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JULIANE VARGAS WELTER
AUTÓPSIA DE UM PASSADO:
uma leitura de Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005), de Milton
Hatoum
PORTO ALEGRE
2010
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2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ÁREA: ESTUDOS LITERÁRIOS
ESPECIALIDADE: LITERATURA BRASILEIRA E LUSO-AFRICANAS
LINHA DE PESQUISA: LITERATURA, IMAGINÁRIO E HISTÓRIA
AUTÓPSIA DE UM PASSADO:
uma leitura de Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005), de Milton
Hatoum.
JULIANE VARGAS WELTER
ORIENTADOR: PROF. DR. HOMERO VIZEU ARAÚJO
Dissertação de Mestrado em Literatura
Brasileira apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Rio Grande
do Sul como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre.
PORTO ALEGRE
2010
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3
Para os leitores atentos.
4
- Ah, Sara! Todos vão dizer que sempre fui um
louco, um romântico, um anarquista (...)
(Paulo Martins em “Terra em Transe”, de Glauber Rocha).
“Gente como nós ou vira santo ou maluco, ou revolucionário ou bandido. Como não
havia verdade no êxtase nem no poder, fiquei entre escritor e bandido.”
(O Escritor em “Intestino Grosso”, de Rubem Fonseca).
AGRADECIMENTOS
5
O trabalho de pesquisa, apesar de muitas vezes solitário, acaba por envolver muitas
das pessoas que estão à nossa volta, direta ou indiretamente. Entre as tantas pessoas que
fazem parte desta minha trajetória e me refiro também àquelas parcerias não
acadêmicas quero agradecer primeiramente a Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa de pesquisa concedida em 2009,
fundamental para o bom andamento do trabalho.
Agradeço imensamente à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por ter me
propiciado esses últimos 8 anos de ensino gratuito e de qualidade; aos professores (e ex-
professores) do curso de graduação e de pós-graduação do Instituto de Letras desta
universidade, em especial à professora Zilá Bernd, com quem aprendi muito do que sei
hoje sobre trabalho intelectual; ao professor Marcelo Frizon, pela parceria e orientação
no Trabalho de Conclusão de Curso, que veio a originar esta dissertação; e por fim, ao
meu orientador, professor Homero Vizeu Araújo, pela paciência, confiança e apoio em
mim depositados, desde a leitura de meu Trabalho de Conclusão de Curso em 2007/2,
do qual participou como banca avaliadora, passando pela minha participação no curso
de mestrado e terminando (recomeçando?) nos projetos futuros que se fazem
concretos. Aos colegas do curso de pós-graduação, principalmente à Carla Vianna,
pelos últimos anos dividindo ansiedades e boas risadas, e pela solicitude em me ajudar
na revisão final do trabalho; a Eugênio Brauner, pelo bom humor com que sempre
dividimos ansiedades e incentivos; e à Gabriela Luft, companheira de cadeiras,
seminários, artigos, congressos e aflições nestes últimos anos.
Meus agradecimentos à banca examinadora composta profa. Márcia Ivana de
Lima e Silva, prof. Luís Augusto Fischer e prof. Marcelo Siqueira Ridenti
primeiramente pelo aceite na participação e pela apreciação do trabalho.
Não poderia deixar de agradecer a Milton Hatoum, exemplo de intelectual,
sempre amável e disponível para o diálogo. A sua interlocução tornou o trabalho de
pesquisa ainda mais interessante para mim, e acredito que para os leitores deste trabalho
também.
A todos os amigos que das mais variadas formas participaram deste processo,
seja apoiando o meu trabalho com palavras animadoras ou simplesmente dividindo uma
mesa de bar. Entre estes, sou especialmente grata à Laura Hahn e Tiago Ferraz.
Agradeço a Fernando Pureza, que revisando e imprimindo textos, emprestando
livros, tirando todas as minhas dúvidas sobre História, acabando com os meus quase
6
vícios de linguagem (“não chama de golpe de 68, chama de AI-5”), me apoiando nos
momentos de maior ansiedade, aguentando meu mau-humor, fazendo os meus serviços
domésticos enquanto eu tentava terminar o texto e me ajudando na escolha do título
final (a listagem total deve ter contabilizado uns 20!), foi fundamental durante todo o
processo de escrita desta dissertação. Sem ele este trabalho seria muito menos divertido.
(Na verdade, ele fez muito mais do que isso, mas por ora me limito a um parágrafo,
deixando o segundo para os projetos futuros).
Agradeço aos meus pais, Julio Welter e Mareci Vargas, pelo apoio emocional e
financeiro, e por todo o incentivo depositados em mim e em meus estudos nos últimos
28 anos. Ao meu irmão, Matheus Welter, por todos os momentos compartilhados. A sua
presença, mesmo distante, torna a vida muito mais doce. Agradeço a todos pelo imenso
amor.
Aqueles que aqui não estão mencionados, mas que nas mínimas e múltiplas
formas participaram dos últimos 2 anos e ... (alguns meses!), meus sinceros
agradecimentos.
Por fim, agradeço aos meus leitores atentos, aqueles a quem dedico o presente
trabalho, na esperança de dividir e multiplicar conhecimentos.
RESUMO
7
O presente trabalho tem como indagação central as reflexões acerca da ditadura
militar na literatura brasileira contemporânea, centrando-se nos romances de Milton
Hatoum, Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005). O trabalho dividi-se em quatro
eixos: o primeiro contempla as produções artísticas dos anos 50 e 60 marcadas pelo
romantismo revolucionário e pela utopia de uma país novo; em um segundo momento,
o desencanto da esquerda nos anos 70 é o foco principal; logo após, no terceiro eixo,
trabalha-se com a variante distópica, tendo as obras Onde andará Dulce Veiga (1990),
de Caio Fernando Abreu e Benjamim (1995), de Chico Buarque papéis crucias. O quarto
eixo refere-se à literatura produzida pós anos 2000, o foco principal desta dissertação: a
obra de Milton Hatoum, aqui limitada aos romances citados. Através da análise dos
romances supracitados busca-se localizar a reflexão feita pelos intelectuais Caio
Fernando Abreu, Chico Buarque e Milton Hatoum, anos após o fim do regime: trauma
ou acerto de contas? Através do tratamento literário dado ao tema em seus romances,
Milton Hatoum, de forma díspare a Caio Fernando Abreu e Chico Buarque, mostrar-
nos-á uma reflexão mais madura, baseada no papel da escrita, ou seja, no desempenho
da função do intelectual, que transmite e trabalha a sua memória através da narrativa.
Palavras - chave: Milton Hatoum romantismo revolucionário ditadura militar -
memória – Caio Fernando Abreu – Chico Buarque
8
ABSTRACT
The present work has it central indagation focused in the thoughts about the
military dictatorship in the contemporary Brazilian literature, having focus in the Milton
Hatoum's romances, Dois irmãos (2000) and Cinzas do Norte (2005). This work divide
itself in four axis: the first one contemplates the artistic productions of the 50's and 60's
that were marked by the revolutionary romanticism and the utopia of a new country; in
a second moment, the disenchantment of the left in the 70's is the main focus, soon after
that, in the third axis, it will be worked the distopic variant, with the works Onde
andará Dulce Veiga (1990), from Caio Fernando Abreu and Benjamin (1995), from
Chico Buarque having crucial papers. The fourth axis refers itself to the literature
produced after the 2000's, the main focus of this dissertation: the work of Milton
Hatoum, here taken by the already named romances. Through analysis of the romances
named above, we intend to localize the reflexions made by the intellectuals Caio
Fernando Abreu, Chico Buarque and Milton Hatoum, years after the end of the regime:
trauma or reckoning? Through the literary treatment given to this theme in theirs
romances, Milton Hatoum differs itself to Caio Fernando Abreu and Chico Buarque,
showing us a more mature thought, based on the role of writing, or in another word, in
the development of the function of the intellectual, capable of transmitting and working
its memory through the narrative.
Keywords: Milton Hatoum - revolutionary romanticism - military dictatorship -
memory - Caio Fernando Abreu - Chico Buarque
9
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................10
2 UTOPIA E REALIDADE: ROMANSTISMO REVOLUCIONÁRIO E
DITADURA MILITAR.................................................................................................15
2.1 Utopia........................................................................................................................15
2.2 Romantismo revolucionário......................................................................................20
2.3 Desencantamento.......................................................................................................27
3 O NOSSO FIM DE SÉCULO: DEMOCRACIA, DESAGREGAÇÃO E
FANTASMAS................................................................................................................34
3.1 Democracia e desagregação.......................................................................................34
3.2 Dulce Veiga e Castana Beatriz..................................................................................37
4 MILTON HATOUM: MEMÓRIA E ESCRITA.....................................................57
4.1 A obra........................................................................................................................57
4.2 O caso Laval..............................................................................................................66
4.3 O caso Cinzas do Norte.............................................................................................87
4.4 Trauma ou acerto de contas.....................................................................................96
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................102
OBRAS LITERÁRIAS................................................................................................112
OBRAS CINEMATOGRÁFICAS.............................................................................115
REFERÊNCIAS...........................................................................................................116
ANEXOS......................................................................................................................124
10
1 INTRODUÇÃO
Escritor consagrado pela critica, Milton Hatoum é hoje considerado um dos
maiores escritores da literatura brasileira, tendo publicado os romances Relato de um
certo Oriente (1989), Dois irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005), Órfãos do Eldorado
(2008) e o livro de contos A cidade ilhada (2009)
1
, entra tantos outros trabalhos de
tradução e critica literária
2
. Em épocas de narrativas fragmentadas e narradores
pertubado(re)s, Milton Hatoum nos contempla com relatos que filiam-se à narrativa oral
e à tradição moderna de narradores (segundo o crítico literário britânico Raymond
Willians, o romancista amazonense é o melhor da tradição moderna, hoje)
3
. Narradores
diferenciados, marcados pela influência da tradição francesa do século XIX, como
Gustave Flaubert, e pelo melhor da literatura brasileira, como Machado de Assis
4
.
Todos os atributos acima citados explicam um pouco do enorme sucesso que o
escritor faz com sua literatura e poderiam justificar também a escolha do seu nome
como objeto de pesquisa. E é sobre essa escolha que falarei brevemente.
Meu contato com a obra de Milton Hatoum se deu ao final do curso de
graduação, nesta universidade, quando estava à procura de um objeto para ser analisado
no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Foi quando, com indicação da profa. Zilá
Bernd, minha orientadora de bolsa de iniciação científica na época, cheguei até o
romance Dois irmãos, exemplar para as discussões sobre transculturação e imigração,
assuntos bastante debatidos no grupo de pesquisa “Questões de Hibridação nas
Américas”, do qual fazíamos parte. A leitura da obra me fez perceber o quão rica era a
sua narrativa e como poderia ser profícuo seu estudo, mas por questões burocráticas
1
Seus três romances ganharam o prêmio Jabuti de melhor romance do ano e Cinzas do Norte foi
contemplado também com os prêmios Bravo!, APCA e Portugal Telecom.
2
Os trabalhos feitos por Milton Hatoum encontram-se listados no seu site pessoal
miltonhatoum.com.br, lançado no mês de setembro de 2010.
3
Ver: WILLIAMS, Raymond. A ficção de Milton Hatoum e a nova narrativa das minorias na América
Latina. In: CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de (org.). Arquitetura da memória: ensaios sobre os
romances Relato de um certo oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte de Milton Hatoum. Manaus: Editora
da Universidade Federal Amazonas / UNINORTE, 2007.
4
As influências aqui explicitadas são reveladas não pela leitura da obra de Milton Hatoum, mas
também pelos relatos a cerca de suas leituras preferidas, o que pode ser lido em Hatoum, 2010a, 2010b e
2010c. Importante acrescentar que o eixo temático Hatoum-leitor não será desenvolvido no presente
trabalho por suas limitações temporais e temáticas, ficando como uma possibilidade de pesquisa para o
futuro, visto que não tivemos acesso a trabalhos de fôlego referentes a este tema.
11
minha orientação não pode ser feita pela referida professora. Ao mesmo tempo, minha
bolsa de iniciação científica findava-se e eu precisava naquele semestre, 2007/2,
começar e finalizar meu TCC. Na época, cursava minha última cadeira presencial,
“Literatura Brasileira Contemporânea”, ministrada pelo professor Marcelo Frizon, ao
qual convidei para o trabalho de orientação de final de curso.
Durante as orientações com o professor Marcelo, tive a oportunidade de dialogar
com o doutorando Ian Alexander e com o professor Homero Araújo, essenciais na
revisão teórica daquele trabalho, que acabou sendo uma análise do romance Dois
irmãos desde a discussão do enredo, do pano de fundo histórico e do possível
regionalismo, até a discussão sobre a busca da figura paterna feita por Nael. Durante
esses diálogos com o professor Homero, que viria a fazer parte da banca avaliadora
daquele trabalho, foi levantado o questionamento sobre o personagem Laval, que se
mostra a princípio um personagem secundário, mas que cresce em importância de forma
surpreendente na narrativa. Naquele trabalho o assunto não foi abordado, deixando
assim o questionamento sem respostas. A aprovação no curso de Mestrado, com a
orientação do professor Homero, e a realização deste trabalho possibilitaram que aquela
interrogação - e outras que foram surgindo no decorrer do trabalho - fossem
respondidas.
As ideias iniciais da dissertação seriam a análise do narrador hatouniano, as
heranças romanescas e um possível trauma ditatorial na obra, tendo como figura central
Laval. Durante a trajetória pode-se perceber que não haveria tempo hábil para um
trabalho deste porte, visto que teríamos 2 anos e alguns meses a mais - para sua
finalização. Passamos a trabalhar com dois dos objetivos inicias: o narrador e um
possível trauma ditatorial, que ficara ainda mais evidente com a leitura do romance
Cinzas do Norte (2005). Ainda assim, o tempo era curto, e o trabalho longo. Neste
momento, já findados os 2 anos do curso, optamos por limitar-nos às indagações sobre
Laval e a ditadura militar, já que imersa estava nas leituras sobre a literatura dos anos 60
e 70 e seus estudos críticos. Este imersão se vale muito pela cadeira ministrada pelo
professor Homero em 2009/2, nesta universidade, “O nacional-popular e a literatura
brasileira”, que me permitiu ler textos ficcionais e críticos com os quais até então
não havia entrado em contato, assim como permitiu discussões inéditas para mim sobre
o tema na literatura.
12
Limitamos então o objeto ao seguinte questionamento: as menções à ditadura
militar na obra de Milton Hatoum demonstram um trauma daquele período ou são uma
tentativa de acerto de contas com nosso passado infeliz? Ou, talvez, nada disso? É
sobre estas perguntas que forma-se o presente trabalho, tendo como objetivos analisar a
discussão histórica/literária sobre o passado do país e situar essas reflexões no âmbito
da literatura brasileira contemporânea. Os romances analisados não são somente os de
Milton Hatoum, que a discussão também contempla obras de Caio Fernando Abreu,
Chico Buarque e em menor escala Beatriz Bracher, tendo no amazonense o seu ápice,
seja na escolha cronológica ou no amadurecimento da discussão. Todos os autores
citados se valem do período ditatorial em suas narrativas, mas cada um o reflete de uma
maneira, ainda assim permitindo similaridades.
Essa escolha temática fez com que os romances Relato de um certo Oriente
(1989) e Órfãos do Eldorado (2008), assim como o livro de contos A cidade ilhada
(2009) fossem retirados do corpus central por fugirem ao tema proposto, mas não
impedindo-os de serem mencionados em casos relevantes. No caso do livro de contos,
menciono a narrativa Bárbara no Inverno”, que vem ao encontro da discussão aqui
proposta.
A metodologia utilizada baseia-se nas bibliografias analisadas no referido TCC,
no próprio trabalho, em filmes que acrescentaram à discussão e a novas referências que
foram surgindo no percurso. Entre essas novas referências cabe destacar o livro Em
busca do povo brasileiro (2000), de Marcelo Ridenti, fundamental para o
questionamento aqui proposto. O encontro com Milton Hatoum, momento que permitiu
que eu pudesse dividir com o autor meu ensaio sobre Dois irmãos, também foi um
momento importante na divulgação e na partilha do trabalho feito, além de ter me
possibilitado trocas de e-mails com o escritor. Essas trocas de e-mail me levaram à
aquisição do livro Arquitetura da memória: ensaios sobre os romances Relato de um
certo oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte de Milton Hatoum (CRISTO, 2007),
livro em homenagem ao romancista que encontrava-se à venda somente em Manaus, e
que me foi remetido diretamente da capital amazonense a Porto Alegre; assim como
também tornou possível a leitura de Representações do Intelectual (2005), de Edward
Said, indicação bibliográfica do próprio Milton Hatoum
5
. Este diálogo com o autor
5
Importante destacar aqui que a tradução de Representações do Intelectual (2005) para o português foi
realizada pelo próprio Milton Hatoum.
13
tornou o trabalho ainda mais estimulante e rico, principalmente em se tratando da figura
deste escritor: um intelectual ativo, solicito e aberto a diálogos.
Antes de mencionar a organização do trabalho, gostaria de esclarecer o título
escolhido. “Autópsia”, segundo o dicionário Houaiss (2001), é um “exame, inspeção de
si próprio”; “exame minucioso de cadáver”; “análise minuciosa”; “critica severa”. Ao
trazer à tona o tema ditatorial através das reflexões de seus narradores, os romances aqui
citados colocam-se como analíticos de um passado pessoal e social, cabendo a nós o
trabalho de investigação das diversas posturas apresentadas.
Para a organização do trabalho pensou-se em começar a análise dos textos nos
50 e 60, período em que podemos ver emergir as ideias românticas revolucionárias;
passando pelos anos 70 com o desencantamento da esquerda e pelos anos 80 e 90, com
a nova era democrática, e cada vez mais desigual; culminando com a obra de Milton
Hatoum, nos anos 2000 e sua reflexão na ficção sobre este processo. E assim aqui está
posto.
No Capítulo 2, Utopia e realidade: romantismo revolucionário e ditadura
militar” discutem-se na primeira seção a formação do projeto político nacional nos anos
50, a partir das expectativas culturais e econômicas, e das conquistas futebolísticas
daqueles anos. Na seção seguinte, passamos aos anos 60 e ao romantismo
revolucionário, conceito discutido por Ridenti (2000) a partir do texto de Löwy e Sayre
(1995): Revolta e melancolia, o romantismo na contramão da modernidade. A geração
dos anos 60, contrária à ditadura, utilizava a figura do povo como o grande salvador, se
valendo das formas públicas de arte teatro e canção como forma de alcançar esse
povo idealizado. Geração que virá a encontrar na guerrilha urbana uma nova saída,
referência que será feita por Antonio Callado, Carlos Heitor Cony e Glauber Rocha em
suas obras, respectivamente: Quarup (1967), Pessach: A travessia (1967) e Terra em
Transe (1967). Longe de querer tratar da simbologia, as três obras nascem no mesmo
ano e tem como horizonte a luta armada. O impacto dessas produções de esquerda nos
anos 60 permite a discussão sobre uma suposta hegemonia de esquerda propagada por
Schwarz (1978) e Franco (1998), mas refutada por Ridenti (1993) e aqui posta.
Os anos 70 serão tratados na terceira seção, onde se perceberá o
desencantamento da esquerda, decepcionada com o regime militar - que se tornava cada
vez mais forte -, com o povo e com ela mesma. Antonio Callado e Carlos Heitor Cony,
agora com o acréscimo de Érico Veríssimo, são os escolhidos para darem o tom de
14
decepção daquele momento nos seus respectivos romances: Bar Don Juan (1971),
Pilatos (1974) e Incidente em Antares (1971). Assim como debate-se também as
discussões acerca da qualidade das obras produzidas durante os tempos duros da
censura, com o suporte teórico de Franco (1998), Pellegrini (1996) e Sussekind (1984;
1985).
Uma breve síntese do país democrático será tratada no capítulo 3, “O nosso fim
de século: democracia, desagregação e fantasmas”, partindo dos anos 80 e chegando aos
anos 90. Na primeira seção encontra-se um breve panorama do que o país viveu (e vive)
após o fim da ditadura. Na segunda seção, discutem-se os romances Onde andará Dulce
Veiga? (1990), de Caio Fernando Abreu e Benjamim (1995), de Chico Buarque, com
seus protagonistas atormentados nos anos 90 por fantasmas desaparecidos durante a
ditadura militar.
Estabelecido esse caminho da literatura, chega-se ao último capítulo, “Milton
Hatoum: memória e escrita”, que se refere na primeira seção à obra do escritor de uma
forma geral, as suas filiações e a sua reflexão como intelectual. Na segunda seção, “O
caso Laval”, discute-se a figura desse personagem no romance Dois irmãos e seus
possíveis desdobramentos. Na seção seguinte, o esforço textual é o mesmo, mas tendo
como foco o romance Cinzas do Norte. Na última seção, “Traumas ou acerto de contas”
busca-se a síntese e a solução para o questionamento inicial, com o acréscimo do
romance Não falei (2004), de Beatriz Bracher.
Ao fim da dissertação ainda incluo emails trocados com Milton Hatoum
mencionados anteriormente com o objetivo de evidenciar as posições do autor sobre a
própria obra e sobre a crítica existente sobre ela através de um enfoque pessoal.
A partir deste momento, convido meu leitor a acompanhar a trajetória do recorte
aqui escolhido, iniciando o caminho pelos sonhadores anos 50.
2 UTOPIA E REALIDADE: ROMANSTISMO REVOLUCIONÁRIO E
DITADURA MILITAR
15
2.1 Utopia
“Quando minha música sai boa, penso que parece música de Tom Jobim. Música
do Tom, na minha cabeça, é casa do Oscar” (BUARQUE apud BARROS e SILVA,
2004, p.15). A casa de Oscar Niemeyer e a música de Tom Jobim citados por Chico
Buarque são uma metáfora possível para o Brasil dos anos 50: um país em construção,
novo em sua capital, em sua música, em seu cinema, em sua dramaturgia em processo
de amadurecimento, em sua literatura e, pela primeira vez, campeão da Copa do Mundo
de Futebol, em 1958.
Nos anos 50 havia um projeto coletivo, ainda que difuso, de um Brasil possível,
antes mesmo de haver a radicalização de esquerda dos anos 60. [...] Ela [Brasília]
foi construída sustentada numa idéia
6
daquele Brasil que era visível para todos
nós. Inclusive nós, que estávamos fazendo música, teatro etc. Aquele Brasil foi
cortado evidentemente em 64. Além da tortura, de todos os horrores de que eu
poderia falar, houve um emburrecimento do país. A perspectiva do país foi
dissipada pelo golpe (BUARQUE apud BARROS e SILVA, 2004, p.16).
Vivia-se um momento único na produção cultural: a Bossa Nova conquistava
seu espaço; o Cinema Novo, com influências da Nouvelle Vague francesa e do neo-
realismo, muda a ótica da produção nacional, voltando-se para a realidade brasileira de
subdesenvolvimento; a dramaturgia finalmente havia produzido as peças que precisava
para sua sustentação e difusão; O Teatro de Arena e o Teatro Brasileiro de Comédia
transformavam o jeito de fazer e ver o teatro nacional; e na literatura, Guimarães Rosa
publicava, em 1956, o colossal e inovador Grande Sertão: Veredas.
Nem antes nem depois nossos antagonismos estiveram tão perto de uma
conciliação: o local e o cosmopolita, o sertão e o litoral, o folclore e a vanguarda,
o popular e o erudito pareciam próximos de encontrar seu ponto de solução. A
obra de Guimarães Rosa realizou essa proeza, da qual Brasília seria a síntese
histórica, a materialização de uma sociedade nacional integrada. Esse projeto,
porém, [...] foi demolido antes de existir, ou ficou intacto, suspenso no ar. O
golpe de 64 iria abortá-lo - quem sabe para nunca mais (BARROS e SILVA,
2004, p.15).
6
De acordo com o novo Acordo Ortográfico dos países da CLP (Comunidade de países de Língua
Portuguesa), em vigor desde de janeiro de 2009, paroxítonas terminadas em ditongo como a palavra
“ideia” não serão mais acentuadas. Como ainda estamos em período de adequação à nova ortografia – que
se encerra em 31 de dezembro de 2012 optamos por manter a grafia original das palavras em citações e
adequá-las às novas regras no corpo do texto.
16
As dicotomias supracitadas por Barros e Silva (2004), que viviam um período de
harmonização no final dos anos 50, acompanham a literatura brasileira e a nossa
produção artística de uma forma geral desde seu nascimento. Segundo Candido
(2006b, p.117-8), a produção literária brasileira tem sido uma “superação de
obstáculos”, entre eles o “sentimento de inferioridade que um país novo, tropical e
largamente mestiçado, desenvolve em face de velhos países de composição étnica
estabilizada”. Passamos o século XIX na tentativa de superar a metrópole europeia, e no
XX, o amadurecimento de nossa literatura permitirá que sejamos influenciados pelas
correntes oriundas do velho continente não mais como transposição, mas como
manifestação de uma solidariedade cultural intensificada depois da Primeira Guerra
Mundial e do nosso progresso econômico” (CANDIDO, 2006b, p. 133).
A década de 30 de nossa literatura
7
viveu este momento, em que se alastravam
pelo mundo as ideias marxistas e fascistas, assim como conceitos freudianos, que terão
em nossa literatura espaço para discussão. A vertente marxista – que muito nos interessa
na presente discussão terá seu quinhão no chamado “romance de 30”, que trará o
subdesenvolvimento como protagonista de muitas narrativas. Sem a intenção de esgotar
a lista e generalizar as produções literárias da década, temos os casos simbólicos de
Jorge Amado, militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro
8
ou “Partidão”), que
chega a publicar quase um livro por ano na década de 30, entre eles Cacau (1933) e
Capitães de areia (1937), sempre tendo como guia a realidade nordestina miserável; e
Graciliano Ramos, preso durante o Estado Novo getulista, que narra o êxodo dos
retirantes nordestinos em Vidas Secas (1938). Aliam-se a estes nomes José Lins do
Rego e Rachel de Queiroz, que ainda que não tenham se aproximado dos ideias
marxistas, devem também ser citados a títulos de exemplo desta safra romanesca. Tem-
se uma produção vasta e de qualidade, como até então não se havia visto na literatura
nacional.
Na temática mais urbana, ganharam forças nomes como os de Dyonélio
Machado e Érico Veríssimo, que segundo Candido (2006a, p.247), compõem a linha
dos “radicais urbanos”, atentos ao coletivo e ao individual. A dicotomia representada
7
Todas as relações feitas com e entre obras literárias referenciar-se-ão somente à prosa de ficção - entre
elas contos, romances e dramas -, visto que uma relação de maior alcance fugiria aos limites do presente
trabalho.
8
Com as cisões do PC no início dos anos 60, a nomenclatura de Partido Comunista do Brasil coube à
sigla PCdoB; enquanto ao “Partidão”, coube o nome Partido Comunista Brasileiro.
17
por essa geração alcança outro patamar: a renovação. A literatura dita “sertaneja” do
início do século XIX, que tinha como intuito (re)conhecer o país, ganha novos ares,
assim como a cidade, já que nem só de Rio de Janeiro viverá essa safra urbana. Segundo
Candido (2006a, p.248), os romancistas desta geração “liquidam o velho regionalismo e
retemperam o moderno romance urbano”
9
.
E na década de 50 chegamos ao grande momento da superação do localismo
versus cosmopolitismo, como citado por Barros e Silva (2004). Na ficção, Guimarães
Rosa, universaliza o regional, na linguagem e no conteúdo, com a publicação de
Grande Sertão: Veredas (1956). Candido (2006a, p.195), refere-se a esse momento
como “consciência dilacerada do subdesenvolvimento”, em que se descarta “a retórica e
o sentimentalismo”, aproveitando-se da própria matéria-prima antes utilizada para
reelaborá-la através do absurdo, da magia, do monólogo interior e de uma nova técnica
de escrita, o que leva o autor a denominá-lo de “superregionalista”. Além de Guimarães
Rosa, caso exemplar deste grande momento da literatura nacional é a obra de Clarice
Lispector
10
, que fará novo uso da linguagem, focada nos dramas psicológicos e urbanos,
fazendo assim uma literatura singular e inovadora.
O teatro viverá este panorama positivo da década com o seu amadurecimento,
percebido nas produções que estrearam naqueles anos
11
. Entre essas peças: O Auto da
Compadecida (1956), de Ariano Suassuna; Eles não usam Black-Tie (1958), de
Gianfrancesco Guarnieri e O Pagador de Promessas (1960), de Dias Gomes
12
. Peças de
grande sucesso que irão trazer para o palco o drama das classes menos abastadas e o
início da militância teatral atrelada à esquerda política, que virá a ser uma das grandes
armas de luta dos anos 60.
Abrindo um rápido parêntesis, interessante perceber que as três peças acima
citadas acabaram por ganhar novos tratamentos e outros palcos, reflexo do sucesso que
fizeram a sua época e ainda hoje: O Auto da Compadecida foi adaptado três vezes
9
Sem intenção de generalizar a produção da década que conta também com produções marcadas por
valores católicos, como a obra de Otávio de Faria - me detenho no romance de 30 e seus escritores por ser
um momento de denuncia e discussão do problema do subdesenvolvimento, e também de militância
ligada à esquerda política no país.
10
Entre suas obras Perto do Coração Selvagem (1944), O Lustre (1946), A Cidade Sitiada (1949), Laços
de Família (1960), A Maçã no Escuro (1961), A Paixão Segundo G.H. (1964), Uma Aprendizagem ou O
Livro dos Prazeres (1969), Água Viva (1973), A Hora da Estrela (1977), entre outras.
11
Para um estudo mais detalhado ver: PRADO, Décio de Almeida, 1917- O teatro brasileiro moderno:
1930-1980. São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1988 (Debates v. 111).
12
A escolha das peças se pelo caráter temático, sem a intenção de generalizar ou esgotar a lista e a
discussão.
18
para o cinema em 1969, 1987 e 2000
13
e uma vez para a televisão em 1999 –, em
formato de minissérie
14
. Tendo estreado no cinema em 1981, Eles não usam Black-tie
15
sofreu algumas modificações no enredo por influência das greves do ABC paulista no
início dos anos 80. Outra curiosidade interessante: na peça, Gianfrancesco Guarnieri
interpretava Tião, o “fura-greve”; e no cinema, 23 anos depois, ganha o papel do líder
grevista, Otávio. O Pagador de Promessas, logo de sua estreia foi levado às telas do
cinema, em filme homônimo, ganhando o prêmio máximo no Festival de Cannes de
1963
16
. A minissérie, baseada na peça, é produzida em 1988, tendo algumas cenas
censuradas pela Rede Globo
17
.
A obra de Ariano Suassuna, influenciada pelos autos vicentinos, trará as figuras
de Chicó e João Grilo, e o julgamento de seus personagens por Jesus Cristo, o Diabo e a
Virgem Maria. Valorizando o nacional-popular e criticando algumas figuras da Igreja,
Suassuna absolverá somente a figura do pícaro João Grilo, o anti-herói, parente próximo
da figura do malandro
18
.
Com uma greve operária como pano de fundo, Eles não usam Black-tie
desenvolve seu enredo colocando em cena os moradores de uma favela e seus
problemas sócio-econômicos. O pagador de promessas, faz da figura de Zé-do-burro
um novo Cristo no calvário, agora renegado pela “Santa Madre Igreja”. Figura ingênua,
Zé será o carro-chefe da crítica sarcástica à Igreja, ao Estado e a imprensa.
Cruciais neste desenvolvimento do teatro nacional foram também casas de teatro
como o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), o Teatro de Arena e o Teatro Oficina. O
13
Respectivamente: A compadecida, dirigido por George Jonas, com roteiro de Ariano Suassuna; Os
Trapalhões no Auto da Compadecida, dirigido por Roberto Farias; O Auto da Compadecida, dirigido por
Guel Arraes, com roteiro de Adriana Falcão.
14
A minissérie foi ao ar pela Rede Globo no início de 1999 e devido ao enorme sucesso originou o filme,
já citado, de mesmo nome no ano seguinte, mantendo o elenco original.
15
Dirigido por Leon Hirszman.
16
O pagador de promessas (1962), dirigido por Anselmo Duarte, é até agora o único filme brasileiro que
recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes (França). Fato não comprovado, mas muito dito, seria de
que um dos grandes responsáveis pela vitória teria sido o cineasta François Truffaut, então jurado do
festival. Para maiores informações ver <http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,palma-e-o-premio-
maximo-dizia-anselmo-duarte,462712,0.htm> e <http://cinema.uol.com.br/resenha/o-pagador-de-
promessas-1962.jhtm>. Acesso em 3 de março de 2010.
17
O pagador de promessas (1988), dirigida por Tizuka Yamasaki, foi uma minissérie originalmente feita
em 12 capítulos para a Rede Globo. Censurada, é rodada em 8 capítulos e reprisada em mais duas
oportunidades: 1991 e 1999. A censura se referia às menções políticas e à reforma agrária. Para maiores
informações ver Revista Cult, 115, Dossiê TV Brasileira: Pensadores discutem sua qualidade, poder e
ética. Disponível em <http://revistacult.uol.com.br/novo/dossie.asp?edtCode={040CB0D3-CEE3-41F2-
9818-2C00A2B3A661}&nwsCode={023B24DD-39F2-4E2F-86A2-44C032A02A73}>. Acesso em 03 de
março de 2010.
18
Para maiores detalhes a cerca da relação entre pícaros e malandros, ver: CANDIDO, Antonio. Dialética
da malandragem. O Discurso e a Cidade. São Paulo, Duas Cidades, 1993, p. 19-54.
19
TBC, fundado em 1948, com o intuito de obter os lucros que até então a dramaturgia
não havia proporcionado, é o palco da estreia de O Pagador de promessas; o Teatro de
Arena, fundado em 1953, tem o espírito polêmico e transgressor de Augusto Boal e
Gianfrancesco Guarnieri, mantendo por vezes um caráter didático.
Os atores faziam tudo para romper as convenções do palco, para escapar ao
formalismo cênico, aproximando-se tanto quanto possível da maneira como de
fato o povo anda e fala. Se é verdade que há dois Brasis (talvez haja muito mais),
o esforço do Arena sempre se fez no sentido de descobrir para o teatro o outro
Brasil, o segundo Brasil - certamente não aquele visto por Silveira Sampaio e
Abílio Pereira, nem mesmo o de Nelson Rodrigues, que nunca ultrapassa a classe
média baixa (PRADO, 1988, p.66).
O Teatro de Arena funcionou como ponta de lança do teatro político, realizando
um notável trabalho de teorização, além de grandes revelações artísticas. o Teatro
Oficina, de cunho mais agressivo, nasce no final dos anos 60 tendo na ousadia a palavra
de ordem.
Chegando ao início dos anos 60 com uma dramaturgia consolidada e uma
produção literária de qualidade, contando com nomes como os de Clarice Lispector,
Guimarães Rosa
19
, Jorge Amado que continua a publicar, mas agora afastado do PCB,
e estreando nova fase em sua literatura, agora mais sensual
20
e com a estreia de nomes
de peso como o de Rubem Fonseca
21
e João Antônio
22
. Assim como o modo de ser e
existir ganhou mais espaço nas narrativas, com dramas intimistas, a literatura urbana,
com personagens marginalizados, também se mostrava em franco crescimento. Mas as
mudanças sociais, econômicas e políticas dos 60 atingiram a arte como um todo,
mudando os rumos daqueles otimistas anos 50 e trazendo para a literatura novos
olhares.
2.2 Romantismo revolucionário
19
Guimarães Rosa estreia com Sagarana (1946), e entre suas próximas obras estão Com o vaqueiro
Mariano (1947), o citado Grande Sertão: Veredas (1956), Primeiras estórias (1962), Tutaméia (1967),
Estas estórias (1969), - Ave, palavra (1970).
20
Jorge Amado publica até os anos 50 romances tidos como militantes da esquerda política, uma primeira
fase de sua obra. A sua segunda fase, que coincide com seu afastamento do PCB, caracteriza-se de
maneira mais geral pelas figuras femininas sensuais como Gabriela, Dona Flor, Teresa Batista e Tieta;
respectivamente Gabriela, cravo e canela (1958); Dona Flor e seus dois maridos (1966); Teresa Batista
cansada de guerra (1972) e Tieta do agreste (1977).
21
Rubem Fonseca estreia em 1963 com o livro de contos Os prisioneiros.
22
João Antônio estreia também em 1963 com o livro de contos Malaguetas, Perus e Bacanaço.
20
Chegara-se aos 60 com esperanças de um futuro melhor, mas esses sonhos foram
freados pelos acontecimentos dos próximos anos. Com o temor de uma revolução
comunista, João Goulart é destituído da presidência por um golpe civil-militar que
início à ditadura brasileira no ano de 1964. Com forte opressão política e pesados
investimentos do governo americano para o desenvolvimento econômico, o período
ditatorial influenciou diretamente a produção cultural do país, seja no conteúdo ou na
forma.
A primeira resposta ao golpe vem da música popular (que juntamente com o
teatro será um dos principais agentes na tentativa de transformação dos anos 60), com o
show Opinião. Organizado inicialmente pelos principais integrantes do Centro Popular
de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE, ou somente CPC), que eram
ligados ao PCB, é dirigido por Augusto Boal, e cantado por elementos tidos como
representativos da nossa sociedade: Kéti, representante da malandragem carioca;
João do Vale, símbolo do trabalhador rural; e Nara Leão, a musa bossa-novista. Queria-
se através dessa representação de classes atingir a vários segmentos da sociedade,
cantando e representando o povo.
Schwarz (1979, p.80) chama de “mal-estar estético e político” este acordo tácito
entre o espetáculo e o público: derrotada, o que fazia a esquerda conclamando e
ovacionando o povo, ele também derrotado pelo golpe? A resposta parece estar no
romantismo revolucionário de que estava imbuída aquela geração, que deposita
cegamente – no povo todas as suas esperanças.
Sendo depositário das esperanças de uma revolução capaz de dar fim ao regime
ditatorial, interroga-se: mas quem era o povo? Para o PCB, o povo eram todos aqueles
interessados no progresso do país, mas com uma noção apologética e
sentimentalizável
23
, visão partilhada por boa parte dos dramaturgos nacionais que
desejavam uma
aliança entre teatro e povo, (...), mas por motivos e sob formas diversas, ora
em bases poéticas, ora em bases políticas, ora para o bem do teatro, ora para
o bem do povo. (...) O povo figurava (...) nos mais diversos projetos, seja
como emissor, seja como destinatário, seja como objeto da mensagem. (...)
Buscava-se tanto articular a voz do povo (...) quanto adivinhar-lhe as
obscuras intenções (PRADO, 1988, p.100).
23
Para maiores detalhes ver Ridenti, 2000, p.66.
21
Esse conceito romântico sobre o povo será dividido também com toda uma
classe artística musical, como se percebe pela formação do show Opinião e pelo sucesso
que a Música Popular Brasileira através dos Festivais da Canção fará entre a
juventude estudantil da década de 60. Com uma temática voltada para a crítica à
ditadura e com a valorização do nacional-popular (e tendo um bom número de
militantes entre seus nomes), a MPB fará dos festivais da canção palco catártico da
classe média politizada.
O imaginário sobre o povo, aquele aclamado pela classe artística como capaz de
fazer a revolução, é analisado por Marcelo Ridenti (2000), em livro intitulado Em busca
do povo brasileiro. O autor se propõe a analisar o imaginário da intelectualidade
artística de esquerda, que se desejava popular e representativa do e para o povo,
discussão essencial para o presente trabalho, já que traz o conceito do romantismo
revolucionário, que muito diz sobre a década de 60 e 70.
No livro, a escolha do povo como protagonista desta efervescência encampada
pela elite intelectual de esquerda é vista sob a ótica daquele romantismo: romântico por
que busca no passado a solução para o futuro, e revolucionário porque modernizador.
Para Ridenti (2000, p.12), “as artes, as ciências e a política do período” são marcadas
“por uma utopia da integração do intelectual com o homem simples do povo brasileiro,
supostamente não contaminado pela modernidade capitalista, podendo dar vida a um
projeto alternativo de sociedade desenvolvida”.
As ideias de Ridenti são desenvolvidas a partir do texto de Löwy e Sayre (1995
apud RIDENTI, 2000): Revolta e melancolia, o romantismo na contramão da
modernidade. Para esses autores o romantismo é uma visão social do mundo em
diversos campos: “é, por essência, uma reação contra o modo de vida da sociedade
capitalista” (LÖWY & SAYRE, 1995, p.34 apud RIDENTI, 2000, p. 26). Esse
romantismo é divido em seis tipologias, sendo a última o chamado romantismo
revolucionário
24
, aquele no qual “a lembrança do passado serve como arma para lutar
pelo futuro” (LÖWY & SAYRE, 1995, p.44 apud RIDENTI, 2000, p.29)
25
.
24
As demais tipologias fogem a alçada do presente trabalho. Para maiores detalhes ver: Ridenti, 2000,
p.26.
25
Tipologia que vem a ser subdividida em romantismo jacobino democrático, populista, utópico-
humanista, libertário e marxistas. Para este trabalho, assim como em Ridenti (2000), mantém-se apenas a
denominação romantismo revolucionário, atentando para o fato de que nuances entre os romantismos
explicitados.
22
O seu conceito nuclear é o homem novo que nasceria do camponês explorado
não contaminado pela modernidade, ideia encontrada no imaginário de uma classe
média intelectualizada. A pergunta que nos cabe nesse momento é: o que fez esses
intelectuais se encantarem pela possibilidade de revolução? Para Ridenti (2000, p.34),
“havia exemplos vivos de povos subdesenvolvidos que se rebelavam contra as potências
mundiais, construindo pela ação as circunstâncias históricas das quais deveria brotar o
homem novo”
26
. Mas o sonho revolucionário sofreu duro golpe com o início do regime
militar e a solução se colocava então na construção de uma vanguarda realmente
revolucionária”, que “opusesse uma resistência armada”, avançando “em direção à
superação do capitalismo, na construção de um homem novo, enraizado nas tradições
populares” (RIDENTI, 2000, p.38).
O romantismo revolucionário se fazia presente então no momento de maior
repressão e crescimento econômico do país, seja em grupos de esquerda ou em
manifestações artísticas, como mencionado. No teatro, com o Arena, de caráter
didático desde seu nascimento, que nos anos 60 representa as peças Arena conta Zumbi
(1965) e Arena conta Tiradentes (1967), que buscam os heróis do passado
contextualizados no presente político-social. No Oficina, de caráter agressivo, que
pregava “o teatro político, pensando em termos racionais, com um programa definido”,
cedendo “lugar a uma espécie de revolta, que pretendia atingir o homem como
indivíduo e não como ser comunitário” (PRADO, 1988, p. 114). Na canção, os
populares festivais nacionais que movimentam a classe média universitária cantando a
revolução pelo viés do nacional-popular; o emblemático e já citado show Opinião; a
própria Tropicália, geléia geral” de influências nacionais e internacionais, um
movimento “à esquerda da esquerda”
27
; o Cinema Novo, que focava a miséria do país
etc. Importante salientar que muitos desses movimentos não se queriam românticos,
pelo contrário, alguns se apresentavam como realistas, mas esta busca de uma
autenticidade na cultura popular para construir esta nova nação a eles o caráter
romântico utópico na busca por este futuro melhor
28
.
Na literatura pós-golpe, a discussão do papel do intelectual na sociedade
brasileira é ponto de tensão, e a discussão do nacional-popular ainda se faz presente. O
simbólico ano de 67 nascer três obras uma cinematográfica e dois romances
26
Revolução cubana, “revolução cultural proletária” na China etc. Para maiores detalhes ver: Ridenti,
2000, p.34
27
Para maiores detalhes ver: Ridenti, 2000, p. 265-316.
28
Para maiores detalhes ver: Ridenti, 2000, p. 56-7.
23
fundamentais para o entendimento desta reflexão
29
. Antonio Callado lança o quase épico
Quarup: na figura do padre Nando, jovem idealista que almeja criar uma sociedade
utópica com os índios no Xingu representando aqui o homem não contaminado pela
modernidade –, o romance vai desde o abandono da batina, a prisão e a incorporação do
agora ex-padre ao movimento guerrilheiro. Carlos Heitor Cony lança Pessach- A
travessia problematizando um grande dilema daquela geração: passividade ou luta
armada? Na figura de um escritor bem-sucedido e avesso à política, narra o seu
envolvimento involuntário com a luta armada, assim como faz duras criticas a
organização da esquerda brasileira. De mesmo ano também é o filme Terra em Transe,
de Glauber Rocha, narrativa que coloca que “um homem não pode se dividir assim... A
política e a poesia são demais pra um homem...” como afirma a personagem Sara e
que tem como gran finale a cena de Paulo Martins (representante da intelectualidade na
obra) morrendo com uma metralhadora na mão. A luta armada parece ser o grande
desfecho, a problemática dessa geração e das discussões da esquerda no final dos anos
60, nos quais a guerrilha é colocada por muitos como a única solução. Isso tudo sem
esquecer que Antonio Callado, Carlos Heitor Cony e Glauber Rocha foram presos em
1965, juntos. Responde Cony, em entrevista à Folha de São Paulo (28/7/1996):
Em 67, saíram três obras sobre o tema da guerrilha, da luta armada como
horizonte de resolução da crise política. "Quarup", do Antonio Callado, "Terra em
Transe", do Glauber Rocha, e o meu livro, "Pessach". O caminho das armas era
lembrado como solução extrema. Cada um pegou o tema de uma maneira.
(...) Nós estivemos presos juntos em 65, na mesma cela, Glauber, Callado
e eu. Foi o episódio que ficou conhecido como "Oito do Glória". Ia haver uma
reunião da OEA (Organização dos Estados Americanos), durante o governo
Castello Branco, e o regulamento da entidade proibia que se realizasse essas
conferências em países não-democráticos. Quando houve o golpe de 64, a reunião
estava marcada. Um dos esforços da diplomacia do Castello foi confirmar a
reunião. Seria a bênção da organização de que o Brasil era uma democracia. Os
intelectuais então se organizaram para protestar contra aquilo. Estavam o
Glauber, o Callado, o Flávio Rangel, Thiago de Mello, Márcio Moreira Alves e
outros. Demos uma vaia e fomos presos. Ficamos presos quase um mês. O Glauber
tinha levantado a produção do "Terra em Transe" e estava escrevendo as cenas.
Ele escrevia na prisão, em papel de embrulho. O Callado tinha escrito cerca
de 90% do "Quarup", e eu começava a escrever, sem saber o que o Callado tinha
feito. O meu livro acabou tendo uma crítica muito ostensiva à esquerda e ao
Partido Comunista, coisa em que o Callado não entrou. Ele não quis fazer uma
divisão.
(...) Ah, você nem imagina como fui patrulhado, à esquerda e à direita. O
próprio livro foi sabotado de toda maneira, inclusive dentro da editora, a
Civilização Brasileira. Havia um grupo grande do partidão [PC] com interferência
na editora. O livro foi considerado uma pedra no sapato. Achava-se que não era o
momento de questionar a pureza ideológica, a pureza tática da esquerda. Ora, não
29
Retifico que não é intenção desse trabalho esgotar a lista das obras produzidas e sim fazer uso daquelas
que considero mais emblemáticas para esta discussão.
24
fiz outra coisa a não ser isso. Levei para a ficção o meu questionamento como
jornalista. Não é porque eu critico o vencedor que estou dando razão ao vencido.
Isso para mim é muito importante. Foi em 64 e é ainda hoje. [...] Mas, voltando à
época do regime militar, a coisa foi se configurando de tal forma, que a partir de
um determinado momento você só tinha duas saídas: pegar o violão ou o fuzil. Eu,
como não toco violão, toco piano, e não gosto de fuzil, porque me repugna a
violência, tive que parar mesmo. Um prenúncio disso tudo ficou nessas três obras
que citei. Não esqueça que o personagem do Jardel Filho no "Terra em Transe", o
poeta Paulo Martins, morre com uma metralhadora na mão (SILVA, 1996)
30
.
Enquanto Callado mantém a linha romântica revolucionária, na figura dos índios
do Xingu, e Cony critica a esquerda, Glauber Rocha aprofunda os embates do
intelectual e questiona a figura do povo como o grande salvador. O personagem Felício,
um dos representantes da classe na narrativa, é, segundo o personagem Paulo Martins,
“tão covarde, tão servil. E eu queria provar que ele era covarde e servil. A fraqueza.
Gente fraca! Sempre... gente fraca e com medo” (TERRA EM TRANSE, 31mim, 20s).
Na voz de Paulo, a encarnação do intelectual na obra, temos o tom do desencanto da
própria intelectualidade para com aqueles que “faltaram à revolução” e que são, na
verdade, criação do seu próprio imaginário.
Não menos importante, no mesmo ano, no teatro, estreiam as peças de Plínio
Marcos Dois perdidos numa noite suja e Navalha na carne, trazendo para os palcos o
subproletariado
31
. Tendo o social como pano de fundo, mas concentrando a ação no
indivíduo, esses dramas trazem a naturalização da exclusão social e da violência entre
estes renegados pela revolução, o chamado lúmpen-proletariado.
Para Robert Schwarz (1978, p.62), nos anos 60 “apesar da ditadura de direita,
uma relativa hegemonia cultural de esquerda no país”. O autor defende esta posição pela
efervescência cultura da esquerda intelectual – estudantes, artistas, jornalistas etc. –, que
é a responsável pela produção ideológica a época. Mas salienta:é de esquerda somente
a matéria que o grupo (...) produz para consumo próprio”. Alegando que a hegemonia
do país sempre fora burguesa e assim permanecia, que foram sempre “dominantes as
30
Entrevista completa em: CONY, Carlos H. Na prisão com Glauber e Callado. Folha de São Paulo, 28 de
julho de 1996. Disponível em: <http://biblioteca.folha.com.br/1/30/1996072802.html>. Acesso em 2 de
março de 2010.
31
Espaço dado no romance por Jorge Amado desde Capitães da Areia (1937), será dado também por
Rubem Fonseca e João Antônio com o “realismo feroz” (Candido, 2006a), aumentando ainda mais os
limites da violência. As diferenças entre o subproletariado em João Antonio, Jorge Amado, Plínio Marcos
e Rubem Fonseca fogem aos limites do trabalho, mas é importante frisar que em Jorge Amado a
consciência de classe muitas vezes aparece como uma epifânia para esses personagens ao desfecho dos
romances, enquanto nos outros autores este processo não é problematizado, talvez por não ser mais
importante. Interessante atentar também para a chamada “literatura marginal”, como Cidade de Deus
(1997), de Paulo Lins e Capão Pecado (2000), de Ferréz, representantes da literatura brasileira
contemporânea que tematizam essa classe social com suas peculiaridades no final do século XX e que
alcançam outro patamar de discussão, já que a violência ganhou contornos ainda maiores.
25
idéias, os ideais, os valores, a visão de mundo da burguesia”, Ridenti (1993, p.90)
discorda das colocações de Schwarz (1978), e chama esse momento cultural de contra-
hegemonia ou hegemonia alternativa –, já que se limitava a um grupo da sociedade,
como o crítico literário refere. Concordando com o primeiro e discordando do segundo,
Franco (1998, p.43) coloca-se em defesa de Schwarz (1978), alegando que este, ao fazer
a constatação da hegemonia, não se refere a toda vida cultural do país, somente àquela
dos anos 60 e “a um universo de, no máximo, ‘umas cinqüenta mil pessoas’”.
Tanto Schwarz (1978) quanto Franco (1998) partilham da mesma visão
referindo-se à intelectualidade de esquerda dos anos 60: colocam-na como referência do
todo. As criticas feitas a Ridenti (1993) mostram-se limitadas, visto que o autor não
critica Schwarz (1978) por uma possível visão de cultura hegemônica em toda a história
do país e sim se refere aquele momento específico. O próprio termo “relativo” utilizado
pelo crítico contraria a “hegemonia”, colocando-se o conceito da palavra como o
grande entrave da discussão. Preponderante apenas no seu universo de esquerda seria
até redundante chamá-la de hegemônica, que dentro de um limite específico da
sociedade. O que temos é uma vasta produção de qualidade da intelectualidade da
esquerda política, mas produzida e consumida por ela mesma.
Mas esta efervescência cultural que permite a discussão de (contra)hegemonia
será abruptamente interrompida com o Ato Institucional número 5, que inaugura
período de forte repressão e violência: “foram derrotados os projetos românticos
revolucionários, políticos e estéticos” (RIDENTI, 2000, p.46). Artistas e intelectuais são
presos, torturados/assassinados e/ou exilados.
A geração anterior ao AI-5 é representada aqui por intelectuais ativos na
participação política, na critica ao regime e nas primeiras criticas a esquerda (vindas da
própria), seja pela valorização do nacional-popular (e seu posterior desencanto), pela
discussão da adesão à luta armada ou no debate do papel do intelectual perdido muitas
vezes entre as armas e a poesia. Mas o desfecho daqueles anos não permitiria que o tom
se mantivesse: o AI-5 trouxe a censura ainda mais mordaz às produções culturais e à
liberdade dos indivíduos. Associado ao controle de informações pelo Estado, a
autocrítica da esquerda através da literatura que tem início no romance de Cony
aguça-se: o PCB chegara fragmentado e sem forças aos anos 60, enquanto as novas
organizações não conseguiram efetivar a revolução, exprimindo “a desmoralização, a
desorganização, e a dispersão que dominavam o movimento popular contrastando com
26
o processo de centralização e unificação por que passava o poder de Estado” (REIS
FILHO, 1990, p.51)
32
.
Para completar o quadro, o povo conceito aqui construído pelo imaginário da
esquerda – não foi à luta. Se as esperanças foram depositadas na revolução da esquerda,
no final de 68, ela parece mais distante. Desencantados com a esquerda e com esse
povo, o tom dos próximos anos será outro. Se a luta armada era vista como solução,
Antonio Callado mostrará o fracasso de muitos militantes. Se o povo era a esperança da
revolução, Érico Veríssimo trará um povo passivo e sem memória. E se ainda existiam
esperanças, Carlos Heitor Cony trará um homem castrado simbolizando aquela geração.
2.3 Desencantamento
A literatura dos anos 70 será fortemente marcada pelo AI-5 e pela reabertura
política em 79, travando batalha neste entremeio com as três forças motrizes da época: a
censura feroz, a indústria cultural e o milagre econômico. Este crescimento econômico
“milagroso” es atrelado à modernização conservadora do período, que continuará o
processo de acumulação de bens para uma minoria, o que acarretará em um
distanciamento cada vez maior entre as classes sociais.
O teatro, que antes havia sido o carro-chefe da luta da esquerda, perde forças.
Em 1972, o Arena e o Oficina fecham as portas: a censura e a perseguição são
ferrenhas, e ocorre o afastamento do público burguês e das classes médias, cooptados
pela indústria cultural, que juntamente com a TV, acabam por ganhar a disputa de
audiência.
A produção literária da década nascer e crescer os suplementos literários em
revistas e jornais, os romances experimentais, os romances-reportagem, as narrativas de
tortura e o conto, que vive grande momento na década isto nos atendo apenas a linha
da prosa, nossa linha mestra –, mas na presente discussão nos deteremos na linha mais
tradicional da produção romanesca, acompanhando a trajetória de escritores citados.
Antes de adentrarmos na discussão desta produção mais tradicional, cabe uma breve
discussão acerca dos juízos de valores dados pela critica literária à produção da época.
32
Para maiores detalhes ver: REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro: Os comunistas
no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1990.
27
Mesmo não sendo o foco principal do trabalho, esta discussão revela muito sobre a
influência da censura na produção literária dos anos 70.
Segundo Candido (2006a, p.256):
A ditadura militar – com a violência repressiva, a censura, a caça aos
inconformados certamente aguçou por contragolpe, nos intelectuais e
artistas, o sentimento de oposição, sem com isto permitir a sua manifestação
clara.
Para o autor o timbre da década é a linha experimental renovadora, nos clássicos O
caso Morel (1973) de Rubem Fonseca e Zero (1975) de Ignácio Loyola de Brandão,
onde a violência do período pode ser encontrada nas experimentações da forma e da
linguagem, com um narrador que se quer próximo de seu leitor. Aqui podemos
acrescentar Reflexos do Baile (1976), de Antonio Callado, escrito na forma de uma
sucessão de narrações e cartas, sendo muitas delas escritas em inglês.
Um dos problemas desta safra, para Flora Sussekind (1984 e 1985), é a falta de
primor no uso da linguagem em proveito da busca incansável pela realidade. Além
destes dois autores citados, Tânia Pellegrini (1996) e Renato Franco (1998) também
se dedicaram a estudos referentes à produção da década de 70 na literatura brasileira.
Para Sussekind (1984, p.43), a literatura dos anos 70 bebe diretamente da fonte
naturalista que alimentaria nossa literatura desde o século XIX, preocupada em retratar
a realidade, funcionando no “sentido de representar uma identidade para o país, de
apagar, via ficção, as divisões e dúvidas”, que seriam fundamentais para a construção de
uma identidade nacional. Pellegrini (1996, p.21) coloca-se como uma árdua
defensora, vendo esta literatura como cúmplice do leitor, que agora pode “ver”, “ouvir”,
mediado pelos “procedimentos narrativos aparentemente conservadores que parecem
manter a velha tradição dos ‘retratos do Brasil’”. As mesmas características são citadas
para fins inversos: para esta, a tradição de retratar e preocupar-se com o “ver” é vista
como positiva; enquanto para aquela, é vista como negativa, que apenas espelha: não
discute, não faz a reflexão, não trabalha a linguagem e, além de tudo, utiliza de mesma
arma do regime, a nacionalidade. Enquanto Sussekind (1984 e 1985) acusa a literatura
de maquiar a realidade e não discuti-la, Pellegrini (1996, p.182) afirma o contrário, pois
para ela a literatura ao mergulhar no passado “aponta para o futuro”.
De um lado, a vertente oposicionista, que na tentativa de ficcionalização da
realidade uma repetição, um engodo; do outro, a vertente defensora, que nesta
ficcionalização um momento de reflexão; as mesmas constatações para fins díspares.
28
Estas opiniões tão contrárias acabam por valorizar negativamente e positivamente a
produção da década: ame ou deixe-a? As criticas em Sussekind (1984)
33
são severas, o
que pode ser creditado ao trabalho feito no calor da hora; o que muda em Sussekind
(1985) uma vez que as criticas são mais serenas, chegando a afirmar que nem todas as
produções eram de qualidade” (p.63). Segundo Franco (1998, p.146-7), as criticas
de Sussekind (1984 e 1985) estão “muito mais” assentadas “em um preconceito do que
em um juízo crítico”, já que segundo ele a autora teria a concepção de um romance ideal
como aquele afastado da vida histórica e política, o que não se confirma ao lermos
Sussekind (1985), pois a autora cita obras que considera de qualidade e que fazem uso
das temáticas recorrentes da década, mas com um tratamento diferenciado da
linguagem
34
. E é a linguagem também citada por Franco (1998) que parece ser o
ponto-chave da problemática: a autora parece desejar uma literatura em que não se
tenha a descrição dos fatos e sim a sua internalização, que viria a se refletir nesta
linguagem; deseja a narração e não a descrição
35
, problema não existente na opinião de
Pellegrini (1996), que vê a descrição como positiva.
Em conto intitulado “Intestino Grosso” (FONSECA, 2010, p.150), publicado e
censurado - em 1975, que tem como enredo a entrevista de um escritor, Rubem Fonseca
alega: “Não mais para Diadorim”. Não como narrar o que não se vive e sim o
contrário: “os caras que editavam os livros” queriam que se escrevesse sobre os
negrinhos do pastoreio, os guaranis, os sertões da vida”. Mas ele “morava num edifício
de apartamento no centro da cidade e da janela” via anúncios coloridos em gás neon e
ouvia barulho de motores de automóveis” (p.139)
36
: a realidade, violenta e repressiva
dos grandes centros virá até as narrativas.
Mas a expressão “Não mais para Diadorim” pode ser também interpretada
como o fim das utopias de congregação de nossas dicotomias e de crescimento de um
33
Sussekind (1984) refere-se à dissertação de mestrado defendida pela autora em 1982 e publicada em
1984.
34
Entre elas O exterminador, de Rubem Fonseca, onde o tratamento dado a tortura seria irônico;
Garopaba, mon amour, de Caio Fernando Abreu, com a mistura de tortura e delírio; Confissões de Ralfo,
de Sérgio Sant’anna, onde a tortura seria retratada com comicidade e ironia; Em liberdade, de Silviano
Santiago, onde ao invés de termos um relato de prisão bastante comum a época –, temos um relato de
liberdade (SUSSEKIND, 1985, p.42-88)
35
O embate narração x descrição acompanha a crítica literária desde muito tempo, entre textos
indispensáveis ver LUKACS, Georg. Narrar ou descrever? Contribuição para uma discussão sobre o
naturalismo e o formalismo. In: Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
36
Interessante contrastar as alegações do personagem de Rubem Fonseca em “Intestino Grosso” com as
alegações de Gil em Bar Don Juan, de Antonio Callado. Diz Gil sobre a temática escolhida para o seu
livro: “Eu estou com um livro inteiro querendo sair de dentro de mim. Não tem mais nada da cidade, de
revolução, de comunismo, de possessos. Um livro atravessado de rios, de raízes, de bois e boiadeiros”
(CALLADO, 1974, p. 112). Antonio Callado publica seu romance em 71 e Rubem Fonseca em 75.
29
país novo e democrático: se Grande Sertão: Veredas superou a dialética do localismo
versus cosmopolitismo, um mundo onde Diadorim não tem mais espaço irá representar
não mais a suspensão temporária dos planos dos anos 50, mas a sua própria distopia. As
duas leituras são caras para a nossa discussão e contribuem um pouco para o debate
acirrado sobre esta safra da produção literária: a realidade violenta de seu tempo irá
impregnar a produção artística, assim como o desencantamento em face deste novo país
e a busca por uma nova forma/projeto.
Nomes conhecidos de resistência à ditadura, como Antonio Callado e Carlos
Heitor Cony, mantêm-se ativos mudando o tom do discurso: acusa-se a crise do país e
aguça-se a critica à própria esquerda. E outro nome importante, e surpreendente, alia-se
à nossa discussão: Érico Veríssimo, visto até então por muitos como o escritor da
pequena burguesia.
Callado publica Bar Don Juan (1971), romance sobre a esquerda festiva e
fracassada. Segundo o personagem Gil, o escritor: “Eu não quero escrever um livro
sobre pessoas que se imaginaram feitas para produzir história e viveram frustradas num
país pré-histórico” (CALLADO, 1974, p. 123)
37
. Em linhas gerais, trata-se da história
de um grupo de esquerda da zona sul do Rio de Janeiro que tem como ponto de
encontro o Bar Don Juan. O grupo tenta armar um esquema revolucionário que o integre
as forças bolivianas de Che Guevara (1966-7). O desfecho, no velório de um
companheiro, mesura o fracasso e a dor:
A bandeira da guerrilha, pensou Laurinha, a flâmula dos trágicos incompetentes
de que falava Gil, dos revolucionários cujo ímpeto derrubava as Adelaides e
transformava os Fredericos no trapo que Laurinha estreitou a seguir contra o
peito, um velhinho de olhos mortiços e assustados, grudados à mulher (p. 175).
Romance considerado frágil para a imprensa da época, foi lançado no mesmo
ano de um sucesso de criticas e vendas: Incidente em Antares
38
, de Érico Veríssimo,
espécie de continuação às avessas da saga de O tempo e o vento
39
. Último romance de
Érico, coloca-se como a sua mais madura e debochada obra. Visto até então como
37
Todas as citações ao romance referem-se a Callado (1974).
38
Incidente em Antares foi também adaptado para a televisão em formato de minissérie em 1994, sendo
transmitida pela Rede Globo.
39
Enquanto em O tempo e o Vento percebe-se a exaltação da família Terra Cambará, na figura de
heroicos gaúchos e gaúchas, em Incidente em Antares, forçando a nota, pode-se alegar a decadência e
corrupção da elite de Santa Fé, agora em Antares, nas famílias Campolargo e Vacariano. Em suma, o
relato da decadência da outrora heróica oligarquia gaúcha.
30
escritor das classes médias, é retratado por sua própria personagem, Quitéria
Campolargo, da seguinte forma:
- Já leu Jorge Amado?
-Por alto. É bandalho e comunista.
- E o nosso Érico Veríssimo?
- Nosso? Pode ser seu, mas meu não é. Li um romance dele que fala a
respeito do Rio Grande de antigamente. O Zózimo, meu falecido marido,
costumava dizer que por esse livro se via que o autor não conhece direito a
vida campeira, é “bicho de cidade”. Há uns anos o Veríssimo andou por aqui,
a convite dos estudantes, e fez uma conferência no teatro. Fui, porque o
Zózimo insistiu. Não gostei, mas podia ter sido pior. Quem a cara desse
homem não é capaz de imaginar as sujeiras e despautérios que ele bota nos
livros dele.
-A senhora diria que ele também é comunista?
D. Quitéria, que mastigava uma broinha de milho e mais que nunca parecia
um pequinês – ficou pensativa por um instante.
- O Prof. Libindo costumava dizer que, em matéria de política, o Erico
Veríssimo é um inocente útil (VERÍSSIMO, 1994, p.178).
O romance narra a história de Antares, na fronteira do Brasil com a Argentina,
marcada pelos clãs Vacariano e Campolargo, que tem seu sossego quebrado quando sete
mortos ressuscitam reivindicando seu enterro, impedido por uma greve de coveiros e
demais trabalhadores. Dominada por poucos e com a miséria de muitos, Antares, uma
cidade sem liberdade, espelha sua pátria mãe, o Brasil, como simbolizado no último
parágrafo da narrativa:
- O que está escrito ali, pai?
- Nada. Vamos andando, que já estamos atrasados...
O pequeno, entretanto, para mostrar aos circunstantes que sabia ler,
olhou para a palavra de piche e começou a soletrá-la em voz muito alta: Li-
ber...”
- Cala a boca, bobalhão! exclamou o pai, quase em pânico. E,
puxando com força a mão do filho, levou-o, quase de arrasto, rua abaixo
(VERÍSSIMO, 1994, p. 484-5)
40
.
Cony publica Pilatos em 1974, saga mórbida e niilista no submundo
paupérrimo carioca. O narrador, castrado, percorre as ruas do Rio de Janeiro com seu
pênis boiando em um vidro de compotas. Um retrato da desilusão do autor? Nas
palavras do próprio, em entrevista à Folha de São Paulo (2/3/2001):
Ele perdeu tudo e não quis se separar do vidro com o pênis dentro
para ter uma referência do que poderia ter sido. Isso tem a ver com a situação
do Brasil. O livro foi escrito em 72, logo depois dos acontecimentos políticos
40
Ao que se sabe Érico Veríssimo e Jorge Amado não passavam pelos censores, e só isso explicaria a sua
não censura: “Jorge (Amado) e eu declaramos que preferiríamos abandonar a literatura a ter que submeter
nossos originais previamente à censura” (VERÍSSIMO apud PELLEGRINI, 1996, p.111).
31
do final dos 60. Havia um clima de questionamento do que seria a condição
humana. E eu achei que um homem sem o pênis seria talvez símbolo do
homem da época.
(...)
as pessoas esperavam um livro político. E este, em certos aspectos,
poderia ser visto como um livro covarde, eu não queria me comprometer.
Mas não era isso, era a consciência da inutilidade da minha luta. Não da luta
em si, mas da minha luta (CONY, 2001)
41
.
Em 1975, Rubem Fonseca publica Feliz Ano Novo, trazendo a violência da
natureza humana. Censurado pelo atentado à moral, é relançado após a abertura
política. Também na década de 70, Raduan Nassar estreia com Lavoura Arcaica,
romance que se a princípio nada tem de militante, critica a sua maneira a opressão e a
falta de liberdade. Clarice Lispector publica A Hora da Estrela (1977), trazendo pela
primeira vez em sua obra uma protagonista nordestina, pobre e limitada, que divide a
cena com um narrador intelectualizado e suas angústias a cerca da construção de sua
protagonista e de sua narrativa. Fica-se com o questionamento de Araújo (2008, p.89):
“Qual direito tem o narrador intelectualizado e pequeno-burguês de enunciar a vida da
patética, miserável e razoavelmente estúpida de Macabéa?”. Esta indagação vai ao
encontro do que Marshall Berman chamou de cisão fáustica (inspirada no Fausto, herói
de Goethe), culpado por sua condição superior, e que Ridenti (2000, p. 174-5)
menciona:
O personagem é existencialmente dilacerado pela consciência de ser
portador de privilégios de uma cultura de vanguarda numa sociedade
atrasada, cindido pela tensão entre a modernidade e o subdesenvolvimento.
Surgiria, assim, uma espécie de “identidade subdesenvolvida”, típica do
romantismo (Berman, 1986: p. 44). Os dilemas fáusticos dos intelectuais
também aparecem, especialmente no pós-1964, em obras de vários campos
artísticos, por exemplo, em filmes como O desafio, de Paulo César Saraceni,
e Terra em transe, de Glauber Rocha; em romances como Pessach, a
travessia, de Cony, e Quarup, de Callado.
E ao final da década, surgem as primeiras narrativas de tortura: Em câmera lenta
(1977), de Renato Tapajós e O que é isso companheiro? (1979), de Fernando Gabeira,
dois exemplos de narrativas criticas à tortura e à participação dos próprios autores na
luta armada, questionando muitas vezes sobre as suas opções políticas de esquerda.
Geração marcada pelo AI-5 e pela lenta abertura política, ficcionaliza o
desencanto da esquerda que não conseguiu nem com o povo, nem com a luta armada,
41
CONY, Carlos Heitor. Cony volta a se render a “Pilatos”. São Paulo: 2001. Folha de São Paulo, 10 de
março de 2001. Entrevista concedida à Sylvia Colombo. Disponível em
<http://biblioteca.folha.com.br/1/30/2001031001.html>. Acesso em 26 de março de 2010.
32
modificar a situação do país. Os cinemas esvaziaram e a TV se consolidou, assim como
o mercado editorial. A literatura pasteurizada, como a obra de Sidney Sheldon, invadiu
as livrarias. Enquanto isso o povo desapareceu gradualmente das narrativas, a direita é
colocada como vilã, mas a esquerda não é santa. Os torturados narram suas histórias e
as esperanças não parecem muitas. Desencantados, espera-se na democracia uma
(H)história melhor para contar.
33
3 O NOSSO FIM DE SÉCULO: DEMOCRACIA, DESAGREGAÇÃO
E FANTASMAS
3.1 Democracia e desagregação
Com a lenta e gradual abertura política no final dos anos 70, chegamos aos anos
80 com a consolidação da indústria e do mercado cultural. Desenvolvimento que estava
atrelado ao modo específico de nossos processos econômicos e sociais, com a
coexistência de elementos arcaicos e modernos, e com uma ditadura que insistia em se
travestir de democracia.
Para Pellegrini (1999), “a necessidade de narrar a qualquer custo, de se fazer
ouvir, de comunicar as sensações mais íntimas ou apenas relatar vivências, não
importando a forma, é um dos traços marcantes da ficção brasileira contemporânea”
(p.68-9)
42
. O processo que teve início com o regime militar, com o esvaziamento dos
cinemas, o surgimento das rádios FM e da TV controlada pelos militares e por grupos
privados -, a expansão do mercado fonográfico, o crescimento do mercado editorial, a
definitiva profissionalização do escritor e a introdução dos computadores cria uma nova
conjuntura política e econômica: é expressão de um novo tipo de articulação com o
mercado mundial”, e a “paulatina introdução do Brasil no circuito do capitalismo
tardio” (p.176)
43
.
Com a restauração da democracia, a literatura de cunho mais político e critico é
abandonada, ao menos no que diz respeito ao macrocosmo. Agora as trajetórias são
mais individuais, menos utópicas, mais associadas ao mercado editorial e o tema é
geralmente urbano. Para eles, os narradores, “só lhe apraz a solidão ou a companhia de
42
Nesse seu estudo, o “contemporâneo” estende-se até o início dos anos 90. A pesquisadora faz a escolha
do corpus de sua tese na lista de “mais vendidos”, encontradas em revistas, baseando-se no conceito de
que a produção cultural organiza-se pelo mercado. Para um trabalho de mesma envergadura hoje, a
missão seria injusta, visto que a indústria cultural parece dominar a vendagem de livros, e é difícil
encontrarmos alguma obra realmente literária em listagens de “mais vendidos” de revistas.
43
Jamenson (2006), apoiado em Ernest Mandel, autor de O capitalismo tardio que embasa sua tese na
ideia de que essa forma de capitalismo é “a mais pura forma de capital que jamais existiu, uma prodigiosa
expansão do capital que atinge áreas até então fora do mercado” considera que este capitalismo tardio
“elimina os enclaves de organização pré-capitalista que ele até agora tinha tolerado e explorado de modo
tributário” (p.61). Para maiores detalhes ver: JAMENSON, Frederic. A lógica cultural do capitalismo
tardio. In: Pós-modernismo: A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2006.
34
seus iguais” (PELLEGRINI, 1999, p.78). Assim como os romances concentram-se nos
microcosmos, as discussões teóricas também os contemplam, com as discussões sobre
as chamadas minorias afrodescendentes, homossexuais, mulheres etc. Mas muitas
vezes os estudos são encasteladores e esvaziadores da narrativa, como no sofrível rótulo
literatura gay
44
.
Narrativas intimistas e eus-fragmentados dão o tom do que se produzia à época,
de modo que a vaga romântica de protagonismo do povo desaparece, e outros temas
menos coletivos ganham espaço. João Gilberto Noll faz sua estreia, com o premiado O
cego e a dançarina (1980); Caio Fernando Abreu lança Morangos Mofados (1982),
livro de contos recheado de referências estrangeiras, misturando pop e contracultura.
Rubem Fonseca e Jorge Amado continuam a publicar, e Milton Hatoum estreia com
Relato de um certo Oriente (1989). A literatura dos anos 80 parece não contar com um
grande nome e um processo consolidado de produção, o que poderia explicar-se pela
adaptação aos novos processos econômicos e políticos que floresciam naqueles anos.
Percebe-se já nos anos 80 o início da paulatina introdução da figura da cidade,
que ganha ares de personagem, ao estilo benjaminiano
45
. Cidades que vão ganhar forças
nas obras de João Gilberto Noll, Chico Buarque, Bernardo de Carvalho, Antônio Torres,
no próprio Hatoum, entre tantos, já no princípio dos noventa
46
.
Essas questões estão envolvidas no fenômeno de aparente aceleração
global, no qual o Brasil se descobre envolvido assim que termina a ditadura,
fenômeno esse impulsionado pela abundância de informações, por uma nova
relação com o tempo e o espaço, com a multiplicação de estímulos e
referências reais, imaginárias e simbólicas, com a proliferação de imagens e
simulacros, com uma espécie de flutuação de percepções e sensibilidades,
que geram novas “estruturas de sentimento” (PELLEGRINI, 2008, p.8).
44
Sobre o uso do termo “sofrível”, valho-me da frase de Vargas Llosa: “Sou um tanto alérgico a essas
explicações que dividem homens e mulheres em categorias estanques com virtudes e fraquezas coletivas.”
Ver: LLOSA, M.V. É possível pensar o mundo moderno sem o romance? In MORETTI, Franco. O
romance, 1: A cultura do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
45
Para maiores detalhes ver: BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo.
São Paulo: Brasiliense, 1989. Para estudos mais recentes ver: JOHSON, Steven. Complexidade urbana e
enredo romanesco. In: MORETTI, Franco. O romance, 1: A cultura do romance. São Paulo: Cosac Naify,
2009; RESENDE, Beatriz. A cidade, a literatura e a tragédia. In: Contemporâneos. Expressões da
literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra : Biblioteca Nacional, 2008.
46
Para maiores detalhes a cerca da produção literária pós anos 80 ver: DELTRY, Giovana; LEMOS,
Masé; CHIARELLI, Stefania. (orgs). Alguma prosa: ensaios sobre literatura brasileira contemporânea.
Rio de Janeiro: 7Letras,2007; e o citado PELLEGRINI, Tânia. Despropósitos: ensaios de ficção
brasileira contemporânea. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2008.
35
A abertura política, a instauração do regime democrático em 1985 e a descoberta
da AIDS dão o panorama histórico do período. Se as gerações anteriores participaram
da crítica a um sistema político e econômico, esta nova geração se mais próxima dos
seus dramas pessoais. Continua o processo começado na década de 70 de imersão na
indústria cultural, agora na democracia. A “geração Coca-cola”
47
, “filha da revolução”,
burguesa “sem religião”, é “o futuro da nação”.
Os anos 90 vêm na mesma linha: a economia, que já fora até milagrosa, continua
a concentrar grandes quantias nas mãos de poucos, enquanto a miséria de muitos
cresce vertiginosa e vergonhosamente, seguindo a receita dos anos 70, na espera de um
bolo que cresça o suficiente para ser dividido
48
. Segundo Ridenti (2000, p.355), estes
anos “foram” de “culminância do processo, lento e progressivo de esvaziamento das
utopias revolucionárias de artistas e intelectuais, que se vinham desgastando desde os
anos 70”. O que não significa que as utopias tenham desaparecido: o nascimento do
Partido dos Trabalhados (PT) é um dos sopros do romantismo revolucionário, mas que
sofrerá sua primeira derrota nas eleições de 1989: Fernando Collor de Mello
apoiado por partidos que anteriormente haviam apoiado a ditadura militar –,
candidato do então PRN, derrota o candidato petista Luis Inácio Lula da Silva. E o
vencedor acaba por mostrar que governos democráticos podem não significar melhorias
sócio-econômicas.
O nacional desenvolvimentismo não foi nem desenvolvimentista, nem nacional.
A indústria e o capital são estrangeiros, enquanto o acumulo nacional é pífio. A
“falência do desenvolvimentismo, o qual havia resolvido a sociedade de alto a baixo,
abre um período específico, essencialmente moderno, cuja dinâmica é a desagregação”
(SCHWARZ, 1999, p.160). Desagregada, engolida pelos grandes da economia,
fetichizada no consumo de mercadorias, chega-se ao final do século com a pertinente
pergunta de Schwarz (1999, p.162):
47
“Geração Coca-cola” é uma música da banda Legião Urbana gravada em 1985 em seu álbum
homônimo de estreia: “Quando nascemos fomos programados/A receber o que vocês/Nos empurraram
com os enlatados/Dos U.S.A., de nove as seis./Desde pequenos nós comemos lixo/Comercial e
industrial/Mas agora chegou nossa vez/Vamos cuspir de volta o /lixo em cima de vocês/Somos os filhos
da revolução/Somos burgueses sem religião/Somos o futuro da nação/Geração Coca-Cola/Depois de 20
anos na escola/Não é difícil aprender/Todas as manhas do seu jogo sujo/Não é assim que tem que
ser/Vamos fazer nosso dever de casa/E então vocês vão ver/Suas crianças derrubando reis/Fazer
comédia no cinema com as suas leis.” Disponível em <http://letras.terra.com.br/legiao-urbana/45051/>.
Acesso em 8 de setembro de 2010.
48
Metáfora usada na época pelo então ministro da fazenda Delfim Neto. Disponível em
<http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u419.jhtm> Acesso em 17 de abril de 2010.
36
o que é, o que significa uma cultura nacional que não articule nenhum
projeto coletivo de vida material, e que tenha passado a flutuar
publicitariamente no mercado por sua vez, agora como casca vistosa, como
um estilo de vida simpático a consumir entre outros?
3.2 Dulce Veiga e Castana Beatriz
Caio Fernando Abreu e Chico Buarque de Hollanda, nascidos respectivamente
nos anos de 1948 e 1944, participaram deste processo: viram a instauração do regime
militar, a democratização do país e o constante aumento das desigualdades sociais. E o
questionamento aqui proposto é da seguinte ordem: originários de uma geração que
viveu a ditadura
49
, quais os ecos dos acontecimentos dos 60/70 em suas produções?
consagrados nos anos noventa – seja pela literatura ou pela música quais as marcas na
literatura de ambos que remetem aos idos anos e seus conturbados acontecimentos.
Onde andará Dulce Veiga (1990), de Caio Fernando Abreu e Benjamim (1995),
de Chico Buarque, são romances marcados pelo reencontro com o passado, que vem
trazer a tona culpas até então esquecidas na memória dos protagonistas. Em Onde
andará Dulce Veiga?, o narrador é perseguido pela memória de Dulce Veiga,
desaparecida no início dos anos 70. E Benjamim personagem central da trama de
Chico Buarque - é atormentado pelas lembranças de Castana Beatriz (sua ex-namorada),
fuzilada pelos militares, a mesma época.
Esquecidas até então em meio ao cotidiano medíocre e fracassado dos
protagonistas, as lembranças destas mulheres são trazidas ao presente pelo aparecimento
de suas filhas, que ressuscitarão estes fantasmas adormecidos. Atordoados com suas
memórias e intrigados seja por informações sobre paradeiros ou filiação vão
amargar, em seu périplo perturbado e perturbador, a busca de suas próprias culpas. E
quem a medida do caos é esta nova geração, portadora indireta destas memórias, que
nasceu no país ditatorial e cresceu no país democrático e desigual.
49
Gostaria de frisar que a participação política de ambos nos movimentos de esquerda não entra na
discussão a que me proponho. Mas é bom lembrar que Caio Fernando Abreu chegou a ser perseguido
pelo DOPS, escondendo-se na fazenda de Hilda Hist. Ver: Dip, 2009, p. 126-7; assim como Chico
Buarque chegou a viver em exílio na Itália entre 69-70. Ver: Barros e Silva, 2004, p. 61-5.
37
renomado como contista, Caio F.
50
se aventura pelo romance após 23 anos de
hiato
51
, e se a história tem seus problemas estruturais e narrativos é rica para os estudos
da produção romanesca dos noventa, principalmente no que concerne ao enredo e a
produção do próprio autor, consagrado pelas obras intimistas. Quando publica seu
segundo romance - Onde andará Dulce Veiga - relata que sente como se fosse” seu
“primeiro livro, no sentido de que” se desembaraçoudo umbigo” e chegou “mais perto
da ficção, do Brasil, do humano alheio, não apenas” seu (ABREU, 2007, p.250)
52
.
Segundo Jaime Ginzburg
Caio Fernando Abreu ainda está por ser compreendido em um de seus lados
mais fortes, a política. Escritor de resistência não sem contradições é
responsável por alguns dos principais momentos de lucidez crítica com
relação à opressão do regime militar na ficção brasileira (GINZBURG apud
DIP, 2009, p.137).
O enredo é simples: jornalista desempregado consegue um emprego em jornal,
onde se depara com a filha da famosa cantora desaparecida, Dulce Veiga, dando início à
investigação sobre seu paradeiro. Somado ao toque de romance policial, o cunho
autobiográfico também pode ser acrescentado, visto que as semelhanças entre Caio F. e
o narrador são perceptíveis
53
, como se pode atestar através da leitura da obra do autor,
principalmente de suas cartas
54
. As semelhanças entre protagonista e autor se dão pela
sexualidade, explicitada de forma confusa: não sabemos se a casa onde mora é de uma
amiga ou de uma ex-mulher; assim como a menção ao personagem Pedro um amigo?
um namorado? citado algumas vezes
55
, fica incógnita na narrativa. Caio Fernando
Abreu, conhecido como homossexual assumido, revela em muitas cartas os impasses de
sua sexualidade:Das minhas heterossexualidades, dois filhos mortos, não ficou nada.
Das minhas homossexualidades, esse pânico lento e uma solidão medonha” (ABREU
apud DIP, 2009, p.74)
56
. Além disso, o narrador também está amedrontado com uma
50
Permito-me abreviar, por vezes, o nome de Caio Fernando Abreu para Caio F., a assinatura do autor em
suas cartas.
51
Seu primeiro romance, Limite Branco, fora escrito em 1967 e publicado em 1970.
52
Todas as citações a obra referem-se a Abreu (2007).
53
Em 2007, o filme Onde andará Dulce Veiga?, baseado no romance, traz Caio Fernando Abreu no papel
do narrador.
54
Para maiores detalhes ver: ABREU, Caio F. Cartas. Ítalo Moriconi (org.). Rio de Janeiro: Aeroplano,
2002; DIP, Paula. Para sempre teu, Caio F. Rio de Janeiro: Record, 2009.
55
“lembrei então de Pedro” (p.27); “antes de dormir, pela terceira vez naquele dia, entre farelos, pensei
outra vez em Pedro” (p.49). Provável erro de revisão, a frase poderia vir a ser corrigida: “pela segunda
vez naquele dia”.
56
“Caio gostaria de ter resolvido de forma menos atormentada a sua sexualidade. Em casa, ele penou.
Revelou a alguns amigos que, quando o pai leu seu primeiro texto que fazia menção à homossexualidade,
jogou o livro no fogo e o queimou, inconformado. Caio namorou meninas e meninos, brigou, esperneou,
38
possível doença que no romance, não se resolve –, o que nos remete ao drama pessoal
do autor, explicitado em crônicas e cartas, sobre a dúvida de ser ou não portador do
vírus HIV, fato que veio a se confirmar quatro anos após a publicação do romance
57
:
Desde 1984, carrego a suspeita de estar contaminado. Meu psicanalista dizia:
‘Você precisa fazer o teste, porque mentalmente está infectado’. De minha
parte, achava que, se fizesse o exame e desse positivo, baixaria no hospital e
morreria em três dias. Lembro de um verão em 1983, em São Paulo, em que
estávamos sempre juntos, o Luis Roberto Galizia (dramaturgo do grupo
Ornitorrinco), o Paulo Yutuka (ator de teatro), Alexx Vallauri (artista plástico
que transformou o grafitti em obra de arte) e Orlando Bernardes, um amigo
pessoal, e eu. Um ano depois, os quatro tinham morrido por problemas
decorrentes da aids (sic) (ABREU apud DIP, 2009, p. 265-6).
Uma das marcas da narrativa são, também, as remissões a cenas clássicas de
cinema, como na célebre frase “siga aquele carro” ou em expressões comparando a cena
romanesca às cinematográficas: “como se em algum canto houvesse sempre uma
câmera cinematográfica à minha espera” (p.15); Sem juiz nem platéia, nem close nem
zoom” (p.15); “Achei que ia me esbofetear, feito num filme” (p.35) etc.
58
A trama se passa no final dos anos 80/início dos 90, com um narrador em
pessoa, com todas as desconfianças que esta narrativa pode vir a gerar para o leitor.
Bastante perturbado e confuso, o narrador sem nome consegue um novo emprego e
tem como primeiro trabalho a entrevista com a banda de rock Vaginas Dentadas, que
está regravando um sucesso de Dulce Veiga. Apagada em sua memória, a figura da
cantora voltará de forma avassaladora para a vida do jornalista:
Então lembrei, num relâmpago: Dulce Veiga.
Dulce, Dulce Veiga também tinha gravado a mesma música. dez, quinze,
vinte, quantos anos? O arrepio desceu da nuca para os meus braços, estranho
feito uma premonição (p. 33).
Premonições e arrepios que se repetem ao longo do romance, deixando nós,
leitores, um pouco surpresos com sua reação perante estas lembranças do passado, até
amou, fugiu do amor, se machucou, adoeceu e só começou a desatar esse no fim da vida, quando
voltou ao Menino Deus [bairro porto-alegrense onde morava sua família] e se entendeu silenciosamente
com o pai (...). (DIP, 2009, p. 363).
57
A revelação de Caio F. para seus leitores se pela série de crônicas intituladas “Primeira carta para
além do muro”, “Segunda carta para além do muro”, “Última carta para além do muro”, todas publicadas
no jornal “O Estado de São Paulo” em 21.8.1994, 04.9.1994 e 18.9.1994, respectivamente. Em
24.12.1995, publica “Mais uma carta para além do muro”, falando do seu encontro com a morte. Viria a
falecer em fevereiro do ano seguinte. Crônicas disponíveis em: ABREU, Caio F. Pequenas Epifanias. Rio
de Janeiro: Agir, 2006.
58
Logo após a publicação do romance, Caio Fernando Abreu, em carta, entra em contato com Guilherme
de Almeida Prado – futuro diretor do filme homônimo- insistindo para que o fizesse. Ver: Abreu, 2007, p.
251-2.
39
então nebuloso. Para somar-se ao seu espanto, descobre que Márcia F.
59
, a vocalista
junkie da banda, é filha de Dulce, assim como tem a revelação do desaparecimento da
cantora:
-Claro que conheço. Dulce Veiga era minha mãe.
- Como, era? Ela morreu?
Profundamente, Márcia estudava lá dentro dos meus olhos. Baixou a cabeça:
-Não, ela não morreu. Ela desapareceu um dia, de repente, faz muitos anos.
-Como, desapareceu? Ninguém some assim, sem mais.
Márcia mordeu os lábios com força, por muito tempo. Os dentes ficaram
manchados de batom roxo. Parecia irritada.
-Desapareceu, porra - e estendeu uma das mãos fechadas até muito perto do
meu rosto. Achei que ia me esbofetear, feito filme. Mas abriu a mão no ar, na
ponta do meu nariz, estalando os lábios: Puf! Foi assim, sumiu, bem assim.
Eu era quase um bebê. Foi há vinte anos (p.35).
Lembrança inexistente até o encontro com Márcia F., Dulce Veiga vem para
tirar o sossego e a apatia da vida de nosso protagonista. Atormentado com a ideia deste
desaparecimento passa a ter miragens/alucinações com a cantora. Ao todo são cinco
episódios ao longo do romance: “Numa das esquinas em frente ao parque, no meio da
ventania, embaixo da quaresmeira coberta de flores roxas, estava parada Dulce Veiga”
(p.59); “Dulce Veiga continuava lá. Do outro lado, à minha espera. O sinal fechado,
sem se importar com os carros, as freadas e os gritos, comecei a atravessar em direção a
ela. Quando me viu, e tive certeza que me via, todos viam aquele único homem
atordoado que era eu no meio do cruzamento, Dulce voltou-se e começou a andar
rapidamente” (p.72); “De repente eu a vi outra vez, do outro lado da rua. Foi muito
rápido. Dulce Veiga estava parada na porta da igreja, com um vestido leve, de verão”
(p.110); “Mesmo imundo, o nariz corroído pela sarna, o rosto ainda guardava restos da
antiga beleza. Eu gritei: -Dulce, espere por mim, Dulce Veiga” (p.152); E sobre as
pedras do Arpoador, toda vestida de branco, os cabelos louros e o vestido esvoaçando
na brisa da tardezinha, recortada contra a noite que vinha chegando do outro lado do
mar, estava parada Dulce Veiga” (p.200).
As perturbações do narrador após a revelação do desaparecimento de Dulce
causam estranheza ao leitor até então mal informado da ligação entre estes personagens.
59
Márcia F. é uma clara alusão a Caio F., a assinatura de Caio Fernando Abreu em suas cartas, que alude
a personagem Christiane F., do livro e filme homônimo alemão de 1981. VER: ABREU, Caio F. Cartas.
Ítalo Moriconi (org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. Ou ainda: “ele assina Caio F., abreviando o
Fernando numa brincadeira irônica que tinha a cara dele: dizia ser primo de Christiane, a garota alemã
que escreveu o livro Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída, abandonada, o mais novo sucesso
editorial na Europa em que ela revela sua experiência adolescente de se prostituir nas ruas de Berlim para
comprar heroína” (DIP, 2009, p. 203).
40
Um flashback dos anos 60 virá a mostrar que a cantora e o narrador estiveram juntos,
por duas vezes, e “havia mais alguém no apartamento de Dulce, aquele dia, no outro,
não sei” (p.59). Terceiro personagem crucial, este mais alguém, meio esquecido e meio
lembrado, será peça chave para um dos indícios de uma possível condenação de Dulce
Veiga, que desaparecera no dia da estreia do show “Docemente Dulce”, com “a casa
cheia, críticos na platéia, amigos e admiradores”, e após horas de espera, cortinas
fechadas. Com a primeira vaia, o diretor e marido de Dulce, Alberto Veiga, aparece
“mentindo que Dulce sofrera um acidente”. Mas “no dia seguinte, o desmentido e o
cancelamento do show: Dulce Veiga desaparecera completamente” (p.64).
Desaparecida ou fugitiva? Viva ou morta? Questionamentos que dão início às
investigações do narrador, com o apoio do jornal para o qual trabalha. Encontra-se com
Pepito, ex-músico da cantora:
-Não quero lembrar. Faz mal lembrar das coisas que se foram e não
voltam. No começo fiquei com raiva, achei que ela não pensou em mais
ninguém quando desapareceu. Só nela mesma. Mas a gente nunca pode julgar
o que acontece dentro dos outros. Ela queria outra coisa.
-Que coisa?
- Nem ela sabia. Repetia isso o dia inteiro: “Quero outra coisa, eu
quero encontrar outra coisa”. Durante os ensaios, quando parava de cantar,
entre as músicas. E estava tudo maravilhoso, seria um grande show. O
melhor do ano. Agora já passou (p. 75).
Evolução espiritual, desaparecimento, fuga? Se com a entrada rápida em cena de
Pepito imaginamos que Dulce foi “encontrar outra coisa”, o personagem Rafic nos
conduz para outras leituras. Dono do jornal onde trabalha o narrador, traficante, ex-
amante de Dulce Veiga e pai de Márcia F., é também o patrocinador das investigações a
respeito da cantora. Chamado para uma conversa a residência de seu chefe, o narrador
divide a sua primeira observação: “Num painel ao lado das bebidas havia várias
primeiras páginas em pôsteres. Numa delas, li: ‘Comunismo finalmente extinto do
país’” (p.118). E continua:
Deu um gole no sque, cravou os olhos em mim. Eu estava ocupado
em ler outra manchete do jornal: “Militares moralizam o país (...)
- Ela: encontrar Dulce Veiga. Só isso que falta. (...)
-Mas ela pode estar morta num terreno baldio, numa beira de estrada
completei -, sem lápide nem flores. Tudo era meio vertiginoso. E cheirava
pior que eu.
-Estou certo que não. Verdade que ela teve uns envolvimentos
estranhos por aí. Na época da bendita revolução. Guerrilheiros, subversivos,
gente dessa laia. Coisa de artista, você sabe. Infelizmente, pelamordedeus.
41
Por isso mesmo deve ter fugido. E nós vamos encontra - lá, custe o que custar
(p.119-20).
Anticomunista declarado, Rafic prováveis sinais da motivação da uma
possível fuga/desaparecimento de Dulce: o envolvimento com subversivos”. Quem
reafirma a relação da cantora com a esquerda é sua amiga Layla:
Dulce deixou Alberto para viver com Saul, que estava metido em mil
complicações políticas. Você sabe, naquele tempo a barra era pesada. Não é
como hoje, comunista virou trouxa. Saul foi preso, torturado, e quando saiu
da prisão, meio louco, Dulce tinha desaparecido e Alberto mandara Márcia
para bem longe. Aí ele foi parar num hospício, durante anos (p. 195).
para Alberto Veiga, ex-marido da cantora e agora (?) homossexual, “nem
naquele tempo de censura, perseguições & tortura, (...) Dulce se envolvera com
comunistas” (p.151). Diretor do espetáculo “Docemente Dulce”, Alberto, que fora
traído e abandonado pela esposa, se mostra muito mais interessado em propagandear a
sua nova peça do que em encontrar a ex-mulher.
Em quem acreditar? Pepito, Rafic, Layla ou Alberto? Nenhum dos personagens
mostra-se confiável ao narrador. Mas este possível envolvimento de Dulce com a
esquerda leva à desconfiança de sua prisão ou assassinato pelos militares. Mas quem era
Saul, o responsável por esse possível envolvimento? Se até a metade do romance nosso
narrador não consegue lembrar-se daquela terceira pessoa presente ao apartamento nos
anos 60, o reencontro com um Saul louco, viciado em heroína e travestido de Dulce
Veiga, aguça a sua memória, fazendo com que ele relembre aquele fatídico dia: “O
homem voltou até mim, repetindo que eu precisava ir, que ele também precisava ir,
antes que os homens chegassem, e foi se aproximando, ele estava muito suado, ele
tremia” (p.171). E prossegue com a sua recordação:
Não lembro se foi quando o elevador chegou lá embaixo ou se quando abriu a
porta no andar onde eu estava, não sei mais o momento exato em que o
elevador antigo, porta de grades, saíram quatro ou cinco homens apressados,
vestidos de terno, um deles tinha uma arma na mão, e me jogaram contra a
parede. O apartamento da cantora, perguntaram, o guerrilheiro, onde mora
Dulce Veiga, o terrorista, onde é a casa daquela puta, daquele comunista, e
sem saber direito o que significava aquilo, era tudo rápido demais, eu não
tive culpa, eu falei o número, sem querer, acho que era setenta, eu disse: é
que eles moram. Os homens saíram correndo, eu fui embora.
Não lembro quase mais nada, depois. Dentro do elevador, ou na
saída do prédio, ouvi os homens dando socos e pontapés na porta do
apartamento. Na rua, as pessoas falavam em voz baixa, passavam apressadas,
olhando para o chão, fingindo não ver o carro do DOPS estacionado sobre a
calçada, com homens armados em volta (p.172-3).
42
“Eu não tive culpa” e “Não lembro quase mais nada, depois” são frases
marcantes que nos remete aos mecanismos de fuga de nosso narrador para não encarar a
sua própria responsabilidade com a prisão de Dulce e/ou de seu amante Saul.
Responsabilidade que também é negada pelos transeuntes daquele dia, que fingiam “não
ver o carro do DOPS”.
Como talvez, pensei amargo, como talvez, sem querer, vinte anos atrás
denunciei Saul, e você nem sabe disso. Era horrível pensar aquilo. E eu não
tinha culpa, queria me jogar aos pés de Saul, gritar feito um louco, mais
louco que ele, rolando no chão, rangendo os dentes, que eu era muito jovem,
que eu não sabia o que fizera (p.174).
Se os esquecimentos e perturbações do narrador passam pela culpa, ele divide
seus remorsos apenas com seus leitores, procurando minimizar seu possível erro: “De
que adiantaria não ter revelado o número do apartamento, a polícia naquele tempo
sempre sabia de tudo” (p.176).
A resposta ao desaparecimento da cantora, que parecia seguir o caminho da
condenação às esquerdas, acaba por ser errônea: o narrador acaba por encontrá-la viva,
libertando-se de seus remorsos. Somos surpreendidos com uma Dulce Veiga renascida
sob o signo do Santo Daime
60
, vivendo no interior do Amazonas. Ela, que “cantava”
“como se pedisse perdão por ter sentimentos e desejos”; que chafurdava “no lodo da
paixão” e também “era um deusa fria, longe de toda essa lamentável lama buscando
prazeres”, com aquele rosto”, “tão inatingível...” (p.57) e que se martirizava por achar
que cantar era tão inútil, abandonou a vida urbana contaminada por lutas políticas e
pessoais, traficantes, viciados e travestis: foi em busca dessa “outra coisa”.
No reencontro com Dulce no interior do Amazonas, encontra-a cantando em
uma churrascaria, longe de todos e feliz. Ao dividir suas paranoias e suspeitas, recebe
60
O Culto Eclético da Fluente Luz Universal é um trabalho espiritual, que tem como objetivo alcançar o
auto-conhecimento e a experiência de Deus ou do Eu Superior Interno. Para tanto, se utiliza, dentro de
um contexto ritual tido como sagrado, da bebida enteógena sacramental conhecida como ahyausca e que
foi rebatizada pelo Mestre Irineu como Santo Daime. O uso de uma substância enteógena como
sacramento parece ter feito parte das principais tradições religiosas da antiguidade e fornecido a base
visionária de muitas das principais grandes religiões hoje existentes no mundo.” Disponível em
http://www.santodaime.org/doutrina/oquee.htm. Acesso em 3 de abril de 2010. Em Dip (2009, p.231):
Caio Fernando Abreu, “quando conheceu o dramaturgo Vicente Pereira foi introduzido por ele ao Santo
Daime. Era assíduo nas sessões de cantoria e ingeriu o líquido que eles consideram sagrado, a ahyausca,
até que um dia, proibido de fumar cigarros durante as cerimônias, saiu irritado, para nunca mais voltar”.
Segundo BRUNN (2007) durante a época em que escreveu Onde andará Dulce Veiga?, Caio Fernando
Abreu estava ligado ao Céu do Mapiá, um centro daimista situado nas margens do igarapé Mapiá, entre
Boca do Acre (AM) e Pauini (AM). Ver: <http://www.litcult.net/revistalitcult_vol6.php?id=511>.
Acesso em 17 de abril de 2010.
43
como resposta um sorriso, “como se achasse engraçado o que eu dizia” (p.224). Ao
chegar à casa de Dulce, bebe “um chá”, que segundo ela, “vai te fazer bem” (p.225). Ao
que se presume ser o chá ahyausca, deflagrando algumas alucinações ao narrador. Uma
voz que ele “não sabia mais de quem era”, repetiu assim:
-São tudo histórias, menino. A história que está sendo contada, cada
um a transforma em outra, na história que quiser. Escolha, entre todas elas,
aquela que seu coração mais gostar, e persiga-a até o fim do mundo. Mesmo
que ninguém compreenda, como se fosse até o fim do mundo. Mesmo que
ninguém compreenda, como se fosse um combate. Um bom combate, o
melhor de todos, o único que vale a pena. O resto é engano, meu filho, é
perdição (p.227).
Dulce coloca-se como um libelo da pureza intocada e não contaminada, ao
contrário do narrador, de Márcia F., Saul, Alberto e todos os outros personagens,
condenados ao submundo vicioso. Se o envolvimento com a guerrilha não se comprova,
a ideia de uma nova era começada por Dulce mostra-se uma leitura possível: “Vou
ajudar a preparar a Nova Era. E me esquecer de mim” (p.217). Nova era que nada tem
de política, e sim de religiosa/espiritual: “-Força e fé, repete comigo: dai-me força e dai-
me fé, dai-me luz” (p.233). O ceticismo de Caio F. parece debochar da sociedade:
fora dela é possível “encontrar outra coisa”, como diria – e procurava – Dulce.
-E o que eu digo a eles?
Ela me levou até a porta, eu comecei a descer os degraus de
madeira.
- Diga o que você quiser, faça o que você quiser. Não diga nada. Se
achar melhor. Minta, não será pecado. Mas se contar tudo, não se esqueça de
dizer que eu sou feliz aqui. Longe de tudo, perto do meu canto (p. 237)
Castana Beatriz, o fantasma de Benjamim Zambraia, não teve a mesma sorte
de Dulce: foi fuzilada pelos militares, em 69 ou 70. Com a trama centrada
provavelmente no início da década de 90, o romance Benjamim (1995) é o segundo da
safra do compositor e cantor já consagrado, Chico Buarque.
Em capítulo intitulado “Visões do paraíso perdido: sociedade e política em
Chico Buarque a partir de uma leitura de Benjamim”, Ridenti (2000) propõe um
balanço da dimensão sócio-política do trabalho de Chico Buarque produzido entre os
anos 60 e 90. A perspectiva adotada é musical e literária e, apesar da vertente musical
extrapolar os limites do presente trabalho, a ideia de Chico Buarque-músico – referência
para a análise de Ridenti (2000) – acaba por fazer papel coadjuvante nesta análise.
44
Partindo da ideia citada, o romance ritualizaria três vertentes encontradas em
Chico Buarque-músico. São elas: o lirismo nostálgico, a crítica social e a variante
utópica, sendo que no romance o que aconteceria seria um esvaziamento dessa variante
utópica, “expressando a perplexidade da intelectualidade de esquerda no fim de século”
(p.230). Expressão que talvez não seja intencional e sim sem querer”, na ideia de
Ridenti (2000), pode ser vista como intencional ao analisarmos a obra romanesca de
Chico Buarque, começando pelo seu primeiro romance, Estorvo (1991), que será
brevemente discutido posteriormente. Tanto Chico Buarque como Caio Fernando Abreu
são de uma geração que viveu a ditadura e o processo de democratização da sociedade
brasileira, e parece chegar aos anos 90 decepcionada: a utopia de um país mais justo,
sonho da geração que viveu os anos 50, não correspondeu à realidade democrática do
fim de século, e o futuro parece não reservar tempos melhores.
Mas diferença entre fazer a coisa com intenção ou no meu caso fazer sem
a preocupação do significado. Se eu vivesse numa torre de marfim, isolado,
talvez saísse um jogo de palavras com algo etéreo no meio [...] Em resumo, eu
não colocaria na letra um ser humano. Mas eu não vivo isolado. [...] A vivência
a carga oposta à solidão e vem na solidariedade é o conteúdo social. Mas
trata-se de uma coisa intuitiva, não-intencional: faz parte da minha formação
compreende – igual aos outros da mesma geração – jogar bola e brigar na rua, ler
histórias em quadrinhos, colar, aos seis anos, cartazes a favor do Brigadeiro
[Eduardo Gomes, candidato liberal à Presidência da República em 1950,
derrotado por Getúlio Vargas] por causa dos meus pais contrários ao Estado
Novo (BUARQUE apud RIDENTI, 2000, p.232).
Em uma narrativa circular e caleidoscópica, na qual o início e o fim são o
mesmo ponto, o narrador em pessoa mostra-se bastante diferenciado é mais que um
mero observador –, com um enredo que se caracteriza pelo reencontro e pela culpa.
Benjamim conhece Ariela Masé, fisicamente igual à Castana Beatriz mulher que
arruinou a vida de Benjamim Zambraia” (BUARQUE, 2004, p.86)
61
-, o que o leva a
crer que é filha de sua antiga namorada, mas “nada garante que seja Ariela filha de
Castana Beatriz” (p. 132). Com esse encontro, iniciam-se seus tormentos: as lembranças
da ex-namorada, os anos 60 e a culpa acompanham o protagonista durante a narrativa.
As semelhanças com Onde andará Dulce Veiga ultrapassam o enredo. Assim
como na obra de Caio Fernando Abreu, “a sensação de estar sendo filmado” (p.7) e as
menções a técnicas de cinema também se fazem presente para o protagonista. “Como se
um rosto se projetasse nítido na tela” (p.12), Benjamim Ariela; assim como “se uma
61
Todas as citações referem-se a Buarque (2004).
45
lente perspicaz focalizasse sua fisionomia ao longo daquela semana, surpreenderia um
maníaco” (p.35). Sua trajetória é algumas vezes colocada como um filme: “No meio do
trânsito, como amiúde no melhor de um filme ou devaneio, ele é arrastado pela
recordação da manhã em que acordou com um estranho dentro do quarto (p.78).
Benjamin e Castana eram modelos fotográficos e namorados, até o
aparecimento de Douglas Saavedra Ribajó, professor e militante de esquerda. Se até
então Castana vivia em sua redoma burguesa, com o envolvimento com Douglas,
participa de articulações e movimentos políticos: “Metera-se num grupo de estudos
com uns amigos novos, que se reuniam na casa do Professor para discutir a América
Latina, e Benjamim não estava gostando nada daquela história” (p.55-6). Vendo no
namorado o retrato da classe média urbana que assiste de seus sofás as misérias do
governo ditatorial e da sociedade, Castana perde o interesse e vai à luta, participando
de organizações de esquerda
62
, decretando assim a sua condenação: é fuzilada pelos
militares junto com o amante, provavelmente após o AI-5. A condenação do casal
militante passa pela omissão e delação não intencional de Benjamim, fazendo dele
também um culpado por estas mortes.
Se o encontro com Ariela vem para trazer más recordações e novas obsessões,
traz consigo também as lembranças do “paraíso perdido” de Benjamim: os bons
momentos do namoro transcorrido entre 62 e 67.
De modo que o paraíso perdido da existência pessoal de Benjamim coincide
com os melhores tempos da democracia brasileira e o início da juventude de
CB. Setores das classes médias, particularmente, vinham ganhando direitos
de cidadania, como a liberdade de organização e manifestação, o acesso ao
ensino público e gratuito em todos os níveis, enquanto mecanismo de
ascensão social, além das possibilidades de financiamento para habitação e
compra de eletrodomésticos e automóveis. Depois do golpe de 64,
especialmente no período do milagre brasileiro na economia, este é o último
aspecto que foi acentuado, em detrimento dos direitos e liberdades
democráticas (RIDENTI, 2000, p.239).
A construção dos personagens prima pelo patético de suas vidas. Ariela, vinda
do interior para tentar a sorte na capital, vive na apatia de sua figura vulgarmente
sedutora que sabe responder “não faz mal”, envolvendo-se com Jeovan, Zorza,
Aliandro e Benjamim. Estuprada por um de seus clientes (era corretora de imóveis),
demonstra prazer em contar a Jeovan, o marido paraplégico, os detalhes do
62
Ao que indica o romance, a participação de Castana se somente no campo organizacional, não
havendo indicação de sua participação na luta armada.
46
acontecimento, inclusive aumentando-os. O marido é um ex-policial que a socorreu na
sua chegada ao Rio de Janeiro, e que mesmo sem condições físicas de sair de casa,
sentencia a morte dos flertes de Ariela através de seus amigos policiais. Zorza,
casado e pai de dois filhos, tem Ariela como amante. É o gerente da loja de automóveis
que é palco de uma das cenas mais chocantes do romance: as cenas da gincana, um
verdadeiro show de horrores, onde Benjamim é trazido por representar um ator famoso,
mas logo perde os holofotes para uma girafa que entra na loja:
Em vez de bater palmas, o público vira-se de costas para o palco e produz um
“oh”: acaba de entrar no pavilhão uma girafa, que quatro atletas de peito nu
procuram guiar por meio de quatro cordas cruzadas em volta do pescoço
dela. (...) A caminhada da girafa é cada vez mais obstruída pelas pessoas que
se intrometem no percurso, muitos com crianças no colo, para se fazer
fotografar ao seu lado (p.44).
Aliandro/Alyandro é um ex-deliquente juvenil, filho de uma prostituta, pastor e
candidato a deputado federal. Muda de nome em consulta a uma numeróloga, trocando
o “i” pelo “y”, visando o planalto federal. Benjamim, um personagem confuso e
neurótico, a quem Ariela estimula às investidas, “há quinze anos, quando admitiu que
findavam seus tempos de glória” “aplicou em ouro o capital acumulado”(...) Estipulou
que morreria aos oitenta e repartiu o lingote de vida restante em lâminas mensais”
(p.77). Vive das glórias passadas, guardando todos os recortes de fotos do passado em
pastas coloridas, aonde virá a encontrar a foto com Castana e assim dar-se conta da
lembrança provocada pela visão de Ariela. Ao remexer em suas pastas, confessa: “não
aposte nos anos 50, onde ele era jovem demais, e descarte os anos 70 em diante, que
não valem mais a pena” (p.21). Frase que poderia ser estendida a realidade da geração
de Chico Buarque, Caio Fernando Abreu e Milton Hatoum, que o final dos anos 50 e
o início dos anos 60 mostram-se como o período dourado do país, como anteriormente
mencionado.
Saindo rapidamente da trajetória de Benjamim, volto-me para o romance
Estorvo (1991), de Chico Buarque, que corrobora a ideia de que protagonistas
perturbados parecem ser uma tônica de sua obra romanesca. Nesse romance temos a
saga de um personagem sem nome, entre a alucinação e a realidade
63
. Diz Schwarz
(1999, p.180): “Estaríamos forçando a nota ao imaginar que a suspensão do juízo moral,
a quase-atonia com que o narrador vai circulando entre as situações e as classes seja a
63
Os romances Budapeste (2003) e Leite Derramado (2009), de Chico Buarque, também nos trazem
protagonistas perturbados, corroborando ainda mais a tônica da obra romanesca do autor.
47
perplexidade de um veterano de 68?” Leitura possível de sua atonia através dos
episódios ao longo do romance, que vão desde a fazenda da família ser transformada em
um abrigo de bandidos e plantações de maconha, até o protagonista ser esfaqueado por
um estranho ao tentar abraçá-lo; passando pelos personagens secundários, que primam
pelo fetiche da própria imagem ou ainda no grotesco alheio, como o episódio da mãe
“defendendo” o filho, suspeito de assassinato, logo no início do romance:
A entrevista é prejudicada por uma baixinha com cara de índia e lenço na
cabeça, que se desvencilha de um policial e investe contra o zelador, gritando
"diga que conhece meu filho, miserável!". O policial levanta a índia baixinha
e deposita-a fora do cordão de isolamento. Ela passa outra vez sob o cordão e
agora se dirige ao público. Diz "não tem televisão aí?" e diz "ninguém vai me
entrevistar?". Um rapaz que se apresenta como repórter do Diário Vigilante
pergunta o que fazia o suspeito no local do crime. Ela diz "que suspeito o
quê" e "que local do crime o quê", e diz "meu filho veio me ver, foi detido
entrando no prédio, se fosse suspeito estaria fugindo", e diz "onde é que se
viu suspeito fugir para dentro?". Sem mais nem mais, começo a ficar a favor
da mãe índia. O do Diário Vigilante vai fazer outra pergunta, mas ela o
interrompe e diz que trabalha no 204 quinze anos, que todo mundo sabe
quem ela é, que aquele miserável ali conhece o filho dela e não o defende
porque tem preconceito de cor. (...) A índia responde à Rádio Primazia que
prenderam o filho porque ele estava sem documento. Diz "meu filho estava
voltando da praia, não é crime ir na praia, ninguém vai na praia com carteira
de trabalho metida no calção". Um sujeito atrás de mim diz que também é de
jornal e pergunta ''afinal a bichona era artista ou o quê?''. Ela responde "a
bichona sei lá, parece que era professor de ginástica". Aproxima-se o repórter
da TV Promontório dizendo "ouvimos também a mãe do principal suspeito".
a índia perde a razão, agarra as lapelas do repórter e desata a chorar no
microfone e berrar "ele não é criminoso!, meu filho é um moço decente!",
mas o cameraman, que está trepado no capo da camionete, grita "não valeu,
não gravou nada, troca a bateria!" A índia pára de chorar
64
(...) (BUARQUE,
1991, p.44).
Atordoado, o protagonista não encontra lugar em meio a esse mundo degradado,
onde na tentativa de aproximar-se de um possível conhecido é esfaqueado no meio da
rua. Após todos os acontecimentos dos anos 60, desde o florescimento cultural até a
censura, chega-se a uma sociedade democrática e absurda, onde a violência é
naturalizada, a deliquência parece estar um passo a nossa frente, a publicidade
influencia comportamentos e aparecer na TV parece o grande sonho de muitos. Segundo
Schwarz (1999, p.181), “Esta disposição absurda de continuar igual em circunstâncias
impossíveis é a forte metáfora inventada para o Brasil contemporâneo, cujo livro [Chico
Buarque] talvez tenha escrito”. Aceitando a ideia de que o protagonista de Estorvo é um
personagem de 68, o que temos em Benjamim é a realização dos comentários críticos de
Schwarz (1999).
64
Grifo meu.
48
Voltando a Benjamim: mesmo após a morte da ex-namorada, continua vivendo
sua vida medíocre pequeno-burguesa, sempre como espectador das misérias a sua volta.
“Dispõem-se a atravessar a rua em direção ao edifício quando repara nuns tipos que
povoam os degraus da portaria. Vê gente dormindo, um cachorro, gente comendo arroz
com as mãos, uma velha de seios chocos e saia de escocês, sentada com as pernas
abertas” (p. 129). A função de espectador exercitada por Benjamim será vista em outros
momentos da narrativa, com no caso de Castana, onde foi também delator:Benjamim
entregara no passado a ex-namorada para o pai e para a polícia, informando a identidade
do professor e o paradeiro de sua amada:
O doutor Campoceleste deserdou Castana Beatriz tão logo soube da sua
gravidez. Aqueles, aliás, foram tempos difíceis para todos, e não havia razão
para Benjamim ser poupado. No meio do trânsito, como amiúde no melhor
filme ou devaneio, ele é arrastado pela recordação da manhã em que acordou
com um estranho dentro do quarto. Era um brutamontes de colete, e trazia na
mão um objeto reluzente que Benjamim custou a definir como um porta-
retratos. O estranho apontou para foto tamanho passaporte, torta e diminuta
naquela moldura, de um sujeito com o rosto esburacado. Batucou no vidro do
porta-retratos e perguntou: “conhece?”. Benjamim conhecia de vista o
amante de Castana Beatriz e sabia que, se mentisse, poderia tomar pancadas
na cabeça até cair em contradição. Correndo o risco de passar por um
cúmplice, falou “é o Professor Douglas Saavedra Ribajó” (BUARQE, 2004,
p. 78-9)
Mas o episódio que o atormenta violentamente só vem a ser revelado claramente
ao desfecho da trama: a culpa pela morte de Castana. Ao que indica a narrativa, era final
dos anos 60, tempos de censura pesada e violenta repressão. Mesmo sendo avisado da
possibilidade de estar sendo seguido por pessoas interessadas na captura do casal,
Benjamim não parece tomar consciência (ou se recusar a isto) do risco em que pode
estar colocando Castana. Ao avistá-la na rua, acaba por segui-la, não sabendo a
armadilha que preparara:
Bateu em retirada, e chegando à duna viu assomarem do outro lado duas
cabeças, a do Barretinho e a de um indivíduo com barba cortada rente, que no
primeiro instante tomou por um mecânico. A seguir atentou para sua camisa
pólo, sua barriga inchada, seu cinturão de couro, sua calça de brim e a
metralhadora que trazia pendurada na mão direita. No topo da duna, o
indivíduo requisitou os documentos de Benjamim, sem lhe apontar a
metralhadora. Requisitou com civilidade, mas entre os dedos suados de
Benjamim a carteira de crocodilo escorregava feito um sabonete. O indivíduo
folheou os papéis de Benjamim com uma mão, à maneira de jogador de
pôquer, e devolveu-os falando “muito obrigado”. Virou-se para o Barretinho,
a quem chamou Zilé e ordenou-lhe que deixasse Benjamim em casa. Pelo
canto dos olhos, Benjamim relanceou os homens que convergiam de postos
esparsos para o sobrado verde-musgo. Antecipou-se a Zilé em direção ao
49
táxi, sentou-se no banco traseiro e fechou a janela, com medo de ouvir o
início do tiroteio (BUARQUE, 2004, p.139).
Zilé, conhecido por Benjamim por Barretinho, era muito taxista de sua
redondeza, sendo na verdade um policial infiltrado em busca de informações. Mas
Benjamim não questiona, sente apenas “medo de ouvir o início do tiroteio”, prefere
ignorar os acontecimentos, com a certeza de que Castana estava sendo morta naquele
instante. Postura que havia sido repetida tantas vezes, como já mencionado. Entre
estes episódios temos o do retorno a sua casa no dia do encontro com “doutor
Campoceleste”: estudantes estavam sendo presos no seu edifício, enquanto ele
escondia-se através das árvores. “Depois que a polícia se foi, experimentou um
sentimento de indignação, mas sentimentos que não podem chegar atrasados”
(p.135). Sempre mantendo a sua postura de espectador, os “sentimentos atrasados”
valem também para a culpa da delação de Castana, que virá à tona no encontro com
Ariela Masé.
Sentimentos de culpa, dor e revolta que não se transforma em ação:Eu matei a
tua mãe” (p.98), frase pensada, mas nunca dita. É a figura de Ariela que traz a
consciência de seus atos passados e seu problema presente: a obsessão, que o leva a
morte, fuzilado pelos amigos do marido paraplégico, no mesmo lugar onde Castana e o
professor foram mortos:
Ariela que abre o cadeado e solta a corrente da porta do sobrado
onde Castana Beatriz e seu amante talvez namorassem às pressas, porque ela
teria deixado a filha em casa de desconhecidos, e ele não poderia se atrasar
para uma reunião com os dissidentes. Ariela forçar a porta que está
travada na soleira do sobrado onde Castana Beatriz e seu amante talvez nem
namorassem, porque necessitariam examinar uns mapas e discutir a América
Latina. a dobradiça que se desprende do batente, fazendo tombar a porta
no assoalho do sobrado onde Castana Beatriz e seu amante talvez namorasse
com mais fervor, enquanto tramavam derrubar o governo (p.161).
O fantasma de Castana, na figura de Ariela, traz a consciência da culpa e sua
sentença de morte. Mas a condenação é antiga: a morte de Castana, vingada
involuntariamente na figura da filha. O mais patético e triste em sua morte é o seu
caráter acidental, visto que a armadilha tinha outro foco, Aliandro, voluntariamente
salvo por Ariela.
Castana e o professor Douglas foram condenados nos anos 60. Ariela recebe
como herança a total incapacidade de lidar com os próprios desejos, salvando Aliandro,
político e pastor, em detrimento de Benjamim, que acaba por ter o mesmo fim trágico
50
do fuzilamento 20 anos depois. Ariela parece fazer uma escolha: um futuro
individualista nas mãos de um político ao invés de tentar solucionar todos os conflitos
do passado. Se para ela a escolha não se mostra consciente, visto ter um papel de
joguete das situações, para autor, a escolha pode vir a ser interpretada como uma critica
às novas gerações.
Para Ridenti (2000, p.261), o romance é um “documento de seu tempo, com
democracia, mas marcado pela fragmentação e exclusão social, pelo fetichismo da
mercadoria e do Estado, num clima de desencanto político e esvaziamento das utopias”.
Esvaziamentos que abarcam desde os problemas econômicos e sociais no país, passando
pela classe média urbana dos sessenta e dos noventa com um estilo de vida patético
e mercadológico, chegando às novas gerações, abertamente incapazes de lidar com a
própria história.
Nos anos 90, a crescente internacionalização da economia e da cultura, a
reprodução constante e agravada das contradições sociais acentuam ainda mais o
estranhamento de uma parcela da intelectualidade de esquerda, perplexa,
desterrada em sua própria terra-espelho, na qual não reconhece o próprio
rosto, que continua a mirar-se num projeto nacional-popular indefinido e
inconcluso no passado, paraíso perdido de Chico e de muitos de seus
contemporâneos, artistas e intelectuais de esquerda (RIDENTI, 2000, p.264).
Com bases nessas análises cabe uma breve retomada da realidade do país, a qual
Caio Fernando Abreu e Chico Buarque, ambos nascidos na década de 40,
acompanharam. Eles crescem juntamente com o Brasil, que nos anos 50 vive período
ímpar em sua história, mostrando-se em franco crescimento. A classe intelectual e
artística produzia em quantidade e qualidade, e a população vivia a esperança de um
país mais igualitário, seja econômica ou socialmente. Mas o golpe de 64, instaurando o
regime ditatorial, acaba por interromper estes planos e mudar o rumo do país e da arte
aqui produzida.
Com o governo militar de direita e a censura, as formas públicas de arte crescem
a despeito da literatura, que acaba por ceder espaço. O teatro muda para e pelo povo, o
show manifesto Opinião - e a música de protesto - nos festivais da canção - dão o tom
da luta travada pela classe artística por liberdade de expressão e denuncia social. O
Tropicalismo nasce debochado e irreverente, buscando seu lugar próprio, à esquerda da
esquerda, se pudermos escolher um lugar que lhe cabe. Plínio Marcos dramatiza a
naturalização da marginalização do subproletariado. O Arena tenta através de seu
discurso didático trazer a consciência de classe revolucionária para o seu público.
51
Enquanto isso o Oficina busca no ataque agressivo tirar o seu público da inércia. Na
literatura, mais distante dos grandes públicos que os outros gêneros artísticos, o
emblemático ano de 1967 nascer dois romances imprescindíveis para a discussão:
Quarup, de Antonio Callado e Pessach, de Carlos Heitor Cony. Ano em que o cinema
recebe Terra em Transe, de Glauber Rocha. Narrativas díspares quanto a enredo - a
valorização do nacional-popular, a adesão ou não a luta armada ou o papel do artista,
que se entre dividido entre a arte, a política e guerrilha -, se igualam no tocante a
grande dilema dos sessenta: a participação na luta armada, que se mostrava para muitos
como a única saída possível para o fim do regime.
As esperanças de uma revolução foram depositadas na esquerda, que chega
nos anos 60 dividida. Além da disputa com a direita, os problemas internos acabam por
enfraquecê-la, acarretando em dissidências que criam novas organizações. O povo -
mostrado pelo PCB como grande força que seria capaz de fazer a revolução e como um
“imbecil” por Glauber Rocha, protagonista de muitas obras através da valorização do
nacional-popular, passa de força motriz de uma possível revolução à massa de manobra
da ditadura. Os movimentos comunistas se mostram incapazes e o AI-5 acaba por
condenar-nos a mais uma década de repressão.
Violenta e feroz repressão, que tortura e proíbe toda e qualquer manifestação
contra o governo. Os artistas vêem-se acuados, muitos exilados e presos. A produção
literária é totalmente permeada pelos censores, o que caracteriza profundamente essas
obras. Para parcela da critica, a literatura dos 70 tem como pontos fracos a não
renovação da forma e da linguagem, atrelando-se a referências históricas sendo mais
documento e menos ficção. Quanto à outra parcela, nessas mesmas referências
históricas o ponto positivo, onde manteria uma tradição nacional de “retratos do Brasil”.
Se alguns fizeram experimentações, como Ignácio de Loyola Brandão, outros
permaneceram na linha mais tradicional do romance, linha, vale ressaltar, em se
tratando de Carlos Heitor Cony e Érico Veríssimo, vinda já de longa data.
Callado faz a autocrítica de esquerda com Bar Don Juan e seus revolucionários
sonhadores, que acabam desgarrados ou mortos pelo país afora. Cony divide o fracasso
de sua luta pessoal com Pilatos e um protagonista castrado, um espelho do homem dos
anos 70. E Incidente em Antares, a última obra de Érico Veríssimo, alegoriza um país
sem liberdade. A esperança deposita-se no início de uma democracia, na qual as
narrativas sejam mais libertárias e menos amargas.
52
Com o fim do regime e a instauração da democracia, os problemas econômicos
não foram solucionados e a miséria vem a aumentar. A crítica através da arte se fez
até então para o todo e organizada: o inimigo era um só, o governo autoritário e
totalitário. Os anos 80 mudam o quadro, mostrando o drama individual dos
personagens, vivendo em um país desigual, porém livre. O povo saiu de cena, e a classe
média urbana ganha o protagonismo, assim como desaparecem as discussões sobre
esquerda ou direita, e crescem as indagações individuais dos personagens.
Relatos subjetivos com protagonistas por vezes angustiados e muitas vezes
angustiantes, o herói romântico não cabe mais a esta figura em que se tornou o
protagonista, um anti-herói urbano. Com o crescimento das cidades e consequentemente
da violência, as cidades elevam-se ao status de personagem, consolidando-se nos 90.
Anos que trarão os problemas econômicos, a decepção da esquerda brasileira com a
derrota do candidato petista Luis Inácio Lula da Silva para Luis Fernando Collor, com
um governo que veio a minar as esperanças depositadas em uma democracia.
Publicados respectivamente em 1990 e 1995, os romances Onde andará Dulce
Veiga e Benjamim são exemplares no trato do fazer literário do fim de século: narrativas
fragmentadas, marcadas pelo crescimento da violência e da cidade, onde os
protagonistas aventuram-se, mas não mais em busca de valores autênticos e sim em
busca de um perdão para suas culpas passadas. Em ou em pessoa, mostram-se
perturbados e deslocados em suas próprias vidas.
A ditadura militar que viveu o Brasil não se coloca como personagem central
nos romances e sim como coadjuvante de luxo no que confere à produção da
intelectualidade madura nos anos 90. Caio Fernando Abreu e Chico Buarque viveram os
duros períodos dos 60 e 70, e as menções ao passado sombrio da história brasileira não
podem ser vistas como um mero acaso criativo em se tratando de intelectuais que
mostraram-se críticos ao seu tempo. Longe de pensar a literatura unicamente como
referencial histórico, interessa muito mais pensar na reflexão feita por estes intelectuais
tantos anos depois.
Os fantasmas ficcionais desaparecem a mesma época, entre os anos 69 e 70 e o
assombro vem a acontecer nos democráticos” anos 90. Lembranças para os
personagens que também podem ser encaradas como uma lembrança para essa
juventude que chega madura neste fim de século - tendo vivido ou não a militância e
todos os movimentos dos anos ditatoriais.
53
Tanto o narrador de Caio Fernando Abreu quanto Benjamim mantêm um estilo
de vida que beira o fracasso: um desempregado, outro vivendo de renda e comodismo,
somando-se a isto o estado um tanto quanto perturbado de ambos. As más recordações
mostram-se esquecidas, até o aparecimento de Márcia F. e Ariela Masé: “lembrei num
relâmpago”, enquanto um “arrepio desceu a nuca”, a música era de Dulce Veiga
(ABREU, 2007, p.33); “sim, é ela, sem dúvida é ela, Castana Beatriz” (BUARQUE,
2004, p.23), semelhante à Ariela, até então mencionada apenas como “moça hoje
avistada”. Enquanto a lembrança de Dulce traz alucinações, a lembrança de Castana
vem para trazer uma obsessão: Ariela.
Com um estilo de vida patético, os personagens mostram-se enredados em sua
própria mediocridade. Em Onde andará Dulce Veiga?, Layla, a socialite; Rafic,
traficante e ostentador de suas riquezas; Alberto, que tenta ostentar cultura com citações
a Foucault e a pietás gays; Saul, viciado e transformado em um travesti esquizóide. Sem
mencionar nosso narrador, perdido em sua própria sexualidade. Já em Benjamim, Ariela
e nosso protagonista por si podem ser representantes deste estilo: ela, se deixa
levar pelas circunstâncias; ele, um cinquentão que vive das rendas de um passado
longínquo, apenas espectador da vida a sua volta.
Tanto em Onde andará Dulce Veiga? quanto em Benjamim tem-se protagonistas
que viveram os regimes democráticos mas que encarnaram a classe média acomodada,
que ficou “a toa na vida” “vendo a banda passar”. E mais do que politicamente apáticos,
foram responsáveis por capturas feitas pelo DOPS, culpa que se coloca como a angústia
central dos romances, onde os protagonistas afirmam: eu não tive culpa, eu falei o
número”, “não lembro de quase mais nada, depois” “fingindo não ver o carro do DOPS
estacionado sobre a calçada” (ABREU, 2007, p.172-3); “que eu era muito jovem, que
eu não sabia o que fizera” (ABREU, 2007, p.174); “sentou-se no banco traseiro e
fechou a janela, com medo de ouvir o início do tiroteio” (BUARQUE, 2004, p.139),
“Eu matei a tua mãe” (BUARQUE, 2004, p.98).
Um possível envolvimento de Dulce com a esquerda seria fruto do
relacionamento com Saul, assim como o envolvimento com a esquerda é fruto do
relacionamento entre Castana e seu professor. Se não se pode comprovar a participação
da cantora nos movimentos “subversivos” o mesmo não se pode dizer da personagem de
Chico Buarque, já que sua sentença de morte foi claramente assinada por esta
militância.
54
Enquanto Dulce é encontrada e salva no interior do Amazonas, livre de todos
os vícios do seu círculo de relacionamentos, o restante dos personagens permanece em
meio à própria degradação, física e moral, incluindo sua filha. Degradação de um país?
Já Castana é fuzilada, deixando uma órfã, provavelmente Ariela, sem condições de lidar
com a própria vida, mostrando-se como uma marionete do acaso. Crítica à nova
geração? O narrador de Caio F. redime-se da culpa ao encontrar a cantora, esquecendo-
se do universo viciado em que se transformou a vida de Márcia F. e Saul. Benjamim,
diferentemente, é condenado: assassinado pelos amigos de Jeovan, sofre as
consequências pela delação de Castana e pela paixão por Ariela.
Retomando a pergunta de Schwarz (1999, p.162), “o que é, o que significa uma
cultura nacional que não articule nenhum projeto coletivo de vida material”? Para
Caio F. as esperanças podem estar na transcendência do Santo Daime e de um contato
maior com o mundo natural, que difere do mundo esquizóide e patético em que as
grandes cidades se transformaram. A luta da esquerda,comunista agora virou trouxa”,
é vazia e sem propósito, e as novas gerações não parecem saber lidar com suas
heranças. Em Chico Buarque, o ceticismo é ainda mais acentuado. A fetichização da
mercadoria, o estilo de vida que prima pela valorização da imagem, tendo o mercado
comercial como grande norteador e, principalmente, um estilo de vida alienado, são
pontos explicitados ao longo do romance.
A pergunta que ecoa no ar é: onde foram parar os sonhos de um país
democrático e igualitário? A luta armada e o povo foram as esperança de muitos nos
anos 60; a democracia foi sonhada pela geração dos anos 70; a definitiva instauração do
regime democrático parecia a solução para os problemas do país nos 80. Enganamo-
nos? Chegamos aos 90 sem condições de pensarmos além do nosso universo particular,
presos as mudanças do mercado e do capital, reféns da violência urbana e da miséria
naturalizada. A esquerda, a classe média ou nova geração, representadas nos romances,
não conseguem engendrar um processo coletivo de mudança social, ou ainda pior,
vivem em estado letárgico.
Para os que ainda têm alguma consciência consciência que acontece somente
após o choque do reencontro-, o saldo é a culpa, seguida da redenção ou da condenação.
Para os não conscientes resta-lhes a figura de títeres da coisificação dominante. Se Caio
F. nos deu um alento cínico, Chico Buarque deixa claro que os tempos são difíceis:
55
Dulce Veiga não conseguiu criar uma nova era pura e transcendente, e boa parte dos
sonhos podem ter sido fuzilados já no passado, com Castana Beatriz.
56
4 MILTON HATOUM: MEMÓRIA E ESCRITA
4.1 A obra
“Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A
origem: as origens” (HATOUM, 2006, p.54)
65
. Assim começa o capítulo 4 do romance
Dois irmãos (2000), sintetizando a motivação desta construção narrativa.
Diferentemente, em Cinzas do Norte (2005), “uns vintes anos depois”, o narrador
relembra “a história de Mundo” e sua “vida à deriva” (HATOUM, 2005, p.9-10). O
incentivo às narrativas é diferenciado, mas as suas construções apresentam pontos em
comum: a presença sintomática do período ditatorial brasileiro e a narração em
pessoa, com narradores que constroem as suas narrativas através da memória pessoal e
do relato de personagens cruciais em sua formação.
A utilização da memória como desencadeadora de narrativas na literatura
brasileira é explicitada por Fischer (2009, p.307), que atenta para o fato da “sucessão de
narrativas ficcionais de feição memorialística que a literatura brasileira apresenta”
66
,
entre elas as que levam “memória” no nome como Memórias de um Sargento de
Milícias e as que tecem a narrativa pelo fio da memória como a obra de Milton
Hatoum, e aqui incluir-se-iam todos os seus romances e alguns dos seus contos, o que
pode nos permitir denominar o autor como um “escritor de memórias”.
A constante presença de memórias na construção das narrativas poder-se-ia ser
explicada, segundo Fischer (2009, p. 312-13), pela tentativa de postular um “eu
enunciador que merece ser ouvido”: através de suas lembranças, o narrador divide a sua
vivência com alguém, em uma tentativa de legitimar a sua história e de se aproximar de
um leitor. E aqui se chega a um segundo motivo destas construções narrativas: a
postulação desse eu leitor. Forjam-se narradores e leitores em vista das condições
65
O romance Dois irmãos foi lançado em 2000, mas a obra aqui utilizada para referência refere-se à
edição Hatoum (2006).
66
Para maiores detalhes acerca dessa discussão, ver: FISCHER, Luís A. Inteligência com dor - Nelson
Rodrigues ensaísta. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2009. p. 304-315 e Literatura Brasileira: modos
de usar. Porto Alegre: L&PM, 2006.
57
problemáticas de nossa formação identitária e dos nossos problemas sócio-econômicos:
não temos alguém que mereça ser ouvido (mal sabemos quem somos), assim como não
temos alguém capacitado para ser um interlocutor. Precisamos inventar na ficção
narradores legitimados, para que o não-dito possa ser revelado para um interlocutor
ideal.
Nos romances de Milton Hatoum aqui trabalhados temos dois narradores-
escritores, portanto intelectualizados e consequentemente autorizados para narrar aquela
história, postulando assim um eu leitor para este romance (auto) biográfico. Mais do que
lermos as memórias dos personagens, lemos nas obras um romance sobre um romance:
em Dois irmãos vamos perceber a escrita de Nael no desfecho, mas em Cinzas do
Norte, já no prólogo sabemos que se trata da construção narrativa sobre Mundo.
Narradores-escritores que contam a sua história e a dos personagens a sua volta.
Nael, o narrador-personagem de Dois irmãos
67
, constrói sua narrativa sobre a história
da família libanesa de Yaqub e Omar
68
(os dois irmãos) e de sua mãe índia Domingas,
agregada da casa, na busca de sua origem: “anos depois desconfiei: um dos gêmeos era
meu pai” (HATOUM, 2006, p.54). Com uma identidade incerta e um passado confuso,
sempre teve “sede de lembranças, de um passado desconhecido, jogado sei em que
praia do rio” (HATOUM, 2006, p.67). Através das lembranças desse narrador-
testemunha, sem nome, com raízes incertas, sem pai, tentando juntar os retalhos de
outras histórias para chegar a sua, busca-se definir uma identidade onde não restam
muitas coisas: estão quase todos mortos no momento da escrita da história e aquele
passado “um tempo que morria em mim” (HATOUM, 2006, p.197), como disse Nael
-, na medida em que escreve a sua história, deixa de atormentá-lo.
O palco da obra é a cidade de Manaus, com as peculiaridades da região somadas
aos costumes da família de origem libanesa. Apesar de fugir do assunto do presente
trabalho, cabe observar que alguns autores vêem em Milton Hatoum um novo
regionalismo, na medida em que é povoado por características específicas da região que
pontualmente se situa: seu linguajar, suas crenças, seus costumes etc. Temos a paisagem
amazônica assim como a cultura árabe, mostrada sem idealizações, que o autor é
manauara e descendente de libaneses narrada então por quem a conhece, sabe da
67
Para uma leitura mais atenta do romance Dois irmãos (2000) ver: WELTER, Juliane. A terceira
margem ( ou a vingança de Nael): aspectos do romance Dois irmãos, de Milton Hatoum.UFRGS:Porto
Alegre, 2007 ( Trabalho de Conclusão de Curso defendido pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul). Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/17523>. Acesso em 3 de agosto de 2010.
68
Omar também é nomeado no romance como o “Caçula”, por isso, por vezes, me valho desta expressão
para referir-me a ele.
58
diversidade da fauna e da flora local, por quem está habituado a araks e narguilés.
Exótico apenas para quem não os conhece e regional para os que vêem Manaus do
centro, como uma província perdida no norte do país
69
.
Os personagens centrais concentram-se na família: Zana, a matriarca, que
decidia tudo, mandando e desmandando na casa; Halim, o patriarca, apaixonado pela
esposa; os irmãos Yaqub e Omar, díspares em tudo e inimigos desde a infância; Rânia, a
irmã hipnotizada pelos gêmeos; Domingas, agregada da família desde a infância, a
sombra servil de Zana e mãe
70
de Nael. Abro um rápido parêntesis para situar a
personagem Domingas, criada da família desde a infância: sabe-se que a personagem é
inspirada em Felicité, protagonista de “Um coração simples”, conto de Gustave
Flaubert, traduzido por Milton Hatoum e Samuel Titan Jr. Relata o autor:
E no Dois irmãos, a dívida a dois grandes textos, o Esaú e Jacó,do
Machado e um conto extraordinário do Flaubert: “Um coração simples”. Este
conto me persegue desde a juventude manauara. Recentemente, Samuel Titan
Jr. comentou o perfil e os traços de Flaubert e começou a enumerar as
aproximações entre as personagens, inclusive alguns detalhes precisos sobre
a “perroquet Amazone”
71
. Às vezes a gente esconde as referências, e o olhar
crítico revela. Tudo isso coincidiu com a tradução que nós fizemos do Três
Contos [Trois Contes] (HATOUM apud CRISTO, 2006, p.29).
No conto francês, a empregada serve a família por 50 anos: “Por cem francos ao
ano, ela cuidava da casa e da cozinha, costurava, lavava, passava, sabia arrear um
cavalo, engordar as aves de criação, fazer manteiga e continuou fiel à patroa, que
entretanto não era uma pessoa amável” (FLAUBERT, 2004, p.15), terminando seus dias
dedicando sua afeição a um papagaio. A diferença entre as duas parece encontrar-se na
69
Para maiores detalhes ver: PELLEGRINI, Tânia. Milton Hatoum e o regionalismo revisitado. Luso-
Brazilian Review Volume 41, Numero 1, 2004. Disponível em <https://muse.jhu.edu/demo/luso-
brazilian_review/v041/41.1pellegrini01.pdf>. Acesso em 30 de setembro de 2006. FISCHER, Luís
Augusto. Conversa urgente sobre uma velharia: Uns palpites sobre vigência do “regionalismo” no Brasil.
Revista Cultura e Pensamento 3, Dezembro/2007, p.127-141. Disponível em
<http://blogs.cultura.gov.br/culturaepensamento/files/2010/02/cultpens_revista_edicao3.pdf>. Acesso em
27 de julho de 2010. E também WELTER, Juliane. A terceira margem ( ou a vingança de Nael): aspectos
do romance Dois irmãos, de Milton Hatoum.UFRGS:Porto Alegre, 2007 ( Trabalho de Conclusão de
Curso defendido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Disponível em
<http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/17523>. Acesso em 3 de agosto de 2010.
70
TOLEDO (2004, p.50) atenta para o fato do tratamento dado a Domingas pelo narrador, “ora é tratada
por “Domingas”, ora, por “mãe”. No momento em que o narrador apresenta fatos concretos, objetivos,
voltados para o lado racional dos problemas, sua mãe torna-se a “Domingas” (...). Entretanto, quando se
envolvia emocionalmente com os acontecimentos, “Domingas” é nomeada como “mãe”.
71
O autor refere-se a tese de doutorado defendida por Samuel Titan Jr., Ares de romance: Realismo e
gêneros literários nos Três Contos de Gustave Flaubert.DTLLC-USP, 2003 (a qual não tive acesso por
motivos logísticos), como mencionado no texto: HATOUM, Milton. Flaubert, Manaus e Madame
Liberalina. Synergies Brésil, São Paulo, 7, 2009. p.87-9. Disponível em <http://ressources-cla.univ-
fcomte.fr/gerflint/Bresil7/hatoum.pdf>. Acesso em 10 de agosto de 2010.
59
figura do filho: Domingas coloca-se com maior força na narrativa, o que se pode
atribuir a presença de Nael, o narrador da sua história e seu filho.
Além do diálogo com a obra de Flaubert, temos ainda o mito bíblico dos
irmãos gêmeos Esaú e Jacó, no Gênesis
72
; a clássica comparação, mencionada como
influência pelo próprio Hatoum, com Esaú e Jacó (1904), de Machado de Assis, que
nos traz o embate entre monarquistas e republicanos
73
, agora podendo ser representado
pelo embate direita versus esquerda. Interessante atentar para a quase reprodução de
uma frase machadiana na obra. Em Machado de Assis, sobre Flora: “(…) acho-lhe um
sabor particular naquele contraste de uma pessoa assim, tão humana e tão fora do
mundo, tão etérea e tão ambiciosa, ao mesmo tempo, de uma ambição recôndita…(…)”
(ASSIS, 1997, p. 1.024). E em Dois irmãos, sobre Rânia: “Gostava dela, era atraído
pelo contraste de uma mulher assim, tão humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão
ambiciosa ao mesmo tempo” (HATOUM, 2005, p. 195)
74
. Estes são dois dos tantos
outros diálogos possíveis que se centram em irmãos, sejam eles gêmeos ou não
75
.
Gêmeos que também podem nos levar ao mito do duplo, comum na literatura e que no
romance não se limitam aos irmãos. Pode-se pensar no duplo como a figura do rival
(que se faz clara na narrativa) ou ainda como um complemento de si mesmo
76
. O duplo
em Omar e Yaqub projeta o rival, o Outro, o diferente. Podemos pensar no duplo ainda
como o árabe e o indígena; a metrópole e a periferia ou ainda Domingas e Rânia,
Domingas e Zana, Rânia e Zana. Duplos que nos levam até Nael: a terceira margem do
rio, a terceira opção, filho de um dos dois, mas que acaba por não se unir a nenhum
72
Filhos de Rebeca e Isaque, Esaú era o primogênito e tinha mais direitos que Jacó. A mãe, assim como
Zana, tinha preferência pelo caçula (Jacó), e isto leva-a enganar o próprio marido para que o caçula
obtivesse a progenitura. O fato cria uma inimizade entre os irmãos. O curioso aqui é que Jacó é Yaqub em
árabe - Omar significa “o supremo”. Yaqub (Jacó) era o primogênito, e a preferência da mãe recaia
sobre Omar. que neste caso a progenitura não abarcava direitos especiais. Mas com a ajuda da mãe -
assim como na Bíblia, mas neste caso, com a inversão do filho ajudado e sem saber que o ajudava -
Yaqub (Jacó) começa o plano de vingança contra Omar (Esaú). Na Bíblia, Esaú tenta assassinar o irmão
(mas a tentativa é em vão), assim como Omar agride Yaqub.
73
Para maiores detalhes ver: Cousas futuras! CHIARELLI, Stefania. Cousas futuras!Machado,
predecessor de Hatoum. In: I Seminário Machado de Assis, 2008, Rio de Janeiro. I Seminário Machado
de Assis. Rio de Janeiro: UERJ/UFF/UFRJ, 2008. Disponível em
<http://www.filologia.org.br/machado_de_assis/Cousas%20futuras!%20Machado,%20predecessor%20de
%20Hatoum.pdf>. Acesso em 10 de agosto de 2010.
74
A referência a estes trechos foram encontradas em Birman (2007), que remete ao seguinte trabalho:
CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de. Relatos de uma cicatriz: a construção dos narradores dos romances
Relato de um certo Oriente e Dois Irmãos, 2005. 207 f. Tese (Doutorado em Letras) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas,Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. p. 136
75
Como o mito bíblico de Caim e Abel; o romance O ventre (1958), de Carlos Heitor Cony etc.
76
Entre os duplos da literatura temos como exemplo agora não de irmãos como duplos, e sim de
espelhos e projeções do eu o conto de Guimarães Rosa, “O espelho” de Primeiras estórias (1962) - e
o clássico conto de Jorge Luis Borges, “O outro” do Livro de Areia (1975) –, para nos atermos apenas
em alguns dos nomes mais conhecidos.
60
deles. Duplos que, mesmo sendo rival, eram também complementos: Domingas era
seduzida pelo que os irmãos tinham de complementar, por exemplo, os remos e tralhas
do Caçula lhe exaltavam o ânimo, enquanto o despojamento do espaço de Yaqub lhe
esfriava a cabeça. Assim como Rânia, que também era seduzida pelos dois, ou como
Lívia que chegou a estar com Omar, acabando por casar-se com Yaqub.
Cinzas do Norte (2005), que como já dito tem muito em comum com Dois
irmãos, utiliza da mesma narração em pessoa, com um narrador um tanto a margem
da família, e que não faz parte dela: Lavo é amigo de Mundo, o motivo da narração, e
mantém forte ligação com a família do amigo também através dos seus tios Ranulfo e
Ramira.
“É possível ser artista neste país?” (HATOUM, 2010b, p.14) é a motivação da
construção narrativa de Hatoum em Cinzas do Norte, que talvez transcenda o período
por ele escolhido, no caso do romance, a ditadura militar brasileira. Período histórico
que perpassa a toda a narrativa: os meninos se conhecem em 1964, Mundo falece no
final dos anos 70 e Lavo vem a escrever à sua história nos anos 90.
Caio Fernando Abreu, Chico Buarque e Milton Hatoum nasceram
respectivamente nos anos de 1948, 1944 e 1952
77
. Escritores consagrados pelo público e
pela critica, retomam, por diferentes abordagens, o tema ditatorial seja no plano
secundário ou principal - nos anos 90, 95, 2000 e 2005, respectivamente. Se a
simbologia numérica pouco nos interessa, a retomada de período histórico tão delicado
principalmente em se tratando de intelectuais maduros e reconhecidos muito pode
ter a nos dizer.
Como já dito anteriormente, a participação política dos romancistas nos anos 60
não é a discussão principal e sim o reflexo deste período em suas obras, sem deixar de
valorizar a trajetória dos escritores. Importante lembrar que a recepção do Brasil
ditatorial se nesses escritores na sua juventude: Caio Fernando Abreu com 16 anos e
Chico Buarque com 20 anos testemunham o golpe de 64, golpe que freou as promessas
dos anos 50, instaurando um período opressor. Hatoum, então com 12 anos, será
testemunha mais madura quatro anos depois, com o AI-5 em 68 então com 16 anos.
Relata o escritor (2010a)
78
:
77
A escolha da ordem dos nascimentos se pela ordem das publicações dos romances estudados: Onde
andará Dulce Veiga (1990), Benjamim (1995), Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005).
78
Para a entrevista completa ver: HATOUM, Milton. Quando o mito vira história, e a história vira
literatura. São Paulo: 2010a. Brasil de fato, 26 de fevereiro de 2010. Disponível em
<http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/cultura/quando-o-mito-vira-historia-e-a-historia-vira-
literatura/view>. Acesso em 28 de fevereiro de 2010.
61
Estudei no Colégio Amazonense Dom Pedro II, uma escola do
Amazonas em edifício neoclássico, enorme. É um colégio muito combativo.
Durante o Regime Militar, criamos um jornalzinho chamado “O Elemento
106”. Na natureza, são 105 elementos químicos, nós criamos o elemento 106.
Participava desse jornal com uns amigos, dois deles saíram de Manaus em
68. Esse jornal já expressava a participação de um movimento estudantil
naquela região, depois em Manaus houve uma série de protestos e resistência.
As pessoas pensam que houve manifestações nas grandes cidades. Não,
também teve, em Belém, na Amazônia toda.
Iria ingressar na UnB em 68, terminado por abandoná-la um ano depois: a
repressão era fortíssima: “não agüentei aquela cidade por causa da repressão. Era uma
cidade muito policiada, a nossa escola foi invadida, a UnB invadida, o Honestino
Guimarães era de lá” (Hatoum, 2010b, p.13). O episódio de invasão da UnB pelos
militares em agosto de 68
79
tem em Honestino Guimarães uma das figuras centrais:
presidente do Diretório de Geologia da universidade, é preso, permanecendo dois meses
em poder do exército e logo após expulso da universidade. Em 69, assume a presidência
interina de UNE (União Nacional dos Estudantes), permanecendo até 71, assumindo
efetivamente até 73, quando se filia a Ação Popular (AP)
80
. Preso no mesmo ano, tem
seu nome incluído na lista dos “desaparecidos” em 76, tendo seu óbito oficialmente
reconhecido somente em 96.
Eu sabia quem ele era, participei do movimento estudantil em Brasília e o
Honestino depois foi assassinado aqui em São Paulo; ele é um dos
desaparecidos, e eu não agüentei aquilo. (...) Eu estava na UnB. Foi muito
barra-pesada. Aquilo ali era uma truculência enorme. Os meus amigos
ficaram lá e eu vim para São Paulo, em 70 (HATOUM, 2010b, p.13).
A trajetória formativa do romancista na juventude acaba por remeter a sua
produção intelectual de esquerda, se assim pode-se dizer. E nas palavras do próprio
escritor: “Eu tenho cabeça de esquerda, ainda sou, me considero, embora a esquerda
tenha cometido atos estranhos, por ter acreditado em coisas que hoje não se acredita
mais, eu não acredito mais”
81
(HATOUM, 2010b, p.16). A reflexão do romancista
espelha a amargura de seus próprios romances e da intelectualidade de esquerda neste
início de século: as mudanças não chegaram e o sonho parece distante. Ridenti (2000,
p.264) já menciona este desencanto na obra de Chico Buarque e o seu “esvaziamento da
variante utópica”, com “uma parcela da intelectualidade de esquerda, perplexa,
79
Para maiores detalhes ver <http://www.unb.br/unb/historia/resumo.php>. Acesso em 11 de maio de
2010.
80
Movimento político da esquerda cristã.
81
Grifo meu.
62
desterrada”. Perplexidade que alcança a obra de Hatoum, seja no desencanto político de
Laval em Dois irmãos ou de Ranulfo em Cinzas do Norte. Laval, morto em 64, coloca-
se ao longo da narrativa como um avesso a política, assunto menos importante para ele,
retratando talvez a desagregação que pairava sobre a esquerda naqueles anos 60.
Somado a isso, também a sua boêmia inveterada, que poderia ser equiparada àquela
esquerda festiva retratada por Antonio Callado em Bar Don Juan (1971). E é nesse
contexto que se pode somar Ranulfo, o tio Ran: mulheres, bebidas, criticas e nenhuma
ação. Desencanto do escritor que pode ser percebido através das imagens de uma
Manaus que cresce sem planejamento, desterrando seus moradores
82
.
As reflexões políticos do escritor seguem-se:
Eu detesto a direita, que no Brasil nunca produziu nenhum tipo de
pensamento consistente. Se você me citar cinco grandes intelectuais de
direita, você tem o Gilberto Freyre, mas também não endeuso o Gilberto
Freyre. Acho que ele é um escritor admirável, tem livros importantes, mas o
grande pensamento intelectual brasileiro, queiram alguns fascistas ou
direitistas aceitá-los ou não, foi a esquerda que produziu. Acho que os
escritores não, eles são menos militantes, embora um homem como Antonio
Callado faça falta hoje (HATOUM, 2010b, p.16).
Callado é um dos grandes nomes da literatura militante nas décadas de 60 e 70,
como visto nas seções 2.2 e 2.3, indo desde a conversão do intelectual a militância, em
Quarup (1967), passando pela amargura de Bar Don Juan (1971) e chegando a
fragmentada narrativa de Reflexos do Baile (1976). A menção a ele é sintomática para o
raciocínio exposto até aqui, visto que com a observação de Hatoum percebe-se a
herança de uma literatura critica e política, que segundo o próprio talvez esteja em falta.
Ao nos depararmos com Hatoum leitor de Callado pode-se especular influências, desde
o idealista padre Nando de Quarup e a esperança na revolução, até a esquerda festiva e
fracassada de Bar Don Juan. Em matéria de PIZA (2007, p.17-8), Hatoum dava
sinais da leitura de Callado:
Hatoum nota que na literatura brasileira raras obras de fôlego épico, como
Os sertões. “Houve também ‘Quarup’, de Antonio Callado, um grande livro.
“Na literatura hispano-americana ele é mais comum, como em García
Márquez e Vargas Llosa. Até mesmo em Borges é possível ver “uma
nostalgia do épico”, pois Borges escreve sobre a impossibilidade de escrever
um épico hoje. “Não que não existam romances desencantados. Basta pensar
nos dramas faulkerianos de Onetti, infelizmente pouco conhecido no Brasil.
Também nota que a literatura brasileira não tem grandes ficções políticas,
como Conversa na catedral, de Llosa. “Mais uma vez, a exceção é Callado,
82
Episódios exemplares deste contexto podem ser encontrados em Dois irmãos (2000), Cinzas do Norte
(2005) e Órfãos do Eldorado (2009).
63
‘Reflexos do Baile’. Mas é curioso como faltam romances políticos no Brasil.
Por que será?”
Por que será? Processo que pode ter começado com o fim das utopias nos anos
60, a política repressiva dos 70, e o fim da ilusão com a democracia nos 80 e 90.
Chegamos aos 2000 presos às oscilações do mercado financeiro e reféns da violência e
da miséria; com um novo século caótico, no qual a política é vista como fonte de lucros,
a miséria é naturalizada e enfrenta-se a violência com cercas elétricas e condomínios
fechados, e sem um projeto coletivo. Em entrevista a revista Caros Amigos (HATOUM,
2010b, p. 16), Milton Hatoum responde à pergunta da jornalista Lúcia Rodrigues:
“Você acha que a ditadura silenciou, não deixou florescer esses escritores que também
poderiam ter surgido?”:
Interrompeu um processo que bem ou mal era alguma promessa de
civilidade, democracia e cidadania. Que vinha do Juscelino, do Jango... O
processo foi interrompido brutalmente, então eu não entendo como as
pessoas que defendem o golpe. Ele interrompeu um processo democrático, o
Jango não era um ditador. O governo deposto foi eleito, mas há saudosistas, e
muitos, no Brasil. Acho que o golpe interrompeu o processo democrático,
enfraqueceu o Judiciário, desmontou a educação pública, ciências humanas,
formação de humanidades na escola pública, privilegiou áreas tecnológicas,
inaugurou a devastação da Amazônia, foram eles que fizeram isso nos anos
70. A transamazônica, as áreas vendidas para a Volkswagem, o processo de
colonização de entrada em Rondônia. E o que surge? Surge Collor, surge
este governador de Brasília, Arruda
83
e ainda com resquícios da ditadura, os
caras ainda estão aí. Agora eu nunca fui partidário, eu sempre fui um franco
atirador, eu detesto qualquer tipo de cerceamento da direita ou da esquerda.
Conhecendo a trajetória do romancista e os romances por ele publicados, nos
deparamos com o entrecruzamento destas histórias: um escritor marcado pela desilusão
e sua obra refletindo esta postura e esta vivência.
Meus livros, sobretudo Dois irmãos e Cinzas do Norte, narram essa
destruição de Manaus. São romances amargos, como todo romance. O
romance não é uma receita de bem-viver, isso é autoajuda [sic]. No Dois
irmãos, Manaus é quase uma personagem. Você pode imaginar que haja até
implicações ideológicas. Não que o romance contenha uma mensagem
explícita, porque eu também acho isso muito frágil romance denúncia, arte
denúncia, eu não acredito em nada disso. Acho que a arte não responde a
nada, ela faz perguntas, insinua coisas, te convida a refletir sobre teu tempo,
sobre você mesmo. Mas o Cinzas do Norte, que é um romance mais
83
José Roberto Arruda foi eleito senador, deputado federal e governador pela Unidade Federativa. Teve a
vida política tumultuada pela renúncia, em 2001, após escândalo de adulteração do painel de votação do
Senado, quando atuou ao lado de Antonio Carlos Magalhães. Em 2010, foi descoberto um grande
esquema de corrupção no governo do Distrito Federal, conhecido como “mensalão do DEM”. Afastado
atualmente do governo, ficou preso de 11 de fevereiro de 2010 até 12 de abril de 2010. No dia 16 de
março de 2010 teve seu mandato cassado pelo TRE do Distrito Federal.
64
ambicioso, não fala apenas de Manaus, tem um pano de fundo histórico da
ditadura, tem a relação com o Rio de Janeiro, com a Europa, tem essa ânsia
do personagem. É uma espécie de despedida também de uma cidade, de um
mundo, que não existe mais (HATOUM, 2010c).
Sem respostas, os romances insinuam e questionam, como assim o quer seu
criador: por que ainda a ditadura? Eterno luto, trauma que não parece passível de
resolução? Se ela se coloca ilusoriamente como acessória na figura de Laval, em Dois
irmãos (2000), é essencial na construção narrativa de Cinzas do Norte (2005). Nael
busca resolver o seu passado abandonando por fim a figura dos seus possíveis pais
(Yaqub ou Omar), tornando-se herdeiro de Halim, Domingas e Laval, o professor
“vermelho”; e Mundo, um libertário, vive o drama da revolta pessoal e solitária. Se o
narrador de Dois irmãos pode ser uma síntese daquele Brasil que nascia no final dos
anos 70, início dos 80, ou uma tentativa de se resolver com o passado, a postura no
romance Cinzas do Norte é mais cética e critica como escreve o autor, é a despedida
de um mundo que não existe mais –, na difícil trajetória do artista Mundo, sufocado
pelo autoritarismo de seu suposto pai e desiludido com Arana, artista mercenário e,
ironicamente, seu verdadeiro pai.
Caio Fernando Abreu, Chico Buarque e Milton Hatoum acabam por colocar-se
na contramão das menções a ditadura: se a sociedade civil parece querer apagar as
marcas do período ditatorial, não mencionando a participação de políticos atuais na
ARENA, calando os nomes das organizações civis que tiveram participação na defesa
do golpe, não mencionando empresários que financiaram a repressão etc., a literatura
brasileira contemporânea quer o contrário, colocando o assunto em foco. Se Caio
Fernando Abreu e Chico Buarque constroem as narrativas pela rememoração dos anos
60 através de seus fantasmas nos 90, Hatoum vai mais longe: o seu presente narrativo é
o próprio período ditatorial repressivo.
4.2 O caso Laval
Nael, o narrador-escritor do romance Dois irmãos, escreve a sua história
possivelmente no final dos anos 70, abrangendo desde 1914 (com a inauguração do
restaurante de Galib) até o seu presente narrativo. Nascido no ano de 1946, portanto da
65
“mesma geração” de Caio Fernando Abreu, Chico Buarque e Milton Hatoum, conta o
que viu e viveu durante a sua estada ao lado da família, somados aos relatos de Halim,
de Domingas em menor grau e dos escritos do professor de francês Antenor Laval.
Centrada no núcleo familiar, o qual sabemos os nomes individuais e não o familiar, a
história de Nael agrega acontecimentos históricos do país à sua trajetória e,
consequentemente, à história da família.
Segundo Milton Hatoum (2010a), “a literatura não respostas, ela expõe
questões, problematiza, faz perguntas a partir de conflitos, de situações que envolvem
tragédias e dramas humanos, mas o faz de maneira oblíqua, mediada”. Temos nessa
concepção do autor o cerne da percepção do intelectual segundo Said (2005, p.26)
84
,
que tem como razão de ser representar as pessoas e os problemas esquecidos através de
sua intervenção. Se analisarmos o universo ficcional nos deparamos com a coincidência
entre os tempos da formação do Brasil moderno e do desenvolvimento da narrativa. De
modo que a construção do romance, abrangendo período tão longo e significativo da
história brasileira, leva ao questionamento de muitos dos impasses vividos neste
período. Problematização que acaba por abarcar período não contemplado na trajetória
romanesca e sim o contemplado na trajetória do escritor Milton Hatoum: qual a reflexão
do escritor enquanto intelectual que viveu a ditadura nos anos 60 e reflete sobre ela no
século XXI.
O enredo nos traz a disputa entre Yaqub e Omar, mas ao adentrarmos a narrativa
percebemos que não são os únicos duplos disponíveis: outros personagens opõem-se e
complementam-se na mesma medida, como apontado no capítulo 4.1. Mas a
duplicidade ultrapassa estes limites levando-nos a duplos como Manaus e São Paulo,
periferia e metrópole: de um lado a sede de progresso na metrópole paulista, do outro, o
atraso econômico do interior na periférica Manaus. Em âmbito mais tenso e nebuloso
pode-se verificar o eterno embate político entre direita e esquerda, personificados
primeiramente na figura de Yaqub e do professor Laval. Atrito que ganha valor com a
simpatia de Omar e Nael pela figura do professor, e consequentemente por uma possível
simpatia pela esquerda.
Nascidos em 1925, os gêmeos chegam aos anos 50 ano em que Yaqub decide
ir embora de Manaus no auge de sua juventude. Enquanto Omar opta pela boêmia
manauara, o irmão parte em busca da própria libertação, seguindo conselhos do
84
A leitura de Representações do Intelectual se deve a intervenção de Milton Hatoum, como se pode
atestar pelo anexo A e como já mencionado na Introdução do presente trabalho.
66
professor Bolislau, segundo o qual se ficasse em Manaus seria derrotado pela
província” ou “devorado pelo irmão” (HATOUM, 2006, p.32)
85
.
A ida de Yaqub para São Paulo coincide, portanto, com os anos de sonhos de
um país em franco desenvolvimento. Após a derrubada da ditadura getulista e a
promulgação de uma nova Constituição Federal (1946), até o golpe civil-militar (1964),
o país viveu uma fase mais democrática e culturalmente riquíssima
86
. Segundo o
narrador “naquela época, Yaqub e o Brasil inteiro pareciam ter um futuro promissor”
(p.33). A bossa, o cinema, Brasília e a Copa do Mundo de 1958 deram a medida exata
da utopia de um novo Brasil. Nas cartas de Yaqub, o fascínio pela cidade grande se
revelava na disparidade amazônica mostrando uma extremidade do Brasil que crescia
vertiginosamente, enquanto em Manaus, “dinheiro dado era maná
87
enviado do céu”
(p.78).
Na época da construção de Brasília, com “noites de blecaute no norte”, a
“euforia de um Brasil distante chegava a Manaus como um sopro amornado” (p. 96). O
futuro promissor parecia dissolvido “no mormaço amazônico” (p.96). Se a utopia dos
anos 50 não chegou a Manaus, o passado grandioso também se mostrava longínquo.
Aqui se abre um parêntesis para retomar o passado grandioso de Manaus: Milton
Hatoum, manauara de nascimento, mostra-se através de seus romances e entrevistas
88
,
bastante crítico ao desenvolvimento desigual e não planejado da cidade, que tem início
no primeiro Ciclo da Borracha.
A capital da Amazônia, hoje uma megalópole descaracterizada
com um milhão e meio de habitantes, fundada em 1669 como fortificação
contra os espanhóis, dormiu um sono profundo de duzentos anos antes de
despertar brutalmente durante o ciclo da borracha (1889-1920): seus
habitantes passaram de dez mil a setenta e cinco mil em poucos anos
(HATOUM, 2004, p. 516-524 apud VON BRUNN, 2008, p.138).
O chamado Ciclo da Borracha foi um período de forte urbanização na região,
colocando Manaus e Belém (PA) entre as cidades mais desenvolvidas da época, vivendo
com requintes inimagináveis em algumas regiões do país: luz elétrica, água encanada,
bondes elétricos, luxuosos edifícios – como o Teatro Amazonas – etc.
85
Todas as citações ao romance referem-se a Hatoum (2006).
86
Ver Capítulo 2.1. Utopia.
87
O livro bíblico Êxodo o descreve como um alimento produzido milagrosamente, sendo fornecido por
Deus ao povo hebreu, liderado por Moisés, durante sua estada no deserto rumo à terra prometida.
88
Ver Hatoum 2010a, 2010b, 2010c.
67
Eduardo Ribeiro
89
criou do nada uma cidade moderna, cuja
prosperidade se baseava numa única matéria-prima e estava, por isso, fadada
à ruína com o fim do ciclo da borracha. Manaus era um viveiro para todos os
mitos. Por trás da fachada deslumbrante surgiram a selva e umas favelas
cheias de poças e cisternas abertas, foco ideal de doenças tropicais que
ceifavam anualmente mais de trezentas pessoas (COLLIER, 1968, p. 26 apud
VON BRUNN, 2008, p.139).
Manaus ainda experimentou o segundo Ciclo da Borracha nos anos 40, ligado a
participação do Brasil na II Guerra Mundial, com forte incentivo do governo Vargas
para a ida de imigrantes nordestinos para o trabalho na região
90
. No âmbito ficcional, o
fim da guerra é retratado como pano de fundo na chegada de Yaqub do Líbano
(coincidentemente a mesma época), em 1945, no Rio de Janeiro. O passado glorioso
mostra-se distante pelos lamentos de Halim:
O cais da praça Mauá estava apinhado de parentes de pracinhas e oficiais que
regressavam da Itália. Bandeiras brasileiras enfeitavam o balcão e as janelas
dos apartamentos e casas, rojões espocavam no céu, e para onde o pai
[Halim] olhava havia sinais de vitória. [...] O filho falou da viagem e o pai
lamentou a penúria em Manaus, a penúria e a fome durante os anos da guerra
(p.11).
Fechando o parêntesis, nos deparamos com a família vivendo um pouco do
progresso alarmado nos 50 visto que somente nas grandes metrópoles do país o
progresso mostrava-se concreto com as reformas trazidas para a casa pelo irmão,
agora paulistano: “se a inauguração de Brasília havia causado euforia nacional, a
chegada daqueles objetos foi o grande evento da casa” (p.97). E as reformas não se
detiveram a casa, alcançaram também a loja da família: o prédio é reformado, a venda
“fiado” é proibida, a publicidade e as promoções começam a fazer parte da estratégia de
divulgação e venda de produtos, e “em menos de seis meses a loja deu uma guinada,
antecipando a euforia econômica que não ia tardar” (p.98). O comércio tão quisto por
Halim, aquele com um caráter informal, quase fraternal, tinha acabado.
Quando Halim se deu conta, não vendia quase nada do que
sempre vendera: redes, malhadeiras, caixas de fósforo, terçados, tabaco de
corda, iscas para corricar, lanternas e lamparinas. Assim, ele se distanciava
das pessoas do interior, que antes vinham à sua porta, entravam na loja,
89
Governador do Amazonas durante o Primeiro Ciclo da Borracha.
90
Ver: Cinema, aspirinas e urubus (2005), filme de Marcelo Gomes, narrando a trajetória de Johann,
alemão fugido da II Guerra Mundial, e Ranulpho, homem simples que vive no sertão. A dupla ganha
dinheiro vendendo aspirinas pelo sertão nordestino, acabando sua trajetória com as promessas de emprego
e sustento na Amazônia, no início do segundo Ciclo da Borracha.
68
compravam, trocavam ou simplesmente proseavam, o que para Halim dava
quase no mesmo (p.99).
A euforia econômica da nova geração contrasta com o desencanto da velha
geração, que destruídos os laços pré-capitalistas, ou mais pessoais e afetivos no
comércio. E esta euforia será gradualmente substituída, através do golpe de 64, pela
opressão política, a cidade estava meio deserta, porque era um tempo de medo em dia
de aguaceiro” (p.143). E a morte de Laval, professor de francês do “Galinheiro dos
Vândalos”, dá a medida da força deste novo regime na Manaus ficcional.
Se até então o professor de francês tinha uma presença tímida na narrativa,
acaba por ganhar relevos surpreendentes na sua morte. Dizia-se que era “um militante
vermelho, dos mais afoitos, chefe dos chefes, com passagem por Moscou. Este, não
negava, nem aprovava” (p.144), mas sua prisão e morte parecem responder a questão.
Assim como o país, na época, Manaus aparece como uma cidade agitada: correria e
confusão no centro, a cidade flutuante cercada por militares, que estavam até nos
terrenos baldios. E para Yaqub: “os terrenos do centro pedem para ser ocupados. (...)
Manaus está pronta para crescer” (p.147).
Yaqub mostra-se simpático aos novos acontecimentos, enquanto o irmão
mostra-se solidário ao professor “vermelho”. Personagem secundário até então, traz
com a sua morte algo impensável: a aproximação, ainda que momentânea, entre Omar e
Nael, e por isso acaba por revestir o personagem de um valor não visível até o
momento.
A primeira versão de Dois irmãos, escrita em ritmo impulsivo, era
mais curta. Foi a avaliação do professor Arrigucci
91
que fez Hatoum
reescrever o romance. O gênero não estava definido, disse Arrigucci; Hatoum
tinha de decidir se era novela ou romance ou seja, teria de adensar ou
esticar a narrativa. Ele esticou. Fundiu histórias que ouvia de conhecidos e
parentes, acrescentou tipos folclóricos como Wyckham, Laval e Perna-de-
Sapo (PIZA, 2007, p.20).
Acrescentado ao romance posteriormente, Laval cresce em importância logo de
sua saída de cena, trágica e atrelada a momento histórico tão traumático da história
brasileira: o período ditatorial. Para se ter uma dimensão mais clara do papel do
professor seja na ligação entre Nael e Omar, como na representação da esquerda se
faz necessário uma volta ao início da narrativa, para então acompanharmos todos os
passos dados pelo personagem em sua trajetória.
91
Davi Arrigucci Júnior, professor aposentado da Universidade de São Paulo.
69
A primeira menção ao personagem se quando Omar é expulso do colégio
dos padres, encontrando abrigo no Liceu Rui Barbosa, apelidado carinhosamente de
“Galinheiro dos Vândalos”. Escola aonde Nael virá a estudar anos depois, pensando que
“o apelido era inadequado e um tanto preconceituoso”, visto que a escola “não era
totalmente desprezível, reinava a liberdade de gestos ousados, a liberdade que faz
estremecer convenções e normas”. Frequentado pela “escória de Manaus”, nenhum
aluno era ‘très raisonnable’ como dizia o “mestre de francês” (p.28). Escola
diferenciada pelos alunos e pelos comportamentos, insubordinados e/ou livres, gera a
simpatia de Nael e a critica da sociedade manauara.
A caracterização da figura do professor era de “um excêntrico, um dândi
deslocado na província, recitador de simbolistas, palhaço da sua própria
excentricidade”. Diferindo dos professores habituais, Laval se detinha na declamação de
poetas franceses simbolistas e não no ensino da gramática francesa, muitos não
entendiam, enquanto alguns sentiam “num átimo”, aprendiam “algo”, sentiam uma
fulguração”, desnorteavam-se. Após as aulas, dedicava-se a matéria muito quista: as
mulheres da calçada do Café Mocambo:
ele fazia loas a Diana, a deusa de bronze, beleza esbelta da praça das Acácias.
Os elogios passavam da deusa a uma moça fardada, toda ela índia,acobreada,
assanhada de desejo; e os dois, juntos, escapuliam do Mocambo e sumiam na
noite da cidade sem luz (p.28).
E é neste ambiente diferenciado que se o encontro entre estas duas figuras
nada convencionais de professor e aluno. O professor, talvez um “militante afoito” e um
apreciador da boêmia e das mulheres. Omar, um beberrão sem grandes marcas
ideológicas, e também um apreciador da boêmia e das mulheres.
Foi esse mestre, Antenor Laval, o primeiro a saudar o recém-chegado
expulso do colégio dos padres. Ele, o Laval, regozijado, quis saber a causa da
expulsão sumária. O Caçula não escondia de ninguém a versão verdadeira: o
ato mais insubordinando, mais infame da história da catequese dos salesianos
na Amazônia, dizia ele. (...) Tinha acontecido na aula desse professor de
matemática, o Bolislau, gigante de tez vermelha, carnadura atlética, sempre
de batina preta, sebenta de tanto suor. Os olhos dele, de castigador que
procura cobaia, focaram o Caçula. Bolislau fez a pergunta dificílima, e, em
resposta ao silêncio do aluno, zombou. O Caçula se levantou, caminhou para
o quadro-negro, parou cabisbaixo diante do gigante Bolislau, deu-lhe um
soco no queixo e um chute no saco: um petardo tão violento que o pobre
Bolislau se agachou, muito corcunda, e rodopiou como um pião bambo. Não
gritou: grunhiu. E na lividez do rosto os olhos claros saltaram, molhados.
Houve um tumulto na sala, risos nervosos e risos de prazer, antes do silêncio,
antes da chegada do irmão diretor escoltado pela matilha de bedéis (p.29).
70
Omar agredira o professor, amigo do irmão, indicando que não este episódio
incitara o ato violento. Contando com orgulho sua história, recebida com prazer pelo
professor de francês, o Caçula abriga-se no Galinheiro dos Vândalos”. Importante
salientar o vocabulário usado pelo narrador que chama Laval de “mestre”, marcando
assim o valor do professor para ele e quiçá para muitos deles: a descrição das reações
durante as aulas levam-nos a crer, neste primeiro instante, numa simpatia geral pela
figura de Laval, valorizada pela fama destes alunos, que nada têm de disciplinados.
O citado episódio acontece ao início da narrativa, como se pode ver pela
referência bibliográfica (p.29), e a figura do professor será retomada páginas depois
(p.135). Neste entremeio, não revela importância na trama, sendo até então apenas um
personagem secundário. E mesmo nessa volta à narrativa, é tímida a sua participação,
como poderá se perceber adiante.
Voltando aos episódios escolares, Omar decide-se por abandonar a escola em 56
e a amizade criada entre o professor e o aluno mostra-se visível pela primeira vez, visto
que até então a amizade não havia sido mencionada. Antenor Laval “trazia-lhe livros e o
convidava a ler poemas na pensão onde morava”, onde pela primeira vez percebe-se a
relação de Omar com a poesia. “Admirava a entonação da voz de Omar que, depois de
recitar um poema do amigo, dizia: “Esta é a voz do teu único leitor”, demonstrando a
relação íntima que existia entre os dois. Mas “os dois não demoravam em casa, o Caçula
esvaziava a bolsa da mãe e arrastava Laval para a calçada do Café Mocambo, por onde
passavam veteranas e calouras do Liceu Rui Barbosa”, dedicando-se agora, os dois, a
outra matéria muito prazerosa para eles: as mulheres. Omar “gandaiava como nunca”
(p.67-8), mas a concordância poder-se-ia ser corrigida: gandaiavam como nunca.
Companheiros de boêmia e recitações de poesia, a participação dos dois em
qualquer organização de esquerda não é fato comprovável. Assim como não se percebe
a recepção desta amizade por Nael. Se o professor era considerado um mestre”, e o
Caçula detestado pelo narrador, o que pensava ele desta amizade? Nael não responde.
Não em nenhum momento uma critica negativa ao professor, assim como não
criticas positivas a Omar em virtude desta relação. Somente na morte do mestre temos a
primeira e única aproximação entre Omar e Nael, o que valoriza a figura do professor.
Em conversa com Yaqub - páginas depois à primeira menção ao personagem -,
a figura do professor é retomada, retificando a simpatia de Nael para com ele:
71
Os olhos acinzentados me procuraram, ele perguntou sobre o Liceu Rui
Barbosa, se estava valendo a pena freqüentar uma escola de péssima
reputação. “Sempre vale a pena concluir alguma coisa”, eu disse. “Aprendi
um pouco no Galinheiro dos Vândalos e aprendi muito lendo os livros que
Laval me emprestou, conversando com ele depois das aulas (p.135).
Se para Yaqub aquela escola era um péssimo lugar, Nael sai em sua defesa, e a
figura de Laval mostra-se crucial: foi com ele que aprendeu muito, seja na sala de aula
ou fora dela. Participando da formação de Nael e Omar, duplos díspares no romance,
Laval, personagem que parecia não ter maiores importâncias, ganha um capítulo
fundamental na narrativa, que traz mudanças nas percepções de Nael acerca dos dois
irmãos, os motivadores da sua construção narrativa. E que vem também a ser capítulo
verídico importante – e lamentável – da história brasileira.
Na primeira semana de janeiro de 1964, Antenor Laval passou em casa para
conversar com Omar. O professor de francês estava afobado, me perguntou
se eu havia lido os livros que me emprestara e me lembrou, com uma voz
abafada: as aulas no liceu começam logo depois do Carnaval. Falava como
um autômato, sem a calma e as pausas do professor em sala de aula, sem o
humor que nos mantinha acesos quando ele traduzia e comentava um poema.
Minha mãe se assustou ao vê-lo tão abatido, um morto-vivo, a expressão
aflitiva de um homem encurralado. (...) fumou vários cigarros enquanto
tentava convencer Omar a participar de uma leitura de poesia, mas o Caçula
primeiro fez uma careta de desgosto, depois brincou. (...) Para Laval, não era
dia de chacotas: fechou a cara, calou, pigarreou, mas logo tornou a pedir, a
implorar que Omar fosse com ele até o porão onde morava. Laval ainda teve
que esperar o amigo tomar um banho para tirar a ressaca. Os dois saíram
apressados e Omar voltou na madrugada do dia seguinte, quando Zana
estranhou a sobriedade do filho, alguma coisa que ele escondia ou o
inquietava. (...) Antes de almoçar pediu dinheiro à irmã. Era bem mais do que
costumava pedir, um dinheirão que Rânia se recusou a dar. (...) Ele ainda
insistiu, sem o cinismo habitual, sem os gestos de sedução que o
desmanchavam. Insistiu com o rosto tenso, a voz grave, o olho sincero
(p.139).
Afobado, autômato, abatido, aflito e encurralado são alguns dos adjetivos
dados ao professor naquele dia. Mas o que o assustava? Omar é descrito, pela
primeira vez, como alguém com preocupações além de seu próprio universo particular
(leiam-se as mulheres, a mãe e o irmão): tenso e sincero. Algo de muito importante
acontecia com Laval: “Quando eu ia atrás de Halim, passava pela pensão do Laval, mas
não o via no subsolo. Estava totalmente escuro e a rua deserta dava um pouco de medo”
(p.141).
A casa do professor, um porão, é descrita nas palavras do próprio Laval como
um “caos mais infecto que um pesadelo, mas é o meu alimento”. As leituras no porão
72
eram famosas, pelo ambiente e pelo anfitrião: “Pilhas de papel cercavam a rede onde ele
dormia (...). Nos cantos escuros amontoavam-se garrafões vazios de vinho, e no piso
cimentado restos de comida ressequida se misturavam a asas de barata”. Os alunos
saíam destes eventos presenteados com livros e apostilhas, enquanto o professor ficava
lá “fumando, bebendo e traduzindo poemas franceses durante a noite” (p.141).
Foi com um convite para participar de leituras de poesia que Laval chegou a
Omar naquele dia. Nael estranhou não ter sido convidado, assim como estranhou a falta
do mestre nas primeiras aulas, aparecendo na terceira semana do mês” de março de
1964, mais abatido ainda e dando sinais do mau tempo que estava por vir, com “os
dedos da mão esquerda e os dentes amarelados de tanto fumar”. Declarando-se
“indisposto”, em francês, declara em português: “muita gente está indisposta” (p.141).
Saindo da ficção nos deparamos com a primeira metade dos anos 60 como um
período de tensão na história brasileira. O regime instaurado em 46 estava em declínio,
o parlamentarismo entrara em vigor em 61 e arrastara-se até 63, quando o
presidencialismo restabeleceu-se, mas sem forças
92
, com João Goulart assumindo a
presidência com o país a beira de uma guerra civil. Os problemas sociais e políticos
aumentavam, o descontentamento emanava desde as classes agrárias até os grandes
industriais. O crescimento econômico dos anos 50, que era visto como uma solução para
os problemas do país, não se mostrou eficiente. E, além disso, o governo João Goulart
ziguezagueava entre a esquerda e a direita.
O ano de 63 termina com uma amostra das batalhas que seriam travadas nos
próximos anos: no dia 30 de dezembro de 1963, Carlos Lacerda, governador do estado
da Guanabara e oposicionista de Jango, deveria fazer um discurso como paraninfo do
curso de Jornalismo da Faculdade Nacional de Filosofia. Os alunos não permitiram
93
.
Em janeiro de 64, Luis Carlos Prestes “antecipou publicamente a idéia continuísta do
segundo mandato presidencial de Jango e sugeriu reforma constitucional para este fim”
(GORENDER, 1987, p. 60), mesmo sabendo ser quase impossível o congresso aprovar
esta reforma, tamanho o descontentamento com Jango.
A saga dos confrontos entre direita e esquerda movimentou o início de 64. O
Congresso da Central Única de Trabalhadores da América Latina (CUTAL) fora
impedido de realizar-se, em janeiro de 64, nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Liberado pelo governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, sofreu forte oposição e
92
Para maiores detalhes ver: Reis Filho, 1989, p. 21.
93
Para maiores detalhes ver: Gorender, 1987, p.60.
73
teve de ser transferido para Brasília. No dia 25 de fevereiro daquele ano, Leonel Brizola
iria discursar na Secretaria de Saúde, em Belo Horizonte, mas foi impedido de falar
pelos oposicionistas. Na Universidade Federal da Bahia, no dia 3 de março, estudantes
impediram que o reacionário ex-ministro Clemente Mariani proferisse a aula inaugural
da universidade. Em 15 de março, Miguel Arraes conseguiu discursar em Juiz de
Fora sob proteção da Polícia Militar
94
.
No dia 13 de março de 1964, Jango anunciou em um comício a disposição de
lançar o governo na campanha das reformas de base:
“se o Congresso Nacional não aprovar as reformas, perderá sua identidade
com o povo”. Era um governo em crise, com a bandeira das reformas
hasteada no mastro da intimidação. À tensão política somava-se um declínio
econômico. O presidente dizia que “o vertiginoso processo inflacionário a
que estamos submetidos irá fatalmente arrastar o país à bancarrota, com todo
o sinistro cortejo de um desastre social de proporções catastróficas”. Os
investimentos estrangeiros haviam caído à metade. A inflação fora de 50%
em 1962 para 75% no ano seguinte. Os primeiros meses de 1964 projetavam
uma taxa anual de 140%, a maior do século. (...) As greves duplicaram, de
154 em 1962, para 302 em 63” (GASPARI, 2002, p. 48).
A resposta do conservadorismo paulista veio com a Marcha da Família com
Deus pela Liberdade. Reuniram-se “perto de 200 mil pessoas com faixas ameaçadoras
(“Tá chegando a hora de Jango ir embora”) e divertidas (“Vermelho bom, só batom”). O
Congresso (...) mostrava-se disposto a bloquear os projetos de reforma e cozinhar o
surto esquerdista até o ano seguinte” (GASPARI, 2002, p.49). Duas possibilidades
políticas se confrontavam: uma, pela direita, visando depor o presidente. A outra, pela
esquerda, pretendendo a sua permanência para realizar as reformas de base.
Retornando à ficção, na terceira semana de março” de 64, Laval, mal se
equilibrando de pé, com a mão trêmula, “segurava um pedaço de giz” com uma mão e
com a outra, um cigarro”, dava sinais contundentes de forte abatimento. A aula que
sempre transcorria com “a ‘preleção’ de costume, uns cinqüenta minutos que dedicava
ao mundo que envolvia o poeta”. Os momentos da “preleção” eram os momentos em
que provocava seus alunos, “estimulava, fazia perguntas, queria que falássemos uma
frase, que ninguém ficasse calado, nem os mais tímidos, nada de passividade, isso
nunca”. Laval esperava e estimulava os questionamentos de seus alunos, esperando
deles não uma postura inertee seria exatamente a postura questionadora, louvada pelo
professor, que tanto precisaríamos naqueles anos obscuros que estavam por vir.
94
Para maiores detalhes ver: Gorender, 1987, p.61.
74
Professor que queria a contestação de seus alunos face às posições apresentadas
em aula, em nada se adequava ao sistema que estava para ser implantado no país, no
qual os contestadores como em tantos outros regimes opressivos sofreriam as
consequências. Laval “queria discussão, opiniões diferentes, opostas, ele seguia as
vozes, e no fim falava ele, argumentava animado, lembrando-se de tudo, de cada
absurdo ou intuição ou dúvida” (p.141).
Mas não foi esta aula que seus alunos tiveram naquela manhã, o professor “não
conseguia falar, estava engasgado, parecia sufocado”. Os alunos, “boquiabertos, nem os
mais ousados e rebeldes conseguiam provocá-lo fazendo uma careta medonha por causa
do bafo dele”. Com a mão ainda trêmula, “começou a escrever um poema no quadro-
negro, quase ilegível, apenas o último verso, copiado por Nael, era legível: Je dis: Que
cherchent-ils au Ciel, tous ces aveugles?”(p.141). O poema escrito pelo professor é de
Charles Baudelaire, possivelmente um dos simbolistas que ele tanto lia. Diz o poema:
Les Aveugles
Contemple-les, mon-âme; ils sont vraiment affreux!
Pareils aux mannequins, vaguement ridicules;
Terribles, singuliers comme les sonnambules;
Dardant on ne sait où leurs globes ténébreux.
Leurs yeux, d'où la divine étincelle est partie,
Comme s'ils regardaient au loin, restent levés
Au ciel; on ne les voit jamais vers les paves
Pencher rêveusement leur tête appesantie.
Ils traversent ainsi le noir illimité,
Ce frère du silence eternel. O cité!
Pendant qu'autour de nous tu chantes, ris etbeugles.
Éprise du plaisir jusqu'à l'atrocité,
Vois! je me trâine aussi! Mais, plus qu'eux hébété
Je dis: Que cherchent-ils au Ciel, tous ces aveugles?
95
(BAUDELAIRE, 1985, p.342)
O que buscavam aqueles cegos ver no céu? Se cegos, incapazes de ver a própria
realidade, e forçando a nota na possível metáfora de Laval para a realidade que o
95
Tradução: Os Cegos/Contempla-os, ó minha alma; eles são pavorosos!/Iguais aos manequins, grotescos,
singulares,/Sonâmbulos talvez, terríveis se os olhares, / Lançando não sei onde os globos
tenebrosos.//Suas pupilas, onde ardeu a luz divina,/Como se olhassem à distância, estão fincadas/No céu;
e não se jamais sobre as calçadas/Se um deles a sonhar sua cabeça inclina.//Cruzam assim o eterno
escuro que os invade,/Esse irmão do silêncio infinito. Ó cidade!/Enquanto em torno tu cantas, ris e uivas
ao léu!//Nos braços de um prazer que tangencia o espasmo,/Olha! também me arrasto! e, mais do que ele
pasmo,/Digo: que buscam estes cegos ver no Céu? (BAUDELAIRE, 1985, p.343. Tradução: Ivan
Junqueira).
75
cercava: cegos crédulos na ignorância daqueles que os conduzem. Depois de escrever o
poema, “largou o giz e saiu sem dizer palavra. O professor de francês não voltou mais
ao liceu” (p.141). Laval, ao mostrar-se entristecido e abatido, pode revelar a antecipação
da informação do golpe da direita ou ainda ser sintomática da desilusão da própria
esquerda para consigo mesma.
Voltando ao plano histórico e verídico, àquele fim de março de 64 ainda
presenciou o discurso do então presidente, a 30 de março, no Automóvel Clube no Rio
de Janeiro. Jango discursava: “Não admitirei o golpe dos reacionários. O golpe que nós
desejamos é o golpe das reformas de base, tão necessárias ao nosso país”
(GORENDER, 1987, p.65). Mas foi derrotado e o golpe-civil militar se deu no dia 1º de
abril de 1964. Segundo Gorender (1987, p.67), “nos primeiros meses de 1964, esboçou-
se uma situação pré-revolucionária e o golpe direitista se definiu, por isso mesmo, pelo
caráter contra-revolucionário preventivo. A classe dominante e o imperialismo tinham
sobradas razões para agir antes que o caldo entornasse”. Fugindo um pouco a alçada do
presente trabalho, é importante ponderar o depoimento de Gorender (1987), visto que se
a situação era pré-revolucionária por que as organizações de esquerda não realizaram
um contragolpe? Além do que, ao concordarmos com essa ideia, dá-se justificativa para
o golpe de direita: a salvação do país.
Na ficção, em uma manhã de abril, os alunos de Laval presenciaram sua prisão.
Ele acabara de sair do Café Mocambo, atravessava lentamente a praça
das Acácias na direção do Galinheiro dos Vândalos. Carregava a pasta
surrada em que guardava livros e papéis, a mesma pasta, os mesmos livros;
os papéis é que poderiam ser diferentes, porque continham as garatujas dele.
Laval sempre carregava uma pasta com seus poemas e rabiscos, não guardava
o que escrevia, dava aos alunos. Dizia: “Um verso de um grande simbolista
ou romântico vale mais do que uma tonelada de retórica - dessa minha inútil
e miserável retórica”, acentuava.
Foi humilhado no centro da praça das Acácias, esbofeteado como se
fosse um cão vadio à mercê da sanha de uma gangue feroz. Seu paletó branco
explodiu de vermelho e ele rodopiou no centro do coreto, as mãos cegas
procurando um apoio, o rosto inchado voltado para o sol, o corpo girando
sem rumo, cambaleando, tropeçando nos degraus da escada até tombar na
beira do lago da praça. Os pássaros, os jaburus e as seriemas fugiram. A vaia
e os protestos de estudantes e professores do liceu não intimidaram os
policiais. Laval foi arrastado para um veículo do Exército, e logo depois as
portas do Café Mocambo foram fechadas. Muitas portas foram fechadas
quando dois dias depois soubemos que Antenor Laval estava morto. Tudo
isso em abril, nos primeiros dias de abril (p. 141-42).
O regime militar que se instaurou no país naquele ano primou pela opressão
política, diferentemente da situação após o AI-5, em que a violência repressiva será
76
muito mais gritante. Naquele abril, as prisões limitaram-se a líderes comunistas, como o
caso de Gregório Bezerra, em Pernambuco, que era um “ativo organizador de sindicatos
rurais em Pernambuco, que se empenhou em obter armas para os trabalhadores do
campo” (GORENDER, 1987, p.64). Líder esse que foi humilhado naquele abril de 64,
lembrando muito a história ficcional de Laval:
No dia 2 de abril, no Recife, o dirigente comunista Gregório Bezerra foi
amarrado seminu à traseira de um jipe e puxado pelos bairros populares da
cidade. No fim da viagem, foi espancado por um oficial do Exército, com
uma barra de ferro, em praça pública. Machucado e sentado no chão do pátio
do quartel da Companhia de Motomecanização, no bairro da Casa Forte,
Gregório Bezerra foi visto na noite de 2 de abril pelos espectadores da TV
Jornal do Commercio, que o filmara. Episódios semelhantes repetiram-se em
algumas cidades do país. Eram parte do jogo bruto provocado pela
radicalização dos últimos anos. O medo entrara na transação política. De sua
coluna diária no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, Carlos Heitor
Cony, primeira voz destemida a denunciar as violências, escrevia, no dia 7 de
maio: “Para atender a essa gente, a todos os Joões de Tal que não voltaram ou
não voltarão um dia, espero merecer a atenção e o respeito de todos. É
preciso que alguém faça alguma coisa. E que não se pode mais pedir
justiça, peço caridade (GASPARI, 2002, p.132).
Mas diferentemente de Gregório Bezerra, a participação de Laval em
organizações de esquerda permanece incógnita na narrativa. E mesmo em face do
acontecimento violento em Pernambuco que não terminou em morte –, naqueles
primeiros dias de abril o número de mortos, segundo Gaspari (2002), se limitou a
mortes em manifestações, como segue seu relato sobre o dia 1º de abril de 1964:
Na rua, a revolta militar saiu mais cara. No Recife dois estudantes
foram mortos quando uma passeata marchou para o palácio das Princesas e se
encontrou com as tropas que o cercavam. Alguns manifestantes davam vivas
ao “Exército brasileiro” quando se ouviram alguns disparos. Chegou-se a
pensar que eram balas de festim do “dispositivo”. No Rio de Janeiro militares
atiraram contra manifestantes que se haviam reunido em frente ao Clube
Militar, na Cinelândia. Ainda assim, na contabilidade das quarteladas latino-
americanas, a deposição do presidente João Goulart foi praticamente
incruenta. Custou sete vidas, todas civis, nenhuma em combate (GASPARI,
2002, p.112)
96
.
96
“No dia de abril morreram sete pessoas. No Rio de Janeiro, em frente à Faculdade Nacional de
Direito, foi baleado Ari de Oliveira Mendes Cunha; na Cinelândia, Labib Elias Abduch; na Faculdade
Nacional de Filosofia, o estudante Antônio Carlos Silveira Alves, baleado acidentalmente quando a arma
de um colega caiu no chão. No Recife, a tropa do Exército que cercava o palácio das Princesas matou os
estudantes Ivan Rocha Aguiar e Jonas José Albuquerque. Em Governador Valadares, Minas Gerais,
pistoleiros arregimentados pelo delegado da cidade mataram Augusto Soares da Cunha e seu filho, Otávio
Soares Cunha”. Ver: Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964, p.41-6 apud Gaspari,
2002, p.112
77
Conforme visto, os casos de violência cercaram aqueles que participavam
diretamente de facções de esquerda ou estavam em manifestações contra a ditadura.
Casos de violência podem ter acontecidos fora dos grandes centros, mas a não
participação do professor em organizações de esquerda teoricamente o afastariam das
primeiras vítimas do golpe. Laval, professor no interior do país, não se encaixa em
qualquer destas especificações, podendo ser o seu caso visto como uma licença poética
no romance, e não uma verdade histórica. Ou ainda, talvez os estudos sobre a ditadura
que remetem a regiões menos centrais ainda não dêem conta de informações desta
envergadura, mantendo-nos informado somente dos acontecimentos mais violentos dos
grandes centros.
No plano ficcional, a pasta que o professor carregava no dia de sua prisão fora
apanhada por Nael, “dentro da pasta, os livros e as folhas com poemas, cheias de
manchas”. A visão dos escritos do mestre acaba por gerar em Nael rememorações
afetuosas:
As lembranças de Laval: seus ensinamentos, sua caligrafia esmerada,
de letras quase desenhadas. As palavras pensadas e repensadas. Ele não
queria ser chamado de poeta, não gostava disso. Detestava pompa, ria dos
políticos da província, espicaçava-os durante os intervalos, mas recusava-se a
falar sobre o assunto no meio de uma aula. Dizia: “Política é conversa de
recreio. Aqui na sala, o tema é muito mais elevado. Voltemos à nossa outra
noite...” (p.143).
Um cético que ria da política e a considerava um tema menor, parece ter sido
condenado exatamente por ela. No dia de sua morte, “choveu muito, um toró dos
diabos”. Mas o carinho de seus alunos foi demonstrado quando todos se reuniram no
coreto, acenderam tochas”, cada qual com “um poema manuscrito do mestre” (p.143).
Homenagem que contava com a presença de alunos e ex-alunos, como Omar, que “foi o
último a recitar”, “emocionado e triste”. “A chuva atenuava a tristeza, mas acendia a
revolta”. O chão ainda continha manchas de sangue e “Omar escreveu com tinta
vermelha um verso de Laval, e por muito tempo as palavras permaneceram ali, legíveis
e firmes, oferecidas à memória de um, talvez de muitos” (p.143). Versos que se
oferecem àqueles que foram presos, humilhados ou até mortos pelo novo regime e que
se estende aos anos que estavam por vir.
A morte de Laval trouxe até então o inimaginável na narrativa: a simpatia de
Nael para com Omar:
78
Por uma vez, só, não hostilizei o Caçula, não pude odiá-lo naquela
tarde chuvosa, nossos rostos iluminados por tochas, nossos ouvidos atentos às
palavras de um morto, nosso olhar na fachada do liceu, na tarja preta que
descia do beiral à soleira da porta. Um liceu enlutado, um mestre assassinado:
assim começou aquele abril para mim, para muitos de nós.
Não pude odiar o Caçula. Pensei: se toda a nossa vida se resumisse
àquela tarde, então estaríamos quites. Mas não era, não foi assim. Foi
aquela tarde. Ele voltou para casa tão alterado que não se apercebeu da
presença do outro (HATOUM, 2006, p.143).
Se a amizade de Laval e Omar nunca havia sido questionada ou julgada por
Nael, a morte do professor fez com que o menino se reconhecesse na dor do Caçula.
Com o papel inicialmente lateral, após a sua morte, percebe-se que Laval nada tinha de
lateral na história de Nael. A sua morte, além de aproximar momentaneamente os
díspares Nael e Omar, leva também a uma mudança no comportamento de narrador em
relação a Yaqub: se antes o idealizava, a frieza do mesmo face aos acontecimentos
daqueles dias inicia da ditadura, iniciará o processo que culminará no afastamento entre
os dois no futuro, por opção do menino. Mas a mais importante influência de Laval se
dá na formação e na escolha profissional de Nael, como se verá adiante.
Por ora, pode se perguntar: mas quem era esse professor? Pego de surpresa com
tamanha brutalidade, Nael tenta achar respostas no que sabia sobre sua vida, mas eram
muito poucas as informações: “ao meio-dia e as seis a dona da casa deixava um prato
feito na entrada da caverna [apelido dado por Laval ao porão onde morava]. Fazia isso
todos os dias, mesmo nos domingos, quando eu passava na calçada da pensão e
enxergava o prato de comida na soleira da porta” (p.144). Bebia muito, ao ponto dos
“alunos do período noturno” sentirem “à distância o bafo azedo de sangue-de-boi”.
Mesmo em situações assim, o bom humor mantinha-se, quando faltava luz”, com
lampiões e velas, conseguia “ler um poema e comentá-lo com entusiasmo”. Em meio às
leituras, momentos de silêncio “de um intervalo, uma reflexão, pausa que a memória e a
voz cumprem. Ou seria o efeito do vinho, a caída no abismo?” A ninguém cabia a
resposta.
Cercado de mistérios, desde a sua postura diferenciada e folclórica em sala de
aula, “de sua vida ninguém tinha notícias claras: um caracolzinho entre pedregulhos”.
Duas versões existiam: “Um: que fora militante vermelho, dos mais afoitos, chefe dos
chefes, com passagem por Moscou”. O outro, “diz que havia muito tempo o jovem
advogado Laval vivia com uma moça no interior. Líder e orador nato, ele fora
convocado para uma reunião secreta, no Rio. Levou a amante e voltou a Manaus
sozinho. Falou-se de traição e abandono” (p.144). Militante comunista ou um líder nato
79
abandonado pela amante? Que “reunião secreta” poderia ser esta? As duas
possibilidades podem ter condenado o professor. E ao que o romance indica sua
condenação passa obrigatoriamente pelo seu envolvimento com a esquerda, ou de outra
forma não seria possível compreender sua angústia com o período pré-golpe e a
repressão que sofrera. Importante notar que em nenhum momento a palavra “ditadura” é
mencionada no romance, somente através da datação e das menções do narrador ao
ambiente percebemos o pano de fundo histórico.
Suposições e mexericos, a única certeza era sobre sua vida como professor do
Liceu, assim como a clareza de ser um eterno angustiado: internou-se no subsolo de
uma casa à margem do Igarapé de Manaus. Várias vezes foi encontrado no canto da
caverna, quieto e emudecido, o rosto cadavérico, a barba espessa que ele conservaria até
a imolação”. Sua fisionomia denotava algum sofrimento, talvez desespero”. Por quê?
Os poemas escritos pelo professor “insinuavam noites aflitas, mundo soterrado, vidas
sem saída ou escape”. Mas “no íntimo era um pessimista, um desencantado, e tentava
compensar esse desencanto por meio da aparência, com seu jeito de dândi”. Desencanto
com a esquerda? Com as mulheres? Perguntas sem respostas... Bem humorado, “não se
incomodava quando o chamavam de excêntrico ou afetado”, mas poeta, isso refutava.
Para Nael, “foi um mestre. E também um atormentado que escrevia, sabendo que não
publicaria nada. Seus poemas repousam por aí, em gavetas esquecidas ou na memória
de ex-alunos” (p.145).
Logo após a homenagem a morte de Laval, Yaqub e Omar encontram-se na casa
materna:
Ele [Yaqub] se levantou da rede quando Omar entrou na sala, ensopado,
descalço, a roupa colada no corpo. Parecia febril, e no rosto dele ainda era
visível o luto por Laval. Eu me lembrei da voz de Omar recitando um poema
do morto, da época em que os dois, aluno e professor, saíam juntos depois da
aula e se embrenhavam no matagal nos arredores da rua Frei José dos
Inocentes, onde as putas os esperavam (HATOUM, 2006, p.146).
A cidade estava agitada por aqueles dias, “havia correria e confusão no centro”,
“a Cidade Flutuante estava cercada por militares”, reclamava Halim. “Eles” estavam por
toda parte, “Até nas árvores dos terrenos baldios a gente uma penca de soldados...”.
Mas para Yaqub as notícias pareciam agradáveis, pensava que os terrenos do centro
“pedem para ser ocupados” e que “Manaus está pronta para crescer” (p.147).
80
A postura de Yaqub chama a atenção, visto que em meio ao golpe todos estão
agitados e/ou tristes, ele não:
Não perdera o ar soberbo: o orgulho de alguém que quis provar a si mesmo e
aos outros que um ser rude, um pastor, um ra’i, como o chamava a mãe,
poderia vir a ser um engenheiro famoso, reverenciado no círculo que
freqüentava em São Paulo. Agora não queria ser chamado de doutor, sentia-
se mais à vontade em casa, não vestia paletó e gravata. Tampouco se
comportou como hóspede. Era um filho que volta à casa dos pais e ao lugar
da infância (HATOUM, 2006, p.147).
Finalmente sentindo-se em casa, passou aqueles dias obstinado pelo trabalho.
Nesta sua estada é possível perceber a intenção de Yaqub de aproximação com Nael,
muito em virtude de sentir-se mais à vontade na casa materna, estando por consequência
mais à vontade com aqueles integrantes da família com quem sempre teve mais
intimidade: Domingas, Nael e Halim. Nesta tentativa de aproximação, desejava levar
Nael para conhecer o mar - para, quem sabe, tirá-lo daquela “província” -, mas este
encara o convite como uma promessa sem futuro, “o mar estava muito longe”, e ele,
com seus pensamentos cravados em Manaus, “nas portas fechadas do liceu, na morte de
Laval” (p.149).
Nael estava preso àquele momento grave da sua história pessoal e do Brasil, os
tempos eram de medo, menos para Yaqub, que notara a inquietação e tristeza do
menino, então com 18 anos, que desabafa: “estava com medo, faltava pouco para
terminar o curso do liceu. Um professor tinha sido assassinado, o Antenor Laval...”.
Pensativo, Yaqub alega: “Eu também tenho um amigo... foi meu professor em São
Paulo...” Nael continua:Parou de falar, me olhou como se eu não fosse entender o que
ele ia dizer. Na época em que havia estudado no colégio dos padres talvez tivesse
conhecido Laval”. O temor de Nael com estes novos tempos se choca com a
tranquilidade demonstrada por Yaqub, que alega ter tido “um amigo”, seu professor em
São Paulo, nos levando a crer que mais do que ser “um amigo”, fora seu único amigo. O
encontro entre Laval e Yaqub não acontece na narrativa, mas isso não impede, como
supõe Nael, que eles tenham se conhecido em Manaus. Enquanto isso, Omar, doente,
segundo Zana, “adoeceu por causa de Laval, aquele doido” (p.148).
Manaus, como boa parte dos grandes centros, estava ocupada. “As escolas e os
cinemas tinham sido fechados, lanchas da Marinha patrulhavam a baía do Negro, e as
estações de rádio transmitiam comunicados do Comando Militar da Amazônia”. A loja
da família teve que ser fechada e com a greve dos portuários houve “confrontos com a
81
polícia do Exército”. Nael fora aconselhado a não mencionar o nome de Laval fora de
casa”, mas segundo nosso narrador, não fora somente este o nome emudecido, outros
também o foram. “A tarja preta que cobria uma parte da fachada do liceu fora arrancada
e as portas do prédio permaneceram trancadas várias semanas” (p.149).
Mas para Yaqub isto não era problema, se a situação deixara Omar adoentado e
Nael assustado, o mesmo não acontecera com ele, que “não se intimidou com os
veículos verdes que cercavam as praças e o Manaus Harbour”. Nael “não queria sair de
casa, não entendia as razões da quartelada, mas sabia que havia tramas, movimento de
tropas, protestos por toda parte. Violência”. Amedrontado, é tranquilizado por Yaqub:
“Já fui militar, sou oficial da reserva”, disse orgulhoso (p.149), e acaba por convencer o
menino a acompanhá-lo em seu passeio pela cidade. De acordo com as demonstrações
de tranquilidade e de apoio ao progresso em Manaus, assim como a revelação de que
havia sido militar, ligam diretamente Yaqub ao regime que estava se instalando no país,
atitudes não compreendidas por Nael, que até então nunca o tinha questionado.
No passeio, Yaqub fotografa edifícios e monumentos. Engenheiro civil de
formação e militar da reserva, estaria ele a serviço do regime? Chega a Manaus no
começo de abril, mostra-se muito sereno em sua casa e sua cidade, quando serenidade
era adjetivo de luxo para personagens como Nael, Omar e Halim. Os indícios nos levam
a crer no mínimo na figura de Yaqub como um simpatizante do regime ditatorial.
Nael, em meio ao passeio com Yaqub, só pensava em Laval:
Perto da igreja, parei para descansar e admirar os pássaros do aviário. Percebi
que estavam assustados, voavam enlouquecidos para todo lado, mas logo um
zunido de varejeiras me incomodou, um som grave e monótono que foi
aumentando, e quando desviei os olhos para a rua, fiquei gelado ao ver um
jipe apinhado de baionetas. Pensei em Laval, seu corpo sendo espancado e
pisoteado no coreto, e arrastado até a beira do lago. Esperei o veículo militar
desaparecer, mas logo veio outro, e mais outro. Muitos, e sons de trovoada.
Os soldados gritavam, davam vivas, uma barulheira de vozes, e buzinas
alarmou a praça da Matriz. Era um comboio de caminhões que vinha da praça
General Osório e ia na direção do roadway. Acompanhei com o rabo do olho
a trepidação daquele monstro verde na rua de pedras, senti um mal-estar, uma
pontada na cabeça e logo um ânsia de não ter fim (HATOUM, 2006, p.150).
O menino, já bastante amedrontado com os últimos acontecimentos, percebe a
cidade sitiada pelos militares, os mesmos militares que espancaram seu professor. Não
suporta a dura realidade e assim como Omar, adoece, delirando com a figura de Laval:
O chão trepidava cada vez mais, agora eram sirenes e urros que zuniam na
minha cabeça, e baionetas que apontavam para a porta da igreja, onde os
82
meus colegas do liceu erguiam os braços, se atiravam ao chão ou caíam, e
depois apontavam para Laval, que se contorcia no aviário cheio de pássaros
mortos, a mão direita segurando a pasta surrada, a esquerda tentando agarrar
as folhas de papel que queimavam no ar. Eu quis entrar no aviário, mas
estava trancado, e ainda pude ver Laval bem perto de mim, o rosto rasgado de
dor, o colarinho cheio de sangue, o olhar triste e a boca aberta, incapaz de
falar. Ele desapareceu na noite súbita e eu comecei a gritar por Yaqub, gritei
como um louco, e vi minha mãe diante de mim, as mãos no meu rosto quente,
os olhos dela arregalados, acesos e tensos. Halim e Yaqub estavam atrás dela
e me olhavam assustados. Eu tremia de febre, suava, estava ensopado. Quis
saber sobre a missa do mestre, eles desconversaram. Minha mãe não saiu de
perto de mim, foi a única vez que a vi noite e dia do meu lado. Abandonou
tudo, toda a labuta diária, nem subiu para ver o Caçula (p.150).
A morte de Laval foi um golpe para Omar e Nael, que avalia pela primeira vez a
amizade entre os dois: “Antenor Laval, mais que Chico Keller, fora amigo do Caçula.
Uma amizade meio clandestina, como acontecera com os dois amores de Omar ou com
tudo que lhe dava prazer, desejo e confiança” (p.153). Mesmo após a partida do irmão,
Omar permanece enclausurado, escrevendo um “Manifesto contra os golpistas”, o único
sinal de sua militância em todo o romance, mas que se limita a uma sala vazia, onde
Nael pode ouvir “as frases ousadas, com tantas palavras duras” (p.153).
Se a recuperação de Nael foi rápida, o mesmo não se pode dizer de Omar.
Recluso, manteve “os olhos de pesadelo, perdidos na mais escura das noites” (p.153).
Brincava de jardineiro, “catando frutas podres no quintal”, recusando a ajuda de
Domingas. Catava as frutas bichadas, mas perdia tempo com uma jaca desventrada,
observando as moscas e larvas aninhadas na polpa amarela” (p.153). Nael estranhava
essa proximidade e esse desleixo, ele “mal sabia manusear um ancinho, ficava
agoniado, as mãos e os pés inchados, vermelhos, o corpo queimado e ferido de tanta
mordida das formigas devoradoras” (p.153). Permaneceu durante muito tempo nesta
clausura patética, de onde saía escondido para encontrar asputas”. Seu segredo é
descoberto após ser contaminado por uma DST: o filho querido de Zana estava com
gonorréia e urrava de dor.
Halim, não suportando ouvir sequer a voz do filho e as desculpas dadas pela
mãe, fugia de casa, vagando pela cidade, indo ao encontro de seus amigos pelos bares,
com a fiel proteção de Nael, que sempre o trazia para casa. Em uma dessas andanças
pela cidade, presencia a demolição da Cidade Flutuante”, bairro humilde e proletário
de Manaus, demonstrando a reflexão do intelectual Milton Hatoum sobre o crescimento
desenfreado e desigual da cidade.
83
Os moradores xingavam os demolidores, não queriam morar longe
do pequeno porto, longe do rio. Halim balançava a cabeça, revoltado, vendo
todas aquelas casinhas serem derrubadas. Erguia a bengala e soltava uns
palavrões, gritava “Por que estão fazendo isso? o vamos deixar, não
vamos”, mas os policiais impediram a entrada no bairro. Ele ficou engasgado,
e começou a chorar quando viu as tabernas e o seu bar predileto, A Sereia do
Rio, serem desmantelados a golpes de machado. Chorou muito enquanto
arrancavam os tabiques, cortavam as amarras dos troncos flutuantes,
golpeavam brutalmente os finos pilares de madeira. Os telhados desabavam,
caibros e ripas caíam na água e se distanciavam da margem do Negro. Tudo
se desfez num dia, o bairro todo desapareceu. Os troncos ficaram
flutuando, até serem engolidos pela noite (p.159).
Halim vem a falecer no Natal de 68 (12 dias após o AI-5), ano em que a casa, a
família e até mesmo o país desmoronavam. na morte do marido Zana finalmente
repreende o Caçula: Chega de bancar o coitadinho, chega de esfolar as mãos e os
braços com esse trabalho de péssimo jardineiro”, “Agora tu não tens pai... deves
procurar um emprego e parar com essa mania de desocupado” (p.166). Nesta época,
Manaus estava “cheia de estrangeiros”, indianos, coreanos, chineses”, “tudo” estava
“mudando em Manaus”, segundo o próprio Omar.
Com a entrada em cena de Rochiram, o construtor de hotéis, Omar consegue um
emprego e Zana tem a oportunidade de aproximar os irmãos, seu maior desejo. Mas o
plano da mãe fracassa: Omar consegue a comissão da venda do terreno e Yaqub faz o
projeto do hotel, deixando o irmão furioso. O embate culmina na agressão do Caçula ao
irmão e na dívida da família para com Rochiram, que com o consentimento de Yaqub,
quer a casa da família como forma de quitá-la.
Domingas e Zana não chegam a presenciar o desfecho deste embate e a
transformação da casa em um bazar de produtos importados, restando apenas a casinha
de Domingas e Nael, onde este permanece morando, o único herdeiro daquela
história.Yaqub permanece em São Paulo, Rânia muda-se para um bangalô “num dos
bairros construídos nas áreas desmatadas ao norte de Manaus” (p. 184) e Omar está
desaparecido. Mas, segundo Nael,
Cedo ou tarde, o tempo e o acaso acabam por alcançar a todos. O tempo não
apagara um verso de Laval pintado no piso do coreto da praça das Acácias.
Alguns anos depois, num dos primeiros dias de abril, um lance do acaso uniu
o destino de Laval ao de Omar (p. 193).
Omar fora finalmente encontrado e preso pelas agressões ao irmão, No
presídio, ele passou algumas semanas incomunicável”. Rânia e seu advogado tentavam
84
falar com ele, “mas a violência foi implacável”, “suplicava que não o torturassem”. A
prisão de Omar se após o AI-5 e os tempos eram muito mais violentos. Rânia “soube
que o irmão passara uns dias encarcerados no Comando Militar”, e Nael intuiu “que sua
amizade com Laval era uma forma de condenação política” (p.194). Apesar de o único
ato militante de Omar ter sido o manifesto lido em uma sala vazia, sofreu as
consequências da amizade com Laval e da inimizade com o irmão, um ex-militar. A
tortura não pode ser comprovada, mas permanece na prisão por alguns anos e é solto
graças às economias da irmã.
Nael acaba por se distanciar do mundo das mercadorias e de Rânia, que segundo
o próprio, não era o dele, “queria distância de todos esses cálculos, da engenharia e do
progresso ambicionado por Yaqub”, que falava no futuro”, “o futuro, essa falácia
que persiste” (p.196). Desencantado e critico, mostra-se assombrado e triste vendo
Manaus se mutilar e crescer ao mesmo tempo, “afastada do porto e do rio,
irreconciliável com seu passado” (p.197). Desencanto que alcança a figura de Yaqub: o
afastamento deste pode ser lido como uma reprovação a esse mundo das mercadorias,
do progresso e da direita política. Omar, que nunca fora próximo, somente na
homenagem a Laval tem um momento de proximidade, sendo este personagem a marca
de uma esquerda política na vida de Nael, através não da simpatia que demonstra
para com o professor, mas também pela influência direta nas escolhas feitas por ele ao
longo de sua vida, seja na profissão (professor e escritor) ou na construção de suas
memórias:
Eu tinha começado a reunir, pela primeira vez, os escritos de Antenor
Laval, e a anotar minhas conversas com Halim. Passei parte da tarde com as
palavras do poeta inédito e a voz do amante de Zana. Ia de um para o outro, e
essa alternância o jogo de lembranças e esquecimentos me dava prazer
(p.197).
Laval, assim como Halim, fora a grande influência na vida de Nael e, portanto,
responsável por muitas das suas escolhas e de suas formas de perceber o mundo. Se
Yaqub era visto como um homem quase perfeito, após a morte do mestre de francês,
começa a ser questionado por Nael por suas posturas e atitudes. E se Omar sempre fora
odiado, por um único instante não é: com a morte do professor. Se até aquele abril de 64
a gangorra dos sentimentos de Nael pendia para Yaqub, depois daqueles dias se
equilibrou: Nael de certa forma liberta-se desses julgamentos e da dúvida de identidade
paterna para construir a sua história através de Halim e Laval, funcionando como
85
síntese daquela família e da geração que viveu o processo democrático, ainda
esperançosa na (re)construção do país e que irá, através da escrita, reconciliar-se com
seu passado.
4.3 O caso Cinzas do Norte
Com enredo similar, Cinzas do Norte (2005) abarca período cronológico
semelhante a Dois Irmãos (2000), diferenciando-se nas datas pelos períodos de maior
tensão na narrativa: este terá sua história datada de 1913 até a década de 80,
concentrado sua trama na década de 50 e 60; enquanto aquele começará em meados dos
anos 40 e acabará na década de 80/90, mas centralizando sua densidade narrativa nos
anos 60 e 70. Nael trouxe-nos a surpresa da violência do golpe, e Lavo trará o seu
amadurecimento e o de Mundo em meio ao país já ditatorial.
Quanto às diferenças, a principal se pela não existência de um dilema na
construção da história. Diferentemente de Nael, que busca saber qual dos dois irmãos é
seu pai, o narrador de Cinzas do Norte, Lavo, relata a vida de um amigo. Apesar de a
narração ser em pessoa, temos aqui um narrador que não conta a sua história e sim a
história de terceiros e esta disparidade faz com que a narrativa perca forças, que o
enunciador aqui postulado se mostra menos autorizado a narrar esta história, ela não lhe
pertence de todo: não fazendo parte do núcleo familiar central, ele é quase um narrador
em pessoa, escrevendo sobre outros que não ele mesmo. Seu leitor está forjado, mas
seu enunciador é menos competente. Segundo Birman (2007, p.251), “se Lavo não se
debruça sobre a própria trajetória, o que ele nos enuncia a respeito de seus sentimentos
corre o risco de soar artificial, distante do relato que temos acompanhado”
97
.
Assim como em Dois irmãos (2000), a história não será narrada linearmente,
por isso quando se menciona a década de 40 como princípio da narrativa refere-se mais
às citações a vinda de Alicia, Algisa e Ozélia a Manaus do que a concentração da trama,
que inicia-se oficialmente com a amizade entre Lavo e Mundo, em 1964. Como já visto
97
Outro ponto que enfraqueceria a narrativa (em comparação com Dois irmãos) segundo Birman (2007,
p.250) “seria o fato de na medida em que Lavo se coloca quase sempre em segundo e terceiro plano, não
conseguimos perceber as particularidades e a importância de tal amizade para ele. E nem, por
conseguinte, nos comovermos com ela”.
86
na seção 4.1, o romance é construído por Lavo e pelos manuscritos de Ranulfo,
mantendo o mesmo norte: narrar a vida de Mundo.
O que nos interessa aqui é refletir sobre como este período repressor e suas
nuances influenciam a narrativa. Nosso narrador que, assim como Nael, fala de fora da
família mas em uma posição ainda mais distante. Lavo amadurecerá juntamente com
seu protagonista em meio às mudanças dos anos 60 e 70, não tendo o romance um
personagem específico como símbolo político da esquerda, mas sim personagens que
flertam com princípios de liberdade. Esta peculiaridade torna o trabalho com a narrativa
mais complexo, visto que as referências estão diluídas ao longo da história, não tendo
um caso particular e emblemático, o que motivou a opção pelo título “O caso Cinzas do
Norte”, sem menção a um personagem específico. Se em Laval temos a encarnação da
esquerda, em Mundo ou ainda em Ranulfo não a temos como uma esquerda política. E
ao invertermos a observação, se na narrativa de Nael a direita política irá encontrar
apenas reflexos em Yaqub e nas mudanças de Manaus, na narrativa de Lavo a direita
política é representada por Jano, coronel Zanda, Albino Palha e Maximiliano Lontra,
todos admiradores do novo regime.
Nael narra uma derrota da esquerda; Lavo, uma vitória da direita. Apesar
de contraditória a frase contempla o foco das duas narrativas e a trajetória de duas
gerações: uma abalada e surpresa com o golpe; a outra, não encontrando lugar em meio
ao país a época. A diferença de datas ajuda-nos a entender as disparidades narrativas,
visto que os anos 60 concentram as ideias românticas revolucionárias, anuladas com o
AI-5 em 68, reservando para os anos 70 reflexões individuais desencantadas sobre o
regime e a própria esquerda.
O embate familiar entre Jano, pai autoritário, e Mundo, o filho artista, é
narrado pelo observador atento e participante Lavo, que mantém uma amizade com o
menino desde 1964, “quando as aulas do ginásio Pedro II iam começar depois do golpe
militar”, eos bedéis” se mostravam “mais arrogantes e cumpriam a disciplina à risca”,
tratando-os “com escárnio” (HATOUM, 2005, p.12)
98
. Era o início do regime ditatorial
e da amizade entre os dois então com 10 anos de idade –, agora colegas de classe.
Interessante perceber mais uma vez que a palavra ditadura”, assim como em Dois
irmãos, não é mencionada na narrativa, as referências a ela se dão pelas menções ao
militares, às mudanças na cidade, às datações ao longo da narrativa e ao medo pela
98
Todas as citações referem-se a Hatoum (2005).
87
voz de Mundo: “Medo...”, repetiu Mundo, com impaciência. “Só se fala nisso... Toda
frase começa com essa palavra. Tanto medo assim, melhor morrer” (p.165).
A amizade entre Lavo e Mundo colocará lado a lado posturas diferenciadas:
aquele, um obediente, exemplo de aluno, que irá “vencer na vida” e ser um advogado
o filho que Jano gostaria de ter -; o outro, um artista, indisciplinado e desobediente, para
quem as regras disciplinares são um transtorno: “Ou a obediência estúpida ou a revolta”
(p.10). É descrito pelo amigo sempre com admiração, apesar das diferentes posturas:
“logo percebemos que seu poder, além de emanar das mãos, vinha também do olhar” (p.
16). A admiração de Lavo para com Mundo parece vir exatamente das diferenças entre
eles, enquanto o primeiro mostra-se passivo e amedrontado, o segundo é sempre ousado
e valente.
Jano, o pai autoritário, é o representante da velha elite manauara que cresce após
a II Guerra Mundial
99
. Herdeiro de pai português, “um homem religioso que acreditava
na civilização e no progresso” (p.35), no filho uma continuação da saga da família.
Rodeado por amigos interesseiros, pela mulher alcoólatra e pelo filho que o odeia,
encontra somente no cachorro Fogo seu verdadeiro companheiro. Entre seus amigos
temos o coronel Zanda, futuro prefeito eo preferido do governo militar na Amazônia”
(p.46) por ser um coronel linha dura, conhecido por abafar uma guerrilha em Manaus;
Albino Palha, exportador de juta, castanha e borracha, que “se derrete todo na frente dos
militares” (p.46), achando que “só agora, com os militares, é que o Brasil estava
descobrindo e protegendo aquela riqueza infinita” (p.119); e Maximiliano Lontra,
presidente da Associação Comercial, que se considera um historiador, a quem Mundo
chama ironicamente de Heródoto. Todos simpatizantes do regime, todos companheiros
de jogos e seduzidos pela mesma mulher: Alicia, a esposa de Jano, mãe de Mundo, que
casara-se com o único intuito de abandonar a vida miserável que levava até então,
desnorteando Ranulfo, seu amante desde a adolescência.
Ranulfo ou Tio Ran – personagem já conhecido pelos contos “Dois tempos”
100
e
“Varandas da Eva”
101
é apaixonado por Alicia, com quem mantém um romance
clandestino. Nega-se a terminar a escola e a trabalhar, vivendo do escasso - dinheiro
99
Como mencionado em 4.2, Manaus viveu na II Guerra Mundial o seu segundo Ciclo da Borracha,
que parece estar relacionado com o enriquecimento ainda maior de família de Jano.
100
O conto integrou a coletânea A alegria 14 ficções e 1 ensaio (vários autores, São Paulo: Publifolha,
2005), vindo a ser incorporado no livro de contos de Milton Hatoum, A cidade ilhada, lançado em 2009.
101
O conto integrou o livro De primeira viagem Antologia de contos (vários autores, org. Heloísa
Prieto, São Paulo: Companhia das Letras, 2004), vindo a ser incorporado no livro de contos de Milton
Hatoum, A cidade ilhada, lançado em 2009.
88
da irmã Ramira, uma admiradora de Jano. O único emprego que o encantou foi o de
locutor de rádio no final dos anos 50, de onde foi despedido em 60. Mas segundo o
próprio, “depois do golpe militar iam acabar me demitindo: os censores dessa panacéia
não iam aturar meus comentários políticos, muito menos minhas histórias de amor no
meio da madrugada” (p. 28). Merece atenção especial ao encarnar as figuras da boêmia
e da intelectualidade às avessas: simpatizante de ideias esquerdistas e contrário a
realidade que estava a sua volta, é um bêbado e um apaixonado, sem qualquer filiação
política, mas recheado de ideias libertárias:
nas manhãs de domingo acordávamos com os discursos de um e outro, que
defendiam idéias amalucadas sobre uma revolução no Brasil. Os assuntos
eram variados e cruzados: reforma agrária, pesca de tambaqui, festa a bordo
de um navio o mais novo prostíbulo de Manaus, o Varandas da Eva.
Brindavam ao Varandas, e Corel, com a bagana apagada na boca, gritava,
animado: “O Rosa de Maio ainda é o melhor!”. Tinham esquecido a
revolução e a reforma agrária, e recordavam as noites da juventude no Rosa
de Maio, Lá Hoje, Shangri-lá (p.22-3).
Em meio às divagações do bêbado e festeiro Ranulfo, nos deparamos com um
leitor voraz, de livros que “vinham de muito longe, do Sul”. Leitor e escritor, que
segundo o próprio trabalhava “com a imaginação dos outros” e com a dele (p.24). Sem
envolvimentos com organizações políticas, suas ideias não se convertem em ação (ou
fracassam, como no caso do Campo das Cruzes, que veremos adiante), e a boêmia e a
paixão por Alicia acabam por fazê-lo esquecer das discussões políticas. Ranulfo mostra-
se como um representante daquela esquerda festiva vista em Bar Don Juan, mas sem a
formação política que muitos daqueles personagens demonstravam. Achava que era
“melhor escrever, pintar, ser artista” (p.95) e não ser advogado como queria Lavo, pois
para tio Ran, “os militares jogaram todas as leis no inferno” (p.173), e a lei que
realmente importava para a justiça era a lei do dinheiro: se tem ou não se tem. Segundo
Lavo, “essas palavras [de critica e revolta] davam uma certa dignidade para o tio Ran: a
grandeza de um ser revoltado. Não sei se falava por despeito ou apenas para me
humilhar. Talvez pensasse isso mesmo de minha profissão e de toda humanidade”
(p.223). Era um libertário desencantado com a realidade que o cerca, não encontrando
lugar em meio aquela nova sociedade.
Após o fim do regime, vivendo longe de sua amada, não comemora, apenas
escarnece do “coronel Zanda, que, depois de ter destruído parte de Manaus e de sua
89
história com a mania insana de modernização e reforma urbana, se reformava e morava
no Rio” (p.302), enquanto ele vive só, ignorando a história do país. Segundo Lavo:
A revolta dele era pessoal, íntima, e em estado bruto. Isso se evidenciava nas
discussões políticas amalucadas que tinha com Chiquilito e Corel. Suas
palavras inflamadas não formavam opiniões; eram como plantas absurdas,
sem raízes na terra, ou mesmo no ar. Chocalhos infantis, totalmente inúteis
(p.302).
“Chocalhos infantis, totalmente inúteis” podem sintetizar os anos 70 de nossa
história, visto que a esquerda chegara derrotada após o AI-5, não conseguindo
reorganizar-se. A censura e a repressão eram violentas, impedindo um processo de
resistência e reordenação política: o sonho revolucionário dos anos 60 fora calado. Ou
ainda, pode deixar transparecer um juízo negativo de Lavo sobre as ideias
revolucionárias do tio, que não encontraram campo fértil.
nosso protagonista, desde criança mostrou-se indiferente a sua posição social
de “herdeiro”, mantendo amizade sempre entre as classes menos favorecidas e os
“curumins” da Vila Amazônia, o que levava Jano ao desespero. O comportamento e as
ideias de Mundo eram um acinte para o pai: “Arte... Quem ele pensa que é?” (p.22).
Para Jano, “os artistas... uns inúteis (p.120)”. Mas o filho não se interessava pelo
universo por ele desejado: “nenhum livro de matemática nas estantes”, somente “arte,
poesia”. Para piorar, “nenhuma fotografia de mulher, a não ser a da mãe” (p.33): nem as
ciências exatas as cifras –, nem mulheres. A solução para o filho, aos olhos paternos,
era o “treinamento militar”, “falta isso ao meu filho... correr e saltar com coragem, que
nem esses rapazes armados” (p.34), acreditando no poder da disciplina que o regime
militar começava a implantar. Para ele, “uma pessoa não poder ser totalmente livre,
ninguém pode”, mas o “coronel Zanda” poderia “dar um jeito” (p.121): nessas
“loucuras” de liberdade e arte aclamadas pelo filho, que pensava “que” poderia
“construir o futuro com devaneios” (p.118).
Na vertente oposicionista a Ranulfo e Mundo encontramos Jano, coronel Zanda,
Albino Palha e Maximiliano Lontra, todos simpatizantes e elogiosos ao regime, como se
pode perceber. A figura de Jano é ainda mais importante pelo embate com o filho
artista, como antecipado. Tendo trabalhado durante anos na Vila Amazônia,
acreditava ter plantado uma “civilização”, que antes, “todo mundo comia com as
mãos e fazia as necessidades em qualquer lugar” (p.70), negando a cultura e a religião
dos índios que lá habitavam. Nas palavras de Jano:
90
Ele [indígena] e a mulher sempre viveram de favor. Antes esses
índios eram tratados por curandeiros, vigaristas do corpo e da alma. Nós
pagamos o doutor Kazuma, mesmo assim continuam brutos e ingratos.
Esquecem nosso esforço, nossa dedicação. São como crianças...Um dia
rezam para Nossa Senhora do Carmo, outro dia esquecem a santa e a Igreja.
A fé dessa gente não está em lugar nenhum (p.73).
A postura de Jano vai ao encontro da postura da elite burguesa de direita da
época que a modernização conservadora e desenfreada com bons olhos, sempre
valorizando o poder das cifras e do crescimento econômico de sua classe. Os seus
conceitos sobre a arte e os artistas também contemplam uma postura reacionária, que
os coloca como inúteis por não os considerarem necessários para esse processo de
modernização, onde a reflexão não tem espaço e a alienação é uma consequência banal.
Outra postura contemplada na critica a vitória do mercado e da alienação
encontra-se em Arana, artista plástico e amigo de Mundo e seu pai verdadeiro como
se descobre ao final da narrativa. A princípio deseja uma arte inovadora e libertária, mas
ao mesmo tempo seu comportamento mostra-se inadequado a seu discurso: explora os
meninos miseráveis de sua redondeza oferecendo-lhes comida em troca de trabalho.
Acaba por pintar quadros de políticos ligados ao regime e à corrupção, mantendo
amigos na Brasília ditatorial; além disso, se rende ao exotismo que a região provoca no
outro, pintando uma Amazônia desfigurada: “Num dos quadros, uma platéia de índios
extasiados assistia a uma ópera” (p.227). Arana, um dos representantes da classe
artística no romance, supostamente inovador e libertário, rende-se a nova lógica de
mercado alienada, terminando a sua trajetória com cerimônias na capital federal, com
quadros de araras, com a exploração do mogno que se havia descoberto dar bons
lucros –, e afastado de todo o discurso que fez dele amigo de Mundo.
Nosso narrador, em meio aos embates entre pai e filho, e entre as posturas
direitistas e esquerdistas, mostra-se um tanto passivo, que não participa destas
discussões. Lavo em nenhum momento apoia as ideias do regime, assim como também
não demonstra interesse pelos conceitos libertários de Mundo e Ranulfo, mas acreditava
que “o governo militar” era “mais efêmero que as leis” dizia, “com um fiapo de
esperança que faltava” a tio Ran (p.173). Duas gerações que parecem encarar uma
possível redemocratização de forma diversa: Ran, pessimista, representante de uma
esquerda derrotada; Lavo, otimista, a nova geração que ainda não viveu em uma
democracia esperançosa de dias melhores. É um observador dos acontecimentos
91
pessoais e políticos a sua volta. Quando Mundo é expulso da escola por discutir com um
professor defensor do regime militar:
No meio da semana seguinte, as aulas da faculdade de direito foram
canceladas em protesto contra o assassinato de um aluno da Escola
Politécnica da Universidade de São Paulo. A imprensa falara pouco e de
forma obscura, mas os informes enviados pela Ordem dos Advogados
acusavam os militares. Além da revolta, medo. Diziam que um dos
professores era agente do governo federal. Estudantes se juntavam nas
escadas, e o presidente do grêmio começava a discursar, quando vi Mundo
no jardim da praça dos remédios (p.122).
As citações ao crescimento e deturpação da paisagem da cidade, assim como da
miséria crescente são uma marca das narrativas de Hatoum, como se pode perceber pela
leitura de Dois irmãos (2000) e Órfãos do Eldorado (2009), e não é diferente em Cinzas
do Norte (2005): “Atrás do Palácio do Governo uma mancha escura se movia
lentamente nas margens do rio. Urubus, dezenas, bicavam dejetos deixados pela
vazante. Um cacho de asas abriu um clarão, e no meio apareceram homens e crianças
maltrapilhos. Mundo falou: “Nossa cidade...” (p.143); “Passamos pela frente do gradil
da casa abandonada. Comiam sentados no chão. Choro de criança e vozes
incompreensíveis. Mundo tocou no meu braço: se Jano visse aqueles índios, ia dizer que
eram preguiçosos e vagabundos” (p. 45). Lavo percebe e relata a destruição a que
Manaus estava exposta:
Em poucos anos Manaus crescera tanto que Mundo não reconheceria certos
bairros. Ele presenciara o começo da destruição; não chegara a ver a
“reforma urbana” do coronel Zanda, as praças do centro, como a Nove de
Novembro, serem rasgadas por avenidas e terem todos os seus monumentos
saqueados. Não viu sua casa ser demolida, nem o hotel gigantesco erguido no
mesmo lugar. Arana, hábil e sagaz, percebeu que o mogno era valioso no
Brasil e no mundo, e então juntou a matéria de sua arte a um
empreendimento suspeitoso: passou a exportar objetos e móveis feitos de
madeira nobre (p.259).
A “reforma urbana” de Zanda tem no Novo Eldorado exemplo emblemático do
crescimento irresponsável. O bairro fora construído para realocar os moradores
ribeirinhos, localizando-se perto da floresta e distante do perímetro urbano. Macau,
morador do bairro e ex-chofer da família, exemplifica um dos problemas da região: as
doenças causadas pela destruição da floresta: “Doença... leishmaniose. O inseto fura a
carne que nem broca. Até o osso. Derrubaram a mata, essas pragas atacaram a gente.
Leishmaniose, malária, o diabo...” (p.273).
92
Mundo havia visitado o bairro com Cará, morador do Novo Eldorado e seu
colega de escola militar. Seu amigo é descrito como um soldado valente e destemido,
que sonhava com a vida militar, filho de família humilde, que acaba sendo explorado e
maltratado nos treinamentos, o que culmina com sua morte. A ironia fica por conta do
recebimento de uma medalhinha pela família, em nome da bravura de seu filho.
A ida ao bairro chocou Mundo, que passou a ter pesadelos com a paisagem de
destruição da floresta e da subcondição de vida:
Visitara as casinhas inacabadas do Novo Eldorado, andara pelas ruas
enlameadas. Casinhas sem fossa, um fedor medonho. Os moradores
reclamavam: tinham que pagar para morar mal, longe do centro, longe de
tudo... Queriam voltar para perto do rio. Alguns haviam trazido canoas,
remos, malhadeiras, arpões; a cozinha, um cubículo quente; por isso, levavam
o fogareiro para a rua de terra batida e preparavam a comida ali mesmo. Ele
dormira na casa da família do Cará. O sol da tarde esquentava as paredes, o
quarto era um forno, pior que o dormitório do internato. Os moradores do
Novo Eldorado eram prisioneiros em sua própria cidade (p.148).
Não obstante a situação de pobreza, gerada pela construção de um bairro mal
planejado e afastado do perímetro mais urbano, a praça central chamava-se “Praça
Coronel Aquiles Zanda”, “um capinzal com uma árvore no centro” (p.272). E para
corroborar a ideia do desamparo a que estão sujeitos a classe mais humilde temos o
exemplo da esposa de Macau: Catava todo o dinheirinho e dava ao pastor da igreja.
Lábia que só: Jesus salva... e umas moedas em troca” (p.273). As esperanças de uns
voltam-se para o não tangível, enquanto outros se aproveitam da falta de auxílio
econômico e social de outros para o enriquecimento pessoal.
Este bairro foi palco da “grande obra” de Mundo que, com ajuda de Ranulfo
“Vocês forma enganados; prometeram tudo, e olha que lugar triste... triste e longe do
porto...’.” (p.211) –, concretiza o Campo das cruzes.
Na tarde em que a obra de Mundo foi inaugurada, o coronel Zanda
logo informou Jano. No Novo Eldorado, ele viu um horizonte de cruzes
chamuscadas e quis saber que diabo era aquilo: por que tinham construído as
casas num cemitério? onde estava o trabalho do filho? Rindo, o prefeito
disse: “Na tua cara Trajano. Teu filho é atrevido: fez do bairro um cemitério.
Bela obra. Mas vamos destruir toda essa porcaria em pouco tempo (p.183).
As consequências do episódio vão desde a violência contra Ranulfo, a destruição
dos pertences do filho por Jano e, por fim, a morte do patriarca e a ruína da família,
depois instalada na Europa e no Rio de Janeiro, enganada pela administração de Albino
Palha.
93
Com a morte de Jano em 1973, mãe e filho partem de Manaus, tendo Lavo agora
notícias por cartas e, posteriormente, pelos depoimentos de Alicia e Naiá, empregada da
família. Nesta época, Mundo faz, finalmente, a sua viagem à Europa, permanecendo
até 1978. Os relatos europeus são muitas vezes desconexos, mas o que se percebe são as
dificuldades enfrentadas pelo amigo para se manter economicamente, vivendo de
empregos esporádicos e de algumas vendas de quadros, bem como é perceptível
também o rancor que ainda sente do pai. Enquanto isso, Alicia gasta toda a sua fortuna
em jogos e bebidas no Rio de Janeiro.
Depois de tempos sem notícias do amigo, Lavo recebe pelo correio um recorte
de jornal de um “guerreiro esquálido, desgarrado no Rio de Janeiro. O índio revoltado
se dizia filho da Lua e estava ali, nu, na boca do túnel, para festejar o ocaso do regime
militar” (p.263): era Mundo, que havia voltado da Europa. Preso e espancado, é solto
após o suborno da mãe aos policiais, vindo a falecer pouco tempo depois, ainda no ano
de 78. Ranulfo esteve junto dele, e é o portador da notícia a Lavo: “Magro de dar dó.
Quando morreu, era pouco mais que um esqueleto.” (p.267). A doença de Mundo era
um mistério, em carta ele alega: “Por pouco não contei que me sinto debilitado, com
uma febre teimosa... A síncope me persegue, e também essas malditas bolhas com
secreção, meu corpo inchando e inflamando...” (p.248). Macau ficou sabendo “que
Mundo morreu de doença feia” (p.274). O nome da doença não é revelado, mas ao
pensarmos no comportamento livre de Mundo e na época histórica, a AIDS pode ser
uma resposta ao nosso questionamento.
A realidade daquele Brasil de Mundo era a da lenta e gradual abertura política,
depois de anos de censura, violência e repressão, somadas ao crescimento da indústria
cultural que ajudou no processo de alienação da arte, pressentida nos depoimentos de
Jano. Com a redemocratização (e antes de sua consolidação) nos deparamos com a
descoberta da AIDS, que veio como uma epidemia principalmente para aqueles de
comportamento sexual mais livre.
O desfecho dos nossos principais personagens aqui discutidos são diferenciados:
Ranulfo, continua na boêmia com suas ideias amalucadas, mas sem consequências; Jano
está morto; Arana mantêm ótimas relações com Brasília; Lavo agora advogava em
defesa de detentos miseráveis esquecidos nos cárceres”, que “o lento retorno ao
Estado de direito não acabara com muitos privilégios; quanto a isso, tio Ran tinha
razão” (p.285); E Mundo, com uma trajetória marcada pela revolta com sua condição
94
a de não poder ser livre –, falece, muito provavelmente em decorrência da contaminação
por HIV.
Narrativa de uma revolta, de uma nação e de uma destruição, Cinzas do Norte
difere do desfecho dos romances de Caio Fernando Abreu e Chico Buarque e se
aproxima do desfecho de Dois irmãos: o recado se coloca no plano da memória
histórica sobre aqueles que não se adequaram e sobre como muitos dos processos de
disparidade social que observamos hoje têm raízes nas ideias modernizadoras do regime
ditatorial. O final é amargo: a esquerda não é vitoriosa: Ranulfo não se mostra
interessado na realidade do país e Mundo teve sua vida interrompida. Resta-nos Lavo,
agora escritor, que através das suas memórias e dos manuscritos de Tio Ran reconstrói a
história de Mundo e também a história do país: o legado deixado pela convivência com
todos aqueles personagens e acontecimentos é a herança que Lavo deixa para as
próximas gerações no livro que escreve.
4.4 Trauma ou acerto de contas
“O mais idoso desabafou: ‘Os militares vão cair fora! ’. Uma voz rouca levantou
a dúvida: ‘E o que vem por aí? ’” (HATOUM, 2005, p.286). A pergunta feita em
Cinzas do Norte (2005) pode ser respondida com a realidade urbana e violenta
percebida nas obras Onda andará Dulce Veiga (1990) e Benjamim (1995), mas a forma
como cada narrativa lida com a herança pós-trauma faz com que as obras de Hatoum
sejam díspares a estes dois romances.
Lavo, ao ter como horizonte histórico o período ditatorial em toda a sua
narrativa e ser um observador dos episódios a sua volta que escreve um romance
sobre Mundo, e não sobre ele acaba por ter mais pontos de reflexão acerca do que
acontece ao seu redor. Nael, ao retratar a ditadura em dois personagens, Laval e
Omar, explicita o seu trauma. Interessante atentar para as datas: Nael, nascido em 1946,
no ano de golpe terá 18 anos. Lavo terá 10/11 anos, o que pode explicar as reações e
formas de expô-las: Nael cresce em meio aos sonhos dos anos 50; Lavo e Mundo
95
amadurecem em meio ao período repressivo sem terem vivido um pouco do
crescimento do país, como o narrador de Dois irmãos.
A dicotomia esquerda versus direita é contemplada nos dois romances, mas não
com figuras militantes, e sim com personagens, em sua maioria, que flertam com este
ou aquele preceito político. Ao fazermos uma síntese nos deparamos com a
representação da direita progressista e modernizadora nos romances de Hatoum em
Yaqub, o engenheiro que acredita que Manaus está pronta para crescer e Jano, acrescido
de seus amigos, todos apoiadores do regime militar e representantes da elite manauara.
O primeiro, ao encontrar uma São Paulo em franco crescimento é seduzido pelo afã
modernizador. O segundo, proveniente da alta sociedade local, não sendo, portanto,
influenciado pelos crescimentos dos grandes centros, participa do mesmo processo, até
mesmo mais agudo, que demonstra opiniões reacionárias, diferentemente de Yaqub,
que não chega a fazer menção de juízos contrários à esquerda. Arana, o artista plástico,
merece atenção especial: representante da classe artística no romance esperava-se dele
uma postura sensível e libertária, mas nos deparamos no decorrer da narrativa com uma
postura contrária a esta, quando se familiariza com a nova lógica do mercado,
abandonando ideais inovadores, passando a ser um pintor de araras e líderes políticos.
Entre todos estes o que mais claramente tem um desfecho positivo é exatamente Arana,
o artista farsante, amigo de chefes políticos em Brasília, visto que Yaqub falece em São
Paulo esquecido pela família; assim como Jano, que morre em Manaus; os outros,
Zanda, Albino Palha e Maximiliano Lontra, saem de cena, assim como o regime militar.
Laval, Omar, Ranulfo e Mundo são os representantes de uma possível esquerda
nas narrativas. Esquerda boêmia e festiva: frequentadores dos bares e prostíbulos de
Manaus, os personagens não têm qualquer filiação política. A exceção seria Laval, que
talvez tenha sido um líder comunista no passado, mas que se mostra desencantado com
a política. O que poderia ser explicado pelo período conturbado em que se encontrou o
Partido Comunista no início dos anos 60, com um grande número de cisões e
descentralização de forças, muito por conta do desencantamento de parte de uma
esquerda que não concordava com as posturas do partido, entre elas, a aliança com a
burguesia progressista, pregando a realização de uma “revolução burguesa” no Brasil.
Omar, tem um único ato político em toda sua vida: a leitura de um manifesto contra
os golpistas em uma sala vazia, logo após a morte do professor de francês. Sua ligação
com a esquerda se mais pela relação afetiva com Laval, agora morto, do que por
96
qualquer postura política, já que ao longo do romance nada mais faz do que vadiar pelas
ruas de Manaus, com a superproteção de Zana.
Ranulfo coloca-se entre Omar e Laval, mais politizado que o primeiro, mas sem
a formação do segundo, e também sem feitos políticos. Mostra-se um leitor e escritor
ávido: a figura do intelectual às avessas, não reconhecido e com suas ideias limitadas
aos ouvidos dos amigos em grandes bebedeiras. É um libertário, mas incapaz de grandes
feitos, que derrotado pelo amor de Alicia. Mundo é um artista revoltado com o
autoritarismo do pai, revolta que em um plano maior alcança também a sociedade que o
cerca, claustrofóbica e limitada. Um inconformado com sua condição e com a do mundo
a sua volta, não encontra um lugar para si em meio à falta de liberdade. O desfecho
destas narrativas não é positivo: Laval é assassinado pelos militares; Omar chega a ser
preso e termina seus dias vagando por Manaus; Ranulfo, longe da realidade do país e do
amor de Alicia, continua na sua vida medíocre de bebidas e discursos no vazio; e
Mundo é derrotado por uma doença misteriosa, provavelmente AIDS.
Nael e Lavo, nossos narradores, colocam-se em um entremeio entre as posturas
reacionárias e libertárias, que não explicitam ideias favoráveis a um ou a outro
preceito, sendo observadores da realidade política que os cercam. Porém as suas
aproximações se colocam mais com as figuras da esquerda, como Laval, Mundo e
Ranulfo, assim como se afastam da direita: de Yaqub e de Jano, um tanto quanto
amedrontados e surpresos com algumas posturas.
A narrativa de Dois irmãos não é sobre a ditadura e sim sobre a história do
narrador, mas mostra-se também como uma narrativa sobre o trauma de 64 ao colocar
um personagem como encarnação da esquerda, e explicitar a surpresa e a violência do
golpe para Nael e Omar. Trauma esse que legaria heranças positivas ao nosso narrador,
geradas pela influência que a figura de Laval, um intelectual contestador, deixou em sua
vida: a profissão de professor, a veia de escritor e os poemas escritos por ele, que
ajudarão Nael a escrever a sua história. E, ao escrever sua história, acaba por resolver os
seus traumas, seja o da paternidade ou o da morte do professor.
Assim como os narradores de Onde andará Dulce Veiga e Benjamim, Nael narra
seu trauma, mas difere do ceticismo daqueles, que Laval não é um fantasma mal-
resolvido em sua história. Se invertêssemos as posições e tivéssemos uma narrativa
sobre Dulce e Castana diretamente dos anos 70 ou 80 e não rememorada –,
poderíamos ter uma narrativa similar a de Nael, com o trauma da surpresa e da violência
97
do golpe. Mas o que temos naqueles dois romances é uma narrativa de fantasmas, por
narrarem o mal-resolvido da ditadura em suas trajetórias. Nael, narrando seu romance
nos anos 90, faria uma narrativa sobre fantasmas? Talvez, mas que poderia ser resolvida
através do trabalho intelectual da escrita, que, na medida em que escreve se como
um herdeiro e síntese daquela história, diferentemente dos outros romances irônicos e
pessimistas no desfecho de seus protagonistas.
Em Cinzas do Norte temos a ditadura como pano de fundo ao longo de toda a
trajetória de Mundo, mas não temos qualquer personagem com participação política
ativa de esquerda, o que pode ser explicado pelos duros tempos pós AI-5, onde as
tentativas de revolta e resistência forma sufocadas pela violência e repressão. As
revoltas são silenciadas e resta o inconformismo solitário de muitos. Não tendo um
personagem como encarnação do trauma da ditadura, a narrativa coloca-se com um
acerto de contas de Lavo com Mundo, narrando à história do amigo, um libertário
sufocado pela repressão, que será derrotado na véspera da democracia por uma possível
doença nova que irá atingir primeiramente àqueles sexualmente livres. Ironia do
destino, esta esquerda festiva, ao se deparar com a redemocratização do país, depara-se
também com o flagelo da AIDS. Lavo faz seu acerto de contas com Mundo e a história
do país ao escrever um romance sobre estas trajetórias, transmitindo para o seu leitor a
sua experiência. Esta é a herança do narrador, amadurecido durante o regime militar e
que irá procurar um lugar para si em meio à redemocratização. Seu desfecho coloca-se
como cético para a esquerda, mas também demonstra um amadurecimento destas
narrativas, que percebem que estes anos 60 e 70 acabaram com muitos sonhos
individuais e coletivos de crescimento do país. Este acerto de contas passa pelo papel do
intelectual: Nael e Lavo parecem conseguir se resolver em suas trajetórias ao se
tornarem escritores e relatarem as suas experiências, diferentemente dos romances de
Caio F. e Chico Buarque, nos quais os narradores não escrevem a sua história, apenas
vivem-nas atormentados por alucinações do passado, beirando muitas vezes a loucura.
Este processo de resolução de traumas coloca-se como o norte de outra
narrativa contemporânea, o romance Não falei (2004) de Beatriz Bracher.
Preciso reler Machado, reapropriar-me do inesperado que não sei.
Diferente de José [o irmão escritor], que procura, assim como dom Casmurro,
construir um passado que lhe seja dócil ao presente, eu procuro meus erros,
vou chutando pedras e desentocando baratas, dando com teias de aranha na
98
cara e indagando a cada marco pomposo, você ainda me serve? (BRACHER,
2004, p.16)
102
.
Gustavo, o narrador, um professor então com 64 anos, deseja reconstruir sua
história, marcada pela falsa acusação de delação do cunhado Armando, morto pelos
militares. Torturado nos anos 60, “dizem” que denunciou “um companheiro que morreu
logo depois”. Mas ele garante: “quase morri na sala em que teria denunciado, mas não
falei” (p.8). A narrativa explicita o vazio e o ser deslocado e recluso em que este
possível delator se transformou após sua soltura, não conseguindo manter nenhum tipo
de relação afetiva com proximidade: “No trabalho escondia o monstro inquieto e triste
em que me tornara. Surrado, traidor, assassino, viúvo, pai e finalmente órfão de pai” (p.
117). Este vazio individual é também um vazio na sociedade como um todo, agora sem
um projeto nacional coletivo, que fora destruído ao longo da ditadura, restando aos
sobreviventes a resolução das feridas do passado.
Benjamim, o narrador de Caio Fernando Abreu e Gustavo têm em meio ao
golpe, provavelmente a mesma idade, 20 e poucos anos; amadurecem em meio aos
sonhos dos anos 50, passaram pela ditadura e redemocratização, chegando aos 90
atormentados com fantasmas de uma possível esquerda. Nael vive um pouco do
crescimento dos 50, chegando aos 60 na adolescência, narrando o medo daqueles dias.
Lavo e Mundo são crianças nos anos do golpe, não viveram os anos dourados e
precisam amadurecer em meio à opressão; o primeiro encontra o seu lugar; o segundo,
não. As diferenças geracionais explicam um pouco da receptividade do período para
cada personagem: os maduros nos 50 são atormentados pelo trauma; o jovem nos 60,
narra o seu medo; os jovens nos 70 narram a sua adequação ou não adequação àquela
sociedade, não tendo vivido o sonho do país novo na década de 50, irão viver o sonho
de um país novo nos 80, que ainda algum resquício daquele romantismo
revolucionário na criação do Partido dos Trabalhadores e no movimento Diretas Já, mas
que serão soterrados nas eleições de 1989, com nova derrota da esquerda.
O que vem por após os militares? A resposta não é positiva, mas o trabalho
intelectual de Nael e Mundo parece ser um alento na medida em que permite a
expurgação de velhos fantasmas e a transmissão do relato de experiência através da
literatura. Expurgação que se coloca como o grande desejo de Gustavo, também
102
Todas as citações ao romance referem-se à Bracher (2004).
99
atormentado por um fantasma, o mesmo de Chico Buarque e Caio Fernando Abreu: a
delação.
As narrativas se cruzam ao tratar de traumas e fantasmas comuns, todos ligados
ao período ditatorial. Abreu (1990), Buarque (1995) e Bracher (2004) querem voltar ao
passado para resolver seu presente, já que anos se passaram desde que tudo aconteceu.
São protagonistas culpados, que parecem ter negado ao longo de suas trajetórias esta
culpa e deparam-se anos depois com fantasmas e alucinações de um tempo remoto que
se mostra presente a sua volta. Hatoum (2000) conta a sua história ainda nos anos 80,
logo após todos os acontecimentos narrados; e Hatoum (2005) não apresenta a
possibilidade de um fantasma, visto que Lavo não exterioriza seus traumas, e sim relata
a vida de Mundo. Nael não espera os fantasmas aparecerem; e Lavo, não os tem. Ambos
assumem seus papeis de autores, compartilhado as trajetórias. O que nos leva a perceber
que se vêem como uma consequência ou um resultado daquele período, e não como
agentes, resolvendo o seu trauma através da escrita e da transmissão da percepção da
culpa do autoritarismo da direita.
As diferenças geracionais apontadas entre Abreu (1990), Buarque (1995) e
Hatoum (2000, 2005) já foram citadas anteriormente, mas vale relembrá-las: o primeiro,
de 1948; o segundo, 1944; e Hatoum, de 1952. Benjamim, o narrador de Caio F., Nael e
Lavo recebem as informações do golpe de forma díspare pelas diferenciações de idade,
o que também pode explicar as formas de narrativas destes escritores sobre tema
comum. Aqueles que viveram o período do golpe já mais maduros, viveram a quebra do
projeto nacional coletivo, trazendo narradores atormentados e arrebatados pela culpa.
Milton Hatoum, mais jovem que os escritores supracitados, coloca seus narradores
maduros e reflexivos, dispostos a transmitir aquela história, que é também a sua, sem
culpa alguma. Conscientes de seus papéis de escritores e propagadores daquelas
trajetórias, estes narradores contemporâneos percebem a cisão a que foram expostos,
mas fazem da escrita uma forma de expurgação.
100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em conto intitulado “Bárbara no Inverno”, do livro de contos Cidade Ilhada
(2009), Milton Hatoum retoma o período ditatorial como temática, mas desta vez com
uma narração em pessoa, e a história de Lázaro e Bárbara; ele, professor, militante e
exilado; ela, jornalista, não militante, apenas o acompanhando no exílio francês. Mesmo
expatriado, Lázaro mantém a militância e as discussões com outros amigos exilados de
diferentes países da América do Sul. Para Bárbara, “essas reuniões são uma farsa, pura
nostalgia de parasitas” (HATOUM, 2009, p.78). Diferentemente dos romances
analisados, no conto temos a encarnação da esquerda política ativa, o que poderia nos
levar a crer que a conotação política seria mais acentuada, mas observamos o contrário.
101
Em suas trajetórias, as diferentes posturas adotadas pelos dois personagens ele, ativo
na sua participação política, e ela mantendo a passividade que sempre demonstrou,
mesmo quando ainda moravam no Rio de Janeiro culminarão no ciúme dela e na
separação do casal. Após notícias sobre a anistia do marido, Bárbara retorna ao Rio de
Janeiro e ao seu apartamento em Copacabana, onde descobre a traição do marido:
encontra-o com Fabiana, uma das amigas militantes de Paris. O choque do reencontro e
da traição terá como desfecho o suicídio de Bárbara e a culpa de Lázaro.
Nos romances nos deparamos com uma datação que valoriza, em Dois irmãos,
os anos 60; e em Cinzas do Norte, os anos 70. No conto, o período contemplado é
aquele das anistias. Enquanto temos nos romances narrações em pessoa, no conto
encontramos um narrador observador em pessoa. Esta posição do narrador parece
explicar as diferentes forças narrativas dos romances e do conto, que tem em Nael o
grande narrador da obra de Hatoum.
A construção narrativa de Nael se via relatos de Halim e Domingas,
acrescentados ao que viveu e aos poemas de Laval. Relata pela palavra escrita o que
seus enunciadores transmitem da experiência vivida, para que organize com os
resquícios da sua memória e assim construa a sua narrativa. Lavo, através da palavra
escrita, rememora o passado de Mundo para a construção do seu romance, somados às
cartas de Ranulfo e do amigo. O seu envolvimento na narrativa perde forças, que não
reflete as suas posições. Através da escrita do livro sobre o amigo o que se percebe é a
remissão das culpas passadas pelo posicionamento passivo do narrador, não temos um
trauma pessoal de Lavo, que pouco se coloca no texto. com Lázaro e Bárbara o
distanciamento a que nós leitores somos expostos é maior, visto que as vozes de nossos
protagonistas passam pela voz de um narrador não participativo, onde não temos acesso
a reflexões pessoais de ambos personagens.
A partir dessas diferentes formas de abordar a ditadura realizada pela literatura
de Hatoum, podemos retomar algumas das questões pertinentes a dissertação. Ao longo
do trabalho pretendi responder a seguinte questão: quais reflexões são feitas nos
romances de Milton Hatoum, Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005), acerca da
ditadura? Trauma, acerto de contas ou nada disso? A escolha do tema se justifica na
medida em que se repetem na obra do autor, nos dois romances citados e no conto a
pouco analisado, às menções ao período ditatorial. Para corroborar com a escolha
temática, temos dois escritores consagrados fazendo uso da ditadura militar em seus
102
romances: Caio Fernando Abreu e Chico Buarque. O que poderia explicar essas
menções no final do século XX e início do XXI? Para procurar essas respostas, fez-se
necessário traçar uma trajetória das produções que se relacionavam com o regime
ditatorial. Para tanto, retrocedi ao período pré-regime militar, que coincide com um
grande momento do país, esboçando um projeto coletivo nacional e com grandes
conquistas econômicas, sociais e artísticas; e cheguei aos anos 2000, marcados pela
desagregação e pela falta deste projeto coletivo. O que tentarei realizar a seguir é uma
síntese do que já foi dito e alguns apontamentos para o futuro.
A utopia dos anos 50 foi alimentada com o bom desenvolvimento econômico e
com todas as novidades de um país em franco crescimento. A Bossa Nova, o Cinema
Novo, o Teatro de Arena, o Teatro Brasileiro de Comédia, a publicação de Grande
Sertão: Veredas e a conquista da Copa do Mundo de Futebol de 1958 reforçaram o
otimismo daqueles anos. Havia um projeto coletivo nacional de crescimento e
integração social, que tem na literatura de Guimarães Rosa o ápice da conciliação de
nossas dicotomias: Riobaldo suspendeu aquelas velhas perguntas identitárias sobre
quem somos, para onde vamos. O sertão é o mundo e o que existe é homem humano,
travessia. No teatro, destacam-se as peças de Ariano Suassuna, O auto da
Compadecida, onde o único personagem a salvar-se do inferno é o mais popular e mais
astuto; Gianfrancesco Guarnieri, com Eles não usam Black-tie, traz a realidade grevista
do operariado; e Dias Gomes, com o premiadíssimo O pagador de promessas, traz Zé-
do-burro, homem simples, e o único personagem a não se corromper. Já no final dos 50,
podemos perceber esta valorização do nacional-popular, que parece ter no povo o
“herói” da nação. Este comportamento foi tratado em Ridenti (2000) – a partir de Löwy
e Saire (1995) como romantismo revolucionário, tratando do imaginário da
intelectualidade de esquerda da época, que via no homem do povo o homem novo não
contaminado (um Zé-do-burro?) capaz de formar uma nova nação. E para aproximar-se
de seu herói, através do tratamento literário seja na temática ou na linguagem busca
representar o/para o povo idealizado.
Com o golpe-civil militar de 64, os sonhos daquele país novo, com um projeto
coletivo esboçado, foram abortados e o conceito de povo como o grande herói capaz
de restituir ao país a democracia ganhou ainda mais forças, acentuando o romantismo
revolucionário daquela geração. O show Opinião, na tentativa de ser representativo do
povo e para o povo traz Nara Leão, João do Vale e Keti, pensando no trio como
103
síntese da ideia de “popular” que existia na época. Os Festivais Nacionais da Canção
cantam e conclamam a revolução. A Tropicália chega atrevida e exuberante, proibindo
proibir. O teatro, com Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes busca os heróis do
passado contextualizados na realidade ditatorial daquele presente e o Teatro Oficina
busca na agressão a sua plateia, uma reação. A aproximação com o povo é a grande
meta desta intelectualidade de esquerda, que encontrará seu quinhão também na
literatura e no cinema. Intelectualidade que em muitos casos se queria realista e negava-
se romântica, mas o sonho do homem novo arraigado no homem simples do povo
tornava-a idealista.
Quarup, de Antonio Callado; Pessach a travessia, de Carlos Heitor Cony e
Terra em Transe, de Glauber Rocha formaram a tríade do ano de 67, e das mais
diversas maneiras tratam do assunto, mas culminando com o mesmo desfecho: a luta
armada. O padre Nando, de Callado, quer encontrar os índios do Xingu os homens
novos, não contaminados, o seu equivalente para o povo, capaz de formar uma nova
nação. Paulo Simões, escritor de Cony, envolve-se involuntariamente na guerrilha e
critica as organizações da esquerda brasileira. Paulo Martins, o poeta de Glauber Rocha,
faz duras criticas ao povo aclamado pela esquerda. E todos terminam sua narrativa
armados, no momento em que a única saída para a esquerda coloca-se na guerrilha
urbana. Estas obras abrem a discussão para o envolvimento do intelectual: qual posição
ele deve tomar?
Estes embates dos intelectuais que já não sabem mais ao certo qual o seu
verdadeiro papel no processo e que nos trazem protagonistas culpados, como Paulo
Martins, podem ser explicados pelo que Schwarz (1978) chama de hegemonia e pelo
que Ridenti (1993) chama de contra-hegemonia. A matéria intelectual de fôlego dos
anos 60 era produzida pela esquerda, o que nos permitiria concordar com a hegemonia.
Mas era hegemônica somente dentro do universo daquela esquerda política e não no
universo total do país, por isso contra-hegemônica. Mas as discussões de
(contra)hegemonia não puderam mais ser alimentadas após o AI-5, a derrota definitiva
da esquerda. Com artistas e intelectuais torturados, presos, exilados ou assassinados, a
realidade dos anos 70 será bem mais violenta e menos sonhadora.
O “milagre econômico”, a indústria cultural e a censura nortearam o país nos
anos 70. O teatro de Arena e o Oficina, perdendo o público para a televisão e o cinema,
são fechados. Na literatura, o experimentalismo da forma é para Candido (2006a) a
104
tônica da década; para Sussekind (1984), as velhas tradições realistas e deturpadoras da
realidade colocam-se como problema desta produção; para Pellegrini (1996), é
importante centrar-se no retrato do passado enquanto forma essencial para apontar o
futuro, o que era encontrado na literatura da década segundo a autora. Entre as diversas
formas que a literatura assume encontramos os romances-reportagem, as narrativas de
tortura, o florescimento do conto como gênero consolidado o que pode ser explicado
pela facilidade de experimentações ao que gênero permite –, e os romances
experimentais.
As avaliações do que se produzia acabam por tornarem-se polêmicas, utilizando
dos mesmos argumentos tanto para atacá-la quanto para defendê-la. Os primeiros vêem
no retrato da sociedade uma maquiagem enganadora visando uma consolidação
identitária falsa. Os segundos vêem no retrato uma possibilidade de expurgação dos
erros, para que no futuro eles sejam evitados. O que parece definitivo, contudo,
concordando com Fonseca (2010), é que não mais para Diadorim: a integração das
nossas diferenças e o projeto nacional foram derrotados, e a literatura busca através da
sua nova realidade uma nova forma. Em alguns casos, as escolhas são acertadas. Em
outros, nem tanto.
Na linha mais tradicional romanesca – a que abdica do experimentalismo – e que
coincide com autores tratados nos 60, os dilemas da intelectualidade persistem e as
criticas a esquerda aguçam-se. O povo como o herói desaparece do imaginário, agora
ele não tem voz nem memória, como em Érico Veríssimo. Bar Don Juan, de Antonio
Callado, é publicado em 1971, juntamente com Incidente em Antares, de Veríssimo. Se
todos esperavam de Callado um romance combativo à direita, o que se recebeu foi um
romance critico a organização falha da esquerda, mais interessada na boêmia. No caso
de Veríssimo, conhecido por ser “escritor da pequena burguesia”, deparamo-nos com
um romance critico às velhas oligarquias patriarcais na cidade de Antares e a memória
curta de sua população. Carlos Heitor Cony lança Pilatos em 1974, com um
protagonista castrado simbolizando o homem da década. Rubem Fonseca traz a
violência naturalizada em Feliz Ano Novo (1975), Raduan Nassar critica o autoritarismo
de forma mediada e poética em Lavoura Arcaica (1975), Clarice Lispector publica o
surpreendente A Hora da Estrela (1977), talvez o romance que melhor retrata o dilema
do narrador intelectualizado a chamada cisão fáustica, de Marshall Berman (apud
Ridenti, 2000) –, que culpado por ser portador de certas idéias de vanguarda, vê-se
105
descolado do povo, refletido em seu personagem miserável, a retirante Macabéa. Que
direitos teria de fazer isto? A cisão fáustica atinge boa parte da safra dos 60/70, desde
Paulo Martins em Terra em Transe até Rodrigo S.M. de A hora da Estrela.
Com a lenta e gradual abertura política, e por fim a redemocratização em 1985, o
processo já começado durante o regime militar vai produzindo uma nova conjuntara
política e econômica, com novas relações de mercado e a introdução do país no circuito
do capitalismo tardio, com a existência simultânea de elementos arcaicos e modernos. A
literatura não necessita mais lidar com uma resistência política e não precisa de heróis
salvadores. O povo perde o protagonismo para a classe média e a chamada literatura das
minorias afrodescendentes, homossexuais e mulheres começa a ganhar espaço. A
luta é muita mais pessoal e menos coletiva, restando-nos as ânsias individuais, os
conflitos identitários e a solidão das grandes cidades, que nos anos 80 ganham status
de personagem. Uma das grandes produções da década é o livro de contos Morangos
Mofados (1982), de Caio Fernando Abreu. Dividido em três partes O Mofo, Os
Morangos e Morangos Mofados –, a obra tem em sua primeira parte o amargo “Os
sobreviventes” (ABREU, 1987, p.15), com o relato de pessoas que se achavam “bons-
intelectuais-pequeno-burguesues”, e agora que insistem “sem nenhuma”, restando-
lhes apenas um “gosto azedo na boca”. Antecipação do ceticismo político-social de
Onde andará Dulce Veiga? A semente do romance de Caio F. aqui analisado talvez seja
encontrada já nos “Morangos”, ou indo mais longe no tempo, em Pedras de Calcutá, de
1977, com a narrativa de “Garopaba mon amour”
103
.
Atendo-nos em Dulce Veiga, o regime ditatorial coloca-se como um provável
motivador do desaparecimento de Dulce, o que não se comprova ao fim do romance.
Com um protagonista-narrador atormentado pelos fantasmas do passado relembrados
pela filha de Dulce –, acompanhamos a sua busca à cantora e também a remissão das
suas culpas: nos anos 60 é responsável por uma prisão feita pelo DOPS. Se
anteriormente acompanhamos a aproximação dos intelectuais com o povo, a
discussão no seu envolvimento na luta armada e a culpa por narrar o povo, agora nos
deparamos com um intelectual delirante e perseguido por fantasmas. O desfecho reserva
para ele a remissão das culpas e a ironia cética de Caio Fernando Abreu: Dulce, vivendo
no interior do país, em comunhão com o Santo Daime.
103
A trajetória da produção de Caio Fernando Abreu, com a culminância no romance Onde andará Dulce
Veiga?, foge aos limites atuais do trabalho, mas encontra-se em fase de produção para os projetos futuros.
106
Benjamim, o protagonista do romance homônimo de Chico Buarque, é tão
atormentado quanto o narrador de Caio F., e por motivos similares: a culpa da delação
nos anos 60. Mas neste caso, o sentimento é ainda mais gritante, que denuncia a sua
ex-namorada, fuzilada pelos militares. A lembrança deste passado também se pelo
encontro com uma nova geração: Ariela, a provável filha de Castana. A diferença fica
por conta dos narradores, que neste romance é em pessoa, mas bastante próximo de
seus personagens, principalmente de Benjamim.
Retomando as similaridades, temos a culpa da delação nos anos 60 (os chamados
inocentes úteis do regime); o esquecimento desta culpa nos último vinte anos, a
rememoração do fato com o encontro com a nova geração, filha daquele delatada; a
atonia dos protagonistas; a retomada de cenas e frases de cinema, o que acarreta em uma
narrativa bastante rápida. Nas disparidades temos os narradores, um em pessoa, outro
em pessoa; e os desfechos: em Caio F. a solução é irônica, no encontro com o Santo
Daime; em Chico Buarque, trágica, com a morte de Benjamim.
Se a antecipação do enredo romanesco de Dulce Veiga encontra-se em Pedras
de Calcutá, Morangos Mofados e quiçá em outras obras de Caio F., em Estorvo
podemos insinuar por ora uma antecipação da retomada da ditadura como temática.
Lendo o romance sob a ótica do texto de Schwarz (1999) nos deparamos com um
narrador-protagonista atormentado, um personagem de 68, segundo o crítico. Aceitando
essa máxima, nos deparamos com a consolidação deste personagem em Benjamim,
aflito pela lembrança do seu passado de delação e passividade
104
.
Bracher (2004) traz um protagonista atormentado pela delação que não existiu,
diferentemente dos romances acima citados. A culpa que O outro enxerga nele, faz com
que se sinta culpado. O seu desfecho parece não se resolver, que inicia e termina sua
trajetória perdido em meio ao seu vazio. Hatoum, nos contempla com romances onde
o tema ditatorial é lateral a ditadura não atinge diretamente nossos narradores - e
talvez por isso mais bem resolvido. Seus narradores, através da escrita encarnando a
figura do intelectual na narrativa - refletem sobre o seu passado: Nael busca a identidade
paterna, optando por ignorá-la, construindo sua narrativa através de Halim, Domingas e
Laval; e Lavo dá identidade a voz silenciada de Mundo através da sua escrita.
104
Assim como as relações entre as obras de Caio Fernando Abreu Morangos Mofados e Onde andará
Dulce Veiga – encontram em fase de produção, a trajetória do protagonista de Estorvo até Benjamim, que
foge aos limites atuais do presente trabalho, também encontra-se em produção para projetos futuros.
107
O trauma do golpe de 64 mostra-se mais bem resolvido, que a esquerda não é
representada na voz do narrador, e sim através dela. Nossos narradores não se
posicionam politicamente, flertam principalmente no caso de Nael com preceitos
mais próximos da esquerda política, muito por influência de personagens decisivos em
sua trajetória. Diferentemente dos protagonistas de Caio F. e Chico Buarque, esses
narradores não se vêem como culpados e sim enunciadores de certo passado, seu e dos
seus. Enunciação feita através da voz intelectualizada,que ambos escrevem romances
sobre o que ouviram, viram e viveram.
Segundo Said (2005), o intelectual deve ser um amador aquele que cultiva por
prazer e não por profissão -, perturbador do status quo e um questionador das
autoridades de poder, sempre mantendo a distância crítica. Na literatura dos anos 60,
temos um imaginário da intelectualidade que o povo como grande salvador da nação
e que tenta estar próxima deste seu herói; após o AI-5, o imaginário da intelectualidade
fica limitado a sua própria participação no processo revolucionário: Qual o papel do
intelectual? A escrita ou a luta armada? Se for a escrita, que direito tem esse pequeno-
burguês-intelectualizado de narrar a vida miserável do povo, e colocá-lo muitas vezes
em um papel pré-definido, como o de uma classe revolucionária? Nos anos 80, o
imaginário sobre a intelectualidade reflete-se em “Os sobreviventes”, de Caio Fernando
Abreu: “não me venhas com esta história de que atraiçoamos todos os nossos ideais”,
afinal “eu queria era ser feliz, cara, gorda, burra, alienada e completamente feliz”
(1987, p.17). Em Onde andará Dulce Veiga? e Benjamim não heróis e os vilões são
protagonistas. Milton Hatoum, nos leva a outro ponto, onde o trabalho intelectual e
reflexivo funciona como expurgação dos erros do passado.
A representação desta intelectualidade nas narrativas se das mais variadas
formas. Em um primeiro momento do romatismo revolucionário, o protagonismo
pertence ao povo”. No processo de conversão à luta armada, representados em padre
Nando (Quarup), Paulo Simões (Pessach) e Paulo Martins (Terra em Transe), temos
o início do processo de cisão fáustica que tem seu ápice (tardio?) em Rodrigo S.M. de A
Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Isso tudo sem esquecer as figuras intelectuais à
deriva de Antonio Callado em Bar Don Juan, que apresentam similaridades com as
figuras intelectuais representadas por Milton Hatoum. Na literatura dos anos 90, a
representação do intelectual fica limitada ao protagonista perturbado de Caio Fernando
Abreu e em Benjamim, ela desaparece.
108
Em Dois irmãos, Cinzas dos Norte e “Bárbara no Inverno” temos vários
representantes do que poderíamos chamar de intelectualidade. Começando por Nael,
enunciador intelectualizado, e portanto legitimado para contar aquela história mais do
que postular um eu, Nael postula um eu escritor. Através de sua escrita catártica
consegue superar os seus traumas pessoais, passando por um processo de
amadurecimento que culminará no abandono do questionamento sobre a origem
paterna. Além de encontrar a sua identidade e amadurecimento, a escrita de Nael reflete
sobre os problemas da modernização e do crescimento econômico dos anos 60 e 70.
Lavo, como Nael, é o narrador intelectualizado, que escreve o romance, mas não busca
respostas, identidade a Mundo. São narradores que refletem sobre a voz do outro e
buscam resolver a sua vida (ou a do outro) através da sua crença na linguagem.
Mas afora nossos narradores, temos ainda as figuras intelectuais de Omar, Laval,
Ranulfo e Mundo, boêmios contestadores, como Moreau e Deslauriers de A educação
sentimental (1869), de Gustave Flaubert, “cujas façanhas quando jovens boêmios
expressavam a raiva de Flaubert em relação à incapacidade de ambos de manter um
rumo firme enquanto intelectuais” (SAID, 2005, p.32). Omar e Ranulfo aproximam-se
na medida em que são contestadores natos tio Ran mais do que Omar –, mas que não
tem qualquer vínculo, seja político ou empregatício. Laval e Mundo representam o
professor e o artista, distantes da militância política, mas que mantêm em sua vivência
conceitos de liberdade e justiça. A figura mais curiosa fica por conta de Arana, artista
libertário admirado por Mundo, que se rende ao mercado e a sua nova lógica. Talvez
seja o personagem melhor resolvido, não encarnando nem traumas, nem dilemas.
A análise das referidas obras permite assinalar que o processo de trauma
ditatorial acompanha a produção literária e artística das mais diversas formas. Pode-
se constatar que, nos anos 60, o sonho da revolução se faz presente na representação da
figura popular e do intelectual aderindo a luta armada, assim como temos o seu embate
como figura pública e política da intelligentsia nos 60 e 70. Passamos pela fase de
criticas a posturas da esquerda, à postura do povo e do intelectual, chegando na
democracia tentando engendrar um novo sonho coletivo que não se confirmou, restando
aos anos 90 a consolidação da nova lógica de mercado e da total falta de um projeto
nacional, cada vez mais desagregado e preso a variações de capital. A busca por
culpados leva os nossos protagonistas a beira da loucura delirante: o narrador de Caio F.
109
redimi-se e parece apontar um caminho para fora da sociedade contaminada; e
Benjamim é assassinado, como Castana, mas na democracia.
Se precisamos inventar memórias para dizer “a verdade profunda” (FISCHER,
2009, p.314), Milton Hatoum cria o romance dentro do romance: lemos a obra do
criador e da criatura. Valhemo-nos das memórias de Nael e Lavo como enunciadores
legitimados para narrar a sua história e do seu país. Através da crença na linguagem se
resolvem os traumas existentes em Nael e a dívida de um passivo Lavo para com
Mundo. Seus narradores sobrevivem às tragédias, mortes e separaçõs através do relato
escrito. Mesmo que as memórias sejam ruins, ou reste ruínas, o processo escritural
dará um sopro de otimismo ao fim das narrativas, principalmente em se tratando do
narrador de Dois irmãos.
Como proposta para o futuro, ficam as perguntas não respondidas em Caio
Fernando Abreu, Chico Buarque e Milton Hatoum. Que trajetória a obra de Caio F.
segue que culmina no tormento ditatorial em Onde andará Dulce Veiga?; O narrador de
Estorvo é um indício do que se em Benjamim? Que narradores temos em Milton
Hatoum? Por que em épocas de narrativas fragmentadas e chamado pós-modernismo,
encontramos um narrador tipicamente moderno? (E não obstante, esse narrador
moderno é considerado um dos melhores da nossa literatura contemporânea). Qual a
relação desta esquerda festiva hatouniana com aquela esquerda boêmia de Flaubert em
A educação sentimental? E com Antonio Callado, com seu bar Don Juan? Quais os
indícios mais gritantes de Hatoum leitor de Flaubert, de Machado de Assis e de Antonio
Callado?
105
O recorte temático me permitiu a leitura aqui posta, não esgotando o assunto e
muito menos as obras aqui referidas. O trabalho está aqui colocado na intenção de
contribuir para as discussões sobre os rumos da literatura brasileira contemporânea, e
como diz Edward Said (2005, p.31), na esperança de “promover a liberdade humana e o
conhecimento”. Se essa dissertação conseguir apontar para esse caminho, então saberei
que a atividade intelectual continua realizando sua principal finalidade.
105
Alguns desses caminhos foram lançados ao longo da dissertação e abrem-se como possibilidade para
novos rumos de pesquisa.
110
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123
ANEXOS
124
ANEXO I
125
ANEXO II
126
ANEXO III
127
ANEXO IV
128
ANEXO V
129
ANEXO VI
130
ANEXO VII
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