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UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE
CENTRO DE HUMANIDADES
UNIDADE ACADÊMICA DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA
MESTRADO EM HISTÓRIA
A ARTE DA MEMÓRIA: UMA ANÁLISE DA ESCRITA
ÍNTIMA DE ANAÏS NIN
Raquel Thomaz de Andrade
Orientadora: Profª Dra. Maria Lucinete Fortunato
Área de Concentração: História, cultura e sociedade
Linha de Pesquisa: Cultura, poder e identidades
CAMPINA GRANDE - PB
Setembro 2010
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL UFCG
A553a Andrade, Raquel Thomaz de
A arte da memória: uma análise da escrita íntima de Anaïs Nin /
Raquel Thomaz de Andrade Campina Grande, 2010.
100f.
Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal de
Campina Grande, Centro de Humanidades.
Referências
Orientadora: Profa. Maria Lucinete Fortunato
1. Escrita íntima. 2. Memória. 3. Arte. 4. Feminino. I. Título.
CDU 82-94(043)
3
A ARTE DA MEMÓRIA: UMA ANÁLISE DA ESCRITA
ÍNTIMA DE ANAÏS NIN
Raquel Thomaz de Andrade
Orientadora: Profª Dra. Maria Lucinete Fortunato
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em História do Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal
de Campina Grande, em cumprimento às exigências para obtenção do
título de Mestre em História, Área de Concentração em História,
cultura e sociedade, linha de Pesquisa: Cultura, Poder e identidades
CAMPINA GRANDE - PB
Setembro 2010
4
Raquel Thomaz de Andrade
A ARTE DA MEMÓRIA: UMA ANÁLISE DA ESCRITA
ÍNTIMA DE ANAÏS NIN
Avaliado em 29 / 09 / 2010, aprovado com distinção
BANCA EXAMINADORA DA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
________________________________________________
ProDra. Maria Lucinete Fortunato
PPGH-UFCG
(orientadora)
________________________________________________
ProDra. Ana Maria Coutinho de Sales
PPGCR - UFPB
(examinadora externa)
________________________________________________
Prof. Dr. Alarcon Agra do Ó
PPGH-UFCG
(examinador interno)
________________________________________________
ProDra. Uyguaciara Veloso Castello Branco
PPGH-UFPB
(suplente externa)
________________________________________________
ProD. Íris Helena Guedes de Vasconcelos
CFP-UFCG
(suplente interna)
5
Sumário
Resumo ............................................................................................................... 6
Abstract .............................................................................................................. 7
Introdução ........................................................................................................... 8
Capítulo 1 Um olhar sobre a invenção: o diálogo entre história e literatura 13
1.1 A relação da história com as fontes literárias ..........................................................14
1.2 Sobre mentiras sinceras: o diálogo entre realidade e ficção no diário íntimo .........26
1.3 Em busca de uma arte da existência ........................................................................31
Capítulo 2 Anaïs Nin: seu tempo, seus escritos ............................................ 39
2.1 O ethos negativo do modernismo ............................................................................42
2.2 O conflito entre criação e realidade em Nin ............................................................51
2.3 A verdade em Nin e a relação com a realidade .......................................................57
2.4 A política em Anaïs Nin ..........................................................................................60
Capítulo 3 O feminino em Anaïs Nin ........................................................... 69
3.1 Deixando Barcelona: as primeiras impressões sobre feminilidade em Nin ............73
3.2 As memórias da maturidade: no limite entre hedonismo e subversão ....................78
3.3 Sonho e representação da feminilidade ...................................................................84
3.4 Alimentando diferenças: múltiplas fantasias do feminino ......................................87
Considerações Finais ........................................................................................ 91
Referências ....................................................................................................... 95

6
Resumo
No tocante à escrita íntima, Anaïs Nin emerge como uma das autoras com a obra mais vasta,
tendo escrito e posteriormente publicado diários entre os anos de 1914 e 1974. Esse
extenso relato confessional lhe deu certo destaque dentro do movimento feminista, ao mesmo
tempo em que despertou críticas relacionadas ao seu narcisismo. Dessa forma, seu material
íntimo surge como uma obra emblemática no que se refere às tensões do movimento de luta
pelos direitos das mulheres. Pois, mesmo com sua postura narcisista e pretensamente passiva
politicamente, as atitudes Nin iam de encontro aos valores de sua época. Esse fato remete a
uma questão: até que ponto o comportamento da autora não pode ser considerado com uma
atitude política, já que resistia a padrões de comportamento de sua época? Assim, esse
trabalho tem como objetivo analisar a escrita íntima de Anais Nin, considerando as suas
representações acerca do feminino, da vida pública, da política e da arte e a sua inserção num
período de sua escrita; problematizando a relação entre os diários íntimos e as teorias acerca
dos gêneros confessionais e discutindo a relação entre o ―ficcional‖ e o ―real‖ nas memórias
da autora, bem como a utilização da vida privada de Nin para a construção de uma obra de
arte e, conseqüentemente, da sua figura pública. As principais fontes da pesquisa foram os
diários não expurgados, que tiveram uma publicação póstuma durante os anos de 1980 e 1990.
A escolha não se deve somente por esses diários serem versões menos censuradas da escrita
íntima da autora, como também por envolverem um período (1931 1939) em que Nin
começa a demonstrar interesse na publicação da obra, bem como a tecer comentários mais
aprofundados acerca de questões como arte e política. Dessa forma, o universo construído pela
escrita íntima dessa escritora será analisado, levando em consideração o tempo histórico no
qual ela estava inserida, com o intuito de observar as suas representações acerca da relação
entre a mulher, os espaços público e privado, a arte e a política.
Palavras chave: escrita íntima, memória, arte, feminino.
7
Abstract
On regard of intimate works, Anaïs Nin emerges as one of the most prolific authors, having
written and later published journals between the years of 1914 and 1974. This extensive
fictional report gave her a certain highlight within the feminist movement, while awakened
criticism towards her narcissism. Consequently, her intimate material comes as an
emblematic work concerning the strains within the fight for the women‘s rights. Because,
even with a narcissistic and a passive political posture, Nin‘s stances went against the period
values. This fact lead us to a question: how far the writer‘s behavior is as a political attitude,
since it resisted the contemporary behavior patterns? Thus, this work aspires to analyze Anaïs
Nin intimate writings, considering her representations concerning the feminine, public life,
politics and art and her insertion within the writing‘s time; questioning the relationship
between the intimate journals and the theories on the confessional genres and discussing the
relationship between ―fictional‖ and ―real‖ amidst the writers memoir, as well as the use of
Nin‘s private life in the makeup of her composition and, consequently, of her public figure.
The main research sources were the unexpurgated diaries, which had a post mortem
publication during the years of 1980 and 1990. The choice was not made only after the fact
that these diaries are less censured versions of the writer‘s intimate work, but also after their
coverage a period of time (1931-1939) in which Nin starts to show interest in the work‘s
publication, as well as commenting art and politics in a deeper way. Thus, the universe built
by this writer‘s journals will be analyzed, taking her historical insertion, aiming her
representations on the relationship between the woman, the public and private spaces, art and
politics.
Key words: intimate writing, memory, art, feminine.
8
Introdução
―Eu ponho apenas a arte no meu trabalho e minha genialidade na minha vida... Eu
interpreto mil papéis‖. Através dessas sentenças, Anaïs Nin admite o inadmissìvel na escrita
confessional: a capacidade de invenção de uma vida. Conhecida pela sua obra íntima, Nin é
uma das autoras que possuem uma das mais extensas documentações de si. Os diários
começaram a ser escritos quando ela tinha 11 anos, em 1914 e vão até 1974, quase antes da
sua morte em janeiro de 1977.
A proposta dessa dissertação surgiu de inquietações manifestadas em meus
estudos acadêmicos da graduação
1
, que se referiam à pesquisa das sociabilidades na internet.
O tema, a priori, não parece ter nada em comum com a escrita íntima de Nin. Mas, o que
despertou minha curiosidade foram as possibilidades da web de abrigar textos claramente
íntimos num espaço público. A partir das leituras sobre a invasão da escrita íntima nos espaços
públicos, conheci a obra de Anaïs Nin e, na ocasião, chamou a minha atenção o fato de que a
autora, décadas antes do surgimento do espaço público digital, escrevia relatos privados
com a intenção de levá-los ao olhar público.
Considerando que a extensão dos seus relatos torna-se mais surpreendente pela
decisão de Nin em publicá-los, e tendo em vista o caráter privado peculiar ao gênero diarístico
é que surgiu a possibilidade, enquanto pesquisadora, de não apenas examinar e conhecer
aspectos da vida cotidiana do passado, mas, também, observar as diversas formas de
construções de si
2
feitas pela autora. Vale ressaltar que em Nin o termo ―construção de si‖
deve ser ampliado. Enquanto outras memorialistas contemporâneas como Virginia Woolf
viam na escrita íntima a possibilidade de se auto-conhecer, Nin encontrava a oportunidade de
criar uma nova vida.
As primeiras versões dos diários foram publicadas nos anos de 1960 tornaram-se
conhecidas pelas edições e fabricações. Mas o fator imperativo para a sua notoriedade foi que,
1
ANDRADE, Raquel Thomaz de Percursos de Memórias Femininas: uma análise da escrita íntima de
mulheres no papel e no digital. Fortaleza, UFC, 2007. Disponível em: >http://www.bocc.uff.br/pag/andrade-
raquel-percursos-de-memorias-femininas.pdf>.
2
Ao longo do trabalho, prefiro usar os termos como ―escrita de si‖ e ―construção de si‖, com a mesma
acepção da historiadora Ângela de Castro Gomes (2004). ―Isso porque a escrita de si assume a subjetividade
do seu autor como dimensão integrante da linguagem, construindo sobre ela a ‗sua verdade‘. Ou seja, toda
essa documentação de ‗produção do eu‘ é entendida como marcada pela busca de um ‗efeito verdade‘ como
a literatura tem designado , que se exprime pela primeira pessoa do singular e que traduz a intenção de
revelar dimensões ‗ìntimas e profundas‘ do indivìduo que assume sua autora.‖ (GOMES, 2004, p. 14 -5)
9
em plena revolução sexual, Nin veicula relatos de suas vivências experimentadas trinta anos
antes, onde se revela uma mulher independente e dona do próprio corpo.
Os diários tornaram Nin uma figura controversa na segunda onda do movimento
feminista. Ao mesmo tempo em que foi vista como a ―personificação do espìrito de
liberdade‖, algumas feministas radicais criticavam a ênfase dada à criatividade artística e à
mistificação do feminino, dentro de sua obra.
Outras críticas comuns às obras memorialísticas da autora são em relação a uma
postura narcisista e alheia à política de sua época. Num período histórico em que era difícil
não tomar posição, Nin, ao contrário de outros artistas com quem convivia, como Pablo
Neruda, preferia a resignação frente aos grupos políticos da época. Em diversos trechos dos
diários, a autora afirmava que a política, a história e o racionalismo são âmbitos pertencentes
ao mundo masculino. Segundo Nin, a arte serviria para construir um mundo novo, de paixão e
o sonho, o que, na sua visão, nada podia ter a ver com política. Essa compreensão a escritora
contrasta com as praticas de diversos artistas de sua época como Ernest Hemingway, que
como ela também vivenciou os loucos anos 20
3
, Garcia Lorca, Pablo Neruda e Anna Seghers.
No entanto, apesar da apatia política, os diários de 1936 revelam a participação da
autora em encontros do partido comunista em Paris a fim de auxiliar a República Espanhola
na Guerra Civil. Porem, Anaïs Nin admitia que seu envolvimento com o partido se deva à
relação amorosa com o revolucionário peruano Gonzalo Moré, que queria deixar Paris para ir
a Espanha lutar contra o fascismo. Apesar da inicial simpatia pelo comunismo, seu pequeno
envolvimento com a política, parecia aumentar ainda mais o desprezo de Anaïs pelas questões
públicas, como demonstra o seguinte trecho:
...eu realmente não me importo com qual lado eu fico, eles estão todos
errados, quem acha que eles morrem e vivem por ideais. (...) Eu estou
lutando com a Espanha Republicana porque estou apaixonada e isso é tudo
que conta. (...) E minha alma feminina ri de todos os nomes e categorias dos
homens porque eu vejo além deles. O jogo o qual eles levam tão a serio, eu
levo rindo, enquanto eles riem das nossas lagrimas e tragédias.
4
3
Os ―loucos anos 20‖ é um termo usado para denominar os anos subseqüentes a I Guerra Mundial,
caracterizados por um estilo frenético de vida, frente às incertezas da paz. Esse estilo foi vivenciado, em especial,
entre as pessoas envolvidas com as vanguardas artísticas. Na década de 1930, a arte se aproximou mais da
polìtica e o comportamento atribuìdo ―aos loucos anos 20‖, que tinha como uma das caracterìsticas o hedonismo,
já não era mais tão perceptível.
4
... I don‘t really care whose side I take, they are all wrong, who think they live and they die for ideas. (…) I‘m
working for the Republican Spain because I‘m in love and that‘s what it counts. (…) and my woman‘s soul is
laughing at all men‘s categories and names because I see through and beyond them. It is their game which they
10
As palavras da autora suscitam questionamentos: ao mesmo tempo em que ela se
omite politicamente e reitera os princípios burgueses da época que atribuíam ao que é publico
(política) características masculinas e ao privado (os sentimentos) qualificações femininas, ela
também critica o menosprezo da política frente a questões da subjetividade. A mesma crítica
foi feita anos mais tarde pela chamada segunda onda do movimento feminista, que promoveu
as relações privadas para o âmbito político, ao mostrar que as relações privadas, as
afetividades e os sentimentos também merecem atenção.
Neste ponto a escrita de Anaïs Nin incorpora uma das questões mais caras ao
feminismo: o reconhecimento da importância da vida privada feminina. O diário de Anaïs Nin
se enquadra em um estilo diarìstico chamado ―Novo Diário do Século XX‖, onde o relato é
um espaço de revelações intimistas, sobre sentimentos, sensações, desejos e reflexões
psicológicas.
5
Nas memórias da autora não espaço para o publico, como se ela criasse uma
temporalidade própria para o eu‖. Ao contrario de outros registros autobiográficos do
mesmo período como o Diário de Anne Frank ou mesmo a recém lançada autobiografia
precipitada da militante brasileira Patrícia Galvão, o cenário sócio histórico do registro não
parece ser fundamental.
Essa aparente falta de consciência do potencial histórico do diário por parte de
Anaïs Nin também pode ser novamente justificada pela aversão da autora pelas questões
públicas, esfera na qual, para ela, a história está incluída. Vale ressaltar que na década de
1930, época em que os diários os quais esse projeto se propõe a pesquisar foram escritos
as práticas dos estudos históricos em sua maioria se voltavam para uma análise dos fatos
considerados socialmente relevantes, uma historia dos homens além de possuir estruturas
racionais, com explicações causais e inteligíveis somente pelo lado dito lógico. Não se falava
em historia dos sentimentos e de outras questões menos palpáveis ou seja, aquilo que
realmente encantava a autora.
take seriously and I take laughingly and they laugh at our tears and tragedies Tradução da autora. NIN, Anaïs.
Fire from a journal of love The unexpurgated diaries of Anaïs Nin. USA: Harvest Books, 1995, p. 354.
5
O termo ―Novo Diário do culo XX‖ foi cunhado pela escritora americana Tristine Rainer. Engana-se quem
acredita que os diários femininos do século XX, época da febre de relatos memorialísticos, eram textos que
primavam pelo esgarçamento subjetivo do eu. Até então as memórias femininas, em sua maioria, não guardavam
como principal qualidade a auto-reflexão, pois a mulher não era estimulada a escrever sobre si com intensidade.
Pensar o próprio corpo e a sexualidade, por exemplo, era quase sinônimo de devassidão. E a partir do momento
em que Anaïs Nin começa a fazer análise psicológica, que seu diário muda de tom de relato juvenil inocente para
um relato mais profundo de auto-descoberta.
11
Através de uma estética não racional, baseada nos sonhos e no interior psíquico,
Anaïs construiu um novo mundo nos seus diários. Para a autora, a sua escrita serviu para criar
um mundo onde ela pudesse viver, um mundo diferente dos que lhe foram oferecidos: da
guerra, da política e dos pais. Esse ambiente construído, través dos seus escritos, nega o
mundo político no qual estava inserida, mas, simultaneamente, se impõe ao público através da
sua circulação
6
.
Mas, ao impor ao público esse universo próprio que em muito se diferenciava dos
valores ordinários de sua época um mundo protagonizado por uma mulher livre e dona do
próprio corpo a escrita dela, por si só, já não estaria questionando a sociedade em que vivia?
No entanto, não se deve ignorar os significados da omissão consciente de Nin,
frente ao cenário sócio-histórico em que ela estava incluída. É necessário buscar a
compreensão dos seus silêncios políticos, não só como uma aversão natural ao mundo onde as
mulheres não eram bem vindas, mas também como um espaço em que ela, conscientemente,
não fazia questão de participar. A questão o se baseia somente na aceitação das
naturalizações do espaço público como masculino e do espaço privado como feminino, afinal,
na década de 1930 são inúmeros os exemplos de mulheres que já participavam de movimentos
sociais
Compreender os silêncios da autora é importante não para apreender questões
da época, como também para examinar algumas questões do feminismo, pois apesar das
críticas feitas por líderes feministas, a obra de Anaïs Nin possui relevância inegável para o
movimento feminista americano
7
.
Para problematizar e tentar responder algumas dessas questões, esse trabalho está
dividido em três partes. O primeiro capítulo trará algumas considerações teóricas sobre o
gênero confessional. No entanto, não se tratará de um capitulo puramente teórico, que é
nesta seção que a personagem Anais Nin será apresentada aos leitores. Além de discutir e
problematizar a relação entre os diários da autora com as teorias acerca das autobiografias e
diários, também será debatido o diálogo entre a ficção e a ―realidade‖ inseridas nas memórias
de Anaïs Nin, abordando através das suas fabricações, na sua obra memorialística, as relações
teóricas entre história e ficção. Outro aspecto importante da discussão estabelecida nessa
6
Ao contrário do velho clichê inserido no imaginário das práticas diarísticas, onde o diário é guardado do olhar
de todos, parte as memórias de Anaïs Nin, antes mesmo de serem publicadas em larga escala na década de 60,
circulavam entre o ciclo de amizades da autora desde que começaram a ser escritos.
7
A despeito da origem franco-cubana da escritora, os diários do período em questão foram escritos em inglês.
12
seção será examinar a utilização da vida privada da autora para a construção de uma obra de
arte e, conseqüentemente, da sua figura pública.
o segundo capítulo se destinará a analisar a relação entre a escrita diarística de
Nin no contexto de sua produção. A seção discutias articulações entre as idéias de Nin
refletidas nas suas obras ficcionais e memorialísticas e as preocupações explícitas da arte
modernista. Bem como, serão observadas as tensões entre criação artística e realidade exterior
presente tanto na obra de Nin, quanto na de autores que influenciaram sua concepção artística,
como Otto Rank, Henry Miller e Michel Proust. A partir da preocupação com o conflito entre
arte e realidade, será buscado compreender a passividade política de Nin frente a uma
sociedade com valores que iam de encontro ao seu comportamento privado, relatado no diário;
bem como a problematizar o universo construído pela escrita íntima da autora, levando em
consideração o tempo histórico no qual ela estava inserida.
A última parte do trabalho, o terceiro capítulo, tem como aspiração apreender
visões do feminino no diário da autora e também observar as representações da autora acerca
da relação entre a mulher, os espaços público e privado, a arte e a política.
Com isso, objetiva-se buscar compreender a figura de Anaïs Nin através dos
limites entre a contestação e o narcisismo dentro do período em que os diários foram
escritos, e, a partir desses entendimentos, lançar um olhar sobre as tensões do movimento
feminista incorporadas pela autora: o potencial de articulação entre a vida privada e a
transformação social.
13
Capítulo 1 Um olhar sobre a invenção: o diálogo entre história
e literatura
―Um strip tease literário‖, assim a biógrafa Noël Fitch descreve a obra ìntima de
Anaïs Nin. O termo delineia um desnudamento de si empreendido pela escrita. Uma escrita
engajada para traduzir uma determinada percepção da realidade e que, no entanto, não está
nada preocupada com qualquer critério de objetividade para a construção de si. Numa
tensão constante e simbiótica entre arte e psicanálise, entre a necessidade de produzir beleza
e a vontade de verdade. Nasce a diarista Anaïs Nin, e com ela é trazido ao público um
arcabouço de documentações de si onde ficção e realidade se confundem. Chegando a
admitir as incoerências na própria obra: ―No momento em que estou escrevendo eu me
preocupo apenas com a beleza, eu disperso o resto. Eu gostaria de voltar como um detetive
e coletar tudo que tirei‖.
Essa precisão nietzschiana de se construir o belo, através da aparência escrita,
para criar ‗experiências de verdade‘ parece se articular com a necessidade da autora de se
construir uma obra de arte através da própria vida e talvez seja um dos aspectos mais
instigantes de sua obra. Anaïs Nin conseguiu trazer um gênero marcado pela intimidade e
segredo (os diários) aos olhos do público, e, dessa forma, parece ter desenvolvido uma
espécie de estética da existência, onde não se sabe até que ponto a obra influencia na busca
por experiências de vida e vice-versa.
Mas, apesar da falta de objetividade e das indistinções entre o real e o fabricado,
a obra diarística de Nin continua a ser vista como um dos auto-retratos mais fieis já
elaborados durante toda uma vida. O que não deixa também de instigar o debate acerca das
verdades encontradas em reelaborações ou mesmo na fabricação dos fatos.
A escrita confessional tem como prerrogativa ancorar-se na vivência real de
seus autores. As ciências humanas, por vezes se amparam nesses relatos de experiências
autênticas para caracterização da realidade. No entanto, obra íntima de Nin foge dessas
características, na medida em que a autora assume que sua escrita íntima é uma invenção de
si. Esse fato põe em xeque a possibilidade do uso de seus escritos na disciplina histórica,
que tem como prerrogativa fugir de fabricações e invenções, se ancorando em métodos que
garantam a honestidade da pesquisa, para uma descrição e problematização da realidade.
14
Desta forma, como produzir uma pesquisa no campo da história, tendo como
fonte escritos cujo teor não pode se enquadrar em acontecimentos, como é o caso das fontes
literárias?
O debate sobre o diálogo entre a realidade e a literatura não se restringe apenas
no que se refere aos gêneros confessionais. No campo da ciência histórica a discussão
parece ser tão antiga quanto a própria disciplina
8
. E isso tem refletido na escolha das fontes
para os estudos historiográficos.
Por mais que o uso da literatura como fontes históricas não seja exatamente
novo, a discussão sobre esses usos não parece estar perto de um fim. Esse fato também põe
em questão o uso da literatura confessional como diários, cartas e autobiografias na
categoria de fontes históricas, que, como no caso de Anaïs Nin, não se pode saber se
aqueles escritos aconteceram ou não.
Como este trabalho se baseia na análise da escrita íntima de Nin, é
fundamental que essas problemáticas sejam abordadas de forma sistemática por isso, este
capítulo se destina a discutir a relação que pode ser estabelecida entre história e literatura.
De que forma se entrecruzam? Como são problematizadas suas aproximações e
distanciamentos? Também será preciso tentar entender de que forma as memórias de Nin
estabelecem uma relação com determinado grau de ficção. Além de tentar problematizar a
dimensão que Nin dava as suas próprias experiências, como material para uma obra de arte.
Com essas discussões, pretende-se, então, compreender de que forma as
memórias de Nin são construídas, e, como, estas podem ser úteis para o debate
historiográfico.
1.1 A relação da história com as fontes literárias
Algumas das características que arte e memória compartilham no campo das
ciências humanas são o fascínio e a desconfiança. Fascínio por representarem a presença de
uma ausência. Na arte a presença de uma realidade criada e, consequentemente, não
8
CF. FORTUNATO, Maria Lucinete; ANDRADE, Raquel Thomaz de. Narração histórica, narração literária:
uma aproximação possível. In. sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [20]; João Pessoa, jan./ jun. 2009, p.
111-118.
15
existente; enquanto a memória traz para o presente um passado desaparecido. Mas os
mesmos elementos que trazem o fascínio também suscitam desconfiança.
Como a ciência, que tem como objetivo a busca da verdade, pode trabalhar com
representações do ausente? Na contemporaneidade a ciência histórica passou a se pautar
menos por um estudo do passado, iniciando uma reflexão acerca das sensibilidades de
outrora e sua relação com o presente. Agora a verdade não é mais procurada numa
concepção única do passado, mas sim na relação dinâmica entre produções sociais e
culturais e o presente de seus criadores
9
Essa nova perspectiva historiográfica permitiu que o estudo de fontes relativas à
arte e a memória tenha mais liberdade. Mas vale lembrar que a curiosidade perante esses
dois campos não existe por mero fascínio. Ao passo que a pesquisa historiográfica
flexibilizou seus campos de estudo, o conceito de política foi ampliado, ato que trouxe para
a ciência histórica a possibilidade de novos olhares para suas fontes. A nova dimensão do
que é político voltou-se para o simbólico e imaginário, com o intuito de buscar outras
perspectivas sobre as relações de poder de diferentes épocas.
O sociólogo Pierre Bourdieu foi um dos estudiosos que contribuiu para essa
redimensão da polìtica, ao desenvolver o conceito de ―poder simbólico‖ , instâncias que,
para o autor, seriam capazes tanto de legitimar, quanto de subverter o status quo. O poder
simbólico teria o potencial de fazer ver e crer, de confirmar ou transformar o mundo, e, de
certa forma, o permite obter forças equivalentes a instâncias físicas e econômicas.
10
A partir
de então, o papel da memória e de outras produções culturais, como a arte, ganham
destaque especial nesses estudos.
Mas mesmo antes dessa guinada da história política, os papéis da memória e das
artes na sociedade já eram discutidos em outros campos. Os teóricos da escola de Frankfurt,
por exemplo, dedicaram grande parte de seus estudos para tecer considerações sobre essas
produções culturais.
O filósofo Herbert Marcuse
11
, em sua interpretação acerca da psicanálise
freudiana, afirma que a memória guarda as potencialidades e promessas que são traídas pelo
9
SANTOS, Márcia Pereira dos. História e Memória: desafios de uma relação teórica. In OPSIS - Curso de
História. Dossiê Teoria da História. Universidade Federal de Goiás - Campus Catalão. Catalão - 2007.
Disponível em: <http://www.catalao.ufg.br/historia/revistaopsis/arqpdf/OPSIS2007_2.pdf#page=81>
10
BOURDIEU, Pierre.: Poder, derecho y clases sociales. Bilbao:Desclée De Drouwer., 2000, p.98.
11
11
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de
Janeiro. Zahar, 1975.
16
indivíduo maduro. Portanto, a memória não revelada pelo inconsciente provocaria tensão no
indivíduo reprimido, assim, a busca psicanalítica pelo resgate da memória esquecida
converter-se-ia num meio para futura libertação.
À medida que a cognição cede lugar à recognição, as imagens e impulsos
proibidos da infância começam a contar a verdade que a razão nega. A
regressão assume uma função progressiva. O passado redescoberto produz
e apresenta padrões críticos que são tabus para o presente.
No campo historiográfico, onde a esfera dos poderes é percebida como uma
instância dinâmica e fluida, a memória passa a ser vista como potencializadora das ações
políticas, portanto, o historiador deve percebê-la como não apenas uma expressão do
passado, mas também, como uma ação presente carregada de implicações no jogo das
relações de poderes. Tanto que alguns teóricos, como Michael Pollack
12
, se dedicam aos
estudos do que pode ser chamado de ―batalha da memórias‖ quando se um contraste
entre as Memória Oficial e a Memória Subterrânea de grupos marginalizados e inaudíveis.
O diário de Anaïs Nin, escrito durante a década de 1930, talvez constituísse uma
reminiscência marginal. Num período em que a esfera pública, política e cultural ainda é
um domínio masculino, a quem interessaria a ouvir a voz de uma mulher ainda não
reconhecida como artista?
Não foi a toa que durante esse período, as tentativas de publicação de suas
memórias tiveram como resultado a frustração. Mas que relevância no jogo de poderes
teriam os relatos íntimos essencialmente privados da autora? Ou melhor, de que vale a
atenção dada à obra de Nin em um trabalho de história?
Trabalharei com a perspectiva historiográfica onde falar sobre a memória por
mais íntima e individual que seja é também um exercício político, na medida em que as
escolhas individuais estão carregadas de posições ideológicas. E a decisão de Nin de
conceber seu diário como material de sua produção artístico-literária portanto, destinada a
publicação só reforça essa potencialidade política de suas memórias individuais nas
relações de poder de sua época.
A opção por transformar memória em obra literária também desperta
questionamentos sobre como proceder com essa fonte histórica. Como trabalhar com uma
12
POLACK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Disponível em:
<http://www2.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf>. Acessado em 26/11/2008.
17
fonte pensada esteticamente para o olhar do outro, e que, com isso, parece trazer em si uma
dose considerável de ficção?
O termo ficção parece gerar incômodo entre historiadores, ao colocar o caráter
científico da disciplina em xeque. O mesmo talvez possa ser dito sobre memorialistas, cujos
textos supostamente deveriam traduzir as percepções das vivências tal qual aconteceram. O
pacto produzido por essas duas formas de escrita, gerando a obrigatoriedade de se narrar a
experiência temporal tendo como objetivo produzir uma verossimilhança entre o texto e o
referente descrito, impede a fabricação de fatos em nome de uma relação de honestidade
com os leitores.
Desta forma, questões se impõem: 1) o uso de artifícios literários e fictícios na
história diminuiriam o caráter científico da disciplina? 2) como lidar com os aspectos
fictícios dentro das obras memorialísticas? Se o objetivo deste trabalho é discutir o uso dos
diários íntimos como fontes históricas é preciso tentar responder e relacionar essas duas
perguntas.
A primeira questão tem sido alvo de debate tempos, e recebe atenção
especial nas discussões sobre a nova história cultural. O que não é estranho frente a um
período de incertezas no campo das ciências humanas em geral trazidas pelos debates sobre
a pós-modernidade.
Para começar as discussões sempre se levanta a relação entre literatura
e história. Discussão que, como disse Pesavento
13
parece ter sabor de déjà vu.
Recorrente ou não a questão ganha outra dimensão quando a literatura em
relevo faz parte do gênero confessional, principalmente no que concerne às discussões da
nova história cultural, já que esse ramo da disciplina dá uma importância especial às
construções de identidade individual.
14
E nem sempre a preocupação com essas construções
se dão em função da auto-imagem fiel do autor.
Quando se trata de memórias de figuras públicas, como no caso de Anaïs Nin,
não se encontra a construção de uma identidade completamente diferente. Mas nos diários
expurgados publicados na década de 1960, omissões que tornam Nin uma figura muito
mais independente do que ela realmente era. O fato é que, ao publicar aqueles escritos que
não condiziam exatamente com sua vida, a escritora rompia um pacto com seus leitores.
13
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história , Nuevo Mundo Mundos
Nuevos, Debates, 2006, Publicado em rede do dia 28.01.2006. URL :
http://nuevomundo.revues.org//index1560.html. Consultado em 10.07.2008
18
Existe um pacto autobiográfico estabelecido entre autor e leitor dos escritos da
memória. O pacto cunhado por Phillipe Lejeune estabelece um ―relato retrospectivo em
prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, enfatizando sua vida individual e,
em particular, a história de sua personalidade.‖
15
. Desta forma, a literatura confessional se
aproximaria da disciplina da história, onde a ficção não explicitada poderia ser vista como
desonestidade intelectual.
Mas o leitor de memórias não tem como saber se o autor quebrou o pacto ao
relatar um acontecimento ou mesmo um sentimento fictício. Mesmo porque a fabricação
das memórias não guarda a metodologia rígida de escrita própria às ciências humanas. No
ensaio Fabricando o Patrimônio
16
, o historiador David Lowenthal faz uma aproximação
dos escritos autobiográficos e o patrimônio para ele:
Autobiografia como patrimônio desafia as regras da história. Os auto-
cronistas alteram os fatos e constroem ficções que baniriam historiadores
da academia. Tal como acontece com patrimônio, a história de vida
também só se torna coerente e crível apenas pela invenção.
17
A questão , no entanto, não é tão simples. Se todo escrito memorialístico precisa
de ficção para ser coerente, por que outras formas de escrita, como a própria história não
precisaria? A diferença é que, para o autor, a história tenta convencer pela verdade, embora
possa sucumbir para a falsidade, o patrimônio e a autobiografia exageram, omitem e
esquecem explicitamente mas o que impediria o historiador também de esquece, exagerar
e omitir?
Ao contrário de Lowenthal, outros teóricos não diferenciariam com tanta ênfase
a história dos relatos memorialísticos. O lingüista Hayden White, por exemplo, causou mal
estar na academia ao questionar a oposição entre história e ficção. De acordo com Burke,
White estendeu a noção de enredo da literatura para a história, atenuando o discurso
aristotélico sobre o contraste entre a poética e a ciência da musa Clio. Se não diferença
entre ficção e história, qualquer enredo passa.
15
LEJEUNE, Philippe. El pacto autobiográfico. In: Suplementos Anthropos. Nº 29. Barcelona, 1991. p.48
16
Disponível em: <http://www.iupjournals.org/history/ham10-1.html>. Acessado no dia 10.07.2008
17
Autobiography like heritage defies history's rules. Self-chroniclers alter facts and use fictions that would
ban historians from academe. As with heritage, life histories become coherent and credible only by
invention. Tradução da autora.
19
White não ficou sem respostas. Um de seus críticos mais fervorosos foi Carlo
Ginzburg. Em ―O extermìnio de judeus e o princìpio de realidade‖, o historiador italiano
rebate a tese de White de que esse relativismo dentro da história provocaria tolerância.
Como se viu White sustenta que ceticismo e relativismo podem fornecer
as bases epistemológicas e morais da tolerância. Mas esta tese é
insustentável seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de vista
lógico. Do ponto de vista histórico, porque a tolerância foi teorizada por
indivíduos que tinham fortes convicções intelectuais e morais (o mote de
Voltaire ―Lutarei para defender a liberdade da palavra daquele com quem
me encontro em desacordo‖ é tìpico). Do ponto de vista lógico, porque o
ceticismo absoluto entraria em contradição se estabelecesse tamm a
tolerância como princípio regulador. Não só: quando as divergências
intelectuais e morais não são coligadas em última análise à verdade, não
há nada a tolerar.
18
White não teve apenas respostas de Ginzburg. Chartier, no ensaio Figuras
Retóricas e Representações Históricas,
19
afirma que a história não pode ser vista como
ficção tendo em vista os métodos e o trabalho produzido pelo historiador na construção do
texto. Ele afirma que embora reconfigurar a temporalidade histórica para a descoberta de
uma única verdade seja uma tarefa dificilmente possível, não levar um padrão de realidade
em consideração tiraria da história qualquer caráter de especificidade.
de se problematizar as significações do termo. Nos dicionários muitas vezes
a palavra ficção aparece como ―produto de imaginação‖, sendo posta, desta forma, em
oposição à ―verdade‖. No entanto, se considerarmos que para perceber a realidade é
necessário ativar os instrumentos psíquicos ligados a capacidade de imaginação, a ficção
torna-se uma espécie de tradutora do real. Esse é o pensamento do crítico literário Wolfgang
Iser. Criam-se ficções para explicar a existência, ficções que, no caso, não podem ser
equiparadas simploriamente a mentiras, mas como mediações entre o real referente e a
produção da escrita, ou seja, ficcionaliza-se para representar o ausente.
Esse pensamento torna ainda mais tênue a linha divisória entre literatura e
história. Mas não é por isso que a história perderia suas peculiaridades. Pode-se considerar a
18
GINZBURG, Carlo. O extermínio dos judeus e o princípio da realidade. In. MALERBA, Jurandir. (org.).
A história Escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. p.224
19
CHARTIER, Roger À beira da falésia: a História entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Editora
Universidade/ UFRGS 2002.
20
existência de várias formas de ficção. A ficção do relato de uma mentira, a ficção literária e
a ficção pautada na verossimilhança em relação ao que se chama de realidade. A construção
dessa última forma de ficção implicaria a aplicação de métodos e estratégias descritos por
Chartier.
Tanto a escrita da história, quanto a escrita memorialística para construir um
conto acerca do ―real‖ envolvem um o processo de seleção de eventos, além de trazerem a
posição ideológica e a perspectiva de seus narradores, o que influencia de modo decisivo no
resultado da narrativa
Todas essas questões fazem emergir uma série de críticas afirmativas de que a
nova história cultural em pouco se diferenciaria da literatura. Sandra Jatahy Pesavento
20
reconhece a aproximação dessas duas formas de conhecimento. Mas também busca por em
relevo as diferenças.
O historiador não cria personagens nem fatos. No máximo, os ―descobre‖,
fazendo-os sair da sua invisibilidade. A título de exemplo, temos o caso do
negro, recuperado como ator e agente da história desde algumas décadas,
embora sempre tenha estado presente. Apenas não era visto ou
considerado, tal como as mulheres ou outras tantas ditas ―minorias‖.
A autora, no entanto, sabiamente se afasta do discurso de que o estudo histórico
reflete a realidade tal como é:
Na reconfiguração de um tempo nem passado nem presente, mas tempo
histórico reconstruído pela narrativa , face à impossibilidade de repetir a
experiência do vivido, os historiadores elaboram versões. Versões
plausíveis, possíveis, aproximadas, daquilo que teria se passado um dia. O
historiador atinge, pois, a verossimilhança, não a veracidade. Ora, o
verossímil não é a verdade, mas algo que com ela se aparenta. O
verossímil é o provável, o que poderia ter sido e que é tomado como tal.
Passível de aceitação, portanto.
Tendo em vista essas questões, retornemos a pergunta que iniciou essa
discussão: o uso de artifícios literários e fictícios na história diminuiria o caráter científico
20
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história , Nuevo Mundo Mundos
Nuevos, Debates, 2006, Publicado em rede do dia 28.01.2006. URL :
http://nuevomundo.revues.org//index1560.html. Consultado em 10.07.2008
21
da disciplina? Para que o historiador usaria como fonte algo que não aconteceu? Qual seria
o interesse para o historiador, por exemplo, em utilizar um diário cuja verossimilhança pode
ser duvidosa?
Vários estudiosos, que fazem parte do campo de pesquisa da história cultural,
têm procurado dar respostas a essas perguntas. A dualidade entre realidade e ficção não é
vista como algo limitador na disciplina. A literatura e a ficção são campos que podem
instigar novas perguntas à disciplina. Afinal, alguns temas de estudos históricos não são
mensuráveis apenas por fontes que produzem representações do acontecido. Fontes
literárias podem ter um papel privilegiado no que concerne às representações de uma época.
Especialmente na nova história cultural, definida por Roger Chartier com propósito de:
―identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade
social é construída, pensada, dada a ler.
21
Desta forma as fronteiras entre o acontecido e o não acontecido se diluem, no
sentido de que não interessa mais apenas os dados estatísticos, inquéritos policiais e outros
documentos ditos oficiais. A história daquilo que não pode ser chamado de concreto e que
sempre é um desafio mensurar como a representação das sensibilidades, o imaginário de
uma época passa ser privilegiada nesse ramo de estudo. Esse reconhecimento da literatura
como fonte de conhecimento remete a divisão de Aristóteles entre a poética e a História.
Para o filósofo grego, a diferença entre as duas formas de conhecimento não está na forma,
mas sim no alcance.
Que a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim
coisas que podiam acontecer, possíveis no ponto de vista da
verossimilhança ou da necessidade. Não é em metrificar ou não que
diferem o historiador e o poeta; a obra de Heródoto podia ser metrificada;
não seria menos uma história com o metro do que sem ele; a diferença está
em que um narra acontecimentos e o outro, fatos quais podiam acontecer.
Por isso a Poesia encerra mais filosofia e elevação do que a História;
aquela enuncia verdades gerais, esta enuncia fatos particulares.
22
De acordo com essa compreensão, parece que o fato de a história estar ligada a
um princípio de realidade é limitante. Ao narrar um fato acontecido, não como fugir da
particularidade. Já a poética (a literatura) não está preocupada com a veracidade daquilo que
é narrado pode ser, portanto, mais abrangente.
21
CHARTIER, Roger. História cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1988.p. 16-17.
22
ARISTOTÉLES, Poética. In Aristóteles, Horácio, Longino: a poética clássica. São Paulo: Cultrix.
1997. p.28
22
Anaïs Nin, provavelmente, concordaria com Aristóteles. Para ela, a realidade
também era limitante, por isso o artista seria feliz na criação. E não podemos esquecer
que, de certa forma, suas memórias também eram criações.
E o que os escritos diarísticos de Anaïs Nin poderiam dizer sobre o
imaginário de sua época? quem diga que apenas as fontes literárias realistas no gênero
de Balzac ou Machado de Assis podem ser usadas para os estudos históricos. Neste caso, o
que seria mais realista do que um diário íntimo? No entanto, temos que levar em
consideração com quais escolas literárias a escritora se identificava.
Leitora de Proust, Nin queria transformar seus escritos num épico da
memória como nos livros da série Em busca do tempo perdido. Nessa obra proustiana o
tempo e a memória aparecem como obsessão, como o próprio título deixa claro. A narrativa
que tem traços autobiográficos é uma tentativa de recuperar as lembranças do passado.
Como Proust, Nin não estava preocupada com acontecimentos ou datas, o que importa
seriam as memórias involuntárias: as sensações, os odores antigos, os desejos. Em Proust, a
impressão dos beijos dados pela mãe antes de dormir assume uma importância quase
catártica na vida do narrador, como demonstra o trecho abaixo.
Eu jantava antes de todos e a seguir vinha sentar-me à mesa, até às oito
horas, quando estava convencionado que deveria deitar-me; esse beijo
precioso e frágil que mamãe me dava de costume na cama, no momento
em que ia dormir, era-me necessário transportá-lo da sala de jantar ao meu
quarto e guardá-lo todo o tempo em que me despia, sem que sua doçura se
partisse, sem que sua virtude se espalhasse e evaporasse, volátil, e
justamente nessas noites em que precisava rece-lo com as maiores
precauções, via-me obrigado a pegá-lo, roubá-lo de súbito, publicamente,
sem nem mesmo ter o tempo e a liberdade de espírito necessários para dar
ao que fazia a atenção dos maníacos que se esforçam por não pensar em
outra coisa enquanto fecham uma porta, para poderem, quando a incerteza
mal lhes volta, lhe opor vitoriosamente a lembrança do momento em
que fecharam.
23
Ao comentar a obra de Proust, Silva
24
reconhece nela uma busca pela verdade.
Essa busca só é possível, justamente, por se tratar de uma obra literária. Para o autor, a obra
de arte pode apresentar uma versão mais completa da realidade, pois o artista tem a chance
23
. PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: No caminho de Swan. Rio de Janeiro: Globo, 1987.p.
23
24
SILVA, Leopoldo Franklyn e. Bergson, Proust: tensões do tempo. IN NOVAES, Adauto. Tempo e
História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.146-9
23
de perceber os aspectos insuspeitados e inesperados do real, sem estar preso a expectativas e
pré-concepções. Em busca do tempo perdido, neste caso, não se trata de uma representação
literária do tempo vivido, mas sim, uma revelação da essência temporal da realidade.
Portanto, não importa se os escritos de Proust são uma autobiografia mesclada de ficção ou
um realismo memorialístico, o que importa é que o narrador atua como uma espécie de
mediador das experiências temporais, operando uma narratividade reflexiva alusiva a
própria essência do tempo.
A idéia de se buscar a verdade dentro de uma obra de ficção dialoga com o
pensamento nietzschiano acerca da relação entre arte e verdade. Para o autor não há sentido
em contrapor realidade e ficção, pois a própria verdade dos fatos não poderia ser traduzida
simplesmente por palavras racionais. No entanto a arte seria capaz de fornecer experiências
de verdade aos sujeitos históricos, mesmo criando um universo que recusa o que se entende
por realidade.
Considerando que a verdade não é passível de apreensão verbal, assim, a
verdade encontrada na arte seria uma verdade ilusória.Verdade e arte se relacionam em
Nietzsche, à medida que a última opera como uma espécie de redentora do espírito dito
racional, que, para o filósofo, não passaria de uma ilusão construída a partir de uma série de
convenções estabelecidas. a arte, da qual não é exigido um ―instinto de verdade‖, poderá
ser capaz de possibilitar ao homem uma experiência dionisíaca.
O filósofo descrer na razão científica por ela se propor a estabelecer e buscar a
―verdade‖ como valor supremo, ignorando completamente o valor da aparência, ou seja, da
arte. Ao mesmo tempo, ele hierarquiza ciência e arte, colocando a última em um nível
superior à primeira, embora as duas instâncias sejam duas formas de ilusão. Mas é somente
a estética que pode oferecer ao homem uma ―experiência de verdade‖, ironicamente,
baseada na aparência, ou seja, na mentira e na ilusão.
Assim como no romance Em busca do tempo perdido, nos diários de Nin os
fatos (a verdade) são o que menos importa. Lá, a realidade por vezes aparece como inimiga
da criação, portanto, inimiga da própria felicidade. Se os fatos da vida de Nin não têm
importância, mais insignificantes ainda são os acontecimentos exteriores. Embora parte dos
escritos tenha sido produzida num momento conturbado da história mundial, o tema pouco
é tratado nos diários.
24
Quando ela fala de iminência da guerra, por exemplo, ela enfatiza a necessidade
de se criar um mundo diferente: ―Não teremos mais arte, não teremos mais livros porque a
guerra está próxima. Não nada mais para viver além do mundo feminino. A mulher está
fundamentalmente certa. Eu defendo mais e mais a vida. Odeio política. História. Que trai a
felicidade individual. Guerra que destrói a vida individual. ‖
25
Desta forma, talvez seja inútil buscar no trabalho confessional da autora o
imaginário de uma época. Mais sensato seria tentar entender como Nin construía
sensibilidades através dos seus diários naquele determinado ambiente social.
Não se pode falar que os aspectos da criação nas memórias de Anaïs Nin são
uma mentira. A dimensão criativa nos diários não consiste simplesmente em inventar fatos,
personagens e acontecimentos, mas sim na habilidade da autora em transformar os fatos
triviais em sensações sublimes. É o que explica a crítica literária Alba Olmi:
É extraordinária a forma que Nin consegue tornar luminoso e brilhante o
evento mais banal. Há sempre muito amor no que ela escreve, inclusive ao
falar de uma cidade ou de um acontecimento mundano, quando seria de se
esperar uma visão mais impessoal e objetiva. Mas o mundo através dos
olhos de Nin é um mundo cheio de fascínios e maravilhas, cheio de beleza.
Tudo é filtrado por sua capacidade em embelezar e dar consistência a
pessoas e eventos, mesmo os mais insignificantes. E o que resulta desse
processo é um retrato vivo que fica impresso na mente que é único e
inimitável.
26
Como foi dito anteriormente, é nessa criação que o diário de Anaïs Nin
―supera‖ a realidade, mas isso de forma nenhuma transforma os escritos diarísticos em
textos puramente ficcionais. Pode-se dizer que a obra íntima de Nin tenha mais ficção do
que se pode esperar de um gênero confessional, assim como a sua literatura ficcional
apresenta traços autobiográficos. Caracterizar as memórias da autora como ficção é uma
atitude exagerada, mas também não deve desconsiderar o fato de que aspectos na sua
escrita que não apresentam veracidade.
25
No more art, no more books, because war is near. There‘s nothing less to live but the woman‘s world.
Woman is fundamentally right. I stand more and more for life. Hate politics. History. Which cheat one of
individual happiness. War, which destroys individual life. Tradução da autora. NIN, Anaïs. Fire: from a
journal of love The unexpurgated diaries of Anaïs Nin. USA: Harvest Books, 1995, p.78-9.
26
OLMI, Alba. Dimensões e Perspectiva da literatura memorialista .Santa Cruz do Sul: EDUNISC,
2006, p. 37
25
O que leva a segunda pergunta proposta no artigo: como lidar com os aspectos
fictícios dentro das obras memorialísticas? Em seu estudo sobre as dimensões e
perspectivas da literatura memorialista Alba Olmi cita a autobiografia de Doris Lessing para
a problematização do conceito de verdade na escrita confessional: Impossìvel sentar para
escrever sobre si sem sofrer assédio das questões retóricas da mais tediosa natureza. Nossa
velha amiga, a verdade, é a primeira. A verdade... como contar e quanto ocultar?‖.
27
Escrever uma autobiografia é diferente de escrever um fragmentado diário. A
começar porque autobiografias são dirigidas para um público (por isso a preocupação de
Lessing com o ―quanto ocultar‖), os diários estão ligados ao âmbito do secreto embora
isso não possa ser dito sobre Nin, que seus escritos eram feitos para serem lidos e
publicados. Mas a preocupação com a verdade também está lá. Em uma carta envida a
Henry Miller
28
e transcrita para o diário, Nin fala sobre a existência de outro diário feito
para seu marido, Hugh Guiler. Na nota, ela fala sobre a capacidade do escrito diarístico de
criar outro real.
Minha imaginação está em chamas com esse diário ―verdadeiro‖ para
Hugh. Você não sabe como eu adoraria escrever tudo de uma vez. Eu
comecei hoje à noite. Cinco páginas. Tudo armado. Pode se tornar uma
maravilhosa peça de mistificação, os dois lados de um comportamento, e
se torna tão real para mim quando eu escrevo (por exemplo, sobre a
determinação de nunca ser possuída por você porque os homens se
lembram mais das mulheres que nunca possuíram) que eu acredito que se
você ler esse diário eu poderia quase te persuadir que você nunca me teve.
Confrontar os dois [diários] poderia facilmente deixar qualquer homem
louco. Eu adoraria morrer e ver Hugh lendo os dois.
29
27
LESSING, Doris. Debaixo da minha pele: o primeiro volume da minha autobiografia. São Paulo:
Companhia das Letras. 1997, p.21. apud Ibid. p.37.
28
Henry Valentine Miller, além de escritor marginal, foi o mais famoso romance de Anaïs Nin. Eles se
conheceram em 1931 e se relacionaram durante mais de 20 anos.
29
My imagination is all aflame with that ―real‖ journal for Hugh. You don‘t know how I would love to
write all at once. I began it tonight. Five pages. All craft. It may turn into a marvelous piece of
mystification, the two sides of an attitude, and it becomes so real to me when I write it (for example, the
determination never to be possessed by you because men remember longest the women they have not had)
that I believe if you read this journal I could almost persuade you that you never had me at all. To confront
the two could easily drive a man insane. I would love to die and watch Hugh read them both. Tradução da
autora. NIN, Anaïs. Incest: from a journal of love The unexpurgated diaries of Anaïs Nin. USA: Harvest
Books, 1992 p.271-2.
26
Nin criou um mundo novo num diário destinado exclusivamente a seu marido.
Em 1929, após John Eskirne
30
, um interesse afetivo da autora, revelar que em seus diários
estavam suas melhores obras, ela decidiu buscar maneiras de publicá-los
31
. Em outras cartas
trocadas com Miller, Nin revelava o desejo de publicar o verdadeiro diário real‖. Ou seja,
o diário sincero também tinha destinatário: o público. Se ela criou um novo real para
satisfazer o marido, porque não escrever para agradar a esse público?
Como se trata de um gênero definido como ―literatura ìntima‖, é interessante
pensar num método que leve em consideração as discussões de Ângela de Castro Gomes,
sobre a prática das pesquisas históricas que têm como fontes a escrita de si. A historiadora
aponta a necessidade de abordar como os autores de gêneros confessionais expressam a
ótica assumida pelos seus registros pessoais.
32
Desta forma, não interessa descobrir ―o que realmente aconteceu‖, mas sim
observar a percepção de Anaïs Nin sobre os fatos e as próprias vivências. Ainda tomando
como base as reflexões de Gomes, na análise dos diários também se deve entender a escrita
de si como tendo editores e não autores propriamente ditos
33
, para desta forma, levar em
consideração na análise que a representação no diário é articulada entre a identidade
construída pela autora e pelo próprio texto. Ter essas ressalvas em mente é necessário para
uma melhor apreciação de fontes da escrita íntima, a fim de não se deixar cair na
ingenuidade de um ―eu‖ coerente e contìnuo, que se revelaria por inteiro na produção da
memória.
1.2 Sobre mentiras sinceras: o diálogo entre realidade e ficção no diário
íntimo
―Eu sempre invento minha vida‖
34
, escreve Anaïs Nin em seu diário. A frase
foi censurada no primeiro diário
35
publicado pela autora. Não é difícil adivinhar as razões
para tal censura. Inventar a própria vida pode significar tornar fictício os seus escritos
30
John Erskine foi um professor de inglês de Hugh Guiler na Universidade de Columbia. Em 1928 ele se
aproximou do jovem casal e Nin se apaixonou por ele, causando a primeira crise no casamento de Nin e
Guiler.
31
POLE, Rupert In Ibid. p. IX.
32
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de Si, Escrita da Historia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004 p.15
33
Ibid. p15-6
34
I always invent my life. Tradução da autora. NIN, 1995, p. 333.
35
NIN, Anaïs. The Journal of Anaïs Nin Volume I. London, Quarted Books Limited. 1973.
27
diarísticos. Se nas autobiografias e diários, um pacto autobiográfico, entre autor e leitor,
de que aqueles relatos são privados e sinceros, seria possível para o leitor estabelecer um
pacto de verdade com alguém que assume sempre inventar-se? Essas questões colocam em
relevo um dos debates acerca dos estudos dos gêneros confessionais: a relação entre
realidade e ficção na escrita de memórias.
Em se tratando do trabalho de Anaïs Nin a questão se torna mais pertinente
tendo em vista que os diários parecem ter sido escritos para uma futura publicação
36
.
Portanto, o termo privado, no sentido estrito, não pode ser devidamente aplicado aos diários
da autora. Pode parecer um paradoxo um diário construído para o olhar do outro, mas os
números de diários publicados nos últimos anos provam que
nem sempre o segredo e o diário íntimo andam juntos.
Para a crítica literária, Beatrice Didier o grande número de publicações de
diários pode ser explicado, pois o termo ―ìntimo‖ ganhou um novo sentido, de forma que a
sinceridade em relação ao próprio ―eu‖ se torne mais importante que o caráter privado.
A noção de intimidade mudou de conteúdo. Esta noção se definia em
relação ao outro, em função do segredo. O diário era um domínio
escondido. Ele era íntimo na medida em que escapava do olhar do outro.
Talvez sob a influência da psicanálise, a intimidade é cada vez mais
definida pela relação com o inconsciente e os diferentes níveis do eu.
37
A idéia psicanalítica de intimidade apontada por Didier está relacionada com o
conceito de verdade, mais do que isso, com a idéia e descoberta da verdade, através da
vontade de narrar as memórias. Na psicanálise clássica freudiana, a arte de desvelar o
inconsciente está diretamente ligada a produção de uma memória verdadeira. Associando as
doenças psicológicas, a uma memória deformada ou a própria amnésia, o ofício do
psicanalista consiste justamente em trazer a tona as verdadeiras memórias de seus pacientes,
transformando o inconsciente em consciente.
38
36
PODNIEKS, Elizabeth. Daily Modernism: The Literary Diaries of Virginia Woolf, Antonia White,
Elizabeth Smart, and Anaïs Nin. McGill Queen‘s Press, New York, 2000, p.283.
37
C‘est que la notion d‘intimité a changé de contenu. Elle se definissait d‘abord par rapport à l‘autre et en
fonction du secret. Le journal était le domaine cache. Il etáit intime dans la mesure oú il échapait au regard
d‘autri. Peut-être sous l‘influence de la psychanalyse (…) l‘intimité s‘est de plus en plus définie par rapport
a l‘inconscient, et aux différents niveaux de moi. Tradução da autora. DIDIER, Béatrice. Le Journal
Intime. Paris: PUF, 2002, p.45
38
FREUD, Sigmund. Conferências introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II). VOLUME XV. (1915-
28
Dentro dessa problemática, a memória surge quase como uma espécie de redenção.
No entanto, mesmos nesses termos, a memória era vista como uma instância volátil e sujeita
a mudanças de acordo com as circunstâncias do presente. Como demonstra o trecho de uma
correspondência de Freud.
Estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico tenha
se formado por um processo de estratificação: o material presente sob
forma de traços mnêmicos fica sujeito, de tempos em tempos, a um
rearranjo de acordo com as novas circunstâncias a uma retranscrição.
39
Como bem se sabe, a escrita de diários corresponde a percepção de uma
memória recente, normalmente, com fatos ocorridos no mesmo dia. A escrita diarística, no
caso, pode servir como uma tentativa de driblar as mudanças do tempo conferidas a
memória, ou como a própria Nin explica, para sentir o gosto da vida duas vezes.
Simultaneamente, também corresponde a uma escrita que fabrica uma nova
memória, não pela própria impossibilidade de traduzir percepção em linguagem, mas
como na própria preocupação de seus autores em fabricar uma memória, principalmente em
Nin, onde a preocupação em produzir com seus diários uma obra maior é visível.
Dessa forma, até que ponto pode-se afirmar que as diferentes identidades
desenhadas por Nin em seu diário são identidades sinceras ou memórias propositalmente
deformadas? A famosa biógrafa americana Bar Deirdre conhecida pelas biografias de
Simone de Beauvoir, Samuel Beckett e da própria Nin revela, em uma entrevista
40
à
revista Salon, a decepção que Nin causou em algumas mulheres a partir do momento que
algumas lacunas do diário foram reveladas.
Então, quando os diários de Nin foram publicados, as mulheres dos anos
60, na aurora do movimento feminista, estavam lendo aqueles diários e
dizendo: ―ó meu Deus, aqui está uma mulher que realmente teve a vida
perfeita. Ela conheceu o mundo de forma independente, ela fez tudo que
quis, ela estava no comando da sua própria sexualidade, do seu próprio
dinheiro, de tudo. Nós todas queremos ser Anaïs Nin.‖ Muitas, muitas
1916). VOLUME XV. Disponível em: <http://www.abrades.org/files/ebook/FV015.rtf> Acessado no dia
24/10/2008.
39
FREUD, Sigmund (1896). Carta 52. In. A correspondência completa de Sigmund Freud para
Wilhelm Fliess. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1986.
40
A entrevista foi publicada na edição número 26 da revista, no dia 29 de julho de 1996. O conteúdo está
Disponível em: <http://www.salon.com/weekly/bair960729.html>. Acessado no dia 15.07.2008
29
mulheres que eu conheço deixaram seus parceiros, mudaram de identidade
sexual, simplesmente mudaram toda a sua vidas, e em muitas instâncias,
realmente estragaram suas vidas. E então, gradualmente, descobriram,
bem, você sabe, ela não apenas tinha um marido, ela tinha dois, e um deles
era incrivelmente rico e pagava por tudo. Ela nunca esteve fazendo nada
sozinha, sempre teve uma grande rede de segurança de todas essas
pessoas. E então as pessoas se viraram contra ela, porque o diário não era
verdade. Pessoas eram incapazes de dizer que a escrita de memória e
diário é permitida de ser escrita como uma versão da vida da pessoa, como
a pessoa quer ser conhecida e percebida. Elas ficaram com raiva, e eu acho
que Nin foi realmente uma das primeiras, 30 ou 40 anos atrás, que foi
atacada por não dizer a verdade. E de repente, a busca pela verdade
começou, e todos os tipos de acadêmicos estavam escrevendo biografias e
dizendo, ‗Aha! Robert Frost era um mentiroso! Fitzgerald era um
mentiroso! Todo mundo era um mentiroso, eles não disseram a verdade‘
41
É importante ilustrar as duas maneiras pelas quais a obra íntima da escritora se
tornou publica. A partir do início da década de 1930, Nin começou a buscar maneiras de
publicizar os diários. Mesmo pensando em publicar o diário na íntegra, inicialmente ela os
transformou em ficção em pequenas obras que nunca tiveram reconhecimento fora do
ambiente dos escritores marginais.
No final dos anos de 1950 ela decide publicar o diário, mas retirando os trechos
que diziam respeito a seu marido Hugh Guiler
42
e outros amantes. O livro teve uma
recepção tão boa do público e da crítica que Anaïs publicou mais seis volumes
posteriormente. No entanto, essas versões eram profundamente editadas e até mesmo
reescritas
43
. Mas antes de morrer, Nin deixou para seu outro marido, Rupert Pole, os
manuscritos de todos os diários. Ele relata o fato no prefácio de Fire - from a journal of love
The unexpurgated diaries of Anaïs Nin 1934-1937.
41
So when Nin's diaries were published, women in the '60s, in the dawning of the feminist movement,
were reading these diaries and were saying, "Oh my God, here's one woman who really had the perfect life.
She went around the world independently, she lived independently, she did whatever she wanted, she was
in charge of her own sexuality, her own finances, everything. We all want to be Anaïs Nin." Many, many
women I know left their partners, changed their sexual identity, just totally changed their lives, and in
many instances really messed up their lives. And then it gradually filtered out, well, you know, she not only
had one husband, she had two, and one of them was incredibly wealthy, and he paid for everything. She
was never really doing anything on her own, there was always this big safety net of all these people. And
so people turned against her, because the diary wasn't the truth. People were unable to say that memoir and
diary writing are allowed to be the written version of the person's life, as the person wants the life to be
known and perceived. They get angry, and I think Nin really was one of the first, 30 or 40 years ago, who
was attacked for not telling the truth. And suddenly, the quest for the truth took over, and all sorts of
scholars were going out there, writing biographies saying, "Aha! Robert Frost was a liar! Fitzgerald was a
liar! Everybody was a liar, they didn't tell the truth!" (Tradão da autora)
42
Hugh Guiler e Anaïs Nin se casaram em 1923. Ele era um promissor funcionário de um banco, formado
em letras e economia pela Universidade de Oxford.
43
PODNIEKS, Elizabeth. Daily Modernism: The Literary Diaries of Virginia Woolf, Antonia White,
Elizabeth Smart, and Anaïs Nin. McGill Queen‘s Press, New York, 2000, p.285
30
Antes, no começo da nossa relação, Anaïs me disse que não queria que eu
lesse os diários não editados. Eu respeitei o desejo dela. Mas no começo
dos anos 1970, quando estávamos preparando os diários para irem a
UCLA, Anaïs disse:
―Agora é a hora de você ler os diários. Eu quero que você leia todos.‖ Eu
sentei por cinco dias e li 35.000 páginas.
―Você me julga‖, Anaïs perguntou.
―Não. Você teve coragem de viver seus sonhos e de escrever sobre eles.
Um dia isso deve ser publicado.‖
―Certo, esta é sua tarefa. Eu quero que você publique o diário assim como
eu os escrevi
44
Os diários escritos entre 1931 e 1939 tiveram suas versões não expurgadas
publicadas. De acordo com Pole, as novas publicações, ao contrário das versões
expurgadas, obedecem às ordens cronológicas exatas de Nin e às construções gramaticais
não convencionais correspondem à escrita demasiada emotiva da autora. No entanto, para
Poednicks
45
mesmo os volumes não expurgados devem ser olhados com desconfiança: ―elas
[as versões não expurgadas] devem ser consideradas em termos de uma Nin que admitia
inconsistências, verdades ambìguas e invenções necessárias.‖
Nas versões não expurgadas, fica clara a presença de uma dualidade no seu
relato íntimo: entre uma simples descrição de seus sentimentos e uma obra literária com
pretensão de se tornar arte.
E eu enfrento meu maior problema. No momento em que as pessoas
querem o diário pelo que ele é um diário eu começo a transformá-lo.
Ninguém pode me dizer o que fazer. Eu tenho uma necessidade artística de
transformá-lo. Tudo que eu toco, eu devo reescrever. O que devo fazer?
46
No entanto, é injusto caracterizar as versões de Nin desenhadas em seu diário
simplesmente como mentirosas. Sua obra íntima nos oferece um retrato singular e é honesta
na medida em que revela uma mulher determinada em criar seu próprio mundo. Ela usou o
diário como um espaço de criação de um mundo próprio, o que não é estranho para quem
44
POLE, Rupert. In NIN, 1995, p. IX.
45
They too should be considered in term of a Nin who admitted inconsistencies, double truths and
necessary inventions. Tradução da autora. Ibid. p. 286.
46
And I face my greatest problem. Just when people want the diary as it is a diary I have begun to
transform it! No one can tell me what to do. I have an artistic need to transform. Everything I touch, I must
rewrite. What shall I do? Tradução da autora. NIN, Anaïs. Nearer the Moon: from a journal of love -
The Unexpurgated Diary of Anaïs Nin (1937-1939) USA: Harvest Books, 1996 p.173
31
acredita que ―é apenas na criação onde há possibilidade de perfeição‖.
47
Em diversos
trechos do diário, Anaïs Nin revela seu desprezo por tudo o que ela considera realidade,
como a política e a história.
No caso dos escritos de Anaïs Nin é importante observar a ênfase na obra da
existência de vários ―eus‖ fragmentados que estariam reunidos nos diários ou seja, nos
diários sempre diferentes versões sobre os sentimentos da autora. Como pode ser
observado no seguinte trecho:
Tenho sido perseguida como uma mulher como nunca antes,
constantemente, por cada homem que vejo. No início, eu gostei. Agora,
me cansa. Não descanso em qualquer lugar. O ciúme de Henry. Huck tão
possessivo, intenso, absorvente. Amor em demasia, muito amor! Estou
sendo asfixiada. Eu escrevo no meu diário porque eu estou sendo
devorada, desmembrada por amor. Eu adoro e detesto isso.
48
Em seus escritos, a autora fazia referência ao diário como sendo sua grande
obra, por isso dizia que não era artista, mas sim uma documentarista embora para isso
admitisse que vivia a vida ―de forma literária, que a literatura era uma realidade
melhorada‖.
49
Se de maneira geral, a literatura confessional é considerada como uma obra
menor diante da literatura ficcional, para Nin era justamente suas obras, assumidamente de
ficção, que despertavam menos entusiasmo.
1.3 Em busca de uma arte da existência
A necessidade de Nin em criar nos seus escritos de memória sua obra maior
literária suscita uma questão no que concerne ao gênero confessional diarístico: como
entender a utilização da vida privada para a construção de uma obra de arte e,
conseqüentemente, da sua figura pública?
47
In creation alone there‘s the possibility of perfection. Tradução da autora. NIN, 1995, p.86.
48
I have been pursued as a woman as never before, constantly, by every man I see. I enjoyed at first. Now
it tires me. No rest anywhere. Henry's jelousy. Huck so possessive, intense, absorbing. Too much love, too
much love! I am being stifled. I pick up my diary because I'm being devoured, dismembred by love. I love
it and I dread it. (Tradução da autora) Ibid. p.86.
49
NIN, 1992, p. 235.
32
Mas Nin não foi a única artista a ter nos seus aspectos privados a matéria prima
para seu trabalho. A pintora Frida Kahlo, por exemplo, subverteu sentimentos interiores,
trazendo-os ao olhar público através das suas telas, transformando as sensações e
sentimentos em potenciais obras de arte. Numa carta destinada ao compositor mexicano
Carlos Chaves a artista plástica fala sobre a importância das sensações pessoais para a
construção de suas pinturas.
Uma vez que meus temas sempre foram minhas sensações e reações
profundas que a vida tem causado dentro de mim, muitas vezes
materializei tudo isso em retratos de mim mesma, que eram a coisa mais
sincera e real que eu podia fazer para expressar o que eu sentia a meu
respeito e a respeito do que eu tinha diante de mim.
50
Essa associação de Kahlo entre as sensações pessoais e a sinceridade atesta a
hipótese de Richard Sennett, para quem o culo XX foi marcado por uma invasão de
aspectos privados na vida pública, o que resultou numa crença de que o caráter íntimo
conferiria um atestado de autenticidade às manifestações públicas.
Sabemos, a partir da história da vida pública no século XIX o declínio
desse domínio competia com o crescimento contraditório e penso em
termos do seu número oposto: a esfera psicológica . As forças que
causaram o declínio de um encorajaram o surgimento da outra. As
tentativas para criar comunidades em cidades são tentativas para tornar
valores psicológicos em relações sociais. A real medida daquilo que o
desequilíbrio entre a vida impessoal e a vida psicológica provocou nas
relações comunitárias reside, portanto, mais além do fato de que a procura
por uma vida comunitária se torna compulsiva; reside também nas
expectativas que as pessoas estruturam por meio dos desejos que têm
relações chegadas, abertas, face à face com outras no mesmo território
51
Mas diferentemente de Kahlo, em Anaïs Nin, as sensações e os desejos, quando
traduzidos nos textos não significam necessariamente uma obra mais ―autêntica‖, e sim
mais poética. Mesmo porque, Nin não via a verdade e a autenticidade, a mentira é que a
possibilitaria viver de forma estética. ―Eu não sou uma mentirosa patológica. Eu não minto
50
KAHLO, Frida. As cartas apaixonadas de Frida Kahlo. Rio de Janeiro: Editora.José Olympio, 2002.
p.105-6
51
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: tiranias da intimidade. São Paulo: Cia. das Letras,
1998. p.363
33
por compulsão ou doença, mas por lucidez e inteligência, para ser capaz de viver a vida dos
meus sentimentos, instintos, natureza sem destruí-la‖.
52
No entanto, para Nin, a fronteira difusa entre aspectos da vida pública e privada
se traduz no seu comportamento. Segundo ela, para produzir os textos como uma artista, é
necessário experimentar a vida artisticamente.
53
É possível articular o pensamento de Anaïs Nin em viver artisticamente com a
noção foucaultiana da estética da existência. Esse conceito se evidencia no segundo volume
da História da Sexualidade O uso dos prazeres, onde Foucault percebe nas sociedades
antigas um conjunto de práticas denominadas como artes da existência.
A denominação se explica, pois essas formas de condutas se baseiam em
práticas de homens cujo objetivo era se transformar, modificando seu ser para fazer de sua
vida uma obra portadora de valores estéticos e que obedecesse a certos critérios de estilo.
Ou seja, homens com a capacidade de inventar-se.
54
Essa capacidade de inventar-se pode ser
encontrada em Nin e está diretamente relacionada com um desejo de tirar o melhor que a
vida é capaz de proporcionar.
Se Henry não é o maior escritor vivo, o que importa? A gente viveu, a
gente trabalhou, a gente criou uma ilusão, uma vida. Eu não sofreria nem
se descobrisse que ele não é um escritor. Ele é um ser humano, ele é o que
é. Eu não acredito mais em conquistas, no futuro, mas em ser. Ser. Hoje.
Prazer. Vida humana. Honestamente, eu não me importo com
imortalidade. Eu sou míope. Eu sou uma mulher. Eu perdôo Henry em
antecipação. Foi tudo minha ilusão. Minha invenção. Eu sempre invento
minha vida.
55
Ao mesmo tempo, essa busca pela vida, se traduz numa busca pela poesia e num
comportamento questionador em relação a racionalidade inventada pelos homens, segundo
52
I‘m not a pathological liar. I do not lie out of compulsion or disease. But with lucidity and intelligence to
be able to live the life of my feelings, instincts, nature, without destroying. Tradução da autora. NIN,
1996, p.125
53
Ibid. p, 171
54
FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal. 2002,
p.15
55
If Henry is not the greatest writer alive, why does it matter? We lived; we worked; we created an
illusion, a life I would not suffer even to discover he was no writer at all. He is a human being. He is what
he is. I no longer believe in achievement, in the future, but in being. Being. Today. Joy. Human life.
Honestly, immortality doesn‘t bother me. I am nearsighted. I‘m a woman. I forgive Henry in advance. It
was my illusion, my invention. Tradução da autora. NIN, 1995 p. 333
34
a própria autora. Inventar-se é questionar os valores racionais impostos como verdades, as
teorias, e regras criadas.
Mais e mais eu vejo implícito no diário a minha luta contra as invenções
científicas e racionais dos homens. Com meus sentimentos e instintos eu
enfrento todas as teorias e explicações psicológicas dos homens. O que fiz
com a análise foi usar, e transformar, e finalmente rejeitar tudo menos a
poesia.
56
A estética da existência é capaz de desconstruir as representações sociais que
impõem determinadas identidades, podendo assim modificar as relações tradicionais. O
termo é comumente usado para designar formas de resistências marcadas por
comportamentos comumente estigmatizados como marginais e, muitas vezes, é associado
com uma atitude sexual que desafia a heteronormatividade. Isso não significa que a estética
da existência seja apenas uma prática da sexualidade não-hegemônica e sim uma recusa do
assujeitamento aos modelos de identidade socialmente impostos.
O conteúdo do diário de Anaïs Nin, real ou fictício, é emblemático nesse
sentido, quando a autora materializa suas supostas experiências em forma de obra de
literária nas linhas de seus diários. Apresentando um comportamento que pode ser
considerado como transgressor dessa heteronormatividade, a escritora admite ter uma
moralidade que nem sempre responde aos padrões impostos de sua época.
Ao falar sobre seus casos extra-conjugal ela afirma: ―Eu não tenho moralidade.
Eu sei, o mundo está horrorizado não eu. Não moralidade enquanto nenhum mal é
feito. Minha moralidade aparece quando eu encaro o sofrimento de um ser humano.
57
Ao recusar a moralidade de uma época, pode-se dizer que Nin, de fato,
inventava a própria vida. A publicização dessas experiências apresentou uma nova
estilística da existência, ancorada a uma ética que possibilita a invenção de subjetividades
mais libertárias e, com isso, novas formas de sociabilidade.
56
More and more I see implied in the diary is the struggle against scientific and intellectual inventions of
man. What I did with analysis was to use, and transform, and finally reject all but poetry. Tradução da
autora. NIN, 1996. p.46.
57
I have no morality. I know the world is horrified not I. No morality while the harm done does not manifest
itself. My morality does assert itself when I am faced with the sorrow of a human being. Tradução da autora.
Ibid. p. 25.
35
É intrigante que uma obra, supostamente baseada numa dada realidade, possa
ser relacionada à arte, quando há um pensamento em que a própria definição de arte a difere
do que é convencionado como real. Deleuze
58
, por exemplo, ao discorrer sobre Nietzsche
aponta o artista como um falsário, não por negar o real, mas sim por construir uma verdade
ao criar novas possibilidades de vidas. Assim, a arte não seria uma simples representação da
realidade, mas sim um espaço para criação de novas realidades.
Em uma palestra sobre o papel da mulher na literatura, feita na Celebração da
Mulher nas Artes, em 1974, Nin expôs suas considerações acerca do diálogo entre arte e
realidade.
Por que uma pessoa escreve é uma questão que eu posso responder
facilmente, tendo frequentemente feito essa pergunta a mim mesma. Eu
que uma pessoa escreve para poder criar um mundo onde ela possa viver.
Eu não podia viver em nenhum dos mundos que foram oferecidos para
mim: o mundo dos meus pais, o mundo da guerra e o mundo da política.
Eu tive que criar meu próprio mundo, como um clima, um país, uma
atmosfera na qual pudesse respirar, reinar e recriar a mim mesma, quando
fosse destruída pela vida. Essa, eu acredito, é a razão para toda obra de
arte.
59
No entanto, outra leitura pode ser feita acerca do uso do conceito de estética da
existência. É possível questionar se, na modernidade, o cuidado de si não se confunde com
uma cultura do narcisismo, nos moldes definidos pelo psicanalista Christopher Lasch. Essa
preocupação também está presente nas reflexões de outros autores. Afinal, como distinguir
o cuidado de si de um mero narcisismo?
Para Loureiro
60
, a idéia de estética da existência pode ser mal compreendida e
evocar riscos como: o mero esteticismo em correlato com a falta de engajamento na esfera
pública, o recrudescimento do narcisismo hipertrofiado e o total relativismo de valores.
58
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e Filosofia. Portugal : Brochura, 2001. p.33.
59
Why one writes is a question I can answer easily, having so often asking it of myself. I believe one has to
create a world in witch one can live. I could not live in any of the worlds offered to me the world of my
parents, the world of war, the world of politics. I had to create a world of my own, like a climate, a country,
an atmosphere in witch I could breathe, reign, and recreate myself when destroyed by living. That, I believe, is
the reason for every work of art. Tradução da autora. NIN, Anaïs. In favour of sensitive men and other
essays. England: Penguin Books, 1993, p. 11.
60
LOUREIRO, Inês. Arte e Beleza diferentes formulações foucaultianas sobre a Estética da Existência.
Disponível em: http://www.uff.br/ichf/publicacoes/revista-psi-artigos/2004-1-Cap3.pdf
36
As razões explicitadas por Nin acerca das motivações de sua escrita, por exemplo, denotam
um caráter escapista no que concerne a construção da arte.
Considerando sua intenção de viver artisticamente (ou seja, viver de forma a
recusar os mundos que lhe foram oferecidos, criando seu próprio ambiente) até onde se
pode encarar sua vida/obra como um meio para transgredir ou, simplesmente, como uma
forma de se alienar?
Para responder essa questão, é interessante abrir um parênteses e apreciar
algumas considerações sobre o conceito de arte, como, por exemplo, as ponderações de
Herbert Marcuse no trabalho Eros e Civilização. Nele, o filósofo aborda o papel da arte em
oposição ao princìpio de realidade. ―Os grupos e os ideais grupais, as filosofias, as obras de
arte e literatura que ainda expressam, sem transigências, os temores e esperanças da
humanidade, situam-se contra o princípio de realidade predominante; constituem a sua
absoluta denúncia.‖
61
A criação de um universo próprio por meio da imaginação e fantasia é uma
maneira de o indivíduo reprimido se reconciliar com o princípio de realidade. Num ensaio
anterior
62
Marcuse menciona a força crítica da arte, em função da possibilidade dos valores
de determinadas obras se transformarem na realidade.
A unidade que a arte representa, a pura humanidade de seus personagens,
é irreal; é o oposto aquilo que acontece na realidade social. A força crítico-
revolucionária do ideal, que precisamente com sua irrealidade mantém
vivos os melhores desejos do homem em meio a uma realidade penosa.
63
Mas, para o filósofo, a arte deve passar a negar a reconciliação com o princípio
de realidade e assim negar suas formas tradicionais para sobreviver e recusar a
conciliação com a ordem vigente. Ele argumenta que a oposição da fantasia ao princípio de
realidade é mais acentuada ―em processos sub-reais e surrealistas tais como o sonho, a
divagação, a atividade lúdica, o fluir da consciência. Em sua mais extrema reivindicação de
61
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de
Janeiro. Zahar, 1975.
62
MARCUSE, Herbert. Sobre el caracter afirmativo da cultura. In. Cultura y sociedad. Buenos Aires, Ed.
Sur. 1971.
63
La unidad que el arte representa, la pura humanidad de sus personajes, es irreal; es lo opuesto a aquello que
sucede en La realidad social. La fuerza crítico-revolucionaria del ideal, que precisamente con su irrealidad
mantiene vivos los mejores anhelos del hombre en medio de una realidad penosa. Tradução da autora. Idem.
37
gratificação, para além do princípio de realidade, a fantasia anula o próprio principium
individuationis estabelecido.
64
Vale ressaltar a inclinação da literatura de Nin para a arte não tradicional
embora a autora faça considerações negativas ao movimento surrealista ―surrealismo me
chateia e me irrita, eu estou perto dele, mas não sou um deles. Eu gosto da teoria, mas não
gosto do que eles escrevem‖.
65
em sua obra ficcional, que por vezes remetem as páginas
do seu diário, principalmente no que diz respeito ao ato de fluir a consciência. Dessa forma,
com uma vida/obra não tradicional, a autora não estaria se opondo e transgredindo a
realidade os mundos que lhe foi imposta, a o invés de simplesmente se alienar numa
torre de marfim?
Essas conceituações acerca da arte não apagam a apatia política que Nin insiste
em apresentar nas suas obras. E mesmo que sua vida pessoal desafiasse os modelos
comportamentais impostos á sua época, como se assegurar a respeito da veracidade de suas
transgressões quando os limites entre fato e ficção são difusos em seu relato íntimo?
Se encararmos o pensamento de Gilles Deleuze, onde a arte é aquilo que resiste
a tudo até a morte a partir do momento em que o relato (falso ou verdadeiro)
materializou-se em obra de arte, pode-se dizer que a escrita íntima de Nin resiste até as suas
inverdades. Quanto a posição assumidamente apolítica em Nin, pode-se considerar que a
própria escolha de uma vida/obra não tradicional é um postura política.
Considerando as proposições de Theodor Adorno
66
, onde toda arte tem em si
um conteúdo político que independe da orientação ideológica de seus autores, por ser um
elemento que constrói outra realidade com essência própria, pois, a arte funciona como um
refúgio da realidade mimética. Sobre as novas formas de arte das doutrinas vanguardistas, o
autor acredita que a própria inovação estética já tem em si um conteúdo político.
Na libertação da forma, tal como a deseja toda a arte genuinamente nova,
cifra-se antes de tudo a libertação da sociedade, pois, a forma, a coerência
estética de todo o elemento particular, representa na obra de arte a relação
social; eis porque o estado de coisas existente repele a forma emancipada.
Este fenômeno é confirmado pela psicanálise. Segundo ela, toda a arte,
negação do princípio de realidade, protesta contra a imago paterna e nesta
64
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de
Janeiro. Zahar, 1975. p.135.
65
Surrealism bothers me and irritates me. I‘m near them, but I‘m not one of them. I like their theory but not
what they write, Traduação da autora. NIN, 1995, p. 338.
66
ADORNO, Theodor Teoria Estética. Lisboa Edições 70, 1992 p. 261.
38
medida é revolucionária. Isso implica objetivamente a participação política
do apolítico.
67
Essas idéias fazem sentido quando se pensa na relevância da obra de Nin no
movimento feminista, que advoga justamente a inserção da mulher na vida pública. Afinal,
uma obra de arte deixa de pertencer a seu criador no momento em que encontra o olhar do
outro. E muito embora a literatura de Anaïs Nin traga controvérsias no que concerne a
ideologia da autora, não se pode ficar indiferente em relação aos temas abordados em seus
escritos: a libertação física e psicológica da sexualidade feminina.
67
Ibid, p. 285.
39
Capítulo 2 Anaïs Nin: seu tempo, seus escritos
―Contra toda realidade desses homens, eu tento construir um santuário interior.
E eu estou só na criação de um absoluto. Tudo está contra mim, o mundo exterior, o mundo
polìtico, os cafés, a desintegração e estupidez do ar que respiramos‖. Com essas afirmativas
Anaïs Nin propõe uma estética de resistência a um mundo do qual ela não queria fazer
parte. Dessa forma, a sua escrita íntima é perpetuada por questionamentos acerca do papel
do mundo exterior na construção da obra artística da autora. O mundo exterior é
identificado como um mundo racional, masculino, e, acima de tudo, como um obstáculo
para a criação da arte.
Considerando a aversão de Nin ao mundo exterior, é perceptível a sua
intenção de construir um universo próprio, completo em si mesmo. Mas o que essa rebeldia
da autora frente a sua realidade que ela vivencia significa? É importante ressaltar que a
elaboração dos escritos de Nin é feita no contexto da arte modernista
68
, movimento que
muitas vezes era pautado por uma subversão e questionamento relacionado ao seu tempo.
Para Charles Baudelaire, ―a modernidade é o transitório, o efêmero, o
contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o imutável‖, portanto, a arte mesmo
caracterizada por uma qualidade universal e imutável, traz elementos de seu tempo. Neste
sentido, pode-se questionar: o que os escritos de Anaïs Nin podem dizer sobre sua época?
A concepção de Baudelaire é coerente já que, para o poeta, a expressão artística
pode ser construída através das imagens emergentes das vivências humanas. No seu
trabalho, uma diferenciação entre a arte mnemônica e a mimética. A verdadeira arte
seria produzida através da inventividade possibilitada pela rememoração de experiências e
não simplesmente da imitação seca da natureza
69
. Para o poeta e crítico, o artista acumula
ao longo de sua existência materiais impressos na memória em forma de imagens,
sentimentos e idéias que servirão como matéria prima para a emergência de expressões
artísticas.
70
68
Deve-se abrir um parêntese para lembrar que não é o movimento modernista o responsável pela literatura
íntima, considerando que o florescer dos diários íntimos desenrolou-se séculos antes. Mas até então o gênero
era visto como uma literatura de menor importância. E nomes como Proust, definitivamente, foram
importantes para o reconhecimento da importância literatura íntima.
69
No Salão de 1859 o autor chega a afirmar que ―cópia é inimiga da arte‖
70
ALMEIDA, Maria Gorete de. A Modernidade Poética em Charles Baudelaire e Walter Benjamin.
Dissertação de Mestrado apresentada na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Ceará. Disponível
em: http://www.teses.ufc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2687
40
Pode-se relacionar as concepções de Baudelaire acerca da arte e do tempo com
o desenvolvimento do modernismo do século XX muito embora, devido à abrangência do
termo modernismo
71
fique difícil caracterizá-lo como um algo homogêneo especialmente
se considerarmos a recusa do poeta em aceitar a arte oficial das academias das belas artes
assim como a valorização da interpretação e impressões no que concerne as experiências
pessoais do artista, em detrimento de uma arte meramente descritiva da realidade. Ao
mesmo tempo, o conceito de Baudelaire cria um problema para a arte. Dentro dessa
dualidade entre efêmero e imutável, a obra de arte pode instaurar várias temporalidades. A
consciência da efemeridade do presente gera a busca de apreensão do agora, com a
necessidade de transvertê-lo na experiência universal do belo. Ao artista cabe o papel de
capturar o presente, a partir da memória que também pode ser efêmera, mutável e fugidia.
É necessário captar e interpretar as impressões mantidas na memória, antes que elas
escapem para o esquecimento.
O pensamento baudelairiano evoca um dualismo: ao mesmo tempo em que
remete à idéia do gênio e do indivíduo romântico afinal são as impressões das memórias
individuais do artista que serão responsáveis pela qualidade da produção artística também
ressalta a importância do tempo histórico para a construção de arte, o que sugere uma
tensão entre o indivíduo e a conjuntura. Essa tensão também pode ser percebida anos mais
tarde no movimento modernista.
Assim, as reminiscências passam a ter papel fundamental para a obra de arte
moderna. Expoentes do modernismo, como Marcel Proust e a própria Nin, adotariam essa
mesma preocupação no que concerne à importância das impressões pessoais na sua prosa
poética, colocando em relevo essa tensão temporal entre o belo imutável, o fugidio e
temporal. O que não é Em Busca do Tempo Perdido, senão uma tentativa de seu narrador de
se recuperar a essência de uma realidade de um período transcrito?
Embora os livros da série Em busca sejam ficcionais, muitos críticos apontam
elementos biográficos na obra. É o caso de Suzane Nalbatian, que elucida a semelhança
entre a vida e a obra do escritor francês.
72
No esforço de esconder os elementos pessoais da sua vida, Proust criou
uma arte do subterfúgio, ainda que [estes elemento] se entendessem para a
71
ADORNO, Theodor. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 1992, p. 26.
72
NALBATIAN, Suzanne. Aeshthetic Autobiography: From Life to art Marcel Proust, James Joyce,
Virginia Woolf and Ans Nin. New York, St. Martin Press. 1997, p. 99.
41
maioria dos personagens. Ele manipulou seus materiais, no que concerne a
espaços e pessoas, criando composições artísticas de locais ou
personagens. Sua ficcionalização envolve um conglomerado de elementos
da vida real com a riqueza da ambigüidade estética. (...) O produto
projetado no fim de Em busca continha a estética autobiográfica que
governou a criação proustiana da vida na arte.
73
E é nesse contexto da arte modernista que Nin constrói sua obra íntima. Afinal,
num momento em que reminiscências passam a ser consideradas materiais para
a escrita literária, é compreensível a tentativa de Nin de legitimar a escrita de seus diários
como uma obra de arte. A autora inclusive chegou a comparar sua escrita privada com a
obra ficcional de Proust: ―Meu eu é como o eu de Proust. É um instrumento que conecta a
vida e o mito‖.
74
Tendo em vista essa conjuntura, é interessante questionar até que ponto uma
obra de arte é afetada pelo seu tempo, bem como até que ponto um período é afetado pela
suas produções relacionadas com suas épocas de construção. Para assim entender quais
―agoras‖ delineiam os escritos memorialìsticos de Nin.
Para este trabalho, adoto a perspectiva de Pierre Bourdieu, para quem obra e
artista devem ser vistos de acordo com as redes de relações estabelecidas em um
determinado período, ou seja, toda produção estética e cultural será influenciada por seu
espaço e tempo. O pensamento do sociólogo exclui a idéia de que a obra de arte seria
produzida simplesmente da genialidade isolada do artista. A arte nasce a partir dos conflitos
e tensões estabelecidos pela relação dos artistas com indivíduos, grupos e idéias de uma
época.
Nesta perspectiva analítica, também adotarei o conceito de negociação do
historiador Roger Chartier
75
, entendendo que há uma relação simbiótica entre a obra de Nin
e as práticas rituais, e políticas da época. Dessa forma, também é necessário recorrer ao
conceito de apropriação e representação deste mesmo autor, para compreender de que
maneira as idéias da época inferem a produção cultural de Nin.
As representações podem exprimir as aspirações e interesses de um
determinado grupo, ao mesmo tempo em que o descreve como pensam que são ou como
73
Idem.
74
Nin, Anaïs. The novel from the future. New York, Macmillan, 1968. p. 157.
75
CHARTIER, Roger. Cultura Escrita, Literatura e História. Porto Alegre ARTMED Editora, 2001. p. 93.
42
gostariam que fossem. Desta forma, as representações não podem ser vistas como dados
objetivos, pois elas são construídas historicamente, se constituindo através de práticas
discursivas sociais, culturais e políticas.
o conceito de apropriação está diretamente ligado a questão da recepção
dos discursos. Para Chartier, há sempre uma prática diferenciada de apropriação dos objetos
postos em circulação. No ato de leitura, por exemplo, a apreensão dos discursos acontece
através de ordenamentos, de desvios e reempregos singulares.
De acordo com essa compreensão o trabalho de Nin existe tal como é por meio
das redes de sociabilidades por ela estabelecidas. Portanto, para compreender seus escritos,
torna-se fundamental entender as relações mantidas pela escritora com movimentos
artísticos e indivíduos, por trás da produção de sua obra e de que forma ela representou e se
apropriou dos enunciados que constituem seus escritos.
Portanto, retomando a concepção de Baudelaire, este capítulo de destina a
explorar até que ponto ―metade‖ transitória e efêmera da obra de Nin, irrompe do
inconsciente, revelando, assim o seu tempo.
2.1 O ethos negativo do modernismo
Classificar a obra de Nin dentro de determinado movimento literário, seria
reduzi-la. Mas não se pode ignorar os diversos pensamentos relacionados à arte que
vigoravam no momento em que a autora construía sua obra. A necessidade de Nin de criar
um mundo próprio através de sua obra não a impediu de buscar inspirações literárias nas
formas de arte que a cercavam. Pelo contrário, sua obstinação por se tornar uma grande
escritora, a fez estudar diversas formas de arte. Os seus diários muitas vezes serviram como
um palco de teorias estéticas da autora, quando esta demonstrava interesse nas criações de
autores como Marcel Proust, Fiodor Dostoievski, André Breton, DH Lawrence, etc.
A busca pela autonomia aliada à descrença na racionalidade são um dos
principais elementos que ligam a escrita íntima de Nin ao modernismo, que em seus
escritos a arte era posta em oposição à racionalidade. Simultaneamente, era vista como uma
expressão que deveria ser constituída por seus próprios termos, criando tensões com a
realidade:
43
No que concerne a política, eu estou farta. Muito imediatista, para mim, é
muito feia, mesquinha e falsa. Eu devo tentar abrir o caminho pela
literatura, que de nascer da revolução, eu devo viver à frente [do tempo],
pensar à frente, viver o futuro com uma visão. Eu tenho plano de
começar a nova literatura. uma literatura que vai além das leis, assim
como todos os grandes artistas foram. Esse deve ser um momento de
grande criatividade amoral.
76
Dessa forma, percebe-se nos escritos da autora características que dialogam com
o modernismo, uma delas é o questionamento da ideologia progressista: manifestando a
descrença na capacidade da civilização em resolver seus próprios problemas, bem como a
descrença nas promessas do projeto iluminista. Essas características do modernismo podem
ser vistas como um sinal da decadência da cultura burguesa e o indicativo ápice de uma
crise na arte que remota das experimentações iniciadas com o romantismo do século
XVIII.
77
Embora não se possa enquadrar os escritos de Nin em nenhuma vanguarda
moderna, seja dadaísmo, surrealismo, futurismo, etc., pode-se encontrar neles certo
negativo
78
de ruptura com a sociedade, em maior ou menor grau. Hagihara
79
descreve a arte
vanguardista como uma expressão cultural que busca se estabelecer com autonomia
relacionada à realidade social. O sentido de autonomia na arte vanguardista não significa a
desvinculação da arte com os processos sociais, mas sim uma relação de desarmonia e
tensão com a sociedade.
Quando Anaïs Nin teoriza em seu diário sobre os rumos da sua literatura, ela
propõe um escrever de ruptura, no qual o artista deve encontrar sua própria autonomia:
Uma escrita, que rompe com a moldura de convenções dos dogmas
religiosos (mas que é capaz de se encontrar com o divino), com as formas
de casamento (mas descreve o amor, do qual o casamento é uma dos
aspectos ou expressões), que rompe com todas as convenções e deixa a
76
As to politics I‘m through. Too immediate for me, too ugly, petty and false. I should try to open the path
to the literature which should be born of the revolution, I must live ahead, walk ahead, live in the future with
a vision. I have plans to start new literature one beyond all laws, as all artists were. This should be a moment
for great creative amorality. Tradução da autora. NIN, 1996, p. 99.
77
EYSTEINSSON, Astradur LISKA, Vivian. Modernism Volume I. Philadelphia J. Benjamins Pub., c2007
p. 12.
78
Adoto a perspectiva de Hagihara, onde ethos negativo é visto como um sistema de normas e valores,
guiadas por ações críticas, que negam e questionam o status quo.
79
HAGIHARA, Márcio. O ethos negativo e a arte de vanguarda: modernismo destrutivo das vanguardas
históricas no início do século XX. Dissertação de mestrado em sociologia da Universidade Brasília.
Disponível em: http://bdtd.bce.unb.br/tedesimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1670
44
natureza livre, dá grandes leis amorais criativas ao artista (...) e desperta as
pessoas para uma liberdade psicológica
A questão da autonomia na arte é tema da obra Teoria Estética, publicada em
1968, do filósofo Theodor Adorno. Nela, ele enxerga na autonomia da arte modernista um
meio de resistência ao status quo. A capacidade de inovação do artista em explorar as
linguagens estéticas, criando obras originais e livres das formas de arte do passado e das
influências controladoras do campo econômico e político. Na ruptura com as forma
estéticas do passado, a arte genuinamente original, é também uma ruptura com os valores da
sociedade. O filósofo recorre à psicanálise para confirmar sua teoria ao dizer que ―toda a
arte, [é] negão do princípio de realidade, protesta contra a imago paterna e nesta medida é
revolucionária. Isso implica objetivamente a participação política do apolítico.
80
Embora o filósofo desprezasse as vanguardas européias, rechaçando os ―ismos‖
como algo ―cômico da juventude senil‖, é visìvel a tentativa de se construir algo original
por trás das novas escolas (mesmo que esse intuito fracassasse justamente por através da
reflexão e decisão sobre determinados estilos, expulsar da arte o momento involuntário).
Essa vontade de criar o novo, rompendo com as estruturas estéticas antigas parte da
compreensão de que:
A realidade tem que ser criada por nós. A significação do assunto deve ser
sentida. Os fatos acreditados, imaginados, anotados não são o suficiente;
ao contrário, a imagem do mundo tem que ser espelhada puramente e não
falsificada. Mas isso está apenas dentro de nós mesmos. Assim o universo
total do artista expressionista torna-se visão. Ele não vê, mas percebe. Ele
não descreve, acumula vivências.
81
SURREALISMO, Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe
exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra
maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na
ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação
estética ou moral.
82
Em Nin, a autonomia da arte estava diretamente ligada as suas demonstrações
de aversão a política. Para a autora a arte não deveria ter diálogos com a vida pública, pois
―o espìrito humano demanda um alimento próprio, em outros termos. Nunca ficará satisfeito
80
ADORNO, Theodor. Teoria Estética. Lisboa Edições 70 1992. p. 261.
81
EDSCHMIDT, Kasimir. In: TELLES, Gilberto (org.) Vanguarda Européia e modernismo brasileiro.
Petrópolis: Vozes, 1997 p. 111.
82
BRETON, André. Manifesto Surrealista. In: Ibid, p. 191.
45
com a linguagem da economia, dos escritórios, nem dos intelectuais.
83
Este pensamento,
acabou conferindo a escrita da autora um caráter individualista, configura-se na tensão entre
individualismo e política, como se, para Nin, essas duas instâncias não pudessem coexistir
dentro da arte.
O individualismo também foi abrado pelas vanguardas, a partir do momento
em que essas novas expressões artísticas passam a ser constituídas não mais pelos reflexos
dos processos sociais, mas sim por um ethos artístico da originalidade, liberdade e
expressividade, rompendo, desta forma, com o engajamento político.
Logicamente, a valorização do individualismo não é uma característica
totalmente predominante nessas novas expressões de arte e não se pode generalizar todas as
expressões de vanguardas como defensoras da arte pela arte. Nem sempre o culto a
individualidade dentro da arte resulta numa arte apolítica. Não é à toa que expoentes
surrealistas, como Frida Khalo que tinha essa percepção do individual como sinônimo de
autenticidade tem na suas pinturas diversas referências políticas. Ainda assim, O ethos
negativo de parte das vanguardas no que concerne à distância da esfera política foi
duramente criticado, como será exposto a seguir. Dessa forma, percebe-se que o
individualismo não deve ser encarado como algo avesso a política, pelo contrário, o
individualismo pode ser visto como parte da política. Portanto, as obras de vanguarda com
cunho individualista também podem ser vistas como obras políticas. Mas a relação entre
política e arte não se resume a um reflexo de determinadas ideologias nas expressões
estéticas.
Na obra o Declínio do Homem Público
84
, o sociólogo Richard Sennett
diferencia a valorizão da individualidade configurada a partir do século XX daquela vista
na era vitoriana. Enquanto no século XIX a personalidade individual era valorizada para o
resguardo, ao longo do século seguinte o culto à individualidade passaria a ditar as relações
interpessoais.
Dessa forma, a vida privada invadiria os domínios públicos. O autor explica a
exposição da personalidade na esfera pública, afirmando que os aspectos da individualidade
passaram a ser vistos como sinônimos de autenticidade uma característica valorizada
83
The spirit demands its own food, in other terms. It was never satisfied with a language of economics, of the
factory, of the bureau, nor of intellectuals. NIN. 1996, p. 131.
84
SENNETT, Richard. O declínio do homem blico: tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
46
pelas vanguardas, o que justifica o caráter pessoal e auto-referente da arte modernista, como
de Proust, Nin e Khalo.
O mito hoje predominante é que os males da sociedade podem ser todos
entendidos como males de impessoalidade de alienação e da frieza. A
soma desses três constitui uma ideologia da intimidade: os
relacionamentos sociais de qualquer tipo são reais críveis e autênticos,
quanto mais próximos que estiverem das preocupações interiores
psicológicas de cada pessoa.
85
Embora o caráter íntimo e psíquico seja evidenciado nas linguagens estéticas
do início do século XX, muito antes das vanguardas modernistas, a arte explorava as
subjetividades íntimas de seus personagens. Desde o romantismo que os artistas encarnaram
o arquétipo do boêmio, cuja vida trágica é responsável pela qualidade de sua obra. Sennett
inclusive ressalta que a arte novecentista refletia traços reveladores de intimidade,
destacando que era vista de forma mais natural a exposição pública da personalidade do
artista. O que o autor ressalta sem sua obra é a invasão dos aspectos privados da vida na
esfera pública política.
Dessa forma, é interessante questionar se o papel da entrada das subjetividades
individuais para outros aspectos da vida pública, como a política, teve alguma influência a
crise da arte evidenciada pelas vanguardas modernistas. Pois os limites das expressões
culturais consideradas como arte se tornaram mais difusos.
Sennett evidencia, ainda, que durante a primeira metade do século XX, o
carisma se torna uma característica essencial ao político e esse carisma é caracterizado
como um strip tease público psíquico.
86
O político carismático é aquele sem medo de levar
sua personalidade a público e de mostrar sempre seu verdadeiro ―eu‖ de forma
supostamente espontânea. Sua imagem é constituída não mais pela racionalidade de sua
posição política, mas, sim pela subjetividade interior. Ou seja, o político do século XX deve
se comportar como um artista do culo XIX. Tal como arte, a política agora passa a
trabalhar com a emoção de seus expectadores. A simultaneidade entre a crise da razão na
arte e o ofuscamento do racional pela emoção na política, pode levantar questionamentos
sobre até que ponto o fazer da política não se confunde com a produção da arte.
85
Ibid, p.317.
86
Ibid, p. 330.
47
Mas esse questionamento não parecia fazer parte das preocupações de Nin,
que para a autora, arte e política eram elementos indissociáveis.
Sobre política: todas as palavras que escuto, discursos líricos, romances
floreados, flores sentimentais, preces e lamentações poéticas (uma arte
ruim, claro) me irrita. Na revolução, eu vejo uma questão vital de vida e
morte, uma luta em que se deve entrar vigorosamente e violentamente.
Isso não pode suportar intelecto e irrealidade. Revolução é uma questão
vital de vida de morte. Por que eles falam tanto e recitam poesia, esses
espanhóis?
Com essas palavras, Nin demonstra não acreditar que a arte com qualidade pode
servir para a política, ou pelo menos para aquilo que a autora compreendia como política,
uma instância fria, racional e essencialmente masculina.
A relação entre arte e política eram preocupações de autores contemporâneos a
Nin. O filósofo Walter Benjamin, dedicou parte dos seus estudos para problematizar a
relação entre a arte moderna e a política. Em 1936, ele começou a escrever o ensaio A obra
de arte na era da sua reprodutibilidade técnica
87
, onde faz duras crìticas a idéia de ―arte
pela arte‖ expressadas em parte nas produções artìsticas da época. Ele alertou para os
perigos da estetização da política, ou seja, para o uso da beleza estética na produção de
imagem de grupos políticos, obscurecendo os interesses racionais por trás de determinados
movimentos políticos. No texto, o autor explica que a atitude negativa de parte das
produções artísticas que caracterizavam parte das vanguardas modernistas
simbolizavam uma crise decorrente das transformões tecnológicas de reprodução da arte,
tal como a fotografia.
Com efeito, quando o advento da primeira técnica de reprodução
verdadeiramente revolucionária a fotografia, contemporânea ao início do
socialismo levou a arte a pressentir o início de uma crise, que fez se
aprofundar nos cem anos seguintes. Dela resultou uma teologia negativa
da arte, sob a forma de uma arte pura, que não rejeita apenas a função
social, mas tamm qualquer função objetiva.
88
87
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e
técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 163.
88
Ibid, p. 171.
48
No mesmo ensaio, Benjamin ainda alerta para o perigo de que uma arte
despreocupada com os processos sociais poderia resultar na estetização da política, numa
crítica clara ao futurismo, que, para ele, era a expressão mais perfeita da art pour l’art, em
função da valorização de uma beleza estética, decorrente da destruição e sofrimento
decorrente da guerra. Na época de Homero, a humanidade se oferecia em espetáculo aos
deuses do Olímpio, agora ela se transforma em espetáculo para si mesma. Sua auto-
alienação atingiu um ponto que lhe permite viver sua própria destruição como um prazer
estético‖.
89
Deve-se entender as problematizações de Benjamin sob a perspectiva política.
Para o autor, a idéia uma arte despreocupada com os processos sociais em meio ao
crescimento do fascismo era absurda. Dois anos antes de escrever A obra de arte, Benjamin
proferiu uma conferência no Instituto para o Estudo do Fascismo, onde parte do debate foi
acerca da oposição entre autonomia e tendência literária, para afirmar, de forma categórica,
que a qualidade da obra literária estava relacionada com sua posição política.
Em seu discurso, o filósofo demonstrou que sua principal preocupação com a
relação da obra arte com os processos sociais da época, não é se a obra é revolucionária ou
reacionária, mas sim como ela se situa dentro das relações de poder.
Talvez por essa razão, o surrealismo seja a vanguarda pela qual Benjamin mais
pareceu se entusiasmar quando afirmou que somente os surrealistas conseguiram entender
as palavras do manifesto comunista
90
. Por trás de uma arte aparentemente individualista,
Benjamin enxergou no movimento não apenas uma apologia ao sonho e aos devaneios da
mente, mas uma arte que traz uma iluminação profana de inspiração materialista e
antropológica. Para o autor, a interpenetração das imagens surrealistas transforma as
inervações do corpo coletivo em tensões revolucionárias fazendo com que a realidade
consiga superar-se, segundo a exigência do Manifesto Comunista.
É irônico perceber que das vanguardas modernistas, o surrealismo é a escola
pela qual Nin mais se identificou (inicialmente) considerando que a percepção da autora
em relação ao papel da política na arte difere muito das proposições de Walter Benjamin, já
que para ela, as referências políticas empobreciam a arte. A autora inclusive publicou um
romance surrealista em 1932, intitulado A Casa do Incesto
91
. A obra é uma alegoria poética
89
Ibid, p. 196.
90
BENJAMIN, Walter. Surrealismo. O último instantâneo de inteligência européia. In: Ibid. p. 21.
91
NIN, Anaïs. The house of Incest. Ohiao:.Swallow Press, 1958.
49
escrita em primeira pessoa, que descreve a jornada de uma mulher durante vários estágios
de autoconhecimento. ―Eu escrevi as duas primeiras páginas do meu novo livro, Casa do
Incesto, de uma forma surrealista. Eu estou influenciada pela transição, por Breton e por
Rimbaud. Eles dão a minha imaginação uma oportunidade de fluir livremente.
92
O livro apresenta temas como o incesto entre irmãos e o amor entre mulheres,
que podem ser enxergados como uma metáfora para o narcisismo da narradora, do qual
eventualmente ela tenta se libertar. A Casa do Incesto, na verdade, reflete a interioridade da
autora, que presa a si mesma evoca um sentimento claustrofóbico ao longo da história.
Se ao menos todos pudéssemos escapar desta casa do incesto onde mais
não fazíamos do que amarmo-nos no outro, se ao menos eu vos pudesse
salvar de vós próprios, disse o novo Cristo. Mas nenhum de nós aguentava
passar pelo túnel que ligava a casa ao resto do mundo, no outro lado dos
muros, onde existiam folhas nas árvores, onde há água correndo à beira
dos caminhos, aí onde há luz e alegria.
93
Vendo no surrealismo uma possibilidade de escrever mais livremente, Nin
escreveu com o intuito de adentrar nas camadas do seu inconsciente. A Casa do Incesto é
uma obra mais relacionada à libertação pessoal, que ao mergulhar no interior da narradora,
se constitui como uma obra de arte relativamente autônoma. Ou seja, Nin se identificou
com o surrealismo na medida em que seus pressupostos a leva a explorar livremente o seu
―eu‖, buscando, no interior dessa arte auto-referente, novas possibilidades de inovação
estética. A autora buscou construir uma arte mais interessada em revelar as tensões
individuais do que as tensões do corpo coletivo.
94
92
NIN, Anaïs. The journal of Anaïs Nin Volume I. London, Quarted Books Limited. 1973.
93
If only we could all escape from the house of incest, where we only love ourselves in the orthe. If only I
could save you, all from yourselves, said the modern Christ. But none of us could bear to pass through the
tunnel which led to the house into the world on the other side of the walls, were there were leaves on the trees,
where water ran beside the paths, where there was day light and joy. Tradução da autora. Op cit. 1958, p. 70.
94
As diferentes apropriações de uma mesma vanguarda feitas por Nin e Benjamin demonstram a nocividade
de qualquer generalização sobre o tema. Isso também é revelado nas dissonâncias e fragmentações entre os
criadores da vanguarda. Em 1929, houve uma cisão do grupo em função das percepções de André Breton e
George Bataille sobre o futuro da vanguarda. Enquanto Breton defendia a comunhão das idéias de Marx e
Freud na construção da obra de arte libertária, Bataille adotou uma postura mais niilista em relação a função
da linguagem estética. Sob a perspectiva de Breton, não se pode dizer que o surrealismo é uma vanguarda
―sem qualquer função objetiva‖. Ele acreditava que ao conjurar a psicanálise e o marxismo, a arte poderia
revelar uma verdade humana escondida no inconsciente, e esta revelação, por sua vez, implicava na cura dos
males da civilização. Bataille não via possibilidade em a arte curar os males civilizacionais, acreditando na
autonomia total da arte. Desenvolvendo uma obra pautada na escatologia, no erotismo, na decadência e na
morte, o escritor se aproximou de um ethos negativo extremista: a arte desconstruiria o consciente constituído
pela civilização, mas isso não implica que arte teria um intuito libertador, aproximando-se de uma concepção
de arte pela arte.
50
Apesar da aproximação de Nin com o surrealismo em A Casa do Incesto,
posteriormente ela se afasta da vanguarda, um dos fatores que contribuíram para a cisão de
Nin com o movimento, foi o encontro com Breton, em 1937. Sobre o encontro ela escreve:
―Nada a dizer sobre Breton, não a música, não há brilho. Ele é só CABEÇA‖. Mas a postura
de Nin em relação a arte se afasta da visão negativa extremista de Bataille. A arte em Nin,
apesar de ser auto-referente, tem uma função clara: a de possibilitar a libertação da
realidade.
A autora enfatizou, em diversos trechos do diário, a superioridade do sonho, da
ilusão, em relação ao mundo real, concedendo a arte um sentido quase religioso. Dessa
forma, ela se aproxima da concepção de Adorno, onde a arte é encarada como uma
resistência à realidade. Mas ao contrário do surrealismo de Breton, a escrita não revelaria a
verdade humana por trás do inconsciente. O poder da escrita estava na possibilidade de
invenção de uma verdade que supere a realidade.
Talvez essa necessidade de inventar um novo mundo na sua escrita, levou Nin a
criar uma mitificação de seu ―eu‖ nas suas obras literárias
95
, e mesmo na sua escrita
diarística, considerando os fragmentados papeis da autora refletidos e fabricados no seu
relato íntimo. Criar um mito a partir das impressões pessoais pode ser encarado como uma
forma de responder a tragédia baudelairiana da arte moderna: a consciência de que o
presente é transitório e fugidio, frente a necessidade da apreensão do efêmero de maneira a
eternizá-lo sob uma linguagem estética de beleza imutável e universal. O mito é a criação
de um tempo fora do tempo, em Nin sinaliza a busca por uma arte autônoma.
Mesmo tendo flertado com o surrealismo, o que se percebe em Nin é uma não
aceitação de se enquadrar nos movimentos artìsticos da época, em sua tentativa de ―criar um
mundo perfeito e individual‖
96
, numa reação a realidade das guerras e catástrofes da
humanidade. No entanto, embora Nin buscasse de forma consciente criar seu próprio
mundo, a realidade, a contra gosto, era refletida nele, como ela mesma escreve em seu
diário: ―Em algum lugar, em certo ponto, meu mundo individual toca os muros da realidade.
Onde eu enfrento as catástrofes do mundo exterior guerras, revoluções, desastres
econômicos, decadência e a podridão da sociedade‖.
Dessa forma, o mundo fabricado na escrita de Nin ainda traz reflexos de seu
tempo, contrariando autores como Nalbatian, quando afirma que a autora era impermeável
95
NIN, 1968. p. 157.
51
ao ambiente em que vivia. É possível encontrar na sua escrita íntima problematizações
acerca de tensões das escolas modernistas da época, como a própria relação entre arte e
política. E mesmo que autora prefira silenciar, os silêncios também podem revelar vestígios
do tempo.
2.2 O conflito entre criação e realidade em Nin
Na escrita diarística de Nin, percebe-se uma tensão entre fato e criação, entre a
necessidade de construir uma obra de arte e o imperativo da descrição da realidade no gênero
confessional.
Planejando nunca mais sair do diário de novo para escrever romances, mas
aperfeiçoar e expandir a forma do diário. Eu sou abençoada pelo diário e nada
mais.
97
Começou a nossa jornada
98
a partir do meu conflito com a escrita do diário.
Enquanto eu escrevo no diário, eu não consigo escrever um livro. Meus livros
não são tão bons quanto o diário. É por que eu não me entrego a eles; é por
que eu tentei fluir de maneira ambígua tentando relatar e inventar ao mesmo
tempo. As duas atividades, o transformado, o natural, são antíteses. Se eu
fosse uma diarista real, como Pepys ou Amiel, eu ficaria satisfeita em relatar
mas não eu fico. Eu quero preencher, transformar, projetar, aprofundar. Eu
quero o derradeiro florescer que vem da criação. Quando eu leio o diário, eu
vejo o que eu deixei não dito, que poderia apenas ser dito através do trabalho
criativo, o alongando, o expandindo.
99
Essa tensão também é refletida no trabalho do psicanalista Otto Rank
100
, terapeuta
e amante de Nin. No livro Arte e Artista
101
, publicado em 1932, o autor demonstra a
97
Planning never to come out of the diary again to write novels, but to perfect and expand the diary form. I
am gifted for the diary and nothing else. Tradução da autora. NIN. 1995, p. 99.
98
Por ―jornada‖, ela se refere à um diálogo com o escritor Henry Miller.
99
Started on our journey from my conflict with my diary writing. While I write in the diary I cannot write a
book. My books are not as good as the diary. Is it because I have not given myself to them; is it that I try to
flow in a dual manner to keep, to keep recording and to invent at the same time, to transform? The two
activities the transform and the natural, are antithetical. If I were a real diarist like Pepys or Amiel, I should be
satisfied to record but I am not. I want to fill in, transform, project, deepen; I want this ultimate flowering
that comes of creation. As I read the diary I am aware of all I have left unsaid, which can only be said with
creative work, by lingering, expanding. Ibid, p. 297-8.
100
Psicanalista austríaco pertencente ao círculo de seguidores de Freud em Vienna por quase vinte anos até a
publicação do seu estudo de 1924, O Trauma do Nascimento, causar um rompimento com o autor e seus
seguidores. Seus livros tiveram grande influência em Nin e em 1933 ela se torna sua paciente e,
posteriormente, os dois têm um envolvimento amoroso.
101
RANK, Otto. Art and artist: creative urge and personality development. New York. WW Norton. 1989.
52
preocupação entre o individualismo e o potencial criativo dos artistas. Para Rank, a arte e o
artista moderno amplificam os conflitos entre os aspectos ideais e realísticos de uma obra de
arte. Essas tensões seriam duplicadas pelo artista moderno, que as transformariam numa
querela entre o eu e um ―eu ideal‖. Nesse conflito, Rank considera que o imperativo artìstico
de mostrar-se real numa determinada obra acabaria superando a necessidade da criação de uma
beleza estética. De acordo com o psicanalista, embora a auto-representação espiritual fosse um
elemento essencial para a concepção artística, somente apenas na arte moderna essa
representação vai se tornar uma auto-análise psicológica, consciente e introspectiva.
O objetivo dele [artista] não é se expressar através do seu trabalho, mas sim
conhecer a si mesmo através da produção da obra, inclusive, em função do
seu individualismo puro, ele não poderia se expressar sem ser através da
confissão,
logo deveria conhecer a si mesmo, porque nele não ideologia social ou
coletiva que poderia fazer da sua personalidade artística se assemelhar com o
sentido [artístico] de outras épocas.
102
Dessa forma, esse individualismo realista que se revela através da busca da
verdade na arte e na, acabaria criando problemas para própria criação estética. ―Quão mais
bem sucedido ele [o artista] fosse na descoberta da verdade sobre ele mesmo, menos ele poder
criar ou viver, já que as ilusões são necessárias para as duas coisas.
103
O psicanalista observa que, durante período no qual sua obra foi escrita, cada
pessoa de forte individualidade sentiria ter algum potencial artístico escondido (isso não
significa que apenas uma personalidade forte fosse material suficiente para expressão
artística). Esse sentimento era decorrente da noção de que a constituição da arte estava
intrìnseca ao desnudamento do ―eu‖ de seu criador. Se a arte passaria a se constituir através de
uma busca de um autoconhecimento, e da relação entre vida e criação. As preocupações de
Rank nessa publicação parecem dialogar com o diagnóstico feito anos mais tarde por Richard
Sennett No declínio do homem público.
Rank temia pelo ofuscamento do processo criativo da arte, em detrimento do
individualismo do artista e de uma suposta busca da verdade na arte. Já Sennett também aponta
102
His aim is not to Express himself in his work, but to get to know himself by it; in fact, by reason of purely
individualistic ideology, he can not express himself without confessing, and therefore knowing himself
because he simply lack collective or social ideology that might make the expression of his personality artistic
in sense of earlier epochs. Tradução da autora. Ibid, p. 390
103
The more successful his discovery of truth about himself, the less he can create, or even live, since illusions
are necessary for both. Tradução da autora. Ibidem.
53
uma incessante busca pela sinceridade e nas relações públicas, que refletiriam o desejo de
constituir vínculos supostamente verdadeiros através da representação da personalidade eu
público. O eu não implicaria mais no homem como ator, ou no homem como criador, pelo
contrário na sociedade intimista o ―eu‖ perde o direito de usar máscaras, de se inventar polìtica
ou artisticamente. Os dois também encararam com ressalvas o narcisismo do artista/indivíduo
moderno. Enquanto para Rank, o comportamento colocava em perigo a própria criação da arte,
Sennett criticava o fato de que um suposto padrão de verdade fosse usado para medir a
complexidade da realidade social. De acordo com o sociólogo, para integrar uma comunidade,
era preciso ser autêntico, o que provocaria um enorme paradoxo, pois quanto mais autênticas
as pessoas se mostrarem uma às outras, mais herméticos e fechados serão os grupos.
... agora o narcisismo é que é mobilizado nas relações sociais por uma cultura
despojada na crença no público e governada pelo sentimento intimista como
medida de significação da realidade. Quando questões como classes,
etnicidade e exercício do poder deixam de se conformar a essa medida,
quando deixam de ser um espelho, cessam de suscitar paixão ou atenção
104
.
Se a política é invadida pela intimidade, a arte perde qualquer referência grupal.
Dessa forma, Rank acredita que o movimento da ―arte pela arte‖ pode ser justificado
psicologicamente, pois a arte perdeu sua função coletiva e ainda não descobriu uma nova
função para o desenvolvimento da personalidade individual na qual estaria pautada.
Nesse conflito entre a verdade e a criação artística, o psicanalista enxergou uma
crise da história da humanidade, ―na qual, mais uma vez era exigido o sacrifício de uma coisa
para o pleno aproveitamento da outra.‖ Considerando a ilusão necessária tanto para a vida
social, quanto para a arte, o artista não poderia aproveitar a vida nesse mergulho incansável nas
diferentes camadas do ―eu‖, apagando a possibilidade de criar novas formas de existência.
Mas, o psicanalista enxerga, nessa crise da arte moderna, uma possibilidade de
superação, que resultaria em um novo tipo de humanidade. O rompimento da arte com as
antigas formas tradicionais é também uma possibilidade de liberação individual. No entanto, é
necessário que o artista pare de direcionar sua vida para a construção de uma obra estética e
simplesmente viva, despreocupando-se com a necessidade de se eternizar em uma produção
artística. Mas antes é preciso perder o medo da vida. O medo de viver, para o psicanalista,
resultaria na substituição de uma vida pela obra de arte. Pois, se o artista objetifica o seu ego
104
Ibid. p. 397.
54
através de sua obra, ele até poderia salvar seu ―eu‖ do esquecimento, eternizando-o na obra,
mas ao mesmo tempo retiraria o artista de sua própria vida. A arte, ao mesmo tempo protegeria
e afastaria o indivíduo da vida. Essa proposição de Rank não resolve o problema da arte
moderna apontada por ele, apenas intensifica os conflitos entre criação e realidade e confere ao
fazer da arte uma atividade tensa, que exige sacrifícios.
E para o tipo criativo que pode renunciar a proteção da arte e devotar toda a
força criativa para a vida e a formação da vida vai ser o primeiro
representante de um novo tipo humano, que em retorno dessa renúncia [da
arte] vai aproveitar na criação da personalidade e da expressão, uma
felicidade maior.
105
O primeiro contato de Nin com Otto Rank foi através da leitura dessa obra, na
época ela se referiu ao texto como: ―o livro que eu gostaria de ter escrito!‖. Sua obra diarìstica
parece encerrar os conflitos apontados por Rank. Tanto que a partir de 1932, data em que leu o
livro, Nin começa a se questionar para onde dirigir sua força criativa: para o diário, ou para
ficção? Para a vida ou para criação? Os conflitos não são resolvidos, mas percebe-se uma
predileção para escrita confessional, ao mesmo tempo em que a autora deixa escapar as fugas
da realidade proporcionadas pelo diário. Ao descrever no diário uma diálogo com Henry
Miller acerca da relação entre sua obra ficcional e sua escrita diarística, ela aponta para essas
tensões entre criação e realidade.
Henry me disse que eu não permito a mudança geológica ocorrer a
transformação provocada pelo tempo, que transforma areia em diamante.
―Não, isso é verdade. Eu acho que gosto do material não transformado. Eu
gosto da coisa antes da transformação. Eu tenho medo da transformação.
―Mas, por que?‖
―Porque foge da verdade. Ainda assim, sei que está se atendo à realidade
porque eu reconheço que uma verdade maior por trás da sua fantástica
descrição da Broadway do que nas minhas instantâneas descrições acerca
desse lugar de Nova Iorque.‖
Medo da transformação tem algo a ver com meu medo da loucura. O medo da
loucura que deforma todas as coisas. Eu temo mudança e alteração. Eu
escrevo para combater esse medo. Por exemplo, eu costumava detestar a
crueldade de Henry, tanto quanto os outros detestam a vida terrível, o trágico.
Eu comecei a sentir prazer em descrever nossas alegrias, o momento de
105
And the creative type who can renounce the protection by arte and can devote his whole creative force to
life will be the first representative of the new human type, and in return for this renunciation will enjoy, a
personality-creation and expression, a greater happiness. Ibid. p. 431.
55
serenidade, compreensão, carinho, como algo que, posteriormente, afastasse o
mal, o demoníaco, o trágico.
106
A posição de Nin apontada no texto envolve uma incoerência. A escrita diarística
tanto evitaria alteração da realidade decorrente da criação artística, quanto construiria outra
realidade baseada apenas nas experiências prazerosas, apagando assim os acontecimentos
desagradáveis. O medo da autora encerrado nas possibilidades da criação, não impede que ela
busque, mesmo que de forma supostamente inconsciente, construir outra realidade. Afinal
como ela mesma pontua posteriormente é ―a realidade dela‖, é o mundo em que ―ela acredita‖.
Essa visão de Nin confirma as idéias de Rank acerca do individualismo da arte, e a necessidade
de se buscar uma determinada verdade pessoal nas expressões artísticas.
Na medida em que escrevo, eu dissipo o medo da alteração. Minha visão do
mundo é instantânea e eu acredito nela. É minha realidade. A transformação
requerida pela criação me atormenta. Mudança representa para a mim, a
perda, a tragédia, a insanidade.
Henry estava surpreso.
Bem, se essa é minha doença, eu devo expressa-la de forma derradeira pelo
diário, fazer algo do diário, assim como Proust fez algo da sua enfermidade,
sua doença pela análise, sua busca doentia pelo passado, sua obsessão em
recapturá-lo. Eu deveria me entregar por completo ao diário, fazê-lo mais
completo, dizer mais, viver minha doença. Até agora eu lutei contra a doença;
eu tentei curá-la. Você tentou curá-la Rank tentou curá-la.
107
106
Henry Said I did not permit the geological change to take place the transformation achieved by time,
which turns the sands into a diamond.
―No, that‘s true. I think I like the untransformed material, I like the thing before I transformed. I am afraid
of transformation.‖
―But why?‖
―Because it‘s going away from the truth. Yet I know it is attaining reality because I recognize there is a
greater truth today in your fantastic description of Broadway than in my instantaneous sketches made on the
spot of New York.‖
Fear of transformation has something to do with my fear of madness, the fear of madness which transform
all things. I fear change and alteration. I write to combat this fear. For example, I used to dread Henry‘s
cruelty just as other dread the terrible life the tragic. I used to find pleasure in describe our joys, the moments
of serenity, understanding, tenderness, like something that could afterward conjure away the evil, the
demoniac, the tragic. NIN, 1995 p. 298.
107
As I write, I dissipate the fear of alteration. My vision of the world is instantaneous and I believe in it. It‘s
my reality. The transformation required by creation terrifies me. Change to me represents tragedy, a loss, an
insanity.
Henry was surprised.
Well, it‘s my malady, Henry, I should express it to the utmost through the diary, make something of the
diary, just as Proust made his work out of his disease, his malady for analyzing, his sickly pursuit of the past,
his obsession with recapturing. I should give myself wholly for the diary, make it fuller, say more, live out my
disease. Whereas until now I fought my disease; I tried to cure it. You try to cure it. Rank tried to cure it. Ibid.
298-9.
56
A decisão em abraçar o diário acaba denunciando uma escolha pela ―verdade‖ ao
invés da criação estética. Mas que verdade é essa, quando a própria Nin admite as censuras e
as invenções no diário? São as próprias censuras e invenções contidas no diário que ajudam na
construção dessa verdade individual. Esse é o desafio proposto na escrita confessional de Nin,
confiar na sua capacidade de relatar as trivialidades diárias, transformando-as em eventos
completos, infinitas por si só.
Por que não fico contente com um dia talvez, apenas porque eu não fiz dele
completo o suficiente para conter o infinito? Um dia do diário deve ser
completo, como um livro; e todos os espaços que pulo, todos os braços que
faltam, todas as camadas não iluminadas porque eu não as toquei com meus
dedos calorosos, amor, ou [porque] não as afaguei, devem permanecer no
escuro como o mistério da própria vida. Um dia é tão cheio. Será que relatá-lo
impede vôos supremos? Todo dia de relato conta contra a coisa maior, ou isso
pode ser feito de forma tão grande e bela, a ponto de se tornar completo,
infinito. O florescer só é possível através do esquecimento, com o tempo, com
as raízes e a poeira das falsidades? Se eu escrever no diário por medo da
loucura, então é pela mesma razão que os artistas criavam, como Nietzsche
disse. Já que o artista é sua visão de vida do trágico e do terrível ele iria a
loucura e apenas a arte poderia salvá-lo.
108
Dessa forma, percebe-se que a ―transformação‖ não está tão longe da obra
confessional de Nin, que ela procura possibilidades de modificar os relatos de seus dias a
fim de torná-los obras completas e infinitas por si só. De certa forma, a opção de Nin pelos
diários pode ser encarada como uma interpretação do conselho de Rank no fim de Arte e
Artista, que a força criativa do artista seja dedicada à vida. Afinal, se para Nin as experiências
pessoais são como matérias primas da criação de sua obra completa e infinita é preciso que ela
use sua criatividade na forma pela qual ela encara a vida. O próprio psicanalista chega a dizer
que a vida de Nin é personificação do que ele criou em suas teorias, como mostra uma de suas
cartas descritas por Nin em seu diário:
Você é fantástica. Você é fantástica na vida, quanto eu sou na criação. Nesse
sentido você é melhor, e sua filosofia de viver (não de vida isso é abstrato) é
verdade é aquela em que descrevo no papel. E porque você é fantástica na
108
Why am I not satisfied with a day perhaps only because I did not make it full enough so that it could
contain the infinite? One day of the diary should be complete, like a book; and all the spaces I skip, all the
arms missing, all the layers not illuminated because I did not touch them with my very own warm fingers,
love, or caress them, should be there in the dark, as the mistery of life itself. A day is so full. Is it that the
record prevents the supreme flights? Every day I record counts against this bigger thing, or can it be made so
big and beautiful that it can become the whole thing, the infinite? Is the flowering possible only with
forgetting, with time, with the rooting and the dust of falsities? If I wrote my diary for fear of madness, then it
was for the same reason that the artist created, as Nietzche said. For since is his vision of life of the tragic
and the terrible he would go mad and only art can save him. NIN, 1995, p. 299.
57
vida, sua escrita não é apenas um raro e único documento humano, mas é
fantástico.
109
2.3 A verdade em Nin e a relação com a realidade
Fazer da vida uma obra de arte pode ser encarada como uma obsessão de Nin,
talvez por essa razão ela percebe sua escrita íntima como uma doença da qual não conseguia
se curar. ―...não foi na arte que encontrei le moment eternel‘, como Proust. Foi na vida‖.
110
Dessa forma, a escrita do diário encerraria o constante desafio de capturar seus momentos
eternos, percebendo-se na autora uma constante necessidade de viver cada dia para construir
uma obra de arte.
O que a autora chama de ―momento eterno‖, pode ser entendido com uma
busca por uma verdade transcendente. Não no sentido objetivo, intelectual. Na obra de Nin
parece existir uma busca por uma verdade subjetiva, verdade do indivíduo. As constantes
citações a Proust nos diários de Nin indicam, não uma profunda admiração. Tanto em
Nin quanto em Proust um enfoque na captura de nuances das experiências temporais
como forma de fisgar uma verdade imutável. No entanto, como a própria Nin admite, ela
não tem a capacidade proustiana de distanciar a vida da arte.
As recorrências proustianas observadas na obra de Nin podem ser entendidas
como uma indicação de uma característica que une as obras dos dois autores: uma busca
pela verdade. Se em Nin a verdade que ela constrói nos diários, é uma verdade com a qual
ela pode sobreviver, em Proust a verdade aparece de forma involuntária. Como ressalta o
filósofo Gilles Deleuze
111
: ―a verdade nunca é o produto de uma boa vontade prévia, mas o
resultado de uma violência sobre o pensamento.‖
E as conseqüências me enchiam a mente; pois, reminiscências como o
ruído da colher ou o sabor de madeleine, verdades escritas por figuras cujo
sentido eu buscava em minha cabeça, onde campanários, plantas sem
nome, compunham um alfarrábio complicado e florido, todas logo de
início, privavam-me da liberdade de escolher entre elas, obrigavam-me a
109
You are great. You are great in life, as I am in creation. In this sense you are greater, and your philosophy
of living (not life that‘s abstract) is true is the one that I describe in paper. And because you are great in
life your writing it‘s not just a rare and unique human document, but is great. Tradução da autora. Ibid. p.
62.
110
It wasn‘t in life that I found ―le moment etternel‖, as Proust. It was in life. NIN, 1996, p. 62.
111
DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 15.
58
aceitá-las tais como me vinham. E via nisso a marca de sua autenticidade.
Não procurara as duas pedras em que tropeçara no pátio. Mas o modo
fortuito, inevitável por que surgia a sensão constituía uma prova da
verdade do passado que ressuscitada, das imagens que desencadeava, pois
percebemos o seu esforço para aflorar à luz, sentimos a alegria do real
recapturado.
112
A verdade não é simplesmente o que se busca no passado. O que se
redescobre de forma fortuita é um tempo que se encontra no âmago do tempo perdido. Um
tempo que revela uma imagem da eternidade, sendo também um tempo original e absoluto,
uma verdade que se afirmaria na arte. Ou seja, uma verdade que se afirma na criação.
113
O
mesmo sentimento parece ser compartilhado por Nin, quando ela diz: ―nós escrevemos para
criar um mundo que seja mais verdadeiro do que aquele à nossa frente‖.
114
E mesmo
quando a autora mente, ela o faz para que seja verdadeira com os próprios sentimentos:
Eu não sou uma mentirosa patológica. Eu não minto por compulsão ou por
doença, mas com lucidez e inteligência para ser capaz de viver a vida dos
meus sentimentos, instinto, natureza sem destruí-los. É a única solução
que encontrei.
115
A escrita em Nin, por mais que fosse censurada e deturpada da realidade, é uma
maneira de se criar uma nova verdade, uma verdade que questiona a realidade na qual ela
vivia. Como Proust, ela intencionava capturar as nuances de suas experiências e impressões
para construção de sua obra.
PLANO: ESCREVER MIL E UMA NOITES, de todos os tipos de
desejos, amores, todos os tipos de uniões físicas, completude, descrições
totais físicas e emocionais, sentimento maternal, fantasias eróticas, desejos
obscuros, emoções, humores, uniões e desuniões, efeitos, resultados,
contrastes, falhas, derrotas, complacência, abandono, medo, ciúmes, dores,
frustrações, vitórias, etc.
116
112
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido:Tempo redescorberto. São Paulo: Globo, 2004, p. 158.
113
Op. cit, 2003 p. 16.
114
We write to create a world that is truer than the one before us. Tradução da autora. NIN, Anaïs. The Diary
of Anaïs Nin. Vol. IV 1944-1947 San Diego, CA, USA: Harcourt Trade Publishers, 1971, p. 177.
115
I am not a pathological liAr. I don‘t lie out of compulsion or for disease, but with lucidity and intelligence
to be able to live the life of my feelings, instinct, nature without destroying. It is the only solution I have
found. Tradução da autora. NIN, 1996, p. 124
116
PLAN: WRITE MILLE ET UNE NUITS, of all moods of desire, love, complete, total descriptions physical
and emotional, erotic fantasies, obscure desires, emotions, moods, unions and desunions, effects, results,
contrasts, failures, defeats, yielding, abandon, fears, furies, jealousies, pains, frustrations, fulfillments, etc.
Tradução da autora. NIN, 1996, p. 104.
59
Os planos literários de Nin podem ser observados na sua escrita ficcional e
memorialista. A predileção em contar minúcias de suas impressões fica marcado no seu
modo criar literatura. Por vezes é possível enxergar nas impressões e os sentimentos de Nin
devaneios oníricos que nada podem ter a ver com o cotidiano da autora. Mas são esses
devaneios, sem aparente relação com a realidade objetiva da autora, que fornecem a
possibilidade de se dizer o indizível, de se construir imagens eternas que podem ser
afirmadas na arte.
A escolha da autora de usar suas impressões pessoais para elaborar sua
literatura, confere a sua obra um caráter de individualidade e de autonomia, próprios do
modernismo. Dessa forma, pode-se questionar o que uma obra literária auto-referente pode
dizer sobre o seu tempo.
Se for tomado como exemplo Marcel Proust, uma das inspirações de Nin, é
possível encontrar na sua obra diálogos com a realidade de sua época. Embora a construção
de Em busca, seja baseada numa verdade fictícia encontrada nas impressões fortuitas do
narrador acerca das suas experiências pessoais e individuais, que muitos avaliam a obra
como um retrato de sua época.
117
.
A preocupação de Proust em construir uma obra focada nas recordações e
impressões pessoais de seu narrador, não impediu que outros estudiosos encontrassem no
trabalho proustiano retratos da sociedade, mesmo com a ressalva de que o quadro impresso
por Proust se tratava de uma visão fictícia e individualista do narrador. Portanto, não se
pode considerar Em busca do tempo perdido como um trabalho literário hermético e auto-
referente. Foram as observações de Proust acerca de seu grupo social, a relação entre sua
sexualidade e a sociedade, e suas leituras e experiências fazem da obra uma construção de
sua época. Assim, pode-se considerar que o trabalho do escritor francês, mesmo com suas
inovações ainda guarda uma relação com a realidade, por mais autônoma que seja a sua
arte. Isso prova que é possível enxergar numa obra tipicamente moderna as relações com a
realidade.
Considerando o autor francês como uma das maiores influências de Nin,
especialmente no que concerne a uma busca da verdade através da arte, será possível
117
O historiador e crítico literário Edmund Wilson, por exemplo, afirma que os volumes de Em busca fizeram
de Proust ―o último grande historiador dos amores, da sociedade, da inteligência, da literatura e da arte da
Casa do Coração Partido capitalista.‖The last great historian of the loves, the society, the intelligence,
literature, the art of the Heartbreake House of Capitalist Culture. Tradução da Autora. WILSON. Edmund.
Axel‘s Castle. A study on imaginative literature of 1870 1930. New York : Charles Scribner's Sons, 1959,
p. 190.
60
encontrar na autora algum diálogo entre sua obra literária e o seu tempo? Nin elaborou uma
obra fictícia com uma aparente pouca relação no que concerne a sua sociedade. Enquanto A
Casa do Incesto faz um mergulho psíquico no eu da narradora, A Winter of Artiffice
118
escrito em 1936 revisita a perturbadora
119
relação de Nin e seu pai, Joaquin Castellaños
Nin. (a primeira metade do conto parece ser, inclusive, uma releitura de seus primeiros
diários). A autora parece encarnar quase perfeitamente o arquétipo do artista moderno
descrito por Otto Rank, o qual via na arte uma possibilidade de descobrir as verdades de si
mesmo. Mas em Nin, a questão ia além da auto-descoberta, que ela acreditava no poder
da arte em criar um mundo no qual ela poderia viver. Essa assertiva pode ser comprovada
através das conclusões dessas narrativas, que garantem a resolução dos problemas propostos
no enredo. Em Winter of Arttifice, a personagem se salva do próprio passado e se livra da
necessidade de um pai. ―A garotinha estava morta nela também. A mulher se salvou. E com
a garota morta, a necessidade de um pai se foi.
120
nos seus diários escritos nos anos 1930 poucas menções destinadas ao
mundo exterior da autora. Eles funcionam quase como um desafio de se recuperar os
―momentos eternos‖. Mas como a própria autora afirmou, as vezes os muros da realidade
tocam o mundo construído pela sua arte. A partir de 1936, quando ela se envolve
romanticamente com o ativista comunista Gonzalo Moré, o tema político começa a invadir,
quase à contragosto, os seus diários.
2.4 A política em Anaïs Nin
Em junho de 1936, Anaïs é apresentada a Gonzalo Moré e sua esposa a
dançarina Helga. Ela havia ouvido falar deles na casa de Roger Klein, artista francês e
vizinho de Henry Miller, onde ficou curiosa acerca das histórias do casal peruano. Mas
quando os conheceu, foi Gonzalo que chamou atenção, com seus ―olhos de animal e cabelos
de carvão.‖ A atração foi imediata e os dois logo desenvolveram uma relação intensa.
118
NIN, Anaïs. Winter of Artifice. London: Peter Owen Ld, 1974.
119
Um dos temas freqüentes em Nin é o trauma decorrente do abandono paterno, em 1914 quando ela tinha
apenas 11 anos. Em 1933, quase vinte anos depois, pai e filha de reencontram e tiveram uma relação
incestuosa durante o mês de junho do mesmo ano. As únicas pessoas para quem a autora teve coragem de
revelar o caso foram os seus terapeutas René Allendy e, posteriormente, Otto Rank. A confirmação do caso
veio com a publicação dos diários não expurgados dos anos 1932 à 1934.
120
The little girl was dead in her to. The woman was saved. And with the little girl died the need of a father.
Ibid, p. 120.
61
Diferente de seus outros amantes, o ativista peruano não era um intelectual Lia pouco, era
contra as análises psicológicas e não era capaz de teorizar sobre arte, ao contrário de Henry
Miller e Otto Rank. Mas, o que despertou o interesse de Nin foi a sua intensidade, o sangue
espanhol compartilhado por ela, sua força natural, e até certa inclinação para destruição. Ao
mesmo tempo, a relação dos dois trouxe para os diários de Nin um tema antes pouco
discutido: a política.
No entanto, mesmo sem Gonzalo, seria difícil para Nin permanecer sem a
política. Afinal entre os anos de 1935 e 1939, ela viveu na Europa, enquanto estava à beira
de uma grande guerra, tendo que revisitar sentimentos do passado, considerando que ela foi
morar nos Estados Unidos em 1914 para fugir da guerra. Mas Moré, que também era
comunista, estava diretamente ligado comitês de defesa à republica espanhola.
Ainda antes do envolvimento com Gonzalo, Nin chega a citar sua opinião
sobre política em sua escrita íntima. Ela caracteriza essa instância como uma ameaça ao seu
mundo criado pela arte e ainda demonstra ter uma postura totalmente alienada em relação
aos problemas da realidade, preferindo continuar com sua felicidade cotidiana.
Eu luto contra a intruo do mundo da política, guerra, Comunismo,
revoluções, porque eles matam a vida individual, quando é tudo o que
temos. Depois de conversar com Emil e outros homens, Henry volta para
mim abatido, pessimista, e eu continuo indiferente aos problemas do
mundo, procurando manter a felicidade do cotidiano. Outros querem essa
desintegração exterior como um pretexto para aceitar a própria destruição
interior. Sem mais arte, sem mais livros, porque a guerra está próxima.
Não a nada deixado para viver, exceto pelo mundo feminino amor-entre-
homem-e-mulher. A mulher está fundamentalmente certa. Eu defendo
mais e mais a vida. Odeio política. História.
121
Embora essa postura de Nin confluísse com o ethos negativo refletido em
parte da arte modernista, a partir da década de 1930 essa posição passa a enfraquecer. Tanto
que é possível enxergar uma arte engajada, especialmente, durante a Guerra Civil na
Espanha. De acordo com Cerqueira
122
, no conflito, arte e literatura emergem como forma de
121
I fight off intrusion of world, of politics, war, Communism, revolutions, because they kill the individual life
when it‘s all we have. After talks with Emil or other men, Henry returns to me battered, pessimistic, and I
remain indifferent to world problems, seeking to maintain a day-to-day happiness. Others want the outer
disintegration because it is a good pretext under which to accept their inner destruction. No more art, no more
books, because the war is near. There‘s nothing left to live for, but the woman‘s world man and woman
love. Woman is fundamentally right. I stand more and more for life. Hate politics. History. NIN, 1995 p. 78-9
122
CERQUEIRA, João. Arte e literatura na Guerra Civil Espanhola. Porto Alegre: ZOUK, 2005, p. 13.
62
resistência à opressão e violência, refletindo um sentimento de insubmissão e esperança.
Nomes como Pablo Neruda, Ernest Hemingway, André Gide se engajaram no conflito.
No entanto, Nin se associou a outros escritores. Junto a Henry Miller, e
Lawrence Durrell ela formou um grupo conhecido como Círculo da Villa Seurat. Os três
construíram escritos aparentemente alheios à realidade, onde as conclusões das narrativas
refletiam um fim esperançoso, pelo menos no que diz respeito à felicidade individual. Em
Trópico de Capricórnio, publicado em 1939, Henry Miller apresenta uma solução
esperançosa para o narrador, mesmo vivendo num mundo de caos, ele termina com: ―Serei
como um visitante desta Terra, compartilhando das suas bênçãos e levando as suas dádivas.
Não servirei nem serei servido. Procurarei o fim em mim próprio. Olho de novo para o Sol
o meu primeiro olhar em cheio.
123
Bloshtein
124
aponta a atitude do grupo como um
derradeiro ato de rebelião, pois mesmo vivendo numa era em que tudo parecia apontar para
guerra, eles ousaram em pensar com esperança no universo de seus personagens.
A postura alheia de Nin começa a ser confrontada de forma mais intensa, a
partir do momento em que ela passa a conviver com Gonzalo. O peruano passa a questionar
o mundo artístico da autora e ela é obrigada a buscar explicações para sua alienação. No
início dos embates com Moré, a autora transcreveu em seu diário uma carta sua, com
destinatário não revelado - mas se pode intuir que é o próprio Gonzalo -, em que explica as
razões pelas quais não se identifica com a luta comunista, muito embora estivesse ajudando
pequenos grupos. Nin ainda revela suas raízes aristocráticas, mostrando identificação com a
Espanha monárquica, o que poderia ser considerado um crime para os partidários da
república espanhola.
Ao contrário do que você pensa, eu não estou alienada do drama político
atual, mas eu não tomei partido, porque política, para mim, todos os tipos
de política, é podre na essência e é baseada na economia, não em ideais. O
sofrimento do mundo não tem remédio, a não ser individualmente.
Enquanto eu dou tudo de mim, individualmente, não sinto necessidade de
tomar partido de um movimento. Mas agora o drama acontece. A Espanha
está sangrando tragicamente. Eu fico tentada a em engajar minha lealdade.
Mas eu continuo por fora, firmemente, porque eu não encontro um líder
que eu confio ou por quem eu morreria, vendo apenas traições e feiúra,
sem ideais, sem heroìsmo, sem doação do ―eu‖. Se eu encontrasse um
comunista que fosse um grande homem, um homem, um ser humano, eu
123
MILLER, Henry. Trópico de Capricórnio. Lisboa : Biblioteca Visão, 2000, p. 317.
124
BLOSHTEYN, Maria R. The Pornographer and the prophet: Henry Miller, Anaïs Nin and Lawrence
Durell reading Dostoevsky. Disponível em:
http://www.collectionscanada.gc.ca/obj/s4/f2/dsk2/tape15/PQDD_0018/NQ27280.pdf
63
poderia servi-lo, lutar, morrer. Mas por enquanto, eu ajudo um pequeno
circulo, e espero. As pessoas vão se livrar de mim por causa do meu berço
(atirar em todos com unhas limpas, eles disseram na Espanha) e por causa
da minha doação pessoal. E com o perfume, as unhas limpas, as catedrais
e os castelos, vai a poesia. Não era o rei que valorizamos, era o símbolo de
um líder. Agora não temos líderes, nem cerimônias, nem rituais, nem
incenso, nem poesia. Apenas uma luta pelo pão. Nós estamos realmente
muito pobres.
125
Mais do que uma rejeição ao comunismo, percebe-se em Nin uma rejeição a
tudo que fosse material. Por isso, o constante dualismo entre arte e política na sua escrita
íntima. Na verdade, a escritora não conseguia enxergar de que forma essas duas instâncias
poderiam funcionar de forma simbiótica. Como se a partir do momento em que arte se
misturasse à política, ela perdesse seu valor mítico. Pois, para ela, a resistência da arte
consiste não numa tentativa de transformar a realidade, mas sim, na sua própria existência,
enquanto criadora de um mundo alternativo.
Ao assistir o filme Massacre
126
, que conta a história da revolta de operários
contra a injustiça, embora ela tenha dito que a pelìcula a fez ―ter abraçado o comunismo,
pela mesma razão de Gonzalo, como um possìvel alìvio para a injustiça‖
127
ela classificou
a fita como ―barata‖. O fato de o filme ter despertado em Nin indignação com o sofrimento
alheio, não foi suficiente para que ela considerasse um bom exemplo de obra de arte. Pelo
contrário, para a autora, não cabe a arte ditar as maneiras pelas quais o mundo deve de
organizar, isso tornaria a criação estética menor, até porque o verdadeiro artista nunca
conseguiria sobreviver à realidade.
Me reerguendo do caos do ciúme de Gonzalo. Me sentindo em conflito, ou
melhor dois. Um: como eu posso evitar que Gonzalo sofra? Dois: como eu
posso poetizar a política? mora o problema. A vida para mim é um
125
I have not, as you think, been unaware of the polical drama going on, but I have not taken any political
sides because politics to me, all of them, are rotten at the core and based on economics, not ideals. Suffering
of the world is without remedy, except individually. As I give all individually, I fell no need to take part in a
movement. But now the drama is going on. Spain is tragically bleeding. I feel tempted to engage my
allegiances. But I still remain outside, fiercely so, because I find no leader I trust or would die for, seeing only
betrayal and ugliness no ideals, no heroism, no giving of the self. If I saw a Communist who was a great man,
a man, a human being. I could serve, fight, die. But meanwhile I help in a small circle, and wait. The people
will do away with me because of my birth (shoot everybody with clean nails, they said in Spain) and with my
individual giving too. And with the perform, the clean nails, the cathedrals, the furs, and the castles will go the
poetry. It wasn‘t the king we valued but the symbol of a leader. Now we have no leaders, no ceremonies, no
rituals, no incense, no poetry. Only a struggle for bread. We are very poor indeed. Tradução da autora. NIN,
1996, p. 266-7.
126
Filme dirigido por Alan Crossland, lançado em 1934.
127
.. embraced communism, if only for the same reason og Gonzalo embraced it, as possible relief for
injustice. Tradução da autora. NIN, 1996, p. 73.
64
sonho. Eu me especializei no mecanismo disso. Eu conquistei os detalhes
para fazer o sonho mais possível. Com martelo. Unhas, tinta, sabão,
dinheiro, máquina datilográfica, livros de receita, entusiasmo, eu construo
um sonho. É por isso que renuncio violência e tragédia. Realidade. Então,
eu faço poesia da ciência. Eu tomo a psicanálise e construo um mito dela.
Eu me especializei na pobreza e restrições pelo bem do sonho. Eu vivi
astutamente, inteligentemente, criticamente pelo bem do sonho. Eu menti
pelo bem do sonho. Eu peguei elementos da vida moderna pelo bem do
sonho. Eu subjetivei Nova Iorque pelo bem do sonho. E agora tudo é de
novo uma questão de sonho versus realidade. No sonho, ninguém morre,
no sonho ninguém sofre, ninguém está doente, ninguém se separa.
128
Dessa forma, para Nin era melhor que a política fosse construída através de
discursos racionais. Essa concepção liberava sua arte de qualquer obrigação política. Era
também uma forma de justificar seu distanciamento do universo político, por se considerar
incapaz de pensar de forma racional.
A organização do mundo é uma tarefa para realistas. O poeta e o
trabalhador vão ser sempre vítimas do poder e do interesse. Nenhum
mundo nunca vai ser comandado pela idéia mística, porque a partir do
mundo que funcionar, deixará de ser mística. Quando a Igreja Católica se
tornou uma força, uma organizão deixou de ser mística! O realista
sempre derrota o poeta e o humano. O interesse vence. O mundo sempre
será governado por pessoas sem alma e pelo poder.
129
Quando eu li todos os pequenos livros de Marx ntese feita pelos
franceses Eu vi a limitação, o erro, de novo, para mim. Mas não para o
mundo. O mundo é terreno. Precisa de soluções terrenas. Não pode se
liberar do espaço e tempo. Comunismo está certo. Gonzalo também é
terreno. Ele não pode escapar da realidade exceto com álcool, morfina,
coca, cocaína, éter
130
.
128
Rising haggard from the chaos of Gonzalo‘s jealousy, feeling in myself a conflict, or rather two. One: How
can I prevent Gonzalo for suffering? Two: How can I poetize politics? For there lies the problem. Life for me
is a dream. I mastered the mechanism of it. I conquered the details to make the dream more possible. With
hammer and nails, paint, soap, money, typewriter, cook books, douchebags, I made a dream. That‘s why I
renounce violence and tragedy. Reality. So, I made poetry out of science. I took psychoanalyses and made a
myth of it. I mastered poverty and restrictions, for the sake of the dream. I lived adroitly, intelligently,
critically, for the sake of the dream. I lied for the sake of the dream. I took all the element of modern life and
used them for the dream. I subjected New York to the service of the dream, served the dream. And now it‘s all
again a question of dream versus reality. In the dream, nobody dies, in the dream no one suffers, no one is
sick, nobody separates . Tradução da autora. NIN, 1995, p. 369.
129
The organization of the world is a task for realists. The poet and the workman will always be victims of
power and interest. No world will ever be run by a mystic idea, because by the time it begins to function it
ceases to be mystical When the Catholic Church became a force, an organization, it ceased to be mystic! The
realists always conquers the poetic as the human. Interest wins out. The world will always be ruled by soulless
people and power. Tradução da autora. Ibid, p. 341-2.
130
When I read all the little books on Marx later synthesis made by the French I saw the limitation, the
error again, for me. But not for the world. The world is earthy. It needs earthy solutions. I cannot liberate itself
into space and time. It needs concrete, external change to see, to feel. Communism is right. Gonzalo is too
65
No diário, Anaïs Nin relata diversas discussões com Gonzalo em função de sua
(falta de) postura política. Ao leitor, parece difícil entender como os dois conseguiram
manter um relacionamento de mais de dois anos, com tantas turbulências. Mas a relação
deles de certa forma também simboliza os conflitos da autora entre arte e realidade. Nin
crítica a política, ao mesmo tempo em que admira o fervor de Moré em relação a ela. É
preciso ressaltar o desejo da autora de se criar arte através da intensidade da vida, de
escolher aplicar sua força criativa na vida. Ironicamente, Gonzalo Moré personificava essa
sede de vida ainda melhor que Nin. A arte versus realidade representa o embate de criação
versus destruição. Mas destruição também faz parte da vida.
E depois de uma hora ele diz: Yo no soy creador. (Eu não sou criador.)
Ele analisa, filosofa. Não é um criador. É por isso que ele vive, é por isso
que ele toma todas as drogas, por isso que ele é um Comunista, por isso
que ele é tão lindo para se amar, para se viver. Ele se entrega
completamente ao presente. À vida.
131
Gonzalo também é cheio de contradição e confusão. Ele adora o velho,
odeia ciência, a máquina, e ainda assim abraça o comunismo. Ele é
religioso, e ama a beleza, mas vai a reuniões políticas, ele ouve a cegos,
estúpidos discursos.
132
Durante o período em que esteve com Gonzalo, a visão de Nin acerca do
comunismo se transformou. A partir do momento em que passa a enxergar certa abstração,
uma certa ilusão, nesses ideais políticos ela passa a compreender e respeitar o fervor de
Gonzalo em relação à política. Como se a paixão política pudesse ser compreendida no
momento em que se torna uma criação da vida. Ainda assim, mesmo ajudando os grupos
que lutavam pela república espanhola, a autora preferiu dizer a si mesma, que na verdade,
ela estava auxiliando a Gonzalo, o indivíduo. Para ela, era mais fácil acreditar no seu
sentimento por Gonzalo, do que em algo sobre o qual não tem controle.
earthy. He cannot escape from reality, except with alcohol, morphine, coca, cocaine, ether. Tradução da
autora. NIN, 1996, p. 275.
131
And an hour later he is saying ―Yo no soy creador‖ (I am not a creator.) He analyzes, philosophizes. Not a
creator. That is why he lives, why he took all the drugs, why he is a Communist, why he is so beautiful to
love, to live with. He throws his whole self into the present. Into life. Tradução da autora. NIN, 1995 p, 270.
132
Gonzalo, too, is full of contradictions and confusions. He worships the old, he hates science, the machine,
yet he embraces communism. He is religious, and he loves beauty, and yet he goes to political meetings, he
can listen to blind stupid speeches. Tradução da autora. NIN, 1996 p. 68.
66
Então eu estou datilografando nos envelopes para os comunistas. E eu
penso sobre Comunismo. Eu tenho compaixão pelos seus objetivos. Mas
não consigo me entusiasmar. Esse drama é, para mim, um drama ingênuo
europeu. Mas todo esse drama está ardendo. Nós vivemos pelo drama
amores trágicos, energia mal gasta, erros, preconceitos. Erros. Eu acredito
em cometer erros humanos, em ter ilusões. Gonzalo tem a ilusão da
reorganização do mundo, eu respeito essa ilusão. Eu vou ajudá-lo. Eu
estou fora, além do capitalismo e do fascismo. Eu tenho sido uma
anarquista espiritual. Na política, eu não tenho ilusões. Mas eu tenho
ilusões sobre o amor.
133
A convivência com Moré também fez, que com o passar do tempo, ela mudasse o
discurso no que diz respeito à ―manter a felicidade do cotidiano‖, e fechar os olhos para o
sofrimento do mundo. Ao trabalhar diretamente com as pessoas envolvidas na guerra, Nin
não pôde ficar alheia ao resto do mundo. Mas sempre faz questão de ressaltar o caráter
pessoal de suas ações. Ela não se sensibilizava em função de ideais coletivos, mas sim em
função do sofrimento individual. Era encontrando nos outros um sentimento parecido com o
seu, que a autora conseguia se identificar com as questões políticas, acreditando que
conseguiria se engajar a partir do momento em que tomava os sofrimentos como seus. Mas
Nin percebia seus próprios sentimentos também como problemas públicos, o que ressalta
a sua percepção da importância da vida privada para as questões públicas.
Me dei conta de novo, como outras vezes antes, que meu sofrimento
individual deveria se fundir no dos outros, assim como aconteceu quando
eu era criança e deixei de lado meu sofrimento introspectivo pela perda do
meu pai para cuidar da minha mãe e dos meus irmãos, e me perdi servindo
os outros. Ou quanto, assim como eu me identifiquei com a guerra, e com
a França devastada, eu deveria novamente adotar os problemas do mundo
como meus. Claro, a vida individual vivida profundamente expande
verdades além de si mesma. Minhas questões também têm valor. Elas
representam as questões de milhares
134
133
So, I am typing envelopes, to Communists. And I think about communism. I am in sympathy now with it
aims. But I cannot get fired. The drama is, to me, a naïve European one. But all drama is unwise. We do not
live by wisdom. We live by drama tragic, lives, misplaced energies, prejudices. Errors. I believe in making
human errors. In having illusions. Gonzalo has the illusion of rearrangement of the world. I respect his
illusion. I will help him. I am already outside, beyond capitalism and fascism. I have been a spiritual anarchist.
In politic I have no illusions. But I have illusions in love. Tradução da autora. NIN, 1995, p. 350.
134
It struck me again, as several times, before, that my individual suffering should be merged into the other,
that just as when I was a girl and laid aside my personal introspective suffering at the loss of my Father to take
care of my mother and brothers, and lost myself at serving others. O that, just as I identified once with the
war, and with war-torn France, I should again adopt the world trouble in replacement of my own. Of course
the personal life deeply lived expands to truths beyond itself. My struggles with myself are not valueless. They
represent the struggle of thousands. Tradução da autora. NIN, 1996, p. 73-4.
67
A maioria das críticas de Nin à política era exatamente à sua dimensão racional e
impessoal. Assim, a autora classificava o político como uma invenção do mundo masculino,
preferindo se deter aos sentimentos e a intimidade, que, para ela, eram espaços femininos. O
desprezo da autora à política era quase uma reação à indiferença dos espaços público,
percebida por ela, às questões privadas. Dessa forma, a autora considerava as instâncias do
público e privado antagônicas.
...eu realmente não me importo com qual lado eu fico, eles estão todos
errados, quem acha que eles morrem e vivem por ideais. (...) Eu estou
lutando com a Espanha Republicana porque estou apaixonada e isso é tudo
que conta. (...) E minha alma feminina ri de todos os nomes e categorias
dos homens porque eu vejo além deles. O jogo o qual eles levam tão a
serio, eu levo rindo, enquanto eles riem das nossas lagrimas e tragédias.
135
Ao mesmo tempo, a aspiração de Nin em publicar seus escritos íntimos coloca
em questão um fato: um desejo de ingressar a vida pública com o uso de suas experiências
privadas. Embora Nin reitere que na arte apenas a possibilidade de se criar um novo
mundo, e não de transformá-lo, há de se pensar até que ponto os novos mundos refletidos na
arte não representariam nova alternativa à realidade dos apreciadores da arte? A própria
autora poderia responder que a realidade não é capaz de exprimir a perfeição das produções
estéticas. Mas, é preciso lembrar que a arte de Nin, foi baseada nas suas experiências, nos
seus erros: na sua imperfeição.
Essas problematizações da autora também incorporam uma das questões mais
caras ao feminismo: o reconhecimento da importância da vida privada feminina. Tanto que,
mesmo rejeitando o político, a escrita íntima de Nin, apesar de todas as críticas, teve sua
importância posteriormente no movimento de luta pelos direitos da mulher.
Nin se manteve passiva no que concerne à política de sua época. No entanto,
simultaneamente a essa passividade, ela questionou os valores dessa mesma sociedade ao
estimar a dimensão da sua vida privada, conferindo-a status de obra de arte. Essa atitude da
autora resultou numa valorizão de sua feminilidade num mundo essencialmente
masculino.
135
... I don‘t really care whose side I take, they are all wrong, who think they live and they die for ideas. (…) I‘m
working for the Republican Spain because I‘m in love and that‘s what it counts. (…) and my woman‘s soul is
laughing at all men‘s categories and names because I see through and beyond them. It is their game which they
take seriously and I take laughingly and they laugh ate our tears and tragedies. Tradução da autora. NIN, 1995, p.
354.
68
Mas será que essa postura rebelde da autora é capaz de absolver a escritora dos
seus pecados narcísicos? Para responder essa questão, é preciso primeiro compreender o
que é a feminilidade em Anaïs Nin, e como a concepção da autora vai influenciar nas suas
ações e produções artísticas. Para isso, o próximo capítulo será dedicado a mergulhar mais
na sua escrita íntima a fim de apreciar a vinculação do feminino, com o público, o privado a
arte e a política. Dessa forma, pretendo apreender como as suas representações se
fundamentam e até que ponto pode-se perceber limites entre a contestação e o narcisismo
dentro da obra da autora.
69
Capítulo 3 O feminino em Anaïs Nin
―Eu nego cálculos. Eu digo que isso é instinto. Eu tenho alguns instintos
violentamente impulsivos: (instintos de) desejo e proteção. Eu desejo, amo e pego fogo e,
simultaneamente, eu protejo‖
136
. Com essas palavras Anaïs Nin imprime a imagem de uma
mulher que deixa se levar pela sua natureza, criando uma figura contraditória, ambígua e
volúvel. Ao longo de sua obra, a autora reitera essa percepção de si conectada aos impulsos
primais, traçando assim uma construção de uma figura feminina emblemática.
A escrita íntima de Nin é carregada da co-relação entre uma natureza quase
mística e a sua feminilidade. Ela anseia criar uma obra na qual sua visão de mulher seja
evidenciada. Faz isso com claro desejo de subverter a obra de arte, a qual para ela vinha
sido destruída pela objetividade masculina, que, na sua visão, provocava um rompimento
com o lado humano do processo de criação.
A objetividade do homem parece ser a imitação de um Deus desconectado
de nós e da emoção humana. A mulher nasceu para ser mãe, amante,
esposa, irmã, ela nasceu para representar a união, comunhão e
comunicação. Ela nasceu para conectar o homem com seu lado humano.
Eu não me iludo. Não acho que crio (arte) me isolando de forma
orgulhosa. A mulher deve criar sem as enganações do orgulho masculino.
Ela deve criar a unidade que o homem destruiu através de sua consciência
orgulhosa.
137
Percebe-se a vontade de Nin em criar uma arte que resgate a conexão com a natureza
humana. A autora construirá sua literatura de forma que abarque em si uma imagem de
mulher vinculada aos instintos e desejos primais. Para isso ela cria uma representação de
feminilidade controversa, por compreender conceitos referentes à pretensa ―natureza
feminina‖ de forma ―tradicional‖.
No entanto, é importante observar que ela constrói essa visão do feminino como
um instrumento contestador, não em relação às formas de arte, vistas por ela como
136
I deny calculation. I say it is instinct. I have several violently impulses instincts: desire and protection. I
desire, love, get on fire and simultaneously, I protect. Tradução da autora. NIN, 1995, p.381.
137
Man's objectivity may be an imitation of this God so detached from us a human emotion. The woman was
born the mother, mistress, wife, sister, she was born to represent union, communion, communication. Woman
was born to be the connecting link between man and his human self. I do not delude myself that I create in
proud isolation. Woman must create without the proud delusions of man. She must create that unity which
man first destroyed by his proud consciousness. Tradução da autora. NIN, Anaïs. The Journal of Anaïs Nin
Volume II 1934-1939. USA: Harcourt Trade Publishers, 1967, p.234.
70
―masculinas‖. Como foi demonstrado no capìtulo anterior, Nin a escrita instintiva,
como uma forma de resistência a uma realidade com a qual ela não consegue se identificar.
Assim, o seu silêncio político se impõe quando ela incorpora a figura de uma
mulher mítica e imprevisível, que não cede espaço para os racionalismos da vida pública. A
autora adota para si uma caricatura do feminino, que exclui a possibilidade de qualquer ação
movida por um ideal pragmático.
Porém, não se deve encarar a ocultação do político, na obra da autora,
simplesmente como um tema censurado, mas, também, como uma posição ideológica.
Neste sentido, Nin escolheu construir uma literatura cujo mote principal era expor seu lado
mais humano, por considerar a tentativa da delineação da natureza humana como uma arte
libertadora para o indivíduo, preso numa racionalidade desumana.
A ideia da arte como instrumento de libertação se dá na medida em que Nin traz
questões de seu foro mais íntimo para o olhar público, mostrando aos seus leitores que seus
anseios pessoais também podem ser peças chaves para a constituição de uma nova
realidade.
A autora se tornaria conhecida na década de 1960, mas mesmo antes de ter
obras publicadas em larga escala, ela entrou para a vida literária quando apresentou seus
diários para autores conhecidos para o público como Henry Miller e Lawrence Durrell.
No entanto, é importante alertar que nem sempre Nin optou por trazer ao público, de forma
tão consciente, as minúcias de suas questões íntimas e com isso, as representações de sua
feminilidade. Muito embora, a construção da sua figura pública tenha sido elaborada através
da sua vida íntima.
Seus escritos íntimos os quais ela usou como meio experimentação para a
elaboração da sua arte feminina impressionavam mais dos que seus pequenos romances.
Quando conheceu Henry Miller, por exemplo, ela confiou a ele seus diários da infância. É
partir daí que o escritor passa a admirá-la enquanto artista, como ele demonstra em uma das
primeiras cartas que ele a escreveu:
Eu não sei como expressar meus sentimentos em relação à leitura dos seus
diários. Eu ainda não acabei. Eu o coloquei de lado porque quero poder ler
mais e mais. O diário me toca profundamente. Acho que é uma das coisas
mais belas que já li, e se eu fosse você eu nunca o deixaria fora do alcance
das minhas mãos nem mesmo se fosse para Fred ou eu mesmo ler. Eu
71
não tinha ideia, quando implorei pelos diários, de quão preciosos eles
eram.
138
No entanto, ao mesmo tempo em que a sua escrita íntima era admirada, a
obsessão de Nin pelo diário terminou sendo vista pelos que conviviam com ela, a exemplo
do próprio Henry Miller e Otto Rank, como uma doença, um vício que Nin precisava se
livrar. Em uma carta, Miller
139
sugeriu que ela parasse permanentemente de trabalhar com
suas memórias, para que pudesse dedicar-se a trabalhos futuros.
Durante certo tempo, Nin tentou ouvir os conselhos de seus mentores
masculinos, isso a fez sentir-se culpada sempre que dedicava seu tempo à escrita de
memórias, tentando desligar sua escrita memorialística, dos textos com os quais pretendia
ingressar no mundo literário. Escrever o diário passa então a ser uma atitude de
desobediência.
Meu pobre diário. Eu estou com tanta raiva de você, eu odeio você. O
prazer de confessar me deixou artisticamente preguiçosa. Um prazer tão
fácil, de escrever aqui tão fácil. E hoje eu vejo como interfere nas
minhas estórias. Como eu conto para você as coisas de forma tão frias,
sem cuidado e de forma não artística. Todo mundo tem odiado você. Você
me diminui como artista, mas ao mesmo tempo, você me mantém viva
como um ser humano. (...). Mas ainda assim, meu pobre diário, se eu não
tivesse conhecido você como a única coisa que sempre esteve interessado
em mim, nunca teria escrito nada, porque enfrentar o mundo, um mundo
que parece não me dar nada além de tristeza, eu não poderia ter escrito
nada. Escrever para um mundo hostil, não significa nada para mim.
Escrever para você me o ambiente caloroso no qual eu possa florescer.
Então, eu não posso te odiar. Mas agora que estou em paz com o mundo, e
agora eu posso escrever como uma artista, eu devo de desvincular do meu
trabalho.
140
138
I don‘t know how to express my feelings on reading your journal. I have not finished yet. I put it aside
because I want to be able to read more and more. It touches me deeply. I think it is one of the most beautiful
things that I ever read, and if I were you I would never leave it out of my hands. not even for such Fred and
myself to read. I had no idea, when I begged for it, how precious it was. MILLER, Henry, NIN, Anaïs A
literate passion: letters of Anaïs Nin and HenryMiller 1932 1953. Orlando, Harvest Book, 1989 p.55.
139
Ibid, p.180.
140
My poor diary, I am so angry with you! I hate you! The pleasure of confiding has made me artistically lazy.
Such an easy joy to write here so easy, And today I saw how the diary does choke up my stories, how I tell
about things so nonchalantly, carelessly, and inartistically. Everybody has hated you. You have hampered me
as an artist, but at the same time you have kept me alive as a human being. And yet, my poor journal, if I had
not considered you as the only one always interested in what happened me, I would never have written at all,
because facing the world, the world who seemed to give me nothing but sorrows I could not have done it.
Writing for a hostile world meant nothing to me. Writing for you gave me the warm ambience I need to flower
in! So I can‘t hate you, but now that I made my peace with the world, and now that I can address it as an artist,
I must divorce you from my world. Tradução da autora. NIN, 1992 p. 276.
72
Porém, a decisão da autora em desligar suas obras literárias do diário, não durou
muito. Nin acabou constatando que sua obra íntima era o local cuja escrita era mais
inspirada, e, nada fria, ao contrário do que se pensava. Afinal, era um espaço onde ela
poderia se construir misticamente: ―... eu sei que assim que saio do diário, eu não sou
natural. Aqui eu quero ser confusa e mística. Eu me sinto muito emocional, porque não
posso publicar o diário e não consigo escrever um romance.
141
Nin acabaria rejeitando os conselhos de Rank e Miller, passando a dedicar-se ao
diário como um instrumento literário capaz de ter fronteiras tão fluídas quanto à identidade
feminina idealizada por ela. Mais e mais ela atrelou seu trabalho ao diário, procurando fazer
dele uma construção singular sobre o feminino. Cabe perguntar que feminilidade é essa
exalada nos escritos íntimos de Nin? Até que ponto essa feminilidade da autora não era
vista pelos homens do mundo literário como um obstáculo para a construção da sua obra de
arte?
A leitura dos diários de Nin oferece um retrato que não foge de alguns
estereótipos usualmente atribuídos a mulher. O feminino está sempre associado à
sensibilidade, ao privado, à intuição e a tudo que não é racional. Enquanto algumas
feministas podem argumentar que Nin reiterou velhos clichês associados à mulher, a autora
abraçou esses estereótipos ao ressaltar as diferenças entre homens e mulheres, indicando
que as mulheres não precisavam se tornar um homem para serem fortes.
Pode-se encarar essa postura de Nin como uma rebelião contra o mundo
racional que a cercava. Essa também pode ser uma das explicações para sua aversão à
política, ao público, e para o seu desejo de viver intensamente suas experiências individuais.
O diário passa, então, a ser um espaço de resistência contra um mundo masculino no qual
Nin não acreditava e de elaboração da sua ideia de feminilidade. Ou seja, acaba
funcionando como um espaço de personificação do feminino. Se ela consegue ter uma
escrita natural é porque para ela, a feminilidade estava diretamente ligada à criação, à
natureza e ao místico. Dessa forma, Nin opunha feminino e masculino, como criação e
destruição. À mulher cabia o fardo de conviver com a destruição dos homens que ficam a
sua volta.
141
And I know that as soon as I step out the diary I am not natural. Here I want o be confusing and mystifying.
I feel very emotional, because I can‘t publish the diary and I can‘t write a novel. Tradução da autora. NIN,
1996 p. 251.
73
O mundo masculino em chamas e em sangue. O mundo dos homens está
se desintegrando na guerra. O mundo da mulher está vivo, como deve
estar para sempre, mulheres dando vida e homens destruindo eles mesmos,
morte, carnificina por todos os lados, ódio e divisão; e eu cansada de
carregar Henry, Hugo, Eduardo e agora Gonzalo.
142
Por isso, quando a autora decide recusar os conselhos dos homens que a
cercavam, é também uma recusa de abrir mão da sua feminilidade para poder se tornar uma
artista. É a partir do momento em que ela passa a se dedicar aos diários, que ela propõe uma
nova forma de arte feminina.
Este capítulo se propõe a compreender os significados políticos da escolha de
Nin em se projetar para o mundo como uma artista feminina. Pois, a partir do momento em
que se percebe nela a intenção de publicar seus diários, percebe-se também uma forma de
abrir o espaço público para as questões femininas, ainda que este não seja um desejo
explicito.
3.1 Deixando Barcelona: as primeiras impressões sobre feminilidade em
Nin
Antes de mergulhar mais na criação do feminino em Nin nos diários escritos na
década de 1930, é pertinente vislumbrar os primeiros escritos da autora no que se refere à
questão do feminino.
Os primeiros diários de Nin, escritos em sua adolescência, causam um
estranhamento para aqueles que conhecem suas memórias posteriores. A importância de
observar esses primeiros escritos se na perspectiva de entender como são elaboradas as
visões de Nin acerca do feminino em diferentes épocas.
Ao embarcar no navio rumo aos Estados Unidos, em 1914, Anaïs Nin, com
apenas 11 anos de idade, tinha a cabeça repleta de anseios, esperanças e curiosidade em
relação à nova vida, que foram revelados em uma longa carta ao pai, o qual há pouco tempo
142
The world of men is in flame and blood. The world of man disintegrating in war. The world of woman
alive, as It shall be forever, woman giving life and man destroying himself, death, carnage all around me,
death and hatred an division, and I so weary of lifting Henry, and Hugh, Eduardo, Rank and now Gonzalo.
Tradução da autora. Ibid, p. 36.
74
deixara sua família. A carta ao pai
143
posteriormente se tornaria a origem de parte das suas
obras mais célebres: os seus diários íntimos. A partir de seus primeiros escritos é possível
acompanhar a trajetória de uma garota frente a uma nova cultura e também em relação aos
próprios percursos das mudanças da adolescência e da vida adulta.
Ao contrário dos escritos memorialísticos produzidos nas décadas 1930 e 1940,
os primeiros relatos íntimos da autora não têm recebido tanta atenção. Talvez pelo seu
caráter supostamente mais inocente ou menos subversivo embora seja precipitado
classificar níveis de subversão ou inocência de qualquer escrito que pareciam pouco
condizer com o contexto nos quais seus outros escritos alcançaram notoriedade: a
emergência da segunda onda do movimento feminista americano.
―O casamento moderno se tornou como tudo nesses dias, loucura, frivolidade,
ostentação e a eterna intoxicação pela juventude‖
144
, escreve a autora em 25 de outubro de
1915. Quem conhece a vida e obra de Nin pode achar surpreendentes suas colocações, aos
12 anos, sobre a instituição do matrimônio. Afinal, aos olhos de muitos, o casamento que
ela teria mais tarde poderia se encaixar nesse perfil ―frìvolo‖.
Durante os primeiros anos de seu diário, a autora também oferece opiniões
sobre assuntos como religião e lugar social da mulher. Como é o caso desse trecho:
Eu odeio as novas leis que permitem o divórcio e que os lares sejam
destruídos. E me parece que se eu tivesse um marido eu seria submissa, e
mesmo se ele me enganasse, eu acho que nunca amaria outro, nunca, E se
eu me divorciasse, eu preferia morrer, porque eu acho que [divórcio] não é
honrável.
145
Sabe-se que à época em que o trecho foi escrito, os pais de Nin haviam se
separado recentemente. O fato pode ter influenciado a opinião da autora, mas não se pode
analisar apenas por esse espectro de sua vida pessoal. Ora, a ideia de modelo de mulher
submissa não foi idealizada por Nin somente em função de seus problemas familiares.
143
A autora fala sobre essa carta destinada ao pai como o início da sua escrita diarística em entrevista
concedida no dia 18 de junho de 1970 à Rádio Canadá emissora de televisão canadense. O vídeo está
disponível em: http://archives.radio- souvenirs/arts_culture/canada.ca/IDC-0-72-1981-12731-11/index_
144
Modern marriage has become like everything else these days, madness, frivolity, ostentation and
intoxication of eternal youth. Tradução da autora. NIN, Anaïs. The early diary of Anaïs Nin, Vol. 1 (1914-
1919). Orlando, Harcourt Brace and Company, 1980, p. 85.
145
I hate de modern laws which allow divorce and allow homes to be destroyed. And it seems to me that if I
had a man as a master, I would be submissive and, even if he deceived me, I think that I never would love
another, never. And it seems to me that if I have to divorce, I would rather die, because I think it‘s
dishonorable. (Tradução da autora) Ibid. p.90
75
A construção da ideia de uma natureza feminina não pode ser datada, mas é
possível dizer que, em alguns casos, contribuiu para a solidificação de uma imagem de
mulher frágil, submissa e dócil. Essas eram as características consideradas inatas à mulher.
Logo, aquelas que não apresentassem as qualidades, tão convenientes para uma sociedade
falocrática, eram tachadas como antinaturais.
Para pensar em uma naturalização de um modelo ideal de mulher, pode ser útil
colocar em xeque estudos
146
que afirmam que o poder não funciona simplesmente como um
poder [masculino] reprimindo ou oprimindo a subjetividade feminina. As diferenciações
entre os sexos e, conseqüentemente, os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres são
efeitos de regulações nas quais os próprios sujeitos gendrados operam. Os sexos (feminino
e masculino) seriam na verdade efeitos de um processo de articulações dos discursos e
dissimulados por meio desses mesmos efeitos.
147
Retomando os primeiros escritos de Nin, e que ela, enquanto sujeito gendrado,
também constrói suas próprias regulações sobre o sexo, pode-se interpretar seus diários
como operações de regulação sobre modelos ideais de comportamento? Essa possibilidade
se apresenta quando, por exemplo, em carta ao pai ela revela ter decidido abandonar as
aspirações artìsticas ao se questionar sobre ―quem iria assar o bolo‖ caso decidisse não se
tornar uma esposa convencional.
148
Ou quando escreve ―... mamãe fala que os homens são
muito egoístas. Se eu levasse a sério tudo o que mamãe pensa dos homens, eu me tornaria
uma sufragete ou uma solteirona‖.
149
A hipótese de um diário disciplinar tem sido sempre levantada nas pesquisas
sobre os gêneros de escrita íntima.
150
É verdade que os diários, em geral, têm suas regras.
No entanto, excetuando-se as demarcações de datas, é difícil delinear quais são essas regras,
pois, cada registro diarístico estabelece uma dinâmica própria. Assim, além de impor uma
146
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006.
147
Ibid, p. 1-31.
148
A frase é dita por Anaïs Nin quando revela ao pai ter abandonado as aspirações artìsticas: ―If I tryed to
write I would only be na ornament to those I love. Who would bake the cakes? (poets don‘t know how to do
such thing), who would go to the marketing?‖ / ―Se eu tentasse escrever eu seria apenas um ornamento para
aqueles que amo. Quem assaria os bolos? (poetas não fazem essas coisas) Quem iria ao supermecado?‖ NIN,
1980 p, 468.
149
If I took seriously all that Mama thinks about men, I would certainly turn into a suffragette and an old
maid. (Tradução da autora) Ibid, p.95.
150
A obra Vigiar e Punir parece responder aos anseios desses estudos. O conceito de disciplina emprestado
desse estudo diz que ela ―é o processo técnico unitário pelo qual a força do corpo é, com mìnimo de ônus,
reduzida como força polìtica e maximizada como força útil.‖ FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis
Vozes, 1987.
76
disciplina de produtividade de uma escrita íntima, os diários possibilitam a constante
autovigilânicia do comportamento, que com os relatos memorialísticos, a figura feminina
pode se auto-observar e se julgar.
Maria José Mota Viana
151
acredita que, quando detalhes da vida íntima feminina
são relatados com minúcia em diários e ficam circunscritos apenas para a própria autora, a
mulher torna-se mais presa ao âmbito privado.
De acordo com essa concepção, na escrita sobre o ―eu‖, a mulher poderia
guardar seus desejos e anseios a sete chaves, sem com isso deixar o aprisionamento
doméstico e se libertar dos deveres e obrigações de recato. Por conta desse fator, a prática
tornou-se comum e até mesmo incentivada entre mulheres. Com os paradoxos e as
contradições interiores guardados apenas em um caderno empoeirado, o mundo exterior
estaria menos ameaçado da emancipação feminina.
Assim, torna-se necessária a relativização desses conceitos de vigilância e
disciplina quando relacionados à escrita íntima. As possibilidades de purgar as dores dos
diários não necessariamente impedem a figura feminina de manter uma postura ativa na
vida pública. Basta se lembrar dos escritos íntimos e catárticos de Frida Kahlo. As letras
trêmulas e manchadas, provavelmente pelas lágrimas da pintora, podem indicar o quão
visceral são aqueles relatos. E Kahlo não representa a figura feminina passiva e submissa
como seria de se esperar de uma mulher mergulhada num mundo panóptico de escritas
íntimas.
A atuação pública de Nin, especialmente em se tratando da auto-representação em
sua adolescência, não foi tão óbvia quanto à de Kahlo. Isso não significa que não seja
possível problematizar a utilização de tais conceitos na obra da autora. Por isso retomo a
questão: a escrita diarística de Anaïs Nin seria uma operação de regularização e
disciplinarização de si? Aceitar essa afirmativa não seria incorrer no mesmo erro dos que
vêem os diários somente como uma maravilhosa ferramenta de libertação, onde a mulher
teria a própria voz
152
?
As respostas afirmativas as duas questões, embora aparentemente opostas, têm uma
raiz comum: a ideia de instrumentalização da escrita diarística, seja para libertar ou
151
VIANA, Maria José Motta. Do sótão à vitrine: memórias de mulheres. Belo Horizonte: UFMG, 1995.
152
SCHIWY, Marlene. A Voice of Her Own: Women and the Journal Writing Journey. New York: Fireside,
1996.
77
aprisionar a mulher. Dessa forma, pensar o relato íntimo sob um prisma instrumental é
reduzir e simplificar as potencialidades de pesquisa no tema.
Ao mesmo tempo em que os diários de Anaïs Nin são repletos de opiniões da autora
acerca do papel social da mulher, também é possível encontrar questionamentos acerca
das hierarquias e da obediência pela qual ela deveria se submeter.
... comecei a pensar e imaginar por que nós nascemos para obedecer. Por
que toda nossa vida deve ser uma longa e pesada corrente de obediência?
Eu tenho imaginado por que Deus nos criou para obedecer. O mundo
inteiro sempre obedece. As leis de Deus, as leis da natureza, etc. Nada
além de lei e mandamentos. Por quê? (...) Deve-se obedecer, obedecer
agora, obedecer depois, obedecer sempre, obedecer em todo lugar, na terra
e no céu. Poderíamos existir sem obediência? Sem reis obedecendo a
Deus, homem obedecendo a um líder, o animal obedecendo ao homem,
Natureza obedecendo a suas leis e milhões de humanos obedecendo a
alguém acima deles?
153
Diante do exposto, enxergar os escritos de Nin em seus diferentes contextos sob
um prisma dualista entre liberdade/vigilância é fugir da complexidade existente nas
memórias da autora. Tomando-se como exemplo os relatos posteriores da própria Nin,
pode-se apreender que, em plena década da revolução sexual, os diários de 1930 foram
levados a um grande público pela primeira vez e foram recebidos com certo entusiasmo
pelos movimentos feministas
154
. Diferentemente de uma boa esposa que assa bolos, como
ela previra anos antes, os diários revelam uma mulher em busca dos prazeres do corpo, de
novas experimentações fugindo de rótulos de bons comportamentos socialmente
estabelecidos, como a monogamia e a heterossexualidade. Será que as ideias da autora
mudaram tão radicalmente em menos de 20 anos?
153
―... I have started to think and to wonder why it is that we are born to obey. Why must our whole life be a
long, heavy chain of obedience? I often have wondered why God create us only to obey. The entire world
always obeys. The laws of God, the laws of nature, etc. Nothing, but laws, commandments. Why? (...) One
must obey, obey now, obey later, obey always, obey everywhere, on earth as in heaven. Couldn‘t the world
exist without obedience? Without kings obeying God, man obeying a leader, the animal obeying men. Nature
obeying its laws and millions of human obeying someone above them. Traduação da autora. NIN, 1980, p.
298.
154
Após a publicação de alguns diários Anaïs Nin inclusive se envolveu com o movimento Women‘s
liberation durante os anos de 1960 e 1970.
78
3.2 As memórias da maturidade: no limite entre hedonismo e subversão
O entusiasmo com o qual os diários foram recebidos não impediu as críticas
direcionadas a eles pelo próprio movimento feminista. A mesma Anaïs considerada
libertária tinha ideias bastante sólidas no que diz respeito aos espaços femininos (para ela, o
privado) e aos masculinos (o público).
Ao contrário de outros artistas com quem convivia, como Pablo Neruda, ela
preferiu a resignação frente aos grupos políticos da época. Em diversos trechos dos diários,
afirma que a política, a história e o racionalismo são âmbitos pertencentes ao mundo
masculino. Como foi dito, segundo Nin, a arte e para ela a literatura íntima também se
enquadra da categoria artística serviria para construir um mundo novo, de paixão e de
sonho. Algo que, na sua visão, nada pode ter a ver com política. Constantemente, -se a
autora associar a feminilidade ao sentimento e às sensações, afastando-se do mundo
político, que, era um universo feito para aqueles que não conseguiam ir além da
racionalidade.
Existem pessoas que não podem mudar por dentro, que devem ser
encorajadas pelo exterior. Essas são as pessoas que precisam da revolução.
Os fracos. Essas são as pessoas que não podem erguer-se acima da vida,
transformá-la, libertar-se, e para essas pessoas a revolução é necessária,
para os fracos. A revolução é feita pelos fracos e para os fracos. É por isso
que, pessoalmente, eu não ganharia nada com a revolução, a não ser pelos
outros com quem convivo. Nenhuma revolução vai me libertar da minha
sentimentalidade, da minha piedade, fraqueza. Mas vai libertar aqueles
que não conseguem escapar para entrar no infinito, vai libertar aqueles que
não conseguem criar um mundo ilusório. Aqueles que não podem sonhar,
que não podem transformar.
155
As palavras da autora suscitam questionamento: ao mesmo tempo em que ela
demonstra ter consciência de que é preciso ir além da vida, ou seja, ir além do limites
impostos socialmente à vida, ela se intenta se omitir politicamente, deixando claro sua
155
There are people who can‘t change from the interior outward, who must be pushed from the exterior. These
are the ones who need revolutions. The weak ones. There are those who can‘t rise above life, transform it,
free themselves, and for these the revolution is necessary, for the weak ones. It‘s by the weak ones, for the
weak ones. That‘s why, for me personally, I have no use for it, but for the other I have. No revolution will
free me from my sentimentality, pity, weakness. But it will free those who cannot into the infinite, those who
cannot create an illusory world. Those who cannot dream, those who cannot transform. Tradução da autora.
NIN, 1996, p. 84.
79
compreensão de que a vida deve ser experimentada para dar vazão aos sentimentos e
aspirações, instâncias não valorizadas pelo mundo público, racional.
À primeira vista, pode parecer que Nin toma uma atitude egoísta ao decidir criar
um mundo ilusório próprio através de sua arte, para não ter que deixar sua passividade
política. Mas essa seria uma visão simplista da obra de memórias da autora. Afinal, esse
pensamento não questiona quais os significados dos desejos da escritora em expor esse
mundo privado e ilusório, que desafia as normas racionais da sociedade ao público.
Assim, é possível fazer duas leituras acerca da obra de Nin: a primeira, de que a
autora se omite politicamente para exercer na sua arte uma prática hedonista, na medida em
que sublinha os próprios desejos; a segunda, de que a sua escrita memorialística traz em si
um caráter de subversão, ao impor uma visão contrária à racionalidade da política, da guerra
e, portanto, do mundo masculino.
Contudo, buscar entender a obra de Nin sob o prisma dualista entre subversão e
hedonismo poder trazer muitas armadilhas. Afinal, até que ponto é possível localizar um
limite entre hedonismo, subversão e omissão nesses relatos diarísticos?
Por mais hedonista que fosse a autora, de se levar em consideração, que foi
esse hedonismo, essa vontade de se perder nos prazeres dos sonhos, que a levou a
questionar e criticar valores de seu tempo. Um exemplo disso é a constante critica a
racionalidade exposta na sua obra íntima.
Não se deve esquecer, como já foi apontado no capítulo anterior, que essa
crítica ao mundo racional se enquadra no que se convencionou chamar de literatura
modernista, mais especificamente o surrealismo, por meio do qual, segundo Benjamin
(1929) ―o domìnio da literatura foi explodido por dentro na medida em que um grupo
homogêneo de homens levou a ‗vida literária‘ até os limites extremos do possìvel‖
156
. E foi
através de uma estética não racional, baseada nos sonhos e no interior psíquico, que Nin
construiu um novo mundo nos seus diários, pois para a autora a escrita serviu para criar um
universo onde ela pudesse viver. Um mundo diferente dos que lhe foram oferecidos: da
guerra, da política e dos pais. Esse ambiente construído por ela, através dos seus escritos,
nega o mundo político no qual estava inserida, mas, simultaneamente, se impõe ao público
através da sua circulação.
156
BENJAMIN, 1985 p. 22.
80
Mas, até que ponto pode-se afirmar que o desejo de Anaïs Nin era transformar
as relações de poder existentes, trazendo o privado, o feminino, ao público? Ou, ainda:
apesar de Nin considerar sua obra memorialística e literária como apolítica, é possível
afirmar se, conscientemente ou não, a circulação do conteúdo do seu trabalho era em si uma
ação política?
É possível encontrar respostas incompletas e contraditórias nos diversos relatos
e fontes produzidos pela autora (diários, cartas, entrevistas, artigos, contos, livros de ficção,
etc.). Contudo, buscar estas respostas não seria, mais uma vez, cair na armadilha de
enxergar os diários como um instrumento?
Diversas leituras foram feitas acerca dos diários de Anaïs Nin. Nestas leituras,
ora a obra foi vista como um monumento à liberação feminina, ora considerada como uma
ode ao hedonismo e ao descompromisso político. Não é pretensão de este trabalho
distinguir qual das diversas leituras da obra de Anaïs Nin é a mais válida. Cada leitura está
circunscrita a um contexto, um espaço e uma temporalidade diferente, e os pesquisadores
não são imunes aos diferentes contextos.
O que se deve ressaltar é a importância de tais abordagens para os estudos de
escritos íntimos. No entanto, pode-se ir além da tentativa de localizar uma utilidade para
tais relatos. Mais do que buscar enxergar uma função para o diário de Anaïs Nin, é
importante examiná-los tendo em vista as suas complexidades e contradições das memórias,
não em busca de repostas simples, mas de uma realidade repleta de minúcias que não
podem ser ignoradas. Assim, não se deve adotar uma visão dualista entre subversão e
hedonismo, até porque os próprios escritos de Nin apontam certos deslocamentos, certas
descontinuidades que sugerem uma postura analítica mais cuidadosa.
O trabalho da autora é carregado de um fervor quase místico, não no sentido
simbólico ou metafórico. O misticismo diz respeito ao fluxo psíquico de seus pensamentos,
que soam para além da racionalidade.
Eu sonho, eu beijo, eu tenho orgasmos, fico exaltada, deixo o mundo, eu
flutuo, eu cozinho, eu costuro, tenho pesadelos, eu sigo um plano criativo
gigantesco, eu componho, decomponho, improviso. Eu escrevo na minha
cabeça, eu escuto tudo, eu ouço tudo o que é dito, eu sinto a Espanha, eu
estou consciente, eu estou em todo lugar, eu incendeio com Gonzalo, eu
estou aberta a feridas, eu estou aberta ao amor, eu estou enraizada nas
minhas devoções, eu transporto uma corrente obsessiva de contar
histórias, eu estou escrevendo minha própria história, mas eu nunca estou
separada, cortada dela nunca cega, surda, ausente. Agarro-me ao sonho
que torna a vida possível, a criação que transfigura, ao Deus que sustenta,
81
aos crimes que dão a vida, as infidelidades que fazem o maravilhoso
possível. Agarro-me a poesia e a simplicidade humana.
157
Esse fervor da escrita da autora dialoga com a ideia de feminilidade circunscrita
em sua memória. É um grito contra a racionalidade científica, contra uma arte
artificialmente construída, contra a desvalorização da interioridade. No entanto, mais do que
um grito de rebeldia é também um grito revelador dos seus sentimentos, das angústias e das
impressões da mulher. A escrita de Nin, portanto, pode ser encarada como um grito,
alertando que a mulher tem desejos, sonhos e que, sim, esses sonhos e desejos importam e
devem ser expostos.
Nessa perspectiva, o diário de Nin se constrói enquanto arte na medida em que
ela o usa como um meio para destruir o espelho no qual a mulheres eram vistas apenas
como um reflexo do desejo masculino. O que entra em pauta são os desejos dela, não como
uma frivolidade, mas sim como uma prerrogativa necessária para a vida. A arte feminina de
Nin está profundamente vinculada à vida, à natureza. Muitas vezes o processo criativo da
autora é comparado à maternidade. Nin, que nunca desejou ter filhos afirmava: ―Eu tenho
conhecido a maternidade, para além da maternidade biológica trajetória da artista e da
vida, da esperança e da criação‖.
158
Dessa forma ela abraça alguns dos estereótipos pelos quais a ideia do feminino
está atrelada, como, por exemplo, a de que o sexo feminino está vinculado à natureza. Dessa
forma, a mulher fica aquém da cultura e assim é impossibilitada de criar. Esse pensamento
da autora gera controvérsia para as pessoas ligadas ao movimento feminista, mas é preciso
entender o que significa para Nin essa vinculação entre a instância feminina e o natural.
A mulher artista tem que unir criação e vida da sua própria maneira ou
no seu próprio útero, se assim preferir. Ela tem que criar algo diferente do
homem. Ela tem que criar o mistério, a tempestade, a natureza, os terrores,
157
I dream, I kiss, I have orgasms, I get exalted, I leave the world, I float, I cook, I sew, I have nightmares, I
follow a gigantic creative plan, I compose, decompose, improvise. I write in my head, I listen to all, I hear all
that is said, I feel Spain, I am aware, I am everywhere, I burn with Gonzalo, I am open to wounds, open to
love, I am rooted to my devotions, I carry an obsessional current of storytelling, I am writing my own story,
but I am never separate, cut off never blind, deaf, absent. I hold on to the dream which makes life possible, to
the creation which transfigures, to the God who sustains, to the crimes which give life, to the infidelities which
make the marvelous possible. I hold on to the poetry and the human simplicity. Tradução da autora.NIN,
1996, p. 176.
158
I have known motherhood beyond biological motherhood the bearing of artist and life, hope, and
creation. Tradução da autora. Ibid, p. 75.
82
o paraíso natural do sexo, o inferno natural do sexo, a batalha entre arte e
contra a arte.
159
A autora se desafia enquanto mulher para conceber uma obra artística que
forneça uma impressão de verdade tão forte a ponto de parecer trazer em si sua própria
carne. E isso não será feito simplesmente com um relato de uma suposta verdade. Como foi
visto nos capítulos anteriores, em Nin a verdade só se mostra através da criação, logo, a arte
feminina e autêntica da autora conseguirá ―criar o mistério, a tempestade, a natureza, os
terrores...‖ através de um complexo trabalho de criação. Pode-se considerar que a criação
também está relacionada às escolhas e ao modo de vida da autora, já que seu diário pode ser
encarado como uma proposta estética da própria existência. Portanto, a proposta estética
elucidada no diário da escritora passa a ser uma indicação de modo de vida. E é assim que o
diário será recebido anos mais tarde quando Nin, finalmente, consegue publicá-lo.
Ademais, a autora busca distinguir a escrita das produções textuais
―masculinas‖ carregadas de abstrações cientìficas e intelectuais. ―Mais e mais me vejo
impelida a lutar contra as invenções científicas e intelectuais dos homens. Com meus
sentimentos e instintos eu me oponho a todas as teorias e explicações psicológicas dos
homens‖.
160
Para ela, a escrita feminina se constrói a partir do amor, o qual como um
elemento unificador entre todas as artes e todas as pessoas.
Ideias são elementos separadores. Amor é a comunhão com os outros.
Palavras mentais são isoladoras. Amor nos faz abraçar todas as raças, todo
o mundo, todas as formas de criação. O artista procura a linguagem
universal. E artistas de todas as partes do mundo podem entender um ao
outro.
161
Em suma, Nin propõe a construção de uma arte feita ―a partir do próprio
sangue, englobada no próprio útero.‖ Ela usa essa metáfora para demonstrar a importância
da ligação entre vida e estética, defendendo que não poderia abandonar seus diários, pois a
159
The woman artist has to fuse creation and life in her own way or in her own womb if you prefer. She has
to create something different from man. She has to create the mystery, the storm, nature, the moon itself, the
madness of nature, the terrors, the natural paradise of sex, the natural hell of sex, the battle with art and against
art. The art of woman must be this that is born out o a flesh. Womb and not from the cells of the mind. She
must be in her art, the very myth in motion. Tradução da autora. Ibid. p. 87.
160
More and more I see implied in the diary is the struggle against scientific and intellectual inventions of
man. Ibid. p.46
161
Ideas are separating elements. Love is a communion with others. Mental words are isolators. Love makes
one embraces all races, the whole world, all forms of creation. The artist really seek a universal language, and
artists form all part of the world can understand each other. Tradução da autora. NIN, 1995, p. 167.
83
partir do momento em que distanciasse sua vida da criação artística, ela se tornaria artificial
e sua escrita pareceria falsa. Ora, o que se percebe não é a impossibilidade da criação
artística feminina, mas sim a potencialidade de se criar uma arte nova, uma arte concebida
com ―a própria carne‖.
Assim, ela passa a criticar a presunção de que é possível haver um
distanciamento entre a vida e a arte. Quando ela faz afirmações sobre o ―amor‖ como
elemento fundamental para a linguagem artística, demonstra um desejo de se construir uma
arte universal, que possa ser compreendida por todos. Em Nin, esse princípio universal
também está atrelado ao sentido de completude. A possibilidade de se elaborar uma arte em
sua completude significaria quase como um reencontro com o mundo criado por Deus para
os homens. Ela acredita que o mundo racional e científico foi responsável pela destruição
dos mitos divinos, mas, ainda assim, é possível reencontrar esse mundo através da arte.
[a mulher artista] deve unir os elementos e os produtos sintéticos dos
homens, ela deve ser a ligação, o perfume o qual os homens destroem. No
instante em que ela falhar o mundo vai se tornar sombrio. E a cidade do
homem que fica no céu vai perecer com isso. Ela deve criar o que o
homem destruiu originalmente, o mundo de unidade imaginado por Deus,
o qual o homem destruiu e despedaçou com a sua consciência orgulhosa.
É a fragmentação do paraíso imaginado por Deus, foi para juntar esses
fragmentos novamente, numa ordem do homem, que Henry e Larry
tentaram agir ontem à noite. Eles tentaram seduzir-me para deixar o útero.
Por quê? Eu tenho que criar para homens e mulheres essa trágica busca de
um laço perdido, dessa completude despedaçada. Eu tenho que criar aquilo
que vai nos tirar da solidão, a miragem da arte, o sofrimento de nossa
separação.
162
Fugindo de um feminismo ortodoxo, Nin adotou para si a imagem de uma
figura mítica, imprevisível, que está além ou aquém da cultura. Se por um lado, a autora
acaba por naturalizar e reiterar características historicamente atribuídas à mulher, por outro
lado, ao abraçar esse estereótipo, ela se a liberdade da loucura e a possibilidade de
escapar das regras da racionalidade.
162
She must create that which man originally destroyed, the very world of unity issued from God, which man
shattered and destroyed with his proud consciousness. It is this dividing of the paradise made by God into
fragments, so as to piece it together in a man order, that Henry and Larry tried to reenact last night. They tried
to lure me out of the womb. Why? I have to create for man or woman this very seeking of lost bond, of a
shattered wholeness. I have to create that which will deliver us from aloneness, the mirages of art, the
suffering of our separateness. Tradução da autora. NIN, 1996, p.84-5.
84
3.3 Sonho e representação da feminilidade
Ao compor suas memórias de forma hermética, ela construiu um mundo
próprio, além de um espelho de representações do feminino. Criou na sua obra arquétipos
de feminilidade, que inspirou reações polarizadas. Ao mesmo tempo em que despertou uma
legião de fãs, Nin também teve ávidos críticos, como Simone de Beauvoir:
... naturalmente, eu reconheço que ela (Anaïs Nin) tem algum talento, e
que, de vez em quando, ela evoca algumas coisas poderosas.
Ocasionalmente, ela demonstra alguma graciosidade na escrita, mas o
trabalho dela é estranho para mim, especialmente porque ela tenta muito
ser feminina e não feminista. E ela é tão boba diante de alguns homens.
Ela fala desses homens que eu conheço na França e eu sei que eles são
menos do que nada, mas ela os considera reis, pessoas extraordinárias.
163
Nin elaborou fantasias de feminino, permitindo múltiplas interpretações que,
muitas vezes, se mostram diametralmente opostas. E isso foi possível porque na sua
escrita íntima uma dimensão onírica, na qual sonho e realidade se confundem. Dessa
forma, Nin abriu espaço para a construção de fantasias flexíveis e multifacetadas da
feminilidade.
O estilo da escrita de Nin, muitas vezes mostra esse caráter onírico, pois, como
vimos ao longo do trabalho, a autora busca através da criação a possibilidade de edificar seu
verdadeiro ―eu‖ feminino.
Essa ideia de construção da feminilidade através do sonho é contemplada nos
primeiros diários da autora.
Eu tenho sonhos, sonhos que são melhores do que qualquer coisa que
fiz ou disse, e eu não quero que eles morram. É a melhor parte de mim, o
lado dos meus ideais e das minhas resoluções lutando contra a parte de
mim que não sonha, que tem defeitos, e eles lutam nas suas páginas. Você
163
... naturally I recognize that she (Anaïs Nin) has some talent, and that from time she evokes some powerful
things. She shows an occasional grace in writing, but her work is foreign to me, precisely because she wants
so much to be feminine and not feminist. And then she gaga before so many men. She talks about men I know
in France, men who were less than nothing, she considers them kings, extraordinary people. Tradução da
autora. BEAUVOIR, S. - Entrevista concedida a Alice Jardine. Signs. J. of Women, Culture and Society, 5,
1979, apud MORAES, Maria Lygia Quartim de. Avatares da identidade feminina. Trabalho apresentado ao
GT ―Famìlia Sociedade‖ na XII Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências
Sociais ANPOCS Água de São Pedro, SP, outubro de 88.
Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/index.php/perspectivas/article/view/1909/1558. Acessado em
04/03/2010.
85
a ajuda mais forte para preencher minha visão de como atingir minha
feminilidade.
164
A estética do sonho passou a invadir o estilo literário das memórias de Nin. A
autora adota uma narrativa semelhante aos sonhos como um artifício para exprimir seus
sentimentos. Mas o plano de usar os sonhos na escrita foi muito além da tentativa de criar
uma infância e adolescência feliz, para assim construir um eu ideal feminino na sua escrita
íntima.
Assim, encontra-se em suas memórias, uma construção de imagens que se
confundem entre si, cada vez que a autora tenta descrever a sua percepção e seus
sentimentos.
Eu morri e renasci de novo pela manhã, quando o sol alcançou a parede de
frente a minha janela. O céu azul e o sol na parede. Fiquei sentindo o
céu, e eu mesma no céu. Sentindo o sol, e eu mesma no sol, e
abandonando a mim mesma na imensidão e em Deus. Deus penetrou todo
meu corpo. Frio e febre e luz, uma iluminação, uma visita, por todo meu
corpo, o tremor da presença. A luz e o céu no corpo, Deus no corpo e eu
me unindo a Deus. Eu me uni a Deus. Sem imagem. Eu senti espaço,
pureza, imensidão, uma profunda e inelutável comunhão. (...) Eu não
precisava de nenhum homem ou padre para me comunicar com Ele. Ao
viver minha vida, minha paixão, minha criação até o limite, eu entrei em
comunhão com o céu, com a luz e com Deus. Eu acreditei na
transubstanciação da carne e do sangue. Eu cheguei ao infinito através da
carne e do sangue. Através da carne, do sangue e do amor eu estava
completa, em Deus. Eu não posso dizer mais nada.Não nada mais a
dizer. As maiores comunhões acontecem de forma simples. Mas a partir
daquele momento, eu senti minha conexão com Deus. (...) Eternidade. Eu
nasci. Eu nasci mulher.
165
164
I have dreams, dreams which are finer than anything that I ever done or said, and I do not want them to die.
It is my better self, the self of my ideas and resolutions struggling against the dreamless self with its fault and
defilings, and they struggle in your pages (...) You are the strongest help I have to fulfill my vision to achieve
womanhood. (Tradução da autora) NIN, Anaïs. The early diary of Anaïs Nin, Vol. 2 (1920-1923). Orlando,
Harcourt Brace and Company, 1982. p.165.
165
I died and was Born again in the morning, when the sun came to the wall in front of my window. A blue
sky, and the sun on the wall. I lay there feeling the sky, and myself one with the sky , feeling the sun, and
myself on with the sun, and abandoning myself o immensity and to God. God penetrated my whole body.
Cold and fever and light, an illumination, a visitation, through the whole body, the shiver of a presence. The
light and the sky in the body, God in the body, and I melting into God. I melted into god. No image. I felt
space, gold, ecstasy, immensity, a profound communion. I needed no man or priest to communicate with Him.
By living my life, my passions, my creation to the limit, I communed with the sky, the light and with God. I
believed in the transubstantion of blood and flesh. I have come upon the infinite with flesh and blood and love.
I was in the whole, in God. I cannot say more. There‘s nothing more to say. The greatest communion comes
so simply. But from that moment I felt my connection to God. Eternity. I was born. I was born woman.
Tradução da autora. NIN, 1992, p.384.
86
O fragmento acima foi escrito um dia depois de um aborto sofrido pela autora.
A descrição de Nin de um momento de dor e renascimento demonstra a sua percepção sobre
uma nova vida, após recente perda. Ou melhor, é uma reconciliação com Deus e com a
própria feminilidade, que foi ferida com a fatalidade. A primeira vista, o trecho parece
tratar-se apenas de um simples devaneio, imagens e sentimentos sem sentido. Porém, as
palavras podem ser melhor compreendidas se for ressaltado o fato de que, para Nin, a
feminilidade estava diretamente ligada ao irracional. Só assim se justifica a ideia de que,
nesse momento de dor, o sonho será capaz de exprimir os sentimentos, pois momentos
em que a realidade não se mostra adequada de fazer uma descrição precisa das agudezas da
vida.
Considerando a máxima freudiana de que o sonho é a chave para evidenciar os
modos de atuação psíquica do inconsciente, a prática de Nin em seus escritos, na medida em
que ela traz para as palavras a estética do sonho, é uma clara tentativa de criar um
inconsciente artificial através da arte. Afinal, se para ela a feminilidade era intrinsecamente
atrelada ao irracional e aos mais primitivos níveis do consciente, é natural que a sua escrita
crie um universo onírico, para ter uma feminilidade bem representada.
Dessa forma, é de se esperar que toda sua escrita diarística seja permeada por
esses devaneios oníricos, mesmo quando o tema central não é a feminilidade. Para
descrever desde discussões literárias até encontros românticos, ela sempre trazia para sua
realidade descrições que se assemelham ao fantástico e ao onírico.
Nosso quarto. Cheiro de Alcatrão. Nós nos beijamos, rimos, maravilha,
beijar, rir, maravilha. Finalmente, fora do mundo. Finalmente pisamos
para fora da terra, fora de Paris, cafés, longe dos amigos, maridos e
esposas, das ruas, casas. Nós saímos do mundo para a água. Estamos no
navio de nossos sonhos. Sozinhos, sombras grandes por todo lado, vigas
da Idade Média, a água batendo na popa, o quartinho escuro na popa,
como uma câmara de tortura, com pequenas janelas gradeadas.
166
Dentro dessa escrita onírica de Nin, não espaço para uma realidade nua e
crua. Simone de Beauvoir tem razão quando afirma que ela se preocupa mais em ser
feminina do que ser feminista. Ela preferiu escrever em suas memórias uma mulher que
166
Our bedroom. Smell of tar. We kiss, we laugh, marvel, kiss, laugh, marvel. At last out of the world. At last
we stepped out of the earth, out of Paris, cafés, away from friends, husbands and wives, from streets, houses.
the Dôme, Villa Seraut. We stepped out of the world, into water. We are on the ship of our dreams. Alone, big
shadows all around, beams of the Middle Ages, water slapping at the stern, the little dark room at the stern,
like a torture chamber, with tiny barred windows. Tradução da autora. NIN, 1995, p.308.
87
escolheu ficar no mundo dos sonhos a enfrentar a realidade. Mas, antes de enxergar
somente através de uma visão pragmática, é importante ressaltar que a autora escolheu usar
o sonho como resistência, e não somente como um artifício escapista ou alienante. A autora
decidiu enfrentar a realidade com o sonho.
3.4 Alimentando diferenças: múltiplas fantasias do feminino
Quando Anaïs Nin oferece uma literatura onírica para falar de sua realidade, ela
o faz para construir uma ―escrita feminina‖, a partir da compreensão de que a mulher
deveria buscar uma construção textual própria. Para isso, ela busca enfatizar sua opinião de
que, por um condicionamento histórico, há uma clara diferença entre as naturezas masculina
e feminina. Isso, inclusive, justifica a adoção do tom de sonhos das suas memórias, pois
para ela a mulher está mais próxima do nível do inconsciente que o homem. É isso que ela
defendeu tanto na sua escrita memorialística, como também nas décadas de 1960 e 1970,
quando a publicação dos seus diários já havia a tornado célebre e ao mesmo tempo um alvo
de críticas para setores do feminismo.
Após se tornar conhecida por seus diários, Nin passou a conceder entrevistas e
escrever ensaios nos quais defendia veementemente a inclusão da mulher como parte
importante da literatura mundial. Em uma entrevista concedida em 1972 ela afirma que
Se "diferenças" (entre homem e mulher) significa diferenças de qualidade,
ou capacidades, não diferenças. A mulher é igualmente capaz
na expressão artística, intelectual, psicológica ou emocional. Ela
pode fazer tudo isso. Mas eu acredito que ela tenha sofrido um longo
processo de condicionamento. Às vezes, por exemplo, quando uma planta
é impedida de crescer em uma determinada direção, desenvolve
qualidades diferentes. Como a mulher sempre esteve ligada a vida privada,
através do papel que ela teve que cumprir por ter filhos. Acho que isso que
adicionou uma qualidade que ela perde. Quando o homem racionalizou a
ponto de deixar espaçar a realidade humana, sinto que a mulher foi
mantida perto esta realidade. E a psicanálise revelou que, se homens e
mulheres realmente têm suas raízes no que eu chamo de inconsciente, isto
é, nesta vida escondida coletivo do qual deriva a todas as nossas
inspirações, os nossos sonhos e as coisas que não sabemos sobre nós
mesmos, esta é a mesma no homem e na mulher. Eu acho que a
mulher manteve-se perto dele (do inconsciente) e não entrou tanto no
processo de racionalização (...). Veja, as mulheres têm uma maior
simbiose entre corpo, sentimento, os sentidos. E eu espero que essa
88
diferença seja um elemento que ela vai trazer para a lei ou para crítica, ou
a qualquer um dos homens atividades.
167
Mais uma vez Nin enfatiza de forma positiva o fato de a mulher estar mais
ligada ao mundo privado. Para ela, é isso que a permite ser mais próxima dos diversos
níveis do inconsciente, longe de uma racionalização que cegava o homem.
História, assim como um holofote, atinge aquilo que quer atingir, e muito
freqüentemente, deixa a mulher de lado. Todos nós conhecemos Dylan
Thomas. Muito poucos de nós conhecemos Caitlin Thomas, que depois da
morte do marido escreveu um livro que é poesia pura e às vezes supera a
obra de Dylan na força, na beleza primitiva e num real despertar do
sentimento, mas ela se sentia tão intimidada pelo talento de Dylan Thomas
que nunca achou que pudesse escrever até a morte dele.
168
Mesmo quando está longe da literatura memorialística, Nin ainda desperta
interpretações múltiplas. Em plena efervescência do movimento feminista, ela continuou
ligando a mulher ao biológico e ao privado, acentuando um pensamento no qual a luta pelos
direitos das mulheres queria erradicar.
Dessa forma, Nin incorporou diferentes tipos de feminilidade, numa fantasia
que pode levar seus leitores e críticos a tentarem compreendê-la de forma unidimensional.
Assim, pode-se afirmar que sua escrita torna-se espelho daquilo que os leitores querem
167
If by "differences" we mean differences in quality, or in capabilities, there are no differences at all. Woman
is equally capable of intellectual, of psychological, or emotional art expression. She can do all that. But I do
believe that she has undergone very long process of conditioning. Sometimes, for example, when a plant is
prevented from growing in a certain direction it develops different qualities. Since woman was really thrust
very much into the personal work through the roles that she had to play by having children, being the wife,
most of the time her closeness to the personal world, I think added some quality to her which she didn't lose.
When man rationalized his thinking to the point really of getting completely away from human reality, I feel
that woman kept closer to this human reality. And psychoanalysis did reveal that if both men and women
really take their roots in which I call the unconscious, that is, in this hidden collective life from which springs
all our inspirations, our dreams and the things we do not know about ourselves, this is the same in man and in
women. I think woman remained closer to it and did not indulge so much in the process of rationalization, of
dealing with things directly through the mind rather than taking the whole. You see, women have a greater
synthesis between body, feeling, the senses, and her thinking is much better synthesized. And I hope that this
a difference of roots is an element that she will bring to law, or to criticism, or to any of the male activities.
Tradução da autora. Trecho extraído de uma entrevista concedida a jornalista Dolores Holmes em 1972.
Disponível em <http://www.aaa.si.edu/collections/oralhistories/transcripts/nin72.htm>. Acessado em:
13/04/2008
168
History, much like the spotlight, has hit whatever it wanted to hit, and very often it missed woman. We all
know about Dylan Thomas. Very few of us know about Caitlin Thomas, who after his husband‘s death wrote
a book which is a poem in itself and sometimes surpasses his own in strength, in primitive beauty, in a real
waking of feeling. But she was so overwhelmed by the talent of Dylan Thomas that she never thought
anything of her writing until he died. NIN, 1993 p. 15.
89
encontrar, e isso possibilita interpretações que vão de um extremo ao outro: da mulher
libertária à alienada que escapa do mundo em seus sonhos.
Essas reações polarizadas apenas diminuem o trabalho da autora em
classificações simplórias. É preciso enxergar a vida e obra de Anaïs Nin como uma escrita
multifacetada, um labirinto construído para prender seus leitores em um mundo onírico, no
qual a feminilidade prepondera.
A arte de Nin é feita de sangue e carne. ―A arte da mulher deve ser aquilo que
nasce da carne do útero e não das células da mente. Ela deve ser, na sua arte, o verdadeiro
mito em movimento‖.
169
Anárquica, ela convida as mulheres a buscarem conhecer e aceitar
seus desejos, fugindo de uma racionalidade cega. É assim que ela explica a essência da sua
contribuição para os movimentos feministas:
A natureza da minha contribuição para o Movimento da Libertação
das mulheres é psicológica e não política. Eu recebo milhares de
cartas de mulheres que se libertaram através da leitura dos meus
diários, que são um longo estudo dos obstáculos psicológicos que
impedem as mulheres de evoluírem e florescerem.
No entanto, é preciso discordar de Nin, quando ela afirma que sua contribuição
não é política. Ao trazer para o público seus sonhos, desejos e medos, e fazer um convite
para que as mulheres possam examinar seus próprios anseios, ela evidencia questões de
fundamental importância no que concerne à libertação da mulher. Tal atitude, logo,
constitui-se como um instrumento de poder.
Ao lamentar o fato de suas ―tragédias e lágrimas‖ não serem levadas a sério pela
política de sua época, Nin questiona a própria política em si. Questionamentos como esses,
podem ser vistos como suscitadores da amplificação do que se entende da política.
O desejo de Nin para escapar da racionalidade política, resultou no intuito de
construir a sua ―arte feminina‖. O sonho incorporado na sua escrita evidencia diversos
níveis de consciente na medida em que desvenda a própria vida. Sua obra íntima pode ser
encarada como um convite para um sonho coletivo. Uma quimera em que sua luz feminina
ilumina um mundo tomado pela escuridão do racionalismo, e que sua maior qualidade é
169
The art of woman must be this that is born out o a flesh. Womb and not from the cells of the mind. She
must be in her art, the very myth in motion. Tradução da autora. NIN, 1996, p. 128.
90
mostrar ao mundo público novas possibilidades para a vida, o que, consequentemente,
viabiliza uma diversidade de leituras possíveis.
91
Considerações Finais
Diante dos caminhos percorridos na pesquisa, descobrimos em Anaïs Nin uma
escrita multifacetada que permite fazer diversas interpretações, através das fantasias de
feminilidade criadas em sua obra. E foram essas diversas visões, permitidas pela escrita
onírica da autora, que contribuíram para a construção da mulher mítica incorporada por sua
figura. Uma mulher que trouxe para si a antiga crença de que o feminino é ligado à
imprevisibilidade da natureza, e, portanto, ambíguo e contraditório; misterioso e inesperado,
sintetizando em sua natureza o bem e o mal, a virtude e a degradação.
Ao que parece, Nin apenas repetiu velhos preconceitos já existentes em torno da
figura feminina.
170
Logo, como pode a autora representar um papel importante para o
movimento de liberação da mulher?
A resposta a essa perguntar pôde ser compreendida ao longo deste trabalho:
para Nin, a imprevisibilidade feminina é uma arma contra o mundo da racionalidade
masculina. A partir dessa compreensão, a mulher é vista como parte da natureza. Portanto,
estaria mais próxima do nìvel do inconsciente, e, consequentemente, da ―verdade‖ sobre si
mesma.
Mas, a grande contribuição de Nin para o movimento feminista parece ser a
flexibilização do conceito de verdade. Muitos
171
criticam a escritora, quando afirmam que
ela mentia em seus relatos íntimos. Contudo, o que se observou foi que a dimensão criativa
nos seus diários não consiste simplesmente na invenção de uma outra realidade, mas, na
capacidade de transformar os momentos triviais em sensações sublimes. O que não
necessariamente torna os escritos diarísticos textos puramente ficcionais.
Olhar as ―mentiras‖ da autora por outro prisma, possibilitou apreender que, em
sua obra íntima, ela nunca escondeu a intenção de criar um novo mundo. Isso pode ser
vislumbrado inclusive na forma poética pela qual escreve suas memórias, pois é nos
devaneios oníricos que sua obra ganha força.
170
ENGEL, Magali. Psiquiatria e Feminilidade. In. DEL PRIORE, Mary (org). História das mulheres no
Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2006
171
CF. MINDLY, Betty. Revisitando Anaïs Nin. REVISTA USP, São Paulo, n.52, p. 171-175,
dezembro/fevereiro 2001-2002. Disponível em: <http://www.usp.br/revistausp/52/18-betty.pdf >. Acessado
em: 20/03/2010.
92
Pode-se enxergar as memórias da autora como uma extensa licença poética,
expressão que cai como uma luva para descrever a sua literatura íntima. Ironicamente, a
busca pela vida em Nin, também se traduz numa busca pela poesia. Para ela, inventar-se por
meio da poesia é questionar os valores racionais masculinos, suas verdades, teorias, e
regras. Pois, é a sua capacidade de criar a própria história que permite tirar o melhor do que
a vida pode proporcionar.
Mas, Nin foi além da necessidade de usar a arte para transformar o trivial em
um momento eterno. Influenciada pelo modernismo, ela flertou com o princípio de
autonomia na arte. Por isso, buscou tanto nos seus escritos, quanto no seu comportamento,
uma postura de desafio à ordem percebida, o que implica numa postura de constante
ruptura. E sua escolha de ruptura no âmbito artístico, suscitou a criação de uma realidade,
que diferia do mundo vivido por ela.
Se na realidade de Nin não havia espaço para o político, essa nova realidade
também lhe permitiu adotar um comportamento que pode ser considerado transgressor, à
medida que ela propõe uma moralidade que nem sempre corresponde aos padrões impostos
de sua época.
Quanto ao silêncio político, ela mesma o justificou diversas vezes quando
demonstrava crer que no momento em que a arte se misturasse à política, ela perderia seu
valor mítico. A maioria das críticas de Nin à política era relacionada à sua dimensão
racional e impessoal. Assim, enxergando a política como uma invenção do mundo
masculino, ela preferiu se deter aos sentimentos e à intimidade, os quais foram percebidos
como espaços femininos. Pode-se concluir que o desprezo da autora pela dimensão política
é uma reação à indiferença dos espaços públicos em relação às questões privadas. Dessa
forma, ela considera o público e o privado como instâncias antagônicas.
A partir dessa compreensão, para Nin diário passa a ser um espaço de
resistência contra um mundo masculino (político) no qual ela não acreditava; bem como de
elaboração da sua ideia de feminilidade. Ou seja, acaba funcionando como um espaço de
personificação do feminino. Se ela conseguia ter uma escrita natural é porque para ela, a
feminilidade estava diretamente ligada à criação, à natureza e ao místico. Dessa forma,
opunha feminino e masculino, como criação e destruição.
Ao relacionar suas memórias a uma resistência, Nin, mais uma vez, colocou em
foco a (falta de) diálogo entre a sua escrita íntima e o seu tempo. O que se nos seus
diários é exatamente um mundo de contestação, um mundo contra uma política de
93
generalizações, uma voz dissonante dos ideais racionais da guerra e do materialismo. Por
isso, para definir o que a escrita de Nin diz sobre sua época, considerou-se ser preciso
analisar aquilo que a autora não representava: a racionalidade.
Contudo, se em Nin, a ―luta contra a polìtica‖ esdiretamente ligada à defesa
da feminilidade, isso não significa que a autora desejasse que as mulheres continuassem
trancadas em suas vidas privadas. Pelo contrario. Ela propôs a criação de uma arte feminina.
Uma arte feita de ―sangue e carne‖, ou seja, uma obra que trouxesse ao olhar público as
tragédias e lágrimas das mulheres. Para isso, era preciso se criar uma literatura que buscasse
expor diversos graus da psique feminina. Logo, o fato de Nin silenciar as questões políticas,
na maior parte do tempo, é uma escolha pessoal para que o mundo do sonhos seja
evidenciado, como uma forma de empoderamento e/ou de resistência à realidade. Por outro
lado, não se pode esquecer que a intenção de publicar seus diários, é uma forma de abrir o
espaço público para as questões femininas. Ou seja, é uma tentativa de transformação do
mundo público, conseqüentemente, do âmbito político.
Neste sentido, é preciso atentar para o desejo de Nin de escapar do
racionalismo, criando para si uma figura feminina mítica e imprevisível. Também para o
fato de que, ao mesmo tempo em que a autora naturaliza estereótipos atribuídos à mulher,
ela se dá a liberdade da loucura se permitindo escapar das regras do mundo masculino.
Isso torna possível leituras diversificadas de sua obra: a exemplo da
compreensão de que a autora é omissa politicamente e usa sua arte apenas como
instrumento de prática hedonista, na medida em que sublinha os próprios desejos; ou da
ideia de que a sua escrita memorialística é um elemento de subversão, por se opor à
realidade do mundo masculino. De certa forma, essas duas visões simbolizam vários dos
antagonismos encontrados na obra da autora, como: verdade e ficção; passividade e
subversão; política e arte.
Por fim, pode se afirmar que as descontinuidades e os deslocamentos
encontrados nos escritos de Nin, pedem uma análise que fuja desse dualismo antagônico,
que empobrece as apropriações da sua escrita. Para embarcar no labirinto onírico tecido
por seus fios de memória, é preciso se livrar dessas noções racionais e instrumentais da
escrita de si. assim, pode-se aproveitar todas as possibilidades da jornada pela qual as
memórias da autora nos leva.
O estudo do mundo criado por Nin também levanta importantes
problematizações que podem contribuir para o debate historiográfico. Diante da assumida
94
invenção da memória da autora, o impasse inicial desta pesquisa, deu-se com relação ao que
seus escritos podem dizer sobre o seu tempo, quando seus anseios artísticos implicam na
criação de uma nova realidade. Esse pretenso impasse, na verdade, significou uma adição
de novas possibilidades de pesquisa, pois a partir dessa premissa pode-se tentar entender de
que modo Nin constrói, inventa e propõe novas formas de sensibilidades na escrita da sua
verdade. Uma verdade subjetiva que admite censuras e invenções para se construir como
uma verdade individual, capaz de transformar atividades corriqueiras em eventos
completos, infinitos por si.
Assim, como este trabalho não pretende apresentar conclusões fechadas acerca
da obra memorialística como fonte para pesquisa histórica, esperamos através dessas
considerações, ter instigado o debate relacionado à escrita de si, com o intuito de fornecer
novas possibilidades analíticas.
95
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