimento
de responsabilização quando do movimento da Sra. Renata em querer o retorno do
marido, alegando que ambas, mãe e filha, o tinham perdoado pelas agressões. Essa
relação entre Bianca e Renata é típica em famílias que vivenciam a violência sexual,
pois a vítima não se sente confortável em abrir suas questões e sentimentos para os pais,
especialmente com as mães, que se mostram emocionalmente rígidas e dão a entender
que não compreenderiam o que se passa com a filha, especialmente quando está em
jogo tanto a relação mãe e filha, quanto a de uma possível coexistência de um duplo
vínculo marital (Furniss, 1993).
Trata-se, pois, de uma evidência de que a triangulação amorosa age em diversos
vértices. O primeiro em relação ao distanciamento emocional entre e e filha. Furniss
74
(1993) sustenta que quando proximidade entre elas, não garantias que abusos não
acontecerão, mas eles serão breves e a mãe tomará uma postura de ruptura célere. No
entanto, no caso em estudo, embora a genitora tenha tomado providências objetivas tão
logo confirmada a existência de uma relação abusiva entre o marido e a filha, ela não o
fez quando sinais que tinham levantado sua suspeita apareceram muito antes da
publicização pelo diretor da escola.
Outro vértice de análise diz respeito ao frágil papel feminino em tomar decisões
que implicam em ações diretas ao representante masculino da família. A relação da mãe
com a filha, conforme mencionado, pode ser de proteção, omissão ou até mesmo de
cúmplice do agressor (Furniss, 1993; Rangel, 2009; Sanderson, 2005). Assim, a figura
materna se coloca de forma apática nas relações, seja pela construção patriarcal das
relações domésticas, seja por qualquer outro motivo, mas que efetivamente corroboram
para a existência de abuso sexual intrafamiliar. Longe de culpar a mãe pela ocorrência
de abusos ou colocar sobre ela a responsabilidade de quebra da violência e restauração
da proteção unicamente, mas compreende-se que os subsistemas familiares agem no
sentido de se complementarem, permitindo a existência das relações afetivas específicas
de cada família. É importante ressaltar que a triangulação não tem na criança ou
adolescente um agente completamente passivo da relação, tampouco os demais
membros, como a mãe, podem ser isentados de responsabilidade na manutenção de uma
dinâmica que pressupõe em sua gênese a cotidiana violação de direitos de outrem (Calil,
1987).
Um terceiro ponto refere-se à necessidade de um membro externo à família
como motivador da ruptura com os abusos (Pires Filho, 2009). Renata, ao saber do
diretor da escola que a filha estava em uma relação abusiva com o padrasto, foi até ele
para confirmar a história antes de se dirigir à DPCA. Não se sabe ao certo se, em caso
de negativa de Caetano, apenas a palavra da filha e do diretor seria o bastante para que a
mãe buscasse a judicialização do conflito. No entanto, essa evidência reforça o fato de
que a triangulação se colocou a um nível que permitiu a existência de um pacto de
lealdade entre os membros, sendo a publicização apenas o último passo após os três
envolvidos estarem cientes que uma ruptura estava próxima.
É interessante perceber que a triangulação existente entre Bianca, Caetano e
Renata se enquadra nos quatro tipos definidos por Calil (1987), sem que a autora
mencione diretivamente a coexistência de mais de um tipo. Quando se observa que, na
75
medida em que Bianca adentra a adolescência e seus desejos e vontades mudam em
relação às características outrora infantis, tanto a mãe quanto o padrasto adotam uma
postura rígida, de excessiva proteção da filha/enteada. Esse é um primeiro aspecto do
processo agudo de triangulação a que Bianca foi exposta, seguido por tornar-se o bode
expiatório da família, pois apenas ela, dentre as três filhas, estava demandando dos pais
atenção especial e controle de sua vida social. Nesse sentido, a vítima passa a ter que
optar por manter a lealdade ao padrasto, uma vez que entre eles um segredo que, em
última análise, justifica tal conduta controladora de Caetano; para com a mãe, trata-se
apenas de preocupações sem fundamento, dadas as constantes negativas da filha aos
questionamentos da mãe sobre anormalidades em âmbito familiar. Por fim, a coalizão
rígida se estabelece entre Caetano e Bianca, cuja autoridade materna se torna periférica
a ponto de ela não confrontar o marido em questões notadamente entendidas como de
seu âmbito de resolução, a saber, o cuidado integral da filha (Calil, 1987).
No que tange a sociabilidade da família, três pontos são recorrentes a respeito da
reflexão feita pela Sra. Renata, a saber, “prisão do companheiro, a desintegração
família e as reações de seus familiares”. Nessa perspectiva, Santos & Dell’Aglio
(2009) realizaram estudo a respeito das reações de mães frente à revelação de abuso
sexual sofridos por suas filhas. Descobriu-se que a maioria das mães reagiu com
sentimentos de raiva em relação ao agressor ou culpa em relação à violência sofrida
pelas filhas, assim como ambivalências de sentimentos, a exemplo disso a existência de
simultânea de raiva e afeto em relação ao agressor e até mesmo a desconfiança a
respeito da real ocorrência do abuso (Santos & Dell’Aglio, 2009).
No entanto, a postura da Sra. Renata é de minimização da gravidade do abuso,
pois considera que (...) tratou-se de um momento de fraqueza de seu companheiro e
que espera ver sua família reunida novamente”. Tal postura mantém o movimento de
não mudança, que demandaria entrar em contato com as conseqüências objetivas
(redução da renda familiar, afastamento de grupos comunitários e da família) e
subjetivas (sofrimento das filhas pela ausência do pai, depressão e Transtorno de
Estresse Pós-Traumático dela própria e de Bianca, etc) do abuso.
Essa perspectiva é reforçada na medida em que a Sra. Renata mantém uma
postura rígida em relação a educação de Bianca, relatando que esta é imatura e
necessita de constante vigilância” e completa que a proíbe de relacionamentos
amorosos até que complete 18 anos de idade”. Esse relato, novamente, minimiza as
76
ações de Caetano, quando este se mostrou ciumento e possessivo ao proibir as mesmas
coisas que a Sra. Renata relatou proibir. Em nível subjetivo, a Sra. Renata acolhe o
comportamento obsessivo de Caetano não como um indicativo de ambivalência nos
sentimentos do marido para com a enteada, mas como algo legítimo de qualquer pai ou
mãe.
Essa compreensão denota que a postura em manter distância da realidade do
abuso sob a ótica das conseqüências para a família e filha vítima é uma forma de
preservar a união conjugal, reforçado pelo relato da Sra. Renata ao dizer que “avalia
seu estado emocional e de sua filha [Bianca] como sendo bom ou ótimo”, negando
assim as implicações da violência e os sofrimentos da filha, pois o retorno do Sr.
Caetano ao lar é visto como certo e bom” pela Sra. Renata, embora Bianca relate que
tem muito receio que este fato [retorno de Caetano ao lar] venha a concretizar-se”.
Esse ponto foi mencionado em dois momentos na avaliação técnica da equipe
profissional do CEREVS: Bianca disse que seu pai lhe pediu perdão e também à sua
mãe e tem buscado apoio na igreja para se tratar. Além disso, a jovem tem
testemunhado o sofrimento em que se encontra sua mãe e suas irmãs mais novas
decorrentes do afastamento judicial. Ela afirmou que acredita que, caso Caetano
retorne ao lar, os abusos não mais ocorreriam”.
Outro ponto relativo ao retorno de Caetano ao lar, ainda de acordo com a
avaliação técnica: “Houve um decréscimo da renda familiar com o afastamento judicial,
visto que o Sr. Caetano é a principal fonte de recursos financeiros da família. Este fator
também deve ser considerado na explicação do desejo expresso por mãe e filha quanto
ao retorno do agressor ao lar. Associado à dificuldade de manutenção do lar, a Sra.
Renata revelou sentir-se constrangida e sofrendo muito por sua família estar envolvida
em situação de violência sexual”.
Bianca relata que a mãe havia lhe perguntado se Caetano havia tentado fazer
alguma coisa” e, aliado a isso, ela afirma que a revelação do abuso apenas ocorreu
porque ela se sentiu sufocada pelo que acontecia”. Esse contexto denota a profunda
duplicidade de sentimentos em relação às práticas sexuais que ocorriam entre ela e o
padrasto. Quando afirmava à e que Caetano não estava fazendo nada, conforme
suspeita da genitora, mas ainda sim isso fazia com que Bianca se sentisse sufocada,
infere-se que essa angústia era causada tanto em parte por uma possível traição à mãe,
ao se relacionar com o marido dela, quanto por estar sendo vítima de investidas sexuais
77
que lhe causavam desconforto. Ainda nesse sentido, o fato de a revelação ter se dado
após o padrasto procurar o diretor da escola para que ele vigiasse a enteada, reforça a
ideia de que ela estava sufocada pelo fato de não mais querer o relacionamento com o
padrasto nos moldes estabelecidos, situação que estava impedindo outras vivências com
outros adolescentes.
A Sra. Renata desconfiou de algo estranho na relação do marido com a filha e a
questionou com dupla motivação. A primeira foi ao perguntar “se algo estava
acontecendo”que se infere corresponsabilidade entre o marido e a filha – e a segunda
quando questionou Bianca se ele fez alguma coisa” o que demonstra a preocupação
com a integridade da filha, sendo a responsabilidade apenas do Sr. Caetano.
Nesse sentido, a suspeita da mãe, em um primeiro momento, recai na
desconfiança de que esteja havendo algum sentimento da filha diverso do paternal em
relação ao marido, o que demonstra certa ambivalência também por parte da genitora.
Essa assertiva se corrobora na medida em que posteriormente ao afastamento, uma
supervalorização da figura paterna de Caetano, uma vez que a justificativa para a
comunidade para sua saída de casa é relativa a questões conjugais (separação de Renata
e Caetano enquanto marido e esposa).
Como ambas as respostas de Bianca aos questionamentos da mãe foram
negativas, pode-se analisar essa situação de negação sob três égides. A primeira diz
respeito à evitação de um possível conflito, pois se “algo estava acontecendo”, não tinha
a participação da mãe, logo, era uma relação sendo tecida apenas entre o marido e a
filha. Furniss (1993) menciona que negar existência ou a sua simples possibilidade de
ocorrência de abusos funciona como uma forma de evitar possíveis tensões e
desequilíbrio emocional entre as pessoas envolvidas nas práticas sexuais. Logo, Renata,
mesmo suspeitando, esquivou-se de confrontar o marido, o que poderia evidenciar seu
fracasso como esposa (Furniss, 1993).
A segunda diz respeito à negação da mãe a respeito de algo tão grave estar
acontecendo com sua filha e, como agravante, praticado justamente pelo homem a quem
ela confiou a construção de uma família. Esse ponto revela que uma resposta afirmativa
ao questionamento inicial explicitaria a distância entre o que a família aparenta
socialmente, com a realidade que se punha em questão. Como Renata se colocava no
papel central de resolução de conflitos familiares, “acontecer algo” dessa gravidade
evidenciaria seu fracasso também enquanto mãe (Furniss, 1993).
78
Um terceiro ponto diz respeito à dupla negação de Bianca aos questionamentos
da mãe, o que pode ser explicado pela literatura como parte de um processo difícil de
ser compreendido pela vítima de abuso sexual. Na relação abusiva entre a vítima e o
agressor, há evidências de investimento da confiança na relação de afeto entre eles,
segredos, medo de prejudicar a mãe e as irmãs, medo de não acreditarem em seu relato
e, concomitantemente, a ambivalência entre os sentimentos prazerosos da relação
abusiva e a culpa e vergonha por tal ato ser praticado com alguém em papel paternal
(Sanderson, 2005).
No entanto, a posição adotada por Renata causa possíveis novos dilemas para a
dinâmica familiar, pois o argumento externo para saída de Caetano do lar não é o
mesmo usado para com as filhas, que também não sabem qual o real motivo. Dessa
forma, ao relatar a elas que o pai está fora de casa por não pagamento de pensão, cria-se
uma dualidade na relação familiar, pois para as filhas Caetano sempre foi um pai
presente e amoroso, mas que, agora, estaria se recusando a manter o sustento financeiro
da família. Aqui, pode haver a ideia, para as filhas, de que elas são as culpadas pela
separação do casal e por possíveis problemas financeiros que a família possa vir a
enfrentar.
No processo judicial observam-se termos como segredo e perdão estão presentes
de forma recorrente quando mencionada a possibilidade de retorno de Caetano ao lar.
Entretanto, em uma análise mais ampla, esses pactos da família por segredo e silêncio
não garantem a ruptura com o abuso, pelo contrário. Em casos de abuso sexual
recorrente, esses comportamentos são justamente parte do ciclo de violência, uma vez
que “segredo” e “perdão” se configuram em coesão caso exista uma unidade na
família em torno e sua manutenção, ou seja, por meio do silêncio, do não-dito. E é
justamente o não-dito que se configura como um dos fatores férteis que possibilitam a
recorrência dos abusos no seio familiar (Rangel, 2009).
O relato da Sra. Renata reforça o pensamento acima, pois mesmo ao afirmar que
compreende a medida de afastamento como fator de proteção à sua filha, relata que
[meu] caso não é como os outros”, que segundo ela o marido demonstrou
arrependimento e assumiu responsabilidade total pelo ocorrido. No entanto, Bianca diz
que, mesmo não se arrependendo de ter revelado os abusos, se sente responsável pelo
afastamento de Caetano e a consequente repercussão negativa para a família, conforme
relato do CEREVS após atendimento à adolescente: “com relação às expectativas
79
futuras, Bianca ilustrou (...) seu medo de o abuso voltar a ocorrer, bem como seu
desejo de não mais ser colocada sob olhares da mãe que a “cobra” de maneira
implícita pelo retorno de Caetano”.
Bianca também se sente pressionada pela mãe em aceitar o padrasto de volta ao
lar, pois a Sra. Renata acredita que os abusos não mais voltariam a ocorrer. No entanto,
essa postura da mãe mudou em relação ao primeiro depoimento dado junto à DPCA,
ocasião esta que ela afirmou que não seria possível continuar a viver com o marido.
Essa situação de mudança de postura da mãe demonstra a dualidade existente na relação
intrafamiliar, abrindo espaço para o questionamento a respeito da motivação da
denúncia por parte da Sra. Renata. Ela pode ter pensando em romper com o marido em
decorrência de não aceitar a situação de risco que a filha estava vivendo ou também por
não aceitar que Caetano se relacionasse com outra mulher. Assim, pode ter havido o
perdão para a segunda hipótese, que o retorno ao lar, por si só, se configura como
fator de risco para a filha.
Ainda ao dizer que não seria possível continuar a convivência com Caetano, a
Sra. Renata pode não ter se atentado para as conseqüências objetivas de uma separação,
como perda de renda familiar, prejuízos diversos para as filhas e a opinião da
comunidade, ainda que tudo isso fosse o preço a se pagar pela proteção da filha.
Percebe-se que a postura da mãe dita o comportamento da família e também a
forma com o relacionamento afetivo familiar se constrói, inclusive quando se trata de
assuntos relacionados à sexualidade (Furniss, 1993). Embora Renata não seja gida a
ponto de permitir o abuso, a postura de centralizar as decisões da família no campo da
afetividade das filhas, especialmente em relação à Bianca por considerá-la imatura e
necessita de constante vigilância”, chegando a proibi-la a ter relacionamentos
amorosos até que complete 18 anos de idade”, revela que a condução da sexualidade
dos filhos (protegendo-os dela) é uma tarefa materna, que consequentemente aumenta a
responsabilidade dessa mãe na vivência saudável e proteção dos filhos (Cantelmo,
2010; Santos & Dell’Aglio, 2007).
Nesse sentido, o sentimento de medo e culpa acima citado agiram no sentido de
manter o segredo familiar, pois Bianca relata que temia pela separação da família e ver
as irmãs passarem necessidades financeiras, uma vez que Caetano era o principal
provedor da casa. Nesse sentido, além do medo de desestruturação da família, Bianca
convivia com a ambivalência de ver que apenas ela sofria com o padrão de relação
80
afetiva existente entre os membros da família, já que as irmãs não eram vítimas das
investidas sexuais de Caetano. Esse aspecto revela que a recorrência do abuso sexual
por quatro anos implica não apenas no reconhecimento das relações entre agressor e
vítima, mas também envolve a compreensão do modus operati da família e suas
concepções, valores e motivações que permitem a relação abusiva entre membros desta
família (Cantelmo, 2010; Rangel, 2009).
Importante frisar que a negação não parte do agressor, uma vez que ele é
preservado tanto pela vítima quanto pela esposa de ter que entrar em contato com as
questões relativas às relações abusivas com a enteada. Esse ponto revela que
características de sedução (intenso contato afetivo sexualizado com as filhas e enteada),
compreensivo e generoso (dá presentes, dinheiro e mais liberdade inicialmente), dentre
outros, são aspectos normalmente descritos pela literatura como sendo típicos de
pessoas que ofendem sexualmente (Esber, 2009; Furniss, 1993; Sanderson, 2005; Salter,
2009; Schmickler, 2006).
É pertinente notar como a repercussão do afastamento para outros membros da
família é fator de justificativa para que o retorno do pai ao lar viesse a ser algo que
normalizaria as relações da dinâmica interna (afetiva, financeira) e externa (família sem
referência masculina e opinião da comunidade). Para Bianca, seu medo em viver
novamente as situações de abuso é colocado em segundo plano frente as necessidade
que ela imagina serem imediatas de suas irmãs e mãe. Assim, ao afirmar que acredita
que os abusos não mais aconteceriam, caso do retorno do pai ao lar, isso se deve mais à
ideia de perdão mútuo para o bem de toda a família do que certeza do fim das investidas
de Caetano.
Essa dicotomia no exercício dos papeis familiares se manifesta também na fala
da Sra. Renata quando ela diz que o marido assumiu toda a responsabilidade embora
as ações e posturas dos membros da família divirjam dessa afirmação, conforme
detalhado posteriormente e que por isso estaria apto a voltar ao convívio familiar. No
entanto, Bianca relata que se sente pressionada pela mãe para que o padrasto volte, ou
seja, ela é a responsável pelo afastamento, assim como foi pelo abuso, por ajudar no
processo de retorno de Caetano ao lar e, também, por ajudar a cuidar da família. Dessa
forma, essa carga de responsabilidades que recai sobre a adolescente configura o
entendimento de que a sua mãe o perdão do marido que praticava adultério (logo,
81
corresponsável pelo ato, juntamente com a filha) e não como um homem que realizava
práticas criminosas contra sua filha.
Nesse sentido, a aparência de normalidade de uma família sem maiores
problemas é compactuada por Caetano, que se mostra reticente quanto à revelação do
abuso para suas filhas e demais parentes. Embora assuma autoria e responsabilidade
pelo abuso, Caetano também relata o ocorrido de forma ambivalente, seja por reduzir o
abuso a algo não-violento, portanto não muito grave, seja por atribuir a causas
espirituais a relação abusiva. Assim como menciona o relatório técnico psicossocial:
Caetano fez referências às suas crenças religiosas para atribuir aos seus atos
influências “malignas” ocorridas em momentos de “fraqueza”.
O aspecto relativo à dependência emocional da vítima, a que Caetano vivencia, é
entendida como um mecanismo que encobre a relação abusiva como sendo violência, ou
quebra de direitos. Ela, a violência, se instaura engendrada na dificuldade do agressor
em vivenciar as questões paternas, que se configura, a em relação às duas filhas
biológicas, de forma muito imatura (Furniss, 1993).
No mesmo sentido, ao mencionar que o abuso não se tratou de sexo oral, mas
sim de apenas gestos de amor e carinho”, Caetano é ambivalente no que diz respeito a
reconhecer a violência e suas conseqüências para Bianca, mas minimizando-a de
alguma forma: “eu toquei nela, beijei, mas o teve masturbação; tocava nas partes
íntimas, eram coisas de momento, tudo bem rápido. Tenho vergonha do que fiz. Sei que
é grave, mas foi um ‘envolvimento espiritual’, uma coisa ‘maligna’, mas violei a pureza
dela”. Nessa perspectiva, a desqualificação do ato abusivo age também como
justificativa para a sua ocorrência, pois reduz as conseqüências do ato para a vítima
como uma simples violação de pureza, o que se infere, também, o caráter patriarcal e
machista a respeito da sexualidade da mulher (Brito, 2007; Esber, 2009; Schmickler,
2006).
Nesse contexto, Caetano adota uma postura, por vezes, de contestar os
procedimentos cnicos. Isso ocorre quando ele caracteriza como gestos de amor e
carinho” o que o processo relata por sexo oral”, conforme mencionado anteriormente.
Nesse ponto, percebe-se a contradição no sentido de que, ao afirmar também que não
estava acostumado a ser pai”, fez apenas gestos de amor e carinho, o que é permitido
em uma relação marital, caso contrário essa seria uma situação comum também as suas
duas filhas.
82
Ao mencionar que eram coisas de momento, tudo bem rápido” mas mesmo
assim violou a pureza dela”, Caetano entende que o problema não era ela ser sua
enteada/filha, mas sim ser muito nova, pura. Essa perspectiva se reforça quando, agora
que ela é adolescente, ele compartilha o sofrimento pela situação como sendo dele e
dela, ao afirmar que “a gente vivia sufocado com aquilo”.
Essas contradições e dualidades de Caetano referem-se exatamente aos três tipos
de negação feitos por agressores sexuais, conforme estudo de Schneider e Wright
(2001), citados por Esber (2009): negação da responsabilidade (não foi minha culpa,
mas do maligno); negação dos efeitos para a vítima (foram apenas gestos de amor e
carinho); e minimização da violência (toquei nela, mas não teve masturbação). No
entanto, essas negações se dão de forma contraditória o suficiente para que elas não
deixem que Caetano assuma a responsabilidade jurídica pelo abuso praticado. Além
disso, observa-se que, mesmo havendo negação de efeitos nocivos à vítima, as crenças
criadas por Caetano para minimizarem a gravidade do abuso fazem parte de um
processo de insegurança e sofrimento, pois a busca por algo superior (as crenças) ou
subjetivo (carícias supostamente permitidas) mostra que lidar com a ocorrência da
violência demonstra forte entendimento do olhar dado por cada autor (Santos, 2010).
Embora não tenha todas as características mencionadas pela literatura
especializada como sendo relativas a agressores situacionais, Caetano revela, por meio
da avaliação técnica da equipe psicossocial, que os abusos ocorriam em momentos
oportunos, por exemplo, aqueles em que não havia ninguém em nas proximidades e que
se encontrava sozinho com a adolescente. Dessa forma, o agressor em questão tem
características tanto de ofensores situacionais quanto de preferenciais, o que fica
evidente quando o referido relatório prossegue mencionando que Caetano não conseguia
controlar seus impulsos sexuais, mesmo ele ciente de que essa relação causava
sofrimento à vítima: “Eu tinha uma ‘pressão’ em cima de mim, porque eu sabia, e ela
também. E nem eu nem ela falamos nada...”
Esse momento desvela pontos da dinâmica violenta sob a ótica do agressor,
conforme apontado em diversos estudos (Esber, 2009; Furniss, 1993; Oliveira & Sousa,
2007; Sanderson, 2005; Schmickler, 2006). Apesar de saber que o abuso é danoso à
vítima, moralmente reprovável, passível de responsabilização criminal, o agressor não
consegue ter controle sobre a vontade sexual pela vítima, ainda que a relação sexual não
traga apenas prazer (Furniss, 1993).
83
Ao entender a responsabilização criminal como uma provação” para ele, mas
que poderia transformar a realidade da família”, aliado ao fato de Caetano afirmar
que a família era normal antes do início dos abusos sexuais contra Bianca, nota-se
que o agressor tem o discurso de reparação do dano causado por suas ações, embora
amenizar o sofrimento da vítima seria, de acordo com ele, também sofrer a provação de
um processo criminal e possível recriminação de outros familiares e da comunidade.
Essa constatação elenca aspectos relativos ao jogo de negação e como o
agressor, mesmo com discurso de reconhecimento dos danos causados à vítima, não
consegue se colocar no lugar do outro quando o assunto é o sofrimento causado. Isso
porque aparece em sua fala o seu próprio sofrimento como fator de justificativa à
violência praticada (Rebocho, 2007; Santos, 2010).
Nesse sentido, passagens no processo judicial que se referem à avaliação técnica
da Instituição A, por mais de uma vez, falam em semelhanças na postura e nas palavras
de mãe e filha, seja quando falam da violência, seja quando mencionam aspectos da
dinâmica relacional intrafamiliar e comunitária. Essa possível semelhança entre elas
pode ter contribuído para que Caetano tivesse dificuldade de discernimento quanto a sua
relação com Bianca, que poderia ter características da e que ele se sentia atraído, e
essa relação não teria os problemas conjugais e demais rotinas relativas a onze anos de
casamento, além da aparência jovem da enteada, potencializada caso comparada à Sr.
Renata.
A possibilidade de ruptura com a prática de abusos sexuais pautada apenas no
martírio vivido pelo agressor em um processo judicial/criminal por meio da medida de
afastamento e consequente falta de contato com a família não se caracterizam como
motivação suficiente para acabar com o chamado ciclo da violência (Sanderson, 2005),
também entendido como ciclo aditivo no abuso sexual ou síndrome de adição (Furniss,
1993). Dessa forma, Caetano parece entender que o fim dos abusos seja viabilizado pela
necessidade de limites externos a ele, o que deixa margem para entraves no que diz
respeito a não efetividade desses limites externos caso estes não sejam suficientes em
romper com o ciclo abaixo:
84
Fantasia Planejamento
Tensão Ciclo Aditivo do Abuso Sexual
Excitação
Alívio Abuso
Figura 1. Ciclo Aditivo da Violência Sexual. Fonte: Furniss (1993, p. 41).
Embora Caetano manifeste vontade pelo tratamento de controle de seus
impulsos observa-se também que a dinâmica familiar que possibilita contatos físicos
freqüentes, o parecer psicossocial revela que pode haver estímulos nesta dinâmica que
possibilitem a retomada do ciclo de abuso. Como o percurso entre a motivação (ainda
que tenha causalidade resolutiva externa), o início de um tratamento específico e os
resultados advindos desse tratamento é demasiadamente longo para considerar a
reintegração do agressor ao lar.
Nessa perspectiva ao analisar as falas acima à luz da Teoria Sistêmica,
evidencia-se a intersubjetividade do que é dito no âmbito da justiça. Há, dessa forma, a
necessidade de significação da experiência relatada a fim de que seja desvelada a real
significância do discurso (Costa, 2010; Vasconcelos, 2009). É justamente nesse sentido,
de manutenção de algo em comum entre agressor e vítima (silêncio), a busca por certo
equilíbrio entre os atos abusivos e as relações familiares contraditórias, que o processo
de mudança se tornou o ponto principal da dinâmica familiar.
Isso se explica pelo movimento de Caetano em buscar controle de Bianca para
além das relações entre eles (ao procurar o diretor da escola) e de Bianca ao externar sua
angústia ao primeiro membro externo à família que tocou diretamente no assunto.
Além disso, outra impressão do parecer cnico psicossocial que mencionou a
existência de desejabilidade social no discurso de Caetano, entendida como resposta
formulada para atender as expectativas do entrevistador”, que foi observada
novamente na análise das correspondências dele com as filhas, conforme já
mencionado. Nesse sentido, no que tange à ruptura com o ciclo aditivo de abuso sexual,
85
estas cartas foram instrumento condenatório do agressor, que mesmo tendo sido
enviadas entre remetente e destinatário com o intuito de demonstrar carinho, afeto e
união da família, foram determinantes para a sugestão de manutenção da medida de
afastamento, conforme visto a seguir: “(...) eu vou te abraçar, te beijar, te cheirar, te
apertar e beijar muito que até vai perder a cor da sua boca”. O relatório prossegue
com: considerando que tal padrão da expressão do afeto é caracterizado por meio de
contatos físicos intensos, avaliamos que tais fatores podem se constituir em estímulos
com potencial de desencadear o ciclo aditivo do abuso sexual, se não tratado”.
É importante mencionar que o momento relatado acima foi motivado pela
contestação do agressor quanto à pertinência da manutenção da medida de afastamento
do lar. Após a manifestação do Ministério Público requerendo a antecipação da tutela
quanto ao afastamento, Caetano apresentou pedido formal para retorno ao lar, reiterando
o vínculo afetivo entre ele, Bianca e as filhas, além de pedido para realizar tratamento
psicológico em instituição diferente à indicada por relatório técnico psicossocial datado
de 08 de setembro de 2008 (Instituição C). Fato é que, ao anexar 21 cartas trocadas
entre ele e as filhas/enteada, Caetano findou por gerar argumentos divergentes a seu
desejo de retorno ao lar, pois o estudo realizado, a pedido do Ministério Público e
acatado pelo Juiz da VIJ, entenderam que a dinâmica afetiva retratada nas cartas era,
justamente, um dos principais fatores para a existência de um terreno fértil à retomada
de abusos sexuais.
Durante o processo, Caetano aparece como alguém sem rosto ou sentimentos,
situação essa minimizada pelos relatórios técnicos que particularizam as percepções
sobre ele. Nesse sentido, ao contestar o afastamento com base no vínculo afetivo e em
cartas trocadas entre ele e as filhas, Caetano finda por levantar elementos que não
justificam seu retorno ao lar, criando provas contra si próprio. Ainda nesse contexto, a
avaliação técnica infere que tal postura é relativa a alguém que minimiza suas
responsabilidades, uma vez que o agressor não cumpriu a determinação do juiz de ser
atendido para tratamento psicológico especifico, mesmo esse não cumprimento tenha se
dado por problemas institucionais alheios a ele. Assim, uma postura coerente seria a de
esperar que o tratamento efetivamente começasse antes de cogitar o retorno ao lar
(Esber, 2009; Schmickler, 2006).
Destarte, as ações de proteção são fundamentas de modo a romper o ciclo de
violência, reparar o dano causado à vítima e à família, além de possibilitar a
86
responsabilização do agressor nesse percurso. Ainda que as dualidades continuem
presentes, tanto na fala de Bianca, quanto nas de Caetano e Renata, o trâmite judicial
permitiu que fossem observadas questões peculiares dos sujeitos, o que possibilitou o
movimento de restauração, ainda que embrionária, da dinâmica familiar de forma
saudável, seja na superação do sofrimento imediato, seja pelas implicações mediatas da
medida de afastamento.
Os entendimentos supracitados em relação à família em questão se basearam em
um processo judicial que teve pouca articulação com a rede de proteção, ou seja, se
firmam, em grande parte, pela percepção da ação psicossocial diretamente ligada ao
judiciário, e em menor grau pela avaliação de um parceiro da rede de proteção social. E
uma vez que a passagem pela Justiça envolve a discussão a respeito da ação terapêutica
não possuir demanda espontânea dos sujeitos, infere-se que o caráter reparador do dano
e atenção integral à família e à vítima não são claros quanto a evidenciar para os
indivíduos judicializados a noção de sujeitos de direitos. Embora a defesa de seus
direitos seja observada pela ação do judiciário, essa característica do trato aos sujeitos
demonstra as veleidades no que tange ao real e concreto exercício da cidadania, que
pode ser eivado no cotidiano das pessoas quando terminadas suas obrigações com a
Justiça. Os sujeitos foram, dessa forma, objetos de direitos.
No entanto, tendo como foco apenas as partes do processo judicial em questão,
há convergência com o princípio da prioridade absoluta e Doutrina da Proteção Integral,
ainda que para os sujeitos a medida de afastamento manteve-se, em diversos aspectos,
ambivalente. Nesse sentido, os documentos relativos ao processo possibilitaram que
fosse construído um cenário no qual os sujeitos manifestam diversos paradoxos e, em
especial os relatórios cnicos, foram instrumentos que levaram à Justiça questões
qualitativas referentes aos sujeitos. É nesse ponto que uma lacuna entre relevarem-se
questões qualitativas e necessidades para além da lei e não haver um trato específico a
tais questões.
É como se a ação psicossocial tivesse um fim em si mesmo no que tange à
burocracia processual, uma vez que toda a exposição a que são submetidos os sujeitos
desta pesquisa se esvazia na medida em que o judiciário determina ações de proteção
desvinculadas da realidade da execução. Dessa forma, as ações processuais têm seus
encaminhamentos realizados, mas as peculiaridades dos indivíduos são duplamente
desqualificadas, primeiro ao se exporem e não terem suas questões íntimas valoradas
87
pelo processo judicial e, segundo, por retornarem à realidade pós-abuso com novas
problemáticas diversas não motivadas por eles próprios, no qual as ações de Justiça
podem, de certa forma, se manifestar em processos também violentos de diversos
níveis.
4.3. DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E A AÇÃO DOS OPERADORES
DO DIREITO DA INFÂNCIA: DA PROTEÇÃO (RE)ESTABELECIDA À
GARANTIA DE DIREITOS?
A ausência de medidas e as desmedidas passam a ser a verdadeira medida.
Karl Marx.
A maior parte da literatura sobre violência sexual e até mesmo a posição crítica
de profissionais de atendimento direto a pessoas envolvidas em quaisquer que sejam a
situação de quebra de direitos privilegia a atenção institucionalizada apenas às vítimas.
Não que isso caracterize esse atendimento como uma ruptura à Doutrina da Proteção
Integral ou da prioridade absoluta da infância e adolescência. No entanto, isso se
remete, também, à condição quase total obscuridade em relação ao agente perpetrador
da violência, a qual lhe é atribuída em sua maioria a atenção policial e penal.
No entanto, o entendimento da infância como uma categoria construída social e
historicamente, não um mero evento cronológico na vida de alguém, possibilita alargar
o debate a aproximar a atenção às pessoas em situação de violência sexual ao elencar os
demais aspectos pertinentes aos vínculos relacionais, funções materna e paterna,
conseqüências na vida escolar, comunitária, dentre inúmeros outros (Cruz,
Hillesheim &
Guareschi, 2005).
Neste estudo, foi privilegiada a atenção integral à família em situação de
violência sexual e de que forma o processo judicial corroborou com essa ideia sistêmica
e de totalidade. Em vista disso, a intervenção profissional passa a não mais se pautar em
disciplinar a vida, gerindo suas ações a partir de sua institucionalização, mas em
gerenciar o risco, compreendendo que a situação do sujeito que é de vulnerabilidade,
não o sujeito em si, o que possibilita a análise sistêmica de todos os micropoderes
existentes em uma relação violenta (Foucault, 2008; Hillesheim & Cruz, 2009;
Vasconcelos, 2009).
88
A chave da diferenciação entre condição ontológica de alguém por meio de sua
inserção em políticas de Estado ou de governo, como entendia a Doutrina da Situação
Irregular, mencionada, e a vulnerabilidade como característica não inerente à pessoa,
mas devido a diversos fatores sociopolíticos, culturais e econômicos, é demonstrada na
medida em que se observa a crescente preocupação em não restringir o campo de
intervenção a determinada categoria profissional, entendendo que condição de
vulnerabilidade implica a ação de múltiplos saberes para que esta possa cessar.
Nesse sentido, para fundamentar a discussão desta categoria analítica, e
evidenciada sua importância prática e teórica, o conceito de interdisciplinaridade
merece uma breve consideração, no intuito de que haja, de acordo com Faleiros e Costa
(1998):
“o aprofundamento do paradigma dos direitos humanos e da articulação teórico-prática
dos processos de denúncia/defesa, responsabilização/repressão, atendimento e prevenção.
A formulação estratégica deve levar em conta o conhecimento das condições/dimensões
da problemática, ou seja, as situações reais e as áreas críticas como e onde esta se
manifesta” (Faleiros & Costa, 1998, p. 15).
Esse viés teórico-prático foi o fio condutor deste trabalho, uma vez que se trata de
um objeto de estudo construído na interface de duas ciências, a saber, Serviço Social e
Psicologia, mas cuja intervenção se deu para além dessas duas ciências. Não é, por
conseguinte, um trabalho que possa ser desenvolvido sem que esta relação entre as duas
supracitadas ciências seja constantemente revista e reformulada, uma vez que essa
interface em diálogo cria um terceiro lócus de análise, não sendo puramente Serviço
Social ou Psicologia, tampouco um híbrido com os demais saberes compreendidos no
processo em questão.
Nesse sentido, o termo psicossocial é comumente utilizado para definir um espaço
onde o social está em correlação de forças com o psicológico. No entanto, reduzir
ambas as profissões como preocupadas com “o social” ou com “o psicológico” para
tentar compreender a realidade é perigoso e desnecessário. Isso ocorre uma vez que as
relações interpessoais implicam, necessariamente, em aspectos individuais e sociais,
mas o saber profissional para analisar essas relações não é atribuição privativa nem do
Serviço Social ou da Psicologia e se configuram pela necessidade de existência de uma
dimensão interventiva nas questões subjetivas e de dimensões de ordem social (Costa,
Penso, Legnani & Sudbrack, 2009; Granjeiro & Costa, 2008; Penso & Costa, 2010).
89
Disso se infere que é necessário um posicionamento crítico e de convergência com
a garantia dos direitos das classes populares, fomentando o pleno exercício da
cidadania, embora marcada por um processo contraditório de sucateamento das políticas
sociais, que é a base para se pensar concretamente a superação do pensamento
conservador e funcionalista que faz parte da construção histórica tanto do Serviço Social
quanto da Psicologia, pois a atual conjuntura político-econômica não permite que sejam
ignoradas as manifestações populares em articulação desses profissionais com um
projeto de classe (Iamamoto, 2004).
Dessa forma, embora o fundamento da intervenção em casos de vulnerabilização
por violências, como na experiência dos sujeitos em estudo, seja o olhar profissional e
não simplesmente os interesses profissionais de categorias diferentes em convergência,
o termo psicossocial não pode ser entendido como a simples junção do olhar social,
dado supostamente pelo Assistente Social, com o olhar psicológico, a cargo do
Psicólogo. Isso por que uma tendência de reduzir ao sujeito a responsabilidade pelas
manifestações cruéis da questão social, ou ainda não dar voz às pessoas em situação de
vulnerabilidades, justamente por atribuir ao indivíduo a “culpa” pelo não-acesso aos
bens sociais. Dessa forma, esses profissionais têm que enfrentar a ambigüidade de uma
utopia reformista conservadora, com os resultados de sua prática (Iamamoto, 2004), que
muitas vezes não fornece as ferramentas concretas para que o aspecto psicossocial do
trabalho seja efetivamente possível.
Por isso, a intervenção psicossocial deve ser um encontro, que poderia ser definido
como a junção complexa de saberes que, com um ideal em comum, transformando tanto
a realidade em questão, quanto os sujeitos da intervenção e os profissionais envolvidos
na árdua tarefa da garantia plena dos direitos sociais, em especial das crianças e
adolescentes em situação de violência sexual.
Talvez pela herança histórica, superada conceitualmente, mas longe de estar
rompida em sua práxis profissional, ou por outros sentidos ainda não explicitados que
Serviço Social e Psicologia vêm trilhando recentemente, seja esse um momento
oportuno para se falar de interdisciplinaridade concreta, fundamental para a
compreensão da realidade em sua totalidade, e foi justamente essa uma característica do
processo judicial iniciado com a medida protetiva de afastamento do agressor do lar
comum.
90
Cônscios desse movimento de vanguarda, diversos autores se propuseram a
examinar de que forma a proteção da infância se em um contexto de inúmeras lutas,
desde as profissionais às coletivas e individuais relativas aos indivíduos em condição de
vulnerabilidades (Costa & Almeida, 2005; Cruz & Guareschi, 2009; Faleiros, 2008b;
Rizzini, 2008; Rizzini & Pilotti, 2009).
Nesse sentido, a proteção da infância e adolescência é entendida como
fundamental para o desenvolvimento da autonomia e da personalidade do indivíduo
(Pereira, 2008). Conforme debatido a seguir, a transposição de sentimentos, falas,
gestos, silêncios, recusas, lágrimas e demais singularidades humanas foram reduzidas a
termos cabíveis juridicamente como pertinentes a fazer jurídico. Tal movimento é,
muitas vezes, uma tarefa ingrata para o profissional encarregado de fazer tal leitura,
visto que a demanda da letra seca da lei não prevê tamanha complicação e contrapontos
a cada nova etapa, ou folha de processo.
A centralidade dos objetivos das ações protetivas do processo judicial é mais
bem observada por meio de relatórios técnicos, que além de expressarem a visão
acurada de equipe capacitada para lidar com o tema, acaba por se tornar também a
própria voz do Ministério Público, que corrobora quase sempre com as sugestões destes
relatórios. Relatórios estes que são o fio condutor da representação dos sujeitos
enquanto pessoas, que notadamente não se enquadram perfeitamente nos artigos muitos
de também numerosas leis, decretos e afins.
Ao se observar o trato dado pelo caráter multiprofissional do processo judicial,
ainda que a caneta do magistrado tenha a tinta mais forte dentre todas as da Vara da
Infância, a medida de afastamento foi manejada de forma a permitir que muitas
inferências, sentimentos, atos e relatos fossem explicitados no decorrer de sua execução.
No que concerne à análise das manifestações em processo da convergência da
medida de afastamento e as implicações psicossociais, a voz da vítima esteve presente
desde o relato ao diretor, passando pela ciência da mãe, do Conselho Tutelar, do sistema
policial e, finalmente, pela justiça. Ainda que houvesse atenção sensível à fala do
agressor e inferências sobre os demais membros da família, a centralidade da atenção
psicossocial foi, de fato, a vítima. No entanto, essa característica não se faz em crítica,
pois a primazia do atendimento estava em garantir o direito a não violação de direitos da
criança/adolescente em questão, ainda que não se desconsidere a perspectiva que
91
privilegia prerrogativas diversas à vítima, desde que estas não escamoteiem o princípio
da prioridade absoluta da infância e a Doutrina da Proteção Integral.
Nesse sentido, a fim de se a referida Doutrina seja materializada na vida de
famílias em situação de violência e a efetiva proteção integral de suas crianças ou
adolescentes vítimas, é preciso que haja articulação de diversos agentes operadores do
direito infanto-juvenil. No entanto, conforme explicitado na primeira categoria de
análise, o processo fez um recorte no que tange a uma atuação mais ampla de outros
agentes, que passaram à margem do processo. É importante ressaltar que o processo
cível privilegia as ações do judiciário ou as estimuladas por ele, o que demonstra que
uma ação de proteção pode ter sido tomada sem a participação do Poder Judiciário. No
entanto, a não informação de que isso aconteceu demonstra, no nimo, uma lacuna do
que diz respeito a articulação entre os poderes do Estado (Judiciário e Executivo) com a
sociedade civil e o terceiro setor.
Nessa perspectiva, notou-se que a ação do Estado para resgatar a proteção
envolveu vários agentes, como a escola, Conselho Tutelar, DPCA, Ministério Público,
Vara da Infância, Secretaria de Saúde e instituições do Terceiro Setor. Em relação à
escola, seu papel foi fundamental como motivador da denúncia, pois a dinâmica familiar
de segredo e triangulação amorosa entre Caetano, Bianca e Renata só foi rompida com a
inclusão de um novo elemento para atenuar o sofrimento da vítima, ao compartilhar da
situação vivida pela família (Calil, 1987; Miermont, 1994).
A escola se mostra um importante agente de prevenção e garantia de direitos
justamente por se tratar de uma política pública a qual a criança fica mais tempo
inserida (quantitativamente), em média 5 horas por dia em escolas blicas (Brasil,
2004). Dessa forma, os educadores devem estar capacitados para lidar com questões dos
alunos para além do âmbito ensino e aprendizagem, dada a impossível desvinculação de
aspectos da vida cotidiana quando inseridos nas diversas instituições sociais (Brino &
Williams, 2003; Sanderson, 2005).
O diretor da escola, o primeiro agente público a tomar conhecimento do caso,
exerceu sua obrigação prevista nos Art. 13 e 245 do ECA
19
de forma a preservar a
19
Art. 13. [Título II, Capítulo I. Do direito à vida e à saúde] Os casos de suspeita ou confirmação de
maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da
respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais,
Art. 245. [Título VII, Capítulo II. Das infrações administrativas] Deixar o médico, professor ou
responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de
92
vítima de sofrer revitimização, pois procurou a mãe de Bianca para irem juntos ao
Conselho Tutelar efetivar a notificação de maus-tratos (Brasil, 2005). Mesmo que esse
fato, comunicar à mãe ou família, não seja obrigatório, mas sim a comunicação direta à
autoridade competente, o diretor teve sensibilidade suficiente que evitou, por exemplo,
que chegasse uma decisão repentina de afastamento do lar, antes mesmo da mãe e do
possível agressor tomar conhecimento de sua publicização. E, além disso, poderia
causar conseqüências subjetivas às outras filhas do casal (Brino & Williams, 2003).
No entanto, no processo não referências mais aprofundadas a respeito de
possíveis conseqüências da revelação do abuso ou de questões relativas ao âmbito do
ensino e aprendizagem a que Bianca ficou vulnerável. A escola exerceu seu papel no
resgate da proteção ao ensejar a denúncia, mas as conseqüências da medida protetiva
não foram aprofundadas a ponto de aparecerem como parte importante da sociabilidade
da vítima a partir de possíveis desdobramentos do abuso e da medida em âmbito
escolar, infirmando o papel da escola como agente responsável pela proteção integral de
seus alunos (Piletti, 2003; Yunes & Miranda, 2007).
Não admira, portanto, que a relação estabelecida entre a família e a DPCA tenha
sido um híbrido de proteção e desqualificação da violência enquanto produtora de
sentimentos e conseqüências subjetivas para além da apuração criminal. Embora tenha
sido célere em seus procedimentos (encaminhamento do caso para o Juiz da infância e
indiciamento do agressor), a DPCA indica a adoção de medidas protetivas específicas
em razão da vontade, expressa em depoimento, da genitora da vítima, Sra. Renata, em
continuar o convívio familiar com a filha e o marido, Sr. Caetano, suposto agressor e
padrasto de Bianca. Aqui, aparecem aspectos relevantes. O primeiro diz respeito à
sugestão específica dos incisos II e III do Art. 98, que mencionam: “Art. 98: as medidas
de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos
reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados: (...) II por falta, omissão ou
abuso dos pais ou responsáveis; III – em razão de sua conduta.”
A indicação ao inciso II do supracitado Artigo é precisa ao confirmar a falta,
omissão ou abuso do(s) responsável(is), que a denúncia recaía contra o padrasto. Mas
a assertiva da mãe em continuar com o marido sob o mesmo teto da filha indica que a
intenção da DPCA era afirmar a “falta ou omissão” por parte da mãe, pois no entender
comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou
confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente:
93
da referida delegacia ficou evidente a continuidade da situação de risco vivida por
Bianca.
o inciso III demonstra uma preocupação moral para com a existência da
suposta violência. Isso porque os incisos I (por ação ou omissão da sociedade ou do
Estado que, na ótima da representação da DPCA não se aplica ao caso em tela) e II
configuram a quebra de direitos presentes na legislação de forma universal (direito à
vida, educação, lazer, saúde, convivência familiar e comunitária), sendo assegurados à
infância e adolescência de forma prioritária.
No entanto, o inciso III elenca a própria ação ou conduta da criança como
passível de que a ela seja aplicada uma medida de proteção. Assim como infere a
jurisprudência, não se nota explicitamente falta, omissão ou abuso de outras pessoas,
envolvidas ou não na denúncia, o que aponta para uma possível co-responsabilidade da
vítima no caso em epígrafe. Nesse entendimento, uma medida protetiva, se imposta pelo
juiz competente, visaria a assegurar a idéia jurídica de “presunção de violência
20
”, pois
a vítima não teria condições de discernir sobre as ações de outrem e até mesmo sobre
suas próprias condutas, mas que ainda sim culpabiliza a vítima pela ocorrência do
abuso.
o Juiz da VIJ aplicou imediatamente a medida de afastamento, reiterando a
pena de meses a dois anos de detenção em caso de o agressor desobedecer. O
magistrado determina também que a genitora da vítima não pode permitir que o
afastado tenha contato com a enteada, mas não faz menção ao crime de desobediência
caso ela não cumpra a determinação. Essa postura do juiz demonstra a divergência do
pensamento dado pela DPCA, que encaminhou a família àquela VIJ ao fundamentar tal
decisão na omissão da mãe, assim como cita o Artigo 98, II, do Estatuto.
Nessa perspectiva, a atuação do Ministério Público (MP) é importante no sentido
de possibilitar a quebra da rigidez positiva da lei, ao solicitar antecipação da tutela
quanto ao afastamento (assegurar a guarda e responsabilidade à mãe em razão do
afastamento do agressor), além de avaliação técnica das correspondências trocadas entre
Caetano e as filhas, o MP abriu possibilidade de reversão da medida de afastamento,
posteriormente refutada parcialmente pelo estudo técnico psicossocial. Dessa forma, é
pertinente frisar que o Ministério Público (MP) aparece no processo judicial, na maior
20
Termo presente no Art. 224 do CPB, revogado pela Lei n. 12.015/2009. No entanto, sua tipificação é
análoga à nova redação do Art. 217-A, acrescentado ao Código Penal pela mesma lei.
94
parte das vezes, corroborando as sugestões contidas nos relatórios técnicos da equipe do
CEREVS, o que demonstra, de certa forma, que a análise dos relatórios nos remete a
compreensão da postura do MP, alargando a discussão a respeito do tema.
Nas diferentes abordagens dadas por meio das ações de justiça, que se
configuram o alicerce para o efetivo exercício dos direitos dos sujeitos envolvidos no
processo, percebe-se, também certa indistinção das medidas de proteção em relação a
que agente social compete viabilizar na prática a proteção. Isso fica evidente na medida
em que a ação do CEREVS tem alcance terapêutico para além da avaliação cnica
requerida pelo Juiz da VIJ.
Dada a natureza do trabalho do assistente social e do psicólogo na Justiça, no
sentido de assessorar as decisões do magistrado (Fávero & Cols, 2008), além da falta de
demanda espontânea dos sujeitos e a dualidade entre um tratamento que se reflete como
pena e o caráter terapêutico dessa aplicação dos preceitos legais (Arantes, 2005), fazem
com que a ação do psicossocial da Vara da Infância e da Juventude seja um lócus de
intensa correlação de forças.
Além dos atendimentos aos sujeitos (vítima, agressor e genitora), que por si só
configuram o contexto relatado acima, mas que são necessários a fim de que seja
possível uma avaliação sobre qual ação de proteção é a melhor para o caso naquele
momento, observa-se que o trânsito entre as ações propostas pelo CEREVS e aceitas
pelo Juiz no sentido de viabilizar a garantia de direitos é claudicante desde o princípio,
especialmente quando a relação com a rede de proteção social do Distrito Federal se
mostra desarticulada entre si.
Nesse sentido, as ações para além dos atendimentos realizados na VIJ para
fomentarem o parecer psicossocial foram encaminhamentos para instituições que
prestam serviços socioeducativos. Vítima e genitora foram atendidas pela Instituição A,
mas tiveram encaminhamentos para serem atendidas na Instituição B negados por falta
de vaga disponível. o agressor foi encaminhado para atendimento à Instituição C,
porém, até a conclusão do processo em razão da maioridade da vítima, não fora
atendido.
Estes paradoxos e contradições demonstram que a avaliação técnica da equipe da
Instituição A permitiu ao Juiz, com base na avaliação técnica atual da família, a
aplicação de medidas protetivas para a vítima (Art. 101, inciso V tratamento
95
psicológico), para o agressor (manutenção da medida de afastamento concomitante a
tratamento psicológico Art. 129, III) e para a genitora (Art. 129, IV
encaminhamento a cursos ou programas de orientação), mesmo não havendo, até este
momento, expressão de demanda por parte dos envolvidos para esses encaminhamentos.
Em relação ao último ponto citado, a decisão do juiz data de 13 de março de
2009. Em 06 de maio de 2009, quase dois meses após a referida decisão, a instituição
oficiada (Instituição B) responde por ofício que no referido programa lista de espera,
sendo uma possibilidade o encaminhamento de Bianca a outra instituição, que dentre
outros objetivos, presta atendimento psicológico a “adolescentes que necessitam de um
acompanhamento individualizado psicológico. Casos como os de abuso sexual (...) são
priorizados nesses atendimentos”
21
.
Após essa etapa, a família ficou em acompanhamento pela rede de proteção,
encarregada de executar as determinações do juiz a respeito das medidas aplicadas nos
artigos do ECA supracitados, além de atendimentos psicossociais no CEREVS. Esse
processo técnico culminou em novo Relatório Técnico deste Centro, cujas sugestões de
medida foram aceitas pelo magistrado. Cabe destaque, além da reiteração das medidas
aplicadas na decisão anterior do juiz, a manutenção do afastamento com ressalva de
possível alteração “condicionada ao encaminhamento de parecer técnico periódico
sobre a evolução de seu tratamento [Art. 129, III], de forma a atestar a viabilidade da
alteração ou revogação da medida de afastamento”, a autorização para a realização de
visitas supervisionadas de Caetano às filhas pela genitora, condicionadas ao início do
tratamento, a serem realizadas conforme sugerido pela equipe técnica”, posteriormente
sendo oficiada a Instituição D para realizar tal tratamento.
O primeiro ponto a se levantar é a características das instituições mobilizadas
para executarem as medidas protetivas sugeridas pelo CEREVS e aceitas pelo Juiz.
Apenas a Instituição B faz parte do Poder Público, e justamente essa não pôde atender a
demanda da família em razão de suposta falta de vagas. As demais instituições são
representantes do chamado Terceiro Setor, que são organizações que surgiram por
iniciativa dos próprios sujeitos à margem dos direitos sociais para que eles tivessem a
possibilidade de lutar por esses direitos. São entidades como organizações tradicionais,
igrejas e associações comunitárias, e as organizações não-governamentais (ONGs),
21
Informação retirada em < http://www.saude.df.gov.br/003/00301009.asp?ttCD_CHAVE=22488>.
Acesso em 26 de julho de 2010.
96
formadas em contraposição ao período de ditadura brasileiro e que ganharam peso com
o reforço político que foi aberto em decorrência das inúmeras legislações de garantia de
direitos que se fortaleceram a partir da década de 1980 (Vasconcelos & Costa, 2009).
Assim, nas diferentes instâncias de execução dos direitos dos sujeitos, observa-
se que a descontinuidade das ações é fator de difícil trato pelos operadores do direito.
Embora haja esforços no sentido de estreitar a relação entre Estado e sociedade no
enfrentamento da violência sexual, conforme se observou no processo por meio da
articulação com entidades do Estado e do Terceiro Setor, notou-se também que, ao não
ser efetiva a ação direta do Estado na garantia de direitos dos sujeitos em estudo, a
transferência das obrigações do Poder Público para a sociedade se materializou neste
processo judicial, pois a relação entre VIJ e os parceiros da rede demonstrou maior
precisão e garantia de acesso quando em contato com instituições não-estatais (Faleiros,
2010).
Dessa forma, o papel do Judiciário em relação a essas instituições parceiras,
após o encaminhamento de algum caso para atendimento, deveria seguir a orientação do
Art. 95 do ECA, que preconiza a atribuição de fiscalização ao Judiciário, além do
Ministério Público e o Conselho Tutelar (Brasil, 2005). No entanto, embora a legislação
e a construção a ação democrática de garantia dos direitos da infância e da adolescência
se baseei na cooperação entre os agentes operadores do direito, o processo em estudo
evidenciou que a intensidade da ação terapêutica e de impacto reparador junto aos
sujeitos teve maior evidência nas ações do Judiciário por meio de atendimentos
psicossociais dentro da Justiça.
Essa constatação corrobora também a iniciativa do CEREVS em incluir as irmãs
adolescentes da vítima no processo judicial, pois o rigor da lei determina que Bianca
tenha o processo encerrado em razão da completude da maioridade civil. Dessa forma,
nota-se que essa desarticulação entre a rede de proteção social e a confusão de papeis e
atribuições age no sentido de corroer dos direitos dos sujeitos em situação de violência
sexual, uma vez que, pela lei, as ações do judiciário cessam em determinado tempo, mas
a ação socioeducativa dos entes do terceiro setor não tem esse viés de atuação, ou seja,
não estão atrelados ao positivismo da legislação. Nesse sentido, um maior cuidado com
os sujeitos poderia ser adotado em caso de melhor definição de papeis e de continuidade
da ação restaurativa para além da vinculação estrita dos sujeitos com a justiça, uma vez
97
que os conflitos e conseqüências psicossociais não seguem as imposições da lei para se
perpetuarem, tampouco para cessarem.
Nesse sentido, é importante mencionar que essa desarticulação é fator de entrave
ao pleno funcionamento do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do
Adolescente (SGD). Basicamente, este sistema funciona em três eixos principais, a
saber: promoção; defesa; e controle social(Neto, 2001)
22
. Em relação ao judiciário, sua
atuação se situa no âmbito da defesa, uma vez que é função deste Poder a fiscalização
das ações de atendimento e a responsabilização caso a atenção à infância não esteja de
acordo com o que prevê o ECA.
Entretanto, os três eixos não podem fundamentar suas ações em atividades
desarticuladas, pois a promoção de direitos, por meio de políticas públicas e sociais, e o
controle social pela sociedade não se exercem em um sistema inativo ou inoperante
(Faleiros & Faleiros, 2006). Assim, este estudo demonstrou que a defesa dos direitos da
infância e juventude tem certa eficácia, mas se mostra apologético no sentido de se
sobressair aos demais eixos do SGD, justamente por ser o encarregado da
responsabilização, que conforme discutido alhures, acaba por se reduzir a
procedimentos com vistas à punição do agressor.
Nessa perspectiva, percebeu-se que a ação terapêutica, em uma perspectiva
sistêmica, aparece apenas quando em conformidade com a atuação da equipe técnica do
CEREVS. Isso porque a Instituição A e a Instituição B fazem menção à atenção
psicossocial apenas para a vítima e sua genitora. Dessa forma, evidencia-se que a
intervenção em casos de abuso sexual, em grande parte, ainda se pauta na atenção
exclusiva à vítima, não tendo a compreensão de que a atenção ao agressor é parte do
processo de garantia de direitos, não apenas dele própria, mas principalmente da pessoa
que sofre de violência sexual. Vicente Faleiros e Eva Faleiros (2006) apontaram em
estudo que a atenção ao agressor vem sendo gradativamente entendida como parte do
Fluxo de Atendimento a casos de violência sexual, conforme ilustrado por este estudo
em relação às medidas protetivas aplicadas a Caetano. Entretanto, o fato de o
atendimento ao agressor, durante o período de dois anos do processo judicial em
análise, ter sido claudicante e ineficaz até o encerramento do estudo, demonstra que,
22
Mais detalhes sobre a Resolução Nº 113, de 19 de abril de 2006, que dispõe sobre os parâmetros para a
institucionalização e fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente,
podem ser acessados em http://www.secj.pr.gov.br/arquivos/File/Resolucao_CONANDA_113_SGD.pdf
98
conforme os autores supracitados, ainda prevalece a ideia de que a ação primordial em
relação a agressores é a punição legal por meio da condenação criminal, para que a
partir disso, e em poucos casos, haver tratamento psicossocial ou psiquiátrico,
dependendo do caso (Faleiros & Faleiros, 2006).
A partir do trato dado pela Justiça às questões relativas subjetivamente aos
sujeitos em estudo, são importantes algumas ponderações. Em relação à família, houve
a emergência de novos padrões de conflito, pois emergiram implicações do afastamento
do agressor do lar no que diz respeito à dinâmica familiar como um todo. Ao focar no
conflito, o processo elencou as significâncias para além da relação vítima/agressor.
Primeiramente, aspectos concernentes à vítima, que se sentiu culpada por uma possível
desestrutura familiar com repercussão para a mãe e para as irmãs. Também foi
observado que a relação mãe/filha foi abalada, pois por mais que a Sra. Renata tenha
tido uma postura protetora, ao confiar no relato da filha e buscar as providências legais
sem demonstrar arrependimento, Bianca relata que se sentiu forçada de forma implícita
a contribuir para que o padrasto retornasse ao lar, ou ainda, que ela teria parcela de
culpa em relação ao afastamento.
Essa ambivalência é explicada pela existência de dois aspectos divergentes
relativos à postura de mães de crianças vítimas de abuso sexual. O primeiro diz respeito
ao comportamento rígido que algumas es adotam para com a educação e criação das
filhas (Furniss, 1993). Nesse sentido, quando a Sra. Renata alega imaturidade da filha
para justificar sua postura de controle à sexualidade de Bianca, ela adentra ao campo do
grupo de mães que ignoram a ocorrência do abuso, muito em razão de acreditarem
terem falhado em sua função materna de proteger as filhas.
Num outro sentido, o segundo aspecto é relativo à coerência das ações de
proteção, mesmo não havendo diálogo totalmente aberto entre mãe e filha. Dessa forma,
a Sra. Renata levou adiante a denúncia, confrontou o marido agressor e acreditou na
palavra da filha (Furniss, 1993).
Desse modo, a ambivalência reside no fato de que, apesar de ter adotado ações
de proteção, querer a volta do marido a morada da família é, de certa forma, dividir a
culpa do abuso entre o marido e a filha, pois uma vez que ele pediu perdão, reconheceu
o erro e está buscando ajuda, não haveria razões para ele continuar fora de casa. Assim,
os medos e angústias de Bianca não são completamente legitimados pela mãe, o que
pode explicar o fato de a adolescente não ter revelado inicialmente para a genitora sobre
99
os abusos e relatar se sentir responsável pela situação de sofrimento da família após o
afastamento.
Após a decisão de afastamento, ocorreu uma reorganização conflituosa da
dinâmica familiar. Assim como mencionada anteriormente, a decisão trouxe novos
sentidos à relação afetiva da família. Primeiramente por Caetano ser a única referência
masculina da família nuclear, aliado ao fato de ele não exercer o padrão gido
masculino que entende competir à mulher/esposa a educação moral e relação afetiva
com os filhos (Guimarães, 2009) e ser o principal provedor financeiro do núcleo
familiar.
Segundo porque recaíram sobre Bianca as conseqüências subjetivas para a
família em decorrência do afastamento, que ela não pôde contar com as irmãs para
externar suas angústias e sofrimentos (Gabel, 1997). Para a mãe competiu assumir
socialmente que a mudança de Caetano deveu-se a problemas conjugais, o que também
gerou implicações nas relações comunitárias de toda a família.
Outro aspecto relativo ao retorno ao lar de Caetano diz respeito à forma como
essa situação se apresenta para a família. Esse movimento de volta à residência da
família se fundamenta em questões externas à Bianca. Isso quer dizer que apesar de a
adolescente qualificar seus sentimentos e ser coerente com eles (e por muitas vezes
também desejar o retorno do padrasto ao lar), a motivação principal para ela acreditar
que os abusos cessariam em caso de retorno de Caetano é baseada por argumentos
diretamente favoráveis a outras pessoas, como por exemplo satisfazer a igreja (que
defende a não separação de casais), as irmãs que sentem falta do pai, a mãe que está
tendo problemas financeiros para sustentar a casa e ao próprio padrasto, que está fora de
casa por culpa dela. Nessa situação, mesmo Bianca não se colocando como responsável
pelos abusos – e foi esse um dos aspectos trabalhados durantes os atendimentos técnicos
-, ela acaba por se colocar como responsável pelas conseqüências negativas do
afastamento e, por conseguinte, por reestruturar a casa e cuidar de toda a família (Gabel,
1997)..
Essa retomada às questões particulares se justifica pelo fato de que é a partir
dessas questões que, evidenciadas ou não pela Justiça, há respaldo legal para justificar a
aplicação da medida de afastamento, ainda que não permita extensividade às
peculiaridades da família. Após o juiz tomar conhecimento do fato por meio de ofício
da DPCA, dois pontos justificaram juridicamente a aplicação da medida de afastamento:
100
1) Existência de atentado violento ao pudor praticado pelo padrasto;
2) Considerando a gravidade da violação aos direitos da jovem e presentes os
requisitos do fumus bonis júris e periculum in mora, que se constituem
respectivamente pela violação aos direitos fundamentais da adolescente
que se encontra na situação descrita no Art. 98, inciso II do ECA e pela
necessidade de uma rápida intervenção estatal a fim de que a jovem e suas
irmãs não continuem expostas à situação de risco.
A separação do agressor da vítima quando a denúncia de abuso sexual ocorre
parece ser a decisão mais acertada, visto que não se tem conhecimento do potencial de
perigo que a criança ou adolescente está submetida. Nesse caso, Furniss (1993)
argumenta que a saída do lar pode ser tanto da vítima, quanto do agressor, com
peculiaridades em ambos os movimentos de preservação da vítima.
Em primeiro lugar, a legislação para a infância no Brasil, balizada pelo ECA,
assegura que a convivência familiar é condição para que a criança em situação de
vulnerabilidade tenha seus direitos garantidos. Em segundo lugar, retirar a criança do lar
quando de suspeita de que seus direitos estão sendo violados apenas acontece quando a
família notadamente está em desorganização que causa danos a integridade de seus
filhos. É evidente que qualquer diagnóstico familiar demanda certo tempo para a
avaliação técnica mais fidedigna, justamente por isso que tem se adotado a medida de
afastamento do agressor e não da criança em casos de abuso sexual.
Sob a ótica das relações afetivas em uma família, o afastamento do agressor
antes mesmo de condenação criminal é pensado com o entendimento de que o adulto
deve tomar completa responsabilidade pelo abuso e as conseqüências sociais, morais e
jurídicas de tal fato. Dessa forma, aliado ao fato de que no Distrito Federal, de modo
geral, os abrigos de crianças não oferecem todas as condições necessárias para a
garantia de direitos (IPEA/DISOC, 2003; Silva, 2004), a criança vítima não é
duplamente fragilizada ao ter que deixar os laços familiares, suas atividades
comunitárias e sociais (Furniss, 1993).
No entanto, percebeu-se no decorrer do processo que a decisão inicial não
privilegiou esse caráter reparador, tanto para vítima, quanto para o agressor, que advém
de uma medida de afastamento. As conseqüências positivas limitaram-se, num primeiro
momento, ao fim da possibilidade de novos abusos sexuais, possibilidade esta que
101
findou por ser menos mencionada nos relatos dos sujeitos do que as conseqüências
negativas da medida, a saber, sofrimento pela ausência do pai, medo de desamparo
financeiro, prejuízo para os papeis sociais dos membros, etc.
Dessa forma, quando Caetano contestou pela revogação da medida de
afastamento, motivando estudo técnico a respeito, depreende-se que ele entendeu o
afastamento como um susto, uma ameaça do sistema judiciário para a não tolerância
desse tipo de conduta. Conduta esta que era percebida como não aceitável dada a
construção do segredo observada pelos relatos durante os quase quatro anos de abusos.
Mesmo que o fim reparador tenha se manifestado por diversas vezes no decorrer do
processo, esse entendimento deveria ser a centralidade da ação, pois Caetano pode ter
tido o entendido que era preciso responder por algo que a sociedade não aprova,
reconhecendo assim o direito que esta tem em punir, não o abuso sexual cometido como
um erro propriamente dito.
O encaminhamento da família para avaliação psicossocial possibilitou o
alargamento da compreensão sobre o afastamento e tradução das vozes dos sujeitos. A
partir dos achados de pesquisa acima discutidos, a avaliação técnica desde trabalho se
focou em dois momentos principais. O primeiro em relação à atuação dos parceiros da
rede de atenção e garantia dos direitos da infância. O segundo, e mais determinante no
processo judicial e de conseqüências mais diretas, diz respeito à avaliação da equipe do
CEREVS.
No caso do primeiro aspecto mencionado, percebeu-se que a ação terapêutica
possibilitou a reflexão sobre os sentimentos iniciais em relação à ausência da figura
masculina de referência na família, assim como retratou a ambivalência da mãe e da
vítima para com todo o contexto que estavam vivendo.
Observou-se que a ação terapêutica foi pautada no fortalecimento dos vínculos
familiares, sem, contudo, ignorar a atual dinâmica que foi permeada por novos segredos
e a questão econômica gerada pelo afastamento. Foi importante a percepção de que
houve re-ordenamentos na relação entre os membros, mas vínculo afetivo ambivalente,
rotinas de segredo e dificuldades de comunicação se mantiveram antes e depois do
abuso (Habigzang & Cols, 2007).
Importante mencionar que foi sugerido ao agressor tratamento específico para
lidar com os impulsos sexuais, cuja efetividade foi praticamente nula. Isso se deveu ao
102
fato de a rede de proteção social não estar preparada para atender os sujeitos de forma
sistêmica. Tratou-se, portanto, de um sujeito que agrediu sexualmente e cujas
características pessoais vão de encontro com o perfil típico de agressores sexuais que
em parte justificam a ausência de atendimentos específicos ao agressor sexual de
crianças e adolescentes
23
-, pois normalmente negam o abuso, o assumem
responsabilidade pelo ato e desqualificam a vítima (Esber, 2009; Furniss, 1993;
Sanderson, 2005; Schmickler, 2006), mas mesmo assim não teve atendimento a sua
demanda declarada por tratamento.
a atuação da equipe psicossocial da VIJ, por meio do CEREVS, foi assertiva
ao garantir os direitos da vítima e possibilitar que uma avaliação mais próxima do real
possível dos sentimentos expressos pelas partes durante os atendimentos. Nesse sentido,
um dos pontos-chaves foi a utilização da técnica de colagem ou desenho da família, que
possibilitou à Bianca manifestar-se com mais desenvoltura caso fosse argüida
verbalmente - e como o fizera por diversas vezes desde que a relatou o abuso ao
diretor de sua escola (Bauer & Gaskell, 2002).
Este instrumental permitiu a reflexão de Bianca quanto à trajetória vivida por ela
antes e depois da revelação do abuso, assim como aludir à forma que ela percebe os
demais membros da família. Nesse sentido, a intervenção profissional, ao conseguir
obter respostas da vítima, reduziu os efeitos que a vergonha sentida em decorrência do
abuso e a consequente desestruturação da família se tornasse um padrão quando o
assunto era sua família (Sanderson, 2005).
Observou-se também que os dizeres da vítima e da mãe foram traduzidos a
ponto de serem considerados parte fundamental e fundante do relatório técnico, que
refletiu a dinâmica familiar assim como a participação de ambas no processo de
restauração da saúde afetiva da família. Esse aspecto, assim como previamente sugerido
pela equipe psicossocial da instituição parceira, abre espaço para a efetividade do
empoderamento familiar após o percurso trilhado na justiça, aumentando as chances de
trabalhos terapêuticos específicos com o núcleo familiar fora do ambiente jurídico
(Costa & Lima, 2008).
23
No distrito Federal, existe o Núcleo de Atendimento à Família e aos Autores de Violência Doméstica,
cujo enfoque de relações de gênero privilegia as violências de cunho conjugal ou, no caso de crianças,
aquelas que estavam em situação de abrigamento decorrente de maus-tratos. Para além disso, as equipes
de atendimento não contam com assistentes sociais (Aguiar, 2009), o que demonstra um entrave na
garantia de direitos de pessoas em situação de violência sexual, de acordo com o referencial adotado nesta
pesquisa.
103
Ainda nesse contexto, quando o agressor se manifestou com postura de
reconhecer suas responsabilidades, o parecer técnico psicossocial assumiu uma posição
intransigente na defesa dos direitos da vítima. Isso se deveu ao fato de que, mesmo
percebendo o movimento restaurador do autor, não sugeriu a suspensão da medida de
afastamento. Quando muito, após quase dois anos do inicio do processo, o parecer
técnico sugeriu que o juiz permitisse visitas supervisionadas condicionadas ao efetivo
cumprimento da medida protetiva prevista no Art. 129, inciso III do Estatuto da Criança
e do Adolescente, a saber, tratamento psicológico específico.
Observou-se que o pensamento sistêmico (de caráter compreensivo) e a análise
dialética (de caráter crítico) foram importantes ao desvelarem as artimanhas e
subjetividades de um processo judicial pautado na constatação de que para retomar a
harmonia familiar no período pós-denúncia é preciso, justamente, a inserção de uma
medida que aumenta a complexidade, instabilidade e intersubjetividade das relações
familiares (Vasconcelos, 2009).
A categoria mediação, central para o pensamento dialético, forneceu o pano-de-
fundo para a compreensão das ações externas aos sujeitos, a saber, do Ministério
Público, do Juiz e das equipes psicossociais que atenderem a família. Constatou-se que
o movimento imediato do afastamento trouxe uma gama de sentimentos à família, seja
pela possibilidade da separação ser permanente, seja não revelação do abuso como fator
determinante da situação que a família se encontra. Também foi possível analisar as
inferências mediatas, entendidas como questões de silogismo das relações afetivas no
seio familiar (Bottomore, 2001).
Dessa forma, a objetividade da legislação e ações processuais foi colocada à
prova, pois as inúmeras interligações entre os aspectos do processo e os sujeitos
demonstraram que a complexidade da medida não se esgota com a sugestão ou
aplicação de uma ou outra ação de proteção. Essas mediações foram observadas em
diversos pontos do processo e, conforme a compreensão de totalidade complexa como
sendo a existência de fenômenos universais (objetivos) que em certas circunstâncias
(materiais, de classe social, gênero, raça, idade, etc) se manifestam nas subjetividades
(instável, particular e complexo) (Silva, 2006).
No entanto, a ideia de garantia de direitos, representada pelo SGD nos eixos de
defesa, promoção e controle social, se limita à atuação da Justiça não extensiva à rede
de proteção social, cuja assertividade dos procedimentos para além do judiciário se
104
pauta em haver uma tendência recalcitrante dos próprios sujeitos, que têm seus
sentimentos e demandas expostos pelo judiciário e, ao mesmo tempo, sem garantias de
que o trato a eles será efetivo para além dos limites da Vara da Infância.
Esse ponto, ainda que tenha semelhanças com a questão levantada no bloco de
análise anterior a respeito da não consideração, pela Justiça, das questões subjetivas dos
sujeitos para além dos procedimentos dentro do judiciário, deixa evidente a
desarticulação não apenas da rede de proteção social, o que consequentemente se coloca
como entrave para o controle social das políticas de atendimento, mas também por não
ensejar o movimento contrário de aproximação entre a justiça e a sociedade. Em uma
palavra, a atuação do judiciário se pauta na garantia estrita do pilar de defesa dos
direitos da infância, dentro do Sistema de Garantia de Direitos, mas se configura como
pouco disponível ao diálogo com a sociedade no que tange à convergência de suas ações
às reais e concretas necessidades dos sujeitos, o que demanda uma maior compreensão e
aproximação aos pilares da promoção/prevenção e controle social para que se possa
observar a Doutrina da Proteção Integral e a Prioridade Absoluta da infância
efetivamente instaurada nos processos de Justiça.
105
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pretende-se que as regras de cidadania contempladas no ordenamento
jurídico em prol da população infanto-juvenil não permaneçam como meras
declarações retóricas, exortações morais, singelos conselhos ao
administrador e, porque assim tomadas, postergadas na sua efetivação ou
relegadas ao abandono. Olympio Neto.
Este estudo foi produzido em meio a discussões acaloradas sobre a questão da
violência sexual, com diversos casos explorados pela mídia de forma a levar a discussão
a um nível que, muitas vezes, divergia do que a academia estava produzindo e também
diferente da realidade observada pela prática profissional dos agentes que lutam pela
garantia dos direitos da infância e juventude. Aliados à mudança na lei que versa sobre
crimes sexuais, debates a respeito de temas polêmicos foram elencados, como a questão
do Projeto de Lei do Senado, 552/2007, que propõe a castração química de
agressores sexuais.
Essa discussão, do ponto de vista das ciências humanas, está avançada no que
tange a sua refutação (Hachet, 2005), mas é importante pensar porque a sociedade está
lidando de forma objetiva, como a questão da castração química, em relação a condutas
eminentemente complexas e subjetivas. Ainda mais em razão de que no caso estudado o
agressor não é uma pessoa “estranha”, sem vínculos afetivos ou familiares com a
vítima. Assim, como na fala da e da tima em estudo: meu caso não é como o dos
outros”. Ora, Sra. Renata, seu caso quase sempre é como o dos outros, sim. Pelo menos
para a Justiça.
Há, com certeza, diferenças entre a tipologia daquele que agride sexualmente
dada a proximidade de sua relação com a família da vítima. A violência intrafamiliar
tem, em termos conceituais e práticos, aproximações e distanciamos da violência
extrafamiliar. No entanto, a objetividade do ato pode, em muitos casos, ser a mesma:
uma criança vítima de investidas sexuais de um adulto. Nesse sentido, o que não é
tratado pela justiça é a forma como a resposta social ao caso será dada. Que há resposta,
não dúvidas, pois a a omissão faz parte de uma postura ideológica. Mas tudo
converge aos meandros de uma teia paradoxal, repleta de vicissitudes que muitas vezes
contribuem para que as pessoas se tornem apenas números processuais.
106
O papel do sistema de justiça, uma vez que ele adentrou as questões íntimas de
uma família, é possibilitar que haja uma reflexão a respeito das práticas violentas que
estão sendo tomadas em graus diferenciados na sociedade, para além de apenas regular
as relações sociais por meio de mecanismos de punição estrita. Socialmente, agredir o
filho é permitido, para educar. Mas a filha de ninguém pode transar com qualquer um.
Quando se evidenciam questões que ocorrem, com a freqüência maior que se imagina, e
aparentemente são de domínio privado, a sociedade deve participar da construção do
trato à questão, e é nesse sentido que a articulação da rede de proteção social falha em
não perceber essa perspectiva, imbricada em questões culturais, políticas e ideológicas.
Outro problema é relativo à falta de compreensão de que a não ocorrência de
violência sexual não depende exclusivamente de manter preso o agressor. A menos que
houvesse uma forma de detectar todos os agressores, previamente, e encarcerá-los antes
que eles cometessem os crimes. Isso sem aprofundar a discussão a respeito das práticas
violentas dentro da cadeia a que são submetidos homens condenados por estupro.
Nesse sentido, compreende-se que não há como o Estado, nem a sociedade ou a
família impedir que suas crianças e adolescentes estejam imunes a toda e qualquer ação
violenta. Viver em sociedade é fator de risco. No entanto, a discussão a respeito da
articulação de políticas públicas e sociais de prevenção, atenção e responsabilização
normalmente fica a margem do debate quando a punição do agressor é mais evidenciada
que aspectos relacionais da família em situação de violência. Ou ainda quando nada
disso ocorre, devido ao arquivamento do processo por falta de provas materiais do
abuso.
Em relação à articulação de toda a sociedade no que tange ao combate à
violência sexual, os movimentos sociais são formados por pessoas da comunidade, que
vivenciam questões parecidas de direitos violados ou negados pelo Estado e se
mobilizam para que estes direitos sejam garantidos. Essa mobilização origem às
organizações que fazem parte da rede de proteção social, o que permite um diálogo
maior entre os interesses da população e as ações do Estado. Mas se um sujeito, como é
o caso de Caetano, não tem atendimento a sua demanda gerada pela justiça – a noção de
escolha do sujeito a participar das decisões e sugestões a ele colocadas no âmbito da
justiça é muito contraditória –, mesmo após ficar dois longos anos respondendo a um
processo cível e criminal, demonstra que o foco de intervenção ainda não é o sujeito,
107
mas sim a conduta: bem ou mal, Caetano não abusou de Bianca por dois anos, e é isso
que aparenta interessar à justiça em um primeiro momento.
Por outro lado, caso a sociedade invista em tratar do tema com a seriedade
proposta acima, ela teria que lidar também com o fato de que são pais, tios, padrastos
aqueles que mais agridem sexualmente, e não aquele estranho, forasteiro que ninguém
conhece. Bauman (1998) relembra uma situação ocorrida na Grã-Bretanha, onde houve
notícias de inúmeros casos de exploração sexual
24
cujos principais acusados eram os
pais e mães das crianças. Houve grande comoção nacional, filhos foram retirados do lar,
relatos de violência também em conservatórios e escolas e todo tipo de notícia a esse
respeito foi exaustivamente veiculada pela mídia. Após alguns casos serem levados ao
Tribunal, vários pais provaram sua inocência e tiveram seus filhos de volta. Mas, nas
palavras do autor:
“(...) o que aconteceu, aconteceu. A ternura dos pais perdeu sua inocência. Fora levada a
público a consciência de que as crianças são sempre e em toda parte objetos sexuais, de que
um fundo sexual potencialmente explosivo em qualquer ato de amor dos pais, de que
toda carícia tem seu aspecto erótico e em todo gesto de amor pode esconder-se um assédio
sexual (Bauman, 1998, p. 187).
Nessa perspectiva, a de marginalização do debate a respeito do real e concreto
significado da Doutrina da Proteção Integral na garantia de direitos da infância e
consequente atenção aos casos de violação de direitos e prevenção às violências, a
discussão gerada a partir de uma medida aplicada a alguém que agride sexualmente,
quando não de prisão imediata e com sentença a uma pena alta de reclusão, gera
inúmeros desconfortos para o Estado, para a sociedade que espera uma ação do Estado
e, principalmente, às pessoas diretamente envolvidas no contexto da violência,
notadamente a instituição família.
Nessa égide, o presente trabalho privilegiou a família como ponte de discussão
para a questão da dinâmica judicial de uma medida protetiva, os impactos psicossociais
à família (agressor, vítima e demais membros) e a forma como os direitos dos sujeitos
são tratados pelos operadores do direito em suas relações com a rede de proteção social
do Distrito Federal.
24
Apesar de usar o termo exploração sexual, o relato do autor se refere, na verdade, a casos de abuso
sexual, de acordo com a conceituação adotada por este trabalho.
108
Dessa forma, a família deve ser entendida, conforme o pensamento marxista
sustenta, como um sistema que possibilita a produção e reprodução das ações desiguais
produzidas em sociedade e que não pode ser desvinculada do sistema de produção e
reprodução do imaginário capitalista. Da mesma forma que a família burguesa procria
herdeiros do capital, pessoas que podem exercer mais facilmente seus direitos sociais, e
a família trabalhadora procria a mão de obra para alimentar esse capital, ou seja, família
à margem de seus direitos socialmente conquistados, direitos estes que lhes são o tempo
todo negados (Chauí, 1984).
E foi exatamente isso o que pôde ser observado em relação à família que ilustrou
as considerações deste trabalho. Pessoas foram expostas a um sistema de justiça, nem
sempre ouvidas por profissionais capacitados para tal atividade, para não terem
garantias de que a proteção de sua infância fosse efetivamente resgatada. Se por um
lado houve celeridade nas ações a partir da denúncia até o atendimento técnico
psicossocial dos profissionais da Vara da Infância, a partir disso se notou que a família
estava por conta própria, tendo que buscar por si a proteção que ela não deu conta
de garantir.
É pertinente ressaltar que a questão terapêutica foi abordada de forma ética e
eficaz pelo CEREVS e pela Instituição A que atendeu a vítima e sua genitora. Mas não
explicação plausível para responder a falta de articulação entre a escola, o Conselho
Tutelar e as instituições do terceiro setor que atenderam a vítima e a genitora, ou que
deveriam ter atendido o agressor com tratamento específico a ele. Essa articulação pode
ter ocorrido, mas a não manifestação no processo judicial demonstraria outra falha, visto
que é pelo processo que a decisão do magistrado é tomada e, consequentemente, é por
meio dessas informações que as medidas são aplicadas e podem mudar o rumo da vida
dos sujeitos envolvidos.
Obviamente, não se nega a importância dos esforços individuais desses
profissionais, que se mostraram sensíveis e capacitados para lidar com o tema. O que
ficou evidente foi a falta de políticas sociais articuladas ao sistema judiciário a fim de
dar sentido aos indivíduos em relação a sua passagem pela justiça, para que a
centralidade dos sujeitos nas abordagens teóricas seja transformada em real participação
na formulação e avaliação dos processos de justiça a que eles estão inseridos.
Quando se observa tamanha desarticulação em nível de política de atendimento,
a impressão gerada é de que a ação do Estado se equipara não à doutrina da proteção
109
integral, preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, mas sim à Doutrina da
Situação Irregular, dos estatutos menoristas pré-1990. Dessa forma, a família transita
entre ser sujeito, quando ela própria deve buscar resolutivas internas para lidar com
questões que transcendem o caráter privado, como é o abuso sexual infanto-juvenil, ou
ser objeto, pois está inserida em uma rede informal, a qual Donzelot (2001) chama de
redes de solidariedade ou blocos de dependência. E foi justamente isso que a família em
questão vivenciou: o maior respaldo comunitário que ela tinha era da igreja, que
inclusive fornecia moradia à família.
Logicamente, o vínculo com a equipe do CEREVS foi forte a ponto de garantir
um espaço para reflexão de inúmeras facetas. No entanto, esse vínculo é naturalmente
enviesado, pois o contexto da justiça pode ser inibidor e constrangedor para aqueles que
são obrigados a comparecer (Costa & Lima, 2008). Esse aspecto se reforça na medida
em que o próprio agressor compreende a participação em atendimentos psicossociais
também como forma de minimizar os efeitos do processo criminal, e mesmo que ele
tenha em seu discurso a aceitação de sua responsabilidade, não foi notado, no decorrer
do processo, que havia como ele ser inserido em uma rede de atenção a questões
específicas de quem é autor desse tipo de crime, nem mesmo algo nos moldes dos
Alcoólicos Anônimos, a título de exemplo.
O ponto a seguir foi mencionado no decorrer deste trabalho, mas requer que
sejam reiteradas algumas questões. Tal situação diz respeito à grave falta de diálogo do
processo judicial com os princípios da Doutrina da Proteção Integral, pois não foi
observada qualquer menção a respeito da relação estabelecida com a família a que
Caetano passou a residir após a determinação de seu afastamento do lar. Sabido que
havia uma adolescente, na mesma faixa etária a que Bianca começou a sofrer as
investidas sexuais do padrasto, não houve ação qualquer no sentido de garantir a
integridade desta adolescente. Embora não se possa afirmar que Caetano é um pedófilo
incontrolável e os dados desta pesquisa apontam para algo longe disso -, se para
decretar o afastamento foi considerado que houve “suspeita de [Bianca] ter sido vítima
de abuso sexual; agressão cometida pelo padrasto” e “considerando dever de todos
zelar pelo respeito aos direitos da criança e do adolescente (art. do ECA), assim
como prevenir a ameaça e violação de direitos (art. 70 do ECA)”, a não
consideração que outra criança ou adolescente poderia vir a ser vítima de Caetano
demonstra que a defesa dos direitos sociais se dá, quando acontece, apenas no momento
110
em que os direitos foram violados e que o foco da justiça é, de fato, a punição. Para
tanto, a vítima deve ser cuidada com atenção, mas não para ter seus direitos garantidos,
e sim em razão de ser objeto de prova para a possível condenação do agressor.
Esse cenário se constrói, em parte, pelo foco dado à forma de observar e intervir
na realidade por meio das instituições do Estado, em especial o Judiciário. Este estudo
mostrou que esta instituição não uma resposta ao crime, por meio de seu estatuto
teórico, a partir de uma relação com a realidade dos sujeitos envolvidos, não
compreendendo as questões íntimas de maneira adequada. Assim, as especificidades e
necessidades dos sujeitos não podem ser compreendidas depois da ação objetiva da
justiça, mas apenas em seu movimento de aproximação e reaproximação sucessiva às
demandas que emergem a cada novo procedimento judicial (Renault, 2010).
É importante mencionar que durante a construção do processo judicial em
questão houve uma importante mudança no Código Penal Brasileiro no que diz respeito
aos crimes sexuais, por meio da Lei 12.015, de 07 de agosto de 2009 (Brasil, 2009). Foi
revogado o Art. 214, que tratava do atentado violento ao pudor, com pena de 6 (seis) a
10 (anos) anos de reclusão, com possíveis agravantes dada a condição específica da
vítima, como ser menor de quatorze anos ou incapaz. Esse tipo penal agora é entendido
como estupro, que não mais se refere exclusivamente à violência sofrida por mulher.
Caso Caetano tivesse cometido o crime após a aprovação da supracitada lei, ele
responderia pelo Art. 217-A, que se refere ao estupro de vulnerável (menor de 14 anos),
com pena de 08 (oito) a 15 (quinze) anos de reclusão.
Interessante notar que o entendimento do processo judicial, ao mencionar que
não houve emprego de violência ou grave ameaça, inicialmente se configura como
atenuante ao agressor, pois caso houvesse tal situação, a pena poderia chegar a 20
(vinte) anos de reclusão. Aqui, novamente, não haveria tempo hábil para uma avaliação
em termos da existência ou não de violência ou grave ameaça apenas pelo primeiro
interrogatório, pois a vítima poderia ter uma compreensão diversa do que seria sentir-se
ameaçada ou violentada.
Outro ponto a se levantar a respeito da aplicabilidade da nova lei é relativo a um
possível favorecimento a quem agride, em comparação à tipificação anteriormente
adotada. Antes da referida lei, uma pessoa que agredisse sexualmente poderia ser
responsabilizada por dois crimes: o de atentado violento ao pudor e o de estupro, caso a
vítima fosse mulher. Para haver coerência normativa em relação à questão de gênero,
111
acabou-se com a questão de diferenciação por sexo da vítima, mas na prática ambos os
contextos podem coexistir, a saber, o constrangimento sexual, sem conjunção carnal, e a
própria conjunção carnal. Embora, para a nova lei, o estupro não necessariamente se
pela conjunção carnal, a nova tipificação, ainda que tenha o entendimento coerente de
pensar na existência do que era anteriormente pensado nos Art. 214 e 217, reduz a
aplicabilidade da pena a um crime apenas, sem que haja garantias de que a resposta
jurídica ao caso contemple essa dupla característica do crime sexual.
No entanto, havia uma lacuna na lei que possibilitava que alguém que cometera
o crime de tentativa de estupro uma pena maior do que se tivesse, de fato, consumado o
ato sexual por meio de conjunção carnal (Führer, 2009). E embora a discussão acima
possa ser levantada, a nova lei converge à luta dos direitos humanos pela dignidade da
pessoa humana em sua integridade total, derrubando o viés machista que ainda
perdurava por tanto tempo no entendimento estrito da lei.
Não se trata, nesse momento, de fazer uma análise jurídica da legislação que
versa sobre os crimes sexuais. Elencar essa breve discussão reside no fato de que, se
ainda pontos que merecem debate para a aplicação de uma lei, mais ainda se faz
imanente a aproximação com a sociedade a respeito da aplicação prática dos preceitos
legais, muitas vezes não discutidos devidamente antes de sua implementação.
Dessa forma, o estudo pôde demonstrar claras tensões entre o andamento
processual e suas ações e as conseqüências psicossociais para os sujeitos. Dado o caráter
eminentemente causador de sofrimentos diversos da violência sexual, sua publicização e
a ida à Justiça, o trato dado por esta instituição a tais questões tende para a via do
disciplinar comportamentos, como pôde ser observado em alguns momentos do estudo
do processo judicial. Assim, a medida de afastamento agiu como sanção normalizadora
do que a sociedade entende como aceitável (manter crianças longe de perigos) e a sua
coalizão com o que Foucault chama de procedimento específico, o exame no caso em
questão, as ações que repercutem da medida de afastamento tendem a um caráter
eminentemente disciplinador e avaliador das decisões impostas pelo magistrado
(Foucault, 2007a).
Para contornar essa tendência do judiciário, é importante frisar que os
profissionais que prestam atendimentos psicossociais, como assessoria técnica ao
magistrado, convivem diariamente com contradições inerentes à prática profissional em
um ambiente de constantes correlações de força e poder. Isso se deve ao fato de que a
112
ação técnica, por mais que conte com a aceitação do juiz em sua maioria, não deixa de
estar vinculada aos preceitos e anseios de uma instituição de caráter eminentemente
conservador. Longe de afirmar que este conservadorismo remeta a práticas de ruptura
com direitos sociais, firma-se a necessidade de rediscutir o papel da justiça em casos
que sua resposta ao crime envolva a alteração da dinâmica da família em foro íntimo
para além da sanção penal devida pelo agressor. Isso quer dizer que, juridicamente, o
andamento processual de caráter criminal poderia agir por si como fator
normatizador das relações sociais, em uma análise simplista, mas que não exporia os
sujeitos não autores de violência, como a família e a vítima, a formalidades da lei que,
em muitos casos, não chegam a dar resposta alguma aos sofrimentos, angústias e demais
aspectos da violação primeira dos seus direitos.
Talvez por este olhar, o da necessidade de se atingirem procedimentos jurídicos
e judiciais alheios às necessidades e vontades dos sujeitos, que a noção de poder se
incorpore na aparelhagem do Estado e, consequentemente, haja novas formas de
fragilização e vitimização das pessoas envolvidas. Nas palavras de Foucault, e conforme
corroborado pelos resultados deste trabalho, essa relação de poder se manifesta por
meio de “estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização
institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias
sociais” (Foucault, 2007b, p. 103).
Nesse contexto, o debate atual a respeito da atenção psicossocial a pessoas em
situação de violência sexual ainda carece de aprofundamentos no que diz respeito à
intervenção sistêmica, especialmente quando o foco, pelo viés de uma medida protetiva,
acaba por dar ao agressor um papel de destaque na construção da resposta social ao
tema. O atual modelo de justiça vem sendo alvo de discordâncias entre os defensores
dos direitos humanos justamente por não ter alcance aos meandros do conflito, o que
demonstra a necessidade de novos métodos e abordagens para que o sistema de justiça
caminhe para o exercício de seus preceitos no cotidiano dos indivíduos (Ortegal, 2008).
Dessa forma, este trabalho elencou questões a respeito da dinâmica familiar, a
partir da intervenção junto àquele que ofende sexualmente, que demonstraram a
necessidade de pensar esse sujeito dentro da política pública de combate à violência
sexual de crianças, notadamente quando esta ocorre em âmbito intrafamiliar. Esse
contexto reforça a ideia de que, no Direito de Família, o Serviço Social e a Psicologia
113
têm muito a contribuir para amenizar o olhar positivista e seus efeitos deletérios na vida
das pessoas que são submetidas aos rigores da lei.
No processo de resgate da proteção à infância e adolescência, a Justiça se
mostrou não como o primeiro momento para garantia de direitos, mas sim como um
agente meio no que tange à proteção. Além disso, uma medida protetiva tem a dupla
face entre garantir e limitar direitos, e isso ocorre sempre que o olhar jurídico se voltar
ao delito como motivador de uma ação terapêutica no âmbito do judiciário.
Outro aspecto que ficou evidente neste estudo foi que o maior dilema da família
não estava no crime em si, mas na dinâmica que se estabelecera no núcleo familiar,
antes e depois da revelação da violência. Dessa forma, entender a prática sexual como
crime foi um mecanismo para que os sujeitos, especialmente a vítima adolescente,
pudessem ter voz e seus anseios respeitados.
Nessa lógica, as ambivalências mostradas mereceriam um trato mais profundo e
sensível pelo sistema judiciário, que passa ao largo de compreenderem questões
específicas do abuso sexual para os sujeitos que vivenciam o processo judicial, em
especial a questão da subjetividade colocada em segundo plano frente aos anseios dos
procedimentos burocráticos (Neubern, 2004). Esse ponto é importante, pois mesmo
havendo esta preocupação por parte de alguns operadores do direito, como a atuação do
CEREVS e do Ministério Público, tal perspectiva não reflete o posicionamento da
justiça como um todo, ainda pautada na resolução de questões relativas às suas ações
positivistas alheias aos sujeitos e que causam descalabro nos aspectos subjetivos dos
indivíduos.
Em termos simples, este estudo observou que a intervenção da justiça na vida
dos sujeitos deve fomentar que estas pessoas tenham papel central na construção dos
processos de resgate da cidadania e da proteção à infância, sendo de fato atores ativos
em todas as instâncias a que são submetidos, familiar, comunitário/social e jurídico. Em
outras palavras, a partir da compreensão dialética da realidade dos sujeitos, este trabalho
mostrou que uma pesquisa qualitativa deve ser capaz de entrelaçar os anseios dos
sujeitos às demandas sociais e jurídicas, permitindo que diversos aspectos que vão
emergindo no decorrer do estudo sejam aprofundados em outros momentos, não
tornando a pesquisa um fim em si mesmo. (González-Rey, 2006).
114
Esse contexto, de apreciação das implicações psicossociais de um processo
judicial ensejado por uma medida protetiva, traz grande repercussão em relação à
manifestação do Serviço Social e da Psicologia a respeito do trato ao sujeito. A primeira
profissão, que tem em seu histórico a luta intransigente por direitos socialmente
conquistados, vive um momento emblemático no seu projeto ético-político profissional,
especialmente quando se desvelam mecanismos, dentro do judiciário, que vão de
encontro aos anseios históricos da profissão, como por exemplo, submeter a criança
vítima a uma rotina de constrangimentos por meio de inúmeros depoimentos, muitas
vezes até mesmo feitos por assistentes sociais e que poderiam ser repensados a fim de
evitar a revitimização.
Em relação aos profissionais da Psicologia, um desafio reside em não reduzir o
contato com o sujeito à representação empírica de uma teoria desconectada com a
realidade, mas que se confunde com a necessidade histórica da profissão em ter no
empírico seu foco de atuação, findando por reproduzir preceitos teóricos sem o cuidado
científico que a profissão, especialmente a de viés clínico, tem resgatado desde meados
da década de 1980 (Neubern, 2004).
Todos esses apontamentos acima não são de maneira alguma uma pretensão de
tentar explicar a realidade do abuso sexual infanto-juvenil pela ótica de análise de
apenas um processo judicial. É, pois, sob a ótica da Doutrina da Proteção Integral, uma
tentativa de desvelar um recorte de realidade objetiva (o abuso sexual em si) e possível
multiplicações subjetivas e complexas que podem acometer outros sujeitos com
trajetórias parecidas, e que tem em comum a violência, violação de direitos e uma
relação com a justiça, muitas vezes contra suas vontades.
Nessa perspectiva, refuta-se com veemência a abordagem unilateral aos sujeitos
judicializados, em especial os programas de atendimento que privilegiam a vítima em
detrimento da família e do agente perpetrador da violência. Há muito não se pode
abordar o tema com ingenuidades e reducionismos pragmáticos de ordens diversas, que
sob um discurso moral, conservador e piegas, limitam o alcance de ações de vanguarda
na defesa dos direitos de crianças e adolescentes.
Esse ponto relevou que discutir a questão da ambivalência existente tanto para a
vítima quanto para o agressor é fator de distanciamento da comunidade e rede de apoio
da família. Isso porque a questão do desejo ou qualquer prática sexual por adolescentes
é um tabu difícil de ser discutido. Ora, o direito a que o Código Penal Brasileiro se
115
refere como “dignidade sexual” não deixa abertura para a discussão da questão do
prazer e do gozo como formas de sociabilidade, desde que praticados pelos sujeitos com
capacidade de compreender tal relação afetivo-sexual.
Logicamente, o abuso sexual sofrido por Bianca é repudiável e não que se
discutir uma possível não responsabilização de Caetano. O que deve estar em pauta em
casos como este é a autonomia dos sujeitos em decidir os rumos de suas vidas sem o
cerceamento de quem quer que seja, desde familiares, pessoas estranhas ou as
instituições do Estado.
Como se observou neste estudo, a dualidade de sentimentos da vítima,
especialmente quando ela adentrava a adolescência, era um misto de culpa, vergonha,
medo e, também, de prazer. O Estado pode intervir desconsiderando este último
aspecto, mas suas próprias artimanhas burocráticas podem dar a um caso como este a
sensação de inutilidade enquanto resposta social ao abuso sexual enquanto crime. Em
uma palavra, ao completar a maioridade civil (18 anos de idade), Bianca não mais é
alvo das ações do Estatuto da Criança e do Adolescente, logo, uma possível relação
sexual com Caetano não é mais uma quebra da lei, tampouco uma violação de direitos,
caso ela consinta com o ato em debate o que está fora de discussão quando ela ainda
for adolescente. Ou seja, caso a mesma dinâmica relacional, outrora entendida como
abusiva, se reinicie findo o processo judicial inicial, apenas discussões morais a
serem feitas, pois se tornam sem efeito possíveis previsões legais ou doutrinárias.
Esse formalismo da lei, além de marginalizar o aspecto subjetivo, acaba por ter
um fim em si mesmo: os sujeitos passam pela justiça, cumprem (ou não) suas
determinações e a vida segue, sem que esta instituição seja um agente de proteção de
fato à infância e à juventude. Nesse sentido, a questão do tempo do processo judicial foi
algo que emergiu do estudo e é um ponto de partida para melhor compreender as
questões mencionadas acima a respeito da relação entre os sujeitos e a lei (Santos, 2009;
Santos & Costa, 2004).
Este estudo mostrou que um aspecto muito criticado pela sociedade, em relação
à morosidade da justiça, se deu de forma célere na execução e encaminhamento dos
procedimentos judiciais. No entanto, um processo rápido não necessariamente é garantia
de respeito aos direitos e questões particulares dos indivíduos judicializados, pois
muitas vezes o tempo que os sujeitos precisam para assimilar cada decisão do juiz pode
ser mais lento que a processualidade do caso. O fazer justiça, em situações como esta,
116
está na relação da pessoa com o judiciário e um tempo muito curto pode ser prejudicial
para o resgate da proteção, pois agiria no sentido de dar uma breve resposta à quebra da
lei e não contemplaria as questões complexas que emergem durante o processo.
Também foi de suma importância para o estudo a possibilidade de discutir
teoricamente as questões relativas à vítima, família e agressor em um mesmo recorte
conceitual, pois a literatura tem se especializado em tratar do tema isolando os sujeitos
em determinado lócus de análise, o que fatalmente obriga a exclusão de um ou outro
ator social do olhar epistemológico ao tema. Dessa forma, a revisão teórica foi relevante
por dar uma pequena contribuição para a verdadeira inovação paradigmática, muito em
parte pela ousadia em propor um viés teórico balizado pelo materialismo histórico-
dialético e a teoria sistêmica, que embora tenham origens distantes, se mostraram muito
pertinentes quando aproximadas e dialogadas numa perspectiva de defesa dos Direitos
Humanos.
Um ponto importante que este estudo tentou evidenciar é o fato de que se espera
que produção acadêmica contribua no aprofundar das questões, para evitar que um dado
não analisado se torne norma ou referência ao se mencionar certo tema, como acontece
em questões relativas a agressores sexuais.
Destarte, faz-se necessária a constante aproximação da justiça com as reais
necessidades e anseios dos indivíduos judicializados, que devem passar de ignotos a
sujeitos de direitos de fato. Nesse sentido, este estudo deixa aberta a possibilidade para
a realização de novas pesquisas teóricas e empíricas, abordando um recorte de realidade
mais abrangente a fim de subsidiarem novas propostas de políticas sociais. Reforça-se,
assim, o compromisso com a interdisciplinaridade e a ruptura com pensamentos que
tendem a cercear direitos ao invés de garanti-los.
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132
ANEXOS
133
ANEXO 1 – AUTORIZAÇÃO DO JUIZ DA VARA DA INFÂNCIA PARA
REALIZAÇÃO DA PESQUISA
134
ANEXO 2 – APROVAÇÃO DO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA
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