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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ - UNIOESTE
CENTRO DE EDUCAÇÃO COMUNICAÇÃO E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS
NÍVEL DE MESTRADO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E SOCIEDADE
REVISITANDO HISTÓRIAS GUARDADAS NO TEMPO: UM OLHAR
BAKHTINIANO PARA O GÊNERO DISCURSIVO
CARTA DE AMOR
CASCAVEL – PR.
2010
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ii
LUCIANE WATTHIER
REVISITANDO HISTÓRIAS GUARDADAS NO TEMPO: UM OLHAR
BAKHTINIANO PARA O GÊNERO DISCURSIVO
CARTA DE AMOR
Dissertação apresentada à Universidade
Estadual do Oeste do Paraná UNIOESTE,
para obtenção do título de Mestre em Letras,
junto ao Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Letras, área de concentração
Linguagem e Sociedade. Linha de Pesquisa:
Linguagem e Ensino.
Orientadora: Profa. Dra. Terezinha da
Conceição Costa-Hübes
Cascavel – PR
2010
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iii
Ficha catalográfica: Sistema de Bibliotecas da Unioeste (Sandra Regina
Mendonça CRB – 9/1090)
Watthier, Luciane
W346r Revisitando histórias guardadas no tempo: um olhar Bakhtiniano
para o gênero discursivo carta de amor. / Rosana Cristina Biral
Leme. – Cascavel, 2010.
130 f.
Orientadora: Profa. Dra. Terezinha da Conceição Costa-Hübes
Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual do Oeste do
Paraná – UNIOESTE, 2010.
1. Linguística Textual - Cartas. 2. Cartas de amor - Estilo. 3.
Gêneros Discursivos. I. Costa-Hübes, Terezinha da Conceição. II.
Universidade Estadual do Oeste do Paraná. III. Título.
CDD –B869.6
iv
REVISITANDO HISTÓRIAS GUARDADAS NO TEMPO: UM OLHAR
BAKHTINIANO PARA O GÊNERO DISCURSIVO
CARTA DE AMOR
Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do Título de Mestre em
Letras e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Letras, nível de mestrado da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
UNIOESTE, em 12 de março de 2010.
Profa. Dra. Aparecida Feola Sella (UNIOESTE)
Coordenadora
Apresentada à Comissão Examinadora, integrada pelos Professores:
Profa. Dra. Alba Maria Perfeito (UEL)
Membro Efetivo (convidado)
Profa. Dra. Aparecida de Jesus Ferreira (UNIOESTE)
Membro Efetivo
Profa. Dra. Clarice von Borstel (UNIOESTE)
Membro Efetivo
Profa. Dra. Terezinha da Conceição Costa Hübes (UNIOESTE)
Orientadora
Cascavel, 12 de março de 2010.
v
Aos meus amados pais, Ido Alberto
Watthier e Sonia Otilia Stülpen Watthier
- meus primeiros mestres, modelos de
perseverança, dedicação, parceria e
paciência - dedico este trabalho e os
frutos que ele me trará.
vi
AGRADECIMENTOS
Toda nova conquista humana supõe e pressupõe apoio. Sem a contribuição de
pessoas que apostam e acreditam em meu potencial, a conclusão do curso de mestrado
e a realização desta dissertação não teriam sido possíveis, eu não conseguiria enfrentar
todos os obstáculos que surgiram durante estes dois anos.
Agradeço, pois, a Deus, pelo potencial que me foi dado, permitindo a conquista
de uma nova etapa em minha vida acadêmica. Pelo dom da paciência, da dedicação e
da perseverança e por ter atendido meus pedidos e minhas súplicas nos momentos mais
difíceis do mestrado.
Agradeço, também, às pessoas a seguir citadas:
A Armando Watthier (in memorian). Obrigada, tio, por ter guardado as
maravilhosas cartas recebidas de suas namoradas. Sem suas histórias de vida, este
trabalho não existiria. Saudades de seus ensinamentos, de você...
A Ido Alberto Watthier e Sonia Otilia Stülpen Watthier: Pai e Mãe, obrigada
pelo apoio, pela confiança a mim dedicada, por me ensinarem a perseverança, a
dedicação e a paciência, qualidades indispensáveis para a realização de um trabalho
como este. Obrigada pelos depoimentos que me ajudaram na reconstrução da história
aqui contada. Obrigada pelo ombro, onde muitas vezes chorei, buscando consolo e
respostas para as dificuldades que surgiram durante todo o processo. Obrigada por me
segurarem quando eu parecia querer desanimar e cair no meio do caminho. Vocês são
meus EXEMPLOS de vida, de união e de amor, exemplos que levarei e buscarei por
toda a vida, sempre mais e mais...
A Cristiano Borges Rocha, meu namorado, companheiro e amigo. Agradeço-
lhe, amor, por ser meu braço firme, por ouvir minhas angústias e, ainda, me animar a
seguir em frente, a não desistir. Por chegar a minha casa e me tirar da frente do
computador e dos livros quando eu mais precisava de descanso, distração e conforto.
Agradeço-lhe, sobretudo, pela compreensão de minhas dificuldades e por me deixar
estudar em pleno sábado à noite enquanto você servia o chimarrão, nosso companheiro
diário, e preparava um de seus jantares deliciosos.
A Elisangela Watthier e Izabel Cristina Watthier, minhas manas amadas, e
Robson Vieira Alves Denti, meu cunhado. Obrigada por acreditarem em mim, por me
fazerem buscar respostas que deram uma qualidade maior ao trabalho. Obrigada pela
leitura do texto, pelas críticas, pelos elogios. Obrigada pelos momentos de distração e
de diversão nas horas de maior cansaço.
A Vinícius Lorence, meu cunhado. Agradeço-lhe, maninho, por me auxiliar na
montagem do título desta dissertação e pelos demais momentos em que deixara sua
esposa de lado, sentava-se ao meu lado e me presenteava com ideias maravilhosas para
a escrita do texto. Ademais, não posso negar que sua vontade louca de estudar e suas
brigas comigo foram um santo remédio para meus momentos de desânimo.
A Ilga Maria Watthier. Tia querida, agradeço-lhe pelas incansáveis contações
de histórias de vida, as quais me permitiram informações indispensáveis para este
trabalho. Por ouvir meus desabafos e as infindáveis explicações sobre a pesquisa. Por
torcer e rezar por mim quando sabia que eu me preparava para enfrentar duros
obstáculos.
A Judite Maria de Moura e Albino Soares de Moura, meus professores do
primário. A este casal maravilhoso e abençoado, agradeço pelos ensinamentos, pelo
incentivo e pelo amor que tinham por seus alunos. Por serem amigos verdadeiros, parte
de minha família, e pelas noites e tardes intermináveis de jogos de canastra,
necessários para enfrentar uma semana cheia de leituras.
vii
A Roberto e Loide, meus titios escolhidos. Obrigada pelas orações, as quais eu
solicitei inúmeras vezes. Obrigada por me apoiarem, acreditarem em minha
capacidade e torcerem por mim. Loide, minha futura assistente social, considero-lhe
um exemplo de coragem e dedicação por enfrentar, com tanta garra, uma faculdade
depois de 20 anos distante da escola.
A Rosiane Moreira da Silva Swiderski. Mana (de mestrado), nossas conversas
pelo MSN foram e continuam sendo importantíssimas para mim. Agradeço-lhe,
portanto, por não brigar comigo nos momentos em que você estava escrevendo sua
monografia e eu lhe interrompia para tirar alguma dúvida ou para que você lesse
trechos desta dissertação. Pela paciência, pelos conselhos e pelo interesse demonstrado
enquanto eu falava sobre as histórias aqui relatadas. Por nossa amizade, pelos
momentos de lazer e passeios por cidades desconhecidas. Por tudo o que aprendi
contigo.
A docente Terezinha da Conceição Costa Hübes (orientadora). Obrigada por,
desde a graduação, ser minha segunda mãe. Pelo amor, facilmente perceptível, que tem
à profissão, pela paciência e carinho com que trata suas orientandas e se dedica às
inúmeras leituras de um mesmo trabalho. Obrigada por ter aceitado o desafio de
orientar-me quando já se passava mais de um ano do início da pesquisa.
A docente Aparecida de Jesus Ferreira. Obrigada por continuar sempre me
acompanhando desde a época da graduação em projetos de extensão e de pesquisa.
Foram as suas orientações que me ajudaram a crescer e colaboraram com o meu
amadurecimento acadêmico. Ademais, obrigada pela participação em minha banca de
defesa e pelas críticas, todas construtivas, realizadas.
A docente Alba Maria Perfeito (UEL). Agradeço-lhe pela participação em
minha banca de defesa, pelo tempo dedicado à leitura de meu texto de qualificação e,
também, da dissertação completa. As críticas por você realizadas foram indispensáveis
para o crescimento deste trabalho e, também, de meu conhecimento teórico e prático.
As docentes Clarice Nadir Von Borstel e Eliane Brenneisen. Agradeço-lhes por
terem me orientado no início do mestrado e da realização desta pesquisa. Meus
primeiros passos e ideias para conquistar esta etapa são devidos a vocês.
Aos demais docentes responsáveis pelo colegiado de Letras (mestrado e
graduação) da Universidade estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Parabenizo-lhes
e, também, agradeço, pela dedicação com que batalham na busca de uma maior
qualidade de ensino.
A todos meus parentes, amigos e conhecidos que, de forma direta ou indireta,
colaboraram para a realização deste trabalho. Obrigada pelo auxílio na coleta do
corpus de pesquisa, por partilharem parte de sua vida pessoal por meio das cartas que
me foram cedidas.
A Fundação Araucária agradeço pelo financiamento desta pesquisa,
possibilitando-me, além da compra de livros, minha participação em congressos com a
publicação de trabalhos. Sem este auxílio, não teria sido possível tanta dedicação na
escrita desta dissertação.
viii
“Aproveitemos o presente para vivermos pelo nosso amor, sem perguntar o que o
futuro trouxer. E, principalmente, não amarguremos a nossa vida com desconfianças
para que, seu eu ou ti tiver de enfeitar o túmulo de seu amor, não o faça com lágrimas
de remorsos ou arrependimento pelo mal causado” (Carta de amor escrita por Gerda a
Armando em 15 de novembro de 1953).
ix
RESUMO
WATTHIER, Luciane. Revisitando histórias guardadas no tempo: um olhar
bakhtiniano para o gênero discursivo carta de amor. 2010. 120 páginas. Dissertação
(Mestrado em Letras) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Estadual
do Oeste do Paraná - UNIOESTE, Cascavel, 2009.
Orientadora: Prof. Dra. Terezinha da Conceição Costa-Hübes
Defesa: 12 de março de 2010
Apesar de a carta de amor/pessoal/familiar ser, atualmente, pouco utilizada como forma
de interação verbal entre pessoas parentes e/ou amigas que se encontram distantes, trata-
se de um gênero discursivo que se constitui como um verdadeiro documento, por conter
registros históricos, recuperando ideologias constituintes da cultura de épocas passadas,
bem como de do estilo das pessoas que dela fizeram parte, pois a linguagem, sendo de
cunho eminentemente social, é um gênero responsável por guardar essas características.
Partindo dessa premissa, este trabalho foi elaborado com o objetivo de realizar um
estudo da linguagem sobre o gênero discursivo carta de amor, compreendendo suas
características definidoras, tais como, contexto de produção, conteúdo temático,
estrutura composicional e estilo, em consonância com suas condições de produção.
Pautados na ordem metodológica para estudos da língua sugerida por
Bakhtin/Volochinov (2004), ordem que contempla esses três elementos composicionais
dos gêneros discursivos, analisamos quatro cartas de amor escritas nas décadas de 1950
e 1960. Tal abordagem permitiu-nos destacar, além das características estruturais e
funcionais do gênero em questão, de aspectos culturais da época em que esses textos
foram produzidos e, também, da identidade das pessoas envolvidas na situação
enunciativa. Recuperamos, sob tal enfoque, a história de uma paixão quase apagada por
um amor não correspondido e pelo tempo que foi capaz de amarelar, mas o destruir,
os papéis das cartas que o revelam. Para o desenvolvimento deste estudo, os principais
referenciais teóricos foram, além de publicações de Bakhtin (1988, 2000, 2002);
Bakhtin/Volochinov (2004) e de seu círculo (Tchougounnikov (2009); Faraco (2009);
Zandwais (2009); Miotello (2008), entre outros), trabalhos que versam sobre cultura,
identidade, gêneros discursivos e cartas de amor/familiares/pessoais. Concluímos,
então, que um estudo aprofundado da língua, contemplando o contexto de produção, o
conteúdo temático, a construção composicional e o estilo de um enunciado, permite a
compreensão aprofundada de um gênero discursivo. A carta de amor é, pois, um modelo
de enunciado que permite uma liberdade de expressão, bem uma variação quanto ao
nível de formalidade da linguagem e à organização de seus elementos composicionais.
Além disso, a carta de amor, quando levada para a sala de aula, possibilita um estudo da
língua de forma contextualizada e significativa, propiciando, ainda, uma discussão
linguística e cultural.
Palavras-chave: Gêneros discursivos. Carta de amor. Contexto de produção. Conteúdo
temático. Construção composicional. Estilo.
x
WATTHIER, Luciane. Revisiting stories saved in time: a Bakhtinian look of
discursive genre love letter. 2010. 120 pages. Dissertation (Masters in Language) -
Post-Graduation in Language, State University of West Paraná - Cascavel, 2009.
Advisor: Prof. Dr. Terezinha da Conceição Costa-Hübes
Defense: March 12, 2010
Although the love/personal/family letter has not being of much use nowadays as a form
of verbal interaction between people and relatives or friends who are distant, this
discursive genre is constituted as a real document, by containing historical records,
retrieving items of cultural ideologies of older times, as well as the style of the people
who were part of it because the language, as being eminently social, is a genre
responsible for keeping these characteristics. Starting from this premise, this work was
made with the intention to conduct a language study on the discursive genre love letter,
including its defining characteristics, such as production context, thematic content,
compositional structure and its style, in line with their conditions of production. Lined-
up in methodological order for language studies suggested by Bakhtin/Volochinov
(2004), an order that includes these three compositional elements of discursive genres,
we analyzed four love letters written in the 1950s and 1960s decades. This approach
allowed us to highlight moreover the structural and functional characteristics of this
genre, of cultural aspects of time when these texts were produced and also the identity
of those involved in the enunciative situation. We recovered focused on the story of a
passion almost erased by an unrequited love and by the time that was able to yellow, but
not destroy, sheets of paper that revealed this love. To develop this study, the main
theoretical references were, in addition to Bakhtin’s publications (1988, 2000, 2002),
Bakhtin/Volochinov (2004) and his circle (Tchougounnikov (2009), Faraco (2009),
Zandwais (2009), Miotello (2008), among others), assays about culture, identity,
discursive genres and love/family/personal letters. We concluded that a detailed study of
language, covering the production context, the thematic content, compositional
construction and style of an statement allows us to a deeper understanding of a
discursive genre. The love letter is therefore a type of statement that allows a freedom of
speech and a change in the level of formality and organization of its compositional
elements. Moreover, the love letter, when brought to a classroom, allows a study of the
language in a contextualized and meaningful way, providing also a linguistic and
cultural discussion.
Keywords: Discursive genres. Love letter. Production context. Thematic content.
Compositional construction. Style.
xi
SUMÁRIO
LISTA DE QUADROS
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE ANEXOS
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 01
CAPÍTULO 1 - CORPUS DE PESQUISA E ESCOLHAS METODOLÓGICAS ...... 04
1.1 SELEÇÃO DO CORPUS ............................................................................................. 04
1.2 JUSTIFICATIVA DO CORPUS .................................................................................. 07
1.3 AS ESCOLHAS METODOLÓGICAS ........................................................................ 08
1.4 ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO ............................................................................ 12
CAPÍTULO 2 DO SIGNO SOCIAL E IDEOLÓGICO PARA O GÊNERO
DISCURSIVO CARTA .................................................................................................... 13
2.1 SIGNO SOCIAL E IDEOLÓGICO .............................................................................. 13
2.1.1 Cultura e identidade ................................................................................................... 20
2.2 ENUNCIADO/ENUNCIAÇÕES ................................................................................. 22
2.3 GÊNEROS DISCURSIVOS ......................................................................................... 26
2.3.1 Gêneros discursivos primários e secundários ............................................................ 31
2.4 PERCURSO METODOLÓGICO DE ANÁLISE DOS GÊNEROS ............................ 34
2.4.1 Contexto de produção ................................................................................................ 36
2.4.2 Conteúdo temático ..................................................................................................... 37
2.4.3 Estrutura composicional ............................................................................................ 38
2.4.4 Estilo .......................................................................................................................... 41
2.5 GÊNERO CARTA ........................................................................................................ 44
CAPÍTULO 3- DA CONTEXTUALIZAÇÃO PARA A ANÁLISE DO CORPUS .... 51
3.1 CONTEXTUALIZANDO O CORPUS ........................................................................ 51
3.1.1 O romance com Gerda (Ct.1) .................................................................................... 52
3.1.2 O romance com Neusa (Ct.2)..................................................................................... 59
3.1.3 O romance com Eny (Ct.3) ........................................................................................ 65
3.1.4 O romance com Auria (Ct.4) ..................................................................................... 67
3.2 CONTEÚDO TEMÁTICO: ALGUNS ÍNDICES SOCIAIS DE VALORES ............. 69
3.3 A DIMENSÃO COMPOSICIONAL DO GÊNERO DISCURSIVO CARTA
DE
AMOR ............................................................................................................................... 76
3.4 O ESTILO DAS CARTAS: DIMENSÕES VALORATIVAS E SUBJETIVAS ......... 83
3.5 GÊNERO DISCURSIVO CARTA DE AMOR APLICADO AO ENSINO ................ 100
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 105
REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS .............................................................................. 109
xii
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 – Relação das cartas coletadas ...................................................................... 04
QUADRO 2 – Relação das cartas constituintes do corpus de pesquisa ............................ 06
QUADRO 3 – Descrição do corpus de pesquisa ............................................................... 69
QUADRO 4 – Elementos contextuais do conteúdo temático no corpus ........................... 73
QUADRO 5 - Elementos composicionais das cartas de amor no corpus .......................... 77
QUADRO 6 – Sequências tipológicas nas cartas .............................................................. 82
QUADRO 7 – Principais marcas de oralidade presentes nas cartas .................................. 95
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – Esquema da Sequência ................................................................................. 102
FIGURA 2 – Esquema da Sequência Didática adaptada por Costa-Hübes ....................... 102
LISTA DE ANEXOS
ANEXOS ............................................................................................................................ 114
ANEXO 1 - Ct.1 ................................................................................................................ 115
ANEXO 2 - Cartão de Neusa a Armando .......................................................................... 118
ANEXO 3 - Ct.2 ................................................................................................................. 119
ANEXO 4 - Ct.3 ................................................................................................................. 125
ANEXO 5 - Ct.4 ................................................................................................................. 126
ANEXO 6- Foto de Armando ............................................................................................ 128
ANEXO 7 – Foto de Gerda ............................................................................................... 128
ANEXO 8 – Foto de Armando e Neusa ............................................................................. 129
ANEXO 9 – Foto de Armando e Auria .............................................................................. 129
ANEXO 10 – Foto da Rodoviária onde Armando trabalhou ............................................. 130
INTRODUÇÃO
O interesse pelo estudo de cartas de amor surgiu ao encontrarmos vários
desses textos guardados, com muito carinho, entre as coisas de nosso falecido tio
Armando. nhamos conhecimento de alguns detalhes de sua vida pessoal e sabíamos
que, entre seus 23 e 35 anos de idade, havia sido um homem “conquistador” de muitas
mulheres, gostando de vê-las implorando seu amor, quando, na realidade, não tinha o
interesse de manter um relacionamento sério.
Ao iniciarmos a leitura dos textos, percebemos que tal comportamento era
corriqueiro na vida de Armando, que, entre as cartas encontradas, estavam as de
quatro mulheres apaixonadas que lhe escreveram, dentre as quais duas revelavam um
grande sofrimento pelo amor não correspondido e as outras duas davam pistas de um
namoro que se iniciava.
Com o avançar das leituras, fomos compreendendo que, além daquilo que nos
foi contado, as cartas revelavam ainda mais detalhes, não só no que diz respeito à
identidade preservada de Armando, mas, também, dessas mulheres: Gerda, Neusa, Eny
e Auria, e a aspectos da cultura da época e do local em que foram escritas.
Iniciou-se, assim, a percepção de que os textos pertencentes ao gênero
discursivo carta de amor se constituem como verdadeiros documentos, por registrarem a
cultura de uma época, bem como a identidade reveladora do estilo de cada locutor
(remetente das cartas). A partir daí, o estudo começou a ser encaminhado com o
objetivo de refletirmos sobre a forma como isso acontecia e, também, sobre o porquê de
a linguagem ter tal característica. Dessa forma, partindo do princípio de que a
linguagem é de cunho eminentemente social, iniciamos algumas pesquisas teóricas para
embasarmos as análises, buscando a identificação e a compreensão dos aspectos
discursivos, culturais e identitários nas cartas de amor.
Se antes tínhamos algum conhecimento de que a linguagem é um veículo de
enunciação, concretizada em enunciados, os quais, por sua vez, são organizados em
diferentes gêneros discursivos, escolhidos a partir da situação comunicativa em que o
falante está inserido, desejávamos uma compreensão ainda mais aprofundada desse
processo, bem como das características próprias do gênero carta de amor.
Para isso, buscamos leituras que pudessem detalhar um pouco mais sobre os
textos pertencentes a esse gênero, relativas ao contexto de produção, ao conteúdo
temático, às características estruturais e, também, ao estilo, ou seja, à linguagem
2
utilizada nas cartas, sempre relacionando-as às condições de produção. A princípio,
havíamos percebido que, em muitos casos, as cartas reproduzem conversas espontâneas,
próprias de nosso dia a dia, isto é, refletem a forma como interagimos em muitas
situações comunicativas primárias, conforme expõe Bakhtin (2000).
Nesse sentido, Bazerman (2006) postula que as cartas de amor, pessoais e
familiares, estão abertamente ligadas às relações sociais e a escritores particulares,
tornando-se um material riquíssimo em particularidades de uma época e da cultura de
um povo. Além disso, expressam, em alguns casos, o mais natural da comunicação
humana, ou seja, uma situação comunicativa primária, repleta de marcas da oralidade e,
em outros casos, uma situação comunicativa secundária e mais próxima à escrita.
Daí o interesse em estudarmos a linguagem, a cultura e o estilo de épocas
passadas a partir de textos pertencentes ao gênero carta, compreendendo que a
linguagem representa aspectos da época em que é escrita, bem como da visão de mundo
do autor, acentuada na escrita de textos informais e, principalmente, nas narrativas
pessoais, as quais podem ser contadas por meio de cartas.
Ao aprofundarmos as leituras das/sobre publicações do círculo de Bakhtin e
passarmos pela qualificação para a presente pesquisa, encontramos a base teórica
norteadora da análise pretendida para tornar o estudo mais coeso. Partimos, então, do
reconhecimento dos três elementos que, segundo Bakhtin, constituem os gêneros
discursivos: “conteúdo temático, estilo e construção composicional” (BAKHTIN, 2000,
p. 279), já que, segundo recomendações do autor, em estudos da língua, é preciso
considerar esses elementos.
Baseado nisso, após a qualificação, o trabalho foi organizado, pois observamos
que o conteúdo temático permite a abordagem da cultura da época em que o texto foi
escrito; o estilo aborda a identidade das pessoas envolvidas no processo de interação e,
por fim; a construção composicional nos permite olhar para o gênero discursivo carta de
amor no referente à estrutura e função social.
Dessa forma, o presente trabalho tem como objetivo geral realizar um estudo
da linguagem sobre o gênero discursivo carta de amor, compreendendo as
características definidoras desse gênero, tais como contexto de produção, conteúdo
temático, estrutura composicional e estilo, o que nos permite destacar aspectos culturais
da época em que esses textos foram produzidos e, também, a identidade das pessoas
envolvidas nessa situação enunciativa.
3
Como objetivos específicos, buscamos: aprofundar a teoria dos gêneros
discursivos, na perspectiva de compreendê-los como elementos da interação verbal;
estudar o gênero carta de amor, identificando as marcas que o constituem como tal;
reconhecer, em cartas selecionadas, as marcas constitutivas do gênero, tais como:
contexto de produção, conteúdo temático, construção composicional e estilo linguístico,
a partir de uma análise que considere a linguagem como social, reveladora da cultura e
da identidade dos remetentes; destacar a importância de se considerar, no ensino, as
marcas constitutivas do gênero, tomando-o como objeto de estudo, análise e reflexão.
Para uma melhor exposição do trabalho, o texto encontra-se estruturado da
seguinte forma: no primeiro capítulo, apresentamos a linha metodológica que norteia a
pesquisa e a análise do corpus, o qual será descrito detalhadamente, retomando desde a
forma de coleta até o modo com a análise será procedida.
No segundo capítulo, apresentamos os aportes teóricos que embasaram o
estudo, refletindo sobre as concepções de signo ideológico, relacionando-o às ideologias
e, dessa forma, à cultura e à identidade. Refletimos, ainda, sobre enunciados,
enunciações e gêneros discursivos, abordando suas esferas primárias e secundárias e,
mais especificamente, o gênero carta de amor. Fechamos o capítulo com a apresentação
e a reflexão sobre a ordem metodológica sugerida por Bakhtin para o estudo da língua e,
conceituando, assim, conteúdo temático, estilo e construção composicional.
No quarto capítulo, descrevemos e interpretamos o corpus, aplicando a teoria
apresentada em textos autênticos do gênero carta de amor. Fazemos, ainda, uma
referência a ensino por meio de gêneros, com ênfase na carta de amor, refletindo sobre a
forma como isso pode ser encaminhado para a sala de aula.
Por fim, refletimos sobre todo o trabalho desenvolvido e sobre caminhos que
ainda devem ser trilhados.
4
CAPÍTULO I
CORPUS DE PESQUISA E ESCOLHAS METODOLÓGICAS
Neste capítulo, descreveremos a metodologia que orientou o estudo em pauta,
ou seja, a análise de cartas de amor em relação ao seu contexto de produção, ao
conteúdo temático, à construção composicional e ao estilo e suas condições de
produção. Em primeiro lugar, apresentaremos o corpus de pesquisa; em segundo lugar,
justificaremos a seleção desse corpus; em terceiro lugar, refletindo sobre a importância
de estudar a língua em textos autênticos, apresentaremos as escolhas metodológicas que
nortearam as análises realizadas; por fim, pontuaremos os elementos a serem
considerados na análise.
1.3 SELEÇÃO DO CORPUS
Optamos pela carta de amor para constituir o corpus de pesquisa, pois o
conteúdo apresentado nesse gênero refere-se, na grande maioria das vezes, a
experiências humanas, reveladas nas narrativas pessoais. Além disso, o tipo de
linguagem utilizada pode representar a interação verbal do dia a dia, nas esferas menos
complexas da atividade humana, como relações entre familiares, amigos e namorados.
Dessa maneira, em alguns casos, teremos uma linguagem preocupada com a
forma, próxima à linguagem escrita, assemelhando-se à linguagem poética. Em outros
casos, essa linguagem poderá apresentar-se menos preocupada com a forma de
expressão, estando mais próxima à oralidade.
Por ser um material muito escasso, visto que, atualmente, esse gênero foi
substituído por outros que cumprem a mesma função comunicativa em um menor
espaço de tempo, são poucas as pessoas que ainda o utilizam ou guardaram as cartas
recebidas como lembranças e/ou recordações.
Assim, para a coleta do corpus, inicialmente, buscamos cartas com familiares,
amigos e conhecidos, até conseguirmos 42 cartas, apresentadas no quadro seguinte:
Cartas Remetente Destinatário Período
Antonio Brizola Conceição da Silva 1927
Gerda Armando Watthier 1953 (seis cartas)
Neusa de Souza Armando Watthier 1955
Neusa de Souza Armando Watthier 1956
5
De amor
Neusa de Souza Armando Watthier 1957
Eny Armando Watthier 1958 (duas cartas)
Carlos Waldemar Ilga Watthier 1962
João dos Santos Clarice Lopes 1962
Auria Armando Watthier 1962
Familiares
Peter Lermen Peter Lermen 1924
Peter Lermen Anna Lermen 1930
Peter Lermen Nikolaus Lermen 1931
Ivone Juca 1943 (três cartas)
Hildegard Lermen Peter Lermen 1951
José Mironico 1954
Padre Lermen Benno Lermen 1962
Benno Lermen Padre Lermen 1962
Irene Lúcia Almeida 1975
Geralda Bia 1979
Roque Stulpen Sonia Watthier 1980
Helena Anastácio Lurdes de Oliveira 1980
José e Filomena Santina e Barcelide 1984
Gema Stulpen Sonia Watthier 1984
Adauto Aurélio Antonia Aurélio 1991
Neusa Celestino Lurdes Santos 1992
Márcia Fandy Lurdes de Oliveira 1992
Adorildes Hojnoski Regina Deminski 1993
Adorildes Hojnoski Regina Deminski 1994
Gisele Pereira Hamilton 1997
Mercedes Morais Hamilton 1997
Roque Stulpen Luciane Watthier 2000
Greize da Silva Maria da Silva 2002
Greize da Silva Maria da Silva 2006
Greize da Silva Maria da Silva 2008
Quadro 01: Relação das cartas coletadas
Então, todo esse material passou, ainda, por uma seleção, de forma que
pudéssemos separar as que fariam parte deste estudo, ou seja, aquelas escritas nas
décadas de 1950 e 1960.
Escolhemos essas datas por dois motivos: primeiro, porque representam uma
cultura bem distinta da atual, tanto em relação à forma de vida e às tecnologias
existentes, quanto às suas crenças e aos seus costumes, e, segundo, porque as cartas de
amor recebidas por nosso tio Armando foram escritas nesse período e tínhamos grande
interesse em estudá-las, homenageando uma pessoa já falecida da família.
Embora tivéssemos coletado quatro cartas familiares referentes ao período
determinado, reduzimos o corpus para as cartas de amor, a fim de garantir uma análise
mais profícua. Mesmo assim, nhamos, ainda, 13 cartas, o que impediria um estudo
mais aprofundado. Por isso, o corpus foi reduzido para quatro cartas, elencadas no
Quadro 02, todas elas recebidas por Armando, nosso tio, na tentativa de conseguir
6
recuperar, de forma detalhada, o contexto de produção, incluindo aspectos culturais e
identitários no que tange ao conteúdo temático e ao estilo, respectivamente, dessas
cartas.
Cartas Remetente Destinatário Período
De amor
Gerda Armando Watthier 9 de novembro de 1953
Neusa de Souza Armando Watthier 10 de março de 1957
Eny Armando Watthier 1º de junho de1958
Auria Armando Watthier 29 de novembro de 1962
Quadro 02: Relação das cartas constituintes do corpus de pesquisa
Entre as remetentes das cartas de amor, como demonstrado no Quadro 02,
temos as seguintes mulheres: Gerda e Neusa (ambas habitantes da cidade de Augusto
Pestana - RS), Eny (cidade de Porto Alegre - RS) e Auria (Ijuí - RS). Apesar de serem
mulheres que escreveram diferentes cartas, coincidentemente ou não, essas foram
remetidas ao mesmo destinatário, Armando.
Uma das cartas analisadas é a de carta de Gerda, escrita no dia 9 de novembro
de 1953, selecionada dentre outras cinco cartas enviadas a Armando no ano de 1953.
Optamos por essa porque ela revela um grande amor pelo remetente e, por trás dele, um
enorme sofrimento por sentir-se rejeitada pelo amado e ver esse namoro chegar ao fim,
devido ao fato de Armando estar encontrando-se com Neusa.
A outra carta do corpus é a de Neusa, escrita no dia 10 de março de 1957 e
selecionada dentre outras duas cartas escritas pela mesma remetente a Armando entre os
anos de 1955 e 1957. Tal escolha justifica-se pelo fato de Neusa também revelar um
grande sofrimento por um amor não correspondido.
A terceira carta selecionada é a de Eny, escrita no dia de junho de 1958.
Remetendo-lhe duas cartas no mesmo ano, escolhemos aquela produzida nessa data, por
considerarmos ser reveladora de uma relação que se iniciava.
Por fim, a quarta carta é a única que recuperamos com autoria de Auria.
Escrita em 29 de novembro de 1962, também pistas de que remetente e destinatário
há pouco tempo namoravam e não tinham muita intimidade em assuntos pessoais.
Frisamos que na contextualização do corpus (seção 3.1), quando relatamos a
história existente por trás dos interlocutores, utilizamos todas as cartas de amor enviadas
por Gerda, Neusa, Eny e Auria a Armando. Dessa forma, somente nas demais seções de
nosso capítulo de análise dos dados é que utilizaremos apenas as cartas selecionadas
para compor o corpus de pesquisa.
7
Feita tal explicitação, passamos, na próxima seção, a justificar a escolha do
corpus de pesquisa.
1.2 JUSTIFICATIVA DO CORPUS
Se, para Bakhtin/Volochinov (2004), a interação verbal se dá tanto na presença
do interlocutor quanto na ausência física dele, o gênero carta organiza textos que
estabelecem a interação verbal mesmo sem a presença direta do produtor e do receptor
do enunciado em um mesmo ambiente. É, portanto, um meio de manter a comunicação
entre pessoas que se encontram distantes ou que, por algum outro motivo, não têm
permissão para se comunicarem pessoalmente. No caso das cartas de amor que
constituem o corpus, essa interação por meio das cartas se dava como forma de manter
certo respeito entre os apaixonados, não pondo em risco a honra da mulher. Souto
Maior (2001) explica que a carta se constitui numa das mais antigas formas de
enunciação na ausência do interlocutor.
A importância desse gênero está no fato de nele apresentar-se, conforme
entende Sales (2007), um texto representativo da linguagem, tanto em sua forma
primária, ou seja, espontânea e natural, quanto em sua utilização secundária, isto é,
formal, escolha que dependerá dos objetivos comunicativos e do grau de instrução de
seu produtor. O corpus, como veremos, é representante das duas formas de interação,
aproximando-se, em alguns casos, mais da escrita e, em outros, da fala, embora, a
primeira vista, seja um nero discursivo secundário pela sua forma de organização e
por ser veiculado somente por meio da escrita.
Estudar os gêneros discursivos permeados pelas esferas primárias e
secundárias, suas abordagens teóricas e sua concretização em forma de enunciados é
buscar compreender os processos da interação verbal, pois, por meio deles, utilizamos a
linguagem em qualquer tipo de atividade humana, considerando que, para
Bakhtin/Volochinov (2004), a existência da ngua pode ser justificada pela
necessidade de interação verbal.
Ao voltarmos este estudo sobre os gêneros para a carta de amor, valorizamos
as formas de expressão próprias do dia a dia, algumas bem espontâneas, outras
permeadas por uma linguagem mais poética, sendo a primeira forma associada à esfera
primária dos gêneros discursivos, e a segunda, à secundária. Concordamos com
Bazerman (2006), quando ele afirma que, pelo fato de esse gênero discursivo permitir
8
uma linguagem mais simples, com marcas próprias da oralidade, não pode ser visto
como menos importante, pois é uma representação de nossas relações sociais, ou seja,
uma interação comunicativa do cotidiano e do sentimento, muito marcada e presente
na produção escrita do usuário.
Considerar a carta de amor enquanto um gênero discursivo e estudar a língua
dentro de textos que o representem, retomando aspectos culturais e identitários ali
revelados, significa compreender que os aspectos sociais da língua devem ser estudados
dentro de seu contexto de uso, isto é, em enunciados concretos, produzidos por pessoas
situadas no tempo e na história, influenciadas pelas condições de produção no qual
estão inseridas.
A língua é social e mantém, segundo Marcuschi, “complexas relações com as
representações e as formações sociais” (MARCUSCHI, 2007, p. 35). Segundo Mello, a
língua faz parte da cultura: “é um comportamento social e como tal está intrinsecamente
ligada à vida, à cultura e à história de um povo” (MELLO, 1999, p. 23). Por meio da
interação verbal, considerada por Bakhtin/Volochinov um “fenômeno social”
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 122), a língua representa e constitui a cultura, a
história e as identidades de um povo, podendo recuperar algumas dessas características
em épocas passadas.
Desenvolvemos, pois, este estudo, compreendendo as cartas de amor como
documentos que recuperam aspectos da época em que foram escritas, que, segundo
Pessoa (2002), a carta é um dos gêneros mais importante para a história das línguas e,
acrescentamos, da cultura e da identidade.
Na próxima seção, discorremos sobre a metodologia na qual o estudo está
pautado.
1.3 AS ESCOLHAS METODOLÓGICAS
Para dar conta da pesquisa, abordando aspectos culturais, identitários e,
também, estruturais e linguísticos do gênero discursivo em questão, recorremos aos
postulados teóricos da Linguística da Enunciação, pautando-nos principalmente em
Bakhtin (1988, 2000, 2002, 2004), para quem os gêneros são, na verdade, a
materialização do nosso discurso, este determinado pelo contexto no qual está inserido.
O discurso está, diretamente, relacionado com a esfera social, pois é ela a responsável
pela escolha do gênero organizador do enunciado.
9
Bakhtin/Volochinov (2004) deixa clara a necessidade de estudarmos a língua em
seus contextos de uso. Para isso, ele propõe uma determinada ordem metodológica, a
qual escolhemos como constituinte da base para o desenvolvimento desta pesquisa.
Segundo o autor, qualquer estudo da linguagem deve orientar-se a partir da seguinte
ordem metodológica:
1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as
condições concretas em que se realiza.
2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em
ligação estreita com a interação de que se constituem os elementos,
isto é, as categorias dos atos de fala na vida e na criação ideológica,
que se prestam a uma determinação pela interação verbal.
3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação
lingüística habitual. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 124).
Frisamos que, quando Bakhtin propõe esse método de pesquisa, ele não
aborda, ainda, os gêneros discursivos, mas, sim, a teoria dos atos de fala, a qual pode ser
relacionada, a partir da publicação de Estética da Criação Verbal (BAKHTIN, 2000),
aos gêneros discursivos, englobando seus três elementos constituintes, ou seja,
“conteúdo temático, estilo e construção composicional” (BAKHTIN, 2000, p. 279),
permitindo um estudo completo das formas de enunciação.
Tal relação pode ser justificada com a seguinte explanação de Bakhtin:
O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada
uma dessas esferas, não por seu conteúdo (temático) e por seu
estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua
recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais -, mas também, e
sobretudo, por sua construção composicional (BAKHTIN, 2000, p.
279).
Sendo assim, pautamo-nos, durante as análises aqui realizadas, no método
sociológico de Bakhtin/Volochinov (2004), porém, considerando a relação entre a teoria
dos atos de fala e os gêneros discursivos, como enunciados relativamente estáveis que
moldam a linguagem. Portanto, o olhar para as cartas de amor será voltado sob os três
prismas, ou seja, primeiramente, ao conteúdo temático e sua estreita relação com o
contexto de produção, depois, à construção composicional e, por fim, ao estilo.
Falar em conteúdo temático significa abordar o tema dentro do contexto que
permitiu a sua produção, ou seja, relacionando-o com a cultura de um determinado
momento histórico. Da mesma forma, o estilo está relacionado às identidades, sendo
elas a base da construção da forma como nos expressamos e agimos. Tudo isso são
características facilmente transpostas na escrita.
10
Trata-se, portanto, de uma análise interpretativa, uma vez que pretendemos
situar os textos no contexto de vida dos autores, explicitando os pressupostos inferíveis.
Partindo, assim, de sentidos construídos pelos remetentes das cartas, procuraremos
direcionar para a dimensão simbólica, promovendo a contextualização social, conforme
propõem Costa et alii (2008).
Esta pesquisa visa, nesse sentido, contribuir para a interpretação de dados
culturais e identitários presentes nos textos, tomando, como dados empíricos, o discurso
revelado nas cartas de amor, para construir os efeitos de sentidos atribuídos a essas
experiências. Partimos do pressuposto de que os sentidos presentes nas cartas se
articulam com “significados socialmente construídos, refletindo crenças,
conhecimentos, padrões e valores sociais vigentes” (COSTA et alii, 2008
1
). No presente
caso, trata-se de significados vigentes naquele momento histórico (décadas de 1950 e
1960), expressando peculiaridades culturais do grupo social das remetentes das cartas e
de seu destinatário.
Assim, interpretar os sentidos de vida revelados por esses sujeitos, requer
identificá-los como indivíduos, para inseri-los, analiticamente, nas estruturas de
significação em que se integram, o que implica considerar a produção coletiva de
significados.
Na tentativa de garantir esse olhar na pesquisa, estaremos, em alguns
momentos, recorrendo à pesquisa sociolinguística, porque, conforme Borstel (2003),
esse tipo de pesquisa tem caráter empírico -- por meio dela temos um diagnóstico da
vivência real de indivíduos organizados em comunidades, grupos e/ou associações.
A sociolinguística permite, portanto, o estudo da língua e de suas variações
dentro da sociedade em que é falada, incluindo a linguagem em sua utilização
espontânea, na qual as variações se manifestam de forma mais corriqueira. Segundo
Marcuschi, a língua não deve ser estudada em seu funcionamento abstrato, mas em sua
realização concreta, que “[...] não serão primeiramente as regras da língua nem a
morfologia os merecedores de nossa atenção, mas os usos da língua, pois o que
determina a variação linguística em todas as suas manifestações são os usos que
fazemos da língua” (MARCUSCHI, 2001, p. 16).
No decorrer da pesquisa, percebemos que somente a leitura das cartas não
dava conta de esclarecer todo o contexto de produção delas. Recorremos, então, a
1
Disponível em: <www.scielo.br>.
11
depoimentos, um instrumento de pesquisa utilizado na sociolinguística. Conforme
Duarte, isso permite que sejam “levantadas e organizadas as informações relativas ao
objeto da investigação e, dependendo do volume e da qualidade delas, o material de
análise torna-se cada vez mais consistente e denso” (DUARTE, 2002
2
). Sendo assim, a
utilização de tal instrumento permitiu, no caso desta pesquisa, a identificação de padrões
simbólicos, de práticas, de sistemas classificatórios, de categorias de análise da
realidade e de visões de mundo das remetentes e do destinatário das cartas de amor em
relação ao universo em questão. Além disso, forneceu elementos significativos para a
leitura/interpretação posterior do corpus e para a compreensão do universo investigado.
Os depoimentos foram concedidos por um irmão e duas irmãs de Armando, os
quais se lembravam muito bem do ocorrido durante as relações amorosas, ajudando-nos
a descrever grande parte da história.
Ao olhar para a estrutura composicional das cartas de amor, faremos uma
análise comparativa entre as cartas selecionadas, procurando identificar características
que lhes são próprias. Para isso, pautar-nos-emos em Bakhtin, para quem “todos os
nossos enunciados dispõem de uma forma padrão e relativamente estável de
estruturação de um todo” (BAKHTIN, 2000, p. 301).
Os gêneros se organizam em formas relativamente estáveis: possuem
características próprias que os definem, mas não formas estáticas, pois elas poderão ser
modificadas como forma de adaptá-los à situação comunicativa, sem tirar sua
originalidade.
Ao focalizar o estilo linguístico das cartas, partimos da compreensão de que,
sendo individual em cada enunciado, ele (o estilo) é, conforme Bakhtin,
[...] indissoluvelmente vinculado a unidades temáticas determinadas e,
o que é particularmente importante, a unidades composicionais: tipo
de estruturação e de conclusão de um todo, tipo de relação entre o
locutor e os outros parceiros da comunicação verbal (relação como o
ouvinte, ou com o leitor, com o interlocutor, com o discurso do outro,
etc.). O estilo entra como elemento na unidade de gênero de um
enunciado. (BAKHTIN, 2000, p. 284).
Lima-Lopes comenta sobre isso ao dizer que cada gênero carrega formas
lexicais e sintáticas próprias, ligadas aos conteúdos informativos de cada um deles.
Além da escolha interpessoal, comum, existe uma escolha conteudística, particular”
(LIMA-LOPES, 1999, p. 384).
2
Disponível em: <www.scielo.br>.
12
Na próxima seção apresentamos a forma como o trabalho está organizado.
1.4 ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO
Na perspectiva de garantir a amplitude da análise, no próximo capítulo
abordaremos a conceituação do conteúdo temático, do estilo e da construção
composicional, de forma aprofundada, associadas às condições de produção e, nas
análises, mostraremos suas manifestações nos textos pertencentes no corpus.
Em seguida, no terceiro e último capítulo, efetuaremos a análise do corpus,
seguindo a metodologia proposta por Bakhtin (anteriormente exposta). O primeiro
ponto de análise será o contexto de produção, o que fez necessárias algumas referências
a outras cartas trocadas entre essas pessoas e, também, aos depoimentos colhidos junto a
seus familiares. Em segundo lugar discorremos sobre o conteúdo temático das cartas de
amor, quando, além do tema, abordaremos os aspectos culturais da época em que esses
textos foram escritos. Em seguida, a análise voltar-se-á para a construção composicional
do gênero em questão, quando abordaremos sua função social e, também, sua estrutura
(elementos composicionais e organização), justificando sua classificação como um
gênero discursivo secundário. Após a construção composicional, destacaremos as
características identitárias, ou seja, o estilo das remetentes. Poderíamos abordá-lo antes
da construção composicional, entretanto, por estar, diretamente, ligado à linguagem das
cartas de amor, é ele nosso último ponto de análise. E, finalizando o capítulo de análise,
faremos breves observações sobre a relação entre a carta de amor e o ensino, propondo
algumas maneiras de trabalhar com esse gênero discursivo na sala de aula, distanciados
do ensino tradicional ou estruturalista. Durante todo o processo de análise, além de
transcrevermos as cartas de forma integral, apresentaremos recortes a cada apontamento
realizado.
13
CAPÍTULO 2
DO SIGNO SOCIAL E IDEOLÓGICO PARA O
GÊNERO DISCURSIVO CARTA
No presente capítulo, nosso objetivo é o de explorar os aportes teóricos que
sustentarão a análise das cartas de amor. Para isso, dividimo-lo em cinco partes, como
forma de contemplar um estudo que se inicie com a compreensão do processo de
interação verbal e daquilo que o perpassa (ideologias, cultura e identidade) e seja
finalizado com discussões sobre as características estruturais e funcionais do gênero
discursivo que compõem o corpus de pesquisa.
A primeira seção explorará a questão do signo ideológico, seção em que
tentaremos traçar uma definição e refletir sobre a forma como ele se inscreve na
interação verbal. Nosso percurso passará, também, por reflexões sobre a cultura e a
identidade, produzidas a partir das ideologias de um grupo social e reveladas nos signos
linguísticos.
A segunda seção, por sua vez, abordará estudos sobre enunciados e
enunciações, considerando que as ideologias se movem, no mundo social, por meio das
relações dialógicas, materializadas em enunciados.
Entendendo que os enunciados são modelos relativamente estáveis,
constituintes dos gêneros discursivos, os quais moldam as interações verbais, é sobre
eles que a terceira seção estará focalizada. Tentaremos abordar o modo os gêneros
discursivos concretizam as enunciações.
A quarta seção deste capítulo explorará o percurso metodológico de análise dos
gêneros discursivos sugerida por Bakhtin/Volochinov (2004), procurando realizar uma
reflexão acerca dos três elementos constituintes dos neros: conteúdo temático,
construção composicional e estilo.
Por fim, na quinta seção, discorreremos sobre o gênero carta, material de
análise que constitui o corpus de pesquisa, buscando a compreensão de suas
características estruturais e funcionais.
2.1 SIGNO SOCIAL E IDEOLÓGICO
A concepção bakhtiniana de signo ideológico é, segundo Tchougounnikov
(2009), fundamental no projeto sociológico do Círculo de Bakhtin, sendo tomada como
14
ponto de partida para a discussão sobre língua, linguagem, enunciado, enunciação e
gêneros do discurso, percurso por nós adotado durante as discussões aqui realizadas.
Nossa base teórica é, portanto, reflexões realizadas por Bakhtin (2000, 2002,
2004), filósofo que, partindo de uma abordagem socioenunciativa, de acordo com a qual
a linguagem e o pensamento são constitutivos do homem, demonstrou que seu objeto de
estudo pertencia aos mecanismos da interação verbal. De acordo com suas
compreensões, a necessidade de comunicação é o que justifica a existência da língua, ou
seja, por meio da interação verbal ela se concretiza, permitindo aos homens dizer e agir
sobre o mundo, constituindo-o e sendo constituídos por ele.
Partindo de uma concepção sociointeracionista da linguagem, consideramos a
língua como uma atividade social, organizada por um conjunto de signos capaz de
representar e constituir o real, por ser produto de uma necessidade histórica do homem,
criado para trocar experiências e se organizar socialmente.
Bakhtin/Volochinov (2004) compreende que a palavra, durante a interação
verbal, ganha diferentes sentidos, conforme o contexto em que está inserida,
constituindo-se, assim, em signo social e ideológico. Dessa forma, não se trata apenas
da imagem (forma) que cada palavra evoca em nossa mente ao ser pronunciada. Ao
contrário, carregada de significados construídos, socialmente, na situação de interação, a
palavra veicula ideologias, o que lhe permite adquirir vida, transformando-se em um
símbolo e, assim, representando posicionamentos sociais, ideológicos. Para Formentão
(2008), as esferas ideológicas são formadas pela articulação entre a palavra e a imagem.
É o que Zandwais explica:
[...] se a palavra se inscreve em um lugar heterogêneo é porque ela,
sendo sustentada pela forma, mas, ao mesmo tempo, “adquirindo
vida” como símbolo, constitui a materialidade e a essência do
ideológico, por meio da maneira como ela trabalha e se desloca de
modo incessante nas relações de interações do cotidiano da sociedade.
(ZANDWAIS, 2009, p. 106).
Adotar a palavra como signo ideológico não significa dizer que sua forma deva
ser desprezada. Pelo contrário, ela importa como meio de sustentação da imagem
produzida, permitindo-nos saber do que um enunciado está tratando -- mas não apenas
isso, pois, assim reduzida, a palavra seria compreendida como signo neutro e a língua
como abstrata, fato que constitui, segundo Zandwais (2009), o objeto de investigação da
Filologia, ciência criticada por Bakhtin/Volochinov. Segundo ele, esse estudo resulta
numa “falsa concepção da compreensão como ato passivo”
15
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 99), excluindo todo o contexto de produção e de
conhecimento de mundo por parte do leitor.
Por outro lado, para Bakhtin e seu círculo, a concepção de signo ideológico vai
além de uma imagem projetada. Sendo a ideologia utilizada, conforme Faraco, para
referências “ao universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a
ética, a política” (FARACO, 2009, p. 26), entre outras ciências, Bakhtin/Volochinov
apresenta uma distinção entre dois tipos de ideologias: a oficial e a do cotidiano.
Conforme postula Bakhtin/Volochinov,
Cada um dos sistemas de signos é específico de algum campo
particular da criação ideológica. Cada domínio possui seu próprio
material ideológico e formula signos e mbolos que lhe são
específicos e que não são aplicáveis a outro domínio. O signo é, então,
criado por uma função ideológica precisa e permanente inseparável
dela [...]. Além disso, existe uma parte muito importante da
comunicação ideológica que não pode ser vinculada a uma esfera
ideológica particular: trata-se da comunicação na vida cotidiana. Esse
tipo de comunicação é extraordinariamente rica e importante. Por um
lado, ela está diretamente vinculada aos processos de produção e, por
outro lado, diz respeito às esferas das diversas ideologias
especializadas e formalizadas. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p.
37).
Ao falarem desses signos específicos de algum campo, criados por uma função
ideológica permanente (dada pela sociedade), Bakhtin/Volochinov se refere à ideologia
oficial, concepção aceita, também, pelo marxismo. Ocorre, porém, que, ao apresentar os
signos vinculados a um processo de produção e não a um posicionamento particular
(construída no momento da interação), ele acrescenta a ideologia do cotidiano,
compreendendo ser esta mais instável em relação à primeira, podendo ser criada por
grupos específicos.
Assim, o contexto determina a organização de nossos enunciados e,
principalmente, sua interpretação e compreensão. Dois exemplos retirados de Miotello
nos ajudam a esclarecer essa distinção: “(1) ‘Cara, estou desempregado seis meses’
[...]. (2)‘Aprovação do presidente cai mais dez pontos’” (MIOTELO, 2008, p. 169).
Enquanto o primeiro enunciado pode estar relacionado a um encontro entre dois amigos
em um ponto de ônibus, quando conversam sobre suas vidas e um dos dois, afirmando
estar desempregado, expressa uma opinião pessoal em relação ao fato (algo bem
específico / ideologia do cotidiano), o segundo liga-se à política, o permitindo
tomadas de posições diferentes da oficial (ideologia oficial).
16
No caso da ideologia do cotidiano, para a compreensão de um enunciado a ela
vinculado, outro aspecto ainda deve ser levado em conta: a acento apreciativo. Segundo
Bakhtin/Volochinov, quando um conteúdo é pronunciado pela fala viva, “é sempre
acompanhado por um acento apreciativo determinado [...]. A entoação é determinada
pela situação imediata e freqüentemente por suas circunstâncias mais efêmeras”
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 132). É o que o primeiro exemplo do parágrafo
anterior poderia demonstrar se o ouvíssemos dentro de seu contexto de produção: o
locutor embutiu nele sua aprovação pelo fato de estar descompromissado de um
emprego e não necessitar cumprir atividades profissionais e horários em uma empresa
ou sua reprovação por, desempregado e sem salário, estar passando por dificuldades
financeiras.
Signo e ideologia estão ligados de forma inseparável. Conforme
Bakhtin/Volochinov, “tudo o que é ideológico possui significado e remete a algo
situado fora de si mesmo [...]. Tudo o que é ideológico é um signo. Sem signos não
existe ideologia” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 31). A ideologia, por sua vez,
está ligada aos índices valorativos. Sem eles, os signos seriam, conforme
Bakhtin/Volochinov (2004), simples alegorias, uma vez que cada signo possui um tema,
responsável pela formação dos signos. E cada tema possui um índice valorativo, o que
forma as ideologias, constituindo-se, assim, os signos sociais e ideológicos.
Por isso, Miotello explica: “objetos materiais do mundo recebem função no
conjunto da vida social [...] e passam a significar além de suas próprias particularidades
materiais” (MIOTELLO, 2008, p. 170). Um signo ideológico é, portanto, tudo o que,
além de possuir um significado, carrega ideologias do mundo social responsáveis por
lhe atribuírem significado. Isso nos permite pensar na palavra “cruz”, por exemplo: se
concebida apenas como forma, teremos, em mente, a imagem de dois pedaços de pau
cruzados. Por outro lado, vinculada às ideologias que a constituem, torna-se um símbolo
religioso de grande importância em determinado grupo, adquirindo sentido no meio
social. Segundo Formentão, “[...] perceber estes signos é compreender estas
contradições e estes sentidos no universo da comunicação analisada” (FORMENTÃO,
2008, p. 54).
Os signos ideológicos, como postula Bakhtin/Volochinov, fazem “parte de uma
realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou
produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra
realidade que lhe é exterior” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 31).
17
Nesse sentido, a linguagem é compreendida como um veículo de comunicação
que, por meio do signo social e ideológico, representa a realidade circundante e, até
mesmo, a forma como o falante a constitui, refletindo todas as suas mudanças e
alterações sociais. Conforme Bakhtin/Volochinov, a palavra é a “arena onde se
confrontam os valores sociais contraditórios; os conflitos da língua refletem os conflitos
de classe no interior do sistema” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 15).
Seguidores das teorias de Bakhtin também veem na língua esse poder de
representar o exterior. Marcuschi
3
é um deles. A partir de seus estudos observamos uma
preocupação em mostrar que a representação linguística não é apenas um espelhamento
do mundo, mas, sim, que se trata de uma outra funcionalidade da linguagem:
[...] a língua, seja na sua modalidade falada ou escrita, reflete, em boa
medida, a organização da sociedade. Isso porque a própria língua
mantém complexas relações com as representações e as formações
sociais. Não se trata de um espelhamento, mas de uma funcionalidade
em geral mais visível na fala. (MARCUSCHI, 2007, p. 35).
Ao falar de uma outra funcionalidade que acontece por meio da representação
da realidade, não podemos ver a linguagem apenas como espelho, mas também como a
responsável por refratar a realidade, uma vez que, segundo as explanações de Bakhtin e
de Marcuschi, a realidade passa a existir orientada pela ideologia durante a interação
verbal, o que significa dizer que os signos refletem e refratam o mundo.
Daí o destaque dado por Bakhtin e seu Círculo para a refração. De acordo com
Faraco,
[...] não é possível significar sem refratar. Isso porque as significações
não estão dadas no signo em si, nem estão garantidas por um sistema
semântico abstrato, único e temporal, nem pela referência a um mundo
dado uniforme e transparentemente, mas são construídas na dinâmica
da história e estão marcadas pela diversidade de experiências dos
grupos humanos, com suas inúmeras contradições e confrontos de
valorações e interesses sociais. (FARACO, 2009, p. 51).
Assim, a linguagem, constituída por signos ideológicos, representa e
(re)constitui posicionamentos sociais e experiências humanas. Não pode ser reduzida à
língua abstrata ou a um mero conjunto de signos formais. É a responsável pela interação
verbal e cultural, por meio da qual trocamos ideias sobre o mundo enquanto
construímos o nosso conhecimento.
3
Marcuschi não é um pesquisador que se dedica apenas ao estudo de neros textuais, apesar de ser, por
muitos, mais conhecido e citado nessa área. Seu propósito reside em abordar e estudar todos os
fenômenos da linguagem, motivo pelo qual podemos tomá-lo como referência no decorrer de todo este
trabalho.
18
Devido a isso, Bakhtin/Volochinov está, a todo o momento, esclarecendo que
a linguagem não deve ser tratada apenas como forma, mas como um fenômeno social
que torna possível as relações sociais, dando sentido à existência da língua, sendo a sua
verdadeira substância. Nas palavras desses teóricos,
[...] a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema
abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica
isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo
fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação
ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade
fundamental da língua. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 122).
Em publicações de seguidores das teorias de Bakhtin observamos também a
mesma valorização da linguagem e da interação verbal. Bronckart (2003) afirma que a
complexidade e a extrema diversidade de suas formas de atividade, que permitem o
acesso ao meio ambiente, bem como sua representação, estão indissoluvelmente
relacionadas à emergência da linguagem. A língua, portanto, regula e serve de
mediadora para todas as interações verbais, o que justifica, de acordo com Bronckart,
que seja chamada de social.
Para Marcuschi, “a interação humana é uma atividade constitutiva da própria
linguagem e não simples decorrência de suas virtudes imanentes” (MARCUSCHI,
2007, p. 77). Em outras palavras, a interação não é apenas uma atividade que podemos
desenvolver por meio da linguagem, mas, sim, uma parte fundamental e constituinte
desta.
Uma língua não é apenas um sistema de sons, um conjunto de
unidades significativas dispostas em uma cadeia morfossintática. É
muito mais do que um instrumento de comunicação. Um língua é um
comportamento social e como tal está intrinsecamente ligada à vida, à
cultura e à história de um povo. São os falares, os modos de ser, os
valores, as crenças que fazem com que os povos sejam diferentes ou
semelhantes, porém singulares. (MELLO, 1999, p. 23).
A linguagem é heteroglóssica, constituída a partir de vozes sociais, ou seja, é
social e ideológica, refletindo e refratando o mundo, sua realidade, valores e
posicionamentos de diferentes grupos sociais. Isso justifica o tratamento dado aos
signos: vivos, móveis e históricos, ou seja, não como produtos de uma consciência
isolada, pois Bakhtin/Volochinov postula que todo signo “resulta de um consenso entre
indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação”
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 44). E Faraco complementa que eles “emergem
19
e significam no interior de relações sociais, estão entre seres socialmente organizados
[...]. Para estudá-los, é indispensável situá-los nos processos globais que lhes dão
significação” (FARACO, 2009, p. 49).
Também Formentão trata dessa relação entre signo e sociedade. Segundo ele,
“o signo existe num processo dialógico de alteridade orientado para um fluxo de
sentidos que se concretizam numa organização sócio-histórica interacional”
(FORMENTÃO, 2008, p. 57).
Considerando essa relação em seus estudos, Bakhtin/Volochinov traça uma
crítica ao objetivismo abstrato e ao subjetivismo individualista, ciência que tenta reduzir
a enunciação a um mundo interior, fazendo com que os signos, vivos e móveis, se
transformem em defuntos:
[...] essa plurivalência social do signo ideológico é um traço da maior
importância [...]. O signo, se subtraído às tensões da luta social, se
posto à margem da luta de classes, irá infalivelmente debilitar-se,
degenerará em alegoria, tornar-se-á objeto de estudo dos filólogos e
não será mais um instrumento racional e vivo para a sociedade. A
memória da histórica da humanidade está cheia destes signos
ideológicos defuntos, incapazes de constituir uma arena para o
confronto dos valores sociais vivos. Somente na medida em que o
filólogo e o historiador conservam a sua memória é que subsistem
ainda neles alguns lampejos de vida. (BAKHTIN/VOLOCHINOV,
2004, p. 46).
Ainda conforme Bakhtin/Volochinov, “a estrutura da enunciação e a da
atividade mental a exprimir são de natureza social. A elaboração estilística da
enunciação é de natureza sociológica e a própria cadeia verbal [...] é social. Cada elo
dessa cadeia é social” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 122). Dito de outro modo,
nossas formas de expressão social estão orientadas para um centro organizador exterior,
que modela o nosso interior, possibilitando a constituição de um sistema de signos.
Miotello explica que o meio social envolve completamente o indivíduo e, por
isso, “o sujeito é uma função das forças sociais” (MIOTELLO, 2008, p. 175). Assim, a
enunciação de um signo ideológico torna-se o meio pelo qual compreendemos os
valores sociais constituintes de uma realidade. Segundo Faraco, “aquilo que chamamos
de ngua é também e principalmente um conjunto indefinido de vozes sociais”
(FARACO, 2009, p. 57). Logo, um universo de signos, sendo próprio de um grupo
social, está vinculado diretamente à cultura e à identidade. Devido a isso, tomamos a
linguagem como refletora da cultura. O mesmo vale para a identidade, uma vez que ela
20
é revelada por meio da língua, da qual faz parte, também, a identidade. Além disso,
nossas identidades são construídas a partir dos valores culturais de nosso grupo social.
2.1.1 Cultura e identidade
Considerando a relação entre os signos ideológicos e as noções de cultura e de
identidade, Formentão explica:
A concepção dialógica da criação verbal engloba vida / cultura, o real
concreto, a formação da consciência dos indivíduos e a materialidade
sígnica de todas as produções humanas, dotadas de valor;
descentraliza o sujeito e reconduz à situação de agente ativo em
interação constante e fluída, um sujeito responsivo e responsável.
(FORMENTÃO, 2008, p. 22).
Nesse sentido, Baltar traça uma relação entre linguagem, cultura e identidade,
considerando que “os sistemas de valores e crenças de um grupo social são manifestos
por meio da linguagem e têm papel fundamental em suas vidas” (BALTAR, 2004, p.
39), isto é, os signos ideológicos se traduzem naquilo que seus falantes podem fazer de
seu uso, conforme a situação social em que estão inseridos. Conforme Bakhtin, tudo o
que temos na cultura, que aponta para nossa identidade, não passa de palavras: não
existe absolutamente nada na cultura, além da palavra, pois “toda cultura não é nada
mais que um fenômeno da língua” (BAKHTIN, 1988, p. 45).
Desse modo, torna-se necessário refletirmos, rapidamente, sobre cultura e
identidade. Marcuschi conceitua a primeira como um meio de diferenciação entre
grupos sociais, ou seja, “diferentes formas de perceber” (MARCUSCHI, 2007, p. 78), o
que nos permite uma concepção de cultura como constituída por um universo de signos
ideológicos pertencentes a um grupo social e representante de seus costumes, de seus
valores e de suas crenças, bem como de sua linguagem.
Sendo composta por signos, constituintes de símbolos, a cultura está
relacionada a um discurso. É o que destaca Hall:
As culturas nacionais o compostas não apenas de instituições
culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura
nacional é um discurso – um modo de construir sentido que influencia
e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós
mesmos. As culturas nacionais, ao produzirem sentidos sobre a
“nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem
identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são
21
contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu
passado e imagens que dela são construídas. (HALL, 2006, p. 51).
As ideologias constituintes da cultura são as responsáveis pela formação de
nossas identidades, ou seja, nosso estilo, nossas formas de ser e de agir. De acordo com
Mendes, a pessoa é um “construto construído não das propensões psíquicas internas,
mas a partir das regras morais que lhe são inculcadas do exterior” (MENDES, 2002, p.
507). Por meio da cultura de nosso grupo social produzimos identidades que nos
afirmam como pertencentes a esse grupo.
Sob essa perspectiva, McLaren compreende que a formação da identidade se
a partir das práticas sociais: “identidades envolvem articulações prediscursivas
(materiais) e discursivas (semióticas) e estão sempre relacionadas às práticas sociais
materiais de uma formação social mais ampla” (MCLAREN, 2000, p. 46). Conforme o
teórico, criamos, contextualizamos e recontextualizamos nossas identidades a partir de
copadrões específicos de ideologias. Nossa identidade, ao expressar nossa
individualidade, exprime o meio em que vivemos, pois ela é criada a partir dele.
Nessa perspectiva, com base em Moita Lopes (2003), compreendemos a
identidade como um processo de identificação do Eu e de diferenciação entre o Eu e o
Outro, por meio do qual um indivíduo se define socialmente e se reconhece dentro de
um grupo social. O processo de construção da identidade o define em relação ao mundo,
como também o representa socialmente em relação ao outro.
Logo, a interação, organizada por signos ideológicos, torna-se uma discussão
cultural. Conforme Faraco (2009), o universo da cultura é intrinsecamente responsivo,
movendo-se pelo diálogo, responsável pela formação de novas vozes sociais, isto é,
identificatórias de um estilo individual. O autor postula que, para Bakhtin e o Círculo,
“‘o verdadeiro ambiente de um enunciado’ é o plurilinguismo dialogizado (são as
fronteiras) em que as vozes sociais se entrecruzam continuamente de maneira
multiforme” (FARACO, 2009, p. 58). Nesse processo, elas podem se apoiar, diluir em
outras, polemizar, contrapor e assim por diante, destruindo e (re)construindo novas
identidades.
Compreende-se, dessa forma, que a formação de vozes sociais se de forma
contínua e nunca está acabada. Para Bakhtin, aquilo mesmo que torna o signo
ideológico vivo e dinâmico faz dele um processo de refração e de deformação do ser”
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 47). As identidades não são inatas aos
indivíduos, mas formadas e transformadas ao longo das interações sociais.
22
Sendo no meio que se formam as vozes sociais, o diálogo é visto por Bakhtin
como um jogo de forças que vida a esse universo, fazendo-o mover-se no mundo
social. Aqui, porém, o que importa não é apenas o diálogo em si mesmo, mas o que
ocorre dentro dele ou, como explica Faraco, “o complexo de forças que nele atua e
condiciona a forma e as significações do que é dito ali” (FARACO, 2009, p. 61).
Assim, Silva explica: “para Bakhtin toda a vida em sociedade se constitui
incessantemente pelo dialogismo, pela relação com o outro e pelas condições histórico
sociais a que estamos integrados” (SILVA, 2007, p. 45).
O diálogo é de caráter social, assim como a linguagem e a interação verbal,
não podendo ser reduzido “ao encontro fortuito de dois seres empíricos isolados e
autossuficientes, soltos no espaço e no tempo, que trocam enunciados a esmo”
(FARACO, 2009). Isso equivaleria a dizer que seus enunciados não carregariam
ideologia alguma e, portanto, não possuiriam relação com a cultura de um meio social.
Voltaremos a tratar da questão do diálogo, de forma mais aprofundada, na
próxima seção, pois, tendo em vista que sua função é a de materializar os enunciados,
fazendo-os dentro dos gêneros discursivos, é necessário, primeiramente, refletirmos
sobre enunciados e enunciações.
2.2 ENUNCIADOS/ENUNCIAÇÕES
Os estudos sobre enunciados/enunciações já desenvolvidos são inúmeros e,
inclusive, polissêmicos em termos de definição e de emprego, visto que já foram
abordados a partir de diferentes perspectivas. Sendo assim, para trazer essa reflexão,
iniciamos por Bakhtin (2000), pois ele retoma toda uma discussão acerca dessas teorias
como forma de desenvolver o conceito de gêneros do discurso, com o qual trabalhamos
a seguir.
Sabemos que Bakhtin (2000, 2004) e o Círculo, assim como teóricos
seguidores dessas teorias, valorizam muito a linguagem por ser ela, ao constituir-se por
signos ideológicos, a (re)produtora e a transmissora de ideologias. Para trabalhar com a
linguagem, porém, o que ganha destaque é, como frisado na seção anterior, o diálogo,
considerado como um meio de discussão cultural. Sua ocorrência está ligada de forma
direta e inseparável aos enunciados, definidos pelo autor como unidades reais da
comunicação verbal, um todo significativo, responsáveis por sua materialização. Desse
23
processo também faz parte a enunciação, a qual se constitui, para Bakhtin/Volochinov
(2004), em uma réplica do diálogo social.
Brait e Melo, ao fazerem um estudo acerca de alguns conceitos-chave de
Bakhtin, traduzem a forma como o filósofo conceitua o termo enunciado: “como
unidade de comunicação, como unidade de significação, necessariamente
contextualizado” (BRAIT; MELO, 2008, p. 63). Assim, para termos um enunciado,
necessitamos que ele esteja contextualizado. Isso significa dizer que uma frase somente
será tratada como enunciado se estiver ligada a um contexto, pois, além dos fatores
estritamente linguísticos, implicaria, conforme postulam Brait e Melo (2008), o
conhecimento e a compreensão da situação por parte dos interlocutores.
Assim compreendida, a interação, seja ela verbal ou não verbal, se dá por meio
de enunciados organizados socialmente, o que facilita, de certa forma, esse processo,
embora cada enunciado possua suas finalidades comunicativas próprias. É na sociedade
que encontramos o que Bakhtin denomina como “tipos relativamente estáveis de
enunciados” (BAKHTIN, 2002, p. 279). Ao fazermos usos desses “modelos”,
moldamo-los conforme nossas necessidades de interação e nosso ato comunicativo.
Cada enunciado será “individualmente absolutamente irreproduzível”
(BAKHTIN, 2000, p. 335), pois, mesmo com características semelhantes, a situação e
os objetivos comunicativos nunca serão completamente idênticos. Sempre lhe
acrescentaremos algo novo, produzindo outro enunciado. Bazerman relaciona isso à
dificuldade encontrada no ato se escrever. Segundo ele, “cada vez que escrevemos,
criamos um novo enunciado para uma nova circunstância. É por essa razão que o ato de
escrever é tão difícil [...]” (BAZERMAN, 2006b, p. 63).
Quanto à enunciação, Bakhtin/Volochinov a concebe como o resultado da
utilização dos enunciados concretos durante as interações verbais, isto é, como uma
compreensão ativa. Para Bakhtin/Volochinov, ela “é o produto da interação de dois
indivíduos socialmente organizados” (BAKTHIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 112), entre
os quais se estabelece o diálogo.
pelo fato de estarem em um mesmo campo de compreensão permitirá a
relação dialógica entre os enunciados produzidos, respaldada por seus conhecimentos de
mundo, estabelecendo-se, assim, a enunciação. Por isso mesmo, Bakhtin explica que um
enunciado é apenas um elo da comunicação verbal, nunca o primeiro nem o último,
que pode ser separado dos “elos anteriores que o determinam, por dentro e por fora, e
24
provocam nele reações-respostas imediatas e uma ressonância dialógica” (BAKHTIN,
2000, p. 320).
Daí a necessidade da existência de um destinatário para que a enunciação
aconteça, sendo isso, de acordo com Bakhtin (2000), uma característica essencial e
constitutiva de um enunciado. Sem interlocutor não poderia haver enunciado e,
tampouco, a enunciação. É dessa característica, aliás, que se originam as diversas
formas típicas de dirigir-se a alguém e as diversas concepções típicas do destinatário, as
quais constituem e determinam a diversidade de gêneros do discurso. Ao produzirmos
um enunciado, portanto, nós o dirigimos a um interlocutor, com quem nos
comunicamos, esperando dele uma resposta.
Marcuschi, seguindo tais orientações, expõe que, sem a presença do outro, não
se desenvolve a linguagem. Sob tal enfoque, conforme o autor,
[...] não existe um uso significativo da língua fora das inter-relações
pessoais e sociais situadas [...] todo uso autêntico da língua é feito em
textos produzidos por sujeitos históricos e sociais de carne e osso, que
mantêm algum tipo de relação entre si e visam a algum objetivo
comum. (MARCUSCHI, 2008, p. 23).
A dialogicidade de todo o dizer, dessa forma interpretada, é apresentada em
três dimensões diferentes. São elas: “a) todo o dizer não pode deixar de se orientar para
o ‘já dito’ [...]. b) todo dizer é orientado para a resposta. [...]. c) todo dizer é
internamente dialogizado [...]” (FARACO, 2009, p. 59).
A partir do exposto, compreendemos que qualquer enunciado, apesar de ser
novo devido ao estilo de seu autor, é uma réplica, que não se constitui do nada. Ele é
criado a partir daquilo que Bakhtin e o Círculo chamam de memória discursiva, ou seja,
é uma resposta a um já dito. Além disso, é constituído tendo em vista a pessoa a quem é
destinado. Segundo Bakhtin/Volochinov, “mesmo que não haja um interlocutor real,
este pode ser substituído pelo representante dio do grupo social a que pertence o
locutor” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 112), ou seja, produzimo-lo a partir das
características desse grupo, as quais nos permitem antecipar sua resposta. E, por fim, os
enunciados promovem a articulação de múltiplas vozes sociais, o que retoma a primeira
dimensão apresentada: é constituído por ditos, representantes da cultura e das
individualidades de um grupo social, sendo este, como frisado anteriormente, o ponto
mais importante de estudo nos diálogos.
25
Nessa perspectiva, Faraco explica: é necessário dimensionar a interação
“como estrutura socioideológica, na qual os interactantes são seres organizados,
situados e agindo num complexo quadro de relações socioculturais, no interior do qual
se manifestam relações dialógicas” (FARACO, 2009, p. 65).
Ao falar nas relações dialógicas, Bakhtin/Volochinov se refere às relações de
sentido -- de valores (no sentido cultural) -- estabelecidas entre os enunciados. Trata-se
de um diálogo travado com conhecimentos do mundo interior do locutor e do
interlocutor, o que permitirá uma ligação entre “as unidades da comunicação verbal, os
enunciados completos” (BAKHTIN, 2000, p. 358).
Durante o diálogo, ocorre, portanto, uma troca de enunciados, o que, segundo
Faraco (2009), pode resultar tanto no acordo quanto no desacordo: as relações
dialógicas, propiciando uma discussão cultural, abrem espaços de tensão, podendo as
vozes sociais serem aceitas ou não. E, entre esta unidade contraditória e tensa, ocorre o
que Bakhtin denomina de forças centrípetas e forcas centrífugas, ou seja, necessidades
de ligação e/ou diferenciação de um indivíduo/grupo social em relação a outro.
Mendes (2002) faz referências a essas tensões: as forças centrípetas dizem
respeito à necessidade de se ligar ao outro, isto é, identificar-se com ele, possuindo os
mesmos valores. Já as centrífugas são a necessidade de diferenciação do outro,
manifestada, em algumas vezes, pela necessidade de possuir um estilo/identidade
próprio.
Sendo assim, podemos traçar uma relação entre as forças
centrípetas/centrífugas e as culturais/identidade. Trabalhamos com a cultura como um
traço de identificação de um grupo social, ou seja, características e conhecimentos
pertencentes a todos os seus membros. Por outro lado, trabalhamos com a identidade
enquanto um traço de identificação adquirido a partir da cultura, entretanto, individual e
variante de um membro para outro de um mesmo grupo social.
A cultura pode, portanto, ser ligada às forças centrípetas, enquanto que a
identidade seria ligada às forças centrífugas. Dessa forma, um grupo social, visto do
exterior, tem a necessidade de diferenciar-se de outro, perpassando a todos os membros
as mesmas ideologias e possuindo um universo de signos próprios. Ao mesmo tempo,
no seu interior, esses indivíduos diferenciam-se entre si conforme seu estilo.
São relações possíveis apenas por meio da enunciação, levando em
consideração que a compreensão perpassa todo esse processo. A enunciação é o produto
da interação verbal, composta por enunciados manifestados nos discursos, os quais, por
26
sua vez, organizam os gêneros que, materializados em textos, possibilitam a
compreensão dos fatos da linguagem observados na vida cotidiana. O enunciado faz
parte da enunciação e não existirá sem ela. Sua circulação dentro da sociedade se dá,
porém, segundo Perfeito, somente “dentro de determinadas esferas e formas
estabelecidas pelas convenções sociais” (PERFEITO, 2009, p. 155), tratadas por
Bakhtin como gêneros do discurso, para os quais voltamos nossa discussão na próxima
seção.
2.3 GÊNEROS DISCURSIVOS
À exploração dos gêneros discursivos, vários teóricos já se dedicaram. Entre
esses, começaremos citando Bakhtin (2000), por ter sido ele quem ampliou a noção dos
gêneros, antes abordada por Platão e Aristóteles, enfocando basicamente a esfera
literária. Além disso, foi um dos primeiros teóricos lidos no Brasil que tratava da
questão dentro da esfera da enunciação. Abordaremos, também, Bronckart (2003),
Marcuschi (2003, 2006, 2008), Baltar (2004), Schneuwly & Dolz (2004), Bazerman
(2006), entre outros.
Devido ao grande número de teóricos que estudam os gêneros discursivos,
observamos uma pequena variação de terminologias dentro dessa temática: gêneros
discursivos (associados à noção de discurso) e gêneros textuais (associados à noção de
texto e detendo-se, principalmente, ao estudo de sua estrutura interna). Esclarecemos
que, sem desconsiderar as demais nomeações, optamos por adotar a de gêneros
discursivos (originada em Bakhtin).
Para discorrer sobre os gêneros discursivos é importante, primeiramente,
retomarmos a discussão sobre enunciado e enunciação, que a sua realização está
ligada à liguagem e, assim, à interação verbal e é por meio da enunciação que a língua
se torna uma realidade.
Sem língua não interação e, sem interação, não nenhum tipo de relação
social. Para Bakhtin, “todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que
sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua”, a qual “efetua-se por
meio de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes
duma ou doutra esfera da atividade humana” (BAKHTIN, 2000, p. 279). Os enunciados
ficam disponíveis na sociedade e são constituídos por esferas de utilização da língua,
27
originando o que Bakhtin chama de “tipos relativamente estáveis de enunciados”
(BAKHTIN, 2000, p. 279), organizando, assim, os gêneros do discurso.
Os gêneros discursivos, portanto, podem ser compreendidos como lugares onde
o(s) enunciado(s) se organizam, ganham forma, materializam-se linguisticamente,
representando, assim, o discurso da esfera social que o constitui.
Nessa perspectiva de estudo, Lima-Lopes (1999) comenta que as regularidades
organizacionais de um gênero seriam elementos responsáveis pelo seu reconhecimento.
Segundo o autor, cada nero carrega formas lexicais e sintáticas próprias, ligadas aos
conteúdos informativos de cada um deles. Além da escolha interpessoal, comum, existe
uma escolha conteudística, particular” (LIMA-LOPES, 1999, p. 384). Tais formas são,
portanto, relativamente estáveis.
Em outras palavras, não podemos ver os gêneros discursivos por meio de
formas estáticas. Dependendo das intenções discursivas do usuário, de seu
conhecimento de mundo e da necessidade de adaptá-los à situação comunicativa,
acrescentam-se novas características ao(s) enunciado(s), sem desconsiderar aquelas
existentes na esfera discursiva que imprime marcas próprias no conteúdo temático, no
estilo e na composição desse gênero. Toda ação de linguagem sempre será constituída
por um processo de inserção individual no social.
Bakhtin (2000, 2004) considera que a interação verbal se realiza não por meio
de uma linguagem descontextualizada, mas por discursos, com todos os elementos
linguísticos e não linguísticos (verbais e não verbais), os quais organizam os gêneros
que, materializados em textos (orais e escritos), estão presentes no nosso dia a dia.
Justifica-se, então, o fato de Bakhtin tratar esses enunciados relativamente estáveis
como gêneros do discurso¸ associando, à noção de gênero, à de discurso.
Para Perfeito, esses modelos de enunciados foram e são formados com a
finalidade de se evitar o caos comunicativo. Segundo a estudiosa, “no processo
interativo, sócio-historicamente situado, a escolha dos recursos expressivos pelos
sujeitos, na construção de um enunciado, se no rol de outros enunciados,
determinados por suas esferas de comunicação” (PERFEITO, 2009, p. 156). Trata-se do
contexto de produção, o que define cada uma de nossas formas de expressões, assim
como o gênero discursivo que as organiza.
Aprendemos a moldar nossa fala às formas do gênero e, ao ouvir a
fala do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras palavras,
pressentir-lhes o gênero, adivinhar-lhe o volume (a extensão
28
aproximada do todo discursivo), a dada estrutura composicional,
prever-lhe o fim, ou seja, desde o início, somos sensíveis ao todo
discursivo que, em seguida, no processo da fala, evidenciará suas
diferenciações. (BAKHTIN, 2000, p. 302).
São os gêneros discursivos, portanto, que moldam o nosso querer-dizer,
adaptando-o às possibilidades de enunciação. Assim, “se não existissem os gêneros do
discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de construir cada um de nossos
enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível” (BAKHTIN, 2000, p. 302).
Cada esfera da sociedade possui modelos de enunciados que a representam,
diferenciando-os daqueles utilizados em outras esferas. O conjunto de gêneros
discursivos de uma esfera social é parte de sua cultura, colaborando no seu processo de
identificação.
Os neros discursivos são, logo, vários modelos de enunciados em particular,
os quais circulam socialmente, tornando possível a existência da linguagem, uma vez
que não haveria como produzir um novo enunciado a cada momento, sem qualquer
referência para isso. Sendo assim, o enunciado, uma “unidade real da comunicação
verbal” (BAKHTIN, 2000, p. 293), organiza-se de forma mais ou menos estável para
constituir um repertório de gêneros que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida
que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa, que as possibilidades de
atividade humana por meio do uso da língua são inesgotáveis.
Daí a importância da interação verbal, que permeia todas as formas de agir, e
dos gêneros discursivos, responsáveis pela organização dos enunciados por meio dos
quais nos comunicamos. Ao afirmarmos isso, respaldamo-nos em Bakhtin. Para o autor,
quando falamos "utilizamo-nos sempre dos gêneros do discurso, ou seja, todos os
nossos enunciados dispõem de uma forma padrão e relativamente estável de
estruturação de um todo” (BAKHTIN, 2000, p. 301), o que significa dizer que todas
nossas ações com a linguagem são moldadas por um gênero.
Consequentemente, os gêneros discursivos são, também, quase que
inumeráveis, infinitos. Marcuschi (2003) comenta sobre um grupo de linguistas alemães
que chegou a identificar em torno de quatro mil gêneros, exemplo de que não é possível
chegar a uma classificação geral deles, não sendo possível fazer uma lista fechada.
Apenas como forma de exemplificação, citamos alguns exemplos de gêneros
discursivos: carta pessoal, familiar, de amor, telefonema, artigo científico, de opinião,
piada, bula de remédio, receita culinária, cartão de aniversário, conversa entre amigos,
29
aula expositiva, propaganda publicitária, reportagem jornalística, bilhete pessoal, entre
inúmeros outros.
Sendo “relativamente estáveis” (BAKHTIN, 2000, p. 279), os gêneros
discursivos passam por certas transformações interiores como forma de serem adaptados
às necessidades de interação verbal. Durante esse processo, alguns gêneros
desaparecem, dando lugar a novos modelos de enunciados. Trata-se da evolução dos
gêneros discursivos, conforme os avanços históricos e tecnológicos de uma sociedade,
porque os modelos de enunciados surgem em meio a necessidades e a atividades
socioculturais, refletindo todos os tipos de atividade humana.
Conforme explana Baltar:
[...] com os avanços tecnológicos e a ampliação dos suportes textuais,
os eventos discursivos vão sofrendo contínuas modificações nas
estruturas esquemáticas de base-gêneros relativamente estáveis de
enunciados. Isso implica mudanças nos processos de textualização e
provoca mudanças nas relações dos usuários de língua materna, que
necessitam conhecer a diversidade dos gêneros existentes em seu
meio para interagir nos eventos discursivos dentro dos ambientes
específicos de uma sociedade. (BALTAR, 2004, p. 44-45).
Quanto mais modelos conhecermos, mais possibilidades de escolha teremos,
respondendo às nossas necessidades comunicativas. Com a rápida evolução tecnológica
da sociedade moderna procura-se por gêneros que cumpram a mesma função de outros
mais antigos, porém que o façam de uma forma cada vez mais rápida.
Ao definir e caracterizar os modelos relativamente estáveis de enunciados,
Marcuschi considera que é impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum
gênero, assim como é impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum texto”
(MARCUSCHI, 2003, p. 22). Assim, nossos discursos são materializados em textos
que, por sua vez, são organizados pelos gêneros discursivos, definidos por Marcuschi
como práticas sociodiscursivas, não formas estanques, mas como um caráter maleável,
dinâmico.
Seguindo essa mesma linha de compreensão, Bazerman trata os gêneros como
“padrões comunicativos” (BAZERMAN, 2006a, p. 29), explicando que a tendência das
pessoas é escolher o modelo de enunciado para as interações verbais a partir da situação
em que o falante está inserido. De forma quase automática, ao perceber que um gênero
funciona bem em uma dada situação, proporcionando uma boa compreensão, a
tendência será a de adotá-lo novamente em situações similares, definindo para si o que o
30
autor chama de conjunto de gêneros” (BAZERMAN, 2006a, p. 32). O pesquisador
acredita que, seguindo esses padrões comunicativos, podemos antecipar quais serão as
reações das pessoas ao receberem nossos enunciados.
Sob perspectiva semelhante, Baltar (2004) considera que os gêneros
discursivos são criados durante a interação humana de acordo com as necessidades
comunicativas, sendo empregados por gerações posteriores como modelos de
enunciados constituídos por textos e discursos, os quais acredita que sejam as “únicas
manifestações empiricamente observáveis das ações de linguagem humana” (BALTAR,
2004, p. 68). Por isso, o pesquisador considera que o passo fundamental para inserção
prática nas atividades sociais é a apropriação dos gêneros discursivos.
Ao referirem-se aos gêneros, Schneuwly & Dolz adotam uma tese, em relação
a esse objeto de estudo, que se enquadra diretamente na concepção bakhtiniana: “o
gênero é um instrumento” (SCHNEUWLY & DOLZ, 2004, p. 23) adaptado a um
destinatário preciso, a uma finalidade dada numa determinada situação. Conforme a
explanação desses autores,
[...] os instrumentos encontram-se entre o indivíduo que age e o objeto
sobre o qual ou a situação na qual ele age: eles determinam seu
comportamento, guiam-no, afinam e diferenciam sua percepção da
situação na qual ele é levado a agir. A intervenção do instrumento
objeto socialmente elaborado nessa estrutura diferenciada à
atividade uma certa forma; a transformação do instrumento transforma
evidentemente as maneiras de nos comportarmos numa situação.
(
SCHNEUWLY & DOLZ, 2004, p. 23).
O “instrumento” gênero auxilia o indivíduo a adequar suas atividades humanas,
estando presente em todo o meio social, ora como um modelo de enunciado, ora como
outro. Ele é, portanto, o responsável pela forma como o indivíduo age e se comporta nas
situações sociais em que está inserido. Ao elaborar enunciados com características
formais, seu comportamento seguirá esse mesmo estilo, e da mesma forma será caso se
trate de situações informais.
Considerando as explanações dos teóricos aqui citados, de forma geral, temos
os gêneros como modelos relativamente estáveis de enunciados, elaborados e presentes
em todos os tipos de atividade humana com a linguagem. Por responderem às
necessidades comunicativas, compreendemos porque, da mesma forma como surgem,
podem desaparecer, pois se já não respondem a todas as expectativas humanas, havendo
31
outros capazes de fazê-lo, não justificativa para que continuem servindo de
instrumentos durante a comunicação humana.
Desse modo, os usos da língua não se dão por orações isoladas, mas, sim, por
meio de formações potenciais de gêneros que atuam no interior da linguagem, definindo
seu caráter dialógico. Por isso, Bronckart (2003) postula que, ao classificarmos os
gêneros, não podemos fazê-lo de maneira racional, estável e definitiva, ou seja, não
podemos fazê-lo apenas a partir da forma, senão também, e principalmente, a partir da
função comunicativa que exercem durante a interação verbal.
Sob esse mesmo ponto de vista, Marcuschi afirma que esses modelos de
enunciados não se caracterizam nem se definem por aspectos formais, nem estruturais,
nem linguísticos, mas por “aspectos sócio-comunicativos e funcionais” (MARCUSCHI,
2003, p. 21), ou seja, seu lado dinâmico, processual, social, interativo, cognitivo,
evitando a classificação e a postura estrutural.
Isso não significa dizer que a forma de um gênero deva ser desprezada, pois
ela também deve ser levada em conta em tarefas de determinação de gêneros. Assim
como todas as atividades de interação verbal são extremamente variáveis, também os
gêneros o são, devendo ser classificados, quanto à forma e à função que exercem,
incluindo seus aspectos discursivos e enunciativos. Nessa perspectiva, a língua é tratada
como atividade social, histórica e cognitiva.
Bakhtin apresenta ainda uma outra grande contribuição para o estudo dos
gêneros discursivos: suas esferas primária ou secundária. É a reflexão que fazemos na
próxima seção.
2.3.1 Gêneros discursivos primários e secundários
Bakhtin (2000) aponta que os gêneros discursivos estão presentes em todo o
tipo de atividade humana permeada pela linguagem verbal ou não verbal, guiando e
organizando nossas ações sociais. Há, entretanto, algumas distinções entre a forma
como interagimos com a linguagem nas diferentes situações em que nos encontramos, o
que reflete, diretamente, na caracterização dos gêneros discursivos.
Para Bakhtin, o uso típico da língua cria uma linguagem natural, que
compreende duas esferas: os gêneros discursivos primários, usados na comunicação
verbal espontânea, e os gêneros discursivos secundários, selecionados para interações
que exigem maior planejamento. Tal diferenciação é considerada de grande importância
32
para o autor, permitindo a compreensão da “natureza complexa e sutil do enunciado”
(BAKHTIN, 2000, p. 282).
O processo de elaboração de diferentes enunciados possui algumas
particularidades. Os gêneros do discurso primário, por exemplo, passam por um
processo bem simples, não exigindo um planejamento prévio nem um preparo por parte
do enunciador, uma vez que são usados na “comunicação verbal espontânea”, como diz
Bakhtin (2000, p. 281), ou na “imediatez”, conforme a explanação de Schneuwly &
Dolz (2004, p. 31), predominando nos usos orais da língua. Trata-se, portanto, de
gêneros em que há a dominância de relações espontâneas, cotidianas e imediatas.
Por outro lado, ao tratar-se dos gêneros do discurso secundário, teremos
enunciados que exigem um preparo verbal de seu autor: são elaborados para
comunicação cultural mais complexa, com um predomínio de relações formais,
mediadas, principalmente, pela leitura e pela escrita.
Atendo-se a essa explanação, Bronckart explana que os “discursos primários
têm uma estrutura que é dependente das ações não verbais às quais se articulam
(BRONCKART, 2003, p. 60). Ou seja, a linguagem não verbal, incluindo gestos e
comportamentos do enunciador durante a realização de seus enunciados, tende a auxiliar
o interlocutor durante a interpretação. Bakhtin também já assinalava isso ao dizer que “a
comunicação verbal é acompanhada por atos sociais de caráter não verbal, dos quais ela
é muitas vezes apenas o complemento, desempenhando um papel meramente auxiliar”
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 124).
Partindo dessa diferenciação de Bakhtin, Schneuwly & Dolz (2004)
apresentam características próprias de cada uma dessas esferas de utilização da língua.
Segundo eles, os gêneros primários nascem na troca verbal espontânea, aplicando-se a
uma situação à qual o enunciador está ligado de maneira quase indissociável. os
gêneros secundários não estão mais ligados de maneira imediata a uma situação de
comunicação; sua forma é uma construção complexa de vários gêneros cotidianos, não
sendo mais o resultando da esfera de experiências pessoais do enunciador, mas de um
mundo mais complexo.
Em síntese, Schneuwly & Dolz explicam que
[...] a gestão eficaz dos gêneros secundários pressupõe a existência e a
construção de um aparelho psíquico de produção de linguagem que
não funciona mais na imediatez, mas que pode se basear na gestão de
diferentes níveis, relativamente autônomos [...]. Isso significa a
existência de níveis de decisão, de operações discursivas transversais
33
em relação aos gêneros (SCHNEUWLY & DOLZ, 2004, p. 31 -
32).
Em outras palavras, os gêneros secundários não são mais o resultado de
modelos espontâneos, assim como os gêneros primários, mas de modelos construídos
socialmente, fruto do desenvolvimento do enunciador. A escolha de um ou de outro na
interação verbal dependerá, diretamente, da situação de fala, ou seja, do ambiente
social, do objetivo comunicativo e da pessoa com quem interagimos, o que influi,
diretamente, na forma como moldamos nossos discursos. Segundo Bakhtin/Volochinov,
durante a interação humana, a palavra é orientada em função do interlocutor para quem
é dirigida, o que significa dizer que “variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo
social ou não, se essa for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao
locutor por laços sociais mais ou menos estreitos(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004,
p. 112).
Nesse sentido, em uma esfera da atividade e da comunicação verbal informal,
como a família ou um grupo de amigos, por exemplo, podemos empregar os enunciados
pertencentes aos gêneros do discurso primário (mas isso não é regra), como no caso da
produção de um bilhete pessoal, um diálogo informal, uma piada, entre outros. Por
outro lado, quando se exige um comportamento formal, utilizamos os gêneros do
discurso secundário, como no caso de uma aula expositiva, de uma comunicação
científica, da escrita de um artigo científico, uma reportagem jornalística, um romance,
entre outros.
Dessa forma, no conjunto dos gêneros secundários, tanto discursos escritos
quanto orais, como, também, gêneros transmitidos oralmente, porém, produzidos por
meio da escrita, como é o caso de notícias veiculadas pela mídia televisiva. Durante seu
processo de formação, esses gêneros passam por várias etapas, incluindo revisões, o que
os caracteriza como discursos complexos. Há, até mesmo, casos em que gêneros
primários se transformam em secundários, sendo incorporados por esses. Conforme
Bakhtin,
Durante o processo de sua formação, esses gêneros secundários
absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as
espécies, que se constituíram em circunstância de uma comunicação
verbal espontânea. Os gêneros primários, ao se tornarem componentes
dos gêneros secundários, transformam-se dentro destes e adquirem
uma característica particular: perdem sua relação imediata com a
realidade existente e com a realidade dos discursos alheios.
(
BAKHTIN, 2000, p. 281).
34
Com base nessa explanação de Bakhtin, compreendemos os gêneros primários
como um meio pelo qual se formam os secundários. Schneuwly & Dolz (2004),
compreendendo que os gêneros são instrumentos, caracterizam os primários enquanto
instrumentos de criação dos secundários. Como exemplo desse processo de
transmutação, temos o diálogo com a presença do locutor e do interlocutor em um
mesmo contexto social: inserido em uma situação espontânea, trata-se de um gênero
primário; por outro lado, inserido dentro de um romance, o mesmo perde suas
características informais e passa a fazer parte de um gênero secundário.
Partindo das teorias de Bakhtin aqui apresentadas, bem como dos demais
autores citados, entendemos que, mesmo existindo milhares de modelos de gêneros
relativamente estáveis disponíveis para uso durante a interação verbal, há uma restrição
para seu uso. Os fatores para a sua escolha são observados a partir da situação
comunicativa, a qual determina gêneros do discurso secundário para relações sociais
que envolvem um nível maior de formalidade e gêneros do discurso primário para
situações com um nível menor de formalidade. Assim, quando analisamos um gênero,
são essas as características que revelam sua natureza, uma vez que podem ser
observadas, diretamente, na linguagem e na organização do discurso analisado.
No caso de nosso corpus de pesquisa, temos quatro cartas de amor das décadas
de 1950 e 1960, ou seja, gêneros escritos com uma certa organização (alguns mais
próximos da língua padrão, outros nem tanto). Consideramos estes como secundários.
Sobre isso, porém, discutiremos de forma mais aprofundada no próximo capítulo.
Primeiramente expomos o percurso metodológico de análise a ser seguido, definindo
aquilo que Bakhtin chama de conteúdo temático, estilo e construção composicional.
2.4 PERCURSO METODOLÓGICO DE ANÁLISE DOS GÊNEROS
Ao discutir sobre os gêneros discursivos, Bakhtin apresenta três elementos
principais que os constituem: “conteúdo temático, estilo e construção composicional”
(BAKHTIN, 2000, p. 279). São elementos que devem ser considerados, segundo ele,
em estudos da língua e, assim, na análise dos gêneros discursivos, haja vista que eles
refletem as condições específicas e as finalidades de cada umas das esferas em que são
produzidos, incorporando os valores da necessidade temática, a seleção dos recursos
linguísticos (como lexicais, fraseológicos, gramaticais e a organização dos enunciados
35
em função do gênero), os participantes e suas intenções/vontades no ato da interlocução.
Esses elementos nos auxiliam a selecionar o gênero mais adequado a cada situação
comunicativa.
Considerando tais aspectos, Baltar postula que os gêneros discursivos sempre
se organizam dentro de certas restrições de natureza temática, composicional e
estilística. Eles são, portanto:
[...] unidades triádicas relativamente estáveis, passíveis de serem
divididas para fim de análise em unidade composicional, unidade
temática e estilo, disponíveis num inventário de textos (arquitexto ou
intertexto), criado historicamente pela prática social, com ocorrência
nos mais variados ambientes discursivos, que os usuários e uma língua
natural atualizam quando participam de uma atividade de linguagem,
de acordo com o efeito de sentido que querem provocar nos seus
interlocutores. (BALTAR, 2004, p.46-47).
Nesse sentido, para que um enunciado possa ser todo ele compreendido, é
necessário considerarmos essas três características que o constituem, buscando
identificá-las em estudos de neros discursivos, associadas ao contexto de produção,
que nos dá pistas fundamentais para a recuperação de todo o conteúdo temático.
Como forma de abordar esses três elementos em estudos de gêneros
discursivos, Bakhtin apresenta uma ordem metodológica a ser seguida. Segundo o autor,
o estudo da língua deve levar em consideração:
1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as
condições concretas em que se realiza.
2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em
ligação estreita com a interação de que se constituem os elementos,
isto é, as categorias dos atos de fala na vida e na criação ideológica,
que se prestam a uma determinação pela interação verbal.
3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação
linguística habitual. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 124).
Tal ordem é proposta por Bakhtin/Volochinov com a seguinte justificativa:
É nessa mesma ordem que se desenvolve a evolução real da língua: as
relações sociais evoluem (em função das infra-estruturas), depois a
comunicação e a interação verbais evoluem no quadro das relações
sociais, as formas dos atos de fala evoluem em conseqüência da
interação verbal, e o processo de evolução reflete-se, enfim, na
mudança das formas da língua (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p.
124).
Relacionando esta ordem metodológica com a teoria dos gêneros discursivos,
conforme expomos no primeiro capítulo, quando versamos sobre o corpus de
36
pesquisa e as escolhas metodológicas, a sugestão de Bakhtin/Volochinov é que o
primeiro ponto a ser analisado em um gênero discursivo seja o conteúdo temático,
seguido da estrutura composicional e do estilo. A seguir, apresentamos cada um desses
pontos detalhadamente. Compreendemos que o contexto de produção es dentro do
conteúdo temático, entretanto, optamos por apresentá-lo separadamente, pois, na análise
das cartas de amor, esse elemento será considerado, que contextualizaremos a vida
das pessoas envolvidas na sua produção e, depois, iniciamos a análise propriamente
dita.
2.4.1 Contexto de produção
Como exposto anteriormente, Bakhtin considera que a interação verbal se
realiza por meio de enunciados concretos, organizados em função do lugar onde
estamos quando falamos/escrevemos, com quem interagimos e tendo em vista quais
necessidades. Isso significa que nosso dizer está indissoluvelmente ligado ao contexto
em que foi produzido, responsável por vincular a língua à vida. Nas palavras do teórico:
[...]
ignorar a natureza do enunciado e as particularidades do gênero
que assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo
lingüístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade
do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida. A
língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a
realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida
penetra na língua. (BAKHTIN, 2000, p. 282).
Brait e Melo, em uma releitura das teorias de Bakhtin, esclarecem que um
enunciado só poderá ser compreendido se considerada a interação em que se deu, assim
como todas as suas implicações. Um enunciado concreto é, portanto, segundo elas, “a
forma como a enunciação se dá, formada por discursos que circulam socialmente,
reiterando a integração constitutiva entre o plano verbal e os demais que lhe são
constitutivos” (BRAIT & MELO, 2008, p. 77).
Daí se justifica a importância dada por Bakhtin e seu círculo ao contexto de
produção de um gênero discursivo. As formas linguísticas de um enunciado permitem
apenas a significação do que está dito. O contexto de produção, por outro lado,
determina as condições reais de uma enunciação, permite a compreensão da situação
social em que aquele enunciado foi produzido, determinando o objetivo e a atitude
responsiva ativa do interlocutor.
37
Conforme postula Bakhtin/Volochinov: “a situação social mais imediata e o
meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu
próprio interior, a estrutura da enunciação” (BAKHTIN
/VOLOCHINOV, 2004, p. 113).
Isso porque “o centro organizador de toda enunciação, de toda expressão, não é o
interior, mas o exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo”
(BAKHTIN
/VOLOCHINOV, 2004, p. 121).
É devido a esse aspecto que cada enunciado por nós produzido é único e
irrepetível. Nunca teremos duas situações de fala totalmente idênticas uma a outra. Um
mesmo contexto de produção não se repete por completo, que se trata, conforme
Bakhtin/Volochinov, “de uma situação histórica imediata concreta”
(BAKHTIN
/VOLOCHINOV, 2004, p. 128).
O contexto de produção está, por assim dizer, ligado à história, à cultura, às
ideologias e à identidade, permitindo, por meio de uma análise aprofundada de um
gênero discursivo, a recuperação de todos esses aspectos, o que constitui o primeiro
passo de análise de um gênero discursivo, segundo o proposto por Bakhtin/Volochinov
(2004), quando se aborda o conteúdo temático.
2.4.2 Conteúdo Temático
Apesar de vinculado a um contexto de produção imediato, um enunciado
nunca será concreto se não constitui uma enunciação, isto é, se não leva à compreensão.
E, para que essa seja completa, precisamos conhecer seu conteúdo temático, pois,
conforme Bakhtin/Volochinov, o tema “é um atributo apenas da enunciação completa”
(BAKHTIN
/VOLOCHINOV, 2004, p. 130).
Quando se fala em tema, corremos o risco de, facilmente, reduzi-lo à
significação, ou seja, à interpretação do que está dito no texto e nada mais. Entretanto,
para Bakhtin/Volochinov, esta é apenas o “estágio inferior da capacidade de significar.
A significação não quer dizer nada em si mesma, ela é apenas um potencial, uma
possibilidade de significar no interior de um tema concreto”
(BAKHTIN
/VOLOCHINOV, 2004, p. 131). Em outras palavras, considerar apenas a
significação é estudar os elementos estáveis de um texto, desconsiderando-se todo o
restante.
Por outro lado, recuperar e analisar o conteúdo temático constitui, de acordo
com o mesmo teórico, “o estágio superior real da capacidade de significar [...]; nesse
38
caso, tratar-se-ia da investigação da significação contextual de uma dada palavra nas
condições de uma enunciação completa” (BAKHTIN
/VOLOCHINOV, 2004, p. 131).
Nessa perspectiva, o conteúdo temático pode ser compreendido como o
assunto sobre o qual se fala, desde que vinculado à situação comunicativa em que foi
criado, revelado, então, pelas formas linguísticas e pelos elementos não verbais da
situação. Em outras palavras: estudar o conteúdo temático de um gênero significa
extrapolar o que está dito no texto, relacionando a análise com o mundo real,
localizando-o na história e definindo-o a partir de características culturais de uma época.
Segundo Baltar, o conteúdo temático é composto por informações explícita e
implicitamente contidas nos textos, apresentadas pelas suas unidades proposicionais (ou
semânticas). São, portanto,
[...] representações interiorizadas do agente produtor do texto. São
conhecimentos que vão variar de acordo com suas experiências
vividas, seus conhecimentos prévios de mundo, que estarão
disponíveis em sua memória e que serão atualizados no momento da
ação de linguagem. (BALTAR, 2004, p. 69).
O tema, portanto, é carregado de ideologias, apontando para conhecimentos de
mundo, tanto do produtor quanto do interlocutor, visto que o conteúdo temático possui
relação com a cultura dos envolvidos no ato de comunicação, que influenciará
diretamente na escolha do tema. A análise de cartas de amor que desenvolveremos,
nesse estudo, objetiva identificar, entre outros aspectos, representações que as
remetentes revelam na sua produção, em função do destinatário.
2.4.3 Estrutura composicional
Seguindo a ordem das dimensões dos neros antes exposta, um outro
elemento a ser analisado em um gênero discursivo é a estrutura composicional,
abordando, então, a construção de um texto, o que permite reconhecê-lo como
pertencente a determinado gênero, devido ao “tipo relativamente estável de enunciado”
(BAKHTIN, 2000, p. 279).
Como os teóricos citados neste estudo (BAKHTIN, 2000; MARCUSCHI,
2003; BRONCKART, 2003) concordam em afirmar que um gênero é definido não
apenas por sua forma, mas, também, por suas características funcionais, a estrutura
39
composicional não deve ser desconsiderada e, muito menos, tomada como única
referência durante a análise de um gênero discursivo.
Cada gênero possui, no entanto, regularidades organizacionais responsáveis
por auxiliar no seu reconhecimento quanto ao léxico, à sintaxe, ao planejamento
linguístico, ao tamanho do enunciado, à sua forma de exposição (local do título, da
identificação do locutor e do interlocutor, da data em que foi produzido, dentre outros
aspectos).
Além do citado, postulam que a tipologia textual de um gênero discursivo
também faz parte de sua construção composicional. Enquanto os gêneros são
compreendidos como modelos de enunciados realizados em textos, possibilitando a
interação verbal, as tipologias textuais são as sequências de enunciados encontradas no
interior desses textos, responsáveis por sua organização interna.
Frisamos que, para a análise da estrutura, buscamos aportes em Marcuschi
(2003). De acordo com ele:
(a) Usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de
seqüência teoricamente definida pela natureza lingüística de sua
composição {aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações
lógicas}. Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de meia dúzia de
categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição,
descrição, injunção.
(b) Usamos a expressão gênero textual como uma noção
propositalmente vaga para referir os textos materializados que
encontramos em nossa vida diária e que apresentam características
sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades
funcionais, estilo e composição característica. Se os tipos textuais são
apenas meia dúzia, os gêneros são inúmeros. Alguns exemplos de
gêneros textuais seriam: telefonema, sermão, carta comercial, carta
pessoal, romance, bilhete, reportagem jornalística, [...].
(MARCUSCHI, 2003, p. 22-23).
Se, portanto, como aponta Bakhtin, “a riqueza e a variedade dos gêneros do
discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável”
(BAKHTIN, 2000, p. 279), o mesmo não se pode dizer das tipologias, que são em
número de cinco: narração, argumentação, exposição, descrição e injunção, conforme
citado por Marcuschi. Isso se justifica porque, enquanto os gêneros do discurso são os
diferentes tipos de enunciados, materializados em textos empíricos, por meio dos quais
se interage, ou seja, formas verbais de ação social, os tipos de texto são as sequências
linguísticas internas, organizadoras dos enunciados e, assim, somente designações
teóricas.
40
De forma um pouco mais resumida, Marcuschi (2003) expõe que, enquanto
para os tipos textuais predomina a identificação de sequências linguísticas típicas
norteadoras, para a noção de gênero discursivo predominam os critérios de ação prática,
circulação sócio-histórica, funcionalidade, conteúdo temático, estilo e
composicionalidade. Em outras palavras, podemos dizer que os tipos de textos se
realizam nos gêneros discursivos. Os textos materializados constituem os gêneros e suas
sequências organizacionais, as tipologias.
Bronckart (2003) adota tipos do discurso ou tipos discursivos para referir-se à
tipologia. Essa escolha é justificada porque, segundo o autor, as tipologias de texto
consideram a produção verbal apenas no nível de seu produto linguístico, apoiando-se
na concepção de que os seres humanos possuem uma competência textual inata e
universal, somente uma extensão da competência gramatical primeira, incapaz de
atribuir um estatuto à diversidade dos gêneros e da língua. Como ele defende a
perspectiva interacionista sociodiscursiva, a linguagem possui uma dimensão sócio-
histórica primeira da textualidade, não podendo, portanto, ser reduzida a um produto
linguístico.
Dessa forma,
Qualquer que seja o gênero a que pertençam os textos, de fato, são
constituídos segundo modalidades muito variáveis, por segmentos de
estatutos diferentes (segmentos de exposição teórica, de relato, de
diálogo) [...]. São segmentos constitutivos de um gênero que devem
ser considerados como tipos linguísticos, isto é, como formas
dependentes do leque dos recursos morfossintáticos de uma língua.
São formas correlatas à (ou reveladoras da) construção das
coordenadas de mundos virtuais, radicalmente diferenciadas do
mundo empírico dos agentes. Por isso, chamamos esses segmentos de
tipos de discurso. (BRONCKART, 2003, p.138-139).
Concernentes às nomenclaturas e às concepções aqui explanadas, entendemos
as tipologias textuais enquanto organizadores sintáticos e/ou lexicais das unidades que
aparecem no interior dos gêneros discursivos (orais e escritos), como formas
linguísticas identificáveis nos textos. Assim como os gêneros textuais, as tipologias
também possuem algumas particularidades que as definem e as diferenciam entre si.
Segundo Marcuschi,
Um elemento central na organização de textos narrativos é a sequência
temporal. no caso de textos descritivos predominam as sequências
de localização. Os textos expositivos apresentam o predomínio de
sequências analíticas ou então explicitamente explicativas. Os textos
41
argumentativos se dão pelo predomínio de sequências contrastivas
explícitas. Por fim, os textos injuntivos apresentam o predomínio de
sequências imperativas (MARCUSCHI, 2003, p. 29).
Entretanto, na maioria dos casos, ocorrerão textos nos quais se realizam dois
ou mais tipos textuais ao mesmo tempo, os quais aparecerão separados ou, mesmo,
misturados. Trata-se de uma “heterogeneidade tipológica” (MARCUSCHI, 2003, p. 27)
ou de uma “heterogeneidade composicional” (BRONCKART 2003, p.219).
Dificilmente encontraremos um texto totalmente homogêneo, no qual haja somente
descrição, narração ou argumentação, pois, no interior de um gênero discursivo, a
possibilidade de combinação de diferentes sequências discursivas.
Quando isso acontece, teremos a definição de um texto como narrativo,
descritivo, injuntivo, argumentativo ou expositivo de acordo com a sequência tipológica
predominante no interior de cada gênero discursivo. Segundo Marcuschi, “quando se
nomeia um texto como ‘narrativo’, ‘descritivo’ ou ‘argumentativo’, não se está
nomeando o gênero e sim o predomínio de um tipo de seqüência de base”
(MARCUSCHI, 2003, p. 27).
Considerando o exposto, trabalhamos, aqui, com a estrutura composicional
abordando não apenas a forma (visual), mas também suas características funcionais
(elementos constituintes do gênero discursivo), o que engloba, conforme postula
Bakhtin, o “tipo de estruturação e de conclusão de um todo, tipo de relação entre o
locutor e os parceiros da comunicação verbal (relação com o ouvinte, ou com o leitor,
com o interlocutor, com o discurso do outro, etc.)” (BAKHTIN, 2000, p. 284).
Mais adiante detalharemos essas características nas cartas de amor
constituintes do corpus, mas, primeiro, apresentamos a definição de estilo, que,
conforme a metodologia sugerida por Bakhtin/Volochinov (2004), seria o terceiro ponto
de análise de um gênero discursivo.
2.4.4 Estilo
Bakhtin/Volochinov sugere que, após abordarmos o conteúdo temático e a
estrutura composicional de um gênero, devemos considerar o estilo individual da pessoa
que o produziu, uma vez que essas marcas subjetivas estão sempre presentes na língua,
ora de forma bem recorrente, ora nem tanto, ou, outras vezes, simplesmente não
aparecem, dependendo do gênero discursivo utilizado. Tal fato se justifica porque, como
42
defendido, a língua é social, histórica e cultural e, segundo Brait, “deixa entrever
singularidades, particularidades, sempre afetadas, alteradas, impregnadas pelas relações
que as constituem” (BRAIT, 2008, p. 81).
Para compreender essa afirmação é, porém, necessário considerarmos que todo
enunciado é individual, marcando o estilo de seu produtor. Conforme postula Bakhtin:
“o enunciado oral e escrito, primário e secundário, em qualquer esfera de
comunicação verbal [...] pode refletir a individualidade de quem fala (ou escreve)”
(BAKHTIN, 2000, p. 283). Isso implica compreendermos que a palavra é viva: “não é
um objeto, mas um meio constantemente ativo, constantemente mutável de
comunicação dialógica. Ela nunca basta a uma consciência, a uma voz
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004 p. 202).
Dito de outra forma, o estilo é compreendido como a individualidade, a
identidade de seu autor, sua visão de mundo, porém atravessado socialmente. Por ser
assim, está ligado à cultura do local e da época em que foi produzido, ou seja, ao
conteúdo temático. Nessa perspectiva, a ngua, a cultura e a identidade são
indissociáveis entre si. Seguindo as concepções bakhtinianas, a língua é representante e
constituinte da realidade, identificada no estilo do autor.
Podemos, então, imaginar uma ponte entre as definições de cultura e de
identidade. Cavalcanti postula que é a cultura que nos forma: sem cultura não haveria
identidade e, consequentemente, estilo. Assim, toda e qualquer representação de estilo
“está inserida primeiramente na língua(gem) e depois na cultura” (CAVALCANTI,
2001, p. 52), ou seja, as identidades/estilos, ao expressarem individualidades, expressam
o meio em que são produzidos, pois a partir do meio, eles são criados.
Considerando a visão de Bakhtin em relação ao estilo, Brait esclarece:
[...] a concepção de estilo, no sentido bakhtiniano, pode dar margens a
muito mais do que a simples busca de traços que indiciem a
expressividade de um indivíduo. Essa concepção implica sujeito que
instaura discursos a partir de seus enunciados concretos, de suas
formas de enunciação, que fazem história e são a ela submetidos.
Assim, a singularidade estará necessariamente em diálogo com o
coletivo em que textos, verbais ou verbo-visuais, deixam ver, em seu
conjunto, os demais participantes da interação em que se inserem e
que, por força da dialogicidade, incide sobre o passado e sobre o
futuro. (BRAIT, 2008, p. 98).
A personalidade de uma pessoa pode ser justificada a partir do estudo dos
valores culturais do grupo social a que pertence. Para Brait, assim “como a visão de
43
mundo estrutura e unifica o horizonte do homem, o estilo estrutura e unifica seu
ambiente” (BRAIT, 2008, p. 88).
O que refletimos em nossa identidade, durante a interação verbal, são os
reflexos das ideologias de cada cultura e a forma como estas fazem parte do nosso agir
cotidiano. Bronckart defende que esses reflexos estão presentes em suas ações de
linguagem:
Quando se engaja em uma ação de linguagem, o agente humano
dispõe, inicialmente, como qualquer outra ação, de um conhecimento
dos mundos representados; ele se apropriou, na interação social e
verbal, dos conhecimentos relativos ao mundo objetivo, ao mundo
social e ao mundo subjetivo, que são, entretanto, apenas versões
pessoais e necessariamente parciais dessas coordenadas globais.
(BRONCKART, 2003, p. 46).
A identidade, ligando-se ao estilo de um indivíduo, nunca será totalmente
semelhante a de outro. Cada pessoa possuiu uma individualidade própria, composta,
segundo Brait (2008), por idiossincrasias, ligando o homem ao seu mundo, por meio da
interação verbal, isto é, da forma como cada um utiliza a linguagem na produção de
gêneros discursivos.
Nesse sentido, Brait (2008) explica que, para Bakhtin e o Círculo, um
enunciado, gênero, texto ou discurso é sempre participante de uma história, cultura e,
também, da autenticidade de um acontecimento.
Devemos frisar que, apesar de estarmos defendendo que o estilo do autor é
refletido, por meio da língua, em um gênero discursivo, o interlocutor também tem
papel determinante nesse estilo, pois, conforme Bakhtin,
[...] o papel dos outros, para os quais o enunciado se elabora, é muito
importante. Os outros, para os quais meu pensamento se torna, pela
primeira vez, um pensamento real (e, com isso, real para mim), não
são ouvintes passivos, mas participantes ativos da comunicação
verbal. (BAKHTIN, 2000, p. 320).
E, sendo assim, o estilo do produtor pode, dependendo da situação,
condicionar-se ao estilo de seu interlocutor, que o enunciado é moldado em relação a
ele e ao contexto de produção. Nesse sentido, Brait chega a mencionar o “estilo
confessional” (BRAIT, 2008, p. 84), quando se expressam avaliações sobre o que ou a
quem se fala, ou seja, o interlocutor.
O conteúdo temático, a construção composicional e o estilo são elementos
inseparáveis em um gênero discursivo. Estão interligados e, sendo todos considerados
44
em estudos da língua, permitem a enunciação completa de um enunciado. Considerando
isso como forma de compreendermos o gênero discursivo cartas de amor, a análise que
desenvolveremos segue as características propostas por Bakhtin.
2.5 GÊNERO CARTA
Apesar de ter se tornado, hoje, um gênero raramente utilizado para mediar a
distância entre dois indivíduos e de parecer um gênero simples por ser, conforme as
postulações de Bazerman (2006), tão abertamente ligada às relações sociais e a
escritores particulares, a carta possui diversas características estruturais e funcionais que
devem ser reconhecidas para, assim, compreendermos sua composição. O objetivo da
presente seção é expor e refletir sobre tais aspectos, descrevendo, brevemente, nosso
material de análise.
A complexidade do gênero carta pode ser verificada nos diversos e
diferentes modelos que o compõem, pois, para cada situação socioenunciativa que o
envolve, novas características são apresentadas.
Para citar alguns desses modelos, recorremos a uma pesquisa de Souto Maior
(2001). Com base no domínio discursivo de cada um deles, a autora os agrupa em
diferentes nomeações. Ela postula que a carta, “independente do meio por que é enviada
(correio, fax ou e-mail), faz parte de uma ‘constelação’ que agrupa diversos textos
(SOUTO MAIOR, 2001, p. 11), motivo pelo qual esse modelo de enunciado pode ser
considerado enquanto “um gênero com subgêneros (SOUTO MAIOR, 2001, p. 11).
Por isso, necessita ser categorizado para podermos compreendê-lo.
Ao referir-se aos subgêneros, Souto Maior (2001) refere-se às variadas
fórmulas assumidas pelo gênero em questão. Assim, cartas cujos domínios discursivos
são comerciais são denominadas cartas de resposta e de comunicado; as de domínios
instrucionais são cartas de programa, circulares, respostas e de apresentação; as
jornalísticas são cartas do leitor, do editor, aos leitores, aberta, propaganda, boas-
vindas; as jurídicas são as cartas de intimação; publicitários são respostas,
confirmações, agradecimento, pedido; religiosas são as cartas de convite ou de
comunicado; e as de saúde são cartas de programa, de comunicado.
Dentro dessa variação de subgêneros, Barbosa (1979) acrescenta, às
correspondências pessoais, as cartas familiares e de amor, sendo esta última categoria
citada o modelo constituinte de nosso corpus de pesquisa.
45
Alguns teóricos (MIRANDA, 2000; JIMÉNEZ, 2000) tratam as cartas
pessoais, familiares e de amor sem qualquer distinção. Outros, porém, preferem a
nomenclatura cartas familiares para referências àquelas trocadas entre pessoas da
mesma família a que pertence o remetente, reservando a definição de cartas pessoais
àquelas endereçadas a pessoas de outras famílias, como amigos. Nesse patamar, então,
as cartas de amor seriam as trocadas entre namorados, amantes ou, simplesmente,
pessoas que desejavam manter relacionamentos amorosos com o destinatário.
Barbosa apresenta uma breve descrição dessa categoria do gênero:
São muitas as pessoas que não conseguem levar para o papel [...] o
toque do suave lirismo para expressarem com exatidão o que sentem.
Claro que não se deve dirigir à pessoa amada com frases que denotem
afetação ou pedantismo. A naturalidade tem de ser a principal virtude
estilística [...]. Sendo espontânea e sincera, a carta de amor aproxima
ainda mais os corações [...]. Embora seja usado o pronome você no
tratamento comum das conversas, pode admitir-se nas cartas a
segunda pessoa do singular (tu), servindo também de veículo de
intimidade. (BARBOSA, 1979, p. 97).
Sob tal enfoque, caracterizada por uma certa intimidade entre remetente e
destinatário, respeitando, entretanto, os costumes do grupo social a que pertencem, a
carta de amor pode ser empregada como veículo de expressão dos sentimentos mais
profundos, sejam eles causados pela dor de um amor não correspondido ou por uma
paixão profunda e recíproca.
De forma geral, todos os subgêneros da carta podem possuem um mesmo
objetivo, o qual é descrito por Bazerman:
Do seu amplo uso no mundo clássico, podemos ver como a carta, uma
vez criada para mediar a distância entre dois indivíduos, fornece um
espaço transacional aberto, que pode ser especificado, definido e
regularizado de muitas maneiras diferentes. As relações e transações
em curso são mostradas para o leitor e o escritor diretamente através
das saudações, das assinaturas e dos conteúdos da carta. Além do
mais, cartas podem descrever e comentar freqüentemente de modo
explícito a relação entre os indivíduos e a natureza da transação
corrente [...] a organização e as transações podem alcançar distâncias
maiores, como também os laços sociais entre os indivíduos podem ser
reforçados e até criados através de relações indiretas com outras
pessoas. (BAZERMAN, 2006c, p. 87-88).
Bazerman compreende, assim, que o gênero carta não está totalmente
esquecido, mas em constante evolução. Segundo ele, “as pessoas reconhecem cada vez
46
mais uma variedade de transações que pode ser realizada à distância através das cartas,
seguindo modelos para cada tipo de transação” (BAZERMAN, 2006c, p. 88).
Devido a tantos modelos de um mesmo gênero, a carta apresenta uma enorme
variação de destinatários, o que demonstra a extrema diversidade de objetivos
comunicativos que podem ser alcançados por meio da sua seleção, uma vez que ela está
presente nas mais variadas práticas sociais. Para citar alguns exemplos: cartas podem
servir para informar ao destinatário notícias recentes; relatar passeios, viagens, férias;
fazer pedidos de namoro; dar conselhos; pedir desculpas; enfim, manter relações com
pessoas íntimas, expressando sentimentos ditados pelo coração de forma espontânea.
Trata-se de uma característica da carta que, segundo Bazerman, permite revelar “clara e
explicitamente a sociabilidade que faz parte de toda escrita(BAZERMAN, 2006c, p.
99).
Para que o gênero em questão possa, de fato, mediar a interação entre dois
indivíduos, existem alguns princípios básicos que devem ser cumpridos, os quais
determinam seu contexto de produção. É o que Baumgärtner e Cruz (2009) destacam:
[...] é necessário que o produtor se assuma como locutor, numa
relação interlocutiva [...]. Ao interagir com o outro através do gênero
carta, o autor considera uma série de elementos contextuais:
ele é alguém na sociedade;
ele escreve para alguém;
ele tem um objetivo;
ele se constitui como sujeito de seu discurso e lança mão de
estratégias para realizar o processo de interlocução;
ele escolhe o gênero mais apropriado para atingir seus objetivos;
ele escolhe o meio de divulgação. (BAUMGÄRTNER & CRUZ,
2009, p. 169-170).
Esses pontos retomam discussões feitas anteriormente, quando destacamos, em
Bakhtin (2000), a existência obrigatória de um interlocutor para que um enunciado seja
concreto e possa mediar a interação verbal entre dois indivíduos. É sobre essa pessoa, o
mundo e si mesmo, que o escritor da carta agirá. Trata-se, assim, “de um modo de
intervenção realizado através do uso da linguagem em seu registro escrito [...] o sujeito
se compromete com sua palavra, e sua articulação individual se compromete com a
esfera social em que está produzindo os discursos” (BAUMGÄRTNER & CRUZ, 2009,
p. 171).
Por ser assim, a carta é um gênero discursivo que, propiciando a existência da
enunciação, constitui-se em um meio de manter a interação social. De acordo com Silva,
47
“ela sempre será uma unidade aos olhos de quem abre o envelope: o ato de enviar uma
carta e o fato de recebê-la criam uma situação comunicativa: está feito o contato”
(SILVA, 1995, p. 235).
Para Bakhtin/Volochinov (2004), isso se explica pelo fato de que uma relação
dialógica não diz respeito apenas a duas pessoas interagindo face a face, mas a qualquer
tipo de comunicação verbal, seja oral, seja escrita. Assim como qualquer outro gênero, a
carta é um meio de expor visões de mundo e ideologias caracterizadoras da cultura, bem
como valores pragmáticos reveladores do estilo e da identidade de quem as escreve e/ou
recebe. É dessa forma que explicamos o fato de o conteúdo temático recuperar tais
aspectos por meio da análise de um gênero discursivo, como expomos na análise do
corpus.
Dito de outra forma, a carta pressupõe a existência de uma língua, uma cultura
e uma identidade, elementos identificadores tanto do remetente, quanto do destinatário,
o qual poderá, também, tornar-se um remetente caso responda à carta recebida.
Nesse aspecto teremos uma enorme variação nas formas de tratamento entre os
interlocutores, o que dependerá, principalmente, da categoria de carta e da relação
existente entre as pessoas envolvidas nesse processo.
No caso de cartas comerciais, institucionais, jornalísticas, jurídicas,
publicitárias e religiosas, esse tratamento de dará de maneira formal, assim como o texto
da carta. na correspondência pessoal, familiar e de amor, por destacar-se, de acordo
com Barbosa (1979), por sua simplicidade, naturalidade e pelo assunto travado com a
singeleza de quem trava uma conversa, o tratamento se dará de maneira informal e
muito irregular.
Entre as expressões mais comuns, Jiménez (2000) aponta tu ou você aos mais
íntimos, aos amigos e aos parentes e senhor ou senhora para os mais idosos, devido a
uma hierarquia, na qual os menores se dirigem com respeito aos maiores e esses se
dirigem com afeto àqueles. Nesse último tratamento citado, podemos incluir, também, o
tratamento do aluno ao professor, ou do empregado ao patrão. Jiménez cita um exemplo
de tratamento entre amigos:
Raramente encontramos o tratamento amigo” em cabeçalhos de
cartas que, realmente, vão dirigidas a um amigo, a quem se trata com
o nome ou apelido. É claro que tudo depende do grau de amizade. É
óbvio que tratarão como “você” ao amigo que conheceram em uma
48
festa, mas tratarão de alterne
4
ao que foi com eles à festa (JIMÉNEZ,
2000).
Além disso, a carta ainda apresenta características de apresentação visual ou
estrutural, características que podemos apresentar de maneira resumida. Conforme
exposto por Barbosa (1979), os elementos básicos desse gênero são: endereço do
remetente e do destinatário (no envelope, tratando-se de correspondência pessoal,
familiar e de amor, e em locais específicos, tratando-se de seus outros modelos), o local
e a data em que a mesma foi escrita (cabeçalho), um vocativo ou chamamento
(saudação), o texto (desenvolvimento do/s assunto/s), a despedida e uma assinatura.
No caso das cartas pessoais e familiares, o locativo e a data aparecem em
primeiro plano, à direita e, mais abaixo, à esquerda, vem o vocativo ou saudação, que
varia segundo o grau de intimidade. Entenda-se, porém, que, apesar de existirem esses
elementos, não podem ser vistos de forma estática, porque, segundo Bazerman, “essas
variedades de cartas se tornaram fortemente tipificadas em organização e no uso de
frases de expressão” (BAZERMAN, 2006c, p. 88). E Barbosa justifica essa tipificação:
“podem fazer-se fórmulas para a correspondência social e comercial, mas não para
aquela que não passa de amistosa conversa à distância” (BARBOSA, 1979, p. 34).
Assim, podemos, novamente, frisar que os gêneros discursivos são “tipos
relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2000, p. 279) e não formas fixas
que devem ser seguidas incondicionalmente. As cartas apresentam-se, em relação a
outros enunciados, como modelos um pouco mais livres por permitirem uma variação
no tipo de linguagem utilizada. Entretanto, qualquer gênero discursivo permite a
inserção do estilo individual de seu autor, o que o diferencia de outros enunciados
pertencentes ao mesmo gênero.
Ao buscarmos informações sobre a origem desse gênero discursivo,
encontramos que o modelo de carta pessoal e familiar que hoje conhecemos surgiu a
partir de outros. As características informais nem sempre estiveram presentes, uma vez
que seus primeiros usos eram restritos ao ambiente formal.
Bazerman (2006), em um estudo sobre a base social da carta, explica que ela
surgiu no Antigo Oriente Próximo e na Grécia com o objetivo de estender o domínio de
autoridades, servindo como meio de divulgação de ordens, leis, códigos e proclamações,
uma vez que os primeiros comandos escritos ao lado de outros assuntos de Estado
4
A expressão “alterne” é traduzida para o português da seguinte forma: “relação ou trato social que
consiste, geralmente, em beber e se divertir a noite em locais públicos” (SEÑAS, 2002, p. 67).
49
militares, administrativos ou políticos foram feitos na forma de cartas. Essas eram
entregues aos seus destinatários por mensageiros que representavam o emissor delas,
mensageiros que deviam ler a mensagem em voz alta. Havia, portanto, a concretização
de relações sociais realizadas à distância por meio da carta.
Ainda, segundo esse autor, a partir desses usos oficiais, as cartas foram se
expandindo: dos mensageiros orais, surgiram os textos escritos, primeiramente em
tijolos de argila, depois em tábuas de cera, papiro, e em documentos em papel cartas,
bilhetes, memorandos, ofícios, requerimentos e, finalmente, o e-mail. Conforme
comenta Bazerman, durante esse processo, elas passaram a
[...] incluir expressões de preocupação pessoal e, posteriormente,
mensagens particulares. A manutenção e ampliação dos laços sociais
modificaram as relações estabelecidas através das cartas para além do
formal e oficial em direção ao pessoal. Cartas pessoais familiares
tornaram-se comuns entre todas as classes do mundo helênico e
romano. (BAZERMAN, 2006c, p. 87).
Observamos, assim, uma rápida evolução sofrida pelos gêneros discursivos.
Segundo Marcuschi (2003), isso ocorre porque, devido à evolução tecnológica,
determinados gêneros deixam de responder às necessidades comunicativas de seus
indivíduos. Todavia, quando surge um novo modelo de enunciado, isso não acontece
sem uma ancoragem em outros existentes. Um novo gênero sempre surge a partir da
adaptação de outro em relação às necessidades comunicativas.
No caso da carta de amor, por exemplo, essa era, algum tempo atrás, uma
das únicas formas de comunicação entre pessoas enamoradas que se encontravam
distantes. Hoje, porém, com a ampliação do acesso às linhas telefônicas e o crescente
uso do computador, uma grande parcela da população mundial deixou de utilizá-la,
apropriando-se de novos modelos de enunciados, como o e-mail, o telefonema, o scrap,
entre outros.
Bazerman (2006) faz uma observação importante em relação a esse processo:
[...] as cartas desempenharam um papel no surgimento de gêneros
distintos [...]. A carta, com sua comunicação direta entre dois
indivíduos dentro de uma relação específica em circunstâncias
específicas (tudo o que podia ser comentado diretamente), parece ser
um meio flexível no qual muitas das funções, relações e práticas
institucionais podem se desenvolver tornando novos usos
socialmente inteligíveis, enquanto permite que a forma de
comunicação caminhe em novas direções. (BAZERMAN, 2006c, p.
83).
50
Devido as características expostas, Bazerman (2006) cita três tipos de escrita
que demonstram ter alguma conexão com a carta: o jornal, a revista científica e o
romance. No processo de surgimento destes gêneros, ela teria atuado, então, como uma
forma transitória, doando algumas de suas características, as quais foram se adaptando
até termos novas amostras de enunciados capazes de responder às necessidades de
interação verbal, tanto aquelas com função de informação quanto aquelas com função
de reprodução das atividades sociais. Contudo, não é a carta pessoal e familiar que
está sofrendo mudanças, que podemos citar ainda o telegrama, entre outros, os quais
também estão deixando de ser utilizados.
Assim, as cartas foram criadas com o objetivo de divulgar ordens, leis, códigos
e domínio de autoridades. Depois, sofreram algumas transformações, passando a serem
utilizadas como um meio de comunicação informal, que teve, porém, seu uso reduzido
por sofrer uma nova transformação, quando surgiram novos modelos de enunciados
que, aos poucos, as estão substituindo.
Frisamos que, apesar da informalidade e da naturalidade que pode ser
observada em algumas cartas, principalmente nas pertencentes aos modelos pessoal,
familiar e de amor, não é aceita a compreensão de que se trata de textos simples e sem
importância. Pelo contrário, são discursos ricos em relações sociais, uma vez que essa
organização é um reflexo dos modos como interagimos verbalmente no nosso cotidiano.
Com base na discussão feita aentão, passamos, agora, à análise das cartas,
objetivando, portanto, mostrar como a teoria sobre a qual se discorreu até então se
aplica, mais especificamente, aos textos empíricos (autênticos), selecionados como
corpus de investigação: cartas de amor.
51
CAPÍTULO 3 – DA CONTEXTUALIZAÇÃO PARA A ANÁLISE DO CORPUS
Nesse capítulo, com base nas teorias antes discutidas, apresentamos a análise
das cartas de amor, destacando os três elementos composicionais do nero discursivo:
conteúdo temático, construção composicional e estilo. Consideramos que um estudo da
língua, sob o prisma proposto por Bakhtin (explanado nos capítulos anteriores), permite,
além de explorar a construção composicional de um gênero discursivo, recuperar seu
conteúdo temático e o estilo individual dos autores, ou seja, aspectos relacionados à
cultura e à identidade dos participantes de cada ação social.
Para realizar a análise de forma clara e organizada, dividimos o capítulo da
seguinte forma: iniciamos, na primeira seção, com uma apresentação detalhada do
corpus selecionado para análise e de seu contexto de produção, descrevendo a relação
existente entre os interlocutores das cartas, o conteúdo veiculado, bem como local e data
de produção. Esclarecemos que, conforme exposto na metodologia, baseamo-nos em
depoimentos obtidos junto a familiares das pessoas envolvidas.
O contexto de produção, apesar de fazer parte do conteúdo temático, é
explorado em uma seção à parte, pois, para podermos contar a histórica dos
interlocutores, nos baseamos em todas as cartas de amor enviadas por Gerda, Neusa,
Eny e Auria (remetentes dos textos estudados) a Armando. Sendo assim, somente na
segunda, terceira e quarta seções, quando discutiremos, respectivamente, conteúdo
temático, estrutura composicional e estilo dessas cartas, utilizaremos apenas aquelas
selecionadas para compor nosso corpus de estudo.
Para facilitar a referência ao corpus, as cartas serão tratadas como Ct.1 (escrita
por Gerda), Ct.2 (por Neusa), Ct.3 (por Eny) e Ct.4 (por Auria). Optamos, também, por
apresentar os textos digitados de forma integral após sua apresentação. Além disso,
fazemos recortes dos mesmos textos a cada trecho citado, transcrevendo-os, para
exemplificação do assunto discutido. Todavia, para comprovar sua originalidade, as
mesmas cartas se encontram anexas a este trabalho. As citações teóricas serão
diferenciadas das citações de cartas pelas aspas que constarão nestas últimas.
3.1 CONTEXTUALIZANDO O CORPUS
Dentre as cartas de amor, temos quatro remetentes e apenas um destinatário:
Armando. São cartas de quatro mulheres que, em datas diferentes, lhe escrevem na
52
tentativa de manter um relacionamento amoroso, sem saberem que o mesmo
relacionamento nunca se transformaria em casamento, como era almejado por elas.
Referimo-nos às seguintes pessoas: Gerda (Ct.1), Neusa (Ct.2), Eny (Ct.3) e Auria
(Ct.4). Infelizmente não conseguimos recuperar as cartas que Armando lhes escreveu, as
quais responderiam às que temos em mãos, por fazerem parte das enunciações iniciadas
pelas cartas.
De cada uma das remetentes, com exceção de Auria, temos duas ou mais
correspondências amorosas, das quais apenas uma foi selecionada para compor nosso
corpus.
Sendo todas elas escritas entre os anos de 1953 e 1962, carregam muitos
aspectos culturais que merecem ser analisados em comparação com a nossa cultura de
hoje, uma vez que diferenciam muito. Em algumas cartas, a linguagem poética com que
se escreve é encantadora e nos convida à leitura, impressionando-nos com a criatividade
de escrita, com a forma de revelar o amor por meio de uma linguagem que chega a
parecer poética. Escolhemos essas cartas porque pertencem à nossa família, que
foram escritas a nosso tio Armando, surgindo, daí, um interesse imenso em estudá-las.
Ademais, revelam grandes amores, entretanto, nem sempre correspondidos e sinceros
por parte do pretendente.
3.1.1 O romance com Gerda (Ct.1)
Das cartas que têm Armando como destinatário, as de Gerda são as mais
antigas, tendo sido ela, senão sua primeira namorada, a primeira pessoa de quem ele
guardou as correspondências a que tivemos acesso. De acordo com relato de seus
familiares, os dois, ambos com idade entre 20 e 23 anos, se conheceram em uma festa
na, então, comunidade rural de Fundo Alegre, pertencente ao município Augusto
Pestana - RS, antiga Serra do Cadeado, que, segundo dados históricos, foi povoada, em
1901, por imigrantes alemães, vindos da Colônia Velha, uma região próxima a Augusto
Pestana, no Estado do Rio Grande do Sul. Tanto Armando quanto Gerda eram de
origem alemã e, portanto, falantes dessa língua que lhes era materna, tanto que alguns
trechos da carta são produzidos em alemão:
Frage nicht was das Geschick morgen mag beschliessen
Univer ist der Augenblick, lass uns den geniessen!” (Ct. escrita por
Gerda em 15 de novembro de 1953).
53
“Aproveitemos o presente para vivermos pelo nosso amor,
sem perguntar o que o futuro trará” (tradução/reescrita).
Gute nacht und vergiss nicht deine Gerda (Ct. escrita por Gerda em
09 de novembro de 1953)
“Boa noite e não se esqueça da sua Gerda” (tradução/reescrita).
Gerda é autora de seis cartas endereçadas a Armando, as serão citadas para
descrevermos a relação existente entre os dois. Elas obedecem a uma sequência
cronológica, tendo sido escritas nas seguintes datas: 30 de outubro, 9 de novembro, 15
de novembro, 19 de novembro e 27 de novembro de 1953.
Gerda, pessoa muito bem instruída, professora dos anos iniciais na escola rural
de Fundo Alegre, era conhecida por animar suas aulas, tocando uma gaita enquanto seus
alunos a acompanhavam a música cantando. Tal conhecimento revela uma facilidade
em trabalhar com a linguagem, produzindo textos muito bem elaborados, como o trecho
abaixo pode exemplificar:
“Lentamente a noite desdobra seu escuro manto sobre a terra. A
melancolia que o anoitecer traz consigo envolve a mim também,
trazendo à minha mente mil loucas idéias. Não posso conter-me,
preciso dar livre curso aos meus pensamentos, os quais, uma vez
escritos enviarei a ti.
Vivi o dia todo na ilusão de ainda estar envolta por teus braços.
Atirei-me toda ao sônho de estar ainda ao teu lado como nessa
madrugada [...]” (Ct. escrita por Gerda em 9 de novembro de 1953).
É visível a linguagem poética produzida, por meio da qual Gerda revela um
imenso sentimento de amor. Em outro recorte, o mesmo também é percebido:
“Espero que não demorarás com tua próxima visita, pois sabes que
um coração que quer a tua felicidade e que ansioso espera a tua
chegada. E êste é o coração de tua Gerda” (Ct. escrita por Gerda em
30 de outubro de 1953).
A carta a que estamos nos referindo foi escrita a Armando em um dia que
Gerda o esperava ver, mas imaginava que isso poderia não acontecer. Então, após pedir
que lhe fosse fiel, ela revela o grande amor que sentia. O mesmo sentimento também
parecia ser carregado por Armando, possibilitando-nos entender que suas cartinhas
tinham enunciados amorosos. Um deles Gerda reproduziu em sua carta, conforme
transcrito a seguir:
54
“Prometeste-me na última carta, tão querida, tua, que farias por mim
tudo o que eu te pedia, desde que estivesse ao teu alcance” (Ct. escrito
por Gerda em 15 de novembro de 1953).
Conforme informações retiradas dos relatos familiares, Gerda era evangélica
luterana, filha de um pastor de Ijuí, e esse foi o motivo pelo qual o romance chegou ao
fim, porque o pai de Armando não aceitava o fato de seu filho namorar uma jovem que
não fosse não católica. Entretanto, antes do rompimento dessa relação, observamos, na
leitura das cartas, alguns desentendimentos entre dois, porque, ao final do namoro com
Gerda, Armando possuía algum tipo de relação com Neusa, a segunda remetente das
cartas. Neusa e Gerda se conheciam pelo fato de morarem em duas comunidades rurais
próximas uma da outra e, provavelmente por esse motivo, as discussões se iniciaram.
Assim, Gerda revela saber do risco que correria, caso Armando fosse à casa de Neusa:
“[...] A Neusa convidou-te para ires e tu talvêz queiras falar-lhe
algumas explicações. Porém, peço-te Armando, que não vás à casa
dela. Tenho tanto medo de que eles te farão cair num ardil bem
armado. Cuida-te desta gente! Amo-te demais e por isso não quero
não posso perder-te por uma traição [...]” (Ct. escrita por Gerda em
30 de outubro de 1953).
Com essa carta chegamos a duas conclusões: Gerda era muito apaixonada
por Armando, mas ele, embora também gostasse dela, não lhe era totalmente fiel, pois
mantinha contato com Neusa, também apaixonada por ele. A preocupação de Gerda é a
de perdê-lo, implorando, portanto, que ele não vá à casa de Neusa. Prova da infidelidade
de Armando pode ser obtida a partir da leitura do seguinte trecho de uma outra carta:
“[...] Porém, o mais triste foi quando em certa hora surgiu a
desconfiança. Nem imaginas que tormentos assaltaram meu coração!
[...]. Estarás mesmo caçoando de mim? Sei perfeitamente porque é
que duvido das tuas palavras: tu mataste minha confiança no dia em
que, - apesar de eu tanto te pedir que não o fizesse -, fôste a casa da
Neusa. Perdoa-me se volto a tocar no assunto, mas é preciso eu te diga
tudo. E, se um dia eu souber que novamente procuraste a casa dela, ou
dansaste um baile com ela, então me perdeste para sempre, pois
saberei então que, tiveram fundamento as minhas duvidas [...] (Ct.
escrita por Gerda em 9 de novembro de 1953).
No trecho transcrito, Gerda declara seu amor, demonstrando, ao mesmo
tempo, estar muito magoada com seu amado, devido a suas atitudes infiéis, reveladas
quando, apesar de pedir-lhe que não fosse, ele teria ido visitar Neusa. As palavras da
55
remetente são reveladoras de sua decepção e sofrimento, buscando, entretanto, um
consolo, como podemos observar no recorte que se segue:
“[...] Chegou a minha vez de te pedir que não me faças sofrer
injustamente. Não iludas meu coração por um simples passa-tempo ou
para satisfazer a vontade de alguém que me odeia. Sê bonzinho,
escreve-me uma palavra de consôlo; que não queres mais voltar a
visitar-me. Escreve-me muito para eu tenha uma pequena recompensa
para a felicidade que me causaria tua presença [...]” (Ct escrita por
Gerda em 9 de novembro de 1953).
Por meio das palavras, Gerda demonstra o quanto a presença de Armando a
deixaria feliz e, se isso não fosse possível, uma carta traria um pouco de alegria. A
correspondência da qual estamos falando (do dia 9 de novembro de 1953) foi escrita
quando os dois ainda namoravam, pois a remetente diz ter pensado, durante todo o dia,
na noite que passaram juntos:
“[...] Vivi o dia todo na ilusão de ainda estar envôlta por teus fortes
braços. Atirei-me tôda ao sonho de ainda estar ao teu lado como nesta
madrugada [...]” (Ct. escrita por Gerda em 9 de novembro de 1953).
Dessa forma, sentindo uma solidão enorme, Gerda se lembra de uma canção
ouvida por ela. Sendo dedicada a Armando, ela é transcrita na carta e reescrita aqui:
“[...] Quando tu não estás, morre minha esperança;
Se tu te vais, vai minha ilusão,
Hoje, meu lamento, que confio ao vento,
É todo de dor! – Quando tu não estás!...
Mas... nasce a aurora resplandecente
Clara é a manhã, belo o rosal
Brilha a estrêla, canta a fonte,
Ri a vida, quando aqui tu estás!... [...]” (Ct.escrita por Gerda em 9 de
novembro de 1953).
Fica evidente, então, a tristeza sentida por essa mulher, devido ao fato de estar
distante de seu grande amor. Contudo, inferimos que Armando não carregava grandes
sentimentos por ela, porque, se assim o fosse, não teria agido de forma contrária ao
pedido de que não fosse visitar Neusa. Por isso, muito magoada, Gerda define-o da
seguinte forma:
“[...] Vi em ti apenas um vil conquistador, alguém que tão somente
tenta iludir o coração feminino, e ri-se quando o atirado,
apaixonado aos seus pés [...]” (Ct. escrita por Gerda em 9 de
novembro de 1953).
56
Todo esse sofrimento foi fundado na visita de Armando à Neusa,
demonstrando, assim, um ódio entre elas, talvez pelo fato de gostarem do mesmo
homem. Provavelmente foi por esse motivo que Gerda escreveu uma carta, culpando
Armando por ter feito algo contado a ela por pessoas conhecedoras da relação entre os
dois. Não como sabermos exatamente o que estava escrito nessa carta, pois,
arrependida por ter acreditado em palavras de desconhecidos, Gerda a queimou depois
de muito pedir a Armando que lhe devolvesse a mesma:
“[...] compreendo que errei ao escrever-te aquilo que o pessoal aqui
me disse. Esqueci-me de que estava falando com uma pessoa estranha
[...]. Meu único amigo ou amiga, a quem conto tudo é o papel [...] e
quando contei tudo ao papel queimo-o, as cinzas nada contam a
ninguém e muito menos me compreendem mal. Mas, nestes dias, em
vez de queimar aquelas linhas, enviei-as a ti, a única, a primeira
pessoa a quem até hoje confiei um fragmento dos meus sagrados
segredos que envolvem minha vida e juntei mais um pedacinho de
outra suspeita e eis, que tu a interpretaste mal. Quando compreendi a
tua interpretação eu tive de chorar [...]” (Ct. escrita por Gerda em 15
de novembro de 1953).
De acordo com esse trecho, essa carta era composta por comentários
maldosos, infundados, causando desentendimentos entre os dois. Assim, por várias
vezes, Gerda lhe implora a devolução da carta:
[...] Peço te por tudo o que tem de mais sagrado no mundo, devolve-
me aquela carta. Prometeste, na última carta, tão querida, tua, que
farias por mim tudo o que eu te pedia, desde que estivesse ao teu
alcance. E êste desejo podes satisfazer-me. bonzinho e atende-me!
Por que continuar com aquilo em suas mãos, se tanto sofrêste com o
mesmo? [...] Magoei-te muito, e peço que me perdôes, e que como
prova de teu perdão me devolvas o que pedi [...]” (Ct. escrita por
Gerda em 15 de novembro de 1953).
Ainda não atendida em seu pedido, quatro dias depois, pede novamente:
“Armando, sabes porque ainda não te mandei a fotografia? Em
plano ela está muito feia, mas isto não foi o motivo. Foi simplesmente
porque esperava uma oportunidade de falar-te pessoalmente, quando
queria obter de ti a promessa de que me devolveria aquela maldita
carta. [...] Mandarei a fotografia, confiando que sábado, ou, então pelo
menos na segunda eu terei de volta aquilo que te pedi. Se tu não me
satisfazeres aquela, não sei Armando o que acontecerá [...]” (Ct.
escrita por Gerda em 19 de novembro de 1953).
Gerda havia prometido uma foto sua a Armando, pois ele escreve cobrando-a
sobre isso. Com medo de que a carta não fosse devolvida, ela diz preferir encontrá-lo
57
pessoalmente para entregar a referida foto. Entretanto, acaba decidindo enviá-la por
correio, mostrando confiar em seu amado. Assim, consegue finalmente recuperar a
carta.
Pondo fim no problema, no dia 27 de novembro de 1953 Gerda escreve a
Armando afirmando ter queimado a carta, que, portanto, não mais representaria perigo
algum:
“Felizmente a carta que uma vez te mandei e que talvez me
comprometesse, embora o devia atingir a Neusa, mas sim a ti, não
existe mais. Não faz mal que consentiste que pessoas estranhas a
lessem. As chamas a tragaram. E as cinzas que espalhei ao vento não
provarão que um dia ela existiu [...]” (Ct. escrita por Gerda em 27 de
novembro de 1953).
Observamos a tranquilidade sentida por Gerda após a devolução daquelas
palavras que tanto medo lhe causavam. Por outro lado, percebemos sua mágoa pelo
final do romance entre os dois, final o qual, nessa data, já estava consolidado:
“Sentes-te muito magoado que, apesar de todas as tuas experiências,
não te dei motivos seguros para terminarmos nossas relações. Não,
meu amigo, desta vez o passarei de culpada do fim do nosso
romance, embora como tal me queiras deixar” (Ct. escrita por Gerda
em 27 de novembro de 1953).
No trecho citado, Gerda, acreditando que nada tinha feito para que seu namoro
fosse rompido, afirma ser Armando o causador desse sofrimento, por ter ido visitar
Neusa:
“Nunca pensei que fôsse tão mesquinho que desses ouvido aos
infames linguarudos que lá vão contar-te asneiras. Mas muito menos
esperei que fosses justamente tu à casa de Neusa inventar coisas que
eu nunca disse. Quem seria, senão tu. Com nenhuma pessoa falei a
respeito da menina. Cuida-te! Lembra-te o que me falaste na casa da
tua tia. Posso um dia eu contar tudo à Neusa. [...]. E, graças a Deus, da
minha boca não saiu palavras que prejudicasse a honra da Neusa, a
qual pelo menos perante os olhos sempre tem sido minha amiga. [...]
Bem, creio que estás perfeitamente inteirado do assunto. Domingo irei
à festa, perto do [ilegível]. E tu? Bem, nem preciso perguntar. Sei
onde vais levar novidades. Se tiveres algo a dizer-me estou a teu
inteiro dispor” (Ct. escrita por Gerda em 27 de novembro de 1953).
Essa foi a última carta a que tivemos acesso. Não sabemos se outras ainda
foram escritas por essa mesma pessoa, mas o trecho anterior nos permite afirmar que
Armando havia deixado de namorar Gerda e estava com Neusa. Ou seja, após Gerda
58
escrever uma carta com a qual Armando se sentiu ofendido, eles não mais trocaram
correspondências amorosas.
Além disso, as formas de tratamento foram, aos poucos, tornando-se menos
amorosas e mais amigáveis, passando de “Meu amor”, “Caro Armando”, “Meu
benzinho adorado!” e “Meu Armando querido” (Cts. escritas por Gerda em 30 de
outubro, 09, 15 e 19 de novembro de 1953, respectivamente) à, simplesmente,
“Armando” (Ct. escrita por Gerda em 27 de novembro de 1953). Anunciavam-se, assim,
desentendimentos que levariam ao final desse relacionamento.
Pouco tempo depois de terminar esse namoro, segundo relato de seu irmão,
Armando foi morar na cidade de Augusto Pestana, onde sua família comprou um
terreno em que funcionava uma rodoviária. Lá, ele vendia passagens e cuidava de um
bar. Isso ocorreu em 1957, quando acreditamos, tenha iniciado seu vício com as bebidas
alcoólicas, o que o levou a morte, ainda solteiro, no ano de 1996.
Como frisamos acima, fizemos essa contextualização para a compreensão
da carta a ser analisada, uma vez que não há como trabalhar os aspectos teóricos,
anteriormente apresentados, em todas as cartas. Escolhemos, portanto, para fazer parte
de nosso corpus, a segunda carta escrita por Gerda (9 de novembro de 1953), na qual,
embora muito magoada, ela diz que ainda o ama e o quer. Doravante, portanto, essa
carta passa a ser tratada como Ct.1 (Anexo 1).
Apesar de essa carta estar anexa ao trabalho, transcrevemo-la integralmente
aqui, mantendo-a conforme escrita por Gerda:
9-11-53
Caro Armando!
Lentamente a noite desdobra seu escuro manto sobre a terra. A melancolia que
o anoitecer traz consigo envolve a mim também, trazendo à minha mente mil loucas idéias.
Não posso conter-me, preciso dar livre curso aos meus pensamentos, os quais, uma vez escritos
enviarei a ti.
Vivi o dia todo na ilusão de ainda estar envolta por teus braços. Atirei-me toda ao sônho
de estar ainda ao teu lado como nessa madrugada. Mas tudo não passou de sonho, de ilusão.
Porém, o mais triste para mim foi quando em certa hora surgiu a desconfiança. Nem imaginas
que tormentos assaltaram meu coração! Lembras-te, por certo, que te disse nesta noite, que
tenho perdido toda a nos homens. E disto tive nova prova hoje. Vi em ti apenas um vil
conquistador, alguém que tão somente tenta iludir o coração feminino, e ri-se quando o
atirado, apaixonado aos seus pés. Porque Armando, diga-me porque preciso duvidar tanto de
tua sinceridade? Estarás mesmo apenas caçoando de mim? Sei perfeitamente porque é que
duvido das tuas palavras: tu mataste minha confiança no dia em que, - apesar de eu tanto pedir
que não o fizesses -, fôste a casa da Neusa. Perdoa-me se volto a tocar no assunto, mas, é
preciso que eu te diga tudo. E, se um dia eu souber que novamente procuraste a casa dela, ou
dansaste um baile com ela, então me perdeste para sempre, pois saberei então que, tiveram
fundamento as minhas dúvidas. Sómente terá a minha confiança aquele que souber conquista-
59
la.
Chegou a minha vez de te pedir que não me faças sofrer injustamente. Não iludas meu
coração por um simples passa-tempo. Sê bonzinho, escreve-me uma palavra de consôlo; já que
não queres mais voltar a visitar-me. Escreve-me para que eu tenha uma pequena recompensa
para a felicidade que me causaria tua presença. Embora meu coração não queira compreender
as razões que tu alegaste para a tua ausência, não quero insistir em que aqui venhas. Entretanto,
minha boca repete soluçando a canção que uma vez ouvi e que parecem ter feito para ti, para
quando tu aqui não estás... Ei-la:
Sozinha, na rota do meu destino
Sem o amparo de teu olhar
Sou como a ave que no caminho
Rompeu as cordas de seu cantar.
Quando tu não estás, a flôr não perfuma
Se tu vais, me envolve a bruma.
O campo, a fonte e as estrê-las
Perdem para minha sua sedução.
Quando tu não estás, morre minha esperança;
Se tu te vais, vai minha ilusão,
Hoje, meu lamento, que confio ao vento,
É todo de dor! – Quando tu não estás!...
Mas... nasce a aurora resplandecente
Clara é a manhã, belo o rosal
Brilha a estrêla, canta a fonte,
Ri a vida, quando aqui tu estás!...
Talvez algum dia tudo mudará e aqui voltarás para
alegrar minha solidão.
Passaste bem o dia de hoje cortando trigo? Desejo-o! procura sempre alimentar-te bem
para que não percas as forças para enfrentar o duro trabalho quotidiano.
Da mesma forma não desistas de instruir-te, quando tiveres alguma folguinha. A
instrução vale mais que as riquezas que possamos alcançar. Nada mais belo do que um espírito
enobrecido pela instrução. Quanto mais estudarmos, tanto maiores novidades encontraremos e
tanto melhor compreendemos a razão de muitas coisas. Contudo, guarda sempre alguns
minutos para mim, quando me contarás as novidades que tiveres encontrado e tudo o que te
comove. Não cansarei em ler as linhas que tua mão querida para mim traçar.
está ficando tarde. Preciso terminar esta cartinha. Aceite mais estas linhas para
despedida de hoje:
Meu sonho de amor és tu, vida minha,
Meu sonho de amor és tu, só tu.
Não quero pensar que talvez algum dia
Eu pudesse te perder,
Que tu te afastasses de mim...
Meu sonho de amor és tu, vida minha,
A doce ilusão que uma vez pressenti.
Tu és a paixão que eu levo dentro de mim.
Meu sonho de amor és tu, só tu.
Abraça-te mui carinhosamente
Gerda.
3.1.2 O romance com Neusa (Ct.2)
60
Além de comentários sobre Neusa nas cartas escritas por Gerda, outro motivo
nos leva a inferir sobre o término do namoro entre Armando e Gerda, para que ele
pudesse ficar com Neusa: são as datas em que as cartas foram escritas. As
correspondências a que tivemos acesso foram trocadas com Gerda em 1953, e com
Neusa a partir de 1955 (6 de setembro). E, na primeira carta dessa pessoa, podemos
perceber alguns desentendimentos entre os dois, sendo a mesma assim iniciada:
“Apesar de saber que tu não queres ler, uma carta escrita por mim mas
hoje me vendo necessitada arrisquei-me, mas não precisa ter medo de
lê-la, pois vai, porém, te aquilo que quero avizar-te” (Ct. escrita por
Neusa em 6 de setembro de 1955).
Compreendendo que os dois, provavelmente, estavam brigados, podemos
supor que namoravam há algum tempo. Isso se comprova, também, porque, segundo
relatos de familiares, eles ficaram juntos durante cinco anos e, em 1958, Armando
namorava Eny, outra remetente das cartas. Assim, é possível inferir que Armando e
Neusa namoravam desde 1952, época em que Armando ainda estava com Gerda, pois,
no dia 9 de novembro de 1956, Neusa envia um cartão a Armando (Anexo 2), marcando
o quarto aniversário de namoro do casal, iniciado, portanto, no dia 9 de novembro de
1952.
Ainda segundo informações da família, Armando e Neusa se conheceram,
também, na comunidade rural de Fundo Alegre, mas Neusa, diferente de Gerda, não era
de origem alemã e, portanto, não sabia falar nessa ngua. Ela era de descendência
africada e, acreditamos, tenha sido esse um dos motivos para que o romance tenha
chegado ao fim, ou seja, o pai de Armando não permitiu sua união com uma mulher “de
cor”.
Entretanto, outro motivo também pode ser apontado: obtivemos informações
na família de que, como Armando morava na cidade, Neusa ia, de charrete, visitá-lo na
rodoviária onde trabalhava. Lá, ela se comportava como a dona do estabelecimento,
pegando comida, bebidas e outras coisas para levar para casa. Essas atitudes não eram
por necessidade, que, embora Neusa tivesse origem em uma família humilde e muito
grande, teve sempre uma vida abastada, isso porque foi adotada pelos padrinhos de
batismo, que não tinham filhos. Desse modo, ela passou a ser a única herdeira, ficando,
depois, com muitas terras. Logo, acreditamos que o fato de Armando não gostar dessas
atitudes de Neusa tenha também levado ao final da relação.
61
Como apontado, recuperamos três cartas escritas por Neusa a Armando, nas
quais constam as seguintes datas: 6 de setembro de 1955, 21 de novembro de 1956 e 10
de março de 1957. A característica marcante das três é, em meio a pouquíssimas
declarações de amor, a revelação do sofrimento de Neusa por ser desprezada ou estar
brigada com Armando.
Na carta de 1955, ela apenas faz um convite para que ele compareça a um
casamento de conhecidos seus, não se atrevendo a escrever declarações de amor por
estarem com problemas na relação. Todavia, a forma de despedida, chama a atenção:
“[...] Abraça-te quem muito te quer e...
Neuza” (Ct. escrita por Neusa em 06 de setembro de 1955).
Ela afirma ainda o querer e as reticências nos permitem inferir que ela gostaria
de ter escrito “te ama”. Assim, seu amor é revelado, entretanto, sem muita insistência,
pois, no restante da carta, ela não produz enunciados amorosos. Em 1956, Neusa
também escreve a Armando poucas palavras e, mais uma vez, para contar suas mágoas
em relação às atitudes dele frente à morte do pai dela. Sua reclamação é pelo fato de ele
não ter respeitado tal acontecimento, não ter lhe dado forças para enfrentar o momento
e, dois dias depois, já ter frequentado bailes:
“[...] Deus chamou meu saudoso paizinho numa sexta-feira, quando
foi domingo tu foste num baile, e dali sempre; francamente em
pensar que meu querido pai era o braço forte de nosso namoro; é
grande para mim, e agora tu fazes esta; pare um pouco e reflita se isso
não é triste [...]” (Ct. escrita por Neusa em 21 de novembro de 1956).
Nessas palavras, Neusa deixa claro que o namoro dos dois era permitido por
sua família. Seu pai os apoiava, mas, mesmo assim, Armando não respeitou sua morte e,
muito menos, a relação que tinha com Neusa. As mágoas reveladas por meio da carta
são devido ao fato de Armando não a ter ajudado a superar essa perda. Apenas sua
despedida deixa transparecer sua admiração por ele:
“[...] Sem mais, tua ad...
Neusa” (Ct. escrita por Neusa em 21 de novembro de 1956).
Essas duas formas de escrever distinguem-se daquela observada na última
carta assinada por Neusa, quando ela tenta continuar um assunto iniciado pessoalmente:
“[...] Estando eu triste sem o que fazer, apesar de poucos instantes
tu ter saído daqui, mais como o tempo foi curto, vou continuar os
assuntos por meio deste papel. Pois bem foi tão curta tua visitinha que
62
fiquei imaginando o viver; mas enfim consola-me, porque mais vale o
pouco do que o nada. O padrinho que ficou muito discontente tu não
esperar para almoçar, porque como amanhã era teus anos ele mandou
nós se aprontar para se caso tu viesse, nós te apresentar algo regular na
mesa; e tu veio e não quis almoçar, ele me falou, eu fiquei muito sem
jeito quando ele me falou [...]” (Ct. escrita por Neusa em 10 de março
de 1957).
Neusa fala a Armando sobre a alegria que sua visita lhe causa e, também, diz
ter ficado muito magoada por essa ter sido muito curta. Isso demostra que, mesmo
pouco, os dois se encontravam pessoalmente, embora não tivessem muita privacidade
para certos assuntos, visto que ela parece ter preferido discutir sobre a relação entre os
dois por meio das cartas, como pode ser observado no seguinte recorte:
“[...] Meu bem! Nestes dias fiquei muito sentida, me contaram que tu
cempre dançava varias pessas nos bailes com as Hichmann, para me
fazer birra, ou seja, para ser o contra que eu te falava; e que cempre tu
negavas a todo mundo nosso amor. Que tanta maldade te fiz eu para tu
me fazer sofrer tanto? [...]” (Ct. escrita por Neusa em 10 de março de
1957).
Aqui, Neusa se refere ao fato de ele ter dito a outras pessoas que não queria
nada com ela, não gostava dela. Nesse sentido, toda a carta se volta a descrever sua dor
e implorar algum sentimento de Armando. Ela relata perceber, assim, que seu namorado
tinha vergonha de acompanhá-la em público, negando seu amor:
“[...] Ai veio em minha memoria um baile que eu queria que tu fosse
comigo na [incompreensível] quando João e dona Vina estavam aqui;
e tu não quiz ir, e nos outros bailes dali uma semana foste, e não perde
baile a parte nem uma. Quando me contaram esta, ai pensei á é
verdade ele não quer me acompanhá em público, por isso ele não quis
ir, esta sim foi grande, eu não esperava de receber tal coisa de teu
bondoso coração, que eu te considero tanto aqui em casa, como em
qualquer lugar, seja em vila, cidade, no meio dos meus parentes etc.
[...]” (Ct. escrita por Neusa em 10 de março de 1957).
Armando parecia ter vergonha de namorar Neusa, visto que seus encontros
resumiam-se a sua casa e, mesmo namorando, ele costumava sair sozinho. E, por isso,
acreditamos que o final desse relacionamento tenha ocorrido por Neusa ser uma mulher
morena.
Como Semprini, ao trabalhar com a imigração nos Estados Unidos, fala do
racismo “gota de sangue” (SEMPRINI, 1999, p. 17), um processo de exclusão sofrido
pelo indivíduo pelo simples fato de ser considerado negro quando era branco e tinha um
bisavô negro, acreditamos que um tipo de racismo semelhante ocorreu no Brasil,
63
afetando, inclusive, o namoro entre Armando e Neusa. Devido ao fato de Neusa ser
brasileira, de sobrenome Souza, e uma pessoa morena, inferimos que Armando, uma
pessoa branca, descendente de alemães, tinha vergonha de estar com ela, ocultando-a
em público.
Com esse sentimento de recusa, Neusa, então, descreve sua dor com as
seguintes palavras:
“Obrigado a me amar, tu não és, mas a não me fazer sofrer tu és.
Porque eu te considerando tanto e tu em público me ocultar, ou queres
me fazer piraça, foi demais. Não sei como é que eu sou tão apercegida
dessa maneira. Francamente senti muito como essas; Olha meu
coracãozinho fosse te fazer uma coisa dessa para ver se tu não se
sentia; ainda mais se fosse duma pessoa que tu considerava o rei do
amor e a baldade em?!... [...]” (Ct. escrita por Neusa em 10 de março
de 1957).
Em toda a carta ela faz uma reflexão sobre seu namoro com Armando e a
forma com ele a tratava, pedindo-lhe justificativas por tal comportamento e por tanto
magoá-la:
“[...] Faz um exame de conciencia, veja o que tu falaste desse modo
ofensivo. Muitos e muito dias eu pegava na pena, e queria te escrever
e não tinha força, meus olhos se enchiam de lágrimas e meu coração
parece que se espedaçava de tanto sentimento [...]” (Ct. escrita por
Neusa em 10 de março de 1957).
Ao olharmos para as formas de tratamento, essas também caminham para um
final da relação entre os dois, pois na primeira e na segunda carta ela o trata como “Meu
bem! Inesquecível Armando” (Ct. escrita por Neusa em 6 de setembro de 1955) e
“Inesquecível adm. Armando” (Ct. escrita por Neusa em 21 de novembro de 1956),
mostrando que não conseguia esquecê-lo e que o amava. Já na terceira carta, esse
tratamento vai resumir-se a “Armando!” (Ct. escrita por Neusa em 10 de março de
1957), demonstrando, logo no início, seu descontentamento e sua frieza, provocados
pelas suas atitudes.
A carta escrita em 10 de março de 1957 é a segunda selecionada para compor
o corpus desta pesquisa e, portanto, nossa referência a ela é feita como Ct.2 (Anexo 3).
Eis o texto integral:
Benção dos Pampas. 10-3-57
Armando!
Estando eu triste sem o que fazer, apesar de poucos instantes tu ter saído daqui, mais
como o tempo foi curto, vou continuar os assuntos por meio deste papel.
64
Pois bem foi tão curta tua visitinha que fiquei imaginando o viver; mas enfim consola-
me, porque mais vale o pouco do que o nada. O padrinho que ficou muito discontente tu não
esperar para almoçar, porque como amanhã era teus anos ele mandou nós se aprontar para se
caso tu viesse, nós te apresentar algo regular na mesa; e tu veio e não quis almar, ele me
falou, eu fiquei muito sem jeito quando ele me falou. Meu bem! Nestes dias fiquei muito
sentida, me contaram que tu cempre dançava varias pessas nos bailes com as Hichmann, para
me fazer birra, ou seja, para ser o contra que eu te falava; e que sempre tu negavas a todo
mundo nosso amor. Que tanta maldade te fiz eu para tu me fazer sofrer tanto? Que tu não
queria ser acompanhado comigo ao publico, e que nosso amor era negado em publico, quando
as gorias te falam tu dizes eu não tenho nada com ela, e não gosto dela.
Ai veio em minha memoria um baile que eu queria que tu fosse comigo na
[incompreensível] quando João e dona Vina estavam aqui; e tu não quiz ir, e nos outros bailes
dali uma semana foste, e não perde baile a parte nem uma. Quando me contaram esta, ai pensei
á é verdade ele não quer me acompanhar no público, por isso ele não quis ir, esta sim foi
grande, eu não esperava de receber tal coisa de teu bondoso coração, sendo que eu te considero
tanto aqui em casa, como em qualquer lugar, seja em vila, cidade, no meio dos meus parentes
etc.
Obrigado a meu amar, tu não és, mas a não me fazer sofrer tu és. Porque eu te
considerando tanto e tu em público me ocultar, ou queres me fazer piraça, foi demais. Não sei
como é que eu sou tão apercegida dessa maneira. Francamente senti muito como essas; Olha
meu coracãozinho fosse te fazer uma coisa dessa para ver se tu não se sentia; ainda mais se
fosse duma pessoa que tu considerava o rei do amor e a baldade em?!... O que tu achas; Faz um
exame de conciencia, veja o que tu falaste desse modo ofensivo. Muitos e muito dias eu pegava
na pena, e queria te escrever e não tinha força, meus olhos se enchiam de lágrimas e meu
coração parece que se espedaçava de tanto sentimento, de ser tão pouco considerada.
Contemplava a natureza e isto ainda me fazia sofrer mais ainda; me dava vontade de me
sumir para bem longe num deserto para poder sofrer minha grande mágua no silêncio em
companhia dos pássaros da mata virgem.
Francamente não sei qual é o motivo do meu sofrimento; si sou merecedora, ou é porque
não sou digna do teu amor; si é que tu não me acha digna para teu coração então me mande
uma carta tua me mande exclarecer tudo bem direito, si não me amas; não me deixe sofrer
tanto dessa maneira. Porque tu és a própria pessoa que eu tenho como testemunha, do tanto que
eu te amo.
Porque ando tão solitária sem ter para quem me confessar minha grande magoa, e sem ter
quem me console; tenho a te dizer quando tu juntou-me a teu peito por aquele afetuoso abraço,
meu coração me perguntou a mim mesma está pessoa a quem tu tanto afeto transportou no
momento sublime do abraço realmente te ama?... ou é como esses lambaceiros estão te
enchendo sempre a cabeça... eu respondi a mim mesmo eu de nada sei, tenho a dizer que
eu o amo como todo o meu ser, e me ser ainda é pequeno para abranjar todo o meu amor que
eu possuo por ele. É triste a vida quando a gente não tem máxima certeza....................................
Armando quando tu estiveres no leito para dormir, recorda-te de mim e te imagina o meu
sofrimento a minha agonia, não sei o que fazer, as vezes quero estar sorindo mas não posso; e
ainda as vezes alguém começa a me chatiar mas te digo quase nem posso responder. Uma noite
eu deitei e não pude dormir quando dei pela coisa pelas minhas faces se rolava ardentes
lagrimas: Nestes dias tive ótima oportunidade para ir para o Entre-Ijuí, isto é no lugar onde
mora o dr. Pereira, mas agradeci porque igual não tinha jeito para falar com as pessoas.
As vezes me esforço para rir para não dar demonstração da minha mágoa. Tu me achas
mesquinha; mas de absoluto não sou, sou simplesmente uma grande sofredora: sem ter para
quem me confessar: si me confesso a ti meu sofrimento me achas mesquinha, mas para quando
não sou. É apenas o capricho do amor que fez de tudo um pouco. “Sou uma grande escrava do
sofrimento”. Hoje quando eu te vi, não posso explicar o meu contentamento a minha emoção,
porque além de tudo fazia horas que eu não te vi; tudo isso ajudava na minha agonia. Peço-te
uma grande favor que tu tire umas horinhas para me escrever sim?! Para poder melhorar um
pouco a minha situação. Por meio desta, envio um forti daqueles de há poucos instantes à traz.
Adeus tua
65
Neusa M. de Souza
3.1.3 O romance com Eny (Ct.3)
Se 1957 foi o último ano de namoro com Neusa. No início de 1958, Armando
já trocava, conforme relatos de sua irmã, correspondências com Eny, também professora
e de origem alemã, entretanto, moradora da cidade de Porto Alegre - RS, muito distante
de Augusto Pestana, onde ele morava. Talvez devido a isso esse relacionamento tenha
sido tão rápido. Somente duas cartas de Eny foram guardadas, não se sabe se apenas
essas foram escritas ou se as demais se perderam com o tempo.
A primeira é de 4 de abril e a segunda de de junho, ambas do ano de 1958.
Eny não demonstra ser muito apaixonada por Armando, tratando-o apenas como “Meu
pretendente Armando” e “Dileto Armado” (Cts. Escritas em 4 de abril e de junho,
respectivamente). No conteúdo das cartas também não nada que revele o namoro
entre os dois, a não ser por Eny afirmar que fala dele para sua mãe e agradecer por
cartas antes recebidas:
“[...] Querido Armando! eu gostaria de receber uma foto tua, pois, a
que tu me deste esqueci em casa, escrevi para Mamãe mandando
pedir, mas não a encontrou. Sabes Armando que falo muito em ti para
minha mãe que está aqui na C. Gaúcha e ela quer conhecer- te nem
que seja através de fotografia [...]” (Ct. escrito pro Eny em 5 de abril
de 1958).
Fica claro, dessa forma, que os dois mantinham contato algum tempo.
Eny já tinha recebido uma foto de Armando, mas lhe pede outra por ter se mudado para
Porto Alegre, onde objetivava dedicar-se mais aos estudos. Essa relação parece, no
trecho transcrito, mais amigável do que amorosa. O mesmo se revela também na
segunda carta, quando Eny escreve com uma linguagem mais poética:
“[...] Um último hino de imortalidade cruzou meu caminho,
preenchendo-o com um extremoso toque de mágica beleza. E éste
hino a que me refiro, trata-se de tua benevolente e benvinda carta. Na
realidade, meu amigo, tua carta me ditou hosanas miraculosas na
minha mente entropecida pela desilusão da vida; e tua presença
ainda que simplesmente n'uma carta, privou-em de alguns momentos
de suprema e indesejável tristeza [...]” (Ct. escrita por Eny em de
junho de 1958).
Apesar de não deixar claro se os dois são ou não namorados, Eny exalta-se de
alegria ao receber a carta de Armando, descrevendo esse sentimento. Por meio de dados
66
buscados com familiares de Armando, sabemos que os dois, mesmo que por um breve
tempo, namoraram. Ela teria ido visitá-lo somente uma vez em Augusto Pestana, ou
seja, o namoro foi muito curto. Eny é a remetente da terceira carta selecionada para o
corpus, aquela escrita em 1º de junho de 1958, a Ct.3 (Anexo 4).
Nessa carta, seu objetivo principal é o de pedir a Armando que lhe envie uma
foto, no entanto, ela demonstra ser conhecedora da vida particular de Armando e que os
dois tinham o costume de se comunicarem por meio de cartas, como podemos observar
nos seguinte recorte:
“Causou-me profunda tristeza ao verificar que não recebeste minha
carta de 5 de abril do ano corrente. Atribuo que a mesma não chegou à
tuas mãos por ter isso somente com um porte. Infelizmente quando
remeto uma carta dessa forma, dificilmente ceguam a seu destino.
Quero felicitar-te por teres sido bem sucedido nos negócios e pela
entrada de um novo sócio ai. Não tens nada a me pedir desculpas pela
caligrafia, pois, como vês, a minha é péssima [...]” (Ct. escrita por Eny
em 1º de junho de 1958).
Era via cartas que Eny e Armando normalmente se comunicavam e, assim,
ficavam a par de acontecimentos particulares um da vida do outro. Ao ler essa
correspondência de que estamos falando, percebemos que ele não era sincero com
ela, pois, provavelmente tenha lhe dito não ter recebido a carta do dia 5 de junho de
1958, conforme Eny escreve, quando, na verdade, ele a tinha recebido, visto que, hoje,
temos essa carta em mãos.
Talvez, por Armando não querer lhe responder, preferiu mentir, assegurando
que a mesma não havia chegado até ele. Parece-nos, desse modo, que Armando não
gostava de Eny o suficiente para ter um namoro sério ou, então, gostava dela, mas não
tinha a vontade de se casar.
Segue a carta transcrita integralmente:
Porto Alegre, 1º junho de 1958
Ao meu pretendente Armando
um último hino de imortalidade cruzou hoje meu caminho, preechendo-o
com um extrêmoso toque de mágica beleza;
e éste hino, a que me refiro, trata-se da tua benevolente e benvinda carta.
na realidade, meu amigo, tua carta me ditou hosanas miraculosas na minha
mente já entropecida pela desilusão da vida; e tua presença ainda que simplesmente n'uma
carta, privou-em de alguns momentos de suprema e indesejável tristeza.
Aos domingos e feriados, um dos meus maiores divertimentos é o cinema,
já que se aprosimam os meus exames terei que deticar-me um pouco mais ao estudo.
Causou-me profunda tristeza ao verificar que não recebeste minha carta de
5 de abril do ano corrente.
Atribuo que a mesma não chegou à tuas mãos por ter isso somente com um
67
porte. Imfelizmente quando remento uma carta dessa forma, dificilmente ceguam a seu destino.
Quero felicitar-te por teres sido bem sucedido nos negócios e pela entrada
de um novo sócio ai.
Não tens nada a me pedir desculpas pela caligrafia, pois, como vês, a
minha é péssima.
Gostaria imensamente de receber outra foto tua, a que tu me deste esqueci
em casa e minha irmã (a que está aqui) têm imenso prazer em conhecer-te nem que seja atravês
de uma fota!
Espero resposta o mais breve possível e emvio cortiais saudações
tua pretendente
Eny.
3.1.4 O romance com Auria (Ct.4)
Segundo relatos de sua irmã, Armando e Auria começaram a namorar em
1962, quatro anos após seu relacionamento com Eny. Entre esses dois romances, porém,
sabemos que existiram outros, mas, por não termos cartas que os registraram,
preferimos não os mencionar aqui.
Conforme afirmado por conhecedores dessa relação, Auria morava em uma
comunidade rural pertencente a Ijuí - RS, não muito distante de Augusto Pestana, o que
possibilitava, além da troca de correspondência, encontros entre os dois. A carta
recuperada é datada de 29 de novembro de 1962.
Por estarem ainda no início do namoro, tal carta também não revela uma
grande paixão entre os dois, mas mostra não ser a primeira trocada entre eles, pois o
assunto sobre o qual estão tratando é a continuação de uma conversa antes já iniciada:
“Espero que tu estejas normal do rosto quando estar linhas chegarem
em tuas mãos. Tu deves estar bem chateado com migo, por eu querer
que você sorrise, querido sabe que eu já pagei bem caro o que fiz para
ti. Eu te falei naquela bolha que estava saindo em meus bios; pois
ela abriu e por onde escorreu aquela água virou em ferida e não pude
sorrir até ontem [...]” (Ct. escrita por Auria em 29 de novembro de
1962).
Ao falar sobre o rosto de Armando, Auria se refere a uma paralisia facial,
devido a um choque térmico que fez com que sua boca ficasse torta, mas foi um
problema logo resolvido. Além de correspondências, os contatos também eram
realizados por telefonemas e por encontros:
“Querido, você falou que iria telefonar sabádo, se tu escreveu
marcando hora, não vá desanimar, pode telefonar que, se eu não posso
ir atender, pedirei para a mãe ir no meu lugar [...]” (Ct. escrita por
Auria em 29 de novembro de 1962).
68
A partir da leitura desse trecho, percebemos que essa relação era conhecida
pela família de Auria, prova de que ela esperava que pudessem se casar, caso contrário
não lhe diria que, se ela não pudesse ir à vila atender ao telefone, sua mãe iria em seu
lugar.
Ademais, os dois ainda se encontravam pessoalmente algumas vezes:
“Nossos planos para domingo forma por água abaixo, eu não
poderei ir, eu estava tão feliz por ir na festa [...]. eu terei que ficar
aqui pensando muitas cosias e com ciúmes de você, porque não
falta gorias, e gorias muito espertas [...]. Um abraço saudoso daquela
que muito te quer, Auria. Até um outro dia, se você puder vir aqui
venha ficarei contente” (Ct. escrita por Auria em 29 de novembro de
1962).
No trecho citado, Auria pede desculpas a Armando por não poder comparecer
à festa, conforme haviam combinado. Demonstra, ainda, gostar muito dele ao alegar que
ficaria com ciúmes de pensar que ele poderia dançar com outras “gorias” na festa.
São fatos reveladores do namoro entre os dois e, ainda, de que a família de Armando
sabia da relação, pois Auria lhe pede que mande lembranças aos familiares dele.
Armando e Auria namoraram, ainda de acordo com informações de sua irmã,
durante dois anos e o namoro teve de ser interrompido quando, em 1964, junto com sua
família, Armando foi morar em São José do Cedro, no Estado de Santa Catarina.
A carta acima contextualizada passa a ser tratada como Ct.4, escrita por Auria
em 29 de novembro de 1962 (Anexo 5), completando as quatro cartas pessoais que nos
propomos a analisar.
A seguir, apresentamos sua transcrição:
P.A.P Ijuí 29-11-62
Querido Armando
Espero que tu estejas normal do rosto quando estas linhas chegarem em tuas mãos.
Tu deves estar bem chateado com migo, por eu querer que você sorrise, querido sabe
que eu já pagei bem caro o que fiz para ti.
Eu te falei naquela bolha que estava saindo em meus lábios;
pois ela abriu e por onde escorreu aquela água virou em ferida e não pude sorrir até ontem;
Querido tu acertou quando disse que não fazia planos adiantados, porque não daria
certo.
Nossos planos para domingo já foram por água abaixo, eu não poderei ir, eu estava
tão feliz por ir para lá na festa.
O motivo de eu não ir é por que adoeçi ésta madrugada me acordei numa ancia de
vomito que era triste, e assim passei até as 9 horas, agora estou um pouco melhor mas com uma
tremedeira sem fim e quando começo a caminhar um pouquinho tudo escurece e fico mal, a
minha sorte é que eu não tenho febre.
A Tereza esteve aqui em minha casa hoje pela manhã, e disse que iria domingo na
69
festa e Neiva e a Nerly todas irão, eu terei que ficar aqui pensando muitas coisas e com
ciúmes de você, porque lá não falta gorias, e gorias muito espertas.
Querido, você falou que ira telefonar sabádo, se tu escreveu marcando hora, não vai
desanimar, pode telefonar que, se eu não posso ir atender, pedirei para a mãe ir no meu lugar.
Querido eu tenho uma nova para contar para ti, sabe a justiça divina não falha, não é
sobre nós, é sobre alguém que esteve por aqui e já foi embora.
Um abraço saudoso daquela que muito te quer Auria. A
até um outro dia, se você puder vir aqui venha ficarei contente.
Desculpe não poder ir na festa.
Lembranças a todos de tua família.
A linguagem observada nessa carta, bem como nas demais já contextualizadas,
é um aspecto que merece destaque por ser reveladora de sentimentos verdadeiros,
apresentando marcas do cotidiano. Em relação ao conteúdo temático e estilo, elas
trazem muitas informações sobre costumes, valores e forma de vida das pessoas que
fizeram parte do evento e do contexto em que foram escritas, permitindo uma
compreensão aprofundada do gênero discursivo carta de amor enquanto forma e,
também, função social. Sobre esses aspectos discutiremos, de forma mais detalhada, nas
próximas sessões, iniciando com o estudo do conteúdo temático.
Antes, porém, é pertinente relacionarmos, rapidamente, as cartas que
compõem nosso corpus de pesquisa. São elas:
Quadro 3 – Descrição do corpus de pesquisa
3.2 CONTEÚDO TEMÁTICO: ALGUNS ÍNDICES SOCIAIS DE VALORES
Quando falamos em conteúdo temático, temos uma linguagem relacionada ao
seu contexto de produção, criada a partir de uma cultura, de uma identidade, de uma
necessidade de dizer, motivo pelo qual não podemos separá-los. Nosso objetivo, nesta
seção, é abordar esse elemento nos textos constituintes de nosso corpus, revelado por
meio dos signos sociais e ideológicos, situando as cartas de amor na história, nas
ideologias de um grupo social, reveladoras de sua cultura.
Corpus
Remetente Destinatário Data de produção Assunto
Ct.1 Gerda Armando 9/11/1953 Namoro/decepção
Ct.2 Neusa Armando 10/3/1957 Namoro/decepção
Ct.3 Eny Armando 1º/6/1958 Namoro
Ct.4 Auria Armando 29/11/1962 Namoro
70
Partimos do já frisado no capítulo anterior: as cartas de amor constituem-se em
gêneros discursivos que permitem a recuperação de aspectos linguísticos, culturais e
identitários, representando uma visão de mundo. Isso assim é porque, citando Meurer,
ao produzirmos um enunciado, “criamos representações que refletem, constroem e/ou
desafiam nossos conhecimentos e crenças, e cooperam para o estabelecimento de
relações sociais e identitárias” (MEURER, 2002, p. 28).
Em outras palavras, um enunciado carrega muito mais do desejado. Além do
tema e das intenções, ele acaba por representar seu meio social de produção, bem como
as visões em relação a esse meio. Trata-se de algo que acontece em grande parte dos
gêneros discursivos, entretanto, nem sempre com a mesma intensidade da carta de amor.
O conteúdo temático, como já destacado, não pode ser reduzido apenas à
significação, visto tratar-se do tema vinculado ao seu contexto de produção. Para a
enunciação de um gênero discursivo, é ele um dos elementos fundamentais a ser
analisado, de forma a compreendermos o que está escrito e por que foi escrito
(objetivo), isto é, as ideologias representantes da cultura de um grupo social,
responsáveis por embutir em indivíduos determinadas visões de mundo.
Para compreendê-lo, alguns elementos contextuais necessitam ser conhecidos.
Conforme já citado em Baumgärtner e Cruz, são eles:
• ele [o produtor do enunciado] é alguém na sociedade;
• ele escreve para alguém;
• ele tem um objetivo;
• ele se constitui como sujeito de seu discurso e lança mão de estratégias para realizar
o processo de interlocução;
• ele escolhe o gênero mais apropriado para atingir seus objetivos;
• ele escolhe o meio de divulgação (BAUMGÄRTNER & CRUZ, 2009, p. 169-170).
Tais princípios podem ser observados em nossas cartas, pois o remetente, um
ser social, produz enunciados para interagir com alguém, podendo, assim, cumprir seus
objetivos comunicativos, responsáveis pela escolha do gênero discursivo (a carta de
amor no caso desse estudo).
A existência de um destinatário, ao tratar-se desse modelo de enunciado, pode
ser, facilmente, perceptível por meio do uso de vocativos, de pronomes que o retomam
e de verbos conjugados no modo imperativo:
“[...] Porque Armando, diga-me porque preciso duvidar tanto de tua
sinceridade? Estarás mesmo caçando de mim? [...] Chegou a minha
vez de te pedir que não me faças sofrer injustamente. Não iludas meu
71
coração por um simples passa-tempo. bonzinho, escreve-me uma
palavra de consôlo [...]” (Ct.1).
“[...] O que tu achas; faz um exame de consciência, veja o que tu
falaste de mim desse modo ofencivo [...]. Armando quando tu
estiveres no leito para dormir, recorda-te de mim e te imagina o meu
sofrimento a minha agonia [...]” (Ct.2).
“[...] Ao meu pretendente Armando [...]. Na realidade meu querido
amigo, tua carta que ditou hosanas miraculosas em minha mente [...]”
(Ct.3)
“[...] Tu deves estar chatiado com migo, por eu querer que você sorrise
[...] (Ct.4)”
As palavras em destaque marcam a existência do destinatário. Desse modo, a
carta é composta por enunciados constituintes de uma enunciação, por meio da qual
ocorre a interação verbal, a produção de sentido e refração da realidade. Apesar de não
constituir um diálogo no qual tanto o enunciador quanto o destinatário estejam
presentes no mesmo contexto, a concretização de um ato comunicativo indireto,
portanto, uma reprodução de conversas espontâneas e pessoais.
Marcuschi trata esse nero discursivo como um “ato de fala impressa”
(MARCUSCHI, 2004, p. 103). Podemos retomar, mais uma vez, Bakhtin (2004) para
reforçar essa afirmação. Para esse autor, uma relação dialógica diz respeito a qualquer
tipo de comunicação verbal, seja oral, seja escrita, sem que o produtor do enunciado e
o destinatário estejam, necessariamente, em um mesmo ambiente.
Nas cartas de amor, temos quatro remetentes: Gerda, Neusa, Eny e Auria. Em
comum, elas possuem o destinatário (Armando) e a paixão que sentem por esse
homem, definindo, de certa forma, o tema das cartas. Entretanto, os objetivos
comunicativos diferem entre si, pois enquanto duas (Gerda e Neusa) lhe escrevem
revelando a dor de um amor desrespeitado, outras (Eny) o fazem com os objetivos de
lhe darem notícias suas e conseguirem uma fotografia de seu amado e a outra (Auria),
para desculpar-se por desmarcar um compromisso. Há, no entanto, algo em comum
entre elas: pretendem agir sobre Armando, comovendo-o a falar da dor e da saudade
que sentem, esperando uma carta sua, fotografias, visitas ou, simplesmente, um
namoro sério entre os dois.
Alguns recortes dessas cartas demonstram isso:
“[...] Não iludas meu coração por um simples passa-tempo ou para
satisfazer a vontade de alguém que me odeia. bonzinho, escreve-
me uma palavra de consôlo; que não queres mais voltar a visitar-
72
me. Escreve-me para que eu tenha uma pequena recompensa para a
felicidade que me causaria tua presença. Embora meu coração não
queira compreender as razões que tu alegaste para a tua ausência, não
quero insistir em que aqui venhas [...]” (Ct.1)
“[...] Armando quando estiveres no leito para dormir, recorda-te de
mim e te imaginas o meu sofrimento e a minha agonia, não sei o que
fazer, as vezes eu quero estar sorindo mas não posso; e ainda as vezes
alguém começa a me chatiar mas te digo quasi nem posso responder
[...]” (Ct.2)
“[...] Gostaria imensamente de receber outra foto tua, a que tu me
deste esqueci em casa e minha irmã (a que está aqui) m imenso
prazer em conhecer-te nem que seja atravês de uma fota! [...]” (Ct.3)
“[...] Nosso planos para domingo foram por água abaixo, eu não
poderei ir eu estava tão feliz por ir lá na festa [...]” (Ct.4)
Os trechos citados exemplificam que as remetentes escrevem diretamente a
Armando, tentando agir sobre ele, um ser social que, caso lhes tivesse respondido,
também teria um objetivo comunicativo a cumprir, passando a ser o produtor do
enunciado e não mais o destinatário. Com essas cartas, Gerda e Neusa, principalmente,
pretendem convencer a pessoa amada do amor que sentem e da vontade de estar com
ele, resolvendo, então, os problemas e desentendimentos existentes na relação. Eny
e Auria escrevem principalmente para manter um contato com Armando,
demonstrando não haver nenhum problema no namoro.
Compreendemos, portanto, que as remetentes dessas cartas destinadas a
Armando eram mulheres consideradas “sérias” à época, por desejarem que seus
relacionamentos fossem reconhecidos por suas famílias. Esse é um aspecto revelador da
cultura familiar da época: o desejo da aprovação de um relacionamento amoroso por
parte de toda a família. Eny nos demonstra isso ao revelar querer mostrar uma foto de
seu amado a sua mãe e irmã, e Auria, ao mandar lembranças a sua família.
Nessa perspectiva, como destacado em Baltar, o conteúdo temático é
composto por informações explicitamente e implicitamente contidas nos textos, ou seja,
são:
[...]
representações interiorizadas do agente produtor do texto. São
conhecimentos que vão variar de acordo com suas experiências
vividas, seus conhecimentos prévios de mundo, que estarão
disponíveis em sua memória e que serão atualizados no momento da
ação de linguagem. (BALTAR, 2004, p. 69).
Em outras palavras, o conteúdo temático diz respeito a conhecimentos de
mundo de seu produtor. Pensando nas cartas de amor, temos modelos de enunciados
73
caracterizados por conteúdos temáticos referentes a acontecimentos da vida pessoal do
remetente e da pessoa a quem ele escreve, com revelações de experiências vividas pelo
produtor desse gênero. É muito comum, além disso, uma discussão sobre a relação
amorosa entre remetente e destinatário (no caso de nosso corpus).
Ao destacarmos intenções das remetentes das cartas de amor, temos outro
princípio para a produção de enunciados: o produtor “tem um objetivo”
(BAUMGÄRTNER & CRUZ, 2009, p. 169-170). Nesse ponto de vista, podemos citar,
também, Marcuschi:
[...] não existe um uso significativo da língua fora das inter-relações
pessoais e sociais situadas [...] todo uso autêntico da língua é feito em
textos produzidos por sujeitos históricos e sociais de carne e osso, que
mantêm algum tipo de relação entre si e visam a algum objetivo
comum. (MARCUSCHI, 2008, p. 23).
O quadro a seguir apresenta esses elementos em nosso corpus de estudo:
CartaRemetente
Destinatário
Objetivos Estratégias Gênero
escolhido
Ct.1
Gerda Armando Descrição de seu
sofrimento; pedido de
consolo e de cartas.
Demonstração de seu
amor por meio de
uma linguagem
poética.
Carta
de
amor
Ct.2
Neusa Armando Descrição de seu
sofrimento; pedido de
um esclarecimento sobre
a relação.
Demonstração da
importância de
Armando para si e de
seu imenso amor por
ele.
Carta
de
amor
Ct.3
Eny Armando Descrição de suas
atividades; pedido de
uma fotografia.
Descrição de sua
felicidade ao receber
a carta de Armando;
Carta
de
amor
Ct.4
Auria Armando Pedido de desculpas por
desmarcar um
compromisso; relatar sua
doença.
Demonstração de seus
ciúmes por Armando,
revelando sua
importância.
Carta
de
amor
Quadro 4 – Elementos contextuais do conteúdo temático no corpus
Considerando esses aspectos do conteúdo temático referente às cartas de amor
constituintes do corpus, temos a seguinte compreensão: no momento da produção de
qualquer gênero discursivo existe um produtor que, com um objetivo em mente,
produz o discurso para um outro alguém, sobre quem pretende agir e, para isso, lança
mão de algumas estratégias comunicativas para ajudarem nessa tarefa.
A identificação de tais elementos permite a recuperação do conteúdo temático
do gênero em questão. Entretanto, não se trata de apenas isso, pois os mesmos
74
elementos ainda permitem uma compreensão do contexto em que foram produzidos,
isto é, das ideologias responsáveis pela formação de valores, de crenças e de costumes.
Trata-se da cultura de um grupo social.
Pelo número de cartas que conseguimos recuperar de cada um dos remetentes
de nosso estudo, podemos inferir que a interação verbal via cartas sempre fez parte da
cultura brasileira, porém, com o passar do tempo, seu uso foi sendo reduzido devido à
evolução dos gêneros discursivos, conforme postulado por Marcuschi (2003) e
Bazerman (2006), o que fez com que ela fosse sendo substituída por conversas ao
telefone, fax, e-mail, msn, entre outros. Isso pode ser comprovado pelo fato de que,
enquanto conseguimos duas ou mais correspondências de um mesmo remetente datadas
dos anos de 1953 e 1957, dos anos de 1958 e 1962 essas foram reduzidas a, apenas, uma
de cada pessoa.
Dessa forma, em relação à cultura de 1950, observamos o difícil acesso ao
telefone, principalmente às pessoas habitantes da Zona Rural, visto que naquela época
essa tecnologia havia sido criada, mas, mesmo assim, muitas pessoas que moravam
distantes entre si ainda se comunicavam por meio de cartas. Aos poucos, porém, as
conversas ao telefone passam a substituir a interação verbal via cartas, o que se justifica
pela diminuição da produção desse gênero discursivo no final da década de 1950 e
começo da década de 1960, conforme revelado por Auria ao combinar uma conversa ao
telefone com Armando:
“Se você não marcou hora para o telefone, venha as 5 da tarde eu o
espero” (Ct.4).
Quando se tratava da interação verbal entre namorados vizinhos um do outro,
essa também se dava, em grande parte, por meio de cartas, pois eles tinham pouca ou
nenhuma privacidade para se encontrarem sozinhos, diferenciando aquela época dos
dias de hoje, quando essas conversas se dão, se não pessoalmente, por telefones, e-
mails, scraps, entre outros. As cartas de Gerda (Ct.1) e de Neusa (Ct.2) nos revelam
essa característica cultural, porque sabemos que os dois moravam em comunidades
próximas uma a outra e, mesmo assim, era por meio de cartas que falavam sobre
assuntos particulares.
Para que essas cartas chegassem ao seu destino, não era necessário o serviço
dos correios como hoje, pois, de uma forma mais rápida, outras pessoas (ou o próprio
remetente) as entregavam aos destinatários. Trata-se de uma característica cultural
75
revelada por Gerda (Ct.1) em sua carta, quando ela escreve que amigos de Armando ou
ele próprio lhe entregavam as correspondências, como pode ser observado em um
recorte da Ct.1:
“[...] Francamente Armando, eu ontem achei que tu não querias mais
falar comigo, após me entregares a correspondência. Isto também
verás da carta que ontem escrevi. Perguntei-te: É isso que tens? E
tu respondeste ‘Sim’ e viraste para falar com o Jaime. Que mais podia
eu compreender do que não pretendias falar comigo? Desculpe-me,
mas desta vez sou inocente. Porque não me disseste uma palavra
que me fizesse compreender de que tu querias ainda falar comigo?
[...]” (Ct. escrita por Gerda em 20 de novembro de 1953).
Acreditamos que esse comportamento possa ser justificado no fato de que,
naquela época, havia uma distância maior entre os apaixonados, os quais não tinham a
privacidade e a intimidade hoje existente em nossa cultura. Isso era devido à ideologia
de que a proximidade maior entre eles representaria um respeito menor, principalmente
à honra da mulher.
Ademais, os recortes anteriores ainda revelam uma característica regional,
própria do estado do Rio Grande do Sul, local em que elas foram escritas. Trata-se da
forma como essas mulheres se dirigiam a Armando: sempre, pela segunda pessoa do
singular (tu), demarcando uma relação de respeito e, ao mesmo tempo, íntima,
característica pragmática delas, ou seja, um reflexo das ideologias e da cultura de uma
época.
Desse modo, considerando a teoria exposta no capítulo anterior, entendemos
que os signos sociais e ideológicos são responsáveis pela reflexão e refração da
realidade. Podemos, inclusive, retomar a seguinte citação de Marcuschi:
[...] a língua, seja na sua modalidade falada ou escrita, reflete, em boa
medida, a organização da sociedade. Isso porque a própria língua
mantém complexas relações com as representações e as formações
sociais. Não se trata de um espelhamento, mas de uma funcionalidade
em geral mais visível na fala. (MARCUSCHI, 2007, p. 35).
Apenas por meio de práticas sociais realizadas pela linguagem a realidade
passa a existir. Assim, através da leitura dessas cartas, temos uma visão da cultura da
época em que essas cartas foram escritas. Ao fazer isso, tentamos traçar uma
comparação entre aquela e a nossa cultura, definindo aqueles grupos culturais e, assim,
diferenciando-os do nosso, pois é a cultura que define um grupo social, demarcando
76
“seu próprio estilo cultural pela apropriação de itens dos acervos comuns, juntado-os em
um sistema com um novo sentido” (BURKE, 2000, p. 259).
Por meio da leitura da carta de Neusa podemos ainda destacar outra
característica cultural daqueles anos. É o uso de penas na escrita de cartas:
“[...] Muitas e muitas vezes eu pegava na pena, e queria te escrever e
não tinha forças, meus olhos se enchiam de lágrimas [...]” (Ct..2)
Era pena de ave (geralmente de pato ou de ganso) que substituía a caneta hoje
utilizada. Sua ponta, devidamente aparada, era imersa em um pouco de tinta para tornar
possível a escrita: era um processo de imersão que se repetia até quando tudo fosse
colocado no papel. Isso resultava em uma escrita mais grossa, como podemos
observamos em algumas cartas anexas.
Como destacado anteriormente, para Bakhtin/Volochinov (2004), a língua vive
e evolui historicamente apenas por meio da interação verbal. Assim, ao percorrer esse
percurso de análise, situando as cartas de amor na história, no contexto em que foram
produzidas, sem deixar de lado o tema por elas veiculado e sua significação, estamos
vinculando a língua à vida, pois:
[...] ignorar a natureza do enunciado e as particularidades do gênero
que assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo
lingüístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade
do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida. A
língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a
realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida
penetra na língua. (BAKHTIN, 2000, p. 282).
Falar do tema desenvolvido num texto significa recuperar o assunto nele
tratado, sem perder de vista quem o produziu, com que finalidade, para quem,
influenciado por qual contexto sócio-histórico-ideológico. É não perder de vista o
contexto de produção que determina as formas do dizer.
Essa mesma preocupação deve transparecer em relação ao estilo do corpus.
Antes disso, porém, discorremos sobre a construção composicional do gênero carta de
amor, uma vez que, seguindo as dimensões dos gêneros apresentada por Bakhtin, é ela o
segundo elemento a ser considerado em estudos da língua.
3.3 A DIMENSÃO COMPOSICIONAL DO GÊNERO DISCURSIVO CARTA DE
AMOR
77
Partimos, agora, para uma análise mais voltada ao estudo da estrutura
composicional do gênero discursivo carta. De acordo com o exposto teoricamente, a
carta é um gênero discursivo do qual derivam vários subgêneros (familiar e pessoal / de
amor, comercial, institucional, do leitor, etc.) e, como estudar todos eles em sua íntegra
não seria possível, nosso trabalho focaliza, especificamente, as de amor, as quais dão ao
seu produtor uma liberdade maior, tanto em relação à estrutura quanto à linguagem
utilizada. É sobre esse modelo de enunciado que apresentamos a estrutura do gênero.
Se Lima-Lopes afirma: “cada gênero carrega formas lexicais e sintáticas
próprias, ligadas aos conteúdos informativos de cada um deles” (LIMA-LOPES, 1999,
p. 384), podemos reconhecer a carta de amor como um gênero discursivo com marcas
que lhe são próprias. Ela possui uma estrutura composicional que a identifica, apesar de
não ser tão rígida quanto é em alguns gêneros e, mesmo, em seus subgêneros, como a
carta comercial, por exemplo. Isso se justifica, como destacado, em Bazerman, pois,
segundo ele, “essas variedades de cartas se tornaram fortemente tipificadas em
organização e no uso de frases de expressão” (BAZERMAN, 2006c, p. 88).
Enquanto elementos básicos de apresentação visual de uma carta, Barbosa
(1979) apontou os seguintes: endereço do remetente e do destinatário (envelope), o local
e a data em que ela foi escrita (cabeçalho), o vocativo ou chamamento (saudação), o
texto (desenvolvimento do/s assunto/s), a despedida e a assinatura. São elementos que
encontraremos (ou o) em todas as cartas de amor, pois tais informações são
apresentadas (ou não) em função do interlocutor, como podemos observar no Quadro 5:
Carta
Endereços
Local
Data
Vocativo
Despedida
Assinatura
Ct.1
Não consta
(não temos
o envelope)
Não
consta
19-11-53 Caro
Querido!
Abraça-te mui
carinhosamente
Gerda
Ct.2
Não consta
(não temos
o envelope)
Rincão
dos
Pampas
10-3-57 Armando! Adeus Tua Neusa
M. de
Souza
Ct.3
Não consta
(não temos
o envelope)
Pôrto
Alegre
1º junho
de 1958
Ao meu
pretendente
Armando
Tua pretendente Eny
Ct.4
Não consta
(não temos
o envelope)
Ijuí 29-11-62 Querido
Armando
Um abraço
saudoso daquela
que muito te quer
Auria
Quadro 5 – Elementos composicionais das cartas de amor no corpus
Como no caso das cartas que estamos analisando, os endereços de remetente e
destinatário são, normalmente, colocados no envelope das correspondências, não os
citamos aqui, porque não tivemos acesso aos mesmos. Observamos, no quadro, que
78
uma enorme variação na forma como aparece cada um dos elementos estruturais no
corpus, sendo que alguns nem são colocados, o que se justifica por não ser um gênero
totalmente formal e por apresentar, de maneira mais evidente, o estilo de quem o
produz.
Nessa perspectiva retomamos em Bakhtin a relatividade que compõe os
modelos de enunciados, quando os trata por “tipos relativamente estáveis” (BAKHTIN,
2000, p. 279), quer dizer, com características próprias, porém, possíveis de serem
moldados pelo produtor conforme a esfera de comunicação. Por isso, no caso da carta,
Barbosa afirma que “podem fazer-se rmulas para a correspondência social e
comercial, mas não para aquela que não passa de amistosa conversa à distância”
(BARBOSA, 1979, p. 34).
Um exemplo dessa liberdade de expressão é o lugar em que as cartas foram
escritas, pois enquanto nas Ct.2, 3 e 4 o local é colocado no cabeçalho, seguindo a
estrutura padrão, na Ct.1 a produtora não o menciona. A escrita da data também varia
bastante, aparecendo ora de forma abreviada (Ct.1, 2 e 4), ora por extenso (Ct.3).
Os três últimos elementos (vocativo, despedida e assinatura) são os que mais se
diferenciam, principalmente no que diz respeito à linguagem, já que o local onde
aparecem segue a estrutura conhecida: vocativo logo após a data, despedida ao final do
corpo do texto precedendo a assinatura. No caso do vocativo, presente no corpus, ora
revela paixão, ora mágoa. Esse tratamento informal e irregular é justificado, segundo
Barbosa (1979), porque, conforme citado no capítulo anterior, a carta de amor é
caracterizada por uma simplicidade e naturalidade e pelo assunto tratado com a
singeleza de quem trava uma conversa.
Essas formas de tratamento se refletem diretamente na despedida e na
assinatura dos remetentes, nas quais o mesmo sentimento é revelado. Na Ct.1, devido à
mágoa sentida, Gerda opta por demonstrar seu carinho por Armando, ao invés de seu
amor (“Abraça-te mui carinhosamente”) e na Ct.2, pelo mesmo motivo, Neusa se
despede com a expressão “Adeus”, dando a entender que o romance estava chegando ao
fim. Nesse sentido, citamos, novamente, Bazerman, que destaca, em seus estudos, a
possibilidade de a carta revelar a relação existente entre os participantes da situação
comunicativa. De acordo com o autor,
As relações e transações em curso são mostradas para o leitor e o
escritor diretamente através das saudações, das assinaturas e dos
conteúdos da carta. Além do mais, cartas podem descrever e comentar
79
– freqüentemente de modo explícito – a relação entre os indivíduos e a
natureza da transação corrente. (BAZERMAN, 2006c, p. 87-88).
Outras expressões usadas para iniciar os textos desses enunciados podem
também ser observadas em nosso corpus de pesquisa. Enquanto Barbosa (1979) destaca
a carta de amor como um gênero carregado de sentimentos, no qual o toque do suave
lirismo permite expressar, com exatidão, naturalidade, espontaneidade e sinceridade o
que os remetentes sentem, aproximando ainda mais os corações, observamos que se
trata de um gênero discursivo que possui distinções em seus textos. Algumas
apresentam muitos sentimentos, outras nem tanto, dando ao remetente um poder maior
de escolha sobre como ele irá iniciar a interação verbal com o seu destinatário.
É o que revelam os seguintes recortes:
[...] Lentamente a noite desdobra seu escuro manto sôbre a terra. A
melancolia que o anoitecer traz consigo envolve a mim também,
trazendo à minha mente mil loucas idéias. Não posso conter-me,
preciso dar livre curso aos meus pensamentos, os quais, uma vez
escritos, enviarei a ti [...]” (Ct.1)
[...] Estando eu triste sem o que fazer, apesar de poucos instantes
ter saído daqui, mais como o tempo foi curto, vou continuar os
assuntos por meio deste papel [...]” (Ct.2)
[...] um último hino de imortalidade cruzou hoje meu caminho,
preechendo-o com um extrêmoso toque de mágica beleza; e éste hino,
a que me refiro, trata-se da tua benevolente e benvinda carta [...]”
(Ct.3)
[...] Espero que tu estejas normal do rosto quando estas linhas
chegarem em tuas mãos [...]” (Ct.4)
Os trechos nos permitem essa compreensão, pois cada uma dessas mulheres,
apaixonadas por Armando, inicia sua carta com uma linguagem que lhe é própria e,
assim, distante de estruturas padrões. Desse modo, enquanto Gerda o faz com uma
linguagem bem poética, detendo-se na descrição do ambiente a sua volta, Neusa e Eny
parecem apresentar justificativas para as suas escritas, ou seja, o pouco tempo que
tiveram para conversar pessoalmente (caso de Neusa) e o recebimento de uma carta de
Armando que deveria ser respondida (caso de Eny). Isso demonstra que, diferentemente
da primeira remetente, Neusa e Eny não tinham o hábito de escrever muitas cartas,
fazendo isso apenas quando tinham algo importante a lhe dizer, além de declarações de
amor, o que pode ser comprovado pela quantidade de cartas de cada uma dessas
mulheres: seis de Gerda, apenas três de Neusa e duas de Eny.
80
Por outro lado, Auria, a remetente da Ct.4, detém-se em padrões estruturais. A
expressão com que inicia seu texto parece constituir um modelo predefinido. Não
tivemos, no entanto, acesso a outras de suas cartas (se é que existiram outras), para
comprovarmos se esse tipo de escrita era um bito de Auria ou se ocorreu somente
numa correspondência.
Tais aspectos confirmam a visão de estudiosos acerca desse gênero discursivo:
as cartas de amor (assim como as pessoais e familiares) são textos criados para mediar a
distância entre dois indivíduos, os quais fornecem “um espaço transacional aberto, que
pode ser especificado, definido e regularizado de muitas maneiras diferentes”
(BAZERMAN, 2006c, p. 87). Dito de outro modo, são textos bastante móveis no que
diz respeito a estrutura, linguagem e organização.
A carta é, assim, um gênero discursivo, já que, com uma estrutura responsável
pela caracterização de seus enunciados, quem a escreve escreve-a para alguém e tem
algum objetivo em mente, na tentativa de agir sobre esse alguém, utilizando, para isso,
diferentes estratégias linguísticas. Trata-se de um meio de sustentação da interação
verbal entre pessoas que se encontram em diferentes ambientes comunicativos.
Conforme destacamos em Silva: “ela sempre seuma unidade aos olhos de
quem abre o envelope: o ato de enviar uma carta e o fato de recebê-la criam uma
situação comunicativa: está feito o contato” (SILVA, 1995, p. 235). Tal afirmação se
sustenta em Bakhtin, que postula: para falar, "utilizamo-nos sempre dos gêneros do
discurso, ou seja, todos os nossos enunciados dispõem de uma forma padrão e
relativamente estável de estruturação de um todo” (BAKHTIN, 2000, p. 301).
Ao falarmos em estratégias linguísticas, as tipologias textuais necessitam ser
consideradas, pois realizam os objetivos comunicativos das remetentes das cartas de
amor: narrar algum fato/acontecimento; defender uma ideia, posicionando-se
argumentativamente; descrever lugares, pessoas, festas, etc.; explicar, expor algum
conhecimento e/ou prescrever/ordenar/orientar ações. Retomando as discussões
teóricas, as tipologias são sequências linguísticas organizadoras dos enunciados e,
portanto, encontradas no interior dos textos. Nas palavras citadas de Marcuschi, são
“construtos teóricos definidos por propriedades lingüísticas intrínsecas”
(MARCUSCHI, 2003, p. 23), como aspectos lexicais, sintáticos, relações lógicas e
tempos verbais.
Nas cartas do corpus é notável a variedade de sequências tipológicas que se
intercalam nos enunciados, comprovando a existência de uma heterogeneidade
81
tipológica nos gêneros discursivos, apontada por Bronckart (2003) e Marcuschi (2003).
Em outras palavras, em um texto é possível a combinação de diferentes tipos textuais.
Entretanto, entre elas, normalmente, ocorre a predominância de algumas em
relação às outras. É o caso da narrativa e da descritiva, frequentemente utilizadas pelas
remetentes das cartas aqui estudadas, em detrimento da injuntiva, argumentativa e
expositiva.
Se Marcuschi (2003) caracteriza a tipologia narrativa como uma sequência
temporal, observamos ser ela predominante nas cartas de amor de nosso corpus. São
estratégias para a narração de acontecimentos da vida das remetentes e, também, da
relação entre Armando e a remetente de cada uma das cartas que ele recebe, como os
seguintes recortes mostram:
“[...] o mais triste para mim foi quando em certa hora surgiu a
desconfiança. Nem imaginas que tormentos assaltaram meu coração!
Lembras-te, por certo, que te disse nesta noite, que eu tenho perdido
toda a nos homens. E disto tive nova prova hoje. Vi em ti apenas
um vil conquistador [...]” (Ct.1).
“[...] as vezes alguém começa a me chatiar mas te digo quase nem
posso responder. Uma noite eu deitei e não pude dormir quando dei
pela coisa pelas minhas faces se rolava ardentes lagrimas [...]” (Ct.2).
“[...] tua carta me ditou hosanas miraculosas na minha mente
entropecida pela desilusão da vida; e tua presença ainda que
simplesmente n'uma carta, privou-em de alguns momentos de suprema
e indesejável tristeza [...]” (Ct.3).
“[...] A Tereza esteve aqui em minha casa hoje pela manhã, e disse
que iria domingo na festa e Neiva e a Nerly todas irão, eu terei que
ficar aqui pensando muitas coisas e com ciúmes de você, porque
não falta gorias, e gorias muito espertas [...]” (Ct.3).
Destacamos apenas um recorte de cada carta, mas frisamos que são tipologias
recorrentes no interior de cada carta, assim como a descrição. Para Marcuschi (2003), a
descrição é marcada pelo predomínio de sequências de localização, ou seja, descrição
do ambiente em que a remetente se encontra ao escrever a carta, de seus sentimentos e
de comportamentos. Observemos essas estratégias em outros fragmentos:
“[...] Lentamente a noite desdobra seu escuro manto sobre a terra. A
melancolia que o anoitecer traz consigo envolve a mim também,
trazendo à minha mente mil loucas idéias Vivi o dia todo na ilusão de
ainda estar envolta por teus fortes braços. Atirei-me toda ao sônho de
estar ainda ao teu lado como nessa madrugada [...]” (Ct.1).
82
“[...] Tu me achas mesquinha; mas de absoluto o sou, sou
simplesmente uma grande sofredora: sem ter para quem me confessar:
si me confesso a ti meu sofrimento me achas mesquinha, mas para
quando não sou. É apenas o capricho do amor que fez de tudo um
pouco. “Sou uma grande escrava do sofrimento [...]” (Ct.2).
“[...] tua carta me ditou hosanas miraculosas na minha mente
entropecida pela desilusão da vida; e tua presença ainda que
simplesmente n'uma carta, privou-em de alguns momentos de suprema
e indesejável tristeza [...]” (Ct.3).
“[...] porque lá não falta gorias, e gorias muito espertas [...]” (Ct.4).
Gerda utiliza a descrição para iniciar a escrita de sua carta descrevendo o
anoitecer e, também, a vontade de estar ao lado de Armando, realizando suas “loucas
ideias” (Ct.1). Neusa a descrição como uma forma de demonstrar todo o
sofrimento que o comportamento de Armando lhe causa. Eny descreve a alegria causada
pelo recebimento da carta de seu amado e Auria seus ciúmes por saber que ele irá a uma
festa à qual ela não poderá comparecer.
Com menor frequência, nas Ct.1 e Ct.2, ocorrem sequências argumentativas,
tentando convencer Armando sobre a paixão sentida; injuntivas, para impor-se sobre o
comportamento de Armando e expositivas, em explicações de fatos ocorridos:
Sequência Trechos em que ocorrem
Injuntivas
“[...] Escreve-me uma palavra de consôlo; já que não queres mais voltar a
visitar-me. Escreve-me para que eu tenha uma pequena recompensa para
a felicidade que me causaria tua presença [...]” (Ct.1).
“[...] Porque Armando, diga-me porque preciso duvidar tanto de tua
sinceridade? Estarás mesmo apenas caçoando de mim? [...]” (Ct.2).
“[...] Armando quando tu estiveres no leito para dormir, recorda-te de
mim e te imagina o meu sofrimento a minha agonia [...]” (Ct.3).
Explicativa
“[...] Atribuo que a mesma não chegou à tuas mãos por ter isso somente
com um porte. Imfelizmente quando remeto uma carta dessa forma,
dificilmente ceguam a seu destino [...]” (Ct.4).
Argumentativa
“[...] Embora meu coração não queira compreender as razões que tu
alegaste para a tua ausência, não quero insistir em que aqui venhas [...]”
(Ct.1).
Quadro 6 – Sequências tipológicas no corpus
Nos três primeiros recortes ocorre o predomínio da sequência injuntiva,
dirigindo os enunciados diretamente a Armando. No quarto trecho, a sequência que
predomina é a expositiva, com a explicação do motivo pelo qual Armando não recebeu
uma carta a ele enviada. E no quinto trecho predomina a sequência argumentativa,
quando Gerda demonstra a intenção de convencer-se de que não deve implorar a visita
83
do amado.
Considerando que as tipologias textuais se apresentam mescladas, ora com o
predomínio de uma, ora de outra, é que temos a heterogeneidade composicional
(BRONCKART, 2003). Dessa forma, os tipos textuais “são conjuntos de traços que
formam uma sequência e não um texto” (MARCUSCHI, 2003, p. 27). Assim, ao
considerarmos um texto como narrativo, por exemplo, ele terá também outras
sequências linguísticas, no entanto, não de forma tão recorrente quanto aquela que
permite classificar o texto.
As tipologias são, portanto, o meio de sustentação das estratégias linguísticas
encontradas no interior dos textos, organizando os enunciados e constituindo
enunciações que, para Bakhtin/Volochinov, são o “o produto da interação de dois
indivíduos socialmente organizados” (BAKTHIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 112).
O ato de receber uma carta e respondê-la caracteriza uma relação dialógica.
Parte do corpus pistas de que ocorre, realmente, uma enunciação e não, apenas, um
enunciado individual e isolado. Os recortes abaixo exemplificam isso:
“[...] Guarda sempre alguns minutos para mim, quando me contarás as
novidades que tiveres encontrado e tudo o que te comove. Não
cansarei em ler as linhas que tua mão querida para mim traçar [...]”
(Ct.1)
“[...] um último hino de imortalidade cruzou hoje meu caminho,
preechendo-o com um extrêmoso toque de mágica beleza; e éste hino,
a que me refiro, trata-se da tua benevolente e benvinda carta [...]”
(Ct.3)
Como observamos, são enunciados que respondem a outros, constituindo o
processo de enunciação. Além disso, espera-se que haja outra resposta a essas cartas,
demonstrando que a interação já havia sido iniciada e que, também, não seria finalizada
com essas cartas. Essa forma de interagir nos permite a compreensão de que um
enunciado é um elo da comunicação verbal, não o primeiro nem o último e não pode
nunca ser separado dos “elos anteriores que o determinam, por dentro e por fora, e
provocam nele reações-respostas imediatas e uma ressonância dialógica” (BAKHTIN,
2000, p. 320).
Na próxima seção, nossa reflexão volta-se para o estilo do nero discursivo
carta de amor, de suas remetentes e, também, de seu destinatário.
3.4 O ESTILO DAS CARTAS: DIMENSÕES VALORATIVAS E SUBJETIVAS
84
As reflexões sobre o conteúdo temático das cartas de amor e, também, sua
dimensão composicional, nos dão subsídios para a construção de um processo de
identificação do gênero discursivo carta de amor, assim como de Gerda, de Neusa, de
Eny, de Auria (remetentes das cartas de amor) e de Armando (destinatário das cartas
delas). Nosso objetivo, na presente seção, é, portanto, refletir sobre o estilo desse gênero
e dessas pessoas, o que nos foi revelado durante o estudo das cartas. Para tal,
respaldamo-nos em Bakhtin: “o enunciado oral e escrito, primário e secundário, em
qualquer esfera de comunicação verbal [...] pode refletir a individualidade de quem
fala (ou escreve)” (BAKHTIN, 2000, p. 283).
Ao falarmos em estilo do gênero, um dos aspectos que merecem destaque nas
cartas de amor é a linguagem, ora em estilo mais formal ora menos formal, variando de
acordo com seu produtor, seu grau de instrução e o do destinatário e seus objetivos
comunicativos. Ou seja, corresponde com a identidade, refletida no estilo individual do
escritor, sobre o qual discorreremos, de maneira aprofundada, na próxima seção,
abordando a individualidade de Gerda, de Neusa, de Eny, de Auria e de Armando.
Por ora, o que nos interessa é destacar em Bakhtin (2000) que o uso da
linguagem, de maneira mais formal ou menos informal, resulta em duas esferas de
utilização da língua: os gêneros discursivos primários e os secundários. Os primeiros
são utilizados na comunicação interpessoal e espontânea (sem uma preocupação com a
forma de expressão) e os segundos em comunicações mais complexas (isto é, com um
maior planejamento e expressões mais formais).
Em algumas cartas de amor, normalmente, a utilização de uma linguagem
menos formal, menos preocupada com a forma de expressão, uma vez que há uma
relação íntima entre remetente e destinatário. Segundo Silva:
[...] a escrita de cartas pessoais nos coloca diante de uma situação
semelhante à da conversa espontânea [...]. Não existem, propriamente,
imposições do gênero de discurso, decorrendo as possíveis restrições
antes do tipo de relação (mais ou menos íntima) entre os
correspondentes [...]. De fato, tudo cabe na carta pessoal (SILVA,
1995, p. 235).
Essas características seriam as responsáveis por classificá-las em um gênero
do discurso primário. Entretanto, ao analisarmos as cartas, observamos que essa
característica não pode ser tomada como referência única, pois as remetentes empregam
diferentes estratégias de escrita na tentativa de agir sobre o outro (Armando), o que
85
compõe uma linguagem mais elaborada, um texto mais organizado e mais próximo da
escrita. Daí resultarão cartas pertencentes ao gênero discursivo secundário.
Nesse sentido, consideramos as cartas do corpus (Ct.1, Ct.2, Ct.3 e Ct.4) como
pertencentes à esfera secundária dos gêneros discursivos, visto tratarem-se de textos
escritos bem pontuados e paragrafados, além de apresentarem uma linguagem mais
próxima da formalidade. Apresentam, assim, o predomínio de relações formais e
planejamento linguístico marcado pelo uso da linguagem poética. São modelos
construídos pelos remetentes, os quais, conforme já citado,
[...] pressupõe[m] a existência e a construção de um aparelho psíquico
de produção de linguagem que não funciona mais na imediatez, mas
que pode se basear na gestão de diferentes níveis, relativamente
autônomos [...]. Isso significa a existência de níveis de decisão, de
operações discursivas transversais em relação aos gêneros.
(SCHNEUWLY & DOLZ, 2004, p. 31 – 32
É o que os seguintes fragmentos podem exemplificar:
“[...] Lentamente a noite desdobra seu escuro manto sôbre a terra. A
melancolia que o anoitecer traz consigo envole a mim também,
trazendo à minha mente mil loucas idéias. Não posso conter-me,
preciso dar livre curso aos meus pensamentos, os quais, uma vez
escritos, enviarei a ti. Vivi o dia todo na ilusão de ainda estar envôlta
por teus fortes braços. Atirei-me tôda ao sônho de estar ainda ao teu
lado como nesta madrugada. Mas, tudo não passou de sônho, de
ilusão. Porém, o mais triste para mim foi quando em certa hora surgiu
a desconfiança. Nem imaginas que tormentos assaltaram meu coração!
[...]” (Ct.1)
“[...] Meu bem! Nestes dias fiquei muito sentida, me contaram que tu
cempre dançava varias pessas nos bailes com as Hichmann, para me
fazer birra, ou seja, para ser o contra que eu te falava; e que sempre tu
negavas a todo mundo nosso amor. Que tanta maldade te fiz eu para tu
me fazer sofrer tanto? Que tu não queria ser acompanhado comigo ao
publico, e que nosso amor era negado em publico, quando as gorias te
falam tu dizes eu não tenho nada com ela, e não gosto dela. [...]”
(Ct.2).
“[...] Um último hino de imortalidade cruzou hoje meu caminho,
preenchendo-o como um extremoso toque de mágica beleza;
E éste hino, a que me refiro, trata-se da tua benevolente e
benvinda carta; [...]” (Ct.3)
“[...] Querido tu acertou quando disse que não fazia planos adiantados,
porque não daria certo [...]. O motivo de eu não ir é por que adoeçi
ésta madrugada me acordei numa ancia de vomito que era triste, e
assim passei até as 9 horas, agora estou um pouco melhor mas com
uma tremedeira sem fim e quando começo a caminhar um pouquinho
86
tudo escurece e fico mal, a minha sorte é que eu não tenho fébre [...]”
(Ct.4).
O que afasta essas cartas das características canônicas na linguagem das cartas
familiares é, justamente, a beleza e o planejamento linguístico, impressionando a
qualquer leitor por se assemelharem à linguagem literária e poética -- apresentam um
tom mais subjetivo, revelam e descrevem o mais profundo amor que uma mulher possa
sentir, numa tentativa de sensibilizar o destinatário, mas, também, a mais profunda
mágoa ao ver-se desprezada pelo homem amado. São palavras capazes de emocionar,
ainda mais quando se conhece todo o contexto de produção escondido por trás dessas
palavras.
Assim, a linguagem se caracteriza por possuir mais rodeios e não deter-se,
diretamente, em apenas um objetivo comunicativo, resultando, em alguns casos, em
uma estrutura mais formal e poética, o que depende, também, do grau de instrução do
remetente e de sua capacidade de compreensão.
Ao tratar da linguagem formal, Basílio postula que as expressões de
sentimentos não são muito comuns em um gênero discursivo secundário: “uma das
características desse tipo de linguagem é a procura da objetividade, que se traduz numa
tentativa de banir toda e qualquer expressão direta de emotividade” (BASÍLIO, 1991, p.
83).
Isso, porém, não significa que expressões subjetivas jamais poderão aparecer
em um gênero discursivo secundário, pois, ainda segundo a autora, essas categorias de
enunciados podem ser mostradas por meio de recursos estilísticos na escrita. E é
exatamente isso o que acontece nas cartas do corpus: são palavras carregadas de
sentimentos, revelados por meio de uma linguagem rebuscada, poética, metafórica e,
também, pela escrita de poemas e de canções que são a Armando dedicados.
Quando falamos em planejamento, temos um texto bem pontuado e
paragrafado e, além disso, demarcado pelo uso de conjunções que costuram suas partes,
características essas facilmente observáveis nos fragmentos a seguir destacados:
“[...] Procura sempre alimentar-te bem para que o percas as forças
para enfrentar o duro trabalho quotidiano. Da mesma forma não
desistas de instruir-te, quando tiveres alguma folguinha. A instrução
vale mais que as riquezas que possamos alcançar. Nada mais belo do
que um espírito enobrecido pela instrução. Quanto mais estudarmos,
tanto maiores novidades encontraremos e tanto melhor
compreendemos a razão de muitas coisas. Contudo, guarda sempre
87
alguns minutos para mim, quando me contarás as novidades que
tiveres encontrado e tudo o que te comove [...]” (Ct.1).
“[...] pois bem foi tão curta tua visitinha que fiquei imaginando o
viver; mas enfim consola-me, porque mais vale o pouco do que nada.
O padrinho que ficou discontente tu não esperar para almoçar, porque
como amanhã era teus anos ele mandou nós se aprevinir para se causo
tu viesse, nós te apresentar algo regular na mesa; e tu veio não não
quis almoçar, ele me falou; eu fiquei sem geito quando ele me falou
[...]” (Ct .2).
“[...] Atribuo que a mesma [carta] não chegou à tuas mãos por ter ido
sòmente com um porte. Infelizmente quando remeto uma carta desta
forma dificilmente ceguam a seu destino.
Não tens nada a me pedir desculpas pela caligrafia, pois, como vês a
minha é péssima [...]” (Ct.3).
“[...] Espero que tu estejas normal do rosto quando estas linhas
chegarem em tuas mãos.
Tu deves estar bem chateado com migo, por eu querer que você
sorrise, querido sabe que eu já pagei bem caro o que fiz para ti.
Eu te falei naquela bolha que estava saindo em meus lábios; pois ela
abriu e por onde escorreu aquela água virou em ferida e não pude
sorrir até ontem [...]” (Ct.4).
Nos fragmentos acima destacamos os elementos utilizados pelas remetentes
para amarrar as partes das cartas, tornando-as mais organizadas e próximas à esfera
secundária. Além disso, a conjugação e a concordância verbal, sempre na segunda
pessoa do singular e a colocação dos pronomes (imaginas; estejas; tens; alimentar-te;
instruir-te) também são características reveladoras de um planejamento da linguagem,
demonstrando uma relação pessoal entre remetente e destinatário, entretanto, respeitosa.
Outro aspecto que marca essas cartas como pertencentes ao gênero discursivo
secundário é a pouca utilização de marcadores temporais, pois, segundo Schneuwly &
Dolz (2004), a esfera secundária está ligada, de maneira imediata, a uma situação de
comunicação. O mesmo ocorre com as marcas da oralidade, predominando a linguagem
formal, embora subjetiva.
Como destacamos em Koch, a ocorrência de gêneros mistos de oralidade e
de escrita se justifica porque “a escrita formal e a fala informal constituem os pólos
opostos de um continuum, ao longo do qual se situam os diversos tipos de interação
verbal” (KOCH, 2001, p. 69). As cartas do corpus estariam no interior desse continuum,
mais próximas da escrita do que da fala.
Ademais do gênero carta de amor, as remetentes e o destinatário também
possuem um estilo particular. Como frisado no capítulo anterior, estilo não é, apenas
88
subjetividade. Está relacionado às identidades, à cultura. Olhar para o estilo significa
traçar contrapontos entre os valores sociais de uma comunidade e a forma como eles
moldam o ser e o agir de seus indivíduos. Destacando Moita Lopes (2003), trata-se da
visão de um indivíduo em relação ao mundo que o cerca, em relação a si mesmo e,
também, em relação ao outro, o que, de certa forma, se revela na escrita.
Ao abordarmos o conteúdo temático das cartas já destacamos alguns valores
sociais da década de 1950 e 1960, época em que as cartas que compõem o corpus foram
escritas. Uma de suas características é que, diferentemente de hoje, aqueles grupos
sociais eram mais retraídos e, como forma de manter a honra da mulher, não permitiam
que namorados tivessem muita privacidade.
E, sendo a identidade formada “não das propensões psíquicas internas, mas a
partir das regras morais que lhe são inculcadas do exterior” (MENDES, 2002, p. 507),
ou seja, da cultura, Gerda, em relação aos aspectos identitários, se revela uma pessoa
desconfiada, fechada ao diálogo, pois preferia confiar seus segredos a um papel.
Costumava, dessa forma, não se importar com julgamentos alheios sobre si, preferindo
desprezá-los a cair em discussões e sua resposta a esses era, portanto, apenas um sorriso
irônico, conforme ela mesma comenta:
“[...] despreza! Que o desprezo nessa vida vale mais que outras armas
poderosas! Contra insídias sempre prevenida, desconfiando do
valor das próprias rosas! E quando acaso alguém em meio das plumas,
tente ferir-te a um mal formado juízo, com um punhal te defende,
envôlto em plumas: - ‘A ironia sutil do teu sorriso’ [...]” (Ct.1).
As marcas linguísticas impressas na Ct.1 nos revelam que Gerda era muito
bem instruída (cf. conjugação verbal, colocação pronominal, concordância verbal e
nominal, etc.), romântica, apaixonada, capaz de lidar com a linguagem de forma
encantadora, de mostrar o mais verdadeiro de seus sentimentos por meio da escrita de
uma carta. Esse domínio da língua escrita revela-se também nos sinais de pontuação
empregados e na própria estrutura frasal. Por outro lado, a pretendente tinha uma visão
um pouco amarga da vida e do mundo, demonstrando compreendê-lo enquanto
sofrimento e amargura e, talvez por isso, duvidava da longevidade da sua vida. Tal
identidade se revela nos relatos de seus pensamentos logo após sua chegada do
cemitério, onde assistiu ao enterro de uma conhecida sua:
“[...] A morta viveu 75 anos sôbre êste mundo tão cheio de amarguras,
tão inundado de grimas! 75 anos... parece um tempo muito longo
para quem está na entrada dos 20. Será que algum de nós alcançará
89
esta idade...? E mesmo que a alcançássemos, um dia chegará o
término de nossa viagem terrestre [...]” (Ct. 1).
Se já sabíamos que Gerda era professora do ensino primário e tocadora de
gaita, agora temos a comprovação de que parecia gostar muito de ouvir canções
românticas, pois, somente na Ct.1, são duas canções que ela dedica a Armando. Era,
ainda, muito dedicada aos estudos, compreendendo ser ele uma das maiores riquezas da
vida:
“[...] não desistas de instruir-te, quando tiveres alguma folguinha. A
instrução vale mais que as riquezas que possamos alcançar. Nada mais
belo do que um espírito enobrecido pela instrução. Quanto mais
estudarmos, tanto maiores novidades encontramos e tanto melhor
compreendemos a razão de muitas cousas. Faze como eu, estuda
sempre que o tempo permitir [...]” (Ct.1).
Tal dedicação ela pretende passar a Armando, falando-lhe da importância de
valorizar o conhecimento. Afirmamos, assim, que guardava por ele um grande amor,
procurando dar-lhe conselhos, visto que Armando parece uma pessoa mais dedicada ao
serviço braçal e não tão ligado aos estudos. Outro exemplo disso pode ser obtido no
seguinte recorte da carta:
“[...] passaste bem o dia de hoje cortando trigo? Desejo-o! procura
sempre alimentar-te bem para que não percas as forças para enfrentar
o duro trabalho cotidiano [...]” (Ct.1).
Gerda demonstra ser uma pessoa preocupada com o bem-estar do outro e,
nesse caso, de Armando. Outra característica de Gerda era a sua dependência pelo
recebimento das cartas de Armando, demonstrando ser muito carente, pois, por várias
vezes, ela lhe implora uma carta sua:
“[...] Que programa tens para domingo? Faze o possível de aproveitar
aquele dia para escrever-me um jornal bem grande contando tudo o
que podes dizer-me. Se, de fato, nos outros dias tens pouco tempo,
aproveita então o domingo, em que por certo não terás obrigações
[...]” (Ct.1).
Seu namorado, no entanto, não lhe escrevia, afirmando não ter tempo para
isso. Ou seja, Armando não era tão apaixonado e romântico quanto ela, pois, se assim o
fosse, não seria necessário que ela lhe implorasse o recebimento de cartas suas.
A possibilidade de obtermos essas compreensões acerca do estilo de Gerda
apenas reafirma o pensamento bakhtiniano: o estilo não é apenas expressividade, mas
está relacionado à história. Como já destacado em Brait:
90
[...] a concepção de estilo, no sentido bakhtiniano, pode dar margens a
muito mais do que a simples busca de traços que indiciem a
expressividade de um indivíduo. Essa concepção implica sujeito que
instaura discursos a partir de seus enunciados concretos, de suas
formas de enunciação, que fazem história e são a ela submetidos.
(BRAIT, 2008, p. 98).
O que mais nos impressiona em Gerda é essa capacidade de lidar com a
linguagem, produzindo textos rebuscados e reveladores de sua identidade. Ela era
professora, apaixonada pela música e pela poesia e essa paixão é levada para suas cartas
ao revelar o mais verdadeiro dos seus sentimentos, com uma linguagem poética capaz
de, realmente, traduzir toda a dor e, ao mesmo tempo, a paixão por Armando:
“[...] Lentamente a noite desdobra seu escuro manto sobre a terra. A
melancolia que o anoitecer traz consigo envolve a mim também,
trazendo à minha mente mil loucas idéias. Não posso conter-me,
preciso dar livre curso aos meus pensamentos, os quais, uma vez
escritos enviarei a ti. Vivi o dia todo na ilusão de ainda estar envolta
por teus braços. Atirei-me toda ao sônho de estar ainda ao teu lado
como nessa madrugada. Mas tudo não passou de sonho, de ilusão [...]
(Ct. 1).
Sendo assim, como já destacamos em Lopes (1986), a linguagem carrega
valores culturais e identitários de cada falante, deixando de ser, segundo Mello (1999),
apenas um sistema de sons para transformar-se em um comportamento social. Está a
linguagem ligada à vida, à cultura e à história de um povo. Mello (1989) ainda postula
que esses são os fatores que tornam pessoas singulares perante outras, cada pessoa
dotada de valores, de modos e de crenças próprias, que revelam seu estilo. Dotada dessa
capacidade, Gerda era singular dentro de seu grupo social, devido a tais indícios de
linguagem, caracterizados em seu modo de produção e de interação social.
Diferenciando-se de Gerda, Neusa era uma pessoa menos instruída. Segundo
informações obtidas junto aos familiares de Armando, ela não dedicava muito tempo
aos estudos e tinha, como ocupação, apenas os serviços domésticos. Como
consequência, possui algumas dificuldades em trabalhar com a linguagem formal,
dificuldades que são demonstradas nos desvios gramaticais por ela apresentados.
Entretanto, nada que afete a compreensão de suas cartas e as torne menos importantes,
pois sua linguagem é, também, reveladora de sentimentos verdadeiros, demonstrando
todo seu amor.
91
Apesar de ser a única herdeira de uma família, dona de muitas terras, era uma
pessoa humilde, que parecia não ter vergonha de declarar seu amor, seu lado meigo,
romântico e sofredor.
“[...] as vezes me esforço para rir para não dar demonstração da minha
mágoa. Tu me achas mesquinha; mas de absoluto não sou, sou
simplesmente uma grande sofredora: sem ter para quem me confessar:
si me confesso a ti meu sofrimento me achas mesquinha, mas para
quando não sou. É apenas o capricho do amor que fez de tudo um
pouco. 'Sou uma grande escrava do sofrimento' [...]” (Ct. 2).
E é a simplicidade dessa linguagem, tão reveladora, que tanto nos prende às
cartas, fazendo-nos sentir um pouco da tristeza dessas mulheres, tão apaixonadas,
mesmo percebendo o desprezo da pessoa amada.
Eny, também professora e estudante, era dedicada aos estudos e a outras
atividades culturais, como podemos observar no fragmento abaixo:
“[...] Aos domingos e feriados, um dos meus maiores divertimentos é
o cinema, que se aprosimam os meus exames terei que dedicar-me
um pouco mais ao estudo [...]” (Ct.3).
Sua maior preocupação eram, portanto, seus estudos, e, em horas de folga ou
descanso, dedicava seu tempo a atividades culturais. E todo esse conhecimento é
transpassado às linhas de sua carta, ao produzir, também, uma linguagem rebuscada e
com poucas marcas de oralidade. Por outro lado, sendo de origem alemã e falante da
língua, é perceptível a interferência de alguns traços fônicos do alemão na escrita do
português, como o seguinte recorte exemplifica:
“[...] Aos domingos e feriados, um dos meus maiores
divertimentos é o cinema, que se aprosimam os meus exames
terei que deticar-me um pouco mais ao estudo [...]. Espero
resposta o mais breve possível e emvio cortiais saudações [...]”
(Ct.3).
Dessa forma ocorre, na escrita de Eny, uma mistura entre essas duas línguas.
Tais marcas da cultura alemã se revelam ainda na escrita de algumas palavras,
transpostas como na oralidade: deticar (dedicar), cortiais (cordiais), oche (hoje), venteo
(vendeu), drabalha (trabalha). Essa característica se deve ao fato de Eny ter sido
alfabetizada na língua materna (alemã) e ter aprendido o português como segunda
língua. Há, portanto, uma pequena dificuldade tanto na fala quanto na escrita da língua
portuguesa, uma vez que a forma como escrevia era um reflexo de como se comunicava.
92
Talvez essa característica possa se explicar em fatos históricos, porque entre os
anos de 1930 e 1945, com o governo de Getúlio Vargas no Brasil e as guerras que
ocorriam, a educação recebeu poucos investimentos e, além disso, houve a proibição do
uso de línguas de imigrantes, ou seja, de línguas estrangeiras no país, fazendo com que
essas pessoas tivessem de aprender a comunicação em português, que falar em outro
idioma, até mesmo no meio familiar, era considerado um crime que resultava, inclusive,
em prisão. Isso lhes acarretou algumas dificuldades por terem sido alfabetizados em
uma língua bem diferente.
Como a língua materna estava tão internalizada nessas pessoas, elas não
conseguiam esquecê-la para passarem a falar somente em português, o que resultava em
uma mistura de línguas, mistura marcada pela utilização de traços fonéticos de uma na
outra língua. Esses traços identificavam as pessoas como pertencentes ao grupo social
de imigrantes, pois a língua carrega e manifesta marcas da cultura e da identidade de um
povo. Como já destacamos em Spolsky, ela é uma marca de identidade grupal:
Uma das formas de identificar uma pessoa é através de sua língua.
Porque a língua está inerentemente envolvida na socialização, o grupo
social cuja língua você fala é uma importante identidade grupal para
você. outras marcas de identidade étnica, como comida ou roupa
ou religião. Mas a língua tem um papel especial, em partes porque
organiza o pensamento e em partes porque estabelece relações sociais.
(SPOLSKY, 2003, p. 57).
Assim, a cultura e a identidade do grupo social a que Eny pertencia eram
reveladas, também, por meio da troca de traços fônicos e prosódicos devido a esse
contato linguístico. No caso das cartas analisadas, em que ocorre um interferência
linguística entre o português e o alemão, percebemos a troca de traços consonantais
quanto à sonoridade de [ d ] por [ t ], (deticar por dedicar, cortiais por cordiais).
Aspectos como esses o fenômenos de interferência morfofonêmica. Dubois
et alii (1973) explicavam que a interferência morfofonêmica, no caso da língua alemã
no português brasileiro, pode ocorrer nas trocas das oclusivas sonoras pelas surdas, das
oclusivas sonoras pelas aspiradas sonoras e das oclusivas sonoras aspiradas, em
aspiradas sonoras. Entretanto, como tal aspecto não é nosso objeto de estudo, não
aprofundaremos mais as discussões sobre esse ponto; apenas as mostramos rapidamente
por ser uma característica presente na Ct.3.
Apesar de não termos muitas informações a respeito da Auria, acreditamos que
ela não possuía o costume de lidar muito com a escrita (seja por estudo ou por leituras),
93
apresentando uma linguagem mais simples, direta e rápida, não rebuscada quanto a das
outras remetentes, como o recorte demonstra:
“[...] Querido, você falou que ira telefonar sábado, se tu escreveu
marcando hora, não vai desanimar, pode telefonar que, se eu não
posso ir atender, pedirei para a mãe ir no meu lugar [...]. Se você não
marcou hora para o telefone venha as 5 horas da tarde eu o espero”
(Ct.4).
Tal linguagem demonstra o estilo de Auria: também era uma pessoa simples,
humilde, romântica e apaixonada por Armando. Esse amor é transposto para a carta ao
dizer que lhe causaria ciúmes saber que Armando sairia e dançaria com outras moças,
enquanto ela estivesse em casa. Revela ser uma mulher “séria”, “de família”, desejando
ter um namorado e se casar:
“[...] A Tereza esteve aqui em minha casa hoje pela manhã, e disse
que iria domingo na festa e Neiva e a Nerly todas irão, eu terei que
ficar aqui pensando muitas coisas e com ciúmes de você, porque
não falta gorias, e gorias muito espertas [...]” (Ct.4).
A partir de constatações como essas a respeito de épocas passadas e das
pessoas que dela fizeram parte, temos uma reflexão e refração da realidade, resultado da
utilização dos signos sociais e ideológicos. Eles estão presentes nas cartas de amor,
dando vida à língua, que, segundo Bakhtin/Volochinov (2004), esta evolui e vive
somente pelas interações verbais. Ao produzir enunciados, nossas palavras carregam
valores, transformando-se em signos valorativos e permitindo o estudo e a compreensão
do gênero discursivo.
Conforme postula Faraco,
[...] não é possível significar sem refratar. Isso porque as significações
não estão dadas no signo em si, nem estão garantidas por um sistema
semântico abstrato, único e temporal, nem pela referência a um mundo
dado uniforme e transparentemente, mas são construídas na dinâmica
da história e estão marcadas pela diversidade de experiências dos
grupos humanos, com suas inúmeras contradições e confrontos de
valorações e interesses sociais (FARACO, 2009, p. 51).
Concordamos também com Cavalcanti (2001), ao afirmar que toda e qualquer
representação está inserida na linguagem e na cultura. A primeira é o ponto de partida
para a compreensão da segunda.
Observando essa relação entre linguagem, cultura e identidade no corpus de
pesquisa, constatamos que características identitárias das remetentes são responsáveis
94
pela definição de seu estilo. Assim, devido a uma menor dedicação ao estudo, algumas
remetentes possuem um estilo de escrita caracterizado por apresentar grande quantidade
de marcas da oralidade, como a carta de Auria e a de Neusa podem exemplificar. Por
outro lado, remetentes, como Gerda e Eny, que quase não deixam transparecer a
oralidade. Os trechos a seguir demonstram tais aspectos:
“[...] Já está ficando tarde. Preciso terminar esta cartinha [...]” (Ct.1)
“[...] pois bem foi tão curta tua visitinha que fiquei imaginando o
viver; mas enfim consola-me, porque mais vale o pouco do que nada.
O padrinho que ficou discontente tu não esperar para almoçar, porque
como amanhã era teus anos ele mandou nós se aprevinir para se
causo tu viesse, nós te apresentar algo regular na mesa; e tu veio não
não quis almoçar, ele me falou; eu fiquei sem geito quando ele me
falou [...]” (Ct.2).
“[...] um último hino de imortalidade cruzou hoje meu caminho,
preechendo-o com um extrêmoso toque de mágica beleza; e éste hino,
a que me refiro, trata-se da tua benevolente e benvinda carta [...].
Infelizmente, quando remeto uma carta dessa forma dificilmente
ceguam a seu destino [...]” (Ct.3).
“[...] Querido tu acertou quando disse que não fazia planos adiantados,
porque não daria certo [...]. O motivo de eu não ir é por que adoeçi
ésta madrugada me acordei numa ancia de vomito que era triste, e
assim passei até as 9 horas, agora estou um pouco melhor mas com
uma tremedeira sem fim e quando começo a caminhar um pouquinho
tudo escurece e fico mal, a minha sorte é que eu não tenho bre [...]”
(Ct.4).
Nos recortes apresentados destacamos algumas marcas de oralidade, entre as
quais podemos citar desvios gramaticais do português privilegiado (geito; discontente;
aprevinir; adoeçi), falta ou excesso de pontuação e de acentuação (ésta; ancia de
vomito; fébre), conjugação verbal (tu viesse; tu veio; tu acertou), expressões
pertencentes ao senso comum (mais vale o pouco do que o nada; que era triste; sem
fim; tudo escurece), uso de termos pejorativos (visitinha; tremedeira), repetição de
palavras e expressões em um mesmo período (ele me falou, eu fiquei sem geito quando
ele me falou) e léxicos que expressam atitudes emocionais (querido).
As palavras destacadas representam desvios da gramática-padrão, porém a
linguagem que continua predominante é a formal, demonstrando um alto planejamento
linguístico, principalmente por parte de Gerda, Neusa e Eny.
O seguinte quadro apresenta as principais marcas de oralidade utilizadas pelas
remetentes:
95
Marcas da oralidade
Carta Senso comum Traços
fônicos
Desvios
gramaticais
Marcas
regionais e
temporais
Marcas
emocionais
5
Ct.1
Talvez algum dia
tudo mudará.
Não
constam
Dansaste. Caçoando Cartinha
Ct.2
Mais vale o pouco
do que o nada; fazer
birra; fazer piraça;
faz de tudo um
pouco; a parte nem
uma.
Discontente;
aprevenir;
tu viesse;
espedava; geito
Gorias;
pirraça;
lambaceiros;
pessas;
apercegida.
Coraçãozinho;
horinhas
Ct.3
Não constam Cortiais;
deticar.
Entropecida;
aprosimam;
Imfelizmente;
Remento;
Ceguam;
Fota; Emvio.
Não constam Querido
Ct.4
Virou em ferida;
foram por água
abaixo; que era
triste; pensando
muitas coisas; tudo
escurece; a justiça
divina não falha
Não
constam
Ancia; vominto;
com migo
Gorias Querido
Quadtro 7– Principais marcas de oralidade presentes nas cartas
No quadro apresentamos marcas que aproximam a linguagem da oralidade,
como a utilização de expressões pertencentes ao senso comum, a troca de traços
fônicos, desvios gramaticais, marcas regionais, temporais e subjetivas. Para Basílio, são
características que aproximam essa linguagem da falada, pois expressam atitudes
emocionais “usados[as] na linguagem coloquial, em que é fundamental o uso da função
expressiva da linguagem” (BASÍLIO, 1991, p. 84), ou seja, subjetiva. Nesse sentido,
Bakhtin (2002) reafirma que a linguagem popular é marcada pela ausência de léxicos e
expressões neutras e pela presença de palavras que poderão ser amáveis, elogiosas,
lisonjeiras, depreciativas, humilhantes ou, mesmo, injuriosas.
O observado em relação à linguagem nessas cartas é o que caracteriza a
linguagem como popular, linguagem popular essa que, segundo Bakhtin, se constitui
como um tipo de “linguagem alegre, ousada, silenciosa e franca” (BAKHTIN, 2002, p.
169), uma vez que representava um tipo de liberdade para o povo que a utilizava.
5
Cf. Basílio (1991).
96
Quando se trata de estudos em relação à linguagem oficial (formal) e à popular
(informal), Bakhtin (2002) pode ser tomado como referência. Ele retrata, de forma
detalhada, toda a multiplicidade das manifestações da cultura popular, englobando suas
festas, espetáculos, ritos e obras cômicas, desde seu surgimento, na Idade Média, até a
forma como, hoje, na época moderna, a linguagem se manifesta nos enunciados,
principalmente nos orais.
Percebendo que as correspondências de Gerda, de Neusa, de Eny e de Auria
pertencem à esfera dos gêneros secundários, porém se diferenciam no nível de
formalidade apresentado, podemos apontar algumas distinções entre a linguagem formal
e a informal. Assim como observamos principalmente na carta de Gerda e na de Eny, a
linguagem oficial apresenta-se presa às regras gramaticais e é aceita em todo o tipo de
ambiente social, apesar de possuir alguns desvios gramaticais. Além disso, possui um
tom de seriedade, refletindo, segundo Bakhtin, a hierarquia social instaurada, a
hierarquia oficial das apreciações (em relação às coisas e noções) e as fronteiras
estáticas entre as coisas e os fenômenos instituídos pela concepção oficial do mundo”
(BAKHTIN, 2002, p. 368-369).
Por outro lado, como observado nas cartas de Neusa e de Auria, a linguagem
informal demonstra uma liberdade maior quanto às regras gramaticais, à organização e,
principalmente, ao léxico. Bakhtin justifica essa distinção, explicando que a linguagem
formal resulta das proibições linguísticas da Idade Média, quando havia uma dualidade
entre línguas, entre a considerada oficial e a popular. Sabia-se da existência das duas,
entretanto, somente a primeira era aceita em ambientes públicos formais, reservando a
outra para ambientes privados ou, então, para dias festivos, quando se permitia uma
liberdade linguística.
A cultura popular não oficial dispunha na Idade Média e ainda durante
o Renascimento de um território próprio: a praça pública, e de uma
data própria: os dias de festa e de feira [...]. Um tipo especial de
comunicação humana dominava então o comércio livre e familiar. Nos
palácios, nos templos, nas instituições, nas casas particulares reinava
um princípio de comunicação hierárquica, uma etiqueta, regras de
polidez. Discursos especiais ressoavam na praça pública: a linguagem
familiar, que formava quase uma língua especial, inutilizável em outro
lugar. (BAKHTIN, 2002, p. 133).
Havia, assim, todo um cuidado durante a comunicação oficial, não sendo
permitido o uso frequente de grosserias, expressões e palavras injuriosas. Estas eram
restritas à linguagem familiar, a qual, segundo Bakhtin, se converteu “em um
97
reservatório onde se acumularam as expressões verbais proibidas e eliminadas da
comunicação oficial” (BAKHTIN, 2002, p. 15). O emprego desse tipo de vocabulário
na linguagem oficial significava uma violação a suas regras, revelando-se como um
grau de protesto contra as concepções oficiais e as regras de etiqueta, cortesia, piedade,
consideração e respeito à hierarquia.
Tais características ainda hoje permanecem em nossa linguagem, sendo
denunciadas pela diferenciação entre os gêneros do discurso secundários e primários. A
carta pessoal e familiar é, portanto, um modelo de enunciado em que, frequentemente,
observamos a linguagem popular, devido ao vocabulário informal que apresenta e,
também, por aceitar casos de desvios gramaticais e interferência linguística. E isso
ocorre devido, principalmente, à proximidade entre os remetentes, de forma que se
sintam à vontade para interagir.
As características da linguagem oficial utilizada na Idade dia, na qual não
se permitia liberdade nenhuma, mesmo sofrendo algumas transformações, podem, hoje,
ser observadas nas interações verbais que realizamos. A partir do Renascimento, devido
a toda negação que era dirigida ao mundo oficial, percebeu-se uma
[...] libertação conseqüente da seriedade mesquinha dos pequenos
assuntos da vida corrente, da seriedade egoísta da vida prática, da
seriedade sentenciosa e malsã dos moralistas e hipócritas e, enfim, da
imensa seriedade do medo que se ensombrecia nos quadros lúgubres
do fim do mundo, do Juízo Final, do inferno, e do paraíso e da
tratitude eterna. (BAKHTIN, 2002, p. 334).
Com essas transformações ocorreu uma “conquista familiar do mundo” que
permitiu ao homem um contato e uma liberdade maior com o mesmo mundo, destruindo
e abolindo todas as distâncias e as interdições criadas pelo medo e pela piedade, o que
permitiu que a vida fosse retomada numa forma licenciosa e alegre (BAKHTIN, 2002,
p. 334). Por isso, mesmo havendo, hoje, uma distinção entre a linguagem que utilizamos
em situações informais e formais, temos uma liberdade de expressão maior em relação à
época antiga, a qual nos deixou algumas heranças linguísticas.
Segundo as explanações de Bakhtin:
Na correspondência íntima, encontram-se, às vezes, termos grosseiros
e injuriosos empregados num sentido afetuoso. Quando se ultrapassa
um certo limite nas relações entre certas pessoas e que elas se tornam
perfeitamente íntimas e francas, esboça-se uma mutação no emprego
ordinário das palavras, uma distribuição da hierarquia verbal; a
linguagem se reorganiza num tom novo, francamente familiar; as
palavras afetuosas parecem convencionais e falsas, apagadas,
98
unilaterais e sobretudo incompletas; a sua coloração hierárquica torna-
as inapropriadas à livre familiaridade que se instaurou, e por isso todas
as palavras banais são banidas e substituídas ou por palavras
injuriosas, ou por palavras criadas a partir de seu tipo ou modelo [...].
A intimidade toma emprestados os tons da antiga familiaridade,
abolindo todas as fronteiras entre os homens. (BAKHTIN, 2002, p.
369).
Nas cartas analisadas, até mesmo naquelas que possuem uma linguagem
formal, percebemos que há intimidade entre os correspondentes, isso devido à utilização
de um tom familiar, no qual se destacam termos empregados com um sentido afetuoso.
Tais aspectos podem ser observados nos seguintes recortes:
“[...] Lembras-te, por certo, que te disse nesta noite, que tenho
perdido toda a nos homens. E disto tive nova prova hoje. Vi em ti
apenas um vil conquistador [...]” (Ct.1).
“[...] eu não esperava de receber tal coisa de teu bondoso coração,
sendo que eu te considero tanto aqui em casa, como em qualquer
lugar, seja em vila, cidade, no meio dos meus parentes etc. [...]”
(Ct.2).
“[...] na realidade, meu amigo, tua carta me ditou hosanas
miraculosas na minha mente entropecida pela desilusão da vida
[...]” (Ct.3).
“[...] Querido, você falou que ira telefonar sabádo, se tu escreveu
marcando hora, não vai desanimar [...]” (Ct.4).
Com base nessas leituras e na descrição do sofrimento das quatro mulheres,
bem como do amor exagerado nutrido pelo mesmo homem, respaldando-nos no
pensamento bakhtiniano, é possível apontar alguns aspectos da identidade de Armando.
Conforme Brait,
[...] a singularidade estará necessariamente em diálogo com o coletivo
em que textos, verbais ou verbo-visuais, deixam ver, em seu conjunto,
os demais participantes da interação em que se inserem e que, por
força da dialogicidade, incide sobre o passado e sobre o futuro.
(BRAIT, 2008, p. 98).
Em outras palavras, o enunciado permite o conhecimento do outro sobre quem
ele incide (o destinatário). As cartas de Gerda, de Neusa, de Eny e de Auria nos revelam
que Armando era desprovido de maiores sentimentos (não se prendia a nenhuma
mulher), parecia ser machista e controlador da situação, sem deixar-se dominar por
ninguém. Esse aspecto identitário transparece numa das cartas de Gerda:
99
“[...] Estive mesmo bastante abatida de que tu, apesar de pedires para
falar contigo me trataste com frieza naqueles momentos. E sabendo
que tu não gostas de falar comigo quando o ‘Gordo’ está aqui, eu me
retirei. Sempre esperei que ainda uma vez saísses da loja, afim de que
pelo menos uma palavra eu pudesse dizer-te. Mas nada [...]” (Ct. 1).
Esse trecho nos revela que Armando se envergonhava de expor suas relações
sentimentais. Além de conquistador, iludia com cartinhas escritas, talvez, com menos
frequência do que as recebidas. o fato de mostrar-se um “homem difícil de ser
conquistado”, parecia provocar a paixão em muitas mulheres. Percebemos, ainda, que
era festeiro: namorando, não deixava de sair e ir a bailes, onde dançava com outras
mulheres, mesmo quando sua namorada estava em casa por motivo de luto (caso de
Neusa), doença (como aconteceu com Auria) ou não sabendo de sua decisão (caso de
Gerda). Por tudo isso e pelo fato de trocar correspondências com Gerda e Neusa ao
mesmo tempo, outro aspecto identitário de Armando era ser infiel com suas namoradas.
Talvez fizesse isso pelo fato de ser uma pessoa segura, confiante em seus dotes
físicos, revelados na elegância com que se vestia e na altivez de sua postura, achando
que tais aspectos bastariam para torná-lo feliz. Chegamos, portanto, a duas conclusões a
respeito da identidade de Armando: ele não gostava dessas quatro mulheres a ponto de
manter um relacionamento sério ou, então, gostava, mas, simplesmente, não tinha a
pretensão de casamento, talvez por não acreditar nesse tipo de evento social. Além
disso, não se importava em fazer alguém sofrer, o que demonstra uma certa frieza de
comportamentos, e não era sincero com suas namoradas, pois mentia ao dizer que não
havia recebido cartas às quais não pretendia responder.
Se, um dia, ele buscou a tão sonhada felicidade, ele o fez de forma equivocada,
pois enquanto essas mulheres estão, hoje, casadas, Armando é falecido treze anos,
o que aconteceu depois de cair no vício exagerado da bebida e do cigarro e de adquirir
um câncer que lhe causou muita dor e sofrimento. Talvez tenha se arrependido de ter
desprezado essas jovens amantes, pois as cartinhas, junto com algumas fotos, foram
encontradas, após a sua morte, ainda bem conservadas, apesar de o tempo ter amarelado
os papéis -- porém, provavelmente, muitos fatores tenham impedido que ele pudesse
voltar atrás e ser, novamente, feliz.
Após realizado este estudo no gênero discursivo carta de amor,
compreendemos que a língua é uma grande dádiva, capaz de retomar aspectos ou fatos
que ficaram esquecidos no tempo. É por isso que as cartas são tomadas por nós como
verdadeiros documentos, representantes de nossa história.
100
Ademais, o estudo das características dos gêneros discursivos nos enunciados
nos possibilita a compreensão de que toda a qualquer interação por nós iniciada é
planejada sobre um gênero que a organiza. Conversas espontâneas não podem, nunca,
ser tomadas como textos sem importância e que não merecem ser estudados. Nesse
sentido, por concordamos com Bazerman, podemos destacar, novamente, suas palavras:
a naturalidade, a informalidade e a espontaneidade presente nas cartas “nos revelam
clara e explicitamente a sociabilidade que faz parte de toda escrita” (BAZERMAN,
2006c, p. 99).
3.5 GÊNERO DISCURSIVO CARTA DE AMOR APLICADO AO ENSINO
A necessidade de trabalhar com os gêneros discursivos no ensino da língua
portuguesa vem sendo discutida por documentos oficiais: Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) (Brasil, 1998) e Diretrizes Curriculares Estaduais (DCE) (Paraná,
2008). Entretanto, não é apenas porque estudiosos propõem o ensino pautado no gênero
que deveremos fazê-lo. A justificativa para isso está muito além da existência desses
documentos. Pensando nisso, propomo-nos, agora, a tecer alguns comentários sobre os
gêneros discursivos vinculados ao ensino e, também, a abordagem da carta de amor,
familiar e pessoal nesse meio.
A todo o momento defendemos a compreensão de que interagimos por meio de
enunciados organizados em gêneros discursivos. Para falar, "utilizamo-nos sempre dos
gêneros do discurso, ou seja, todos os nossos enunciados dispõem de uma forma padrão
e relativamente estável de estruturação de um todo” (BAKHTIN, 2000, p. 301).
Por meio da linguagem nos constituímos sujeitos discursivos. Como
destacado em Bakhtin, sem língua não interação e, sem interação, não nenhum
tipo de relação social: “todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que
sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua” (BAKHTIN, 2000. p.
279). Consequentemente, os gêneros do discurso permeiam todo o nosso agir social. Se
o aluno convive com eles diariamente e um dos objetivos do ensino da língua
portuguesa é propiciar a formação de um sujeito que se posicione “de maneira crítica,
responsável e construtiva nas diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como
forma de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas” (BRASIL, 1998, p. 7), porque,
então, não ensiná-los na escola?
101
Quando os PCN propõem que o objeto de ensino da língua portuguesa seja o
“conhecimento lingüístico e discursivo com o qual o sujeito opera ao participar das
práticas sociais mediadas pela linguagem” (BRASIL, 1998, p. 22), justifica-se a
necessidade de se trabalhar com os gêneros, os quais se materializam naquilo que é (ou,
pelo menos, deveria ser) a unidade de ensino, ou seja, os textos (em sentido amplo,
abordando texto e discurso). É o caminho que conduz nosso aluno a pensar sobre a
linguagem para poder compreendê-la e utilizá-la apropriadamente em suas diversas
funções sociais, um dos propósitos dos documentos oficiais.
Na busca de propostas para se trabalhar com os gêneros discursivos na sala de
aula, sem corrermos o risco de cair no ensino tradicional da língua portuguesa, algumas
metodologias vêm surgindo. Uma delas é a Sequência Didática (SD), proposta por Dolz,
Noverraz e Schneuwly (2004). Por meio dos gêneros discursivos, tem-se, assim, uma
aprendizagem significativa da língua, vinculada à realidade e às reais necessidades do
aluno, permitindo o desenvolvimento de práticas de linguagem nas diferentes situações
comunicativas de que faz parte.
Essa orientação metodológica organiza-se da seguinte forma: antes mesmo de o
aluno tomar contato com o nero a ser trabalhado, será delimitada a situação de
produção e a forma de circulação de seu texto, ou seja, o aluno saberá com qual
finalidade estará produzindo. Esse encaminhamento poderá mobilizá-lo a escrever não
apenas para ser avaliado pelo professor, mas para tornar-se um sujeito crítico e operar
com a linguagem. Em seguida, o aluno faz uma produção inicial e, com base nas
dificuldades por ele apresentadas, o professor propõe módulos de estudos, compostos
por atividades contextualizadas, que possibilitam um conhecimento mais aprofundado
do gênero e, juntamente, da língua. Tem-se, assim, um estudo da língua de forma
significativa, levando o aluno a refletir sobre a escrita, tornando-se um sujeito crítico,
consciente, responsável e conhecedor da língua.
Segundo Bakhtin/Volochinov, “a língua vive e evolui historicamente na
comunicação verbal concreta, o no sistema lingüístico abstrato das formas da língua
nem no psiquismo individual dos falantes” (BAKHTIN, 2004, p. 124).
Pensando nisso, um trabalho com o gênero discursivo carta de amor ou
familiar, poderia seguir a metodologia da sequência didática (SD), adotando-se, como
situação de produção, a troca de cartas com colegas de outra turma ou de outra escola,
ou, mesmo, para enviá-la a uma pessoa querida. Para Perfeito e Ritter (2009, p. 153),
essa é uma forma de conceber o texto “como unidade de significação e de ensino,
102
portanto, elemento integrador das práticas de leitura, de análise linguística e de
produção/refracção textuais”, proporcionando ao aluno a ampliação do horizonte
discursivo.
Uma vez efetuada a produção inicial, o passo seguinte consistirá em o
professor analisar as cartas produzidas. Para essa análise diagnóstica, Dolz, Noverraz e
Schenewly (2004) propõem que se observe, nos textos: a) se representam a situação de
produção; b) se atendem aos aspectos composicionais da carta; c) se o texto foi
planejado conforme o objetivo proposto; d) se as marcas linguísticas estão adequadas
para aquela situação de interação.
A partir desse diagnóstico, organizará os módulos de atividades, de forma que
contemplem as dificuldades apresentadas para, na produção final, incorporar os aspectos
estudados.
Conforme propõem os pesquisadores de Genebra, a SD pode ser representada
pelo seguinte esquema:
FIGURA 1 - Esquema da Sequência Didática
FONTE: Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p.98)
6
A essa proposta de trabalho pode-se, também, incorporar o proposto por
Costa-Hübes (apud AMOP, 2007) e Costa-Hübes (2008): o acréscimo de um módulo de
reconhecimento do gênero antes da produção inicial, conforme demonstrado no
esquema seguinte:
FIGURA 2 - Esquema da SD adaptada por Costa-Hübes
FONTE: Swiderski e Costa-Hübes (2008)
6
Para maiores esclarecimentos sobre essa metodologia, sugerimos a leitura de neros orais e escritos
na escola (DOLZ e SCHNEUWLY, 2004), capítulo 4, em especial.
Módulo
1
Módulo
2
Módulo
n
Apresentação
da situação
Produção
inicial
Produção
final
103
Tal adaptação da SD ocorreu porque, segundo Costa-Hübes, os alunos
brasileiros poderiam apresentar dificuldades ao acompanhar a proposta de Dolz,
Noverraz e Schneuwly (2004), tendo em vista que a mesma foi criada na Suíça, país que
apresenta uma realidade bem diferenciada da nossa. Conforme a autora:
A preocupação maior residia em iniciar, com esses alunos, o
reconhecimento do gênero com uma produção inicial, quando
sabíamos, de antemão, que, na região, o se tinha por hábito
mencionar o gênero para o aluno, mas sim, sempre a tipologia. Os
comandos de produção giravam em torno de “produza um texto
narrativo”, “produza um texto descritivo”, ou então simplesmente
“Produza um texto sobre...”. (COSTA-HÜBES, 2009a, p. 12).
Se levarmos em consideração essa proposta de Costa-Hübes antes de o aluno
efetuar a produção inicial, poderão ser criadas situações de pesquisa e de leitura de
diferentes cartas de amor e familiares, explorando-se o contexto de produção, o
conteúdo temático, a construção composicional e o estilo dos textos. De acordo com
Swiderski e Costa-Hübes (2008), um módulo de reconhecimento do gênero textual
permite que o professor crie, para o estudante,
[...] várias situações que envolvam a prática de leitura de textos do
gênero, já prontos, que circulam na sociedade. [...] as informações
sobre o gênero não são dadas gratuitamente, já que o mesmo não é
tratado como uma forma pronta e acabada, mas como um instrumento
relativamente estável. Entendido assim, a prática de ensino-
aprendizagem precisa incentivar o processo de pesquisa.
(SWIDERSKI; COSTA-HÜBES, 2008, p. 8).
Incentiva-se, dessa forma, a prática de leitura, de pesquisa e de análise
linguística, uma vez que o aluno é levado a conhecer e a reconhecer os elementos que
determinam a produção e a circulação de textos daquele gênero discursivo. Segundo
Costa-Hübes, “a preocupação sustenta-se em oferecer, aos alunos, momentos de
estudos, de leitura e de análise de outros textos do gênero, favorecendo o seu
reconhecimento antes de iniciar a proposta de produção (oral ou escrita)” (COSTA-
HÜBES, 2009b, p. 8).
Logo, é possível proporcionar uma análise linguística sobre a carta pelo aluno
produzida, assim como sobre qualquer outro gênero discursivo, contemplando os três
elementos constituintes dos gêneros “conteúdo temático, estilo e construção
composicional” (BAKHTIN, 2000, p. 279). Pode-se, ainda, proporcionar um estudo
sobre a cultura de época em que a carta foi produzida, no caso de textos antigos, tendo
104
em vista o defendido no capítulo anterior, ou seja: durante a interação verbal, os signos
sociais e ideológicos permitem a reflexão e a refração da realidade. Além disso, as duas
esferas dos gêneros discursivos (primária e secundária) também podem ser
contempladas, considerando que, para Bakhtin,
[...] a distinção entre gêneros primários e secundários tem grande
importância teórica, sendo esta a razão pela qual a natureza do
enunciado deve ser elucidada e definida [...]. A análise se adequaria à
natureza complexa e sutil do enunciado e abrangeria seus aspectos
essenciais. (BAKHTIN, 2000, p. 282).
Concomitantemente, também seria possível um trabalho com a linguagem
formal e informal, já que a carta de amor ou familiar, como frisamos, permite a
utilização tanto de uma quanto da outra forma de expressão. Voltando no tempo, poder-
se-ia buscar a origem da linguagem informal, ou popular, como prefere tratá-la Bakhtin
(2002). Isso foi por nós exposto na seção 3.4
7
.
Quanto ao aluno, ele seria provocado para a produção inicial somente após
esse estudo exaustivo de textos do gênero, e essa produção inicial seguiria os módulos
de reescrita e, por fim, a produção final e a circulação do gênero atendendo à situação de
interação proposta inicialmente (encaminhar as cartas para serem trocadas com colegas
de outra turma ou de outra escola).
Enfim, trata-se de propostas de ensino viáveis que permitem estudos mais
aprofundados da língua, tendo em vista o gênero selecionado.
7
Para um maior aprofundamento, sugerimos a leitura de A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais (BAKHTIN, 2002).
105
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando iniciamos as leituras, tínhamos a intenção de realizar um estudo da
linguagem dentro do gênero discursivo carta de amor, compreendendo as características
definidoras desse gênero, tais como, contexto de produção, conteúdo temático, estrutura
composicional e estilo, o que nos permitiu destacar aspectos culturais da época em que
esses textos foram produzidos e, também, a identidade das pessoas envolvidas nessa
situação enunciativa. No percurso, queríamos entender a relação de interdependência
entre linguagem, cultura e identidade, pois a linguagem, além de fazer parte da cultura e
da identidade, também vida a tais elementos no momento em que as representa.
Além disso, por meio da linguagem, a cultura é formada, constituindo as identidades.
Em outras palavras, percebemos que, sendo sociais, tais noções não podem ser
consideradas isoladas uma da outra.
Para atender ao objetivo proposto, aprofundamos, inicialmente, nossos estudos
sobre o signo social e ideológico e compreendemos que a linguagem é formada por um
conjunto de signos que, carregados de ideologias, refratam e representam o real, ao
mesmo tempo em que, sendo vivos, móveis e históricos, constituem a cultura e a
identidade. Os signos sociais e ideológicos tornam possível a existência da interação
verbal, processo que forma e move as vozes sociais no mundo.
Procuramos, também, revisitar o conceito de enunciado/enunciações, momento
em que se esclareceu a relação entre essas noções e o diálogo. A interação verbal ocorre
apenas por meio de enunciados organizados socialmente, os quais devem resultar na
enunciação, ou seja, na compreensão ativa dos enunciados veiculados por parte do
interlocutor. A interação verbal é, pois, uma troca de enunciados entre um locutor e um
interlocutor, estando os dois em um mesmo campo de compreensão ativa.
Era necessário, então, entender de que forma tais enunciados eram
organizados. Abordamos, assim, os gêneros discursivos, quando compreendemos que
existem certos modelos de enunciados estabelecidos pelas convenções sociais, os quais
circulam dentro de determinadas esferas da sociedade. Trata-se dos gêneros discursivos,
ou seja, modelos de enunciados que, adaptados às necessidades da situação de interação
discursiva, guiam e dão forma a todo o nosso dizer.
depois de aclarados esses conceitos, sentimo-nos melhor subsidiados para
iniciar o processo investigativo dos gêneros, considerando que o estudo nos permitiu
106
compreender que tais elementos (signo social e ideológico, enunciados/enunciações) se
entrelaçam e se fundem na linguagem constitutiva dos gêneros.
Todavia, era preciso abordar também essa linguagem. Para isso, recorrendo ao
principal aporte teórico da pesquisa (BAKHTIN, 1988, 2000, 2002, 2004), retomamos o
conceito de gêneros e dos elementos que o constituem: contexto de produção, conteúdo
temático, estrutura composicional e estilo. Tais estudos nos deram suporte para analisar
o corpus da pesquisa: as cartas de amor.
Se Bakhtin (2000) nos dizia que a interação verbal é um fenômeno social,
podemos inferir que a linguagem é, realmente, social. Ela é a constituinte da realidade,
permitindo, dessa forma, a compreensão da cultura da época em que as cartas foram
produzidas, bem como da identidade das pessoas envolvidas na situação enunciativa.
Assim, é um veículo de enunciação, esta realizada por meio da interação verbal,
influenciada ideológica e culturalmente e produtora de identidades.
A afirmação se comprovou nas análises das cartas de amor. Ao abordarmos o
conteúdo temático no corpus, foi necessária uma retomada histórica como forma de
compreender o que levava aquelas pessoas a escrever da maneira como escreviam, ou
seja, quais eram as ideologias que as impulsionavam a agir de determinada forma.
Ademais, o tipo de linguagem utilizada pelas remetentes, a organização dos
textos e o conteúdo presente, ou seja, os objetivos comunicativos cumpridos ao escrevê-
las são aspectos que nos permitem conhecer parte do estilo dessas pessoas, ou seja, a
sua identidade. Assim, foi possível apontar vários aspectos, tais como grau de instrução,
o meio em que vivem (se é rural ou urbano), a classe socioeconômica, além de alguns
detalhes de sua vida pessoal.
Em outras palavras, a linguagem, tendo caráter eminentemente social, deixa
explícitas as peculiaridades próprias de um período da história e de uma cultura em
particular, assim como das identidades reveladas, como, no caso deste estudo, na escrita
de cartas de amor. Quando temos mais de uma carta assinada pelo mesmo remetente,
esses aspectos revelam, cada vez mais, detalhes, mostrando, ainda, em alguns casos,
características da cultura e da identidade do destinatário. Foi dessa forma que
conseguimos compreender um pouco mais da vida pessoal de Armando, considerando
que todas as cartas do corpus de pesquisa foram recebidas por ele, sem contar outras
que temos em mãos, não selecionadas para análise.
Como observamos, a linguagem, representante e reveladora, ganha forma
dentro de enunciados, os quais são organizados pelos gêneros discursivos que, por sua
107
vez, materializam o discurso, quer dizer, as interações verbais. O estudo sobre a
construção composicional das cartas de amor permitiu entender, de forma mais
aprofundada, como o processo ocorre no gênero discursivo em questão.
Ao efetuarmos leituras na área dos gêneros compreendemos que, embora esse
assunto tenha, segundo Marcuschi (2008), sido iniciado nos gêneros literários há, pelo
menos, 25 séculos, por Platão e Aristóteles, trata-se de um tema recente, mas bem
desenvolvido, dentro da área da enunciação. Lendo teóricos da área, observamos uma
ligação com as teorias de Bakhtin, a partir do qual a discussão ganhou mais força.
As interações verbais se dão, segundo Bakhtin, por meio de “tipos
relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2000, p. 279). Entretanto, para que
exista um enunciado, ele deve apresentar alguns elementos constituintes: um ser social
produtor, um destinatário, um objetivo comunicativo e estratégias enunciativas, além da
necessidade de serem materializadas em gêneros discursivos. São elementos que se
diferenciam de acordo com as intenções discursivas de seu produtor e o destinatário
para quem ele é produzido, uma vez que podem passar por algumas transformações
interiores como forma de serem adaptados às necessidades de interação verbal.
Sendo o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional os
elementos constituintes de um enunciado, eles sempre poderão ser identificados nos
gêneros discursivos, desde que se tenham informações sobre seu contexto de produção.
E com as cartas de amor não é diferente. Por meio de leituras delas, bem como de
teóricos estudiosos da cultura da época em que foram escritas e de informações obtidas
junto a pessoas ligadas aos remetentes e ao destinatário, pudemos compreendê-las
melhor.
O que se destacou nas cartas de amor foi, para nós, sua construção
composicional e suas marcas linguístico-enunciativas. Elas permitem uma liberdade de
expressão, bem variada quanto às formas de linguagem (formal ou informal),
localização de seus elementos visuais (data e local em que foi escrita) e conteúdo
(saudação, texto, despedida e assinatura). A carta de amor, assim, como a familiar e a
pessoal, é, portanto, um gênero mais aberto por não possuir uma estrutura que deva ser
seguida rigorosamente, assim como outros modelos de enunciados, que também não
exigem esse rigor estrutural.
A linguagem formal se destacou bastante no corpus. As cartas escritas por
Gerda e por Eny apresentaram uma linguagem rebuscada, semelhante a textos poéticos,
além de uma maior organização textual no que diz respeito a regras gramaticais, como
108
paragrafação, acentuação e pontuação, por exemplo.
Por outro lado, as cartas de Neusa e de Auria demonstraram uma organização
menor, distanciando-se das regras gramaticais da língua em sua manifestação escrita, ou
seja, apresentando muitas marcas da oralidade, além de pouca ou nenhuma
paragrafação, acentuação e pontuação. Permitimo-nos inferir, portanto, que, muitas
vezes, em cartas destinadas a namorados/as, há o objetivo de impressionar o destinatário
com a utilização de uma linguagem poética e rebuscada, mantendo, além disso, uma
relação mais respeitosa. Por outro lado, porém, permite-se, também, uma linguagem
informal, desprendida de regras, demonstrando até uma proximidade maior com o
interlocutor.
Acreditamos que esta pesquisa permita ainda maior fôlego, mas, considerando
o ponto a que até aqui foi levada, apresenta uma contribuição. Detendo-se em épocas
passadas, conseguimos recuperar seus aspectos culturais e, também, identitários de
pessoas falecidas, como no caso de Armando, ou não, caso das remetentes.
Entretanto, esse fôlego ainda não se esgotou e a pesquisa com as cartas poderá ser
prosseguida (como de fato se pretende), buscando outros caminhos, provavelmente com
um olhar para o ensino, ou seja, para a forma como tais estudos poderiam ser
considerados na sala de aula.
Sobre isso, alguns comentários foram realizados. Acreditamos, porém, que
existem outras inúmeras formas de levar a carta para a sala de aula e que nada pode ser
esgotado tão facilmente. Isso se deve ao fato de ser esse um gênero, embora,
atualmente, pouco empregado na interação verbal de grande importância para a história,
permitindo um estudo sobre os gêneros discursivos e, ao mesmo tempo, sobre as
características culturais e identitárias da época em que as cartas foram escritas. Além
disso, a linguagem próxima da oralidade raramente é considerada em sala de aula e a
carta, mais uma vez, poderia ser um instrumento para tal consideração.
109
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ZANDWAIS, Ana. Bakhtin/Volochinov: condições de produção de marxismo e
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