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JUSTIÇA EM NANCY FRASER
Alex Myller Duarte Lima
Teresina (PI)
2010
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA
JUSTIÇA EM NANCY FRASER
Alex Myller Duarte Lima
Dissertação apresentada ao Mestrado
em Ética e Epistemologia da
Universidade Federal do Piauí, como
requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Filosofia, sob
orientação do Prof. Dr. José Sérgio
Duarte da Fonseca.
Teresina (PI)
2010
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA
ALEX MYLLER DUARTE LIMA
JUSTIÇA EM NANCY FRASER
TERESINA
2010
ALEX MYLLER DUARTE LIMA
JUSTIÇA EM NANCY FRASER
Dissertação apresentada como
requisito parcial à obtenção do título
de Mestre, pelo Mestrado em Ética e
Epistemologia, Centro de Ciências
Humanas e Letras, Universidade
Federal do Piauí.
Orientador: Prof. Dr. José Sérgio
Duarte da Fonseca
TERESINA
2010
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Piauí, 2010.
CDD 320.01
2010.
151 f.
L628j
I. . II. Título.Lima, Alex Myller Duarte
1. . 2. Filosofia Politica. 3. Democracia.Justiça - Ciência Política
Lima, Alex Myller Duarte
Justiça em Nancy Fraser / Alex Myller Duarte Lima. Teresina,
TERMO DE APROVAÇÃO
ALEX MYLLER DUARTE LIMA
JUSTIÇA EM NANCY FRASER
Dissertação _______________ como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre, pelo Mestrado em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências
Humanas e Letras, Universidade Federal do Piauí, pela seguinte banca
examinadora:
_________________________________________________________
Prof. Dr. José Sérgio Duarte da Fonseca – UFPI (orientador)
_________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Clara Marques Dias – UFRJ (examinadora externa)
_________________________________________________________
Prof. Dr. Luizir de Oliveira – UFPI (examinador/MEE)
Teresina, _______ de _______________ de 2010.
Aos que amo, simplesmente
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos professores, funcionários e colegas do MEE – em especial ao meu
orientador Prof. Dr. José Sérgio, pelo compromisso intelectual e por ter me
apresentado tantas inteligências filosóficas que eu desconhecia.
Agradeço igualmente aos meus familiares e amigos-irmãos, pedindo perdão pelo
tempo e atenção deles subtraído nesses mais de dois anos de dedicação aos
ritos da academia.
Finalmente, a você, minha Nina, pelo apoio incondicional e paciência amorosa.
RESUMO
O presente trabalho objetiva apresentar a teoria da justiça da filósofa norte-
americana Nancy Fraser, historiando suas alterações em cotejo com as principais
críticas a ela endereçadas. Para tanto, foi realizado um exame de suas obras
desde meados da década de 1990 até hoje. Inicialmente bidimensonal, com
vistas a identificar e reparar as injustiças econômicas da estrutura de classe e as
culturais da ordem de status, eixos de subordinação social apontados pela
teórica, sua concepção de justiça foi ampliada para incorporar uma dimensão
política, englobando as questões de representação e dos processos decisórios. A
seguir, foi esboçado o estado atual de sua teoria, atualmente voltada para o
projeto da justiça anormal, expressão usada por Fraser para caracterizar nossa
época de disputa em torno da própria gramática das reivindicações por justiça.
Além disso, foram apresentadas as principais críticas realizadas a seu arcabouço
teórico e as refutações por ela delineadas. Ao final, concluiu-se que Fraser
manteve-se fiel ao seu compromisso de elaborar uma teoria crítica democrática
apropriada a nossa época de um mundo globalizante.
Palavras-chave: Fraser. Justiça. Redistribuição. Reconhecimento. Democracia.
ABSTRACT
This dissertation intends to present American philosopher Nancy Fraser’s theory
of justice, by historizing its modifications in comparison to major criticisms
addressed to it. Her works, since the ides of 1990s until today were examined.
Initially two-dimensional, in order to identify and remedy both class structure
economic injustice and status order cultural injustice, axis of social subordination
he pointed out, her conception of justice was expanded to incorporate a political
dimension, encompassing issues of representation and decision-making
processes. Then, the current state of her theory was sketched, engaged as it is in
the abnormal justice project, an expression Fraser uses to describe our age, in
which the grammar of justice claims is in dispute. Besides that the major criticisms
to her theoretical framework were presented as well as some of the rebuttals she
offered. In the end, it was inferred that Fraser stuck by her commitment to
formulate a critical democratic theory in a form adequate to our globalizing world
age.
Keywords: Fraser. Jusice. Redistribution. Recognition. Democracy.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 08
2 NANCY FRASER PÓS-SOCIALISTA: POR UMA TEORIA
BIDIMENSIONAL DA JUSTA .................................................................. 11
2.1 Uma era pós-socialista ................................................................................ 11
2.2 Um dilema contemporâneo: redistribuição x reconhecimento ................ 14
2.3 Um dilema na rebentação: a onda feminista do século XX ...................... 25
2.4 Soluções para um dilema ............................................................................ 29
2.4.1 Problemas em filosofia moral ...................................................................... 30
2.4.2 Temas de teoria social ................................................................................ 45
2.4.3 Questões político-teoréticas ........................................................................ 57
3 NANCY FRASER PÓS-WESTFALIANA: POLÍTICA E JUSTIÇA
TRIDIMENSIONAL ......................................................................................... 69
3.1 Integrando a política à justiça ..................................................................... 69
3.1.1 A especificidade da dimensão política da justiça ........................................ 72
3.1.2 A política da estruturação e a justiça democrática pós-Westfaliana ............ 75
3.2 Justiça reflexiva em tempos de discurso anormal .................................... 85
4 NANCY FRASER PÓS-AVALIADA: LIMITAÇÕES DA PARIDADE
DE PARTICIPAÇÃO ...................................................................................... 95
4.1 Mutações fraserianas ................................................................................... 95
4.1.1 A crítica do diagnóstico ............................................................................... 96
4.1.2 A crítica da insuficiência ............................................................................ 107
4.1.3 A crítica do alicerce ................................................................................... 115
4.2 Limitações à paridade de participação .................................................... 134
5 CONCLUSÃO ............................................................................................. 143
REFERÊNCIAS ............................................................................................. 146
8
1 INTRODUÇÃO
Um traço destacado das lutas sociais em fins de culo XX e início de culo
XXI tem sido o fortalecimento de movimentos sociais comprometidos com a defesa
de grupos historicamente injustiçados de um ponto de vista cultural ou simbólico
movimento feminista, movimento negro, movimento de gays e lésbicas, entre muitos
outros. Não que tais iniciativas inexistissem no período anterior. Porém, com a
derrocada do socialismo soviético, tenderam a assumir cada vez mais a bandeira da
luta pelo reconhecimento da diferença como projeto autônomo de ação social,
muitas vezes deslocando ou eclipsando a velha problemática da desigualdade
econômica.
Essa nova característica dos movimentos sociais emergentes gerou
consideráveis tensões no interior da própria esquerda política, especialmente da
norte-americana, mas com irradiações por todo o mundo. Nesse quadro, apareceu
como central o espinhoso debate “igualdade versus diferença”, com as respectivas
polarizações que sempre caracterizam discussões ideológicas. Para muitos teóricos,
passou a ser uma tarefa primordial a superação dessa ambivalência no âmbito do
pensamento e prática sociais progressistas. Certamente, uma das pensadoras que
mais tem se destacado no esforço de integrar as diferentes frentes de luta social é a
feminista norte-americana Nancy Fraser. Apesar de sua relativamente extensa
obra acerca do tema da justiça social, somente alguns de seus artigos foram vertidos
para a língua portuguesa.
Contudo, Fraser é provavelmente uma das vozes mais lúcidas no debate
contemporâneo sobre justiça social. Desde o final da década de 1980, ela tem
empreendido um considerável esforço teórico na formulação de uma concepção de
justiça que escape da polaridade entre igualdade social e diferença cultural,
superando os dilemas que essa tensão inevitavelmente carrega. Os debates entre
ela e seus críticos possibilitaram o delineamento cada vez mais preciso de seu
pensamento, bem como ampliações e insights que levaram sua concepção de
justiça consideravelmente além das pretensões iniciais. Na verdade, contribuíram
decisivamente para que Fraser elaborasse uma visão efetivamente global e crítica,
em um momento histórico de aceleradas e profundas alterações no cenário
planetário a globalização econômica crescente, a elevação dos fluxos
9
transfronteiras, a irrupção de ódios étnicos em meio às guerras de esfacelamento de
países artificialmente mantidos pela Guerra Fria, o terrorismo em escala global, entre
outras.
Assim, o presente trabalho historia a concepção de justiça social na obra de
Nancy Fraser, apresentando ainda algumas das críticas a ela endereçadas e as
respectivas respostas fornecidas pela pensadora. Ademais, pretendo ressaltar
criticamente algumas problemáticas que permanecem insolúveis no bojo de seu
pensamento, mesmo em sua mais recente e apurada formulação. Por isso, a
dissertação divide-se em três capítulos.
No primeiro deles, pretende-se esboçar o cenário no qual surgem as
primeiras preocupações fraserianas com a divisão interna (teórica e prática) dos
movimentos sociais progressistas, um momento histórico que a própria autora
cunhou de “pós-socialista”. Nesse passo, mostra-se como Fraser identificou em
meados da década de 1990 o dilema entre as políticas econômicas de redistribuição
e as políticas culturais de reconhecimento, bem como as soluções apresentadas por
ela para superá-lo por meio de uma concepção bidimensional de justiça. Desde
1995 até 2003, nos diversos escritos sobre o tema, a autora ensaia e modifica esse
projeto de integração dos paradigmas populares de justiça (redistribuição e
reconhecimento), aperfeiçoando sua visão sobre essa questão.
No segundo capítulo, a proposta é delinear as alterações na teoria fraseriana
da justiça (a partir de 2004 até 2007) que a conduziram a um patamar tridimensional,
integrando a política (por meio do conceito de representação) à justiça social. Além
disso, é exposto como as inquietações de Fraser com o problema da estrutura
(frame) na qual as reivindicações de primeira ordem (econômicas, culturais e
político-ordinárias) são realizadas a levaram a ampliar sua teoria, organizando-a em
torno das questões do “que”, do “quem” e do “como” da justiça e tornando-a
efetivamente uma visão apropriada para tempos de globalização.
Por fim, o terceiro capítulo intenta avaliar criticamente as mutações pelas
quais passou a concepção de justiça da feminista norte-americana, tendo em vista
as diversas críticas recebidas e respondidas (em geral com sucesso) por Fraser.
Além disso, busca levantar, de modo sucinto, outras indagações e problemas que
geram tensões ou permanecem sem resposta clara em seu pensamento, tais como
a noção de pessoa pressuposta em sua teoria e o alcance e sustentabilidade do
10
princípio da paridade de participação (noção de justiça mais geral da autora) perante
a questão ambiental contemporânea (justiça intergeracional e interespécie).
11
2 NANCY FRASER PÓS-SOCIALISTA: POR UMA TEORIA
BIDIMENSIONAL DA JUSTA
2.1 Uma era pós-socialista
Para delinearmos a teoria da justiça esposada pela feminista norte-americana
Nancy Fraser, rastrearemos as pegadas da autora de volta até as origens de suas
preocupações, manifestadas em seus primeiros escritos sobre o tema.
Em 1995, no clássico artigo From Redistribution to Recognition? Dilemmas of
Justice in a Post-Socialist’ Age, Fraser considerava inarredável a formulação de
uma concepção de justiça que desse conta das especificidades e desafios do mundo
contemporâneo, então atravessando um período por ela denominado de “era pós-
socialista”. Naquele momento, a estudiosa apontava como carro-chefe da
mobilização política a questão das identidades grupais e como injustiça fundamental
a dominação cultural, que tinham substituído nesses postos, respectivamente, os
interesses de classe e a exploração econômica (Cf. FRASER, 1995, p. 68).
Somente dois anos mais tarde, no entanto, é que Fraser ofereceria um
diagnóstico mais amplo dessa condição “pós-socialista”, termo que ela mantinha
entre aspas para assinalar sua postura crítica em relação ao horizonte nele
representado. Em sua coletânea de ensaios Justice interruptus: critical reflections on
the “postsocialist” condition (1997a), a feminista estadunidense distinguiu três
aspectos constitutivos desse humor ou estrutura de sentimento da Esquerda pós-
1989, expresso nas dúvidas autênticas acerca das possibilidades históricas de uma
mudança social progressiva (Cf. FRASER, 1997a, p. 1).
O primeiro desses aspectos seria a ausência de qualquer visão progressista
crível como alternativa à ordem presente. Em outras palavras, a falência do
socialismo soviético teria conduzido não apenas ao colapso de determinados
arranjos institucionais existentes, mas a um abalo na crença em ideais que
motivaram as lutas por transformações sociais durante os últimos 150 anos. Nada
teria surgido para assumir o lugar outrora ocupado pelo socialismo. Apesar de não
apoiar a alegação de “fim da história” feita por Francis Fukuyama, Fraser reconhece
12
que ela de alguma forma caracteriza a situação “pós-socialista” (Cf. FRASER,
1997a, p. 1-2).
O segundo ponto característico dessa condição diz respeito à mudança na
gramática das reivindicações políticas, com as pretensões pelo reconhecimento das
diferenças grupais eclipsando os clamores por igualdade social. No nível empírico,
observa-se a ascensão da “política de identidade”, o descentramento da classe
(deixa de ocupar o papel principal no imaginário dos movimentos sociais) e a crise
da social-democracia. Por outro lado, há uma aparente mudança no imaginário
político, em especial nos termos em que a justiça é pensada. Com efeito, os mais
relevantes movimentos sociais não mais se caracterizariam como classes lutando
pela redistribuição contra a exploração, mas como grupos combatendo a dominação
cultural em favor do reconhecimento de suas respectivas identidades um
desacoplamento da política cultural da política social.
Do ponto de vista filosófico, o termo “redistribuiçãofilia-se à tradição liberal,
em especial o seu ramo anglo-americano, ao qual estão vinculadas as diversas
teorias de justiça distributiva elaboradas em fins do século XX, entre elas as
concepções de John Rawls e Ronald Dworkin. “Redistribuição”, portanto, vem de
uma longa tradição de pensamento que busca sintetizar a ênfase liberal na liberdade
individual com o igualitarismo da democracia social. Por sua vez, “reconhecimento” é
termo que deriva da tradição filosófica hegeliana, no contexto de uma relação entre
sujeitos que se enxergam como iguais, mas separados uns dos outros – relação que
é propriamente constitutiva dessa subjetividade. O conteúdo desse reconhecimento
foi trabalhado e enriquecido conceitualmente pelos existencialistas do século XX e
ressuscitado ainda mais recentemente por neohegelianos como Charles Taylor e
Axel Honneth (Cf. FRASER; HONNETH, 2003, p. 10).
O contexto no qual emergiram as problemáticas acima é também o terceiro
aspecto da era s-socialista, caracterizado pelo ressurgimento do liberalismo
econômico. O capitalismo globalizante de nossos tempos vem crescentemente
mercantilizando as relações sociais, erodindo proteções sociais conquistadas e
piorando as expectativas de vida de bilhões de seres humanos. Os Human
Development Reports, publicados anualmente pela Organização das Nações Unidas
(ONU) desde o início da década de 1990, atestam o profundo abismo existente entre
pobres e ricos, intra e internacionalmente considerados (UNITED NATIONS
ORGANIZATION, 2003, 2005). Em suma, a condição “pós-socialista” consistiria em
13
uma ausência de qualquer projeto emancipatório abrangente crível a
despeito da proliferação das frentes de luta; um desacoplamento geral da
política cultural do reconhecimento da política social da redistribuição; e um
descentramento das reivindicações por igualdade face à agressiva
mercantilização e agudamente crescente desigualdade material (FRASER,
1997a, p. 3).
Contudo, não a questão dos movimentos sociais preocupa Fraser.
Também a teorização política contemporânea tem por horizonte a condição “pós-
socialista” e torna-se crucial para os estudiosos a distinção entre as posturas que
assumem um papel crítico diante dela e aquelas que tão-somente a reproduzem,
refletindo-a sintomaticamente.
Nesse sentido, Fraser pretende sujeitar todos aqueles traços constitutivos da
condição “pós-socialista” ao escrutínio crítico, mantendo alguma distância da moda
de desconfiança no pensamento normativo, programático ou “totalizante”. Apesar de
reconhecer não estarmos atualmente numa posição que possibilite antever um
sucessor completo para o socialismo, ela sustenta ser possível pensar alternativas
provisórias à ordem presente que, por sua vez, poderiam fornecer bases para uma
política progressista (Cf. FRASER, 1997a, p. 3-4).
Ela afirma ainda que o clima pós-1989 abriu espaço para mistificações
ideológicas (ou falsas antíteses) relativas à mudança de paradigma da redistribuição
para o reconhecimento no campo das lutas sociais. Assim, enquanto alguns
celebram tal mudança como se as lutas pela equalização econômica não fossem
mais relevantes, outros consideram as reivindicações por justiça racial ou de gênero
como meramente culturais, desconectadas das pretensões redistributivas.
Ao citar o exemplo da academia norte-americana, onde as teorizações
culturais e sociais se encontrariam largamente dissociadas, Fraser aponta que, no
âmbito da filosofia política, teóricos da justiça distributiva e do reconhecimento da
diferença tendem a se ignorar mutuamente, como se as problemáticas por eles
levantadas o possuíssem íntimas conexões (Cf. FRASER, 1997a, p. 5). Em sua
visão, posições desse tipo contribuiriam para esboçar um quadro em que a política
de classe e a política de identidade, bem como igualdade e diferença, apareceriam
como mutuamente excludentes, inconciliáveis.
Para Fraser, ao contrário, teóricos críticos deveriam rebater tais proposições,
com vistas a uma integração das dimensões emancipatórias das duas problemáticas
em um único e abrangente arcabouço, ou seja, “criar um outro ‘pós-socialismo’, que
14
incorpore, ao invés de repudiar, o melhor do socialismo” (FRASER, 1997a, p. 4). Daí
ela ter anteriormente defendido que “somente articulando reconhecimento e
redistribuição podemos chegar a um arcabouço teórico-crítico que seja adequado às
exigências de nossa era” (FRASER, 1995, p. 69).
Dessa forma, uma abordagem compreensiva precisaria integrar o social e o
cultural, desenvolvendo “uma teoria crítica do reconhecimento, distinguindo aquelas
reivindicações pelo reconhecimento da diferença que promovam a causa da
igualdade social daquelas que a retardam ou a solapam” (FRASER, 1997a, p. 5).
Tal chave de compreensão (ou critério de integração) foi o alicerce primeiro
da formulação de uma teoria fraseriana da justiça, como será adequadamente
explicitado adiante. Tanto que, na busca pela ampliação de sua visão sem prejuízo
da coerência interna, a filósofa recentemente apontou outra faceta da justiça até
então negligenciada em seu trabalho, a dimensão política, expressa na questão da
representação (Cf. FRASER, 2005b; FRASER, 2007c, p. 17-19).
Antes de tratarmos desse desenvolvimento de sua perspectiva, entretanto,
veremos como ela inicialmente abordou as relações entre redistribuição e
reconhecimento, recusando as antíteses “pós-socialistas” entre esses paradigmas
de justiça com o escopo de construir um pós-socialismo abrangente que pudesse
dar sustentação às lutas sociais neste início de milênio. Em especial, dispensaremos
atenção às conseqüências por ela avançadas no campo das questões de gênero em
decorrência da aplicação de sua “teoria integrada da justiça” (LOVELL, 2007a, p. 1).
2.2 Um dilema contemporâneo: redistribuição x reconhecimento
Sabe-se que os clamores redistributivistas igualitários dominaram nos últimos
séculos toda a literatura empenhada em transformações sociais, a ponto de se
constituírem quase como os paradigmas definitivos da teorização acerca da justiça
social. A seu turno, as lutas por reconhecimento cresceram rapidamente após a
queda do socialismo soviético no final do século XX, entre as quais se destacam as
diversificadas bandeiras do gênero, nacionalidade, raça/etnia e sexualidade (Cf.
FRASER, 1995).
15
Um quadro dessa ordem exige então que as duas espécies de demandas por
justiça sejam entrosadas de forma harmônica, sem o solapamento de qualquer
dessas dimensões. Nancy Fraser foi uma das primeiras vozes que alertaram para a
dificuldade de harmonização dos dois tipos de políticas requeridas de
redistribuição e de reconhecimento:
Crescentemente, (...) redistribuição e reconhecimento são retratados como
alternativas mutuamente excludentes. Alguns proponentes da primeira, tais
como Richard Rorty, Brian Barry, e Todd Gitlin, insistem que a política de
identidade é um desvio contraprodutivo das questões econômicas reais (...).
Contrariamente, alguns proponentes do reconhecimento, tal como Iris
Marion Young, insistem que uma política de redistribuição cega-às-
diferenças pode reforçar a injustiça ao universalizar falsamente normas do
grupo dominante, requerendo que grupos subordinados as assimilem, e não
reconhecendo a peculiaridade dos últimos (FRASER; HONNETH, 2003, p.
15).
Nesse sentido, muitos teóricos liberais, defensores da justiça distributiva,
denunciam as teorias do reconhecimento como portadoras de uma inaceitável
bagagem comunitarista. Também marxistas e pós-estruturalistas criticam a categoria
política reconhecimento. Os primeiros, por ela não ser capaz de capturar
plenamente a profundidade da injustiça capitalista, negligenciando as relações de
produção e falhando em problematizar a exploração. Os segundos, por entenderem
que a idéia de reconhecimento carreia assunções normalizadoras decorrentes de
uma noção centrada de subjetividade, traço que impediria uma crítica mais radical
(Cf. FRASER; HONNETH, 2003, p. 11). Por sua vez, filósofos do reconhecimento
condenam como individualizadoras e consumeristas as teorias distributivas.
Essas observações seriam válidas para todos os movimentos sociais de fins
de século XX e início de século XXI. Contudo, nos interessa também uma
investigação mais próxima da situação das mulheres no mundo contemporâneo,
mesmo porque a questão da injustiça de gênero tem sido uma constante nos
escritos de Nancy Fraser. Não à toa, se chegou a afirmar que “o feminismo de
Fraser marca tudo o que ela escreve” (LOVELL, 2007b, p. 66).
Especificamente quanto às questões de gênero, “tendências ativistas que
olham para a redistribuição como o remédio para a dominação masculina estão
crescentemente dissociadas das tendências que olham ao invés para o
reconhecimento da diferença de gênero” (FRASER; HONNETH, 2003, p. 8). É claro
o surgimento desse debate dentro do feminismo internacional, no qual “para um
16
grupo (...) a essência do feminismo é uma crítica da dominação sexual” e “para o
outro (...) a essência do feminismo é uma crítica da dependência econômica das
mulheres” (NUSSBAUM, 2000, p. 290). Logo, a dissociação das vertentes
redistributivas e identitárias também é observada no âmbito do movimento feminista,
baluarte histórico da luta contra a opressão social das mulheres:
A famosa virada cultural ou lingüística, que subseqüentemente afetou tantas
disciplinas das quais os estudos feministas haviam se beneficiado, deu
maior proeminência à filosofia e aos estudos textuais, até o ponto de reduzir
‘o social’ a ‘o textual’. A virada do século vinte e um tem testemunhado um
‘retorno ao social’, restaurando a atenção à análise sociológica
causal/estrutural (LOVELL, 2007b, p. 66).
Essa polarização teórica e prática das reivindicações por justiça social foi o
ponto de partida das preocupações fraserianas e levou a professora norte-
americana a formular sua própria versão de uma teoria crítica capaz de harmonizar
essas diferentes noções de justiça. Ressalte-se que Fraser não ignora as
dificuldades que acompanham essa tentativa de integração, tanto no campo da
filosofia moral quanto no da teoria social (e tentou eliminá-las no percurso de seus
escritos). Lapidada no diálogo com críticos e partidários ao longo da última década,
sua teoria da justiça pretendeu inicialmente solucionar justamente o descompasso
entre redistribuição e reconhecimento, de modo que os respectivos clamores não
conflitem ou sobrepujem uns aos outros.
Daí a tarefa que ela se propôs desde o início de sua obra: investigar a relação
entre os clamores por redistribuição e as reivindicações por reconhecimento, bem
como as mútuas interferências que poderiam surgir quando os dois tipos de
demandas sociais emergissem simultaneamente. Para tanto, Fraser emprega uma
distinção analítica entre injustiça econômica e injustiça cultural (e seus respectivos
remédios), pois reconhece que na prática ambas estão sempre entrelaçadas:
Mesmo as mais materiais instituições econômicas possuem uma dimensão
cultural constitutiva, irredutível; elas estão permeadas de significações e
normas. De modo recíproco, mesmo as mais discursivas práticas culturais
possuem uma dimensão político-econômica constitutiva, irredutível; elas
estão embasadas em apoios materiais. Então, longe de ocuparem duas
esferas impermeáveis separadas, injustiça econômica e injustiça cultural
estão usualmente interimbricadas de modo a reforçarem uma a outra
dialeticamente (FRASER, 1995, p. 72).
17
Para ajudar a esclarecer essa situação e os prospectos políticos nela
implicados, Fraser propõe de início colocar entre parênteses a contenda filosófica
entre defensores da redistribuição e do reconhecimento, restringindo os termos a
suas referências políticas contemporâneas. Em outras palavras, sugere que os
tomemos como constelações ideal-típicas de clamores que são correntemente
apresentados em esferas públicas. Nesse sentido, enquanto paradigmas populares
de justiça que informam as lutas contemporâneas na sociedade civil, redistribuição e
reconhecimento são comumente associados a movimentos sociais específicos,
respectivamente ligados a políticas de classe e a políticas de identidade:
Visto dessa forma, o paradigma da redistribuição pode englobar não apenas
orientações políticas centradas no conceito de classe, tais como o
liberalismo do New Deal, social democracia, e socialismo, mas também
aquelas formas de feminismo e anti-racismo que olham para a
transformação sócio-econômica como o remédio para a injustiça de gênero
e étnico-racial (...). O paradigma do reconhecimento, da mesma forma,
pode englobar o apenas movimentos objetivando revalorizar identidades
injustamente desvalorizadas por exemplo, feminismo cultural,
nacionalismo cultural negro, e política de identidade gay mas também
tendências descontrutivas, tais como política queer, política crítica de ‘raça’,
e feminismo desconstrutivo” (FRASER; HONNETH, 2003, p. 12).
A confrontação dos dois paradigmas, segundo Fraser, pode se dar em alguns
aspectos fundamentais, dentre os quais poderiam ser destacados: 1) as diferentes
concepções de injustiça por eles pressupostas; 2) os tipos diversos de remédios
propostos para essas injustiças; 3) as diferentes concepções de coletividades que
sofrem injustiça e 4) as compreensões discordantes acerca das diferenças grupais.
Quanto às concepções de justiça, o paradigma da redistribuição considera as
injustiças como sócio-econômicas, enraizadas na estrutura econômica da
sociedade, incluindo a exploração, a marginalização econômica e a escassez de
recursos. Por sua vez, sob o paradigma do reconhecimento, entende-se a injustiça
como cultural, enraizada nos padrões sociais de representação, interpretação e
comunicação a dominação cultural, o não-reconhecimento e o desrespeito (Cf.
FRASER; HONNETH, 2003, p. 12-13).
Por óbvio, os tipos de injustiça destacados a partir da ótica de cada
paradigma são apresentados como exemplos possíveis (não taxativos). Mesmo
assim, o entendimento adequado dos remédios propostos por cada uma das visões
paradigmáticas depende de uma explicação mais detida. No campo da
redistribuição, Fraser define exploração como a apropriação, em benefício de uns,
18
dos frutos do trabalho de outros. Marginalização econômica corresponderia a
confinar alguém a ocupações indesejáveis ou mal pagas, ou ainda negar
completamente o acesso a um trabalho gerador de renda. A privação, ou escassez
de recursos, equivaleria à negação de um adequado padrão material de vida. Por
outro lado, na esfera do reconhecimento, dominação cultural abrangeria a sujeição
de alguém a padrões de interpretação e comunicação associados com outra cultura,
em especial quando eles são estranhos e/ou hostis em relação a sua própria cultura.
O não-reconhecimento assumiria a forma de invisibilização, operada por meio de
práticas interpretativas, comunicativas e representacionais autoritárias sobre a
cultura de alguém. O desrespeito significaria ser espinafrado ou menosprezado
rotineiramente em representações culturais públicas estereotipadas e/ou nas
interações da vida cotidiana.
Em virtude dessas compreensões dissonantes, não surpreende a diversidade
dos remédios para a injustiça propostos por cada visão paradigmática:
O remédio para a injustiça econômica é a reestruturação político-econômica
de algum tipo. Isto pode envolver redistribuir renda, reorganizar a divisão do
trabalho, sujeitar investimentos à tomada democrática de decisões, ou
transformar outras estruturas econômicas básicas. (…) O remédio para a
injustiça cultural, em contraste, é algum tipo de mudança cultural ou
simbólica. Isto poderia envolver reavaliar positivamente identidades
desrespeitadas e os produtos culturais de grupos execrados. Também
poderia envolver reconhecer e positivamente valorizar a diversidade
cultural. Mais radicalmente ainda, poderia envolver a transformação
completa dos padrões sociais de representação, interpretação e
comunicação em formas que modificariam o sentido de eu de todos
(FRASER, 1995, p. 73, grifo da autora).
No que tange ao terceiro ponto, sob o enfoque da redistribuição, os sujeitos
coletivos que sofrem injustiça são classes ou coletividades semelhantes a classes,
no sentido em que são definidas economicamente por uma relação distintiva com o
mercado ou com os meios de produção. Na gramática marxista, por exemplo, o
grupo sujeito à injustiça econômica seria a classe trabalhadora. Fraser, porém, se
apressa em salientar a amplitude de sua análise, alargando o conceito para nele
situar também os grupos racializados de imigrantes ou minorias étnicas, usualmente
ocupantes de trabalhos subalternos mal pagos ou mesmo largamente excluídos do
trabalho remunerado regular. Similarmente, estariam incluídas as mulheres, que em
grande parte suportam o fardo leonino do trabalho doméstico não-remunerado e, por
conseguinte, são prejudicadas no campo do emprego formal. Finalmente, também
19
estariam aqui inseridos os complexos grupos resultantes da teorização da economia
política em termos da interseção de classe, “raça” e gênero.
No paradigma popular de reconhecimento, diferentemente, as vítimas da
injustiça são definidas em termos de status social, ou seja, por gozarem de menor
respeito, estima e prestígio em comparação com outros grupos sociais. O caso
clássico, já delineado na literatura weberiana, seria aquele do grupo étnico de baixo-
status, marcado pelos padrões dominantes de valoração cultural como diferente e
menos valioso. Mais uma vez Fraser amplia essa noção, sustentando que ela pode
facilmente cobrir gays e lésbicas, que sentem os efeitos difundidos do estigma
social; grupos racializados, marcados como diferentes e inferiores; e, ainda, as
mulheres, pois elas são trivializadas, sexualmente objetificadas e desrespeitadas de
inúmeras formas.
Finalmente, a compreensão redistributivista trata as diferenças grupais como
injustas. Longe de serem intrínsecas aos grupos, elas são construídas socialmente
como resultados de uma economia política iníqua. Por isso mesmo, tal visão propõe
a abolição dessas diferenças. De outra parte, sob o ponto de vista do
reconhecimento, é possível entender as diferenças entre grupos de duas formas: (1)
como variações pré-existentes e benignas, mas hierarquizadas valorativamente por
um esquema interpretativo malicioso (o que exigiria sua reavaliação e celebração);
ou (2) como diferenciações que não existem antes daquela hierarquização valorativa
maliciosa, ou seja, construídas contemporaneamente àquela hierarquização (o que
exigiria a desconstrução dos termos nos quais as diferenças são correntemente
elaboradas).
Apesar de delinear as principais frentes de conflito entre os defensores de um
e outro enfoque, Fraser pretende justamente demonstrar que essa oposição entre os
dois paradigmas consiste numa falsa antítese. Como antes mencionado, ela está
ciente de que a distinção entre injustiças econômicas e culturais, bem como entre
remédios redistributivos e de reconhecimento, é meramente analítica. Ela insiste que
para solucionar casos reais de injustiça seria sempre necessário levar em conta as
duas dimensões da justiça social, sem reduzi-las uma a outra. E ambas estariam
profundamente interligadas, existindo para cada injustiça econômica ou remédio
distributivo algum componente cultural e efeito de reconhecimento (e vice-versa).
20
O problema surge justamente quando se tenta delinear as relações entre as
políticas de redistribuição e as políticas de reconhecimento, pois elas parecem mirar
objetivos mutuamente contraditórios:
Reivindicações por reconhecimento freqüentemente tomam a forma de
chamar a atenção para, se não performativamente de criar, a especificidade
putativa de algum grupo, e então de afirmar o valor daquela especificidade.
Logo, elas tendem a promover a diferenciação do grupo. Reivindicações por
redistribuição, ao contrário, exigem a abolição dos arranjos econômicos que
servem de base para a especificidade de grupo (...). Dessa forma, elas
tendem a promover a desdiferenciação de grupo (...). Enquanto a primeira
[forma de política] tende a promover a diferenciação, a segunda tende a
solapá-la. Os dois tipos de reivindicação, portanto, encontram-se em
tensão; elas podem interferir entre si, ou até atrapalhar uma a outra
(FRASER, 1995, p. 74).
O enunciado acima corresponde precisamente ao dilema redistribuição-
reconhecimento apontado por Fraser e para o qual, segundo ela, não se encontrou
solução na contemporaneidade. Na concepção fraseriana, qualquer grupo negado
em termos de participação paritária na interação social, que ela inicialmente
denominou de “coletividades bivalentes” (Cf. FRASER, 1995, p. 78) e mais tarde de
“categorias sociais bidimensionais” (Cf. FRASER; HONNETH, 2003, p. 19-21),
necessita de ambos os tipos de remédios para a injustiça, ou seja, tanto
redistribuição quanto reconhecimento.
Para evidenciar o dilema e demonstrar a falsidade da antítese contemporânea
entre redistribuição e reconhecimento, Fraser elabora um interessante experimento
mental. Tomemos um espectro conceitual de diferentes tipos de divisões sociais.
Coloquemos em um dos extremos desse contínuo os grupos que se encaixam no
paradigma popular da redistribuição e no outro aqueles enquadrados no paradigma
do reconhecimento. Entre um extremo e outro estariam os grupos que se ajustam
simultaneamente a ambos os paradigmas. Consideremos então as especificidades
de cada locus.
No extremo da redistribuição, encontrar-se-ia a “classe” em sentido marxista
(numa visão ortodoxa e economicista de Marx, alerta a autora), ou seja, uma divisão
social ideal-típica enraizada na estrutura econômica da sociedade capitalista. A
classe trabalhadora seria justamente o corpo de pessoas (não-proprietárias) que
precisam vender sua força de trabalho, sob arranjos sociais que autorizam a classe
capitalista a se apropriar dos frutos excedentes da produtividade para seu benefício
privado um típico caso de exploração. Apesar dos proletários sofrerem igualmente
21
graves injustiças culturais, estas não estariam diretamente enraizadas em uma
ordem de status autônoma e injusta, mas na própria estrutura econômica. Nesse
caso, o núcleo da injustiça é cio-econômico, sendo denominada por Fraser
maldistribution
1
. Superar a exploração de classe, portanto, demandaria reestruturar
a economia política de modo a alterar a distribuição de ônus e vantagens. Em Marx,
por exemplo, a tarefa do proletariado consistiria, em última análise, na sua própria
abolição como classe. O remédio para a injustiça econômica seria precisamente
excluir o proletariado como um grupo distinto, jamais o reconhecimento de sua
“diferença”.
Na outra extremidade do espectro conceitual, por sua vez, estaria uma divisão
social igualmente ideal-típica, mas ajustada ao paradigma do reconhecimento ou
seja, com raízes fincadas na ordem de status da sociedade (por oposição à estrutura
econômica). Qualquer injustiça estrutural sofrida por esse grupo poderia ser
rastreada até os padrões sociais institucionalizados de valoração cultural mesmo
as injustiças econômicas decorreriam, em último caso, de misrecognition. O exemplo
aqui empregado por Fraser é o da diferenciação sexual, entendida sob o prisma do
conceito weberiano de status. Segundo essa concepção, a divisão entre
homossexuais e heterossexuais estaria enraizada na ordem de status da sociedade
e não na economia, vez que os primeiros estariam distribuídos ao longo de toda a
estrutura de classe do capitalismo e não ocupariam uma posição distintiva na divisão
do trabalho (não constituiriam uma classe explorada). Na verdade, gays e lésbicas
estariam submetidos a uma subordinação de status, em virtude da difusão de
padrões culturais de valoração que constroem a homossexualidade como pervertida
e desprezível e a heterossexualidade como normal e normativa. Derrotar a
homofobia e o heterossexismo exigiria modificar a ordem de status sexual
desinstitucionalizar padrões valorativos heteronormativos e substituí-los por outros
que expressem respeito igual por gays e lésbicas.
1
Ao longo desse trabalho, os termos que Fraser emprega para designar as formas específicas de injustiça econômica
(maldistribution), cultural (misrecognition) e política (misrepresentation e misframing) foram mantidos em inglês, pois a
tradução se faria impossível sem a perda da elegância conceitual da autora, que se manifesta inclusive nos paralelismos e na
simétrica aliteração por ela empregada. Segundo Greenbaum (1996, p. 447), os prefixos mal e mis são pejorativos, o
primeiro equivalendo a improper (impróprio, inadequado,) ou badly (mal, não bem, de maneira ruim, perversamente) e o
segundo a wrong (errado, incorreto, errôneo, falso) ou wrongly (erroneamente, falsamente). Além disso, mal é pouco usado
na língua inglesa (foi emprestado do francês), ao passo que mis é bem mais comum. Ele explica ainda que, por exemplo,
disinformation possui um sentido mais restrito do que misinformation, pois este se refere à difusão intencional de informações
falsas ou distorcidas, usualmente por agências governamentais e, particularmente, agências de inteligência. Nesse sentido,
maldistribution seria distribuição inadequada ou ruim; misrecognition seria reconhecimento errôneo, falso, incorreto;
misrepresentation significaria representação errônea, falsa, incorreta; e misframing equivaleria a estruturação errônea, falsa,
incorreta.
22
No entanto, quando nos afastamos dos extremos do espectro a situação
muda. Nas regiões centrais do contínuo estariam aquelas divisões sociais que
assumem formas híbridas, nas quais se combinam traços da classe explorada com
traços da sexualidade depreciada. Com raízes tanto na estrutura econômica quanto
na ordem de status da sociedade, tais divisões sofreriam injustiças rastreáveis a
ambas as esferas. Fraser acentua que
Grupos bidimensionalmente subordinados sofrem tanto maldistribution
quanto misrecognition em formas nas quais nenhuma dessas injustiças é
um efeito indireto da outra, mas ambas são primárias e co-originais. No
caso deles, conseqüentemente, nem uma política exclusivamente de
redistribuição nem uma política exclusivamente de reconhecimento será
suficiente. Grupos bidimensionalmente subordinados precisam de ambas
(FRASER; HONNETH, 2003, p. 19, grifo da autora).
Essa co-originalidade das injustiças de redistribuição e de reconhecimento é
igualmente apontada por diversos estudiosos. Lawrence Burn, por exemplo, explica
que “a injustiça de um grau ou tipo particular de desigualdade de classe é
independente das identidades racial ou de gênero daqueles que ocupam posições
na estrutura daquela desigualdade” (BLUM, 2008, p. 195). Nesse sentido, Amartya
Sen sustenta que as “sistemáticas disparidades nas liberdades que homens e
mulheres gozam em diferentes sociedades (...) são freqüentemente o redutíveis a
diferenças em renda ou recursos” (SEN, 1995, p. 122).
Fraser procura justificar essa co-originalidade, abordando a categoria
“gênero” nesse contexto. Segundo ela, gênero possuiria uma dimensão político-
econômica inarredável, servindo como um princípio organizador básico da economia
política, inclusive da estrutura econômica da sociedade capitalista. Por um lado,
estruturaria a divisão entre trabalho produtivo pago e trabalho reprodutivo e
doméstico não-pago; por outro, a divisão dentro do trabalho pago entre ocupações
mais bem remuneradas e profissionais, dominadas pelos homens, e ocupações mal
remuneradas e voltadas para serviços domésticos, dominadas pelas mulheres. O
resultado disso é uma estrutura econômica que gera formas de injustiça distributiva
específicas de gênero – exploração, marginalização econômica e privação baseadas
no gênero. Visto sob este aspecto, “gênero” aparece como uma diferenciação social
similar à “classe” e a injustiça de gênero como um tipo de injustiça distributiva
remediável via redistribuição, ou seja, por meio da transformação da economia de
forma a eliminar sua estruturação com base no gênero. Isso equivaleria a eliminar a
23
divisão de trabalho nele embasada, em quaisquer dos aspectos acima apontados.
Em suma, se “gênero” nada mais fosse que uma divisão semelhante a “classe”, a
lógica dos remédios seria a mesma: a justiça exigiria sua abolição.
Entretanto, “gênero” também seria uma diferenciação cultural-valorativa ou de
status, com traços similares aos da “sexualidade depreciada”. Códigos de gênero
permeiam os padrões de interpretação e avaliação, centrais à ordem de status como
um todo. Por isso mesmo, não apenas as mulheres, mas também todos os grupos
de baixo status estão sujeitos à feminização e, logo, à depreciação. Note-se que
persiste a construção de normas que privilegiam traços associados com a
masculinidade (androcentrismo), bem como a desvalorização de coisas codificadas
como “femininas” (sexismo cultural). Essa inferiorização se expressa nos diversos
danos sofridos pelas mulheres, entre eles o assédio sexual, a exploração sexual, a
violência doméstica, a marginalização na esfera pública e nos corpos deliberativos,
além das estereotípicas representações midiáticas trivializantes, humilhantes e
objetificantes da mulher. Resulta daí que as mulheres sofrem formas de
subordinação de status específicas de gênero, injustiças de reconhecimento
relativamente independentes da economia política e, portanto, não meramente
“superestruturais”. Vista sob esta ótica, que aproxima “gênero” de “sexualidade
depreciada”, a injustiça de gênero requer para sua reparação a alteração da ordem
de status da sociedade. Semelhante à superação do heterossexismo, a eliminação
do androcentrismo exige a reestruturação das relações de reconhecimento, por meio
da desinstitucionalização de padrões valorativos sexistas e sua substituição por
outros que expressem respeito igual pelas mulheres.
Em resumo, “gênero” é justamente uma coletividade ambivalente ou categoria
social bidimensional, que requer tanto redistribuição quanto reconhecimento para
remediar as injustiças que os seus indivíduos-componentes sofrem cotidianamente.
O caráter bidimensional do “gênero” sua composição de classe e status, sua
especificidade construída a partir de diferenciais econômicos e padrões
institucionalizados de valoração cultural afasta a idéia de uma escolha entre o
paradigma da redistribuição e o do reconhecimento e, por conseguinte, explode a
falsa antítese aí implicada.
O passo seguinte do percurso fraseriano é estender a condição de
bidimensionalidade a outras divisões sociais, apontando tal característica como
regra geral quando se trata das coletividades submetidas à injustiça na sociedade
24
contemporânea. Considerando a experiência americana, Fraser mostra que “raça”
seria outra divisão que demanda tanto redistribuição quanto reconhecimento para o
sobrepujamento das injustiças do racismo. Na economia, a “raça” organiza divisões
estruturais entre trabalhos pagos subalternos e não-subalternos, bem como entre
força de trabalho explorável e “supérflua”. O resultado é o surgimento de formas
racialmente específicas de maldistribution por exemplo, taxas
desproporcionalmente mais elevadas de desemprego/pobreza e de participação em
ocupações subalternas entre imigrantes racializados e/ou minorias étnicas. Na
ordem de status, concomitantemente, padrões eurocêntricos de valoração cultural
privilegiam traços associados à “brancura” e estigmatizam como pessoa de cor todo
aquele codificado como “negro”, “pardo” ou “amarelo”. A conseqüência óbvia é a
construção dos imigrantes racializados e/ou minorias étnicas como deficientes e
inferiores, ou seja, formas racialmente específicas de subordinação de status. Para
Fraser, ademais, nenhuma dimensão do racismo é completamente um efeito
indireto da outra (...). Nenhuma delas pode ser corrigida indiretamente, portanto,
através de remédios endereçados exclusivamente à outra” (FRASER; HONNETH,
2003, p. 23).
O mais interessante, no entanto, é a discussão empreendida pela professora
no que tange à classe e à sexualidade depreciada. Segundo ela, classe também
pode ser entendida como bidimensional o tipo ideal economicista, anteriormente
invocado com propósitos heurísticos, ocultaria algumas complexidades do mundo
real. É que os danos de misrecognition originados como subprodutos de
maldistribution podem, com o tempo, desenvolver vida própria e se tornarem
suficientemente autônomos, exigindo remédios independentes de reconhecimento.
O exemplo típico é o da “cultura da pobreza” (tão reproduzida no Brasil), atitude
cultural que rebaixa os pobres ou trabalhadores sugerindo que eles têm o que
merecem. As mesmas observações poderiam ser feitas com relação à sexualidade,
entendida enquanto categoria bidimensional. As injustiças econômicas sofridas por
gays e lésbicas, originadas em princípio como subprodutos da subordinação de
status, atualmente possuem um peso próprio inegável, pedindo reparações
específicas de redistribuição.
Em suma, mesmo uma categoria econômica aparentemente unidimensional
como “classe” possui um componente de status e, nesse sentido, faz-se necessário
observar cuidadosamente a dinâmica de reconhecimento da classe no processo de
25
luta por redistribuição. Por outro lado, mesmo uma categoria de status
aparentemente unidimensional como “sexualidade” possui um componente
distributivo e, portanto, é preciso atentar à dinâmica distributiva das contendas
sexuais no processo de luta por reconhecimento. Por isso, Fraser acentua que
Para propósitos práticos, (...) virtualmente todos os eixos de subordinação
do mundo real podem ser tratados como bidimensionais. Virtualmente todos
implicam tanto maldstribution quanto misrecognition em formas nas quais
cada uma dessas injustiças têm algum peso independente, quaisquer que
sejam suas raízes últimas (FRASER; HONNETH, 2003, p. 25).
Pelas observações acima, nota-se que a pretensão de Fraser é dar conta não
apenas das injustiças de gênero ou de “raça”. Com efeito, o diagnóstico dilemático
não se restringe ao feminismo ou ao movimento negro, mas abrange todo o
movimento social progressista (Cf. FRASER, 2005a, p. 299-300) bem como a
solução por ela proposta e discutida adiante. Ocorre que uma discussão mais
próxima da questão de gênero, além de facilitada em virtude dos escritos e energias
despendidas por Fraser em relação ao tema, pode servir de indicativo quanto ao
acerto dos problemas levantados e soluções identificadas.
Portanto, uma questão fundamental é saber se o feminismo, enquanto
proposição de política de gênero por excelência, atingiu historicamente a
autoconsciência dessa bivalência/bidimensionalidade (e do seu caráter
presentemente dilemático). Verificar isso implica trilharmos os caminhos do
feminismo contemporâneo, pelo menos desde o do final do século passado. É lá que
poderemos enxergar a versão feminista do dilema da redistribuição-reconhecimento.
2.3 Um dilema na rebentação: a onda feminista do século XX
É relativamente tranqüilo o consenso entre as pensadoras feministas quanto
ao que se convencionou denominar ondas do feminismo, pelo menos no que refere
à vitrine mundial desse movimento, os Estados Unidos da América (Cf. FRASER,
2005a, p. 295; HENRY, 2004, p. 52-53; SANDERS, 2006, p. 15; THORNHAM, 2006,
p. 25).
26
Entre as décadas de 60 e 70 do século XX, grupos de mulheres norte-
americanas intentaram resgatar a luta feminina contra a opressão, influenciadas pelo
clima do movimento pelos direitos civis (este impulsionado pela retórica do poder
negro). Para a grande maioria das envolvidas, a idéia de união e luta conjunta das
mulheres parecia excitante e, de certo modo, sem muitos precedentes não que
elas ignorassem as lutas historicamente anteriores, mas as consideravam sem muita
relevância para as vidas e visões políticas das mulheres que vivenciavam a guerra
fria. Com a evolução do movimento, entretanto
(…) os movimentos anteriores das mulheres e suas líderes crescentemente
passaram a ser vistos como o precedente histórico e político do novo
feminismo (...). Retornando ao século dezenove e início do século vinte para
estabelecer suas raízes históricas, as feministas do final da década de 1960
criaram uma estrutura geracional entre as duas eras do feminismo,
classificando-as como dois momentos em um mesmo movimento: a primeira
e a segunda onda do feminismo dos EUA (HENRY, 2004, p. 52-53, grifo da
autora).
A formação da primeira onda do feminismo, ou o início do feminismo
moderno, foi localizada por volta do final do século XVIII, com o lançamento de
Defesa dos direitos da mulher (1792) de Mary Wollstonecraft. Nessa época inicial,
entrecortada por manifestos pela liberação e momentos reacionários, os nomes do
feminismo estiveram em sua maioria voltados para questões específicas, tais como
a educação das meninas ou a custódia das crianças, apenas timidamente salvo
raras exceções tocando as questões amplas sobre os direitos das mulheres (Cf.
SANDERS, 2006, p. 23-24).
Por outro lado, o surgimento da segunda onda do feminismo apontava a
complexidade das preocupações que ocupariam as mulheres ao longo da parte final
do século XX. Assinalando o individualismo do feminismo anterior, as teóricas dessa
era evidenciavam o seu ponto focal duplo: as mulheres constituíam um grupo social
oprimido e o corpo feminino necessitava de autonomia sexual, pois esse era o local
primário daquela opressão. Daí a necessidade de conectar a experiência imediata e
subjetiva das mulheres com uma agenda política e visão de totalidade (Cf.
THORNHAM, 2006, p. 27).
É nessa segunda onda do feminismo que Nancy Fraser identifica três fases
momentos cuja compreensão permitiria identificar uma versão de gênero para o
27
dilema da redistribuição e reconhecimento. Necessária, portanto, uma discussão
mais de perto dessas etapas.
Quando eclodiu a segunda onda feminista, os países centrais do capitalismo
tanto na Europa quanto na América do Norte ainda colhiam os frutos da era de
prosperidade que se seguiu ao término das Grandes Guerras Mundiais. Não à toa,
Hobsbawm chamou as décadas seguintes à queda de Hitler de anos dourados. Com
as ferramentas do dirigismo keynesiano, as nações ricas aparentemente haviam
resolvido o problema das oscilações mercadológicas e incorporado os movimentos
dos trabalhadores, garantindo o pleno emprego para os homens. Foi a era da
construção do Estado de bem-estar social (Cf. FRASER, 2005a, p. 297;
HOBSBAWM, 1995, p. 257-258).
Mesmo assim, a década de 60 assistiu à explosão de movimentos sociais
contestatórios. Em primeiro lugar, os radicalismos juvenis que se opunham
inicialmente à Guerra do Vietnã e à segregação racial. Posteriormente esses
movimentos questionaram aspectos centrais da modernidade que a social-
democracia havia naturalizado, tais como a repressão sexual, o sexismo, a
heteronormatividade, o consumismo, a burocracia, entre outros. Contudo, o
feminismo radical de então “mantinha uma relação ambivalente com a social-
democracia”, pois se por um lado “rejeitou o étatisme dessa democracia e sua
tendência (...) a marginalizar divisões sociais outras que não a de classe e
problemas sociais outros que não os de redistribuição”, concomitantemente “a
maioria das feministas pressupunha aspectos-chave do imaginário socialista como
base para projetos mais radicais” (FRASER, 2005a, p. 298).
Com efeito, Astrid Henry confirma que outros movimentos de esquerda dessa
época criticavam o feminismo por não ser radical o suficiente em virtude de seu foco
no sexo ao invés da classe. Até mesmo por isso, as mentoras da segunda onda se
postaram em oposição aos aspectos mais conservadores da primeira, numa espécie
de tentativa de legitimar o novo movimento aos olhos dos seus contemporâneos de
ativismo social (Cf. HENRY, 2004, p. 55).
Dessa forma, a primeira fase da segunda onda do feminismo, mais do que
solapar as bases do Estado de bem-estar, procurou transformá-lo em uma força
contra a dominação masculina. Porém, a social-democracia passou à defensiva
após o ressurgimento das ideologias liberais de livre mercado (neoliberalismo) com
a queda do socialismo soviético. Criticado em várias frentes, o welfare state não
28
tinha mais estofo para servir de ponto de partida para as reivindicações feministas
de fins do século XX.
A fase dois da segunda onda, portanto, se inicia com a translação das
preocupações feministas, que se deslocaram da anterior aproximação entre gênero
e classe (ou a questão da luta contra opressão das mulheres e o imaginário
socialista) para o tema do reconhecimento da diferença (Cf. FRASER, 2005a, p.
298). Com efeito,
A afirmação feminista cultural da diferença das mulheres (...) tomou lugar
não apenas no feminismo lésbico. Psicólogos, sociólogos e educadores
inspirados pelo feminismo nos anos setenta geraram um novo paradigma da
diferença das mulheres que fora extraído e estendera o feminismo cultural.
Investigações psicológicas da diferença das mulheres (…) tinham se
tornado pela metade dos anos 1980 a forma dominante tanto do feminismo
erudito quanto do popular (GERHARD, 2001, p. 164)
Essa nova linguagem do movimento feminista voltou-se para o combate aos
padrões antropocêntricos de hierarquias e valorações culturais, não como nas outras
fases (em que tal preocupação permeava a teorização e o ativismo), mas enquanto
projeto autônomo de luta. Fraser esclarece que, se conectada ao projeto anterior de
emancipação econômica das mulheres, esta ideação teria positivamente
aprofundado a visão de justiça social do feminismo, abrangendo redistribuição e
reconhecimento num único e enriquecido paradigma. Mas, infelizmente, ocorreu
justamente uma subordinação das lutas econômicas às culturais e, assim,
(...) a virada para o reconhecimento encaixou-se ordenadamente com um
neoliberalismo hegemônico que desejava nada mais que reprimir toda a
memória do igualitarismo social. O resultado foi uma trágica ironia histórica
(…) nós trocamos um paradigma truncado por outro um economicismo
truncado por um culturalismo truncado (FRASER, 2005a, p. 299).
Na visão de Fraser é dever de todas as feministas uma revisitação da relação
entre as políticas de redistribuição e de reconhecimento, ainda mais diante das
vitórias neoliberais que progressivamente retiraram a segurança material de diversas
camadas populacionais através de cortes nos sistemas públicos de seguridade (Cf.
FRASER, 2005a, p. 303). É que o deslumbramento feminista no embate contra a
dominação cultural masculina teve seus equivalentes nos demais movimentos
sociais. E essa mentalidade pós-socialista desempenhou importante papel na
29
perplexidade e paralisia argumentativa desses ativismos perante o avanço do
neoliberalismo.
No entanto, ao tentar cumprir aquele dever, as feministas se deparam com os
mesmos problemas levantados pela autora em 1995. Note-se que a própria história
da segunda onda do feminismo o conduziu a essa encruzilhada, manifestada na
forma de um dilema entre redistribuição e reconhecimento, aqui em sua versão
feminista: “como podem as feministas lutar simultaneamente para abolir a
diferenciação de gênero e para valorizar a especificidade de gênero?” (FRASER,
1995, p. 80).
2.4 Soluções para um dilema
Possíveis soluções para o dilema redistribuição-reconhecimento, inclusa aqui
a sua versão de gênero (mas também suas versões de raça, de orientação sexual,
de nacionalidade, etc.), precisam então dar conta do desafio teórico-prático
levantado por Fraser. Ela mesma enfrentou o problema e foi afirmado que sua
teoria da justiça nasceu desse esforço de abarcar em um único arcabouço teórico
redistribuição e reconhecimento, política de classe e de identidade.
A questão, porém, não é simples. Tal projeto implica graves dificuldades em
vários campos de investigação a filosofia moral, a teoria social, a teoria política e
mesmo a política prática. Alerta quanto a esses obstáculos, Fraser expõe o itinerário
filosófico que precisa percorrer:
Na filosofia moral (...) a tarefa é formular uma concepção abrangente de
justiça que possa acomodar tanto as reivindicações defensáveis por
igualdade social quanto as reivindicações defensáveis por reconhecimento
da diferença. Na teoria social (...) a tarefa é conceber uma explicação da
sociedade contemporânea que possa acomodar tanto a diferenciação entre
classe e status quanto a sua mútua imbricação. Na teoria política (...) a
tarefa é pré-figurar um conjunto de arranjos institucionais e reformas
políticas que possam remediar tanto maldistribution quanto misrecognition,
ao tempo em que minimizam as interferências mútuas que provavelmente
surgirão quando as duas espécies de reparação forem buscadas
simultaneamente. Na política prática, finalmente, a tarefa é fomentar o
engajamento democrático em meio às divisões atuais para construir uma
orientação programática abrangente que integre o melhor da política de
redistribuição com o melhor da política de reconhecimento (FRASER;
HONNETH, 2003, p. 26-27).
30
Inicialmente, portanto, é indispensável o exame das dimensões filosófico-
morais desse projeto – uma questão chave é saber se paradigmas de justiça,
usualmente alinhados com a ‘moralidade’, podem lidar com reivindicações por
reconhecimento da diferença ou se é necessário, ao contrário, uma virada para a
‘eticidade’ (Cf. FRASER, 2001, p. 22). Para esse exame, Fraser precisa abandonar a
consideração política da redistribuição e do reconhecimento enquanto paradigmas
populares de justiça, retomando-os como categorias filosóficas normativas (Cf.
FRASER; HONNETH, 2003, p. 27). A partir daí, veremos como ela cumpre cada
uma das tarefas indicadas.
2.4.1 Problemas em filosofia moral
Consoante a própria Fraser, pelo menos quatro questões cruciais de filosofia
moral surgem em qualquer tentativa de integrar redistribuição e reconhecimento: 1)
investigar se reconhecimento é uma questão de justiça ou uma questão de auto-
realização; 2) precisar se justiça distributiva e reconhecimento constituem
efetivamente dois paradigmas normativos distintos, ou pode algum deles ser
subsumido ao outro; 3) saber como é possível separar as reivindicações justificadas
por reconhecimento daquelas que são injustificadas; e 4) estabelecer se a justiça
requer o reconhecimento do que é distintivo em grupos ou indivíduos ou se é
suficiente o reconhecimento de nossa humanidade comum (Cf. FRASER;
HONNETH, 2003, p. 27).
A primeira questão surge das distinções tipicamente empregadas em filosofia
moral entre questões de justiça e questões da boa vida. As primeiras diriam respeito
à correção (ou ao dever) e as segundas se refeririam ao tema do bem ou da vida
boa, entendida enquanto auto-realização. Johan Brännmark (2006) ensina que um
modo comum de distinguir teorias éticas é sublinhar o papel que o bem nelas
desempenha:
Em teorias teleológicas as ões são corretas em razão do modo pelo qual
contribuem para o bem, seja, como no caso do utilitarismo, porque
contribuem para o bem comum, seja, como é o caso das teorias da auto-
realização como as dos teóricos antigos da virtude ou dos Hegelianos (...),
porque contribuem (...) para o florescimento do agente. Deontologistas
31
rejeitam esta ligação direta entre o correto e o bom (BRÄNNMARK, 2006, p.
153).
Nesse sentido, ao passo que a deontologia trata conceitos deônticos de
“obrigação”, “direito” e “dever” como as preocupações morais centrais, teóricos da
virtude sustentam que noções como “excelência” e “admirável” são mais
importantes, pois estão mais preocupados com os estados internos do caráter e da
motivação. Embora “deontologistas (...) possam também estar preocupados com o
caráter moral, sua preocupação é derivativa: o caráter importa apenas por fazer as
pessoas mais inclinadas a promover o bem ou seguir regras morais” (LAFOLLETTE,
2000, p. 10).
A estudiosa Paula Fernandes Lopes igualmente oferece úteis esclarecimentos
acerca da oposição entre ética do dever e ética da boa vida. Ensina que as teorias
baseadas na noção de dever predominaram ao longo da modernidade, quando as
investigações éticas centradas no bem foram acusadas de estarem comprometidas
com pressupostos metafísicos e religiosos infundados. Além disso, para os modelos
éticos deontológicos
(...) o que determina a validade moral das ações independe de
considerações acerca do bem do agente, podendo inclusive ser contrário a
este. O dever aparece à pessoa como uma lei, externa ao bem da pessoa
(LOPES, 2005, p. 10).
Ou seja, concepções deontológicas sustentam que a produção do bem não é
a única consideração fundamental moralmente relevante. De fato, “pode ser
permitido, e a mesmo exigido, que os agentes não maximizem o bem”
(MCNAUGHTON; RAWLING, 2006, p. 424).
De outra parte, as chamadas teorias éticas da boa vida concedem ao bem do
agente um papel relevante na determinação do que é exigido pela moral. Nesses
modelos a compreensão do ser ético encontra-se relacionada ao bem do agente, a
sua boa vida a motivação para o ser ético é interna ao (bem do) próprio indivíduo.
Ou seja, “é tendo o seu próprio bem em vista que o sujeito age de acordo com a
moral, que desse modo não é nunca considerada contrária ao bem do agente”
(LOPES, 2005. p. 11).
Essas distinções são importantes para que se possa entender a oposição
detalhada por Fraser em seu artigo Recognition without Ethics? (2001), no qual
32
procura afastar a compreensão do reconhecimento da diferença como questão de
auto-realização. Ocorre que “a maioria dos filósofos alinham a justiça distributiva
com a Moralität (moralidade) kantiana e o reconhecimento com a Sittlichkeit
(eticidade) hegeliana” (FRASER, 2001, p. 22). Em tese, normas de justiça seriam
universalmente vinculadoras, valendo independentemente dos compromissos dos
sujeitos com esquemas valorativos específicos. De outra parte, reivindicações por
reconhecimento da diferença dependeriam de horizontes de valor historicamente
específicos (não-universalizáveis), pois envolveriam a ponderação qualitativa do
mérito relativo das várias práticas, traços e identidades culturais.
Disputas recentes no campo da filosofia moral giram em torno justamente da
relativa importância dessas duas diferentes ordens de normatividade:
Liberais e filósofos morais deontológicos insistem que o correto tem
prioridade sobre o bom. Para eles, por conseguinte, as demandas de justiça
ultrapassam as alegações da ética. Comunitaristas e teleologistas
respondem que a noção de uma moralidade universalmente vinculadora
independente de qualquer idéia do bem é conceitualmente incoerente.
Preferindo explicações ‘densas’ da experiência moral às ‘fluidas’, eles
colocam os reclames substantivos de valores culturalmente específicos da
comunidade acima dos apelos abstratos à Razão ou Humanidade
(FRASER, 2001, p. 22).
Não surpreende que os partidários da correção (ou do dever, da moralidade)
freqüentemente subscrevam modelos distributivos de justiça, encarando-a como
uma questão de equidade. Buscam então a eliminação de disparidades injustificadas
entre as expectativas de vida dos atores sociais, apelando para padrões imparciais
que não prejulguem as diversas concepções de bem desses mesmos atores.
Contrariamente, defensores do bem (ou da boa vida, da eticidade) tendem a rejeitar
abordagens distributivas, acusando-as de formalismo vazio. Por enxergarem a
eticidade como uma questão da boa vida, procuram a promoção das condições
qualitativas do que entendem como florescimento humano.
Fraser está prontamente disposta a aceitar a distribuição como pertencente
ao lado da moralidade nessa divisão. Também admite que, à primeira vista, o
reconhecimento parece pertencer à eticidade. Em razão disso, não estranha que os
deontologistas rejeitem os reclames pelo reconhecimento da diferença como
violações da neutralidade liberal e concluam que a justiça distributiva exaure toda a
moralidade política. Da mesma forma, não se surpreende com a aliança dos teóricos
do reconhecimento a favor da eticidade e contra a moralidade, e nem com a sua
33
conclusão de que o reconhecimento exige juízos de valor qualitativos que excedem
as capacidades dos modelos distributivos.
Nessas discussões, as partes parecem assumir que a distribuição pertence à
moralidade e o reconhecimento à eticidade, sem acordo possível. Fraser, por sua
vez, pretende justamente desafiar essa suposição, pois caso essa oposição esteja
irremediavelmente correta os reclames por redistribuição e por reconhecimento
jamais poderão ser coerentemente combinados. Na verdade, quem pretender fazê-lo
estará se arriscando à esquizofrenia filosófica (Cf. FRASER, 2001, p. 23).
A autora, no entanto, intenta afastar essa presunção de incompatibilidade e,
com isso, sustentar a possibilidade de integrar redistribuição e reconhecimento sem
sucumbir à esquizofrenia. A estratégia fraseriana é construir a política de
reconhecimento sem que ela resvale prematuramente para a eticidade, ou seja,
conceber as reivindicações por reconhecimento como reclames por justiça, no
âmbito de uma compreensão expandida de justiça. O efeito inicial seria “recuperar a
política do reconhecimento para a Moralität e assim resistir à virada para a eticidade”
(FRASER, 2001, p. 23). Mas o somente. Importa ainda sugerir meios de adiar
tanto quanto possível a avaliação ética, nos casos em que ela se fizer inevitável.
O ponto chave dessa estratégia seria romper com a teorização padrão acerca
do reconhecimento, o modelo de identidade. Nessa visão, o que precisa ser
reconhecido é justamente a identidade cultural específica de um grupo.
Misrecognition consistiria na depreciação de uma identidade por uma cultura
dominante com conseqüente dano ao “senso de eu” dos membros do grupo. O
remédio para tal injustiça exigiria que os membros do grupo dessem nova forma a
sua identidade coletiva, produzindo uma cultura de auto-afirmação. Ou seja, política
de reconhecimento seria sinônimo de política de identidade.
Ocorre que o modelo de identidade carrega consigo diversas dificuldades.
Uma vez que ele encara a negação de reconhecimento como dano à identidade,
acaba por enfatizar a estrutura psíquica em detrimento das instituições sociais e da
interação social abrindo espaço para que a mudança social possa ser substituída
por formas intrusivas de engenharia de consciência. Ora, se o que deve ser
reconhecido é a identidade grupal específica, por meio da celebração de uma
identidade coletiva (autêntica, auto-afirmadora e autogerada), uma pressão moral é
posta sobre os membros individuais para que a ela se amoldem:
34
O resultado é freqüentemente impor uma identidade de grupo única,
drasticamente simplificada, que nega a complexidade das vidas das
pessoas, a multiplicidade de suas identificações e as pressões cruzadas de
suas várias afiliações. Em acréscimo, o modelo reifica a cultura. Ignorando
os fluxos transculturais, trata a cultura como agudamente delimitada,
ordenadamente separada e não-interativa. Como resultado, tende a
promover o separatismo e o enclave de grupo ao invés da interação
transgrupal. Negando a heterogeneidade interna, ademais, o modelo de
identidade obscurece as lutas dentro dos grupos sociais pela autoridade, na
verdade pelo poder para representá-los. Conseqüentemente, ele mascara o
poder de frações dominantes e reforça a dominação intragrupal. Em geral,
então, o modelo de identidade entrega-se muito facilmente a formas
repressivas de comunitarismo (FRASER, 2001, p. 24, grifo da autora).
A proposta de Fraser é tratar o reconhecimento como uma questão de status
social. Por conseguinte, não seria a identidade específica de grupo que mereceria
reconhecimento, mas o status dos membros do grupo enquanto parceiros plenos na
interação social. Misrecognition equivaleria a subordinação de status, entendida no
sentido de ser/estar impedido de participar como um igual (peer) na vida social. A
política de reconhecimento deixa então de ser sinônimo de política de identidade,
pois objetiva sobrepujar a subordinação por meio do estabelecimento do grupo
injustiçado como membro pleno da sociedade.
Para tanto, torna-se imprescindível o exame dos padrões institucionalizados
de valoração cultural quanto aos seus efeitos sobre a importância relativa dos atores
sociais. Se esses padrões constituem os atores enquanto pares, capazes de
participação em de igualdade com os demais, pode-se falar de reconhecimento
recíproco ou igualdade de status. Se, ao contrário, constituem alguns atores como
inferiores, excluídos, completamente outros ou simplesmente invisíveis, restam
caracterizados misrecognition e subordinação de status. No modelo de status, o
escopo central é precisamente desintitucionalizar os padrões que obstaculizam a
paridade de participação na vida social, substituindo-os por outros que a fomentem.
Parece claro que a proposição fraseriana escapa de dificuldades que assolam
o modelo de identidade. Em primeiro lugar, evita a essencialização das identidades,
pois rejeita a visão do reconhecimento como valorização da identidade grupal. Como
se concentra nos efeitos das normas institucionalizadas sobre as capacidades para
a interação, resiste à tentação da reengenharia de consciência. Em acréscimo,
valoriza as interações entre grupos e evita a reificação da cultura, sem negar sua
importância política. Contudo, a mais importante vantagem do modelo para sua
autora é que ele constrói o reconhecimento de modo a não atribuir essa categoria à
35
eticidade, dando-lhe uma explicação deontológica. Dessa forma, “liberta a força
normativa das reivindicações por reconhecimento da dependência direta de um
específico horizonte substantivo de valor” (FRASER, 2001, p. 25), sendo compatível
com a prioridade do “correto” sobre o “bom”.
Isso tem importância crucial, pois é comum que o reconhecimento seja visto
como uma questão de auto-realização. Por exemplo, os mais proeminentes teóricos
contemporâneos do reconhecimento, Charles Taylor e Axel Honneth, concordam
que ser reconhecido por outro sujeito é condição necessária para alcançar uma
subjetividade plena e sem distorções e também que negar o reconhecimento a
alguém é retirar-lhe um pré-requisito básico para o florescimento humano. Para
Taylor,
(...) nossa identidade é parcialmente modelada pelo reconhecimento ou por
sua ausência, freqüentemente por misrecognition dos outros, e assim uma
pessoa ou grupo de pessoas pode sofrer dano real, distorção real, se as
pessoas ou a sociedade que os circundam lhes construírem uma imagem
restrita, humilhante ou desprezível. (TAYLOR, 1994, p. 25, grifo do autor).
Em razão disso, não surpreende o alerta tayloriano de que misrecognition
possa causar lesão ou se tornar uma forma de opressão, aprisionando alguém em
um modo de ser falso, distorcido e reduzido. Ou ainda, que o devido reconhecimento
não seja apenas uma cortesia que devemos às pessoas, mas uma necessidade
humana vital (Cf. TAYLOR, 1994, p. 25-26). Honneth não diverge muito dessa visão:
Porque a experiência do reconhecimento social representa uma condição
da qual depende o desenvolvimento da identidade humana, sua negação,
i.e, o desrespeito, é necessariamente acompanhado pelo senso de uma
perda ameaçadora de personalidade (HONNETH, 2007, p. 71-72).
Os dois pensadores, portanto, constroem misrecognition em termos de
subjetividade tolhida e auto-identidade prejudicada. Logo, compreendem a injúria em
termos de eticidade, como embaraço à capacidade do sujeito de alcançar uma vida
boa.
Fraser, por sua vez, insiste que o reconhecimento seja entendido enquanto
questão de justiça. Segundo ela, misrecognition é algo iníquo por consistir em uma
forma de subordinação institucionalizada. Com efeito, isso nega a alguns indivíduos
e grupos a condição de parceiros plenos na interação social simplesmente como
conseqüência de padrões institucionalizados de valoração cultural, em cuja
36
construção não participaram igualmente e que depreciam suas características
distintivas ou as características distintivas a eles atribuídas. Trata-se, portanto, de
uma séria violação da justiça.
No modelo de status, portanto, misrecognition não é nem uma deformação
psíquica e nem mesmo um impedimento ético à auto-realização. É antes ser/estar
impedido de participação em de igualdade na vida social, como decorrência de
padrões de valoração cultural que constituem algumas categorias de atores sociais
como normativas e outras como inferiores. Os exemplos de Fraser são vários: leis
sobre casamento que excluem as parcerias de pessoas do mesmo sexo,
considerando-as (implícita ou explicitamente) como ilegítimas e pervertidas; políticas
de bem-estar social que estigmatizam as mães solteiras como aproveitadoras
sexualmente irresponsáveis; práticas de policiamento que associam determinadas
raças/etnias à criminalidade (Cf. FRASER, 2000, p. 114; FRASER; HONNETH,
2003, p. 30-31).
A partir disso a teórica norte-americana identifica várias vantagens do modelo
de status sobre o da auto-realização. A primeira delas é permitir justificar as
reivindicações por reconhecimento como moralmente vinculantes sob as modernas
condições de pluralismo valorativo. Nessas condições, não há uma única concepção
de “auto-realização” ou “vida boa” que seja universalmente compartilhada. Com
efeito, abordagens que justifiquem as reivindicações por reconhecimento nessas
bases seguramente arriscam-se ao sectarismo. O modelo de status, ao contrário, é
deontológico e não-sectário. Comunga do espírito (tipicamente moderno) de
liberdade subjetiva na confecção de visões pessoais (ou grupais) variadas acerca do
bem, pois não apela a uma específica noção de auto-realização, mas sim a uma
concepção de justiça que possa ser aceita por aqueles com diferentes noções de
vida boa. A norma invocada é a da paridade de participação: misrecognition é
moralmente reprovável por negar a alguns indivíduos e grupos a possibilidade de
participar como iguais na interação social.
Um segundo ponto de superioridade consiste em localizar o erro nas relações
sociais, não na psicologia individual ou interpessoal. Com efeito, aqui misrecognition
é o impedimento externamente manifesto e publicamente verificável à posição de
alguém como membro pleno da sociedade. Abstendo-se da psicologização, o
modelo de status evita identificar misrecognition com distorções internas na estrutura
da autoconsciência dos oprimidos o que seria estar a um passo de culpar as
37
vítimas (acrescentando o insulto à injúria). Igualmente, escapa de identificá-lo com o
preconceito nas mentes dos opressores, o que exigiria para o seu sobrepujamento o
policiamento das crenças uma abordagem antiliberal e autoritária. Obviamente, a
concepção fraseriana não nega que a ausência de reconhecimento possa ter efeitos
ético-psicológicos semelhantes aos explicitados por Taylor e Honneth. No entanto, o
caráter imoral de misrecognition não está na dependência desses efeitos, pois
“alguém pode mostrar que uma sociedade cujas normas institucionalizadas
impedem a paridade de participação é moralmente indefensável, tenha elas
distorcido ou não a subjetividade dos oprimidos(FRASER; HONNETH, 2003, p. 32,
grifo da autora). A preocupação de Fraser é de que a força normativa dos reclames
sociais não seja tomada de empréstimo de fatos psicológicos.
A terceira vantagem seria evitar a visão de que todos possuem igual direito à
estima social, o que tornaria sem sentido a própria noção de estima. Isso parece
decorrer do modelo honnethiano, no qual a estima social figura entre as condições
intersubjetivas para a formação de uma identidade não distorcida. Para Fraser,
todos devem sim ter igual direito a perseguir a estima social sob condições justas de
igual oportunidade. Ou, em outras palavras, ninguém tem direito à estima social no
sentido positivo, mas cada um possui o direito de não ser desfavorecido com base
em classificações de grupo que solapem sua posição como parceiro pleno na
interação social (Cf. FRASER; HONNETH, 2003, p. 32/99).
Por último, o modelo fraseriano facilita a integração das reivindicações por
reconhecimento com as reivindicações por redistribuição de recursos e riqueza, vez
que estabelece o objeto das primeiras no domínio da moralidade deontológica, ou
seja, do universalmente vinculativo, assim como a justiça distributiva. Isso tornaria
possível posicionar redistribuição e reconhecimento sob uma única estrutura
normativa.
É nesse ponto que emerge a segunda questão crucial inicialmente apontada
por Fraser: a da relação entre redistribuição e reconhecimento enquanto temas de
justiça, ou seja, da possibilidade ou não da subsunção de uma das categorias à
outra. A questão da redução possui, então, dois lados a serem considerados.
De uma parte, trata-se de avaliar se as teorias tradicionais da justiça
distributiva podem adequadamente subsumir os problemas de reconhecimento.
Fraser explicitamente afirma que não. Ela admite que muitos teóricos da
redistribuição tentaram acomodar em suas explicações a questão do status
38
menciona expressamente Jonh Rawls e suas “bases sociais do auto-respeito”,
Ronald Dworkin e sua “igualdade de recursos” e, finalmente, Amartya Sen, em
virtude de suas considerações acerca do “senso de eu” e da capacidade de
“aparecer em público sem sentir vergonha” como relevantes para sua abordagem
das capacidades, visão que também “cairia dentro do escopo de uma explicação da
justiça que valoriza a distribuição igual das capacidades básicas” (FRASER;
HONNETH, 2003, p. 99-100, nota 34). No entanto,
A maioria desses teóricos assume uma visão economicista-legalista de
status, supondo que uma justa distribuição de recursos e direitos é
suficiente para impedir misrecognition. De fato, entretanto, (...) nem todo
misrecognition é subproduto de maldistribution, nem de maldistribution mais
discriminação legal. (FRASER; HONNETH, 2003, p. 34).
A feminista cita o interessante exemplo de um banqueiro afro-americano de
Wall Street que não consegue um táxi para transportá-lo, aduzindo que para uma
teoria da justiça lidar com tais situações precisa ir além da distribuição de bens e
direitos e examinar os padrões de valor cultural (Cf. FRASER, 2001, p. 28; FRASER;
HONNETH, 2003, p. 34).
O outro lado da questão seria, então, interrogar se as teorias existentes
acerca do reconhecimento conseguiriam subsumir adequadamente os problemas de
distribuição. E Fraser, ainda uma vez, defende que não. Também reconhece que
alguns dos estudiosos do reconhecimento não ignoram o peso da igualdade
econômica, tentando acomodá-la em suas explicações, mas entende que os
resultados não têm sido satisfatórios. Ela acusa Axel Honneth, por exemplo, de
assumir um ponto de vista culturalista-reducionista da distribuição, por supor que
todas as desigualdades econômicas estão enraizadas em uma ordem cultural que
privilegia alguns tipos de trabalho em detrimento de outros. A afirmação de Honneth
é a seguinte:
Informalmente e institucionalmente, as diferentes posições ocupacionais
estão sujeitas a um sistema hegemônico de valoração que distribui
oportunidades para respeito e atribui níveis de inteligência. (...) esta
distribuição desigual de dignidade social restringe drasticamente a
possibilidade de auto-respeito individual para os grupos ocupacionais mais
simples, primariamente empregados manualmente (HONNETH, 2007, p.
93).
39
De passagens como essa Fraser conclui que Honneth acredita ser possível
impedir maldistribution por meio de uma mudança da ordem cultural. Ela discorda
frontalmente dessa posição, pois está segura de que nem toda maldistribution é
subproduto de misrecognition. Cita, a título exemplificativo, o habilidoso trabalhador
industrial branco que perde o emprego em virtude do fechamento da brica onde
laborava, resultante de uma fusão corporativa especulativa. Aqui a injustiça
econômica pouca relação teria com a falta de reconhecimento, sendo em verdade a
conseqüência de imperativos intrínsecos a uma ordem especializada de relações
econômicas cuja razão de ser é a acumulação de lucros. Portanto, “para dar conta
de tais casos, uma teoria da justiça deve alcançar além dos padrões de valoração
cultural para examinar a estrutura do capitalismo” (FRASER; HONNETH, 2003, p.
35), investigando se os mecanismos econômicos de alguma forma impedem da
paridade de participação na vida social.
Até a presente data, portanto, as elaborações teóricas que pretendem
subsumir uma das categorias a outra falharam. o satisfaz afirmar simplesmente
que o reconhecimento é um bem a ser distribuído, ou ainda que todo padrão
distributivo expressa uma matriz subjacente de reconhecimento meras tautologias
que implicitamente assumem a coincidência dos conceitos em jogo e acabam por
escamotear a problemática, reduzindo-a a uma questão semântica. Diante desse
insucesso, ou seja, na ausência de uma genuína redução, a alternativa restante é
sustentar uma concepção bidimensional da justiça. Tal visão enfrentará distribuição
e reconhecimento como perspectivas ou dimensões distintas da justiça, sem reduzir
uma à outra, abrangendo-as dentro de um arcabouço mais amplo (Cf. FRASER,
2001, p. 29; FRASER; HONNETH, 2003, p. 35;).
Como obliquamente referido, o núcleo normativo da concepção fraseriana
de justiça é a noção de paridade de participação. Segundo essa norma, “a justiça
requer arranjos sociais que permitam a todos os membros (adultos) da sociedade
interagir uns com os outros como pares” (FRASER, 2001, p. 29; FRASER;
HONNETH, 2003, p. 36). Para Fraser, este seria tanto o mais amplo sentido de
justiça quanto uma interpretação radical-democrática do princípio do igual valor
moral das pessoas. Sob essa ótica, para vencer a injustiça seria necessário
desmantelar obstáculos institucionalizados que impedem alguns de participar como
parceiros plenos na interação social (Cf. FRASER, 2005b, 2007c).
40
A paridade de participação, além da exigência de padrões de igualdade legal
formal, também possui uma condição objetiva e uma condição intersubjetiva, ambas
necessárias a sua consecução.
A primeira diz respeito à distribuição de recursos materiais, que deve ser tal
de modo a assegurar aos participantes do diálogo social independência e voz. Isso
exclui todas as formas e níveis de dependência econômica e desigualdade que
comprometam a paridade de participação. Logo, quaisquer arranjos sociais que
institucionalizem a pobreza, a exploração e as disparidades brutais de riqueza,
renda e tempo livre são inadmissíveis, precisamente porque negam a algumas
pessoas os meios e oportunidades de interagir com os outros como iguais.
A segunda se vincula a padrões institucionalizados de interpretação e
avaliação que expressem respeito igual a todos e garantam oportunidades iguais no
alcance da estima social. Excluídas estão as normas institucionalizadas que
sistematicamente depreciam algumas categorias de pessoas e as qualidades a elas
associadas, bem como os padrões de valoração cultural que negam a alguns o
status de parceiros plenos no convívio social seja por sobrecarregá-los com uma
excessiva “diferença” ou por falharem em reconhecer sua distinção (Cf. FRASER;
HONNETH, 2003, p. 36).
A abordagem traz à baila tanto as preocupações tradicionalmente associadas
à teoria da justiça distributiva, voltadas para a estrutura econômica e para os
diferenciais econômicos de classe, quanto aquelas recentemente salientadas na
filosofia do conhecimento, voltadas para a ordem de status da sociedade e para as
hierarquias culturais de status. Nesse sentido, abrange redistribuição e
reconhecimento em uma concepção bidimensional de justiça orientada pela norma
da paridade de participação. Logo, avança bastante no caminho da integração
conceitual, vez que não reduz as duas dimensões da justiça uma à outra e, ainda,
submetendo ambas a uma mesma e abrangente norma, as coloca dentro de um
único e integrado arcabouço.
Com essa visão alargada de justiça em mente, é possível partir para a
terceira questão ético-filosófica de como precisar as reivindicações por
reconhecimento que merecem acolhimento. Para tanto, é indispensável o
estabelecimento de critérios e/ou procedimentos que separem as pretensões
desejáveis das inaceitáveis – afinal, alerta Fraser, nem todas são justificáveis (o que
também se aplica aos clamores redistributivos).
41
Na verdade, os teóricos da justiça distributiva muito delinearam critérios
dessa ordem, tais como a maximização da utilidade ou as normas procedimentais da
ética do discurso. Entretanto, os estudiosos do reconhecimento têm sido mais lentos
ao encarar esse problema.
Fraser cita, a propósito, a teoria honnethiana, que estaria sujeita a graves
objeções nesse ponto. Na leitura fraseriana, Honneth defende que todas as pessoas
precisam ter sua distinção reconhecida para desenvolverem a auto-estima, a qual
seria ingrediente essencial de uma auto-identidade não-distorcida. Disso ela deduz
que seriam defensáveis quaisquer reivindicações que melhorassem a auto-estima
do reclamante. Nesse caso, mesmo identidades racistas mereceriam algum rito,
afinal elas possibilitariam, por exemplo, que europeus e euro-americanos “brancos”
pobres mantivessem seu senso de valor próprio pelo contraste com seus supostos
inferiores. E, embora o preconceito possa ter seus benefícios psicológicos, casos
assim são suficientes para negar à auto-estima melhorada o caráter de padrão
justificador das reivindicações por reconhecimento (Cf. FRASER; HONNETH, 2003,
p. 38).
A alternativa da feminista norte-americana é empregar a paridade de
participação como padrão avaliativo, aplicando um único critério para as
reivindicações por justiça, sejam elas por redistribuição ou por reconhecimento.
Manejando esse instrumental teórico, seria possível separar não somente as
demandas por justiça desejáveis das indesejáveis, mas também os próprios
remédios propostos para a correção das injustiças.
Por um lado, os que reivindicam redistribuição precisarão mostrar que os
arranjos sociais existentes os impedem de participar como iguais na interação social,
pela negação da condição objetiva da paridade de participação. Além disso, deverão
dar mostras de que as reformas econômicas que advogam fornecerão as condições
objetivas para a plena participação daqueles então negados, sem que isso introduza
ou exacerbe disparidades injustificáveis em outras dimensões. De outra parte, os
reivindicantes do reconhecimento deverão mostrar que os padrões culturais
institucionalizados de valoração solapam a condição intersubjetiva da paridade.
Outrossim, precisarão evidenciar que as mudanças institucionais sócio-culturais que
pretendem fomentarão as necessárias condições intersubjetivas sem
injustificadamente criar ou piorar outras disparidades.
42
Esse ponto pode ser esclarecido através de um exemplo dado pela própria
Fraser, que aplica a paridade de participação à controvérsia do casamento de
pessoas do mesmo sexo. Em diversos países (e podemos aqui incluir o Brasil), a
institucionalização na lei civil de uma norma cultural heterossexista bloqueia a
paridade de participação de gays e lésbicas. Quando muito, cria-se um segundo
sistema legal (algum tipo de união civil), paralelo aos status legal da parceira
doméstica, que falha em conferir todos os benefícios materiais e simbólicos do
casamento, ao tempo em que mantém um status privilegiado para os casais
heterossexuais. Reformas desse tipo, embora “representem um claro avanço além
das leis existentes e possam significar apoio em termos táticos, como medidas
transitórias, elas não preenchem as exigências da justiça, entendida via modelo de
status (FRASER; HONNETH, 2003, p. 40-41). A reivindicação pela
desintitucionaliziação do padrão valorativo heteronormativo e sua substituição por
outro que fomente a paridade de participação, portanto, merece acolhimento. Isso
poderia ser conseguido pelo reconhecimento das uniões homossexuais nos mesmos
termos das heterossexuais, via legalização do casamento de pessoas de mesmo
sexo. Ou, ainda, pela desinstitucionalização do casamento heterossexual,
desacoplando benefícios como pensões ou seguros de saúde da condição marital e
colocando-os em outras bases, como cidadania ou residência.
O importante é que se perceba a dupla exigência de justiça instaurada pela
paridade de participação. Num primeiro vel, intergrupal, ela fornece uma medida
avaliativa dos efeitos dos padrões institucionalizados de valoração cultural sobre a
relativa importância das minorias vis-à-vis as maiorias. Permite, assim, detectar a
existência de um injusto comunitarismo da maioria. Em segundo lugar, no nível
intragrupal, serve para avaliar os efeitos internos das práticas de minoria para as
quais o reconhecimento é reivindicado.
Outro aspecto valioso, que se deduz do exemplo acima, é o caráter não-
monológico da paridade de participação. Apenas pela prática argumentativa e pela
ponderação de interpretações rivais os efeitos das injustiças e o sucesso de seus
respectivos remédios podem ser enxergados. A norma da paridade deve ser
aplicada dialógica e discursivamente, por meio de processos democráticos de
debate público. Nesse sentido, ela serve como idioma da contestação e deliberação
públicas sobre as questões de justiça “representa o principal idioma da razão
pública, a linguagem preferida para a condução da argumentação política
43
democrática sobre temas tanto de distribuição quanto de reconhecimento”
(FRASER; HONNETH, 2003, p. 43, grifo da autora).
O referido traço dialogal da articulação fraseriana teria a ampla vantagem de
a um tempo excluir visões populistas e autoritárias da política de identidade. As
primeiras atribuiriam unicamente aos sujeitos injustiçados por misrecognition a
determinação de saber se e como seriam adequadamente reconhecidos. As
segundas defenderiam que um filósofo especialista poderia e deveria decidir o que é
necessário para o florescimento humano. Sob a ótica do modelo de status, a
paridade de participação deveria ser aplicada no âmbito de processos democráticos
de deliberação pública com a permanente ressalva de que todo consenso ou
decisão majoritária é falível, revisável e aberto a novos desafios.
Com isso, objetar-se-ia, se atinge uma circularidade: deliberações
democráticas justas acerca dos méritos de reivindicações por justiça exigiram
paridade de participação dos deliberantes. Fraser considera essa circularidade
inevitável e acrescenta:
(...) reivindicações por reconhecimento podem ser justificadas sob
condições de paridade de participação, as quais incluem o reconhecimento
recíproco. A circularidade não é viciosa, contudo. Longe de refletir algum
defeito de conceituação, ela fielmente expressa o caráter reflexivo da justiça
compreendida de uma perspectiva democrática. Na perspectiva
democrática, a justiça não é uma exigência imposta externamente,
determinada acima das cabeças daqueles que ela obriga. Diversamente, ela
vincula somente até o ponto em que seus destinatários possam também
corretamente referir a si mesmos como seus autores (FRASER; HONNETH,
2003, p. 44).
Pelo exposto, não surpreende que a autora sustente a necessidade de abolir
a circularidade não na teoria, mas na prática, por meio da mudança social. Para
tanto, é preciso que sejam levantadas reivindicações de primeira-ordem quanto à
redistribuição e ao reconhecimento, mas também outras, de segunda-ordem, acerca
das condições em que os reclames de primeira-ordem são adjudicados. Em outras
palavras, argüir publicamente a ausência de condições para um debate público
genuinamente democrático expressa a própria reflexividade da justiça democrática
no processo de luta por sua realização prática.
Desse modo, a abordagem de Fraser incorpora um metanível de deliberação
acerca dos processos de deliberação, o que preserva a possibilidade da crítica
radical. Além disso, favorece a paridade nas práticas sociais de crítica, incluindo a
44
deliberação sobre quais as formas de interação deveriam existir. Enfim, por seu
caráter dialogal, possibilita um dinamismo histórico inexistente em outras propostas.
Para dar conta da quarta e última das questões ético-filosóficas cruciais
levantadas no início, a de saber se o reconhecimento deve ser dispensado ao traço
distintivo de cada indivíduo/grupo ou à humanidade comum, Fraser aproveita o
espírito pragmático de sua explicação anterior sobre a justificação dos clamores por
justiça. Com isso, nega que possam ser explicados antecipadamente todos os tipos
de reconhecimento que cada um necessita. Sob a ótica pragmática invocada, o
reconhecimento é mais um remédio para a injustiça social do que a satisfação de
uma necessidade humana geral. Logo, as formas que assumirá dependem do tipo
de misrecognition a ser reparado.
Desse modo, se a violação envolver a negação da humanidade comum, se
fará necessário o reconhecimento universalista. Em outra situação, quando é
negada a distinção própria do indivíduo ou grupo, será preciso o reconhecimento da
especificidade. No primeiro caso, Fraser cita a luta contra o Apartheid na África do
Sul, em que a mais importante reparação consistia precisamente numa cidadania
não-racial; no segundo, lembra das teóricas feministas que afirmam a necessidade,
para eliminar a subordinação das mulheres, de se levar em conta sua capacidade
única e distinta de dar à luz.
Essa posição, que Fraser refere como pragmática, escapa das insustentáveis
restrições presentes em diversas teorias da justiça distributiva que advogam a
limitação do reconhecimento público às capacidades compartilhadas por todos os
seres humanos, excluindo antecipadamente o reconhecimento das especificidades,
sem indagar de sua possível necessidade para a eliminação dos obstáculos à
paridade de participação. Também sai ilesa dos ataques que assolam aquelas
teorias do reconhecimento nas quais está pressuposto ou se defende explicitamente
que todos devam ter sua especificidade reconhecida, falhando em separar as
reivindicações por reconhecimento moralmente sustentáveis das espúrias.
Ademais, a abordagem admite que as necessidades de reconhecimento dos
atores sociais subordinados e dos atores dominantes divergem, só entendendo
como moralmente justificadas as reivindicações que promovam a paridade. Tudo,
portanto, depende do que as pessoas atualmente injustiçadas necessitam para se
tornarem capazes de participar como iguais na vida social. E como asseverado,
isso varia consideravelmente:
45
Em alguns casos, elas podem precisar ser aliviadas do fardo de distinções
excessivamente atribuídas ou construídas. Em outros casos, podem
precisar que seja considerada sua distinção até então sub-reconhecida.
Ainda em outros casos, elas podem precisar mudar o foco para os grupos
dominantes ou favorecidos, expondo a especificidade destes últimos, que
tem sido falsamente colocada como universal. Alternativamente, podem
precisar desconstruir os próprios termos nos quais as diferenças atribuídas
são correntemente elaboradas. Finalmente, elas podem necessitar de todas
as coisas acima, ou de várias delas, em combinação umas com as outras e
em combinação com a redistribuição (FRASER; HONNETH, 2003, p. 47).
Certo é que as necessidades dependerão da natureza dos obstáculos
enfrentados e não poderão ser determinadas por um argumento filosófico abstrato,
mas tão-somente com o auxílio de uma teoria social crítica, normativamente
orientada, empiricamente informada e guiada pelo intento prático de sobrepujar a
injustiça (Cf. FRASER; HONNETH, 2003, p. 47). Isto conduz a temas de teoria
social, a segunda etapa do itinerário fraseriano.
2.4.2 Temas de teoria social
Segundo Fraser, compreender as relações entre maldistribution e
misrecognition na sociedade contemporânea exige teorizar a conexão entre classe e
status no âmbito do capitalismo globalizante. Tal abordagem precisa dar conta da
diferenciação entre classe e status e das interações causais entre eles, bem como
acomodar a um só tempo a mútua irredutibilidade de maldistribution e misrecognition
e o entrelaçamento prático dessas injustiças. Deve ainda ser sensível à história para
ser capaz de explicar porque a gramática dos conflitos sociais assume a forma atual
o recente realce das lutas por reconhecimento, o arrefecimento das lutas
redistributivas e a contraposição que se estabeleceu entre elas.
De início, portanto, são necessárias clarificações conceituais acerca dos
termos classe e status. No sentido fraseriano, o status representa uma ordem de
subordinação intersubjetiva derivada de padrões institucionalizados de valoração
cultural que constituem alguns membros da sociedade como menos que parceiros
plenos na interação. Paralelamente, a classe representa uma ordem de
subordinação objetiva derivada de arranjos econômicos que negam a alguns atores
os meios e recursos para a paridade de participação. Logo, os termos são usados
46
para denotar ordens de subordinação socialmente arraigadas. Nesse quadro, “a
existência, seja de uma estrutura de classe, seja de uma hierarquia de status,
constitui obstáculo à paridade de participação e, logo, uma injustiça” (FRASER;
HONNETH, 2003, p. 49). Além disso, os termos não correspondem exatamente às
distinções populares entre os diversos movimentos sociais, mesmo porque os eixos
de subordinação tomam parte simultaneamente da ordem de status e da estrutura
de classe. Ao contrário, representam ordens analiticamente distintas de
subordinação que tipicamente se cruzam no âmbito dos movimentos sociais.
Pode-se dizer com isso que o status corresponde à dimensão do
reconhecimento, na qual a injustiça paradigmática é misrecognition, e que a classe
corresponde à dimensão distributiva, na qual a injustiça fundamental é
maldistribution. Isso não exclui, naturalmente, a possibilidade das injustiças culturais
estarem acompanhadas das injustiças econômicas ou vice-versa.
Com isso em mente, é possível delinear a contraparte na teoria social da
teoria moral apresentada anteriormente. O ponto central é que cada uma das
dimensões da justiça corresponde a um aspecto analiticamente distinto da ordem
social:
A dimensão do reconhecimento corresponde à ordem de status da
sociedade, e daí a constituição, por padrões socialmente arraigados de
valoração cultural, de categorias de atores sociais culturalmente definidas
os vários status cada um distinguido pelo relativo respeito, prestígio e
estima de que gozam vis-à-vis os outros. A dimensão distributiva, em
contraste, corresponde à estrutura econômica da sociedade, e d a
constituição, por regimes de propriedade e mercados de trabalho, de
categorias de atores economicamente definidas ou classes, distinguidas
pelas suas diferentes fontes de recursos (FRASER; HONNETH, 2003, p. 50,
grifos da autora).
Cada dimensão também corresponde a uma forma analiticamente distinta de
subordinação: a do reconhecimento à subordinação de status; a da redistribuição à
subordinação econômica de classe. Tais correspondências permitem situar o
problema da integração das duas dimensões da justiça no contexto de um amplo
arcabouço sócio-teorético.
Sob essa perspectiva, as sociedades são vistas como campos complexos que
abrangem pelo menos dois modos analiticamente distintos de ordenação social – um
modo econômico, tipicamente institucionalizado nos mercados, e um modo cultural,
expresso em diferentes instituições, entre elas o parentesco, a religião e o direito.
47
Em todas as sociedades essas ordenações estão mutuamente imbricadas, mas
como precisamente se relacionam em uma dada formação social se estão
institucionalmente separadas ou fundidas, se divergem ou coincidem depende da
natureza da sociedade sob consideração. Para exemplificar esse ponto, Fraser
apresenta dois modelos ideal-típicos de sociedade, imaginados com propósito
unicamente heurístico.
O primeiro seria de uma sociedade pré-estatal como as descritas na
literatura antropológica clássica – em que o idioma fundamental das relações sociais
é o parentesco, o qual organiza o casamento, as relações sexuais, os processos de
trabalho e a distribuição de bens, assim como as relações de autoridade,
reciprocidade e obrigação e, por conseguinte, as hierarquias simbólicas de status
e prestígio. Essa única ordenação de relações sociais assegura a integração
econômica e cultural, pela fusão entre estrutura de classe e ordem de status. O
parentesco, enquanto princípio supremo da distribuição, dita a posição de classe.
Como estão ausentes instituições econômicas autônomas, a subordinação de status
se traduz imediatamente em injustiça distributiva – misrecognition impõe diretamente
maldistribution.
O outro modelo seria o de uma sociedade completamente mercantilizada, na
qual a estrutura econômica dita a valoração cultural. O mercado organiza os
processo de trabalho e a distribuição de bens, mas também o casamento, as
relações sexuais, as relações políticas (autoridade, reciprocidade e obrigação) e as
hierarquias simbólicas de status e prestígio. Essa única ordenação de relações
sociais, como no exemplo anterior, assegura a integração econômica e cultural, pela
fusão entre estrutura de classe e ordem de status. Como o mercado é o único e
ubíquo mecanismo de valoração, a posição no mercado dita o status social. Na
ausência de padrões culturais de valoração autônomos, a injustiça distributiva se
traduz imediatamente em subordinação de status isto é, maldistribution impõe
diretamente misrecognition.
Nos dois modelos sociais expostos, não se diferencia ordem econômica de
ordem cultural. Classe e status casam-se perfeitamente, a ponto de que as injustiças
de maldistribution e de misrecognition se convertem uma na outra completamente e
sem resíduo. Por isso, seria possível compreender ambas as sociedades
acompanhando exclusivamente uma única dimensão da vida social.
48
Nas sociedades capitalistas contemporâneas, que interessam mais de perto à
análise fraseriana, existem tanto arenas mercantilizadas, nas quais predomina a
ação estratégica, quanto espaços não-mercantilizados, onde predomina a interação
orientada por valores. Ou seja, a estrutura econômica e a ordem cultural estão
diferenciadas, o que resulta num parcial desacoplamento dos mecanismos
econômicos de distribuição das estruturas de prestígio – um efetivo hiato entre
classe e status.
Com efeito, em nossa formação social a estrutura de classe não espelha
perfeitamente a ordem de status, embora elas se influenciem mutuamente. Isso
ocorre, de um lado, porque o mercado não é o único e definitivo mecanismo de
valoração a posição no mercado não dita o status social. Padrões de valoração
cultural, parcialmente resistentes ao mercado, impedem que as injustiças
distributivas se convertam totalmente em danos ao status. Por outro lado, nenhum
princípio de status, tal como o parentesco, atua como único e definitivo princípio de
distribuição o status o dita a posição de classe. Instituições econômicas
relativamente autônomas impedem que os danos de status se convertam totalmente
em injustiças distributivas. Em suma, nem maldistribution impõe diretamente
misrecognition, nem misrecognition implica diretamente maldistribution (apesar de
certamente essas violações contribuírem uma com a outra).
A conseqüência desse traço da sociedade contemporânea é a
impossibilidade de se inferir diretamente da dimensão econômica da subordinação a
dimensão cultural e vice-versa. Para compreender essa sociedade, uma visão
precisa acomodar diferença, divergência e interação em cada nível, ao tempo em
que captura a irredutibilidade conceitual, a divergência empírica e o entrelaçamento
prático de classe e status, maldistribution e misrecognition. Isso tudo sem reforçar a
atual separação entre política de reconhecimento e política de redistribuição.
Antes de esboçar seu ponto de vista, contudo, Fraser alerta que a categoria
status continua relevante contemporaneamente, apesar da ascensão do contrato na
modernidade. Ela sustenta que as formas atuais de subordinação de status não são
simplesmente vestígios arcaicos pré-capitalistas, mas injustiças intrínsecas à
estrutura social do capitalismo moderno, inclusa sua versão globalizante. Todavia, a
feminista reconhece que essas pressuposições demandam explicações,
especialmente porque a sociedade contemporânea difere profundamente das
sociedades ditas tradicionais, para as quais foi desenvolvida a noção de status.
49
Para analisar essa diferença, a filósofa sugere a retomada daquela sociedade
hipotética governada completamente pelo parentesco, na qual a ordenação cultural
era o modo primário de integração social e a hierarquia de status a forma básica da
distribuição. Os antropólogos que a imaginaram teriam assumido tacitamente cinco
características centrais de sua ordem cultural. Primeiro, essa ordem seria bem
delimitada, pois os contatos interculturais estariam restritos às margens, sem uma
hibridização cultural significativa ou qualquer dificuldade de estabelecer onde uma
cultura acaba e outra se inicia. Segundo, a ordem cultural era institucionalmente
indiferenciada, pois uma única e totalizante instituição (o parentesco) regulava todas
as formas de interação, atuando como padrão único de valoração e fornecendo o
modelo para a ordem de status. Em terceiro lugar, a sociedade era eticamente
monística, com todos os seus membros operando dentro de um único e
compartilhado horizonte de avaliação não existiam subculturas encapsuladas
apoiando horizontes éticos alternativos. Quarto, a ordem cultural estava livre de
contestação, pela ausência das referidas alternativas éticas a partir das quais se
poderia criticar ou contestar o padrão de valoração. Por último, a hierarquia
resultante era considerada socialmente legítima. Conquanto pudessem existir
indivíduos descontentes, não possuíam uma base principiológica para desafiar a
autoridade. Como resultado desse conjunto de caracteres, “a ordem de status
assumia a forma de uma única hierarquia de status estável e toda-abrangente
(FRASER; HONNETH, 2003, p. 55, grifo da autora).
Essas condições, a própria Fraser aduz, não persistem na sociedade
contemporânea. A ordem cultural não está rigidamente delimitada, pois os fluxos
transculturais permeiam os espaços interiores centrais da interação social. Como
fruto das diásporas, migrações, cultura de massa globalizada e esferas públicas
transnacionais, não se pode mais afirmar com certeza onde uma cultura termina e
outra começa. Além disso, a ordem cultural é institucionalmente diferenciada, vez
que não existe instituição suprema ou princípio único que forneça modelo para a
valoração cultural e efetivamente governe todas as interações sociais. Na verdade,
uma multiplicidade de instituições regula uma multiplicidade de campos de ação,
segundo padrões diversos de valoração cultural (alguns incompatíveis entre si).
Ademais, a ordem cultural é eticamente pluralística nem todos os membros
compartilham um horizonte valorativo comum, constituindo desse modo
“comunidades de valor” ou subculturas com horizontes divergentes (ou mesmo
50
incompatíveis) e que são uma fonte extra de complexidade cultural, além da
hibridização e da diferenciação institucional. A combinação das características acima
assegura, então, a disponibilidade de perspectivas éticas alternativas que podem ser
empregadas para criticar os valores dominantes. Disso resulta que as sociedades
contemporâneas são verdadeiros caldeirões de luta cultural, nas quais nenhuma das
narrativas, discursos e esquemas interpretativos vive sem contestação. Finalmente,
a hierarquia de status é ilegítima na sociedade atual, onde o princípio mais básico de
legitimidade é a igualdade liberal, expressa tanto em ideais de mercado (trocas
iguais, carreiras abertas aos talentos e competição meritocrática) quanto em ideais
democráticos (cidadania igual e igualdade formal e material). No contexto atual, a
cultura carrega todas as marcas da modernidade: hibridizada, diferenciada,
pluralística e contestada, mas misturada a normas anti-hierárquicas. Nossa
sociedade abre espaço para um campo mutável de distinções cruzadas de status,
no qual os atores sociais o ocupam qualquer posição pré-ordenada, mas
participam de um regime dinâmico de lutas progressivas por reconhecimento
(FRASER; HONNETH, 2003, p. 57, grifo da autora).
Obviamente, nem todos entram nessas lutas em igualdade de condições.
Alguns não possuem os recursos para participar como iguais, graças a arranjos
econômicos injustos. Outros não possuem relevância social, em virtude de iníquos
padrões institucionalizados de valoração cultural. Nesse ponto, padrões impeditivos
da paridade continuam a regular a interação nas mais importantes instituições
sociais, tais como a religião, o direito e a educação. É claro que esses padrões não
formam uma rede perfeitamente coerente e inextricável e nem passam mais
despercebidos. Mesmo assim, normas favorecendo brancos, europeus,
heterossexuais, homens e cristãos, por exemplo, estão institucionalizadas em muitos
pontos do globo. Portanto, a subordinação de status persiste na sociedade
contemporânea, embora nenhum ator social possa ser classificado em um único e
exclusivo grupo de status os indivíduos são “nódulos de convergência para
múltiplos eixos cruzados de subordinação” (FRASER; HONNETH, 2003, p. 57).
Fraser aponta dois grandes processos que contribuíram para a modernização
da subordinação de status. O primeiro foi a mercantilização, que consiste em um
processo de diferenciação societal. Resta evidente que mercados sempre existiram,
mas não com a autonomia e influência adquiridas no capitalismo moderno, em que
funcionam como as instituições nucleares de uma zona especializada de relações
51
econômicas, legalmente diferenciada das outras. Na zona de mercado, a interação é
governada pelo entrelaçamento funcional de imperativos estratégicos, vez que os
indivíduos agem de modo a maximizar o interesse próprio. Contudo, os mercados
capitalistas não fizeram desaparecer as distinções de status, pois não ocupam a
totalidade do espaço e não governam totalmente a interação social. Na verdade,
eles coexistem, melhor, contam com as instituições que regulam a interação
orientada por valores e que codificam as distinções de status, sobretudo a família e
o Estado. Os mercados não dissolveram as distinções de status pré-existentes,
antes as instrumentalizaram para os propósitos capitalistas, como mostram, por
exemplo, as hierarquias raciais advindas da escravidão, reconfiguradas para a
sociedade de mercado na forma de normas racistas emaranhadas na infra-estrutura
dos mercados de trabalho capitalistas.
O segundo processo apontado pela feminista é o surgimento de uma
sociedade civil complexa e pluralística, que envolve igualmente uma diferenciação.
Com ela, uma gama variada de instituições não-mercantilizadas se diferenciou
legais, políticas, educacionais, associativas, religiosas, familiares, estéticas, etc.
cada uma com relativa autonomia e padrões próprios e não totalmente coincidentes
de valoração cultural para regular a interação. Nesses cenários os atores sociais
estão diferentemente posicionados, conforme as respectivas distinções que negam a
paridade em um dado lugar. Ademais, a sociedade civil moderna encoraja tanto a
tolerância, permitindo a coexistência de subculturas e pluralizando os horizontes de
valor, quanto os contatos transculturais, acomodando o comércio, as viagens e as
redes transnacionais de comunicação e acelerando a hibridização.
Daí a necessidade de reconstruir os conceitos sociológicos clássicos para o
regime dinâmico da contemporaneidade. Essa operação precisa abster-se tanto da
assunção durkheimiana de um único padrão cultural de valoração quanto da
consideração pluralista tradicional de uma série de culturas discretas internamente
homogêneas que coexistem e não se afetam mutuamente. Também deve evitar um
quadro da subordinação nos moldes de uma pirâmide estável em que cada indivíduo
está colocado em um único grupo de status. Todas essas visões estão proscritas
para uma compreensão adequada da sociedade capitalista contemporânea.
Não se pode, portanto, compreender essa organização societária pela
observação de uma única dimensão da vida social – o que torna insuficientes tanto o
culturalismo (redução da classe ao status) quanto o economicismo (redução do
52
status à classe). Mesmo o antidualismo pós-estruturalista advogado por Judith Butler
e Iris Marion Young, que rejeita a distinção entre ordenação cultural e econômica
como dicotomizante e afirma o caráter monoliticamente sistemático da sociedade
contemporânea, na qual a luta em uma das dimensões necessariamente ameaçaria
o todo, não logra êxito em sua teorização. Com efeito, a simples estipulação das
injustiças como simultaneamente econômicas e culturais apenas obscurece as
divergências efetivamente existentes entre status e classe, além de ser uma
desistência das ferramentas necessárias à compreensão da realidade social.
Ademais, considerar o capitalismo contemporâneo como um sistema de opressões
perfeitamente encadeadas é ignorar sua atual complexidade e tornar impossível o
levantamento da questão política de como harmonizar os dois tipos de lutas (por
redistribuição e por reconhecimento), especialmente importante porque hoje elas
divergem e conflitam (Cf. FRASER; HONNETH, 2003, p. 60-61).
Fraser também descarta o que denomina de dualismo substantivo, visão que
considera redistribuição e reconhecimento como duas esferas separadas de justiça,
pertencentes a domínios sociais diferentes. Aqui o problema é negligenciar a
interpenetração. Pelo antes exposto, a economia não é uma zona livre da cultura,
mas um domínio de instrumentalização e re-significação desta. Aquilo que se
apresenta como economia já está permeado de interpretações e normas. Da mesma
forma, a dita esfera cultural encontra-se profundamente influenciada pelo
entretenimento global de massa, pelo mercado de arte e pela propaganda
transnacional. Daí que questões nominalmente econômicas usualmente afetem o
status e as identidades dos atores sociais e vice-versa. O mais grave é que esse
ponto de vista reforça o desacoplamento das políticas culturais daquelas ditas
sociais, reproduzindo exatamente a dissociação que se pretende ultrapassar.
Uma perspectiva genuinamente crítica deve revelar as conexões ocultas entre
distribuição e reconhecimento, tornando visíveis e criticáveis “tanto os subtextos
culturais de processos nominalmente econômicos quanto os subtextos econômicos
de práticas nominalmente culturais” (FRASER; HONNETH, 2003, p. 62-63). Isso
equivale a tratar cada prática simultaneamente como econômica e cultural, embora
não necessariamente em proporções iguais, avaliando-a de duas perspectivas
analíticas diferentes – o ponto de vista da redistribuição e o ponto de vista do
reconhecimento. Fraser chama essa abordagem de dualismo perspectivo.
53
Nesse sentido, pode-se empregar a perspectiva do reconhecimento para se
identificar as dimensões culturais do que são usualmente vistas como políticas
econômicas redistributivas. Por exemplo, com foco na institucionalização de
interpretações e normas em programas de renda mínima, alguém poderia avaliar os
respectivos efeitos sobre o status social de imigrantes e mulheres. De outra parte, é
possível utilizar a perspectiva da redistribuição para salientar as dimensões
econômicas do que são tipicamente encaradas como questões de reconhecimento.
Concentrando-se nos altos custos de transação de “viver no armário”, por exemplo,
alguém poderia avaliar os efeitos de misrecognition heterossexista sobre a posição
econômica de gays e lésbicas. Em resumo,
Com o dualismo perspectivo, então, alguém pode avaliar a justiça de
qualquer prática social, a despeito de onde ela está institucionalmente
situada, de dois vantajosos pontos normativos analiticamente distintos,
perguntando: a prática em questão trabalha para assegurar tanto as
condições objetiva e intersubjetiva da paridade participatória? Ou, ao
contrário, ela as solapa? (FRASER; HONNETH, 2003, p. 63).
O ganho da abordagem proposta pela norte-americana, se comparada ao
antidualismo pós-estruturalista, é permitir a distinção entre distribuição e
reconhecimento e, por conseguinte, a análise das relações entre as duas categorias.
Evita, ainda, ao contrário do economicismo e do culturalismo, a redução de uma das
categorias à outra, o que conduziria à desconsideração da complexidade de suas
ligações. Além disso, escapa da dicotomização cultura versus economia que
obscurece a imbricação mútua das mesmas erro cometido pelo dualismo
substantivo. Desse modo, não reproduz a dissociação ideológica de nosso tempo.
Trata-se, sustenta Fraser, de uma ferramenta conceitual indispensável para
interrogar e sobrepujar essa separação.
O poder da ferramenta fraseriana pode ser testado no tratamento de
dificuldades práticas que surgem no curso das lutas políticas. Se o econômico e o
cultural são vistos como modos diferenciados e interpenetrados de ordenação social,
as reivindicações por redistribuição e as reivindicações por reconhecimento não
podem estar contidas em esferas separadas. De fato, elas podem inclusive colidir,
gerando efeitos não pretendidos. A previsão acertada e o tratamento bem-sucedido
dessas situações seriam fortes argumentos em favor do dualismo perspectivo.
54
Em primeiro lugar, consideremos a redistribuição se batendo contra o
reconhecimento. Virtualmente qualquer alegação por redistribuição terá efeitos de
reconhecimento, sejam eles pretendidos ou não. Os clamores redistributivos afetam
a posição e as identidades dos atores sociais, não somente sua situação econômica
afinal, as propostas de redistribuir a renda sempre carregam interpretações dos
significados e valores das diferentes atividades (criação dos filhos x trabalho
assalariado), ao tempo em que ranqueiam as diferentes posições subjetivas (mães
da assistência social x pagadores de impostos). Os efeitos de status, entretanto,
devem ser tematizados e examinados em detalhe para evitar que se alimente
misrecognition enquanto se tenta remediar maldistribution. O exemplo típico são os
benefícios de transferência direta de renda para os pobres, que muitas vezes
acabam por estigmatizar seus beneficiários como desviantes ou parasitas,
individualmente distinguindo-os dos “cidadãos pagadores de impostos”. Desse
modo, acrescem o insulto de misrecognition à injúria da privação.
Políticas redistributivas apresentam efeitos de misrecognition quando os
padrões culturais valorativos de fundo distorcem o sentido das reformas
econômicas. No campo do gênero, por exemplo, a difundida desvalorização cultural
do cuidado feminino taxa o apoio às famílias de mães solteiras um benefício
comum nas democracias capitalistas centrais como “dar sem exigir contrapartida”
ou “dar sem receber nada em troca”. Nesse quadro, uma reforma assistencial não
pode ser exitosa sem estar unida a lutas por mudanças culturais que objetivem
reavaliar o cuidado e as associações femininas que o codificam. Daí o lema
fraseriano, “nenhuma redistribuição sem reconhecimento” (FRASER; HONNETH,
2003, p. 64-65).
A seguir, tomemos o reconhecimento chocando-se contra a redistribuição.
Também os clamores por reconhecimento apresentarão sempre algum efeito
distributivo, previsto ou imprevisto. As reivindicações por reconhecimento podem
afetar a posição econômica, acima e além dos efeitos sobre o status o que deve
ser tematizado e examinado para evitar que se alimente maldistribution enquanto se
tenta remediar misrecognition. As propostas de retificação dos padrões avaliativos
androcêntricos podem algumas vezes ter implicações econômicas adversas para as
supostas beneficiárias como no caso de campanhas contra a pornografia e a
prostituição, que visam melhorar o status das mulheres, mas podem afetar
negativamente a posição econômica das profissionais do sexo.
55
Além disso, lutas por reconhecimento freqüentemente o acusadas de
meramente simbólicas, em especial quando tomam lugar em contextos de agudas
disparidades econômicas, nos quais elas tendem a desaguar em gestos vazios. Um
caso comum é o tipo de reconhecimento que exalta as mulheres, maquiando os
graves danos ao status, no lugar de eliminá-los. Por isso, uma reforma por
reconhecimento não pode lograr êxito sem estar unida a lutas redistributivas, ou
seja, “nenhum reconhecimento sem redistribuição” (FRASER; HONNETH, 2003, p.
65-66).
Pelas razões apontadas, Fraser pode com razão declarar que “somente uma
abordagem que retifique a desvalorização cultural do ‘feminino’ precisamente dentro
da economia (e em qualquer outro espaço) pode assegurar distribuição séria e
reconhecimento genuíno” (FRASER; HONNETH, 2003, p. 66, grifo da autora). Com
efeito, a premissa esposada pela norte-americana é de que as injustiças de gênero
de redistribuição e de reconhecimento encontram-se tão complexamente
entrelaçadas que nenhuma delas pode ser completamente reparada de forma
independente da outra:
Logo, esforços para reduzir o desnível da renda por gênero não podem ser
totalmente bem-sucedidos se, permanecendo completamente “econômicos”,
eles falharem em desafiar os significados de gênero que rotulam as
ocupações subalternas de baixa remuneração como “trabalho das
mulheres”, basicamente destituídas de inteligência e habilidade. Da mesma
forma, esforços para reavaliar traços codificados-como-femininos tais como
a sensitividade interpessoal e o cuidar não podem ser bem-sucedidos se,
permanecendo completamente “culturais”, eles falharem em desafiar as
condições econômicas estruturais que conectam aqueles traços com a
dependência e a impotência (FRASER; HONNETH, 2003, p. 66).
Um exemplo brasileiro quanto ao trabalho doméstico pode facilmente ilustrar
as preocupações da filósofa. Dos mais de 6,6 milhões de trabalhadores domésticos
do país, mais de 93% são mulheres – uma típica conseqüência da visão dos
serviços do lar como “femininos”. A taxa de informalidade nesse grupo é elevada,
com mais de 73% das pessoas laborando sem proteção trabalhista ou previdenciária
situação diversa entre homens (58,58%) e mulheres (74,22%). Do ponto de vista
dos rendimentos auferidos, mais de 72% dessas pessoas recebe até um salário
mínimo. Esse é outro ponto em que as mulheres se encontram em desvantagem em
comparação aos homens, vez que o rendimento mensal médio das primeiras é de
R$ 353 e o dos últimos R$ 504, diferença superior a 40% (Cf. IBGE, 2008, p. 77-78).
56
Para mudar quadros como esse, a proposta fraseriana é justamente alinhar
distribuição e reconhecimento com dois modos de ordenação social – o econômico e
o cultural, entendidos como esferas diferenciadas e interpenetradas, mas nunca
separadas. Isso nos capacitaria a apreender toda a complexidade das relações entre
as subordinações de classe e de status na sociedade contemporânea. Esse
argumento possui algumas implicações que Fraser faz questão de salientar.
Em primeiro lugar, classe e status, economia e cultura, maldistribution e
misrecognition não são consideradas distinções ontológicas e nem estas últimas
categorias estão alinhadas, respectivamente, com o material e o simbólico. Assim,
as injustiças de status podem ser tão materiais quanto as injustiças de classe
Fraser cita as agressões contra os gays, o estupro coletivo e o genocídio como
exemplos. A norte-americana salienta o caráter histórico das distinções acima,
presentes em sua teoria:
(...) eu rastreei a distinção entre ordenação cultural e ordenação econômica
até a diferenciação histórica entre mercados e instituições sociais reguladas
por valores. Similarmente, rastreei a distinção entre status e classe até o
desacoplamento histórico entre os mecanismos especializados de
distribuição econômica e as estruturas de prestígio culturalmente definidas.
Finalmente, eu rastreei a distinção entre maldistribution e misrecognition até
a diferenciação histórica entre obstáculos econômicos e culturais à paridade
participatória. Em suma, eu rastreei todas as três distinções até a ascensão
do capitalismo, plausivelmente a primeira formação social da história que
sistematicamente elabora duas ordens distintas de subordinação, tomando
por premissa duas dimensões distintas de injustiça (FRASER; HONNETH,
2003, p. 67).
O segundo ponto destacado pela autora diz respeito à abertura conceitual de
sua abordagem, que não nega a possibilidade de modos adicionais de ordenação
social ou de subordinação, bem como de outras dimensões da justiça. Na troca
político-filosófica com Axel Honneth em 2003, Fraser considerava a política como
a mais plausível para assumir o lugar de terceira dimensão em seu modelo. Nesse
campo, a injustiça seria a marginalização política ou a exclusão e o remédio
adequado a democratização (Cf. FRASER; HONNETH, 2003, p. 67-68).
Recentemente, a feminista norte-americana desenvolveu consideravelmente essa
perspectiva, integrando definitivamente a dimensão política a sua concepção de
justiça, que passou a ser tridimensional (Cf. FRASER, 2005b, 2007c). Essa
alteração no arcabouço teórico-político fraseriano será apresentada detalhadamente
57
em outra seção deste escrito, até mesmo pelo poder considerável que acrescenta à
abordagem.
O último ponto que Fraser cuida em sublinhar nesse passo sociológico de sua
abordagem relaciona-se à interpretação da atual conjuntura política. Em seu ponto
de vista, o desligamento entre política de redistribuição e política de reconhecimento
não resulta meramente de um equívoco, mas é parte integrante da estrutura da
sociedade capitalista moderna. Afinal, as características apontadas da ordenação
cultural (hibridizada, diferenciada, pluralística, contestada e deslegitimadora da
hierarquia de status), unidas à relativa autonomia da estrutura econômica,
encorajam a proliferação de lutas por reconhecimento, ao tempo em que possibilitam
a sua desvinculação das lutas por redistribuição. Por isso, somente se classe e
status forem considerados in tandem as atuais dissociações políticas poderão ser
superadas (Cf. FRASER; HONNETH, 2003, p. 69).
2.4.3 Questões político-teoréticas
As principais questões que surgem no campo da política quando se realiza o
tentame de integrar redistribuição e reconhecimento dizem respeito à determinação
de quais arranjos institucionais podem assegurar as condições objetiva e
intersubjetiva da paridade de participação. É indispensável precisar a orientação
política programática que pode satisfazer os clamores defensáveis por
reconhecimento e por redistribuição e, concomitantemente, minimizar as
interferências mútuas que possam surgir no atendimento a esses dois tipos de
reivindicações por justiça. As respostas encontradas, segundo Fraser, dependerão
do tipo de postura que governar a investigação. Duas opções básicas estariam
disponíveis e os teóricos políticos desde a Antigüidade teriam oscilado pouco à
vontade entre elas.
A primeira, que a autora atribui a Platão, é a postura dos reis filósofos,
encarregados de operacionalizar as exigências da justiça. Possui a virtude de não se
refugiar no procedimentalismo vazio, avançando conclusões substantivas. Mas
tende a substituir a deliberação dialógica pela atuação de um expert teórico que
passa ao largo dos processos deliberativos pelos quais os sujeitos das
58
reivindicações por justiça passam a referir a si mesmos como seus autores. A
segunda opção, atribuída por Fraser a Aristóteles, busca promover a deliberação
entre os cidadãos sobre como melhor implementar as exigências da justiça. Em tese
essa posição é preferível, especialmente em um momento globalizante permeado de
questões acerca da diferença entre grupos e da legitimidade democrática. No
entanto, pelo temor de suplantar a democracia com a imposição de um conteúdo
substantivo, pode facilmente recair num formalismo vazio que pouco tem a falar
acerca de justiça.
Fraser pretende delinear uma abordagem política que evite justamente os
excessos dessas posições, afastando-se tanto da usurpação autoritária quanto da
vacuidade reticente e permitindo uma divisão apropriada de trabalho entre o teórico
e o cidadão. Mas, como ela reconhece, não é fácil discernir exatamente quando a
argumentação teórica acertadamente se encerra e o julgamento dialógico deve se
iniciar não se trata de um ponto imediatamente auto-evidente. Mesmo assim, a
professora sugere uma regra:
(...) quando considerarmos questões institucionais, a teoria pode ajudar a
clarificar o alcance das políticas e programas que são compatíveis com as
exigências de justiça; pesar as escolhas dentro dessa área, em contraste, é
uma questão para a deliberação dos cidadãos (FRASER; HONNETH, 2003,
p. 72).
A divisão de trabalho aqui implicada não é absoluta, mas tem a grande
vantagem de a um tempo permitir o exercício de análise conceitual, presente na
aferição das propostas institucionais a partir de um padrão de medida normativo, e a
reflexão hermenêutica situada sobre matérias específicas de determinado contexto,
inclusive sobre aquilo que os cidadãos valorizam em acréscimo à justiça, dadas
suas histórias, tradições e identidades coletivas.
A filósofa passa então, sob essa luz, a tentar responder as interrogações
propostas no início dessa passagem. Se remediar a injustiça, numa forma mais
geral, pode ser entendido como remover obstáculos à paridade de participação, à
primeira vista essa pode parecer uma tarefa simples: eliminar impedimentos
econômicos por meio da redistribuição, impedimentos culturais via reconhecimento e
mesmo impedimentos políticos por meio da democratização. Mas percebeu-se ao
longo das discussões anteriores que aquela fórmula geral está sujeita a mais de
59
uma aplicação institucional, o que torna necessário algum critério de organização e
avaliação das alternativas.
Para tanto, pode-se classificar as estratégias mais comumente empregadas
para remediar a injustiça em afirmativas e transformativas. A distinção liga-se ao
contraste entre as estruturas sociais subjacentes e as conseqüências sociais
geradas pelo emprego daquelas estratégias. A afirmação diz respeito a remédios
para a injustiça que visam corrigir os resultados iníquos dos arranjos sociais sem
perturbar a estrutura subjacente que os causa. Por outro lado, as estratégias
transformativas buscam a retificação da injustiça precisamente pela reestruturação
da subjacente estrutura geradora. Fraser se apressa em salientar que essa
diferenciação não equivale a outras, presentes no imaginário político: reforma versus
revolução, ou ainda mudança gradual versus mudança apocalíptica. (Cf. FRASER,
1995, p. 82; FRASER, 1998, p. 45-47; FRASER; HONNETH, 2003, p. 74).
Na perspectiva da justiça distributiva, Fraser considera o estado liberal de
bem-estar a estratégia afirmativa paradigmática. Apoiado no amparo público,
principalmente em programas de previdência e assistência social, ele procura elevar
a parcela de consumo dos desfavorecidos, mas deixa intacta a base econômica,
freqüentemente “deslocando a atenção da divisão de classe entre trabalhadores e
capitalistas para a divisão entre as frações empregada e o-empregada da classe
trabalhadora” (FRASER, 1995, p. 85). Por sua vez, o socialismo aparece como
exemplo clássico de estratégia transformativa, visto que objetiva mudar a divisão do
trabalho, as formas de propriedade e outras estruturas econômicas fundamentais
enfim, reparar a distribuição injusta na raiz.
Nesse ponto, nota-se uma mudança na articulação de Fraser. Em 1995, ela
afirmava categoricamente o socialismo como uma saída promissora para as
injustiças distributivas contemporâneas (Cf. FRASER, 1995, p. 88). Mas no debate
com Honneth, em 2003, ela admite que “muito do conteúdo institucional tradicional
do socialismo se provou problemático” (FRASER; HONNETH, 2003, p. 75).
Ressalta, contudo, que a idéia da transformação econômica não pode ser
abandonada, mesmo que atualmente não estejamos certos quanto ao seu conteúdo.
na perspectiva da justiça cultural, a professora indica o “multiculturalismo
do mainstream como exemplo de estratégia afirmativa. Nem todas as formas de
multiculturalismo se enquadram nesse modelo, que é na verdade uma reconstrução
ideal-típica do que ela considera a compreensão majoritária do multiculturalismo,
60
predominante (mainstream) no sentido de ser a versão usualmente debatida nas
principais esferas públicas. A proposta dessa abordagem é corrigir o desrespeito por
meio da revalorização de identidades grupais injustamente desvalorizadas, deixando
intactos os conteúdos dessas identidades e as diferenciações de grupo que as
sustentam. Aplicada no combate ao heterossexismo, resulta numa política de
identidade gay/lésbica que “trata a homossexualidade como uma positividade
substantiva, cultural, identificadora, muito similar a uma etnia. Esta positividade é
assumida como subsistindo em si e por si mesma e necessitando apenas de
reconhecimento adicional” (FRASER, 1995, p. 83). A estratégia transformativa
Fraser denomina “desconstrução”, que intenta reparar a subordinação de status pelo
desmonte das oposições simbólicas que fundamentam os padrões
institucionalizados de valoração cultural, desestabilizando as diferenciações de
status e alterando a auto-identidade de todos os atores sociais. Um exemplo seria a
política queer, que tenciona desmontar a oposição binária entre homo e
heterossexualidade.
Afirmação e transformação, portanto, são conceitos aplicáveis tanto na
dimensão econômica (distribuição) quanto cultural (reconhecimento). Abstratamente,
contudo, as estratégias afirmativas apresentam pelo menos duas desvantagens
consideráveis. Primeiramente, quando aplicadas a misrecognition, tendem a reificar
as identidades coletivas, simplificando drasticamente a autocompreensão dos
indivíduos e negligenciando a complexidade de suas vidas, identificações e
afiliações problemas decorrentes do modelo de identidade pressuposto por estas
estratégias e discutidos anteriormente. Em segundo lugar, quando aplicadas a
maldistribution, com freqüência geram rebotes de misrecognition. Como vimos, elas
não alteram as estruturas profundas geradoras da pobreza. Por esse motivo, a
canalização de recursos para os pobres por meio de programas de assistência
pública, que exige sempre cada vez mais alocações e realocações, tende a marcar
os desfavorecidos como inerentemente deficientes e insaciáveis, sempre
necessitados de ainda mais.
Fraser havia apresentado observações semelhantes no que tange às
injustiças de gênero. Com efeito, as ações afirmativas de redistribuição caminham
no sentido de assegurar às mulheres uma parcela justa nos empregos existentes e
nos espaços educacionais (deixando intacta a natureza destes empregos e
espaços). Culturalmente, os remédios afirmativos estariam ocupados em assegurar
61
respeito às mulheres, reavaliando positivamente a feminilidade (sem alterar o código
binário de gênero). Nesse sentido, ela considera infeliz o casamento do
multiculturalismo com o welfare state liberal (ou da política do feminismo cultural
com a política do feminismo liberal), que seriam remédios afirmativos
respectivamente para misrecognition e maldistribution:
A afirmação redistributiva (...) não ataca a divisão por gênero do trabalho
pago e o-pago, nem a divisão por gênero em ocupações masculinas e
femininas dentro do trabalho pago (...). O resultado é não apenas sublinhar
a diferenciação por gênero. É também marcar as mulheres como deficientes
e insaciáveis, sempre necessitando de mais e mais. Com o tempo, as
mulheres podem até chegar a parecer destinatárias privilegiadas de
tratamento especial e dádivas imerecidas. Logo, uma abordagem voltada
para a reparação das injustiças de distribuição pode acabar alimentando
retrocessos nas injustiças de reconhecimento. Este problema é exacerbado
quando acrescentamos a estratégia de reconhecimento afirmativo do
feminismo cultural (...). Neste contexto (…) é mais provável que ele tenha o
efeito de alimentar as chamas do ressentimento contra a ação afirmativa.
Lida por essas lentes, a política cultural de afirmação das diferenças das
mulheres aparece como uma afronta ao compromisso oficial do estado de
bem-estar liberal com o igual valor moral das pessoas (FRASER, 1995, p.
89).
As estratégias transformativas, porém, escapariam de todas as dificuldades
acima arroladas. Aplicadas a misrecognition, desestabilizariam as distinções
discriminatórias de status, substituindo-as por acervos descentrados de diferenças
minúsculas (por oposição a maiúsculas). Com isso, desencorajariam o conformismo
que usualmente acompanha o multiculturalismo e, em lugar de promover o
separatismo, estimulariam a interação entre as diferenças e não sua separação.
Ademais, quando empregadas para a correção de maldistribution tendem a ser
solidarísticas, conferindo direitos e benefícios em termos universais. Nesse sentido,
“reduzem a desigualdade sem criar classes estigmatizadas de pessoas vulneráveis,
percebidas como beneficiárias de dádivas especiais” (FRASER; HONNETH, 2003, p.
77). Portanto, longe de gerarem rebotes de reconhecimento, promovem a
solidariedade social.
Ceteris paribus, as estratégias transformativas são preferíveis, mas sua
implementação é muito mais dificultosa. De um lado, o desmantelamento das
oposições binárias está muito distante das preocupações imediatas da maior parte
dos submetidos a misrecognition, que usualmente estão mais dispostos a buscar o
auto-respeito pela afirmação de sua identidade depreciada. Por outro lado, as
pessoas sujeitas a maldistribution pensam obter um ganho imediato maior das
62
transferências de renda, em detrimento de um planejamento socialista democrático.
A transformação, portanto, exige um conjunto raro de circunstâncias que leve a
maioria dos submetidos às injustiças a se desapegarem de seus interesses e
identidades atuais.
Diante dessas dificuldades, Fraser propõe a via média de uma reforma não-
reformista. Isso seria possível porque a distinção entre afirmação e transformação
não é absoluta, mas sim contextual remédios abstratamente afirmativos poderiam,
se radical e consistentemente aplicados, gerar efeitos transformativos. Por exemplo,
a garantia de uma renda básica incondicional, que permitiria a todos os cidadãos um
padrão de vida mínimo independentemente de sua participação no mercado de
trabalho, aparentemente deixa intactos os direitos de propriedade capitalistas.
Certamente esse seria o caso num regime neoliberal, onde o benefício serviria para
subsidiar trabalhadores temporários e de baixa remuneração. Contudo, numa social
democracia, esse benefício, se mantido alto o suficiente, poderia alterar a balança
de poder entre capital e trabalho e, a longo prazo, solapar a comodificação da força
de trabalho.
Da mesma forma, no campo do gênero, a renda sica incondicional o
pareceria inicialmente um remédio transformativo. É verdade que ele permitiria às
cuidadoras primárias abandonarem periodicamente o mercado de trabalho, mas
faria pouco quanto à divisão de trabalho por gênero que atribui o cuidado não-pago
às mulheres. Em certo contexto, poderia mesmo reforçar maldistribution de gênero
pela constituição de um tipo de trabalho predominantemente feminino, descontínuo e
flexível no mercado. Por outro lado, como uma medida entre outras no âmbito de
uma social democracia simpática ao feminismo, a renda básica poderia alterar a
balança de poder no interior dos arranjos domésticos heterossexuais, especialmente
se acompanhada de uma ampla oferta de assistência pública à infância (Cf.
FRASER; HONNETH, 2003, p. 78-79).
Reformas não-reformistas, portanto, seriam políticas com uma dupla face:
(...) por um lado, elas envolvem as identidades das pessoas e satisfazem
algumas de suas necessidades como interpretadas dentro das estruturas
existentes de reconhecimento e distribuição; por outro lado, elas põem em
movimento uma trajetória de mudança na qual reformas mais radicais
podem se tornar praticáveis com o tempo. Quando bem sucedidas,
reformas não-reformistas mudam mais do que os aspectos institucionais
que elas explicitamente miram. Em acréscimo, alteram o terreno sobre o
qual lutas posteriores serão empreendidas. (FRASER, 1995, p. 89).
63
Essas estratégias, por modificarem as estruturas de incentivo e de
oportunidade política, expandem o conjunto de opções possíveis para reformas
futuras. Com o tempo, seu efeito cumulativo pode ser o de transformar as estruturas
subjacentes que geram injustiça.
No período fordista, por exemplo, uma concepção similar informou algumas
compreensões esquerdistas que encaravam a social-democracia como um regime
dinâmico de trajetória transformativa no tempo. A idéia então era instituir reformas
redistributivas aparentemente afirmativas, tais como direitos universais de
seguridade social, taxação progressiva, políticas macroeconômicas com vistas ao
pleno emprego, um grande setor público não-mercantil e significativa propriedade
pública e/ou coletiva. Conquanto essas políticas o alterassem a economia
capitalista em si mesma, a expectativa era de que juntas pudessem alterar a balança
de poder do capital para o trabalho e encorajar a transformação a longo prazo.
Embora defensável, esse experimento nunca foi executado, uma vez que foi
interrompido pela ascensão do neoliberalismo.
Essa abordagem também foi pensada na arena das lutas por
reconhecimento. No campo do gênero, por exemplo, proponentes da política de
identidade muitas vezes apóiam estratégias afirmativas sem, contudo, enxergarem a
afirmação da diferença das mulheres como um fim em si mesmo. A revalorização de
traços associados com a feminilidade muitas vezes tem sido empregada para
fortalecer as mulheres diante da divisão por gênero dos papéis sociais ou estimular
os homens a assumirem as atividades tradicionalmente atribuídas às mulheres. Tal
essencialismo estratégico carrega, em seu bojo, a expectativa de que efeitos
transformativos possam surgir, em um prazo mais ou menos longo, a partir da
sistemática implementação de remédio afirmativos.
Fraser apresenta ainda, de sua parte, outra forma de conceber a reforma não-
reformista com respeito às questões de reconhecimento. Em geral, pressupõe-se
que a diferenciação, por exemplo, de gênero, seja inerentemente opressora e daí a
proposta de desconstruí-la. Contudo, onde as diferenciações não sejam opressoras
ou seja, estejam apenas contingentemente ligadas a disparidades
institucionalizadas na participação o rumo privilegiado da mudança social pode
não ser a desconstrução. O objetivo poderia ser o de eliminar as disparidades e
permitir que as distinções floresçam ou morram, segundo as escolhas das gerações
futuras (FRASER; HONNETH, 2003, p. 81).
64
Desse modo, onde as distinções de status possam ser desvinculadas da
subordinação, a estratégia da reforma não-reformista não precisa predeterminar
seus destinos últimos, deixando para as gerações vindouras decidirem se
determinada distinção deve ser preservada. Basta por agora o esforço para
assegurar que a decisão possa ser feita livremente, não restringida pela
subordinação institucionalizada. Para isso, deve-se evitar a constitucionalização de
direitos de grupos ou entrincheiramentos semelhantes das distinções de status em
formas que dificultem mudanças futuras.
O importante, para Fraser, é sugerir o interesse geral dessa abordagem e não
defender uma variante específica qualquer de reforma não-reformista. Qualquer que
seja a orientação adotada, trata-se de buscar alterações na ordem de status tanto
diretamente, pela intervenção institucional imediata, quanto indiretamente, pela
mudança do terreno sobre o qual futuras lutas por reconhecimento serão
encampadas.
No entanto, as ditas reformas não-reformistas precisam reparar
simultaneamente maldistribution e misrecognition, de modo a não recaírem no
dilema levantado no início desse capítulo. Uma das ferramentas para evitar este
curto-circuito das políticas, amplamente delineada, é o dualismo perspectivo, que
nos capacita a “monitorar tanto as implicações distributivas das reformas de
reconhecimento quanto as implicações de reconhecimento das reformas
distributivas” (FRASER; HONNETH, 2003, p. 83). Outras posturas de pensamento
úteis, sugeridas pela filósofa, seriam a reparação cruzada e a consciência de
fronteira.
Nas palavras de Fraser, a reparação cruzada “significa usar medidas
associadas com uma dimensão da justiça para remediar iniqüidades associadas
com a outra” (FRASER; HONNETH, 2003, p. 83), explorando a imbricação de classe
e status para mitigar simultaneamente as duas formas de subordinação. Essa
postura pode ser utilmente empregada em uma escala limitada, sem os excessos
reducionistas do economicismo ou do culturalismo.
Primeiramente, consideremos situações em que a redistribuição pode mitigar
misrecognition. No caso do gênero, teóricos da escolha racional têm defendido que
a elevação dos ganhos amplia as opções de saída do casamento para as mulheres
e melhora a posição de barganha delas nos lares. Logo, rendas mais altas
fortalecem a capacidade das mulheres de evitar danos ao status associados ao
65
casamento, tais como a violência doméstica e o estupro marital. Além disso,
remédios transformativos para maldistribution têm o potencial para reduzir
misrecognition em formas que são especialmente úteis para combater o racismo.
Por alargarem o bolo, suavizam a insegurança econômica e os conflitos de soma
zero que exacerbam os antagonismos étnicos; por reduzirem os diferenciais
econômicos e criarem uma forma de vida material comum, minoram os incentivos
para a manutenção de fronteiras raciais. Portanto, as políticas redistributivas podem
diminuir aquelas formas de misrecognition intimamente ligadas às condições
econômicas.
Em segundo lugar, vejamos como a reparação cruzada trabalha na direção
oposta. Gays e lésbicas, por exemplo, sofrem sérias desvantagens econômicas
como conseqüência da subordinação de status. Medidas como a legalização do
casamento gay ou das parcerias domésticas e a criminalização da discriminação
heterossexista no emprego e no serviço militar removeriam penalidades econômicas
entrincheiradas nos direitos de seguridade social, tributário e de herança,
representando igualmente rendas mais altas e melhores benefícios adicionais. Isso
se aplicaria a grupos depreciados em geral, pois o aumento do respeito se traduz
em redução da discriminação no emprego, no ambiente doméstico, no acesso ao
crédito e, logo, melhoria na posição econômica. Conseqüentemente, as políticas de
reconhecimento podem ajudar a corrigir maldistribution, onde sua configuração
esteja intimamente ligada à subordinação de status.
Consciência de fronteira, a outra postura sugerida por Fraser, equivaleria a
“consciência do impacto das várias reformas sobre as fronteiras dos grupos”
(FRASER; HONNETH, 2003, p. 85). Com efeito, alguns esforços para reparar as
injustiças diferenciam os grupos sociais e outros funcionam no sentido contrário (de-
differentiation). Viu-se que esforços para corrigir maldistribution, por objetivarem
reduzir ou abolir as divisões de classe, tendem a suavizar ou eliminar fronteiras
grupais. Em contraste, estratégias afirmativas para o reconhecimento buscam
valorizar a especificidade de grupo, afirmando com isso as fronteiras existentes.
Finalmente, abordagens transformativas para o reconhecimento propõem
desconstruir classificações dicotômicas, efetivamente nublando distinções agudas
de status e desestabilizando as fronteiras entre grupos.
Em virtude desses efeitos, a pretensão de integrar redistribuição e
reconhecimento precisa estar informada pela consciência da dinâmica dessas
66
fronteiras entre os grupos. A ausência dessa postura pode levar à implementação de
reformas que acabarão por trabalhar em direções opostas – por exemplo, a união de
uma política de correção de misrecognition racista que valoriza a “negritude”,
conseqüentemente consolidando a diferença racial, e uma política transformativa de
reparação de maldistribution racista que abole a divisão racial do trabalho e, dessa
forma, solapa as fronteiras raciais. A consciência de fronteira pode antecipar essas
contradições, expondo o caráter autodestrutivo de certas combinações de reformas
e permitindo a identificação de alternativas mais produtivas.
No entanto, apesar de úteis, as ferramentas do dualismo perspectivo, da
reparação cruzada e da consciência de fronteira somadas não constituem por si
mesmas uma estratégia programática para a integração entre redistribuição e
reconhecimento. Servem antes como posturas reflexivas de delineamento dessa
estratégia, permanecendo a questão de quem precisamente deveria usá-las para
aquele fim integrativo.
Fraser é explícita em sustentar que o desenvolvimento de uma estratégia
integrada desse tipo é tarefa de um bloco contra-hegemônico emergente de
movimentos sociais. Por isso não propõe um manual da mudança social, mas tão-
somente três diretrizes ou linhas-guia para a deliberação pública sobre como
institucionalizar a justiça.
A primeira diz respeito ao papel da redistribuição nessas deliberações. Nessa
época “pós-socialista” de globalização acelerada e de capitalismo neoliberal
expansionista, Fraser diagnostica precisamente a marginalização e o eclipse das
lutas distributivas – o problema do deslocamento (Cf. FRASER; HONNETH, 2003, p.
92). Contrariamente às ideologias culturalistas da moda, a redistribuição não pode
ser reduzida a mero epifenômeno do reconhecimento. Também o dualismo
substantivo se equivoca, pois a dimensão distributiva não se restringe à economia
formal, vez que perpassa a totalidade das relações sociais, inclusive aquelas
usualmente consideradas como culturais. Finalmente, labuta igualmente em erro o
economicismo reducionista, pois maldistribution não é exclusivamente uma injustiça
de classe no sentido tradicional: gêneros, “raças”, sexualidades e nacionalidades
subordinadas estão sujeitos a prejuízos econômicos sistemáticos. Por tudo isso, a
redistribuição permanece como um aspecto indispensável de qualquer programa
defensável de mudança social e movimentos que a ignorem seguramente
67
exacerbarão a injustiça econômica, a despeito de seus outros objetivos
progressistas.
O segundo ponto para o qual Fraser chama a atenção é o lugar do
reconhecimento, outra dimensão fundamental e irredutível da justiça que deve
figurar em todas as discussões programáticas. Contudo, a interpretação usual de
misrecognition como depreciação da identidade e sua conseqüente correção por
meio da afirmação das identidades grupais tendem a encorajar o separatismo e o
chauvinismo e a mascarar a dominação intragrupal gerando o problema da
reificação (Cf. FRASER; HONNETH, 2003, p. 91-92). A deliberação política deveria
ser informada por uma visão de misrecognition como subordinação de status e,
nesse sentido, somente reformas que pretendessem a substituição dos atuais
padrões culturais de valoração por outros que fomentassem a paridade de
participação na vida social seriam consideradas viáveis. Em acréscimo, as
discussões políticas contemporâneas não poderiam cair no erro de pressupor uma
pirâmide estável de status, na qual existe um local determinado para cada indivíduo.
Ao contrário, deveriam assumir um regime progressivo de lutas por reconhecimento,
onde os indivíduos estão multiplamente posicionados por eixos cruzados de
subordinação de status. As reformas, nesse passo, seriam confeccionadas sob
medida para os múltiplos sítios e formas de misrecognition, de modo a permitir a
complexidade e a mudança histórica e a evitar o entrincheiramento de identidades
grupais densas.
O terceiro e último ponto concerne à dimensão política, que Fraser denomina
de questões de estrutura (frame). Afinal, para cada tema de justiça cabe perguntar
quais os sujeitos relevantes, ou para que atores sociais está sendo requerida a
paridade de participação. Antes da atual aceleração da globalização, essas
questões estavam presumidamente respondidas tratava-se sempre dos
concidadãos. Com a importância crescente dos processos transnacionais e
subnacionais, “o estado soberano Westfaliano não pode mais servir como a única
unidade ou recipiente da justiça” (FRASER; HONNETH, 2003, p. 88). O estado
passa a ser então encarado como uma estrutura entre outras, numa construção com
vários níveis. Daí as deliberações sobre a institucionalização da justiça precisarem
atentar para o levantamento adequado das questões, determinando que matérias
são genuinamente nacionais, locais e globais. O problema de misframing surge
exatamente quando movimentos incautos pressupõem um cenário inapropriado,
68
impondo uma estrutura nacional a processos inerentemente transnacionais por
exemplo, defensores de enclaves étnicos num momento onde a crescente mistura
de populações inviabiliza tais projetos.
Esse terceiro ponto é importante porque motivou Fraser a identificar e
explicitar posteriormente uma dimensão política irredutível da justiça, elevando sua
teoria ao patamar tridimensional atual (Cf. FRASER, 2005b, 2007c). Os debates com
Axel Honneth e outros críticos plantaram a semente dessa expansão, manifestada
em suas Spinoza Lectures de 2004, proferidas na Universidade de Amsterdã. A
partir daquelas conferências, Fraser redesenhou sua teoria da justiça, ampliando-a
consideravelmente para lidar não com a redistribuição e o reconhecimento, mas
igualmente com a representação (política) e a própria divisão do espaço político.
Vejamos como se deu essa ampliação e sofisticação teóricas nos textos mais
recentes publicados pela feminista norte-americana.
69
3 NANCY FRASER PÓS-WESTFALIANA: POLÍTICA E JUSTIÇA
TRIDIMENSIONAL
3.1 Integrando a política à justiça
Duas conferências, proferidas por Nancy Fraser em 2004 na mais importante
universidade holandesa, foram posteriormente revisadas e publicadas sob a forma
de dois relevantes artigos, constantemente reeditados desde então. Na primeira
delas, acerca da justiça democrática numa era de globalização, ela aborda os dois
dogmas do igualitarismo (uma referência ao clássico escrito de Quine) e o problema
da estrutura (frame) pressuposta nas reivindicações por justiça, que passará a ter
um papel central em seus escritos (FRASER, 2007a). Na outra, Fraser amplia o
escopo de sua teoria de justiça para abranger as questões de representação,
acrescentando-lhe assim uma específica dimensão política (FRASER, 2005a;
FRASER, 2007c). Esses artigos expressam a modificação que Fraser empreendera
em sua visão geral de justiça social após a obra escrita em conjunto com Axel
Honneth (FRASER; HONNETH, 2003) e os debates que imediatamente a
antecederam e a seguiram.
Segundo ela, isso ocorreu porque a globalização tem alterado o próprio modo
como se discute a justiça. Ocorre que esse debate pouco tempo presumia uma
estrutura que a filósofa chama de “Keynesiana-Westfaliana”: as discussões sobre
justiça se desenrolavam no interior dos estados territoriais modernos, pressupondo-
se que diziam respeito às relações entre concidadãos, que estavam sujeitas à
argumentação dentro de públicos nacionais e que seriam efetuadas as reparações
resultantes por estados nacionais. Isso valia para as duas grandes famílias de
reivindicações por justiça redistribuição sócio-econômica e reconhecimento legal
ou cultural. Seja quanto a diferenciais de classe, seja quanto a hierarquias de status,
o estado territorial moderno era tacitamente assumido como a unidade dentro da
qual a justiça seria aplicada:
Com a frase ‘estrutura Keynesiana-Westfaliana’ se pretende assinalar os
fundamentos nacional-territoriais das discussões sobre justiça no apogeu do
70
estado de bem-estar democrático do pós-guerra, aproximadamente de 1945
até o decorrer dos anos de 1970. Neste período, as lutas por distribuição na
América do Norte e na Europa Ocidental tinham por premissa a condução
estatal das economias nacionais. E o Keynesianismo nacional, por sua vez,
tinha por premissa um sistema internacional de estados que reconhecia a
soberania territorial estatal em questões domésticas, que incluíam a
responsabilidade pelo bem estar dos cidadãos. Pressupostos análogos
também governavam a discussões sobre reconhecimento neste período. O
termo ‘Westfaliana’ refere-se ao Tratado de 1648, que estabeleceu alguns
aspectos centrais do sistema internacional de estados em questão (...). Eu
invoco Westfália’ como um imaginário político que mapeou o mundo na
forma de um sistema de estados territoriais soberanos que se reconhecem
mutuamente. Minha afirmação é que este imaginário alicerçou a estrutura
pós-guerra dos debates sobre justiça no Primeiro Mundo (FRASER, 2007c,
p. 30, nota 2).
Assim, a estrutura Keynesiana-Westfaliana modelava os debates sobre justiça
social, dirigindo-os para o que (what) precisamente os cidadãos deviam uns aos
outros (igualdade formal, igualdade de oportunidades, acesso a recursos e respeito
com vistas à paridade de participação). Em outras palavras, a discussão se
concentrava no que deveria contar como uma ordenação justa dentro de uma
sociedade, vez que não estava em disputa o quem (who) da justiça, tacitamente
equiparado à cidadania nacional.
Contudo, a posição axiomática do estado territorial moderno não mais
subsiste. Com a elevação da consciência acerca da globalização, muitos passaram
a notar que processos sociais que rotineiramente modelam suas vidas não estão
limitados às fronteiras nacionais. Na verdade, decisões tomadas em um estado
territorial afetam com freqüência aqueles “do lado de fora” – vide as ações de
corporações transnacionais, especuladores financeiros internacionais e grandes
investidores institucionais. Também aumenta a percepção da relevância crescente
de organizações supranacionais e internacionais (governamentais ou não) e da
opinião pública transnacional que flui sem consideração pelas fronteiras através dos
mass media globais e da cibertecnologia. De tudo isso resulta um novo senso de
vulnerabilidade perante as forças transnacionais (Cf. FRASER, 2007c, p. 18).
O efeito dessas mudanças, que vêm retirando do estado nacional o seu
caráter de única unidade apropriada onde se pensar as questões de justiça, é
desestabilizar a estrutura anterior de confecção das reivindicações políticas. Com a
exclusão do aceite tácito da modelagem Keynesiana-Westfaliana, muda a própria
gramática da discussão sobre justiça o que vem seguramente ocorrendo quanto
aos dois principais tipos de clamores sociais de nosso tempo:
71
No mundo de hoje, reivindicações por redistribuição crescentemente evitam
a assunção das economias nacionais. Confrontados com a produção
transnacional, a terceirização de serviços e as pressões associadas da
‘corrida até o fim’, sindicatos laborais outrora nacionalmente focados
procuram crescentemente por aliados no exterior. Inspirados pelos
Zapatistas, entrementes, camponeses e povos indígenas empobrecidos
vinculam suas lutas contra autoridades locais e nacionais despóticas a
críticas da predação de corporações transnacionais e do neoliberalismo
global. Finalmente, protestadores contrários à OMC miram diretamente as
novas estruturas de governança da economia global que têm fortalecido
vastamente a habilidade de investidores e grandes corporações de
escaparem dos poderes regulatórios e tributários dos estados territoriais. Da
mesma forma, movimentos lutando por reconhecimento crescentemente
olham para além do estado territorial. Sob o slogan guarda-chuva diretos
das mulheres são direitos humanos’, por exemplo, feministas em todo o
mundo estão ligando as lutas contra as práticas patriarcais locais a
campanhas para reformar o direito internacional. Enquanto isso, minorias
étnicas e religiosas, que enfrentam a discriminação dentro de estados
territoriais, estão reconstruindo a si mesmas como diásporas e edificando
públicos nacionais a partir dos quais possam mobilizar a opinião
internacional. Finalmente, coalizões transnacionais de ativistas de direitos
humanos estão buscando erigir novas instituições cosmopolitas, tais como a
Corte Penal Internacional, que possam punir as violações estatais da
dignidade humana (FRASER, 2005b, p. 71-72; FRASER, 2007c, p. 18).
Com isso, pode-se dizer que os debates contemporâneos sobre justiça
abrangem não somente questões substanciais de primeira-ordem, tais como as
explicitadas sobre desigualdade econômica e respeito à diferença, mas também
metaquestões de segunda ordem acerca da estrutura apropriada a ser considerada
para as reivindicações substantivas. Ou seja, também a estrutura está em disputa e
isso põe um vigoroso desafio às teorias da justiça social existentes, preocupadas
fundamentalmente com questões de primeira-ordem. Fraser chega a afirmar que
“estas teorias têm até então falhado em desenvolver recursos conceituais para
refletir sobre o metaproblema da estrutura” (FRASER, 2005b, p. 72-73; FRASER,
2007c, p.19).
Em razão dessa falha, ela propõe que as teorias da justiça devam se tornar
tridimensionais, incorporando a questão política da representação. Ao mesmo
tempo, elabora uma estratégia na qual essa dimensão política abrange três veis,
ultrapassando os problemas do que e do quem para alcançar o como da justiça.
Com isso, pretende inaugurar uma mudança de paradigma, chegando a uma teoria
pós-Westfaliana da justiça democrática (Cf. FRASER, 2005b, p. 73; FRASER,
2007c; p. 19; FRASER, 2008a, p. 15-16). Nesse esforço teórico, a feminista norte-
americana acabou por delinear seu projeto atual de teoria de justiça, que ela
denominou de justiça anormal (Cf. FRASER, 2008a, p. 48-75).
72
Nesta seção, trataremos dos dois primeiros momentos dessa recente
mutação, reservando a última parte deste capítulo para explicitar os delineamentos
atuais da teoria fraseriana da justiça.
3.1.1 A especificidade da dimensão política da justiça
Cabe ressaltar, de início, que Fraser continua a tomar a paridade de
participação como o núcleo normativo de sua teoria da justiça. Assim, ela entende
que sua visão acerca da redistribuição e do reconhecimento permanece acertada,
até onde esta alcança. O problema, segundo a autora, é que essa compreensão não
vai longe o bastante, pois aquelas dimensões da justiça pareciam as únicas apenas
enquanto a estrutura Keynesiana-Westfaliana era tomada como dada. Agora que a
estrutura está em disputa, isso torna visível uma dimensão anteriormente
negligenciada, seja por ela mesma, seja pelos demais filósofos (Cf. FRASER,
2005b, p. 74; FRASER, 2007c; p. 20; FRASER, 2008a, p. 16-17).
A terceira dimensão da justiça é a política. Apesar de redistribuição e
reconhecimento serem elas mesmas políticas, no sentido de estarem em discussão
e serem permeadas pelo poder, a política aqui assume um sentido mais específico,
que se liga à constituição da jurisdição do estado e às regras de decisão pelas quais
se estrutura a contestação. Nessa acepção, o político fornece o cenário no qual se
desenrolam as lutas por redistribuição e reconhecimento. Ao estabelecer os critérios
de pertencimento social, determinando quem conta como membro, a política
especifica o alcance das outras dimensões. Ao estabelecer regras de decisão, a
política também coloca os procedimentos para o arranjo e a resolução dos conflitos
nas dimensões econômica e cultural. Enfim, define quem está incluído e excluído do
círculo daqueles que podem exigir correta distribuição ou reconhecimento recíproco
e ainda como suas reivindicações serão discutidas e adjudicadas.
Como se percebe, a dimensão política da justiça está voltada primordialmente
para a questão da representação. No que tange ao aspecto do “estabelecimento de
fronteiras”, a representação é uma questão de pertencimento social inclusão na
(ou exclusão da) comunidade daqueles autorizados a fazer reivindicações de justiça
uns em relação aos outros. Quanto ao aspecto da “regra de decisão”, a
73
representação diz respeito aos procedimentos que estruturam os processos públicos
de contestação os termos nos quais aqueles incluídos na comunidade política
conduzem suas reivindicações e solucionam suas disputas. Nos dois níveis cabe o
questionamento quanto à justiça das relações de representação: tanto se as
fronteiras da comunidade política erroneamente excluem alguém que deveria ter o
direito de representação quanto se as regras de decisão concedem voz igual a todos
nas deliberações públicas e representação equânime dos membros na tomada
pública de decisões.
Essas questões de representação são especificamente políticas e não podem
ser reduzidas às problemáticas culturais e econômicas, apesar de estarem
inextricavelmente entrelaçadas com estas. Por isso mesmo, a dimensão política
abre espaço para uma espécie de injustiça conceitualmente distinta. Afinal, existem
obstáculos especificamente políticos à paridade de participação, decorrentes da
constituição política da sociedade, por oposição à estrutura de classes e à ordem de
status. Fraser chama essa injustiça política característica de misrepresentation e
explica que ela ocorre quando as fronteiras políticas e/ou as regras de decisão
funcionam de modo a negar a algumas pessoas, erroneamente, a possibilidade de
participar em pé de igualdade com os outros na interação social – inclusive, mas não
apenas, nas arenas políticas (Cf. FRASER, 2005b, p. 76; FRASER, 2007c, p. 21;
FRASER, 2008a, p. 18).
Além de não redutível a maldistribution ou a misrecognition, a injustiça de
misrepresentation pode se dar pelo menos em dois níveis. Se as regras de decisão
política negam a alguns dos incluídos a participação como iguais, tem-se
misrepresentation política ordinária. Nesse caso, a questão é a representação intra-
estrutura (intraframe) o familiar terreno dos debates entre cientistas políticos
acerca dos ritos relativos de sistemas eleitorais alternativos. Aqui seriam
levantados, por exemplo, os problemas relativos a sistemas eleitorais do tipo “o
vencedor leva tudo” e a paridade de participação das minorias numéricas, bem como
os efeitos das regras de decisão cegas às diferenças sobre a representação política
de grupos submetidos a maldistribution e/ou a misrecognition.
Outro vel de misrepresentation, menos óbvio, diz respeito ao
estabelecimento de fronteiras. Com efeito, o estabelecimento de uma estrutura está
entre as decisões políticas mais relevantes, pois de um golpe constitui os
membros e não-membros, afastando os últimos do universo daqueles que têm o
74
direito de ser considerados dentro da comunidade em matéria de distribuição,
reconhecimento e representação política ordinária. A injustiça pode surgir
precisamente quando “as fronteiras da comunidade são desenhadas de tal forma a
erroneamente excluírem algumas pessoas da chance de participarem de qualquer
modo em seus debates legitimados sobre justiça” (FRASER, 2005b, p. 76; FRASER,
2007c, p. 22; FRASER, 2008a, p. 19). Fraser considera isso uma forma mais
profunda de misrepresentation, uma espécie de meta-injustiça que impede alguém
de fazer reivindicações de primeira-ordem em uma determinada comunidade
política, e a chama de misframing. Essa injustiça permanece mesmo quando
aqueles excluídos de uma comunidade política são incluídos como sujeitos em
outra, vez que o resultado dessa divisão política é colocar alguns aspectos da justiça
além de seu alcance.
Misframing é o tipo de injustiça que a globalização recentemente vem
tornando visível. Ao longo do século XX, as reivindicações por justiça se
concentraram, em princípio, nos temas econômicos e, posteriormente, gravitaram
rumo ao reconhecimento da diferença relegando a dimensão política às margens
ou restringindo-a a discussões sobre a representação política ordinária no espaço
interno das comunidades. Essas lutas tomavam por dada a estrutura Keynesiana-
Westfaliana, bem como a correlata assunção do estado territorial como unidade
apropriada da justiça. Atualmente, a globalização vem colocando a questão da
estrutura diretamente na agenda política. Alguns passam a considerar que a
estrutura Keynesiana-Westfaliana é um veículo central de injustiça, vez que divide o
espaço político em formas que impedem muitos dos pobres e depreciados de
desafiarem as forças que os oprimem, canalizando suas reivindicações no interior de
espaços políticos domésticos de estados relativamente impotentes, ou mesmo
completamente falidos. Essa estrutura acaba então por isolar os poderes além-
fronteira da crítica e do controle:
Entre aqueles escudados do alcance da justiça estão estados predadores
mais poderosos e poderes privados transnacionais, incluindo investidores e
credores estrangeiros, especuladores financeiros internacionais, e
corporações transnacionais (...). Também protegidas estão as estruturas de
governança da economia global, que definem termos explorativos de
interação e então os isenta do controle democrático (...). Finalmente, a
estrutura Keynesiana-Wesfaliana é auto-isolante; a arquitetura do sistema
interestatal protege a própria divisão do espaço político que institucionaliza,
efetivamente excluindo a tomada de decisões transnacional democrática em
questões de justiça (FRASER, 2005b, p. 78).
75
Para aquelas pessoas que têm negada a possibilidade de fazer
reivindicações transnacionais de primeira ordem, as lutas contra maldistribution e
misrecognition não podem lograr êxito sem que estejam unidas a lutas contra
misframing. Por isso mesmo, “alguns consideram misframing a injustiça definidora
de uma era globalizante” (FRASER, 2005b, p. 78; FRASER, 2007c, p. 23; FRASER,
2008a, p. 21). Esse aspecto da gramática da justiça, negligenciado no período
anterior, não pode mais ser escamoteado. Ainda mais porque ele evidencia que
nenhuma reivindicação por justiça pode evitar pressupor alguma noção de
representação e tampouco deixar de assumir alguma estrutura. Daí a ampliação do
lema fraseriano para “nenhuma redistribuição ou reconhecimento sem
representação” (FRASER, 2007c, p. 23).
São esses os argumentos alinhados pela feminista norte-americana para
sustentar a necessidade de uma teoria tridimensional da justiça, única que ela
considera adequada para nossa época. Segundo Fraser, somente com essa
amplitude uma teoria poderia nos capacitar a captar a questão da estrutura como
uma questão de justiça, identificando injustiças de misframing e avaliando possíveis
remédios. Sobretudo, nos permitiria investigar como integrar as lutas contra
injustiças econômicas, culturais e políticas no âmbito de uma estrutura pós-
Westfaliana.
3.1.2 A política da estruturação e a justiça democrática pós-Westfaliana
Segundo Fraser, o que ela chama de política da estruturação (framing) situa-
se no segundo nível da representação e liga-se ao aspecto do estabelecimento de
fronteiras do político. Centrada nas questões de quem conta como sujeito da justiça
e de qual a estrutura apropriada estabelecer e consolidar, contestar e revisar a
divisão legitimada do espaço político –, engloba as lutas contra misframing, que
visam desmantelar os obstáculos que impedem as pessoas desfavorecidas de
confrontarem com reivindicações por justiça as forças que as oprimem.
Como no tocante às políticas de redistribuição e de reconhecimento, duas
formas de política da estruturação dominam o cenário do mundo globalizado:
afirmação e transformação. A política afirmativa contesta as fronteiras das estruturas
76
existentes ao tempo em que aceita a gramática Westfaliana. No seu bojo, aqueles
que afirmam sofrer injustiças de misframing enxergam a solução no redesenho das
fronteiras dos estados territoriais existentes, ou algumas vezes na criação de novos
estados. Essa abordagem assume que as injustiças de misframing não são função
do princípio de repartição Westfaliano, mas de sua aplicação defeituosa e assim o
princípio da territorialidade estatal seria a base apropriada para a constituição do
“quem” da justiça. Isso equivale a sustentar que a residência comum no território de
um estado moderno e/ou a qualidade comum de membro da comunidade política
que corresponde a tal estado é o que torna uma determinada coleção de indivíduos
em concidadãos.
Para os proponentes da abordagem transformativa, por sua vez, o princípio
do estado territorial nem sempre fornece uma base adequada para determinar o
“quem” da justiça. Eles não negam a relevância desse princípio em muitas situações
e, desse modo, não propõem a sua completa eliminação. Mas aduzem que sua
gramática está fora de sintonia com as causas estruturais de muitas das injustiças
(nem sempre territoriais em caráter) do mundo em globalização. Com efeito, as
forças que determinam quem trabalha ou não por uma renda (mercados financeiros,
estruturas de governança da economia global), quem está ou não incluído nos
circuitos do poder comunicativo (redes de informação da cibertecnologia e mídia
globais) ou quem viverá muito e quem morrerá jovem (biopolíticas do clima,
doenças, drogas, armas e biotecnologia) não se encontram localizadas dentro da
jurisdição de nenhum dos estados territoriais existentes (ou concebíveis). Ao mesmo
tempo, dos poderes que perpetram a injustiça nessas temáticas, tão caras ao bem-
estar humano, não se pode exigir resposta quanto às reivindicações por justiça, se
estas são elaboradas nos termos do princípio do estado territorial. Em razão disso,
invocar esse princípio nessas questões é já por si mesmo uma injustiça, vez que ele
coloca os poderes extra/não-territoriais além do alcance da justiça.
Em geral, como se deduz, a política transformativa da estruturação visa
alterar a gramática profunda do “estabelecimento de estrutura” por meio de
princípios pós-Westfalianos, suplementares do estado territorial. A pretensão é
sobrepujar as injustiças de misframing, mudando não apenas as fronteiras do
“quem” da justiça, mas também o modo de sua constituição.
Como o mais promissor candidato a orientador de uma estrutura pós-
Wesfaliana, Fraser apontava o princípio de todos-os-afetados (all-affected), segundo
77
o qual todos os afetados por uma dada estrutura ou instituição social assumem a
posição moral de sujeitos de justiça em relação a ela. Sob esse ponto de vista, o que
faz de uma coleção de pessoas um grupo de parceiros é a co-imbricação em uma
estrutura social ou institucional, a qual põe as regras basilares que governam sua
interação social e modela, em termos de vantagem e desvantagem, suas
possibilidades de vida (Cf. FRASER, 2005b, p. 82; FRASER, 2007c, p. 25; FRASER,
2008a, p. 24). A autora norte-americana, desde o início, alinhou várias dificuldades
relativas a esse princípio, tais como o problema do efeito borboleta (a alegação de
que todos são afetados por tudo) e as diferentes visões teóricas de afetação. Mesmo
assim, tentou dar-lhe uma interpretação aberta, calcada em sua herança crítica,
apelando para o debate público amplo acerca do significado do princípio e evitando
o “fiat filosófico” (Cf. FRASER, 2005b, p. 83, nota 15). Mais tarde, porém, ela
abandonou a tentativa de salvar o princípio de todos-os-afetados, apresentando
como alternativa o princípio de todos-os-sujeitados (all-subjected), que será
explicado adiante, ao tratarmos de seu projeto da “justiça anormal” (Cf. FRASER,
2008a, p. 166, nota 28).
Independentemente de qual o princípio pós-Westfaliano trazido à baila, os
movimentos de política transformativa da estruturação vão além e pretendem
inaugurar um processo igualmente pós-Westfaliano de estabelecimento da estrutura,
avançando a questão do “como” (how) da justiça, isto é, dos procedimentos aceitos
para determinar o “quem”. Reivindicando uma fala na definição da própria estrutura,
intentam democratizar esse processo de desenho e revisão das fundações
metapolíticas da justiça, especialmente pela rejeição da visão padrão que considera
tal participação uma prerrogativa de estados e elites transnacionais. No limite, além
de exigirem a criação de novas arenas democráticas para a discussão dos
argumentos acerca da estrutura, os movimentos transformativos estão criando eles
mesmos essas arenas. Fraser cita o Fórum Social Mundial como exemplo de uma
esfera pública transnacional assim concebida, que prefigura a possibilidade de
novas instituições de justiça democrática pós-Westfaliana (Cf. FRASER, 2005b, p.
84-85; FRASER, 2007c, p. 27; FRASER, 2008a, p. 26).
Essa dimensão democratizante da abordagem transformativa no que tange às
questões da estruturação tem apontado um terceiro nível de injustiça política, acima
e além de misrepresentation política ordinária e de misframing. Ela corresponde à
questão do “como” e se manifesta em processos não-democráticos de
78
estabelecimento da estrutura, nos quais não se institucionaliza a paridade de
participação metapolítica nas deliberações e decisões concernentes ao “quem”. Para
tais situações a pensadora feminista emprega a expressão metapolitical
misrepresentation, esclarecendo que ela acontece quando
estados e elites transnacionais monopolizam a atividade de estabelecimento
da estrutura, negando voz àqueles que podem ser prejudicados no
processo, e impedindo a criação de arenas democráticas onde as
reivindicações dos últimos possam ser examinadas e remediadas
(FRASER, 2005b, p. 85).
O efeito disso é excluir a maioria esmagadora das pessoas da participação
nos metadiscursos que determinam a divisão legitimada do espaço político, negando
a chance de engajamento, em termos de paridade, na tomada de decisões acerca
do “quem”. Isso revela um novo tipo de déficit democrático, explicitado na ausência
de instituições onde disputas acerca do “quem” possam ser realizadas (e resolvidas)
democraticamente. Nesse quadro, as lutas por justiça num mundo em globalização
não podem ser bem-sucedidas se não caminharem ao lado das lutas por
democracia metapolítica.
Sob essas condições, a teoria da justiça experimenta uma mudança de
paradigma. Antes, quando a estrutura Keynesiana-Westfaliana ainda estava firme
em seu lugar, a maioria dos filósofos se esforçava em averiguar teoricamente as
exigências da justiça, produzindo teorias monológicas da justiça social.
Presentemente, essas teorias estão se tornando cada vez mais implausíveis. À
medida que se expande o círculo dos que reivindicam uma fala na estruturação, as
decisões sobre o “quem” são crescentemente encaradas como matérias políticas
que deveriam ser tratadas democraticamente, e não mais como questões técnicas a
serem resolvidas por especialistas e elites. Mesmo na filosofia normativa, alguns
pensadores têm proposto repensar a clássica divisão de trabalho entre teórico e
demos – aproximando-se de abordagens dialogais que consideram os aspectos
relevantes da justiça como matérias para a tomada coletiva de decisões através da
deliberação democrática. A antiga teoria da justiça social passa então a ser vista
como a teoria da justiça democrática.
Fraser destaca que essa novel teoria permanece incompleta, pois nem
mesmo os proponentes dessa virada dialógica chegaram a antever processos
democráticos na determinação do “que”, do “queme do “como” da justiça presos
79
ainda a um ou a ambos os dogmas do igualitarismo (Cf. FRASER, 2005b, p. 86). Ao
adotar uma abordagem democrática para o processo de estabelecimento da
estrutura, bem como para as questões políticas ordinárias, a teoria da justiça torna-
se uma teoria da justiça democrática pós-Westfaliana, apropriada à nossa era de
globalização.
Ela reconhece que nos discursos acadêmicos os filósofos políticos começam
a r em questão a estrutura Keynesiana-Westfaliana, que assumiram tacitamente
nas décadas precedentes. Se até pouco tempo voltavam-se para debater suas
próprias versões especializadas do que seja o que deveria ser equitativamente
distribuído (direitos, recursos, bem primários, oportunidades, etc) ou o que deveria
ser reciprocamente reconhecido (identidade grupal, realização individual, distinção
cultural, humanidade comum, etc) passaram a se ocupar também da questão do
quem, isto é, entre quais sujeitos se podem e devem estabelecer as reivindicações
substanciais de justiça (Cf. FRASER, 2007a, p. 197-198).
As posições dos filósofos contemporâneos quanto ao “quem” da justiça
podem ser agrupadas basicamente em três grupos. Os cosmopolitas sustentam não
existirem razões morais convincentes para que os compatriotas sejam privilegiados
em detrimento de outras pessoas; a justiça nessa visão diz respeito às relações
entre todos os seres humanos. Para os internacionalistas, o caráter especial das
comunidades políticas limitadas justifica a colocação de dois tipos de requisitos da
justiça: um mais exigente em seu interior e outro menos demandante entre as
comunidades. Por fim, os nacionalistas liberais afirmam que as exigências de justiça
se aplicam somente no interior de comunidades que possuam traços moralmente
relevantes, tais como uma constituição política comum, um horizonte ético
compartilhado ou uma auto-identificação histórica.
A discordância acima, hoje explícita, representa a superação do que Fraser
denominou “o primeiro dogma do igualitarismo”: a pressuposição tácita do “quem
nacional na anterior ausência de um debate acerca da estrutura. Apesar de muitos
ainda defenderem o imaginário Westfaliano, agora precisam fazê-lo abertamente,
enfrentando as alternativas. Contudo, a feminista alerta, enquanto muitos filósofos
foram bem sucedidos em superar esse primeiro dogma, a maioria ainda sucumbe a
um segundo.
Ao analisar as diversas visões acerca do “quem”, Fraser detectou que as
posições dos envolvidos no debate estão condicionadas à questão da primazia
80
causal, nunca enfrentada diretamente pelos teóricos. Ou seja, na problemática
acerca de qual o fator principal na determinação das expectativas de vida das
pessoas na conjuntura atual, cada filósofo apresenta sua visão controversa como se
ela fosse um fato estabelecido.
Muitos dos defensores da estrutura Keynesiana-Westfaliana justificam sua
escolha afirmando que a pobreza dos países do Terceiro Mundo jaz na constituição
interna deficiente de suas sociedades, mais do que na economia política
internacional. Os críticos dessa visão, por sua vez, insistem em um alegado fato
sócio-científico contrário: o de que as estruturas globais e/ou internacionais
desempenham um papel substancial na causação e reprodução dessa pobreza. O
caráter controverso desses “fatos”, alerta Fraser, não é admitido na discussão, bem
como sua dependência em relação a assunções sócio-teoréticas tácitas e
interpretações históricas, elas mesmas controversas (Cf. FRASER, 2007a, p. 202;
FRASER, 2008a, p. 36).
Nota-se que todos os lados desse debate determinam o “quem” da justiça de
modo similar: ele deve ter o alcance de qualquer que seja a estrutura (structure) que
se prove ser “básica”, no sentido de possuir primazia causal sobre as expectativas
de vida das pessoas. Desse modo, a referida estrutura assume a identidade de uma
incontroversa questão de fato empírico e isso significa que todos os filósofos
envolvidos acabam autorizando o cientista social a definir a própria estruturação (no
sentido de frame) da justiça. Nesse ponto jaz o que Fraser alcunhou de “segundo
dogma do igualitarismo”, ou seja, a assunção tácita, não-argumentada, de que a
ciência social normal pode determinar o “quem” da justiça. Com isso ela pretende
chamar a atenção para a forma irrefletida pela qual uma visão particular acerca da
relação entre teoria normativa e ciência social se introduz nos debates atuais,
fazendo com que os filósofos falhem em questionar de um modo auto-reflexivo como
deve ser determinada a estrutura pertinente para se refletir sobre a justiça social
num mundo em globalização.
A o sujeição da questão procedimental ao escrutínio crítico acontece tanto
entre os teóricos analíticos da justiça distributiva quanto em suas contrapartes
hegelianas, voltadas para a problemática do reconhecimento, o que torna mais
grave a situação. Diante de diversas respostas agora disponíveis para a questão do
“quem” e na ausência de uma reflexão detida sobre o “como”, permanecemos sem
um procedimento adequado para decidir entre os diversos cenários. Em razão disso,
81
Fraser propõe uma abordagem “crítico-democrática” para o “como” da justiça, em
oposição à abordagem da “ciência social normal”, acima citada (Cf. FRASER,
2007a, p. 202-203).
O problema é reinterpretar três idéias inter-relacionadas circunstâncias da
justiça, forças causais principais e princípio de todos-os-afetados que juntas
formam uma poderosa constelação conceitual e concedem vigorosa credibilidade à
abordagem da ciência social normal. A primeira significa que os argumentos sobre a
justiça devem ser situados, isto é, construídos em termos apropriados às
circunstâncias sociais nas quais surgem. A segunda diz respeito à plausível ligação
conceitual colocada entre uma daquelas circunstâncias o alcance da estrutura
(structure) sica e o “quem da justiça. Sob essa ótica, o que transforma uma
coleção de pessoas em um grupo de parceiros que são sujeitos de justiça é a co-
imbricação em uma estrutura comum, a qual governa sua interação social, distribui
os benefícios e fardos entre todos e modela suas expectativas de vida. Por fim, o
princípio de todo-os-afetados mantém que todos aqueles afetados por uma dada
estrutura social assumem uma posição moral de sujeitos de justiça diante dela.
Aqueles que depositam sua confiança na abordagem da ciência social normal
constroem essas idéias como questões empírico-factuais sedimentadas, livrando
a si mesmos do envolvimento nas disputas sócio-teoréticas e se restringindo a
consultar os frutos da ciência normal. Abdicam, portanto, de se preocuparem com a
relação entre fato e valor, explicação causal e interpretação histórica (Cf. FRASER,
2007a, p. 203-204; FRASER, 2008a, p. 37-38).
Nenhum desses conceitos-chave, entretanto, pode ser elaborado dessa forma
em uma postura crítico-democrática. As explicações das circunstâncias da justiça,
por exemplo, estão inerentemente carregadas de teoria e valor e, por isso mesmo,
são controversas. A tarefa de adjudicar caracterizações rivais, portanto, não pode
ser confiada a uma ciência social positivista; ao contrário, deve ser tratada
dialogicamente, no seio de uma prática discursiva multifacetada que escrutine as
concepções alternativas, desdobre suas assunções subjacentes e sopese seus
méritos relativos. Afinal, até mesmo o que deve contar como circunstâncias
relevantes e como estas são caracterizadas não poderia escapar do debate político
mais amplo acerca do “quem” da justiça.
O mesmo vale para a noção de uma estrutura básica que seja
primordialmente determinante em relação ao bem-estar das pessoas. Originalmente
82
desenvolvida por Jonh Rawls para sociedades fechadas auto-suficientes, nas quais
a entrada se pelo nascimento e a saída pela morte (sem movimentos
transfronteiras) e as expectativas de vida dos membros dependem exclusivamente
dos arranjos institucionais internos (Cf. RAWLS, 1999, p. 6-7), a idéia de uma
estrutura básica única e com alcance uniforme torna-se difícil de ser sustentada
atualmente. Se considerarmos as interações entre fronteiras, forçosamente
admitiremos a possibilidade de “múltiplas estruturas não-isomórficas, algumas
locais, algumas nacionais, algumas regionais e algumas globais, as quais marcam
uma variedade de diferentes ‘quem’ para diferentes questões” (FRASER, 2007a, p.
205). Por conseguinte, as expectativas de vida das pessoas são também
multiplamente determinadas por estruturas que se sobrepõem mas como
precisamente estas interagem constitui um campo de disputas dos cientistas sociais,
que para isso possuem explicações contrárias. No bojo de um debate mais amplo
sobre o “quem”, as discordâncias explícitas das teorias sociais rivais e das
interpretações históricas precisam ser trazidas para o interior da teoria da justiça.
Problemas semelhantes circundam o princípio de todos-os-afetados, apesar
dele ser intuitivamente plausível. O chamado efeito borboleta parece autorizar
evidências empíricas de que, em última análise, todos sejam afetados por tudo. É
necessário, desse modo, um meio para distinguir aqueles níveis e tipos de
efetividade que possam conferir posição moral algo que não pode ser fornecido
pela ciência social normal. Isso requer “complexos julgamentos políticos, que
combinem reflexão normativa empiricamente informada com interpretação histórica
e teorização social” (FRASER, 2007a, p. 205) e, portanto, também devem ser
tratados democraticamente.
Pelo exposto, dois graves defeitos da abordagem da ciência social normal são
trazidos a lume: a construção errônea de seus conceitos centrais e a conseqüente
objetificação dos sujeitos da justiça. No primeiro, a incapacidade da abordagem de
reconhecer a dimensão performativa das decisões de estruturação gera a suposição
de que se pode justificar a escolha de um “quem” da justiça por referência a um
estado de coisas no mundo (quem é afetado pelo que) que seria ele mesmo
independente das decisões de estruturação. Precisar quem é afetado por uma
determinada estrutura, no entanto, depende da decisão de constituí-la de uma certa
forma e com um certo alcance o “fato empírico” de quem é afetado é um artefato
performativo pré-projetado. No dizer de Fraser, apelar para a ciência social normal
83
para determinar o “quem” da justiça não significa introduzir considerações
epistêmicas independentes, mas ratificar acriticamente uma prévia decisão de
estruturação. A conseqüência dessa errônea compreensão é tratar os sujeitos de
justiça como objetos passivos sob a influência de forças estruturais, negando a
autonomia daqueles que se sujeitam às determinações dos especialistas e retirando
a legitimidade democrática das decisões acerca da estruturação (Cf. FRASER,
2007a, p. 206; FRASER, 2008a, p. 40).
Tendo em conta as dificuldades arroladas, Fraser pretende fornecer outra via
para democratizar a justiça em nossa era de globalização. Uma abordagem crítico-
democrática para o “como” da justiça começa por considerar problemáticas todas as
alegações substanciais sobre primazia causal, sublinhando que os argumentos
relativos ao “quem” possuem um duplo caráter, simultaneamente epistêmico e
político.
No aspecto epistêmico, os argumentos desdobram pretensões de
conhecimento acerca da natureza da vulnerabilidade e extensão da
interdependência em um mundo que se globaliza. Isso exige, a seu turno, uma
forma de pensamento aberta e abrangente, em que a argumentação avance e recue
entre diferentes níveis e tipos de questão (interpretativas, normativas, históricas,
conceituais) e os debatedores ofereçam razões e contra-razões. Dessa forma os
argumentos se tornam reflexivos, examinando os aspectos previamente assumidos
como dados em seus próprios processos e exibindo o tipo de racionalidade
comunicativa apropriada a uma compreensão s-positivista do conhecimento
social. Quanto ao aspecto político, vez que múltiplas controvérsias abarrotam os
argumentos, estes acabam por implicar os compromissos avaliativos e
interpretativos dos debatedores. Na verdade, tanto os interesses e compromissos
valorativos quanto as disparidades de poder que maculam as discussões devem ser
explicitadas, visto que os interlocutores não participam em termos de paridade
nesses debates acerca da estrutura (frame).
É por meio dessa combinação de uma compreensão teórico-crítica da relação
entre conhecimento social e reflexão normativa com um interesse político-
democrático na contestação pública leal que Fraser acredita ser possível remediar
os déficits da abordagem da ciência social normal sem desprezar noções relevantes
como as de circunstâncias da justiça, determinação estrutural ou afetação. Longe de
excluir o conhecimento social, o efeito de uma abordagem crítico-democrática é
84
recuperá-lo dos especialistas e recolocá-lo no interior de um debate democrático
abrangente acerca do “quem(Cf. FRASER, 2007a, p. 207-208; FRASER, 2008a, p.
41-43).
De um ponto de vista institucional, Fraser salienta que essa abordagem
aponta a necessidade da criação de novas arenas transnacionais para a discussão
democrática acerca do “quem” da justiça. A intenção é gerar, por meio do debate
das reivindicações dos excluídos, uma compreensão intersubjetivamente defensável
mais adequada de quem tem direito a ser considerado em um dado caso. O
resultado provável seria um conjunto de múltiplas estruturas (frames) funcionalmente
definidas, correspondentes a diversos “quem” (também funcionalmente definidos)
que mereceriam consideração a respeito de variadas questões. Não se prevê,
assim, a abolição indeclinável das estruturas territorialmente montadas, que
permanecerão importantes para muitos propósitos. O mais importante, no entanto, é
que qualquer que seja a configuração de estruturas que venha a emergir como
provisoriamente justificada, ela também permaneça aberta à revisão futura, à
medida que novas alegações de exclusão surjam para desafiá-la.
Além disso, Fraser o escamoteia as perguntas sem resposta que
permanecem no âmbito dessa abordagem. Ela tem plena clareza da necessidade de
“imaginação institucional no espírito do utopismo realístico” (FRASER, 2007a, p.
209) para o equacionamento adequado de dificuldades práticas, tais como o que
fazer para assegurar representação e voz igual àqueles hoje excluídos em virtude de
estruturas territoriais ou de que forma dividir o trabalho entre públicos fracos
(meramente debatem as alternativas) e fortes (provisoriamente resolvem as disputas
tomando decisões vinculadoras).
Da mesma forma, ela não ignora as objeções conceituais que podem lhe ser
opostas. Uma primeira seria o paradoxo democrático – as fronteiras e estruturas não
podem ser determinadas democraticamente, ou seja, o demos o pode determinar
o demos. Fraser coloca que ao invés da perplexidade em face de um paradoxo
lógico, deveríamos tentar projetar formas de refiná-lo, imaginando arranjos
institucionais para a solução democrática das disputas em torno do “quem”. Uma
segunda dificuldade seria a circularidade das relações entre justiça e democracia,
pois a abordagem aparentemente pressupõe como condição de fundo o resultado
que almeja: arranjos sociais que permitam a paridade de participação política. A
feminista lembra que isso pode ser igualmente apontado para qualquer processo
85
democrático, mas confia na capacidade reflexiva da democracia de problematizar e
revisar aqueles procedimentos e estruturas que foram anteriormente assumidos
como dados. Na prática isso significa a tentativa de estabelecer deliberações boas o
bastante para alicerçarem reformas sociais que, uma vez institucionalizadas,
garantam um debate posterior mais próximo da paridade de participação. E assim
por diante, sempre com o avanço na qualidade da rodada seguinte (Cf. FRASER,
2007a, p. 209-210; FRASER, 2008a, p. 44-45).
Bem, pelo menos até o final de 2006 essa era a posição fraseriana quanto ao
tema da justiça social. A reflexão mais recente da feminista norte-americana, trazida
a público por meio de duas conferências proferidas em setembro de 2006 (Itália) e
fevereiro de 2007 (EUA), está esquematizada em linhas gerais no artigo Abnormal
Justice, publicado em 2008 no famoso periódico estadunidense Critical Inquiry. Esse
escrito, reproduzido em sua mais recente obra Scales of justice: reimagining political
space in a globalizing world, também de 2008, expõe em linhas gerais o mais novo
projeto de Fraser, denominado “Justiça Anormal”, uma referência à oposição
rortyana entre discurso normal e anormal (mas também à oposição kuhniana entre
ciência normal e revolucionária). É o que trataremos a seguir, na última parte deste
capítulo.
3.2 Justiça reflexiva em tempos de discurso anormal
O projeto da “Justiça Anormal” não é tanto uma reinvenção da teoria da
justiça que Fraser vem laboriosamente elaborando ao longo das últimas duas
décadas, mas uma reapresentação sistemática de sua posição no bojo de uma
interpretação histórico-crítica das discussões contemporâneas sobre o tema. Em
linhas gerais, a visão da autora não se modificou radicalmente desde a integração
da dimensão política à justiça, operada naquelas Spinoza Lectures de 2004, mas
ainda assim veio sendo sofisticada, especialmente com o enfrentamento direto das
problemáticas do “quem” e do “como” da justiça.
Com efeito, foi a percepção da gravidade dessas duas últimas questões (bem
como das lutas sociais a elas associadas) e o esforço reflexivo acerca dos
complexos obstáculos nelas envolvidos que conduziram a norte-americana a encarar
86
a nossa época, outrora denominada por ela de ‘pós-socialista’ (Cf. FRASER, 1997a),
como um momento histórico de justiça anormal. A nomenclatura é emprestada de
Richard Rorty, filósofo compatriota de Fraser que empregava a distinção entre
discurso normal e anormal (Cf. RORTY, 1979).
Ela explica que em alguns contextos as discussões acerca da justiça
assumem a roupagem do discurso normal: apesar de discordarem frontalmente
quanto ao que caracterizam como justo, os litigantes compartilham algumas
pressuposições subjacentes sobre o que aparenta ser uma reivindicação por justiça
inteligível. Essa concordância velada inclui pelo menos quatro ordens de assunções:
(1) ontológicas, quanto aos tipos de atores de podem fazer reivindicações
(indivíduos) e de organismos dos quais se devem exigir as reparações (estados
territoriais); (2) sobre o alcance ou âmbito da justiça, que fixam o círculo de
interlocutores para quem devem ser endereçadas as reivindicações e delimitam o
universo daqueles cujos interesses merecem consideração (nos dois casos, o
conjunto de cidadãos de uma comunidade política limitada); e (3) acerca do espaço
no qual as reivindicações podem inteligivelmente ser levantadas, geralmente o
espaço econômico da distribuição; e (4) quanto às clivagens sociais que podem
abrigar injustiças, usualmente classe e etnicidade. O resultado dessas
concordâncias é que os debates assumem uma forma identificável relativamente
regular (justiça normal), a porque que os conflitos se constituem através de um
conjunto de princípios organizadores e manifestam uma gramática particular.
Claro que a justiça pode jamais ser normal nesse sentido, vez que os debates
públicos que a tematizam dificilmente se restringem completamente aos limites de
um dado conjunto de assunções constitutivas. Da mesma forma, é improvável que
todos os participantes compartilhem todas as pressuposições. Mesmo assim, o
conceito pode ser empregado utilmente por analogia com Thomas Kuhn (Cf. KUHN,
1996, p. 7/10) e sua compreensão de ciência normal: o discurso sobre a justiça é
normal enquanto permanecem contidas as dissidências públicas ou a desobediência
com relação àquelas assunções. Segundo Fraser, no entanto, o contexto atual é de
justiça anormal e ela explicitamente toma emprestado o termo rortyano para evitar
o emprego da tão desgastada palavra “revolucionária”, que seria mais coerente com
a analogia com Kuhn (Cf. FRASER, 2008a, p. 48-49, notas 1, 2 e 3).
Com efeito, os debates contemporâneos sobre justiça não apresentam a
forma estruturada do discurso normal, mas um caráter esparso. Os contendedores
87
atuais freqüentemente não estão de acordo quanto aos possíveis autores das
reivindicações por justiça, uns incluindo nesse rol grupos e comunidades e outros
aceitando tão-somente indivíduos; nem quanto às entidades responsáveis pela
reparação, uma parte visionando novas instituições transnacionais ou cosmopolitas
e outra se restringindo aos estados territoriais. As discordâncias também alcançam a
extensão do círculo de interlocutores, vez que uns endereçam seus clamores à
opinião pública internacional e outros os confinam ao interior das comunidades
políticas delimitadas. Nesse passo, os que concedem posição moral a todos os
seres humanos no debate e, por outro lado, aqueles que restringem sua
consideração à fala de seus concidadãos. Não raro o desacordo atinge o espaço
conceitual dentro do qual as reivindicações podem ser formuladas: enquanto alguns
admitem apenas temas econômicos (redistribuição), outros entendem aceitáveis os
clamores culturais (reconhecimento) e políticos (representação). Por fim, as próprias
clivagens sociais que podem abrigar injustiças estão sob ferrenha discussão, ao
passo que alguns admitem somente nacionalidade e classe e outros acrescentam a
estas o gênero e a sexualidade.
À medida que contendas quanto às premissas básicas proliferam, as falas
desviantes aparecem cada vez menos como anomalias e invadem os lugares
centrais do discurso sobre justiça. o logo se erigem reivindicações de primeira-
ordem elas são sobrepostas por metadisputas sobre as assunções constitutivas. Em
outras palavras, não questões substantivas estão em disputa, mas também a
própria gramática da justiça. Não que essa situação seja historicamente sem
precedentes. Prova disso é, por exemplo, o período anterior ao Tratado de Westfália,
quando o imaginário político feudal se desfazia e o sistema de estados territoriais
não estava consolidado. Ou ainda o lapso imediatamente após a Primeira Guerra
Mundial, no qual internacionalismos nascentes colidiam com nacionalismos
ressurgentes em meio às ruínas de três grandes impérios. Na verdade, é provável
que a anormalidade seja a própria regra histórica e a normalidade a exceção (Cf.
FRASER, 2008a, p. 50).
As anormalidades atuais, contudo, o historicamente específicas e refletem
recentes modificações do cenário geopolítico mundial: o fim da Guerra Fria, a
contestação da hegemonia dos Estados Unidos, a ascensão do neoliberalismo e a
nova proeminência da globalização. Nesse quadro, paradigmas estabelecidos
88
começam a se desestabilizar e isso vale para as três maiores famílias de
reivindicações por justiça:
Logo, no despertar da produção transnacionalizada, do mercado financeiro
globalizado, do comércio e regimes de investimento neoliberais, as
reivindicações por redistribuição crescentemente trespassam as fronteiras
das gramáticas centradas no estado e das arenas de discussão. Da mesma
forma, dada a migração transnacional e os fluxos midiáticos globais, os
clamores por reconhecimento dos outrora distantes outros” adquirem uma
nova proximidade, desestabilizando horizontes de valor cultural que eram
previamente assumidos tacitamente. Finalmente, em uma era de hegemonia
de superpoder contestada, governança global e política transnacional,
reivindicações por representação cada vez mais quebram a estrutura
anterior do estado territorial moderno (FRASER, 2008a, p. 51).
As disputas atuais, como se percebe, evidenciam uma heteroglossia do
discurso sobre a justiça que não possui qualquer aparência de normalidade não
importando se a questão em foco é econômica, cultural ou política. Em razão disso,
Fraser considera de pouca orientação as teorias de justiça de que dispomos,
construídas em tempos de normalidade com base em uma gramática compartilhada
e largamente centradas em questões de primeira-ordem. Elas falham na sua tarefa
de prover fontes conceituais ao se depararem com assunções conflitantes acerca da
posição moral, clivagem social e instâncias de reparação.
Para formular uma teoria que possa dar alguma orientação em tempos
anormais como os que atravessamos, Fraser de início identifica três nódulos de
anormalidade nas disputas contemporâneas acerca da justiça. Esses nódulos
correspondem à ausência de uma visão compartilhada quanto às três questões
centrais, citadas: o “que”, o “quem e o “como” da justiça. As pressuposições
comuns anteriores quanto a cada uma delas poderiam ser resumidas assim: 1) o
“que” da justiça possuía um caráter quase que exclusivamente econômico entre as
diversas correntes do pós-guerra; 2) o “quem” estava associado à cidadania
nacional dos estados territoriais; e 3) o “como” jamais entrava em questão, pois as
instâncias de apelação para correção dos arranjos injustos eram os estados (e
organizações intergovernamentais) ou as elites privadas.
Ocorre que essas três premissas normalizadoras não passam despercebidas
atualmente. A hegemonia do “que” distributivo foi desafiada tanto pelos diversos
praticantes da política de reconhecimento, de multiculturalistas a etno-nacionalistas,
quanto pelos militantes da política de representação, indo das campanhas feministas
pelas cotas de gênero em listas eleitorais a minorias nacionais demandantes de
89
arranjos com divisão de poder. Por isso as três concepções rivais de “que” da
justiça: redistribuição, reconhecimento e representação. A supremacia do “quem”
nacional-territorial Westfaliano também foi desafiada pelo menos em três direções:
por localistas e comunalistas, que subscrevem estruturas com unidades
subnacionais; pelos regionalistas e transnacionalistas, que advogam um círculo mais
amplo, embora não universal, como “Europa” ou “Islão”; e por globalistas e
cosmopolitas, defensores de uma igual consideração por todos os seres humanos.
Finalmente, o “como” hegemônico tem sido desafiado pela ascensão das
expectativas democráticas de movimentos mobilizados, sejam eles populistas ou
democratizantes, que intentam efetivamente colocar em cheque a prerrogativa de
estados e elites de determinarem a gramática da justiça.
Para cruzar o terreno movediço acima mapeado, onde a cada passo nos
confrontamos com a anormalidade, são necessários movimentos cuidadosamente
planejados – estratégias para teorizar a justiça em tempos anormais. Fraser acredita
que, para tanto, é indispensável se levar em conta os dois aspectos da justiça
anormal positivo e negativo. O aspecto positivo, ou seja, a expansão do campo de
contestação, possibilita desafiar injustiças que a gramática anterior elidia, vez que
torna visíveis e criticáveis prejuízos não-econômicos de misrecognition e
misrepresentation, bem como um tipo de meta-injustiça denominada misframing, na
qual a estrutura (frame) de estados nacionais soberanos exclui de antemão os
clamores dos desfavorecidos do globo. O traço negativo é que a contestação
expandida não garante por si a vitória sobre a injustiça. Para isso são
necessárias pelo menos outras duas condições, ambas ausentes em tempos
anormais: um arcabouço (framework) relativamente estável em que as
reivindicações sejam equitativamente avaliadas, bem como instâncias e meios de
reparação institucionalizados. Em meio à elevação das disputas, reduzem-se os
meios de corrigir a injustiça. Portanto, pensar a justiça em tempos de discurso
anormal exige simultaneamente valorizar a contestação expandida e fortalecer as
capacidades diminuídas de adjudicação e reparação (Cf. FRASER, 2008a, p. 52-58).
As pistas para uma resposta pelo menos parcial a esse desafio teórico
parecem poder ser encontradas no exame dos nódulos de anormalidade já referidos.
No que tange ao “que” da justiça, Fraser propõe uma abordagem que combine uma
ontologia social multidimensional com um monismo normativo. Em outras palavras, a
justiça deve ser concebida como abrangendo múltiplas dimensões, cada uma delas
90
associada a um gênero distinto de injustiça e revelada através de um tipo
conceitualmente distinto de luta social. Isso evitaria a exclusão antecipada de
demandas por justiça que pressuponham visões atípicas (non-standard) do “que” da
justiça. Daí as três dimensões exaustivamente discutidas ao longo do presente
trabalho: redistribuição, reconhecimento e representação. Obviamente, as referidas
dimensões são desveladas historicamente, o que ocorre quando “movimentos
sociais (...) logram êxito em construir reivindicações plausíveis que transgridem a
gramática estabelecida da justiça normal, a qual parecerá retrospectivamente ter
obscurecido a desvantagem sofrida por seus membros” (FRASER, 2008a, p. 59).
Por isso a feminista não se apressa em limitar as possíveis dimensões da
justiça àquelas três detalhadas em seus escritos, mas aconselha a caridade
hermenêutica com respeito às visões incomuns de justiça dos demandantes, por
meio da concessão de presunção de inteligibilidade e potencial validade. Para ela, a
teoria deveria testar se as reivindicações formuladas efetivamente desvelam formas
genuínas de injustiça enraizadas em dimensões negligenciadas da ordenação
social. O teste possui um na filosofia moral, avaliando se a nova interpretação do
“que” desvela uma genuína injustiça que viola uma norma moralmente válida, e
outro na teoria social, investigando se a nova visão evidencia um tipo negligenciado
de obstáculo à paridade de participação que esteja enraizado em uma forma
anteriormente negligenciada de ordenação social. Portanto, uma teoria adequada
para a nossa época deveria admitir pelo menos a tridimensionalidade da justiça
(econômica, cultural e política), permanecendo aberta à revelação de novas
dimensões no curso das lutas sociais.
No entanto, também se faz necessário colocar os múltiplos gêneros de
injustiça sob uma medida. Sem um princípio de comensuração, não como
avaliar demandas através das diferentes dimensões ou processar disputas que
englobem múltiplas visões do “que”. Como era de se esperar, Fraser aponta o
princípio da paridade de participação, que foi detalhado em profundidade nas
seções anteriores. Vale acrescentar apenas que o emprego comum desse princípio
às três dimensões da justiça cria um só espaço discursivo, permitindo dessa forma a
acomodação de todas as reivindicações.
No tocante ao “quem” da justiça, a sugestão fraseriana é por uma abordagem
simultaneamente reflexiva e determinativa. A primeira característica diz respeito à
teorização da justiça anormal, que deve ser capaz de capturar o problema da
91
estrutura (frame) como uma questão de justiça. Isso é possível quando se admite de
saída a possibilidade de injustiças de estruturação, ou seja, que as fronteiras da
comunidade política podem estar delineadas de forma a erroneamente excluir
completamente a participação de algumas pessoas nos debates sobre a justiça.
Deve-se entrever, portanto, injustiças de misframingcomo as apontadas por vários
movimentos ligados ao Fórum Social Mundial, que julgam injusto o sistema de
estados territoriais quando ele exclui as reivindicações dos pobres do globo diante
de exploradores internacionais (investidores e especuladores estrangeiros,
corporações transnacionais, etc).
Além da reflexividade, também se faz necessário um princípio determinativo
que especifique quando e onde podem ocorrer as injustiças de misframing e sirva à
avaliação das próprias estruturas. Fraser rejeita tanto o critério do caráter de
membro, que restringe a estrutura ao pertencimento político cidadania ou
nacionalidade comum, quanto o do humanismo, que amplia o escopo para os
detentores de personalidade e abrange a humanidade global, mas exclui a
possibilidade de diferentes estruturas ou escalas de justiça. Aqui, a feminista insere
uma inovação em seu ponto de vista, pois também afirma que os problemas
associados ao princípio de todo-os-afetados se tornaram invencíveis, obrigando-a a
sugerir o princípio de todos-os-sujeitados. Segundo este determinativo, “todos
aqueles que estão sujeitos a uma dada estrutura de governança detém posição
moral enquanto sujeitos de justiça com relação a ela” (FRASER, 2008b, p. 65). Sob
essa perspectiva, o que torna em sujeitos parceiros uma coleção de pessoas é a
sujeição comum a uma estrutura de governança que estabelece as regras de base
que governam a interação entre elas. A interpretação proposta para “sujeição a uma
estrutura de governança” é a mais ampla possível, abrangendo diversos tipos de
submissão ao poder coercitivo estatal ou o-estatal, além de agências como a
Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional e similares.
O princípio de todos-os-sujeitados (all-subjected) possui a considerável
vantagem de permitir a avaliação da injustiça das estruturas. Uma questão está
estruturada de forma justa somente quando a todos aqueles submetidos às
estruturas de governança (reguladoras das faixas relevantes da interação social) é
conferida igual consideração. Isso remedia os maiores defeitos dos demais
princípios: combate o nacionalismo excludente, sobrepuja o globalismo abstrato
desatento às relações sociais, evita o apelo indiscriminado ao efeito borboleta que a
92
afetação permite. Além disso, possibilita delimitar uma variedade de diferentes
estruturas para diferentes questões. Assim é possível lidar com os dois aspectos da
justiça anormal: pela reflexividade se valida a contestação da estrutura Westfaliana;
pela determinação se oferece um caminho para julgar da justiça dos diversos
“quem”.
A questão do “como”, por sua vez, exige uma abordagem dialógica e
institucional. Para valorizar a expansão da contestação, uma teoria da justiça deve
afastar a presunção hegemônica de que estados poderosos e elites privadas detém
a prerrogativa de definir a gramática da justiça, bem como a assunção cientificista de
que esse papel caberia à ciência social normal, por meio de tecnocratas da justiça.
Essa crítica Fraser havia delineado em escritos anteriores a 2008, amplamente
dissecados em passagens antecedentes do trabalho em mãos. Rejeitando as
opções monologais, ela sugere que as disputas acerca da estruturação devem ser
tratadas dialogicamente, como conflitos políticos para cuja resolução legítima se
exige discussão publica irrestrita e inclusiva.
Mas além de dialogal, uma teoria da justiça para tempos anormais precisa dar
conta da relação entre contestação e produção legítima de decisões, implementando
o princípio de todos-os-sujeitados. Para tanto, não deve recair no populismo de
situar o locus de contestação e decisão na sociedade civil (por exemplo, no Fórum
Social Mundial). Fraser aponta duas razões para isso: primeiro, mesmo as melhores
formações da sociedade civil não o suficientemente representativas ou
democráticas para legitimarem suas propostas de estruturação; segundo, a essas
formações falta a capacidade de converterem suas propostas em decisões políticas
vinculativas. É necessária, portanto, uma segunda faixa do processo dialogal,
institucional-formal, que se mantenha em relação interativa e dinâmica com a
primeira. Ela se diferenciaria da primeira em dois aspectos: exigiria procedimentos
equitativos e estrutura representativa para assegurar a legitimidade democrática de
suas decisões e seus representantes, apesar de responsáveis perante a sociedade
civil, deveriam ter a capacidade de formular decisões vinculantes acerca do “quem”,
embasadas em juízos comunicativamente gerados quanto a quem de fato está
sujeito a uma dada estrutura de governança. Conforme Fraser havia assinalado
(Cf. FRASER, 2007a), a justiça anormal requer a invenção de novas instituições
democráticas globais para a solução das disputas de estruturação, em permanente
diálogo com a sociedade civil transnacional (Cf. FRASER, 2008a, p. 69).
93
Essa configuração do “como” da justiça fornece meios de tratar os
metaproblemas, abrindo espaço para o enfrentamento de maldistribution,
misrecognition e misrepresentation e, dessa forma, reduzir a injustiça em tempos
anormais – objetivo inicial de Fraser desde a década de 1990.
Por fim, cabe uma palavra acerca das implicações conceituais e políticas do
argumento geral fraseriano, em especial a conexão entre os dois momentos
heterogêneos de seu pensamento: o diagnóstico que aponta uma era de
anormalidade discursiva e os modelos alternativos de teorização propostos para
contextos em que a discordância alcança o “que”, o “quem” e o “como” da justiça.
De um lado, pode-se defender a impossibilidade de mudança emancipatória
na ausência de uma estruturação relativamente estável para o tratamento e
adjudicação das demandas. Se assim for, o objetivo seria construir um “novo
normal”, apontando um paradigma original e apropriado ao mundo em globalização.
Fraser insiste não ser essa a sua intenção:
Por uma, a re-normalização corre o risco de fechar prematuramente novas
vias de contestação, antes que tenham tido uma chance justa de
estabelecer sua plausibilidade. Por outra, ela se arrisca a designar uma
nova, restritiva predefinição do que conta como uma reivindicação inteligível
por justiça, desse modo entrincheirando novas exclusões. Finalmente, a
proposta de estabelecer um “novo normal” corre o risco de sacralizar um
conjunto fixado de assunções sobre a justiça em um momento histórico
crítico quando as circunstâncias da justiça estão em fluxo e exigem
flexibilidade (FRASER, 2008a, p. 72).
Daí ela propor outra leitura para sua argumentação, uma que tenha como
resultado abalar a distinção entre justiça normal e anormal. A intenção é buscar um
modelo alternativo a esses dois gêneros de discurso, mas que incorpore seus
melhores traços e rejeite suas deficiências. Diversamente da justiça anormal, um
modelo que possua capacidades estruturadoras suficientes para apresentar as lutas
contemporâneas por justiça como debates, nos quais as partes se confrontem e
chamem a atenção e o julgamento daqueles que as observam. Ao mesmo tempo,
contrariamente à justiça normal, uma alternativa que detenha capacidades
autoproblematizadoras suficientes para nutrir novos clamores acerca do “que”,
“quem” e “como” da justiça. Esse terceiro gênero de discurso, que a um tempo
carrega a orientação para o fechamento (democrático) das discussões, necessário
para o debate político, mas que trata todo fechamento como provisório, sujeito ao
questionamento, suspensão e reabertura, Fraser chama de justiça reflexiva.
94
Ao tempo em que admite ser improvável um amortecimento para breve das
disputas quanto às três questões da justiça e, assim, considera esses nódulos de
anormalidade como aspectos duradouros do discurso sobre a justiça, a abordagem
reflexiva não encara esse quadro como uma licença para a paralisia, até mesmo
pela magnitude das injustiças de primeira-ordem que persistem no mundo atual. Isso
equivale a, simultaneamente, entreter reivindicações urgentes em favor dos
desfavorecidos e analisar as metadisputas nelas entrelaçadas. O trabalho nesses
dois níveis pode fazer desabar a distinção entre discurso normal e anormal.
Para Fraser, a justiça reflexiva faz ruir também a distinção entre abordagens
normalizadoras ético-discursivas e agonísticas. Assim como as primeiras, valoriza o
momento do fechamento, que possibilita o debate político, a tomada coletiva de
decisões e a ação pública indispensáveis à correção da injustiça. E, da mesma
forma que as segundas, valoriza o momento da abertura, que rompe as exclusões
da justiça normal, abraçando reivindicantes por ela silenciados e revelando injustiças
por ela ocultadas. Em suma, essa abordagem fornece o ingrediente ausente para a
“esperança social”, no sentido rortyano da expressão (Cf. RORTY, 1999).
95
4 NANCY FRASER PÓS-AVALIADA: LIMITAÇÕES DA PARIDADE DE
PARTICIPAÇÃO
Como se pode perceber ao longo dos capítulos anteriores, Nancy Fraser
alterou paulatinamente sua concepção de justiça. Esse refinamento, operado ao
longo dos anos 2000, ocorreu tanto por movimentos espontâneos da autora quanto
por provocações oriundas dos debates com seus críticos, bem como em virtude das
trocas entre ela e seus colegas da tradição crítica. No início deste último capítulo,
serão abordadas aquelas modificações consideradas mais importantes e os embates
que as motivaram. Ao final, serão alinhadas algumas críticas que indicam limitações
presentes na concepção fraseriana de justiça, especialmente em sua noção central
de paridade de participação.
4.1 Mutações fraserianas
Nessa seção será feita uma breve avaliação do sucesso ou insucesso de
Fraser na resposta a algumas das mais relevantes críticas que lhe foram
endereçadas. Mais importante que isso, as alterações que ela realizou
progressivamente em sua concepção de justiça social serão confrontadas com as
percepções acertadas dessas críticas (e autocríticas).
Isso equivale a investigar se a noção de justiça em Fraser sofreu uma ruptura
ou uma simples ampliação, cujo gérmen poderia ser lido desde a década de 1990
e se essa modificação a conduziu efetivamente a um patamar mais abrangente de
crítica social (como interessaria a uma teórica da tradição crítica).
Concomitantemente, verificaremos se ela responde corretamente a alguns dos mais
importantes ataques e críticas sofridos e se as alterações supramencionadas em seu
próprio conceito de justiça foram resultantes e/ou conseguiram dar conta das
dificuldades apontadas por seus críticos.
Para tornar a apresentação desses debates mais sistemática, aproveitou-se a
divisão que Kevin Olson sugeriu na obra por ele organizada sobre Fraser e seus
96
críticos, Adding insult to injury, publicada em 2008. O livro foi dividido em quatro
partes (ou rodadas de discussão), cada uma contendo reproduções dos artigos de
Fraser e dos seus debatedores: a primeira centrada no diagnóstico fraseriano acerca
da fissura entre redistribuição e reconhecimento; a segunda focada na integração
daquelas dimensões na teoria e na prática (pressupondo assim a correção pelo
menos parcial do diagnóstico); a terceira voltada para discutir se redistribuição e
reconhecimento exaurem a questão da justiça ou se faz necessária a incorporação
de uma terceira dimensão, política; por fim, na última rodada, a preocupação central
se liga aos alicerces filosóficos da teoria fraseriana, em especial suas fundações
normativas e sua ontologia social.
Em cada um desses debates, a teoria de Fraser sofre aclaramentos,
refinamentos, modificações. No contexto dessas críticas e refutações, a pensadora
foi, por si mesma e/ou por influência direta ou indireta dos seus interlocutores,
lapidando seus conceitos e ampliando o escopo inicial do seu pensamento. Dentre
as discussões presentes em Adding insult to injury, foram destacadas a seguir as de
maior relevância para as referidas alterações.
4.1.1 A crítica do diagnóstico
Importa rememorar, nesse passo, que no final seu ensaio From Redistribution
to Recognition? Dilemmas of Justice in a ‘Post-Socialist’ Age (1995), Fraser examina
concepções alternativas de redistribuição e de reconhecimento, apondo e opondo
em uma matriz os remédios que considera afirmativos (Estado do bem-estar liberal
na economia e multiculturalismo do mainstream na cultura) e transformativos
(socialismo na economia e desconstrução na cultura). Ela sugere ao final uma
integração dos remédios transformativos, pois somente essa junção evitaria (ou
reduziria) as tensões do dilema redistribuição-reconhecimento e não alimentaria as
chamas do ressentimento (Cf. FRASER, 1995, p. 90).
Não é de estranhar que uma teoria da justiça como a de Fraser, que pretende
superar as cisões entre a Esquerda cultural e a Esquerda social (como chamadas
nos Estados Unidos) com o intuito de “articular a base para uma frente unida da
Esquerda” (FRASER, 1997c, p. 280), tenha recebido críticas variadas, algumas
97
vezes acaloradas, advindas de ambos os lados. Do lado da Esquerda cultural,
destacamos as críticas de Judith Butler e Iris Marion Young. Por sua vez, Richard
Rorty intervém em nome da Esquerda social.
Butler, em seu ensaio Merely Cultural (1997), procura defender a Esquerda
cultural do que ela denomina Marxismo neoconservador, que responsabiliza os
novos movimentos sociais pela fissura na Esquerda e os caracteriza como
“meramente” culturais:
Como está relacionada esta tentada separação à reivindicação de que os
novos movimentos sociais cindiram a Esquerda, nos privaram de ideais
comuns, criaram facções no capo do conhecimento e do ativismo político,
reduzindo este último à mera asserção e afirmação da identidade cultural?
A declaração de que os novos movimentos sociais são “meramente”
culturais, de que um Marxismo progressista deve retornar a um
materialismo baseado em uma análise objetiva de classe, presume que a
distinção entre vida material e cultural é estável. (...) este recurso (...) é
claramente o ressurgimento de um anacronismo teórico (BUTLER, 1997, p.
36).
A distinção, segundo ela, estaria a serviço de uma tática que procura
identificar os novos movimentos sociais com o cultural e, por sua vez, o cultural com
o derivativo e secundário. Tudo isso em nome de uma ortodoxia que, pretensamente
universalista em oposição aos “particularismos” desses movimentos, se faz
possível por meio de uma abstração do seu lugar no poder, operação a um só tempo
falseadora e territorializadora que deve ser combatida em todos os níveis,
acrescenta a autora.
Ao abordar esse menosprezo da esfera cultural que aponta, por exemplo, o
movimento queer como o extremo cultural da politização, Butler insere o
pensamento fraseriano como detentor dessas assunções que a preocupam. Apesar
de não considerar Fraser uma ortodoxa, Butler insiste que ela reproduz a divisão que
situa certas opressões no âmbito da economia política e relega outras à esfera
exclusivamente cultural. Citando o espectro conceitual elaborado por Fraser e a
posição da sexualidade no extremo cultural, que endossa não estar a homofobia
enraizada na estrutura de classe, Butler conclui que a visão fraseriana “transforma
as lutas deles [homossexuais] em uma questão de reconhecimento cultural, no lugar
de uma opressão material” (BUTLER, 1997, p. 39).
Mas Butler indaga se realmente é possível a separação, mesmo que analítica,
entre a falta de reconhecimento cultural e a opressão material. Em seu entender, as
98
normas culturais envolvidas na regulação dos gêneros e na marginalização das
sexualidades não-normativas possuem claros efeitos materiais e são centrais ao
funcionamento da economia política, naquilo que Engels chamou de “produção dos
próprios seres humanos” (Cf. BUTLER, 1997, p. 39-40).
Estritamente, Fraser sai ilesa desse tipo de crítica, pois mesmo em seu
ensaio de 1995 afirmava a materialidade dos efeitos de misrecognition:
“homosssexuais estão sujeitos a humilhação, assédio, discriminação e violência”
(FRASER, 1995, p. 77). Ainda assim, escreveu uma resposta a Butler esclarecendo
suas concordâncias e desacordos. No artigo Heterosexism, misrecognition, and
capitalism: a response to Judith Butler, de 1997, ela se apressa em mostrar que a
crítica endereçada aos Marxistas neoconservadores pode erroneamente ser
apontada contra ela, em virtude da discussão desses dois pontos no ensaio
butleriano. A feminista norte-americana faz questão de sublinhar que em seu ensaio
de 1995 expôs tanto a irredutibilidade conceitual da opressão heterossexista quanto
a legitimidade moral das reivindicações de gays e lésbicas.
Com efeito, em nenhum momento de sua obra Fraser aponta as injustiças
culturais como de menor importância, como “meramente” culturais. Ao contrário,
considera tanto maldistribution quanto misrecognition como “dois tipos igualmente
primários, sérios e reais de dano que qualquer ordem social moralmente defensável
deve erradicar” (FRASER, 1997c, p. 280).
Butler erroneamente assume que as injustiças culturais que Fraser refere
como manifestações de misrecognition devam ser imateriais e não-econômicas, uma
confusão entre material e econômico. Mas para Fraser, diversamente, “injustiças de
misrecognition são tão materiais quanto injustiças de maldistribution”, além de que
as normas, significações e construções de personalidade que obstruem mulheres,
pessoas “racializadas” e/ou gays e lésbicas da paridade de participação “estão
materialmente manifestas em instituições e práticas sociais, na ação social e nos
hábitos incorporados, e sim, em aparatos estatais ideológicos” e “são materiais em
sua existência e efeitos” (FRASER, 1997c, p. 282).
Fraser critica ainda a conclusão butleriana de que a regulação
heteronormativa da sexualidade seja parte da estrutura econômica por definição,
independentemente do fato dela não estruturar a divisão social do trabalho nem o
modo de exploração da força de trabalho na sociedade capitalista. Precisamente
nesse tipo de sociedade, a relação entre o modo de regulação sexual e a ordem das
99
relações econômicas especializadas encontra-se atenuada, o que permite a um
número maior de indivíduos viver do trabalho remunerado fora de famílias
heterossexuais. Ou seja, empiricamente o capitalismo não parece requerer o
heterossexismo o que implica não ser necessário derrubá-lo para vencer esse tipo
de injustiça, embora isso possa muito bem ser preciso em virtude de outras
violações. Indispensável, segundo Fraser, é transformar a ordem de status corrente
e reestruturar as relações de reconhecimento (Cf. FRASER, 1997c, p. 284-285).
Iris Marion Young se engaja no debate para afirmar que Fraser, como outros
críticos do multiculturalismo, exagera o grau em que uma política do reconhecimento
recua das lutas econômicas, afirmando enxergar pouca evidência de que ativistas
feministas ou anti-racistas, em regra, ignorem questões de controle e desvantagem
econômica. A crítica chega a afirmar que a dicotomia entre economia e cultura leva
Fraser a representar erroneamente os movimentos sociais contemporâneos “como
reivindicando o reconhecimento como um fim em si mesmo, quando eles são melhor
compreendidos como concebendo reconhecimento cultural como um meio para a
justiça econômica e política” (YOUNG, 1997, p. 148).
Para Young, ademais, os dilemas autodestrutivos que Fraser identifica no
curso das lutas empreendidas pelos movimentos sociais são construção de seu
sistema abstrato e não problemas concretos de estratégia. Nesse sentido, critica
Fraser por adotar uma estratégia polarizadora (redistribuição e reconhecimento) na
qual as injustiças a todos os grupos seriam redutíveis a duas, e apenas duas,
categorias mutuamente exclusivas, que englobariam todos os aspectos relevantes
quanto ao tema da opressão. Ela argumenta que é teórica e politicamente mais
produtivo pluralizar as categorias e entendê-las como diferentemente relacionadas a
grupos e questões particulares. Mai que isso, assevera que Fraser impõe categorias
dicotômicas em uma realidade mais complexa e, desse modo, encontra contradição
onde ela não existe (Cf. YOUNG, 1997, p. 148/150/158).
Na verdade, a crítica youngiana não discorda do alerta feito por Fraser para
que os radicais renovem a atenção às questões materiais da divisão do trabalho,
acesso a recursos e atendimento às necessidades. Mas defende as correntes
multiculturalistas criticadas por Fraser, aduzindo:
(...) é difícil ver como uma política feminista do reconhecimento “vai contra”
uma política feminista de redistribuição. Dado que solapar a misoginia que
faz as mulheres vítimas de violência e degradação exige afirmar a
100
específica humanidade por gênero (gendered humanity) das mulheres, isto
também pareceria contribuir para a revalorização econômica das mulheres.
Afirmar o valor normativo e humano do trabalho que as mulheres fazem fora
da força de trabalho, ademais, é contribuir para uma reestruturação
redistributiva que leva em conta os custos sociais ocultos de mercados e
políticas sociais (YOUNG, 1997, p. 159).
Young afirma que a própria Fraser sugere, em um ensaio datado de 1990,
que qualquer luta contra a opressão é simultaneamente uma luta contra a
dominação cultural e econômica. E aconselha que sigamos a Fraser anterior, mas
não a de From redistribution to recognition?, que parece oposta à primeira ao
separar cultura e economia. Por fim, acrescenta que uma abordagem
“desconstrutiva” na política cultural não esclarece a condução do ativismo na base e
muito menos favorece uma política de coalizão, que deve respeitar as perspectivas e
circunstâncias específicas dos grupos envolvidos.
A resposta de Fraser a Iris Marion Young é exposta em um artigo curto e
ácido, ainda de 1997, que revela seu tom logo no título: Against Pollyanna-ism: A
Reply to Iris Young. De entrada, Fraser afirma que ela e Young parecem habitar
mundos diferentes, sendo que no de sua interlocutora não existem divisões entre a
Esquerda social e a Esquerda cultural, os proponentes das políticas cultural e social
trabalham cooperativamente e apenas raramente as reivindicações por
reconhecimento da diferença são colocadas como fins em si mesmas; quase sempre
apenas como demandas socialistas transitórias. As cisões que inspiraram From
redistribution to recognition?, portanto, são apenas produtos da imaginação de sua
autora.
Fraser acrescenta que tais divisões, no entanto, foram evocadas pela cultura
política ‘pós-socialista’ e não por sua imaginação, tendo seu esforço consistido
precisamente em esboçar um arcabouço para analisar as cisões existentes e
mostrar que elas repousam em uma falsa antítese. Acusa Young de
sistematicamente distorcer seu argumento e confundir três níveis diferentes de
análise, o filosófico, o teórico-social e o político, ao fazer uma discussão mais
tendenciosa do que analítica.
Quanto ao primeiro nível, esclarece que seu ponto de partida foi o
desacoplamento atual entre dois paradigmas distintos de justiça, ambos bem-
sucedidos em identificar e explicar a força moral de um conjunto importante de
reivindicações por justiça, embora mutuamente dissociados na filosofia moral de
101
nossos tempos. Faz questão de salientar que não inventou esses paradigmas e nem
tramou sua dissociação, e ainda menos que advoga uma teoria da justiça dividida
em duas categorias mutuamente exclusivas. Pelo contrário, afirma ter “colocado a
questão filosófica de como deveríamos entender a relação entre eles [os
paradigmas]” (FRASER, 1997b, p. 127).
No aspecto sócio-teorético, por sua vez, Fraser destaca que não descreveu
os processos materiais da economia política como opostos aos processos
simbólicos da cultura. Contra Young, não demarcou economia e cultura como
domínios substantivos, tendo apenas distinguido duas perspectivas analíticas
aplicáveis a cada um dos domínios, precisamente por considerar a interpenetração
entre eles e os efeitos não pretendidos das reivindicações culturais e econômicas. A
dicotomia que Young aponta seria, em verdade, uma dualidade perspectiva. O erro
de sua crítica, assevera Fraser, é assumir que uma dupla distinção equivale a uma
dicotomia. Ela lembra que Young preferência a uma categorização em cinco
eixos exploração, marginalização, impotência, imperialismo cultural e violência
mas não justifica seu “pentagonismo”, pelo menos não de forma a evidenciar maior
poder explanatório que o seu ferramental duplo de maldistribution e misrecognition.
Por fim, no nível político, as fissuras existentes entre os proponentes do
reconhecimento e da redistribuição dão expressão a tensões genuínas entre
múltiplos objetivos que devem ser perseguidos simultaneamente. Fraser lembra que
não basta a afirmação de que os que reivindicam reconhecimento esperam por meio
dele promover a reestruturação econômica cabe ainda indagar se tais esperanças
são fundadas ou tendem a desabar. Ou seja, em nada auxilia adotar uma visão
“pollyannica”, na qual as tensões entre os movimentos sociais progressistas de
algum modo serão automaticamente resolvidas por meio de uma coalizão toda-
abrangente. Essas tensões ou contradições aparentes podem ser resolvidas com a
distinção entre abordagens transformativas e afirmativas conclusão que, Fraser
nota, Young rejeitaria, até mesmo pela defesa que esta fez do reconhecimento
afirmativo (FRASER, 1997b, p. 129).
Escrevendo a partir da posição de crítico do que considera um excessivo
peso ao tema do reconhecimento cultural, Richard Rorty debate a um tempo com
Butler e Fraser em seu artigo Is “cultural recognition” a useful notion for leftist
politics? (2000). Representa, ao contrário de Butler e Young, a Esquerda social no
debate com Fraser. Com efeito, ele duvida da utilidade da noção de reconhecimento
102
cultural para decidir o que deve ser feito em termos políticos, aduzindo que os
esquerdistas acadêmicos igualmente superestimam a utilidade da filosofia e de
termos como “desconstrução”.
Procurando rememorar a antiga luta dos esquerdistas norte-americanos
contra o preconceito e pela afirmação de uma humanidade comum, ele também
acaba narrando como, em sua visão, o termo reconhecimento (no sentido de
reconhecimento das diferenças culturais) se infiltrou na academia e na política dos
Estados Unidos. Para Rorty, derrotas eleitorais da esquerda norte-americana na
década de 1970 impulsionaram os diversos estudos culturais nas universidades
como uma espécie de válvula de escape para os intelectuais, pois “era tentador para
essa geração pensar que talvez eles pudessem promover uma revolução cultural, ao
invés de política, - uma que eventualmente faria algum bem político” (RORTY, 2000,
p. 12).
Rorty lembra que a geração presente de acadêmicos de esquerda, como
aquela anterior, também pretende ser de alguma valia para os menos favorecidos.
No caso daquela antiga geração, isso a levou a superestimar sua própria habilidade.
No caso da atual, ele aduz que
A tentativa de colocar ‘reconhecimento cultural’ no mesmo nível de
redistribuição (...) parece o resultado de uma similar superestimação: os
acadêmicos estão desesperadamente ávidos por assegurar a si mesmos
que o que estão fazendo é central, ao invés de marginal, para a política
esquerdista (RORTY, 2000, p. 13).
Mais que isso, ele considera a translação da luta social de “eliminar
preconceitos” para “reconhecer diferenças culturais” causa de confusão na
Esquerda, especialmente porque caminha no sentido oposto de tudo que é
individualista nas recentes formas ocidentais de pensar, de tudo que sugere que
queremos (e devemos querer) ser tratados simplesmente como humanos, sugestão
central desde a Revolução Francesa e difícil de ser integrada com a insistência na
importância das diferenças culturais. Por isso, e para se afastar de posições
universalistas como a de Habermas e Kant, Rorty reedita Fraser:
“O remédio para pensar em pessoas como, em primeiro e principal lugar,
membros de grupos tradicionalmente depreciados é enfatizar o que estas
pessoas compartilham com aqueles que as desprezam(RORTY, 2000, p.
15).
103
Como conseqüência dessa posição, ele se afirma cético em relação a uma
“desconstrução” cultural nos moldes de uma profunda reestruturação das relações
de reconhecimento que venha a borrar a diferenciação grupal. Apesar de se colocar
do lado de Fraser na contenda com Butler e Young, Rorty acha que a
“desconstrução” é uma arma muito mais sofisticada do que a Esquerda efetivamente
precisa e que a sugestão fraseriana de colocá-la ao lado do socialismo lhe parece
tão somente enfatizar as laboriosas construções dos teóricos. Por isso, sustenta não
enxergar a relevância que Fraser entrevê para a combinação de soluções
transformativas, como socialismo e desconstrução, na interseção de classe, “raça”,
gênero e sexualidade. Em sua visão, a dita interseção não tem relevância para algo
tão filosoficamente sofisticado como a desconstrução – trata-se apenas de um
somatório de fatos tais como ser discriminada pela manhã por ser mulher, à tarde
por ser negra e à noite por ser lésbica, e ainda ser mal paga por qualquer uma
dessas razões. Dessa forma, ele não acredita que os remédios para essa situação
estejam ligados a questões acerca de sua “identidade” e por isso mesmo a sua
dúvida de que uma pessoa nessa situação seja realmente ajudada por uma
construção de identidade (Cf. RORTY, 2000, p. 16-17).
Por meio de um artigo publicado em 2000, Why Overcoming Prejudice is Not
Enough: A Rejoinder to Richard Rorty, Fraser assume que seu artigo de 1995 foi
efetivamente uma proposta para uma frente unida da Esquerda. Por meio do
abandono de abordagens afirmativas e da combinação de uma política
desconstrutiva de reconhecimento com uma política democrático-socialista de
redistribuição, ela afirma ser possível se fazer justiça ao melhor das duas Esquerdas
(social-democrata e multiculturalista).
Fraser entende que Rorty propõe um retorno à estratégia anterior de “eliminar
o preconceito”, preferida pela Esquerda pré-Vietnã. Assim, deve priorizar a economia
acima da cultura, a humanidade compartilhada acima das diferenças grupais –
enfatizar a redistribuição, ao mesmo tempo se opondo ao preconceito e
abandonando a inútil idéia de “reconhecimento cultural”. Para refutar a conclusão
rortyana acerca dos rumos da Esquerda, a feminista faz, por um lado, a defesa de
uma interpretação específica do reconhecimento como uma dimensão indispensável
da justiça social e, por outro, argumenta que as maiores injustiças de misrecognition
não podem ser remediadas apenas pela “eliminação do preconceito” (FRASER,
2008b, p. 82-83).
104
Fraser nota inicialmente que os argumentos de Rorty estão direcionados para
a política de identidade tradicional, informada pelo modelo de identidade do
reconhecimento, e concorda com ele que esse tipo de política é problemática,
especificamente pelo deslocamento que opera nas lutas por redistribuição e pela
reificação das identidades grupais (como visto em capítulo anterior desta
dissertação). No entanto, tira daí uma conclusão oposta a de Rorty: ao invés de
propor o abandono da política de reconhecimento, Fraser sugere reinterpretar o
reconhecimento em termos de status. Para ela, o que exige reconhecimento não é a
identidade específica de grupo, mas o status dos membros individuais dos grupos
como parceiros plenos na interação social. Esse modelo de status, que Fraser
ensaiava em 2000, difere da proposta de Rorty por levar a rio a violação de
misrecognition como uma espécie de subordinação injusta e que pode ser
remediada pela desinstitucionalização de padrões de valoração cultural impeditivos
da paridade de participação. A autora acrescenta que tais padrões valorativos não
são os únicos obstáculos à paridade, pois a eles se soma a falta de recursos
necessários para a interação com os outros. Maldistribution também é uma séria
injustiça, que no capitalismo não pode ser encarada apenas como uma mera
expressão da hierarquia de status. Além disso, salienta que a reparação da injustiça
cultural nesse modelo pode se dar pela afirmação das diferenças grupais, pelo
reconhecimento universalista (que parece ser a solução de Rorty para todos os
casos) ou ainda pela desconstrução dos termos em que são elaboradas as
dieferenças ou mesmo por uma combinação desses remédios. Em suma, o
modelo de status escapa ileso das críticas rortyanas à política de identidade.
De outra parte, Fraser assevera que uma política centrada exclusivamente na
redistribuição e na eliminação do preconceito é incapaz de afastar a injustiça de
misrecognition, alimentada mais por instituições e práticas sociais do que pelo
preconceito (no sentido de crenças e atitudes pejorativas). Especialmente porque
“elas freqüentemente operam abaixo do piso da consciência, somente um esforço
para mudar tais instituições e práticas pode remediar a injustiça” (FRASER, 2008b,
p. 86). A autora acrescenta ainda que misrecognition nem sempre assume a forma
de negação da humanidade comum; em algumas situações é na negação das
diferenças grupais que a injustiça surge, quando normas confeccionadas para a
situação de grupos dominantes ou majoritários são aplicadas além das fronteiras
grupais em detrimento daqueles situados diferentemente. Cite-se aqui pelo menos
105
um dos exemplos dados por Fraser: o regulamento do uniforme da polícia montada
canadense que, ao exigir chapéu, impede o acesso de Sikhs observantes àquela
ocupação. Esse caso, como muitos outros, o pode ser remediado pela ênfase
naquilo que todos compartilham, mas pela substituição de normas que negligenciam
as diferenças por alternativas que as acomodam. Para Fraser, o reconhecimento das
diferenças nem contradiz nem substitui o respeito pelo que todos compartilham
(pode mesmo aprofundá-lo, fornecendo meios de realizar o universalismo mais
plenamente); e algumas vezes aquele reconhecimento é necessário para assegurar
este respeito (Cf. FRASER, 2008b, p. 86-87).
Para encerrar sua refutação da proposta rortyana de “voltar o relógio”, Fraser
procura mostrar a utilidade da desconstrução. Assume que o reconhecimento atento
às diferenças apresenta riscos, especificamente o do congelamento das diferenças
grupais pela reificação. A solução, contudo, não seria um retroação a formas
inadequadas de universalismo-cego-às-diferenças. Diversamente, ela sugere o
acréscimo de outra camada de reconhecimento, desconstrutiva, com vistas a
combater as tendências à reificação:
Em parte isto significa engajar-se numa agitação cultural centrada em
propor um senso vívido da construtibilidade e contingência de todas as
classificações grupais. Enfatizando a abertura fundamental das
identificações à mudança histórica, tal política cultural desconstrutiva pode
ajudar a neutralizar os riscos associados à política de reconhecer a
diferença (FRASER, 2008b, p. 87).
Dessa forma, contra Rorty, Fraser conclui que a desconstrução pode ser
politicamente útil desde que entendida o como uma filosofia acadêmica
esotérica, mas como um elemento entre outros de uma estratégia multifacetada para
remediar a subordinação de status.
Note-se nos debates acima que Fraser ensaia refinamentos da posição
assumida em From redistribution to recognition?. Na discussão com Butler, pela
primeira vez ela emprega o termo status para se referir à ordem cultural, três anos
antes de sua primeira proposta mais bem acabada do modelo de status do
reconhecimento (Cf. FRASER, 2000), aspecto marcante de sua teoria da justiça. Na
discussão com Young, ela utiliza a noção de dualidade perspectiva, ainda não
presente em sua obra, para invalidar a acusação de dicotomia teórica. Mais tarde, o
resultante do aprofundamento e sofisticação dessa posição vai receber no
106
arcabouço fraseriano a denominação de dualismo perspectivo, abordagem preferida
pela autora em teoria social (Cf. FRASER; HONNETH, 2003, p. 63). O debate
empreendido em 2000 com Rorty, por sua vez, exigiu de Fraser a defesa da
autonomia da dimensão do reconhecimento cultural em sua teoria da justiça. Além
disso, apesar da defesa da desconstrução como ferramenta politicamente útil, as
suas discussões anteriores e a elaboração (na época) recente de seu modelo de
status (iniciada nas Tanner Lectures de 1998) levaram a autora a rever o privilégio
outrora atribuído à desconstrução como remédio definitivo das injustiças culturais.
Como assinala Leonard Feldman,
Enquanto a explicação inicial de Fraser acerca de redistribuição e
reconhecimento endossa uma política “desconstrutiva” do reconhecimento
diante de suas deficientes alternativas, em explicações posteriores ela
argumenta que diferentes estratégias de reconhecimento são exigidas em
diferentes contextos e que é preciso “um pragmatismo informado pelas
percepções da teoria social” (FELDMAN, 2008, p. 221).
Também data dessa época a introdução da noção de paridade de
participação (embora a noção de ‘participação igual’ possa ser lida como uma
preocupação central em 1995), que passaria a ocupar uma posição normativa
central. Como a preocupação do combate à injustiça tem por meta promover a
paridade para cada indivíduo em particular, mais do que para os grupos, Fraser
também escapa da crítica de abandono dos ideais ocidentais que Rorty endereça
aos defensores da política da diferença.
Em suma, para refutar as críticas iniciais de alguns dos principais
representantes das Esquerdas social e cultural, Fraser acabou por “elaborar a teoria
social ‘dualista-perspectiva’ quase-Weberiana que serve de base a seus pontos de
vista” (OLSON, 2008a, p. 5). Essa formulação aperfeiçoada foi iniciada nas Tanner
Lectures de 1998, continuada em 2000 com o importante artigo Rethinking
Recognition e delineada de modo ainda mais profundo na obra com Honneth,
extensivamente abordada no primeiro capítulo da presente dissertação.
107
4.1.2 A crítica da insuficiência
Pelo menos duas espécies de ataques ou correções endereçadas a Fraser
podem ser arroladas sob a denominação de críticas da insuficiência. De um lado, as
que admitem como (ainda que parcialmente) correto o diagnóstico fraseriano e a
conseqüente proposta inicial de uma concepção de justiça bidimensional, mas que
tendem a sugerir a necessidade do acréscimo de alguma outra faceta negligenciada
por Fraser. Por outro, as críticas que, interpretando diferentemente as lutas sociais
de nossa época, concentram suas acusações em algum tipo similar de inépcia.
No primeiro grupo estão vários filósofos que se consideram parte da mesma
tradição crítica de Fraser, como se pode inferir de seus escritos. Pelo menos três
deles, Leonard Feldman, Christopher Zurn e Kevin Olson apontaram a necessidade
de expansão da teoria bidimensional de Fraser com vistas a acomodar as questões
políticas. O interessante, contudo, é que essa preocupação é bem mais antiga,
tendo a sua primeira fonte nos chegado precisamente por meio da própria Fraser.
Em uma nota de seu From Redistribution to Recognition? (1995), ela trata da
questão posta por Mika Manty, no âmbito de um simpósio sobre liberalismo político,
sobre se e como um esquema centrado em classificar os temas de justiça como
culturais ou político-econômicos poderia acomodar preocupações políticas primárias,
tais como cidadania e participação política.
Na oportunidade, Fraser respondeu afirmando sua inclinação em seguir
Habermas e encarar tais questões bifocalmente:
De uma perspectiva, as instituições políticas (em sociedades capitalistas
reguladas por estados) têm seu lugar com a economia como parte do
‘sistema’ que produz injustiças socioeconômicas distributivas; em termos
Rawlsianos, eles são parte da ‘estrutura básica’ da sociedade. De outra
perspectiva, entretanto, tais instituições têm seu lugar com o mundo da
vida” como parte da estrutura cultural que produz injustiças de
reconhecimento; por exemplo, o conjunto das garantias de cidadania e dos
diretos de participação carrega mensagens explícitas e implícitas acerca do
valor moral das várias pessoas. ‘Preocupações políticas primárias’
poderiam, assim, ser tratadas como tópicos ou de justiça econômica ou de
justiça cultural, dependendo do contexto e da perspectiva em jogo
(FRASER, 1995, p. 72, nota 7).
Como se vê, desde o início da formulação de sua teoria Fraser foi alertada
para uma possível independência da dimensão política da justiça, tendo então
108
negligenciado essa discussão. Tal equívoco a autora percebeu algum tempo depois,
antes mesmo de outros críticos o retomarem, pois tanto em suas Tanner Lectures de
1998 (nominadas Social Justice in the Age of Identity Politics: Redistribution,
Recognition, and Participation) quanto no ensaio Rethinking Recognition (datado de
2000) ressalvava sua defesa da bidimensionalidade em notas de rodapé (embora se
possa notar aqui o eco das acusações de Iris Marion Young, que em seu Unruly
categories fez questão de citar a fala de Manty).
Embora as notas em cada escrito sejam algo diferentes, a do artigo de 2000
abarca todos os conteúdos da primeira e acrescenta pontos de interesse. Ademais,
foi inserida após passagem de Rethinking Recognition que destaca uma vantagem
específica do modelo de status sobre o da identidade: a de entender a justiça social
como abrangendo duas dimensões analiticamente distintas, a do reconhecimento
(ligada aos efeitos de normas e significados institucionalizados sobre a posição
relativa dos atores sociais) e a da redistribuição (envolvendo a alocação de recursos
disponíveis para os atores sociais). O conteúdo da ressalva, pela abertura que dá ao
pensamento fraseriano, merece ser transcrita, apesar de sua extensão:
Na verdade, eu deveria dizer pelo menos duas dimensões analiticamente
distintas’ para conceder a possibilidade de mais. Eu tenho em mente
especificamente uma possível terceira classe de obstáculos à paridade
participatória que poderia ser chamada de política, por oposição a
econômica ou cultural. Tais obstáculos incluiriam procedimentos de tomada
de decisão que sistematicamente marginalizam algumas pessoas mesmo
na ausência de maldistribution e misrecognition, por exemplo, regras
eleitorais monodistritais do tipo o vencedor-leva-tudo que negam voz a
minorias quase-permanentes (...). A possibilidade de uma terceira classe de
obstáculos políticos à paridade participatória revela a extensão do meu
débito a Max Weber, especialmente ao seu ‘Classe, Status, Partido’. No
presente ensaio eu alinho uma versão da distinção de Weber entre classe e
status com a distinção entre distribuição e reconhecimento. Não obstante, a
própria distinção de Weber é tripartite, não bipartite: ‘classe, status, partido’.
Logo, ele efetivamente preparou um lugar para teorizar um terceiro tipo,
político, de obstáculo à paridade participatória, que pode ser chamado
marginalização política ou exclusão. Eu não desenvolvo esta possibilidade
aqui, entretanto, mas me restrinjo a maldistribution e misrecognition, ao
tempo que deixo a análise dos obstáculos políticos à paridade participatória
para outra ocasião (FRASER, 2000, p. 116-117, nota 1, grifos da autora; ver
ainda FRASER, 1998, p. 30-31, nota 31).
Fraser, portanto, assume desde então o projeto de integrar a política (como
uma dimensão autônoma) a sua teoria da justiça, inclusive para dar conta de sua
dívida intelectual com Max Weber, aproveitando os espaços deixados pelo
109
pensamento do alemão
2
. No intervalo entre essa assunção e o seu efetivo
desdobramento, ou mesmo após as Spinoza Lectures de 2004, os autores
supracitados insistiram na necessidade de “trazer de volta a política”.
Leonard Feldman, por exemplo, assinalou em seu ensaio Redistribution,
Recognition, and the State: The Irreducibly Political Dimension of Injustice (2002),
que o poder estatal permanece como um ponto cego” no arcabouço fraseriano de
redistribuição/reconhecimento, faltando assim uma apreciação do estado como uma
fonte de opressão em si mesmo. Defende que o estado e sua dinâmica
especificamente política de inclusão e exclusão precisa ser explicitamente
tematizado em uma teoria da justiça:
(…) a teoria de maldistribution e misrecognition de Fraser deveria ser
expandida para incorporar uma explicação de formas especificamente
políticas de injustiça. Análises pragmáticas, empiricamente fundadas, e
teoricamente incisivas das formas contemporâneas de injustiça como a que
Fraser fornece são mais bem desenvolvidas em um arcabouço “trivalente”
que ponha em vista a dinâmica inter-relacionada, ainda que analiticamente
distinguível, de maldistribution, misrecognition e exclusão política
(FELDMAN, 2002, p. 411, grifo do autor).
Feldman critica o dualismo perspectivo porque nele o estado enquanto estado
desaparece de vista, tornando-se um tipo de meio pelo qual processos econômicos
e culturais se desenvolvem. O estado enquanto poder político, classificador e na
verdade produtor de sujeitos, mantém-se fora do jogo. Segundo ele, a linguagem da
distribuição e do reconhecimento invoca um agente que distribui e reconhece o
estado e um sujeito passivo que recebe bens redistribuídos ou reconhecimento
cultural. O estado aparece como o ator central desse universo conceitual, todavia
permanece severamente subtematizado como terreno de poder e arena de
contestação. Em razão disso, ele considera vital a expansão da teoria da justiça para
incluir uma terceira dimensão política, que possibilite um exame crítico do estado,
apreciando dinâmicas especificamente políticas de injustiça e compensando o
impulso despolitizante da linguagem da injustiça cultural e econômica.
2
Com essa confissão de uma dívida intelectual com Max Weber, Fraser certamente surpreendeu muitos de seus colegas da
teoria crítica (bem como suas colegas do feminismo socialista), uma vez que tradicionalmente as perspectivas sociológicas
de Weber e da Escola de Frankfurt são apontadas como polaridades. O primeiro, ao aderir aos cânones da lógica causal e
cultivar o ideal de objetividade na pesquisa social, parece se posicionar em oposição frontal aos sociólogos de Frankfurt,
defensores de um neo-Marxismo centrado na razão dialética que refutava a neutralidade valorativa. No entanto, Weber e os
teóricos críticos chegaram a conclusões muito semelhantes acerca do “destino” (sombrio) do mundo moderno. Afinal, a
gaiola de ferro burocrática negadora do papel do indivíduo entrevista por Weber não parece distante do mundo administrado
previsto pelos críticos de Frankfurt, onde a atividade humana é sufocada por uma rede sempre crescente de gerenciamento e
controle (Cf. GREISMAN; RITZER, 1981, p. 34).
110
Por exemplo, a negação de diretos legais e certas formas de exclusão (como
o impedimento de votar, imposto aos criminosos nos Estados Unidos mesmo após o
cumprimento da pena), seriam mais bem interpretadas como encerrando uma forma
propriamente política de injustiça. Além disso, Feldman acredita que as coletividades
“bivalentes” examinadas por Fraser, como “raça”, podem igualmente ser mais bem
compreendidas como “trivalentes”, incorporando a pesquisa recente sobre o papel
fundamental do estado na classificação de populações ao longo dessas linhas de
identidade e diferença.
Feldman reelabora seus argumentos num artigo denominado Status Injustice:
The Role of the State, publicado em 2008, embora o paper originário tenha sido
apresentado ainda em 2003, no encontro anual da Associação Americana de
Ciência Política. Aqui sua preocupação central é evidenciar que o reconhecimento
estatal afirmativo de um status “social” ou “pessoal” supostamente pré-político pode
produzir um status político subordinado. Isso justificaria a necessidade de uma teoria
crítica do estado que pudesse informar os julgamentos pragmáticos concernentes às
estratégias de reconhecimento, pois em seu entender “as modalidades específicas
de constituição estatal de status estão absorvidas no modelo de status de Fraser”
(FELDMAN, 2008, p. 225).
No entanto, o autor nota que ao mencionar a exclusão política em Rethinking
Recognition, Fraser aponta de forma oblíqua para um sentido mais antigo de
“status”: a posição de uma pessoa na comunidade política em virtude de sua
qualidade de membro de uma classe particular de pessoas definida pelo estado.
Acrescenta que, apesar das pretensões do liberalismo de dar um fim a posições
políticas como senhor e servo, o estado liberal não está completamente livre da
produção de status político e cita como exemplos “esposo” e “esposa”, bem como
“criminoso” e “criança”. Os dois últimos termos, por exemplo, indicam classes
restringidas ou protegidas de pessoas que se desviam e ao mesmo tempo estão
subordinadas à cidadania plena que os indivíduos normais gozam. Por um lado, o
status legal é algo que alguém possui quando se desvia da norma invisível da
cidadania plena; por outro, esse status subordinado é difícil de ser percebido como
político porque os discursos legal e político no estado liberal o tratam como
diferenças sociais que o estado simplesmente reconhece.
Segundo Feldman, em vez de simplesmente reconhecer um conjunto de fatos
sociais no interior da lei, o status legal ativamente constrói a diferença. Esse poder
111
estatal de produzir status é problemático em razão da própria distinção operada pelo
liberalismo entre estado e sociedade e da conseqüente insistência em um estado
neutro, universal e livre dos negócios da regulação de status. Aquele poder parece
contradizer o compromisso do estado liberal com a universalidade, gerando dilemas
para as lutas por justiça:
De uma parte, quando o estado reconhece uma diferença social, ele pode
conceder certos direitos, exceções e privilégios nesse processo. De outra,
quando o estado reconhece uma diferença, ele exclui um grupo da norma
da cidadania plena. (...) O que estou sugerindo é que dilemas de inclusão e
reconhecimento são algumas vezes estruturados pela dinâmica específica
da autodissimuladora produção de status do estado (FELDMAN, 2008, p.
231, grifo do autor).
A concepção bidimensional de justiça, mantida por Fraser a 2003,
dificilmente poderia dar conta dessa problemática. Christopher Zurn compartilha da
posição de Feldman, assinalando que a feminista foi consistente ao deixar em
aberto a possibilidade de um desenvolvimento posterior de sua teoria para abraçar
uma terceira forma, analiticamente distinta, de ordenação social: as formas políticas
de exclusão:
Pois aqui parecemos encontrar uma forma de injustiça que não é
diretamente o resultado causal de estruturas distributivas ou padrões de
valor cultural, mas antes de formas (estado-centradas) legais e políticas de
exclusão dos processos políticos democráticos, que resultam na
subordinação institucional de alguns grupos vis-à-vis outros (ZURN, 2008,
p. 146-147).
Com base nisso, ele estimula Fraser a desenvolver esse eixo distinto de
subordinação, esperando que os mesmos tipos de vantagem produzidos por uma
noção bidimensional advenham de uma teoria social “trivalente”. Considerando que
não existe retroação possível após o insight fraseriano pela necessidade de uma
teoria social pelo menos bidimensional, Zurn acrescenta:
Parece incontroverso que uma teoria social crítica o pode ter esperança
de descrever corretamente ou perspicazmente a realidade social
contemporânea se ela reduz misrecognition a maldistribution, ou
maldistribution a misrecognition. Mas também parece que uma teoria social
crítica precisa de uma explicação das instituições legais e das estruturas
políticas formais, como fontes causais independentes de injustiça, se tiver
de adequadamente diagnosticar as lutas e desejos de nossa época (ZURN,
2008, p. 147).
112
O teórico aponta essa necessidade em um paper apresentado no 42º
encontro anual da Sociedade pela Fenomenologia e Filosofia Existencial, ocorrido
em Boston (EUA) no ano de 2003, mas publicado em sua última versão na obra
organizada por Kevin Olson, Adding insult to injury (2008).
Aliás, o próprio Olson também alerta que a existência de condições
econômicas e culturais para a paridade participatória não a limita, em si mesma, à
cultura ou à economia. Ele critica uma possível leitura restritiva da teoria fraseriana,
como se ela apontasse todos os impedimentos possíveis à justiça social em termos
de maldistribution e/ou misrecognition até porque a interação não pode ser
reduzida apenas a suas variedades econômica e cultural. Segundo ele, essa leitura
produz uma visão bifurcada da participação que não poderia servir como uma base
unificada para a justiça social.
Ele mesmo prefere uma concepção mais sofisticada de participação,
interativa e distintamente política em seu caráter, sugerida por Fraser na obra com
Honneth: paridade de participação como o principal idioma da razão pública. Essa
significação política não é redutível à justiça cultural ou econômica, envolvendo
questões de justiça inerentes à coordenação da tomada cooperativa de decisões
“quem fala, por quanto tempo, sob que regras e com que autoridade decisória”
(OLSON, 2008b, p. 251-253).
Por certo, Olson nota, a paridade enfraquecida pode ser parcialmente
explicada em termos de maldistribution e misrecognition. Mas uma dinâmica
propriamente política também toma lugar aqui: os procedimentos políticos que
determinam a cidadania tipicamente não atribuem igualmente a agência política
(political agency) entre os cidadãos. E quando falta agência a um grupo particular,
faltam os próprios meios requeridos para se fazer reivindicações no sistema político,
bloqueando o combate a circunstâncias econômicas, culturais e políticas que em
primeiro lugar produzem a marginalidade. Desse modo,
Marginalização alimenta marginalização, criando uma espiral descendente
de participação desigual. Este é um dano singularmente político que está
conectado, embora de modo distinto, com injustiças diagnosticadas das
perspectivas da economia e da cultura. Reconhecendo o caráter
distintamente político deste problema, devemos estender o que Fraser
chama de dualismo perspectivo para uma terceira dimensão – um trio
perspectivo de economia, cultura e política (OLSON, 2008b, p. 253-254).
113
Seguindo essa linha de raciocínio, Olson acrescenta uma terceira condição à
paridade de participação, a pública-política, ligada diretamente a questões de
cidadania (em sentido amplo, não apenas limitada a direitos formais de participação
política). Daí acrescenta à teoria fraseriana um domínio político da justiça, baseada
numa forma de diferenciação social pela cidadania (por oposição a classe e status),
com formas próprias de injustiça e de remédio, respectivamente marginalização e
inclusão. Aduz ainda que essa terceira perspectiva, da participação política,
funciona, assim como redistribuição e reconhecimento, como um paradigma popular
de justiça ao informar as concepções e visões das pessoas, pois estas “tendem a
ver as decisões administrativas e judiciais como mais legítimas quando acreditam
que as regras de sua regulação são justas” (OLSON, 2008b, p. 255).
Além disso, a participação política descreve a capacidade das pessoas para
deliberar acerca dos tipos de oportunidade que lhes estão disponíveis, pois funciona
como uma metacategoria da participação sobre a participação. Nesse sentido, ele
nota, a esfera política é um domínio privilegiado da paridade participatória, pois
salvaguarda e promove outros tipos de paridade e determina a extensão e os
vínculos da participação. Em uma sociedade complexa e institucionalmente
diferenciada, a política “fornece a base para sintetizar normas e valores” (OLSON,
2008b, p. 259).
Parte das reservas de Axel Honneth a Fraser também poderia figurar nessa
seção, como críticas de insuficiência (embora no segundo grupo de contraditores,
referido acima). Afinal, mesmo não partilhando o diagnóstico fraseriano por
considerá-lo uma generalização da situação norte-americana, e beneficiando uma
interpretação dos movimentos sociais de nossa época como resultado de lutas
subterrâneas por reconhecimento empreendidas por grupos ou pessoas afligidas
pelo sofrimento social, uma de suas principais reprimendas a Fraser é a ausência de
ferramentas categoriais para dar uma explicação adequada das lutas por formas
“legais” de reconhecimento. Comentando a teoria fraseriana, afirma Honneth:
Sua argumentação cria a impressão de que os grupos sociais lutam
basicamente por recursos materiais ou reconhecimento cultural, enquanto a
luta por igualdade legal surpreendentemente não encontra absolutamente
expressão sistemática (FRASER; HONNETH, 2003, p. 136).
114
Ele repete diversas vezes essa acusação ao longo de seu debate com a
autora norte-americana, sustentando que considera equivocada a restrição do
reconhecimento social a apenas uma de suas formas – a cultural:
Aqui uma dimensão que Fraser surpreendentemente deixa
completamente de fora de seu diagnóstico crítico dos tempos
desempenha um papel absolutamente central na história dessas sociedades
[capitalistas ocidentais]: um conflito dinâmico se ao longo da história do
capitalismo até os dias atuais sobre a interpretação apropriada do princípio
da igualdade legal (...). O meio pelo qual este tipo de luta social se desdobra
é o direito moderno (FRASER; HONNETH, 2003, p. 151-152).
Em outra passagem, ele repisa a crítica, ao afirmar que Fraser não deixa
claro porque a ordem social capitalista deve ser investigada especificamente a partir
de duas perspectivas, economia e cultura, quando seria igualmente possível analisá-
la de outras, como moralidade ou direito. Também permanece incerto porque a
economia e a cultura, mas não as esferas da socialização ou do direito, aparecem
como possíveis obstáculos à participação na interação social (Cf. FRASER;
HONNETH, 2003, p. 156/179).
A resposta de Nancy Fraser ao tipo de crítica apresentada nessa seção veio à
tona com suas Spinoza Lectures de 2004, publicadas posteriormente em sua última
forma como dois artigos revisados. Em especial o ensaio Reframing Justice in a
Globalizing World, lançado via New Left Review no final de 2005, ilumina a
problemática levantada por seus críticos da insuficiência da bidimensionalidade.
Embora, como Kevin Olson alerta, não tenha sido escrito expressamente com o
propósito de ser uma resposta, é nele que Fraser finalmente reconhece que a
constituição política do estado representa uma dimensão autônoma de ordenação
que pode produzir injustiças particulares. Este ensaio “adota a idéia dos críticos de
uma dimensão distintamente política da justiça (...) efetivamente atualizando a tríade
de Weber de classe, status, e partido” (OLSON, 2008a, p. 7). Como Fraser destaca:
Aquela (...) compreensão bidimensional da justiça ainda me parece correta,
tão longe quanto ela alcança. Mas agora eu acredito que ela não vai longe o
bastante. Distribuição e reconhecimento poderiam parecer constituir as
únicas dimensões da justiça enquanto a estrutura Keynesiana-Westfaliana
era tida como dada. Uma vez que a questão da estrutura se torna sujeita à
contestação, o efeito é tornar visível uma terceira dimensão da justiça, que
foi negligenciada em meu trabalho anterior – bem como no trabalho de
muitos outros filósofos (FRASER, 2005b, p. 74).
115
Essa terceira dimensão da justiça, Fraser argumenta, é a política – num
sentido constitutivo que diz respeito à natureza da jurisdição do estado e às regras
decisórias pelas quais se estrutura a contestação. O político nesse sentido fornece o
palco onde as lutas por distribuição e reconhecimento são encenadas: de um lado,
estabelece o critério de pertencimento social, especificando o alcance das outras
dimensões; de outro, estabelece as regras decisórias, definindo os procedimentos
para o desenrolar e a resolução das disputas, tanto na dimensão econômica quanto
cultural.
Em suma, as críticas da insuficiência foram absorvidas e vencidas por Fraser
com a elevação de sua teoria da justiça a um patamar tridimensional. Com essa
reformulação, a autora a um tempo estendeu sua visão crítica para abranger os
processos ordinários de representação política e o próprio desenho dos espaços
políticos (a estrutura), acrescentando as noções de representação e reestruturação,
bem como as injustiças de misrepresentation e misframing, explicitadas
anteriormente notável a preocupação de paralelismo sistemático nas
denominações, com a manutenção da aliteração). Com isso, avançou muito além de
seus críticos, assinalando questões que eles mesmos não perceberam e preparando
o terreno para seu atual projeto da justiça anormal.
4.1.3 A crítica do alicerce
Todos os ataques ou reparos à noção de paridade de participação, que
constitui o núcleo normativo do pensamento de Fraser, podem ser reunidos como
críticas do alicerce. Em geral, os interlocutores da filósofa norte-americana não
negam a paridade como aspecto relevante de uma noção de justiça. Mas
apresentam dificuldades surgidas em sua aplicação, possíveis paradoxos daí
decorrentes e as nuanças envolvendo o papel de teóricos e cidadãos numa
sociedade democrática. Ou ainda, refutam a leitura que Fraser faz daquele princípio
normativo, revelando uma discordância mais profunda, que tem por objeto o próprio
conteúdo da igualdade.
Neste último grupo pode ser situada parte das críticas de Axel Honneth, bem
como a discussão com Rainer Forst. Entre os autores que sondam os problemas na
116
implementação da paridade de participação, figuram Christopher Zurn e Kevin
Olson.
Honneth, para iniciar com a mais antiga dessas críticas, indicava que na
teoria fraseriana a distribuição econômica e o reconhecimento cultural consistiam em
simples meios para a realização da paridade participatória, o mais elevado princípio
da abordagem de Fraser. Ele não nega as intuições normativas comuns entre essa
visão e a sua: a idéia de que os sujeitos têm direito a oportunidades iguais de
participar na vida social e merecem a porção de reconhecimento social necessário
para uma formação bem-sucedida da identidade. No entanto, a idéia de participação
voluntária na vida pública, apesar de um papel proeminente em ambas as intuições,
“para Fraser serve acima de tudo para explicar o que para se falar sobre justiça
social, enquanto para mim serve para explicar o fato de que a formação bem-
sucedida da identidade possui um lado ‘público’, social” (FRASER; HONNETH,
2003, p. 176).
O pensador alemão assume que tanto ele quanto a feminista norte-americana
partem da idéia de que, sob as condições das sociedades modernas, qualquer
concepção de justiça deve ter um caráter igualitário desde o início: todos os
membros da sociedade consideram uns aos outros como possuindo direitos iguais, a
cada um é conferida igual autonomia. Mas salienta:
(...) a diferença entre nossas abordagens consiste essencialmente no fato
de que Fraser se move imediatamente deste ponto de partida na autonomia
individual para a idéia de participação social, enquanto eu me movo da
autonomia individual primeiro para a meta da mais intacta possível
formação de identidade, para então trazer princípios de reconhecimento
mútuo como pressuposto necessário daquela meta. Até esse ponto, as
duas concepções normativas estão baseadas em diferentes respostas à
questão de a que devemos nos referir quando falamos da igualdade de
todos os cidadãos (FRASER; HONNETH, 2003, p. 176).
Nota-se, portanto, que algumas das discordâncias mais profundas entre
Fraser e Honneth giram em torno do conteúdo da noção de igualdade. Na leitura
honnethiana, realizar a igualdade para Fraser corresponde à meta de colocar todos
os membros da sociedade em uma posição de tomar parte na vida social sem
desvantagem, objetivo que ela não quer seja compreendido como resultado de uma
concepção da boa vida, mas simplesmente como uma explanação das implicações
sociais da idéia de autonomia individual. Em tese, isso permitiria um ataque à
117
sobrecarga ética da teoria do reconhecimento sem que Fraser fosse ela mesma
forçada a invocar elementos éticos.
Honneth observa que, se a estratégia é apelar para um procedimentalismo
habermasiano, isso exigiria um conceito de vida pública bem mais fraco e formal do
que a noção de participação que Fraser parece ter em mente (que claramente
abrange todas as dimensões da aparição das pessoas na esfera pública). Se a idéia
de participação social deve ser mais abrangente que o mínimo acomodado em
conceitos procedimentais, não se pode evitar a questão de como preenchê-la sem
recurso a considerações éticas, pois, segundo Honneth, nós aprendemos que
aspectos da vida pública são importantes para realizar a autonomia individual a partir
de uma concepção de bem-estar pessoal, conquanto fragmentariamente
desenvolvida.
Porque Nancy Fraser não vê esta imbricação interna, há algo inerentemente
arbitrário acera de sua idéia de paridade participatória. (...) Fraser introduz o
seu conceito de “participação” sem considerar as funções que ele tem de
cumprir em vista das precondições sociais da autonomia individual.
Somente uma cuidadosa análise da conexão entre a realização da
autonomia e as formas da interação social poderia ter evitado esta
subespecificação de seu conceito normativo central (FRASER; HONNETH,
2003, p. 179).
Na sua resposta a Honneth, Fraser começa por reconhecer que ambos
rejeitam a postura externalista das teorias tradicionais que pretendem julgar os
arranjos sociais do alto (reivindicando uma espécie de “visão do olho de Deus”) e
entendem, ao contrário, que a crítica consegue tração apenas à medida que revela
tensões e possibilidades em algum sentido imanentes à configuração à mão. Nesse
sentido, a crítica pode deter um potencial radical se a lacuna entre a norma e o
dado for mantida.
O problema com Honneth, ela destaca, é acreditar ter descoberto a única
expectativa moral básica subjacente a todo o descontentamento social: que a
identidade pessoal de alguém seja adequadamente reconhecida, suposição que
Fraser considera implausível. Esse achado implicaria que, para o alemão, assegurar
o reconhecimento da identidade representa o núcleo de toda a experiência moral e a
gramática profunda de toda a normatividade.
Fraser pensa ser um equívoco honnethiano fundar a Teoria Crítica numa
psicologia moral do sofrimento pré-político e conceituar a sociedade como uma rede
118
de relações de reconhecimento. Esse exagero do papel do reconhecimento na
contemporaneidade, segundo ela, ignora um traço específico da sociedade
capitalista: a criação de uma ordem de mercado quase-objetiva, anônima e
impessoal que segue uma lógica própria, de certo culturalmente embebida, mas não
diretamente governada pelos esquemas culturais de avaliação. Interagindo com a
ordem cultural, essa lógica de mercado algumas vezes instrumentaliza as distinções
de status existentes, outras vezes as dissolve de onde resulta que os mecanismos
de mercado dão origem a relações econômicas de classe que não são meros
reflexos das hierarquias de status (Cf. FRASER; HONNETH, 2003, p. 214). Por
essas razões ela teria sugerido o dualismo perspectivo como ferramenta de
compreensão.
Ademais, Fraser assinala a tarefa que tanto ela como seu colega alemão
assumiram: (re)construir uma Teoria Crítica apropriada para uma era de
globalização acelerada, capaz de julgar, através de diferentes horizontes valorativos,
que reivindicações são genuinamente emancipatórias e, ainda, fornecer critérios
para adjudicar conflitos e solucionar dilemas. Ou seja, uma teoria não-sectária e
determinada. Para isso, ambos teriam “retornado aos conceitos nucleares da
tradição liberal, nomeadamente, igual autonomia e valor moral dos seres humanos”
(FRASER; HONNETH, 2003, p. 224).
Esses conceitos, argumenta Fraser, formam o ideal moral central do
liberalismo moderno, que não precisa de fundamento em uma ética de auto-
realização porque seu ponto sico é precisamente possibilitar aos sujeitos da
moralidade a formulação dessa ética por eles mesmos. Em razão disso, as
implicações da igual autonomia podem ser articuladas deontologicamente, por
meio de uma teoria da justiça que seja compatível com uma pluralidade de visões
razoáveis da boa vida.
O núcleo dessa teoria da justiça é o princípio da paridade de participação,
compatível com todas as compreensões da boa vida que respeitem a igual
autonomia. No entanto, o sentido de respeito aqui é mais do que formal: respeitar a
igual autonomia e valor moral dos outros é conferir-lhes a posição de plenos
parceiros na interação social. Fraser destaca que a paridade participatória é uma
interpretação democrática radical da igual autonomia, simultaneamente deontológica
e substantiva, de uma pela aplicação (na época) bifocal via dualismo perspectivo, de
outra pela aplicação dialógica, via processos democráticos de debate público.
119
Assim, escapando do “liberalismo teleológico” (Honneth) e do “liberalismo
procedimental”, Fraser pensa exemplificar um terceiro gênero de filosofia moral: um
liberalismo deontológico denso. E justifica essa postura com dois argumentos, um
conceitual e outro histórico. O primeiro deles indica que a igual autonomia,
adequadamente entendida, impõe a liberdade real de participar no mesmo nível que
os outros da vida social qualquer coisa menos que isso falharia em capturar o
sentido pleno do igual valor moral dos seres humanos. Dessa forma, a paridade
participatória é o sentido do igual respeito pela igual autonomia dos seres humanos
enquanto atores sociais. O segundo argumento evoca o processo histórico amplo e
multifacetado (e não restrito ao Ocidente) que enriqueceu o sentido da igualdade
liberal ao longo dos tempos e cujo resultado é a noção de paridade participatória. De
vários modos, a igualdade se substancializa, deixando de estar restrita aos direitos
formais e passando a abranger as condições sociais para seu exercício. A paridade
participatória, então, é a emergente “verdade” histórica da norma liberal de igual
autonomia e valor moral dos seres humanos (Cf. FRASER; HONNETH, 2003, p.
230-232).
Fraser aduz que, juntos, esses argumentos dão um forte apoio à visão da
justiça enquanto paridade de participação, mas não apelam para uma noção de boa
vida. Dessa forma, contra Honneth (...) minha abordagem não requer uma
explicação ética dos tipos de participação necessários ao florescimento humano”,
assumindo que “os participantes decidirão isso por si mesmos, por suas próprias
luzes” (FRASER; HONNETH, 2003, p. 232).
Outra postura crítica endereçada a Fraser quanto ao conteúdo do princípio da
paridade de participação é de autoria de Rainer Forst. Em linhas gerais, sua
pretensão é construir uma abordagem alternativa a Honneth e Fraser que coloque
em primeiro lugar as coisas primeiras (first-things-first approach), tecnicamente, uma
abordagem de monismo justificatório e pluralismo diagnóstico-avaliativo (Cf. FORST,
2007, p. 294). Vejamos o que mais diretamente nos interessa em sua fala: as críticas
a Fraser pertinentes a esta seção.
Segundo ele, quando se chega à questão do critério de justificação das
reivindicações de justiça, torna-se necessária uma explicação procedimental-
deontológica, teórico-discursiva. Forst entende que falar de justiça social e política é
falar sobre o dever de estabelecer instituições segundo normas que possam
reivindicar (legitimamente) ser válidas e obrigatórias, geral e reciprocamente. Em
120
outras palavras, um contexto de justiça é sempre um específico contexto de
justificação no qual todas as relações sociais e políticas básicas de relevo
necessitam de justificação mútua e geral. Reciprocidade e generalidade
transformam-se então de critérios de validade em critérios de justificação discursiva.
Pode-se, então, formular um abrangente princípio de justiça reflexivo: não devem
existir relações sociais ou políticas que não possam ser justificadas em termos
gerais e recíprocos para todos aqueles que são parte de determinado contexto
sócio-político.
Justiça, portanto, é primeiro e acima de tudo sobre como você é tratado (e
não primariamente sobre o que se possui ou não), sobre o fim da dominação e das
regras arbitrárias, sobre o status dos cidadãos como iguais na vida política e social –
como pessoas detentoras de um direito básico à justificação. Por sua vez, isso
sugere uma abordagem monística, que embora não sustentada sobre uma noção de
auto-realização, pressupõe o reconhecimento do direito básico de cada membro a
ser respeitado como um igual participante em procedimentos de justificação social
efetiva.
Forst, nesse passo, indica duas possibilidades de leitura da paridade de
participação na obra fraseriana: como télos do estabelecimento de estruturas
políticas e sociais justas ou como o principal meio da justiça, favorecendo esta última
(ele pensa que Fraser também a preferiria). No entanto, para vencer as
circularidades e ambigüidades neste ponto, sugere uma distinção entre justiça
fundamental (ou mínima) e justiça máxima. A primeira exigiria o estabelecimento de
uma estrutura básica de justificação, na qual todos os membros detenham suficiente
status e poder para decidir acerca das instituições sob as quais devem viver. A
segunda, por conseguinte, significaria uma estrutura sica plenamente justificada,
isto é, uma estrutura básica que concedesse efetivamente aqueles direitos,
expectativas de vida e bens que os cidadãos de uma sociedade justa não poderiam
reciprocamente negar uns aos outros (Cf. FORST, 2007, p. 295-296).
O filósofo então indica que paridade participatória significa coisas bem
diferentes, conforme se considere um ou outro modo de justiça:
No modo fundamental, significa possuir um efetivo direito à justificação em
instituições sociais e políticas “reflexivas”, democraticamente
autotransformadoras. Essencialmente, isto inclui o poder de decidir sobre as
instituições básicas da forma pela qual bens são produzidos e distribuídos
em primeiro lugar. (...) No modo máximo, “paridade participatória” poderia
121
ser termo geral, embora vago, para a possibilidade de real e plenamente
viver uma vida socialmente integrada sem sofrer de qualquer tipo de
injustiça social estrutural (FORST, 2007, p. 296).
Sob essa ótica, Forst duvida que a “paridade participatória” seja um critério
suficiente de justificação das reivindicações por justiça. Afinal parece incerto como
serão resolvidos os conflitos socialmente inevitáveis entre diferentes interpretações
do significado de “paridade participatória”. Quanto a este ponto, ele pensa ser
decisiva uma noção de igualdade, ao invés de alguma idéia mais substantiva de
participação. Por isso, defende que reciprocidade e generalidade podem ser critérios
normativos mais adequados, pois eles colocam o fardo da justificação sobre
qualquer um que tente justificar um privilégio social de algum tipo:
Logo, com respeito aos critérios para reivindicações por ‘reconhecimento
ou ‘redistribuição’ saímos de ‘paridade’ para igualdade’ no sentido de
justificações reciprocamente não-refutáveis para certas relações e
estruturas sociais (FORST, 2007, p. 296).
Nesse sentido, Forst destaca o poder como o mais importante de todos os
bens (hiperbem) em matéria de justiça – aquele que é exigido em primeiro lugar para
instalar (e então manter) uma estrutura básica justificada. Logo, uma teoria crítica da
(in)justiça tem de ser antes de tudo uma crítica das relações de justificação (ou de
poder justificatório) existentes. Em termos normativo-institucionais, somente se uma
estrutura justa de justificação estiver instalada poderão ser adotadas perspectivas
mais particulares. Daí, “uma estrutura social justa (…) se essencialmente uma
coisa: uma estrutura básica geral e reciprocamente justificada” (FORST, 2007, p.
300, grifo do autor).
Por isso o professor alemão defende uma virada política no discurso teórico
da justiça, alertando que “não pode existir explicação adequada da justiça
distributiva sem que em primeiro lugar se trate da questão política das relações de
poder em uma sociedade” (FORST, 2007, p. 300). Reconhecendo que essa posição
exige o acréscimo da perspectiva política da justiça, com vistas ao tratamento da
importante questão do exercício do poder, Forst aplaude a reformulação
tridimensional da teoria fraseriana (em verdade, ele entende a política como a
principal dimensão da justiça). Mas acredita que para efetivamente ser uma teoria
deontológica, a concepção fraseriana ainda precisaria de um fundamento moral
sólido do direito e dever de justificação.
122
Fraser responde diretamente a Rainer Forst, por meio de um artigo chamado
Identity, Exclusion, and Critique: A Response to Four Critics (2007b). Na parte que
destina a Forst, ela destaca a idéia comum a ambos de que a teoria crítica cumpre
melhor seu papel emancipatório quando prioriza em sua consideração a injustiça
institucionalizada. Também enfatiza que seu arcabouço e o de Forst “pertencem à
família das abordagens teórico-discursivas”, nas quais as reivindicações de justiça
“devem ser justificadas discursivamente, por meio de um processo deliberativo em
que todos os potencialmente afetados possam participar em termos equânimes na
troca de argumentos e contra-argumentos” (FRASER, 2007b, p. 329).
Mas ressalta que, no plano da filosofia moral, seu interlocutor propõe
substituir o princípio da paridade de participação por uma norma de equidade
justificatória, favorecendo uma concepção de justiça teórico-justificativa em
detrimento de uma teórico-participativa (que ela diz adotar). A questão então seria,
dada a prioridade da (in)justiça, se as teorias críticas devem concebê-la em termos
de justificação ou participação. A feminista adianta a possibilidade de duas leituras
diversas para a proposta de Forst: ou como uma teoria rival, assumindo a
necessidade de se escolher entre a abordagem forstiana e a sua; ou encarando a
norma da equidade justificatória como um caso especial do princípio da paridade de
participação, aplicado a uma arena social específica a prática da discussão
política.
Partindo inicialmente da leitura de rivalidade, Fraser considera o problema do
objeto, ou seja, daquilo que cada uma das teorias considera como foco principal do
escrutínio crítico. Ela identifica como objeto privilegiado de Forst a sintaxe formal das
razões trocadas pelos participantes, pois ele apela para critérios de generalidade e
reciprocidade, tratados aqui como atributos das razões (por oposição às relações
sociais). Em contraste, sua abordagem considera como primárias as relações sociais
entre os interlocutores. O padrão de paridade se aplica não à sintaxe das
proposições que eles articulam, mas aos termos sociais em que eles conversam.
Essa diferença é importante, segundo a professora norte-americana, porque
enquanto Forst acaba abordando o poder indiretamente, através da sintaxe, sua
teoria confronta o poder diretamente, arremetendo frontalmente contra as
assimetrias estruturais que maculam as práticas sociais de justificação em
sociedades injustas. Por essa característica, torna-se capaz de enxergar os modos
pelos quais os estratos dominantes manipulam argumentos, seja pelo uso de razões
123
facialmente gerais e recíprocas para defender arranjos que prejudicam os
dominados, seja pela desqualificação dos protestos destes últimos como
particularistas e não-recíprocos:
Por exercitar o escrutínio não sobre a sintaxe, mas sobre as relações
sociais, minha abordagem desmascara tais estratégias. Interrogando o
contexto sócio-estrutural desconsiderado por Forst, ela captura assimetrias
de poder que não estão refletidas na sintaxe justificatória e que escapam a
uma abordagem que assume esta como uma representante daquelas
(FRASER, 2007b, p. 330).
Outra diferença que Fraser aponta entre sua visão e a de Forst diz respeito à
modalidade da crítica normativa. Ela entende que o princípio forstiano da equidade
justificatória é puramente procedimental, aplicando-se unicamente ao input da troca
dialógica. O princípio da paridade de participação, por sua vez, é a um tempo
procedimental e substantivo, podendo ser aplicado tanto ao input quanto ao output
da deliberação. Ele avalia a equidade procedimental dos processos dialógicos ao
interrogar as relações de poder social a eles subjacentes e estima a justiça
substantiva dos resultados deliberativos ao examinar suas conseqüências para a
interação social futura.
Fraser pensa ser indispensável a uma teoria crítica do poder manter aberta a
possibilidade de uma lacuna entre equidade procedimental e justiça substantiva,
admitindo que um processo procedimentalmente equânime possa gerar um
resultado substantivamente injusto. Essa mesma teoria deve então ser capaz de
criticar tanto a injustiça substantiva quanto a procedimental, buscando informações
inclusive na pesquisa empírica, que pode ajudar a revelar o provável impacto de
uma decisão política pretendida sobre as relações de poder em determinado
contexto. Em suma, uma teoria crítica captura melhor os jogos de poder se incorpora
um princípio normativo que opera em ambas as modalidades (substantiva e
procedimental) sem confundi-las, tal como a paridade de participação (FRASER,
2007b, p. 330-331).
Ainda nesse ponto, a filósofa concorda com Forst que o duplo uso da
paridade de participação levanta a questão da circularidade, pois se o que
precisamente é necessário para alcançar a paridade de participação em um dado
caso pode ser determinado dialogicamente, por meio da deliberação democrática
equânime, este tipo de deliberação pressupõe que a paridade de participação
124
existe. Ela observa que a proposta de Forst também contém uma circularidade: é
necessária uma estrutura equânime de justificação para se determinar as exigências
da justiça, mas também são indispensáveis justa distribuição e justo reconhecimento
para que se tenha uma estrutura equânime de justificação. Fraser não vê grande mal
nisso: “o problema da circularidade surge para qualquer abordagem que preuma
transição para arranjos sociais mais justos via processos políticos que ocorrem por
definição em circunstâncias injustas” (FRASER, 2007b, p. 331, grifo da autora).
Contudo, essas abordagens devem tomar medidas para prevenir o círculo de
se tornar vicioso. Fraser a proposta de Forst em distinguir justiça máxima de
mínima como um engenhoso meio de superar essa problemática. Ela mesma admite
ter proposto a idéia análoga de deliberação boa o suficiente, expressão que se
refere àquela deliberação que, conquanto manchada pelas assimetrias de poder e
não alcançando a paridade participatória, é “boa o suficiente” para gerar resultados
que reduzem as disparidades, de modo que a próxima rodada de discussão política
ocorra em termos um pouco mais justos e possa se esperar que conduzam a
resultados ainda melhores, e daí por diante. Com efeito, como a própria Fraser diz,
essa é uma diferença entre ela e Forst que não faz diferença.
Finalmente, ainda tomando sua teoria e a de Forst como rivais, ela examina a
questão do alcance da crítica normativa, a gama de práticas sociais que cada teoria
sujeita ao escrutínio crítico. Observa que seu interlocutor limita o alcance da
aplicação de seu princípio nuclear a uma única classe de práticas sociais: as
práticas de justificação. Por outro lado, o princípio da paridade de participação se
aplica mais amplamente, a todas as principais práticas sociais e arenas de interação
social, inclusive as de justificação, mas também trabalho, mercados, família e vida
pessoal, política formal e informal, bens e serviços públicos e associações na
sociedade civil. Esse amplo alcance, por si só, demonstraria a superioridade da
paridade participatória como princípio de justiça.
Contudo, na leitura fraseriana Forst pensa poder manter a limitação do
alcance de seu princípio às arenas justificatórias por pelo menos duas razões:
primeiro, por entender a política como a principal dimensão da (in)justiça social;
segundo, por considerar o poder como um “hiperbem” cuja distribuição determina a
de todos os outros bens. Aqui “Forst mistura percepções genuínas com conclusões
duvidosas”, pois “é um erro (...) identificar o poder exclusivamente com a dimensão
política de justiça. (...) cada uma das três dimensões (econômica, cultural e política)
125
identifica um dimensão irredutível, fundamental, do poder social” (FRASER, 2007b,
p. 332-333).
Na verdade, maldistribution e misrecognition conspiram para subverter o
princípio da voz política igual para cada cidadão mesmo em comunidades
democráticas. De outra parte, lutas contra misrepresentation o podem lograr êxito
se não estiverem jungidas a lutas contra as injustiças econômicas e culturais. A
ênfase em uma dessas dimensões é uma decisão tanto tica quanto estratégica
na atualidade, Fraser aponta, a política experimenta uma saliência particular por
razões conjunturais, não conceituais (o corrente debate em torno das injustiças de
misframing). E acrescenta que encarar a política nos termos propostos por Forst
equivale a correr o grave risco de cair nas armadilhas de um politicismo reducionista,
em tudo similar ao economicismo e ao culturalismo, posturas já desacreditadas.
Portanto, se a política não goza de uma prioridade sobre outras dimensões da
justiça, não porque limitar a crítica normativa às práticas de justificação. Por isso
a teoria crítica deve “rastrear os efeitos das assimetrias de poder ao longo de toda a
gama de práticas sociais na sociedade contemporânea” e nesse quesito “a
abordagem teorético-participativa põe em primeiro lugar as coisas primeiras”
(FRASER, 2007b, p. 334).
Argumentando por outros caminhos, Fraser propõe também uma segunda
leitura de Forst como um caso especial de sua própria abordagem a equidade
justificatória seria então uma aplicação da paridade de participação à prática de
demandar e receber justificações políticas. Ela acredita que seu interlocutor
concordaria que em uma sociedade maximamente justa ninguém é desrespeitado
em virtude de assimetrias institucionalizadas de poder em qualquer prática social
essencial à qualidade plena de membro. Sendo assim, “o igual direito à justificação
serve na verdade para ele [Forst] como um tipo de sinédoque para a sociedade
como um todo” (FRASER, 2007b, p. 335), promovendo e servindo de modelo do tipo
de relações sociais igualitárias que a justiça exige, de modo mais geral, em toda a
sociedade.
Em qualquer uma das leituras, como se percebe, Fraser consegue evidenciar
o poder de seu instrumental teórico crítico e a superioridade de sua abordagem em
relação à proposta por Rainer Forst. Ela é bem-sucedida, especialmente, porque
escapa do reducionismo em teoria social e dos perigos dele decorrentes, que
126
arriscam desmantelar qualquer edifício teórico no qual uma dimensão da realidade
seja de antemão privilegiada.
O outro tipo de crítica do alicerce referido no início desta seção não intenta
substituir ou esfacelar o princípio da paridade de participação fraseriano, mas
procura delinear as dificuldades surgidas em sua aplicação, inclusive o difícil
problema da relação entre o teórico e o cidadão.
Christopher Zurn, por exemplo, aponta como um traço distintivo da teoria
fraseriana a articulação de um arcabouço normativo (o parâmetro da paridade de
participação) para estimar tanto os méritos relativos das várias reivindicações feitas
pelos cidadãos por estruturas mais justas de distribuição e de reconhecimento
quanto os relativos prospectos de sucesso dos remédios propostos para superar a
injustiça social.
Uma preocupação de Zurn com a concepção fraseriana volta-se para o fato
de que teorias normativas da justiça usualmente se esforçam para prefigurar
relações de prioridade entre os diferentes princípios que avançam. Segundo ele,
Fraser o diz muito sobre como ela antevê o princípio da paridade participatória
trabalhando nesses casos em que se deve decidir entre adequada distribuição e
suficiente reconhecimento. Essa questão torna-se ainda mais premente se um
terceiro eixo analiticamente independente de ordenação social, em termos de
processos políticos de tomada de decisão, deve ser considerado, como ela sugere
em seus últimos trabalhos. O filósofo reconhece que
Fraser sugere muitas formas de refinar as várias tensões entre
redistribuição e reconhecimento na prática, e talvez tais soluções práticas
sejam o melhor que podemos esperar. Mas parece nos dizer algo de
importante sobre a forma de uma teoria social crítica saber como ela propõe
priorizar reivindicações naquelas situações onde não podemos satisfazer
completamente todos os nossos princípios normativos simultaneamente
(ZURN, 2008, p. 156).
Ademais, quando Zurn explicita os problemas que enxerga no modelo de
status do reconhecimento, acaba por levantar outra dificuldade envolvida na
aplicação da paridade de participação, uma que versa precipuamente sobre os
papéis destinados a teóricos e cidadãos no pensamento fraseriano. Investigando se
uma teoria crítica deve de fato se preocupar, por um lado, com quaisquer e todas as
formas de subordinação de status e, por outro, com todas as formas de desrespeito
cultural e atitudinal, ele conclui que esses pontos não podem ser resolvidos
127
puramente no nível da pesquisa social empírica, “pois claramente envolvem
questões normativas sobre que tipos de estruturas e processos sociais são
verdadeiramente deletérios para a justiça e quais são comparativamente
inofensivos” (ZURN, 2008, p. 158).
Dessa forma, se alguém estiver autorizado a responder que tipos de
estruturas e processos sociais o merecem a atenção da teoria, por não serem
formas de subordinação de status significativas, persistentes, e verdadeiramente
nocivas, isso equivale a considerar que os participantes sociais ordinários não
possuem uma compreensão satisfatória sobre o que seja justiça e sobre o que ela
exige. Nessa compreensão, que Zurn apelida de expertocrática, os contra-exemplos
não possuem tração contra a teoria, “pois ela articula padrões normativos claros e
justificados que os teóricos podem usar para avaliar substantivamente se as
reivindicações de primeira-ordem dos atores sociais são fundadas” (ZURN, 2008, p.
159). A abordagem expertocrática tem a vantagem de ser capaz de julgar
claramente conflitos sobre as reivindicações de reconhecimento, mas
concomitantemente parece violar nossos escrúpulos democráticos por tratar os
participantes sociais como comparativamente incapazes de levar a cabo a delicada
tarefa de distinguir as estruturas sociais justificáveis das injustificáveis.
Mas Zurn não considera essa resposta persuasiva, especialmente porque
Fraser parece estar comprometida com a democracia tanto nas relações sociais de
primeira ordem quanto na segunda ordem, a da adjudicação das reivindicações
acerca dessas relações. Chega a citar uma passagem na qual a autora defende que
a norma da paridade participatória deve ser aplicada dialógica e discursivamente,
através de processos democráticos de debate blico. Isso parece nos convidar a
uma alternativa de compreensão, nomeada por Zurn de populista. Esse
entendimento, contudo, invalida a insistência de Fraser na diferença entre os
padrões de valoração cultural meramente difusos e os institucionalmente ancorados.
Nesse sentido, o que conta como misrecognition é apenas o que afirmaram os
teóricos da identidade, ou seja, aquelas condições que as pessoas de fato
experienciam como embaraços à oportunidade igual de alcançar uma identidade
pessoal integral e intacta. Na interpretação populista, a teoria social crítica não deve
se preocupar com aquelas subordinações institucionalizadas de status que não
estão registradas na esfera pública cotidiana como causadas por padrões
desrespeitosos de avaliação cultural. Elas consistem em simples hierarquias de
128
status que os teóricos devem considerar justificadas, vez que não existe debate
democrático ou contestação em que figurem como exemplos de possível
misrecognition. O próprio modelo de status do reconhecimento entra em colapso,
recaindo em uma versão populista do modelo de identidade, e a teoria social não
mais é plenamente crítica diante das formas existentes dos grupos de ódio e da
política de autenticidade.
Em vista dessas dificuldades, “talvez não surpreenda que Fraser tenha
endossado uma divisão de trabalho mais sutil entre os participantes sociais
cotidianos e os teóricos sociais críticos” (ZURN, 2008, p. 161). Zurn observa que, na
obra de 2003 com Honneth, a feminista tinha sugerido uma regra prática nesses
assuntos: a tarefa da teoria seria circunscrever o âmbito das políticas e programas
compatíveis com as exigências da justiça, cabendo à deliberação dos cidadãos
ponderar as opções dentro daquele espaço (Cf. FRASER; HONNETH, 2003, p. 72).
Embora no contexto do pensamento fraseriano essa divisão tenha sido sugerida
para a avaliação dos remédios propostos para a injustiça, Zurn aventa que talvez ela
possa ser estendida para o diagnóstico inicial das violações à justiça:
Logo, (...) o teórico delimitaria o círculo do que deve ser contado como
injustiças incluindo somente aquelas hierarquias de status que são
injustificáveis e excluindo todas aquelas débeis, baseadas na identidade,
que são vistas como desimportantes – e então admitiria a participação
democrática para investigar e determinar quais, dentre aquela série de
fenômenos, devem ser contados como significativos o bastante para
merecer reparação (ZURN, 2008, p. 161).
Nessa compreensão, que ele chama de fixadora-de-agenda (agenda-setting),
parece estar presente a mesma dificuldade da abordagem expertocrática: a
suposição de que somente o teórico possui a melhor percepção da realidade social
e das exigências da justiça. O diálogo público e a participação o necessários
meramente para adicionar um verniz de legitimidade por meio da escolha
democrática entre as opções pré-selecionadas pela percepção moral superior.
Essas críticas, apresentadas por Zurn ainda em novembro de 2003, durante o
42º Encontro Anual da Sociedade pela Fenomenologia e Filosofia Existencial, foram
respondidas diretamente por Fraser, que esteve presente ao evento. Segundo ele
nos coloca,
129
Fraser indicou que ela não mais apóia o que chamei de modelo fixador-de-
agenda para a divisão de trabalho entre teóricos e cidadãos que ela tinha
sugerido em Redistribution or Recognition? Apontando que tanto Jeremy
Waldron quanto eu tínhamos corretamente censurado sua teoria pelas
tendências inaceitavelmente elitistas e expertocráticas dessa proposta, ela
reafirmou seu compromisso fundamental com um entendimento plenamente
democrático da norma da paridade participatória, na primeira e segunda
ordens (ZURN, 2008, p. 162, nota 25).
Por outro lado, ela argumentou que uma explicação mais detalhada do que
significa para padrões de interpretação cultural, normas sociais e disposições
atitudinais estarem “institucionalmente ancorados” poderia nos manter no nível da
teoria social, evitando nos emaranharmos aqui com juízos normativos sobre se
determinados casos particulares devem ou não ser incluídos na categoria de
subordinação de status. Neste caso, o que pareciam formas de misrecognition
baseadas na identidade se revelariam verdadeiras formas de subordinação de
status. E a teoria manteria sua explicação da subordinação de status por meio do
refinamento na teoria social ao invés do recurso à análise normativa (Cf. ZURN,
2008, p. 162).
Finalmente, o autor que mais profundamente investigou os problemas
envolvidos na aplicação da paridade de participação foi o referido Kevin Olson,
professor de ciência política da Universidade da Califórnia. Ele considera que a
paridade, no campo da participação social, possui um sentido intuitivo: as pessoas
deveriam ter as mesmas oportunidades de interagir umas com as outras em de
igualdade e fazer os mesmos tipos de coisas que as outras pessoas fazem. Para
empregá-la como padrão normativo, entretanto, é preciso imaginar meios de avaliar
que domínios da vida social a demandam. E, ainda, determinar o que conta como
um impedimento moralmente significativo a ela.
Duas estratégias possíveis são apontadas por ele. A primeira é uma avaliação
objetivista da participação e de seus problemas, requerendo algum tipo de teoria
completa da soberania popular capaz de explicar nos mínimos detalhes que áreas
da vida social legitimamente exigem paridade e quais a excluem. Para tanto, esse
arcabouço teórico teria de fazer distinções entre as diferentes arenas de participação
e as diversas normas apropriadas a cada uma dessas áreas da vida social, além de
explicar quanta participação é suficiente. O problema é que essa abordagem exibe
um tipo de esquizofrenia normativa: se, por um lado, alega que a legitimidade vem
do povo e a participação efetiva é necessária para assegurar aquela legitimidade,
130
por outro, nega às pessoas a capacidade de decidir sobre a extensão e os limites de
sua própria participação. Assim, “tenta responder as questões acerca da
participação ignorando ou excluindo a participação daqueles afetados” (OLSON,
2008b, p. 258).
A segunda estratégia, que ele julga mais consistente normativamente por ser
mais radicalmente democrática, é a deliberativa, na qual as normas participatórias
deveriam ser decididas por aqueles afetados por elas. Com isso, a estratégia
“encoraja a deliberação e o diálogo sobre a própria participação, uma prática auto-
referencial de discutir as condições sob as quais a discussão deve ocorrer” (OLSON,
2008, p. 258), permitindo que as pessoas façam reivindicações sobre que formas de
participação deveriam mostrar paridade e o que conta como impedimento a ela.
Olson nota que Fraser também indica sua preferência pela solução deliberativa (Cf.
FRASER; HONNETH, 2003, p. 72).
Segundo Olson, a conseqüência imediata da opção pela deliberação é a
aquisição pela participação política de uma especial importância normativa. Afinal,
ela fornece os meios para interpretar as normas participatórias e desenvolver
acordos sobre os sentidos em que cada indivíduo deverá ser tratado como igual. Ao
passo que o sentido social mais amplo de participação somente descreve as
oportunidades que as pessoas possuem de fazer várias atividades, a participação
política adicionalmente descreve sua habilidade para deliberar sobre os tipos de
oportunidades a elas disponíveis. Logo, “é normativamente anterior à participação
em sentido amplo, porque funciona como uma metacategoria da participação sobre
a participação” (OLSON, 2008, p. 259, grifo do autor).
Essa concepção reduz consideravelmente o fardo da justificação que os
teóricos precisam sustentar quando falam de justiça. Mas, ao se pretender mudar a
base normativa da justiça para a democracia, deve-se assegurar que a democracia
esteja apta a cumprir esse papel. Olson observa que a idéia de paridade
participatória é separada da idéia de sua ratificação deliberativa, mas “Nancy Fraser
argumenta persuasivamente (...) que as duas são normativamente mais robustas
quando costuradas juntas”, uma proposição composta que ele chama de “ideal
participatório” para se referir à “tese geral de Fraser de que a justiça deve estar
enraizada na norma da paridade participatória e que as normas participatórias
devem ser deliberativamente elaboradas” (OLSON, 2008, p. 260, grifo do autor).
131
Essa justaposição, no entanto, cria dificuldades. O problema é que a
deliberação pressupõe a paridade participatória e, ao mesmo tempo, supõe-se que
ela estabeleça os padrões para a paridade participatória. O ideal participatório é
circular porque pressupõe igual agência, ao mesmo tempo em que busca promovê-
la. O professor chama essa circularidade (já notada por Fraser) de paradoxo da
capacitação, vez que o objetivo do ideal participatório é capacitar os cidadãos a
participarem como iguais. Ele ocorre quando cidadãos igualmente capazes são tanto
pressupostos pela deliberação quanto seu produto pretendido (Cf. OLSON, 2008, p.
259-260).
Diversamente de Fraser, Olson não pensa ser possível solucionar essa
circularidade com a introdução de níveis de participação: uma primeira ordem onde
são expressas opiniões diretamente sobre a justiça e uma segunda ordem
(metanível) de reivindicações sobre o próprio discurso, de deliberações sobre a
deliberação. Para ele, essa estratégia apenas desloca o paradoxo para um novo
nível, metadiscursivo.
Além disso, em contraste com Fraser, ele pensa que essa circularidade é
problemática tanto na teoria quanto na prática. Afinal, se o ideal participatório é
inerentemente reflexivo, especificando os procedimentos de sua própria criação e
elaboração, não faz sentido a distinção entre normas particulares em seu estado
ideal e sua subseqüente aplicação a contextos particulares. No ideal participatório,
as pessoas decidem o sentido de “participar como igual” por meio de uma
elaboração política, determinando que dimensões da participação importam e em
que grau. Mas essa decisão não aplica uma norma predeterminada; antes formula o
significado e os limites daquela norma, precisamente o que ela significa e a que se
aplica, executando um trabalho conceitual fundamental. Nesse caso, como não faz
sentido a separação entre formação da norma e a sua aplicação, quaisquer
problemas práticos que o ideal participatório encontre serão também problemas
teóricos. O paradoxo da capacitação, portanto, revela um problema epistemológico
no coração do ideal participatório, na verdade, um problema conceitual criado na
confusa interface entre idéias e mundo. Por isso, Olson conclui, a participação não
pode ser a solução dos problemas da participação (Cf. OLSON, 2008, p. 262-263).
As inquietações de Kevin Olson não deixam, de certa forma, de ser
partilhadas por Fraser. Em seus últimos escritos, a autora tem se dedicado
132
precisamente a repensar sua teoria diante dos desafios postos pela globalização,
em especial à formulação de uma teoria democrática da justiça. No entanto,
No presente, nossas mais robustas teorias igualitárias da justiça pós-
Wesfaliana procedem largamente isoladas da teoria democrática, enquanto
nossas mais ambiciosas teorias da democracia pós-Westfaliana tem ainda
de desenvolver as fortes concepções igualitárias que elas precisam como
um necessário complemento. A abordagem crítico-democrática do ‘como’
[da justiça] promete conectar esses dois corpos de reflexão político-teórica,
ao tempo em que se opõe à corrente aliança de fato do igualitarismo com a
tecnocracia, por um lado, e àquela da democracia com o nacionalismo, por
outro (FRASER, 2007a, p. 211).
Parte do que Fraser respondeu a Forst também se aplica aqui, como resposta
parcial a Olson. A objeção de circularidade com relação à paridade de participação
corretamente assinala os vínculos conceituais internos entre justiça e democracia,
até mesmo porque a dificuldade se aplica genericamente a todos os processos
democráticos. Por isso, a feminista salienta, na perspectiva democrática a justiça
não é uma exigência externamente imposta, determinada acima das cabeças
daqueles a quem ela obriga, mas, ao contrário, vincula somente à medida que seus
destinatários possam também corretamente se considerar seus autores (Cf.
FRASER; HONNETH, 2003, p. 44). Essa reflexividade, contudo, é a própria fonte do
paradoxo (OLSON, 2008, p. 265).
Superar a circularidade, segundo Fraser, exige precisamente uma concepção
de justiça reflexiva. Pressagiada na proposta de “deliberação boa o suficiente” que
Fraser avançou desde suas Spinoza Lectures de 2004 e que foi acima delineada,
esse terceiro gênero de discurso combina elementos da justiça normal e anormal.
Por um lado, possui capacidades estruturadoras suficientes para organizar as lutas
por justiça do presente na forma de debates, nos quais as partes confrontam uma a
outra compelindo a atenção e o julgamento dos espectadores. Por outro, detém
capacidades autoproblematizadoras suficientes para entreter reivindicações novas
sobre o “que”, o “quem” e o “como” da justiça. O resultado é “uma gramática de
justiça que incorpora uma orientação para o fechamento, necessário ao debate
político, mas que trata todo fechamento como provisório sujeito a questionamento,
possível suspensão e, então, reabertura” (FRASER, 2008a, p. 72, grifos da autora).
Esse modelo, além de cultivar a capacidade de dar resposta a exclusões
emergentes, esboçaria conceitos como o de misframing, que convida à
autoproblematização reflexiva, com a meta de revelar injustiças previamente
133
oclusas. Além disso, dada a magnitude contemporânea da injustiça de primeira-
ordem, a pior postura seria usar o contexto atual de disputas em torno de vários
nódulos da justiça (“que”, “quem”, “como”) como uma licença para a paralisia. Como
a filósofa explica,
A expressão “justiça reflexiva” expressa (...) duplo compromisso, sinalizando
um gênero de teorização que trabalha em dois níveis de uma só vez:
entretendo reivindicações urgentes em favor dos desfavorecidos, enquanto
também analisando as metadisputas com elas entrelaçadas. Porque esses
dois níveis estão inextricavelmente emaranhados em tempos anormais, a
teorização da justiça reflexiva não pode ignorar qualquer deles.
Trabalhando em sua interseção, e ziguezagueando entre eles, essa
teorização mobiliza as capacidades corretivas de cada uma para mitigar os
defeitos da outra. Dessa forma, faz desabar a distinção entre discurso
normal e anormal (FRASER, 2008a, p. 73).
De forma mais radical que a própria idéia inicial de “deliberação boa o
suficiente”, a justiça reflexiva pode também legitimar reformas sociais, conquanto
modestas, que uma vez institucionalizadas assegurariam que a próxima rodada de
deliberação chegaria mais próxima da paridade de participação, desse modo
melhorando sua qualidade. E assim por diante. Portanto, diante do desafio colocado
por Olson, a solução é valer-se da capacidade reflexiva da democracia: sua
capacidade de problematizar e revisar aspectos de seus próprios procedimentos e
estruturas que eram anteriormente tidos como dados (Cf. FRASER, 2007a, p. 210).
Pelo acima explicitado, nota-se que o dinamismo imprimido por Fraser em seu
pensamento torna criticá-la uma tarefa difícil. Quase sempre ela se adiantou a
possíveis críticas; em outras oportunidades, as idéias que lançou continham os
embriões de desdobramentos que, permanecendo coerentes com o espírito inicial de
sua reflexão, se mostraram mais que suficientes para refutar as falas de seus
interlocutores. Finalmente, quando sua percepção do problema que gerou a
reprimenda pareceu ter se atrasado (como ocorreu com a inclusão tardia da
dimensão política em sua visão de justiça), ela reconstruiu seu arcabouço teórico de
forma a (absorvendo as críticas) manter-se à frente de seus críticos.
134
4.2 Limites à paridade de participação
Desse ponto em diante, serão tecidas outras críticas a Fraser. Seu arcabouço
teórico dificilmente poderia lhes dar resposta satisfatória sem algum tipo de
modificação em sua arquitetura ou reinterpretação de pontos fundamentais. Aqui a
noção de paridade de participação também é o foco central da análise, não apenas
diretamente, mas também nas pressuposições que permanecem a ela subjacentes.
Algumas das deficiências do pensamento fraseriano apontadas nessa seção foram
direta ou incidentalmente detectadas por um ou outro de seus interlocutores, às
vezes sem um maior aprofundamento da crítica; outras, até onde se sabe, nem
mesmo foram levantadas.
Para iniciar com um dos pontos mais obscuros do pensamento fraseriano, nos
concentremos na concepção de pessoa que subjaz a suas formulações. Pelo menos
até uma recente discussão com Rainer Forst, a norte-americana não tinha assumido
explicitamente nenhum direcionamento específico quanto a essa relevante questão.
Obviamente, é possível se deduzir de suas obras que ela jamais embasaria sua
teoria crítica em uma explicação abrangente do ser humano na verdade, Fraser
considera essa estratégia sectária e a atribui a Honneth.
No entanto, Forst pôs a questão da ausência de uma fundação moral forte
para o direito e o dever de justificação no pensamento fraseriano. Ele pensa que
sem aquele fundamento uma teoria da justiça e da justificação como a de Fraser não
pode chegar a ser efetivamente deontológica. Por isso, ele se desvia do caminho
não-fundacionista trilhado pela norte-americana, afirmando que o desejo de ser
respeitado como um agente autônomo a quem os outros devem boas razões é um
“profundo e racional desejo dos seres humanos” embasado em “um senso moral de
‘dignidade’ que é violado por ser invisível e por ser desconsiderado como uma
‘autoridade’ justificatória particular” (FORST, 2007, p. 301-302).
O que interessa mais é a resposta de Fraser quanto a esse tema de ontologia
social. Assumindo que ela e Forst adotam estratégias comuns, exemplifica: “cada
um de nós segue John Rawls em correlacionar sua teoria a uma concepção mais
limitada, ‘política’ de pessoa, que realça apenas aqueles traços da personalidade
que uma teoria não-sectária da justiça deve pressupor” (FRASER, 2007b, p. 334).
Mas, a seguir, a filósofa sustenta adotar uma concepção política de pessoa diversa
135
da do seu interlocutor. Na abordagem forstiana as pessoas são vistas como
doadores e recebedores de justificações que participam da prática social de troca de
razões públicas. Fraser expõe que sua teoria “representa as pessoas como co-
participantes em uma multiplicidade indeterminada de práticas sociais, que emergem
e desaparecem em um processo historicamente aberto, e assim não podem ser
especificadas definitivamente” (FRASER, 2007b, p. 334). Isso equivale a dizer que
as pessoas em sua abordagem aparecem como atores de mesmo tipo, socialmente
situados, mas potencialmente autônomos em todas as principais arenas e práticas
que abrangem sua forma de vida – e não apenas na argumentação política.
Daí ela apontar duas vantagens de sua concepção se comparada a de Forst:
a) por oferecer uma visão mais ampla, variada e historicamente aberta da
personalidade está menos vulnerável à acusação de racionalismo excessivo; b) por
afirmar o ideal da paridade participatória, estabelece uma relação próxima entre o
valor liberal da autonomia individual e o pertencimento social. Além disso, ao conferir
uma interpretação o-comunitária a este último, constrói os obstáculos
institucionalizados à paridade participatória como impedimentos não apenas à
autonomia igual, mas também ao pleno caráter de membro da sociedade.
Disso resulta, como Fraser acentua, que essa ontologia social permite à teoria
crítica tratar de uma forma maior de alienação, nomeadamente, a alienação de
alguém da sua sociedade e dos atores de mesmo tipo, mesmo enquanto prioriza a
justiça. Nesse sentido, a visão teórico-participatória leva a recuperar dentro de uma
teoria deontológica de justiça pelo menos uma preocupação ética importante que é
usualmente considerada como da província exclusiva das teorias teleológicas da
auto-realização (Cf. FRASER, 2007b, p. 334).
No entanto, apesar do auto-elogio fraseriano, um recuo à referência rawlsiana
pode revelar algumas dificuldades desse movimento teórico. Fraser indica em sua
nota o local preciso da obra de Rawls de onde ela pinça essa noção “política” de
pessoa. Trata-se do livro Political Liberalism (1996), especificamente o § 5 da
primeira conferência. Na obra em tela, Rawls pretende reformular sua teoria da
justiça enquanto uma “concepção política”, por oposição a uma “doutrina
abrangente”. Isto porque passou a considerar que o quadro de uma sociedade bem-
ordenada como antes esboçado em sua teoria não era realista, especificamente em
razão de nele estar suposto que todos os cidadãos endossam a justiça como
equidade enquanto uma doutrina abrangente e nela fundam os princípios de justiça.
136
Mas, como ele nota, o liberalismo político pressupõe que uma pluralidade de
doutrinas abrangentes e razoáveis e, ainda assim, incompatíveis, seja o resultado
normal do exercício da razão humana dentro da estrutura de instituições livres de um
regime democrático constitucional (pluralismo razoável). Por isso, a justiça como
equidade precisa ser apresentada (apenas) como uma concepção política de justiça.
Nesse sentido, também deve ser operada uma restrição em (ou reapresentação de)
sua visão de pessoa. Comentando a obra rawlsiana, ensina Freeman:
(...) a concepção Kantiana de pessoa (como livre, igual, razoável e racional)
é mantida, mas não sem modificação. Não é mais apresentada como parte
de uma “doutrina compreensiva” que fundamenta a moralidade nas
condições da agência moral e poderes da razão prática. (…) Esta
“concepção política de pessoa” fornece a base para uma concepção
“independente” de justiça (...) uma concepção política não deve estar
comprometida com qualquer doutrina filosófica particular, mas deve ter sua
base nas idéias implícitas no pensamento e cultura democráticos
(FREEMAN, 2003, p. 31).
Rawls então desenvolve uma concepção das pessoas como detentoras de
poderes morais (e do correspondente interesse de “ordem superior” em exercê-los):
a capacidade para um senso de justiça e a capacidade para uma concepção do
bem. A primeira equivale a entender, aplicar e agir a partir de uma concepção
pública de justiça que caracterize o termos justos da cooperação social; a segunda é
ter condições de formar, revisar e racionalmente perseguir uma concepção de sua
própria vantagem racional ou bem. Tal diferença é importante para, por meio da
cisão entre identidade pública ou institucional e identidade não-política ou moral,
manter a teoria fiel ao pluralismo razoável.
Ele explica que sua concepção de pessoa é política a partir da consideração
de como os cidadãos são representados como pessoas livres na “posição original”,
transformando a idéia de pessoa como possuidora de uma personalidade moral na
idéia do cidadão. Esses cidadãos pensam a si mesmos e uns aos outros como livres
em três aspectos: 1) possuindo o poder moral de ter uma concepção do bem, assim
como de alterá-la ao longo do tempo sem que sua identidade pública como pessoas
livres seja afetada; 2) considerando a si mesmos como fontes auto-autenticadoras
de reivindicações válidas e com peso próprio, a despeito de serem derivadas de
deveres e obrigações especificadas por uma concepção política de justiça; 3)
enxergando a si mesmos como capazes de assumir a responsabilidade por seus
137
fins, isto é, de ajustar suas reivindicações em matérias de justiça aos tipos de coisas
que os princípios da justiça permitem.
Portanto, a concepção política de pessoa está assegurada de início pela
natureza racional do sujeito humano. E como o véu de ignorância exclui qualquer
interferência heterônoma na ação moral, os parceiros fazem as suas escolhas como
“pessoas racionais, livres e iguais entre elas”. Como se vê,
Essa concepção retrata o homem como um ser racional indiferente ao
conteúdo empírico da sua condição. Ela não é afetada pelas mudanças no
tempo, pelas concepções de bem que cada um possui. Apesar dessa
idealidade, a pessoa na posição original não pode ser compreendida
segundo uma doutrina metafísica, mas pelo estatuto político da mesma. O
cidadão (identidade pública) - implícito na posição original como recurso de
representação que assume uma condição ideal - torna-se o sujeito que
reivindica direitos legítimos e assume a responsabilidade de seus fins
(RAMOS, 2002, p. 72-73).
Trata-se, portanto, de uma concepção artificial. As partes políticas rawlsianas
não são pessoas reais de uma sociedade, mas personagens que habitam o
mecanismo de representação. A nuança tem pelo menos dois motivos:
Primeiro, porque essa concepção constitui um ideal razoável para que a
convivência humana seja possível, independente do julgamento ético dela
ser um valor moral (metafísico) para a sociedade. Segundo, porque esse
ideal reflete ideais implícitos ou latentes na cultura pública (política) das
sociedades democráticas. Ora, somente uma perspectiva idealista
(formalista, procedimental) permite sustentar as duas razões acima
formuladas sem recorrer ao conteúdo social do “eu”, da liberdade e da
igualdade. Isso porque o papel político da pessoa na concepção do
liberalismo de Ralws, é distinto do seu papel segundo um ideal coletivo,
quer ele seja moral, religioso, metafísico, etc (RAMOS, 2002, p. 74, grifo do
autor).
A ênfase na concepção política de pessoa, de certo, envolve a idéia de
prioridade do justo sobre o bem, coerente com a visão fraseriana de justiça (Cf.
FRASER, 2001). O problema com Fraser referir sua visão de pessoa na esteira de
Rawls é que ela ao mesmo tempo pretende entender as pessoas como “socialmente
situadas” (envolvidas em diversas arenas de participação). Contudo, a estratégia
rawlsiana é precisamente uma forma de escapar do recurso ao conteúdo empírico
do “eu”. Disso resulta que a concepção política de pessoa em Fraser reduz as
próprias pessoas reais a sua “casca política” (Rawls pelo menos assume estar
tratando apenas de agentes racionais abstratos).
138
Essa tensão dificilmente pode ser resolvida pela feminista norte-americana na
atual configuração de sua teoria da justiça. Para solucionar esse conflito, talvez ela
precisasse enveredar pela psicologia moral, algo bem distante de suas idéias.
Uma vez que a doutrina é formulada por Rawls “em termos de uma
concepção Kantiana de pessoa, que faz da posse de poderes mentais e morais algo
central tanto à igualdade quanto à idéia chave de reciprocidade” (NUSSBAUM,
2007, p. 130), isso cria problemas para entender o papel social e político dos que
não detém as mesmas capacidades, tais como crianças e pessoas com deficiência.
A situação é ainda mais grave se, como Fraser indica, a paridade de
participação deva ser aplicada deliberativamente. Pois isso supõe, além da posse
daqueles poderes mentais e morais, a sua operacionalização discursiva pelos
envolvidos na troca pública de razões. Em termos práticos, aqueles cuja “casca
política” discursiva ainda não foi forjada (ou está irremediavelmente perdida) estão
excluídos desses debates.
Ingrid Robeyns, comparando Ralws a Sen, mostra que o primeiro parte de
uma noção de pessoa “normal” e daí determina o volume de bens sociais primários
que as pessoas devem possuir, ao passo que a abordagem das capacidades
seniana pode ser aplicada a todas as pessoas. Ela havia percebido que a noção
fraseriana central também repousa sobre alguma noção de normalidade:
O conceito normativo de paridade participatória de Fraser parece, assim
como a “Justiça como Equidade” de Rawls, assumir uma noção de pessoa
“normal” que possui as capacidades mentais e os direitos legais para
participar na sociedade como igual com outras pessoas. Isto parece excluir
pessoas com deficiências mentais e físicas severas. (...) A noção de
paridade participatória de Fraser não é muito desenvolvida e em ulteriores
escritos ela pode explicar como esses “casos especiais” devem ser tratados
em seu pensamento sobre justiça social. Entretanto, em um nível normativo-
filosófico parece mais interessante tentar desenvolver uma explicação
normativa que inclua todas as pessoas e que não trate os deficientes, os
fracos, os débeis, os enfermos, os jovens, os senis e reclusos como “casos
especiais” (ROBEYNS, 2003, p. 549).
A crítica é acertada, especialmente porque determinadas restrições, como a
cegueira ou a deficiência mental severa, podem afastar as pessoas de algumas
práticas sociais relevantes, comprometendo de certo modo a possibilidade de uma
efetiva paridade. No entanto, isso não impediria que um conjunto diferente de
capacidades, considerando essas situações, pudesse ser esboçado. A questão seria
então expandir esse conjunto ao máximo, em termos de possibilitar que essas
139
pessoas tomem tantas decisões cotidianas quanto possível (Cf. ROBEYNS, 2003, p.
549).
Talvez por essas dificuldades de acomodação, o próprio tema das pessoas
com deficiência não tenha recebido destaque nas obras da feminista norte-
americana. Ruth Lister considera “surpreendente (...) no trabalho de Fraser é a
ausência de qualquer menção da deficiência como um eixo de diferença e
subordinação” (LISTER, 2007, p. 160). Mas, a considerar os problemas acima
apontados, não é de causar estranheza essa omissão.
Na verdade, Fraser desde o início afirma que
(...) o núcleo normativo de minha concepção [de justiça] é a noção de
paridade de participação. Segundo esta norma, a justiça requer arranjos
sociais que permitam a todos os membros (adultos) da sociedade interagir
uns com os outros como pares (FRASER, 2001, p. 29; FRASER;
HONNETH, 2003, p. 36, grifo da autora).
O parêntese em questão, restringindo a paridade aos membros adultos,
revela por si as dificuldades que Fraser omite em sua exposição e que foram
acima explicitadas. O “adulto” ali empregado, pela carga rawlsiana que a autora
empresta a sua teoria, pode ser facilmente substituído por “normal”, e está colocado
para excluir os que nele não se enquadrem: crianças, jovens, senis, deficientes
graves. E, se em outros momentos ela excluiu a restrição no texto (retirando o
parêntese do enunciado), não parece tê-la excluído de sua teoria.
outro ponto que também merece ser destacado na presente seção. Com a
elevação do nível de interferência humana no meio-ambiente, alcançando escala
global no último século, a perplexidade diante das questões ambientais tem obrigado
um número cada vez maior de estudiosos a encará-las (também) como temas de
justiça social ou, ainda, dilemas éticos graves que merecem respostas urgentes. De
fato, é vasta a bibliografia filosófica atual sobre o status moral dos animais não-
humanos e, em acréscimo, vários filósofos morais levantam uma série de grandes
desafios contra o antropocentrismo moral (Cf. REGAN, 1995, p. 39-40). Nesse
sentido,
Uma intensa dialética agora caracteriza os ataques da filosofia sobre as
tradições do humanismo e do teísmo, ataques direcionados não apenas à
explicação tradicional do status moral dos animais não-humanos, mas
também aos fundamentos de nossas relações morais com o ambiente
natural, com a Natureza em geral. (...) O debate filosófico crescente sobre
140
nosso tratamento do planeta e dos outros animas que o dividem conosco é
tanto um sintoma quanto uma causa de uma tentativa de uma cultura
chegar a termos críticos com o seu passado, enquanto modela o seu futuro
(REGAN, 1995, p. 40).
Na obra fraseriana poucas são as referências aos problemas contemporâneos
da justiça ambiental. Com efeito, apenas em uma breve passagem de seus escritos,
no artigo Recognition without Ethics? (2001), ela procura aplicar a sua teoria da
justiça a essas espinhosas questões. Nesse ensaio, depois de usar a paridade de
participação para avaliar questões sociais, como o casamento de pessoas do
mesmo sexo, ela tenta mostrar que o princípio também pode ser aplicado a temas
da ecologia, evitando tanto quanto possível o apelo aos compromissos éticos
particulares dos debatedores.
Ela sugere o exemplo hipotético de uma sociedade comprometida em
assegurar a integridade e a sustentabilidade do ambiente natural, na qual padrões
de valoração institucionalizados são respeitadores da natureza. Com isso, uma
minoria que se identifica com orientações exploradoras da natureza é desfavorecida
e seus membros se organizam para reivindicar paridade entre as práticas culturais
exploradoras e as respeitadoras da natureza. Fraser reconhece que tal caso não
admite a solução pluralista, pois uma das práticas acabaria por minar a outra, o que
obriga a sociedade a optar por uma delas. Aparentemente, casos como esse
poderiam ser resolvidos por justificações éticas da escolha. Mas aqui, ela sustenta, a
dificuldade é menos intratável do que aparenta:
De fato, uma resolução não-ética está disponível, já que a reivindicação
antiecologista viola o padrão deontológico da paridade participatória bem
antes de a avaliação ética ter de entrar em operação. Especificamente, ela
viola a segunda parte da dupla exigência, que defende que as reformas
propostas não devem exacerbar uma disparidade de participação durante o
tratamento de outra. Nesse caso, os antiecologistas buscam remediar sua
própria disparidade vis-à-vis seus concidadãos respeitadores da ecologia;
mas eles o fariam às expensas das gerações futuras. Instituindo a paridade
agora para práticas que piorariam o aquecimento global, eles negariam a
seus sucessores os pré-requisitos materiais para uma forma de vida viável –
violando, assim, a justiça intergeracional. Desse modo, a reivindicação dos
antiecologistas falha no teste da paridade participatória. E então esse caso,
também, (...) pode ser julgado em bases deontológicas. Nenhum recurso à
ética é necessário (FRASER, 2001, p. 37).
Conquanto esse raciocínio seja sofisticado e possa parecer bem-sucedido,
pelo manejo procedimental-avaliativo inteligente da paridade de participação,
permanece a difícil questão de como as gerações futuras podem ser legitimamente
141
representadas nas contestações públicas acerca da justiça. Estritamente, elas estão
fora do debate acerca das questões de justiça, evidentemente centrado nos atores
sociais do presente (obviamente, a teoria de Fraser não é deficiente por isso).
O máximo que a paridade fraseriana pode nos oferecer, portanto, é o
compromisso de manter para os próximos humanos o mesmo volume de
oportunidades que agora possuímos com relação aos recursos naturais
indispensáveis a nossa sobrevivência, uma espécie de “redistributivismo ecológico”
estendido no tempo. Mas isso pode o ser o suficiente para a manutenção do
equilíbrio ecológico do globo, pois não necessariamente alteraria de forma direta a
postura humana com relação ao restante da natureza, mas tão-somente por via
indireta, através das preocupações de perpetuação (ainda que paritária) da nossa
espécie. Algo como a gratidão por nossos ancestrais, transferida aos nossos
descendentes, recomendada por Rawls ou Dworkin (Cf. ALMOND, 2005, p. 17-18).
Acresça-se que, dificilmente, se pode hoje sustentar a melhoria das condições
materiais de vida para os global poor (como Fraser certamente pretende), sem que
tais demandas sejam conectadas com uma crítica ambiental dos padrões de
superconsumo (não-sustentáveis) atualmente estabelecidos e muitas vezes
assumidos como metas/ideais para os mais desfavorecidos.
Apesar disso, Fraser ignora as urgentes questões da relação entre a nossa
espécie e o restante da biosfera, ou entre a humanidade e a natureza como um
todo. Sua teoria crítica, centrada na justiça das relações sociais e tomando por
princípio básico o dogma liberal fundamental do igual valor moral dos seres
humanos (Cf. FRASER, 2005b, p. 73), é presa fácil da acusação de
antropocentrismo/especismo que diversos filósofos e ambientalistas começaram a
formular mais sistematicamente no final do culo XX. Entre esses pensadores,
certamente um dos mais famosos é o professor australiano Peter Singer, que
articula sólida defesa dos animais:
(...) os humanos infligem sofrimento aos não humanos por razões triviais; e
(...) geração após geração, os pensadores ocidentais procuraram defender
o direito dos seres humanos a fazê-lo. Neste capítulo final, eu verei algumas
das formas em que práticas especistas são atualmente mantidas e
promovidas, e os vários argumentos e pretextos que ainda hoje são
evocados em defesa da escravatura animal. (...) É importante desmontar e
criticar esta ideologia porque, embora a atitude contemporânea face aos
animais seja suficientemente benévola - numa base muito seletiva - para
permitir a introdução de melhorias nas condições de vida dos animais sem
questionar a nossa atitude básica, estas melhorias estarão sempre em
142
perigo se não conseguirmos alterar a posição subjacente que sanciona a
exploração brutal dos não humanos para fins humanos. Só poderemos
construir uma fundação sólida para a abolição desta exploração se
conseguirmos romper radicalmente com mais de dois mil anos de
pensamento ocidental relativo aos animais (SINGER, 1990, p. 213).
Com efeito, todas as principais influências filosóficas de Fraser, de Kant a
Habermas, passando por Marx e Weber, supunham o caráter instrumental do mundo
natural (se pudermos usar essa expressão) e de todos os seus componentes (físicos
e biológicos) nas relações com o humano/social. Talvez por isso, como a própria
Fraser, silenciaram ou pouco falaram acerca das relações entre o animal humano e
a parcela não-humana da natureza, ao mesmo tempo tratando longamente das
relações sociais.
O pronunciamento de Singer é sintomático de um conjunto muito mais amplo
de preocupações ambientais atuais e Fraser falha gravemente ao silenciar diante
dessas questões. O curioso é que os movimentos sociais emergentes lhe interessam
sobremaneira, tanto que ela lhes atribui a tarefa do desenvolvimento de uma
estratégia programática substantiva para integrar redistribuição e reconhecimento (e
talvez agora representação), mas dentre eles os de cunho ambiental são raramente
mencionados em suas obras. Ainda mais intrigante é que, possivelmente, tenham
sido os ambientalistas os primeiros a questionar a estruturação Keynesiana-
Westfaliana da justiça em escala efetivamente global, pois desde o início a
interconexão dos ecossistemas e o caráter difuso dos “bens” ambientais os
obrigaram a pensar suas preocupações além dos horizontes locais.
Por essa afinidade com o projeto da justiça anormal, em desafiar frontalmente
as injustiças de misframing do mundo contemporâneo, é de se lamentar a ausência
de um maior aprofundamento das atuais lutas por justiça ambiental na obra
fraseriana independentemente da posição acerca das questões, seja ela a dos
utilitaristas do sencientismo, dos ativistas dos direitos dos animais, dos holistas
biocêntricos, ou alguma outra aqui não citada nominalmente.
143
5 CONCLUSÃO
Como se pode perceber desde o início, o objetivo de Fraser nunca foi
meramente diagnóstico. Em sua tentativa de traçar uma posição além daquelas
rivalidades sectárias (social democratas versus multiculturalistas), que na sua leitura
estabeleceram-se no interior da Esquerda (em especial da norte-americana), ela
também propôs reconstruir nossa compreensão da justiça, incorporando os insights
daqueles dois campos ao propor estratégias transformativas nas lutas por justiça
econômica e cultural. Com isso, conclamou aquelas correntes políticas para uma
luta integrada mais ampla por redistribuição na economia e reconhecimento na
cultura (e, poderíamos atualmente acrescentar, por representação na política).
Esse caráter de reflexão engajada, ou ativismo teórico, permeia toda a sua
obra, interessada de perto pelos movimentos sociais contemporâneos e paradigmas
populares de justiça. Mas sua pretensão maior é conectar os usualmente discretos
níveis da filosofia moral, teoria social e análise política em uma teoria crítica da
sociedade capitalista, enquanto “totalidade”. Crítica, por oposição à tradicional, é
uma teoria “guiada por um interesse prático, emancipatório, de desmascarar a
dominação” (Cf. FRASER, 2007b, p. 322).
O presente trabalho procurou historiar essa ambição de Fraser, mostrando
que desde o diagnóstico inicial de uma era pós-socialista, caracterizada pelo
desacoplamento das reivindicações por redistribuição econômica e por
reconhecimento, até os atuais nódulos de anormalidade presentes nos discursos
sobre a justiça, passando pela implosão da estrutura Keynesiana-Westfaliana, ela
manteve-se fiel àquele compromisso crítico-emancipatório.
Iniciando por sua proposta de uma teoria bidimensional, capaz de identificar e
apontar remédios não-dilemáticos para as injustiças de subordinação nas duas
principais ordens (analiticamente distintas) que ela identificava na sociedade
capitalista (econômica e cultural), salientamos as poderosas ferramentas de análise
e resolução por ela apresentadas, tais como o dualismo perspectivo, o modelo de
status do reconhecimento, a reparação cruzada, etc.
A seguir, abordamos a ampliação de sua teoria com o acréscimo de uma
terceira dimensão da justiça, política, e os respectivos conceitos (criticamente
144
argutos) por ela avançados que acompanharam essa modificação, tais como
misrepresentantion, misframing, entre outros. Nesse passo, observamos o início de
uma nova fase de sua reflexão, apenas ensaiada em seu projeto de justiça anormal,
fruto de acertada percepção sobre a atual conjuntura dos conflitos sociais
transnacionais e das profundas alterações que eles têm operado na gramática das
reivindicações por justiça.
Após a exposição da perspectiva fraseriana, relacionamos algumas das
críticas que lhe foram endereçadas e, sempre que possível, as refutações
especificamente elaboradas pela norte-americana, interligando as modificações e
esclarecimentos que nesse percurso ocorreram em seu pensamento e constatando
seu sucesso na refutação dos ataques a sua teoria da justiça.
Por último, foram apresentadas críticas específicas a Fraser que ela
dificilmente poderia responder sem reformular ou reposicionar sua teoria da justiça.
Uma delas, a concepção “política” de pessoa que a norte-americana empresta de
Rawls, não parece se entrosar adequadamente com uma visão que privilegie o
diagnóstico das relações sociais como elas atual e efetivamente se desenrolam
característica que Fraser deseja para seu arcabouço teórico. O caráter abstrato
dessa concepção pode levar à exclusão teórica das pessoas não-adultas e/ou não-
saudáveis, porque estas não teriam condições de participar (hoje ou sempre) de
todas as “arenas sociais relevantes” e assim jamais alcançariam a paridade
fraseriana. O mais grave é que precisamente essas pessoas, impossibilitadas (até
certo ponto) de tomar parte do debates públicos acerca da justiça, estão
agudamente sujeitas à subordinação e à dominação.
Nesse sentido, a crítica de Ingrid Robeyns, que entende o princípio da
paridade de participação como uma aplicação particular da abordagem das
capacidades de Amartya Sen, parece ter ressoado na postura da feminista. Em
recente discussão com James Bohman, Fraser afirma explicitamente que o princípio
da paridade participatória opera no espaço avaliativo das capacidades porque avalia
os arranjos sociais pelo grau em que asseguram às pessoas a capacidade de
participar plenamente, como iguais, na vida social, acrescentando:
(...) meu arcabouço teórico pertence à família das abordagens das
capacidades. Entretanto, ele difere de forma importante de alguns outros
membros daquela família. Por uma, minha variante é comparativa, vez que
se concentra nas capacidades relativas para a participação dos diferentes
agentes; logo, pertence à tradição deontológica da ‘justiça como equidade’,
145
ao invés da tradição Aristotélica. Por outra, minha abordagem foca
principalmente as capacidades para a interação social, em vez das
capacidades para ‘funcionamentos’ individuais; logo, destaca o caráter
social da vida social. Ademais, minha abordagem deixa aberta a questão
participação em o quê? Assumindo que as arenas de participação e os tipos
de interação são historicamente variáveis e abertos, eu não procuro
enumerar definitivamente uma lista de capacidades ou funcionamentos
básicos. Finalmente, como já assinalado, minha abordagem ordena que as
capacidades sejam avaliadas dialogicamente, através de um debate político
eqüitativo e inclusivo; efetivamente, então, ela casa a orientação substantiva
da abordagem das capacidades como o procedimentalismo democrático da
ética do discurso (FRASER, 2007b, p. 319, grifos da autora).
Apesar disso, para escapar desse abstracionismo presente em sua “ontologia
social” (para usar a terminologia de Fraser), talvez a teórica crítica precisasse
aprofundar discussões no campo da psicologia moral, tal como o estudo da
deformação das preferências empreendido por Martha Nussbaum. Essas
investigações alertam que a preferência das pessoas por liberdades básicas pode
ela mesma ser manipulada pela tradição e intimidação e indicam que uma posição
que se recuse a criticar o desejo entrincheirado, embora possa soar democrática em
sua superfície, pode não servir à democracia tão bem quanto uma que assuma uma
forte postura normativa nessa matéria, até certo ponto independente dos desejos
atualmente existentes das pessoas (Cf. NUSSBAUM, 2000, p. 115).
Outra deficiência da teoria fraseriana é sumariamente ignorar os acalorados
debates contemporâneos sobre justiça ambiental, que ultrapassaram as questões
intergeracionais (às quais ela se refere brevemente) e avançaram indagações
interespécies e, mais amplamente, as concernentes às relações entre humanidade e
Natureza em geral. Alargando as discussões no campo internacional e efetivamente
questionando a estruturação (framing) das contestações sobre justiça, os
movimentos ambientalistas são campo fértil para a investigação desse tema num
mundo em globalização. Por isso, no âmbito do projeto da “justiça anormal” que ora
ocupa Fraser, eles facilmente poderiam ocupar lugar destacado. Pode ser que o
desenvolvimento do projeto referido a conduza a refletir sobre esses temas,
beneficiando esse campo tão vasto com sua arguta perquirição. É o que esperamos.
146
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