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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP
Lígia Maria Pereira de Pádua
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RARAQUARA
S.P.
2010
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Livros Grátis
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L
ÍGIA
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ARIA
P
EREIRA DE
P
ÁDUA
A LEITURA DO FANTÁSTICO NOS CONTOS “LIGEIA”, DE
EDGAR ALLAN POE, E “VÉRA”, DE VILLIERS DE
L´ISLE-ADAM
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras da
Faculdade de Ciências e Letras
Unesp/Araraquara, como requisito para
obtenção do título de Mestre em Estudos
Literários.
Linha de pesquisa: Teoria e crítica
literária
Orientador: Professora Doutora Guacira
Marcondes Machado Leite
A
RARAQUARA
S.P.
2010
ads:
Pádua, Lígia Maria Pereira de
A leitura do fantástico nos contos "Ligeia", de Edgar
Allan Poe, e "Véra", de Villiers de l\' Isle-Adam / Lígia Maria
Pereira de Pádua – 2010
104 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) –
Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e
Letras, Campus de Araraquara
Orientador: Guacira Marcondes Machado Leite
l. Poe, Edgar Allan, 1809-1849. 2
. Fantástico. 3. Simbolismo.
4. Villiers de L'Isle-Adam, Auguste, comte de, 1838-1889.
5. Conto poético. 6. Literatura temática. I. Título.
L
ÍGIA
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ARIA
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EREIRA DE
P
ÁDUA
A
LEITURA DO FANTÁSTICO NOS CONTOS “LIGEIA”, DE
EDGAR ALLAN POE, E “VÉRA”, DE VILLIERS DE
L´ISLE-ADAM
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Conselho, Departamento, Programa de Pós
em Letras da Faculdade de Ciências e
Letras - UNESP/Araraquara, como requisito
para obtenção do tulo de Mestre em
Estudos Literários.
Linha de pesquisa: Teoria e Crítica
Literária
Orientador: Professora Doutora Guacira
Marcondes Machado Leite
Data da qualificação: __11_/_9__/2009____
M
EMBROS COMPONENTES DA
B
ANCA
E
XAMINADORA
:
Presidente e Orientador: Profa. Dra. Guacira Marcondes Machado Leite
UNESP-Araraquara
Membro Titular: Prof. Dr. Orlando Amorim
UNESP- São José do Rio Preto
Membro Titular: Prof. Dra. Maria das Graças Gomes Villa da Silva
UNESP-Araraquara
Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
Aos meus pais, Vera e Benedito
Ao meu marido, Eduardo
Ao meu irmão, Ricardo
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais que sempre trabalharam e me apoiaram sob diversos aspectos
para que todos os meus sonhos e ideais fossem realizáveis; ao meu irmão, pelas
palavras de incentivo e orientações.
Ao meu marido, Eduardo, que, com amor, compreensão e apoio, tornou possível
a concretização desse objetivo.
Aos meus colegas e amigos da Bonjour Paris que sempre acreditaram no meu
trabalho e me disponibilizaram toda ajuda para que ele se concluísse.
À minha orientadora e sempre mestra Guacira que, desde a graduação, me
motivou e compartilhou de seus conhecimentos, contribuindo não para a
realização deste, mas, para a minha formação como um todo.
A todos os profissionais da Faculdade de Ciências e Letras, incluindo todos os
professores da graduação e pós-graduação, que direta ou indiretamente,
tornaram possível a concretização dessa pesquisa. Reconhecimento especial
para Profa. Dra. Silvana Vieira da Silva, Profa. Dra. Renata Soares Junqueira e
Prof. Dr. Luis Cezerillo por acreditarem no meu potencial encorajando-me.
À banca examinadora, pelos conhecimentos, sugestões e contribuições que
enriqueceram meu trabalho.
Aos meus amigos e familiares que, apesar da minha ausência, sempre me
apoiaram. Reconhecimento especial à Adriana Rigoni, aluna e amiga, que me
ensinou a lutar pelos meus ideais por mais difíceis e distantes que possam
parecer.
RESUMO
Este estudo tem por objetivo analisar os contos “Ligeia” (1838) de Edgar A. Poe e
“Véra” (1876) de Villiers de l´Isle- Adam, obras-primas do conto poético de gênero
fantástico. Embora o norte-americano Edgar A. Poe (1809-1849) tenha vivido no
começo do século, e Villiers (1838-1889) o tenha no seu fim, ambos têm a mesma
perspectiva pessimista sobre os acontecimentos que se desenrolaram durante
todo o século XIX, a saber: consolidação do poder da burguesia, descobertas
tecnocientíficas, etc. Se os avanços foram muitos, a miséria e a desigualdade
social continuaram a aumentar. Acrescido a esse clima de desconforto social, o
iminente fim do século anunciava, em uma perspectiva apocalíptica, o fim dos
tempos. O homem, submetido ao destino e às forças terrestres sobre as quais
não tem controle, fora marcado pela tendência de reduzir a vida a um niilismo que
se traduziu na fixação da morte como libertação. Preferindo o sonho à ação, Poe
e Villiers se refugiaram na torre de marfim no intento de buscar o Absoluto
preterido pela sociedade materialista da época. Essa atitude foi a mesma de
muitos outros autores que integraram o movimento simbolista do qual os referidos
autores foram antecessores. O Simbolismo nasceu na França na última parte do
século XIX e alcançou seu auge na década situada entre 1885 e 1895. Ele emite
através de alguns elementos base o símbolo, o sonho, o mito, o inconsciente
a sensibilidade estética e as aspirações metafísicas. Se este movimento traduziu
as necessidades estéticas e metafísicas desse período, o gênero fantástico foi um
meio eficaz pelo qual elas foram expressas. Uma vez que o fantástico pressupõe
como princípio a presença do elemento sobrenatural, ele significa, em ultima
instância, a fuga da realidade, a contestação dos valores do mundo físico. Não
por acaso, depois da inserção das obras de Poe na França por Baudelaire, o
gênero fantástico retomou o fôlego, influenciando não os autores franceses, tal
como Villiers, que se tornara um dos autores mais importantes do gênero, mas
também literatos do mundo todo. Apesar de Poe e Villiers lidarem com o
fenômeno fantástico de formas diferentes, as suas obras tiveram uma importância
fulcral para a expansão do gênero em uma época monopolizada pelas luzes da
ciência. Sendo assim, os referidos contos foram escolhidos por representarem,
por excelência, o conto poético fantástico e por preconizarem elementos
simbolistas irradiando, através da temática do amor, da morte e do êxtase, os
vieses pelos quais o homem pode alcançar o Absoluto.
.
Palavras-chave: Fantástico. Edgar Allan Poe. Villiers de l´Isle-Adam. Simbolismo.
Conto Poético. Leitura temática.
RÉSUMÉ
Le but de cette recherche c´est d´analyser les contes “Ligeia” (1838) Edgar A.
Poe et “Véra” (1876) de Villiers de l´Isle- Adam, chef-d´oeuvres du conte poétique
de genre fantastique. Bien qu’ Edgar Allan Poe (1809-1849) ait vécu au début du
siècle, et Villiers (1838-1889) à la fin, les deux ont la même perspective sur les
événements qui se sont déroulés pendant tout le XIX
ème
siècle, comme la
consolidation du pouvoir de la bourgeoisie, les découvertes technique-cientifiques,
parmi d´autres. Si les avantages ont été nombreuses, la misère et l´inégalité
sociale ont continué à augmenter. Ajoutée à cette ambiance de gêne sociale, l’
imminente fin du siècle annonçait, sous une perspective apocaliptique, la fin du
monde. L’ homme, soumis au destin et aux forces terrestres sur lesquelles il n´a
pas de contrôle, a été marqué par la tendance de réduire la vie à un nihilisme qui
s´est traduit dans la fixation de la mort comme libération. En préférant le rêve à
l´action, Poe et Villiers se sont refugiés dans la tour d´ivoire, en quête de l’ Absolu
méprisé par la société matérialiste de cette époque. Cette attitute a été la même
de beaucoup d´autres auteurs qui, plus tard, allaient intégrer le mouvement
symboliste dont les auteurs en discussion sont des antecesseurs. Le Symbolisme
est né en France à la fin du XIX
ème
siècle et a atteint son apogée entre les années
1885 et 1895. Il émet, parmi quelques élements-base le symbole, le rêve, le
mythe, l´inconscient – la sensibilité esthétique et les aspirations métaphysiques. Si
ce genre a traduit les besoins esthétiques et métaphysiques de cette période, le
genre fantastique a été un moyen efficace par lequel ils ont été exprimés. Une fois
que le fantastique présuppose comme principe la présence de l’ élément
surnaturel, il signifie,en dernier cas, la fuite de la realité, la contestation des
valeurs du monde physique. Ce n´est pas par hasard que, après l´insertion des
oeuvres de Poe en France par Baudelaire, le genre fantastique a repris son
souffle, en influençant pas seulement les Français, tel que Villiers qui est devenu
un des plus importants du genre, mais aussi des auteurs du monde entier. Même
si Poe et Vililiers traîtent le phénomène fantastique de différentes manières, leurs
oeuvres ont eu une grande importance pour l´expansion du genre dans une
époque monopolisée par les lumières de la science. Ainsi, les contes cités ont été
choisis pour avoir représenté, par excellence, le conte poétique fantastique et pour
avoir preconisé des éléments symbolistes en irradiant, à travers la thématique de
l´amour, de la mort et de l´extase, les voies par lesquelles l´homme peut atteindre
l´Absolu.
MOTS-CLES: Fantastique. Edgar Allan Poe. Villiers de l´Isle-Adam. Symbolisme.
Conte Poétique. Lecture thématique.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................................9
1 SOBRE EDGAR ALLAN POE E VILLIERS DE L’ ISLE-ADAM................................................11
1.1 EDGAR ALLAN POE: O HOMEM E O AUTOR......................................................................11
1.1.1 POE: O HOMEM...................................................................................................................12
1.1.2 POE: O AUTOR....................................................................................................................14
1.2 VILLIERS DE L´ISLE-ADAM:O HOMEM E O AUTOR...........................................................19
1.2.1 VILLIERS: O HOMEM..........................................................................................................21
1.2.2 VILLIERS: O AUTOR...........................................................................................................23
1.3 A ANGÚSTIA DA COMPARAÇÃO.........................................................................................26
1.4 O MOVIMENTO SIMBOLISTA................................................................................................28
2 O FANTÁSTICO NO SÉCULO XIX...........................................................................................36
2.1 O FANTÁSTICO: A PROBLEMÁTICA DA CONCEITUALIZAÇÂO ......................................39
2.2 O FANTÁSTICO EM EDGAR ALLAN POE............................................................................42
2.3 O FANTÁSTICO EM VILLIERS DE L´ISLE-ADAM................................................................44
2.4 O FANTÁSTICO EM “LIGEIA” E EM “VÉRA”.......................................................................45
3 A EXPRESSÃO DA MORTE EM “LIGEIA” E EM “VÉRA”.......................................................67
3.1 O FENÔMENO DA DUPLICIDADE: SUAS MANIFESTAÇÕES AO LONGO DA HISTÓRIA DA
LITERATURA E SUA EXPRESSÃO EM “LIGEIA” E EM “VÉRA ..............................................72
3.2 A EXPRESSÃO DO AMOR E A BUSCA DO ÊXTASE..........................................................86
3.2.1 O ÊXTASE AMOROSO.....................................................................................................,..87
3.2.2 O ÊXTASE MÍSTICO............................................................................................................93
CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................................97
REFERÊNCIAS.............................................................................................................................99
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA..................................................................................................103
9
INTRODUÇÃO
Edgar Allan Poe (
1809-1849
) e Villiers de l 'Isle-Adam
(1838-1889)
viveram
em uma época impregnada pelo materialismo e o racionalismo advindos dos
ideais de progresso e da nova ordem econômica e social que se instaurava, o
capitalismo; eles travaram uma batalha contra essa tendência, uma vez que
acreditavam que o ser humano não era composto de razão, mas também, de
imaginação e emoção. Amplamente influenciados pela filosofia neoplatônica das
correspondências (irradiada, na França, pela poética baudelairiana), eles
procuravam a essência através das aparências, de modo a transcender o mundo
sensual, palpável para chegar ao mundo Ideal, e é por isso que suas obras têm
um caráter ascético, de elevação, contrariando o ideário da época. Talvez isso
explique o fato de que o talento artístico tanto de Poe como o de Villiers não tenha
sido devidamente reconhecido pelos seus contemporâneos.
Como filhos do ideário capitalista, vivemos num mundo similar ao deles,
que rejeita/relega para segundo plano qualquer movimentação do espírito que
pretenda alçar voo acessando um plano superior. Dessa forma, o objetivo deste
estudo será contribuir, mesmo que modestamente, para o alargamento das
fronteiras sobre o assunto.
Primeiramente, o aspecto biográfico de cada um será abordado, de
maneira bem sintética, como tentativa de compreendê-los em todas as esferas,
facilitando a exploração do “eu poético”. É importante ressaltar que, se as obras
de Poe e Villiers dialogam, o canal responsável (em termos jackobsonianos) é,
sem dúvida, graças ao poeta francês Charles Baudelaire, que introduziu Poe na
França, traduzindo suas produções literárias. Assim, fez-se mister explorar,
mesmo que sucintamente, alguns aspectos literários comuns a eles. E, como Poe
e Villiers pertencem a nacionalidades distintas, apesar da grande afinidade
literária, foi necessário mencionar a teoria da literatura comparada para
especificar a contribuição de cada um no sentido de fomentar o diálogo entre as
obras aqui estudadas. Em seguida, o movimento simbolista será estudado no
intuito de fornecer algumas bases teóricas e estéticas antecipadas pelos autores
em questão uma vez que foram eles que o preconizaram.
10
A segunda parte é constituída da análise literária das obras “Ligeia”
(1838)
de Edgar Allan Poe
e
“Véra”
(1876)
de Villiers de l 'Isle-Adam segundo as bases do
gênero fantástico, meio em que os autores em questão encontraram terreno fértil
para suas obras florescerem, dado seu poder revolucionário e transgressor.
Finalmente, a terceira e última parte aprofunda a discussão do fantástico
em “Ligeia” e “Véra”, pontuando alguns aspectos temáticos que perpassam o
âmago de sua constituição: a presença da morte, sublimada pela recorrência ao
fenômeno da duplicidade e a busca do êxtase, utilizados como suporte
regenerador do aniquilamento da individualidade.
Assim, pretende-se analisar, sob a perspectiva do gênero fantástico, a
expressão do amor, do sonho, da morte e do êxtase nos contos “Ligeia”, de Edgar
Allan Poe, e “Véra”, de Villiers de l 'Isle-Adam, exemplos, por excelência, de
contos poéticos.
11
1 SOBRE EDGAR ALLAN POE E VILLIERS DE L’ ISLE-ADAM
Segue, aqui, um pequeno estudo sobre a vida e obra desses autores que
vivenciaram o ideal estético do culo XIX e transmitiram, através de suas
criações, o anseio de alçar voo pelas asas da imaginação no intento de ascender
ao “Au-delà”, terreno mágico onde reina o Belo e o Absoluto.
1.1 EDGAR ALLAN POE: O HOMEM E O AUTOR
Há em nós uma presença obscura de Poe,
uma latência de Poe. Todos nós, em
algum lugar de nossa pessoa, somos ele,
e ele foi um dos grandes porta-vozes do
homem, aquele que anuncia seu tempo
noite adentro. Por isso sua obra [...], (se
faz sempre presente) tanto nas vitrinas
das livrarias como nas imagens dos
pesadelos, na maldade humana e também
na busca de certos ideais e de certos
sonhos.
(CORTÁZAR, 1993, p.104).
Entre 1830 e 1850, a literatura norte-americana, influenciada pela
industrialização e a conseguinte auto afirmação econômica, vivenciava o seu
período clássico renegando todos os seus autores de ambições idealistas:
O tempo e o dinheiro têm [nos Estados Unidos] um valor tão
grande! A atividade material, exagerada até as proporções de
uma mania nacional, deixa nos espíritos muito pouco lugar para
as coisas que não são da terra (...). Poe era lá um cérebro
singularmente solitário. Ele acreditava no imutável, no eterno,
no self-same (BAUDELAIRE, 1956, p.59, grifos do autor,
tradução nossa).
1
Acrescido a isso, os mitos, envolvendo a vida pessoal de Edgar A. Poe,
foram, em grande parte, responsáveis pelo fracasso crítico de suas obras nos
1
« Le temps et l´argent ont là-bas une valeur si grande ! L´activité matérielle, exagérée jusqu´aux
proportions d´une manie nationale, laisse dans les esprits bien peu de place pour les choses qui
ne sont pas de la terre [...]. Poe était là-bas un cerveau singulièrement solitaire. Il ne croyait qu´à
l´immuable, à l´éternel , au self-same. » (BAUDELAIRE, 1956, p.59, grifos do autor)
12
Estados Unidos. Na primeira metade do século XX, os estudos sobre elas eram
submetidos à análise de seu caráter pessoal e psicológico. Visto seus problemas
com a bebida e a criação de uma galeria de personagens com grande afetação
psíquica, a crítica estudou clinicamente a biografia de Poe em busca de uma
melhor compreensão da obra.
Assim sendo, colocamos à disposição de nossos leitores uma sucinta
biografia do homem extraordinário que foi Poe.
1.1 .1 POE: O HOMEM
(...) uma delicadeza refinada de sentidos
que uma nota falsa torturava, uma fineza
de gosto que tudo, exceto a exata
proporção, revoltava, um amor insaciável
pelo Belo, que tomara o poder de uma
paixão mórbida, vós não estranhareis
que, para tal homem, a vida tenha se
tornado um inferno, e que ele tenha
acabado mal; vós admirareis que ele
possa ter durado tanto tempo assim
(BAUDELAIRE, 1956, p.55/56, grifos do
autor, tradução nossa).
2
Edgar Allan Poe nasceu em Boston, Massachusetts, em 19 de janeiro de
1809, morreu em 7 de outubro de 1849. Era filho de um casal de atores, David
Poe e Elizabeth Arnold que se casaram em 1806. Em 1810, o pai desaparece de
cena, sem deixar indícios, confundindo os biógrafos. O fato é que ele deixa
Elizabeth desamparada, sozinha com dois filhos, Henry e Edgar, e grávida de
Rosalie. Assim, Elisabeth conjugava a vida de mãe com a vida nos palcos, mas
vivia em extrema pobreza em um quarto de uma pensão, quarto este onde
morreria em 1811. Henry fora entregue à custódia dos avós pouco antes,
enquanto Rosalie e Poe foram adotados por diferentes casais: os Mackenzie se
2
(...) une délicatesse exquise de sens qu´une note fausse torturait, une finesse de goût que tout,
excepté l´exacte proportion, révoltait, un amour insatiable du Beau, qui avait pris la puissance
d´une passion morbide, vous ne vous étonnerez pas que, por un pareil homme, la vie soit devenue
un enfer, et qu´il ait mal fini ; vous admirerez qu´il ait pu durer aussi longtemps. (BAUDELAIRE,
1956, p.55/56, grifos do autor)
13
ocuparam da menina, e Poe fora levado, ainda com dois anos, para casa de John
e Frances Keeling Valentine Allan.
A separação da irmã foi um outro golpe na vida do poeta, pois nutria por
ela o mesmo sentimento de proteção que nutria pela mãe, que ambas eram
figuras femininas, fragilizadas. Segundo a princesa e escritora francesa, Marie
Bonaparte (1882-1962), que estudou a obra do poeta por um viés psicanalítico,
Poe transferirá o amor materno para outras figuras femininas, primeiramente para
Rosalie, depois para uma namorada de infância, Catherine Potiaux, depois para
“Helen” e, finalmente, para Virgínia.
Em 1815, a família Allan viajou para a Inglaterra, levando o pequeno órfão
Edgar; de 1816 a 1817, ele frequentou um internato em Londres. Em agosto de
1820, a família volta à América
3
. A relação de Poe com John Allan, seu pai
adotivo, não era pacífica, ele gostaria que o filho fizesse Direito, se dedicasse
mais seriamente aos negócios, ao trabalho, mas Poe preferia as Letras, ler e
escrever. Em 1827, ele saiu de casa, e logo, em abril de 1829, a Sra. Allan
morreu, saudosa de seu “querido filho adotivo”. Por conta desse imbróglio com o
padrasto, Baudelaire, tendo vivido uma situação análoga, ao se referir ao poeta,
grafava Edgar Poe, inaugurando assim uma forma peculiar de nomear o poeta,
que seria mais tarde adotada pelos franceses de maneira geral. os americanos
e quase todo o resto do mundo acrescentam o nome Allan.
Em 1835, Poe viveu alguns meses em Baltimore, na casa da Sra. Mary
Clemm, uma de suas tias do lado paterno, e então conhece a prima, Virgínia, se
apaixona por ela e a pede em casamento.
E
sse casamento, para Poe, era uma
tentativa de viver finalmente com uma família.
O clã, apesar de unido, padeceu de duras penas. Os três Clemm, Edgar
e Virgínia moravam num casebre e viviam na miséria que, no campo
financeiro, Poe o obteve nenhum sucesso devido ao seu temperamento que o
levou ao isolamento profissional. Por outro lado, Virginia sofria de problemas de
saúde e viria a falecer em 1847.
3
Segundo a nota de rodapé de Ricardo ARAÚJO (2002) em Edgar Allan Poe, um homem e sua
sombra (p.28), apesar do que muitos biógrafos acreditam, Poe nunca teria viajado para o
estrangeiro a não ser na infância. As viagens que ele dizia ter feito, na verdade, seriam produto de
sua imaginação e seu primeiro biógrafo, teria acreditado em suas histórias, repassando-as para a
posteridade.
14
A morte de Virgínia foi outro golpe na vida de Poe e, assim, se entregou, de
corpo e alma, ao poder entorpecente do álcool:
O álcool foi um fator importante na vida do poeta. Na verdade, foi
um dos responsáveis pela sua prematura morte. Mas não foi o
único. Existiam outros. Um deles era a sua personalidade
ambígua, que se movia entre os antagonismos
alegria/melancolia, vida/morte, delicadeza/agressividade, mas
que era, antes de mais nada, uma personalidade sensitiva e
observadora (ARAÚJO, 2002, p.27).
Como afirma Baudelaire (1956), o uso de drogas, tanto do álcool quanto do
ópio, influenciou não a vida pessoal de Poe, mas também sua obra. Dado seu
poder entorpecente, a droga reveste “toda a natureza de um interesse
sobrenatural que confere a cada objeto um sentido mais profundo, mais voluntário
e mais despótico” (BAUDELAIRE, 1956, p.74, tradução nossa).
4
Os últimos meses da vida de Poe foram vividos de maneira alucinante: ele
procurava em cada bar, em cada taverna, em cada beco escuro, bêbados e
vagabundos que pudessem acompanhá-lo num trago.
Em 7 de outubro de 1849, foi encontrado por um velho amigo, o Dr. James
Snodgrass, “mais morto do que vivo” em frente a uma taverna; ele levou-o para o
hospital de onde não saiu vivo.
1.1.2 POE: O AUTOR
Sua biografia peculiar faz com que certos críticos coloquem Poe no divã
para analisar suas obras à luz de abordagens psicanalíticas, fazendo dele um
anormal, um neurótico e um louco.
4
« [...] le résultat de l´opium pour le sens est de revêtir la nature entière d´un intérêt surnaturel qui
donne à chaque objet uns sens plus profond, plus volontaire, plus despotique. » (BAUDELAIRE,
1956, p.74)
15
Porém, o que nesses casos não se compreende é que Poe era um exímio
conhecedor da alma humana, e ele se propôs devassá-la. Essa atitude
prometeica, que lembra a romântica, afastou-o por completo da sociedade:
[...] Poe acreditou estar acima do bem e do mal. De certa forma,
enfrentou o demônio da maldade, o ímpeto da perversidade. Ao se
colocar acima do bem e do mal, Poe pôde observar o universo todo
como uma unidade. Esse estar acima de tudo e de todos elevou-o a
uma posição olímpica (ARAÚJO, 2002, p.57).
Deve-se inteiramente aos franceses o reconhecimento de seu real valor.
Edmund Wilson (2004), em O Castelo de Axël, afirma que a descoberta de Poe
por Baudelaire foi de primordial importância para o Movimento Simbolista, uma
vez que, a partir das análises críticas de Poe, o poeta francês formulara os
primeiros escritos do que viria a ser esse movimento. As traduções de Baudelaire
e os três ensaios críticos que escreveu para acompanhá-las constituíram a fonte
primária da devoção dos simbolistas à obra de Poe.
O encontro literário entre Edgar Poe e Baudelaire foi, dessa forma, um dos
mais frutíferos já vistos, todos os temas profundos e experiências – solidão,
sonho, êxtase, paraíso artificial, obsessão pela morte Baudelaire partilhava com
o seu irmão espiritual, mais velho e mais maduro; além disso, encontrava nas
obras dele suas próprias ideias organizadas e sistematizadas antes mesmo de tê-
las, e dessa forma ele se dispôs a traduzi-las para o francês.
Baudelaire foi o responsável pela introdução de Poe no cenário literário
francês e este se tornou o arquétipo do poète maudit
5
, ou seja, o artista excêntrico
que vive à margem da sociedade burguesa, totalmente contrário aos seus
preceitos.
Segundo Arthur Nestrovski (1986), Poe fez muito sucesso entre os
franceses, pois, após a França ter perdido a primazia literária da Europa para a
Alemanha no culo anterior, os simbolistas enxergaram no autor americano,
renegado pelo seu país, e na sua proposta literária, a promessa de reavê-la. A
história mostrou que os simbolistas foram realmente visionários, que a
influência direta de Poe sobre a vanguarda literária francesa durou mais de 80
5
Poète maudit: em português, poeta maldito
16
anos: do movimento simbolista ao surrealismo. O mesmo NESTROVSKI (1986)
fornece três razões para o sucesso continuado de Poe entre os franceses: a
primeira seria o estilo da sua escrita, bem parecido com o da francesa, aliando
precisão, elegância e sensualidade; em segundo lugar estaria a lucidez da sua
obra mesmo ao tratar dos temas mais horripilantes, sua escrita é sempre
comedida; por fim, seu gosto pela crítica e teoria literária. De fato,
mesmo com nível cultural incerto, Poe incorpora uma predisposição
natural para a crítica, e aptidões intuitivas e analíticas de grande
força e eficácia. Da mesma forma que seu admirador Baudelaire,
este poeta se sente interessado pela obra alheia e procura explicá-
la para si mesmo ao mesmo tempo que a explica para o mundo
(CORTÁZAR, 1993, p.138-139).
Poe e Baudelaire também compactuam do mesmo princípio poético: a
beleza pura, ou seja, a finalidade da poesia não deve ser didática, mas puramente
estética, que o papel do poeta é revelar aos homens a beleza divina de que o
mundo palpável só oferece um pequeno extrato. Para Poe,
[...] um poema digno de nome comporta muitas vezes duas
correntes: uma de superfície, que é a poesia em toda sua beleza,
o tema livre de compromissos didáticos ou alegóricos, e uma
corrente subterrânea que a sensibilidade do leitor pode
apreender, e da qual emana um conteúdo moral, um valor
exemplar para a consciência (CORTÁZAR,1993, p.116).
O artista, para Poe, deve ser, ao mesmo tempo, poeta e matemático, pois
deve conjugar sua sede transcendental ao raciocínio de um estrategista para
provocar no leitor a exaltação da alma, e isto é possível se o texto for um
campo verbal autolimitado, com peculiaridades da forma cujo desfecho está
sempre em vista do autor para dar à trama um efeito de unidade e intensidade.
Segundo Dominique Combe (2003), tanto em Baudelaire como em Poe, a
descrição e a análise da poesia o regidas pelo modelo retórico aristotélico do
efeito produzido sobre o leitor ou o espectador; segundo esse modelo, o autor se
opõe às divagações e ao clichê da inspiração romântica em nome da intenção do
autor.
17
Quanto aos temas, o autor norte-americano tinha predileção por estórias de
mesmerismos e ressurreição elétrica, ou ainda estórias sobre perversidade –
todas coletadas em reportagens jornalísticas sobre transes hipnóticos,
sepultamentos prematuros, ou mesmo através de publicações científicas e de
novelas góticas germânicas de qualquer forma, a ênfase recai sobre o
sobrenatural, equilibrado pelo controle lúcido da escrita. Em Edgar Poe, sa vie et
ses oeuvres, Baudelaire (1968) revela que sua preferência por tais temas
sobrenaturais se deve a alguns aspectos recorrentes em suas obras, como a
angústia humana diante da Morte e o consequente sentimento de impotência
diante do destino, além da cólera do autor diante de uma civilização
extremamente materialista.
Eis que surge, assim, uma galeria de personagens que NESTROVSKI
(1986, p. 25-32) divide em algumas categorias, dentre as quais:
O estrangeiro: o ser que vive à margem da sociedade, à beira da
loucura, numa angustiante crise da consciência; nessa galeria de
personagens encontra-se o perverso que muitas vezes é vítima de
um impulso; sem procurar compreendê-lo, mergulha no abismo e se
destrói quando não ataca seu objeto de afeição.
O raisonneur
6
: um intelectual refinado e um crítico agudo das
instituições, reservado, antissocial, mas também um homem do
mundo; é a personagem típica dos contos policiais, cujo maior
expoente é Alfred Dupin.
As personagens femininas: são sempre belas, com uma certa
expressão do outro mundo; frágeis, mas não ingênuas;
apaixonadas, mas não abertamente sensuais; padecem de alguma
doença fatal, vivem um breve período de moléstia enquanto esta
progride, porém a morte nunca é absoluta pois, por vezes,
ressuscitam (como Lady Madeline) ou reencarnam (como Ligeia,
Eleonora ou Morella); de qualquer modo, sobrevivem nas
lembranças obsessivas do narrador.
O homem smico: aquele que viajou para fora do mundo em
rumo à visão do Ideal que jaz além.
6
raisonneur: em português, aquele que argumenta.
18
É interessante observar que cada uma dessas personagens concretiza
diferentes aspectos de seu principio artístico: o raisonneur, por exemplo,
representa a conversão da arte em atividade intelectual, as personagens
femininas, o temor à morte e a vontade de vencê-la, e, finalmente, o estrangeiro e
o homem cósmico que representam, respectivamente, a decadência da
consciência humana face ao apego excessivo ao materialismo e o seu anseio
para reaver o paraíso perdido, exilando-se num mundo Ideal.
Baudelaire, através da herança de Poe, fora o primeiro a explorar o tema
do exílio não mais como uma referência espaciotemporal da nostalgia romântica,
mas sim, tal como poeta, sentia-se exilado em pátria ao ver-se rodeado por uma
sociedade extremamente apegada ao que a tecnologia podia oferecer e à
matéria, perecível, volátil e degradável como nunca; por não possuir uma função
específica na engrenagem social, sentia-se à margem desta sociedade e se
evadia para o mundo da imaginação como forma de acessar o mundo Ideal, sua
pátria primeira, preferindo o sonho à ação.
Dessa forma, BALAKIAN (2000) aponta Baudelaire como o arquétipo do
“decadente” (fazendo referência ao decadentismo, movimento literário que muitas
vezes se confunde com o Simbolismo) pela sua visão pessimista do mundo,
acompanhada de uma inclinação estética marcada pelo subjetivismo, acrescida
da sua preocupação com o “gouffre”
7
, termo bastante empregado em suas
poesias. Segundo BALAKIAN (2000) o “gouffre” simboliza a fronteira entre o
visível e o invisível, o consciente e o inconsciente, a vida e a não vida, e marca a
estética simbolista e a atitude decadente por meio do apelo ao macabro, ao
sobrenatural, em última instância, ao fantástico.
O gosto pelos elementos sobrenaturais e fantásticos é, assim, reivindicado,
tanto em Poe como em Baudelaire, não como procedimento literário, mas
revela uma orientação metafísica e existencial. Não por acaso, o fantástico,
enquanto gênero literário, fora amplamente utilizado pelos simbolistas como meio
de expressar esteticamente a complexidade da alma humana como modo de
resistência à sociedade da época, impregnada pelo materialismo burguês.
Poe, desse modo, encontra voz em Baudelaire e terreno na França onde
sua obra fora difundida, e devidamente apreciada pelo seu rigor e inovação
7
gouffre : em português, abismo.
19
estética, bem como pela sua encarnação da figura do poète maudit. Assim, o
autor norte-americano influenciou toda uma geração de autores que procuravam
no requinte da forma a maneira de exprimir os conteúdos mais grotescos:
Edgar Poe servira de marco inaugural. E, a partir daí, Baudelaire,
Villiers e Mallarmé captaram o sentido mais amplo dos textos de
Poe e, cada um à sua maneira dispôs-se a partir para a aventura
do Novo (GRÜNEWALD, 2001, p.13).
1.2 VILLIERS: O HOMEM E O AUTOR
Criar e viver seu sonho, exprimi-lo em
símbolos graças aos quais outros, por sua
vez, serão capazes de recriá-lo,
escancarar as portas do ideal, eis o que
quis e o que realizou Villiers de l' Isle-
Adam
(MICHAUD, 1966, p.89, tradução nossa)
8
“Viver? Os criados farão isto por nós.” Como aponta Grünewald (2001),
essa frase da personagem Axël, da obra homônima de Villiers de l’ Isle-Adam,
tornou a personagem célebre na história das citações literárias. Quando se trata
de literatura simbolista do final do século XIX, Axël é o protótipo do herói
simbolista que prefere a inação à vida e opta pelo suicídio como meio de protesto
ao rejeitar a mesquinhez da sociedade burguesa. Assim, a opção drástica da
personagem conota o empenho do autor em “rejeitar o imediatismo como moeda
corrente na onda de transformações incessantes que, arrastando inúmeras
contradições, acabava por atingir valores até então indivisos.” (GRÜNEWALD,
p.11, 2001)
Como aponta Marcos Siscar (2006), no posfácio da tradução brasileira da
obra Axël:
8
« Créer et vivre son revê, l’exprimer dans des symboles grâces auxquels d’ autres seront
capables de le recréer à leur tour, ouvrir toutes grandes les portes de l’ idéal, voilà ce qu’ a voulu et
ce qu’a réalisé Villiers de l’Isle-Adam » (MICHAUD, 1966, p.89)
20
O suicídio não é sinônimo de filosofia ou de lei de autodestruição.
Ele intervém, no contexto da enunciação, exatamente como a
ruptura com a lei irrestrita do gozo dos sentidos, a lei da pura
sensualidade, dos limites do materialismo como horizonte do
progresso. Do modo como é apresentado, o suicídio é um ato de
insubmissão, de rebeldia, mais do que um abandono. (SISCAR,
2006, p.216)
Assim, Villiers, de origem aristocrática, não se encaixava na ordem
burguesa vigente e sempre estava em busca de uma realidade superior, e ele a
encontrava na sua imaginação, na sua criação poética. E é justamente neste
ponto que Edmund Wilson, em Castelo de Axël (2004), o distingue do poeta
francês Arthur Rimbaud (1854-1891): se este exilava-se deslocando-se
espacialmente, Villiers se exilava na sua própria imaginação, criando castelos
longínquos e personagens herméticas. No exílio de cada personagem está a
intenção de buscar em si mesmo o Absoluto, o mundo Ideal:
[...] a palavra Absoluto, sempre grafada em maiúscula,
perseguia-o, em todos os seus textos, a fim de alcançar, pela
escritura, a bolha perdida a que chamou de ideal; palavra que,
hoje, dissolveu-se no vazio, mas que na época, marcava o
inflexível desejo da indivisível permanência. Nisso consiste o
sentido da réplica de Axël, que denuncia a impossibilidade de
qualquer pacto com a fragilidade provisória (GRÜNEWALD, 2001,
p.11-12).
Villiers é, assim, “o guardião do ideal”
9
, suas obras serão a expressão
máxima da revolta contra os valores burgueses, associados ao excessivo apego
ao mundo material. Grande herdeiro de Poe, o autor francês, encontraria no apelo
ao mórbido, ao fantástico, o meio de aceder o “Au-delà”, domínio do Ideal.
Dessa maneira, deixamos à disposição uma sucinta biografia de Villiers de
l’Isle-Adam, aos moldes do que fizemos com Edgar A. Poe, para que nossos
leitores possam conhecer um pouco da sua emblemática trajetória em meio (e
contra) a sociedade materialista que ele frequentara.
9
GOURMONT apud Michaud, 1966, 83.
21
1.2.1VILLIERS: O HOMEM
Um ‘moderno’ como Baudelaire?Não. Mas
somente e essencialmente um inadaptado
[...]. Desde sua infância, ele toma o hábito
de viver fora do mundo real. Nele, nenhum
conflito interior, parece; nenhum traço do
tormento baudelairiano, do dilaceramento
da alma moderna. O conflito é, e será,
cada vez mais, entre sua alma e o mundo
que o rodeia.
(MICHAUD, 1966, p.82, tradução nossa,
grifo do autor)
10
Filho único do marquês Joseph-Toussaint e de Marie-Françoise Le Nepvou
de Carfot, Jean-Marie-Mathias-Philippe-Auguste, o conde de Villiers de l’Isle-Adam,
nasceu em Saint-Brieuc, França, em 07 de novembro de 1838. De berço
aristocrático, era herdeiro autêntico dos Cavaleiros de Malta
11
, descendia de uma
família cujas raízes remontavam ao século XII e empobrecera a partir da Revolução
Francesa.
Em 1846 é pronunciada a separação de bens que sua mãe, diante das
extravagâncias financeiras do marquês, pedira em 1843. A partir dessa data a
família passa a viver à custa da Senhorita Kérinou, tia-avó de Villiers, que
posteriormente financiará alguns de seus projetos literários. Até 1855, Villiers faz
seus estudos como aluno interno e externo e, também, com preceptores
eclesiásticos, sem, contudo, chegar ao “baccalauréat”. Entre 1855 e 1858, é
conduzido pela família a Paris onde frequenta teatros, cafés e sonha tornar-se autor
dramático. É em 1859 que a família se instala definitivamente na capital e Villiers se
introduz nos meios literários. Conhece então Baudelaire, Alexandre Dumas e
pintores, tais como Courbet e Manet, e começa, com maior elegância, a frequentar
10
“Un ‘moderne’ comme Baudelaire ? Non. Mais seulement et essentiellement un inadapté.[...]
Dès son enfance, il prend l’ habitude de vivre hors du monde réel. Chez lui, point de conflit
intérieur, semble-t-il ; point de traces du tourment baudelairien, du déchirement de l’ âme moderne.
Le conflit es, et sera, de plus en plus, entre son âme et le monde qui l´entoure. » (MICHAUD,
1966, p.82, grifos do autor)
11
O nome de Philippe Auguste emergia do século XVI, de um antepassado que se celebrizou na
defesa de Rodes contra os turcos, façanha que lhe valeu o título de grão-mestre da Ordem de
Malta, outorgado pelo rei da Grécia.” (GRÜNEWALD, 2001, p.18)
22
círculos literários e ocultistas, aos quais sua presença era imprescindível. Como
afirma GRÜNEWALD (2001), ninguém sabia das situações iníquas às quais teve de
se submeter para poder sobreviver, como aceitar emprego em um hospício ou em
um ringue de boxe, ou escrever seu primeiro romance, Ísis (1862), à luz de vela, em
um quarto onde somente existia um catre.
Segundo DOMINGOS (2009), a vida de Villiers é muito obscura entre 1870
e 1880, e nesse período, sua atividade literária reduz-se consideravelmente. Essa
situação só iria modificar-se a partir de 1880, quando foram publicados e reeditados
vários de seus contos:
O sucesso de sua produção literária nesse período se deve ao
novo espírito que se instaurava na época, o qual revelava um
cansaço do público para com o que lhes ofereciam os realistas e
os naturalistas, bem como um certo descontentamento para com
a banalidade presente nas formas dos romances populares
(DOMINGOS, 2009, p.24).
Porém, sua consagração como um dos grandes autores franceses veio
com a publicação de Contes Cruels em 1883, ao qual viriam se juntar à obra os
contos “Claire Lenoir”, “Intersigne” e “Véra”.
Alan Raitt (1968) em Villiers de lIsle-Adam et le mouvement Symboliste
afirma que foi no domínio teatral que Villiers contribui de maneira fulcral para o
estabelecimento de uma nova estética, a simbolista, visto seu desejo de reformar
o gênero estabelecendo um teatro metafísico de cunho filosófico.
Sua obra mais conhecida nessa área é Axël, publicada em 1890, tida como
uma espécie de longo poema dramático em prosa que antecede o Simbolismo,
preanunciando os elementos da nova estética, que nele ainda se encontram
elementos do teatro romântico. Ela começou a ser concebida quase vinte anos
antes de sua encenação em 1894. Em 1887, Villiers trabalha ainda sobre a obra,
mas, muito doente, vítima de um câncer, é hospitalizado em 12 de julho de 1889,
e morre em agosto deste mesmo ano, deixando Axël inacabada.
Geneviève Jolly (2002), em Dramaturgie de Villiers de l’ Isle-Adam,
corrobora a visão de RAITT (1968) e defende que o autor fora, nesse domínio, o
mais inventivo de sua época e apesar da sua consagração à produção dramática,
ele continua um dramaturgo desconhecido e considerado de menor importância.
23
JOLLY (2002) afirma que toda uma geração fora influenciada pela originalidade
de seu teatro [como o dramaturgo belga Maurice Maeterlinck (1862-1949)] e que,
mesmo depois de sua morte, muitas das suas peças foram adaptadas para o
teatro e para a televisão. Dessa forma, seu teatro é revolucionário o somente
porque traduz a atmosfera de uma época, mas porque permite compreender o
théâtre de la parole
12
que se escreve e encena hoje em dia.
Dessa forma, o Conde Villiers de l’Isle-Adam, relegado à miséria, se pôs
contra a sociedade materialista vigente, e o fez ironizando-a e rejeitando-a,
encontrando refúgio na Arte, sua torre de marfim.
1.2.2 VILLIERS: O AUTOR
De estrato marcadamente místico, as obras de Villiers denunciam as
ilusões humanas daqueles que creem viver plenamente do gozo do mundo
sensual. Assim, através da sátira, dos seus mitos fantásticos, a obra villieriana
intenciona fazer o leitor refletir justamente sobre os problemas que o positivismo
descarta, e tirar a criatura humana da sua condição miserável e transportá-la ao
Absoluto, ao Eterno:
O vazio do paraíso perdido é preenchido pelo poder criador do
homem é ele quem deve dar significado às palavras. A ruptura
entre o homem e o absoluto acontece à medida que, para Villiers,
um véu que sempre esconde a verdadeira significação. Esta
última é interior, reside, na imaginação e na capacidade criativa
(GRÜNEWALD, 2001, p.35).
Assim, através de sua arte, ele se afasta da mediocridade da sociedade
materialista para refugiar-se, com os “olhos voltados para o interior em busca de
uma realidade menos aparente”
13
, no mundo da imaginação, o terreno do Ideal.
Com uma atitude prometeica, similar à de Poe e Baudelaire, ele reivindica para
12
théâtre de la parole: do francês, teatro da palavra, e remete a um novo conceito de teatro que se
incompatibiliza com a tradição do teatro burguês, que priorizava a ação e o diálogo.
13
« (...) les yeux tournés vers l´intérieur en quête d´une réalité moins apparente » (Michaud, p.81,
1966, tradução nossa)
24
si a missão de reformar o mundo real e de proteger o ideal, procurando a
verdade da essência humana, distinta da positivista, na própria alma.
Ele anseia, desse modo, uma produção literária em que cada palavra é
escolhida de maneira a fazer o leitor aceder a esse Ideal, resultando em uma
obra rica em apelos sinestésicos e sonoros. Daí sua importância para os autores
simbolistas.
A ironia também é uma marca indelével de Villiers. Segundo DOMINGOS
(2009) o uso da ironia em Villiers se deve à influência de Baudelaire e
representa muito mais uma atitude perante a vida, fruto da angústia de sua
inadaptação ao mundo real, do que propriamente um procedimento literário.
Segundo a autora, o spleen baudelairiano também é presença marcante nas
obras villierianas e remete-se à fuga pelo sonho, resultante do ceticismo diante
de realidade palpável, acrescido a um total desprezo para com ela. Essa atitude
referente à de um poète maudit, tomada posteriormente pelos
simbolistas/decadentistas, ultrapassa as barreiras da literatura e se torna um
modo de viver, com o dandismo. Os ndis, donos de linguagem refinada e
apreciadores das artes, encarnados por Baudelaire e também por Villiers,
surgiram para distinguir aqueles, dotados de espírito aristocrático, da
vulgaridade da burguesia, incorporando e vivenciando o ideal estético.
O dandismo é o sol poente; como o astro que se declina, é
magnífico, sem calor e cheio de melancolia. Mas infelizmente a
maré montante da democracia, que invade tudo e que tudo nivela,
afoga dia a dia esses últimos representantes do orgulho humano e
despeja vagas de esquecimento sobre os vestígios desses
prodigiosos mirmidões. (BAUDELAIRE, 2006, p. 872)
Baudelaire, assim, influenciou amplamente Villiers não somente ao que se
refere às questões místicas e metafísicas mas, também, estéticas. Porém, foi
via Edgar Allan Poe que essa influência se tornou mais profícua.
Villiers esteve associado a Poe desde os primórdios de sua carreira
literária. Após a morte de Baudelaire, de quem também era amigo, foi o próprio
Villiers que se encarregara de difundir Poe para as novas gerações.
Possivelmente foi assim que o dramaturgo Maurice Maeterlinck foi introduzido à
obra do “mestre” Poe. Se Mallarmé se ocupou de interpretar a poesia e as ideias
estéticas poeanas e difundir sua imagem de matemático lúdico, Villiers foi o
25
intérprete de suas obras narrativas, propagando para o mundo o metafísico do
medo, o poeta do sobrenatural, da morte e do terror. O resultado final (e feliz)
dessa comunhão de espíritos pode ser conferido em Contos Cruéis de Villiers de
l’Isle-Adam.
Podemos observar, nessa reunião de contos, que a morte perpassa por
todas as obras, porém ela vem tratada menos como a aniquilação da matéria do
que como outro meio de se evadir da realidade de modo a atingir o Absoluto. Seja
em Poe, como em Baudelaire ou Villiers, a morte é ao mesmo tempo a grande
desconhecida e a grande esperança do retorno à tria; sendo assim, em Villiers,
todas as suas obras são permeadas pela mística da morte e pela sua obsessão:
Uma só realidade o preocupa: a morte e se ele recebeu do
Romantismo, de Poe e de Baudelaire o gosto pelo macabro, este
macabro exprime o sarcasmo de um homem que aprendeu a
julgar tudo do plano do Eterno. E é nessa constante visão da
morte que se unem, em Villiers, o sonhador, o irônico e o filósofo
(MICHAUD, 1966, p.87, tradução nossa).
14
O seu gosto pelo macabro, herdado de Poe, encontrou no gênero
fantástico um terreno fértil para se propagar. Ao estimar que a imaginação seja a
primeira qualidade que o fantástico exige de um escritor, pode-se dizer que
Villiers, assim como Poe, o escritores fantásticos por excelência. Para exprimir
suas criações, Villiers elege, várias vezes, o conto. É indispensável reconhecer,
aqui também, a grande influência de Poe; “conteur” extremamente hábil, ele
acreditava que a brevidade do conto e seu estilo lacônico tinham a capacidade de
submeter o leitor à vontade do autor. Ora, se o fantástico depende justamente da
habilidade de o autor convencer o leitor a entrar em um mundo diferente do real, o
conto é eleito como a forma de expressão mais requisitada por aqueles que se
dedicaram a esse gênero literário. Fiel ao seu precursor, Villiers encontra seu
estilo ideal, transformando-se em um dos grandes autores fantásticos da segunda
metade do século XIX.
14
« Une seule realité le préoccupe : la mort, et s’ il a reçu du Romantisme, de Poe et de
Baudelaire le goût du macabre, ce macabre exprime chez lui le sarcasme d’ un homme qui a
appris à tout juger du plan de l éternel. Et c’ est dans une constante vision de la mort que
s’unissent, chez Villiers, le rêveur, l’ironiste et le philosophe. »
26
Grande também foi sua influência entre os simbolistas. Como foi
anteriormente dito, a marca do Simbolismo e da atitude decadentista é o desgosto
para com a realidade tangível e o consequente refúgio para o mundo dos sonhos;
ora, é justamente essa nostalgia do “Au-delà” que se faz sentir em grande parte
das obras de Villiers e é traduzida esteticamente pelo apelo à linguagem poética,
contrária à linguagem quotidiana que se revela impotente e incapaz de traduzir a
rica complexidade dos estados de alma, pelo seu tratamento melódico, graças ao
poder sugestivo da música. Villiers, assim, com sua prosa marcadamente poética
é apontado como um dos precursores desse movimento que, por sua vez, se
propunha a ascender ao mundo da imaginação pelo poder invocatório da
linguagem poética de estrato musical. Como afirma DOMINGOS (2009, p.25,
grifos da autora):
Villiers de l’Isle-Adam é reconhecido, desde a época do
Simbolismo, como um dos formadores do movimento e, pela
crítica recente, considerado seu precursor por sua filosofia, seu
estilo, sua obsessão pelo Au-delà”, suas críticas contra a
sociedade de seu tempo e seu idealismo cristão. Villiers não é, de
fato, um dos inventores da estética simbolista, sua influência
ocorreu em outros domínios. Inspirou os jovens do movimento
por suas escolhas literárias, seus mestres, sua postura diante da
vida e suas angústias. No plano estético, mostra-se importante no
que tange à relevância que atribuía às relações entre a música e
a poesia e, no ideológico, sobretudo ao que concerne à
metafísica simbolista.
1.3 A ANGÚSTIA DA COMPARAÇÃO
Segundo CARVALHAL (2006), “comparar é um procedimento que faz parte
da estrutura do pensamento do homem e da organização da cultura”
15
. Assim, é
um recurso analítico e interpretativo que está a serviço do estudo literário e, é
claro, de outras diferentes áreas do saber humano. E, como o propósito do
presente estudo é analisar obras de dois autores de diferentes nacionalidades,
15
BORGES Apud CARVALHAL, 2006, p.6
27
lançar-se-á mão desse recurso para melhor integralizá-lo. Porém, tal recurso pode
ser concebido de diferentes formas como conta a história da literatura comparada.
Primeiramente, os chamados comparativistas clássicos estabeleciam a
analogia entre as obras, identificando as semelhanças entre elas; entretanto,
instalava-se uma relação de dependência cultural para com a obra dita “original”;
observando a estigmatização da obra mais recente. Harold Bloom (1991), em A
angústia da influência, elucida que entre os autores existe sempre uma relação
conflituosa e angustiante como a luta de Édipo com o seu pai, Laio; assim, o
sistema seria uma espécie de complexo de Édipo do criador levando à “angústia
da influência”.
Por sua vez, o poeta britânico norte-americano T.S.Elliot (1888-1965)
propõe a comparação vista sob outra perspectiva, a da diferença, ou seja, para
ele o conceito de originalidade está associado à subversão da tradição:
O texto inovador é aquele que possibilita uma leitura diferente
dos que o precederam e, desse modo, é capaz de revitalizar a
tradição instaurada (CARVALHAL, 2006, p.63).
Nessa mesma linha de pensamento, J. L. Borges acredita que “cada
escritor cria seus precursores”. Dessa forma, o que deve ser ponto de referência
obrigatório no parâmetro do estudo literário é o texto que revoluciona a ordem
estabelecida e obriga à releitura da tradição.
Porém, ao se preocupar somente com a peculiaridade de cada obra, o
crítico perde de vista a importância com que a história e a tradição contribuíram
para sua constituição, ao passo que o estudo comparativista que privilegia o
estudo das semelhanças sem se ocupar das eventuais diferenças também perde
de vista a determinação da peculiaridade de cada autor e os procedimentos
criativos que caracterizam a interação entre eles; sendo assim, o ideal seria
conjugar esses dois tipos de procedimentos em benefício do equilíbrio do estudo
da obra/ autor em si. E é dessa forma que se procurará proceder nesse presente
estudo uma vez que a riqueza dos dois autores, Poe e Villiers, se encontra
justamente na contribuição de suas obras para a posterioridade por meio da
originalidade de suas criações ao aproveitar o que a tradição lhes havia
deixado.
28
Villiers, assim, toma Poe como seu mestre e aproveita de toda sua
genialidade em nome da criação de uma obra com sua marca pessoal. É o que se
nota em “Ligeia” (1838) e “Véra” (1876): a semelhança entre os dois contos é
marcante e fora assinalada por vários teóricos, porém, o presente estudo
procurará mostrar que, apesar das confluências, sobretudo temáticas, cada um é
tratado à sua maneira, propiciando maior diversidade no panorama literário de
meados do século XIX que, por sua vez, engendrará o movimento simbolista,
preconizado pelos autores em questão.
1.4 O MOVIMENTO SIMBOLISTA
Nous faisons l’expérience concrète
de
notre double nature,
nous vivons la nostalgie de
l’innocence et la réalité de la
chute .(MICHAUD,1966,p.17).
16
Segundo Guy Michaud (1966), a proposta do Renascimento era restituir a
unidade do homem medieval, cindida pelo excessivo apego ao mundo espiritual,
devolvendo à alma cristã o interesse pelo mundo concreto, mas o apelo à
natureza sensível foi tão intenso que o mundo foi reduzido à medida do homem
17
.
Esse processo culminou no Iluminismo, movimento artístico e filosófico, que
primava pelas ideias de progresso e perfectibilidade humana, assim como pela
defesa do conhecimento racional como meio para a superação de preconceitos e
ideologias tradicionais.
O apogeu deste movimento foi atingido no século XVIII,
que passou a ser conhecido como o Século das Luzes
Em contrapartida, o Romantismo veio aplacar o materialismo vigente e,
por sua vez, se propôs restituir a harmonia da condição humana, agora absorta
no despotismo da razão, fazendo apelo ao místico, recorrendo ao sonho e
recuperando o lado espiritual do homem:
16
“Nós fazemos a experiência concreta de nossa natureza dupla, vivemos a nostalgia da
inocência e a realidade da queda” (MICHAUD, 1966, p.17, tradução nossa)
17
« [...] on réduisit le monde à la mesure de l’homme » (MICHAUD, 1966, p. 19, tradução nossa)
29
[...] quando o materialismo crescente que os rodeia se torna
excessivamente pesado: tem-se a nostalgia do espiritual. Dessa
forma, no próprio seio dessa sociedade inebriada de verdade, de
harmonia e de felicidade, mas por demais devotadas
exclusivamente à realidade visível, nasce uma revolta: revolta da
intuição contra uma lógica despótica, revolta do sentimento e da
alma contra uma razão cega pelos seus sucessos, revolta das
profundezas do ser contra “as coisas consideradas sérias”, o
culto das aparências vulgares, a moral e o bom senso burguês.
(MICHAUD, 1966, p.20, tradução nossa, grifo do autor).
18
Se a característica dos românticos era procurar a experiência no amor, nas
viagens, na política, os simbolistas, ao contrário, refugiavam-se no mundo da
imaginação, sua torre de marfim, em atitude de protesto contra a sociedade
corrompida pelo excessivo apego ao material. No que toca ao aspecto do
engajamento político e social, o Simbolismo se aproxima mais do Naturalismo e
se opõe ao Romantismo: assim, quando o simbolista projeta sua ideia de destino,
aproxima-se do naturalista, que acredita que o ser humano é determinado pelo
meio e condições em que vive. Mas enquanto o naturalista continua inserido no
mundo social, o simbolista recolhe-se no mundo intrassubjetivo, o que garante o
afastamento do poeta em relação à sociedade: com a consolidação da burguesia
no poder e o consequente apogeu da sociedade capitalista e utilitária, parecia
inútil ao poeta opor-se lhe, assim ele se afasta dessa sociedade, hostilizando-a. E
“fazia quanto pudesse para ignorá-la, para manter a imaginação inteiramente
livre” (WILSON, 2004, p.189).
Desse modo, apesar de o Simbolismo ter sido profundamente influenciado
pelo movimento romântico, ele o pode ser considerado como um mero
prolongamento deste. Ele irradia por meio de alguns elementos base o símbolo,
o sonho, o mito, o inconsciente a sensibilidade estética e as aspirações
metafísicas.
18
« quand le matérialisme grandissant du monde qui les entoure leur pèse trop : ils ont la nostalgie
du spirituel. Ainsi, au coeur même de cette société ivre de vérité, d’harmonie et de bonheur, mais
trop exclusivement vouée à la réalité visible, naît une révolte : volte de l’intuition contre une
logique despotique, révolte du sentiment et de l’âme contre une raison aveuglée par ses succès,
révolte des profondeus de l’être contre ‘les choses dites sérieuses’, le culte des apparences
vulgaires, la morale, et le bon sens bourgeois ». (MICHAUD, 1966, p.20, tradução nossa, grifo do
autor)
30
O Simbolismo nasceu na França na última parte do século XIX e alcançou
seu auge na década situada entre 1885 e 1895. Historicamente, este movimento
é contextualizado num momento de transformações políticas e sociais advindas
do desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da luta de classes entre
burguesia e proletariado, resultante da expansão urbana, do êxodo rural e da
grande miséria do mundo operário. Acrescido a esse clima de incertezas e
desconforto social, o iminente fim do século anunciava, em uma perspectiva
apocalíptica, o fim dos tempos:
Tudo parece indicar que a idade moderna é uma dessas idades
de instabilidade, dúvida, inquietude, de questionamento de todas
as crenças e todos os valores; o indivíduo reivindicador de seus
diretos e do seu lugar, mas, geralmente incapaz de se controlar,
permanecendo escravo de seus hábitos mentais, nervosos e
físicos: o homem jamais pareceu tão cindido. E a crise pela qual
o mundo passa é tão somente a projeção do nosso caos interior
(MICHAUD, 1966, p.18).
19
Segundo Sigmund Freud (1996, p.96), em O Mal Estar na Civilização,
civilização se refere à “soma integral das realizações e regulamentos que
distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais”; assim, sua
história baseia-se num fundamento duplo: a compulsão para o trabalho, criada
pela necessidade externa, e o poder do amor, mecanismo interno pelo qual o
homem fundou a família baseando-se nos seus instintos sexuais. Dessa forma,
conclui Freud, Eros e Anankê
20
(na mitologia clássica Amor e Necessidade) se
tornaram os pais também da civilização humana. Porém, a sua evolução,
completa o pai da psicanálise, se deu na luta entre Eros e a Morte:
19
« Tout paraît indiquer que l’âge moderne est de ceux-là. Instabilité, doute, inquiétude, remise en
question de toutes les croyances et de toutes les valeurs ; l’individu revendiquant ses droits et sa
place, mais généralement incapable de se maîtriser et restant esclave d’habitudes mentales,
nerveuses et physiques : jamais l’homme semble-t-il, n’a été aussi divisé. Et la crise où se débat le
monde n’est que la projection de notre chaos intérieur. » (
MICHAUD, 1966, p.18,
tradução
nossa)
20
Na mitologia grega, Ananke era a mãe das moiras e a personificação do destino, necessidade
inalterável. Ela era raramente adorada até a criação da religião mística de Orphic. Em Roma, ela
se chamava Necessitas ("necessidade").
31
Agora, penso eu, o significado da evolução da civilização não
mais nos é obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a
Morte, entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como
ela se elabora na espécie humana. Nessa luta consiste
essencialmente toda a vida, e, portanto, a evolução da civilização
pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie humana
pela vida (FREUD, 1996, p.126).
A consciência realista da morte como lei inelutável assombra a
humanidade desde os seus primórdios. Embora a morte, nos vocabulários
arcaicos, não exista como um conceito, ela, desde então, encerra a ideia de
aniquilamento do ser. Dessa forma, a morte está diretamente ligada à perda da
individualidade. Porém, a dor, o terror e a obsessão provocados por essa ideia
aumentam à medida que a afirmação do indivíduo se coloca como motor
propulsor da evolução e do progresso da civilização. Com o progresso científico,
com a consolidação do capitalismo financeiro, o homem da segunda metade do
século XIX acreditava estar no auge do processo civilizatório, evidenciando-se o
culto do “eu”, do individualismo, que fora consagrado como valor absoluto pela
revolução burguesa. Assim, o indivíduo se isola e se fecha em si mesmo; essa
ruptura das participações remete ao isolamento, que remete à angústia que, por
sua vez, leva à obsessão da morte. Essa colisão do indivíduo com a morte é
determinada pela recusa da lei da natureza, fruto da inadaptação do indivíduo
humano à sua própria espécie.
Se o Romantismo se recusa a acreditar que o ser humano é apenas uma
peça da grande máquina que é o universo, o Simbolismo também renega o
determinismo darwiniano, e recoloca o indivíduo no centro do mundo. Dessa
forma, a morte, como ideia de aniquilamento da individualidade, leva os poetas a
uma crise metafísica; sendo assim, muitos se refugiam na crença da imortalidade:
a sobrevivência da individualidade depois da morte do corpo.
Assim, o homem, amortalhado no mistério terreno, submetido ao destino e
às forças terrestres sobre as quais não tem controle, é marcado pela tendência de
reduzir a vida à inação, a um niilismo que se traduz na fixação da morte como
libertação:
Na literatura, obras inteiras são marcadas pela obsessão pela
morte; se até então o tema era envolto nos temas mágicos ou
32
recolhido e velado na participação estética, agora ela aparece
nua e crua (MORIN, 1970, p.266).
No domínio artístico, também se testemunha uma crise que faz eco à crise
social: a crise da representação. Se na Antiguidade Clássica a relação
poeta/público leitor era estreita, já que todos compactuavam do mesmo valor
moral e estético, transmitido pelo conceito aristotélico de mimésis, na metade do
século XIX, essa relação sofre um colapso (processo iniciado com a Revolução
Romântica no século XVIII), que a arte não almeja a representação, nem a
comunicação, mas sim, a expressão do eu lírico:
Eu acho inútil e fastidioso representar o que é, pois nada do que
existe me satisfaz. A natureza é feia e eu prefiro os monstros da
minha fantasia à trivialidade positiva. (BAUDELAIRE, 1956,
p.136-137, tradução e grifo nosso).
21
O poeta solitário, portanto, refugia-se no mundo do sonho, na torre de
marfim, divorciando-se da sociedade, o que lhe garante um hermetismo poético
que é alcançado pelo poeta francês Stéphane Mallarmé (1842-1898).
Esse hermetismo se uma vez que, diante da impossibilidade de
apreender a realidade caótica, o poeta recorre aos símbolos para fazê-lo, e é por
isso que a estética referente a esse momento literário é chamada de Simbolismo.
Como Michaud descreve em Langage poétique et musique
22
, a necessidade de
um novo principio estético advém do fato de que a linguagem cotidiana se revela
incapaz de exprimir o que se pensa e, sobretudo, o que se sente; surge, então, a
necessidade de uma linguagem capaz de traduzir a complexidade dos estados de
alma, e essa linguagem está além dos signos usuais e reivindica o símbolo que é:
uma síntese, pois nele mesmo o símbolo exprime ao mesmo
tempo diferentes graus de realidade, ou mais exatamente, ele
exprime verdades que são válidas ao mesmo tempo em
diferentes planos. Uma síntese viva’, pois ela une na sua
complexidade todos os aspectos da vida. São esses sentidos
múltiplos e hierarquicamente superpostos que fazem do
Simbolismo a linguagem iniciática por excelência: linguagem
21
« Je trouve inutile et fastidieux de répresenter ce qui est, parce que rien de ce qui est ne me
satisfait. La nature est laide, et je préfère les monstres de ma fantaisie à la trivialité positive. »
(BAUDELAIRE, 1956, p. 136-137)
22
Vide MICHAUD, 1966, p. 410-412
33
plurívoca cujas ressonâncias e possibilidades são infinitas, que
elas se exercem simultaneamente em uma infinidade de
domínios (MICHAUD, 1966, p.415).
23
Assim, a poesia não é mais mimese, seu princípio estético não tem mais
como finalidade representar, mas suscitar, sugerir, provocar. A sugestão, dessa
forma, rompe com os preceitos de argumentação e persuasão da retórica
clássica, fazendo com que cada poema seja um enigma. Como diz Mallarmé
(1891):
Nomear um objeto é suprimir os três quartos do desfrutar do
poema que é feito da felicidade de adivinhá-lo pouco a pouco;
sugeri-lo, eis o sonho. Este é o segredo da poesia. Sugerir
(MALLARMÉ, 1945, p.869, tradução nossa).
24
O que vem selar o desconcerto do poeta com a realidade, e o que vem
garantir a expulsão do poeta da sociedade, encerrando a ideia de “poeta maldito”.
Nessa perspectiva, o protótipo do homem solitário é encarnado plenamente
por esses poetas, espíritos mais sensíveis, que ao visualizarem o poder da morte
se refugiam na crença da imortalidade como ideia de salvação.
Sendo assim, muitos foram os que fecharam os olhos e se refugiaram no
misticismo e no mundo dos sonhos e é dessa forma que emerge o espírito
decadente e o decadentismo.
O decadentismo caracterizou muitas poesias e prosas simbolistas, nas
quais os autores se colocavam como testemunhas de um universo em
decadência, de um fin de siècle”, que seria, também, o fim do mundo. O espírito
decadente representa o cansaço de uma civilização entediada que se julga estar
no ocaso, e sendo assim, sempre está à busca de situações novas, estejam elas
no extravagante, no rbido ou no requinte da forma. O artista decadente, por
23
« Une synthèse, car en lui même le symbole exprime à la fois différents degrés de réalité, ou
plus exactement il exprime des vérites qui sont valables à la fois sur différents plans. Une
« synthèse vivante », car elle unit dans leur complexité tous les aspects de la vie. Ce sont ces sens
multiples et hiérarchiquement superposés qui font du symbolisme le langage initiatique par
excellence : langage plurivoque, dont les résonances et les possibilités sont infinies, puisqu’elles
s’exercent simultanément dans une infinité de domaines. » (
MICHAUD, 1966, p.415,
tradução
nossa)
24
« Nommer um objet est supprimer les trois quarts de la jouissance du poème qui est faite du
bonheur de deviner peu à peu ; le suggérer, voilà le rêve. Tel est le secret de la poésie. Suggérer »
(Vide MALLARMÉ, 1945, p.869, tradução nossa)
34
sentir exausta a força criadora, evade-se para o mundo da imaginação sensual.
Nesta forma de misticismo, a alma torna-se, então, um produto terrestre que
reconhece o abismo em que vive a consciência humana.
Nessa mesma perspectiva, Balakian (2000) define decadência como a
habilidade de transmitir, mediante imagens, o estado de espírito de inquietação
misteriosa e metafísica e o lírico sentido do destino. Assim, ser decadente não
implica uma questão moral, mas sim, metafísica, artística. O decadente é o
arquétipo do homem amortalhado no mistério terreno, submetido ao destino e às
forças terrestres sobre as quais não tem controle. Ele é marcado pelo excessivo
ennui”, pela aguda sensibilidade, pelo olhar enclausurado e pela tendência de
reduzir a vida à inação e ao sonho. E assim o é quando pressente a morte a
grande intrusa –, a passagem do tempo, o “fin de siècle”.
Sendo este poeta altamente consciente dessa crise espiritual, ele é, muitas
vezes, compelido a converter-se a uma religião e a redescobrir Deus, ora por
causa de sua alma, ora para salvar sua arte de um estado de exaustão. A poesia,
assim, se aproxima da mística, que ambas almejam reencontrar em Deus o
absoluto:
[...] a poesia é uma verdadeira religião. Não somente porque ela
‘constitui a única tarefa espiritual’, porque ela é, não um jogo,
mas ‘um indefectível sacerdócio’,e os poetas são, dessa forma,
os ‘ordenadores das festas sagradas da verdade e da justa
alegria’, porque ela é ‘a expressão humana da noção divina’, e
porque, fazendo ela também um constante apelo à unidade, ‘seu
caminho vai em direção ao absoluto, seu alimento não é
senão a eternidade’
(MICHAUD, 1966, p.416, grifo do autor).
25
Dessa forma, o tema central do Simbolismo se faz na luta contra o vazio,
quando se visualiza o poder da morte sobre a consciência da individualidade. A
poesia simbolista, logo, não poderia ser separada da metafísica, e desta extrai
todo seu substrato estético e literário. Assim, como declara Michaud (1966), a
25
« [...] la poésie est une véritable religion. Non pas seulement parce qu’elle « constitue la seule
tâche spirituelle », parce qu’elle est, non un jeu, mais « un indéfectible sacerdoce », les poètes
étant « les ordonnateurs des fêtes sacrées de la vérité et de la juste joie », parce qu’elle est
« l’expression humaine de la notion divine », et que, faisant elle aussi un constant appel à l’unité,
« sa voie n’est que vers l’absolu, sa pâture n’est que d’éternité ». (MICHAUD, 1966,
p.416,tradução nossa)
35
poesia simbolista é “ao mesmo tempo experiência intuitiva e criação fictícia, no e
pelo símbolo, que une, em sua essência, todos os aspectos da Realidade”
26
. O
poeta será, então, um demiurgo, pois vai “recriar a vida” e opor-se, dessa forma,
ao místico. Enquanto este se volta para o silêncio, o poeta busca a palavra.
Como afirma DOMINGOS (2009, p.74), os poetas franceses, na esteira dos
poetas alemães, “passam a criar uma poesia com ritmo de prosa e uma prosa que
tende a sugerir e carregar-se de ritmo [estabelecendo assim] uma grande
comunicação entre conto e poema que culmina com o aparecimento de uma
nova forma literária – o conto poético”.
De natureza marcadamente subjetiva, o conto poético é o canal de
comunicação dos estados de alma da personagem, do narrador; e dessa maneira,
a ação exterior bem como o tempo cronológico o passados para um segundo
plano.
Por tratar de questões metafísicas, referentes à condição humana, muitos
foram os simbolistas que se utilizaram desse tipo de narrativa. Porém, antes
mesmo dos simbolistas, grandes autores como Villiers lançaram mão do conto
poético para transmitir seus conteúdos mais profundos.
Outro gênero bastante popular entre os simbolistas foi o fantástico pois,
dada a sua natureza também subjetiva acrescida ao clima de rêverie
27
que ele
favorece, o fantástico incita o tratamento dos temas mais grotescos e diabólicos
que tocam o substrato mais profundo da alma humana de uma forma poética e
delicada. Como veremos a seguir, fora Poe um dos responsáveis pelo
florescimento de tal gênero na França e Villiers, como bom discípulo, se mirou
nas criações do mestre Poe e hoje, figura entre os maiores autores do gênero.
É nessa perspectiva que os contos “Ligeia”, de Poe e “Véra” de Villiers
serão aqui tratados: como obra de dois autores cujos espíritos, exaustos da
mediocridade burguesa, excessivamente apegada aos valores materiais,
procuram alçar voo para uma realidade que está além desta, tangível, porém,
essa realidade do “au-delàsó é acessível por meio da imaginação; nesses
autores, ela é criadora de mundos fantásticos e extraordinários onde a morte
existe como pretexto de reconciliação entre o homem e o universo. Compreende-
26
« [...] à la fois expérience intuitive et création fictive, dans et par le symbole, qui unit en son
essence tous les aspects de la Réalité » (MICHAUD, 1966, p. 419, tradução nossa)
27
Rêverie: em português, imaginação, devaneio.
36
se, então, que nesses dois autores se prefigurava a arte simbolista, com todos
seus valores estéticos.
2 O FANTÁSTICO NO SÉCULO XIX
O fantástico é a hesitação experimentada
por um ser que só conhece as leis
naturais, face a um acontecimento
aparentemente sobrenatural (TODOROV,
1992, p.31).
Mesmo nos séculos em que as luzes da ciência monopolizam todas as
áreas do saber, os homens, insatisfeitos com as verdades limitadas que ela
apresenta, procuram decifrar o mundo via filosofias menos ortodoxas. Essa
curiosidade leva-os a se refugiarem em doutrinas esotéricas, ocultistas. No
domínio literário, esse ímpeto foi expresso pela literatura cunhada de fantástica. O
termo “fantástico” é oriundo do latim phantasticus, que, por sua vez, provém do
grego φανταστικός (phantastikós) ambos provenientes de "fantasia" e refere-
se ao que é criado pela imaginação, o que não existe na realidade. Hoje,
vulgarizado pelo uso, o termo é aplicável a qualquer situação, porém no universo
da literatura, ele caracteriza-se pela presença do sobrenatural, ou seja, pela
intromissão brutal do mistério na vida real.
A literatura de veia fantástica remonta à Idade Média, mas como afirma
Joël Malrieu em Le Fantastique (1992), o seu estabelecimento enquanto gênero
literário começa a ser ensejado pelos romances góticos na França e na Inglaterra
no século XVIII, e sua autonomia encontrou terreno rtil para florescer com o
Romantismo. Este movimento almejava opor-se ao racionalismo da época da
Revolução Francesa, propondo a elevação dos sentimentos acima do
pensamento. Os autores românticos voltaram-se cada vez mais para si mesmos,
retratando o drama humano, amores trágicos, ideais utópicos e desejos de
escapismo. Se o século XVIII foi marcado pela objetividade, pelo Iluminismo e
pela razão, o início do culo XIX seria marcado pelo lirismo, pela subjetividade,
37
pela emoção e pelo eu. Na França, impregnada da herança cartesiana, o
movimento romântico não foi muito intenso e tudo que era novo e original vinha
de alhures, principalmente da Alemanha e da Inglaterra. Foi a pátria de Goethe,
Schiller e Herder que predominou no cenário literário, tendo em E. T. A.
Hoffmann (1776-1822) seu mais ilustre expoente no que concerne ao gênero
fantástico.
Se Hoffmann influenciou muitos dos escritores franceses dessa época, tais
como Charles Nodier, Honode Balzac e Théophile Gautier, o espírito clássico
francês identificou-se mais prontamente com Edgar Allan Poe, que como fora
dito foi introduzido no universo literário francês por Charles Baudelaire. Segundo
Castex (1962), os contos de Edgar Poe fizeram muito sucesso na França devido à
influência de suas reflexões estéticas na confecção de suas obras, apesar da
“estranheza de suas invenções”. Assim também o é o escritor francês: põe a
lógica a serviço da poesia burilando os conteúdos (desde os mais assustadores)
em função do efeito que quer produzir no seu leitor.
Na França, em meados do século XIX, o fantástico tomou fôlego e isso se
deveu não somente a Hoffmann, mas à própria influência de Poe e à publicação
de artigos sobre o magnetismo animal, o sonambulismo, bruxaria, possessão e
êxtase místico. O gênero fantástico se torna o meio, por excelência, de transmitir
esse tipo de experiência.
Os autores decadentistas sentem, mais que os românticos, o ruir dos
referentes morais e intelectuais; seus textos, entorpecidos pelo medo, pelo
sentimento de fin de siècle, apelam ao mundo dos sonhos para fazer frente ao
império da razão e recorrem às ciências ocultas e práticas supranaturais como
meio de alcançar o nostálgico au-delà”, o além. Como assinala Georges
Jacquemin (1974), o fantástico ressuscita o mistério e o consequente medo do
desconhecido, e ao senti-lo, o homem tem seus instintos primitivos de
sobrevivência aguçados e tem, assim, a impressão de viver mais intensamente. O
homem moderno, ao sentir medo (seja da morte ou até mesmo do próprio mundo
que ele criou), identifica-se prontamente com o protagonista, que prova do mesmo
sentimento, e é engendrado na trama fantástica que acaba, catarticamente,
reproduzindo seus temores mais profundos. Daí a popularidade do gênero literário
em questão.
38
CASTEX (1962) distribui as histórias fantásticas francesas em dois
períodos: o primeiro, inaugurado e influenciado pelo Romantismo e pelas obras
do alemão E. T. A Hoffmann; e o segundo, no último quarto do século XIX,
coincide com o Naturalismo e o Simbolismo, estando ligado ao grande interesse
pelas ciências ocultas, pelas práticas do magnetismo, do sonambulismo e pelas
obras do norte-americano E. A. Poe traduzidas para o francês por Charles
Baudelaire.
A literatura fantástica do século XIX se estabeleceu, dessa forma, como
uma expressão de resistência à sociedade da época, impregnada pelos valores
burgueses, cujo epicentro era o capital. Assim, sua linguagem foi usada para
expressar esteticamente os aspectos negativos da alma humana, outrora
condenados pela estética clássica. Ela, então, apoia-se tanto em correntes
supranaturais como em descobertas e progressos científicos para compreender o
homem em toda sua totalidade:
A ciência e a literatura fantástica partem, cada uma à sua
maneira, para uma mesma busca, mas sempre em estreita
conexão, e perseguem a mesma interrogação: O que é o homem
e quais são os limites humanos? (MALRIEU, 1992, p.24, tradução
nossa)
28
A literatura fantástica, deste modo, responde à sede metafísica proveniente
da desmistificação da ideia cartesiana do mundo como um todo inteligível. Como
aponta Jacquemin (1974), o fantástico funciona tanto como literatura de evasão
como de correção; de evasão, pois o mistério, o inexplicável, o medo são meios
de potencializar todos os sentidos, e são assim válvulas de escape de um mundo
monótono, uníssono e incolor; literatura de correção, pois ele se utiliza de seu
caráter inerentemente transgressor para modificar o mundo real, estabelecendo
uma nova ordem.
28
« La science et la littérature fantastique mènent, chacune à sa manière, mais toujours en
connexion étroite, la même recherche et poursuivent la même interrogation : Qu’est-ce que c’est
l’homme et quelles sont les limites de l’humain ? » (MALRIEU, 1992, p.24)
39
Certos teóricos, dentre os quais Castex (1962)
29
, afirmam que o
florescimento do gênero fantástico no século XIX foi tão frutífero quanto efêmero,
pois, no século XX ele seria substituído pela psicanálise. Porém, é consensual o
fato que esse gênero gozou de muita popularidade no século XIX dentre aqueles
que estavam saturados da banalidade dos romances burgueses. Por outro lado, o
que não é consensual é a conceitualização do fantástico enquanto gênero, o que
tem gerado muitas divergências entre os teóricos.
Evoca-se, assim, alguns aspectos dessa problemática conceitualização.
2.1 FANTÁSTICO: A PROBLEMÁTICA DA CONCEITUALIZAÇÃO
Ao estudar a literatura fantástica, o pesquisador depara-se com diversas
nomenclaturas como, por exemplo, o fantástico puro, o realismo mágico, o
maravilhoso. Não raramente os críticos discordam com relação ao
estabelecimento dos limites entre uns e outros e, até mesmo, debatem acerca da
natureza literária do gênero.
Como observa Roas (2001), a maioria dos críticos coincide em assinalar
que a condição indispensável para que se produza o fantástico é a presença do
sobrenatural. E aqui ele é entendido como a intervenção das forças de origem
demiúrgica, angélica ou demoníaca, enfim é um fenômeno que transgride o
mundo real, é aquele que não é explicado pelas leis desse mundo. Assim, a
literatura fantástica é determinada pela sua característica transgressora. E para
que a história narrada seja inserida nesse gênero, deve-se criar um ambiente
similar àquele em que mora o leitor, um ambiente que, posteriormente, será
tomado pelo perturbador fenômeno sobrenatural. O relato fantástico põe o leitor à
frente desse fenômeno e o faz questionar as leis rigorosas e imutáveis do mundo
real. Esse confronto traz à tona a incerteza na percepção da realidade e conduz o
leitor a duvidar de sua própria existência.
29
« En un temps la psychanalyse décèle et liquide’ les complexes générateurs d’hallucinations
[...] (les) aventures fantastiques ont perdu leur attrait merveilleux. » (CASTEX, 1962, p.401, grifo
do autor, tradução nossa: Em um tempo no qual a psicanálise revela e ‘liquida’ os complexos
geradores de alucinações [...] (as) aventuras fantásticas perderam seu atrativo maravilhoso.”)
40
Porém, quando o sobrenatural o entra em conflito com o contexto, não
se produz o fantástico, pois não há ruptura alguma dos esquemas da realidade:
tem-se, assim, a presença do maravilhoso. Conclui-se que a diferença entre a
literatura fantástica e a maravilhosa está no fato de que nesta o fenômeno
estranho é mostrado como natural. O mundo maravilhoso é um lugar totalmente
inventado, no qual os confrontos básicos que geram o fantástico não cabem,
posto que nele tudo é possível encantamentos, milagres, metamorfoses.
aqui um pacto entre o leitor e a obra, tudo o que acontece dentro dos parâmetros
físicos do maravilhoso é tomado como verossímil, é aceito sem questionamento.
Há, também, um outro tipo de narração que se situa a meio caminho entre
ambos os gêneros: trata-se do realismo maravilhoso, ou realismo mágico. Esse
gênero híbrido se funda sobre a coexistência não problemática do real e do
sobrenatural; nele os acontecimentos passam por um processo de
“verossimilhização”
30
, ou seja, um processo de naturalização e persuasão que
confere o status de verdade ao não existente.
Contudo, antes de atribuir valores e nomenclaturas às narrativas, é preciso
levar em consideração que, se um relato aparentemente sobrenatural se refere a
uma ordem codificada, posto que o referente pragmático do leitor coincida com
o referente literário (como por exemplo, um fenômeno religioso), ele não é tido
como sobrenatural, pois o conflito não acontece. O mesmo sucede com qualquer
narração que tenha uma explicação científica.
Como aponta Finné (1980), nenhum gênero literário como o fantástico
depende tanto do intelecto do leitor, pois a percepção do fenômeno verossímil
ou sobrenatural - depende de seu sistema de referências. O autor chama essa
relação de dependência de sujeição
31
da literatura.
Eu não conheço nenhum gênero literário que dependa a esse
ponto do intelecto do leitor dependência que, às vezes, pode
levar a um conflito entre autor e leitor. Essa sujeição me parece
uma das maiores características do gênero (FINNE, 1980, p.119,
tradução nossa).
32
30
Tradução livre do espanhol: verosimilización. (ROAS, 2001, p.12)
31
Do francês: assujettissement (FINNÉ, 1980, p.119)
32
Je ne connais aucun genre littéraire qui dépende à ce point de intellect du lecteur
dépendance qui, parfois, peut mener à un conflit entre auteur et lecteur. Cet assujetissement me
semble une des très grandes caractéristiques du genre.”
41
Talvez seja por esse motivo que a conceitualização do gênero fantástico
seja permeada por tantas divergências teóricas.
Segundo Malrieu (1992), o fenômeno fantástico não é determinado pelo
tema, mas sim pela maneira como é tratado; o sobrenatural apenas fornece
metáforas e imagens que remetem simbolicamente a uma realidade maior.
Castex (1962) também compactua dessa visão e defende que o fantástico se
caracteriza pela intromissão brutal do mistério na vida real proporcionada pela
projeção de imagens dos estados mórbidos da consciência. Jacquemin (1974)
reitera dizendo:
Ora, não dúvida, aos meus olhos, que o fantástico é uma
forma de busca do humano, mesmo que suas vias sejam de
natureza a desorientar e a suscitar a dúvida (JACQUEMIN, 1974,
p.10, tradução nossa).
33
O gênero em questão remete a uma forma de expressão dos conteúdos
humanos mais profundos, trazidos à superfície por meio de elementos
assustadores; eles intentam desvendar, desse modo, por meio de um processo
catártico, os mistérios da natureza humana. Ao revelar o fenômeno sobrenatural,
revela-se também aquela parte que renegamos; o leitor, assim, a ele se identifica
de maneira sutil e perversa.
Toma-se, como exemplo, Edgar Allan Poe e seu conto “Ligeia” e Villiers de
l’Isle-Adam e seu conto “Véra”, contos fantásticos, por excelência, cujo discurso
poético evoca o sobrenatural como meio de transportar para o Absoluto os
espíritos inadaptados à realidade burguesa.
33
« Or, il n’y a pas de doute, à mes yeux, que le fantastique est une forme de quête de l’humain,
ses voies fussent-elles de nature à désorienter ou à susciter le doute »
(JACQUEMIN, 1974,
p.10)
42
2.2 O FANTÁSTICO EM EDGAR ALLAN POE
[...] o impacto de Poe com seus melhores
escritos é imenso. Seus pesadelos
parecem-nos tão reais que permanecem
até muito depois que a luz do dia e a razão
nos tenham ajudado a reformar nosso
equilíbrio. A intensidade de sua escrita
impõe suas visões estranhas ao leitor
confiante com uma força que ele não
esquece tão logo. (SOHN, 1964, p.3-4,
tradução nossa)
34
Como fora dito anteriormente, o gênero fantástico tem suas origens no
romance gótico que, por sua vez, teve grande apelo popular e foi o gênero
ficcional que conservou o interesse pelo conto. Segundo Robert D. Spector
(1970), em Seven Masterpieces of Gothic Horror, a literatura gótica produziu
alvoroço no século XVIII ao se opor ao racionalismo incitado pelos ideais da
Revolução Francesa. No século XIX, os elementos góticos permaneceram em
romancistas tais como Charles Dickens, Walter Scott, Oscar Wilde, Emily Bronti,
os quais, por sua vez, se utilizaram desse gênero para demonstrar o exagero do
materialismo na cultura mecanicista da época e, assim, propuseram uma literatura
de cunho escapista. No século XX, houve ainda um interesse revivido pelo gênero
gótico, pois o homem, curioso de seus próprios impulsos neuróticos e eróticos
reprimidos, voltou seus olhos freudianos e surrealistas para essa literatura de
evasão. Fica evidente então que:
[...] quando a imaginação do homem é limitada artificialmente, o
desejo gótico de escapar para a fantasia e a liberação de
emoções primitivas permanecem (SPECTOR, 1970, p.11,
tradução nossa).
35
34
“[...] Poe’s impact with his best writings is tremendous. His nightmares seem so real to us that
they linger long after daylight and reason have helped us to regain our balance. The intensity of his
writing thrusts his peculiar visions upon the unsuspecting reader with a force that is not soon
forgotten” ( SOHN, 1964, p.3-4)
35
[...] whenever the imagination of man is restricted unnaturally, the Gothic desire for escape into
fantasy and the release of primitive emotions continues” (SPECTOR, 1970, p.11)
43
Poe viveu um período histórico conturbado: o momento em que uma nova
realidade, criada pela Revolução Industrial, se instaurava redefinindo seus
contornos. Se, por um lado, o progresso, por outro, as notícias que circulavam
nos jornais veiculavam o aumento dos casos de polícia: crimes e assassinatos
misteriosos, colocando em evidência os aspectos mais animalescos da natureza
humana.
Mais tarde, as pesquisas de Freud iriam mostrar que a monstruosidade
desses crimes era inerente à essência do homem, pois era provocada pela
liberação dos seus instintos reprimidos pelo processo civilizatório. Porém, na
época de Poe, que antecedeu as descobertas freudianas do inconsciente,
a vigilância da sociedade, em forma de preconceitos, com uma lei
rígida de defesa da propriedade privada, impunha ao criminoso e
aos desajustados de toda ordem a sanha da marginalidade.
Assim, todos os desajustados eram asfixiados pelo moralismo
burguês, pela impossibilidade de esconder aos olhos dos
católicos ou protestantes a crueldade e a maldade humana que
submergiam nesse tecido social [...] (ARAÚJO, 2002, p.73).
O espaço urbano recuperou, assim, “as bruxas e os demônios […] que
desceram à terra para ocupar seu lugar nas páginas dos jornais” (ARAÚJO, 2002,
p.73). A literatura fantástica torna-se, desse modo, o meio por excelência de
exprimir essas forças malignas. Segundo o mesmo autor, o gênero fantástico é
algo mais que o simples precursor da psicanálise, pois é através dele que a
narrativa foge da clausura do realismo e transcende os limites da realidade
recorrendo ao sobrenatural, ao estranho, ao sinistro e ao insólito.
Desse modo, nos seus contos fantásticos, os temas mais macabros e
horripilantes são elaborados poeticamente de forma a reivindicar a duplicidade da
alma humana em constante conflito interior, dividida entre o bem e o mal, o divino
e o demoníaco, a ascese e a queda. Toma-se como exemplo o conto “Ligeia”
(1838), o conto preferido do autor e incensado pela crítica, que será analisado
posteriormente.
44
2.3 O FANTÁSTICO EM VILLIERS DE L’ISLE-ADAM
Assim, Villiers, ao invés de nos mergulhar
em um universo ideal, pinta a vida
terrestre sob um aspecto fantástico, e
este espetáculo desesperador lhe inspira
pensamentos de total renúncia (CASTEX,
1962, p.364, tradução nossa).
36
Villiers, amplamente influenciados por Poe, pretende, através do uso dos
contornos e conteúdos próprios do gênero, evocar a revelação de uma realidade
superior, a qual, seguindo a mesma orientação platônica dos românticos, é
representada pela busca ascética do Absoluto.
Ele acredita que os seres humanos são “passantes que se agitam em vão
entre sombras”
37
de uma realidade medíocre cindida pelo apego ao mundo
material. Segundo Castex (1962), sua intenção é denunciar a ilusão humana,
provocando a reflexão do leitor acerca de aspectos capitais e inerentes ao ser
humano que o positivismo descarta com uma “imprudente desenvoltura”; ele
pretende, assim, arrancar a criatura da miséria da sua condição relativa para
transportá-la ao Absoluto.
Na sequência, faremos a análise dos contos “Ligeia” de E. A. Poe e “Véra”
de Villiers de l’Isle-Adam, segundo os elementos do gênero fantástico; para tanto
lançaremos mão da proposta de análise de Joël MALRIEU (1992) e de
GROJNOWSKI (2000).
36
« Ainsi Villiers, au lieu de nous plonger dans un univers idéal, peint la vie terrestre sous un
aspect fantastique, et ce désespérant spectacle lui inspire des pensées de total renoncement.»
(CASTEX, 1962, p.364)
37
« […] les hommes sont des passants qui s´agitent en vain parmi des ombres . » (CASTEX,
1962, p.347)
45
2.4 O FANTÁSTICO EM “LIGEIA” E EM “VÉRA”
O conto “Ligeia publicado pela primeira vez no Americam Museum of
Science, Literature and the Arts em setembro de 1838, e incluído em 1840 em
Tales of the grotesque and arabesque, relata a história do narrador e sua esposa,
Ligeia, uma mulher “estranhamente” bela, com seus olhos e cabelos negros, cor
de corvo, muito inteligente e culta: “[...] the acquisitions of Ligeia were gigantic,
were astounding”.
38
O narrador precisa, dessa maneira, que sua relação com Ligeia se
estabelecia em outro nível que não somente o romântico, assim, ele fala do
chaotic world of metaphysical investigation at which I was most busily occupied
during the earlier years of our marriage
39
, demonstrando seu interesse pela vida
de estudos sobre questões metafísicas. Esse detalhe pode ser considerado,
talvez, um sinal para explicar o próprio modo como ele se refere à personagem de
Ligeia, apresentada com traços tão diferentes.
Apesar de seu vigor físico, ela adoece e pouco antes de falecer compõe
um poema sobre "O Conqueror Worm” (em português, o verme vencedor) e, de
maneira apocalíptica, cita linhas atribuídas a Joseph Glanvill, que sugerem que a
vida é sustentável através da vontade
40
. Na verdade, essas linhas
reproduzem a epígrafe do conto:
AND the will therein lieth, which dieth not. Who knoweth the
mysteries of the will, with its vigor? For God is but a great will
pervading all things by nature of its intentness. Man doth not yield
himself to the angels, nor unto death utterly, save only through
the weakness of his feeble will.
Joseph Glanvill (POE, 1981,
p.167).
41
38
“[...] os conhecimentos de Ligéia eram gigantescos, espantosos.” (MENDES, 1981, p.68)
39
[...] caótico mundo da investigação metafísica em que me achava acuradamente ocupado
durante os primeiros anos de nosso casamento” (MENDES, 1981, p.68)
40
Apesar de a epígrafe do conto ser atribuída a Joseph Glanvill, ela nunca foi encontrada na
extensa obra de Poe.
41
E ali dentro está a vontade que não morre. Quem conhece os mistérios da vontade, bem como
vigor? Porque Deus é apenas uma grande vontade, penetrando todas as coisas pela qualidade de
sua aplicação. O homem não se submete aos anjos nem se rende inteiramente à morte, a não ser
pela fraqueza de sua débil vontade. Joseph Glanvill” (MENDES, 1981, p. 64)
46
A epígrafe serve como mote do conto e prepara o leitor para a
estranheza dos acontecimentos que se seguem. O narrador, também, vai
gradativamente, apresentando razões que o acostumam ao estranho, ao insólito:
ele não se lembra do nome da família de Ligeia, mas recorda-se que era alta,
esguia, recorda-se da leveza do som de seus passos: “She came and departed as
a shadow
42
. O narrador destaca, insistentemente, o som musical, baixo de sua
voz: the dear music of her low sweet voice
43
, by the almost magical melody,
modulation, distinctness and placidity of her very low voice
44
, e, finalmente, Her
voice grew more gentle grew more low
45
no momento de sua morte. E
descreve, também, sua beleza “exquisite” (em português, rara), “strange” (em
português, estranha), de uma divina majestade. Mas é dos olhos que o narrador
mais tece comentários, descrevendo-os minuciosamente e com palavras que
destacam a sua amplidão, “far larger than the ordinary eyes of our own race”
46
,
maiores que os da gazela , o que era percebido em momentos de “intense
excitement (em português, intensa excitação). E, completa o narrador,
acentuando essa particularidade: “And at such moments was her beauty — […] —
the beauty of beings either above or apart from the earth […]
47
. No entanto, ele
observa, o mais estranho nesses olhos era sua expression (em português,
expressão, grifo do autor): “The expression of the eyes of Ligeia! How for long
hours have I pondered upon it! How have I, through the whole of a midsummer
night, struggled to fathom it!”.
48
Finalmente, o narrador lembra de seu
conhecimento, que como aqui já fora citado, era imenso, nunca antes visto por ele
em nenhuma mulher, mais ainda, nenhum homem jamais atravessou, com ela,
amplas áreas de ciência, moral, física e matemática. Pode-se imaginar, portanto,
qual foi sua dor ao perdê-la, após alguns anos.
42
“Ela entrava e saía como uma sombra” (MENDES, 1981, p. 65, grifo nosso).
43
“[...] a música de sua doce e profunda voz” (MENDES, 1981, p. 65).
44
[...] pela quase mágica melodia, pela modulação, pela clareza e placidez de sua voz bem
grave” (MENDES, 1981, p. 68).
45
“Sua voz tornou-se mais suave, tornou-se mais grave”. (MENDES, 1981, p. 69).
46
“Eram, devo crer, bem maiores que os olhos habituais de nossa raça” (MENDES, 1981, p. 66).
47
“E, em tais momentos, era a sua beleza [...] a beleza de criaturas que se acham acima ou
fora da terra” (MENDES, 1981, p. 66).
48
“A expressão dos olhos de Ligéia... Quantas e quantas horas refleti sobre ela! Quanto tempo
esforcei-me por sondá-la, durante uma noite inteira de verão!” (MENDES, 1981, p. 66).
47
Após sua morte, o narrador compra uma velha abadia na Inglaterra e,
cansado da solidão, casa-se com Lady Rowena Trevanion, uma jovem loura de
olhos azuis:
Let me speak only of that one chamber, ever accursed, whither in
a moment of mental alienation, I led from the altar as my bride
as the successor of the unforgotten Ligeia the fair-haired and
blue-eyed Lady Rowena Trevanion, of Tremaine (POE, 1981,
p.173).
49
No segundo s do casamento, Rowena começa a sofrer de ataques de
febre e ansiedade. Uma noite, quando ela está prestes a desmaiar, o narrador
oferece-lhe uma taça de vinho e, opium drogado com ópio, (ou pensa que vê)
gotas de "um rubi brilhante e colorido fluido" cair no cálice:
[…] as Rowena was in the act of raising the wine to her lips, I
saw, or may have dreamed that I saw, fall within the goblet, as if
from some invisible spring in the atmosphere of the room, three or
four large drops of a brilliant and ruby colored fluid
50
(POE, 1981,
p.178).
A condição da mulher piora rapidamente, e alguns dias depois ela morre e
seu corpo é embalado para o enterro. Como o narrador mantém vigília durante a
noite, ele nota um breve retorno de cor nas bochechas de Rowena e,
repetidamente, tenta reanimá-la; no alvorecer, o narrador, emocionalmente
esgotado depois daquela noite de luta, “vê” o corpo de Lady Rowena passar por
significativas mudanças metamorforseando-se, finalmente, na sua amada Ligeia:
Here then, at least,” I shrieked aloud, “can I never can I never
be mistaken — these are the full, and the black, and the wild eyes
of my lost love of the lady of the LADY LIGEIA (POE,
1981, p.180).
51
49
“Permiti-me que fale só daquele aposento, maldito para sempre, aonde conduzi, como minha
esposa, num momento de alienação mental - como sucessora da inesquecível Ligéia -, a loura
Lady Rowena Trevanion, de Tremaine, de olhos azuis.” (MENDES, 1981, p. 72).
50
“[...] quando Rowena estava a erguer o vinho aos lábios, vi ou posso ter sonhado que vi, caírem
dentro da taça, como vindos de fonte invisível na atmosfera do quarto, três ou quatro grandes
gotas de um líquido brilhante, cor de rubi” (MENDES, 1981, p.76).
51
“Aqui estão, afinal - chamei em voz alta -, nunca poderei enganar-me… Estes são os olhos
grandes, negros e estranhos de meu perdido amor… de Lady. . . de "Lady Ligéia!" (MENDES,
1981, p.79)
48
o conto “Véra” (1874), publicado em revistas em 1874, 1876 e 1810, e
incluído no livro Contes Cruels em 1883, relata a história do Conde d’Athol e de
sua jovem esposa; inconsolável, ele passa a viver em sua mansão, na companhia
apenas de seu criado Raymond:
Raymond
,
dit tranquillement le comte, [...] nous avons résolu de
nous isoler davantage ici, dès demain[...] ; tu nous suffiras. --
Nous ne recevrons personne à l'avenir (VILLIERS, 2004, p.34).
52
Desesperado com a perda de sua amada ele se entrega ao delírio e passa
a enxergá-la, a senti-la, a amá-la como se ela não tivesse morrido: Grâce à la
profonde et toute-puissante volonté de M. d'Athol, qui, à force d'amour, forgeait la
vie et la présence de sa femme dans l'hôtel solitaire
53
. Fica, aqui, evidente o
diálogo com “Ligeia” uma vez que em ambos os contos a força da vontade e do
amor é capaz, até mesmo, de superar a morte. Ao verificarmos a primeira frase
de “Véra” - L 'Amour est plus fort que la Mort, a dit Salomon: oui, son mystérieux
pouvoir est illimité
54
- podemos observar que ela mantém uma clara
intertextualidade com a epígrafe do conto de Poe. Segundo a nota de roda de
Véra et autres contes (2004), a frase atribuída a Salomão fora aí modificada uma
vez sua versão original era: L´amour est fort comme la mort
55
. Assim, o narrador
de “Véra” dela se apropria, transformando-a, para prenunciar ao leitor os
fenômenos extraordinários que estão prestes a ocorrer.
No entanto, o narrador revela que o Conde e ra, ao contrário do que se
sucedia com os protagonistas de “Ligeia”, não compartilhavam a fé de numerosos
seres vivos aux choses surnaturelles(em português, nas coisas sobrenaturais),
que eram para eles, apenas un sujet de vagues étonnements : lettre close dont
ils ne se préoccupaient pas, n'ayant pas qualité pour condamner ou justifier
56
.
Apesar do ceticismo do conde, ele testemunha a instauração do fenômeno
52
“Raymond, disse tranquilamente o conde, [...] nós resolvemos isolar-nos bem mais, aqui, a partir
de amanhã [...]: você nos bastará. Não receberemos ninguém daqui em diante” (DOMINGOS,
2009, p.90).
53
“Graças a profunda e toda poderosa vontade do Senhor Athol, que, pela força do amor,
forjava a vida e a presença de sua esposa na mansão solitária [...]” ( DOMINGOS, 2009, p.92)
54
“O Amor é mais forte que a Morte, disse Salomão: sim, seu misterioso poder é ilimitado”
(DOMINGOS, 2009, p.83).
55
“O amor é forte, é como a morte” (Cântico dos Cânticos, VIII, 6)
56
“[...] um assunto de vagos espantos: carta lacrada com a qual não se preocupavam, pois não
tinham condição para condenar ou justificar” (DOMINGOS, 2009, p.87).
49
sobrenatural. Villiers, assim, lança mão da sua descrença para criticar o apego
excessivo ao mundo material, e o conseqüente desprezo pelas coisas, “celles de
l’âme” (em português, aquelas da alma), “de l’infini” (em português, do infinito).
Por outro lado, o conde é capaz de ser dissuadido de seu ceticismo tendo em
vista sua “nature étrange” (em português, natureza estranha) e do fato de ser
dotado, assim como Véra, “de sens du merveilleux” (em português, senso do
maravilhoso). Assim, ao romper seus laços com a realidade e « [...] reconnaissant
bien que le monde leur était étranger, ils s'étaient isolés, aussitôt leur union, dans
ce vieux et sombre hôtel. »
57
. Isolado e sem nenhum contato com o mundo
externo ele enclausura-se entregando-se ao delírio e assim, “D´athol, en effet,
vivait absolument dans l´inconscience de la mort de as bien aimée!”
58
Porém, um dia, ele retoma a consciência e lembra-se de que ela morreu, e,
nesse momento, a chave do túmulo onde se encontrava o corpo de Véra cai da
cama do casal:
Soudain, comme une réponse, un objet brillant tomba du lit
nuptial, sur la noire fourrure, avec un bruit métallique : un rayon
de l'affreux jour terrestre l'éclaira !... L'abandonné se baissa, le
saisit, et un sourire sublime illumina son visage en reconnaissant
cet objet :c'était la clef du tombeau (VILLIERS, 2004, p.39).
59
Assim, esses dois contos respondem aos fundamentos do estudo do
fantástico feitos por Joel Malrieu(1992) em Le Fantastique.
Para o autor, o gênero conta com dois elementos constitutivos básicos:
uma personagem e um elemento perturbador (seja um fantasma, um morto-vivo,
a presença do duplo, etc.) que se caracteriza, ou não, por manifestações de
loucura, alucinação, que possam desestabilizar profundamente o equilíbrio da
personagem e do leitor. Para facilitar a identificação entre ambos, a personagem
deve ter configurações bem realistas; verifica-se que grande parte dessas
57
“[...] reconhecendo que o mundo lhes era estranho, isolaram-se, logo após a sua união, na velha
e sombria mansão [...]” (DOMINGOS, 2009, p.87-88).
58
“D´Athol, de fato, vivia absolutamente na inconsciência da morte de sua bem amada!”
(DOMINGOS, 2009, p.91).
59
“De repente, como uma resposta, um objeto brilhante caiu do leito nupcial, sobre a negra pele,
com um barulho metálico: um raio do terrível dia terrestre iluminou-o!... O abandonado abaixou-se,
pegou-o, e um sorriso sublime iluminou seu rosto ao reconhecer aquele objeto: era a chave do
túmulo.” (DOMINGOS, 2009, p.97).
50
personagens estabelece uma imediata empatia com o leitor, que ela é um
membro benquisto pela sociedade (não raro são figuras ilustres e abastadas),
porém, é uma figura ensimesmada que está mais predisposta ao fenômeno
sobrenatural por estar afetiva, intelectual e socialmente isolada de seu contexto.
Em “Ligeia”, essa personagem é o próprio narrador que, apesar de
anônimo, conta e escreve a sua história de amor com Ligeia, antes e depois de
sua morte. Entorpecido pelas penosas lembranças, ele se revela ensimesmado e
prefere o isolamento ao convívio social. É o que acontece quando, devastado pela
morte da amada, resolve refugiar-se em uma velha abadia em ruínas no interior
da Inglaterra:
She died; and I, crushed into the very dust with sorrow,
could no longer endure the lonely desolation of my dwelling
in the dim and decaying city by the Rhine. I had no lack of
what the world calls wealth. Ligeia had brought me far more,
very far more than ordinarily falls to the lot of mortals. After a few
months, therefore, of weary and aimless wandering, I purchased,
and put in some repair, an abbey, which I shall not name, in
one of the wildest and least frequented portions of fair
England (POE, 1981, p.176, grifo nosso).
60
Dessa forma, o contraste entre tristeza (“lonely desolation”; em português,
solitária desolação) e fartura (“I had no lack of what the world calls wealth”; em
português, não me faltava aquilo que o mundo chama riqueza), revela a sua
impotência perante a morte, apesar de sua confortável situação financeira. A
angústia provocada por esse sentimento se estende e se intensifica à medida que
o narrador relata a dimensão da solidão, sobretudo quando a lembrança da
falecida lhe invade o pensamento:
Ligeia! Ligeia! Buried in studies of a nature more than all else
adapted to deaden impressions of the outward world, it is by
that sweet word alone by Ligeia that I bring before mine
60
“Morreu. E eu, aniquilado, pulverizado pela tristeza, não pude mais suportar a solitária
desolação de minha morada, na sombria e decadente cidade à beira do Reno. Não me
faltava aquilo que o mundo chama riqueza. Ligéia me trouxera bem mais, muitíssimo mais do
que cabe de ordinário à sorte dos humanos. Depois, portanto de poucos meses de vaguear
cansativamente e sem rumo, adquiri e restaurei, em parte, uma abadia, que não denominarei,
em um dos mais incultos e menos frequentados rincões da bela Inglaterra.” (MENDES, 1981,
p.72, grifo nosso)
51
eyes in fancy the image of her who is no more (POE, 1981, p.170,
grifo nosso).
61
Assim, o protagonista se faz passar por um indivíduo que se mantém
distante do mundo exterior (em inglês: outward world) do qual lhe restam
“impressions” (em português, impressões) que se mantém envolto em seus
estudos. Apesar da escolha do tradutor em traduzir “buried in studies” por
“mergulhado em seus estudos”, o particípio passado do verbo “to bury” buried
vem do substantivo burial que se refere a enterro e sepultamento. Assim, mais
que mergulhado, o autor está sepultado em estudos e reminiscências desde que
supostamente presenciou a volta de Ligeia do mundo dos mortos.
Em “Véra”, a personagem que presencia o elemento sobrenatural é o
protagonista conde d’Athol, que, apesar do título nobiliárquico e das posses,
prefere exilar-se com sua amada na sua propriedade. E assim ele é apresentado
ao leitor:
Vers le sombre faubourg Saint-Germain, des voitures, allumées
déjà, roulaient, attardées après l’heure du Bois. L’une d’elles
s’arrêta devant le portail d’un vaste hôtel seigneurial, entouré de
jardins séculaires ; le cintre était surmonté de l’écusson de pierre,
aux armes de l’antique famille des comtes d’Athol [...] Un homme
de trente à trente-cinq ans, en deuil, au visage mortellement
pâle, descendit. Sur le perron, de taciturnes serviteurs élevaient
des flambeaux. Sans les voir, il gravit les marches et entra. C’était
le comte d’Athol (VILLIERS, 2004, p. 29-30, grifo nosso).
62
Assim, a empatia com o leitor é fomentada pela descrição de um jovem
senhor (de trinta a trinta e cinco anos) de origem aristocrática (vide: “a antiga
família dos condes de Athol”) enlutado pela recente morte da esposa existe
aqui também o contraste entre o conforto financeiro e impotência perante a morte.
61
Ligéia! Ligéia! Mergulhado em estudos, mais adaptados que quaisquer outros, pela sua
natureza, a amortecer as impressões do mundo exterior, é apenas por aquela doce palavra,
Ligéia, que na imaginação evoco, diante de meus olhos, a imagem daquela que não mais existe.”
(MENDES, 1981, p.64, grifo nosso)
62
Nos arredores do sombrio bairro Saint-Germain, carros, iluminados, rodavam, retardatários,
após a hora do Bosque. Um deles parou diante do portão de uma vasta mansão senhorial,
circundada de jardins seculares; o escudo de pedra sobrepunha-se ao frontão, com as armas da
antiga família dos condes de Athol [...] Um homem de trinta a trinta e cinco anos, de luto, com o
rosto mortalmente pálido, desceu. No umbral, taciturnos criados erguiam tochas. Sem os ver,
ele subiu os degraus e entrou. Era o conde de Athol” (DOMINGOS, 2009, p. 90, grifo nosso).
52
A pompa da cena os serviçais, munidos de tochas, recepcionando seu senhorio
na “vasta mansão senhorial”– é desvitalizada pelos adjetivos sombre (em
português, sombrio) ao descrever o bairro onde fica a residência, taciturnes (em
português, taciturnos) ao descrever os criados e mortellement pâle (do francês,
mortalmente pálido) ao descrever a personagem entorpecida pela partida da
esposa.
Com a morte das amadas, os viúvos se fecham definitivamente para o
mundo, e parecem, cada um a seu modo, recriar uma realidade que lhes é
conveniente seja por meio do recurso aos paraísos artificiais, como no caso do
narrador de “Ligeia” – “ In the excitement of my opium dreams (for I was habitually
fettered in the shackles of the drug,) I would call aloud upon her name [...]”
63
, seja
através do delírio do Conde de Athol em “Véra” – il causait avec l' Illusion
souriante, assise, à ses yeux, sur l'autre fauteui
l”
64
; por fim, esse processo de
esfacelamento do mundo real em detrimento da fantasia leva os dois a um único
caminho: a “ressurreição” das amadas. Assim, quando o elemento perturbador
entra em cena, os frágeis fios que ligavam a personagem à realidade se rompem.
Como afirma Philippov (1999):
[...] a personagem deverá, no início, apoiar-se em convenções
racionais. Progressivamente, tal racionalidade cede lugar à
aceitação do fenômeno como algo real. Com a revelação do
fenômeno, a personagem isola-se totalmente de seu mundo:
resta-lhe a loucura, a morte, a queda, a perda da identidade, a
desintegração psicológica (PHILIPPOV, 1999, p.103).
Observa-se também que, na maior parte do tempo, todo esse episódio
mostra-se interno à personagem, revelando seus aspectos interiores mais
doentios, o que lhe atribui uma total duplicidade emocional e psíquica.
Em “Ligeia”, a revelação do fenômeno é sugerida gradualmente, mas
imediatamente explicada pelo próprio narrador pelo entorpecimento da
consciência causado pelo uso do ópio:
63
Na excitação de meus sonhos de ópio (pois vivia habitualmente agrilhoado às algemas da
droga) gritava seu nome em voz alta [...]”. (MENDES, 1981, p.74)
64
“[...] conversava com a Ilusão sorridente, sentada, diante dele, na outra poltrona.” (DOMINGOS,
2009, p.91, grifo do autor)
53
She appeared to be fainting, and no attendants were within call.
I remembered where was deposited a decanter of light wine which
had been ordered by her physicians, and hastened across the
chamber to procure it. But, as I stepped beneath the light of the
censer, two circumstances of a startling nature attracted my
attention. I had felt that some palpable although invisible object
had passed lightly by my person; and I saw that there lay upon
the golden carpet, in the very middle of the rich lustre thrown from
the censer, a shadow a faint, indefinite shadow of angelic
aspect — such as might be fancied for the shadow of a
shade. But I was wild with the excitement of an immoderate
dose of opium, and heeded these things but little, nor spoke of
them to Rowena (POE, 1981, p.176, grifo nosso).
65
Assim, sem a presença de nenhum criado e estando a consciência do
narrador abalada pela droga
(“I was wild with the excitement of an immoderate
dose of opium”)
,
a percepção do fenômeno é confiada estritamente a ele. Porém,
Lady Rowena, em uma de suas crises, parece também testemunhá-lo, mas o
narrador, incrédulo, não a leva em consideração, uma vez que seu estado mental
estava muito debilitado pela doença.
no conto “Véra”, o “delírio” da personagem é testemunhado pelo criado
Raymond. De início, ele fica estupefato com a atitude do conde, mas resolve não
contrariá-lo, temendo que outro choque com a realidade lhe seja fatal, como um
sonâmbulo que é acordado de seu sono, e por fim ele acaba sendo envolvido pela
situação:
La gêne des premiers jours seffaça vite. Raymond, d’abord avec
stupeur, puis par une sorte de déférence et de tendresse s’était
ingénié si bien à être naturel [...] L’arrière-pensée pâlissait !
Parfois, éprouvant une sorte de vertige, il eut besoin de se dire
que la comtesse était positivement défunte. Il se prenait à ce jeu
funèbre et oubliait à chaque instant la réalité. [...] Il avait peur ,
65
“Ela parecia desmaiar, e nenhum criado poderia ouvir se eu chamasse. Lembrei de onde fora
guardado um frasco de vinho leve que os médicos haviam receitado e apressei-me em atravessar
o quarto para ir buscá-lo. Mas, ao passar por sob a luz do turíbulo, duas circunstâncias de
natureza impressionante me atraíram a atenção. Senti que coisa palpável, embora invisível,
passara de leve junto de mim, e vi que jazia ali, sobre o tapete dourado, bem no meio do forte
clarão lançado pelo turíbulo, uma sombra, uma sombra fraca, indecisa, de aspecto angélico,
tal como o que se poderia imaginar ter a sombra de uma sombra. Mas eu estava desvairado
pela excitação de uma dose imoderada de ópio e considerei essas coisas como nada, não
falando delas a Rowena” (MENDES, 1981, p.75, grifo nosso).
54
une peur indécise, douce. (VILLIERS , 2004, p.34-35,grifo
nosso)
66
Raymond parece vivenciar o processo de “verossimilhização” evocado
pela teoria de ROAS (2001). Tomado pelo sentimento de piedade, ele começa por
compactuar com o delírio de seu patrão, porém, ao passar pelo processo de
naturalização do fenômeno, ele o vive quase que na mesma intensidade que o
protagonista; quase, uma vez que “o medo indeciso” permanece. Trata-se, porém,
de um medo douce; em francês, esse adjetivo pode referir-se tanto a “moderado”
(segundo a opção da tradutora) como a “doce”, no sentido de terno (retificado
pelo substantivo tendresse, em português, “ternura”). Essa associação de
palavras medo doce –, cujos princípios são o antitéticos, gera à primeira vista
um oxímoro. Contudo, a bizarrice do fenômeno é contada de forma tão delicada e
poética, que a superposição do real e do irreal parece naturalmente harmoniosa.
Se a obra leva o leitor a sentir empatia pela protagonista, pela sua
condição miserável (do ponto de vista existencial), o leitor identifica-se mais que
prontamente com Raymond, que ambos são espectadores que acompanham
de perto as peripécias da alma atormentada do conde. Impressão que vem
contrariar a tese defendida por Todorov (1992):
Em Véra” de Villiers de l’Isle-Adam, o leitor se interroga sobre a
ressurreição da mulher do conde, fenômeno que contradiz as leis
da natureza, mas parece confirmado por uma série de indícios
secundários. Ora, nenhuma personagem compartilha essa
hesitação: nem o conde d’Athol, que crê firmemente na segunda
vida de Véra, nem mesmo o velho servidor Raymond. O leitor não
se identifica pois com qualquer personagem, e a hesitação não
está representada no texto. Assim, a hesitação seria uma
condição facultativa do fantástico: este pode existir sem satisfazê-
la; mas a maior parte das obras fantásticas submete-se a ela
(TODOROV, 1992, p.37).
66
“O incômodo dos primeiros dias apagou-se rapidamente. Raymond, primeiramente com estupor,
depois por uma espécie de deferência e de ternura, empenhara-se tão bem em ser natural [...] A
sua reticência apagava-se! Às vezes, sentindo uma espécie de vertigem, teve necessidade de se
dizer que a condessa estava positivamente morta. Enredava-se nesse jogo fúnebre e esquecia
a todo instante a realidade. [...]. Tinha medo, um medo indeciso, moderado.” (DOMINGOS,
2009, p. 97, grifo nosso).
55
Apesar da pequena participação de Raymond, ela se revela de extrema
importância uma vez que é através da sua stupeur (em português, estupor) diante
deste jeu funèbre (em português, jogo fúnebre) que o leitor também se coloca.
a hesitação em relação ao fenômeno fantástico é levada a cabo no final da
narrativa, com o aparecimento da chave do túmulo, episódio que não é
testemunhado pelo criado.
Para produzir esse efeito de hesitação, muitos autores lançam o da
narração em primeira pessoa para conferir dubiedade ao relato. Como é
consensual, em uma narração desse tipo, a tonalidade do que está sendo
relatado é dada pela personagem, é ela quem manipula as informações, pois tudo
é visto e sentido pela sua perspectiva:
A narração em primeira pessoa oferece exemplo de uma precisão
singular uma vez que aquele que conta é aquele que percebe e que
participa da ação. No contrato da ficção, esse narrador incita o leitor
a adotar seu ponto de vista. A novela toma a forma de um
monólogo, de um diário intimo, da confid
ê
ncia, ela se como um
testemunho (GROJNOWSKI, 2000, p.127, tradução nossa) .
67
Assim, em “Ligeia” a primeira pessoa insere diretamente o leitor na
narrativa; isso lhe confere o sentimento de dominar toda narração, reforçando o
processo empático com o narrador personagem. Mas, por outro lado, ele também
é engendrado na trama de maneira a dificultar seu distanciamento crítico frente
aos acontecimentos:
For such follies, even in childhood, I had imbibed a taste and now
they came back to me as if in the dotage of grief. Alas, I feel how
much even of incipient madness might have been discovered in
the gorgeous and fantastic draperies, in the solemn carvings of
Egypt, in the wild cornices and furniture, in the Bedlam patterns of
the carpets of tufted gold! I had become a bounden slave in the
trammels of opium, and my labors and my orders had taken a
coloring from my dreams (POE, 1981, p.173).
68
67
« Le récit à la première personne offre l´exemple d´une netteté particulière lorsque celui qui
raconte est également celui qui perçoit et qui participe à l´action. Dans le contrat de la fiction, ce
narrateur incite le lecteur à adopter son point de vue. La nouvelle emprunte la forme du
monologue, du journal intime, de la confidence, elle se donne comme un témoignage.»
(GROJNOWSKI, 2000, p.127)
68
Mesmo na infância, eu tomara gosto por tais fantasias, e agora elas me voltavam como uma
extravagância do pesar. Ai! sinto quanto de loucura, mesmo incipiente pode ser descoberta nas
tapeçarias ostentosas e fantasmagóricas nas solenes esculturas egípcias, nas fantásticas colunas,
56
Aqui o narrador, em tom confessional, conta que sempre tivera a
imaginação fértil, e que, por conta do seu luto, do uso abusivo do ópio e do
ambiente fantasmagórico do quarto, seus trabalhos e decisões “tomavam o
colorido de (seus) sonhos” (do inglês: had taken a coloring from my dreams).
Assim, o leitor é levado a desconfiar do poder de julgamento do narrador e, em
ultima análise, dos fatos por ele narrado. A trama é tecida de forma a provocar a
hesitação, a dúvida.
Segundo
Grojnowski (2000), a narração em primeira pessoa exerce uma
certa fascinação, pois é a identidade de um sujeito que se constrói de palavra em
palavra, ela passa de um mero relato de acontecimentos à revelação de uma
pessoa. Ela se organiza, assim, em função do “eu” que se situa no centro da
narrativa dando ao leitor uma ilusão de relação direta com o enunciador:
But why shall I minutely detail the unspeakable horrors of that
night? Why shall I pause to relate how, time after time, until near
the period of the gray dawn, this hideous drama of revivification
was repeated(…) Let me hurry to a conclusion. (POE, 1981,
p.167, grifo nosso)
69
O narrador interrompe, abruptamente, a narração para prevenir o leitor de
que, para evitar o desgaste da narrativa com a descrição pormenorizada daquele
“hideous drama” (em português, drama horrendo), ele irá encurtá-la apressando
sua conclusão e, para tanto, pede licença (“Let me hurry”). O verbo flexionado
pressupõe, assim, a presença imediata do leitor.
Em “Ligeia”, a narração em primeira pessoa convida o leitor a penetrar na
narrativa de modo a partilhar da experiência vivida pelo narrador. Portanto, essa
experiência se revela extremamente subjetiva, uma vez que ela é contada sob o
ponto de vista fantasioso do narrador, cabendo ao leitor com ele compactuar ou
não.
nos desenhos alucinados, nos desenhos alucinados dos tapetes enfeitados de ouro. Tornei-me um
escravo acorrentado às peias do ópio, e meus trabalhos e decisões tomavam o colorido de meus
sonhos.” (MENDES, 1981, p.73)
69
“Mas por que irei pormenorizar miudamente os indescritíveis horrores daquela noite? Por que
me demorarei a relatar como de tempo em tempo, até quase a hora acinzentada do alvorecer, se
repetiu esse horrendo drama de revivificação?[...]Permiti que apresse a conclusão(MENDES,
1981, p.78, grifo nosso).
57
Já, em “Véra”, a narração é em terceira pessoa do singular. Segundo
Grojnowski (2000), esse tipo de foco narrativo favorece o desaparecimento do
narrador para dar mais destaque ao que está sendo narrado assim; o leitor tem a
ilusão de que os acontecimentos falam por si próprios:
En refermant le sépulcre, il avait arraché de la serrure la clef
d’argent, et, se haussant sur la dernière marche du seuil, il l’avait
jetée doucement dans l’intérieur du tombeau. Il l’avait lancée sur
les dalles intérieures, par le trèfle qui surmontait le portail. –
Pourquoi ceci ?… A coup sûr d’après quelque résolution
mystérieuse de ne plus revenir (VILLIERS, 2004, p.30-31).
70
O narrador pode, desse modo, ser caracterizado como onisciente, uma vez
que relata as ações da personagem ao passo que sinaliza seus impulsos
interiores. Aqui, ele relata e analisa o gesto do conde ao jogar a chave do
sepulcro de Véra; a expressão a coup sûr (em português, “com certeza”) sugere a
precisão de sua observação. Faz-se mister notar que ela vem precedida da
interrogação Pourquoi ceci ?… (em português, “porque isso?”) por meio do
discurso indireto livre, e que estabelece contato do narrador com o leitor. Esse
discurso é uma forma de expressão que, ao invés de apresentar o personagem
em sua voz própria (discurso direto), ou de informar objetivamente o leitor sobre o
que ele teria dito (discurso indireto), aproxima narrador e personagem, dando a
impressão de que passam a falar em uníssono. Porém, como afirma Grojnowski
(2000) “que seja mais ou menos perceptível, o narrador faz parte integral da
historia à qual ele dá sua tonalidade”
71
:
Ce soir-là, cependant, on eût dit que, du fond des ténèbres, la
comtesse Véra s'efforçait adorablement de revenir dans cette
chambre tout embaumée d'elle ! Elle y avait laissé tant de sa
personne ! (VILLIERS, 2004, p.37, grifo nosso).
72
70
“ Fechando o sepulcro, arrancara da fechadura a chave de prata, e,erguendo-se no último
degrau da entrada, jogara-a lentamente no interior do túmulo. Lançara-a sobre as lajes interiores
pelo trevo que dominava o portal. – Por quê isso?... Certamente por alguma resolução misteriosa
de não mais retornar.” (DOMINGOS, 2009, p.85-86)
71
“(...) qu´il soit plus ou moins perceptible, le narrateur fait partie intégrante de l´histoire à laquelle
il donne sa tonalité” (GROJNOWSKI, 2000, p.129)
72
“naquela noite, no entanto, se poderia dizer que, no fundo das trevas, a condessa Vera se
esforçava adoravelmente por retornar a este quarto dela todo embalsamado! Deixou ali tanto de
sua pessoa!” (DOMINGOS, 2009, p.100, grifo nosso)
58
Na construção em destaque, o pronome “on” é indefinido, garantindo uma
frase cujo sujeito é indeterminado, porém, dado o contexto, podemos inferir que o
narrador lança mão, mais uma vez, do discurso indireto livre para dar forma aos
sentimentos inconclusos do conde.
Apesar da narração em terceira pessoa se pretender mais imparcial, a
onisciência garante a hesitação por parte do leitor, uma vez que o narrador
onisciente reporta os fatos segundo a sua interpretação.
Sendo assim, seja de primeira ou de terceira pessoa, o narrador e o leitor
selam um pacto no qual o fantástico se fundamenta: a hesitação diante do
fenômeno sobrenatural. Ora para que tal hesitação ocorra, o narrador deve
ganhar credibilidade junto ao leitor e, para tanto, ele se vale de atitudes realistas
como a da documentação espacial da novela:
A novela convida à desorientação, seu valor documental constitui
uma qualidade dentre outras, pois a fantasia e o fantástico, bem
como a cor local, levam o leitor para dentro da ficção
(GROJNOWSKI, 2000, p.127, tradução nossa.)
73
Assim, no que se refere ao espaço, a narração fantástica acontece em
locais aparentemente comuns, grandes cidades ou até mesmo em propriedades
rurais, porém em lugares isolados do convívio social aí a literatura fantástica
não economiza nas referências góticas (castelos, mansões mal-assombradas,
cemitérios).
Como afirma Gama-Khalil (2009), Poe, em seus contos, atribui a todos
elementos ficcionais uma função importante na geração de sentidos e, desse
modo, a atmosfera fantástica dos contos poeanos é, na maioria das vezes,
desencadeada por intermédio da constituição de espaços onde a história se
desenrola; a opção pelo espaço fechado é determinada, assim, não só em
função da aclamada unidade de lugar, mas também pela necessidade de gerar o
sentido de insulamento.
73
« La nouvelle invite au dépaysement, sa valeur documentaire constitue une qualité parmi
d´autres car la fantaisie ou le fantastique, tout aussi bien que la couleur locale, entraînent le lecteur
dans l´ailleurs de la fiction. » (GROJNOWSKI, 2000, p.127)
59
Em “Ligeia”, o narrador ao perder sua amada, se refugia em uma abadia in
one of the wildest and least frequented portions of fair England.
74
. em “Véra”,
no início do conto, aparece o “ vaste hôtel seigneurial, entouré de jardins
séculaires
75
; no seu interior, ele se fecha na chambre veuve (em português,
quarto viúvo) e, como se a esposa tivesse viva, diz ao velho criado para dispensar
os demais empregados e que eles iriam se isolar naquela vasta mansão senhorial
onde “l'épaisseur des jardins amortissait les bruits du dehors
76
O insulamento espacial, dessa forma, faz eco à personalidade hermética
da personagem e às mudanças conferidas ao ambiente pela presença do
elemento perturbador. O espaço é configurado, então, pelas dimensões do
protagonista em uma perspectiva determinista, em voga no século XIX. Em
sentido amplo, o determinismo geográfico é a concepção segundo a qual o meio
ambiente define ou influencia fortemente a fisiologia e a psicologia humana, de
modo que seria possível explicar a história dos povos em função das relações de
causa e efeito que se estabeleceriam na interação homem/natureza. Em “Ligeia”,
como foi dito, o narrador, devastado pela morte da amada, refugia-se em uma
velha abadia em ruínas (referência notadamente gótica) no interior da Inglaterra:
The gloomy and dreary grandeur of the building, the almost
savage aspect of the domain, the many melancholy and time-
honored memories connected with both, had much in unison
with the feelings of utter abandonment which had driven me
into that remote and unsocial region of the country. (POE,
1981, p.167, grifo nosso)
77
Fica, aqui, latente a interferência do sentimento da personagem na escolha
do local para o seu refugio. Os vocábulos “gloomy” e “dreary”, de que o narrador
fez uso para descrever o edifício, fazem referência ao que é escuro e melancólico,
tal como seu estado de espírito. É flagrante a cumplicidade entre o espaço e a
74
“[...] em um dos mais incultos e menos frequentados rincões da bela Inglaterra.” (MENDES,
1981, p.72).
75
“[...] vasta mansão senhorial, circundada de jardins seculares.” (DOMINGOS, 2009, p. 84).
76
“[...] espessura dos jardins amortecia os barulhos do exterior.” (DOMINGOS, 2009, p. 88).
77
“A grandeza melancólica e sombria do edifício, o aspecto quase selvagem da propriedade, as
muitas recordações tristonhas e vetustas que a ambos se ligavam tinham muito de união com os
sentimentos de extremo abandono que me haviam levado àquela remota e deserta região
do interior” (MENDES, 1981, p.72, grifo nosso).
60
personagem. Como afirma Grojnowski (2000), nas narrativas curtas todos os seus
componentes se intensificam para reforçar a eficácia da narração na produção do
efeito sobre o leitor, assim sendo, o espaço da novela traduz a percepção da
personagem.
A construção espacial é, dessa forma, muito rica e influi diretamente na
percepção do fenômeno sobrenatural: ao restaurar a velha abadia, o quarto onde
o protagonista passará as noites com a sua segunda esposa é reconstruído de
modo a criar um cenário, pleno de sugestões fantasmagóricas:
The room lay in a high turret of the castellated abbey, was
pentagonal in shape [...] the bridal couch of an Indian model,
and low, and sculptured of solid ebony, with a pall-like canopy
above. In each of the angles of the chamber stood on end a
gigantic sarcophagus of black granite, from the tombs of the
kings [...].To one entering the room, they bore the appearance
of simple monstrosities […]. The phantasmagoric effect was
vastly heightened by the artificial introduction of a strong continual
current of wind behind the draperies — giving a hideous and
uneasy animation to the whole (POE, 1981, p.173, grifo nosso).
78
Interessante observar que o narrador atribui ao quarto do casal
características de uma câmara mortuária com sarcófagos, panos mortuários,
túmulos. Assim, quando o fenômeno sobrenatural, sugestivamente, é instaurado,
ele é atribuído ao mórbido cenário:
[…] she spoke of sounds, and of motions, in and about the
chamber of the turret, which I concluded had no origin save in
the distemper of her fancy, or perhaps in the phantasmagoric
influences of the chamber itself (POE, 1981, p.173, grifo
nosso).
79
78
“O aposento achava-se numa alta torre da abadia acastelada [...]o leito nupcial de modelo
indiano, baixo e esculpido em ébano maciço, encimado por um dossel semelhante a um pano
mortuário. Em cada um dos ângulos do quarto se erguia um gigantesco sarcófago de granito
negro tirado dos túmulos dos reis [...]. Para quem entrasse no quarto, tinham a aparência de
simples monstruosidades [...] O efeito fantasmagórico era vastamente realçado pela
introdução artificial duma forte corrente contínua de vento por trás das cortinas, dando horrenda e
inquietante animação ao todo” ( MENDES, 1981, p.75, grifo nosso).
79
“[...]referia-se ela a sons e a movimentos dentro e em redor do quarto da torre, e que eu não
podia deixar de atribuir senão ao desarranjo de sua imaginação ou talvez às fantasmáticas
influências do próprio quarto” (MENDES, 1981, p.74, grifo nosso).
61
Desse modo, a atmosfera gótica é construída não somente em função da
localização espacial, mas também pela escolha precisa de cada item do
mobiliário. O texto “Filosofia do Mobiliário” (1997), de autoria do próprio Poe,
corrobora essa posição. Publicado em um primeiro momento em 1980 na Burton’s
Magazine, ele intenta discutir, sob a aparência de uma irônica crítica de
decoração, a importância de cada objeto na constituição do espaço.
Se em “Ligeia” a ambientação fantasmagórica do quarto favorece a
aparição do elemento sobrenatural, em “Véra”, o elemento sobrenatural provoca
uma mudança no ambiente que pode ser visualizada pelo jogo entre claro/escuro
atribuído a adjetivos que simbolizam, respectivamente, a presença e a ausência
de Véra. Como fora antes citado, a narração se abre com o adjetivo sombre,
porém quando o conde d’Athol sente a presença de Véra, o ambiente se ilumina:
Les objets, dans la chambre étaient maintenant éclairés par une
lueur jusqu’alors imprécise, celle d’une veilleuse, bleuissant les
ténèbres, et que la nuit, montée au firmament, faisait apparaître
ici comme une autre étoile (VILLIERS, 2004, p.33, grifo nosso).
80
Mais adiante, quando o conde recobra a consciência, ele se esvair
juntamente com a luz, seu delírio de amor; antes, o que irradiava luz, se
desvanece na escuridão trazida pelo choque com a realidade:
[...] À l’instant même, à cette parole, la mystique veilleuse de
l’iconostase s’éteignit. Le pâle petit jour du matin, - d’un banal,
grisâtre e pluvieux, - filtra dans la chambre par les interstices
des rideaux. Les bougies blêmirent et s’éteignirent, laissant
fumer âcrement leurs mèches rouges ; le feu disparut sous une
couche de cendres tièdes ; les fleurs se fanèrent et se
desséchèrent en quelques moments (VILLIERS, 2004, p.39,
grifo nosso).
81
80
“Os objetos, no quarto, estavam agora iluminados por uma claridade até então imprecisa, a de
uma lamparina, azulando as trevas, e que a noite, erguida no firmamento, fazia aparecer ali como
uma estrela” (DOMINGOS, 2009, p. 95, grifo nosso).
81
“[...] No mesmo instante, a essas palavras, a mística lamparina do ícone apagou-se. A pálida
claridade do amanhecer de uma manhã banal, cinzenta e chuvosa -, filtrou-se no quarto, pelas
nesgas das cortina. As velas empalideceram e apagaram-se, deixando fumegar irritantemente
suas mechas vermelhas; o fogo desapareceu em uma camada de cinzas mornas; as flores
murcharam e secaram em alguns segundos” (VILLIERS apud DOMINGOS, 2009, p. 102, grifo
nosso).
62
É interessante observar, sob um ponto de vista de julgamento de valores,
que ao elemento diurno é associada à realidade, que aqui vem adjetivada por
“banal”; por outro lado, à luz artificial é associado o irreal, o delírio, a fantasia. O
nome, Véra, atribuído à heroína sobrenatural endossa essa inversão. Segundo
Domingos (2005), o nome pode estar ligado a três significados: à filosofia de
Hegel à qual a epígrafe faz referência, e que traduz o questionamento da noção
de verdade do mundo materialista; ao seu significado em russo origem da
heroína e que quer dizer “fé”; e, finalmente, ao seu significado em latim, “a
verdadeira”.
Os protagonistas das duas novelas se isolam completamente do convívio
social. O personagem fantástico é desse modo, arrastado para um espaço
singular de onde se irradia o sentimento de estranheza que faz eco à sua solidão,
à sua necessidade de escapar da convivência social. Quanto mais ele penetra
nesse espaço mais ele se recolhe, mais ele adentra a penumbra de seu
inconsciente:
Uma vez que a novela se atém a um único lugar, ela toma
facilmente o partido da aventura interior onde primam a emoção e
os turbilhões da subjetividade (GROJNOWSKI, 2000, p.82,
tradução nossa).
82
A experiência vivida pelos heróis se faz sentir também na demarcação
temporal. Quanto a esse aspecto, a narrativa fantástica conta com o tempo
histórico real, que comumente costuma ser recente e historicamente datado em
relação ao momento da narração, porém, quando ocorre o fenômeno
sobrenatural, uma pausa, o arrêt du temps, ou seja, a suspensão da
linearidade temporal, conferindo uma ambientação mítica e onírica ao que está
sendo narrado. Assim, a personagem fantástica é desenraizada de seu contexto
social e espaciotemporal, pois prefere viver alienada e exilada. Como aponta
Philippov (1999) acerca do aspecto espaciotemporal:
Este espaço e tempo do irreal podem representar momentos de
transição mítica entre a vida e a morte, entre o devir e o vivido.
82
« Lorsque la nouvelle s´en tient à un lieu unique , elle prends volontiers le parti de l´aventure
intérieure où priment l´émotion, les remous de la subjectivité. »
(GROJNOWSKI, 2000, p.82)
63
Marcam, portanto, dentro da degenerescência, da decomposição
e da transitoriedade moderna, uma busca de perenidade e
permanência que apenas o passado vivido pode garantir.
(PHILIPPOV, 1999, p.103)
“Ligeia” é uma metaficção, pois o narrador conta e ao mesmo tempo
escreve sua própria história. Há, assim, a imbricação de dois tempos: o tempo da
narrativa, presente à enunciação, e o tempo da história, do passado, das
reminiscências. Esse recurso narrativo faz com que o narrador não enxergue os
fatos contados com clareza já que a distância temporal entre os acontecimentos e
sua narração reveste o conto de um fog, de uma nebulosidade eloquente. Em
Poe, a escolha da narração em primeira pessoa é, propositalmente, propícia:
And now, while I write, a recollection flashes upon me that I
have never known the paternal name of her who was my friend
and my betrothed, and who became the partner of my studies,
and finally the wife of my bosom. Was it a playful charge on the
part of my Ligeia? or was it a test of my strength of affection, that I
should institute no inquiries upon this point? or was it rather a
caprice of my own —a wildly romantic offering on the shrine of the
most passionate devotion? I but indistinctly recall the fact itself
(POE, 1981, p.164, grifo do autor e nosso).
83
Dessa forma, toda demarcação cronológica expressa no texto é alienada
às reminiscências do narrador e às suas impressões sobre ela.
Em “Véra”, a superposição do irreal e do real faz com que o tempo da
narrativa esteja sempre no limiar entre o histórico real, medido pela linearidade, e
o tempo psicológico, interior à personagem, permeado por pausas, feed-back,
culminando na total paralisação do tempo. Assim, a narrativa começa pontuando:
« C’était à la tombée d’un soir d’automne, en ces dernières années à Paris » .
(VILLIERS, 2004, p. 29)
84
.
Em seguida, quando o fenômeno fantástico se impõe, há
ainda uma demarcação temporal, mas a concretude da linearidade cronológica é
83
E agora, enquanto escrevo, uma lembrança me vem, como um clarão: que eu jamais
conheci o nome de família daquela que foi minha amiga e minha noiva, que se tornou a
companheira de meus estudos e finalmente a esposa de meu coração. Fora uma travessa
injunção de Ligéia ou uma prova da força de meu afeto que me levara a não indagar esse ponto?
Ou fora antes um capricho de minha parte, uma oferta loucamente romântica, no altar da mais
apaixonada devoção? confusamente me lembro do próprio fato”. (MENDES, 1981, p.64,
grifo do autor e nosso)
84
“Era o cair de uma tarde de outono, nestes últimos anos em Paris” (DOMINGOS, 2009, p. 90).
64
suplantada pelas pausas, como quando o protagonista rememora seu primeiro
encontro com Véra, ou até mesmo pelo avanço cronológico:
Les jours, les nuits, les semaines s’envolèrent. Ni lun, ni
l’autre ne savait ce qu´ils accomplissaient. Et des phénomènes
singuliers se passaient maintenant,où il devenait difficile de
distinguer le point où l’imaginaire et le réel étaient identiques
(VILLIERS, 2004, p.35, grifo nosso).
85
O arrêt du temps é levado a cabo no fim da narrativa, quando o conde
d’Athol perde, pela segunda vez, a sua amada:
[...] le balancier de la pendule reprit graduellement son
immobilité. La certitude de tous les objets s’envola
subitement. L’opale morte, ne brillait plus (VILLIERS, 2004, p.39,
grifo do autor e nosso).
86
Mais uma vez, a narrativa flagra a inversão de valores ensejada pelo autor.
Aqui, a imobilidade é atribuída ao tempo cronológico, e a certeza trazida pelo
fenômeno sobrenatural.
Como assinala CASTEX (1962), a primeira versão do conto, publicada em
1847, terminava com a ressurreição de Véra no momento em que “ils
s’aperçurent, alors, qu’ils n’étaient, réellement, qu’un seul être.(VILLIERS, 2006,
p.38, grifo do autor)
87
; porém, continua o autor, o novo desfecho da versão
definitiva, publicada em 1883, na obra Contes Cruels, reforça a intenção de
Villiers de partir em busca do mundo ideal. Assim, a chave do mausoléu de Véra é
apresentada ao conde (e consequentemente ao leitor) como uma solução para o
embate entre matéria e espírito. Ela estaria, então, no au-delà, no além, onde
habita o Absoluto e onde a união de almas não é profanada pela morte.
85
Os dias, as noites, as semanas voaram. Nem um nem outro sabia o que realizavam. E
fenômenos singulares ocorriam agora, nos quais se tornava difícil distinguir o ponto em que o
imaginário e o real eram idênticos” (DOMINGOS, 2009, p. 97, grifo nosso.)
86
“[...] o balanço do pêndulo retomou gradativamente sua imobilidade. A certeza de todos os
objetos desapareceu subitamente. A opala morta não brilhava mais.” ( DOMINGOS, 2009, p.
102, grifo nosso).
87
“E eles perceberam, então, que não eram senão um único ser.” (DOMINGOS, 2009, p. 101, grifo
do autor).
65
Se, para Todorov (1992),
88
a referida chave preconiza a presença do
elemento maravilhoso, o presente estudo é tentado a defender que, pelo
contrário, ela ativa o fenômeno fantástico. Pois, uma vez que o leitor, tal como
Raymond, havia sofrido um processo de naturalização do elemento sobrenatural,
pois ele estava habituado à presença de ra, a chave traz consigo o o
caminho para outro mundo, mas também instaura de uma vez a dúvida sobre se
de fato ocorreu o fenômeno sobrenatural.
Dessa maneira, o leitor pode ser levado a acreditar que de fato foi o
espectro de Véra o responsável pelo reaparecimento da chave, como fora
anteriormente sugerido pelo próprio narrador; porém, o estado de espírito,
abalado, do conde pode sugerir que tudo não passa de outro delírio, causado pelo
impacto, quando confrontado pela segunda vez com a dura realidade.
Em “Ligeia”, essa hesitação vai sendo tecida ao longo do texto, seja pelo
recurso à narração em primeira pessoa, seja pelo constante uso de entorpecentes
pelo narrador, pela distância temporal entre os acontecimentos e sua narração,
pelo ambiente fantasmagórico, ou até mesmo pela declaração do narrador de que
desde criança ele tomara gosto pelas fantasias. Por outro lado, a filosofia de
Ligeia de que “o homem não se submete aos anjos, nem se rende inteiramente à
morte, a não ser pela fraqueza de sua débil vontade”
89
, bem como sua ânsia de
viver podem dar indícios ao leitor de que ela superou a barreira que separa o
mundo espiritual e o material para voltar ao mundo dos vivos.
Uma vez superada todas as possíveis interpretações dos mais variados
leitores, nos seus diferentes contextos histórico-culturais (o leitor do século XIX
poderia estar mais propenso à explicação sobrenatural de ambos os contos, o
do século XX, depois do incurso da psicanálise, poderia optar pela explicação
lógica, recorrendo ao entorpecimento da consciência pela dor), o que perdura é a
hesitação. Em qualquer época, o leitor encontra-se em uma corda bamba
suspensa entre a realidade palpável e a impalpável realidade sobrenatural. Pois,
como afirma Vladimir Soloviov (1992), filósofo e místico russo do séc. XIX:
88
[...] “Véra” de Villiers de l 'Isle-Adam ao longo de toda novela, pode hesitar-se entre crer na
vida depois da morte; ou julgar o conde, que nisso acredita, louco. Mas no final, o conde descobre
em seu quarto a chave do túmulo de Véra; ora, esta chave, ele mesmo a tinha jogado no interior
do túmulo; é forçoso então que seja Véra, a morta, quem a tenha trazido. (TODOROV, 1992, p.37)
89
“Man doth not yield him to the angels, nor unto death utterly, save only through the weakness of
his feeble will." ( MENDES, 1981, p.64)
66
No verdadeiro fantástico, fica sempre preservada a possibilidade
exterior e formal de uma explicação simples dos fenômenos, mas
ao mesmo tempo esta explicação é completamente privada de
probabilidade interna.
90
Porém, como afirma Steinmetz (1990), se em Poe o fantástico nasce não
dos sonhos, mas de um mórbido poder do terror exercido na consciência; em
Villiers, predomina o fantástico essencialmente simbolista, aquele marcado pelo
apego ao onírico e à espiritualidade. Por outro lado, ambos fazem recurso a esse
gênero como forma de penetrar no lado mais obscuro da mente humana, aquele
ignorado pela realidade positivista e cartesiana, favorecendo a reintegração do eu
com todos os seus aspectos. A presença da morte, desse modo, se faz mister
uma vez que ela é tomada como o elo entre o mundo material e o espiritual.
Conclui-se, dessa maneira, que “Ligeia” e “Véra” são contos elaborados
poeticamente através do discurso fantástico, de teor altamente transgressor.
Assim, eles se comunicam, que em ambos a presença do amor e da morte é
reivindicada como meio de superação da realidade material para se alcançar o
absoluto, levando o leitor, por meio de um processo catártico de identificação com
a personagem, a evadir-se das concepções positivistas do mundo, taxadas como
verdade absoluta.
A seguir, enfocaremos a questão da morte como elemento estruturador das
duas narrativas em questão.
90
SOLOVIOV apud TODOROV, 1992, p.32
67
3 A EXPRESSÃO DA MORTE EM “LIGEIA” E EM “VÉRA”
O conteúdo pré-histórico da morte subsiste
em nós, nos nossos sonhos, fantasias, na
estética dissolvendo e amortecendo a
nossa morte trazendo em si as verdades
antropológicas mais profundas. (MORIN,
1970, p.164)
A fuga da realidade provocada pelo entorpecimento da consciência diante
da morte é o que move os contos “Ligeia”, de Edgar Allan Poe e “Véra”, de Villiers
de l’Isle-Adam. Esse movimento de fuga está diretamente associado ao seu
temor.
Segundo Edgar Morin (1970), em O Homem e a Morte, a existência de uma
consciência realista da morte como uma lei inelutável data do período pré-
histórico. Embora ela não exista ainda nos vocabulários arcaicos, como um
conceito, mas como uma viagem, uma entrada para a morada dos antepassados,
a sua consciência como aniquilamento do ser é incessantemente repelida,
transferida e metamorfoseada na vida quotidiana. Deste modo, a ideia de morte
aniquilamento está no cerne da crença humana na imortalidade.
O temor à morte associa-se ao sentimento da perda da individualidade, da
consciência de um vazio onde havia a plenitude individual:
[...] quanto mais o homem descobre a perda da individualidade
por detrás da realidade putrescente de uma carcaça, tanto mais
fica traumatizado, e quanto mais ele é afetado pela morte, tanto
mais descobre que ela é a perda irreparável da realidade
(MORIN, 1970, p.33).
Dessa maneira, as práticas funerárias e o luto o recursos elaborados
pelo processo civilizatório que visam proteger os vivos contra “o contágio da
morte”, tabu que está ligado ao estado de impureza da decomposição do cadáver.
Como ressalta Kennedy (1993) no ensaio “Ligeia” and the problem of dying
womem, o poema, “The Conqueror Worm”, feito e recitado por Ligeia, momentos
antes de seu corpo sucumbir à morte, exprime as ansiedades mais profundas do
68
narrador sobre a morte e a decomposição”. (KENNEDY, 1993, p.121, tradução
nossa)
91
:
[…]But see, amid the mimic rout,
A crawling shape intrude!
A blood-red thing that writhes from out
The scenic solitude!
It writhes! — it writhes! — with mortal pangs
The mimes become its food,
And the seraphs sob at vermin fangs
In human gore imbued.[...] (POE, 1981, p,172).
92
Aqui, o verme é o anti-herói desse drama tétrico que é a vida e, ao se
infiltrar em seus bastidores, se alimentando de sangue humano, acaba por
prevalecer no final. Como afirma Benjamin (1985, p.207), se na Idade Média
morrer era um espetáculo público na vida do indivíduo, durante o culo XIX, a
sociedade burguesa rechaçou a morte do universo dos vivos, especializando
instituições responsáveis pelas práticas funerárias de modo a permitir ao homem
evitar o “espetáculo da morte”. Assim, durante o período de luto associado ao
período de putrefação do cadáver que se estende a mais ou menos um ano os
parentes do morto eram isolados do convívio social e suas roupas negras traziam
a marca do tabu que os tornava intocáveis.
Em “Véra”, esse período que seria atribuído ao luto coincide, não por
acaso, com o período em que o viúvo, Roger d’Athol, desesperado com a morte
de sua adorada esposa Véra, a trouxe de volta à vida pela força de seu amor:
Une année s'était écoulée. Le soir de l'Anniversaire, le comte,
assis auprès du feu, dans la chambre de Véra, venait de lui lire
un fabliau florentin : Callimaque [...] La chambre semblait joyeuse
et douée de vie, d'une façon plus significative et plus intense que
91
If Ligeia has articulated a fundamentally masculine resistance to the Conqueror Worm, she has
in her lat hours presumably voiced the narrator’s deepest anxieties about death and
decomposition” (KENNEDY, 1993, p.121)
92
“[...]
Mas, olhai! No tropel dos atores
uma forma se arrasta e insinua!
Vem, sangrenta, a enroscar-se, da nua
e erma cena, junto aos bastidores,
a enroscar-se! Um a um, cai, exangue,
cada ator, que esse monstro devora.
E soluçam os anjos - que é sangue,
sangue humano, o que as faces lhe cora.[...]”
( MENDES, 1981, p.64).
69
d'habitude. Mais rien ne pouvait surprendre le comte ! Cela lui
semblait tellement normal, qu'il ne fit même pas attention que
l'heure sonnait à cette pendule arrêtée depuis une année
(VILLIERS, 2004, p.32, grifo do autor).
93
Assim, extremamente traumatizado pela perda da amada ele nega a morte
e, por extensão, o luto. Talvez, em uma leitura mais atenta, possamos concluir
que o horror à putrefação é tão intenso que, durante todo o período a ela
associado, o tempo cronológico é paralisado como mostra a passagem “cette
pendule arrêtée depuis une année” (em português, “estendulo parado fazia um
ano”).
O trauma vivificado pela experiência da putrefação cadavérica revela a
inadaptação do homem frente a sua espécie, uma vez que a morte é inerente a
ela. Porém, observa-se que em uma sociedade gregária o impacto desse trauma
é menor, que a configuração do indivíduo está imbricada no âmbito social;
sendo assim, nas sociedades antropocêntricas, que valorizam a afirmação da
individualidade em detrimento da espécie, o trauma da morte é mais intenso.
Dessa forma, a religião nasce dessa inadaptação do indivíduo como um meio de
canalizar o temor à morte por meio do mito da imortalidade.
Se antigamente (no Egito, na Grécia politeísta, por exemplo) o direito à
imortalidade era privilégio de reis e de alguns eleitos pertencentes às camadas
mais abastadas da sociedade, com o cristianismo ela se populariza estendendo-
se aos oprimidos à medida que se adquire e emerge-se econômica e socialmente
à superfície social. Esse processo culminou, na segunda metade do século XIX,
na “crise da morte”
94
, ou seja, na crise da individualidade diante do mundo
contemporâneo. Ela começara a ser ensejada pelo “mal do século” dos
românticos, que, inadaptados ao novo ambiente urbano, procuravam se refugiar
no passado, em busca do “paraíso perdido”, ou até mesmo no futuro, frente à
expectativa profética de um mundo luminoso.
93
Um ano decorrera. Na noite do Aniversário, o conde sentado junto ao fogo, no quarto de Véra,
acabava de ler para ela uma fábula florentina: Calímaco [...] O quarto parecia alegre e dotado de
vida, de um modo mais significativo e mais intenso que de costume. Mas nada podia surpreender
o conde! Aquilo lhe parecia tão normal, que nem mesmo prestou atenção que a hora soava
naquele pêndulo parado fazia um ano (DOMINGOS, 2009, p.99-100)
94
Expressão cunhada por MORIN (1970, p.128).
70
Em 1848, com o desmembramento do Romantismo, os dois polos de
inadaptação humana se afastaram: de um lado, a fuga para o futuro, de aspiração
socialista e revolucionária; de outro, a recusa do presente remetendo ao
isolamento hermético. Esse isolamento resultara do desespero diante da
consciência da impotência humana perante a morte, levando assim a sociedade a
um estado niilista de morbidez coletiva. Como fora explicitado anteriormente,
esse desespero fora expresso, em termos literários, pelo apelo ao sobrenatural,
com o florescimento do gênero fantástico, e posteriormente pela estética
simbolista e decadentista.
Nas narrativas em questão, a morte é o centro gravitacional e todos os
seus elementos são por ela configurados. O espaço, por exemplo, como vimos
anteriormente, é tomado ora pelo ambiente nebre (em “Ligeia”, com seu
fantastic chamber”, do português, quarto fantástico.) ora, pelo ambiente
nostálgico (em “Véra”, com sua “chambre veuve”, do português, quarto viúvo),
porém, ambos são assombrados pela morte ou, pela sua negação; o tempo, por
sua vez, adquire uma conotação psicológica uma vez que a trama não se desloca
de acordo com o tempo cronológico. Em “Véra”, o pêndulo, como já fora
anteriormente mencionado, pára com a manifestação da morte via o elemento
sobrenatural (“ [...] la pendule, dont il avait brisé le ressort pour qu'elle ne sonnât
plus d'autres heures.”
95
) ; em “Ligeia”, o tempo cronológico é tampouco importante
apesar de pontuado pelo narrador, toda trama é tecida pelas elucubrações do
narrador-personagem a respeito da morte, seja de sua amada Ligeia, seja da sua
segunda esposa, Lady Rowena:
It might have been midnight, or perhaps earlier, or later, for I had
taken no note of time, when a sob, low, gentle, but very distinct,
startled me from my revery (POE, 1981, p.178, grifo nosso).
96
Nas duas narrativas, a morte é testemunhada pelos protagonistas e passa
por duas etapas: a primeira se refere à aniquilação da matéria gerando a
nostalgia nos entes queridos.
95
“[...] o ndulo, cuja mola ele quebrara para que o mais soasse outras horas.(DOMINGOS,
2009, p.93).
96
“Podia ser meia-noite, ou talvez mais cedo ou mais tarde, pois eu não notava o decorrer do
tempo, quando um soluço, baixo, suave, mas bem distinto, me sobressaltou do sonho.”
(MENDES, 1981, p.76, grifo nosso).
71
Em “Ligeia”:
[…] the many melancholy and time-honored memories
connected with both, had much in unison with the feelings of utter
abandonment which had driven me into that remote and unsocial
region of the country (POE, 1981, p.173, grifo nosso).
97
Em “Véra”:
Tout à coup, le charme se rompait ;l´accident terrible les
désunissait; leurs bras s'étaient désenlacés. Quelle ombre lui
avait pris sa chère morte? Morte! Non (VILLIERS, 2004, p.32,
grifo nosso).
98
A segunda etapa se refere à superação da morte pela vontade, expressa
pelo amor, como maneira de restituir a unidade do casal por ela abalada. Nessa
segunda etapa, a morte é transfigurada e simbolizada pela aparição do espectro
das amadas falecidas por meio do duplo que como veremos consiste em uma
manobra do espírito para salvaguardar o eu desdobrando-se em múltiplas formas.
Em “Ligeia”:
The hues of life flushed up with unwonted energy into the
countenance the limbs relaxed and, save that the eyelids
were yet pressed heavily together, and that the bandages and
draperies of the grave still imparted their charnel character to the
figure, I might have dreamed that Rowena had indeed shaken
off, utterly, the fetters of Death (POE, 1981 p.180, grifo nosso).
99
Em “Véra”:
Une présence flottait dans l´air: une forme s'efforçait de
transparaître, de se tramer sur l'espace devenu indéfinissable
(VILLIERS, 2004, p.32, grifo nosso).
100
97
“[...]as muitas recordações tristonhas e vetustas que a ambos se ligavam tinham muito de união
com os sentimentos de extremo abandono que me haviam levado àquela remota e deserta região
do interior.” (MENDES, 1981, p.72, grifo nosso).
98
“De repente, o charme rompia-se, o acidente terrível os desunia; seus braços desenlaçaram-
se. Que espectro roubara-lhe sua querida morta? Morta! Não.” (DOMINGOS, 2009, p.88, grifo
nosso).
99
“As cores da vida irromperam, com indomável energia, no seu rosto, os membros se relaxaram
e, a não ser porque as pálpebras ainda se mantivessem estreitamente cerradas e porque os
planejamentos e faixas tumulares ainda impusessem seu caráter sepulcral ao rosto, eu poderia ter
sonhado que Rowena na verdade, repelira completamente as cadeias da Morte.” (MENDES,
1981, p.78, grifo nosso).
100
Uma presença ondulava no ar: uma forma esforçava-se para transparecer, para se tramar no
espaço que se tornou indefinível.” (DOMINGOS, 2009, p.91, grifo nosso)
72
Dessa forma, a presença obsessiva da morte se por meio da presença
obsessiva dos mortos. O espírito, representado pelo conceito de duplo seria,
assim, resultado da crença na sobrevivência da alma à decomposição do corpo e
na salvação da individualidade humana; suas manifestações, que datam desde as
sociedades arcaicas, se revelam por meio da sombra, do eco, do reflexo no
espelho, etc.
Dessa maneira, a literatura retoma o duplo como um suporte antropológico,
como manobra do espírito humano que se conhece intimamente através da
projeção do “eu”. Além dessa perspectiva de autoconhecimento, esse suporte
funciona como uma autoafirmação da individualidade humana em face à sua
impotência perante a morte e à reivindicação da imortalidade. Nos referidos
contos, o duplo se manifesta pela presença perturbadora do espírito das duas
jovens senhoras que foram arrancadas do seio da vida, e seus respectivos
esposos vão a seu encontro.
3.1 O FENÔMENO DA DUPLICIDADE: SUAS MANIFESTAÇÕES AO
LONGO DA HISTÓRIA DA LITERATURA E SUA EXPRESSÃO EM “LIGEIA E
EM “VÉRA”
Em “Ligeia” e em “Véra”, a presença do duplo é invocada pelos
protagonistas como resultado de uma elaboração psíquica, sensorial e até mesmo
intelectual da perda de suas amadas. Se em “Ligeia” essa invocação é sugerida
pelas alucinações do viúvo devido ao uso imoderado de ópio e até mesmo da
ambientação fantasmagórica do quarto, em “Véra”, a manifestação do duplo
aparece, primeiramente, como fruto da imaginação do viúvo em reação à
intolerável perda de sua amada e, finalmente, pela sugestão do seu efetivo
retorno ao mundo dos vivos.
Se nesses contos a manifestação do duplo pode ser interpretada como
uma defesa do eu contra o seu esfacelamento perante a morte, o tema da
duplicidade, ou seja, do sujeito que possui sua identidade dividida em partes
contrastantes é bastante recorrente na história da literatura e suas ocorrências
73
variam de acordo com o momento histórico e o pensamento filosófico de cada
época, até ganhar amparo científico com o advento da psicanálise no fim do
século XIX.
Edgar Morin (1970) faz um estudo sobre o duplo em culturas arcaicas e
constata que, nas civilizações antigas, ele estava sempre ligado à morte, e sua
presença era uma constante durante a vida do homem primitivo, e embora isso o
aterrorizasse, não lhe restava outra alternativa a não ser aprender a lidar com ela.
Uma das manifestações mais recorrentes do duplo arcaico enquanto
sentimento da morte é a sombra. As crenças que giram em torno do duplo em
culturas arcaicas apresentam reflexos nos dias atuais; Morin (1970) esclarece que
o medo que existia da sombra antigamente ainda está presente hoje, como por
exemplo: um lugar assombrado, no sentido próprio do termo, é aquele que possui
sombras, contudo, no sentido figurado, um lugar assombrado é o ambiente onde
habitam fantasmas.
Outra manifestação do duplo é o espelho. O espelho, segundo várias
crenças orientais e ocidentais, é um objeto mágico capaz de captar o interior do
sujeito que se põe à sua frente e de reproduzir uma imagem que, em muitos
casos, não coincide com a aparência do ser. Ele oferece um reflexo invertido de
algo e, por causa disto, pode colocar à mostra o indivíduo em sua totalidade, com
o seu verso e o seu reverso.
O duplo pode ser também representado pela figura do anjo. Os anjos
possuem corpo análogo ao humano, mas seu espírito é celeste, eles são
intermediários entre Deus e o homem, daí sua natureza dupla. Além disso, a
tradição cristã considera que todo homem bom e justo possui um anjo guardião e
protetor, o qual pode trazer-lhe mensagens celestes e conforto para a alma. O
anjo, nesse sentido, é considerado como uma dupla face do ser humano, ou seja,
uma esfera divina (imortal) que acompanha um corpo terreno (mortal).
na Antiguidade, o mito do duplo fazia refletir a concepção unitária do
mundo; neste contexto, o duplo simbolizava o homogêneo e era representado por
duas personagens que apresentavam semelhanças físicas como o sósia, o irmão,
o gêmeo, etc.
Dessa forma, as obras literárias discorriam a respeito de personagens
duplicadas, metamorfoseadas ou que tiveram suas identidades usurpadas;
74
todavia, no desfecho, elas voltavam a ser como eram antes da duplicação, isto
porque a tendência filosófica dominante não almejava discutir a questão da
multiplicidade da personalidade, mas, ao contrário, queria-se reafirmar o sentido
de unidade do ser e do universo que sobressaia no pensamento mitológico,
religioso e filosófico predominante até fins do século XVI.
A partir do século XVII, o homem percebe que o universo não é guiado por
uma única força, mas que o ser humano também tem um grande poder de
dominar a natureza. A ideia de unidade da consciência e da identidade do sujeito
e do mundo passa a ser questionada, o homem vê-se como o centro do universo
e não mais como a sombra de uma divindade que o subjuga. Nesse contexto, a
temática do duplo, que até então era manifestada pelo idêntico, tende a ser
explorada tendo em vista o heterogêneo e o disforme. E é no Romantismo que
essa temática manifestada pelo heterogêneo emerge com grande força.
O termo “duplo” Doppelgänger, em alemão cunhado, em 1796, pelo
escritor alemão Jean Paul Richter (1763-1825), foi consagrado pelo movimento
romântico e significa “aquele que caminha ao lado”, “o companheiro de estrada”.
Durante o conturbado momento histórico e político da Revolução Francesa
antecessor do movimento romântico o homem se em descompasso com o
mundo em que vive. As promessas da Revolução de liberdade, igualdade e
fraternidade para todos caíram por terra, a emergência da burguesia acentuou a
pobreza, a miséria e o indivíduo encontra-se num momento de profunda crise de
identidade, incertezas e angústias. Neste universo, a tendência que prevalece é a
da valorização da subjetividade e das questões que atormentam o mais profundo
íntimo do ser. Assim, Bravo (2000) declara que:
Numa época de convulsão política, em que as hierarquias não
se mantêm, em que a autoridade do Estado e da Igreja é posta
em discussão, a problemática da identidade pessoal torna-se
crucial [...]. O mundo é uma duplicata: tudo não passa de
aparência, a verdadeira realidade está fora, noutro lugar, tudo o
que parece ser objetivo é, na verdade, subjetivo, o mundo não é
senão o produto do espírito que dialoga consigo próprio.
(BRAVO, 2000, p. 269-70).
É nesse momento que se o advento do Romantismo. A visão romântica
do “eu” aparece, então, condicionada ao componente histórico e político (a
75
Revolução Francesa) e também guiada pela filosofia idealista de cunho platônico,
do alemão Johann G. Fichte (1762-1814), que serve de suporte metafísico à
teoria do eu duplicado. Segundo essa filosofia, a realidade concreta e palpável é
uma parcela de algo maior e prender-se a ela é subordinar-se a algo finito,
limitado. Assim, os românticos sempre buscavam algo superior, infinito, e é
através da obra de arte que essa busca se concretiza. Dessa forma, o sentimento
de exílio, o anseio por algo pleno se projeta na fuga, ora para o passado, ora para
o futuro (utopia); ora para o fantástico e o inconsciente.
Os românticos tiveram consciência da complexidade do ser humano, da
sua dinamicidade. Eles defendem que, além do mundo físico, o homem é dotado
de outros domínios que a razão não poderia facilmente decodificar: assim, cada
homem é um mundo a ser explorado. Com a valorização da experiência da
subjetividade, um dos gêneros que mais se destaca no Romantismo é o
fantástico, e é por meio dele que o tema da duplicidade se manifesta com mais
rigor:
o tema da duplicidade do Eu mostra uma afinidade particular
com um gênero literário - o fantástico - tendo alcançado o
apogeu no Romantismo, momento em que se consolida a
exploração do tenebroso e do irracional na ficção, tendência que
faz face ao paradoxismo do racionalismo ocidental. A imagem do
desdobramento, como a revelação do lado desconhecido do
homem, é muito explorada pelos românticos [...] (MELLO, 2000,
p.117, grifo nosso).
A expressão do duplo é, dessa forma, reflexo da “revolução de Copérnico”,
ensejada pelo Romantismo: tudo é visto sob o ponto de vista do homem e tudo
por ele é controlado.
O tema da duplicidade, nas últimas décadas do século XIX e início do
século XX na Europa, é abordado de forma a compreender o ser humano em sua
complexidade psíquica. Neste sentido, a arte literária antecipa de certa forma o
que será fundamentado cientificamente com as investigações psicanalíticas
posteriores. Como comenta Bravo (2000): “o sujeito freudiano dividido aparece na
literatura antes de ser teorizado”.
Freud, com a teorização sobre o inconsciente, mostra que o ser humano,
como diziam os românticos, não é uno, mas ao contrário, nele coabitam forças
76
que se chocam a todo instante. Dessa forma, a psicanálise mostra que o indivíduo
é um ser multifacetado, e, ainda, mostra que o heterogêneo faz parte da própria
condição humana.
Freud atribui a existência dessa pluralidade do ser humano ao
desenvolvimento do seu próprio eu. Assim, na primeira infância, o ser é uno, ele
não tem consciência do limite entre o eu e o outro e vive com o corpo da mãe e
com o mundo ao seu redor uma relação simbiótica plena. Porém, a harmonia
dessa unidade é desfeita quando a figura do pai entra em cena e perturba a sua
intensa ligação com a mãe. Receosa de não reencontrar o equilíbrio perdido, a
criança culpabiliza o pai e nele investe toda a sua hostilidade; esse impulso
parricida foi descrito por Freud e alcunhado por Carl Jung como “Complexo de
Édipo”, em referência à tragédia de Sófocles (496-406 a.C), Édipo Rei, que
discorre sobre a preferência velada do filho pela mãe, acompanhada de uma
aversão clara pelo pai.
Freud explicita que nessa fase da infância, conhecida como edipiana, a
criança se conta da diferenciação sexual ao perceber o falo do pai e a falta
dele na mãe. Ao presumir que a e foi castrada, o menino teme pelo seu falo e
a menina se crê vítima de amputação. A angústia causada pela eminente
castração é conhecida na psicanálise como “ Complexo de Castração”.
Embora traumáticos, tanto o Complexo de Édipo quanto o de Castração
são necessários à emancipação psíquica da criança uma vez que, nessa fase, ela
aprende a reprimir seus instintos e impulsos para poder inserir-se na sociedade.
O psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981) reestruturou o
complexo de Édipo sob bases linguísticas e alcunhou a fase pré-edipiana de fase
metafórica e a pós-edipiana de fase metonímica.
Na fase metafórica, a criança, ao se contemplar no espelho, se como
um todo unívoco, ou seja, sua imagem refletida é ao mesmo tempo o significante
e o significado. Essa fase remete a um outro conceito psicanalítico, o de
Narcisismo; postulado por Freud em referência ao Mito de Narciso, personagem
mítica que morre afogada ao mergulhar num riacho de águas cristalinas para
reaver sua bela imagem refletida.
No entanto, com a vivência do Complexo de Édipo e da tomada de
consciência da diferenciação sexual com o Complexo de Castração, o sujeito
77
emerge radicalmente dividido entre a vida consciente e o desejo inconsciente
reprimido, dessa forma, a criança passa da fase metafórica para a fase
metonímica:
A criança é afastada dessa fase “plena” imaginária e levada para o
mundo vazio da linguagem. A liguagem é “vazia” porque é apenas
um processo interminável de diferença e ausência: em lugar de
possuir alguma coisa em sua plenitude , a criança agora
simplesmente passará de um significante para outro, ao longo de
uma cadeia linguística potencialmente infinita o mundo
“metafórico” do espelho cedeu terreno ao mundo “metonímico” da
linguagem (Eagleton, 2006 , p.180, grifos do autor).
A fase metonímica, assim, engloba uma outra fase do narcisismo, aquela
em que a criança, ao reconhecer sua incompletude, se mira no outro no intuito de
reconquistar o estado simbiótico com a natureza:
O narcisismo secundário se defini como o investimento libidinal
(sexual) da imagem do eu, sendo essa imagem constituída pelas
identificações do eu com as imagens do objeto (Nasio, 1997, p.55,
grifo nosso).
Segundo J.-D. Nasio (1997, p.55), o termo “objeto” aqui empregado
designa uma “representação inconsciente prévia à existência de alguém fruto
de um processo de identificação narcísica.
Essa relação erótica em que o indivíduo humano se fixa numa
imagem que o aliena em si mesmo, está a energia e aí está a
forma de onde se origina a organização passional que ele chamará
de seu eu (LACAN, 1966, p.113, grifo do autor).
Para a psicanálise, essa identificação do “eu” com o outro pode ser total ou
parcial. Embora a identificação total exista conceitualmente e, segundo Nasio
(1997), não se refira a nenhum caso clínico concreto, a identificação parcial pode
remeter-se à imagem do “objeto” bem como a um traço saliente que o distinga.
Dentre esses traços, esse autor cita como exempo o timbre de voz:
Todos os seres que vocês amaram e perderam como marcados por
uma sonoridade vocal idêntica, conclui-se que seu eu não é outra
coisa senão sonoridade pura, senão a inflexão singular de uma voz
múltipla e, no entanto, única (NASIO, 1997, p.107).
78
No conto Ligeia”, por exemplo o narrador, ao discorrer a respeito dos
atributos físicos de sua amada, aponta a voz como um traço distintivo de sua
pessoa:
I CANNOT, for my soul, remember how, when, or even precisely
where, I first became acquainted with the lady Ligeia. Long years
have since elapsed, and my memory is feeble through much
suffering. Or, perhaps, I cannot now bring these points to mind,
because, in truth, the character of my beloved, her rare learning, her
singular yet placid cast of beauty, and the thrilling and enthralling
eloquence of her low musical language, made their way into my
heart by paces so steadily and stealthily progressive that they have
been unnoticed and unknown (POE, 1981, p.167, grifo do autor e
nosso).
101
Como mostra a passagem em evidência acima, a melodiosa voz de Ligeia
foi um dos fatores responsáveis pelo esquecimento de qualquer informação
externa à sua pessoa. Se analisarmos vocabularmente o adjetivo “enthralling” do
inglês, “subjugante”, concluiremos que ele se origina do verbo “to enslave” do
inglês, “escravizar” . Não por acaso Ligeia, na mitologia grega, era uma das
sereias e, como é sabido, eram seres muito belos, metade humanos, metade
peixes que tinham o poder de seduzir os marinheiros com a doçura de seus
cantos. Assim, os adjetivos em questão sugerem o poder de sedução do canto de
Ligeia, capaz de subjugar o narrador, levando-o ao entorpecimento de sua
consciência.
Dessa mesma forma, no decorrer do conto, um dos indícios da presença
da amada falecida se dá através de ruidos e sons:
She partly arose, and spoke, in an earnest low whisper, of sounds
which she then heard, but which I could not hear […]. The wind was
rushing hurriedly behind the tapestries, and I wished to show her
(what, let me confess it, I could not all believe) that those almost
101
“JURO PELA MINHA ALMA que não posso lembrar-me como, quando, ou mesmo
precisamente onde, travei, pela primeira vez, conhecimento com Lady Ligéia. Longos anos se
passaram desde então e minha memória se enfraqueceu pelo muito sofrer. Ou, talvez, o possa
agora evocar aqueles pontos, porque, na verdade, o caráter de minha bem-amada, seu raro saber,
sua estranha, mas plácida qualidade de beleza e a emocionante e subjugante eloquência de
sua linguagem musical haviam aberto caminho dentro do meu coração, a passos tão constantes
e tão furtivos que passaram despercebidos e ignorados.” (MENDES, 1981, p.64, grifo do autor e
nosso).
79
inarticulate breathings, and those very gentle variations of the
figures upon the wall, were but the natural effects of that customary
rushing of the wind. But a deadly pallor, overspreading her face, had
proved to me that my exertions to reassure her would be fruitless
(POE, 1981, p.177, grifo do autor).
102
Nessa passagem, a enferma Lady Rowena, sucessora de Ligeia, pressente
uma mudança na atmosfera do quarto do casal e a atribui a sons inexplicáveis; o
narrador tenta dissuadi-la, alegando que, na verdade, esses sons eram ruídos
produzidos pelo vento, porém, nem um, nem outro estava inteiramente
convencido dessa explicação. Na sequência da ação, o narrador, antes incapaz
de ouvir tais sons, presencia um acontecimento sobrenatural cuja veracidade é
posta à prova uma vez que seus sentidos estavam inebriados pelo uso do ópio:
I had felt that some palpable although invisible object had
passed lightly by my person; and I saw that there lay upon the
golden carpet, in the very middle of the rich lustre thrown from the
censer, a shadow — a faint, indefinite shadow of angelic aspect
such as might be fancied for the shadow of a shade. But I
was wild with the excitement of an immoderate dose of opium, and
heeded these things but little, nor spoke of them to Rowena (POE,
1981, p.177. grifo nosso).
103
A sombra (em inglês, “shadow”) sentida e vista pelo narrador remete à
presença de Ligeia e, apesar do seu angélico aspecto, é tida como a responsável
pela morte de Rowena. Envenenamento por vingança ou simples alucinação?
Não cabe aqui a discussão acerca do fenômeno, porém, se faz mister destacar
que o indício da presença da falecida se faz gradualmente por meio de sons e
102
“Ela ergueu-se um pouco e falou num sussurro ansioso e baixo, de sons que ela então ouvia
mas que eu não podia perceber [...]. O vento corria com violência por trás das tapeçarias e eu
tentei mostrar-lhe (o que, confesso, eu mesmo não podia acreditar inteiramente) que aqueles
sopros, quase inarticulados, e aquelas oscilações muito suaves das figuras na parede eram
apenas o efeito natural daquela corrente costumeira de vento. Mas um palor mortal, espalhando-
se em sua face, demonstrou-me que os esforços para reanimá-la seriam infrutíferos”. (MENDES,
1981, p.75, grifos do autor)
103
Senti que alguma coisa palpável, embora invisível, passara de leve junto de mim, e vi que
jazia ali, sobre o tapete dourado, bem no meio do forte clarão lançado pelo turíbulo, uma sombra,
uma sombra fraca, indecisa, de aspecto angélico, tal como o que se poderia imaginar ter a
sombra de uma sombra. Mas eu estava desvairado pela excitação de uma dose imoderada de
ópio e considerei essas coisas como nada, não falando delas a Rowena.” (MENDES, 1981, p. 75,
grifo nosso)
80
ruídos e também por meio de vultos e sombras. O leitor, por meio da sugestão do
narrador, é levado, assim, a vincular, metonimicamente, esses indícios à pessoa
de Ligeia.
Dessa forma, o viúvo, a recupera do mundo dos mortos a fim de
restabelecer, com ela, sua união primeira, que é levada a cabo no final do
conto quando se dá a suposta transfiguração do falecido corpo de Lady Rowena
no de Lady Ligeia.
Esse fenômeno pode também ser verificado no conto “Véra”, porém, aqui a
identificação parcial se faz não com um traço saliente do objeto, mas, com a
sua imagem global. Como explicita Nasio (1997) :
[...] o eu reproduz fielmente os contornos e os movimentos daquele
que o deixou, e, assim, se torna idêntico a sua imagem total. Essa
maleabilidade notável para vestir-se com a pele do outro se explica
facilmente: a razão dela é o narcisismo. A imagem do objeto
amado, desejado e perdido, que o eu entristecido agora torna sua,
é na verdade sua própria imagem, que ele havia investido como
sendo a imagem do outro (NASIO, 1997, p.108).
Se em “Ligeia” a presença sobrenatural da morta é vinculada ao sucessivo
aparecimento de traços que compuseram a sua identidade primeira, em Véra”, a
adorada falecida é recuperada na sua esfera global.
D'Athol vivait double, en illuminé. Un visage doux et pâle, entrevu
comme l'éclair, entre deux clins d'yeux ; un faible accord frappé au
piano, tout à coup ; un baiser qui lui fermait la bouche au moment
il allait frapper, des affinités de pensées féminines qui
s'éveillaient en lui en réponse à ce qu'il disait un dédoublement de
lui-même tel, qu'il sentait, comme en un brouillard fluide, le parfum
vertigineusement doux de sa bien-aimée auprès de lui, et, la nuit,
entre la veille et le sommeil, des paroles entendues très bas : tout
l'avertissait. C'était une négation de la Mort élevée, enfin, à une
puissance inconnue ! (VILLIERS, 2004, p.35, grifos do autor e
nosso).
104
104
“De Athol vivia duplamente como um iluminado. Um rosto doce e pálido, visto como um raio,
entre duas piscadelas; um fraco acorde tocado no piano, de repente; um beijo que lhe fechava a
boca no momento em que ele ia tocar, afinidades de pensamentos femininos que despertavam
nele em resposta ao que ele afirmava um desdobramento de si mesmo tal, que ele sentia, como
em uma bruma fluida, o perfume vertiginosamente doce de sua bem-amada junto a ele, e, à noite,
entre a vigília e o sono, palavras ouvidas muito baixo: tudo o advertia. Era a negação da Morte,
elevada, assim, a uma potência desconhecida.” (DOMINGOS, 2009, p. 92, grifos do autor e
nossos).
81
Extremamente sensual, o narrador mobiliza todos os sentidos no intuito de
recriar todos os movimentos de Véra: a visão (a doçura e a palidez da sua tez),
passando pela audição (os acordes do piano, os murmúrios), pelo paladar (o
beijo), pelo tato (sua presença como uma bruma fluída) e pelo olfato (seu
perfume). Porém, essa reprodução da imagem da falecida só foi muito bem
sucedida com a “negação da morte, elevada a uma potencia desconhecida”.
D’ Athol, en effet, vivait absolument dans l’ inconscience de la mort
de sa bien-aimée! Il ne pouvait que la trouver toujours présente, tant
la forme de la jeune femme était mêlée à la sienne. Tantôt, sur
un banc de jardin, les jours de soleil, il lisait, à haute voix, les
poésies qu'elle aimait ; tantôt, le soir, auprès du feu, les deux tasses
de thé sur un guéridon, il causait avec l' Illusion souriante, assise, à
ses yeux, sur l'autre fauteuil (VILLIERS, 2004, p.35, grifos nossos e
do autor).
105
Ora, se na fase que sucede o narcisismo primário, que Lacan alcunhara
como fase metonímica, o eu cindido se mira no outro para reaver sua auto-
imagem, flagramos aqui o momento em que isso acontece, pois, as formas do eu
e do outro (do viúvo e da falecida mais especificamente) se misturam e se
confundem. Como afirma Freud (1984):
Quando alguém perde um objeto ou tem de renunciar a ele, é
bastante frequente ressarcir-se identificando-se com ele, erigindo-o
de novo em seu eu, de modo que a escolha de objeto regride, por
assim dizer à identificação (FREUD, 1984, p.89).
Assim, a “forma” (do francês, “forme”) de Véra é invocada pelo viúvo como
resultado da reação à dor intolerável de sua perda; ele refugia-se, desse modo,
na inconsciência da ausência de sua bem amada (“dans l’inconscience de la mort
de sa bien-aimée”) para reencontrá-la, negando a realidade; o viúvo, então, passa
a conviver com seu espectro, com a sua Illusion souriante” como se a morte
nunca tivesse de fato existido.
105
De Athol, na verdade, vivia absolutamente na inconsciência da morte de sua bem-amada! Ele
só podia encontrá-la sempre presente, tanto a forma da jovem senhora estava misturada à sua.
Às vezes, em um banco de jardim, nos dias de sol, ele lia, em voz alta, as poesias que ela amava;
em outras, à noite, junto à lareira, as duas xícaras de chá sobre uma mesa, ele conversava com a
Ilusão sorridente, sentada, aos seus olhos, em uma outra poltrona.” (DOMINGOS, 2009, p. 91,
grifos do autor e nossos).
82
Dessa forma, nos dois contos, a presença do “objeto”, ou seja, do
“fantasma” das falecidas é o fruto da reivindicação nostálgica, por parte dos
viúvos, do estado de plenitude anteriormente vivido pelos amantes antes da
morte.
Marthe Robert (1979) ao descrever o duplo romântico defende que o herói
desdobrado invoca esses fantasmas como meio de reconquistar a Mulher Eterna:
[...] a evolução e a historia são coisas desconhecidas, tudo
recomeça sempre, tudo se repete, por toda parte figuras, elas
próprias desdobradas, não seres de carne e de sangue, mas,
fantasmas cuja aparição súbita provoca êxtase ou gela a alma de
terror. O retorno eterno dos mesmos fenômenos e dos mesmos
acontecimentos não abole somente o tempo, mata as pessoas para
apenas deixar subsistir imagens, apaga objetos sob miragens cuja
perseguição, tão irresistível quanto vã, faz ganhar desgosto por
qualquer outra forma de conquista. Nesse universo sem cessar
desfeito pelas aparições e pelas metamorfoses, o herói desdobrado
não tem amigo, nem inimigo, nem objetivo de ação que tenha em si
próprio um valor insubstituível, não encontra sequer mulher a amar,
uma vez que, incapaz de distinguir individualmente, conhece a
Mulher Eterna, eternamente mutante e única sob os seus inúmeros
rostos, que contem todas as parceiras amorosas possíveis, sem
que qualquer delas a possa jamais igualar em perfeição e pureza
(Robert, 1979, p.76).
O duplo, ou o desdobramento do ser, é, assim, uma manobra do espírito
contra o despedaçamento do eu. Ora, se na fase pré-edipiana (ou metafórica) o
ser vivia em estado simbiótico com o universo, até então representado pelo corpo
da mãe, passada a fase edipiana, ele anseia reconquistar essa integração
buscando formas de substituí-lo e, não raramente, o faz projetando o corpo
materno na figura da mulher, porém, não a mulher de carne e osso, mas, uma
imagem desencarnada com quem enseja consumar uma comunhão mística e não
carnal.
Edgar A. Poe, respondendo à sua vocação romântica, faz de suas heroínas
o protótipo da mulher perfeita, totalmente idealizada, e busca em suas “morta
vivas” uma reconciliação com o Universo (vide “Ligeia”, “Eleonora”, “Berenice”,
“Morela”). Em “Ligeia”, seu conto preferido, o viúvo discorre parágrafos a fio
comparando sua amada às figuras míticas e personagens célebres da
antiguidade:
83
I regarded the sweet mouth. Here was indeed the triumph of all
things heavenly the magnificent turn of the short upper lip
the soft, voluptuous slumber of the under — the dimples which
sported, and the color which spoke the teeth glancing back, with
a brilliancy almost startling, every ray of the holy light which fell
upon them in her serene and placid, yet most exultingly radiant of
all smiles. I scrutinized the formation of the chin and here, too, I
found the gentleness of breadth, the softness and the majesty,
the fullness and the spirituality, of the Greek the contour which
the god Apollo revealed but in a dream, to Cleomenes, the son of
the Athenian. And then I peered into the large eyes of Ligeia. For
eyes we have no models in the remotely antique. It might have
been, too, that in these eyes of my beloved lay the secret to which
Lord Verulam alludes (POE, 1981, p.168, grifo nosso).
106
Aqui, o narrador, ao descrever os lábios de Ligeia bem como sua
expressão quando sorri, a associa a uma realidade superior, celeste e mítica.
Podemos constatá-lo ao destacar alguns dos vocábulos empregados: “triumph”
(do inglês, triunfo), “heavenly” (do inglês, celeste), “magnificent” (do inglês,
magnífico), “serene” (do inglês, sereno), ”placid” (do inglês, plácido), “radiant” (do
inglês, radioso), “gentleness” (do inglês, graciosidade), “softness” (do inglês,
suavidade), “majesty” (do inglês, majestade), “fullness” (do inglês, plenitude),
“spirituality” (do inglês, espiritualidade). A expressão “holy light” (do inglês, luz
sagrada) não foi empregada ao da letra pelo tradutor, porém é muito simbólica
uma vez que invoca o caráter divino das feições de Ligeia. o por acaso, o
narrador associa sua expressão ao do deus grego Apolo, célebre por sua beleza.
Entretanto, ao descrever os olhos de Ligeia, o narrador faz alusão a Lorde
Verulam, um dos títulos de Francis Bacon (1561), filósofo ao qual o próprio
narrador citara anteriormente:
106
Olhava a encantadora boca. Nela esplendia de fato o triunfo de todas as coisas celestes: a
curva magnífica do curto lábio superior, o aspecto voluptuoso e macio do inferior, as covinhas do
rosto, que pareciam brincar, e a cor que falava; os dentes, refletindo, com uma irradiação quase
cegante, cada raio da luz que sobre eles caía, quando ela os mostrava num sorriso sereno e
plácido, que era, no entanto o mais triunfantemente radioso de todos os sorrisos. Analisava a
forma do queixo, e aqui também encontrava a graciosidade da largura, a suavidade e a
majestade, a plenitude e a espiritualidade grega, aquele contorno que o deus Apolo revelou
num sonho a Cleómenes, o filho do ateniense. E depois eu contemplava os grandes olhos de
Ligéia. Para os olhos, não encontramos modelos na remota antiguidade. Podia ser, também, que
naqueles olhos de minha bem-amada repousasse o segredo a que alude Lorde Verulam”
(MENDES, 1981, p.64, grifo nosso)
84
“There is no exquisite beauty,” says Bacon, Lord Verulam, speaking
truly of all the forms and genera of beauty, without some
strangeness in the proportion.(POE, 1981, p.168, grifos do autor).
107
Embora inusitada, a beleza de Ligeia se distingue pela sua dimensão
ascética, celestial contrastando-se com a beleza voluptuosa de Véra. Villiers, ao
contrário de Poe, uma dimensão carnal à beleza de suas heroínas. Em algum
de seus contos (vide: ”Véra”, “Les Amants de Tolède”, “Akëdysséril”, L’Ève future)
a volúpia é o meio de se atingir o absoluto. Em “Véra”, por exemplo, a
protagonista morre de um orgasmo mortal:
La Mort, subite, avait foudroyé. La nuit dernière, sa bien-aimée
s'était évanouie en des joies si profondes, s'était perdue en de si
exquises étreintes, que son coeur, brisé de délices, avait défailli :
ses lèvres s'étaient brusquement mouillées d'une pourpre mortelle.
A peine avait-elle eu le temps de donner à son époux un baiser
d'adieu, en souriant, sans une parole : puis ses longs cils, comme
des voiles de deuil, s'étaient abaissés sur la belle nuit de ses yeux
(VILLIERS, 2004, p.35).
108
A volúpia aqui se faz presente pela comunhão carnal dos amantes e o
erotismo é evocado como o desejo da carne. Lacan (1956-57) em “A relação de
objeto” postula que todo desejo nasce de uma falta, e que assim movemo-nos
entre substitutos e substitutos sempre com o anseio de alcançar a auto plenitude
que conhecemos no nosso imaginário. Dessa forma, em Véra, o erotismo é o
meio de ascender a essa plenitude, é o terreno onde se encontram o céu e a
terra, mesmo que um breve momento. Após sua morte, o viúvo inconsolável
procura no “fantasma” de Véra satisfazer essa reconciliação com o infinito.
Il vint auprès d'elle. Leurs lèvres s'unirent dans une joie divine, -
oublieuse, -immortelle ! Et ils s'aperçurent, alors , qu'ils n'étaient,
réellement, qu' un seul être. Les heures effleurèrent d'un vol
107
"Não há beleza rara - disse Bacon, Lorde Verulam, falando verdadeiramente de todas as
formas e gêneros de beleza - sem algo de estranheza nas proporções." (MENDES, 1981, p.64,
grifos do autor)
108
“A morte, súbita, fulminara. Na madrugada passada, sua bem amada desmaiara, em alegrias
tão profundas, que seu coração, esgotado de delicias, desfalecera: seus lábios se molharam
bruscamente de uma púrpura mortal. Apenas teve tempo de dar um beijo de adeus em seu
esposo, sorrindo, sem uma palavra: depois, seus longos cílios, como asas de luto, se abaixaram
sobre a bela noite de seus olhos.” (DOMINGOS, 2009, p. 85).
85
étranger cette extase où se mêlaient, pour la première fois, la
terre et le ciel (VILLIERS, 2004, p.38, grifo nosso).
109
Assim, a “joie divine” (do francês, alegria divina) produzida pelo beijo dos
amantes é responsável pela extática comunhão de duas dimensões
aparentemente opostas: a terra (personificada pelos lábios do viúvo) e o céu
(representado pelos lábios “imortais” de Véra).
Ainda que a busca resulte num fracasso, o encontro com o duplo
simboliza a nostalgia de um encontro com o outro, a aspiração de
um eu racional a tornar-se um eu sonhador, capaz de
experimentar a paixão, a fusão, para além das limitações da
personalidade: simboliza o desejo de comunhão (BRAVO, 2000,
p.275).
É justamente essa comunhão que os viúvos dos dois contos anseiam
assim como todo ser humano. No nosso íntimo, buscamos atingir o estado
inorgânico que antecedeu toda vida consciente, estado no qual éramos um todo
unívoco significante e significado, o eu e o outro onde não havia limite entre
nós e corpo de nossas mães.
Porém, uma vez vivenciado o processo de emancipação egótica, catalisada
pelos Complexos de Édipo e de Castração, podemos retornar a esse estado
pela morte ou impelimo-nos à busca de substitutos desse paraíso perdido, no
interminável movimento metonímico do desejo.
Enfeitiçado, e receando acima de tudo a quebra do encantamento,
o herói erra indefinidamente no círculo de suas visões, onde passa
sem cessar da adoração à blasfêmia, do êxtase ao desespero, do
entusiasmo ao apagamento. Por causa da eterna ausente que o
assombra e se esquiva através de todas criaturas vivas, ele é o
“tenebroso, o viúvo, o inconsolado” o órfão para sempre
apaixonado por uma morta (ROBERT, 1979, p.77, grifo do autor).
É nessa perspectiva que Edgar Allan Poe, no conto “Ligeia”, e Villiers de
l’Isle-Adam, no conto “Véra”, fazem suas protagonistas voltarem à vida
109
“Ele veio junto dela. Seus lábios se uniram em uma alegria divina imemorável, - imortal! E
eles perceberam, então, que eram, realmente, um só ser. As horas tocaram com um voo estranho
esse êxtase no qual se uniam, pela primeira vez, a terra e o céu.(DOMINGOS, 2009, p. 96,
grifo nosso)
86
imortalizando-as em seu duplo, reconstituindo com o narrador a unidade plena,
que no plano da realidade se ameaçada pela morte. “Desdobrar-se pode, num
caso assim, fazer parte de uma estratégia de defesa baseada na busca de uma
negação do eu doloroso”. (BRAVO, 2000, p.275)
3.2 A EXPRESSÃO DO AMOR E A BUSCA DO ÊXTASE
A palavra êxtase vem do termo grego ekstasis (“sair, partir”) e remete à
experiência da união do ‘eu’ humano com algo que lhe é exterior. Esse impulso
nirvânico também chamado de sentimento oceânico - define-se pela dissolução
radical das divisões sujeito-objeto de modo a se experimentar a sensação de se
fundir com o universo. Suas manifestações remontam à orgia dionisíaca, às
danças frenéticas e bárbaras das culturas primitivas, ao tauismo na China, à
meditação ioguista na Índia. Porém, segundo Morin (1970), o tema do êxtase
enquanto absorção necessária da individualidade no cosmos surgirá um pouco
por toda parte no seio das civilizações ocidentais e evoluídas, onde o indivíduo
reivindica a imortalidade pessoal da salvação. Isto se faz uma vez que a morte se
traduz pelo aniquilamento da individualidade humana, e, assim, “o desejo de
universalidade decide liquidar a morte liquidando o ego, isto é escamotear a morte
escamoteando a vida particular”. (MORIN, 1970, p.124, grifo do autor.)
O livro Paixões Primitivas: Homens, mulheres e a busca do êxtase, de
autoria de Marianna Torgovnick (1999) relata testemunhos de pessoas dentre
elas o escritor francês André Gide, o psicanalista Carl Jung, e o escritor inglês D.
H. Lawrence – que tiveram a sensação de sair do ego e fundir-se a coisas
externas; porém, em última instância, o “eu” apresentou resistência a se perder de
vez nessa experiência, como forma de preservação da individualidade. Essa
experiência condiz com o que Morin (1970) chamou de êxtase de salvação, que
se define pelo seu caráter momentâneo. Para o autor, o verdadeiro êxtase o
êxtase perfeito exige fusão da alma individual na alma universal, mas, por
acarretar a perda da individualidade, muitas filosofias e correntes de pensamento
rejeitam esse tipo de experiência. Sigmund Freud, por exemplo, lhe foi hostil, pois
87
a considerava “um instinto de morte” que se traduzia pelo desejo de seres
animados de regressar ao “estado inorgânico do qual a vida surgiu” estado
semelhante ao que as religiões orientais chamaram de Nirvana e Tao.
Segundo Morin (1970), há duas grandes vias para se chegar ao êxtase:
uma está na exasperação da vida, como em toda e qualquer atividade febril, na
dança e no ato sexual, por exemplo; e a outra está na sua rarefação, como
acontece na contemplação. Porém, tanto em uma quanto em outra, a
participação cósmica que é atingida pela luta contra o corpo em um processo de
desparticularização. Aí, a alma tenta se livrar do invólucro que a aprisiona,
purificando-o. É o que se verifica no monaquismo: o desprezo pela carne,
portadora do pecado, é determinado pelo desejo de que a alma participe
extaticamente na vida divina do mundo.
O processo extático, então, perpassa primeiro pela exasperação da vida
que, no presente trabalho, está alcunhado por êxtase amoroso – e pela sua
rarefação aqui alcunhado como êxtase místico; ele será analisado nas obras
“Ligeia” e “Véra” como um processo que se dá através da aniquilação e do
domínio cada vez mais absoluto sobre o corpo, transformando-o em objeto de
ascese.
3.2.1 O ÊXTASE AMOROSO
Johann Bachofen (1988), em sua
obra Mitología arcaica y derecho
materno, defende que, em épocas anteriores aos registros históricos, a região em
que hoje se encontra a Europa moderna era dominada por mulheres e religiões
matriarcais. Assim, o sagrado era pensado em termos de maternidade e a terra
era pensada como uma entidade feminina à qual se prestava homenagem.
O desejo de reunificação com a “mãe” – o desejo incestuoso freudiano – se
configura no âmago da união extática, e apresenta-se como um símbolo positivo
de renascimento junguiano. A figura da mulher vincula-se, tanto para Freud
quanto para Jung, à ideia de dissolução das fronteiras e à perda do senso de
individualidade.
Nos conceitos arcaicos, a ideia de corpo materno para onde regressa o
morto é simbolizada pela terra, pelo mar, pelos elementos da natureza. Dessa
88
forma, o sepultamento, uma prática pré-histórica, pode ser explicado o pela
preocupação de se proteger da impureza da morte, ou de proteger o cadáver e
seu duplo dos animais, mas também pela reintrodução do esqueleto na terra, a
Deusa-Mãe.
Ainda nos nossos dias, quando o Papa beija o solo, ao chegar a um
país estranho, está a cumprir um ritual transbordante de significado: a prestação
de tributo à terra, que é simultaneamente deusa e mãe. A ligação entre o solo e a
mulher pode parecer evidente: ambas têm a capacidade de gerar, uma fértil
analogia entre filhos e frutos. Daqui decorre que, em muitas mitologias,
assassinar uma mulher seja uma forma de destruição particularmente terrível
porque se aniquila a representação da própria vida e da maternidade.
Assim, a
morte desperta o que de mais infantil no homem, pois, fragilizado pela ideia de
aniquilamento, ele tende a fixar-se na ideia do regresso ao corpo materno.
Como ressalta Kennedy (1993), em “Ligeia”, o narrador sente-se
profundamente tocado pelo entusiasmo da sua amada pela vida e, ao se sentir
indigno de seu amor, ela o domina como a mãe domina o seu filho:
I was sufficiently aware of her infinite supremacy to resign
myself, with a child-like confidence, to her guidance through
the chaotic world of metaphysical investigation at which I was
most busily occupied during the earlier years of our marriage […]
Without Ligeia I was but as a child groping benighted. Her
presence, her readings alone, rendered vividly luminous the
many mysteries of the transcendentalism in which we were
immersed (POE, 1865, p.457-458, grifo nosso).
110
Em muitas das narrativas de Poe parece existir uma obsessão com a morte
no feminino
111
. Freud assinala que a volúpia que o escritor sente ao matar os
seus personagens remete não apenas às satisfações inofensivas dadas à
agressividade humana, mas também à participação no ciclo de morte e
110
“[...] estava suficientemente cônscio de sua infinita supremacia para resignar-me, com
uma confiança de criança, a ser por ela guiado através do caótico mundo da investigação
metafísica em que me achava acuradamente ocupado durante os primeiros anos de nosso
casamento [...] Sem Ligéia, era apenas uma criança tateando no escuro. Sua presença,
somente suas lições podiam tornar vivamente luminosos os muitos mistérios do
transcendentalismo em que estávamos imersos.” (MENDES, 1981, p.68)
111
No ensaio, “The Philosophy of Composition” (A Filosofia da Composição), Edgar A. POE (1846)
declara que: “the death...of a beautiful woman [...] is the most poetical topic in the world […] (so)
all beauty must die” (“The Philosophy of Composition”, op. cit., p.319: a morte...de uma bela
mulher [...] é o tema mais poético do mundo, [...](sendo assim,) toda beleza deve morrer);
(POE,1981, p.319, tradução nossa)
89
renascimento, verdadeiros sacrifícios que transferem o mal e a morte para as
vítimas literárias, provocando a catarse. A catarse estética é particularmente
sensível na cerimônia semi-sagrada do teatro, sendo a tragédia uma verdadeira
hecatombe de morte-renascimento. É o que Ligeia demonstra no poema
Conqueror Worm: no último verso da última estrofe do poema, a protagonista,
agonizando, revela, com a veemência que lhe resta, que o vilão responsável pelo
espetáculo da morte é o verme vencedor, the Conqueror Worm:
[…]Out — out are the lights — out all!
And over each quivering form,
The curtain, a funeral pall,
Comes down with the rush of a storm,
And the angels, all pallid and wan,
Uprising, unveiling, affirm
That the play is the tragedy, "Man,"
And its hero the Conqueror Worm (POE, 1865, p.463, grifo
do autor e nosso).
112
Dessa forma, o homem, ao regressar para a terra, para a Mãe Natureza,
encontra a imortalidade fundindo-se com o Absoluto. Assim, o filósofo alemão
Ludwig Feuerbach (1804-1872), crê que a morte resultado da fusão total da
alma individual na alma universal é fonte da harmonia cósmica, pois é através
dela que a verdadeira conciliação entre o homem e o cosmo. Desse modo, ele
proclama: A nossa morte é o ato supremo do nosso amor!
113
Ora, se o amor é a negação do egoísmo, do aprisionamento do indivíduo
na sua individualidade, essa negação deve ser evidenciada através da morte.
Nessa perspectiva, o amor transcende a oposição do humano e do divino e torna-
se via de acesso dos amantes à imortalidade.
É o que descreve o narrador-personagem de “Ligeia”, ao visualizar a
agonia da sua amada diante da morte:
112
“[...] E se apagam as luzes! Violenta,
a cortina, funérea mortalha,
sobre os trêmulos corpos se espalha,
ao cair, com um rugir de tormenta.
Mas os anjos, que espantos consomem,
já sem véus, a chorar, vêm depor
que esse drama, tão tétrico, é "0 Homem"
e que o herói da tragédia de horror
é o Verme Vencedor.” ( MENDES, 1981, p.74)
113
FEUERBACH apud MORIN, 1970, p.248
90
Yet not until the last instance, amid the most convulsive writhings
of her fierce spirit, was shaken the external placidity of her
demeanor. Her voice grew more gentle grew more low yet I
would not wish to dwell upon the wild meaning of the quietly
uttered words. My brain reeled as I hearkened, entranced, to a
melody more than mortal to assumptions and aspirations
which mortality had never before known (POE, 1981, p.168, grifo
nosso).
114
Se em “Ligeia”, a união extática é representada pela hipotética
transfiguração do corpo da protagonista, em “Véra”, essa mesma união se
através da hipotética ressurreição da amada pela e força de vontade do seu
esposo, o Conde d’Athol:
Les heures effleurèrent d'un vol étranger cette extase se
mêlaient, pour la première fois, la terre et le ciel
(VILLIERS, 2004, p.38, grifo nosso).
115
Nos dois casos, a união extática com os amantes, mortos, é um artifício
para que as duas almas se consumam de anseio e nostalgia, mesmo que elas se
realizem num clima de hesitação.
Para Hegel, a morte é um veículo de uma afirmação superior, é uma
necessidade metafísica e biológica que mantém a humanidade em marcha. Ela
obedece à dialética do amor, pois os pais amantes produzem a síntese do seu
amor no filho e asseguram nele a continuidade de sua existência. Hegel é
considerado um idealista por excelência, uma vez que sua filosofia postula que o
ser é, em definitivo, Ideia, Espírito, ou seja, o ser em sua totalidade é
significativo, e cada acontecimento particular no mundo tem sentido,
finalmente, em função do Absoluto.
Na esteira da filosofia hegeliana, nas obras de Charles Baudelaire, tanto
como nas de Poe e Villiers, a morte é uma via de acesso ao Absoluto, seja ele de
conteúdo poético, teológico ou existencial (de maneira a revelar sua identidade).
114
“[...] Entretanto nem mesmo no derradeiro instante, entre as mais convulsivas contorções
do seu espírito ardente, foi abalada a externa placidez de seu porte. Sua voz tornou-se mais
suave, tornou-se mais grave, mas eu não queria confiar na significação estranha daquelas
palavras, sossegadamente pronunciadas. Meu cérebro vacilava quando eu escutava, extasiado
por uma melodia sobre-humana, aquelas elevações e aspirações que os homens mortais jamais
conheceram até então.” (MENDES, 1981, p.69)
115
“As horas tocavam com um vôo estranho esse êxtase no qual se uniam pela primeira vez, a
terra e o céu.” (Apud DOMINGOS, 2009, p. 101)
91
Ela é vista como reveladora das correspondências entre céu e terra, matéria e
espírito, e é revestida de uma roupagem onírica, como aquela dos paraísos
artificiais, livrando o espírito de sua prisão material, reavendo-lhe sua liberdade
imaginativa:
A morte aqui é sonhada, e até mesmo chamada, como o lugar
dessa revelação na qual o sujeito poderá, enfim, encontrar-se
consigo mesmo face a uma realidade cuja novidade” pede, sem
dúvida, para ser compreendida como o sinal de um estatuto ao
mesmo tempo aberto, disponível à rede das analogias que o
espírito poético redistribuirá segundo sua própria liberdade, e
ontologicamente fechado. (JACKSON, 1982, p.124, grifo do
autor, tradução nossa).
116
O amor revela-se como o único meio de superação da morte; o remorso,
que nasce da impotência de amar, será também motivo de sofrimento, uma vez
que ela está associada à perpetuação da morte em seu estagio primeiro, o da não
redenção.
Nas obras de Poe, a relação beleza/ morte tem sempre eco num outro
binômio: amor/morte. Com efeito, Thanatos e Eros, da mitologia greco-romana,
são indissociáveis e constituem os dois principais hemisférios da existência
humana. Nas obras de Villiers, essa união também persiste, uma vez que a morte
de amor se revela como a vitória sobre o tempo, e, a sexualidade, cuja expressão
se traduz no erotismo, é o terreno onde se encontra o amor e a morte:
Sob a influência das novelas de Poe, a volúpia quer ser
intelectualizada, a concretude da carne se faz em decorosas
abstrações, os amores humanos tendem à impossibilidade dos
amplexos angélicos (PRAZ, 1996, p. 290).
A associação de Thanatos e Eros também perpassa pela gênese do
cristianismo. A ideia contida no Gênesis do pecado original reforça que “a
sexualidade é que criou a morte” (MORIN, 1970, p.197); dessa forma, é através
do ódio envergonhado ao pecado que a Deusa Mãe se transforma em Virgem
Maria, o Salvador em um deus assexuado e o poder genitor do Pai em verbo
116
« La mort ici est rêvée,et meme appelée, comme le lieu de cette révélation le sujet pourra
enfin coincider avec soi-meme dans le face-a-face avec une realité dont la « nouvauté » demande
sans doute à être comprise comme le signe d’un statut à la fois ouvert, disponible au réseau des
analogies que l’esprit poétique redistribuera selon sa liberté propre et ontologiquement fermé. »
(JACKSON, 1982, p.124)
92
espiritual. Isso revela o desejo cristão não de merecer a imortalidade pela
assexualidade, mas também de regressar ao estágio pré-sexual da vida, onde a
morte não existia; assim, mesmo destinado ao pecado e à mortalidade, o homem
encontra a salvação na negação da carne pelo resgate da morte.
Em “Véra”, por exemplo, a protagonista morre de epéctase um orgasmo
mortal durante o ato sexual; enlutado, seu viúvo tenta reavivá-la pela força de
sua imaginação, contudo, sua ressurreição se tornará efetiva além da
realidade material. A chave do mausoléu, onde se encontra o corpo de Véra, cai
da cama do casal como um convite para ele reencontrá-la na eternidade. Aqui a
morte intervém como uma purificação do amor de ambos, outrora carnal:
Là, les deux amants s'ensevelirent dans l'océan de ces joies
languides et perverses l'esprit se mêle à la chair
mystérieuse ! Ils épuisèrent la violence des désirs, les
frémissements et les tendresses éperdues. Ils devinrent
le battement de l'être l'un de l'autre. En eux, l'esprit
pénétrait si bien le corps, que leurs formes leur semblaient
intellectuelles, et que les baisers, mailles brûlantes, les
enchaînaient dans une fusion idéale (VILLIERS, 2004,
p.32, grifo nosso).
117
Na obra de Villiers, o mundo subterrâneo o da morte também converge
ao mundo ideal. Segundo Domingos (2005), essa conjunção de dois espaços
um subterrâneo e o outro celestial remete à realização do projeto de evasão do
autor. No conjunto de sua obra, verifica-se que seu projeto literário está situado
na busca pelo Absoluto, pelo Amor Ideal e, nessa instância, o erotismo é a poesia
da carne. Assim, a morte de amor traduz-se numa grande tensão que ruma ao
céu, em uma tentativa de epéctase mística. Ao que leva à segunda forma de
êxtase, o místico.
117
“Ali, os dois amantes enterraram-se no oceano daquelas alegrias languidas e perversas nas
quais o espírito se une à carne misteriosa! Esgotaram a violência dos desejos, os
estremecimentos e as ternuras intensas. Tornaram-se a pulsação do ser, um do outro.
Neles, o espírito penetrava tão bem no corpo, que suas formas lhe pareciam intelectuais, e que os
beijos, malhas ferventes, os encadeavam em uma fusão ideal” (DOMINGOS, 2009, p.94)
93
3.2.2 O ÊXTASE MÍSTICO
Para Morin (1970), o êxtase amoroso tem o mesmo fundamento do êxtase
de salvação. Os fiéis católicos, por exemplo, comem e bebem o sangue de Cristo,
num ritual sagrado de antropofagia, chamado de “comunhão”. Porém, como
observa o autor, tanto um quanto outro são mecanismos de reivindicação
momentânea da imortalidade:
o êxtase de salvação não passa de um semiêxtase em que o ego
queima as pontas dos dedos, e mesmo assim, para retirar do
lume as castanhas da imortalidade pessoal. O indivíduo quer ser
aquecido e animado pelo sol divino, mas não consumir-se nele. O
êxtase da salvação é o êxtase amoroso em que continuamos a
ser nós próprios tornando-se o Outro (MORIN, 1970, p.212).
Dessa forma, o êxtase perfeito se daria na fusão integral da alma individual
com a alma universal; processo semelhante ao que os hindus chamam de
Nirvana.
Nirvana é o estado perene em que o atmam a alma individual, melhor
representada pelo Id freudiano se funde no brahman Ser cósmico de
inteligência divina e suprema – em um movimento de harmonia integral. E é
nesse processo que o Ego surge como empecilho, como prefiguração da própria
morte, mas seu aniquilamento se faz necessário na medida em que a imortalidade
é atingida na plena participação cósmica. Como afirma Eliade (1957), em
Mythes, Rêves et Mystères (Mitos, Sonhos e Mistérios), a experiência mítica induz
ao resultado de quase morte provocando a alteração do regime sensorial e a
evanescência da duração temporal. Como observou Domingos (2005), Villiers, ao
evocar a presença de Véra, emprega palavras que enfatizam a sua dimensão
espiritual e não material:
sur le lit d'ébène aux colonnes tordues, resté défait, auprès de
l'oreiller la place de la tête adorée et divine était visible
encore au milieu des dentelles, il aperçut le mouchoir rougi de
gouttes de sang sa jeune âme avait battu de l'aile un instant ;
le piano ouvert, supportant une mélodie inachevée à jamais ; les
fleurs indiennes cueillies par elle, dans la serre, et qui se
94
mouraient dans de vieux vases de Saxe ; et, au pied du lit, sur
une fourrure noire, les petites mules de velours oriental, sur
lesquelles une devise rieuse de Véra brillait, brodée en perles :
Qui verra Véra l'aimera . Les pieds nus de la bien-aimée y
jouaient hier matin, baisés, à chaque pas, par le duvet des
cygnes ! (VILLIERS, 2004, p.31, grifo nosso).
118
E ele o faz apelando aos sentidos: visão (“visible”), audição (“mélodie”),
tato (“pieds nus baisés par le duvet des cygnes”) e olfato (“les fleurs indiennes”).
Se em “Ligeia”, o êxtase amoroso não culmina no místico, uma vez que a
vontade da protagonista de sobreviver ao aniquilamento do corpo é tão intensa
que ela anseia pela superação da sua individualidade em detrimento da fusão
cósmica – não por acaso, ao voltar à vida, ela “reencarna”, ou seja, ela se
apodera do corpo (“da carne”) de sua rival:
The greater part of the fearful night had worn away, and she who
had been dead, once again stirred and now more vigorously
than hitherto, although arousing from a dissolution more
appalling in its utter hopelessness than an (POE, 1981, p.180,
grifo nosso).
119
Em “Véra”, o êxtase mítico é sugerido, bem ao gosto do gênero fantástico
e da estética simbolista. Se o leitor é testemunha do êxtase amoroso vivenciado
pelo Conde D’Athol e sua esposa falecida, a consumação do Amor Absoluto, o
êxtase místico é uma promessa do avenir deixada para a imaginação do leitor.
Assim, D´Athol, ao recobrar a consciência, interpela Véra:
Oh ! murmura-t-il, c'est donc fini ! -- Perdue !... Toute seule ! --
Quelle est la route, maintenant, pour parvenir jusqu'à toi ?
Indique-moi le chemin qui peut me conduire vers toi !...Soudain,
118
Sobre a cama de ébano de colunas retorcidas, que permanecera desfeita, junto ao travesseiro
no qual o lugar da cabeça adorada e divina ainda era visível, em meio às rendas, ele percebeu
o lenço avermelhado pelas gotas de sangue onde sua jovem alma batera a asa do instante; o
piano aberto, sustentando uma melodia inacabada para sempre; as flores indianas por ela
colhidas, na estufa, e que morriam em velhos vasos de Saxe; e, ao pé do leito, sobre um manto de
pele negra, os pequenos chinelos de veludo oriental, sobre os quais uma alegre divisa de Véra
brilhava, bordada em pérolas: Quem vir Véra a amará. Os pés nus da bem-amada ali se
divertiam ontem de manhã, beijados, a cada passo, pelas plumas dos cisnes! (DOMINGOS,
2009, p.93, grifo nosso)
119
“A maior parte da noite terrível se fora e aquela que morrera,de novo, outra vez, se movera, e
agora mais vigorosamente do que até então, embora erguendo-se de um aniquilamento mais
apavorante, em seu extremo desamparo, do que qualquer outro.” (MENDES, 1981, p.78)
95
comme une réponse, un objet brillant tomba du lit nuptial [...] :
c'était la clef du tombeau (VILLIERS, 2004, p.39).
120
Desse modo, o êxtase amoroso, com todo seu apelo sensual, antecipa o
caráter sagrado da ansiada fusão, e a glorificação do erotismo o leva ao patamar
de um novo misticismo que prenuncia o estágio final dessa união extática, o
êxtase místico.
Enquanto o verdadeiro misticismo tende à negação da expressão
e da arte, o exotismo dirigi-se à manifestação sensual e artística
a partir de sua própria natureza, o primeiro culmina com um
mundo inefável, o segundo consegue concentrar-se a tal ponto
naquele clima remoto no tempo e no espaço (ou em ambos), que
ao artista a ilusão de uma efetiva existência anterior naquele
clima idolatrado [...]. [Assim] todo artista é, num certo sentido
geral e provisório, um exotista, quando se projeta com a fantasia
para fora do presente imediato (PRAZ, 1996, p.189).
Como já fora anteriormente dito, o êxtase mítico é uma promessa do avenir
que não é expressa na obra, bem aos moldes de Axël que prefere a morte à
realidade, Conde d´Athol pode renunciá-la para que seu sonho não seja
maculado.
Encontramos, assim, nos contos “Ligeia” e “Véra” a atividade não do
místico que nega o mundo dos sentidos e o esvazia de seu conteúdo material,
mas do exotista que se investe da vibração de seus sentidos e os materializa na
palavra:
A estética é a emoção profunda, reconhecida e fruída que o
homem obtém dos seus intercâmbios, das suas relações
fundamentais consigo próprio, com a natureza e a sociedade
(MORIN, 1970, p.157).
Portanto, a poesia, com sua linguagem encantatória, mágica e sagrada,
remete à metáfora, à aliteração, ao ritmo, isto é, à analogia; e no centro de toda a
magia analógica do estilo encontra-se o símbolo, que, por sua vez, concentra em
120
“Oh! Murmurou ele, acabou-se então! Perdida!... Completamente sozinha! – Qual é o
caminho, agora, para chegar até você?
Mostre-me a estrada que pode conduzir-me em sua
direção!...De repente, como uma resposta, um objeto brilhante caiu do leito nupcial[...]: era a
chave do túmulo.” (DOMINGOS, 2009, p.97)
96
si todo extrato da relação antropocosmomórfica do indivíduo com o cosmo, pois é
através do símbolo que o homem se apropria da natureza antropomorfizando-a,
isto é, dando-lhe determinações humanas, e ao mesmo tempo ele se
cosmoformiza, na medida em que se impregna de toda riqueza do cosmo. Esse
caráter dúbio do símbolo projeta a dualidade do ser humano que ao mesmo
tempo é indivíduo e cosmo, e a comunhão de ambos se torna possível com o
advento do amor, da morte e por meio da criação estética. Assim, nas palavras de
Octavio Paz (1978) a poesia é uma expressão do absoluto ou a desgarrada
tentativa de se chegar a ele.
Dessa forma, a poesia se faz testemunha do êxtase e da fusão com o
divino, da comunhão com a natureza.
E é nessa perspectiva que as obras aqui citadas não devem ser somente
lembradas como testemunhas do êxtase amoroso e/ou místico, mas também
como exemplares do êxtase poético, enquanto expressão da revelação do
sagrado ao homem por meio do êxtase da palavra.
Assim, os contos aqui citados de Poe e Villiers são projeções e
representações, por excelência, da trajetória do espírito que se exila no mundo da
imaginação, no império das sombras (o inconsciente) para reivindicar sua
mortalidade por meio da negação da morte como aniquilamento. Esses autores,
rejeitando o materialismo do qual a sociedade da época estava impregnada,
utilizam-se da prosa poética de gênero fantástico para fazê-lo, pois é nesse
terreno, que a busca do Ideal e do Absoluto encontra solo fértil para florescer.
97
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da análise das obras aqui estudadas, “Ligeia”, de Edgar Allan Poe e,
“Véra”, de Villiers de l´Isle-Adam, concluímos que ambas discorrem sobre a
movimentação do espírito do homem do século XIX que, abismado diante da
intensa evolução tecnocientífica, do excessivo apego aos valores materiais e,
assombrado com o advento do fin de siècle, se refugia no mundo da imaginação,
no sobrenatural como meio de reconciliação do seu “eu” mais íntimo com o
universo; ele recorre, desse modo, ao duplo, ou desdobramento do ser, e da força
de vontade que vem do Amor, contra o aniquilamento da individualidade com a
morte.
Se em “Ligeia” essa força parte da própria heroína que, supostamente,
rompe as cadeias da morte, tomando o corpo de sua rival; em “Véra”, a heroína
também, hipoteticamente, volta à vida, mas, pela força do amor do protagonista
que, diante do desespero ao perder sua amada, se entrega ao delírio negando
sua morte. Porém, o “efetivo” retorno de Véra é concretizado, na narrativa, pela
aparição da chave do mausoléu onde ela estava sepultada, como um convite,
para que o viúvo a reencontre no “Au-delà”.
Assim, podemos perceber que, tanto em uma quanto em outra há o anseio,
por parte dos amantes, de restabelecer a união conjugal, retomando o estado
simbiótico em que viviam, antes de serem interrompidos pela morte, essa grande
intrusa: em “Ligeia”, esse reencontro é prefigurado pela reencarnação; em “Véra”,
ele é uma promessa do avenir que pode ser efetivado em uma realidade
superior, a do Absoluto.
Dessa maneira, ao analisar esses dois contos, pudemos perceber que a
busca desse Au-delà vem anunciada na obra de Poe como um símbolo de
resistência e transgressão dos valores materialistas, entretanto, na obra de
Villiers, esse caráter ascético é mais delineado, talvez porque Villiers presenciara,
de fato, as agruras do fin de siècle.
Portanto, ambos lançam mão, assim, do gênero fantástico como meio de
expressão dos conteúdos mais sombrios da consciência humana, graças ao seu
caráter de resistência frente aos preceitos positivistas e realistas em voga na
98
época, e encontram no conto poético, o terreno propício para que esses
conteúdos sejam expressos de modo singelo e delicado, aliando o grotesco ao
belo, de modo a transportar o real ao Ideal.
99
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