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UNIVERSIDADE
FEDERAL
DO
RIO
DE
JANEIRO
A
ABORDAGEM DA REFERENCIAÇÃO EM LIVROS DIDÁTICOS DE
L
ÍNGUA
P
ORTUGUESA DO
E
NSINO
M
ÉDIO
Rafael Guimarães Nogueira
Faculdade de Letras UFRJ
2010
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A
ABORDAGEM DA REFERENCIAÇÃO EM LIVROS DIDÁTICOS DE
L
ÍNGUA
P
ORTUGUESA DO
E
NSINO
M
ÉDIO
Rafael Guimarães Nogueira
Dissertação de Mestrado
apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Vernáculas
da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como quesito para a
obtenção do Título de Mestre em
Letras Vernáculas (Língua
Portuguesa).
Orientador: Profa. Dra. Leonor
Werneck dos Santos.
Rio de Janeiro
Agosto de 2010
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A abordagem da referenciação em livros didáticos de
Língua Portuguesa do Ensino Médio
Rafael Guimarães Nogueira
Orientador: Profa. Dra. Leonor Werneck dos Santos.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como
quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas
(Língua Portuguesa).
Examinado por:
______________________________________________________
Profa. Dra. Leonor Werneck dos Santos (Presidente)
______________________________________________________
Profa. Dra. Regina Souza Gomes (UFRJ)
______________________________________________________
Profa. Dra. Claudia de Souza Teixeira (IFRJ)
______________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Alexandre Victorio Gonçalves (UFRJ Suplente)
______________________________________________________
Profa. Dra. Maria Carlota Amaral Paixão Rosa (UFRJ Suplente)
Rio de Janeiro
Agosto de 2010
Nogueira, Rafael Guimarães.
A abordagem da referenciação em livros didáticos
de Língua Portuguesa do Ensino Médio / Rafael
Guimarães Nogueira. Rio de Janeiro: UFRJ/FL,
2010.
ix, 95f.: il.; 27cm.
Orientador: Leonor Werneck dos Santos.
Dissertação (mestrado) UFRJ/FL, Programa de
Letras Vernáculas/Língua Portuguesa, 2010.
Referências Bibliográficas: f. 91-95.
I. Santos, Leonor Werneck dos. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. III. A abordagem da
referenciação em livros didáticos de Língua
Portuguesa do Ensino Médio.
A meus pais
A meus paisA meus pais
A meus pais, luz em minha vida, pelo
constante carinho e incentivo.
A
GRADECIMENTOS
A Deus, que me capacitou e me conduziu, com bondade, pelos (des)caminhos que
me levaram até a conclusão desta etapa de formação acadêmica.
À Faculdade de Letras da UFRJ, que me acolheu como um aluno inquieto, um
monitor dedicado e um professor (substituto) apaixonado.
À Profa. Leonor Werneck dos Santos, que, com sua experiência docente e,
principalmente, paciência para com um orientando indisciplinado, ensinou-me a
navegar pelo mar dos fenômenos textuais, tornando a apresentação deste trabalho
possível.
Aos demais professores desta Universidade em especial, Márcia Machado,
Aparecida Lino, Mônica Orsini, Dinah Callou, Maria Luiza (Malu) e Ana Flávia –, que,
em mim, enxergaram “olhos brilhantes”, reflexo da vontade de fazer o novo.
Aos meus (ex)alunos, uma das principais motivações desta pesquisa, por me
ensinarem que meu trabalho é, acima de tudo, ajudá-los a descobrir o valor de si
mesmos.
Aos amigos Leo e Beta, Venâncio, Rondon, Verônica, Deise, Tiago, Maria Joe
Ana Cristina e aos companheiros de estudo Luiza, Bárbara, Rosana, Patrícia e
Daniele pelos sorrisos, afagos e diálogos que dividimos.
À minha família principalmente, à minha irmã, Carla Cristina, e à minha tia Nanci
e àqueles com quem, a cada almoço de domingo, celebro a vida, compartilhando
anseios, conquistas... Amo vocês!!!
RESUMO
NOGUEIRA, Rafael Guimarães. A abordagem da referenciação em livros
didáticos de Língua Portuguesa do Ensino Médio. Dissertação de mestrado.
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Faculdade de Letras, 2010.
Esta pesquisa consiste em uma análise do tratamento das formas coesivas
referenciais em livros didáticos de Língua Portuguesa destinados a alunos do Ensino
Médio. O objetivo central deste trabalho é investigar se e como essas obras
relacionam a descrição gramatical aos processos referenciais, examinando em que
medida elas propõem reflexões capazes de ampliar as habilidades de leitura e de
produção textual. Nesse sentido, fundamentamos nosso estudo nos princípios
teóricos da atual fase da Linguística Textual, que, ao privilegiar a relação
intersubjetiva entre o mundo e a linguagem, pressupõe a língua como uma atividade
social, histórica e cognitiva e, assim, busca articular aspectos discursivos aos
processos de construção e de manipulação do conhecimento. Nessa perspectiva
sociocognitiva-interacional, destacamos, como tema central deste trabalho, a
referenciação: o processo de introdução e (re)construção de referentes textuais
(objetos de discurso). Essa ação linguística não se traduz, portanto, na
representação da realidade pelo discurso; realiza-se na produção e na interpretação
do mundo pelo e no texto. A fim de aprofundarmos nossa análise, recorremos aos
Parâmetros Curriculares Nacionais e ao Catálogo de Língua Portuguesa produzido
por meio do Programa Nacional do Livro para o Ensino dio (PNLEM) 2009, a
partir do qual selecionamos, como corpus desta pesquisa, cinco livros didáticos que
se destacam pelo trabalho com a coesão textual. Por meio da análise estrutural
desses compêndios, esperamos fomentar a reflexão sobre a práxis docente e
apontar caminhos para ações pedagógicas mais profícuas.
Palavras-chave: coesão textual; referenciação; ensino.
RÉSUMÉ
NOGUEIRA, Rafael Guimarães. A abordagem da referenciação em livros
didáticos de Língua Portuguesa do Ensino Médio. Dissertação de mestrado.
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Faculdade de Letras, 2010.
Ce travail consiste à analyser l’abordage des formmes cohesives referenciales dans
les livres didactique de Portuguais, destinés au Lycée. Le but central de ce travail est
vérifier si et comment ces oeuvres relactionent la déscription grammatical et les
formes de références, en examinant dans quelle mesure elles proposent des
réflexions capables d’agrandir des habilitées de lecture et production textuelle. En
conséquence, notre étude est basé sur les principes théoriques de la phase actuelle
de Linguistique Textuelle, qui, en privilégiant la relation intersubjective entre le
monde et la langue, prend la langue comme un fait social, historique, cognitive, et
cherche donc à articuler les aspects des processus discursifs la construction et la
manipulation de la connaissance. Dans cette perspective sociocognitive-
interactionnelle, on met en évidence, le thème central de ce travail, le référencement:
le processus d'introduction et de (re) construction des réferents (objets du discours).
Cette action linguistique ne se traduit pas, par conséquent, par la représentation de
la réalité par le discours, mais par la production et l'interprétation du monde par et
dans le texte. Par la suite, afin d'approfondir notre analyse, nous avons utilisé les
Parâmetros Curriculares Nacionais et le Catálogo de Língua Portuguesa, produit par
le Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM) 2009, à partir
de laquelle nous avons choisi, comme corpus de cette recherche, cinq manuels qui
se distinguent par leur travail avec la cohésion textuelle. Grâce à une analyse
structurale de ces manuels, on but d'encourager la réflexion sur la pratique de
l'enseignement et montrer des actions pédagogiques plus fructueux.
Mosts-clés: la cohésion textuelle; la référence; l’enseignement
SINOPSE
O tratamento do processo de referenciação em
livros didáticos de Língua Portuguesa do Ensino
Médio: explicitação dos pressupostos teóricos da
atual fase da Linguística Textual, apresentação do
processo coesivo-argumentativo denominado
referenciação, análise de livros didáticos à luz de
uma perspectiva sociocognitiva-interacional.
SUMÁRIO
1. Introdução ............................................................................................................. 10
2. A Linguistica Textual: um olhar sociocognitivo-interacional para o estudo do
texto............................................................................................................................16
3. Referenciação: a construção sociocognitiva da referência e seus efeitos cognitivo-
discursivos..................................................................................................................26
3.1 De Coesão Referencial a Referenciação..................................................26
3.2 A dinâmica de construção dos objetos de discurso...................................34
3.3 Funções cognitivo-discursivas dos elementos referenciais.......................38
3.3.1 Formas de introdução referencial......................................................39
3.3.1.1 Anáforas Indiretas.......................................................39
3.3.1.2 Encapsulamento, Nominalização e Rotulação............40
3.3.2 Formas de manutenção referencial...................................................45
4. A Abordagem da Referenciação em Livros Didáticos de Língua Portuguesa do
Ensino Médio..............................................................................................................50
4.1 Metodologia de análise..............................................................................50
4.2 Caracterização geral das obras.................................................................54
4.3 Perspectivas no estudo da referenciação..................................................59
4.3.1 A Abordagem da referenciação dissociada de aspectos
gramaticais............................................................................................59
4.3.2 A Abordagem da referenciação na superfície do
texto......................................................................................................64
4.3.1 A Abordagem da referenciação como um processo além do
entorno verbal.......................................................................................75
4.4 Aproximando teoria e prática no estudo da referenciação........................82
5. Conclusão...............................................................................................................88
Referências................................................................................................................91
10
1.
I
NTRODUÇÃO
A questão da coesão tem sido, em geral, pouco ou quase nada tratada
pelas gramáticas e, muito recentemente, um ou outro livro didático traz
observações acerca dessa propriedade textual. Em geral, essas
observações são apresentadas de forma superficial, incompletas e, por
vezes, com algumas inconsistências. (ANTUNES, 2005: 16)
Tomando como base estudos anteriores sobre ensino de língua materna (cf.
ANTUNES, 2005; CHAROLLES, [1978] 2002; MATTOS E SILVA, 1995; dentre
outros), verificamos que os elementos de textualidade, como a coesão, pouco são
explorados de maneira consistente até mesmo nas aulas de Língua Portuguesa.
Nesse sentido, observamos a recorrência de exercícios de leitura e de produção
textual dissociados do reconhecimento e da análise das estruturas gramaticais, as
quais passam a representar mais um conteúdo isolado do currículo escolar.
Mediante tal constatação, indagamos: em que medida essas limitações
poderiam ser reflexo da organização do livro didático? Dito de outra forma: a
dissociação entre Gramática, Literatura e Redação, observada nas práticas de
ensino-aprendizagem, seria fruto de uma apresentação também fragmentada
desses conteúdos nos manuais didáticos?
A partir desses questionamentos, que nos servem como motivação para a
realização deste trabalho vinculado à linha de pesquisa Língua e Ensino, trataremos
do processo coesivo-argumentativo intitulado referenciação, a partir do qual
analisaremos a estruturação de livros didáticos de Língua Portuguesa do Ensino
Médio, verificando a existência de relações entre a apresentação desse fenômeno
textual e a descrição de formas e de construções gramaticais. Em outras palavras,
investigaremos em que medida os manuais didáticos relacionam o sistema
(estrutura) da língua à referência discursiva. Desse modo, o objetivo central desta
pesquisa é investigar se e como essas obras relacionam o processo de
referenciação à sistematização de certas classes de palavras, da repetição e da
construção denominada elipse.
A fim de melhor definirmos o tema desta pesquisa, convém ressaltar que, até
os anos 1990, a literatura especializada (cf. KOCH, [1989] 2007), ao classificar os
diferentes mecanismos de coesão textual, limitava-se à análise da superfície textual
11
(cotexto), descrevendo a coesão referencial como a retomada de um referente,
expresso/apontado por um elemento da sequência textual, por outro componente do
texto. No entanto, rompendo com essa perspectiva referencialista da linguagem,
compreende-se, atualmente, que os referentes textuais não se confundem com a
realidade extralinguística: eles não espelham diretamente o mundo real, pois
consistem em constructos culturais, representações geradas pela atividade
linguística e condicionadas por determinadas condições de produção. É, pois, na
dimensão da percepção e da interação social que se “fabricam” os referentes (cf.
CAVALCANTE et alii, 2003; KOCH et alii, 2005; MARCUSCHI, 2000; dentre outros).
Privilegiando, portanto, a relação intersubjetiva entre o mundo e a linguagem,
este trabalho destaca, como tema central, a atividade sociocognitiva-interacional de
introdução e de (re)construção de objetos de discurso, a partir da qual, além de se
criarem cadeias coesivas, evidenciam-se, na seleção e na organização dos itens
gramaticais e lexicais, as marcas de subjetividade.
Nesse sentido, adotamos, como perspectiva teórica para a realização desta
pesquisa, a Linguística Textual, a qual compreende que toda comunicação ocorre
através de textos (e não por palavras soltas/desconexas) e concebe a língua não
como um “espelho” (mera representação da realidade) ou uma “ferramenta” (mero
instrumento de comunicação), mas como uma atividade social, histórica e cognitiva,
por meio da qual se constrói a realidade (cf. KOCH, 2004a; 2006a; MARCUSCHI,
2007). Além disso, retomando as considerações de Anscombre e Ducrot (1976),
essa vertente dos estudos linguísticos parte do pressuposto de que o uso da
linguagem é inerentemente argumentativo, isto é, a argumentatividade é uma
propriedade da língua.
Considerando, no processamento textual, tanto os fatores sócio-interacionais
quanto os de ordem cognitiva, Koch & Elias (2009: 10) definem o texto como o
espaço da interação verbal, no qual os sujeitos produzem, dialogicamente, o sentido.
O texto é, pois, um processo ativo e contínuo de co-construção do sentido em que
os interlocutores manipulam, de forma estratégica, não apenas o material linguístico,
mas também seus conhecimentos sobre o mundo e sobre o próprio processo de
interação. Portanto, os estudos acerca das regularidades e das propriedades
textuais dentre as quais se destaca o processo de referenciação são tidos como
a análise de uma atividade de intercâmbio social.
12
A fim de mantermos uma linha coerente de análise, o presente trabalho parte
da seguinte indagação: décadas após a publicação dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) cuja principal orientação é o desenvolvimento de um currículo
integrado, a partir do qual se abandona a fragmentação dos conhecimentos –, os
livros didáticos de Língua Portuguesa do Ensino Médio demonstram a estreita
relação entre a gramática da língua e o fenômeno da referenciação?
Tendo em vista que, no processamento textual, ativamos diferentes
estratégias sociocognitivas, recorrendo, segundo Koch & Elias (2006), ao nosso
conhecimento linguístico, enciclopédico e interacional, nesta pesquisa,
examinaremos se os livros didáticos de Língua Portuguesa se constituem por
exposições teóricas e por exercícios capazes de ampliar, significativamente, a
competência comunicativa dos alunos, ao relacionarem o sistema linguístico à
construção de referentes discursivos e, assim, da coesão textual.
Dessa forma, partiremos dos seguintes questionamentos específicos:
(a) os livros didáticos apresentam, além de nomenclaturas e categorizações, a
função coesiva e a força argumentativa de elementos gramaticais e lexicais na
construção de cadeias referenciais?
(b) em cada obra analisada, a sistematização teórica e os exercícios que versam
sobre a coesão e a coerência textuais, a repetição, a elipse e sobre as classes de
palavras empregadas na construção de objetos de discurso se relacionam
coerentemente com os pressupostos teóricos e as orientações pedagógicas
indicados no Manual do Professor?
Respondendo a tais interrogações, serão contemplados os seguintes
objetivos específicos:
(a) verificar, nos livros didáticos de Língua Portuguesa, a abordagem da importância
da repetição, da elipse e de classes gramaticais na construção do processo de
referenciação;
(b) indicar, aos profissionais de língua, caminhos para a construção de atividades
em que os processos morfossintáticos e a seleção de elementos gramaticais e
lexicais sejam considerados estratégias coesivo-argumentativas de referenciação.
No que concerne à metodologia desta pesquisa, apresentamos, inicialmente,
as justificativas para a seleção do corpus. Salientamos, assim, que os livros
didáticos representam um importante instrumento de mediação e de construção do
conhecimento, por meio do qual se apontam estratégias para a apresentação e
13
fixação de conteúdos formais. Nesse sentido, explicita Marcuschi (2005: 48):
Salvo engano ou alguma mudança radical nos modelos de ensino
existentes hoje, parece legítimo supor que mesmo numa época marcada
pela comunicação eletrônica e pela entrada de novas tecnologias, o material
didático continuará sendo uma peça importante no ensino. Pouco importa
se na forma atual do livro ou se no formato de um compact disc ou então se
um site na Internet. Assim, mais do que contestar a existência do livro
didático, trata-se de ver como anda ele hoje em dia e como poderia ser se o
quiséssemos ainda melhor.
Considerando o papel central dos compêndios didáticos no processo de
ensino-aprendizagem, optamos por analisar aqueles manuais que se destinam ao
Ensino dio. Isso porque, nos últimos anos da educação básica, os alunos, em
geral, demonstram-se mais habilidosos na observação dos fenômenos linguísticos,
dentre os quais se insere o complexo processo de referenciação. Outra motivação
para a análise dos livros do Ensino Médio é a observação, a partir de avaliações
nacionais, das limitações desses alunos no que tange à habilidade de
(re)significação textual.
Ressaltamos, a respeito dessa questão, o resultado do Sistema Nacional de
Avaliação da Educação Básica (SAEB) 2005, em que os alunos do Ensino Médio
obtiveram, em Língua Portuguesa, 258 pontos de dia de proficiência,
aproximando-se do resultado dos alunos do Ensino Fundamental (232 pontos).
Observamos, ainda, que, mais recentemente, na avaliação do Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) 2009, os alunos da última série do
Ensino Médio alcançaram, na média do país e, coincidentemente, na do Estado do
Rio de Janeiro, 3,4 pontos o que, segundo as metas de desenvolvimento definidas
para esse ano, revela uma evolução ainda muito tímida.
A fim de aprofundarmos nossa análise, recorremos aos Parâmetros
Curriculares Nacionais (BRASIL, 1999) e ao Catálogo de Língua Portuguesa
produzido por meio do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio (PNLEM)
2009 (BRASIL, 2008). As diretrizes que compõem o primeiro documento orientaram
a construção de todos os capítulos desta pesquisa, uma vez que elas dialogam,
diretamente, com os pressupostos teóricos da Linguística Textual. a publicação
do PNLEM 2009 contribuiu para a seleção do corpus, visto que ela nos apresenta “a
estrutura das obras, a análise crítica dos aspectos conceituais, metodológicos e
14
éticos, e algumas sugestões para a prática pedagógica” (BRASIL, 2008: 7). O
corpus desta pesquisa é formado, portanto, por cinco livros didáticos que, de acordo
com as resenhas do PNLEM 2009 e a análise de Tupper, Gonçalo & Côrtes (2009)
1
,
se caracterizam por um estudo aprofundado de processos textuais-discursivos e,
assim, da coesão textual.
Finalmente, devemos pontuar que, considerando as diferentes formas de
referenciação, focalizaremos, na análise qualitativa e comparativa das cinco obras
selecionadas, i) a apresentação da repetição e da elipse e ii) a descrição dos
morfemas gramaticais empregados na construção de cadeias referenciais
(pronomes, advérbios locativos, numerais e artigos) e das formas nominais
(substantivos e adjetivos), principalmente no que se refere às relações semânticas
de sinonímia, hiperonímia e hiponímia. Além disso, analisaremos o Manual do
Professor de cada um dos livros, examinando se os postulados teórico-
metodológicos apontados embasam, de fato, a construção dos capítulos/seções das
obras. Investigaremos, ainda, em que medida a sistematização teórica da coerência
e da coesão textuais, somada a propostas de leitura e de produção, vincula o
conhecimento estrutural da língua à construção de objetos de discurso e de cadeias
correferenciais.
No que diz respeito à organização e ao conteúdo das partes deste trabalho,
podemos observar que, após esta Introdução, o capítulo A Linguística Textual: um
olhar sociocognitivo-interacional para o estudo do texto consiste em uma síntese dos
principais pressupostos teóricos que caracterizam a atual fase dessa ramificação da
Linguística.
Em seguida, no terceiro capítulo, Referenciação: a construção sociocognitiva
da referência e seus efeitos cognitivo-discursivos, apresentaremos o tema central
desta pesquisa, demonstrando sua funcionalidade na estruturação dos textos e na
construção da argumentação.
No quarto capítulo, teremos como principal meta responder aos
questionamentos indicados nesta Introdução, analisando e comparando o
tratamento do processo de referenciação nos cinco livros didáticos selecionados.
1
As autoras, visando à investigação do tratamento da referenciação nas atividades de produção
textual do Ensino Fundamental e nos livros didáticos de Língua Portuguesa do Ensino Médio,
realizaram uma análise preliminar das 11 obras aprovadas pelo PNLEM 2009. Assim, apontaram, por
um lado, equívocos, incoerências e abordagens superficiais, sublinhando, por outro, os compêndios
em que o estudo da referenciação se revela mais consistente.
15
Finalizando esta pesquisa, refletiremos sobre a dinâmica de ensino-
aprendizagem e o uso desses compêndios didáticos. Sob uma perspectiva
sociocognitiva-interacional, esperamos, portanto, que a análise da abordagem do
processo referencial nos livros didáticos de Língua Portuguesa elaborados para o
Ensino Médio possa subsidiar discussões acerca da práxis pedagógica e, assim,
contribuir para a formação de alunos-leitores críticos.
16
2.
A
L
INGUÍSTICA
T
EXTUAL
:
UM OLHAR SOCIOCOGNITIVO
-
INTERACIONAL PARA
O ESTUDO DO TEXTO
.
O principal objetivo deste capítulo é individualizar a atual fase da Linguística
Textual, sob cujos pressupostos teóricos desenvolveremos o tema de nossa
pesquisa. Para tanto, faz-se necessário recuperar, brevemente, a evolução dos
estudos do texto; afinal,
Aqueles que não acompanharam a sua trajetória estão longe de poder
avaliar o que hoje essa disciplina vem se propondo como objeto de
investigação e a contribuição que seu estudo vem dando em prol de um
melhor conhecimento de como se realiza a produção textual do sentido.
(KOCH, 2006b: 15-16)
Mediante as lacunas deixadas pela gramática da frase, que concebia a língua
como uma estrutura abstrata e autônoma às práticas sociais, desconsiderando, em
suas análises, o discurso, isto é, a concretização do sistema linguístico, surgem, no
início da década de 60, paralelamente às análises variacionistas, estudos que
objetivavam compreender as regularidades e a sistematicidade dos textos (cf.
FÁVERO & KOCH, 2005; KOCH, 2004a; 2006b; VILELA & KOCH, 2001; dentre
outros).
Debruçando-se, pois, sobre o uso efetivo da língua, desenvolveram-se
pesquisas que – tomando como unidade sica da manifestação da linguagem
(objeto particular de investigação) não mais os morfemas ou a frase, mas o texto,
uma vez que diversos fenômenos linguísticos apenas são construídos (e, portanto,
passíveis de análise) no interior das manifestações textuais fundaram, anos mais
tarde, a ciência denominada Linguística Textual.
Em sua fase inicial, essa vertente dos estudos da linguagem compreendia o
texto como uma “frase complexa”, mera “sequência coerente de enunciados” (cf.
FÁVERO & KOCH, 2005; KOCH, 2004a; 2006b; VILELA & KOCH, 2001). Assim,
estabeleceu-se que, a fim de que uma unidade linguística possa ser compreendida
como um texto, ela deve se estruturar a partir de diferentes constituintes, que,
integrados, possibilitam a decodificação e interpretação da mensagem.
17
Realizava-se, portanto, a análise transfrástica na tentativa de construção de
uma gramática de texto: “uma descrição completa dos elementos constitutivos de
que dispõe uma dada língua para a estruturação de textos” (FÁVERO & KOCH,
2005: 21). Tal gramática objetivava: i) apresentar os princípios de constituição do
texto em uma determinada língua; ii) apontar critérios capazes de delimitar textos
variados; e iii) diferenciar as várias concretizações textuais (cf. FÁVERO & KOCH,
Id.: 15-16; KOCH, 2006b: 5).
Desse modo, explicitou-se, ainda nesta primeira fase, uma norma mínima de
composição textual. Se, desde os estudos estruturalistas e gerativistas, apontaram-
se regras combinatórias básicas constituintes de diferentes sistemas linguísticos,
evidenciando, por exemplo, que uma aleatória junção de signos o forma uma
frase, os estudos do texto buscaram sistematizar os princípios organizadores de
qualquer concretização textual.
Nesse sentido, Charolles ([1978] 2002: 40) defendeu a existência de uma
competência textual, que, comparada à competência linguística chomskyana,
ultrapassa à mera geração/formação de frases: consiste na capacidade de o
indivíduo distinguir textos coerentes de uma simples sobreposição de enunciados
ilógicos e/ou desconexos, podendo, assim, produzir e compreender distintas
materializações textuais.
Ao privilegiar a descrição dos mecanismos gramaticais capazes de, na
construção textual, relacionar frases, focalizava-se o estudo da coesão e da
coerência textuais principalmente, das relações referenciais. Destacam-se, nesse
sentido, os trabalhos como os de Halliday & Hasan (1976), que sistematizaram os
mecanismos da língua inglesa capazes de conferir coesão a um texto.
Embora a descrição de estratégias de correferência (anafóricas e catafóricas)
tenha representado contribuições significativas para a compreensão da tessitura
textual, a coesão textual era, muitas vezes, equiparada à coerência (cf. KOCH,
[1989] 2007: 7; KOCH, 2006b: 13). Podemos comprovar essa afirmação nos
remetendo a definições dessas duas propriedades textuais: para Halliday & Hasan
(1976: 11), a coesão se realiza quando um elemento pode ser interpretado por
referência/relação a outro; van Dijk (1980: 147) define a coerência como uma
propriedade semântica dos discursos, a partir da qual a interpretação de uma frase
está relacionada à interpretação de outras frases.
18
Além disso, os estudos sobre os processos de entrelaçamento textual pouco
aludiam ao fenômeno da ixis e às relações remissivas não-correferenciais (dentre
as quais, se inserem as anáforas associativas e indiretas, de cuja caracterização
trataremos no capítulo seguinte). Assim, raros eram os autores que (cf. KOCH,
2004a: 4) descreviam fenômenos coesivos que transpõem os limites do cotexto,
como na articulação das sequências i) “Ontem houve um casamento. A noiva usava
um longo vestido branco.” e ii) “Pedro me molhou todo. A água me escorria pelo
corpo abaixo.”, em que os sintagmas nominais “a noiva” e “a água” introduzem
novos referentes textuais “presos”, isto é, associados às ações que
integram/constituem e a que fazem referência: “casar” e “molhar”, respectivamente.
De forma semelhante, desconsiderava-se, segundo Koch (Id., Ibid.), em
muitas sistematizações teóricas, o fato de o referente textual poder consistir em
porções textuais de maior extensão (orações, frases e parágrafos), comumente
sumarizados por pronomes demonstrativos geralmente neutros (isto, isso, aquilo,
o) – com função anafórica ou catafórica.
Outra limitação teórica consistia na tentativa de sistematizar os critérios para
que uma manifestação linguística seja considerada um texto restringindo-os a uma
coerência sintático-semântica (cf. KOCH, 2006b: 10). É o que observamos, por
exemplo, na definição dos princípios essenciais às concretizações linguísticas, os
quais Charolles ([1978] 2002) denominou metarregras textuais. O linguista europeu
postulou, assim, que a coesão e a coerência textuais são analisadas a partir da
repetição (a retomada/recorrência de conceitos e/ou de constituintes do discurso),
da progressão (o equilíbrio entre as informações novas e a repetição/reapresentação
de informações velhas), da não-contradição (a compatibilidade e a veracidade das
afirmações, tendo em vista as relações intra e extratextuais) e da relação temática (o
encadeamento dos fatos e dos conceitos presentes no texto). Portanto, as
metarregras textuais, como salienta o próprio autor (Id.: 77), apontam as condições
simplesmente mínimas (mas não suficientes) para a construção da textualidade.
Concebendo, pois, o texto como um discurso “congelado” e, assim,
restringindo a análise das concretizações discursivas à superfície textual, esse
modelo teórico não contemplava aspectos pragmáticos e, principalmente, o papel do
interlocutor na produção de sentido do texto.
Buscando, portanto, ultrapassar uma análise restrita a aspectos sintático-
semânticos, os estudos que marcam a segunda fase da Linguística Textual se
19
caracterizam pela integração de fatores cotextuais e contextuais e, reunindo
múltiplos enfoques discursivo-pragmáticos, legitimaram como ciência essa vertente
dos estudos da linguagem.
Ao compreender a linguagem como uma atividade desenvolvida por meio da
relação entre a língua e os seus usuários, passou-se a considerar que, nas
manifestações linguísticas, sujeitos concretos em situações concretas de uso.
Logo, focalizava-se a inter-ação humana por meio da linguagem.
Como precursor dos estudos da enunciação, destaca-se o estruturalista
Benveniste (1958), que, refutando, veementemente, a ideia de linguagem como
“instrumento” de comunicação, a define como um mecanismo de constituição de
identidades. Nesse sentido, assevera (Id.: 286): “É na linguagem e pela linguagem
que o homem se constitui como sujeito” [grifo do autor]. A língua é, portanto, sempre
uma definição e expressão da subjetividade, ou seja, da capacidade de se instaurar,
durante a interação linguística, como um sujeito. Além disso, evidenciando, a partir
da análise do sistema pronominal, que qualquer ato comunicativo exige
reciprocidade entre os sujeitos “eue “tu”, o autor caracteriza a linguagem como um
movimento dialético (intersubjetivo): os sujeitos se fundam mediante suas
oposições/contrates; são, portanto, complementares.
A partir desses pressupostos, Benveniste (1989) funda a Teoria da
Enunciação, de cujos principais conceitos participam os termos “frase”, “enunciado”
e “enunciação”. Se a frase consiste em uma unidade formal estruturada de acordo
com os princípios do sistema linguístico, o enunciado corresponderia à manifestação
concreta dessa frase em uma determinada situação de interlocução. Logo, é na
enunciação, evento (único) de produção do enunciado, que o sentido é constituído.
Em outras palavras, os significados linguísticos são determinados não
exclusivamente pela semântica da frase, mas também condicionados pelo contexto
(extralinguístico) em que se situam os enunciadores.
Nessa perspectiva, Anscombre & Ducrot (1976) postulam que a análise de
enunciados deve buscar relacionar os diferentes níveis do sistema linguístico
(incluindo o plano Pragmático), compreendendo-os dependentes uns dos outros.
Dessa forma, os linguistas propõem uma Pragmática Integrada, segundo a qual não
se pode querer encontrar valores informativos estanques para os vocábulos
gramaticais e, até mesmo, para os lexicais. Se o texto possui lacunas a serem
preenchidas, no discurso, pelos sujeitos, existem, apenas, contratos específicos que
20
indicam aquilo que os vocábulos podem ou não significar. Afinal, é na situação
concreta de uso, necessariamente situada em determinado contexto, que o sentido é
construído.
Desse modo, os autores asseveram que a argumentação está inscrita na
própria língua, ou seja, todo texto é essencialmente argumentativo. Em outras
palavras, compreende-se que, se a linguagem é interativa e se caracteriza pela ação
intencional, a língua é marcada pela argumentatividade. Logo, a seleção lexical e o
uso de elementos gramaticais representam marcas da subjetividade e das relações
de intersubjetividade do locutor com seu alocutário; são, pois, essencialmente
estratégias argumentativas. Assim, podemos afirmar que o sentido é construído no
momento da enunciação, por meio das práticas linguageiras.
Ratificando tal concepção interacionista, autores como Schmidt (1978: 8)
explicitam que a língua “nunca ocorre de forma isolada, mas sempre associada a
outros fatores dentro do quadro de uma situação complexa de comunicação”.
Considerando que somente pela linguagem atuamos sobre mundo, o linguista
alemão (Id.: 43-93) retoma a expressão wittgensteiniana “jogos verbais” e postula
que, em toda construção textual, participamos de um “jogo de atuação
comunicativa”, o qual pode ser compreendido como a capacidade humana de
perceber e conhecer não sua existência como falante de uma língua natural, mas
também sua experiência dentro de um sistema social de interação verbal
(comunidade comunicativa).
Desse modo, a própria compreensão do processo de comunicação é
ampliada: sublinha-se, nesta fase dos estudos do texto, que o papel do receptor, na
interpretação da mensagem, não é apenas decodificar a estruturação linguística,
mas relacioná-la ao contexto situacional e, assim, recuperar os propósitos
discursivos do emissor. Em outras palavras, caberia ao interpretante questionar não
só “o que diz o texto”, mas também “para que ele foi construído”.
Tendo em vista a participação ativa dos interlocutores nos jogos
comunicativos, a expressão “coerência textual” passa a indicar não apenas uma
propriedade textual, mas um processo de geração de sentido entre os participantes
da cena discursiva, na qual se relacionam diversos fatores linguísticos e
socioculturais. Logo, ao se afirmar que o texto congrega aspectos materiais,
semântico-conceituais e pragmáticos, passou-se a compreender a coerência como
21
um “princípio de interpretabilidade”, a partir do qual a (re)construção do sentido
depende do interlocutor.
Mediante a contribuição desses teóricos, compreendeu-se que um texto é um
ato de fala complexo, construído em uma dada situação de interação, permeada por
uma complexa rede de fatores de ordem linguística, sociocultural e interacional:
consiste em um “componente verbalmente enunciado de um ato de comunicação
pertinente a um jogo de atuação comunicativa, caracterizado por uma orientação
temática e cumprindo uma função comunicativa identificável” (SCHMIDT, Id.: 170).
Concebendo, pois, a ação verbal como resultado de atos comunicativos,
analisava-se o texto não mais como um “produto” da interação humana, mas como
um processo dinâmico em que o enunciador, operando o material linguístico,
concretiza diferentes estratégias (planos) de ação. Inicia-se, portanto, a perspectiva
processual de análise de textos.
Ao considerar que, na enunciação, as dimensões sintática, semântica e
pragmática estão, indissoluvelmente, integradas o que possibilita a construção dos
sujeitos enunciadores e a expressão da argumentatividade, compreendeu-se que os
fatores responsáveis pela construção do sentido textual não poderiam se limitar à
articulação de formas verbais. Nessa perspectiva, inserem-se Beaugrande &
Dressler (1981), que buscaram representar os complexos processos de produção de
sentido, apresentando, além da coesão e da coerência, outros princípios para que
uma manifestação linguística tenha valor comunicativo.
Individualizaram, assim, sete fatores responsáveis pela textualidade: cinco
relacionados às condições de produção e centrados nos usuários da língua, a saber:
a intencionalidade (a intenção comunicativa por meio da qual se organiza o material
linguístico a fim de que se realize o projeto de texto elaborado pelo autor), a
aceitabilidade (a cooperação, entre os interlocutores, para que se atribua sentido ao
texto), a situacionalidade (a adequação do texto à situação sóciodiscursiva e a
criação de uma nova realidade do texto), a informatividade (a distribuição da
informação, em um equilíbrio entre elementos explicitados e ocultados) e a
intertextualidade (os mecanismos pelos quais os textos são produzidos e
compreendidos mediante o conhecimento de outros textos); e outros dois, centrados
no texto: a coesão e a coerência, os quais, tendo em vista o tema desta pesquisa,
merecem maior ênfase.
22
Fazendo referência à estrutura da memória, Beaugrande & Dressler (1981)
explicitam que, durante o processamento do texto, insere-se, na memória de
trabalho, um elemento textual, que, a partir do uso de itens coesivos, poderá ser
reempregado, modificado ou relacionado a outros. Desse modo, pontua-se que os
mecanismos linguísticos de coesão contribuem para a unidade estrutural do texto e
para a economia de formas, potencializando o processo de elaboração de sentido.
Dentre os mecanismos de coesão, destacam-se: i) a repetição, isto é, re-
ocorrência de formas linguísticas, a fim de se ratificar um ponto de vista, demonstrar
surpresa ou refuto por uma ideia ou fato, e, nos textos poéticos, construir certa
iconicidade, uma relação plástica entre o conteúdo e a forma linguística que o
veicula; ii) a repetição parcial, que se traduz pela retomada de um conceito já
ativado por elementos da superfície textual, a partir do emprego do mesmo material
linguístico, isto é, palavras – em especial, verbos e substantivos – que se estruturam
sob o mesmo radical; iii) o paralelismo, a apresentação de novos elementos
linguísticos, sob uma mesma estrutura; iv) a paráfrase, que consiste na repetição de
um conteúdo equivalente/próximo (não idêntico) com uma mudança na expressão;
v) o uso de pro-formas, palavras econômicas, breves e destituídas de significado em
si mesmas (como pronomes, advérbios, adjetivos e alguns verbos); vi) a elipse; vii)
os tempos e aspectos verbais; viii) o uso de conectivos, expressões que relacionam
ideias, conceitos e fatos apresentados no cotexto; e, nos textos orais, ix) a
entonação, a variação de contornos acústicos que fornecem informações quanto à
intenção, à postura e à relação dos falantes.
Paralelamente, o conceito de coerência se amplia, passando a indicar o
conjunto de relações formais, semânticas e pragmáticas que, identificadas pelo
receptor em confronto com seu conhecimento prévio, permitem a construção do
sentido. Dessa maneira, por meio de componentes do mundo textual, empregados
em função das relações semântico-conceituais, o conteúdo do texto torna-se
acessível ao interlocutor. Assim, sintetizam os autores (1981: 21):
A coerência não é apenas uma característica dos textos, mas o resultado de
processos cognitivos [...]. A disposição/apresentação de fatos ou situações
em um texto ativa diferentes operações que produzem ou suscitam, na
mente, relações de coerência.
23
Esse novo quadro teórico contribuiu para a terceira fase da Linguística
Textual, na qual os estudos discursivos passam a considerar os processos mentais
subjacentes à ação verbal, introduzindo, na análise textual, aspectos cognitivos, isto
é, as operações mentais para a produção e o processamento do conhecimento. A
linguagem é compreendida, então, como uma explicitação de traços do pensamento
e de processos cognitivos, uma evidência de processos mentais de significação.
Aprofundando a relação entre cognição, discurso e interação, van Dijk (1996)
explicita os pressupostos (cognitivos e contextuais) que orientaram a construção de
“um modelo mais dinâmico, de base processual, ‘on line’ e com uma abordagem que
desejamos chamar estratégica [grifo do autor] (VAN DIJK, Id.: 13), apontando
caminhos para o desenvolvimento da sócio-cognição.
Dentre os principais pressupostos, sublinha-se, antes de tudo, que a
construção do conhecimento ocorre segundo uma interpretação para os
acontecimentos e os conceitos enunciados, para o texto e para o contexto social em
que a ação verbal se realiza o que nos permite compreender como podem ser
atribuídos diferentes sentidos a um mesmo enunciado. Além disso, partindo do
princípio de que o processamento da informação ocorre on line, ou seja,
simultaneamente (de forma gradual e não subsequente) à compreensão, explicita-se
que “compreender envolve o somente o processamento e interpretação de
informações exteriores, mas também a ativação e uso de informações internas e
cognitivas” (VAN DIJK, Id.: 15). Finalmente, considerando que os discursos são
realizados em determinado contexto sociocultural, sublinha-se que motivações,
propósitos ou intenções do produtor e do leitor do texto refletem suas expectativas e,
desse modo, perspectivas para a organização e significação do discurso.
Rompendo os limites entre exterioridade e interioridade, que fundamentaram
os estudos clássicos sobre cognição, advoga-se, atualmente, que “a mente é um
fenômeno essencialmente corporificado”, uma vez que “nossa cognição é o
resultado das nossas ações e das nossas capacidades sensório-motoras” (cf.
KOCH, 2006b: 30). Se a geração de novos conhecimentos ocorre a partir de outros
já existentes e, principalmente, de nossas experiências com o ambiente externo, são
as ações que organizam e condicionam as atividades mentais. Paralelamente,
constata-se que a construção da coerência e da coesão textuais não depende
exclusivamente dos mecanismos linguísticos empregados no cotexto: realiza-se,
também, a partir de um enquadramento sociocognitivo-interacional (moldura
24
sociocognitiva), em que se localizam os interlocutores. A cognição é, pois, um
fenômeno situado.
Nesse sentido, admite-se a existência de modelos cognitivos, isto é, de
estruturas de conhecimento socioculturalmente determinadas e empiricamente
adquiridas que servem de base aos processos conceituais. Consistem, segundo
Koch (2005: 96), em
conjuntos de conhecimentos socioculturalmente determinados e
vivencialmente adquiridos, que contêm tanto conhecimentos sobre cenas,
situações e eventos, como conhecimentos sobre como agir em situações
particulares e realizar atividades específicas.
Apropriando-se desses novos conceitos, os teóricos que se inserem na atual
fase da Linguística Textual (CAVALCANTE et alii, 2003; KOCH et alii, 2005;
MARCUSCHI, 2000; KOCH & ELIAS, 2006; dentre muitos outros) não concebem o
ato de linguagem como uma via de mão única, na qual o receptor apenas
reconheceria as estruturas que constituem a linguagem, assimilando o conteúdo; ao
contrário, pressupõem que a situação de comunicação é um encontro dialético entre
o processo de produção e o processo de interpretação, isto é, um ato inter-
enunciativo entre os sujeitos, obviamente mediado pela linguagem.
Nessa perspectiva, o sentido é construído no uso que se faz da língua em
uma dada situação de comunicação (concreta), um enquadre físico e mental em que
se encontram os interlocutores, necessariamente determinados por uma identidade
e relacionados por um contrato de comunicação, isto é, por imposições situacionais
que apontam restrições e estratégias possíveis. Há, pois, uma interdependência
entre os componentes verbal, situacional e cognitivo.
Diante disso, a coerência textual não pode consistir simplesmente em um
princípio de materialidade textual, um fator que contribui para a “boa formação” do
texto, passível de ser identificada ou localizada no entorno verbal. A coerência é,
portanto, um processo, “uma atividade desenvolvida num movimento de
colaboração” (cf. MARCUSCHI, 2007: 14).
Nesse trabalho coletivo (não individual), autor e leitor/ouvinte são co-
produtores do sentido – o que evidencia que
25
Os discursos, simplesmente, não “têm” significados, [...] tais significados são
atribuídos a eles, pelos usuários da língua [...] em interação e contexto
determinados. Isso significa que a interpretação do discurso é também
alguma coisa que as pessoas “fazem”, tanto cognitivamente como
socialmente. (VAN DIJK, 1996: 54)
A partir desses principais pressupostos e conceitos, fundam-se as bases para
a sociocognição de base interacionista, que se caracterizaria pela descrição dos
mecanismos e das operações cognitivas com base na experiência de linguagem em
uso.
Nesse sentido, a atual fase da Linguística Textual, definida como um “olhar
sociocognitivo interacional” (cf. KOCH & ELIAS, 2006; 2009; MARCUSCHI, 2007),
traduz-se pela tentativa de incorporar essas novas teorias acerca da cognição à
análise de fenômenos textuais-discursivos, definindo o texto como
[...] lugar de interação de sujeitos sociais, os quais, dialogicamente, nele se
constituem e são constituídos; e que, por meio de ações linguísticas e
sociocognitivas, constroem objetos-de-discurso e propostas de sentido, ao
operarem escolhas significativas entre as múltiplas formas de organização
textual e as diversas possibilidades de seleção lexical que a língua lhes põe
à disposição. (KOCH & ELIAS, 2006: 7)
A partir desse breve percurso histórico, vimos, portanto, a ampliação dos
principais conceitos que fundaram e compõem a ciência intitulada Linguística
Textual, cuja trajetória pode ser sumarizada por Vilela & Koch (2001: 451-452):
[...] desde seu aparecimento até hoje, a Linguística Textual percorreu um
longo caminho, ampliando a cada passo seu espectro de preocupações. De
uma simples análise transfrástica, logo acompanhada das tentativas de
elaboração de gramáticas textuais, passou a ter como centro de
preocupação não apenas o texto em si, mas também todo o contexto no
sentido mais amplo do termo (situacional, sócio-cognitivo e cultural) e a
interferência deste na constituição, no funcionamento e, de modo especial,
no processamento estratégico-interacional dos textos, vistos como a forma
básica de interação através da linguagem.
Portanto, sob esses pressupostos teóricos que caracterizam a terceira e atual
fase da Linguística do Texto, apresentaremos, no capítulo seguinte, o processo de
construção de referentes discursivos.
26
3.
R
EFERENCIAÇÃO
:
A
C
ONSTRUÇÃO SOCIOCOGNITIVA DA REFERÊNCIA E SEUS EFEITOS
COGNITIVO
-
DISCURSIVOS
3.1 De Coesão Referencial a Referenciação
Sob o ponto de vista da teoria do conhecimento, a sociedade, como sistema
de comunicação, é o espaço dentro do qual são produzidas, por parte dos
indivíduos ou grupos de indivíduos (e para os mesmos), as imagens
correlatas da realidade [...]. É o sistema de atuação e comunicação, e não a
“realidade”, que constitui o sistema referencial em cujo nível se a
discussão e se tomam as decisões sobre o valor nominal social (= a
referência e/ou relevância extralinguística) dos enunciados linguísticos e de
seus encadeamentos. (SCHMIDT, 1978: 45) [grifo do autor]
Sabemos que a palavra “texto” provém da forma latina textum, que significa
“tecido”, “entrelaçamento”. Percebemos, então, na origem do vocábulo, a ideia de
que o texto resulta de um trabalho de tecer, entrelaçar várias partes menores, a fim
de obter um todo inter-relacionado. Estrutura-se, pois, não pela apresentação de
informações novas, mas também por retomadas de elementos e de conceitos
presentes co(n)texto linguístico.
Desse modo, consideramos um texto coeso quando suas partes se referem
mutuamente e fazem sentido se analisadas umas em relação às outras. Essa
“tessitura” depende, em termos linguísticos, de mecanismos que dão maior
legibilidade ao texto, evidenciando as diferentes relações entre os elementos e
sequências linguísticas que o compõem. A coesão textual é, portanto, um
mecanismo linguístico que colabora com a coerência, reunindo marcas linguísticas
elementos lexicais e gramaticais que explicitam a inter-relação de outros
componentes do texto; forma-se, assim, um corpo estrutural, um significado global.
A partir dessa concepção, vimos, no capítulo precedente, que os primeiros
estudos sobre a coesão textual privilegiavam as relações co(n)textuais, descrevendo
os processos sintático-semânticos por meios dos quais se constrói essa propriedade
textual e, em seguida, relacionando-o ao entorno discursivo – o que caracterizaria as
duas primeiras fases da Linguística do Texto. Podemos comprovar essa análise
retomando, sucintamente, as publicações mais representativas sobre o tema.
27
Segundo Halliday & Hasan (1976), a coesão é o resultado de um “laço” entre
os componentes do sistema léxico-gramatical no qual a interpretação de um
elemento depende, necessariamente, do outro. Os linguistas definem, assim, cinco
mecanismos de coesão: i) a referência, ii) a substituição, iii) a elipse, iv) a conjunção
e v) a coesão lexical.
Considerando o primeiro mecanismo de coesão, os linguistas postulam que
os elementos de referência (itens pressuponentes) apontam referentes da cena
sóciodiscursiva (itens pressupostos exofóricos) ou aqueles presentes no cotexto, ou
seja, na superfície textual (itens pressupostos endofóricos). Focalizando, apenas, a
referência endofórica, os autores pontuaram, ainda, que, por meio de elementos
linguísticos com função coesiva, constroem-se os processos de anáfora e de
catáfora.
Halliday & Hasan (1976) explicitam, desse modo, que a referência pode ser: i)
pessoal, construída a partir de pronomes pessoais (retos e oblíquos) e possessivos;
ii) demonstrativa, efetuada por meio de pronomes demonstrativos e advérbios
indicativos de lugar com função substantiva; e iii) comparativa, realizada por meio de
identidades e similaridades.
a substituição consiste, para os autores, em uma redefinição (nova
especificação) do item pressuposto a partir de sua troca por um item coesivo;
diferencia-se, pois, da referência, por nesta haver uma “total identidade referencial”
(cf. KOCH, [1989] 2007: 20).
O terceiro mecanismo coesivo, a elipse, é apresentado por Halliday & Hasan
(1976) como um processo de alternância de um referente pela categoria vazia (Ø). O
item pressuposto (um sintagma nominal, uma oração ou todo um enunciado) é
omitido, mas recuperado pelo contexto e/ou pela indicação de número e pessoa
gramatical, expressa pela desinência verbal.
Ao contrário dos demais mecanismos coesivos listados por Halliday & Hasan
(1976), que se referem a retomadas textuais, a conjunção é realizada por meio de
conectores e demais “partículas de ligação” (cf. KOCH, [1989] 2007: 21) que
expressam as relações de adição, adversidade, causalidade, temporalidade e
continuidade.
Finalmente, a coesão lexical é construída a partir das estratégias de
reiteração (uso do mesmo item lexical, de sinônimos, de hiperônimos ou de nomes
28
genéricos) e de colocação ou contiguidade, em que se associam termos de um
mesmo campo semântico.
A partir da caracterização desses recursos coesivos, Charolles ([1978] 2002)
advoga que o uso dos elementos linguísticos de coesão não é uma condição
necessária nem suficiente para que a coerência seja estabelecida. , por um lado,
textos em que não se utilizam mecanismos linguísticos de entrelaçamento de
porções textuais, mas cuja textualidade é possível a partir da exploração de outras
expressões linguísticas, diretamente relacionadas aos demais fatores de
textualidade, e, por outro lado, sequências linguísticas em que são empregados
elementos coesivos, mas para as quais o leitor não consegue estabelecer (ou
dificilmente estabelece) um sentido. Tal constatação foi relevante para que se
opusesse “coesão” e “coerência” textuais, individualizando essas propriedades do
discurso.
Posteriormente, Beaugrande & Dressler (1981) apresentam a coesão textual
como um dos principais fatores de textualidade. Explorando diferentes níveis de
análise (da frase a enunciados mais amplos) e relacionando a coesão aos demais
fatores que constituem o contexto cognitivo-pragmático em que se realiza o ato
comunicativo, os autores explicitam que essa propriedade refere-se às diferentes
estratégias que colaboram para a continuidade (fluidez) do texto, isto é, para a
relação entre os componentes do universo textual.
Dentre os principais linguistas brasileiros, destacamos, inicialmente, Fávero
(1991: 17), que, revisando as principais publicações sobre as formas de coesão,
propõe “uma classificação em termos de função que exercem esses mecanismos na
construção do texto e não de classes de palavras, de léxico etc [como se organizam
trabalhos anteriores]”. Desse modo, a pesquisadora questiona a pertinência de
considerar a referência exofórica como um mecanismo coesivo e, assim,
individualiza três tipos de coesão: i) referencial, que se constrói na relação entre
expressões linguísticas e elementos do mundo real, captados e significados a partir
de traços culturais do falante; ii) recorrencial, por meio da qual se assinala a
progressão temática, na articulação entre informações novas e velhas; e iii)
sequencial (stricto sensu), que, assim como a recorrência, contribui para “fazer
progredir o texto, fazer caminhar o fluxo informacional” (FÁVERO, Id.: 33), sem,
contudo, que se retomem itens, sentenças ou estruturas.
29
Em seguida, Koch ([1989] 2007) apresenta a coesão textual retomando
estudos anteriores sobre o tema, a fim de (re)construir, na exploração linguística de
diferentes gêneros textuais, o conceito dessa propriedade textual e, ao mesmo
tempo, refletir, criticamente, sobre as descrições linguísticas realizadas por seus
antecessores. O fenômeno da coesão textual é, pois, definido como o resultado dos
“processos de sequencialização que asseguram (ou tornam recuperável) uma
ligação linguística significativa entre os elementos que ocorrem na superfície textual”
(cf. KOCH, Id.: 18).
Nesse sentido, a autora questiona, dentre outros aspectos, a classificação
dos mecanismos de coesão apontados por Halliday & Hasan (1976), evidenciando
“a fluidez dos limites entre referência e substituição(KOCH, [1989] 2007: 22) e a
inadequação de considerar a elipse e a coesão lexical como mecanismos
independentes (tipos à parte), uma vez que a primeira consistiria em uma
substituição por zero, e a segunda, em uma forma de remissão/referência. Logo, a
linguista reorganiza os cinco mecanismos descritos por Halliday & Hasan (1976) em
dois macro-grupos: a coesão remissiva ou referencial e a coesão sequencial.
Por um lado, a coesão referencial é “aquela em que um componente da
superfície do texto faz remissão a outro(s) elemento(s) nela presentes ou inferíveis a
partir do universo textual” (KOCH, [1989] 2007: 31). Assim, um referente textual
pode ser recuperado por diferentes “formas remissivas”, formando uma cadeia
correferencial. Tal processo pode ser obtido por meio de dois mecanismos: i) a
substituição, compreendida como a utilização de elementos gramaticais como forma
de resgatar um elemento de referência; e ii) a reiteração, caracterizada pela
retomada de um elemento do texto por um sintagma nominal, isto é, um grupo de
força cujo elemento nuclear é um nome (substantivo) – conforme quadro-síntese que
se segue.
C
OESÃO
R
EFERENCIAL
Substituição
Pronomes pessoais de terceira pessoa
Elipse
Pronomes substantivos (demonstrativos, possessivos, indefinidos, interrogativos e
relativos)
Numerais com função substantiva (cardinais, ordinais, multiplicativos e fracionários)
Advérbios “pronominais”
Expressões adverbiais com função dêitica
Verbos fazer e ser acompanhados de uma forma pronominal
30
Reiteração
Expressões ou grupos nominais definidos
Nominalizações
Expressões sinônimas ou quase-sinônimas
Hiperônimos ou Indicadores de classe
Forma idêntica (acompanhada ou não de um novo determinante)
Categorizações das instruções de sentido de referentes
Formas de classificação metalinguística
Tabela I: Estratégias de coesão referencial descritas por Koch ([1989] 2007).
Por outro lado, a coesão sequencial realiza-se, segundo Koch (Id.: 53), não só
pela recorrência de formas e/ou de estruturas, mas também pela utilização de
marcas linguísticas através das quais se explicitam os diversos tipos de relações
entre os enunciados do texto. Logo, as formas de sequenciação textual reúnem
[...] procedimentos linguísticos por meio dos quais se estabelecem, entre
segmentos do texto (enunciados, partes de enunciados, parágrafos e
sequências textuais), diversos tipos de relações semânticas e/ou
paradigmáticas, à medida que faz o texto progredir (KOCH, Id., Ibid.).
Mais recentemente, Antunes (2005) enfatiza que o entrelaçamento do texto
não se esgota na conexão de segmentos do entorno verbal, mas é fruto de relações
conceituais, que podem ser evidenciadas por itens coesivos. Considerando, pois,
que as formas de coesão apontam uma “continuidade de sentido”, a autora (Id.: 50-
56) diferencia três relações textuais subjacentes ao emprego de itens coesivos: a
reiteração (retomada de segmentos), a associação (contiguidade semântica entre as
expressões linguísticas) e a conexão (ligação sintático-semântica entre termos,
orações, frases e parágrafos), que se diferenciam pela forma como realizam a
conexão entre as sequências do texto. A partir dessas relações textuais, Antunes
(Id.: 57-61) individualiza os procedimentos coesivos e cada um dos recursos de
coesão, isto é, cada uma das operações concretas pelas quais os procedimentos se
efetivam.
Constatamos, dessa maneira, que as contribuições teóricas de Halliday &
Hasan (1976), Beugrande & Dressler (1981), vero (1991), Koch ([1989] 2007) e
Antunes (2005) privilegiavam as relações co(n)textuais, situando-se nas primeiras
31
duas fases da Linguística do Texto. Nesse sentido, se “usar a linguagem é uma
atividade social, um ato histórico, político, cultural, que envolve um complexo
conjunto de habilidades (cognitivas, textuais e interativas) e de fatores situacionais”
(ANTUNES, Id.: 21), verificamos que, nessas pesquisas, questões acerca da
cognição não eram contempladas com profundidade (ou sequer mencionadas). Tais
lacunas eram originadas pela ausência de um aparato teórico capaz de contemplar a
relação entre os fenômenos textuais e os processos cognitivos. A fim de ilustrarmos
essa afirmação, analisemos o seguinte trecho, que trata especificamente da forma
de coesão definida por Koch ([1989] 2007) como coesão referencial:
[...] o referente representado por um nome ou sintagma nominal (SN) vai
incorporando traços que lhe vão sendo agregados à medida que o texto se
desenvolve; ou seja [...], o referente se constrói no desenrolar do texto
modificando-se a cada novo “nome” que se lhe ou a cada nova
ocorrência do mesmo “nome”. Isto é, o referente é algo que se (re)constrói
textualmente (KOCH, Id.: 31).
A citação descreve o movimento discursivo a partir do qual um elemento do
texto vai se (re)configurando. Nesse processo, as formas referenciais ou remissivas
(aquelas que “recuperam” o elemento de referência ou referente textual), sejam elas
itens lexicais ou pronominais, não consistem em meros “substitutos” do referente:
“[...] é necessário que se possa associar, com o referente, mudanças de estado e
transportá-las (ou pelo menos algumas delas) através do discurso, à medida que
este progride” (KOCH, Id.: 26).
Subjacente à citação em destaque, entretanto, podemos identificar uma
perspectiva que desconsidera aspectos de processamento textual e de construção
do conhecimento. Assim, como responder a questões como: De que maneira esses
novos “traços” significativos vão sendo incorporados ao referente? Seria, de fato, o
“referente” o elemento que se “transforma” a cada retomada? A fim de responder a
esses questionamentos, verificou-se a necessidade de refletir sobre a própria noção
de “referente” e sobre os processos sociocognitivos por meio dos quais se realiza o
ato de se referir (ou de construir) à realidade.
Numa perspectiva sociocognitiva-interacional, que, como vimos, caracteriza a
terceira e atual fase da Linguística do Texto, parte-se do pressuposto de que o
discurso não é uma cartografia do real, mas um movimento dinâmico que possibilita
32
não apenas a transmissão, como também a construção do conhecimento.
Consequentemente, resignifica-se a concepção do real e, assim, do termo
“referente”.
Compreende-se, assim, que os sujeitos publicam, em práticas interacionais,
versões sobre o mundo, partilhando conhecimentos e co-construindo significações.
Se acessamos o mundo pelo discurso, é deste que partimos para compreender e
atuar sobre aquele. Portanto, não se deve pensar que construímos o mundo de
modo exclusivamente discursivo. A realidade existe, mas pode ser
(re)significada/apreendida de diferentes maneiras, como salienta Marcuschi (2007:
65): “o mundo real extra-mente existe, mas ele não é diretamente acessível a todos
do mesmo modo e o modo como o comunicamos é uma elaboração sociocognitiva”.
Nesse sentido, a linguagem não é um retrato, mas um trato da realidade”;
consiste em uma atividade constitutiva: “uma forma de cognição sócio-histórica e de
caráter eminentemente interativo”, pela qual podemos dizer criativamente o mundo
[grifo do autor] (MARCUSCHI, Id.: 40). Logo, a significação não está no sistema
linguístico, mas no uso que fazemos dele.
Refletindo sobre a construção intersubjetiva de imagens da realidade, nos diz
Costa (2007: 69) que o uso da linguagem consiste em
uma espécie de “jogo” que extrapola os limites sonoros ou gráficos do texto,
isto é, que se realiza na esfera das relações entre sujeitos historicamente
situados. As formas que os sujeitos escolhem para relacionar os referentes,
que seriam as peças do jogo, criam, em relação com os outros elementos
do jogo, o mundo do discurso, uma realidade “fabricada” [...].
É, pois, nessa perspectiva, que podemos compreender que os referentes
textuais não se confundem com a realidade extralinguística: consistem em
representações geradas pela atividade linguística e condicionadas por determinadas
condições de produção. Logo, a discursivização não é apenas um processo de
elaboração de informações, mas uma (re)construção do próprio real.
Nessa perspectiva, Mondada & Dubois (In.: CAVALCANTE et alii, 2003)
demonstram, primeiramente, que, entre as categorias do que concebemos como o
real e os referentes textuais, uma “instabilidade constitutiva”. Em segundo,
explicitam que o poder referencial de expressões linguísticas é gerado a partir de
33
práticas estabilizadoras o que evidencia que a referenciação é um processo de
negociação de sentidos, realizado pelos interlocutores, no fluxo discursivo.
Investigando como as atividades humanas, cognitivas e linguísticas,
estruturam e dão sentido ao mundo, as autoras advogam que não designações
corretas (verdadeiras), mas rótulos que se adéquam à pragmática da enunciação.
Adotam, desse modo, uma perspectiva construtivista do fenômeno da referência,
refutando a concepção segundo a qual haveria uma correspondência entre palavras
e coisas do mundo.
Nesse sentido, Mondada & Dubois (In.: CAVALCANTE et alii, 2003: 21-41)
reconhecem uma “instabilidade generalizada” o entre palavras e elementos do
universo biossocial (tanto do ponto de vista sincrônico quanto do diacrônico), mas
também entre categorias dentro de práticas linguísticas e cognitivas, em que
interpretações de um mesmo objeto são postas em contraste.
No entanto, se a referenciação é uma construção colaborativa de referentes
textuais, os sujeitos, por ocasião da interação linguística, são desafiados a manipular
categorias instáveis, variáveis e flexíveis. Para tal, põem em uso, além de suas
estruturas sociocognitivas, seus conhecimentos linguísticos, contextuais e
interacionais, co-produzindo uma estabilidade (ainda que provisória) para o mundo.
Se, como vimos, “é na interação social que emergem as significações” [grifo
do autor] (MARCUSCHI, 2007: 68), os referentes textuais o são simples
“etiquetas” para os elementos do mundo, mas imagens do mundo, resultado da
atividade de intermediação entre os sujeitos discursivos (EU e TU). Assim, conclui
Marcuschi (2000: 3):
[...] quando usamos a língua para produzir nossas enunciações discursivas,
não estamos apenas transformando objetos do mundo em objetos de
discurso, mas estamos produzindo objetos de discurso. Do contrário,
continuaríamos presos a uma visão de linguagem como atividade
codificadora de informações objetivas. [grifos do autor]
Desse modo, os objetos de discurso, por um lado, “não são dados
exclusivamente discursivos, pois eles emergem de uma inspiração do mundo sob
fundo existente (espaço base) e inserem-se num mundo pensável” (MARCUSCHI,
Id.: 5), por outro, sua construção “não remete a uma verbalização de um objeto
autônomo e externo às práticas linguageiras” (KOCH, 2005: 34).
34
Considerando que “o mundo comunicado é sempre fruto de um agir
comunicativo construtivo e imaginativo e não de uma identificação de realidades
discretas e formalmente determinadas” (MARCUSCHI, 2007: 75), nos estudos mais
recentes da Linguística Textual, a expressão “coesão referencial” foi substituída pelo
termo “referenciação”, um ato criativo e intersubjetivo constituído pelas diversas
formas de introdução e de manutenção/(re)construção de referentes textuais
(objetos de discurso) no e pelo texto.
A referenciação é, portanto, uma atividade discursiva estratégica, na qual o
sujeito enunciador realiza escolhas significativas de acordo com seu “querer-dizer”,
apontando caminhos para a concretização de sua proposta de sentido. Logo, a
referenciação não colabora para a organização do texto, nos laços coesivos que
estrutura, como também representa uma estratégia argumentativa, por meio da qual
se constroem representações para os objetos de discurso, visto que “as palavras, tal
como as obras de arte, são formas de ‘materializar’ modos de ver o mundo”
(PENNA, 2006: 39).
3.2 A dinâmica de construção dos objetos de discurso
Na seção anterior, vimos que, na utilização de formas simbólicas, como as
expressões linguísticas, manipulamos a percepção do real, construindo,
sociocognitivamente, os objetos de discurso. Agora, buscaremos descrever a
dinâmica desse processo de criação e de acessibilidade de referentes textuais, nos
valendo das contribuições teóricas de Cavalcante & Koch (2007), Koch (2004b;
2008), Koch & Elias (2006; 2009) e Silva (2008).
De acordo com Cavalcante & Koch (2007), Koch (2004b; 2008) e Koch &
Elias (2006; 2009), podemos compreender que a (re)construção de referentes
textuais ocorre por meio de três operações: a introdução (ativação), a retomada
(reativação) e a desfocalização (de-ativação).
A introdução consiste na ativação de um objeto de discurso até então não
mencionado, que passa a ocupar um “nódulo”, um “endereço” cognitivo na rede
conceptual do modelo textual. Assim, a forma linguística selecionada para a
introjeção do referente textual permanece em foco na memória de trabalho.
Isso posto, Koch (2008: 101-102) sublinha que
35
Quando a introdução se faz por meio de um nome próprio, tem-se apenas a
nomeação do objeto. no caso de se tratar de uma expressão nominal,
opera-se uma primeira categorização do objeto-de-discurso, o qual, a cada
retomada, pode ser mantido como tal ou, então, recategorizado por outras
expressões nominais.
A autora salienta, ainda, que a introdução referencial pode ocorrer, também,
por meio de um pronome catafórico (e acrescentamos: também por um nome ou por
um advérbio prospectivo) – o que funciona como uma estratégia de “suspense”, uma
vez que a enunciação/indicação do objeto de discurso é protelada, “com o fim de
convidar o interlocutor a uma especulação sobre qual seria, afinal, o objeto em tela”
(KOCH, Id.: 102).
Tendo em vista a relação entre o nome, pronome ou advérbio responsável
pela introdução do referente discursivo e demais expressões cotextuais postula-se
que a ativação de um objeto de discurso pode ser “ancorada” ou “não-ancorada”.
Compreende-se que a ativação é não-ancorada quando um objeto de discurso
totalmente novo é introduzido na memória textual, sem qualquer associação com
elementos presentes na superfície do texto ou no contexto sociocognitivo. Ao
contrário, na ativação ancorada, é possível identificar algum tipo de estreitamento
cognitivo, a partir da qual o novo referente pode ser interpretado. Nesse processo,
não um antecedente textual, mas um elemento semanticamente associado, ao
qual se pode dar o nome de “âncora”. Assim, Koch (2004b: 12-13; 2008: 102-103)
defende que, dentre as formas de ativação ancorada, incluam-se as anáforas
indiretas e associativas, além das estratégias de nominalização, de encapsulamento
(sumarização) e de rotulação.
Todavia, sabemos que, na estruturação de um enunciado, o desenvolvimento
do tema não é apenas realizado por meio da inserção de “objetos”. Há, como
salientamos, o processo de correferenciação, isto é, a tessitura de uma estrutura em
que dois ou mais constituintes textuais (re)criam, direta ou indiretamente, um mesmo
elemento do mundo (real ou ficcional).
Assim, quando um elemento da sequência textual retoma outro componente
do texto, anteriormente introduzido, uma reativação, na memória discursiva do
enunciatário, do objeto de discurso, que se mantém em foco. Criam-se, assim, as
cadeias referenciais, que contribuem para a manutenção e progressão textuais. Uma
vez que o objeto está ativado no modelo textual, poderá ser recuperado tanto por
36
recursos gramaticais (pronomes, elipse, numerais etc.) quanto por morfemas lexicais
(sinônimos, hiperônimos etc.).
Em se tratando desse processo de manutenção ou retomada referencial,
Koch (2008: 102) afirma que “Uma vez criado um objeto-de-discurso, pode ocorrer a
sua retomada (com ou sem recategorização) ou pode haver simples remissão a este
objeto”. Contudo, mesmo na retomada de um referente por meio de um item
gramatical ou, ainda, pela repetição do sintagma nominal, sempre, em sentido
amplo, uma recategorização. Isso porque, a cada ocorrência, o objeto de discurso se
transforma, assumindo, pela relação com expressões cotextuais, outros traços
significativos. Nas palavras de Silva (2008: 35):
as expressões referenciais, em conjunto e, muitas vezes combinadas com
outras pistas, deixadas inclusive por expressões o-referenciais, ajustam o
foco do leitor e entrelaçam-se, completando o sentido do texto.
Paralelamente, ao compreender, segundo Cavalcante & Koch (2007), a
recategorização como uma alteração nas associações entre representações
parcialmente previsíveis em nossa visão blica de mundo, assevera-se que,
também na introdução (ativação) referencial, pode ocorrer uma recategorização. Em
outras palavras, “pode haver recategorização, seja através de uma expressão de
introdução referencial, seja através de uma expressão de continuidade referencial”
(SILVA, 2008: 30).
Atrelado a esse posicionamento teórico, Silva (Id., Ibid.) defende, ainda, que –
dada a mutabilidade/plasticidade do processo de referência, resultante, dentre
outros fatores, da flexibilidade de nossas estruturas conceituais categorizar é
sempre recategorizar, o que torna redundante e esvazia, em parte, o sentido desse
último termo” [grifos da autora]. A utilização do termo “recategorização” é, segundo a
pesquisadora, uma forma de enfatizar sucessivas categorizações de um objeto de
discurso.
Se, como dissemos, os objetos de discurso não apontam diretamente
elementos do universo biossocial, a cada interação verbal, (re)configuramos,
segundo nossa percepção e nossos propósitos discursivos, o real. Logo, as
categorizações não se esgotam em operações léxicas; dependem, também, de
37
operações cognitivas, num processo indissociável. Desse modo, postula Silva (Id.:
31):
todo ato de referir implica, também, [re]categorizar, pois ao escolher uma
expressão, entre todas as opções que julgar adequadas, incluindo-se as
invenções, adaptações e transformações [visto que formas podem ser
criadas], o falante privilegia alguns aspectos e algumas semelhanças de
família em detrimento de outros, de acordo com as discriminações (ou
abstrações ou generalizações, etc) que a palavra escolhida pode comportar
naquela situação de uso [grifo da autora].
Feitas essas relações entre a (re)categorização e as operações de introdução
(ativação) e manutenção (re-ativação) referencial, descreveremos, finalmente, a
desfocalização (de-ativação).
Em consonância com a proposta teórica de Koch (2004b: 11; 2008: 102) e
Koch & Elias (2006: 126), verificamos que, se um novo objeto de discurso é
introduzido, ele passa a ocupar a posição focal, re-orientando a atenção do
enunciatário, numa espécie de desfocalização. Assim, o referente textual que se
encontrava anteriormente em foco passa a ocupar a posição marginal. Permanece,
todavia, stand by, ou seja, em estado de semiativação, disponível para retorno na
memória de trabalho dos interlocutores e, assim, passível de dar continuidade à
cadeia referencial anteriormente iniciada. Nesse sentido, objetos de discurso já
ativados podem ser, a qualquer momento, modificados ou expandidos.
Portanto, na dinâmica do processo de referenciação constituída tanto por
movimentos projetivos quanto por retrospectivos, geralmente evidenciados por
“formas de sinalização textual” (cf. KOCH, 2008: 12), isto é, por marcas linguísticas
que apontam elementos cotextuais anteriores ou subsequentes –, as operações de
introdução, manutenção e desfocalização estabilizam a memória discursiva,
permitindo a “evolução do estatuto cognitivo-referencial” de objetos discursivos (cf.
CAVALCANTE & KOCH, 2007: 17).
Frente a isso, ratifica-se o pressuposto de que “os objetos de discurso o
dinâmicos [...]: vão sendo modificados, desativados, reativados, recategorizados, de
modo a construir-se ou reconstruir-se o sentido no curso da progressão textual”
(KOCH, 2008: 101).
Finalmente, verificamos que, se as operações de referenciação não se
limitam à construção de cadeias referenciais, estando relacionadas à dinâmica de
38
fluxo informacional (tema e rema), fica evidente a interdependência entre os
processos de referenciação e sequenciação textuais.
3.3 Funções cognitivo-discursivas dos elementos referenciais
Tendo descrito, no item precedente, a dinâmica de ativação, re-ativação e de-
ativação de referentes textuais, passaremos à apresentação dos principais recursos
referenciais endofóricos e seus respectivos papéis cognitivo-discursivos. Se, como
explicitamos, um objeto (até mesmo científico) pode ser apreendido de diferentes
formas, a depender, dentre muitos outros fatores, das intenções do interlocutor e, no
caso das ciências, da perspectiva teórica que embasa a análise, devemos explicitar
que, frente à multiplicidade de estudos sobre as formas de referenciação,
adotaremos, nesta pesquisa, a sistematização proposta por Koch & Elias (2006;
2009). Isso porque, nesse modelo teórico, as autoras privilegiam a função cognitivo-
textual das estratégias de referenciação o que possibilita um diálogo mais estreito
entre a teoria linguística e sua aplicação em práticas de ensino-aprendizagem e,
assim, sistematizam-nas em: formas de introdução e formas de manutenção
referencial.
Desse modo, no primeiro grupo, estariam além do emprego de nomes e
formas pronominais cuja primeira ocorrência ativa o objeto de discurso a que se
referem as anáforas indiretas ou associativas e os encapsulamentos, as
nomeações e as rotulações. No segundo grupo, inserem-se as construções
correferenciais, resultantes dos movimentos anafóricos e catafóricos, uma vez que a
progressão referencial e manutenção temática são geradas, em grande parte, pela
manutenção de um referente em estado ativo. Isso posto, passemos à descrição
desses mecanismos de referenciação.
39
3.3.1 Formas de introdução referencial
3.3.1.1 Anáforas Indiretas
Segundo Marcuschi (In.: KOCH et alii, 2005: 54-55), na retórica clássica, o
termo “anáfora” designava o recurso estilístico-persuasivo de repetição de uma
expressão ou de um sintagma no início de uma frase ou de um verso.
Posteriormente, na teoria linguística, as anáforas apontariam o processo coesivo por
meio do qual uma expressão linguística retomaria outra(s) forma(s), já lexicalizada(s)
na superfície textual limitando-se a um processo de substituição. No entanto, a
partir da perspectiva sociocognitiva de estudos da linguagem, tal concepção se
revelou demasiadamente restrita.
Desse modo, a anáfora indireta é uma forma particular de referenciação.
Primeiramente, ao retomar (re-ativar) um referente textual, ocorre, como
explicitamos no item 3.2, não uma simples troca de formas linguísticas capazes de
apontar o objeto discursivo, mas a construção do processo de (re)categorização. Em
segundo lugar, “nem sempre há uma congruência morfossintática entre a anáfora e
seu antecedente” (MARCUSCHI, Id.: 55).
Por isso, advoga-se (cf. KOCH et alii, 2005; SILVA, 2008; dentre outros) que a
anáfora caracteriza-se pela remissão a um elemento fonte, lexicalmente expresso ou
recuperável pelo contexto ou por conhecimentos conceituais; é, portanto, um
processo inferencial que, ultrapassando os limites do cotexto, evoca não a
percepção de “pistas” textuais, mas também a ativação de conhecimentos do leitor.
Assim, sintetiza Silva (Id.: 46): “os elementos anafóricos têm fontes no texto, mas
não necessariamente antecedentes correferenciais” [grifo da autora].
Nesse sentido, Marcuschi (In.: KOCH et alii, 2005) conceitua a anáfora
indireta como uma estratégia de introdução por meio de uma expressão nominal
definida, indefinida ou por um pronome com função referencial de um novo objeto
de discurso, que mantém alguma associação cognitivo-discursiva com elementos
nominais presentes no cotexto antecedente. Trata-se, pois, de uma construção não-
correferencial e não encapsuladora pela qual se faz algum tipo de remissão a
elemento(s) presente(s) no cotexto ou no contexto sociocognitivo. Dessa forma,
“Entre uma AI e um co-texto antecedente (uma âncora), um vínculo coerente,
embora não haja uma relação explícita [direta] com um antecedente” [grifos do autor]
40
(MARCUSCHI, Id.: 91), como observamos no exemplo abaixo, em que o referente
“fazenda” ancora, a partir de nosso modelo cognitivo idealizado, os objetos de
discurso “pasto”, “lavouras”, “mato”, “porteira” e “casarão”, com os quais estabelece
uma relação de parte-todo:
(1) A fazenda estava abandonada. Dava pena ver o pasto e as lavouras
dominadas pelo mato, a porteira derrubada e o velho casarão em ruínas.
(KOCH & ELIAS, 2006: 129)
A anáfora indireta se caracterizaria, assim, pela ativação de um referente
textual realizada por aspectos discursivos que possibilitam uma ancoragem
cognitiva, na qual o vínculo com o elemento âncora e a consequente
acessibilidade do referente – depende de inferências feitas pelo interlocutor.
Explicita-se, desse modo, que, além de introduzirem um novo objeto de
discurso, as anáforas indiretas operam na continuidade da relação referencial entre
os elementos do universo do texto (cf. MARCUSCHI, In.: KOCH et alii, 2005: 58-59).
Considerando que traços semânticos do elemento âncora são recuperados pelo item
anafórico, Marcuschi (Id.: 60) defende que, na construção e no processamento de
anáforas indiretas, “uma ativação-reativação na continuidade do domínio
referencial”. Nesse sentido, a anáfora indireta pode ser compreendida como “uma
espécie de ação remática e temática simultaneamente, uma vez que traz a
informação nova e a velha, produzindo uma tematização remática’” (MARCUSCHI,
Id., Ibid.) [grifos do autor]. Revela-se, pois, uma estratégia de dupla função: ativação
e manutenção referencial.
3.3.1.2 Encapsulamento, Rotulação e Nominalização
O encapsulamento, a rotulação e a nominalização representam estratégias
referenciais semelhantes, mas que apresentam especificidades, motivação para que
as denominemos de formas distintas.
Esses três recursos coesivos consistem em paráfrases resumitivas de uma
porção textual precedente. Nesse sentido, individualizam-se, frente às demais
formas de referenciação, pela natureza e localização do objeto de discurso a que
41
fazem referência, uma vez que sumarizam sequências textuais que por apontarem
estados, eventos, situações, processos ou fatos, proposições, atos de fala, funções
argumentativas no discurso etc. não possuem, muitas vezes, limites claramente
definidos/delimitados.
Desse modo, verificamos, antes de tudo, que o encapusalamento, a rotulação
e a nominalização são responsáveis pela introdução de um novo referente oriunda
de uma transformação: as informações presentes no modelo discursivo são reunidas
e “objetificadas”, possibilitando a construção de um novo objeto de discurso.
Em segundo lugar, observamos que, se o discurso se dobra sobre si mesmo,
fazendo com que o próprio conteúdo das proposições se torne referente, esses
recursos coesivos também são responsáveis pela conexão de porções textuais. Em
outras palavras, ao fazer remissão a um conteúdo proposicional, expresso na
superfície textual, e, assim, apontá-lo como um referente textual, o
encapusalamento, a rotulação e a nominalização, assim como as anáforas indiretas,
atuam, simultaneamente, na progressão e na continuidade temáticas o que
contribui para a compreensão de que as fronteiras entre as formas de coesão
referencial e sequencial, descritas por Koch ([1989] 2007), são tênues.
Apesar dos pontos comuns entre essas três formas de referenciação, há
também especificidades. Inicialmente, conforme KOCH (2008), a designação de
“encapsulamento” refere-se à atividade metadiscursiva em que se sumarizam partes
do discurso, seja por itens gramaticais seja por formas nominais. Quando a forma
coesiva é um item nominal, temos, então, um rótulo. Assim, compreendemos que, no
enunciado abaixo, a expressão nominal em destaque funciona como um rótulo
prospectivo (catafórico) que sumariza a informação subsequente.
(2) Gosto de beber uma cervejinha, falo palavrão e não vou deixar de ter
amizade com alguém por ser gay, assim como acredito que o uso da
camisinha é importante para prevenir doenças e até mesmo a gravidez”, diz
Érika Augusto da Silva, 20, cabelos avermelhados, quatro furos na orelha.
O depoimento o faria diferença se tivesse sido colhido em um colégio ou
numa rave. Mas o ambiente de Érika é outro. Única católica praticante da
família, neta de evangélicos, ela frequenta um grupo de jovens católicos
quatro anos e vai à igreja pelo menos duas vezes por semana.
Em agosto, pretende realizar um desejo antigo: participar de sua primeira
Jornada Mundial da Juventude. [...] [grifo nosso] (KOCH & ELIAS, 2006:
130)
42
No entanto, se substituíssemos o sintagma nominal grifado por uma forma
pronominal, como o demonstrativo “isto”, denominaríamos essa nova construção de
encapsulamento. Assim, toda rotulação é um encapsulamento, mas nem todo
encapsulamento é uma rotulação.
Outro recurso semelhante que deve ser individualizado é a nominalização. Se
considerarmos que a nominalização consiste em uma anáfora lexicalmente
construída a partir do encapsulamento de segmentos textuais, poderíamos,
inicialmente, compreendê-la como um rótulo. No entanto, tendo em vista o processo
de construção das nominalizações, Carvalho (2005: 66) advoga que tais processos
não são equivalentes, esclarecendo que “o rótulo não é um lexema derivado de
outro presente no cotexto, tal qual a nominalização”, pois consiste em “uma
operação linguística resultante de atividades cognitivo-discursivas, e o se prende
a um item lexical particular, um nome ou um verbo e sua predicação, como é o caso
das nominalizações”. Dessa maneira, poderíamos classificar a estratégia de
referenciação destacada no exemplo abaixo como uma nominalização e não um
rótulo, visto que deriva da forma verbal “descobriram”, presente no primeiro
parágrafo da reportagem.
(3) Mosca mutante passa bem com pouco sono
Cientistas da Universidade de Wisconsin, nos EUA, descobriram um gene
que pode ajudar a determinar quais pessoas são capazes de dormir apenas
três ou quatro horas por dia sem adoecer. [...]
A descoberta, relatada hoje na revista Nature”, é fruto de um trabalho de
quatro anos que estudou os genes de 9.000 moscas-da-fruta e poderá, no
futuro, resultar em drogas contra distúrbios do sono. [grifo das autoras]
(KOCH & ELIAS, 2006: 139)
A fim de estabelecermos uma distinção terminológica mais aprofudandada e,
dessa forma, sublinharmos o funcionamento e as funções coesivo-argumentativas
dessas estratégias referenciais, recorremos aos postulados teóricos de Conte e de
Francis, autoras que aprofundam a descrição do encapsulamento e da rotulação,
respectivamente.
Conte (In.: CAVALCANTE et alii, 2003) demonstra que, além de recuperar
referentes textuais, o encapsulamento anafórico possui uma função organizadora do
discurso; em função disso, “muito frequentemente ocorre no ponto inicial de um
parágrafo” atuando como um “tipo de subtítulo que simultaneamente interpreta um
43
parágrafo [ou outra unidade textual de maior ou menor extensão] e funciona como
ponto de início para um outro” (CONTE, Id.: 184). Nesse sentido, os grupos
nominais empregados em encapsulamentos anafóricos aproximam-se, segundo
Conte, dos “nomes gerais” indicados por Halliday & Hasan (1976), visto que se
situam no limite entre um item lexical e um item gramatical.
Em se tratando da relação entre a organização sintagmática e a função
cognitivo-discusiva das anáforas encapsuladoras, Conte (Id.: 183) defende que, se
comparada ao uso de artigos definidos, a ocorrência de pronomes demonstrativos
como modificadores da base lexical se revela muito mais frequente. Advoga a autora
que o demonstrativo, devido ao seu caráter essencialmente dêitico, sinaliza, mais
explicitamente, um novo referente discursivo, instruindo o interlocutor a buscar a
porção cotextual com a qual a expressão anafórica se relaciona.
Concluída a apresentação do encapsulamento, recorremos a Francis (In.:
CAVALCANTE et alii, 2003), para quem a rotulação (labelling) consiste em um
encapsulamento que se realiza, necessariamente, por um sintagma nominal não
específico, cujo significado será delimitado na relação dessa realização lexical com
porções textuais (antecedentes e sucessivas) e a partir das contribuições do
interlocutor, que, imerso em dada contexto situacional, construirá inferências e
interpretações para o elemento coesivo. No que concerne a aspectos formais, os
rótulos são, portanto, estruturados por meio de um sintagma nominal, cujo núcleo é,
em geral, antecedido por um demonstrativo ou um artigo definido e determinado por
expressão(ões) qualificadora(s) ou advérbio(s).
Defende Francis (Id.: 202) uma oposição entre os itens lexicais que se
referem ao conteúdo das proposições sumarizadas e os rótulos metalinguísticos,
que “instruem o leitor a interpretar o status linguísitico de uma proposição”. Koch
(2006c: 86) ratifica tal sistematização, distinguindo os rótulos que nomeiam o
conteúdo de proposições e, assim, focalizam o dito, dos rótulos que recaem sobre “o
modus de enunciados ou segmentos textuais”. Nesse sentido, por meio de nomes
nucleares metalinguísticos, as próprias proposições, expressas no universo
cotextual, são sublinhadas e avaliadas, como no texto a seguir, em que a forma
nominal “depoimento” se refere a todo o parágrafo precedente, categorizando-o
como uma ação discursiva.
44
(4) Gosto de beber uma cervejinha, falo palavrão e não vou deixar de ter
amizade com alguém por ser gay, assim como acredito que o uso da
camisinha é importante para prevenir doenças e até mesmo a gravidez”, diz
Érika Augusto da Silva, 20, cabelos avermelhados, quatro furos na orelha.
O depoimento o faria diferença se tivesse sido colhido em um colégio ou
numa rave. Mas o ambiente de Érika é outro. Única católica praticante da
família, neta de evangélicos, ela frequenta um grupo de jovens católicos
quatro anos e vai à igreja pelo menos duas vezes por semana.
Em agosto, pretende realizar um desejo antigo: participar de sua primeira
Jornada Mundial da Juventude. [...] [grifo das autoras] (KOCH & ELIAS,
2006: 130)
Se, em um movimento metadiscursivo, a natureza da referenciação desloca-
se da predicação de um referente para um plano ambivalente de discurso e de
comentário sobre o discurso, a rotulação metadiscursiva se aproxima das anáforas
indiretas: além de introduzirem um novo referente textual, não se configuram como
um processo correferencial. Segundo Jubran (In.: KOCH et alii, 2005: 237), a
diferença entre esses processos coesivos reside no fato de que, na rotulação
metalinguística, “inexiste uma relação, nem mesmo associativa, indireta, entre a
expressão anafórica [ou catafórica] e o(s) elemento(s) a que remete”. Embora
concordemos que, nas anáforas indiretas, seja possível identificar, mais facilmente,
relações semântico-textuais e/ou cognitivo-conceituais entre segmentos da
superfície do texto, observamos que, nos rótulos metalinguísticos, a “âncora” do
novo referente consiste no próprio discurso sumarizado. Compreendemos, portanto,
que, mesmo frente à especificidade da auto-referenciação do discurso observável
nos rótulos metalinguísticos e não nas anáforas indiretas, a interseção entre esses
mecanismos de referenciação é extremamente ampla.
Finalmente, Francis (In.: CAVALCANTE et alii, 2003) propõe a diferenciação
entre rótulos não-avaliativos e avaliativos, considerando que, por meio destes, a
interpretação de uma porção textual revela-se fortemente determinada pelo ponto de
vista do autor. Todavia, mesmo a construção dos rótulos não-avaliativos expressa
um posicionamento. A oposição entre esses tipos de tulos é possível, portanto,
se considerarmos que alguns nomes apontam, de maneira mais explícita, a
interpretação do autor para as informações sumarizadas.
Nesse sentido, compreendemos que todo tulo evidencia certo grau de
subjetividade: a seleção do núcleo nominal e, principalmente, de seus modificadores
é determinada pelo projeto de dizer do enunciador. Desse modo, Koch (2006c: 88)
propõe uma escala de argumentatividade, um continuum tipológico, em que os
45
rótulos poderiam ser distribuídos entre “aqueles aparentemente [mais] neutros, ou
seja, em que o produtor opta por apresentar seu discurso como neutro, ‘afivelando a
máscara da neutralidade’, até aqueles dotados de elevada carga argumentativa”
[grifos da autora].
Portanto, vemos que, no funcionamento textual-discursivo, a rotulação atua
como uma forma de orientação argumentativa, representando um importante
instrumento de convencimento. Por meio dela, o produtor do texto imprime seu
ponto de vista, avaliando os conteúdos que constituem a manifestação linguística e,
paralelamente, os enunciadores que a construíram (afinal, ao mencionar um
discurso, estamos, necessariamente, nos posicionando).
Constatamos, portanto, que os grupos nominais que estruturam os rótulos
além de conectarem e organizarem porções textuais, “traçando uma espécie de
roteiro para o entrelaçamento das idéias conduzidas no texto” conferem “títulos
resumidores a segmentos textuais”, fornecendo “instruções sobre como o
destinatário deve interpretar a unidade semântica encapsulada” (CAVALCANTE,
2001: 1).
3.3.2 Formas de manutenção referencial
Como dissemos, retomar um referente textual consiste em mantê-lo em
foco, criando uma cadeia correferencial e, assim, construindo a progressão
referencial do texto. Em outras palavras: “O texto progride, e o tópico mantém-se
graças a uma construção progressiva do objeto introduzido.” (PENNA, 2006: 46).
Desse modo, uma vez que o objeto de discurso foi ativado no modelo discursivo,
poderá ser re-ativado, além da elipse, por elementos gramaticais e lexicais.
Todavia, se, numa perspectiva tradicional, se postulava que as estratégias
referenciais construídas por meio de itens gramaticais “não fornecem ao
leitor/ouvinte quaisquer instruções de sentido, mas apenas instruções de conexão
(por ex., concordância de gênero e número)” (KOCH, [1989] 2007: 34), na atual
visão sociocognitiva-interacional, ao se compreender que os significados das
expressões linguísticas são mais ou menos estáveis, não sendo suficientes para a
construção do sentido, advoga-se que mesmo as formas gramaticais, como, por
exemplo, os pronomes, o “são elementos vazios que retiram o significado do
46
sintagma nominal (SN) ao qual se referem” (SILVA, 2008: 46). Tais formas possuem
um significado, embora ele se restrinja ao nível gramatical, e “é justamente essa
característica que lhes confere certas possibilidades de significação [...]
diferentemente dos nomes e dos verbos, por exemplo, cuja flexibilidade de
significação tem menores amplitudes” (SILVA, Id., Ibid.).
Logo, na construção de cadeias referenciais, tanto a utilização de formas
gramaticais quanto lexicais permite fornecer outras informações à referência
introduzida anteriormente. Tal recurso coesivo pode apresentar, pois, uma função
predicativa, atribuindo outras características ao elemento retomado, isto é,
recategorizando-o. Frente a isso, apresentamos, inicialmente, estas formas de
manutenção referencial: a pronominalização, a elipse e a repetição (cf. KOCH &
ELIAS, 2006; 2009).
O uso de pronomes (pessoais de 3ª pessoa, possessivos, demonstrativos,
indefinidos, interrogativos e relativos) ou de outras formas de valor pronominal, dos
numerais com função substantiva (cardinais, ordinais, multiplicativos e fracionários) e
de certos advérbios locativos representa uma das estratégias mais recorrentes de
manutenção referencial.
Paralelamente, observamos que a progressão referencial também pode
ocorrer por meio da categoria vazia (Ø), tradicionalmente denominada elipse. Nesse
processo morfossintático, a desinência verbal número-pessoal indica que devemos
“buscar” um referente com o qual ela concorde. Logo, por meio dela, “aponta-se” na
direção do objeto de discurso já introduzido. De forma semelhante, nas elipses
nominais, os nomes suprimidos podem ser resgatados por outros elementos
presentes no co(n)texto linguístico.
Tradicionalmente, apresenta-se a elipse como uma fuga à repetição,
descrevendo esta estratégia como um “problema” textual, capaz de denunciar a
pobreza vocabular do autor e/ou de prejudicar a estética do texto. No entanto, a
repetição pode representar uma importante estratégia argumentativa, como defende
Silva (2008: 50): “mesmo quando um item lexical é repetido, pode haver uma
transformação [...], pois, normalmente, o entorno discursivo é trabalhado no sentido
de fazer evoluir os objetos, modificando-os”. Além disso, por meio dessa forma
nominal reiteradora, evidencia-se, de maneira mais significativa, a continuidade
temática, como se verifica a no excerto a seguir:
47
(5) Música
A música tem uma importância indescritível em nossas vidas. Por mais sutil
que seja ela nos acompanha pela vida toda. Independentemente de seus
estilos, ela sempre tem algo a nos dizer, a nos mostrar, a música tem o
poder de transformar.
[...] A música é acrescentada ao dia-a-dia das pessoas sem elas nem
perceberem. Quanto mais surgem apreciadores da música, surgem músicos
dispostos a mostrar que a música é também uma união de conhecimentos.
[...] [grifos das autoras] (KOCH & ELIAS, 2009: 141)
Além desses recursos morfossintáticos, o uso de formas nominais. Assim,
devemos considerar que, na formação de cadeias referenciais, as associações de
sentido entre os recursos lexicais de coesão são construídas no discurso, na
interação. Dessa forma, a retomada de um elemento da superfície textual por um
elemento do léxico da língua é possível a partir de um estreitamento semântico, uma
vez que, no texto, até mesmo expressões não equivalentes semanticamente podem
se relacionar por meio do co(n)texto em que se inserem. Logo, as formas nominais
com função remissiva evocam, além de conhecimentos linguísticos, o conhecimento
de mundo partilhado entre os interlocutores.
Nesse sentido, expressões nominais definidas realizam-se pela ativação de
traços do objeto de discurso que são partilhados entre os interlocutores. Por possuir
uma função predicativa podendo ser construída por meio de termos metafóricos –,
essa estratégia sempre implica uma escolha dentre uma multiplicidade de formas de
caracterizar o referente. Desse modo, nessa estratégia remissiva, substitui-se um
nome por uma expressão que descreve suas marcas ou seu estado mais relevante,
ou seja, utilizam-se elementos que, no contexto, seriam equivalentes do ponto de
vista do sentido. Logo, por meio desse recurso coesivo, o autor aponta diferentes
avaliações/interpretações para o referente textual, necessariamente vinculadas ao
propósito discursivo. É o que observamos no trecho abaixo, no qual a expressão
catafórica em destaque caracteriza, no título, os veículos de que trata o texto,
explicitando o ponto de vista do autor.
(6) Mamutes mecânicos
RIO DE JANEIRO De algum tempo para cá, nossas ruas têm sido
ocupadas por caminhões de vários eixos, ônibus quase da altura de prédios
e toda espécie de jamantas, além de jipes, camionetes e camburões “de
passeio”, mas capazes de transportar até uma lancha. São veículos ideais
para estradas com 12 pintas ou, como os tanques, para descampados onde
48
esteja rolando uma guerra. Em vez disso, rodam pelas cidades com empáfia
e agressividade. [...] [grifo nosso] (KOCH & ELIAS, 2009: 150)
No entanto, segundo Koch & Elias (2006: 135), “A referenciação pode dar-se,
também, pelo uso de expressões nominais indefinidas, com função anafórica (e não,
como é mais característico, de introdução de novos referentes textuais).” [grifo das
autoras]. Nesse caso, o sintagma nominal cujo núcleo é determinado pelo artigo
indefinido retoma outro nome, expresso no cotexto, como no exemplo que se
segue, em que o referente textual é construído por meio de formas nominais
determinadas por artigos indefinidos:
(7) Eu lembro de um show, aliás, isto é uma exceção, não sei se é covardia
dizer isso agora, porque eu nunca disse para ele. Um show em Portugal que
a gente fez, em Coimbra e tal, aqueles estudantes todos e foi um final
apoteótico. [grifos das autoras] (KOCH & ELIAS, Id., Ibid.)
Observando, ainda, as relações semânticas entre os vocábulos, podem ser
usados hiperônimos e hipônimos. Por um lado, a utilização de alguns hiperônimos
(assim como de formas sinônimas e de paráfrases definicionais e didáticas) consiste
em uma estratégia de atualização dos conhecimentos dos interlocutores, por meio
da qual se apresenta um referente de pouco uso ou que se julga desconhecido por
parte do público-alvo do texto.
Por outro, na utilização de hipônimos como forma remissiva, temos o que
Koch & Elias (2006) definem como anáfora especificadora, pela qual se realiza um
refinamento da categorização. Comumente introduzido por um artigo indefinido, o
sintagma nominal que atua como uma anáfora especificadora se diferencia das
expressões nominais indefinidas, porque, nestas, a manutenção do cleo
nominal. Podemos observar essa diferenciação na relação entre os dois termos
grifados, em que o primeiro é genérico, e o segundo, específico:
(8) Uma catástrofe ameaça uma das últimas colônias de gorilas da África.
Uma epidemia de Ebola matou mais de 300 desses grandes macacos do
santuário de Lossi, no noroeste do Congo. [...] [grifos das autoras] (KOCH &
ELIAS, Id.: 143)
49
Acrescentam as autoras (Id.: 142) que
Embora essa sequência [hiperônimo > hipônimo] seja, de certa forma,
condenada pela norma [...], esse tipo de anáfora permite trazer, de forma
compacta, informações novas a respeito do objeto-de-discurso [...]
.
Finalmente, destacamos as anáforas definicionais ou didáticas, que se
organizam a partir de um definiendum (termo técnico cujo sentido será precisado) e
um definiens (a própria definição proposta), podendo apresentar expressões
características do ato de conceituar, como “um tipo de”, “uma espécie de”, dentre
outras (cf. KOCH & ELIAS, 2006: 144). Isso posto, verificamos que a principal
distinção entre essas anáforas diz respeito à disposição desses dois elementos: nas
anáforas definicionais, ao contrário das didáticas, o termo técnico antecede sua
especificação, tal como no enunciado abaixo, em que o sentido do referente
“argonautas” é precisado pela expressão grifada.
(9) Vocês já ouviram falar dos argonautas? Pois conta-nos a lenda grega
que estes tripulantes da nau mitológica Argos saíram à busca do Velocino
de Ouro. [grifo nosso] (KOCH & ELIAS, Id., Ibid.)
Assim, por meio desse recurso referencial, precisa-se o sentido de um objeto de
discurso, permitindo ao leitor, também, aprender um léxico novo.
A partir dessa sistematização teórica, verificamos que as formas de re-
ativação de objetos de discurso, além de criar cadeias correferenciais, contribuem
para a progressão referencial e a manutenção tópica, possibilitando a (re)construção
da unidade textual. A caracterização dessas diferentes formas de introdução e de
manutenção referencial nos mostra, primeiramente, que elas realizam a dinâmica de
construção dos objetos de discurso (descrita no item 3.2). Em segundo lugar,
estratégias, como, por exemplo, as anáforas indiretas, que contribuem para a
organização/sequenciação do texto, funcionando, simultaneamente, como uma
forma de referenciação e sequenciação. Finalmente, observamos que o emprego de
formas linguísticas com função coesiva pode contribuir para o movimento
argumentativo do texto, categorizando os objetos de discurso evocados. Por tudo
isso, torna-se evidente a multifuncionalidade das estratégias de referenciação.
50
4.
A
ABORDAGEM DA REFERENCIAÇÃO EM LIVROS DIDÁTICOS DE
L
ÍNGUA
P
ORTUGUESA DO
E
NSINO
M
ÉDIO
4.1 Metodologia de análise
A partir da exposição teórica sobre referenciação, optamos, nesta pesquisa,
por analisar esse processo coesivo-argumentativo em cinco manuais didáticos de
Língua Portuguesa do Ensino Médio. Em primeiro lugar, justificamos a relevância de
analisar os livros didáticos, pois, geralmente, eles representam a primeira (e, por
vezes, a única) fonte de consulta dos professores e dos alunos. Por um lado, os
docentes, muitas vezes, organizam suas aulas, exclusivamente, a partir dos
apontamentos teóricos e dos exercícios propostos por esses compêndios. Por outro,
os discentes tomam o livro didático como instrumento de apresentação e de
mediação do conhecimento escolar.
Em segundo lugar, explicitamos que a escolha de livros didáticos de Ensino
Médio deve-se não ao fato de pressupor que, nessa fase de escolarização, os
alunos possuam maior maturidade no que se refere ao uso e à análise linguística,
mas principalmente pela observação de que, em exames nacionais, constatou-se
uma significativa deficiência desse alunado no que diz respeito à habilidade de
interpretação textual.
Dessa maneira, o corpus deste trabalho constitui-se de compêndios didáticos
que, segundo as resenhas do PNLEM 2009, se destacam pelo trabalho com
questões de interpretação e construção de textos e que propõem, explicitamente, o
estudo da coesão textual. Valemo-nos, ainda, da pesquisa de Tupper, Gonçalo &
Côrtes (2009), a partir da qual se sublinharam os compêndios em que o estudo da
referenciação se revela mais consistente. Portanto, selecionamos, dentre as 11
coleções que integram o PNLEM 2009, as cinco seguintes coleções de Língua
Portuguesa do Ensino Médio:
1. Português: linguagens (volumes 1, 2 e 3), 5ª edição, elaborado por William
Roberto Cereja e Thereza Anália Cochar Magalhães;
51
2. Português de olho no mundo do trabalho (volume único), edição, de
Ernani Terra e José de Nicola Neto;
3. Português: língua, literatura, produção de texto (volumes 1, 2 e 3), 1ª edição,
produzido por Maria Luiza Abaurre, Marcela Regina Nogueira e Tatiana
Fadel;
4. Português: língua e cultura (volume único), 1ª edição, de Carlos Alberto
Faraco; e
5. Língua Portuguesa: Projeto Escola e Cidadania para Todos (volume único),
edição, elaborado por Harry Vieira Lopes, Zuleia de Felice Murrie, Jeosafá
Fernandez Gonçalves e Simone Gonçalves da Silva.
Por meio de uma análise qualitativa e comparativa, objetivamos apresentar,
amplamente, esses cinco compêndios didáticos e, assim, investigar se eles propõem
o estudo da referenciação integrado às atividades de leitura, produção e análise
linguística. Visamos, ainda, à (re)construção de atividades em que, de fato, se
relacione o sistema gramatical à construção de objetos discursivos. Logo, além da
explicitação metodológica, o capítulo se estrutura por outras três seções.
No item 4.2, traçaremos uma caracterização geral das obras no que se refere
à abordagem do processo de referência discursiva. Contemplaremos, nessa
descrição, tanto aspectos formais/estruturais quanto questões teórico-
metodológicas, respondendo aos seguintes questionamentos:
1. diferentes seções para os conteúdos que se referem à Gramática, a Literatura
e a Redação?
2. Observam-se, nos livros analisados, capítulos ou seções que tratam,
especificamente, da coesão textual em especial, das estratégias de introdução de
objetos de discurso e de criação de cadeias correferenciais?
3. Qual perspectiva teórico-metodológica é definida a partir das orientações que
constituem o Manual do Professor?
4. A apresentação dos processos referenciais se realiza por meio de textos
contextualizados ou por frases soltas?
52
Por meio do primeiro questionamento, investigaremos a existência de
integração entre a descrição das estratégias referenciais e as propostas de leitura,
produção e análise linguística. A segunda indagação apontará a profundidade da
abordagem no estudo da referenciação em cada livro selecionado. A partir da
terceira pergunta, avaliaremos o grau de coerência entre os pressupostos teórico-
metodológicos afirmados pelos livros e a estruturação de seus capítulos/seções.
Finalmente, as respostas ao quarto questionamento demonstrarão se as formas de
referenciação são apresentadas como estratégias para a construção do sentido ou
apenas como elos intra e interfrásticos, que se esgotam em um nível superficial.
Objetivando uma melhor visualização dos resultados, as respostas para essas
questões serão apresentadas em um quadro-síntese. Explicitaremos, ainda,
possíveis reflexos desses aspectos analisados na compreensão do processo de
referenciação.
No item 4.3, aprofundaremos nossa apreciação crítica, descrevendo as
abordagens dos processos coesivo-argumentativos referenciais. Teremos, portanto,
como principal meta demonstrar se e como, nos livros didáticos, o estudo da coesão
(em especial, das relações referenciais) se realiza de maneira integrada à descrição
do sistema linguístico e às atividades de leitura e produção textual.
Como explicitamos, no capítulo precedente, que a referenciação se realiza
tanto a partir de elementos gramaticais quanto por intermédio de recursos lexicais, a
fim de construir essa caracterização dos livros didáticos, focalizaremos os
capítulos/seções dos manuais que tratam:
- dos processos morfossintáticos de re-ativação referencial denominados elipse
e repetição;
- do uso dos pronomes, advérbios locativos, numerais e artigos, uma vez que
estes itens gramaticais podem ser empregados nas estratégias de introdução
e de manutenção referencial;
- das formas nominais substantivos e adjetivos, principalmente no que se refere
às relações semânticas de sinonímia, hiperonímia e hiponímia, por meio das
quais podemos (re)construir, no fluxo discursivo, imagens para os referentes
textuais e, assim, estruturar cadeias correferenciais;
- da coesão textual, resultado também do processo de referenciação; e
- da coerência textual
, visto que, em alguns livros, a apresentação dos fatores
que colaboram para construção do sentido do texto e, paralelamente, a
53
identificação e a análise de enunciados incoerentes estão atreladas ao estudo
das marcas formais de articulação textual, isto é, das formas de coesão e
argumentação, em que se inserem as estratégias de referenciação.
Desse modo, na descrição desses capítulos/seções, conferimos destaque às
atividades de leitura e produção textual, avaliando como a sistematização teórica
desses processos morfossintáticos e dessas classes de palavras vincula o
conhecimento estrutural da língua à construção da referenciação. Assim, embora
tenhamos analisado todos os exercícios presentes nesses capítulos/seções,
apresentaremos, como exemplo, apenas as propostas mais recorrentes e/ou mais
significativas em cada obra.
Na caracterização dos cinco compêndios didáticos selecionados, observamos
traços comuns no que concerne ao estudo da referenciação. Consequentemente,
optamos por agrupar as obras, organizando suas descrições em subitens dessa
seção. Por meio dessa opção metodológica, que espelha alguns dos resultados
de nossa pesquisa, explicitaremos aspectos comuns às cinco obras, individualizando
estas perspectivas que subjazem à apresentação da referenciação:
i) foco na prescrição gramatical e dissociação entre o estudo da Gramática e
a Análise Textual;
ii) foco na localização do referente e relação frouxa entre a análise linguística
e a construção da coesão textual;
iii) foco nas estratégias coesivo-argumentativas e articulação entre o sistema
linguístico e a tessitura textual.
Observando, pois, se nos manuais a ênfase recai sobre os conteúdos
gramaticais ou sobre os fenômenos textuais e, assim, a maior ou menor
associação/aproximação entre esses temas, apresentamos os seguintes subitens,
cujos títulos antecipam a abordagem da referenciação a ser descrita: o item 4.3.1,
“Abordagem da referenciação dissociada de aspectos gramaticais”, no qual
apresentaremos as obras Português: linguagens e Português de olho no mundo
do trabalho; o item 4.3.2, “Abordagem da referenciação na superfície textual”, em
que reunimos os compêndios Português: língua, literatura, produção de texto e
Português: língua e cultura; e, finalmente, o item 4.3.3, “Abordagem da
referenciação como um processo além do entorno verbal”, no qual descreveremos,
54
separadamente, o livro Língua Portuguesa: Projeto Escola e Cidadania para todos,
tendo em vista o trabalho com a referenciação mais aprofundado que apresenta.
Concluída essa caracterização das perspectivas observadas nos livros,
passaremos à seção 4.4, em que retomaremos algumas atividades presentes nos
capítulos/seções que analisamos. Mediante abordagens superficiais e/ou
incoerentes, indicaremos como certas atividades poderiam a partir das
contribuições teóricas da Linguística Textual sobre a referenciação e das
orientações que compõem os Parâmetros Curriculares Nacionais integrar o
conhecimento do sistema linguístico à construção de objetos de discurso e, assim, à
argumentação. Nesse sentido, partiremos das lacunas observadas em exercícios de
algumas das obras, a fim de demonstrar como eles poderiam ser ampliados,
representando instrumentos mais eficientes para a compreensão da dinâmica de
introdução e de manutenção referencial.
4.2 Caracterização geral das obras
As respostas aos questionamentos que estruturam esta seção poderiam ser
sistematizadas na tabela que se segue:
LIVROS:
1. Seções distintas para
Gramática, Literatura e
Redação?
2. Cap. específico
sobre coesão
(referenciação)?
3. Perspectiva
Teórica indicada
no Manual do
Professor
4. Textos
contex-
tualizados?
Português:
linguagens
(CEREJA &
MAGALHÃES,
2005)
SIM
Capítulos intercalados:
“Literatura”,
“Língua: uso e reflexão” e
“Produção de texto”.
NÃO
Apenas a seção
“Textualidade,
coerência e coesão” (v.
1, cap. 10, p. 112-115)
A partir de teorias
recentes e de
orientações dos
PCN de Língua
Portuguesa (EM),
destacam-se
estes principais
pressupostos
(comuns às cinco
obras):
1. A linguagem é
um constructo
cultural e, ao
mesmo tempo,
construtora da
realidade e dos
sujeitos.
SIM
Português de
olho no mundo
do trabalho
(TERRA &
NICOLA, 2004)
SIM
Três seções:
“Produção de Textos”,
“Gramática” e
“Literatura”.
SIM
“A coesão textual”
(seção “Produção de
Textos”, cap. 8, p. 53-
56)
SIM
Português:
língua, literatura,
produção de
texto
(ABAURRE et
alii, 2005)
SIM
Três seções:
“Literatura: A arte como
representação do
mundo”;
“Língua: Da análise da
SIM
“A articulação textual”
(v. 3, cap. 9, p. 134-
151)
SIM
55
forma à construção do
sentido”; e
”Prática de leitura e
produção de textos”
2. Língua é,
essencialmente,
diversificada.
Logo, deve-se
considerar a
adequação de
formas ao
contexto
sociodiscursivo e
aos objetivos do
falante.
3. As
manifestações
textuais concretas
são a unidade
básica para a
análise linguística.
Português:
língua e cultura
(FARACO, 2003)
SIM
Cinco blocos:
“Bloco de textos”,
“Enciclopédia da
Linguagem”,
“Almanaque Gramatical”,
“Guia Normativo” e
“História da Literatura”
NÃO
Apenas menção às
estratégias de coesão
no cap. 15, “Texto
informativo:
reportagem” (p. 220-
221).
SIM
Língua
Portuguesa:
Projeto Escola e
Cidadania para
Todos
(LOPES et alii,
2005)
SIM
Quatro temas:
“Gramática”,
“Literatura”,
“Narrativa Literária” e
“Textos Pragmáticos”
SIM
“Falando de textos:
coesão”
(módulo 6, p. 177-208)
SIM
Tabela II: Quadro-síntese da caracterização geral dos livros analisados.
A fim de comprovarmos essa análise, comentaremos, inicialmente, a
estruturação desses manuais. No que diz respeito à divisão dos conteúdos de
Gramática, Literatura e Redação em distintas seções/módulos, destacamos, em
primeiro lugar, a obra Português de olho no mundo do trabalho (TERRA &
NICOLA, 2004), que se estrutura em três seções: Produção Textual, Gramática e
Literatura. Tal organização é justificada na “Apresentação” do livro, na qual se
evidencia a preocupação dos autores em construir um material que integre o
conhecimento estrutural da língua a concretizações de discursos:
[...] quando tomamos a palavra, precisamos saber claramente com quem
estamos falando, por que estamos falando, o que queremos com nossa fala;
ao mesmo tempo, precisamos ter o domínio das estruturas que a língua nos
oferece, para que possamos construir de modo eficiente as nossas falas. (p.
03)
Ainda ilustrando o refuto dos compêndios didáticos à mera sobreposição de
informações, pontuamos, ainda, o livro Português: língua e cultura (FARACO,
2003), que, já na “Apresentação”, explicita a importância de
56
equilibrar o estudo dos textos com reflexões intuitivas e sistemáticas sobre a
língua, com vistas a garantir aos/às estudantes o efetivo domínio de práticas
verbais orais e escritas; uma compreensão da realidade estrutural e
sociocultural da língua; e o contato vivo com o fazer literário.
Relacionaremos, agora, traços formais a aspectos metodológicos. Nesse
sentido, constatamos que, no que diz respeito ao estudo da coesão textual, as
coleções Português: linguagens (CEREJA & MAGALHÃES, 2005) e Português:
língua e cultura (FARACO, 2003) são as únicas que não apresentam um
capítulo/módulo específico sobre o tema. No primeiro livro, o estudo da coesão
carece de uma sistematização mais aprofundada, por meio da qual se poderia
melhor explicitar a relação entre essa propriedade textual e a coerência do texto.
no segundo manual, a análise dos mecanismos de referenciação se limita a uma
menção, na seção “Estudo do Texto” do capítulo 15, do papel das estratégias de
manutenção referencial na organização textual. Nessa atividade, o aluno é
convidado a fazer “um rastreamento das expressões que servem para costurar o
texto (para dar a ele a unidade estrutural)” [grifo do autor] (FARACO, 2003: 221),
observando a construção de cadeias correferenciais. Desse modo, os dois livros
deixam de contemplar inúmeros aspectos sobre a referenciação.
Considerando que os livros afirmam, sobretudo nas explicitações teóricas
presentes na “Apresentação” de cada obra, construírem-se sob um olhar sócio-
interacional para o estudo da gramática e do texto, destacamos o fato de essa
perspectiva ser reafirmada, explicitamente, em cada um dos cinco Manuais do
Professor, cujas premissas dialogam com os Parâmetros Curriculares Nacionais e
com as teorias linguísticas mais recentes, em que se inserem os estudos sobre a
referenciação. Nesse sentido, identificamos, na análise do Manual do Professor, a
indicação de, pelo menos, três pressupostos comuns às obras.
Primeiramente, explicita-se que a linguagem deve ser compreendida como
uma construção social e, simultaneamente, como construtora da realidade e de
identidades. Isso porque, por um lado, a linguagem não é concebida como uma
estrutura autônoma aos sujeitos, como sublinha Faraco (2003):
Nossa concepção recusa esses olhares que alienam a linguagem de sua
realidade social concreta. Nós a concebemos como um conjunto aberto e
múltiplo de práticas sócio-interacionais, orais ou escritas, desenvolvidas por
sujeitos historicamente situados.
57
Pensar a linguagem desse modo é perceber que ela não existe em si, mas
existe efetivamente no contexto das relações sociais: ela é elemento
constitutivo dessas múltiplas relações e nelas se constitui continuamente.
(Manual do Professor, p. 5)
Por outro lado, conforme nos lembra Abaurre et alli (2005), a linguagem
constitui os sujeitos e o próprio percepção do real:
[...] por meio da linguagem, construímos nossa relação com o mundo em
que nos inserimos. [...] a linguagem, de várias maneiras, atravessa a nossa
existência, conferindo-nos humanidade, permitindo que olhemos para o
nosso passado e, por meio de sua análise, transformemos o nosso presente
e determinemos um futuro diferente. (Manual do Professor, p. 2)
Em segundo lugar, assumindo a visão dialógica da linguagem, afirma-se que
se deve tomar a língua sob a perspectiva do uso, considerando a adequação de
formas linguísticas aos diversos contextos sociodiscursivos. Desse modo, Cereja &
Magalhães (2005) concebem a língua “não como um sistema fechado e imutável de
unidade e de leis combinatórias, mas como processo dinâmico de interação, isto é,
como um meio de realizar ações, de agir e atuar sobre o outro” (Manual do
Professor, p. 14).
Nessa perspectiva, advogam os autores que, diferentemente da gramática
tradicional, cujo foco recai sobre a classificação metalinguística e a imposição de
usos, a obra Português: linguagens se propõe a “redimensionar” esses conteúdos e
relacioná-los a questões textuais-discursivas (cf. Manual do Professor, p. 14). Desse
modo, os tópicos “Literatura”, “Língua: uso e reflexão” e “Produção de texto”, que se
intercalam em cada um dos livros da coleção, apresentariam conteúdos interligados.
Paralelamente, no Manual do Professor (p. 04) de Abaurre et alii (2005),
explicita-se que
Em termos metodológicos, a orientação geral que subjaz à obra no tocante
aos estudos gramaticais é a de, sempre que possível, relacionar os tópicos
tematizados em cada volume a situações efetivas de uso da linguagem.
Pondo em segundo plano as atividades metalinguísticas de classificação,
destaca-se, como terceiro pressuposto, que o foco dos estudos linguísticos deve
58
recair sobre a interpretação e a produção dos mais diversos gêneros e tipos textuais,
como pontuam Terra & Nicola (2004):
[...] os textos devem ser a matéria-prima do professor(a) no trabalho com a
língua. Eles devem ser o ponto de partida e o ponto de chegada. Ponto de
partida porque é neles que os alunos devem descobrir os modos de
construção; e ponto de chegada porque se espera que, a partir da reflexão
sobre textos alheios, os alunos se tornem capazes de construir textos
próprios. (Assessoria Pedagógica, p. 6)
De forma semelhante, postulam Cereja & Magalhães (2005) que
o trabalho linguístico não pode se limitar ao vel da frase [...]. Deve, no
caso, ser também considerado o domínio do texto e, mais que isso, o do
discurso, ou seja, o contexto em que se a produção do enunciado
linguístico. (Manual do Professor, p. 14)
Finalmente, respondendo ao último questionamento que norteia esta seção,
verificamos que, se, ao lado da interdisciplinaridade, os Parâmetros Curriculares
Nacionais apontam, como dinâmica sica para a construção do conhecimento, a
contextualização, nas cinco obras analisadas, a apresentação de conteúdos, a
construção de conceitos e a indicação de exercícios de fixação partem, em geral, de
textos reais e não de frases soltas. Desse modo, parecem focalizar, no trabalho com
os diferentes gêneros textuais, práticas sociais (concretas) diversas.
Ao conceber o texto como ponto de partida para a análise de outros textos e
de formas e processos gramaticais, evitando atividades descontextualizadas, nos
cinco livros analisados, os capítulos/seções que abordam a coesão textual
apresentam essa propriedade textual tentando relacioná-la à exploração linguística
de diferentes concretizações discursivas.
É o que observamos, por exemplo, o capítulo “A coesão textual” (TERRA &
NICOLA, 2004: 53-56), que integra o módulo “Produção de textos” e se inicia com
uma resenha do filme Uma lição de amor. A partir desse texto predominantemente
argumentativo, o propostas questões discursivas acerca do papel dos pronomes
pessoais, possessivos e relativos e dos operadores argumentativos (conectivos) na
organização textual. , portanto, um movimento que suscita no aluno a construção
do conceito de coesão – posteriormente, sistematizado.
59
A partir da análise desses aspectos formais e teórico-metodológicos, torna-se
evidente, em todos os compêndios didáticos selecionados, a preocupação dos
autores em retomar conceitos e pressupostos de teorias linguísticas atuais e
reafirmar a proposta dos PCN: a partir das diversidades sócio-regionais, garantir o
acesso a uma mesma base de conhecimento, a ser desenvolvida por meio de
atividades interdisciplinares e contextualizadas às experiências da comunidade
escolar. Desse modo, principalmente por meio do Manual do Professor, os cinco
livros didáticos analisados são apresentados como uma ferramenta pedagógica que
apresenta de maneira integrada e contextualizada seus conteúdos, contribuindo
para a ampliação das habilidades de leitura e produção textual, essenciais ao
exercício da cidadania.
A partir dessa análise, verificaremos, a seguir, se, de fato, os manuais
didáticos, na apresentação dos recursos referenciais e na descrição de formas e
processos gramaticais, se mantém coerentes às suas próprias delimitações teórico-
metodológicas. Em outras palavras, avaliaremos em que medida as obras refletem
uma estreita relação entre os conceitos e pressupostos que retomam no Manual do
Professor e as descrições e as atividades presentes nos capítulos ou nas seções
que abordam a referenciação.
4.3 Perspectivas no estudo da referenciação
4.3.1 Abordagem da referenciação dissociada de aspectos gramaticais
a partir do título deste item, destacamos, como principal característica das
obras Português: linguagens (CEREJA & MAGALHÃES, 2005) e Português de
olho no mundo do trabalho (TERRA & NICOLA, 2004), a dissociação entre a
apresentação da dinâmica de introdução e de manutenção referencial e a
sistematização de formas e fenômenos gramaticais, marcada pela prescrição da
norma padrão.
A fim de comprovarmos essa constatação, demonstraremos, inicialmente, a
sistematização dos processos morfossintáticos e das classes de palavras que atuam
como formas de referenciação. Assim, observamos que, em Cereja & Magalhães
(2005), não é feita qualquer menção ao processo da elipse. Já Terra & Nicola (2004)
60
apresentam esse processo morfossintático privilegiando a fixação do padrão
linguístico. Ambos os livros desconsideram a repetição.
Em seguida, investigando categorização das classes de palavras,
confirmamos a postura normativa que caracterizaria as duas obras. Desse modo,
tanto em Cereja & Magalhães (2005: 32-98) quanto em Terra & Nicola (2004: 218-
261), a apresentação das categorias gramaticais se realiza de forma desarticulada
ao processo de referenciação: os livros individualizam, por critérios morfossintáticos
e semânticos, as classes gramaticais, apresentando uma série de classificações e
prescrições metalinguísticas.
Nesse sentido, nos capítulos que tratam dos substantivos e dos adjetivos, por
exemplo, podemos destacar questões que, embora proponham reflexões sobre os
efeitos discursivos do uso dessas formas nominais, não contemplam, com
profundidade, a função referencial de tais expressões: não se faz qualquer alusão à
função dos sintagmas nominais na criação de cadeias coesivas, tampouco à
possibilidade de esses elementos contribuírem para argumentação. Paralelamente,
observamos que, embora os livros descrevam as relações de sinonímia, hiponímia e
hiperonímia, não associam esses conceitos à manutenção de objetos de discurso.
A atividade que se segue (TERRA & NICOLA, 2004: 223) é a única que trata,
indiretamente, da coesão textual; mas, além de propor a análise de um fragmento de
texto completamente descontextualizado, exige um conhecimento que não foi
desenvolvido pelo livro.
“Ao longe, percebia-se a sombra de um homem cambaleante. Ao entrar no
vilarejo, o homem procurou o prédio da Prefeitura e disse que tinha fome.”
O substantivo homem aparece duas vezes no texto, modificado por
diferentes artigos. Justifique o emprego desses artigos. [grifo dos autores]
Na descrição dos artigos, dos numerais e dos advérbios locativos, também
predomina a imposição da norma culta e a fixação de nomenclaturas gramaticais.
Explicitando a morfossintaxe do numeral, por exemplo, traça-se uma oposição entre
o numeral adjetivo, que “acompanha o substantivo”, e o numeral substantivo, que
“substitui um substantivo” (TERRA & NICOLA, Id.: 232). O que poderia iniciar uma
importante reflexão sobre o processo de referenciação prioriza, na verdade, a
metalinguagem, uma vez que, indicando categorias/classificações, nenhuma
61
questão textual-discursiva é pontuada. Além disso, as atividades que tratam, além
dos numerais, do emprego dos artigos propõem a observação dos diferentes efeitos
de sentido obtidos pela utilização dos artigos definidos e dos artigos indefinidos, ou
ainda pela ausência de qualquer determinante de nomes (cf. CEREJA &
MAGALHÃES, 2005: 67), mas não relacionam esses fenômenos à construção de
imagens para os objetos de discurso. Finalmente, constatamos que a descrição dos
advérbios privilegia a classificação desses vocábulos.
Em se tratando, no entanto, da sistematização teórica dos pronomes,
verificamos que Cereja & Magalhães (Id.: 95) sublinham, por meio de exemplos, não
a possibilidade de os pronomes demonstrativos evidenciarem as relações
correferenciais de anáfora e de catáfora, mas também de atuarem na desconstrução
da ambiguidade referencial, quando há, no cotexto precedente, dois ou mais
referentes candidatos a forma de re-ativação:
em Terra & Nicola (2004), apenas as questões motivadoras que sucedem
o texto inicial, uma entrevista, indicam objetivamente o papel dos pronomes na
criação de cadeias coesivas. Na classificação dos pronomes, realizada por meio de
tabelas, encontra-se, novamente, a valorização da nomenclatura gramatical, em
detrimento das regularidades textuais. Dessa forma, mesmo a descrição do uso dos
pronomes relativos e dos pronomes demonstrativos na indicação do que “ainda vai
ser dito e aquilo que foi dito” (TERRA & NICOLA, Id.: 238) objetiva, sobretudo, a
imposição de um padrão linguístico e a memorização de nomenclaturas.
62
No que se refere aos capítulos que abordam a coesão e a coerência textuais
nos dois livros, julgamos pertinente investigar se e como a sistematização dessas
propriedades textuais retoma e/ou aprofunda a descrição de formas e de processos
gramaticais.
Em Cereja & Magalhães (2005: 112-113), na construção dos conceitos de
coesão e de coerência, parte-se de um trecho de Grande sertão: veredas, de
Guimarães Rosa, cuja exploração linguística focaliza a identificação não de
marcas formais que contribuem para a sequenciação de porções textuais e para a
retomada de expressões já mencionadas, mas também de relações semântico-
conceituais entre as proposições do texto. Assim, convida-se o aluno a observar o
papel de conectivos inter-oracionais, a identificar o termo ao qual o artigo indefinido
“uns” faz referência, a alterar a ordem das frases que compõem o excerto.
Dessa forma, demonstra-se a importância das estratégias de construção da
textualidade, isto é, da unidade de sentido do texto e, em seguida, define-se a
coesão textual como “conexões gramaticais existentes entre palavras, orações,
frases, parágrafos e partes maiores de um texto” (CEREJA & MAGALHÃES, Id.:
113), entendendo o termo “gramaticais” não como uma referência apenas aos itens
não-lexicais (como pronomes e preposições), mas às formas da língua (gramática),
da qual também participam os substantivos, adjetivos etc. Logo, de acordo com os
autores, todas as formas linguísticas que ligam segmentos cotextuais podem,
genericamente, ser denominadas “conectores”.
Apesar de, por meio dessa caracterização da propriedade textual de conexão,
se indicar a diversidade de recursos coesivos, a relação entre esse princípio de
textualidade e a coerência textual se revela pouco clara. Assim, conceitua-se a
coerência como “a estruturação gico-semântica de um texto, isto é, a articulação
de idéias que faz com que numa situação discursiva palavras e frases componham
um todo significativo para os interlocutores” (CEREJA & MAGALHÃES, 2005: 114),
sem que aproxime, de maneira direta, essa propriedade textual das marcas formais
de conexão.
Outras reflexões acerca da coesão textual são encontradas na seção
“Escrevendo com coerência e coesão”, do 13º capítulo do volume do compêndio,
na qual se retoma a afirmação de que a tessitura textual depende da articulação de
palavras e ideias e, em seguida, se apresentam atividades de leitura e reescritura
textual, dentre as quais destacamos as duas questões que se seguem.
63
(CEREJA & MAGALHÃES, Id.: 147)
Observamos que, na primeira atividade, a fim de que se empreguem, em
cada uma das lacunas, “conectores” adequados (coerentes), exige-se não só a
identificação de relações correferenciais entre o objeto de discurso ativado no
modelo textual e as formas referenciais capazes de re-ativá-lo, mas também a
interpretação das relações semânticas entre as orações e frases do texto. A
segunda atividade, por sua vez, requer o exame de problemas de articulação textual
e, assim, a indicação de formas de reorganização dos segmentos textuais.
Em contrapartida, Terra & Nicola (2004: 54), ao definirem coesão como uma
“conexão linguística que permite a amarração de idéias”, destacam os elementos
que operam como elos textuais. Retomando fragmentos do texto que abre o
capítulo, explicitam, brevemente, como pronomes, substantivos e conectivos são
importantes mecanismos para a construção da coerência textual.
64
Os exercícios que concluem o capítulo se limitam à identificação de
elementos da superfície do texto ou propõem análises que pouco se relacionam à
construção da coesão textual, como a atividade abaixo (TERRA & NICOLA, Id.: 55):
6. Os conectivos e advérbios não se prestam apenas a estabelecer
conexões entre segmentos textuais. Eles também podem ser utilizados com
finalidades argumentativas, isto é, podem orientar o leitor para um
determinado argumento e não outro. Compare os enunciados abaixo e, a
seguir, comente por que no texto o advérbio tem força argumentativa.
É verdade que usamos 10% da capacidade do nosso cérebro?
“É verdade que usamos 10% da capacidade do nosso cérebro?” [grifo
dos autores]
A partir dessa análise, constatamos que a sistematização das classes de
palavras e dos processos morfossintáticos que atuam no processo coesivo-
argumentativo de construção de referentes textuais se caracteriza por um
movimento predominantemente prescritivo. Assim, os textos que encetam cada
capítulo servem, em geral, como pretexto para as atividades de identificação e para
a imposição de modelos de expressão. Consequentemente, verificamos o
isolamento entre esses conteúdos gramaticais e a apresentação de fenômenos
textuais o que também vai de encontro aos pressupostos apresentados no Manual
do Professor de cada um dos livros. Logo, os dois livros didáticos não contemplam,
com profundidade, a função referencial de classes de palavras, tampouco articulam,
nos capítulos sobre coesão, a sistematização teórica de formas e de processos
linguísticos às atividades de leitura e produção textual.
4.3.2 A abordagem da referenciação na superfície textual
Nesta seção, verificaremos que os livros Português: língua, literatura,
produção de textos (ABAURRE et alii, 2005) e Português: língua e cultura
(FARACO, 2003) relacionam, de maneira superficial, a descrição do sistema
linguístico à referência discursiva e privilegiam, nos capítulos sobre coesão, a
65
identificação dos movimentos de anáfora e catáfora, apresentando propostas que,
não raro, se limitam ao cotexto linguístico.
No que concerne à abordagem da elipse e da repetição, apenas Faraco
(2003) considera essas estratégias. Caracterizando essas duas formas de
manutenção referencial, Faraco (Id.: 64), inicialmente, destaca que
A repetição (na medida certa) pode ser [...] um recurso tão adequado para
fazer nova referência a um elemento mencionado no texto quanto o uso
dos pronomes ou da elipse. Tudo vai depender da situação e das intenções
do autor.
Embora concordemos com essa observação, questionamos: em que situação,
a partir de quais propósitos argumentativos e em que medida a repetição é
adequada? Desse modo, constatamos que não há, nesse compêndio, uma
descrição que contemple os usos argumentativos da repetição de elementos
cotextuais.
Observando, em seguida, o tratamento dado ao fenômeno da elipse,
sublinhamos o fato de o autor não considerar aspectos contextuais e cognitivos que
se relacionam a essa estratégia referencial (cf. FARACO, Id.: 306-307). Desse
modo, o exercício seguinte, assim como as propostas encontradas na seção “De
olho na língua” do 4º capítulo do livro, limita-se à identificação de antecedentes:
(FARACO, Id.: 37)
66
Em se tratando da abordagem das categorias gramaticais com função
referencial, ambas as obras apenas tangenciam a relação entre essas categorias e a
construção dos objetos discursivos.
Em Abaurre et alii (2005), o capítulo que trata dos substantivos principia com
a definição dessa classe gramatical, em que se lê: “Substantivos são palavras que
designam os seres em geral, reais ou imaginários.” [grifo nosso] (ABAURRE et alii,
Id.: 94). Tal concepção reflete uma perspectiva referencialista da linguagem, a partir
da qual os referentes são pré-existentes às manifestações linguísticas. Em se
tratando da classificação dessa categoria gramatical, o livro assevera, por exemplo,
que a distinção básica entre os substantivos concretos e abstratos reside no fato de
aqueles possuírem “uma existência independente” (ABAURRE et alii, Id.: 95). Os
substantivos são apresentados, portanto, como rótulos para “tudo aquilo, enfim, que
pode ser tomado como tendo algum tipo de ‘existência’ própria, ainda que apenas
imaginada” (ABAURRE et alii, Id.: 94).
A partir dessa acepção, passa-se à descrição da formação e da flexão dos
substantivos. A única menção feita à função textual-discursiva desses vocábulos
encerra-se em uma breve observação sobre a conotação afetiva ou
depreciativa/pejorativa de formas sintéticas do diminutivo e do aumentativo, como
“filhinho” e “narigão”. Segundo os autores (Id.: 100), esse uso linguístico caracteriza
“a função expressiva da linguagem, pois contribui para a expressão da
subjetividade”. Sabemos, todavia, como já explicitamos nos capítulos anteriores, que
qualquer apropriação da língua, manifestada em textos, revela certo grau de
subjetividade: ao dizer o mundo, construímos imagens de nós mesmos. Assim, ao
destacar, apenas, o papel discursivo dos substantivos derivados em grau, o se
evidencia que, na construção textual, a seleção de nomes pode representar uma
importante estratégia coesiva e argumentativa.
Se, por um lado, essas funções não são contempladas na descrição teórica
do livro didático, por outro, exercícios dessa unidade como a atividade que se
segue (ABAURRE et alii, Id.: 101), em que se explora a representação de “mulher” e
“dama”, na inversão dessas expressões (questão “b”) propõem reflexões sobre
certos efeitos de sentido, ainda que objetivem, também, a classificação
metalinguística dos vocábulos (questão “a”).
67
Por sua vez, Faraco (2003), antes de indicar a relevância de dividir as
palavras da língua em categorias, sublinha a possibilidade de uma forma linguística
veicular diferentes sentidos a partir, por exemplo, de construções metafóricas e
metonímicas. Em seguida, na alusão feita às relações de sinonímia e antonímia,
sublinha a inexistência de sinônimos perfeitos (uma vez que cada palavra ”tem
matizes peculiares de sentido”) e, consequentemente, pontua que “ao falar ou
escrever, podemos gerar vários efeitos de sentido pela simples escolha de uma
determinada palavra” [grifo do autor] (FARACO, Id.: 273). No entanto, o autor não
menciona a funcionalidade dessas relações semânticas na construção da coesão
textual. O mesmo verificamos nos exercícios desse capítulo.
Na descrição das classes de palavras, apresentada no capítulo seguinte,
Faraco (Id.: 281-282) demonstra como cada classe gramatical assume diferentes
funções na construção de sentenças da língua. Pontua, desse modo, que, em se
tratando dos substantivos, é importante definir seu gênero, pois, dentre outros
fatores,
a língua admite que substantivos, uma vez mencionados, possam ser por
uma espécie de economia de meios substituídos por pronomes. Estes,
sendo substitutos, adotarão o gênero e o número do substantivo a que se
referem (FARACO, Id.: 282).
A observação acima parece reforçar a concepção tradicional segundo a qual
uma expressão anafórica (forma remissiva) apenas substitui seu antecedente.
Assim, em uma “Breve visita às dez classes de palavras”, o autor define os
68
substantivos como “palavras para dar nome a todos os seres [...], ações [...], estados
[...], sentimentos [...] e assim por diante” (FARACO, Id.: 284), não salientando a
função textual-discursiva dessa categoria gramatical.
De maneira semelhante, estrutura-se a unidade que, em Abaurre et alii
(2005), versa sobre os adjetivos. Apesar de se afirmar que “O adjetivo, quando
empregado junto a um substantivo, amplia, limita ou precisa o seu sentido”
(ABAURRE et alii, Id.: 103), não se explicita a principal função dessas expressões
especificadoras quando empregadas em sintagmas coesivos: contribuir para a
(re)categorização do objeto de discurso por elas determinado, evidenciando a
opinião do autor do texto. Novamente, é apenas na interpretação de textos
presentes em exercícios propostos pelos compêndios que, indiretamente, se
demonstra essa função. Faraco (2003), no que diz respeito aos processos
referenciais, nada menciona sobre o papel coesivo-argumentativo dos adjetivos.
A imposição do padrão-culto, atrelada a classificações, norteia, em Abaurre et
alii (2005), a descrição dos artigos e dos numerais. Faraco (Id.: 289), por sua vez,
descreve o papel dos artigos como formas de coesão, explicitando que o artigo
definido pode sinalizar referência a um ser conhecido pelos interlocutores ou
mencionado na superfície textual. Em ambas as obras, a descrição dos advérbios
não contempla a função coesiva dessa categoria gramatical.
Quanto aos pronomes, também se delineiam abordagens pouco
aprofundadas. Embora, como dissemos, os pronomes possam atuar como formas
de introdução ou de manutenção referencial, Abaurre et alii (2005) apontam, apenas,
a função de substituição (re-ativação) como na definição dos pronomes relativos,
em que afirmam: “são relativos aqueles pronomes que fazem referência a algum
elemento anteriormente mencionado no texto, considerado seu antecedente, com o
qual estabelecem uma relação de natureza anafórica” [grifo das autoras] (ABAURRE
et alii, Id.: 124) sem que se proponham atividades sobre a construção desses elos
referenciais.
Por sua vez, Faraco (2003: 290) indica que os pronomes relativos “funcionam
como elementos de conexão entre um elemento substantivo (o chamado
antecedente) e uma oração”, mas não aprofunda, mesmo nos exercícios que
propõe, o papel coesivo desse tipo de pronome.
Se, por meio da definição apresentada acima, poderíamos, inicialmente,
pensar que a propriedade de conectar sequências e elementos textuais é
69
exclusividade dos pronomes relativos, Faraco (Id.: 290-291) salienta, por meio de
exemplos, que outros pronomes podem funcionar como “substitutos de
substantivos”, consistindo em “um elemento precioso na organização da língua”.
Encontramos, assim, no capítulo 26, a descrição do “uso coesivo do pronome
demonstrativo”, em que se afirma que esses itens gramaticais “permitem que
façamos nova referência a assuntos tratados sem precisar repeti-los” (FARACO,
Id.: 414). Convém relembrar, entretanto, que, ao contrário do que essa observação
possa sugerir, a repetição não representa, necessariamente, um problema textual.
Outra ressalva que poderíamos fazer em relação aos “apontamentos sobre os
pronomes demonstrativos” reside no fato de o autor apresentar a alternância entre
as formas remissivas anafóricas “este(a)(s)” e “aquele(a)(s)” como uma “distinção
artificial” como comprovamos na análise do trecho que se segue (FARACO, Id.:
415):
Embora concordemos que, principalmente na modalidade oral do Português
do Brasil, a oposição entre os pronomes demonstrativos “esse(a)(s)” e “este(a)(s)” se
70
neutralize, questionamos: independentemente de aspectos normativos, a utilização
desses pronomes não representaria, principalmente, na escrita formal, um
importante recurso coesivo, por meio do qual se elimina a ambiguidade referencial?
Paralelamente, a oposição entre os demonstrativos neutros “isso” e “isto não
contribui para a sinalização dos movimentos anafóricos e catafóricos,
respectivamente?
Dessa maneira, em que medida podemos considerar que “o único [grifo
nosso] caso na escrita em que a distinção este/esse seja efetivamente produtiva” é a
construção de uma correspondência oficial “em que a instituição que fala se
identifica sempre com o pronome este e identifica seu interlocutor com o pronome
esse” [grifos do autor] (FARACO, Id.: 416)?
Concluímos, assim, que, apesar de, no Manual do Professor, se definir, como
um dos objetivos centrais desse capítulo, “mostrar aos/as alunos/as como varia o
tamanho e a função semântica e/ou sintática das diferentes classes” (FARACO, Id.:
28), a sistematização teórica e as propostas de análise (descontextualizadas)
privilegiam, quando se menciona a função coesiva de formas, a superfície textual.
Analisando ambas as obras no que se refere aos capítulos/seções sobre
coesão textual, percebemos, inicialmente, que Abaurre et alii (2005), após
sublinharem a importância da relação entre as partes de um texto na construção do
sentido, constroem o conceito de coesão textual e, desse modo, indicam as
principais estratégias de coesão referencial. A comparação feita entre a
referenciação endofórica, realizada pelos processos de anáfora e catáfora, e placas
de trânsito representa uma estratégia para que se explicite a progressão textual,
como verificamos no trecho abaixo.
Imagine que as palavras responsáveis pelo estabelecimento da coesão
textual formem um interessante sistema de direcionamento e controle da
leitura de um texto. Da mesma forma que determinadas placas de trânsito
nos orientam a seguir em frente, virar à direita ou à esquerda, podemos,
como usuários da língua, utilizar palavras conhecidas de todos os demais
usuários da mesma língua para determinar se, no momento da leitura de um
texto, eles devem prosseguir raciocinando como vinham fazendo [...], se
devem voltar atrás para recuperar algo que foi dito, se devem considerar
que a linha de raciocínio vai mudar de direção e assim por diante.
(ABAURRE et alii, Id., Ibid.)
71
Junto a essa comparação, as ilustrações são representações gráficas que,
longe de consistirem em meros adornos, contribuem para o desenvolvimento dos
conteúdos em questão o que podemos verificar a partir desta ilustração
(ABAURRE et alii, Id.: 135):
Tendo apresentado os “nós linguísticos”, as autoras optam por indicar três
“tipos” de coesão: i) coesão referencial, que “manifesta-se através da anáfora e da
catáfora”; ii) coesão lexical, “efeito obtido pela seleção de vocabulário”; e iii) coesão
sequencial, “garantida por procedimentos linguísticos que estabelecem relações de
sentido entre segmentos do texto (enunciados ou partes deles, parágrafos e mesmo
sequências textuais)” (cf. ABAURRE et alii, Id.: 137-139).
Dentre os diversos recursos utilizados na criação de cadeias co-referenciais,
o livro apresenta, em conceitos e exemplos, a substituição por elementos
gramaticais, como os pronomes, e pela elipse. No entanto, alguns exercícios que
tratam da coesão referencial e da coesão lexical privilegiam a identificação dos
referentes textuais, solicitando, por exemplo, que os alunos apontem os movimentos
de anáfora e catáfora por meio de setas – tal qual placas de trânsito –, como
observamos nesta análise do texto “Terra de liberdade” (ABAURRE et alii, Id.: 136):
72
Como em outras obras analisadas, poucos são os exercícios que exploram,
ainda que de maneira o sistematizada, os efeitos de sentido obtidos a partir da
seleção de formas remissivas o que verificamos no exemplo abaixo (ABAURRE et
alii, Id.: 140):
73
Quanto ao livro de Faraco (2003), apesar de o tema ser importante para o que
a obra propõe, não um capítulo sobre a coesão textual. Entretanto, no capítulo
15, o autor descreve a organização das reportagens, fazendo menção aos
mecanismos coesivos. Nesse capítulo, apresenta-se o texto “Charada no Cafundó”,
que trata de uma comunidade do interior do país cujos indivíduos utilizam
expressões de uma língua de origem africana. Na seção “Estudo do texto”, após a
proposta de analisar a distribuição das informações em parágrafos, evidenciando o
planejamento e a progressão temática do texto, surge a seguinte questão:
Cada parágrafo esamarrado ao(s) anteriore(s) por meio de expressões
que retornam assuntos já tratados. Para verificar isso, percorra o texto,
observando – por exemplo – que expressões são usadas, nos diversos
parágrafos, para fazer referência ao lugarejo de Cafundó, dos habitantes do
local, à língua de origem africana que ali se fala. (FARACO, Id.: 217)
Nesse sentido, o exercício solicita que o aluno-leitor localize as expressões
referenciais anafóricas por meio das quais se constroem imagens de objetos de
discurso. Embora, a partir dessa atividade, se possa evidenciar, dentre outros
aspectos, o ponto de vista do autor da reportagem, que imprime, no texto,
representações dos referentes em destaque, nenhuma observação é feita em
relação a esse movimento argumentativo. Paralelamente, não se relaciona o
emprego dessas formas de manutenção tópica à organização dos parágrafos. O
exercício, portanto, pouco contribui para a compreensão de que as formas nominais
são, em grande parte, responsáveis pela (re)categorização dos objetos de discurso,
realizada a partir de conhecimentos partilhados entre os interlocutores e ativados
durante o jogo enunciativo.
De forma semelhante, nesse mesmo capítulo, apresentam-se questões para a
reflexão e a análise do texto “A hora do lobo”. Dentre as atividades propostas,
destacamos, inicialmente, o item 2, que, precedido por questionamentos acerca da
temática central da reportagem, convida-nos ao exame da organização desse texto
jornalístico. Assim, após destacar a distribuição sequencial das informações
presentes no cotexto linguístico, dividindo a reportagem em introdução,
desenvolvimento e conclusão, o aluno passa à observação das formas referenciais,
respondendo à questão que se segue (FARACO, Id.: 221):
74
Desse modo, embora, se comparadas aos livros anteriores, essas duas obras
descrevam, com maior profundidade, o papel textual-discursivo de formas da
gramática, identificamos, na análise desses dois compêndios, um trabalho de leitura
que se limita à superfície do texto, pois não consideram as relações semânticas e os
recursos persuasivos no processo de referenciação e focalizam a identificação de
itens anafóricos e catafóricos. Nesse sentido, apesar de fixar o texto como o objeto
linguístico central dos conteúdos focalizados, as obras analisadas nesta seção se
destacariam por uma abordagem que se restringe aos elementos do entorno verbal
(cotexto), desconsiderando aspectos interacionais e cognitivos, que também
participam na construção do sentido do texto, e sugerindo, assim, que o texto é uma
simples sucessão de frases e elementos interconectados.
75
4.3.3 A abordagem da referenciação como um processo além do entorno
verbal
No que tange ao tratamento da referenciação, destacamos estes principais
traços da obra Língua Portuguesa: Projeto Escola e Cidadania para Todos (LOPES
et alii, 2005), que a particularizam frente às demais: i) uma aproximação mais
estreita entre o estudo de aspectos linguísticos e a análise e produção de textos
(literários e não-literários); e ii) uma descrição mais aprofundada da funcionalidade
de classes de palavras, da repetição e da elipse.
Apesar de, no item 4.2, termos demonstrado que esse compêndio se articula
em módulos que privilegiam ora conteúdos gramaticais, ora os textos literários, ora
as propriedades textuais, verificamos a inexistência de módulos que tratem, em
específico, das categorias gramaticais e dos processos morfossintáticos referenciais.
Desse modo, focalizaremos o módulo intitulado “Falando de textos”, no qual se
discutem a coerência e a coesão textual.
Inicialmente, os atores definem coerência como a construção do sentido feita
pelos interlocutores, inseridos em situações reais. Em seguida, visando a um
aprofundamento desse conceito, passam ao exame de uma carta comercial, na qual
assinalam e comentam “todas as incorreções e problemas [de organização e
coerência do texto]” (LOPES et alii, Id.: 157). A partir dessa análise, pontuam os
“fatores que permitem coerência”: i) a utilização adequada da gramática de uma
língua, ii) o conhecimento de mundo compartilhado por emissor e receptor, iii) o tipo
(ou gênero) de texto, iv) a argumentação, v) a escolha lexical, vi) a variante
linguística e vii) a intertextualidade.
Notamos, portanto, que o livro não limita a compreensão da coerência textual
a aspectos da superfície textual. No entanto, se compreendermos a coerência como
o resultado da integração de elementos linguísticos, pragmáticos e situacionais,
como não inserir, dentre os seus fatores, as estratégias de coesão textual? Afinal, se
a coerência é uma espécie de “ligação ou harmonia entre situações, acontecimentos
ou idéias; relação harmônica; conexão, nexo, lógica” (LOPES et alii, 2005: 154),
parece lógico que também os mecanismos coesivos são formas de construir a
coerência. Paralelamente, questionamos: “a utilização adequada da gramática”
(LOPES et alii, Id.: 160), apontada como um dos fatores de coerência, não
consistiria, em grande parte, na utilização de recursos coesivos?
76
Apesar de a sistematização desses “fatores que permitem a coerência” poder
merecer uma nova organização, esse módulo busca aproximar a gramática
normativa às construções textuais, explicitando que, a partir de desvios de norma
padrão, “podemos incorrer em uma série de inadequações, a ponto de romper a
unidade [...] e quebrar a coerência” (LOPES et alii, Id.: 157). Ademais, embora o
estudo acerca da coesão textual somente seja realizado no módulo seguinte
(portanto, dissociado, espacialmente, da construção do conceito de coerência), há,
na apresentação dos conteúdos, a constante preocupação em relacionar esses dois
temas.
Evidenciando como as estratégias de coesão contribuem para a coerência do
texto, o módulo que trata dos elos textuais se abre com a seção “Coesão e
coerência”. Assim, ao mesmo tempo em que se diferencia a coesão da coerência,
explicitando que aquela é realizada por meio de elementos linguísticos
“manifestados [explícitos] no texto”, sublinha-se que
ao lado da coerência, a coesão corresponde ao emprego de determinados
elementos da língua que garantem a textualidade, ou seja, é [igualmente]
responsável pela boa formação de um texto, tornando-o compreensível
[grifo nosso] (LOPES et alii, Id.: 178-179).
Há de se destacar, porém, como já explicitamos no início do capítulo três, que
o emprego de elementos coesivos não garante a unidade textual: consiste em um
recurso linguístico que auxilia na tessitura (conexão) do texto, mas, sua utilização
(insistimos) não é nem suficiente, nem essencial. Em segundo lugar, a partir da
citação em destaque, inserem-se a coesão e a coerência textuais dentro dos fatores
de textualidade, ao mesmo tempo em que se retomam, por meio de um box
explicativo (LOPES et alii, 2005: 178), os chamados fatores de coerência o que
poderia sugerir que as expressões “coerência” e “textualidade” são sinônimas.
Mediante a construção do conceito de coesão textual, o livro reproduz uma
notícia de jornal em que “alguns elementos de coesão não foram bem utilizados”
(LOPES et alii, Id.: 179), conforme se observa abaixo.
77
Segundo os autores, a segunda ocorrência do pronome pessoal “ele”, com
função anafórica, no início do quarto parágrafo, representa um caso de ambiguidade
referencial, isto é, uma construção em que uma forma de manutenção referencial,
gramaticalmente, apontaria para dois objetos de discurso. Se observamos, contudo,
o entorno verbal (as demais informação presentes no cotexto, que contribuem para a
construção da categorização dos objetos de discurso), veremos que, na verdade,
não no texto tal ambiguidade. Isso porque, na notícia, apontam-se dois
personagens (referentes textuais) de gênero masculino, candidatos à ativação pelo
pronome “ele”: o padre, que morreu no acidente de trânsito, e o motorista, que teve
ferimentos leves. Logo, se, no início do último parágrafo, se afirma que o objeto de
discurso foi enterrado, o pronome “ele” só pode se referir ao padre.
A seguir, os autores subdividem os mecanismos de coesão textual em coesão
por retomada gramatical, retomada lexical e retomada por elipse. Embora essa não
seja a principal preocupação do capítulo, a divisão teórica realizada poderia sob a
luz da teoria linguística especializada (incluindo KOCH, [1989] 2007) ser
considerada errônea e/ou pouco econômica. Se compreendermos que a coesão por
retomada gramatical se realiza “por meio das chamadas palavras gramaticais,
estejam elas explicitadas (aparecendo nos textos) ou ocultas” (LOPES et alii, 2005:
183), a elipse (construção morfossintática obtida a partir da relação da desinência
verbal número-pessoal e o referente mencionado no cotexto) é mais uma
estratégia de retomada gramatical e não um mecanismo à parte.
78
Igualmente merece destaque outro “tipo de retomada”, posteriormente
apresentada: a coesão por repetição. Segundo os autores (Id.: 188), esse recurso
coesivo diferencia-se dos demais tão somente pela repetição do núcleo do sintagma
nominal com função anafórica. Novamente, questionamos essa abordagem, pois a
retomada de um objeto de discurso por uma expressão idêntica constitui uma das
estratégias de coesão por retomada lexical; afinal, os substantivos são “palavras
cujo significado está ligado às ações que ocorrem no mundo, aos seres reais e
imaginativos do mundo”, tendo “significado próprio” (LOPES et alii, Id.: 183).
A apresentação de conceitos e a realização de exercícios de leitura e
produção desta coleção o estruturadas a partir de um texto-base (não artificial),
correspondente a um gênero textual, cujas características formais e função social
são evidenciadas. É assim que, a partir da crônica “Ana Dragão” (LOPES et alii,
2005: 181), reproduzida a seguir, propõe-se o estudo da “coesão específica das
histórias”. Trata-se de uma exploração textual em que se destacam os pronomes
com função anafórica (“minha”, “seus”, “ela”, dentre outros), que re-ativam os
objetos-personagens da narrativa: Ana Dragão e o narrador-personagem.
79
Desse modo, reafirma-se a importância dos pronomes na construção de
cadeias correferenciais e aponta-se a elipse como outro recurso gramatical de
coesão, como se explicita no box abaixo (LOPES et alii, Id.: 183):
Entretanto, apesar do aprofundamento dado às exposições teóricas, as
atividades, por vezes, propõem um trabalho superficial da forma e do conteúdo do
texto, como no exercício que se segue (LOPES et alii, Id.: 184), no qual o aluno é
levado a “localizar”, no texto, os pronomes coesivos e, em seguida, copiá-los em seu
caderno. Essa é, portanto, uma atividade que se limita à identificação dos elementos
cotextuais, sem que se faça qualquer associação à construção da reportagem.
80
Essas lacunas, contudo, o tornam o livro desmerecedor de crédito. Ao
contrário, advogamos que o compêndio representa um trabalho consistente no que
se refere à utilização de unidades linguísticas na produção de efeitos de sentido.
Dessa forma, ao descrever estratégias de retomada lexical, a obra salienta a
importância do valor predicativo/qualificador dos substantivos e adjetivos utilizados
como formas remissivas. Retomando a crônica, demonstra-se que as expressões
qualificadoras “um comentado mito de força e persistência, o terror admirado da
favela em que morava, viúva de bandido morto com dezesseis tiros e muitas
facadas”, que exercem a função sintática de predicativo do sujeito, apontam, no
primeiro parágrafo do texto, “o perfil de Ana e revelam o modo como a personagem
é vista (e comentada)” (LOPES et alii, Id.: 185). Sugere-se, assim, que a construção
dos referentes textuais é um processo dinâmico, criativo e compartilhado entre os
interlocutores.
Atrelado a isso, o livro sublinha a possibilidade de a repetição de sintagmas
consistir em um recurso estilístico-persuasivo produtivo: evidencia-se que, a cada
ocorrência de um mesmo vocábulo, novos traços semânticos são ativados na mente
do interlocutor. Demonstra-se, assim, que “a repetição pode ser produtiva e
interessante como mecanismo de coesão”. Para tal, revisita-se a crônica,
explicando, antes de tudo, que a primeira ocorrência do sintagma nominal “Ana
Dragão” “introduz a personagem no texto” (LOPES et alii, Id.: 188), isto é, funciona
como uma introdução não-ancorada do novo objeto de discurso e, ao mesmo tempo,
como sua primeira categorização (cf. KOCH & ELIAS, 2006; 2009). Em seguida,
assevera-se que se o substantivo com função adjetiva “dragão” poderia evocar,
metaforicamente, diferentes significados sua combinação com outras expressões
cotextuais apontaria caminhos para a interpretação da expressão referencial e,
consequentemente, para a caracterização do objeto de discurso. Desse modo, “O
que interessa ver, nessa retomada por repetição, é que a própria expressão se
alterou durante a leitura do texto e que, se as palavras o as mesmas, o conteúdo
é outro”. Portanto, “Podemos repetir palavras e expressões, desde que a repetição
tenha um propósito de coesão textual, isto é, que sua utilização faça o texto
progredir, que novas informações sejam acrescentadas ao receptor.” (LOPES et alii,
2005: 189).
Além disso, o módulo que trata da coesão textual demonstra a funcionalidade
de classes de palavras (substantivos, adjetivos, pronomes, numerais, artigos e
81
verbos) e de construções morfossintáticas, como a elipse e o paralelismo. Merece
destaque o trecho do enunciado do exercício em que se faz menção ao papel
discursivo dos artigos definidos e indefinidos: “Note que as personagens são
apresentadas por artigos indefinidos e retomadas por artigos definidos[grifo dos
autores] (LOPES et alii, 2005: 184). Muito embora o foco da atividade seja a mera
localização dos artigos que integram sintagmas com função anafórica, na leitura do
texto, pode tornar-se mais evidente o fato de esses vocábulos poderem sinalizar a
dinâmica de informações velhas e novas (tema e rema) conforme descreve Koch
([1989] 2007).
Paralelamente, outra característica do módulo “Falando de textos: coesão” é o
desenvolvimento das noções de continuidade e progressão referenciais e temáticas.
Se, não raro, textos teóricos, manuais de redação e livros didáticos subdividem os
mecanismos de coesão textual em coesão referencial e sequencial, apresentando-
os como processos distintos e não relacionados, nesta obra, destaca-se: “nem só de
retomadas vivem os mecanismos de coesão. Eles também servem para marcar uma
progressão no tempo [...] e a ‘arrumação’ espacial (LOPES et alii, 2005: 90)”. Assim,
o livro demonstra que as estratégias de coesão textual apresentadas estruturam
cadeias correferenciais, contribuindo para a progressão do texto e,
simultaneamente, auxiliam no encadeamento de segmentos textuais (orações,
frases, parágrafos), construindo, a cada retomada, o objeto de discurso. Nesse
sentido, o módulo encerra-se na relação dessas estratégias às formas de coesão
sequencial, agrupadas em: i) sequenciação narrativa, ii) ordenação e sequenciação
espacial, iii) encadeamento argumentativo, iv) sequenciação conversacional e v)
justaposição.
Portanto, a partir dessa análise, verificamos que, não obstante algumas
atividades consistirem em um trabalho superficial do texto, a obra demonstra como
as formas e processos gramaticais podem ser estratégias coesivo-argumentativas
produtivas, explicitando, dessa maneira, que também as formas de sequenciação e
referenciação estão intimamente interligadas.
82
4.4 Aproximando teoria e prática no estudo da referenciação
Realizamos, na seção 4.3, a análise do tratamento da referenciação em livros
didáticos de Língua Portuguesa, por meio da qual observamos diferentes
abordagens: das mais superficiais, que se limitam à superfície do texto, às mais
complexas, em que se demonstra o papel discursivo-argumentativo de formas
coesivas remissivas.
Assim, no que tange à abordagem do processo de referência discursiva,
pontuamos, em nossa análise, lacunas significativas em quatro dos cinco livros
didáticos selecionados, dentre as quais se destacam: i) a dissociação entre a coesão
(em especial, a construção dos referentes discursivos) e os conteúdos relacionados
à gramática, isto é, ao sistema linguístico; e ii) a análise de fenômenos textuais
restrita ao cotexto, desconsiderando aspectos contextuais e cognitivos que
estruturam e determinam as concretizações linguísticas.
Nesta seção, temos, portanto, como principal meta preencher essas lacunas,
retomando três atividades que, nos capítulos/seções sobre coesão, se revelaram
mais representativas dos problemas que apontamos e, desse modo, ampliando-as,
isto é, apontando caminhos para que esses exercícios possam, de fato, contribuir
para a compreensão do processo de referência discursiva. Nesse sentido,
buscaremos demonstrar como os preceitos teórico-metodológicos dos livros
explicitados no Manual do Professor e construídos sob as recomendações dos PCN
e as contribuições da Linguística Textual poderiam ser, verdadeiramente,
aplicados ao estudo da referenciação, na dinâmica de ensino-aprendizagem do
Ensino Médio.
O primeiro exercício que retomamos (FARACO, 2003: 221) limita-se, como
vimos, à localização, na superfície do texto, dos antecedentes a que se referem às
formas de manutenção referencial destacadas. Tal “rastreamento” dos elementos
“que servem para costurar o texto” pode explicitar a importância das cadeias
correferenciais para a construção da unidade textual.
83
No entanto, considerando a multiplicidade de formas de re-ativação
referencial destacadas no parágrafo-modelo, analisado pelo autor do compêndio,
poderíamos propomos, em primeiro lugar, o estudo dos efeitos cognitivo-discursivos
dessas formas de direta. Em outras palavras, sublinharíamos a relevância de
sublinhar os efeitos de sentido gerados a partir da seleção de diferentes elementos
gramaticais e lexicais empregados na estruturação de cadeias correferenciais.
Nesse sentido, destacaríamos a construção, nesse parágrafo, da imagem
para o objeto de discurso “lobo guará”. Inicialmente, ele é re-ativado, pelo
hiperônimo “bicho”, que o insere em uma categoria mais ampla, atualizando o
conhecimento do interlocutor. Observaríamos, posteriormente, além da forma
pronominal “seu”, as elipses, nas quais a desinência número-pessoal dos verbos
“fosse”, “mastigue” e “engula” aponta um referente de pessoa do singular. Em
seguida, o referente discursivo é refocalizado por meio da expressão nominal “o
maior canídeo da América do Sul”, a qual veicula uma especificação de traços do
animal, funcionando como uma paráfrase anafórica definicional. Notaríamos,
finalmente, as remissões anafóricas construídas pelo pronome relativo “que” e pelo
possessivo “seu”.
Ultrapassando a identificação dessas formas de manutenção referenciais,
poderíamos verificar que elas, relacionadas ao conteúdo proposicional dos
enunciados em que se inserem, possuem uma função preditiva, que colabora para o
84
movimento argumentativo do texto: tais estratégias de recategorização sublinham o
traço de selvageria do referente “lobo guará”, que contrasta com as marcas de
intervenção do homem no cerrado. Ao serem incorporados, pelas estratégias de
remissão direta, novos traços semânticos a esse objeto discursivo, sublinha-se,
portanto, um confronto de espaços/vivências: o habitat do lobo e o alojamento dos
funcionários do IBAMA.
Ratificaríamos, desse modo, a ideia de que as anáforas não são meras
substituições de um antecedente, uma vez que os elementos empregados na cadeia
correferencial o possuem mesma identidade significação; logo, a cada re-ativação
do referente, novos traços semânticos lhe vão sendo agregados, e ele se
reconfigura.
Em segundo lugar, poderíamos nos valer da identificação das expressões
nominais anafóricas para demonstrar as marcas formais que sinalizam o equilíbrio
entre informações novas e velhas. Dessa maneira, destacaríamos que, nesse
parágrafo, o objeto de discurso focalizado acima é introduzido pelo sintagma
nominal um lobo-guará”, que, com informação nova, estrutura-se a partir de um
artigo indefinido. Em seguida, observaríamos que a forma remissiva “bicho” é
determinada pelo artigo definido “o” por se tratar de uma informação dada.
Outro fenômeno acerca da referenciação que, pela exploração linguística do
parágrafo, poderíamos evidenciar seria a importância dos encapsulamentos na
organização do texto. Observaríamos, assim, uma forma particular de remissão e,
simultaneamente, de introdução referencial: o emprego da expressão nominal “A
cena”, que enceta o quarto período do parágrafo. A forma lexical sumariza o
conteúdo de segmentos textuais precedentes (nesse caso, a descrição de como o
lobo-guará procura, sofregamente, restos de comida em uma lixeira) e, ao mesmo
tempo, transforma essa informação em um novo objeto discursivo – caracterizando o
que, teoricamente, intitulamos “rótulo retrospectivo”, um encapsulamento anafórico
estruturado por um sintagma nominal. Veríamos, além disso, que, assim como o
sintagma nominal “o bicho”, essa expressão insere-se no início do período o que
evidencia sua função na organização do discurso: um novo tópico é introjetado, mas
ele está associado ao anterior.
Poderíamos, ainda, pontuar a introdução de novos referentes textuais por
meio das anáforas indiretas. Observando, por exemplo, o trecho “atraído pelo cheiro
de comida e pelo tilintar de talheres e panelas”, verificaríamos que os referentes
85
“talheres” e “panelas” estão associados ao sintagma nominal “comida”, que lhes
serve de âncora. Isso porque, por nossa memória episódica, relacionamos a ação de
comer à utilização desses utensílios. Salientaríamos, assim, que o processo de
ativação referencial, não raro, se realiza por associações semântico-conceituais, que
integram nosso modelo cognitivo.
Apresentamos, agora, o segundo exercício que revisitamos (LOPES et alii,
2005: 184), cuja proposta se aproxima da questão anterior, pois visa à localização (e
transcrição) das formas gramaticais com função anafórica. Investigando, contudo, a
tessitura da reportagem a ser analisada, observamos que, paralelamente ao uso dos
pronomes, revela-se importantíssima, na construção da coesão, a relação entre
tema (a base comunicação; aquilo de que se fala) e rema (o cerne da contribuição;
aquilo que se fala sobre o tema).
Ao constatar que, a partir do segundo período, temos, no início de cada frase,
diferentes forma de re-ativação referencial, poderíamos enfatizar elas fazem
remissão a um comentário (precedente) e, ao mesmo tempo, funcionam como tópico
de frase que encabeçam. Enfatizando que o texto não se constrói, apenas, pela
soma de informações novas, mas também pela retomada de elementos e conceitos
presentes no co(n)texto discursivo, demonstraríamos que as formas remissivas “A
ideia”, “Ela”, “alguns” e “o produto” contribuem, simultaneamente, para a
manutenção e progressão temática e, assim, para a organização macroestrutural do
texto. Poderíamos, ainda, indicar que, como marcas textuais, essas expressões
sinalizam uma progressão temática linear, em que “o rema de um enunciado passa
86
a tema do enunciado seguinte, o rema deste passa a tema do seguinte, e assim
sucessivamente” (KOCH & ELIAS, 2006: 161-162).
Concluiremos esta seção, destacando o exercício abaixo (TERRA & NICOLA,
2004: 53), a partir do qual se objetiva a construção do conceito de coesão textual.
Como vimos na análise do compêndio em que se encontra a atividade, pede-
se o apontamento da função de formas pronominais na construção de cadeias
correferenciais. No entanto, nada se questiona sobre o papel cognitivo-
argumentativo das formas nominais que contribuem, diretamente, para a
argumentação da resenha. Diante dessa constatação, poderíamos destacar um
paralelismo na construção das imagens de dois objetos discursivos, que reforça a
avaliação do autor da resenha para o longa-metragem: a história (medíocre) que
estrutura o filme e o trabalho (admirável) do ator que o protagoniza.
Nesse sentido, por um lado, explicitaríamos que, no título, o substantivo
“melodrama” estrutura uma remissão catafórica e, ao mesmo tempo, atua como uma
primeira categorização do filme ao qual se direcionam as críticas que compõem o
texto; a forma nominal funciona, portanto, como uma antecipação do objeto de
discurso “Uma lição de amor” e evidencia o olhar do autor para a película. Em
seguida, veríamos a forma anafórica “esse drama familiar-judiciário”, que aponta o
mote/tema do filme e a expressão “filmes medianos”, a partir da qual se insere o
87
longa-metragem em um conjunto de narrativas medíocres. Verificaríamos, ainda,
que a subjetividade do jornalista da revista Época torna-se ainda mais evidente no
emprego do sintagma nominal “melodrama feito para arrancar lágrimas”, cujo núcleo
reitera o substantivo presente no título, reforçando a categorização do objeto
discursivo, e, junto aos determinantes, que restringem seu sentido, intensifica/amplia
a imagem do filme.
Por outro, observaríamos expressões que exaltam, positivamente, a atuação
de Sean Penn. Desse modo, destacaríamos, em primeiro lugar, a forma “bons
atores”, categoria da qual, segundo o jornalista, participa o artista. Posteriormente,
notaríamos os sintagmas nominais “seu minucioso trabalho” e “a força do ator”, que
condecoram “seu rendimento” na construção de sua personagem.
Portanto, poderíamos reforçar, no confronto dessas representações, o
pressuposto de que a construção dos referentes textuais é um processo dinâmico e
criativo, necessariamente vinculado ao projeto de dizer do autor do texto. Assim,
demonstraríamos que, no texto, são fabricadas imagens possíveis para os objetos
de discurso e refletiríamos sobre o sentido do conceito de “verdade” e “realidade”.
88
5.
C
ONCLUSÃO
Em consonância com os estudos da atual fase da Linguística Textual, ciência
pela qual desenvolvemos esta pesquisa, compreende-se que a linguagem é um
constructo social e, ao mesmo tempo, construtora de conhecimentos e de
identidades. É, pois, a palavra que nos define e nos faz conhecer e significar o
mundo.
Se nos relacionamos pela linguagem, nela deixamos marcas da interação. Em
outras palavras, o “dizer”, sempre determinado por suas condições de produção,
deixa no “dito“pistas” que indicam por que o texto foi produzido. Desse modo, o
enunciador não está no texto, mas deixa suas marcas na expressão do conteúdo
veiculado. Há, pois, em todo texto, um movimento argumentativo.
Nesse sentido, o estudo do processo de referenciação revela-se um tema de
fundamental importância para a compreensão não da dinâmica de negociação de
sentido, mas também dos processos coesivo-argumentativos do texto. Adotando
uma perspectiva não referencialista da linguagem, verifica-se que, pelo e no
discurso, construímos imagens para os elementos do real.
A partir desses pressupostos teóricos, investigamos o tratamento da
referência discursiva nos cinco livros didáticos do Ensino Médio selecionados como
corpus deste trabalho, verificando a existência de associações entre a análise de
categorias e processos gramaticais e a construção sociocognitiva de objetos de
discurso. Nossa análise revelou que, mesmo os livros apontados pelas resenhas do
Catálogo do Programa Nacional do Livro Didático do Ensino Médio (BRASIL, 2008)
e pelo levantamento preliminar de Tupper, Gonçalo & Côrtes (2009) como
instrumentos relevantes para o estudo da coesão textual, apresentam abordagens
pouco aprofundadas ou claras no que tange à referenciação.
Desse modo, constatamos, inicialmente, que as obras Português
Linguagens e Português de olho no mundo do trabalho seriam marcadas por uma
dissociação entre o estudo das regularidades textuais e os conteúdos gramaticais,
cuja apresentação privilegia, nesses compêndios, a imposição da norma padrão e a
fixação de nomenclaturas gramaticais. Assim, não obstante diversas pesquisas
apontarem a inocuidade do ensino de regras gramaticais desarticuladas de seus
efetivos contextos de uso, nessas duas coleções, não se tecem relações entre as
89
estratégias de referenciação e os tópicos gramaticais, como, por exemplo, a
sistematização das classes de palavras o que contribui para a manutenção do
modelo tradicional de ensino-aprendizagem, desenvolvido por meio da fragmentação
de conteúdos.
Verificamos, em seguida, que as coleções Português: Língua, Literatura,
Produção de textos e Português Língua e Cultura, embora teçam algumas
relações entre os elementos e processos gramaticais e as formas de conexão
textual, se caracterizam por uma abordagem da coesão restrita à superfície do texto.
Nessa perspectiva, desconsidera-se, portanto, o caráter interacional da linguagem,
uma vez que os aspectos concernentes à cena discursiva e a própria função de
cada concretização discursiva deixam de ser contemplados, compreendo o texto
como uma mera sequência de frases conectadas.
Observamos, assim, que essas abordagens de estudo da coesão textual
veiculam-se às concepções teóricas que caracterizam as duas primeiras fases da
Linguística do Texto, pouco aludindo ao processo de construção (dialética) de
representações para os referentes textuais. Nesse sentido, embora as obras
explicitem, no Manual do Professor, as recomendações dos PCN e os postulados
teóricos de pesquisas desenvolvidas sob uma perspectiva sociocognitiva-
interacional, na estruturação de seus capítulos/seções, tais contribuições parecem
ter sido abandonadas.
No entanto, identificamos, no livro Língua Portuguesa: Projeto escola e
cidadania para todos, uma abordagem processual da construção referencial, que, se
comparada às outras obras, poderia ser considerada mais próxima à exposição
teórica das estruturas linguísticas. Apesar de também apresentar limitações (como,
por exemplos, exercícios que focalizam apenas a identificação do referente), o
compêndio destaca-se dos demais por descrever, com profundidade, as formas de
referenciação, demonstrando como, além da elipse e da repetição, as diversas
classes de palavras podem ser instrumentos de coesão e de persuasão, refletindo,
mais diretamente, os estudos linguísticos recentes.
Finalmente, tendo em vista as lacunas da abordagem da referenciação nos
manuais analisados, retomamos alguns exercícios, a fim de demonstrar como as
atividades poderiam ser ampliadas, contribuindo mais significativamente para a
compreensão não da dinâmica de introdução e manutenção de objetos
discursivos, mas também dos efeitos coesivo-argumentativos obtidos pelas
90
estratégias de referenciação. Portanto, de acordo com as diretrizes dos PCN e com
os postulados teóricos da terceira fase da Linguística Textual, procuramos articular a
teoria acerca da referenciação à construção de atividades contextualizadas e
interdisciplinares, a partir das quais as formas linguísticas em especial, as classes
de palavras sejam compreendidas como recursos linguísticos de conexão e
persuasão.
Retomando um de nossos questionamentos que motivou a feitura deste
trabalho, verificamos que também as lacunas dos manuais didáticos poderiam
justificar os insucessos no processo de ensino-aprendizagem. No entanto,
destacamos o papel do professor na utilização e (re)significação desse instrumento
de mediação do conhecimento. Assim como pudemos enxergar limitações teórico-
metodológicas na estruturação dos livros analisados e, desse modo, buscar superá-
las, também outros professores não poderiam refletir, criticamente, sobre o material
que utilizam em suas práticas de construção do conhecimento? Parece-nos, nesse
sentido, que os problemas (sempre presentes) das obras didáticas podem ser
ultrapassados por uma formação sólida e constante atualização dos docentes.
Ratificando tal posicionamento, nos lembra Marcuschi (2005: 49): “possivelmente, o
maior problema hoje no ensino esteja muito mais na fraqueza dos recursos humanos
que na miséria dos materiais didáticos”.
Desse modo, compreendemos que os livros didáticos não devem representar
uma estrada única para a construção do conhecimento: cabe ao professor saber
adequar esse instrumento didático à realidade de seus alunos, conduzindo sua
prática a partir de um constante re-pensar. Nesse sentido, nós, professores, –
mesmo frente às limitações de tempo para investir em nossa formação, geradas,
principalmente, por baixos salários somos convidados a refletir sobre a
proficuidade dos materiais que adotamos e a buscar novas estratégias de mediação
do conhecimento.
Nesse sentido, queremos acreditar que a análise dos livros didáticos realizada
nesta pesquisa poderá servir como motivação para dar vida a novas práticas de
leitura e de produção textual, a partir das quais os alunos aprenderão a dominar os
próprios instrumentos do conhecimento e, assim, a posicionar-se criticamente.
91
R
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L
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