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figura do filho: Domingas coloca-se com maior força na narrativa, o que se pode
atribuir a presença de Nael, o narrador da sua história e seu filho.
Além do diálogo com a obra de Flaubert, temos ainda o mito bíblico dos
irmãos gêmeos Esaú e Jacó, no Gênesis
72
; a já clássica comparação, mencionada como
influência pelo próprio Hatoum, com Esaú e Jacó (1904), de Machado de Assis, que
nos traz o embate entre monarquistas e republicanos
73
, agora podendo ser representado
pelo embate direita versus esquerda. Interessante atentar para a quase reprodução de
uma frase machadiana na obra. Em Machado de Assis, sobre Flora: “(…) acho-lhe um
sabor particular naquele contraste de uma pessoa assim, tão humana e tão fora do
mundo, tão etérea e tão ambiciosa, ao mesmo tempo, de uma ambição recôndita…(…)”
(ASSIS, 1997, p. 1.024). E em Dois irmãos, sobre Rânia: “Gostava dela, era atraído
pelo contraste de uma mulher assim, tão humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão
ambiciosa ao mesmo tempo” (HATOUM, 2005, p. 195)
74
. Estes são dois dos tantos
outros diálogos possíveis que se centram em irmãos, sejam eles gêmeos ou não
75
.
Gêmeos que também podem nos levar ao mito do duplo, comum na literatura e que no
romance não se limitam aos irmãos. Pode-se pensar no duplo como a figura do rival
(que se faz clara na narrativa) ou ainda como um complemento de si mesmo
76
. O duplo
em Omar e Yaqub projeta o rival, o Outro, o diferente. Podemos pensar no duplo ainda
como o árabe e o indígena; a metrópole e a periferia ou ainda Domingas e Rânia,
Domingas e Zana, Rânia e Zana. Duplos que nos levam até Nael: a terceira margem do
rio, a terceira opção, filho de um dos dois, mas que acaba por não se unir a nenhum
72
Filhos de Rebeca e Isaque, Esaú era o primogênito e tinha mais direitos que Jacó. A mãe, assim como
Zana, tinha preferência pelo caçula (Jacó), e isto leva-a enganar o próprio marido para que o caçula
obtivesse a progenitura. O fato cria uma inimizade entre os irmãos. O curioso aqui é que Jacó é Yaqub em
árabe - já Omar significa “o supremo”. Yaqub (Jacó) era o primogênito, e a preferência da mãe recaia
sobre Omar. Só que neste caso a progenitura não abarcava direitos especiais. Mas com a ajuda da mãe -
assim como na Bíblia, mas neste caso, com a inversão do filho ajudado e sem saber que o ajudava -
Yaqub (Jacó) começa o plano de vingança contra Omar (Esaú). Na Bíblia, Esaú tenta assassinar o irmão
(mas a tentativa é em vão), assim como Omar agride Yaqub.
73
Para maiores detalhes ver: Cousas futuras! CHIARELLI, Stefania. Cousas futuras!Machado,
predecessor de Hatoum. In: I Seminário Machado de Assis, 2008, Rio de Janeiro. I Seminário Machado
de Assis. Rio de Janeiro: UERJ/UFF/UFRJ, 2008. Disponível em
<http://www.filologia.org.br/machado_de_assis/Cousas%20futuras!%20Machado,%20predecessor%20de
%20Hatoum.pdf>. Acesso em 10 de agosto de 2010.
74
A referência a estes trechos foram encontradas em Birman (2007), que remete ao seguinte trabalho:
CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de. Relatos de uma cicatriz: a construção dos narradores dos romances
Relato de um certo Oriente e Dois Irmãos, 2005. 207 f. Tese (Doutorado em Letras) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas,Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. p. 136
75
Como o mito bíblico de Caim e Abel; o romance O ventre (1958), de Carlos Heitor Cony etc.
76
Entre os duplos da literatura temos como exemplo – agora não de irmãos como duplos, e sim de
espelhos e projeções do eu – o conto de Guimarães Rosa, “O espelho” – de Primeiras estórias (1962) - e
o clássico conto de Jorge Luis Borges, “O outro” – do Livro de Areia (1975) –, para nos atermos apenas
em alguns dos nomes mais conhecidos.