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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
MYLENE ABUD
A Intertextualidade na obra Libertinagem, de Manuel Bandeira: uma
contribuição para o ensino de Língua Portuguesa
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
São Paulo
2010
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
MYLENE ABUD
A Intertextualidade na obra Libertinagem, de Manuel Bandeira: uma
contribuição para o ensino de Língua Portuguesa
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção do título
de MESTRE em Língua Portuguesa, na linha de
Pesquisa Texto e Discurso, nas modalidades oral
e escrita, sob orientação da Profª Drª. Leonor
Lopes Fávero.
São Paulo
2010
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BANCA EXAMINADORA
__________________________________
__________________________________
__________________________________
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Carlos Drummond de Andrade
AGRADECIMENTOS
A realização deste trabalho só foi possível graças à colaboração, o
carinho e o apoio de muitas pessoas à minha volta, que me ajudaram direta ou
indiretamente.
Agradeço particularmente,
e, especialmente, à minha querida orientadora, Professora Dra. Leonor
Lopes Fávero, por sua especial atenção, cuidado e profissionalismo nestes
dois anos e meio de intensa convivência;
à minha família, em especial a meus amados pais, Jorge [in memoriam]
e Odette, e filhos, Natasha e Eric, que sempre estiveram e estão ao meu lado,
e a quem dedico esta nova conquista;
às professoras da Banca Examinadora Dra. Vanda Maria da Silva Elias e
Dra. Lucia Maria de Assis, pelas valiosas sugestões que muito enriqueceram o
trabalho;
ao professor e amigo Dr. Dirceu Antonio Scali Jr., pelo incentivo a esta
empreitada;
aos professores do Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa
da PUC-SP;
ao CNPQ, pelo apoio financeiro, que viabilizou a realização desta
pesquisa.
a Deus, por ter iluminado o meu caminho nesta jornada acadêmica.
Resumo
No presente trabalho, examinamos a importância da intertextualidade
para o estabelecimento de novas e diferenciadas leituras. Como corpus,
elegemos a obra Libertinagem, de Manuel Bandeira, que integra o período
modernista do autor.
Relação de um texto com outro ou outros textos pré-existentes, a
intertextualidade é um dos sete fatores de textualidade propostos por
Beaugrande e Dressler.
Vistas aqui no âmbito da Lingüística Textual, em sentido amplo ou
restrito, em concordância ou dissonância, as relações intertextuais dependem
da interação autor-leitor para garantir a coerência da obra e o maior grau de
informatividade. Dependem, também, do conhecimento de mundo do
leitor/receptor para atingirem seus objetivos.
A intertextualidade enriquece o processo de leitura e pode ser usada
como importante ferramenta em sala de aula pelos professores de língua
materna. O recurso auxilia no desenvolvimento de uma leitura instigante,
profunda, divertida e, acima de tudo, crítica.
Palavras-chave: Intertextualidade, Lingüística Textual, Conhecimento Prévio,
Manuel Bandeira, Libertinagem.
Abstract
In this essay, we investigate the importance of the intertextuality to
establish new and different ways of reading. As our corpus, we elected some
poems from the book Libertinagem, by Manuel Bandeira, which belongs to the
author’s modernist stage.
Relation between one text and another or among others, all of them pre-
existent, the intertextuality is one of the seven standards of textuality proposed
by Beaugrande and Dressler.
Seeing here in the field of Textual Linguistics, in lato or strict approach, in
agreement or disagreement, the intertextual relations depend on the
author/reader interaction, in order to ensure de
coherence of the work and a higher
degree of informativity. They also depends on the previous knowledge from de reader/receptor
to reach the goals.
Intertextuality enrichs the reading process and can be used as an
importante tool in the classroom by mother tongue’s teachers. This resource
helps to develop a provocative, deep, funny and, most of all, critical reading.
Keywords: Intertextuality, Textual Linguistics, Previous Knowledge, Manuel
Bandeira, Libertinagem.
____________SUMÁRIO_________________________________________________
INTRODUÇÃO..............................................................................................................10
CAPÍTULO 1
LINGUÍSTICA DE TEXTO E INTERTEXTUALIDADE
1.1 Um panorama histórico...........................................................................................13
1.2 Linguística Textual...................................................................................................16
1.3 Texto e Discurso......................................................................................................20
1.4 A Intertextualidade...................................................................................................23
1.5 Paródia e Paráfrase.................................................................................................28
1.5.1 Outros recursos....................................................................................................37
1.6 Intertextualidade e Conhecimento prévio................................................................41
1.7 Intertextualidade e Literatura...................................................................................44
CAPÍTULO 2
MANUEL BANDEIRA: UM POETA ANTENADO COM O SEU TEMPO
2.1 Manuel Bandeira.....................................................................................................49
2.2 A Obra refletindo a vida do poeta............................................................................50
2.3 O Modernismo em Bandeira....................................................................................54
2.4 A Intertextualidade em Manuel Bandeira................................................................56
CAPÍTULO 3
ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS
3.1 Considerações para a análise.................................................................................65
3.2 A Intertextualidade em Libertinagem.......................................................................65
3.2.1 A Infância..............................................................................................................66
3.2.2 A Falta, o luto, a morte.........................................................................................72
3.2.3 O Amor, o erotismo e as mulheres.......................................................................75
3.2.4 Mulheres e Carnaval............................................................................................76
3.2.5 Novas linguagens, movimentos e autores............................................................80
CAPÍTULO 4
A INTERTEXTUALIDADE EM SALA DE AULA
4.1 Intertextualidade: um recurso a mais para o professor de Língua Portuguesa......88
4.2 O leitor cooperativo.................................................................................................92
CONCLUSÃO..............................................................................................................103
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................106
___Introdução___________________________________________________
Trabalhar a intertextualidade é estudar a relação ou o diálogo de um
texto com outro ou outros previamente existentes.
Este trabalho está fundamentado na Lingüística Textual, ramo da
Lingüística que tem o texto, em suas diferentes concepções, como objeto de
estudo.
De acordo com Beaugrande & Dressler (1981), a construção textual
que faz com que uma seqüência lingüística seja vista como um texto e não
como frases agrupadas –, envolve sete fatores: coesão, coerência,
intencionabilidade, aceitabilidade, informatividade, situcionalidade e
intertextualidade. E se algum destes fatores for desconsiderado, o texto não
será comunicativo.
Nesta dissertação, examinaremos apenas um dos fatores a
intertextualidade, como um dos recursos para ampliar as possibilidades de
leitura. Também procuraremos elucidar questões como: é possível que as
diferentes leituras feitas pelo leitor fujam do objetivo do autor? E será que isso
se constitui realmente em um problema, que o texto é sempre uma obra
aberta, com espaços a serem preenchidos?
Nossa análise intertextual te como objeto alguns poemas do livro
Libertinagem, de Manuel Bandeira. Escrita nos anos de maior efervescência
do Modernismo, a obra está plenamente inserida na técnica e na estética da
primeira fase do movimento e também dialoga com a sua época e com os
ideais daquele momento.
Dentre os 38 poemas que compõem o livro, selecionamos os seguintes:
Noturno da Rua da Lapa, Porquinho-da-índia, Na Boca, Madrigal Tão
Engraçadinho, Teresa, Profundamente, Evocação do Recife, Mulheres,
Poética, Poema Tirado de uma Notícia de Jornal e Noturno da Parada Amorim.
Esta dissertação tem como objetivo geral analisar as ocorrências de
intertextualidade em poemas da obra Libertinagem, de Manuel Bandeira, tendo
como base a Linguística Textual. E como objetivos específicos:
2
1. Analisar de que forma Bandeira se utilizou de outros discursos em
Libertinagem, produzindo uma nova obra. O diálogo entre textos pode
representar a adesão ou a contestação das idéias dos autores com os quais
interage;
2. Mostrar como os percalços da vida do autor a tuberculose, a perda
de entes queridos, os vários recomeços – e sua época influenciaram sua obra.
3. Observar as ocorrências intertextuais, em poemas de Libertinagem,
que abordam temas recorrentes na bibliografia do poeta, como a infância, a
morte, o amor, o carnaval, as mulheres e as novas linguagens da época.
No primeiro capítulo, examinamos os conceitos de Linguística Textual
desde o seu surgimento até os dias de hoje –, da textualidade e,
especificamente, da Intertextualidade.
No segundo capítulo, efetuamos um breve relato sobre a vida e a obra
de Manuel Bandeira.
No terceiro capítulo, procedemos à análise da Intertextualidade em
Libertinagem.
No quarto capítulo, abordamos a utilização da Intertextualidade em sala
de aula e a participação do leitor no processo de cooperação para que a leitura
se torne coerente.
Esta pesquisa se justifica pelo fato de existirem poucos trabalhos que
abordam as relações intertextuais em Manuel Bandeira e nenhum que foque
especificamente a intertextualidade em Libertinagem. O presente trabalho visa,
justamente, suprir esta lacuna e contribuir para o estudo da obra de um dos
mais expressivos escritores da literatura brasileira.
Além disso, a análise das relações intertextuais também pode ser um
importante instrumento de trabalho em sala de aula, uma vez que proporciona,
entre outras coisas, que os alunos acionem seus conhecimentos prévios e de
mundo em busca do maior número de leituras cruzadas possíveis. Com isso,
adquirem novo repertório e passam a efetuar uma leitura crítica das obras.
Retomando as idéias de Antunes (2003), a leitura tem uma tríplice
função: a informação, o prazer e o entendimento das particularidades da
3
escrita. E, para atingir esta competência, cabe ao professor de Língua
Portuguesa promover uma leitura: de textos autênticos, interativa, motivada, do
todo, crítica, de reconstrução do texto, diversificada, por pura curtição, apoiada
no texto, não só das palavras expressas, com vinculação de sentido.
Desta forma, a exploração da intertextualidade se encaixa perfeitamente,
acionando, entre outras possibilidades, conhecimentos prévios que possibilitem
leituras e releituras.
4
___CAPÍTULO 1 _________________________________________________
Linguística de Texto e Intertextualidade
1.1 Um panorama histórico
Surgida na década de 60 na Europa, particularmente na Alemanha, a
Lingüística Textual, um dos ramos da Lingüística, tem como objeto de
investigação o texto eo mais a palavra ou a frase, sendo texto nesta
abordagem visto como muito mais do que uma simples seqüência de
enunciados.
O termo Lingüística Textual (a partir de agora LT) apareceu pela primeira
vez em Cosériu (1955) e, no sentido atual, em Weinrich (1966/67). O tema é
abordado por dezenas de autores, entre eles Hartung, Petöfi, Dressler e Van
Dijk. A retórica, a estilística e o formalismo russo podem ser considerados
precursores da LT. Também a Lingüística Estrutural, com reflexões voltadas
para o texto como análises funcionais das frases e germes da Análise do
Discurso, que m entre seus representantes nomes como Benveniste,
Jakobson e Pêcheux, podem ser considerados precursores stricto sensu da LT.
Entre os motivos que levaram os lingüistas a desenvolverem a LT,
Fávero & Koch (1983) destacam
as lacunas das gramáticas de frase no tratamento de fenômenos tais
como a correferência, a pronominalização, a seleção dos artigos
(definido ou indefinido), a ordem das palavras no enunciado, a relação
tópico-comentário, a entoação, as relações entre sentenças não ligadas
por conjunções, a concordância dos tempos verbais e vários outros que
podem ser devidamente explicados em termos de texto ou, então,
com referência a um contexto situacional. (p. 12)
Segundo as autoras, Conte (1977) distingue três momentos na
passagem da teoria da frase à teoria de textos: a análise transfrástica (das
regularidades que transcendem os limites do enunciado); a construção das
gramáticas textuais (verificação do que faz com que um texto seja um texto,
5
delimitação e diferenciação etc.): e a construção das teorias de texto
(tratamento dos textos em seu conceito pragmático).
Em sua fase inicial, no fim dos anos 60 e meados dos anos 70, a LT teve
como principal objetivo o estudo dos mecanismos interfrásticos da língua.
Estes seguiam linhas heterogêneas no âmbito do estruturalismo, gerativismo e
funcionalismo. O texto era concebido como uma frase complexa e uma unidade
lingüística superior, no qual as estruturas possíveis em cada língua deveriam
ser determinadas pelas regras de uma gramática textual.
Na fase final, a base empírica da teoria de texto deixa de ser a
competência textual e passa a ser a competência comunicativa vista agora
como a capacidade de o falante se adaptar às diferentes situações de
comunicação.
Um dos pioneiros da Lingüística Textual, Teun van Dijk, assim como
outros estudiosos que se dedicaram à construção de gramáticas textuais, deu
às suas pesquisas uma orientação semântica representada, de forma geral,
pelas macroestruturas profundas.
Como uma evolução da abordagem sintático-semântica, surgiu a
perspectiva pragmática da Lingüística. A língua deixava de ser examinada
como sistema autônomo para ser vista em seu funcionamento nos processos
comunicativos no âmbito de uma sociedade concreta. De ‘produtos acabados’,
os textos passam a ser considerados elementos constitutivos de uma atividade
complexa e instrumentos de realização de intenções comunicativas.
Na cada de 80, pela abordagem cognitiva, o texto começa a ser visto
como o resultado de processos mentais: os participantes da comunicação
levam suas expectativas para a situação de comunicação e ativam
conhecimentos prévios e experiências.
Mais tarde, passou-se a questionar o cognitivismo clássico, com o
pretexto de que muito da cognição acontece fora das mentes e não apenas em
seu interior, sendo, assim, um fenômeno situado. Surge, então, a perspectiva
sociocognitivo-interacionista. Nesta concepção interacional ou dialógica da
língua, os sujeitos o vistos como atores, o texto é o lugar da interação e os
interlocutores são os sujeitos ativos.
A Lingüística Textual, prosseguem Fávero & Koch (op. cit.), deve ser
definida em termos do tipo de objeto texto ou discurso que se propõe a
6
descrever. Cabe a ela explicar o que faz com que um texto seja um texto,
propriedade esta denominada textualidade, ou seja, a capacidade do ser
humano de criar textos, verbais e não-verbais.
A LT trabalha com textos delimitados, com início e final determinados de
forma mais ou menos explícita. Como exemplo de textos delimitados, as
autoras mencionam um sermão, um diálogo, um livro. E observam que
O escopo da descrição de uma gramática textual, que toma como ponto
de partida textos (no plural), é o texto (no singular) (...) Cabe à
gramática textual explicar o que faz com que um texto seja um texto,
propriedade esta que se denomina textualidade. (p. 20)
Para Beaugrande & Dressler (1981):
Qualquer estudo transicional de assuntos multidisciplinares é propenso
a provocar controvérsias. Alguns simpatizantes podem não reconhecer
completamente o valor dos textos lingüísticos e insistir que a sentença
lingüística é o próprio domínio da investigação. Outros podem querer
admitir textos sem alterar os métodos estabelecidos. Até aqueles que
aceitarão alterações profundas podem discordar sobre a melhor nova
direção a seguir. Em nossa visão, a natureza dos textos como
ocorrências comunicativas deveria decidir quais os métodos usados,
sem se relacionar a compromissos pessoais ou institucionais feitos no
passado. Na prática, nossa abordagem pretende mais complementar as
tradicionais do que competir com elas. (Internet, Foreword, p.2
tradução livre)
Os autores ponderam que uma ciência nova como a Linguística
procuraria, de forma compreensível, alinhar-se a ciências mais antigas como a
Física, a Matemática e a Lógica Formal. Mas a comunicação, assim como
qualquer atividade humana, tem as suas particulares propriedades físicas,
matemáticas e lógicas que não devem ser negligenciadas. Uma aplicação
rígida das noções das ciências exatas poderia desumanizar o objeto de estudo
a ponto de a investigação se tornar irrelevante. E a análise das estruturas
7
formais poderia ser falha por não abranger a natureza e a função em seu
amplo contexto.
Em conseqüência do grande interesse pela dimensão sociointeracional
da linguagem e seus processos, surgem várias questões referentes à
linguagem, entre as quais, a da intertextualidade.
1.2. Lingüística Textual
Um dos principais temas abordados pela LT, a intertextualidade, como
explica Koch (2006), compreende os vários modos pelos quais a
produção/recepção do texto pelos interlocutores depende do conhecimento de
outros textos. Conhecimento este que se aplica por intermédio de um processo
passível de ser descrito em termos de mediação (medida em que os locutores
introduzem suas opiniões e objetivos momentâneos em um modelo de situação
comunicativa).
Então, quanto maior a extensão do tempo e das atividades de
processamento entre o texto atual e o previamente conhecido, maior a
mediação. Essa mediação extensiva teria como exemplo o emprego de tipos
de texto nos quais previsão de certos traços para fins específicos; no
caso de citações ou referências a textos bem conhecidos, a mediação seria
menor.
Beaugrande & Dressler (op.cit.) observam que o sentido de um texto
depende do conhecimento prévio de outros textos com os quais se relaciona.
Ou seja: o fator de intertextualidade abrange as diversas maneiras pelas quais
a produção e a compreensão de um texto dependem do conhecimento de
outros textos pelos interlocutores.
Como exemplo, citam um anúncio publicitário que apareceu em revistas
alguns anos, com os seguintes dizeres: As long as you are up, give me a
Grant’s – Assim que puder, me dê um Grant’s.
Um professor, trabalhando em um projeto de pesquisa, retirou este texto
da revista, alterou e afixou na porta de seu escritório: As long as you’re up, give
me a Grant. Em uma tradução livre, Assim que puder, me dê um subsídio.
8
A sentença original era sobre um uísque de uma conhecida marca. A
nova frase parece fora de propósito: subsídios para pesquisa são concedidos
somente após extensa preparação e, certamente, não podem ser obtidos ao
entrar em uma sala. A discrepância, explicam os autores, pode ser resolvida
via conhecimento do texto original e de sua intenção, enquanto a surpresa da
nova versão restitui sua informatividade e interesse. Este efeito de interesse
contrabalança a falta de imediata relevância situacional e a intenção sem
importância do novo texto apresentado.
Nas palavras de Jenny (1979), a intertextualidade é máquina
perturbadora, que não deixa o sentido em sossego ao evitar o triunfo do
“clichê” por um trabalho de transformação. Trabalho este realizado pelo
autor/enunciador e concluído pelo leitor/enunciatário. A seu ver, o uso
intertextual dos discursos corresponde sempre a uma vocação crítica, lúdica e
exploradora:
Se o sujeito é verdadeiramente esse ser mumificado vivo pelos códigos
sociais que cercam o seu quotidiano, que melhor ferramenta haverá do que a
intertextualidade, para quebrar a argila dos velhos discursos? A
intertextualidade deixa de ser aproveitamento bem educado, ou citação da
Grande Biblioteca, para se tornar estratégia de mistura; e estende-se, para fora
do livro, a todo o discurso social. (...) Nasce uma outra palavra, que escapa ao
totalitarismo dos media, mas conserva o seu poder, e se volta contra os velhos
mestres. (p.49)
Beaugrande & Dressler (op. cit.) ressaltam que a intertextualidade inclui
as relações entre um dado texto e outro texto relevante previamente conhecido,
com ou sem mediação. O registro das lembranças de um texto recém lido
ilustraria a intertextualidade com muito pouca mediação; a mediação mais
extensiva seria obtida em críticas/ apreciações sobre textos escritos algum
tempo.
Koch (1986) amplia a conceituação de mediação, conferindo ao termo
intertextualidade um sentido amplo (lato) e um sentido estrito (stricto sensu).
A intertextualidade em sentido amplo (lato) ocorre sempre de maneira
implícita e se faz presente em todo e qualquer texto, correspondendo à
9
interdiscursividade (presença de vozes num mesmo segmento discursivo ou
textual). Neste caso, a autora sugere o uso do termo interdiscurso.
em sentido estrito (stricto sensu) se quando em um texto está
inserido outro texto (intertexto), produzido, que faz parte da memória social
de uma coletividade ou da memória discursiva dos interlocutores. Esta pode
ser explícita (com a fonte do intertexto mencionada no próprio texto) ou
implícita (sem mencionar a fonte). No primeiro caso, aparecem as paráfrases,
mais ou menos próximas do texto-fonte, as citações referenciais, a retomada
de textos do interlocutor, o discurso relatado etc.; no segundo, incluem-se
enunciados parodísticos e/ou irônicos, apropriações etc.
Na intertextualidade implícita, para a construção do sentido, o produtor
do texto espera que seu interlocutor identifique a presença do intertexto e
reconheça o texto-fonte, através da ativação em sua memória discursiva. Sem
esta recuperação, o objetivo de comunicação do autor pode não ser atingido,
tanto no caso de subversão (posição contrária ao texto-fonte) como de
captação (adesão).
Koch (2006) explica:
Na intertextualidade implícita com valor de subversão, por seu turno, a
‘descoberta’ do intertexto torna-se crucial para a construção do sentido. Por
serem os intertextos, de maneira geral, trechos de obras literárias, de músicas
populares bem conhecidas ou textos de ampla divulgação pela mídia, bordões
de programas humorísticos de rádio ou TV, assim como provérbios, frases-
feitas, ditos populares, etc., tais textos-fonte fazem parte da memória coletiva
(social) da comunidade, podendo ser, em geral, facilmente acessados por
ocasião do processamento textual embora, evidentemente, não haja
nenhuma garantia de que isso venha a acontecer. (p. 147)
As citações, as referências, as retomadas do texto do interlocutor, o
discurso relatado, entre outros, fazem parte da intertextualidade explícita. A
autora acrescenta que são inúmeros os textos que só fazem sentido com
relação a outros, que constituem o seu contexto.
Para Jenny (1979), a sensibilidade dos leitores ao fenômeno da
intertextualidade varia em função da cultura, da memória de cada época, da
preocupação formal de seus escritores, entre outros aspectos. Fazendo alusão
10
a Marshall Mcluhan, Jenny afirma que toda memória literária resulta da
capacidade de memorização dos meios de comunicação de determinada
época. Então, os períodos de crise intertextuais seriam os que se seguem à
introdução de novos “media”, como o Renascimento e o início do século XX.
No entanto, o autor considera a teoria de Macluhan redutora, esvaziando a
intertextualidade de uma significação ideológica.
Para Jenny (op. cit.), “a intertextualidade fala uma língua cujo
vocabulário é a soma dos textos existentes” (p.22). No entanto, ressalta a
dificuldade de fazer caber vários textos num só, sem que estes se destruam
mutuamente, e sem que o intertexto se “estilhace”. (Intertexto é usado por
Jenny como um “texto absorvendo uma multiplicidade de textos, embora
centrado num só sentido”).
O autor postula outras questões: como se opera a assimilação, por um
texto, de enunciados pré-existentes? Em que relação estão esses enunciados
com seu estado primeiro?
Diante da falta de recursos para a sua elucidação, ele opta por uma
concepção de intertextualidade como irrupção transcendente de um texto em
outro – e este trabalho segue também esta linha.
A estes questionamentos, poderíamos acrescentar: é possível que o
cruzamento de leituras feitas pelo leitor fuja do objetivo do autor? E será que
isso se constitui realmente em um problema, que o texto é sempre uma obra
aberta, a ser preenchida pelo leitor? (vide Introdução, p. 1)
Segundo Paulino, Walty e Cury (1997), nem o produtor e, tampouco, o
receptor conseguiriam esgotar a extensão simbólica da cultura inteira daí a
importância dos textos, que funcionam como unidades necessárias à existência
da rede cultural. Então, se considerarmos toda a produção humana como texto
a ser lido e reconstruído, a sociedade pode ser vista como uma grande rede
intertextual em constante movimento. Em um mundo globalizado, no qual os
meios de comunicação são cada vez mais interativos, a recepção por parte do
público se faz através de toda a diversidade das linguagens: visão, audição, em
conjunção com música, poesia, imagens etc. Observam as autoras:
Num mundo assim caracterizado, é imprescindível, pois, estudar a
intertextualidade. Em seu sentido amplo, ela envolve todos os objetos e
11
processos culturais, tomados como textos. Em sentido mais restrito, a
intertextualidade terá como objeto apenas as produções verbais, orais
ou escritas. (p. 14)
Mediante esta diversidade, para Perrone-Moisés (1979, p. 217), “a
primeira condição da intertextualidade é que as obras se dêem por inacabadas,
isto é, que permitam e peçam para ser prosseguidas”.
1.3. Texto e Discurso
Um texto é mais do que a soma de seus enunciados e sua produção e
compreensão necessitam da competência textual – a capacidade que todo
falante de uma língua tem de distinguir um texto coerente de um aglomerado
incoerente de enunciados – do leitor.
O texto seria produto de vários componentes e estruturas. Para
Beaugrande & Dressler (op. cit.), o texto seria qualquer ocorrência
comunicativa.
Segundo Stammerjohann (apud Fávero & Koch, 1983, p. 18), um texto
teria uma extensão mínima de dois signos lingüísticos, dos quais um poderia
ser suprido pela situação, como ocorre com os textos de uma palavra. Ex:
Socorro!
Cosériu (apud Fávero & Koch, idem, p. 22), por sua vez, afirma que no
texto se encontram não só procedimentos lingüísticos ou sistemáticos da língua
mas, também, todas as possibilidades de utilização da fala: por isso, não pode
ser examinado apenas por meio de métodos estruturais.
Kleiman (1977) afirma que o texto é considerado por vários especialistas
como uma unidade semântica, na qual os vários elementos de significação são
materializados através de categorias lexicais, sintáticas, semânticas,
estruturais. E define a atividade de leitura como uma interação à distância entre
leitor e autor, via texto. Nessa relação, ambos zelam para que os pontos de
contato sejam mantidos, mesmo diante de possíveis divergências de opiniões e
objetivos.
12
Se na interação face a face os elementos do contexto (gestos,
conhecimento mútuo dos interlocutores etc.) ajudam a compreensão, na leitura,
observa Kleiman, a responsabilidade tanto do autor quanto do leitor é
considerada maior:
(o autor) deve deixar suficientes pistas no seu texto a fim de possibilitar
ao leitor a reconstrução do caminho que ele percorreu (...) Já o leitor
deve acreditar que o autor tem algo relevante a dizer no texto, e que o
dirá clara e coerentemente. Quando obscuridades e inconsistências
aparecem, o leitor deverá tentar resolvê-las, apelando ao seu
conhecimento prévio de mundo, lingüístico, textual, devido a essa
convicção de que deve fazer parte da atividade de leitura que o conjunto
de palavras discretas forma um texto coerente, isto é, tem uma unidade
que faz com que as partes se encaixem umas nas outras para fazer um
todo. Isso implica atender às pistas textuais, ao invés de ignorá-las
porque não correspondem a nossas pré-concepções. (p.66)
De acordo com Fávero & Koch (idem), os termos texto e discurso muitas
vezes se confundem. Uma das razões seria o fato de que, em algumas línguas,
como o alemão e o holandês, existe o termo texto. E citam a definição de
Van Dijk para quem o discurso é uma unidade passível de observação, que se
interpreta a partir da enunciação, enquanto texto seria uma unidade
teoricamente reconstruída, subjacente ao discurso:
Assim sendo, a gramática pode descrever textos, de maneira que
possibilita, apenas, uma aproximação com relação às estruturas
discursivas atualizadas, empíricas, efetivamente produzidas. (p.23)
Para os seguidores da Análise do Discurso, por exemplo, discurso
englobaria os enunciados pertencentes a uma mesma formação discursiva e as
suas condições de produção. O texto seria a manifestação verbal resultante.
Na opinião de Maingueneau (2006, p. 39), a noção de discurso é de
difícil operação, que atua em dois planos: de um lado, possui certos valores
clássicos em Lingüística e, de outro, é passível de um uso pouco controlado,
13
na qualidade de palavra-chave de uma certa concepção de língua. No campo
da Lingüística, discurso, observa:
. Pode designar uma unidade lingüística constituída por uma sucessão
de frases (segundo a Análise do Discurso dos anos 1950 de Harris ou dos que
se referem à gramática do discurso. De modo geral, prefere-se hoje Lingüística
Textual.).
. Pode-se opor à língua, considera sistemas de valores virtuais (próximo
à oposição de Saussure entre língua e fala).
. Com Benveniste, aproxima-se de enunciação, ou seja, a língua
assumida pelo homem que fala, e na condição de intersubjetividade que
constitui o fundamento da comunicação lingüística.
. Em um nível superior, considerado um uso restrito do sistema (discurso
comunista, discurso científico...), opõe-se à língua, definida como sistema
partilhado pelos membros de uma comunidade lingüística.
O autor pondera que, falar de discurso, ativa algumas idéias-força,
que o discurso supõe uma organização transfrática e, além de ser uma forma
de ação, é também interativo, orientado, contextualizado, assumido por um
sujeito, regido por normas e o que mais nos interessa nesta pesquisa
considerado no âmbito do interdiscurso. Este último assume um sentido no
interior de um universo de outros discursos através do qual deve abrir seu
caminho; para interpretar mesmo o menor dos enunciados, é preciso relacioná-
lo com todos os tipos enunciados.
Ele também define texto como uma ocorrência comunicativa que
engloba os sete fatores ou princípios destacados por Beaugrande e Dressler:
coesão, coerência, intencionalidade, aceitabilidade, informatividade,
situacionalidade e, por fim, intertextualidade.
Fávero & Koch (op. cit.) pontuam que o termo texto pode ser visto, em
sentido lato, como toda e qualquer manifestação da capacidade textual do ser
humano, isto é, qualquer tipo de comunicação realizada através de um sistema
14
de signos (música, pintura, filmes etc.). E, no âmbito verbal, o discurso,
atividade comunicativa de um falante, numa dada situação de comunicação,
englobando o conjunto de enunciados produzidos pelo locutor/interlocutor e o
evento da enunciação.
Em sentido stricto, o discurso se manifesta lingüisticamente por meio de
textos:
Neste sentido, o texto consiste em qualquer passagem, falada ou
escrita, que forma um todo significativo, independente de sua extensão.
Trata-se, pois, de uma unidade de sentido, de um contínuo
comunicativo contextual que se caracteriza por um conjunto de relações
responsáveis pela tessitura do texto os critérios ou padrões de
textualidade, entre os quais merecem destaque especial a coesão e a
coerência. (p. 25)
No presente trabalho, optamos por esta última definição de texto. E,
objetivando uma uniformização, escolhemos não entrar no mérito da
diferenciação entre texto e discurso, termos que variam em função da postura
dos autores.
1.4. A Intertextualidade
Trabalhar a intertextualidade é estudar a relação ou o diálogo de um
texto com outro ou outros previamente existentes, partindo da materialidade do
texto (aparência, concreto) para a sua interpretação (essência, abstrato).
Como conceito operacional de teoria e crítica literária, a intertextualidade
foi estudada primeiramente por Bakhtin, que caracterizou o romance moderno
como dialógico. Ou seja, como um tipo de texto em que as diversas vozes da
sociedade estão presentes e se entrecruzam, relativizando o poder de uma
única voz condutora.
Para Bakhtin (1999), a orientação dialógica é a orientação natural de
qualquer discurso vivo e o discurso, em seu trajeto até o objeto, sempre
encontra com o discurso de outrem. Então, somente o “Adão mítico”, quando
15
proferiu a primeira palavra em um mundo virgem, poderia ter evitado esta
mútua orientação dialógica: “O sentido da palavra é totalmente determinado por
seu contexto. De fato, tantas significações possíveis quanto contextos
possíveis”. (p. 106)
Fiorin (2001) ressalta a originalidade do pensamento bakhtiniano, ao
criar um novo objeto teórico para a ciência da linguagem, antes das teorias
pragmáticas, discursivas ou enunciativas: o uso lingüístico. E observa:
“Segundo Bakhtin, a língua, em sua ‘totalidade concreta, viva’ em seu
uso real, tem a propriedade de ser dialógica. Essas relações dialógicas
não se circunscrevem ao quadro estreito do diálogo face a face. Ao
contrário, existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada
sempre pela palavra do outro, é sempre e inevitavelmente também a
palavra do outro. Isso quer dizer que o enunciador, para constituir um
discurso, leva em conta o discurso de outrem, que está presente no
seu”. (p. 128)
Fairclough (2001, p.133) observa:
“Embora o termo (intertextualidade) não seja de Bakhtin, o
desenvolvimento de uma abordagem intertextual (ou em seus próprios
termos “translingüística) para a análise de textos era o tema maior de
seus trabalhos ao longo de sua carreira acadêmica e estava
estreitamente ligado a outras questões importantes incluindo sua teoria
dos gêneros.”
Bakhtin (apud Fairclough, p. 133) critica certa omissão com respeito às
funções comunicativas da linguagem efetuada pelos principais ramos da
lingüística e, mais especificamente, a omissão sobre o modo como os textos e
os enunciados são moldados por textos anteriores aos quais eles estão
‘respondendo’ e por textos subseqüentes que eles ‘antecipam’. Sobre isso,
observa Fairclough:
“Todos os enunciados são povoados e, na verdade, constituídos por
pedaços de enunciados de outros, mais ou menos explícitos ou
16
completos (...). Isto é, enunciados ‘textos’ em meus termos são
inerentemente intertextuais, constituídos por elementos de outros
textos.” (p. 134)
Na década de 60, a crítica literária francesa Julia Kristeva, seguidora das
idéias de Bakhtin, desenvolve o conceito de intertextualidade. Ela defende que
o texto é construído como um mosaico de citações, uma retomada de outros
textos. E que toda produção cultural nasce da interação de uma série de textos
em intersecção com textos anteriores. Tal apropriação, pode se dar desde a
simples vinculação a um gênero até a retomada explícita de um texto.
Para Kristeva (apud Fairclough, p. 134), a intertextualidade implica “a
inserção da história (sociedade) em um texto e deste texto na história”. Ou
seja: o texto absorve e é construído de textos os maiores artefatos que
constituem a história – do passado:
Por “a inserção do texto na história”, ela (Kristeva) quer dizer que o
texto responde, reacentua e retrabalha textos passados e, assim
fazendo, ajuda a fazer história e contribui para processos de mudança
mais amplos, antecipando e tentando moldar textos subseqüentes. Essa
historicidade inerente aos textos permite-lhes desempenhar os papéis
centrais que têm na sociedade contemporânea no limite principal da
mudança social e cultural (...) A rápida transformação e reestruturação
de tradições textuais e ordens de discurso é um extraordinário
fenômeno contemporâneo, o qual sugere que a intertextualidade deve
ser um foco principal na análise do discurso. (p. 134-135)
Retomando Kristeva e Bakhtin, Fairclough (op. cit.) fala sobre
‘horizontalidade e ‘verticalidade’. Por um lado, observa, há relações
intertextuais ‘horizontais’ de um tipo ‘dialógico’ entre um texto e aqueles que o
precedem e seguem na cadeia de textos, e cita como exemplo os turnos de
fala e a troca de cartas. Por outro lado, há relações intertextuais ‘verticais’ entre
um texto e outros textos que constituem seus contextos mais ou menos
imediatos ou distantes, historicamente ligados em escalas temporais ou
parâmetros.
17
Além de incorporar ou responder a outros textos, prossegue Fairclough,
a intertextualidade pode ser considerada como incorporando também as
relações potencialmente complexas que tem com as convenções (gêneros,
discursos, estilos etc.) que estão estruturadas juntas e constituem uma ordem
de discurso:
A distinção entre as relações intertextuais de textos com outros textos
específicos e as relações intertextuais de textos com as convenções
está relacionada com uma outra distinção usada pelos analistas de
discurso franceses: a intertextualidade ‘manifesta’ oposta à ‘constitutiva’
(...) Na intertextualidade ‘manifesta’, outros textos estão explicitamente
presentes sob análise: eles estão ‘manifestamente’ marcados ou
sugeridos por traços na superfície do texto, como as aspas. Observe,
entretanto, que um texto pode ‘incorporar’ outro texto sem que o ultimo
esteja explicitamente sugerido: pode-se responder a outro texto na
forma como se expressa o próprio texto, por exemplo. A
intertextualidade constitutiva de um texto, entretanto, é a configuração
de convenções discursivas que entram em sua produção. (p.137)
Quando a distinção não está em questão, Fairclough prefere o uso do
termo intertextualidade para ambas; no entanto, utiliza o termo
‘interdiscursividade’ preferivelmente atrelado à intertextualidade constitutiva.
Segundo Fiorin (2006), qualquer relação dialógica é denominada
intertextualidade. Para ele, uma distinção entre discurso e texto, ou seja,
relações dialógicas entre enunciados (posição assumida por um enunciador,
sentido) e texto - manifestação do enunciado, materialização:
Assim, deve-se chamar intertextualidade apenas as relações dialógicas
materializadas em textos. Isso pressupõe que toda intertextualidade
implica a existência de uma interdiscursividade (relações entre
enunciados), mas nem toda interdiscursividade implica uma
intertextualidade. (p.52)
18
Ampliando o conceito de Kristeva, Barthes afirma que todo texto é um
intertexto. “Outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas
mais ou menos reconhecíveis” (apud Charadeau; Maingueneau, 2004, p. 289).
No âmbito da Análise do Discurso, Maingueneau (2005) distingue
intertextualidade - o tipo de citação que uma formação discursiva considera
legítima por sua própria prática - e intertexto - conjunto de fragmentos que ela
efetivamente cita. E afirma (2006) que um discurso é construído por meio de
um “já-dito” e o intertexto é um componente importante para as condições de
produção porque decorre de fundamentos inter e multidisciplinares, que a
leitura é um processo cognitivo, resultado de informações fornecidas pelo texto.
Ao dialogismo e/ou intertextualidade, acrescenta-se a polifonia.
Retomando Ducrot, Koch define polifonia como incorporação ao próprio
discurso das vozes de outros enunciadores ou personagens discursivos
(terceiros, opinião pública etc):
Entendido desta maneira, o fenômeno da polifonia imbrica-se com o que
estou chamando de intertextualidade implícita, quer no sentido amplo,
quer no estrito, pois também a polifonia pode ser entendida de maneira
ampla ou restrita. Assim, à intertextualidade (ou polifonia) em sentido
amplo isto é, a intertextualidade como é conceituada por Pêcheux,
Maingueneau, Orlandi e Verón -, poder-se-ia reservar a denominação
de interdiscursividade, considerando-se o interdiscurso como o lugar da
constituição do sentido do texto. À intertextualidade implícita stricto
sensu poderia ser reservado, simplesmente, o termo polifonia.
Finalmente, restariam os casos de intertextualidade explícita as
citações, as referências, as retomadas de texto do parceiro, a resenha
etc (...). (1986, p.44)
Para Fiorin (op.cit.), esse jogo dramático de vozes seria uma forma
especial de interação, que tornaria multidimensional a representação e que,
sem buscar uma síntese do conjunto, mas ao contrário uma tensão dialética,
configuraria a arquitetura própria de todo discurso. Uma vez que o sujeito não é
o centro do discurso, mas sim um sujeito histórico e ideológico, é essencial
descobrir quais são as vozes, como aparecem e se entrelaçam, para
19
compreender o texto e o discurso, a essência e a aparência, o contexto e o
caráter ideológico.
De acordo com Lauriti (1990), ao usarmos as denominações de
intertextualidade, polifonia ou dialogismo, chegamos a uma invariante maior, de
que o discurso é constitutivamente atravessado pelo discurso do outro.
Sempre.
E, que a ideologia se materializa no discurso e este se concretiza no
texto, estudar a intertextualidade é desnudar, é considerar todos estes
aspectos. No presente trabalho, vamos nos ater ao princípio da
intertextualidade no âmbito da Lingüística Textual.
1.5. Paródia e paráfrase
A intertextualidade em sentido estrito, observa Koch (idem), aparece
tanto na linguagem cotidiana como na literatura. Como exemplo, cita a
paráfrase, a tradução, a paródia e a estilização. A esse respeito, diz Sant’Anna
(1988) que “falar de paródia é falar de intertextualidade das diferenças, falar de
paráfrase é falar de intertextualidade das semelhanças” (p.28)
A paródia é uma forma de apropriação que rompe com o modelo
retomado, de forma sutil ou aberta. Mas, em alguns casos, também presta
homenagem ao texto parodiado. A paródia, explica Sant’Anna, existia na
Idade Média, na Grécia e em Roma, mas, modernamente, pode ser definida
através de um jogo intertextual (p.8): “É possível distinguir não apenas uma
paródia de textos alheios (intertextualidade), como uma paródia dos próprios
textos (intratextualidade).”
Conforme Fávero e Urbano (1988):
Todo e qualquer texto tem uma multivocidade inerente (= muitas
leituras); o enunciador faz sempre uma interpretação do texto-fonte e,
assim, não o restaura de modo diferente, mas também faz uma
20
interpretação do texto-derivado no momento em que o produz como
paráfrase.
A paráfrase, de acordo com Fávero (2004):
É uma atividade efetiva de reformulação pela qual, como diz Fuchs,
‘bem ou mal, na totalidade ou em parte, fielmente ou não, se restaura o
conteúdo de um texto-fonte, num texto-derivado.
Sant’Anna (op.cit.) cita o clássico “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias,
escrito em 1843, em Coimbra, Portugal, como o poema possivelmente mais
parafraseado, estilizado e parodiado da literatura brasileira. Mesclando a
nostalgia e o nacionalismo próprios da primeira fase do Romantismo brasileiro,
Dias teria se baseado na balada Mignon, de Wolfgang Goethe, como
inspiração:
Texto-fonte: Canção do Exílio – Gonçalves Dias
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá;
As aves que aqui gorgeiam,
Não gorgeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossas vidas mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
21
Em cismar – sozinho à noite –
Mais prazer encontro eu lá:
Minha terra tem Palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
A apropriação do texto-fonte Canção do Exílio pode ser observada na
seguinte paráfrase:
Europa, França e Bahia – Carlos Drummond de Andrade
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos
Minha boca procura a ‘Canção do Exílio’.
Como era mesmo a ‘Canção do Exílio’?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
Onde canta o sabiá!
Neste texto, explica Sant’anna (op.cit., p.24), o deslocamento é mínimo e
ocorre uma técnica de citação e transcrição. Podemos, ainda, falar em
intertextualidade estrita e explícita, com a menção da obra parafraseada, e em
adesão, já que ambos enfocam a saudade da terra natal.
Também o Hino Nacional Brasileiro cuja letra foi escrita em 1909 –,
retoma versos de Gonçalves Dias, destacados em negrito, em uma paráfrase
que revela adesão:
Hino Nacional Brasileiro - Joaquim Osório Duque Estrada e Francisco Manuel da Silva
Deitado eternamente em berço esplêndido,
ao som do mar e à luz do céu profundo,
22
fulguras, ó brasil, florão da américa,
iluminado ao sol do novo mundo!
Do que a terra mais garrida,
teus risonhos, lindos campos têm mais flores;
nossos bosques tem mais vida,
nossa vida" no teu seio "mais amores”.
Ó pátria amada,
idolatrada,
salve! Salve!.
A intertextualidade das diferenças ou paródia da Canção do Exílio é o
mote dos textos a seguir:
Canto de Regresso à Pátria – Oswald de Andrade
Minha terra tem palmares
Onde gorgeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá.
Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra
Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo
23
Neste caso, explica Sant’anna (op. cit.), o distanciamento é absoluto,
com a inversão do sentido: a substituição do termo romântico palmeiras pelo
nome do quilombo liderado por Zumbi – Palmares – tem efeito irônico e crítico.
Mantendo a similaridade sonora e rítmica, o texto de Oswald de Andrade,
explica, contrapõe a “estética modernista à estética romântica, contrasta a
alienação social à denúncia histórica e transforma o discurso do branco na
afirmação do preto” (op.cit., p.25).
A substituição de elementos típicos do Romantismo combatido pelos
Modernistas – e o elogio ao progresso, ao invés de enaltecer as belezas
naturais, mostra um novo ideal, um olhar diferente do homem para si mesmo e
para o mundo que o rodeia.
O mesmo espírito de crítica aparece na paródia de outro Modernista,
Murilo Mendes:
Minha terra tem Macieiras da Califórnia,
Onde cantam gaturanos de Veneza.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.
Ai quem me dera chupar uma carambola
de verdade
e ouvir um sabiá com certidão
de idade!
Outros tantos textos parodiaram e parafrasearam e continuam a fazê-
lo a consagrada obra de Gonçalves Dias. O humorista Soares utilizou o
intertexto da Canção do Exílio para parodiar as regalias do ex-presidente
Fernando Collor de Mello:
Minha Dinda tem cascatas
onde canta o curió.
Não permita Deus que eu tenha
24
de voltar pra Maceió.
Minha Dinda tem coqueiros
da ilha de Marajó.
As aves, aqui, gorjeiam
não fazem cocoricó.
Por sua vez, o poeta José Paulo Paes optou pela Canção do Exílio
Facilitada, nem por isso desprovida de crítica quanto à valorização do
estrangeiro em detrimento ao elemento nacional, e flertando com o
Concretismo:
lá?
ah!
sabiá...
papá...
maná...
sofá...
sinhá...
cá?
bah!
Nos idos de 1968, em pleno recrudescimento da ditadura brasileira,
Chico Buarque de Hollanda e Tom Jobim retomaram Gonçalves Dias com a
música Sabiá. Taxada como paráfrase e repudiada por ter vencido a politizada
Para não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, no III Festival
Internacional da Canção, a versão de Chico e Tom adere ao texto-fonte com
relação à saudade – agora, dos exilados. E, neste sentido, não expressa
apenas o sentimento lírico, mas o tom de protesto. Além disso, fala de
elementos/tranqüilidade que não existem mais e modifica o gênero do sabiá
(masculino) para uma sabiá (feminino), explorando o falar popular:
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
25
Uma sabiá
Cantar uma sabiá
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá
E algum amor
Talvez possa espantar
As noites que eu não queria
E anunciar o dia (...)
A charge, a seguir, foi tema da prova de Língua Portuguesa e Literatura
Brasileira do vestibular de 1997 da Universidade Federal Fluminense, e
também parodia a Canção do Exílio:
26
PAIVA, Miguel & SCHWARCZ, Lilia.
Da colônia ao Império. Um Brasil para inglês ver....
São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 11
Os exemplos citados não esgotam todas as leituras e releituras do texto-
fonte. São apenas amostragens de quantas leituras cruzadas é possível fazer
partindo de um único objeto, intertextualizado com outros tantos, enriquecendo
a apreensão e a compreensão por parte do leitor/receptor, a quem cabe
acompanhar com seu repertório e conhecimento de mundo (que será visto
mais adiante).
Sant’Anna destaca (op.cit., p.18) que a Lingüística atualmente aproxima
tradução e paráfrase pelo caráter didático das duas na transmissão da técnica
do aprendizado, tornando os textos originais mais fáceis de entender.
Com elementos da paródia, aparece o pastiche termo que, no
processo de intertextualidade, não tem um caráter pejorativo, mas assume os
27
traços de um estilo com tanta ênfase que o sentido se torna deslocado. Não
retoma textos específicos, e sim um gênero. Enquanto a paródia tem uma
relação negativa com o texto-base, o pastiche é positivo ao assumir as
características do gênero. Observam Paulino, Walty e Cury (1997):
O pastiche não tem impulso satírico como a paródia, mas de
‘seriedade’. Enquanto a paródia é um desvio da norma, ao questioná-la
radicalmente, o pastiche vai insistir na norma a ponto de esvaziá-la. Por
exemplo, o drama foi tão parodiado como gênero, que passamos a ter
dele a percepção pejorativa de ‘dramalhão’. Isso equivale à perda da
eficiência, pela saturação, e à conseqüente morte estética do gênero. É
como gênero ‘morto’ que ele se presta ao pastiche. (p. 40)
Paulino, Walty e Cury (op.cit.) explicam que, no caso da paráfrase, da
paródia e do pastiche, a associação intertextual envolve a maior parte do texto,
em sua construção e leitura. No entanto, o texto-matriz não é necessariamente
retomado em sua totalidade.
A paráfrase é a recuperação de um texto por outro de forma dócil,
retomando seu processo de construção em seus efeitos de sentido. O resumo
e o reconto também são formas de paráfrase e, como a pura repetição não
existe, as versões tornam-se outras obras.
A paráfrase deixa clara a fonte e a intenção de diálogo com o texto
retomado e, por este motivo, não se confunde com o plágio. a paródia é
uma forma de apropriação que rompe com o modelo retomado, de forma sutil
ou aberta. Mas, em alguns casos, também presta homenagem ao texto
parodiado.
Jenny (1979) observa que a paródia se relaciona simultaneamente com
a obra que caricatura e com todos os textos constitutivos do gênero. E conclui
que, à medida que os textos deixam transparecer a sua relação com outros
textos, a determinação intertextual da obra se torna dupla.
28
1.5.1. Outros recursos
Além da paródia, da paráfrase e do pastiche, a epígrafe, a citação, a
referência e a alusão são práticas intertextuais explícitas.
A epígrafe é uma escrita introdutória de outra, que pode ser um texto de
continuidade ou uma fala irônica. Para Paulino, Walty e Cury (idem), esta
“implica sempre um recorte de outro texto que é presentificado e,
conseqüentemente, modificado em seu contato com o novo texto, sobre o qual
lança novos sentidos”.
Sobre a epígrafe de Goethe (“Conheces o país onde florescem as
laranjeiras? Ardem na escura fronde os frutos de ouro... Conhecê-lo? Para lá,
para lá quisera eu ir!”), utilizada por Gonçalves Dias na abertura da “Canção do
Exílio”, as três autoras assim se manifestam:
“Abrindo seu poema com versos de um dos maiores expoentes do romantismo
alemão, o poeta brasileiro se filia à estética romântica européia, ao nero
lírico, além de explicitar a postura nacionalista de amor à natureza que seria
assumida por ele próprio. Nesse caso, a epígrafe funciona como elemento de
continuidade, ou seja, a atitude poética de Gonçalves Dias é de admiração pelo
poeta retomado.” (p. 26)
É comum o uso de epígrafe em ensaios e teses acadêmicas, retomando
textos científicos ou de outra natureza; já em poesia, a epígrafe pode ser usada
como mote conceito expresso num dístico ou numa quadra para ser
desenvolvido, comentado, em atitude de endosso ou crítica.
A utilização do mote é prática tradicional na literatura, estabelecendo
diálogo entre poetas que podem estar separados por culos. Paulino, Walty e
Cury (op. cit.) dão como exemplo Gonçalves Dias que, em Olhos Verdes,
serve-se do mote de Camões na cantiga:
Menina dos olhos verdes - Camões
a este moto alheio:
Minina dos olhos verdes,
29
porque me não vedes?
Voltas
Eles verdes são,
e têm por usança
na cor, esperança
e nas obras, não.
Vossa condição
não é d'olhos verdes,
porque me não vedes.
Olhos Verdes – Gonçalves Dias
São uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos de verde-mar,
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos cor de esperança
Uns olhos por que morri;
Que, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi! (...)
Dizei vós: Triste do bardo!
Deixou-se de amor finar!
Viu uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos da cor do mar;
Eram verdes sem esp’rança,
Davam amor sem amar!
Dizei-o vós, meus amigos,
Que, ai de mi!
Não pertenço mais à vida
Depois que os vi!
A citação é a recuperação explícita de um fragmento de texto no corpo
de outro texto. Prática comum no meio acadêmico, onde as fontes de pesquisa
30
devem ficar evidentes, esta é marcada por aspas ou outros recursos gráficos
de forma a identificar a presença do texto de outro para o leitor.
Enquanto na referência o título e/ou os personagens de determinada
obra aparecem explicitamente, a alusão é um tipo de intertextualidade fraca,
que se trata de uma ligeira menção a outro texto ou a um componente seu.
A tradução, como observamos anteriormente, vem sendo modernamente
considerada como forma de intertextualidade, aproximando-se da paráfrase. O
bom tradutor o é um mero decodificador: cabe a ele analisar, interpretar,
efetuar as adequações lingüísticas e culturais, enfim, co-criar. Observam
Paulino, Walty e Cury:
Antes do advento da intertextualidade como conceito operatório da
crítica, o tradutor era considerado mero transcodificador de línguas,
responsável por uma atividade menor. Tanto isso ocorria, que seu nome
não era quesito obrigatório, como hoje, nas referências bibliográficas.
Da tentativa de se reduzir o trabalho do tradutor à mera fidelidade ao
original é exemplo a fórmula tão amplamente divulgada tradutor/traidor.
(p.43)
Em textos como os provérbios, a recuperação do intertexto é quase
certa. em outros tipos de textos, como o literário, seu reconhecimento não é
garantido e vai depender dos conhecimentos que o interlocutor tiver
representado em sua memória. Caso a recuperação não seja feita, a
construção dos sentidos pode ficar bem distante do pretendido pelo autor.
No âmbito da intertextualidade implícita, Koch, Bentes e Cavalcante
(2007) acrescentam o tournement, formulado por Grésillon e Maingueneau
(1984), que consiste na produção de um enunciado que possui as marcas
lingüísticas de uma enunciação proverbial, sem, contanto, pertencer ao
estoque dos provérbios reconhecidos.
A esse respeito, afirmam as autoras (op. cit., p.45):
Preconizam eles (Grésillon e Maingueneau) a existência de um
détournement de tipo lúdico, simples jogos com a sonoridade das
palavras, como aqueles que as crianças – mas não só elas – gostam de
inventar, que não estejam a serviço de uma manobra política ou
31
ideológica, a par de outro, de tipo militante , que visa a dar autoridade a
um enunciado (captação) ou a destruir ordens (subversão). Aqui, pois, o
objetivo é levar o interlocutor a ativar o enunciado original, para
argumentar a partir dele; ou, então, ironizá-lo, ridicularizá-lo, contraditá-
lo, adaptá-lo a novas situações, ou orientá-lo para um outro sentido,
diferente do sentido original. (...) Somos de opinião, contudo, que todo e
qualquer exemplo de détournement é ‘militante’ em maior ou menor
grau, visto que ele sempre vai orientar a construção de novos sentidos
pelo interlocutor.
As autoras prosseguem enfatizando que, na maior parte dos casos de
subversão, o détournement envolve uma contradição ao texto-fonte, seja pela
negação de uma parte ou do todo, pelo apagamento da negação que aquele
encerra ou pelo acréscimo de expressões adversativas. Entre os vários tipos
de détournement, destacam:
a) détournement de provérbios, frase feitas, títulos de filmes,
freqüentes na publicidade, no humor, na Música Popular
Brasileira etc.;
b) détournement de textos ou títulos de textos literário. Como
exemplo, as autoras citam uma paródia ao poema Vou-me
embora pra Pasárgada, de Manuel Bandeira:
Texto-Fonte
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Détournement
Fui-me embora de Pasárgada...
32
(Lá tem amigos do rei DEMAIS)
(Texto de uma charge de Negreiros, publicada no jornal O Estado de S.
Paulo, em 10/05/19, em que aparece a ministra Zélia Cardoso de Mello
com uma trouxa no ombro, em atitude de retirada).
c) détournement de provérbios, frases feitas, clichês, slogans,
passagens bíblicas por meio de adjunções;
d) détournement de hinos e canções populares;
e) détournement de fábulas tradicionais.
No entanto, este recurso não aparece obrigatoriamente na
intertextualidade implícita: o intertexto pode não apresentar modificações na
forma e passa, apenas, a fazer parte de um novo contexto. Por esta razão, em
nossa análise, não trabalharemos com o détournement.
1.6. Intertextualidade e conhecimento prévio
Como a intertextualidade não se limita ao texto em si, por referências
implícitas ou explicitas a outros textos previamente existentes, e pode ser
construída socialmente pela relação que os leitores estabelecem entre um texto
e outro(s), surge d a importância dos conhecimentos prévios para o
reconhecimento dos elementos de intertextualidade.
Na leitura de um texto, todo leitor/receptor procura o seu sentido, a sua
coerência, mesmo que esta seja de difícil estabelecimento. Segundo Fávero
(2002, p. 71), esta coerência depende do conhecimento prévio, ou seja, do
elemento-base, subjacente a todos os outros. A compreensão de um texto é
um processo presente e se realiza pela ativação desse conhecimento. Graças
à interação, o leitor/ouvinte constrói o sentido do texto.
33
Kleiman (op. cit.) ressalta que toda leitura é um ato social entre dois
sujeitos autor e leitor, que interagem entre si. E, uma vez interpretado, o
objeto-texto se torna um objeto coerente: “O esforço para compreender
mediante essa interpretação e construção de contexto é o esforço que subjaz à
utilização de conhecimento prévio na leitura (...)” (, p.10)
Este conhecimento, explicam Koch e Travaglia (1990), que deve ser
partilhado entre o produtor e o receptor, é adquirido ao longo da vida, através
do contato com o mundo e com as experiências. Fica armazenado na memória
em blocos ou modelos cognitivos como frames, esquemas, superestruturas etc.
Os autores observam ser a coerência que faz com que uma seqüência
lingüística seja vista como um texto, porque, através de vários fatores,
proporciona o estabelecimento de relações entre os elementos da seqüência,
permitindo construí-la e percebê-la, na recepção, como unidade significativa
global. É a coerência que textura à seqüência lingüística, que origem à
textualidade.
Koch e Travaglia (idem) afirmam que a coerência é subjacente,
tentacular, reticulada, não-linear e se relaciona com a linearidade textual a
coesão do texto (ligação, relação e nexos que se estabelecem entre os
elementos que constituem a superfície textual).
A relação entre coesão e coerência é de mão dupla pois, na produção
de um texto, caminha-se do profundo (coerência) até o superficial e linear
(coesão); na compreensão do texto, o caminho percorrido é o inverso: vai das
pistas lingüísticas na superfície do texto à coerência profunda. Observam os
autores (p.42):
“Embora a coesão auxilie no estabelecimento da coerência, ela não é
garantia de se obter um texto coerente. (...) Haverá sempre
necessidade de recurso a conhecimentos exteriores ao texto
(conhecimento de mundo, dos interlocutores, da situação, de normas
sociais etc.)”
A construção da coerência advém de fatores de diversas ordens:
lingüísticos, discursivos, cognitivos, culturais e interacionais.
34
Segundo Kleiman (1977, p.29-30), a compreensão, o esforço para
recriar o sentido do texto, tem sido descrito como esforço inconsciente na
busca de coerência do texto. Um dos caminhos que auxilia nesta busca seria o
que ela chama de “engajamento”, ou seja, a ativação de nosso conhecimento
prévio relevante para o assunto do texto. Outro caminho seria o
estabelecimento de objetivos e propósitos claros para a leitura.
Segundo a autora (idem, p.37), quando o leitor está descontextualizado
e não tem como usar seu conhecimento prévio, pode formular e testar
hipóteses de leitura, mas levando em conta apenas as pistas intratextuais.
Neste sentido, há três níveis de conhecimento:
. Lingüístico é implícito e torna possível a um indivíduo falar uma
língua como nativo. Abrange desde a pronúncia da língua até o seu uso.
Permite a identificação de categorias e das funções desses segmentos
ou frases, progredindo para a compreensão;
. Textual relacionado à classificação do texto quanto a sua estrutura e
à interação autor/leitor;
. De Mundo ou Enciclopédico – adquirido formal e/ou informalmente.
Sobre o conhecimento textual, Kleiman (op. cit.) observa que, quanto
maior a exposição a todos os tipos de texto, mais fácil será a compreensão
para o leitor, uma vez que o conhecimento de estruturas textuais e de tipos de
discurso determinará, em grande medida, suas expectativas em relação ao
texto. E são justamente essas expectativas que exercem papel fundamental na
compreensão do texto. A autora pontua (idem, p.13):
É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o
conhecimento lingüístico, o textual, o conhecimento de mundo, que o
leitor consegue construir o sentido do texto. E porque o leitor utiliza
justamente diversos níveis de conhecimento que interagem entre si, a
leitura é considerada um processo interativo. Pode-se dizer com
35
segurança que sem o engajamento do conhecimento prévio do leitor
não haverá compreensão.
Outro fator importante para a coerência é a intertextualidade. Koch e
Travaglia (op. cit.) ampliam o conceito de intertextualidade lato/stricto e incluem
as de:
. Forma - o produtor do texto repete expressões, enunciados ou trechos
de outros textos, ou o estilo de determinado autor ou de determinados tipos de
discurso. Ex. Canção do Exílio (Gonçalves Dias) X Hino Nacional e Canção do
Expedicionário (“Por mais terras que eu percorra, o permita Deus que eu
morra sem que volte para lá”).
. Conteúdo - trata-se de uma constante, que os textos de uma mesma
época, mesma área de conhecimento ou de cultura, por exemplo, dialogam uns
com os outros. Como exemplo, temos matérias de jornais do mesmo dia ou da
mesma semana, que podem ser do mesmo veículo, de diferentes veículos ou
tipos de mídia, e que dialogam ente si.
A intertextualidade também é comum na MPB, quando o autor retoma
trechos de canções próprias (intratextualidade) ou de canções alheias. E na
“apropriação” de provérbios e ditos populares em textos orais ou escritos.
Explicam Koch e Travaglia (1990, p.79):
O reconhecimento do texto-fonte e dos motivos de sua re-apresentação,
no caso da intertextualidade implícita, é, como se vê, de grande
importância para a construção do sentido de um texto.
1.7. Intertextualidade e Literatura
Vigner (2002) afirma a importância da intertextualidade para a
legibilidade de todos os textos. No entanto, observa que o fenômeno fica mais
claro na área literária e cita como exemplo a literatura francesa, que, durante
36
muito tempo, se utilizou da troca intertextual principalmente com as literaturas
grega e latina, de forma que ler um poema do poeta renascentista francês
Pierre de Ronsard era ler simultaneamente passagens de Virgílio, Horácio ou
Píndaro.
De acordo com Paulino, Walty e Cury (1997), a literatura, campo de
relações entre textos que assumem características específicas, está inserida
no grande jogo sociocultural. Sobre isso, comentam:
O código verbal na literatura tem uma extensão de formas e
significações tão grandes que impede sobremaneira o esgotamento de
um texto em si mesmo. Em tal processo, a linguagem literária invade o
domínio de outras linguagens, ao mesmo tempo que se deixa penetrar
por elas. (p. 20)
As autoras ponderam que a inserção de textos na literatura acontece de
diferentes maneiras, desde a adesão a comportamentos artísticos anteriores
até a rupturas. Se o Classicismo se pautou pela imitação, legitimando-se a
retomada de textos-modelos, o Romantismo, apesar da presença da
intertextualidade, passou a privilegiar a originalidade.
A estética romântica de afastamento da tradição literária permanece até
o Modernismo, no qual a ruptura é praticamente uma tradição. Por se situar no
contexto de crises das verdades absolutas, o Pós-Modernismo vai tratar de
outros modos os textos tradicionais, apropriando-se explicitamente deles,
remontando-os, fundindo-os em um processo de colagem sem culpa.
Jenny (1979) adverte que, enquanto a intertextualidade parece ligada à
poeticidade e à evolução literária, sua compreensão como tal é relativamente
nova. Entre outras falhas, a poética fechou-se em uma concepção estreita da
imanência, sem se interessar pelo “além-texto”, pela articulação do texto com a
obra. Enfim, por toda a sua contextualização. Neste sentido, observa:
O que caracteriza a intertextualidade é introduzir a um novo modo de
leitura que faz estalar a linearidade do texto. Cada referência intertextual
é o lugar duma alternativa: ou prosseguir a leitura, vendo apenas no
texto um fragmento como qualquer outro, que faz parte integrante da
sintagmática do texto ou então voltar ao texto-origem, procedendo a
37
uma espécie de anamnese intelectual em que a referência intertextual
aparece como um elemento paradigmático ‘deslocado’ e originário duma
sintagmática esquecida. Na realidade, a alternativa apenas se
apresenta aos olhos do analista. É um simultâneo que estes dois
processos operam na leitura e na palavra intertextual, semeando o
texto de bifurcações que lhe abrem, aos poucos, o espaço semântico.
(p.21)
Fora de um sistema, pontua Jenny (idem), a obra literária seria
incompreensível, impensável, uma vez que a competência em decifrar a
linguagem literária só pode ser adquirida na prática da multiplicidade de textos.
Opinião semelhante é partilhada por Paulino, Walty e Cury (op. cit.):
No universo da crítica, a intertextualidade tornou-se, hoje, um
conceito operatório indispensável para a compreensão da
literatura. Mas nem sempre foi assim. O modelo romântico de
crítica literária privilegiou a originalidade a tal ponto que colocava
em segundo plano a relação entre textos, impedindo a
percepção da intertextualidade como processo constitutivo da
literatura em qualquer época. (p. 21)
No entender das autoras, “a apropriação, enquanto prática intertextual,
transita do estatuto de um ato legítimo e, às vezes, inevitável, até a ilegalidade
do plágio.” Advertem, no entanto, que no mundo contemporâneo, definir o que
é ou não cópia ilegal fica difícil, senão impossível, uma vez que a prática da
apropriação é um traço assumido pela literatura. E citam os modernistas
Oswald de Andrade e Mário de Andrade, contemporâneos de Manuel Bandeira,
como bons exemplos da assunção da literatura como devoradora de outros
textos.
Em carta aberta a Raimundo Moraes, Mário de Andrade (apud Paulino,
Walty e Cury, idem) fala sobre a acusação de plágio contra sua obra-prima,
Macunaíma:
38
“Copiei sim, meu querido defensor. O que me espanta e acho sublime
de bondade, é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem
restringindo a minha cópia a Koch-Grünberg, quando copiei todos (...)
Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente”.
Anos antes, em seu Prefácio Interessantíssimo, Mário de Andrade
afirmara: “Sinto que meu copo é grande demais para mim, e ainda bebo do
copo dos outros”.
Ainda segundo as autoras, a retomada de um texto por outro ou outros
na literatura é uma constante e, através deste procedimento, forma-se uma
grande rede de textos, ressaltando a força emblemática de determinadas
produções que são constantemente retomadas.
Jenny (op. cit.) faz um balanceamento entre os aspectos positivos e
negativos da intertextualidade. Se levada às últimas conseqüências, adverte,
arrastaria a desintegração do narrativo e do discurso, a partir de um momento
em que a montagem dos textos deixasse de se reger por um desejo de
salvaguardar um sentido monológico e uma unidade estética. Por outro lado,
afirma:
O enxerto intertextual não põe apenas problemas de salvaguarda do organismo
em que se aloja. É também uma construção positiva, e é preciso não ver nele
um mero factor de desorganização do discurso bomba anti-retórica de efeitos
mais ou menos desastrosos, conforme a audácia de quem a utiliza. A
intertextualidade põe outras questões: como se opera a assimilação, por um
texto, de enunciados pré-existentes? Em que relação estão esses enunciados
com o seu estado primeiro? À falta duma elucidação desse trabalho, ficamo-
nos afinal de contas, por um concepção da intertextualidade como a irrupção
transcendente dum texto noutro. (p.30)
O autor também lista um rol de figuras de retórica para classificar os
tipos de alterações sofridas pelo texto no processo de intertextualidade. São
elas a paranomásia, a elipse, a amplificação, a hipérbole e as intervenções.
Dällenbach (1979) acrescenta à intertextualidade interna/externa e
intertextualidade geral/restrita os conceitos de intertexto e autotexto:
39
Não entra nas nossas intenções harmonizar dois sistemas que, sem dúvida,
podem existir concorrentemente. Mas, comparando os domínios respectivos
que abarcam, observa-se que, do ponto de vista da extensão do conceito, o
primeiro cronologicamente concede à intertextualidade uma parte mais
importante do que o segundo, e que, por isso, o único meio de evitar que
passagem de um a outro se salde por uma restrição de campo seria
reconhecer a existência, a par da intertextualidade geral e da intertextualidade
restrita, duma intertextualidade autárquica. A fim de acentuar a sua
originalidade própria e de não ir de encontro, com um novo predicado, a hábitos
lexicais bem ancorados, propomos, na esteira de Gérard Genette, designar
essa intertextualidade autárquica por autotextualidade. (p. 52)
A diferença entre intertextualidade crítica (declarada) e intertextualidade
poética (tácita) é objeto de estudo de Perrone-Moisés (1979). O uso da citação,
um dos recursos bastante utilizado pela crítica literária, segundo a autora,
esboça certa intertextualidade.
Para ela, o contrato literário do escritor não é o mesmo que o do crítico.
As relações entre autores são de igualdade, enquanto as relações entre o autor
e o crítico implicam submissão:
Para que a crítica não seja uma simples reprodução, é preciso que
considere a obra, as obras, como imperfeitas (no sentido de
inacabadas, como se diz das capelas da Batalha, em Portugal, que são
‘imperfeitas’). (p. 217)
Neste capítulo, examinamos a Linguística Textual e as várias faces da
Intertextualidade. A seguir, falaremos sobre Manuel Bandeira (vida e obra).
40
___CAPÍTULO 2 _________________________________________________
Um poeta antenado com o seu tempo
2.1.Manuel Bandeira
Um dos principais expoentes da primeira fase do Modernismo brasileiro,
Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho nasceu no Recife, em 19 de abril de
1886. Quatro anos depois, sua família parte para o Rio de Janeiro e é em
Petrópolis, cidade serrana fluminense, na qual o poeta passa dois verões, que
se fixam as primeiras impressões conscientes, das quais se recordará mais
tarde.
Em 1892, a família volta para Pernambuco, onde reside por quatro anos,
tempo esse chamado por Bandeira de fase de armação de sua mitologia, com
base em personagens reais como Totônio Rodrigues, d. Aninha Viegas e preta
Tomásia, e lugares como as ruas da União, da Aurora, do Sol, da Saudade e
Princesa Isabel.
Entre 1896 e 1902, a família fixa novamente residência no Rio de
Janeiro, e ali o poeta desperta para os clássicos portugueses, sobretudo Os
Lusíadas. Publica, ainda, seu primeiro poema, um soneto em alexandrinos, na
primeira página do Correio da Manhã.
Em 1903, parte para São Paulo e começa a estudar na Escola
Politécnica. Mas contrai tuberculose e abandona os estudos, retornando ao Rio
de Janeiro em busca dos climas serranos. Dez anos mais tarde, embarca para
a Europa para se tratar no sanatório de Clavadel, na Suíça, onde aprimora o
idioma alemão aprendido no colégio e tem contato com livros de Vildrac,
Fontainas e Claudel. Com o início da Primeira Guerra Mundial, volta ao Brasil,
onde lê Goethe, Lenau e Heine e passa a meditar sobre a técnica do verso.
Em 1917, publica seu primeiro livro, A Cinza das Horas. E, entre 1916 e
1920, Bandeira contabiliza sofridas perdas familiares: as mortes da mãe, da
irmã que fora sua enfermeira, e do pai.
Em 1919, a publicação de Carnaval entusiasma a geração paulista que
iniciava o movimento modernista. A seguir, muda-se para a rua do Curvelo, no
bairro de Santa Teresa, para a casa que, segundo o poeta, lhe dava o
41
“elemento de humildade quotidiano”. Ali, onde morou por treze anos, na rua em
que dizia ter reaprendido os caminhos da infância, o poeta escreveu os livros
Ritmo Dissoluto, Libertinagem, Crônicas da Província do Brasil, além de vários
poemas de Estrela da Manhã. No mesmo ano, conhece Mário de Andrade
(com quem já se correspondia), no Rio de Janeiro.
Em 1922, Bandeira não quis participar da Semana de Arte Moderna em
São Paulo, mas enviou o poema Os Sapos, criticando os parnasianos, que foi
lido na abertura do evento por Ronald de Carvalho e imediatamente vaiado
pela platéia presente no Teatro Municipal.
Entre seus amigos, figuravam Tácito de Almeida, Menotti del Picchia,
Sérgio Buarque de Hollanda e Prudente de Morais. A partir de 1935, passa a
colaborar com artigos e crônicas para diversos jornais como o Diário Nacional ,
de São Paulo, o Diário da Noite, do Rio de Janeiro, e A Província , do Recife.
Em 1930, publica Libertinagem, com poemas escritos entre 1924 e 1930.
Nas palavras de Arrigucci (1990), Libertinagem representou “o momento
de adesão mais clara de Manuel Bandeira ao ideário estético do Modernismo”.
Além de escritor, organizador de antologias de literatura, cronista, poeta
e tradutor, ao longo de sua carreira, Bandeira trabalhou como inspetor de
ensino secundário, professor de Literatura do Colégio Pedro II (RJ), membro do
Conselho Consultivo do Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional e professor de Literatura Hispano-Americana na Faculdade Nacional
de Filosofia.
Em 1940, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras; em 1954,
publicou Itinerário de Pasárgada, uma obra autobiográfica. Deixando um vasto
e importante legado, Manuel Bandeira morreu em 13 de outubro de 1968, aos
82 anos.
2.2. A obra refletindo a vida do poeta
As tristezas, as perdas, a saudade dos tempos de criança, a doença e o
desencanto com a vida são traços marcantes na obra de Bandeira. Um dos
poemas de Libertinagem que revela o encantamento do escritor com a infância
e suas descobertas é Camelôs:
42
Abençoado seja o camelô dos brinquedos de tostão:
O que vende balõezinhos de cor
O macaquinho que trepa no coqueiro
O cachorrinho que bate com o rabo
Os homenzinhos que jogam box
A perereca verde que de repente dá um pulo que engraçado
E as canetinhas-tinteiro que jamais escreverão coisa alguma.
Alegria das calçadas
Uns falam pelos cotovelos:
- "O cavalheiro chega em casa e diz: Meu filho, vai buscar
[um pedaço de banana pra eu acender
[o charuto. Naturalmente o menino pen-
[sará: Papai está malu..."
Outros, coitados, têm a língua atada.
Todos porém sabem mexer nos cordéis com o tino ingênuo
[de demiurgos de inutilidades.
E ensinam no tumulto das ruas os mitos heróicos da meni-
[nice...
E dão aos homens que passam preocupados ou tristes uma
[lição de infância.
Os versos 30 e 31 apresentam alguns personagens da infância de
Bandeira e mantêm relação intratextual intertextualidade encontrada entre
textos do mesmo autor – com Evocação do Recife:
30 Meu avô
31 Totônio Rodrigues
Evocação do Recife
11 Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na
[ponta do nariz
43
26 Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
69 Recife...
Meu avô morto.
70 Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de
[meu avô.
Já a composição a seguir, que fecha o livro Libertinagem, tem as feições
de um testamento poético, uma vez que Bandeira, desenganado, poderia
morrer a qualquer instante:
O último poema
Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
A desilusão com a vida, a falta dos entes queridos e a permanente
sombra da morte também transparecem nos seguintes poemas:
Profundamente
(...)
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
44
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Poema de Finados
Amanhã que é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.
Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
O filho tem mais precisão.
O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero.
E em verdade estou morto ali.
A
melancolia e o saudosismo dos poemas anteriores destoam do tom
“libertino” de Pneumotórax:
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.
45
...........................................................................................................................................
..............
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o
[pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
A
pesar do desalento, da visão de uma “vida inteira que podia ter sido e
que não foi passar” e da impotência médica diante de sua doença, o tom de
Bandeira em Pneumotórax é irônico. O último verso – “A única coisa a fazer é
tocar um tango argentino” – fecha o poema de maneira inesperada, uma forma
de epifania bem-humorada, já que o problema não tinha solução.
2.3. O Modernisno em Bandeira
A obra abordada por este trabalho, Libertinagem, traduz os ideais
Modernistas, contrários ao rigor gramatical, ao preciosismo da linguagem
parnasiana. O rompimento com a forma e a métrica, o uso de versos livres, a
ausência de rimas, o emprego da oralidade, de diálogos intercalados, a
utilização de pontuação em desacordo com a norma culta, o uso de elementos
matemáticos, como parênteses e colchetes sem a combinação adequada,
refletem os anseios de sua época.
Os temas, que abordam o prosaico e o cotidiano, como a rotina do bairro
de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, onde residia o poeta; a notícia do jornal;
as imagens, as festas e o folclore nacional; podem ser observados em seus
textos e discursos que remetem a outros.
Conforme Rosenbaum (1993), Bandeira passeou por várias vertentes
estilísticas, sem nunca se fechar às inovações estéticas. predomínios de
traços parnasianos e simbolistas em A Cinza das Horas (1917), ensaios
temáticos e rítmicos a partir de Carnaval (1919) e Ritmo Dissoluto (1924),
46
aspectos modernistas desde Libertinagem (1930), bem como elementos
penumbristas e crepusculares (transição entre o simbolismo e o modernismo),
típicos de poetas finisseculares, nas obras posteriores.
Apesar das influências clássicas, Bandeira sempre foi aberto a
inovações. A geração modernista de 1922 o entusiasmou com sua revolta
contra a tirania métrica e a busca pela ironia, o coloquialismo e o prosaísmo,
influenciados pelas vanguardas européias.
Segundo Rosenbaum (1993):
A guinada modernista se impõe decisivamente, incorporando e
superando os traços anteriores porque se torna necessária para a
cruzada consoladora pretendida pelo poeta. É assim que um texto como
Pneumotórax recria o tema da tuberculose de forma irônica e coloquial,
atenuando o desalento e a desesperança de que antes escrevia “como
quem morre. (“Desencanto”, em A Cinza das Horas) (p.30)
Rosenbaum (op. cit.) prossegue, observando que, para alguns autores,
a poesia anterior à Libertinagem buscava uma “couraça contra a dor” na rigidez
das formas:
O fato é que, ao ampliar suas fronteiras formais e conteudísticas,
Bandeira não abandonou totalmente algumas características
“passadistas”, como o senso da medida inabalável, um certo
sentimentalismo de gosto romântico e um acervo léxico-temático de
coloração obscura, mas aderiu ao verso-livre (sendo dele pioneiro no
Brasil) e à descoberta do cotidiano com a mesma profundidade com que
cultivou a herança romântica, parnasiana, simbolista e crepuscular. O
importante é verificar que o espírito modernista deu o instrumental
necessário para Bandeira livrar-se de um encerramento de caráter
melancólico, servindo-se dos elementos mais libertadores para anistiar
a si mesmo. (p.31)
47
2.4. A intertextualidade em Manuel Bandeira
A intertextualidade, bem como a intratextualidade, permeia toda a obra
de Bandeira: a infância, a doença, a perda de entes queridos, a convivência
com a iminência de uma morte prematura, o erotismo contido, a admiração e a
influência de outros escritores, tudo isso pode ser encontrado, explícito ou nas
entrelinhas, ao longo de seus trabalhos.
Bandeira é pródigo em experimentações e ousadias. Em Temas e
Voltas, por exemplo, o poeta mantém uma intertextualidade de forma com as
cantigas medievais através do uso do refrão, a introdução de uma estrofe ou
mote, seguida de um número variável de estrofes ou voltas:
Mas para quê
Tanto sofrimento
Se nos céus há o lento
Deslizar da noite?
Mas para quê
Tanto sofrimento
Se lá fora o vento
É um canto na noite?
Mas para quê
Tanto sofrimento
Se agora, ao relento,
Cheira a flor da noite?
Mas para quê
Tanto sofrimento
Se o meu pensamento
É livre na noite?
(Estrela da Vida Inteira)
Ecoando Proust e seu Em Busca do Tempo Perdido, Bandeira se baseia
na elegia do poeta português Sá Miranda para criar a sua própria:
48
Texto-fonte – Soneto XI
1 O sol é grande; caem co'a calma as aves
2 do tempo em tal sazão, que soe ser fria;
3 esta água que cai d’alto cai acordar-m’-ia
4 do sono não, mas de cuidados graves
5 Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
6 Qual é tal coração qu’em vós confia?
7 Passam os tempos, vai dia trás dia,
8 incertos muito mais que ao vento as naves
9 Eu vira já aqui sombra, vira flores,
10 vi tantas águas, vi tanta verdura,
11 as aves todas cantavam d’amores
12 Tudo e seco e mudo; e, de mestura,
13 Também mudando-m’eu fiz doutras cores;
14 e tudo o mais renova, isto é sem cura!
(Sá Miranda)
Elegia de verão
1 O Sol é grande. Ó coisas
2 Todas vãs, todas mudaves!
3 (Como esse "mudaves",
4 Que hoje é "mudáveis”
5 E já não rima com "aves".)
6 O sol é grande. Zinem as cigarras
7 Em laranjeiras.
8 Zinem as cigarras: zino, zino, zino...
9 Como se fossem as mesmas
10 Que eu ouvi menino.
49
11 Ó verões de antigamente!
12 Quando o Largo do Boticário
13 Ainda poderia ser tombado.
14 Carambolas ácidas, quentes de mormaço;
15 Água morna das caixas-d'água vermelhas de ferrugem;
16 Saibro cintilante...
17 O sol é grande. Mas, ó cigarras que zinis,
18 Não sois as mesmas que eu ouvi menino.
19 Sois outras, não me interessais...
20 Dêem-me as cigarras que eu ouvi menino".
(Manuel Bandeira – Opus 10)
Neste caso, o texto de Bandeira mantém intertextualidade explícita com
o soneto de Miranda, constatada através da retomada de elementos do
texto original: “O sol é grande”, “ó coisas”, “todas vãs e mudaves”.
E, ainda, de forma, que se apropria do tema o do gênero e constrói,
nos moldes de uma paródia, sua própria elegia, não mais em soneto mas de
acordo com o modelo e os motes modernistas.
O tom do texto bandeiriano não é o melancólico das elegias, mas sim o
irônico. No lugar das “aves”, que, no português do Brasil o rimam com
“mudáveis”, surgem as “cigarras” nas laranjeiras e que “zinemao invés de
cantar.
Bandeira também se utiliza de um tema recorrente em vários de seus
trabalhos – a vontade de retornar ao tempo feliz da infância:
“Dêem-me as cigarras que eu ouvi menino”.
A saudade da infância pode, ainda, ser notada não apenas em relações
intertextuais, mas em várias relações intratextuais, como nos versos finais de
Evocação do Recife (Libertinagem):
Nunca pensei que ela acabasse
50
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de
[meu avô.
E nos seguintes poemas:
Peregrinação - Lira dos Cinquent’anos
O córrego é o mesmo,
Mesma, aquela arvore,
A casa, o jardim.
Meus passos a esmo
(Os passos e o espírito)
Vão pelo passado,
Ai tão devastado,
Recolhendo triste
Tudo quanto existe
Ainda ali de mim
- Mim daqueles tempos!
Velha Chácara
-
Lira dos Cinquent’anos
A casa era por aqui...
Onde? Procuro-a e não acho.
Ouço uma voz que esqueci:
É a voz deste mesmo riacho.
Ah quanto tempo passou!
(Foram mais de cinqüenta anos.)
Tantos que a morte levou!
(E a vida... nos desenganos...)
51
A usura fez tábua rasa
Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa...
- Mas o menino ainda existe.
O tema das três composições é o mesmo: a saudade da infância, a
procura pelo perdido. O tempo passa, as coisas mudam e ali; a morte e os
espíritos estão presentes, e o menino dentro dele persiste.
De acordo com Rosenbaum (op. cit.) o mundo infantil de Bandeira é
claramente o espaço da saúde, da ingenuidade, da espontaneidade, da
simplicidade e, sobretudo, da plenitude – algo como um paraíso perdido:
“É compreensível, de certa forma, que a infância período realmente
feliz do poeta, pois anterior aos seus anos de doença seja evocada
em decorrência de um sentimento de incompletude. A infância traz
implícita a noção de ausência, que dela o poeta só pode usufruir pela
evocação poética.” (p.45)
“Antologia”, publicado em Estrela da Tarde , é totalmente intratextual,
que é formado por trechos de outros poemas de Bandeira:
1 A vida
2 Não vale a pena e a dor de ser vivida.
3 Os corpos se entendem mas as almas não.
4 A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
5 Vou-me embora pra Pasárgada!
6 Aqui não sou feliz.
7 Quero esquecer tudo:
52
8 - A dor de ser homem...
9 Este anseio infinito e vão
10 De possuir o que me possui.
11 Quero descansar
12 Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei...
13 Na vida inteira que podia ter sido e que não foi.
14 Quero descansar.
15 Morrer.
16 Morrer de corpo e alma.
17 Completamente.
18 (Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir)
19 Quando a Indesejada das gentes chegar
20 Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
21 A mesa posta,
22 Com cada coisa em seu lugar.
Os primeiros versos do poema
1 A vida
2 Não vale a pena e a dor de ser vivida.
mantêm relação intratextual com o Soneto Inglês nº 2 :
53
Não tremer de esperança e nem de espanto.
Nada pedir nem desejar senão a coragem
De ser um novo santo. sem fé num mundo além do mundo.
E então morrer sem uma lágrima que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.
O terceiro verso
Os corpos se entendem mas as almas não.
é
intratextual com A Arte de amar :
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
O “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino” e o 1
versos “Na vida inteira que podia ter sido e que não foi” são de
Pneumotórax, enquanto o verso “Vou-me embora prá Pasárgada” dá
nome a outro poema de Libertinagem.
Os versos “Quero esquecer tudo” (7), e “Quero descansar” (11 e 14),
fazem parte de Cantiga :
Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar.
Já “Morrer. Morrer de corpo e alma. Completamente. (15, 16 e 17), estão
presentes em A Morte Absoluta :
54
A Morte Absoluta
Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
A frase “Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei...”,
foi tirada do Poema só para Jaime Ovalle :
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.
Lua Nova traz o 18º verso “(Todas as manhãs o aeroporto em frente me
dá lições de partir)” em seu contexto:
Depois de dez anos de pátio
Volto a tomar conhecimento da aurora.
Volto a banhar meus olhos no mênstruo incruento das madrugadas.
Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir:
Hei de aprender com ele
A partir de uma vez
- Sem medo,
Sem remorso,
Sem saudade.
Para finalizar Antologia , Bandeira recorre a outro trabalho de sua
autoria, Consoada :
Quando a indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
55
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
Após termos traçado, no presente capítulo, um breve panorama sobre a
biografia e o trabalho de Manuel Bandeira, no capítulo seguinte, procederemos
à análise das ocorrências de Intertextualidade em Libertinagem.
56
___CAPÍTULO 3 _________________________________________________
Análise e discussão dos dados
Como dissemos, o presente trabalho tem como principal objetivo
analisar as ocorrências de intertextualidade em poemas da obra Libertinagem,
de Manuel Bandeira, tendo como base a Linguística Textual.
3.1. Considerações para a análise
Ao analisarmos o corpus observaremos no texto a presença de
marcadores intertextuais, explícitos ou implícitos, que indicam uma conexão
com textos do autor e/ou outros textos previamente existentes.
Fávero (2002, p.41) pondera que, embora as marcas lingüísticas
apontem para as intenções de quem escreve, nunca se sabe exatamente o que
o autor quis dizer, pois ele pode não ter tido a intenção captada pelo leitor, ou
mesmo tê-las mascarado:
O texto prevê determinados sentidos, excluindo outros, determinadas
leituras, excluindo outras, porém não uma única leitura. Deste modo, a
análise levantará marcas que levarão às intenções do texto, mas com
certeza não haverá uma única leitura.
Quanto mais conhecimento de mundo ativado, mais leituras cruzadas o
leitor conseguirá efetuar. No entanto, todas essas leituras e releituras devem
respeitar a superfície textual, que limita as interpretações possíveis e descarta
as não pertinentes.
3.2. A Intertextualidade em Libertinagem
A seguir, passaremos a estudar e a analisar a presença de intertextos e
intratextos especificamente na obra Libertinagem.
57
3.2.1. A Infância
Em toda a obra de Bandeira, os fatos que marcaram a sua vida
aparecem refletidos em sua superfície, relacionando-se com textos dele próprio
e/ou com outros textos e temas. uma interação entre os elementos
biográficos e poéticos.
A inocência e a saudade da infância são recorrentes em muitos de seus
trabalhos e espelham a vida de um homem que manteve um estreito convívio
com a morte em razão de sua doença a tuberculose , desde a juventude
até o fim da vida. Ele, que foi diversas vezes desenganado, sofreu com a perda
de entes queridos, trata a infância como um momento mágico, um passado ao
qual gostaria de retornar. O tema influenciou os seguintes poemas:
Porquinho-da-Índia
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.
Porquinho-da-índia mantém intratextualidade com Madrigal tão
engraçadinho ao retomar o bichinho de estimação que o poeta ganhara aos
seis anos de idade:
Teresa, você é a coisa mais bonita que eu vi até hoje na minha
[vida, inclusive o porquinho-da-índia que
[me deram quando eu tinha seis anos.
58
O autor também fala sobre seus seis anos de idade nos seguintes
versos de Profundamente:
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci
E sobre Teresa no poema homônimo que será analisado mais adiante:
A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas (...)
Evocação do Recife faz referência a lugares, pessoas e situações que
marcaram o autor quando criança: a rua da União, onde residiu, e os
moradores locais dona Aninha Viegas e Totônio Rodrigues; novamente a
saudade das brincadeira infantis, do avô falecido; o alumbramento ante a
figura feminina. E também mostra relações intertextuais:
Evocação do Recife
1 Recife
2 Não a Veneza americana
3 Não a Mauritssatd dos armadores das Índias Ocidentais
4 Não o Recife dos Mascates
5 Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois -
6 Recife das revoluções libertárias
7 Mas o Recife sem história nem literatura
8 Recife sem mais nada
9 Recife da minha infância
10 A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e
[partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
11 Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na
59
[ponta do nariz
12 Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadei-
[rãs, mexericos namoros, risadas
13 A gente brincava no meio da rua
14 Os meninos gritavam:
15 Coelho sai!
16 Não sai!
17 A distância as vozes macias das meninas politonavam:
18 Roseira dá-me uma rosa
19 Craveiro dá-me um botão
20 (Dessas rosas muita rosa
21 Terá morrido em botão...)
22 De repente
nos longos da noite
um sino
23 Uma pessoa grande dizia:
24 Fogo em Santo Antônio!
25 Outra contrariava: São José!
26 Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
27 Os homens punham o chapéu saíam fumando
28 E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo
29 Rua da União...
30 Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
31 Rua do Sol
32 (Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
33 Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
34 Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
35 Capiberibe
36 - Capibaribe
37 Lá longe o sertãozinho de Caxangá
60
38 Banheiros de palha
39 Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
40 Fiquei parado o coração batendo
41 Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
42 Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redo-
[moinho sumiu
43 E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemi-
[dos em jangadas de bananeiras
44 Novenas
Cavalhadas
45 E eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão
[nos meus cabelos
46 Capiberibe
47 - Capibaribe
48 Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bana-
[nas com o xale vistoso de pano da Costa
49 E o vendedor de roletes de cana
50 O de amendoim
51 que se chamava midubim e não era torrado era
[cozido
52 Me lembro de todos os pregões:
53 Ovos frescos e baratos
54 Dez ovos por uma pataca
55 Foi há muito tempo...
56 A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
57 Vinha da boca do povo na língua errada do povo
58 Língua certa do povo
59 Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
60 Ao passo que nós
61 O que fazemos
61
62 É macaquear
63 A sintaxe lusíada
64 A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
65 Terras que não sabia onde ficavam
66 Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
67 Nunca pensei que ela acabasse!
68 Tudo lá parecia impregnado de eternidade
69 Recife...
Meu avô morto.
70 Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de
[meu avô.
Entre os versos 18 e 21, observamos a ocorrência de intertextualidade
explícita que remete a cantigas de roda infantis:
18 Roseira dá-me uma rosa
19 Craveiro dá-me um botão
20 (Dessas rosas muita rosa
21 Terá morrido em botão...)
Sobre a infância do autor, comenta Guimarães (op.cit., p. 18):
Foram muito importantes para Manuel Bandeira as cantigas de roda e
os contos de fadas, pois foi que ocorreu seu primeiro contato com a
poesia. De cantigas como ‘Roseira, dá-me uma rosa’, ‘O anel que tu me
destes’, ‘Bão, balalão, senhor capitão’, ele viria a usar trechos em
diversos poemas.
Entre os versos 56 e 65, a obra de Bandeira intertextualiza com os ideais
do movimento modernista de valorização da língua brasileira e do falar popular:
62
56 A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
57 Vinha da boca do povo na língua errada do povo
58 Língua certa do povo
59 Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
60 Ao passo que nós
61 O que fazemos
62 É macaquear
63 A sintaxe lusíada
64 A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
65 Terras que não sabia onde ficavam
Já os seguintes versos:
35 Capiberibe
36 - Capibaribe
46 Capiberibe
47 - Capibaribe
apontam para um fato ocorrido durante aula de Geografia, ministrada
pelo professor José Veríssimo, quando o poeta estudava no Externato do
Ginásio Nacional (atual Colégio D. Pedro II). Descreve Guimarães (idem, p. 19
e 20):
Certo dia, quando o assunto da aula era o Estado de Pernambuco, (o
professor) perguntou a Manuel Bandeira: “Qual o maior rio de
Pernambuco?” O aluno, orgulhoso por poder responder corretamente a
uma pergunta sobre sua terra natal, disse: É o Capiberibe”. O
professor, imitando o sotaque pernambucano, de imediato fez um
comentário “Bem se que o senhor é um pernambucano” que
provocou gargalhadas por parte da turma. Diante do espanto e
desorientação do garoto, José Veríssimo se apressou a dizer que a
forma correta do nome do rio era “Capibaribe”. À época, naturalmente,
nem José Veríssimo admitia a alternância das vogais no nome do rio,
63
nem o futuro poeta tinha noção de que ela não é possível, como é
inegável.
O flerte de Bandeira com o Concretismo pode ser observado nos versos
22, 41, 44, 66 e 69:
22 De repente
nos longos da noite
um sino
41 Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
44 Novenas
Cavalhadas
66 Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
69 Recife...
Meu avô morto.
3.2.2. A Falta, o Luto, a Morte
Neste item, novamente observaremos um entrelaçamento entre os fatos
biográficos e poéticos de Bandeira, que conviveu com a idéia da morte desde o
fim da adolescência – quando se descobriu portador de tuberculose – até a
velhice. A esse respeito, Rosenbaum (idem) comenta:
Privado dos parentes mais próximos em intervalos de tempo muito
curtos, Bandeira se impelido a legitimar sua existência na solidão.
64
Ele, que aos dezoito anos é desenganado pelos médicos em função de
uma tuberculose, permanecerá até os 82 à espera da morte. Esses
traços biográficos, se não determinam sua obra, ampliam as
possibilidades de compreensão de sua poesia (...) As mortes sucessivas
de parentes e o seu confronto direto com a finitude teriam impregnado a
visão de mundo bandeiriana. A sua própria morte, tão esperada e tão
adiada, não poderia ser apenas uma experiência a mais. Mais do que
um acidente de percurso, a morte toma assento na casa do poeta e se
torna sua cúmplice. Por uma amarga ironia, a morte se personaliza no
espaço poético e acolhe o poeta em sua solidão.” (p.74)
Em Libertinagem, encontramos vários reflexos biográficos, espelhando a
morte em vida em que se sentia o poeta. Como exemplo, destacamos
Profundamente:
1 Quando ontem adormeci
2 Na noite de São João
3 Havia alegria e rumor
4 Estrondos de bombas luzes de Bengala
5 Vozes, cantigas e risos
6 Ao pé das fogueiras acesas.
7 No meio da noite despertei
8 Não ouvi mais vozes nem risos
9 Apenas balões
10 Passavam, errantes
11 Silenciosamente
12 Apenas de vez em quando
13 O ruído de um bonde
14 Cortava o silêncio
15 Como um túnel.
16 Onde estavam os que há pouco
17 Dançavam
18 Cantavam
19 E riam
65
20 Ao pé das fogueiras acesas?
21 — Estavam todos dormindo
22 Estavam todos deitados
23 Dormindo
24 Profundamente.
25 Quando eu tinha seis anos
26 Não pude ver o fim da festa de São João
27 Porque adormeci
28 Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
29 Minha avó
30 Meu avô
31 Totônio Rodrigues
32 Tomásia
33 Rosa
34 Onde estão todos eles?
35 — Estão todos dormindo
36 Estão todos deitados
37 Dormindo
38 Profundamente.
Em Profundamente, um jogo entre o passado e o presente, a visão
infantil da criança na relação entre morte/sono profundo. No verso 25, o poema
mantém intratextualidade com outras duas obras de Libertinagem Porquinho-
da-índia e Madrigal tão engraçadinho reiterando a frase ‘quando eu tinha seis
anos de idade’ (já visto no tópico 3.4).
Para Rosenbaum (op. cit., p. 76), o movimento poético bandeiriano que
sinaliza a perda é o mesmo que consola o poeta, “seja com os fragmentos que
restaram da passagem efêmera, seja com toques de humor e de ironia, bem ao
gosto modernista.”
Opinião semelhante é compartilhada por Guimarães (idem, p.11):
66
O percurso de um extremo ao outro da tuberculose aos festejos dos
oitenta anos foi o percurso da afirmação de uma longa vida e da
elaboração de uma obra capital. Longo percurso, iniciado quando a
condenação à morte encaminhou a vida para um efetivo compromisso
com a poesia.
3.2.3. O Amor, o Erotismo e as Mulheres
O erotismo, ora velado, ora exposto, é outro tema que permeia as obras
de Bandeira, e que muitas vezes aparece misturado nos poemas que falam das
lembranças da infância, da ausência e da morte. Observa Rosenbaum (idem,
p. 181 e 182):
“O tratamento que Bandeira atribuía às suas relações amorosas
freqüentemente revelava frustrações, platonismo, abandono,
insatisfação, perda, traição. A distância, se viu, impera, muitas vezes,
entre o poeta e a amada. (...) O inegável sentimento erótico do autor, e
que banha boa parte de sua obra, realizava-se, então, nas paragens
oníricas da fantasia, onde a imaginação supria o que o doente físico
estava impossibilitado de realizar. Era, finalmente, na poesia que o
devaneio tomava corpo e segredava seus desejos.”
As personagens femininas são ora insinuadas e anônimas, ora
reveladas. O nome “Teresa”, por exemplo, aparece em dois poemas de
Libertinagem: em Madrigal tão engraçadinho, remetendo ao porquinho-da-índia
que ganhou aos seis anos e à primeira namorada; e em Teresa, numa leitura
que dialoga com o surrealismo (estudado no próximo item):
Madrigal tão engraçadinho
Teresa, você é a coisa mais bonita que eu vi até hoje na minha
[vida, inclusive o porquinho-da-índia que
[me deram quando eu tinha seis anos.
67
Teresa
A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas (...)
3.2.4. Mulheres e Carnaval
A liberdade ou a “libertinagem” presentes no Carnaval pareciam fascinar
o autor que, no entanto, ficava de fora das festas por causa de sua doença. Em
Na Boca, observamos a ocorrência de intertextualidade estrita explícita e
referências autobiográficas:
1 Sempre tristíssimas estas cantigas de carnaval
2 Paixão
3 Ciúme
4 Dor daquilo que não se pode dizer
5 Felizmente existe o álcool na vida
6 E nos três dias de carnaval éter de lança-perfume
7 Quem me dera ser como o rapaz desvairado!
8 O ano passado ele parava diante das mulheres bonitas
9 E gritava pedindo o esguicho de cloretilo:
10 - Na boca! Na boca!
11 Umas davam-lhe as costas com repugnância
12 Outras porém faziam-lhe a vontade.
13 Ainda existem mulheres bastante puras para fazer vontade
[aos viciados
14 Dorinha meu amor...
15 se ela fosse bastante pura eu iria agora gritar-lhe como o ou-
[tro: - Na boca! Na boca!
68
Por causa da tuberculose, Bandeira levava uma vida regrada e passava
longe do álcool, do éter do lança perfume e, provavelmente, dos abusos do
Carnaval. Daí o caráter melancólico do poema.
As drogas e a festa de Momo também são mencionadas no poema que
abre Libertinagem , intitulado Não sei dançar:
Uns tomam éter, outros cocaína,
Eu tomo alegria!
Eis aí porque vim assistir a este baile de terça-feira gorda.
No verso 7 de Na Boca,
quem me dera ser como o rapaz desvairado
a intertextualidade pode ser implícita, em sentido denotativo,
expressando a vontade do poeta de levar uma vida mais louca; e explícita,
numa alusão a Mário de Andrade, autor de Paulicéia Desvairada,
contemporâneo de Bandeira no movimento modernista. A troca de
correspondência entre os dois foi tão fértil que acabou virando livro.
Já no verso 14,
Dorinha meu amor
a intertextualidade é explícita, pois remete a uma marchinha de carnaval
que, com ritmo amaxixado, foi o grande hit do carnaval de 1929. E o tema do
amor não-correspondido é explorado em ambas, como se verá a seguir:
Texto-fonte - Dorinha, meu amor - Freitinhas
Dorinha, meu amor
Porque me fazes chorar?
E sou um pecador
69
E sofro só por te amar
Não sei qual a razão
Que eu sofro tanto assim
Castigo sim, castigo sim
Imploro a Deus
Para vencer o teu amor
O teu amor, amor
Dorinha juro que
Só pensarei em ti
Somente em ti
Somente em ti
Só tu que podes dar
Alívio a esta dor
Ao teu cantor, cantor
Na Boca
14 Dorinha meu amor...
15 se ela fosse bastante pura eu iria agora gritar-lhe como o ou-
[tro: - Na boca! Na boca!
Gravada originalmente pela Odeon, em 1928, por Mário Reis e lançada
em discos 78 rpm, a marchinha, assim como o poema de Bandeira, focaliza o
binômio amor/dor, através de verbos como amar, sofrer, chorar. E Bandeira vai
além, comparando o amor ao vício: tanto o beijo como o lança-perfume saciam
os viciados – em drogas ou no amor.
70
Em Mulheres, Bandeira explicita a sua preferência pela beleza, seu
gosto estético:
Como as mulheres são lindas!
Inútil pensar que é do vestido...
E depois não há só as bonitas:
Há também as simpáticas.
E as feias, certas feias em cujos olhos vejo isto:
Uma menininha que é batida e pisada e nunca sai da cozinha.
Como deve ser bom gostar de uma feia!
O meu amor porém não tem bondade alguma.
É fraco! fraco!
Meu Deus, eu amo como as criancinhas...
És linda como uma história da carochinha...
E eu preciso de ti como precisava de mamãe e papai
(No tempo em que pensava que os ladrões moravam no
[morro atrás de casa e tinham cara de pau).
Apresentando uma contraposição entre o mundo adulto e o infantil, com
o uso entremeado de linguagem infantil (criancinhas, carochinha, papai e
mamãe, o poeta ironiza, ao mesmo tempo, as mulheres bonitas (inútil pensar
que é do vestido), as feias e a si próprio por preteri-las:
Como deve ser bom gostar de uma feia!
O meu amor porém não tem bondade alguma.
É fraco! fraco!
Pode-se dizer que o tema foi posteriormente retomado por Vinícius de
Morais, em intertextualidade explícita, em Receita de Mulher:
As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso (...)
71
Nota-se, ainda, que alguns versos de Mulheres, como Uma menininha
que é batida e pisada e nunca sai da cozinhae No tempo em que pensava
que os ladrões moravam no morro atrás de casa e tinham cara de pau’,
mostram um flerte de Bandeira com novos movimentos artísticos, assunto que
será abordado a seguir.
3.2.5. Novas Linguagens, Movimentos e Autores
Sempre aberto às novas linguagens, Bandeira nunca teve medo de
inovar e de se renovar. Em Poética, afirma uma espécie de compromisso com
a estética modernista, contrariando o formalismo parnasiano, o purismo e o
preciosismo de quem escolhe as palavras como um ourives:
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expe-
[diante protocolo e manifestações de apreço
[ao Sr. Diretor
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
[o cunho vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo o lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si
[mesmo.
72
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
[exemplar com cem modelos de carta
[e as diferentes maneiras de agradar
[às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Lirismo, sim, mas com liberdade. Ou seria com uma dose de
“libertinagem”?
Como foi visto anteriormente, a proposta de um linguajar coloquial,
mais próximo do falar em terras brasileiras do que na metrópole lusitana,
também aparece em Evocação do Recife:
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
O apreço por novas formas de expressão e pela experimentação
também pode ser observado em Poema Tirado de uma Notícia de Jornal, uma
mistura entre prosa x poesia, literatura x crônica jornalística:
João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num
barracão sem número
73
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
Neste poema, a ocorrência de intertextualidade de conteúdo, no qual
um texto literário dialoga com o tema de uma reportagem de jornal de sua
época. Também observamos tratar-se de intertextualidade explícita, que o
autor, logo no título, explica ter se inspirado em um texto-fonte veiculado pela
imprensa.
Podemos dizer que se trata de uma paráfrase, na qual o texto original é
reescrito em um gênero textual diferente, passando do texto jornalístico ao
texto literário. O tom narrativo, característico de uma reportagem, é mantido por
Bandeira, que apresenta os verbos no passado, como quem conta uma
história: era, morava, chegou, bebeu, cantou, dançou, se atirou e morreu. A
disposição das frases em forma de versos também indica a passagem do
discurso jornalístico para o literário.
Outros fatores que marcam esse deslocamento: enquanto a notícia de
jornal valoriza o nome do personagem, a poesia enaltece o apelido; e, ao
contrário da imprensa, que propõe uma leitura objetiva dos acontecimentos, a
falta de pontuação no poema de Bandeira típico do Modernismo sugere
uma leitura mais subjetiva do texto.
O inconsciente onírico, o non-sense, as imagens deformadas presentes
em Teresa sugerem uma intertextualidade de forma e de conteúdo com o
surrealismo:
A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna
Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)
74
Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.
O clima surreal também aparece em dois noturnos: da Parada Amorim
(em poesia) e da Rua da Lapa (em prosa). Música de caráter melancólico,
imortalizada por Frédéric Chopin, o noturno empresta seu tom tristonho para as
criações de Bandeira:
Noturno da Parada Amorim
O violoncelista estava a meio do Concerto de Schumann
Subitamente o coronel ficou transportado e começou a gritar:
- "Je vois des anges! Je vois des anges!" -
E deixou-se escorregar sentado pela escada abaixo.
O telefone tilintou.
Alguém chamava?... Alguém pedia socorro?...
Mas do outro lado não vinha senão o rumor de um pranto
desesperado!...
(Eram três horas.
Todas as agências postais estavam fechadas.
Dentro da noite a voz do coronel continuava gritando:
- "Je vois des anges! Je vois des anges!")
Bandeira situa este primeiro noturno em um concerto com músicas de
Robert Alexander Schumman, e cria uma intertextualidade explícita com as
palavras do coronel e a frase atribuída ao compositor alemão em uma noite de
alucinação:
- "Je vois des anges! Je vois des anges!")
75
Segundo seus biógrafos, Schumann teria se levantando na noite de 17
de fevereiro de 1854, atormentado e insone, para escrever um tema ditado por
anjos que via ao seu redor.
Noturno da Rua da Lapa
A janela estava aberta. Para o que não sei, mas o que entrava era o vento dos
lupanares, de mistura com o eco que se partia nas curvas cicloidais, e fragmentos do
hino da bandeira.
Não posso atinar no que eu fazia: se meditava, se morria de espanto ou se vinha de
muito longe.
Nesse momento (oh! por que precisamente nesse momento?...) é que penetrou no
quarto o bicho que voava, o articulado implacável, implacável!
Compreendi desde logo não haver possibilidade alguma de evasão. Nascer de novo
também não adiantava. - A bomba de flit! pensei comigo, é um inseto!
Quando o jacto fumigatório partiu, nada mudou em mim; os sinos da redenção
continuaram em silêncio; nenhuma porta se abriu nem fechou. Mas o monstruoso
animal FICOU MAIOR. Senti que ele não morreria nunca mais, nem sairia, conquanto
não houvesse no aposento nenhum busto de Palas, nem na minhalma, o que é pior, a
recordação persistente de alguma extinta Lenora.
Em Noturno da Rua da Lapa Bandeira faz referências explícitas ao
poema O Corvo, de Edgar Allan Poe, ora se contrapondo, ora se utilizando do
mesmo tom soturno e de elementos fantásticos do escritor norte-americano.
Texto-fonte: O Corvo – tradução Fernando Pessoa
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
76
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
(...)
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um Corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nenhum momento,
Mas com ar sereno e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais.
Foi, pousou, e nada mais.
(...)
E o Corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda,
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais.
E a minh'alma dessa sombra que no chão há de mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!
A intertextualidade explícita se dá, inicialmente por adesão:
“Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais." (O Corvo)
“Não posso atinar no que eu fazia: se meditava, se morria de espanto ou se
vinha de muito longe.
Nesse momento (oh! por que precisamente nesse momento?...) é que penetrou
no quarto o bicho que voava, o articulado implacável, implacável!” (Noturno da Rua da
Lapa)
77
Depois, a intertextualidade explícita passa a ser de subversão:
“Mas com ar sereno e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais.
Foi, pousou, e nada mais.” (O Corvo)
“Senti que ele não morreria nunca mais, nem sairia, conquanto não houvesse
no aposento nenhum busto de Palas, nem na minhalma, o que é pior, a recordação
persistente de alguma extinta Lenora.” (Noturno da Rua da Lapa)
Ao contrário do personagem de Edgar Allan Poe, o de Bandeira não
tinha um busto de Palas para o Corvo pousar e nem a lembrança de Lenora – a
figura feminina não aparece na tradução de Pessoa, mas sim no original:
Ah, distinctly I remember it was in the bleak December,
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; -vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow -sorrow for the lost Lenore -
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore -
Nameless here for evermore.
Ainda em o Noturno da Rua da Lapa, Manuel Bandeira remete o leitor à
Metamorfose de Franz Kafka:
“Compreendi desde logo não haver possibilidade alguma de evasão. Nascer de
novo também não adiantava. - A bomba de flit! pensei comigo, é um inseto!”
Quando o jacto fumigatório partiu, nada mudou em mim; os sinos da redenção
continuaram em silêncio; nenhuma porta se abriu nem fechou. Mas o monstruoso
animal FICOU MAIOR.”
O texto mantém intertextualidade explícita em adesão ao texto de Kafka,
revelando o mesmo espanto de Gregório Samsa ante a sua transformação em
um inseto e a impossibilidade de reverter a situação:
78
“Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por
si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão
duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o
arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a
colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas
com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-
se desesperadamente diante de seus olhos.
Que me aconteceu ? pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar
quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as
quatro paredes que lhe eram familiares.” (A Metamorfose, p. 1)
Neste capítulo, efetuamos a análise intertextual em poemas do livro
Libertinagem, de Manuel Bandeira. No próximo e último capítulo, refletiremos
sobre a utilização do recurso da Intertextualidade pelo professor de Língua
Portuguesa em sala de aula e sobre a importância da cooperação do leitor no
momento da leitura.
79
___CAPÍTULO 4 _________________________________________________
A Intertextualidade em Sala de Aula
Através do cruzamento de informações e da ativação de conhecimentos
prévios, a Intertextualidade é ferramenta de grande importância para o
professor de Língua Portuguesa em sala de aula. Quanto mais leituras
cruzadas, mais ativo e crítico é o leitor.
Desta forma, este leitor/receptor deixa de ter um papel passivo e passa a
ser ativo, tendo participação direta na compreensão e na interpretação das
informações. Mas, para que isso aconteça, é necessário um processo de
cooperação, uma busca pelo sentido, pela coerência, de forma que o texto não
seja apenas um amontoado de frases desconexas.
Como exemplo de materiais a serem explorados pelos professores em
sala de aula, sugerimos o estudo da obra de Manuel Bandeira sob o ângulo da
intertextualidade.
4.1. Intertextualidade: um recurso a mais para o professor de Língua
Portuguesa
Se, de acordo com Paulino, Walty e Cury (1997), toda leitura é
necessariamente intertextual uma vez que, ao lermos, estabelecemos livres
associações do presente texto com outros lidos; e que “os textos, por isso,
são lidos de diversas maneiras, num processo de produção de sentido que
depende do repertório textual de cada leitor, em seu momento de leitura”;
então, este trabalho visa fornecer elementos para que o professor de Língua
Portuguesa utilize cada vez mais as leituras cruzadas propiciadas por um
recurso tão rico à sua disposição: as relações intertextuais.
Em sala de aula, no âmbito dos Parâmetros Curriculares Nacionais, os
professores de língua materna devem trabalhar com seus alunos o maior
número de gêneros textuais, com o objetivo de aumentar o repertório. No
entanto, se essa leitura ficar limitada a um trecho de uma obra ou ao texto em
80
si mesmo, pouco ou quase nada ajudana formação de cidadãos e leitores
críticos.
Segundo Vigner (2002), a escola forneceu durante muito tempo uma
imagem enganosa da leitura ao trabalhar quase exclusivamente com trechos
escolhidos:
A escola vinha constantemente confrontando o aluno com textos
sempre novos quanto ao gênero, à temática, à estrutura... –, oriundos
de horizontes culturais que o professor tinha condições de perceber.
A escola ia desenvolvendo assim uma prática de leitura-descoberta
junto a leitores que se viam obrigados, para cada leitura, a penetrar num
espaço-texto desconhecido. (p.31)
A isso, no entender de Vigner (idem), acrescentou-se o fato de a crítica
formal considerar o texto em si, ignorando a abordagem geral da obra, que
inclui informações essenciais como a história literária, a biografia do autor,
considerações sociológicas etc.
limitou-se a uma visão imanente da obra, subentendendo assim que o
acesso ao texto não requeria nenhuma experiência textual particular,
nem necessitava de qualquer articulação do texto em relação à obra ou
ao sistema literário do qual tinha sido extraído. (p. 31)
Para o autor, não existem textos puros; os textos existem em relação
a outros textos produzidos, e podem estar em concordância ou discordância
com este. Assim, a Intertertextualidade pode se aplicar a um gênero inteiro
(como a relação do romance de cavalaria com o romance picaresco) ou a uma
passagem. E será legível numa perspectiva intertextual todo texto que:
Obedecer a leis, códigos ou convenções que constituem um
gênero;
Disseminar, pela relação que estabelece com textos anteriores ou
com o texto em geral, fragmentos conhecidos pelo leitor,
passando desde a citação direta aa total reelaboração. Neste
81
caso, a leitura envolve perceber o trabalho de manipulação sobre
os textos originais e sua interpretação.
Ou seja: para ser legível, um texto deve funcionar segundo leis e
esquemas de que dispõe o leitor e porque se como reescritura de outros
textos, considerando a experiência anterior do leitor.
Segundo Vigner (2002), a pedagogia da leitura, na prática da leitura-
descoberta, baseia-se no princípio de que a criança é nova e chega à escola
sem experiência ou saber explorável. Mas, mesmo os pequenos estudantes de
classes econômicas menos favorecidas, dispõem de uma espécie de
competência espontânea de leitura algumas categorias interpretativas
passível de ser explorada pelo professor.
Neste caso, aprender a ler consistirá em estabilizar e estruturar estas
categorias interpretativas, melhorá-las, refiná-las. Explica Vigner (2002, p.37) :
Quanto mais a criança crescer, mais elementos de referência terá à sua
disposição e maior ficará sua experiência intertextual, mesmo que ela
seja constituída apenas de histórias em quadrinhos, fotonovelas ou
novelas de televisão. Existem aí esquemas textuais susceptíveis de
serem transferidos para outros domínios da leitura, os novos textos
sendo sistematicamente ligados a textos anteriormente lidos, ou para
sistemas semióticos não-verbais, se o aluno não tem ainda a
experiência da leitura de textos.
Assim como as demais habilidades desenvolvidas em sala de aula
(escrever, falar e ouvir), o ato de ler também pressupõe um trabalho do
professor voltado à exploração de suas particularidades e especificidades.
Além de complementar a produção escrita, a leitura é uma atividade interativa e
precisa da participação ativa do aluno/leitor, que entra com os seus
conhecimentos prévios para apreender os significados.
Para Antunes (2003), a interpretação de um texto depende de outros
conhecimentos e o professor de Língua Portuguesa não pode ficar atrelado
apenas aos conhecimentos especificamente lingüísticos.
82
A autora cita a observação de Van Dijk, para quem os textos são
inevitavelmente incompletos, pois um texto hipercompleto seria incoerente,
além de comunicativamente inadequado.
A afirmação remete a Umberto Eco que, entre outras asserções, diz que
toda obra é uma obra aberta e possibilita várias interpretações. E que o escritor
modelo teria sempre em mente atingir o seu leitor modelo aquele capaz de
entender exatamente o que o autor quis dizer com a obra.
Mesmo que as interpretações variem não de pessoa para pessoa,
como em diferentes leituras feitas pela mesma pessoa, a leitura mais próxima
do pretendido pelo autor deve ser buscada sempre. Para isso, além de
examinar a superfície do texto, é preciso ir além e ativar os conhecimentos
prévios e de mundo, efetuar o maior número possível de leituras cruzadas,
conhecer as características do tipo textual, do autor e do seu tempo. Estas
estratégias podem ajudar os alunos a se sentirem motivados e entrarem na
exploração mais complexa do texto.
“Ninguém da mesma maneira, sempre, o mesmo material”, afirma
Antunes (idem), em uma intertextualidade que remonta ao pensador pré-
socrático Heráclito, para quem um homem não atravessa duas vezes o mesmo
rio: ao entrar novamente nas águas, o homem está diferente, assim como o
rio.
De acordo com Antunes (op. cit), quem mais e articula diferentes
interpretações, tem a possibilidade de também escrever melhor. “Para escrever
bem, é preciso, antes de tudo, ter o que dizer, conhecer o objeto sobre o qual
se vai discorrer”, fala, acrescentando que a leitura não é uma atividade da
aula de Português, mas de todas as disciplinas.
Na opinião de Figueiredo (2004), a leitura não é passiva e nem
mecânica; é um processo ativo que aciona o mesmo tipo de organização e
análise de idéias dos processos de pensamentos de alto nível.
Em sala de aula, explica a autora, os processos coordenados de leitura
devem incluir operações perceptuais, lingüísticas e conceituais, que vão da
decodificação e da determinação de referentes aa estruturação de um texto.
Há, ainda, a ativação da informação armazenada na memória de longo prazo,
que poderíamos relacionar ao cruzamento de informações de um texto com
outros pré-existentes – a intertextualidade propriamente dita.
83
Kleiman ressalta que todo professor é também um professor de leitura:
(...) Conhecendo o professor as características e dimensões do ato de
ler, menores serão as possibilidades de propor tarefas que trivializem a
atividade de ler, ou que limitem o potencial do leitor de engajar suas
capacidades intelectuais e, portanto, mais próximo estará esse
professor do objetivo de formação de leitores. (p.11)
Através de uma leitura interativa, o estudante se torna não um leitor
proficiente mas, principalmente, um leitor crítico.
A autora salienta que a ativação do conhecimento prévio é essencial
para que os alunos possam fazer as inferências necessárias, relacionando
diferentes partes discretas do texto em um todo coerente:
O aluno poderá tornar-se ciente da necessidade de fazer da leitura uma
atividade caracterizada pelo engajamento e uso do conhecimento, em
vez de uma mera recepção passiva. (...) O mero passar de olhos pela
linha não é leitura, pois leitura implica uma atividade de procura por
parte do leitor, no seu passado, de lembranças e conhecimentos
daqueles que são relevantes para a compreensão de um texto que
fornece pistas e sugere caminhos, mas que certamente não explicita
tudo o que seria possível explicitar. (p.26-27)
Então, já que a leitura não é uma atividade mecânica, a intertextualidade
é um dos melhores recursos disponíveis para que o professor, principalmente
de língua materna, alcance os seus objetivos.
4.2. O Leitor Cooperativo
É inerente ao ser humano querer entender o que se passa à sua volta.
Neste sentido, durante o processo de leitura, o leitor/receptor irá sempre se
esforçar para entender a mensagem passada pelo autor/produtor. O leitor
cooperativo sempre procura a coerência, atribuindo ao texto um sentido, uma
função.
84
Grice (1982) observa que, de um modo geral, os diálogos não são uma
sucessão de observações desconectadas. Ao contrário, são esforços
cooperativos nos quais cada participante reconhece um propósito comum ou,
no mínimo, uma direção mutuamente aceita. Este propósito ou direção pode
ser fixado desde o início ou evoluir durante o diálogo; pode ser claramente
definido ou indefinido, conferindo certa liberdade, mas limando movimentos
conversacionais inadequados:
Podemos formular, então, um princípio muito geral que se esperaria
(ceteris paribus) que os participantes observassem: Faça sua
contribuição conversacional tal como é requerida, no momento em que
ocorre, pelo propósito ou intenção do intercâmbio conversacional em
que você está engajado. Pode-se denominar este princípio de
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO.” (p. 86)
Para Paulino, Walty e Cury (op. cit.), todo texto apresenta uma proposta
de significação que não está totalmente construída. A significação se daria no
jogo de olhares entre o texto e o seu destinatário, interlocutor ativo no processo
de significação, na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o
autor:
“O movimento de produção e recepção de um texto faz parte desse
processo que pode ser chamado de semiose cultural. O sentido de texto
é por isso relativo: o texto será sempre trecho da semiose cultural que
se constitui como um processo constante. (...) Ninguém conseguiria,
quer como produtor, quer como receptor, esgotar a extensão simbólica
da cultura inteira. Os textos funcionam, então, como unidades
necessárias à própria existência da rede cultural. São recortes que se
fazem, e aos quais se atribuem uma integridade, um sentido, uma
função”. (p.15)
Segundo as autoras, qualquer assunto pode incitar um processo de
relações entre textos lidos, quer estes tenham relação com a produção ou não:
85
“Toda leitura é necessariamente intertextual, pois, ao ler, estabelecemos
associações desse texto do momento com outros lidos. Essa
associação é livre e independe do comando de consciência do leitor,
assim como pode ser independente da intenção do autor. Os textos, por
isso, são lidos de diversas maneiras, num processo de produção de
sentido que depende do repertório textual de cada leitor, em seu
momento de leitura.” (p. 54)
Como se pode observar, a intertextualidade é um recurso extremamente
rico, a ser explorado e desvendado. E são vários os textos de Libertinagem, de
Manuel Bandeira, que podem ser utilizados em sala de aula. Como exemplo,
destacamos Madrigal tão engraçadinho, Teresa e Oração a Teresinha do
Menino Jesus.
A presença da mulher em poemas de Libertinagem, com especial
atenção ao nome Teresa, também pode ser objeto de estudo intertextual,
lembrando que o bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, foi um dos
principais endereços do poeta:
Madrigal tão engraçadinho
Teresa, você é a coisa mais bonita que eu vi até hoje na minha
[vida, inclusive o porquinho-da-índia que
[me deram quando eu tinha seis anos.
Teresa
A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas (...)
Oração a Teresinha do Menino Jesus
Perdi o jeito de sofrer.
Ora essa.
86
Não sinto mais aquele gosto cabotino da tristeza.
Quero alegria! Me dá alegria,
Santa Teresa!
Santa Teresa não, Teresinha...
Teresinha... Teresinha...
Teresinha do Menino Jesus.
Me dá alegria!
Me dá a força de acreditar de novo
No
Pelo sinal
Da Santa
Cruz!
Me dá alegria! Me dá alegria,
Santa Teresa!...
Santa Teresa não, Teresinha...
Teresinha do Menino Jesus.
Manuel Bandeira fez da intertextualidade um traço marcante em suas
obras. Mas a gama de opções de materiais a serem trabalhados é
extremamente vasta e abrange os mais diversos autores. Entre as sugestões,
destacamos a música a seguir:
Pela Internet – Gilberto Gil
Criar meu web site
Fazer minha home-page
Com quantos gigabytes
Se faz uma jangada
Um barco que veleje
Que veleje nesse infomar
Que aproveite a vazante da infomaré
Que leve um oriki do meu velho orixá
Ao porto de um disquete de um micro em Taipé
87
Um barco que veleje nesse infomar
Que aproveite a vazante da infomaré
Que leve meu e-mail até Calcutá
Depois de um hot-link
Num site de Helsinque
Para abastecer
Eu quero entrar na rede
Promover um debate
Juntar via Internet
Um grupo de tietes de Connecticut
De Connecticut acessar
O chefe da Macmilícia de Milão
Um hacker mafioso acaba de soltar
Um vírus pra atacar programas no Japão
Eu quero entrar na rede pra contactar
Os lares do Nepal, os bares do Gabão
Que o chefe da polícia carioca avisa pelo celular
Que lá na praça Onze tem um videopôquer para se jogar
Na sica acima, vemos vário exemplos de intertextualidade. Num
sentido estrito e de forma explícita, Gilberto Gil se apropria do vocabulário de
informática e de palavras na língua inglesa, tendo como tema a globalização.
Estas associações ficam claras para um leitor/receptor que tenha em seu
repertório os conceitos de website, homepage, gygabites, hot-link, Mac e
hackers; caso contrário, é aproveitar a melodia, já que a letra ficaria sem
sentido.
Os verbos e locuções velejar, acessar, abastecer, atacar, contactar,
soltar um vírus e entrar na rede, também são usados com duplo sentido:
podem ser vistos de forma literal, conferindo uma primeira leitura; ou como
vocabulário de internetês, mudando o escopo.
88
A globalização é sinalizada tanto pelos verbos (velejar, levar, fazer,
acessar) e pelas palavras (rede, porto, jangada, barco, vazante, vírus) que
imprimem movimento, como pela composição de palavras:
Macmilícia: Macintosh ou Mc’Donalds
Infomar: Informática + mar
Infomaré: informática + maré, navegação de dados
Connecticut: Estado norte-americano ou junção das palavras connect
(conectar) + cut (cortar, dividir, encerrar uma tomada de cena)
Os locais citados também mostram a globalização, acessível a um toque
no teclado: Nepal, Taipé, Japão e Calcutá (Ásia); Gabão (África); Helsinque e
Milão (Europa); Connecticut (América do Norte); e o gentílico carioca (Rio de
Janeiro, Brasil, América do Sul).
Os versos com quantos gigabytes se faz uma jangada intertextualizam
com o provérbio com quantos paus se faz uma canoa, que faz parte da
memória coletiva. A paráfrase de Gil mistura elementos modernos e que
navegam imediatamente pelas ondas da Internet (gigas) a uma embarcação
primitiva típica do nordeste (afinal, o autor é baiano), e que cruza o mar de
forma bem mais lenta.
A mistura de elementos tradicionais e tecnológicos permeia todo o texto,
e também pode ser observada nos versos que leve um oriki do meu velho
orixá, ao porto de um disquete de um micro em Taipé, nos quais o oriki -
conhecimentos de toda uma linhagem armazenados e transmitidos oralmente –
é comparado a um disquete.
Outra intertextualidade explícita está presente no título Pela Internet, e
nos versos o chefe da polícia carioca avisa pelo celular, que na praça onze
tem um videopoquer para se jogar, que parodiam a antiga canção Pelo
Telefone:
O chefe da polícia pelo telefone, manda me avisar
Que na carioca tem uma roleta , para se jogar
O chefe da polícia pelo telefone, manda me avisar
Que na carioca tem uma roleta , para se jogar
89
Ai, ai,ai, deixa as mágoas para traz, o rapaz
Ai, ai,ai, fica triste se és capaz e verás
Ai, ai,ai, deixa as mágoas para traz, o rapaz
Ai, ai,ai, fica triste se és capaz e verás
Tomara que tu apanhes
Não tornes a fazer isso,
Tirar amores dos outros
Depois fazer seu feitiço
Tomara que tu apanhes
Não tornes a fazer isso,
Tirar amores dos outros
Depois fazer seu feitiço
Olha a rolinha, sinhô, sinhô
Se embaraçou sinhô, sinhô
É que a vizinha sinhô sinhô
Nunca sambou sinhô sinhô
Porque este samba sinhô sinhô
É de arrepiar sinhô sinhô
Põe perna bamba sinhô sinhô
Mas faz gozar
Registrado por Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga, e Mauro
de Almeida, “Pelo Telefone”, de 1916, é considerado o primeiro samba
gravado. Sucesso no carnaval de 1917, popularizou um gênero musical que
comandaria as festas de Momo dali em diante. A questão de sua autoria é
controversa: “Pelo Telefone” seria um tema de criação coletiva, com a
participação de sambistas como João da Baiana, Pixinguinha e Sinhô. O
registro de Donga teria provocado uma cisão no grupo.
A letra do samba parodiava um fato da época: dois repórteres do jornal
A Noite, Castelar de Carvalho e Eustáquio Alves, instalaram, de brincadeira,
90
uma roleta na entrada do vespertino, tentando provar que o chefe da polícia
carioca, Aurelino Leal, fazia vistas grossas à prevaricação na cidade.
Se no início do século XX o telefone era o principal meio de
comunicação, hoje, começo do século XXI, a Internet conecta o mundo inteiro a
partir de um simples toque no teclado. Da mesma forma, o videopôquer
substituiu as roletas, mas manteve a clandestinidade.
Como outro exemplo de material a ser usado em sala de aula, citamos o
texto “A Aldeia que nunca mais foi a mesma”, publicado em 19/05/1984, no
jornal Folha de S. Paulo, no qual Rubem Alves tece uma crônica baseada em
O Afogado mais bonito do mundo (1968), de Gabriel Garcia Marques.
Nele, ocorrência de intertextualidade explícita que cita o texto-
fonte – e implícita, ao dialogar com fatos daquele momento.
Para entendermos a mensagem de Rubem Alves, temos que levar em
conta o contexto político brasileiro da época em que a crônica foi escrita: no dia
26 de abril de 1984, faltaram apenas 22 votos para que o Brasil voltasse a
eleger diretamente seu presidente da República (o que tornou a ocorrer em
1989). Já que a votação coincidiu com a proximidade da Páscoa, o autor reuniu
as duas datas, mais o texto de Gabriel Garcia Marquez, para falar da tristeza
pela continuidade das eleições indiretas.
Na primeira parte, em que descreve a aldeia, ele salienta a monotonia, a
morte em vida, a alegria que fugira. E, por incrível que pareça, esse quadro
começa a mudar com o aparecimento do corpo de um homem morto, que
parece trazer a ressurreição para o povoado:
(...) A vida renascia na morte graciosa de um morto desconhecido e que, por
isto mesmo, por ser desconhecido, deixava que pusessem no seu colo os
desejos que a morte em vida proibira...
Na segunda parte da crônica, uma guinada, que tem início quando o
autor explica não ter contado à toa aquela estória:
(...) Foi quando eu soube da morte ela cresceu dentro de mim. Claro
que eu suspeitava: os cavalos de guerra odeiam crianças, e o bronze
das armas odeia canções, especialmente quando falam de flores, e
não se ouve o ruflar lúgubre dos tambores da morte (...) Foi então que
91
me lembrei da estória. Não, foi ela que se lembrou de mim, e veio, para
dar nomes aos meus sentimentos, e se contou de novo. que agora
os rostos anônimos viraram rostos que eu vira, caminhando,
cantando, seguindo a canção, risos que corriam para ver a banda
passar contando coisas de amor, os rojões, as buzinas, os
panelaços, sinfonia que se tocava sobre a desculpa de um morto...
Neste trecho, há vários indícios de intertextualidade, do qual ressaltamos
os trechos em negrito. Falam de flores, caminhando, cantando, seguindo a
canção remetem à sica de Geraldo Vandré, brado contra a ditadura
instalada:
Pra não dizer que não falei das flores
Geraldo Vandré
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Caminhando e cantando
E seguindo a canção...
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer...(2x)
Também aponta para fatos da ocasião, como o panelaço a favor das
diretas, tema de Pelas Tabelas; e fala sobre os ‘risos que corriam para ver a
banda passar contando coisas de amor’, retomando A Banda, duas músicas
de Chico Buarque:
92
Pelas Tabelas
Ando com minha cabeça já pelas tabelas
Claro que ninguém se importa com minha aflição
Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela
Eu achei que era ela puxando o cordão
Oito horas e danço de blusa amarela
Minha cabeça talvez faça as pazes assim
Quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas
Eu pensei que era ela voltando pra mim
Minha cabeça de noite batendo panelas
Provavelmente não deixa a cidade dormir
Quando vi um bocado de gente
Descendo as favelas
Eu achei que era o povo que vinha pedir
A cabeça de um homem que olhava as favelas
Minha cabeça rolando no maracanã
A Banda
Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
Em todo o texto de Alves, encontramos alusões à Páscoa, com
recorrência de termos como ressurreição de mortos, vida que voltava, a vida
renascia na morte, que fica mais claro ainda no trecho a seguir:
1 (...) Ah! O povo se descobrira, tão bonito como nunca suspeitara...
2 Não era raiva.
93
3 Não era azia.
4 Nem mesmo fome ou desemprego.
5 O bonito foi isto mesmo:
6 Que de tantos golpes,
7 De tanta dor,
8 Tenham surgido canções,
9 Tenha brotado uma flor.
10 Lembra-se? Aconteceu na estação da Páscoa...
11 A Vida ressurge da Morte.
12 Três dias, vinte anos, um século... Não importa...
13 Por favor: conte para alguém a estória da aldeia que, depois de enterrar um
morto, nunca mais foi a mesma. Nós...
14 P.S. Quase me esqueci de dizer. A estória é de Gabriel Garcia Marquez. Eu
só a recontei do meu jeito...
Por um breve momento, entre as linhas 2 e 9, o texto passa a ter rima e
pode ser visto também como canção. na linha 12, Alves cita a duração da
Morte e Ressurreição na Páscoa (três dias), do tempo da ditadura brasileira
àquela data (20 anos), e da esperança na transformação (um culo?). Mas,
como o povo, depois de enterrar um morto nunca mais foi o mesmo, após cinco
anos da crônica, as diretas voltaram.
Na linha 14, o post scriptum cita a fonte e anuncia a paráfrase.
Esses são apenas alguns elementos intertextuais levantados por nossa
pesquisa, e a análise do texto em questão ficou muito mais rica, instigante,
informativa, crítica.
Neste capítulo, último da dissertação, abordamos o uso da
Intertextualidade em sala de aula e a importância da cooperação por parte do
leitor no processo de leitura.
94
___Conclusão____________________________________________________
Neste trabalho, analisamos a Intertextualidade, no âmbito da Lingüística
Textual, em Libertinagem, de Manuel Bandeira. Ao revisitarmos um dos
principais expoentes da literatura brasileira, tivemos como enfoque um
importante recurso para tornar a leitura mais eficiente e que pode ser utilizado
como ferramenta eficiente em sala de aula.
O diálogo entre textos ou intertextualidade aciona no leitor seus
conhecimentos prévios e de mundo, tornando a leitura uma experiência muito
mais prazerosa e enriquecedora. Explicitada ou nas entrelinhas, a
Intertextualidade ativa mecanismos de busca a interpretações e significados,
que podem ser os pretendidos ou não pelo autor.
A conexão entre diferentes textos confere à leitura maior riqueza e alto
grau de informatividade. O autor desafia; o leitor, segue as pistas para
desvendar o grande mistério. Esse jogo inter e/ou intratextual proporciona
movimento, atemporalidade e dinamismo.
A criação de textos com maior ou menor grau de intertextualidade
depende do autor que, no entanto, precisa da colaboração do leitor para ser
captado em sua totalidade. Como a leitura é individual, as percepções são
particulares, diferenciadas.
Para que um texto seja coerente e traga o maior número de informações
possíveis, é preciso que o leitor/receptor tenha em seu conhecimento de
mundo o repertório necessário às conexões intertextuais.
Cabe também ao produtor/autor deixar claras as suas intenções, de
forma que o leitor/receptor possa percebê-las e interagir, efetuando leituras
cruzadas. Caso contrário, o texto deixará de ser lido em toda a sua
complexidade e poderá até mesmo se resumir a um amontoado de frases
desconexas. Conforme Eco (2002), “Todo texto quer que alguém o ajude a
funcionar” (p.37).
Nas palavras do autor:
O texto está, pois, entremeado de espaços brancos, de interstícios a
serem preenchidos, e quem o emitiu previa que esses espaços e
interstícios seriam preenchidos e os deixou brancos por duas razões.
95
Antes de tudo, porque um texto é um mecanismo preguiçoso (ou
econômico) que vive da valorização de sentido que o destinatário ali
introduziu (...). Em segundo lugar, porque, à medida que passa da
função didática para a estética, o texto quer deixar ao leitor a iniciativa
interpretativa, embora costume ser interpretado com uma margem
suficiente de univocidade. (p.37)
Lembrando que a competência do destinatário não é necessariamente a
do emitente, Eco (op. cit.) questiona o que acontece com um texto verbal
escrito que não conta com a interação face a face e nem com o reforço
extralingüístico “que o autor gera e confia a múltiplos atos de interpretação,
como uma mensagem numa garrafa?” (p.39)
Para ele, a resposta é simples: o autor deve se referir ao mesmo
conjunto de competências do leitor; deve prever um Leitor-Modelo a ponto de
que este coopere para a atualização textual conforme o autor se movimenta
gerativamente. Então, elaborar um texto significa utilizar uma estratégia, prever
o movimento do outro, como fazem os enxadristas e os estrategistas militares:
“Se efetuo este movimento – aventurava Napoleão –, Wellington deveria
reagir assim. Se executo este movimento argumentava Wellington ,
Napoleão deveria reagir assim. No caso em foco, Wellington gerou
melhor a própria estratégia de Napoleão, pois, Wellington construiu um
Napoleão-Modelo que se parecia ao Napoleão concreto mais do que o
Wellington-Modelo, imaginado por Napoleão, se parecia ao Wellington
concreto. A analogia só pode ser invalidada pelo fato de que, num texto,
o autor costumeiramente quer levar o adversário a vencer, ao invés de
perder. Mas isto não é dito.” (p.39)
Mas como podem ocorrer acidentes casuais nas estratégias, o autor do
texto também precisa se antecipar, conforme adverte Eco: ‘Aquele braço do
lago de Como’: e se me aparece um leitor que nunca ouviu falar de Como?
Devo agir de modo a recuperá-lo mais adiante.” (op. cit.,p.39)
Então, esclarece ele, o autor não deve apenas torcer para que o Leitor
Modelo exista, mas precisa movimentar o texto de modo a construí-lo.
96
Mas será que todos os autores agem dessa maneira? Terão todos a
paciência e o objetivo de um Edgar Allan Poe que, em A Filosofia da
Composição, explica ao leitor o passo-a-passo da geração de seu texto?
No presente trabalho, não nos cabe responder a estas questões, e sim
contribuir para a utilização do recurso da intertextualidade, com o objetivo de
chegar próximo ao pretendido pelo autor. Ou seja: mostrar recursos que
possibilitem o maior cruzamento de leituras possível, a ativação de
conhecimentos prévios, mas sempre respeitando os limites do texto.
Os exemplos aqui analisados são apenas sugestões dentre inúmeras
leituras possíveis, combináveis tal qual um instigante jogo de tabuleiro, dentro
desta infinita e intrincada rede intertextual que é a própria sociedade.
Esperamos que esta dissertação possa oferecer uma sensível
contribuição aos pesquisadores e profissionais da área.
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