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A INSUBMISSÃO NARRATIVA DE HORTO DE MÁGOAS, DE
GONZAGA DUQUE
Liliane Machado
Tese de Doutorado submetida ao Programa
de Pós-Graduação em Letras Vernáculas
da Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de
Doutor em Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira)
Orientador: Prof. Doutor Wellington de
Almeida Santos
Rio de Janeiro
Agosto de 2010
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A insubmissão narrativa de Horto de mágoas, de Gonzaga Duque
Liliane Machado
Orientador: Professor Doutor Wellington de Almeida Santos
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas
(Literatura Brasileira).
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Wellington de Almeida Santos
_________________________________________________
Prof. Doutor Alcmeno Bastos – PPG Letras Vernáculas - UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes PPG Ciência da Literatura
UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor Sérgio Fuzeira Martagão Gesteira – PPG Letras Vernáculas – UFRJ
_________________________________________________
Profa. Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins – PPG Ciência da Literatura - UFRJ
__________________________________________________
Prof. Doutor Godofredo de Oliveira Neto – PPG Letras Vernáculas – UFRJ -
Suplente
__________________________________________________
Prof. Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho PPG Ciência da Literatura UFRJ
– Suplente
Rio de Janeiro
Agosto de 2010
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A Júlia e a Pedro,
companheiros de vida.
Agradecimentos
Ao meu orientador Professor Wellington de Almeida
Santos por me apresentar aos contos de Horto de mágoas,
de Gonzaga Duque, e por me conduzir por este trabalho com
as mãos da delicadeza e da segurança.
Aos meus pais Anna e Josino por nunca me negarem
auxílio, de que natureza fosse.
À minha amiga Professora Marilena Neiva, pela paciência
em me ouvir, pela dedicação fraterna e pela competência com
que atendeu aos meus muitos pedidos.
Ao Prof. Doutor Agostinho Dias Carneiro, pela gentileza
da ajuda.
Aos meus colegas do
Colégio Pedro II
e do
Colégio Santo
Agostinho, pela solidariedade e pelo companheirismo.
Machado, Liliane.
A insubmissão narrativa de Horto de mágoas, de Gonzaga Duque/ Liliane
Machado - Rio de Janeiro: UFRJ/ Fac. de Letras, 2010.
x, 205f.: il.; 31 cm.
Orientador: Wellington de Almeida Santos
Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/
Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira),
2010.
Referências Bibliográficas: f. 199-205.
1. Literatura Brasileira. 2. Simbolismo. 3. Decadentismo. 4. Gonzaga
Duque. 5. Narrativa insólita. 6. Belle Époque carioca. I. Santos, Wellington de
Almeida. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas
(Literatura Brasileira). III. A insubmissão narrativa de Horto de mágoas, de
Gonzaga Duque.
RESUMO
A INSUBIMISSÃO NARRATIVA DE HORTO DE MÁGOAS,
DE GONZAGA DUQUE
Liliane Machado
Orientador: Prof. Doutor Wellington de Almeida Santos
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira)
Os contos de Horto de mágoas (1914), de Gonzaga Duque, mantêm
complexas relações estéticas com o campo artístico da Belle Époque brasileira.
Em um contexto marcado pelo domínio das narrativas de viés realista/naturalista
o dos anos iniciais do século XX, no Rio de Janeiro constituem obra
dissonante do cânone, construindo uma poética particular, vinculada ao
Simbolismo/Decadentismo e marcada por elementos insólitos. Tal dissonância
manifesta-se, sobretudo, no ceticismo diante da abrangência do conhecimento
positivista, levando ao questionamento da relação do sujeito e da própria
literatura com o mundo moderno, erigido pela ciência e pela tecnologia.
Palavras-chave: Horto de mágoas, Gonzaga Duque, Simbolismo/Decadentismo, narrativa
insólita, Belle Époque brasileira
Rio de Janeiro
Agosto de 2010
ABSTRACT
THE NARRATIVE UNSUBMISSIVENESS IN HORTO DE MÁGOAS
BY GONZAGA DUQUE
Liliane Machado
Orientador: Prof. Doutor Wellington de Almeida Santos
Abstract of Doctoral Dissertation submitted to the Graduate Program in Vernacular
Literature, Federal University of Rio de Janeiro UFRJ, as part of the requirements for
obtaining a Ph. D. in Vernacular Literature (Brasilian Literature).
The tales of Horto de mágoas (1914), written by Gonzaga Duque,
describe complex elegant relationship with the artistic field of the Brazilian Belle
Époque. In a context appointed by the domain of narratives of
realistic/naturalistic obliquiness the one from initial years of XX century, in Rio
de Janeiro constitute atypical work of the canon, constructing a particular
poetics, linked to the Simbolism/Decadence and marked by uncommon elements.
This disagreement expresses itself, especially, in the scepticism in front of inclusin
of positivist knowledge, conducting to the question of relation of the subject and
literature itself the modern world, built by science and technology.
Keywords: Horto de mágoas, Gonzaga Duque, Simbolism/Decadence, uncommon
narratives, Brazilian Belle Époque.
Rio de Janeiro
Agosto de 2010
RÉSUMÉ
L’INSUBORDINATION NARRATIVE DE HORTO DE MÁGOAS,
DE GONZAGA DUQUE
Liliane Machado
Orientador: Prof. Doutor Wellington de Almeida Santos
Résumé de la thése doctorat présentée au Programme d’études supérieures en littérature
vernaculaire, Université Fédérale de Rio de Janeiro – UFRJ, dans le cadre des exigences
pour l’obtention d’um doctorat em littérature vernaculaire (Littérature Brésilienne).
Dans um contexte littéraire dominé par les narrations de type
realiste/naturaliste les années de la première partie du XXème siècle à Rio
de Janeiro les contes de Horto de mágoas, de Gonzaga Duque, constituent
une oeuvre dissonante, d’une particulière poétique associée au
Simbolisme/Décadentisme et marquée par des éléments insolites. Telles
dissonance se manifeste, surtout, dans le ceticisme face à la puissance du
positivisme, conduisant au questionnement de la rélation du sujet et de la
littérature ellemême avec le monde moderne, érigé par la science et par la
técnologie.
Mots-clés: Horto de goas, Gonzaga Duque, Simbolisme/Décadentisme, narrative
inhabituelle, brésilienne Belle Époque.
Rio de Janeiro
Agosto de 2010
SUMÁRIO
1. Justificativas
2. Revisão crítica
3. Gonzaga Duque: notas biobibliográficas
4. A instauração do insólito nos contos de Gonzaga Duque
5. Simbolismo/Decadentismo: movimentos exóticos
6. A realidade reinventada pelo Simbolismo/Decadentismo
7. O discurso “científico” de “Ciúme póstumo”
8. “Confirmação” ou o acaso não existe
9. “Posse suprema”: desejo e sublimação
10. “Benditos olhos!”: o duplo insólito
11. “Aquela mulher...”, “Miss Fatalidade” e “Agonia por semelhança”: as esfíngicas e
decadentes Salomés
12. “Sapo!...”, “Ruínas” e “Morte do palhaço”: a profissão de fé simbolista/decadentista
13. “Idílio Roxo” e “Sob a estola da morte”: os sortilégios da morte
14. Conclusão
15. Referências bibliográficas
Era uma vez uma coincidência que saiu a passeio
em companhia de um pequeno acidente. Enquanto
passeavam encontraram uma explicação, uma
velha explicação, tão velha que já estava tão
encurvada e tão encarquilhada que mais se
parecia uma charada.
(Lewis Carroll)
Para provar a realidade é preciso vê-la na corda
bamba. Quando as verdades se tornam acrobatas,
podemos julgá-las.
(Oscar Wilde)
1 Justificativas
É preciso saber que a literatura não existe da mesma
maneira que os insetos e que os juízos de valor que a
constituem são historicamente variáveis, mas que esses
juízos têm, eles próprios, uma estreita ligação com as
ideologias sociais. Eles se referem, em última análise, não
apenas ao gosto particular, mas aos pressupostos pelos
quais certos grupos exercem e mantêm o poder sobre os
outros.
(Eagleaton)
Entre os anos finais do século XIX e as duas
primeiras décadas do século XX, um
caleidoscópio estético se manifestou na Literatura
Brasileira. Movimentos com as mais diversas
concepções de arte fizeram desse um dos períodos
mais profícuos em tendências várias de nossas
Letras. Como disse Silvio Romero (1980), vivia-se
uma época “turva e demasiado movimentada”,
em que conviviam e se sucediam efemeramente no
gosto dos formadores de opinião “satanistas,
cientificistas, pessimistas, parnasianos,
impressionistas, simbolistas, decadentes,
realistas, naturalistas” (ROMERO, 1980, p.
1632).
Eram mesmo anos confusos. Na tentativa de
definir as múltiplas linhas e grupos artísticos de
1900, Elysio de Carvalho, no seu As modernas
correntes estéticas na literatura brasileira (1907),
apresentou um quadro em que percebemos a
dificuldade da crítica diante da profusão literária
que se lhe apresentava. Nessa obra, separou os
autores de seu tempo em tendências pouco
elucidativas, a que chamou de “Representativos”,
entre os quais figuravam nomes como Graça
Aranha e João Ribeiro, “Ideólogos, sonhadores e
revoltados”, entre os quais se alinhavam Fábio
Luz e Pereira da Silva , e “Raros e impassíveis”,
dentre os quais se destacava João do Rio.
No entanto, apesar da diversidade de manifestações estéticas e ideológicas do
período, as tradicionais Histórias da Literatura e as antologias com sua abrangência
seletiva, como espaços de excelência da canonização literária, costumam apresentar como
dominantes o viés de cunho realista/naturalista, na narrativa, e o de marca parnasiana, na
produção poética. O Simbolismo, com seus variados matizes, não raro, é visto como
estética de exceção ou de pouca expressão para além de alguns grandes nomes, como o de
Cruz e Sousa e o de Alphonsus de Guimaraens.
Muitas podem ser as razões apontadas para a desconsideração do Simbolismo como
movimento literário forte ou importante no panorama das nossas Letras. Uma delas diz
respeito ao seu caráter universal, várias vezes compreendido como resultado da falta de
brasilidade ou da excessiva influência estrangeira, principalmente a francesa. A tendência
introspectiva e psicologizante, a busca pela integração cósmica, a linhagem esotérica, o
interesse metafísico afastam as obras afinadas com essa estética da concepção dominante
do que seria a verdadeira expressão literária brasileira.
Dessa perspectiva, apontam o Simbolismo como estilo de importação, alheio,
portanto, às questões da brasilidade, estas compreendidas a partir de modelos de controle
do imaginário forjados por certas ideologias, como a do culto à natureza pátria, por
exemplo, ou a da missão sociopolítica da obra (cf. COSTA LIMA, 2009). A crítica oficial
do período recomendava que a literatura brasileira se emancipasse da influência francesa
através do cultivo dos assuntos nacionais. Propunha-se o estudo objetivo do país, de sua
etnografia, de sua história, de sua demografia, de seu folclore, de sua geografia, de sua
fauna e de sua flora, além da concepção de uma ngua portuguesa de expressão ou estilo
brasileiros, como condição para se fortificar o texto e para se fazer jus aos atributos de
“brasileiro” e de “literário” (cf. ROMERO, 1980), ainda que passados os anos românticos
de maior ufanismo artístico.
Refletindo, nesse sentido, sobre a época do Simbolismo, Vera Lins faz o seguinte
comentário:
A elite letrada do país dividia-se entre os que, à sombra do poder,
veiculavam um nacionalismo ufanista, cooptados pelo otimismo dos
consolidadores da ordem burguesa e outros, mais pessimistas, cujo
ceticismo toma variadas conotações. Uma delas seria o simbolismo (...)
(LINS, 1991, p. 44)
Ao se observar a produção simbolista do ponto de vista do modelo predominante,
buscando no texto o que fosse representação concreta da nação, o que se pode encontrar são
somente as referências outonais, em que aparecem as brumas, as névoas, as brancuras da
neve que evidentemente não representam a natureza tropical de nosso país. Como
consequência, a marca mais importante do estilo, sua forte tendência metafísica e
sensorialista que se afasta deliberadamente do mundo objetivo, torna-o fadado à pecha de
alienado e alienígena.
Mesmo se o tentam defender quanto à questão da
brasilidade, como o os casos particulares de
Araripe Júnior e de Andrade Muricy, não o fazem
negando esse modelo controlador do imaginário a
que nos referimos, mas buscando, de certa forma,
violentar a produção simbolista para adequá-la a
ele de um modo torto. Irão, por força, tentar
mostrar que a natureza simbolista é pátria,
expressando a variedade nacional e
representando, se não a brasilidade do norte,
certamente a do sul; que o sentimento
aparentemente universal ou transcendental é não
o do mulato ou do mestiço, mas o do imigrante
europeu que ajuda a moldar o caráter
miscigenado do povo e se torna tão brasileiro
quanto qualquer outro. Embora com a boa
intenção de resgatar o Simbolismo do limbo
imposto, o argumento apresenta-se sofismático,
pois se baseia em observar no estilo a existência
de uma premissa contra a qual sua própria
mundividência se coloca essencialmente: a
redução do homem ao seu caráter meramente
histórico e social.
Exemplo contundente disso é o trabalho hercúleo de muitos críticos em comprovar o
engajamento de Cruz e Sousa nas questões raciais. O grau de consciência explicitada de
classe e de cor não torna menor ou maior sua poesia, a não ser que adotemos critérios de
julgamento impertinentes ao próprio projeto criador do poeta. Se de fato ele tinha tal
consciência e se a expressava em sua obra literária, esse é certamente um motivo tangencial
se comparado à ânsia poética de Cruz e Sousa por atingir a dimensão humana totalizante,
inefável e intangível, universal e metafísica, enfim, completa e holística, que não se traduz
em alienação da realidade social, mas em sua integração a outras instâncias do ser. Ou -
como nos disse Gonzaga Duque em artigo justamente sobre a etnia do poeta “Era a
poesia a sua única e grande ambição. O verso cantava na sua alma espontaneamente, e em
verso pensava e entendia” (DUQUE, 2001, p. 336). Na tentativa de defesa dessa
insustentável universalidade poética diante das questões realistas/brasileiras pontuais
ditadas pelo modelo vigente, defenderão o negro Cruz e Sousa da acusação de alienado,
vendo em sua dicção a subversão de sua condição pela apropriação mais capaz de um
discurso que em muito lembra o dos brancos (MURICY, 1973, p. 40).
Ocorre que essa é uma defesa desnecessária, se admitimos que é possível fazer
literatura - brasileira e consciente de seu papel desvelador do real - a partir de outros
paradigmas que não os oficialmente aceitos. Desse modo, os que avaliam o estilo com base
em critérios prontos do que seria o nacional e, como conseqüência, o literário a ser
valorizado - impetrados ora pelo Romantismo (a natureza tropical), ora pelo Realismo (a
questão social) (cf. COSTA LIMA, 2009) ajudam a que o Simbolismo permaneça
ininteligível, exótico, excêntrico e marginal.
Além das reservas feitas ao Simbolismo pelas questões apontadas, outro ponto que
parece responsável pela marginalidade amargada pelo estilo associa-se ao seu afastamento
da matriz realista, no seu sentido mais estreito. Compreendemos aqui tal matriz como a que
se baseia em uma elevada taxa de referencialidade da linguagem literária, na adoção do
conceito de verossimilhança em seu caráter externo e na consequente preferência por tema
objetivo e social (cf. BASTOS, 2002).
Na verdade, se nos detivermos nas Histórias da Literatura mais consagradas,
balizadoras da canonização, para saber da importância do Simbolismo em nossas Letras,
seremos levados a concluir sua inconsistência, tanto em quantidade de obras, quanto na
influência deixada para o século vindouro. É diminuto o rol de autores simbolistas que
alcança êxito e fortuna crítica. Não nessa consulta mostram-se poucos os nomes dos que
de fato mereceram estudo, como são poucas as obras que se elevaram ao panteão dos
clássicos brasileiros. Triunfaram, nesse tempo, o mais das vezes, autores e obras
francamente realistas, naturalistas ou parnasianos, como comentamos, mormente as
primeiras.
que se dizer, porém, que essa aparente
irrelevância simbolista não se fundamenta, de
fato, na pouca representatividade quantitativa de
obras - o que poderia demonstrar uma natural
inclinação estética de nossa literatura para o
realismo em seu sentido estreito. Ao contrário
dessa aparência, a que nos levou boa parte da
tradição crítica brasileira, eram muitos,
suficientes para um estudo mais detido sobre a
importância desse estilo, como comprovou
Andrade Muricy (1973), os nomes dos que
desenvolveram suas obras, tanto na poesia,
quanto na prosa, com base nas convicções
simbolistas. Mesmo que seja inegável o volume de
textos simbolistas, a ínfima representatividade
dessas obras para efeito de construção do cânone
desse período costuma ser creditada à avaliação
quase que consensual dos formadores de opinião
de sua baixa qualidade literária, o que, para essa
tese, justificaria seu ostracismo.
Porém, se na formação do cânone da Literatura Brasileira da Belle Époque vingaram
justamente as obras que claramente desenvolviam um perfil realista, talvez tenha sido, em
boa parte, graças ao filtro efetuado por críticos, francamente afinados a essa estética, como
José Veríssimo e Silvio Romero.
Como pequena ilustração desse filtro, citamos o artigo de José Veríssimo, publicado
no Jornal do Commércio, em sua coluna Livros Novos, de 5 de fevereiro de 1900, em que
são objetos de avaliação Mocidade morta, de Gonzaga Duque, e Fazenda do paraíso, de
Artur Guimarães, e em que temos os seguintes termos:
Não digo de um livro sem lê-lo todo, e infelizmente o pude, por mais
esforços que fizesse, ler completamente os dois romances Mocidade
morta, do sr. Gonzaga Duque e a Fazenda Paraíso, do sr. Artur
Guimarães. Nestas condições prefiro apenas confessar que o me foi
possível, apesar de toda minha boa vontade, lê-los; e mais eu não padeço
daquela dispepsia literária de que falou uma vez o sr. Rui Barbosa.
1
Certamente, esse julgamento do mais importante crítico literário do 1900 cria um
estigma para as obras, para os autores e para seus movimentos estéticos de difícil superação
e que marca a trajetória futura, em relação à construção do cânone, a ser cumprida por eles.
O juízo de valores expresso por esses críticos, imbuídos que eram do espírito social
e cientificista da época, parece ser, portanto, um dos fatores mais determinantes para a
permanência ou não das obras do período. É elucidativo o que Vera Lins nos diz acerca da
opinião evidentemente parcial de José Veríssimo e da crítica institucionalizada da ocasião.
Vejamos:
O modelo de linguagem crítica de que se servia José Veríssimo realmente
o incapacitava para entender e avaliar as questões que a prosa simbolista
de Gonzaga Duque discutia. Em A tradição do impasse, João Alexandre
Barbosa mostra os limites de sua argumentação crítica. Formado no
Positivismo, Veríssimo firmava-se em critérios naturalistas. Mais tarde,
tentando abandonar esses critérios, incapaz de ultrapassar um liberalismo
que se esgotara, preenche esse vazio, apelando a padrões de ordem
moral. (LINS, 1991, p. 51)
Foi, porém, esse o modelo que julgou e legitimou a literatura que permaneceu desse
tempo e que lançou na obscuridade tantas obras a que não foi capaz de compreender. O fato
é que, em sua grande maioria, do Simbolismo, ficou-nos particularmente a poesia de Cruz e
Sousa e de poucos outros, como Alphonsus de Guimaraens. Da narrativa, quase nada
alcançou chegar aos nossos dias com força, apesar de em seu tempo ter sido em bom
1
Apud.: LINS, Vera. Gonzaga Duque: a estratégia do franco-atirador. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1991, p. 51.
número. A prova é a falta de novas edições dessas obras, que contam, muitas delas, apenas
com a da publicação original.
Embora pudessem contra-argumentar, lembrando que é da natureza do próprio estilo
simbolista o gosto pela excepcionalidade, não nos parece ser esse aspecto suficiente para
justificar sua posição periférica. Sabemos, é claro, do apreço que tinham os simbolistas
pelos detalhes, pelas filigranas artísticas, conhecemos a consequente aversão que nutriam
pelo mercado que pausteriza o literário, levando-os a preferir as pequenas edições, os
exemplares limitados, as publicações compartilhadas somente entre os pares, como atesta
Andrade Muricy (1973), porém esses traços não podem explicar, sozinhos, a falta de fôlego
dos textos simbolistas para sobreviverem ao seu tempo e ao seu seleto grupo.
Reconhecemos a dificuldade de vários críticos em recuperar originais devido a problemas
de acesso a eles por conta desse gosto pela “raridade”, típico do movimento simbolista,
uma vez que o próprio livro é por ele concebido a partir de requintes e busca de novos
efeitos (dimensões especiais, exploração de recursos tipográficos, desenho de letras,
emprego de cores, ilustrações participando do texto, vinhetas, utilização de papéis
especiais, previsão de tiragem reduzida etc), na contra-mão do processo industrial do início
do século XX (cf. CAROLLO, 1980). Além disso, é conhecida a confluência da produção
simbolista para os infinitos periódicos da época, quando a imprensa, sobretudo carioca,
vivia tempos de maturidade. Tais periódicos eram, de modo geral, consumidos por um
pequeno público e costumavam ser fugazes, impregnando, fatalmente, com sua
transitoriedade o que neles era publicado. Porém, nada disso por si é suficiente para a
compreensão do fenômeno de esquecimento que grande parte da produção simbolista
experimentou.
No caldeirão intelectual do período, o Simbolismo não encarna resignadamente
apenas o papel de vítima. As complexas relações estabelecidas na época criam redes
tramadas com requintes. Como consequência, diante da acolhida negativa da crítica, os
simbolistas passam a se identificar com o único espaço que lhes restou, subvertendo,
todavia, seu sentido pejorativo. Se não era possível, dado o padrão a partir do qual eram
julgados os produtos estéticos, localizar-se centralmente no campo intelectual, a posição
periférica é assumida e passa, até mesmo, a constituir-se como elemento importante e
caracterizador do movimento. Assim, faz parte necessária da análise do processo de
localização periférica do Simbolismo, na conjuntura instituída, sua dialética com a posição
central. A marginalidade simbolista é tal se considerarmos como centro o cânone
defendido por aqueles que formavam o campo intelectual dominante. A reação simbolista é
resultado justamente desse domínio e da consciência de constituir-se como oposição. Por
isso, por exemplo, os grupos simbolistas gostavam de unir-se nos espaços da “boemia”.
A noção de boemia não era nova, remontando, em última referência, à atmosfera
romântica, mas ganhou, no Simbolismo, relação mais estreita de oposição à sociedade
capitalista e aos novos costumes burgueses emergentes. Logo, como “boêmios”,
posicionavam-se marginalmente, não aos padrões estéticos instituídos e acadêmicos,
como também à sociedade dominante que os sustenta, movida pelo culto ao progresso,
sendo, em consequência, rechaçados por ela. Sobre essa tendência claramente simbolista à
“boemia” em seu sentido revolucionário e marginal, são reveladoras as palavras de
Gonzaga Duque, em seu artigo “Crônica de uma saudade”, publicado na revista Kosmos,
em 10 de outubro de 1908:
Desde que me referi à aplicação particular dada à boêmia, devo me
explicar. Há muita gente boa e de gravata lavada, como diziam os nossos
avós, que restringem o termo ao seu valor representativo. Não é uma
teimosia, é antes, uma falha de latitude na compreensão. Julgam por
boêmios todos os vadios, malandrões, exploradores da generosidade dos
bons, parasitas dos alegres e gastadores, e que sem ofício ou profissão,
enchem o bandulho à custa alheia. É uma lamentável confusão. A palavra
“boêmia”, aclimada em nosso meio, envolve uma risonha ironia com que
se qualificam, a si próprios, os refratários ao gregarismo, ao consenso
passivo das multidões guiadas pela vara zagalesca de uma moral
falsamente estabelecida e de uma ordem supinamente hipócrita. Sem
disciplina aparente, sem obediência a mandões e a preceitos, formam
grupos isolados e vivem num suposto descuido que não é mais do que
liberalismo (...). (DUQUE, 2001, p. 312)
Assim, conscientemente, os grupos simbolistas e decadentistas opunham-se ao
estabelecido, recebendo a marca da marginalidade. Não obstante, poderíamos considerar
que a posição periférica do Simbolismo, de seus autores e de suas obras foi estabelecida
pelo grupo dominante nas Letras brasileiras, como forma de torná-los ilegítimos, mas
absorvida pelo próprio movimento, como modo de reação fundamentalmente contestadora
e libertária.
Ao comentar sua relação com Gonzaga Duque, Vera Lins faz o seguinte comentário,
significativo para compreendermos o lugar, não do autor, como do movimento a que se
filiou como um todo, em relação ao contexto artístico de seu tempo:
Fui conhecendo o pensamento de Gonzaga Duque e descobrindo um
libertário – um escritor com ideais, que, inconformado com a situação, se
batia por eles, investindo contra tudo que era oficial a mentalidade de
funcionários e bacharéis, a crítica e os artistas cooptados, e a
mercantilização da arte. (LINS, 1991, p. 19)
No entanto, tal postura combativa teve um preço a pagar, num processo de
retroalimentação. É justo nesse sentido que Andrade Muricy (1973), simbolista que era, na
década de 60 do século XX, faz comentário interessante em sua obra sobre o Simbolismo,
ao defender o estudo dos minoris, numa consciente avaliação do que o processo crítico
brasileiro reservou aos que representaram esse movimento, ainda que suas ressonâncias se
estendessem, como indubitavelmente ocorreu, pelos anos modernos, sobretudo na poesia de
nomes de primeira linha como Manuel Bandeira e Cecília Meirelles. Não foi somente a
dificuldade no acesso aos textos originais, mas a avaliação de que esses eram textos
marginais ao processo maior do cânone em construção que tornou diminuta a referência aos
simbolistas na crítica oficial. O estudo dos minoris, que em número alcançariam os de
românticos e de parnasianos segundo Muricy, é justamente o estudo do Simbolismo que os
formadores de opinião julgaram periférico ou inconsistente.
Muricy refere-se ao trabalho de garimpo que
precisou fazer (ainda que exagerado, visto que
recolhe, inclusive, obras para além de 1950) para
recuperar parte desse acervo de obras e autores
simbolistas, para os quais o campo intelectual
brasileiro da época e posterior legaram o
esquecimento. Os obstáculos que enfrentou, cerca
de poucos cinquenta anos depois da publicação
dessas obras em jornais, revistas ou mesmo em
livros, para alcançar tal produção literária
dificilmente podem ser atribuídos ao fato de
serem todas obras que nasceram raras ou que
fossem menores, no sentido da qualidade estética.
Certamente, estão também em jogo, nesse
processo de transitoriedade e permanência, forças
que, grosso modo, seriam francamente
ideológicas.
É muito elucidativo ouvirmos o próprio Gonzaga Duque, no artigo “Singularidades
de hoje”, publicado em 12 de fevereiro de 1909, no Diário do Commércio, fazer o seguinte
comentário sobre o jogo de claro-e-escuro que organizava o campo intelectual brasileiro:
Mas, o que faz admirar é que um escritor se torne simpático, o seu nome
seja citado, amimado, respeitado, porque à força de se o repetir, ele
esteja diariamente diante dos nossos olhos! Mas, só, absolutamente
por isso.
Há reputações que a gente as considera, investiga, remira, examina,
analisa, e ao cabo de paciente estudo tem-se nada! Positivamente
nada, essa coisa inaproveitável, inútil, desprezível – nada.
Donde vem essa simpatia?
Às vezes de um agrado fútil, duma ligação pessoal, dum caso íntimo;
outras duma vaidade satisfeita, retribuição de rapapés e salamaleques;
outras ainda porque fica bem ao cronista parecer homem do seu
tempo(...) (DUQUE, 2001, p. 364)
Ou ainda, aos 46 anos, comentando,
melancolicamente, a dificuldade que Lima
Barreto (um autor francamente fora do circuito
simbolista e adjacências) então com 28 anos,
encontrava para publicar sua obra, no artigo com
o profético título “Até que um dia!...”, alongar-se
na defesa do jovem escritor, mostrando lucidez
acerca da forças, nem sempre efetivamente
estéticas, que podem ou não popularizar a obra
literária:
entre os de hoje, como houve entre os de ontem e em todas gerações,
grupos que se subtraem à popularidade a todo o transe, são os que fazem
literatura por temperamento, por irresistível pendor, os que realmente são
artistas e mais prezam a sua arte, que lhes conforto, do que a
palermice narcisadora das suas pessoas. Esses grupos, porém, são menos
numerosos, às vezes atingem limites tão apoucados que se fazem
esquecidos momentaneamente. Mas, quando chega a soberana justiça do
Tempo, que nunca falha, são esses os que se salvam, porque o isolamento
do viver e a perseverança no trabalho, senão a paciência apaixonada
posta na confecção de suas obras, lhes consentiram o acabamento
perfeito do pouco que deixaram. Os demais gozaram, foram aplaudidos,
vitoriados, mas passaram. Os que fizeram tem a consistência das estátuas
de cinza, foi o fogo de vista da sua época. (DUQUE, 2001, P. 354-355)
Ao observarmos esse complexo quadro que se delineou na virada do século XIX
para o XX, parece-nos que algumas questões fundamentais se nos apresentam e é sobre elas
que queríamos nos debruçar neste trabalho. Investigar a justiça da avaliação
convencionalmente feita da narrativa simbolista, contaminada por elementos que, muitas
vezes, excedem o estritamente literário ou que definem o literário a partir de falsos
aforismos; repensar a relação do Simbolismo com o campo intelectual de seu tempo; buscar
entender as tensões decorrentes das diferentes mundividências que se expressavam em
manifestações literárias tão diversas; resgatar a força da voz simbolista, às vezes abafada no
jogo polifônico da virada do século no Brasil pelo vigor do discurso dominante são alguns
de nossos objetivos.
2 Revisão crítica
A separação entre real e ilusório foi motivada e criada
pela ânsia de poder e por isso não única verdade, mas
diferentes opiniões.
(Bauman)
Durante muitos anos - e de modo sistemático, no Brasil, a partir de Silvio Romero e
de José Veríssimo – a crítica literária, sobretudo diante das narrativas, norteou-se por
critérios sociológicos e econômicos, cujo exemplo talvez mais bem acabado seja a de
caráter marxista. De acordo com o olhar dessa crítica, a valoração da obra ligar-se-ia, entre
outros aspectos, ao seu grau de engajamento e de representação da realidade social em suas
tensões. Ou seja, a obra precisaria desempenhar determinado papel político. A estruturação
do enredo, a construção das personagens, enfim, o recorte da realidade a que a narrativa
procederia deveria obedecer a certos paradigmas, ligados, quase sempre, a marcas
ideológicas.
Lukács (2007), de modo pertinente, reconhece como papel fundamental da
literatura, e da arte de modo geral, o de reconstruir a totalidade das relações sociais e
econômicas em suas contradições, fragmentadas pelo capitalismo, que reificou a vida e a
experiência humanas. No entanto, defende a ideia de que a arte é reflexo da realidade
subjacente ao mundo das aparências e identifica o bom romance realista como a forma por
excelência capaz de realizar essa função reveladora da literatura. Partindo desse ponto de
vista, adotado por parte da crítica socioeconômica, os neros ou as formas que escapavam
desse modelo pareciam alienados.
Dessa avaliação, nem mesmo os naturalistas escaparam. Muitas obras naturalistas,
principalmente as mais ligadas às concepções de Zola, em que a aplicação do todo
científico e o enfoque das neuroses humanas seriam as tônicas, tiveram suas obras
condenadas, não por sua fragilidade intrinsecamente artística, mas porque fugiram da mais
importante função da arte, segundo aquela concepção, a da denúncia das relações de
exploração entre as classes. Obras muitas vezes aclamadas pelo público, como alguns
romances de Aluísio Azevedo ou de Júlio Ribeiro, caíram na penumbra depois de
avaliações baseadas em critérios mormente sociológicos. Nelson Werneck Sodré,
comentando O homem (1887), de Aluísio Azevedo, narrativa feita sob os moldes de Zola,
fala de sua “Estrutura fraquíssima (...) de uma irrealidade de cenas que surpreende (...)
descrições falsas, declamatórias, inverossímeis(SODRÉ, 1965, p. 183, grifos nossos).
Não que o romance investigado fosse literariamente forte essa avaliação não nos cabe
neste trabalho mas o comentário do crítico nos interessa pelo juízo de valores expresso,
pelos atributos arrolados a fim de pôr a obra em descrédito.
Natural é, por conseguinte, que, em se tomando esse ponto de vista crítico,
narrativas simbolistas como as de Rocha Pombo, de Gonzaga Duque ou de Nestor Vitor
fiquem ininteligíveis e desinteressantes, constituindo-se como obras de minoris ou, na
melhor das hipóteses, como representantes de um exotismo ficcional excrescente. Ainda
que, mais próximo de nossos dias, a crítica venha cada vez mais se precavendo do uso
dessa natureza de julgamento, é difícil recuperarem-se o tempo e os leitores perdidos.
Para entender melhor o alijamento sofrido por
tais obras, cabe confrontá-las com o modelo
realista em voga na época e considerado, de certa
forma, paradigma da boa literatura. Embora
desde a década de 1930, em que a celeuma entre
Brecht e Lukács apontava para o
redimensionamento do conceito de realismo e,
mais próximo de nós, com Raymond Williams
(1979), defenda-se a substituição da “teoria do
reflexo” pelo conceito de mediação - segundo o
qual a realidade social não pode estar refletida
diretamente na arte, pois passa por um processo
que altera seu conteúdo original - para efeito da
sobrevivência dos textos de que tratamos, vingou
o conceito mais convencional de realismo.
Nesse realismo, a mímesis faria passar o que é simplesmente convenção por
natureza. Ou seja, haveria em seus pressupostos a intenção de se ocultar o objeto imitante
em proveito do objeto imitado. De certa forma, acima do propriamente literário, da
convenção, estariam a sociedade e as relações humanas efetivas, as quais a literatura
deveria refletir e representar. Assim, a ambição desse modelo, fundado na mímesis, seria a
de relatar de maneira cada vez mais autêntica a verdadeira experiência dos indivíduos (cf.
COMPAGNON, 1999). Atrelada a essa concepção está, portanto, a ideia realista - de que
a literatura pode representar fielmente o real, como um espelho, um reflexo.
A partir dessa ótica da relação entre a literatura e a realidade, colocam-se também
como problema as questões da referencialidade literária e da verossimilhança. Ainda que
desde Barthes (1992) se rejeite a hipótese de haver um referente imediato na realidade para
o discurso literário, dado seu caráter semiótico, o realismo de que falamos baseia-se na
ilusão dessa possibilidade. Como consequência, trabalha muitas vezes com a avaliação de
que a verossimilhança deva ser concebida em seu conceito externo e julga inverossímil o
que se afasta dessa estreita relação entre o literário e o real.
O deslocamento das obras simbolistas em relação a essas expectativas realistas se
deve a algumas razões de estilo e outras de mundividência. Tanto no que diz respeito à
linguagem literária desenvolvida, quanto à seleção de temas, as narrativas simbolistas
empreendem ações estéticas nas quais os conceitos de referencialidade literária e de
verossimilhança realistas, consagrados como critérios de julgamento, não são centralmente
desenvolvidos – pelo menos, não daquele modo realista.
Praticamente contemporânea da produção
ficcional realista/naturalista, a narrativa
simbolista opta por desenvolver linha temática
antagônica a daquelas estéticas, lançando mão,
como nunca antes havia sido feito, pelo menos no
Brasil, de assuntos ligados ao esotérico, ao
espiritual, ao metafísico. No lugar dos temas
sociais e pragmáticos, desenvolvidos sob a
chancela da razão científica e da observação da
realidade factual, captada pela inteligência,
temos histórias que versam sobre experiências
fantásticas, singulares, que não são dadas à
compreensão racional e que precisam, para se
tornarem cognoscíveis, bem mais do que dos
cinco sentidos humanos. Além disso, em tais
histórias, instaura-se um modo narrativo distinto,
em muitos aspectos, do que predominava na
tradição literária e realista brasileira, sobretudo
por conta da falta de objetividade na
apresentação do enredo, num misto de tênue
referencialidade e ênfase na exposição do
subjetivo, como o que ocorre na, muito
desenvolvida na época, “prosa poética”.
Relembrando Auerbach, em Mimesis, poderíamos
dizer que as produções narrativas realistas e, em
especial, as naturalistas, remontam à tradição
clássica de objetividade, da qual é representante
primeiro Homero, segundo a qual é necessário:
representar os fenômenos acabadamente, palpáveis e visíveis em todas
as suas partes, claramente definidos em sua relações espaciais e
temporais. (AUERBACH, 2007, p. 4)
Por seu turno, desviando desse modelo, as narrativas simbolistas aproximar-se-iam
do discurso religioso, exemplificado pelo relato bíblico, para o qual é absolutamente
desnecessária a especificação do fenômeno, em termos descritivos espaciais e temporais,
pois se fundamenta em outra ordem de valores para os quais a concretude do real não
importa.
Além desses aspectos internos da confecção da narrativa, o conceito de l’art pour
l’art, oposto radicalmente aos pressupostos artísticos de base sociológica, por mais que
nem sempre houvesse influenciado diretamente nossos simbolistas, marcava com seu toque
toda a produção que levemente dele se aproximasse. Assim, a produção
simbolista/decadentista brasileira, mesmo que nem sempre de modo consciente, associou-se
ao ideário de defesa explícita da autonomia da arte frente a qualquer outro objetivo que não
o genuinamente estético. Daí sua preocupação esteticista, que resultou em busca de uma
linguagem poética original e pura, nascida de esferas pouco valorizadas até então, como o
mundo onírico ou intangível, relacionada particularmente ao sensorialismo, diferente, nesse
sentido, dos ideais parnasianos de culto à forma.
Por essas razões, proceder-se a uma reavaliação desse conjunto de obras, sob um
ponto de vista mais neutro ou simplesmente comprometido com aspectos os mais
estritamente literários, torna-se importante para a revisão do cânone brasileiro. Neste
trabalho, nosso objetivo particular é o de ler a obra de Gonzaga Duque, Horto de mágoas
(1914), inserindo-a no complexo contexto das relações estéticas do período, vendo como se
solucionam as questões amplamente aqui arroladas, a saber, a pertinência da localização
periférica dentro do cânone reservada para ela pela crítica até então e os (possíveis)
diálogos implementados dessa obra com as estéticas realista e naturalista consagradas.
Para tanto, dividimos nosso trabalho nas seguintes partes: (1) apresentamos um
breve resumo biobliográfico do autor, baseando-nos, sobretudo, nos estudos de Vera Lins e
Júlio Castañon Guimarães desenvolvidos para os volumes Horto de mágoas (1991), Graves
e frívolos (1997) e Impressões de um amador (2001) (capítulo 3); (2) propomos a discussão
teórico-crítica de conceitos pertinentes ao estabelecimento das oposições entre Simbolismo
e Decadentismo, de um lado, e Realismo e Naturalismo, de outro (capítulos 4, 5 e 6) e (3)
efetuamos a leitura crítica das narrativas que compõem a obra corpus (capítulos 7 a 13).
Os contos de Horto de mágoas (1914) foram, por sua vez, organizados em quatro
núcleos básicos, identificados por critérios predominantemente temáticos, a saber, (1) o
núcleo de textos que discute as tensões entre a ciência e a religiosidade (capítulos 7 a 10);
(2) o que apresenta a construção da figura feminina como, sobretudo, metáfora da Salomé
decadentista (capítulo 11); (3) o que propõe a discussão autoconsciente e metaliterária da
opção estética simbolista/decadentista (capítulo 12) e (4) o que observa as complexas
relações entre o homem e a morte (capítulo 13). O núcleo que aqui denominamos (1) é
representado pelas narrativas “Ciúme póstumo”, “Confirmação”, “Posse suprema” e
“Benditos olhos!”; o que chamamos de (2) refere-se aos contos “Aquela mulher...”, “Miss
Fatalidade” e “Agonia por semelhança” e o (3) expressa-se em “Sapo!...”, “Ruínas” e
“Morte do palhaço”. O núcleo temático (4) é particularmente o mais abrangente,
manifestando-se claramente em quase todas as narrativas, mas, neste trabalho,
reconhecemos “Sob a estola da morte” e “Idílio roxocomo os contos que de modo mais
explícito o desenvolvem.
3 Gonzaga Duque: notas biobibliográficas
Comecei a procurar, como detetive, seguindo vestígios
e pistas apagadas. O nome foi surgindo, aos poucos.
Das primeiras páginas do livro de Aracy Amaral,
referências interessantes, mas breves. Um colega,
professor de história, me levou mais adiante,
lembrando um romance que esse crítico escrevera. O
nome se repetia, o cerco se estreitava. Em buscas mais
intensas, corri às bibliotecas e comecei a encontrar
referências que me deixavam entrever um intelectual
preocupado com questões cruciais da cultura
brasileira, que se batia pela nova percepção
impressionista contra a arte oficial da Academia de
Belas Artes, e autor de um romance publicado com o
sugestivo título de Mocidade morta. Fui localizando
seus livros. Entre as obras raras, o volume de contos,
Horto de mágoas, parcialmente comido pelas traças,
tinha pertencido a Adelino Magalhães, o que por si
valia uma tese. (Vera Lins – 1989)
Horto de mágoas (1914) é o único livro de contos de Gonzaga Duque e, ao lado de
Mocidade morta (1899), seu romance um pouco mais conhecido, compõe a produção
ficcional do autor. Publicado postumamente em 1914 e contendo um total de doze
narrativas, Horto de mágoas não alcançou outras edições até 1995, quando Júlio Castañon
Guimarães e Vera Lins estabeleceram o texto do volume que nos serve de fonte. Cabe
ressaltar que essa segunda edição foi fruto de um trabalho acadêmico, de pesquisa
filológica e literária, e subvencionada pelo governo municipal do Rio de Janeiro e pela
Fundação Casa de Rui Barbosa, o que reforça sua marca de texto para poucos.
Não se sabe ao certo se o próprio autor preparou a seleção dos doze contos
constantes da obra, embora haja fortes indícios disso, nem se seu título fora, de fato, dado
por ele. Segundo a pesquisa realizada para a edição de 1995, pelo menos oito desses contos
haviam sido publicados em vida pelo autor em periódicos da época, sobretudo na Revista
Kosmos, da qual Gonzaga Duque foi colaborador também como crítico de artes plásticas e
de literatura. O período de publicação desses contos vai de 1901 a 1907, embora haja uma
versão preliminar do conto “Idílio roxo” em 1894, em Club Curitibano e outra em 1895, na
Rio-Revista. Por considerarmos relevante, transcreveremos a seguir a lista das publicações
desses contos, nos suportes originais que serviram de base para a constituição do volume de
1995:
São as seguintes as versões em periódicos, em vida do autor, de
contos de Horto de mágoas: “Posse suprema”, em revista
Contemporânea, ano II, série III – no. 5, no. 8, maio de 1901; “Sob
a estola da morte”, em Atheneida, ano 1, nos. 8, 9 e 10 (1903);
“Ciúme póstumo”
, em Kosmos, ano 2, no. 7, julho de 1905;
“Benditos olhos”, em Kosmos, ano 2, no. 12, dezembro de 1905;
“Idílio roxo”, em Kosmos, ano 3, no. 12, dezembro de 1906;
“Morte do palhaço”, em Kosmos, ano 4, no. 1, janeiro de 1907;
“Aquela mulher”, em Kosmos, ano 4, no. 3, março de 1907;
“Agonia por semelhança”, em Kosmos, ano 4, no. 11, novembro
de 1907. (GUIMARÃES, 1995, p. 22)
Na opinião de Massaud Moisés, embora a prosa simbolista tenha muitas vezes
enfrentado problemas, ditados pelo próprio estilo, que limitaram sua possibilidade mesma
de produção, Gonzaga Duque, em seu Horto de mágoas, conseguiu, como raros no
Simbolismo, escrever autênticos contos, e contos simbolistas, alcançando a harmonia entre
a fabulação estruturada, coesa, e a linguagem poética, segundo os processos decadentes e
simbolistas” (MOISÉS, 1985, p. 140). A despeito dessa abalizada análise, porém, Horto de
mágoas amargou, do público e da crítica, o esquecimento das obras sem importância.
O autor, Luiz Gonzaga Duque Estrada, era culto, refinado. Nasceu no Rio de
Janeiro, em 21 de junho de 1863, onde viveu toda sua vida com exceção de uma breve
viagem que fizera a Portugal e onde morreu, em 8 de março de 1911, de infarte
fulminante, ao sair da redação da revista Fon-fon, para a qual contribuía com artigos sobre
arte e cultura, crônicas e contos. Casou-se, em 1885 com lia Torres Duque Estrada, com
quem teve quatro filhos: Dinorá e Haroldo, mortos quando crianças, e Osvaldo e Lígia
Cristina. Foi funcionário público da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro 2
o
oficial da
Diretoria do Patrimônio Municipal e 1
o
oficial da Fazenda da Prefeitura e, em seu último
ano de vida, diretor da Biblioteca Municipal.
Desde muito jovem, dedicou-se à crítica de artes plásticas brasileiras, militando em
nome da criação de uma consciência artística nossa. Seus artigos de crítica começaram a ser
publicados em 1882, quando tinha apenas 19 anos, no jornal Gazetinha, de Artur Azevedo.
No ano seguinte 1883 criou, com Olímpio Niemeyer, o jornal O Guanabara e
continuou sua contribuição como articulista, agora na Gazeta da Tarde. Entre 1886 e 1888,
assinou semanalmente a coluna “Belas Artes”, de crítica de artes plásticas, da revista A
Semana. E em 1887, publicou o primeiro estudo sistemático das artes plásticas do país
Arte Brasileira.
Suas contribuições para os muitos periódicos da virada do século, mais ou menos
especializados nas questões artístico-culturais, foram intensas. Com exceção de Arte
Brasileira, de A dona de casa (publicado sob o pseudônimo de Sylvino Júnior), de 1894, de
Revoluções brasileiras, de 1898 e de Mocidade morta, de 1899 (que também teve alguns de
seus capítulos lançados antes na revista Brasil Moderno), toda a obra de Gonzaga Duque
circulou originalmente nos órgãos de imprensa da cidade do Rio de Janeiro e, com bem
menos representatividade, nos de Curitiba (nos periódicos Club Curitibano- 1894 - e O
Sapo - 1900). Tivemos suas críticas publicadas, além dos veículos que já citamos, em
jornais e revistas como O Globo, Revista dos Novos, Rosa-Cruz, Vera-Cruz, Renascença,
Athenéia, Os Anais, A Avenida, Ilustração Brasileira, Revista Americana, Cidade do Rio,
Diário de Notícias, O Paiz, Rua do Ouvidor e Diário do Commércio. Entre 1904 e 1909,
passou a ser um dos mais importantes colaboradores da revista Kosmos. números dessa
revista em que aparecem até três artigos seus alguns com pseudônimos, como Alfredo
Palheta e Barrabás-Brentano –, mostrando a relevância de seu trabalho na sustentação do
periódico. Além de sua ação de crítico de artes, cronista e contista na imprensa, Gonzaga
Duque fundou ou ajudou a fundar, entre os anos de 1888 e 1911, vários periódicos de arte e
de literatura como Pierrot, Rio-Revista (em 1895, com Lima Campos), Galáxia (revista
simbolista, fundada em 1901, também com Lima Campos), Mercúrio (em 1901) e Fon-Fon
(uma das revistas mais importantes do início do século, em 1908, com Lima Campos e
Mário Pederneiras).
Como vemos, Gonzaga Duque, enquanto vivo, teve a esmagadora maioria de sua
obra, sobretudo crítica, restrita à divulgação pelos meios de imprensa, o que, embora revele
ascendência sobre certo grupo do campo intelectual de seu tempo, evidentemente, pode ser
apontado como um fator que colaborou para que seu estudo dependesse de um esforço
acadêmico de recuperação, que bem mais tarde aconteceu. Ainda que não tenhamos
dados que comprovem se a escolha ou preferência por esse meio de divulgação, em
detrimento do livro, tenha sido intencional, há, em um artigo de Gonzaga Duque sobre um
encontro que teve com o então jovem escritor Lima Barreto, um interessante testemunho
acerca do mercado editorial brasileiro da época, que transcrevemos a seguir:
Os nossos editores, por motivos que me abstenho de explanar, só editam
obras de comércio, livros didáticos, que rendem imediatamente, e quando
se abalançam à beletrista, à literatura artística ou, como se a nomeava no
tempo da ‘retórica e poética’, literatura propriamente dita é porque o
livro veio das mãos de um “nome feito” ou porque o nome que o assina
anda na berra. (DUQUE, 2001, p. 355-356)
Como Gonzaga Duque e tantos outros simbolistas não tinham os nomes alardeados
pelos formadores de opinião, pode-se daí concluir que já, naquele momento, fadavam à
efemeridade...
Em 1910, Gonzaga Duque elaborou uma coletânea de seus artigos (ensaios e
crônicas) de crítica de artes plásticas, publicados originalmente na Kosmos, que intitulou
Graves e frívolos. Postumamente, em 1929, veio à luz Contemporâneos, livro organizado
por Gonzaga Duque e composto por estudos seus que já haviam circulado em Kosmos,
Renascença, Diário de Notícias e O Paiz. Esses estudos deveriam, originalmente, fazer
parte dos livros Os de hoje e A caricatura no Brasil, anunciados pelo autor, mas que nunca
foram publicados e dos quais não se conhece exatamente o conteúdo. Bem mais tarde, em
2001, grande parte da produção crítica de Gonzaga Duque (de 1882 a 1909) que ficara de
fora das coletâneas feitas pelo autor (Graves e frívolos e Contemporâneos) foi reunida no
volume Impressões de um amador, organizado por Vera Lins e lio Castañon Guimarães,
salvando-a da transitoriedade do jornal e das revistas da época.
A vinculação de Gonzaga Duque ao Simbolismo, ao Decadentismo, à Art nouveau,
sempre estivera flagrante em seus textos, seja na defesa de certa concepção artística, seja no
próprio estilo de escritor afeito ao esteticismo, à linguagem requintada, de sintaxe peculiar
e de vocabulário neológico. No entanto, foi em 1889 que esse vínculo se explicitou, quando
Gonzaga Duque fundou o primeiro grupo simbolista carioca em torno da revista Folha
popular. Tanto em relação às artes plásticas, como à literatura, assumiu e defendeu essa
estética. E entre os discursos literários, escolheu a prosa de ficção, que, como dissemos,
era considerada por muitos críticos de difícil compatibilidade com as prerrogativas
genuinamente simbolistas.
É particularmente interessante a discussão desse aspecto. Massaud Moisés (1985),
em seu importante estudo sobre o Simbolismo brasileiro, aponta a dificuldade de um estilo
tão baseado na construção de uma linguagem naturalmente inefável e poética, na captação
de sentimentos e sensações para além do razoável e do concreto, de manifestar-se através
do discurso em prosa e mais ainda do gênero narrativo. Essa avaliação, obviamente,
sustenta-se no fato de o grande estudioso utilizar-se dos conceitos teóricos tradicionais e
universalmente aceitos do que seria “prosa” e “narrativa”. Ou seja, esbarra na questão tão
polêmica da definição dos gêneros.
Segundo Massaud Moisés, os simbolistas, o mais das vezes, “acabam
desrespeitando as condições sine qua non da prosa de ficção, o enredo e o contexto social”
(MOISÉS, 1985, p. 130), e malogram em seus projetos de produzirem narrativas
simbolistas, ou porque não obedecem aos princípios do gênero, ou porque, ao obedecerem a
eles, desviam do estilo simbolista, resvalando para o Realismo ou para o Naturalismo.
Dessa forma, tornar-se-ia quase paradoxal a expressão “narrativa simbolista”. Bosi
(1988) defende a mesma tese, que expõe na passagem claramente avaliativa e parcial a
seguir:
Pela origem e natureza da sua estética, o Simbolismo tendia a expressar-
se melhor na poesia do que nos gêneros em prosa, em geral mais
analíticos e mais presos aos padrões do verossímil e do coerente. E de
fato, a prosa narrativa, que no último quartel do culo XIX, chegara a
um ponto de alta maturação em Raul Pompéia, Aluisio Azevedo e
Machado de Assis, não continua a dar frutos de valor a não ser em
escritores deste século, de formação realista, como Lima Barreto, Graça
Aranha e Simões Lopes Neto. (BOSI, 1988, p. 329, grifos nossos)
Comentando os contos de Gonzaga Duque, Massaud Moisés faz outra afirmativa
intrigante acerca da questão do texto em prosa do gênero narrativo. Embora defenda a obra
Horto de mágoas, vendo na maioria de seus contos representantes fidedignos da tão difícil
prosa de ficção simbolista, ao condenar dois dos contos do livro “Ciúme Póstumo” e
“Miss Fatalidade” usa como critério de avaliação a presença do que chama de
inverossimilhanças e de absurdos (MOISÉS, 1985, p. 144).
No entanto, talvez fosse o caso de, na observação da narrativa simbolista,
procedermos à relativização de determinados conceitos que definiram o gênero narrativo -
como enredo, contexto social, verossimilhança, coerência para alcançarmos seu
significado final. Esses conceitos, tais como são levados em conta, parecem-nos
associarem-se francamente à noção realista, cunhada pela tradição ocidental, do que seria a
narrativa e, por conseguinte, desviam quase em absoluto da concepção simbolista, à qual
evidentemente não se podem adequar. O uso tão disseminado da rubrica “prosa poética”
para definir o que se encontra nesses textos talvez comprove a dificuldade da crítica em
lidar com a excepcionalidade da narrativa simbolista, sem enquadrá-la em paradigmas
somente compatíveis com um tipo de literatura de claro referente exterior, como a de matriz
realista.
Gonzaga Duque, em seu Diário, anexado ao livro de Vera Lins (1991), mostra
consciência da profunda cisão que existe entre sua produção narrativa e as expectativas da
crítica oficial, além da falta de isenção dessa crítica quanto ao modelo artístico instituído,
destilando sua ironia caricata em relação aos formadores da opinião literária na seguinte
passagem que, apesar de longa, vale a pena citar:
Um amigo meu (que não faz literatura, mas sabe prezar com raro gosto e
entendimento) conta-me o seguinte: estando parado pela tarde de hoje, à
porta da Livraria Garnier, tivera a seu lado um grupo de três senhores,
dois dos quais ele conhecia um, de vista: era o sr. José Veríssimo. Um
dos desconhecidos louvava o furibundo crítico pela sua pertinácia e
acrimônia nos julgamentos, e teve esta frase: ‘Mas lhe devem acarretar
dissabores...’ o formidável, triunfando de autoridade, alteou a cabecinha
símia e reportou: Ah! Sem dúvida... Eu bem sei o que dizem de mim...
Não me poupam... não me dão quartel nas suas algaraviadas de botequim,
mas quando por mim passam o humildes e inofensivos’. Segundo meu
amigo, estas palavras são de sua boca, dele, José Veríssimo. Unicamente
o saitaca esqueceu-se de que, para se livrar das piadas da ‘Casa de
Doidos’ (na Gazeta de Notícias) tem de elogiar abertamente os péssimos
versos de Guimarães Passos e a prosice do Pedro Rabelo, como
anteriormente, para fugir às cargas de deboche de seus próprios
companheiros d’Academia Brasileira, agarrando-lhes às mangas, numa
humildade de fralqueiro castigado. Além das patas, desplante.
(Apud: LINS, 1990, p. 52)
Hoje, quando se experimentaram, na prosa, estruturas narrativas diversas e bem
pouco ortodoxas, que inclusive fizeram seus clássicos, desde Oswald de Andrade, com seu
Memórias sentimentais de João Miramar, passando por Clarice Lispector e Lúcio Cardoso,
com suas investigações introspectivas, e chegando aos contemporâneos Murilo Rubião,
José J. Veiga e outros mais para os quais inverossimilhanças e absurdos constituem a
essência de seus projetos, talvez se compreenda a narrativa simbolista como uma
possibilidade de execução.
A leitura dos contos de Gonzaga Duque e, via de regra, de toda narrativa simbolista
pressupõe, a nosso ver, um questionamento dos conceitos definidores do discurso em prosa
e do gênero narrativo, como os concebemos classicamente. Sem essa revisão teórica,
arriscamo-nos a repetir interpretações impertinentes às características intrínsecas a esses
textos, cuja singularidade foi percebida pelos críticos mais atentos e cuidadosos.
4 A instauração do insólito nos contos de Gonzaga Duque
Se nos situamos no nível de uma proposição, no
interior de um discurso, a separação entre o
verdadeiro e o falso não é nem arbitrária, nem
modificável, nem institucional, nem violenta. Mas se
nos situarmos em outra escala (...) então é talvez algo
como um sistema de exclusão (sistema historicamente
constrangedor) que vemos desenhar-se.
(Foucault)
Como sabemos, em seu tempo e nos anos que a ele se seguiram, as narrativas
simbolistas e dentre elas as de Gonzaga Duque conheceram um ostracismo inegável.
Dissemos, em outro momento, que, em muito, tal ostracismo deveu-se à avaliação feita pela
crítica literária sua contemporânea, em sua maioria afinada com os princípios verossímeis e
flagrantemente sociais da narrativa realista. Motivada pela opção estético-ideológica, essa
crítica reservou às narrativas que investigamos um papel marginal, de literatura menor,
noção respaldada até por aqueles que admiravam os preceitos estéticos simbolistas.
Propomos uma interpretação um pouco mais acurada dessa avaliação apressada da
crítica do início do século XX, que estabeleceu, grosso modo, o cânone do período,
buscando compreender os pressupostos que nortearam a confecção daquelas narrativas
simbolistas/decadentistas e o que, de fato, elas representam, em oposição ao realismo
dominante.
Em nossa compreensão, o afastamento deliberado dessas narrativas do modelo
instituído na época não pode ser entendido apenas com a observação das escolhas literárias
da estética historicamente denominada de Simbolismo ou de Decadentismo. Embora sejam
de fato importantes para a construção narrativa os pressupostos desses movimentos
literários, parece-nos que essa clara opção estética, vinculada à noção de estilo de época,
deve estar necessariamente associada à percepção maior da existência de um percurso
paralelo que a literatura, como desveladora do real (ou das imagens construídas do real),
sempre cumpriu, através da insistente colocação de que o mundo pode configurar-se, para
além das aparentes sombras, como outra(s) realidade(s), a que um discurso monofônico não
é capaz de representar. É justamente à construção de um outro discurso literário, estranho à
voz monocórdica reinante, que os contos de Gonzaga Duque procedem. Segundo Cláudia
de Oliveira:
Podemos entender a dicção simbolista como um modo de dizer não a um
conjunto de vivências que eram contemporâneas em si mesmas. Em
particular foi uma reação, não contra o moralismo e o racionalismo,
mas também contra o materialismo dos anos de 1880. E, em um sentido
mais estrito (literariamente), significou um protesto contra as doutrinas
opressivas do naturalismo, representadas, sobretudo, por novelistas como
Zola. (OLIVEIRA, 2008, p. 12)
Os contos da obra de Gonzaga Duque, Horto de mágoas, remetem-nos a universos
peculiares, distintos entre si, mas que em comum apresentam o que poderíamos chamar de
insólito. O conceito de insólito, ou seja, de incomum, de imprevisível, de não habitual,
revela seu caráter corrosivo, em relação ao instituído:
(...) os eventos insólitos seriam aqueles que não são frequentes de
acontecer, são raros, pouco costumeiros, inabituais, inusuais, incomuns,
anormais, contrariam o uso, os costumes, as regras e as tradições,
enfim, surpreendem ou decepcionam o senso comum, as expectativas
quotidianas correspondentes à dada cultura, a dado momento, à
dada e específica experienciação da realidade. É lícito opor o insólito
ao natural e ao ordinário (...) (GARCIA, 2007, p. 20, grifos nossos)
Logo, o insólito não só se evidencia como um elemento esteticamente colocado, ou
seja, como um dado do estilo ou do movimento simbolista/decadentista, mas também
representa uma tomada de posição diante do estabelecido fora da arte, como uma necessária
ruptura.
Na breve fortuna crítica do livro corpus deste estudo, vemos vários testemunhos
que, de forma mais ou menos consciente, levam à constatação da presença do insólito. Foi a
aferição do insólito que provavelmente levou Alfredo Bosi a definir Horto de mágoas como
“livro de contos nefelibatas” (BOSI, 1988, p. 330) e nada mais comentar. Massaud Moisés
também constata o caráter insólito dos textos, ao comentar que “o ocultismo é a primeira
força motriz das narrativas de Gonzaga Duque” (MOISÉS, 1985, p. 142) e que tal
ocultismo não se realiza apenas no âmbito temático, mas em várias esferas do texto. Em
outro ponto, comentando as narrativas, afirma: “A matéria narrativa, nem por ser insólita,
determinou que o contista resvalasse no pieguismo ou no dramalhão” (MOISÉS, 1985, p.
143). O próprio subtítulo da primeira edição do livro faz menção explícita à presença do
insólito: “contos e fantasias em prosa poética”. Vera Lins, em texto crítico que introduz a
segunda edição de Horto de mágoas, define os contos como cercados de mistério e enigma.
Júlio Casteñon Guimarães, também em introdução à edição de 1995, comenta que se
percebe nos contos a busca pela raridade, pelo incomum, num nítido projeto de “invenção”,
tanto no plano temático, quanto, principalmente, no plano linguístico. Todos esses
comentários da crítica confirmam a forte presença do insólito como pedra de toque dos
contos. Mostrando o descompasso entre a produção simbolista de Gonzaga Duque e a
representação realista, fruto do mundo moderno que se construíra, Vera Lins comenta:
Os simbolistas, entre os quais se filiam Gonzaga Duque, Nestor Vitor,
Mario Pederneiras, na sua rejeição de um mundo regido por mecanismos
de relógio, herdeiros dos românticos alemães, marcados por Wagner,
Schopenhauer e Nietzsche, constroem uma subjetividade mais complexa,
que recoloca o mistério, a sinuosidade, a espiritualidade e a imaginação,
num mundo que se quer cada vez mais guiar pelo utilitarismo e a
imediaticidade. E, ainda, trazem a nostalgia de uma harmonia perdida.
(LINS, 1991, p. 34)
Evidentemente, em se tratando de literatura, como sabemos pela ampla bibliografia
crítica a respeito, a noção do que é ou não insólito, do que desperta ou não estranhamento
no leitor, do que rompe ou não com as regras, varia culturalmente, portanto, no tempo e no
espaço. Logo, é mister que nos lembremos da localização cultural da obra de Gonzaga
Duque para melhor tratar do insólito que a marca.
Os contos ou narrativas curtas de Gonzaga Duque foram dados ao público no início
do século XX, no Rio de Janeiro, quando e onde se concentravam, no Brasil, os saberes
dominantes positivistas e deterministas, base ideológica da produção literária de feição
realista. Como tal, nascem insólitos, por não se adequarem a esse paradigma, ao qual,
inclusive conscientemente, opõem-se. Sobre essa oposição, mostra-se interessante a
seguinte observação feita por Vera Lins sobre a localização histórica da produção narrativa
de Gonzaga Duque, como uma produção de “descontentes”:
Mas, ao mesmo tempo que essa nova ordem, estruturada pela lógica da
mercadoria e pela razão técnico-científica, gera políticos, empresários e
engenheiros pragmáticos, preocupados com poder e lucro rápidos, ela é
responsável também pela configuração de um novo homem urbano,
complexo, moderno que pensa de acordo com sua nova situação. Vem se
juntar à perda da possibilidade de moldar a ordem pública, uma crescente
importância dos valores da intimidade e uma visão psicologizada do real.
(LINS, 1991, p. 39)
Embora a irrealidade seja condição da arte e da literatura, a sensação despertada no
leitor de que algo é insólito radicalizou-se com a revolução técnico-científica, quando o
triunfo de uma ordem racional e necessária para os fenômenos e um determinismo estrito
no encadeamento da causas e efeitos levaram o leitor a considerar a impossibilidade do
milagre, sustentando o surgimento dos atributos de fantástico, de insólito, de sobrenatural
etc.
Nos textos em questão, o insólito irrompe, ora mais, ora menos deliberadamente,
para questionar, em última instância, o que se compreendia, naquele momento, como
literatura, como arte, como verdade. Por estarem ligadas esteticamente ao
Simbolismo/Decadentismo, essas narrativas inserem-se numa “tradição” que remonta às
camadas populares, em oposição à alta cultura (cf. GARCIA, 2007). Resgatam o imaginário
coletivo lendário, o elo dos povos com elementos de ordem mítica, obliterados pela cultura
racionalista e cientificista que se firmara, paulatinamente, desde os tempos do
Renascimento, e que estava francamente em voga por ocasião de sua publicação.
Embora Gonzaga Duque fosse um homem refinado, com marcantes ligações com a
cultura europeia, embora o Simbolismo tenha sido visto por muitos como um movimento
simplesmente estecista, alienado das questões mais íntimas do povo, podemos, em última
análise, considerar que a ruptura consciente efetuada com as linhas de pensamento
racionalistas em voga na época seja, por si só, uma ligação com certo substrato popular.
Bosi nos lembra que, em suas origens, o Simbolismo colocou-se como ponto de
resistência de estratos pré-burgueses ou antiburgueses que ficaram à margem da
industrialização (BOSI, 1988, p. 295). Além disso, sua ligação com o Romantismo e, por
tabela, com a atmosfera medieval, leva-o a mundividências certamente de raízes populares.
A tradição realista, por sua vez, liga-se a um movimento erudito - portanto, para
além da cosmovisão popular e ancestral - que construiu todo o modo de pensar da
civilização ocidental sobre os pilares do conhecimento entendido como resultante da ação
da razão e que colocou em descrédito a sensibilidade mística e o conhecimento dela
advindo. A cultura popular, alicerçada em mitos e lendas e em um conhecimento de ordem
diversa da racional, criou, paralelamente, uma certa “tradição irrealista”, na qual sempre se
expressou o fantástico, o sobrenatural, o insólito etc.
Poderíamos dizer que o insólito se instaura, no plano do enunciado, toda vez que, no
texto, o conteúdo fabular não tem a virtualidade do poder acontecer, por infringir as leis
físicas da realidade em que vivemos e os padrões da razão. Logo, de modo denotativo ou
alegórico, relativizariam a verossimilhança realista estrita.
Assim sendo, nessa categoria inserir-se-iam obras de nomes como Homero,
Shakespeare, Cervantes ou Goethe. No Brasil, Álvares de Azevedo, com seu Noite na
taverna, Macedo, com seu Luneta mágica, Machado com contos como “O Espelho” ou
com romances como Memórias póstumas de Brás Cubas, para não listar os inúmeros
exemplos bem mais contundentes que os séculos XX e XXI nos deram e dão,
demonstrariam a força da reação àquela tradição mimética. Desde os contos de fada até as
narrativas contemporâneas do chamado realismo-fantástico, forma-se, portanto, uma
vertente marginal e de embasamento popular da literatura, cuja peculiaridade é a
relativização do conceito de verdade instituído pela civilização ocidental dominante e à
qual se filiam os contos em questão.
Como dissemos, a verdade das coisas era, nas primeiras décadas do século XX,
construída em bases estritamente científicas e cabia à arte e à literatura o respeito à noção
de verossimilhança externa, compreendida em relação a essa verdade. No entanto, como
textos periféricos quanto ao campo intelectual dominante naquele tempo, as narrativas de
Gonzaga Duque relativizam a verdade, tanto no que diz respeito à sua compreensão
imediata, diante do mundo, quanto à sua manifestação na arte e na literatura. Isso quer dizer
que uma dupla negativa do estabelecido, o que as insere em um movimento na direção
da modernidade.
Não por acaso é na modernidade, e mais ainda na pós-modernidade, que o insólito
se apresenta como expressão genuína da relação do homem, e da literatura, com o mundo.
O caos diante do qual o homem pós-industrialização se coloca gera o permanente
estranhamento, o sentimento de deslocamento, de desconforto, a que o insólito representa.
E não seria justamente esse o sentimento que toma por completo o Pero Roiz no conto
“Ruínas”, com que se encerra o Horto de mágoas?
Esse estado de coisas começa a se delinear
justamente no início do século XX e dele é
manifestação segura, naquela ocasião, a
narrativa simbolista/decadentista, a qual se
vincula a obra de Gonzaga Duque. O sentimento
decadentista de Wilde, Mallarmé, Baudelaire
apresentava as coordenadas da expressão poética
do desajuste do homem diante do mundo
construído pela lógica racional. Poe apontava
para a vigência do insólito na narrativa, como
contraponto à predominância da verossimilhança
realista, representante do discurso literário
oficial. Os contos de Gonzaga Duque prendem-se
a esse modo de pensar e de fazer literatura,
injustamente julgado em seu tempo, no Brasil.
Se o insólito é uma das formas possíveis de diálogo do homem com o mundo (ou do
mundo com o homem), sua transposição para a literatura evidencia para o leitor, que pensa
viver em um mundo tranquilo, de certezas cotidianas, a ruptura da constância desse mundo
falsamente em equilíbrio. Tiraríamos daí uma das funções da literatura do insólito, que
seria a de desvelar a multiplicidade do mundo, camuflada numa aparência de calma
uniformidade.
Nesse sentido, as narrativas de Gonzaga Duque instauram o insólito em vários
níveis. Segundo nossa ótica, o insólito, usado no sentido a que nos referimos, não estaria
limitado apenas ao plano dos temas, mas se apresentaria na deliberada escolha pelo que se
chama convencionalmente de “prosa poética”, uma vez que é o discurso, e não somente o
assunto, que geraria no leitor o estranhamento e despertaria a consciência da multiplicidade
fônica.
Se por um lado, na conceituação de insólito de Garcia (2007) citada, o termo
“evento” nos encaminha ao âmbito da fabulação, aos fatos do enredo, por outro lado, a
referência à quebra de expectativa, de modelo, de padrão, à desfiliação do usual,
contrariando usos e costumes indicada no conceito, pode levar a que compreendamos a
possibilidade de o insólito se colocar no interior do próprio discurso. Seria inlito o
discurso que instaurasse uma fala imprevisível, deslocada em relação ao paradigma
instituído.
Não se esperava, certamente, no início do século XX, um discurso em prosa e
narrativo que não apresentasse de forma objetiva ao leitor o desenrolar dos acontecimentos.
Quando Gonzaga Duque e os demais prosadores simbolistas/decadentistas articulam a
linguagem narrativa de modo diverso do paradigmático, dificultando a compreensão
imediata do referente pelo uso elevadamente literário e poético dos elementos linguísticos,
instaura-se também um outro tipo de insólito que, como o dos eventos, desnorteia e
reconduz.
Alguns contos, como “Posse suprema”, “Ciúmes póstumos” e “Confirmação”,
instauram o insólito no uso fabular do sobrenatural, apresentado sob a forma natural de
quem o não percebe como tal. Em “Miss fatalidade”, aderindo a um aparente discurso
realista, em que se marcam com clareza tempo e espaço e se tem uma sequência de ação
organizada em moldes lógicos, o narrador destrói o discurso aparentemente adotado, pela
confirmação insólita da personificação da fatalidade. Em contos como “Idílio roxo” e “Sob
a estola da morte”, a morte apresentada por uma enunciação poética estranha à narrativa
insere o insólito no plano da aquisição do próprio discurso narrativo como categoria,
relativizando os paradigmas literários e a noção de gêneros. Mas é em “Sapo!...”, em
“Aquela mulher” e em “Ruínas” que a idéia da adoção do insólito como modo discendi
capaz de subverter a ordem instituída, contribuindo polifonicamente para a compreensão da
realidade e da arte se mostra mais consciente.
5 Simbolismo/Decadentismo: movimentos exóticos
Não outro critério da existência de um intelectual, de um
artista ou de uma escola que sua capacidade de se fazer
reconhecer como alguém que sustenta uma posição no
campo, posição em relação à qual os outros devem se
situar, se definir, e a problemática do tempo não é outra
coisa que o conjunto destas relações de posição e,
inseparavelmente, de tomada de posição à tomada de
posição. Concretamente, isto significa que o aparecimento
de um artista, de uma escola, de um partido ou de um
movimento a título de posição constitutiva de um campo
(artístico, político ou outro) é marcada pelo fato de que sua
existência "coloca, como se diz, problemas" aos ocupantes
das outras posições; que as teses que ele afirma se tornam
um objeto de lutas, que constituem um dos termos das
grandes oposições em torno das quais se organiza a luta e
que servem para pensar esta luta (por exemplo,
direita/esquerda, claro/escuro,
cientificismo/anticientificismo etc.).
(Pierre Bourdieu)
Sabemos que a literatura, como sistema semiótico, efetua uma espécie de
“representação ao quadrado” do mundo real. Isso porque, ao utilizar-se de um sistema
semiótico original e anterior a língua que estabelece com o referente do mundo real
(objetivo ou subjetivo) uma relação de representação”, ao criar seu próprio universo
literário – o faz redobrando a “representação” (configurando-se assim como semiótica
conotativa, segundo Hjelmslev) (BASTOS. 2004, p. 3). Com isso, teríamos,
necessariamente, uma distância “dobrada” entre o signo literário e a realidade representada.
Chamamos de literatura de feição realista, portanto, aquela que busca neutralizar o
mais possível essa distância inerente à semiótica literária. Nesse caso, há a intenção clara de
aproximar o referente do signo literário (construído pela própria semiótica literária; não se
encontrando “fora” dela) do referente do signo linguístico que representa, em primeira
instância, a realidade. Ou seja, pretende-se, embora conheçamos a impossibilidade disto,
uma identificação do universo literariamente construído com o mundo real como ele se
apresenta.
Filosoficamente, no entanto, não é mais possível conceber-se “a realidade”, como
uma existência única, mas sim como algo condicionado por diversas variáveis - tempo,
espaço, classe social, ideologia etc. Daí porque parece esquizofrênico, hoje, buscar
representar-se, mimeticamente, em forma única”, algo que não se caracteriza como
existência “uni-forme”. Da mesma maneira, a própria ideia de que a arte seja compreendida
como mimèsis, como a definiram Platão e, um pouco mais relativamente, Aristóteles,
também se torna um problema, bastante discutido pela crítica e que recai sobre a
definição do que se deva considerar arte realista, o que já foi discutido neste trabalho.
Se compreendida como cópia, a obra de arte que se queira realista não será,
evidentemente, o objeto copiado, logo, não fará parte da realidade; no entanto, embora não
componha o real, paradoxalmente, existe; é inegável. Com isso, cria-se uma diferença
sofismática entre o real verdadeiro e o real falso, do qual faria parte o produto artístico,
relativizando, necessariamente, o realismo pretendido pela obra. Portanto, falar-se de
realismo, no sentido da arte que copie o mais fielmente possível o real, é, naturalmente,
referir-se a algo que, por si só, apresenta-se, necessariamente, não-real (ou irreal), o que
desmistificaria, por exemplo, a ilusão naturalista (que pretendia a total identificação entre o
literário e o real).
Conforme dissemos em outro momento, o conceito de realismo, portanto, é muito
polêmico, embora seja pertinente usá-lo. Observadas as ressalvas feitas, quando falamos de
literatura realista estamos falando de uma intenção de aproximação do discurso literário do
referente imediato, que será sempre absolutamente utópica e, necessariamente, falsa.
Outra questão que se coloca como fundamental quando pretendemos conceituar o
princípio realista, sobretudo, para a ficção narrativa é a da verossimilhança. Se sabemos
que a mimesis, sobretudo do ponto de vista platônico, confundiu e, ainda, polariza os
conceitos de “verdadeiro” e “falso”, de certa maneira, hierarquizando-os, fazendo com que
a arte (“imitação”) se subordinasse à realidade, o conceito de verossimilhança, agregado ao
de mímesis pela ótica aristotélica, garante a integridade ficcional da obra de arte, ainda que
estabelecendo alguns paradigmas para sua “criação”. São esses paradigmas que
sustentariam a tendência realista, uma vez que, embora não garantam a imitação do real,
indicam a semelhança entre a ficção e a realidade. Por isso, “por mais evidentes que sejam
os obstáculos à perfeita representação da realidade, é possível ainda defender uma forma
mitigada de realismo fundada no conceito de verossimilhança” (BASTOS, 2004, p. 12).
Dessa forma, consideramos como realista a obra de arte e, particularmente, a
narrativa literária, em que haja a “satisfatória conformidade à aparência da realidade na
qual se movimenta o homem comum” (BASTOS, 2004, p. 12)
Como ressaltamos, a Literatura Brasileira que se fez canônica é, nesse sentido,
predominantemente realista. Desde seus primórdios até a modernidade, é inegável a
preponderância no cânone de obras cujo referente último se encontre na realidade, no que
ela tem de mais palpável. O realismo tem sido, portanto, a marca indefectível da literatura
que vingou dominante, tanto na poesia, quanto na narrativa. Na ficção, porém, tal marca é
ainda mais presente do que nos textos poéticos. Nascida com o Romantismo, a ficção
brasileira que se consagrou adotou, desde logo, elementos de composição realistas. A forte
tendência à apresentação mimética do objeto e a busca por narrativas verossímeis talvez
sejam as características que melhor comprovem a predominância do realismo, mesmo em
textos cuja mundividência e estética fossem românticas. Não é difícil de verificar esses
atributos nos livros de Alencar ou mesmo nos de Macedo. Ainda que suas histórias
descambem para o não crível, sempre a intenção praticamente explícita do escritor de
reinstaurar a verossimilhança tão logo ela tenha sido ameaçada, através de artifícios como
basear a autenticidade da narrativa em uma troca de correspondências (algo do âmbito do
real e não do ficcional) ou chamar o testemunho, autorizado, de alguém que ratifique a
veracidade do relato. As personagens, o espaço narrativo, o enredo em si, tudo que faz parte
da trama ficcional sempre nos lembra muito bem o mundo real como nós o conhecemos.
Do mesmo modo, temos a “pesquisa da realidade” muitas vezes como fundamento
para a construção da história ficcional, o que mostraria a fidelidade ao objeto, característica
da obra realista. (Ou, ao contrário, a acusação, por exemplo, feita, muitas vezes, a Alencar,
de que nem sempre foi, realisticamente, fiel ao que pretendia apresentar, por “criar” mais
do que “pesquisar”, sobretudo nos livros de linhagem indianista ou regional, é prova da
expectativa realista que se tinha acerca da ficção literária, mesmo no Romantismo.) A
historicidade do D. Antônio de Mariz ou dos acontecimentos de Guerra dos Mascates, a
tendência à crônica de costumes urbanos de Lucíola ou de Memórias de um sargento de
milícias, a intenção do retrato pitoresco de um grupo como em O gaúcho ou em Inocência,
mesmo que por vezes tingidos pelas tintas de certo idealismo, demonstram claramente
estratégias realistas que marcaram o início e o fundamento de nossa ficção.
Nas últimas décadas do século XIX, ainda que a ficção machadiana rompesse, em
certos termos, com a tradição realista que se vinha fazendo nos anos românticos, como, por
exemplo, na construção do inverossímil “defunto autor” de Memórias Póstumas de Brás
Cubas, ou no uso intenso do discurso irônico e, sobretudo, autoconsciente que desvela o
fazer literário mostrando-o como indubitavelmente ficcional, a narrativa naturalista de
Azevedo a continuou, acrescendo-a agora do método científico da observação e da
experimentação, levando a representação mimética do real, na obra de arte, às últimas
consequências.
Cabe dizer que, agora, à ficção, que representa o real, não bastaria ser somente
crível ou verossímil, mas “verdadeira”, no que se refere à “verdade científica”. A narrativa
naturalista nada mais seria do que o relato de uma experiência que o romancista, à moda do
cientista, faria com seus personagens, retirados meticulosamente da realidade social
observada, como preconizou Zola em seu O romance experimental, publicado em 1880.
Anula-se, com essa perspectiva, o mais possível, o poder de “criação”. E define-se,
precisamente, o que se consideraria “a realidade”: aquilo cuja existência é passível de
comprovação científica. Embora a relação entre o ficcional e o real não se tenha alterado
muito do Romantismo para o Naturalismo, mantendo-se o ponto de vista realista, visto que,
em ambos os momentos, faz-se questão de se atrelar uma a outra, como representação (mais
ou menos) mimética, refina-se (e isso é muito importante para a verificação do exotismo
simbolista) a noção do que seria o real.
A realidade sobre a qual se volta a ficção romântica não apresenta o requinte do
recorte filosófico cientificista (positivista e determinista) que predominou no Naturalismo
e, por isso, nela cabiam referentes inadmissíveis na ficção naturalista. Ainda que depois se
buscassem justificativas plausíveis e muitas vezes (pseudo)científicas, é possível
considerar-se verossímil, para a mundividência romântica, o enredo de A moreninha, com
sua peripécia (quase) inacreditável ou o fim sentimentalista e (in)crível de Cinco Minutos.
O bom-senso racional estava preservado em sua essência, ainda que apresentasse, aqui ou
acolá, pequenas ranhuras, muitas vezes resultantes da intromissão do mundo subjetivo
sobre o mundo objetivo.
No Naturalismo, no entanto, só podia ser representado o que objetivamente se
mostrasse. Seleciona-se, assim, mais ainda, em relação ao Romantismo, aquilo que poderia
ser motivo literário. E é daí que surge o choque “irrealista” em que se transformou a
experiência da narrativa simbolista, fazendo-a, sem dúvida, exótica no que diz respeito ao
cânone. Não aparece nela apenas uma certa leitura subjetiva da realidade aparente, como
faziam os românticos em suas narrativas, mas uma “outra” realidade.
A despeito de a verossimilhança aristotélica não significar o veto radical
ao inverossímil, por paradoxal que pareça, a cultura ocidental tem
privilegiado o realismo verossímil, sem dúvida. Excetuando a epopéia de
corte clássico, o aproveitamento do dado inverossímil fora, até o século
passado, relegado às formas menores do conto de fadas, do romance de
terror, dos contos populares etc.(...) O que há de mais relevante no
advento do romance como substituto das epopéias é que o romance
cancelou o maravilhoso e deixou as personagens entregues à própria
medida humana, vivendo situações em tudo parecidas com as situações
vividas pelo homem de carne e osso. Daí a redução do verossímil a
padrões de verificabilidade imediata, ditados sobretudo pela ciência.
(BASTOS, 2004, p. 12)
Quando lemos as narrativas simbolistas é justamente o distanciamento em relação a
esse verossímil, que, de pronto, percebemos, pela representação, na obra, de um “referente”
cujo reconhecimento não se faz a partir da verificação da realidade apreendida pelos
critérios científicos. É necessário se ampliar o paradigma do que seja considerado “real” ou
“passível de existir” para se compreender aquilo sobre o que contam tais narrativas.
Aliás, a ruptura com os paradigmas realistas de
mundo não foi prerrogativa somente da narrativa
simbolista, mas desse movimento estético como
um todo. No que diz respeito à produção da
linguagem poética, a tomada do símbolo como
forma de expressão transformara a poesia
simbolista na mais “literária” das poesias, uma
vez que a distanciara, em mais de um grau, por
causa da elaboração linguística
metafórica/simbólica, da realidade imediata da
referencialidade. Além disso, o fato de dar
profundidade ao “eu”, que fora buscado pelos
românticos, tentando captar não o consciente,
mas, principalmente, o inconsciente, fez com que
irreversivelmente, no Simbolismo, a subjetividade
superasse qualquer domínio da objetividade e,
portanto, da perspectiva realista imediata.
Como se sabe, a estética romântica identificava-se por um tipo de
introversão, que somente perscrutava as camadas superficiais do mundo
interior, em que palpitavam sensações e conflitos de ordem emocional.
Os simbolistas, por sua vez, ao voltar-se para dentro do ego, encetam
uma viagem de imprevisíveis conseqüências, no encalço dos estratos
profundos da psique. Com isso, acabaram ultrapassando o nível da
razoabilidade em que, ao fim das contas, se colocavam os românticos,
ainda que descabelados e furiosos. Assim, cruzando a zona do
consciente, imergiam nas esferas inconscientes, em busca do “eu
profundo”. E quanto mais o faziam, mais atingiam as camadas anteriores
à fala e à lógica: invadiam os devãos do universo íntimo de cada um,
onde reinam o caos e a anarquia, vivências fluidas, pré-lógicas, inefáveis.
Descobri-las ou surpreendê-las como a boiar sobre as águas dum lago
recôndito, examiná-las e ‘senti-las’, - eis a suprema quimera. (MOISÉS,
1985, p. 9)
O corte simbolista com a racionalidade é, portanto, um ponto fundamental para a
compreensão de um possível “irrealismo” defendido por essa estética. Quer seja pela
construção de uma linguagem absolutamente “poética” (no sentido grego de poiesis,
original, única, criação pura, porque rompe com o referente linguística e socialmente
acordado da palavra, instaurando sentidos novos e imprevistos, afastando-se, por isso, da
representação realista), quer seja pela captura de uma dada “realidade” (subjetiva e “irreal”)
sem referente objetivo (do ponto de vista físico), o Simbolismo desejava configurar-se
como oposição ao realismo predominante na tradição literária brasileira.
6 Realidade reinventada pelo Simbolismo/Decandentismo
O que faz com que se compreenda alguém que chora,
por exemplo, não é analisar as lágrimas no
microscópio, mas saber o significado da dor, da
emoção.
(Edgar Morin)
- Faça-me o obséquio de trazer reunidos
Cloreto de sódio, água e albumina...
Ah! Basta isto, porque isto é que origina
A lágrima de todos os vencidos!
-"A farmacologia e a medicina
Com a relatividade dos sentidos
Desconhecem os mil desconhecidos
Segredos dessa secreção divina"
- O farmacêutico me obtemperou. –
(Augusto dos Anjos)
Quando discutimos o conceito de realismo na literatura e nele inserimos a idéia da
verossimilhança externa, naturalmente o fizemos partindo de pressupostos. Ou seja,
pressupusemos que a realidade é aquela construída sob a ótica dominante da razão, da
ciência e da objetividade e a partir dela seria verossímil” toda criação estética que a
tomasse como paradigma. No entanto, poderíamos considerar que a realidade não é a que a
objetividade, a ciência e a razão nos apresentam, mas outra; qualquer outra. Poderíamos
considerar que a realidade, como a chamamos comumente, nada mais é do que uma
construção feita paulatinamente pela humanidade desde os seus primórdios, e não “a
realidade” mesma (que talvez nem exista de forma categórica...).
É dessa consideração que partem as narrativas simbolistas:
Para eles (simbolistas), a razão é insuficiente, assim como os sistemas
explicativos que o mundo ocidental construiu. Nisso estão mais próximos
das nossas questões hoje, em plena pós-modernidade. Vêem a ciência
como um mito moderno, marcada pelo evolucionismo que acredita no
progresso do conhecimento. Razão, ciência e conhecimento são
problematizados. (LINS, 1995, p. 10)
Por isso, a verificação da aplicação ou não do princípio da verossimilhança (no
sentido externo) torna-se irrelevante, para a análise da narrativa simbolista, uma vez que se
altera o sentido de realidade, seu modelo, seu paradigma. A história que se conta é
verossímil a quê? Ao mundo como ele se apresenta aos homens de carne e osso? Mas qual
é esse mundo que se apresenta? Que critérios se usam para aferir a existência ou não de
algum dado ou acontecimento desse mundo, ainda que de homens de carne e osso? Se não
partirmos de dados apriorísticos, ideológicos e, portanto, sempre parciais, não
conseguiremos jamais responder a essas perguntas. Ou seja, a não ser que compactuemos
com os cientificistas da época e admitamos que o mundo é aquele que o pensamento
científico e racional é capaz de apreender e explicar, a verossimilhança externa não poderá
ser um conceito levado em consideração para a compreensão da ficção simbolista.
Por outro lado, se, de certa forma, estamos dizendo que a visão de mundo
apresentada pela ciência e pela razão é uma “criação” (e, portanto, algo que estabelece com
o sujeito uma relação contígua à estabelecida pela fé” ou pela “crença”), ainda que
fundamentada por toda civilização ocidental, o mesmo se pode dizer do mundo construído
pelos simbolistas nas narrativas que investigamos. Também esse é um mundo a que se
chega a partir de pressuposições, de injunções e, portanto, de uma crença somente
“comprovável” por sua própria lógica interna, tanto quanto à da ciência.
O simbolismo não é o oposto do naturalismo, mas sua outra face.
Também há um destino, uma fatalidade que pesa sobre o homem, não por
razões concretas como meio, raça, filiação, mas por motivos misteriosos,
cósmicos, pelo acaso. Forças que o homem não controla entram em jogo.
(LINS, 2004, p. 11-12)
Interessante é, no tocante a esse aspecto, observarmos os conceitos de fantástico,
estranho e maravilhoso, formulados por Todorov e que talvez nos ajudem a compreender
melhor a dinâmica da construção de sentidos da obra que estudamos. A teoria de Todorov,
para marcar o domínio do fantástico, do estranho ou do maravilhoso, parte de uma visão
preconcebida, que é a da tradição realista, segundo a qual o mundo é aquele como o
concebe a lógica racional. Vejamos:
Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem
diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não
pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. (TODOROV,
1975, p. 30 – grifos nossos)
Percebemos, na passagem grifada acima, que Todorov parte de um juízo de valores.
é possível reconhecer o fantástico, o estranho ou o maravilhoso se consideramos que o
mundo, fora da obra de arte, não contempla “diabos, sílfides nem vampiros”, ou seja, se o
mundo é aquele que a ciência nos apresenta. Caso contrário, caso concebamos que possa
haver outra realidade, caso “acreditemos” que haja “o diabo na rua, no meio do
redemoinho” (assim como “não acreditamos” na sua existência, se tomamos o ponto de
vista científico), não porque se categorizar o fantástico ou o maravilhoso, nem em se
reconhecer algo como estranho. E não se trataria, aqui, de uma crença na existência desse
mundo a que os cientificistas chamam “maravilhoso” no âmbito, somente, da obra de arte,
mas fora dela, como acontece, via de regra, nas narrativas simbolistas. Nessas narrativas,
diferente dos contos de fada, em que lá, internamente, pode-se acreditar em bruxas que
transformam príncipes em sapos, o “maravilhoso” (como o chamam os cientificistas)
aparece como representação da realidade, também compreendida como “maravilhosa”
(como a chamariam os cientificistas).
O que estamos tentando dizer é que uma coisa é a criação de um mundo literário -
concebido como ficcional - no qual regras são estabelecidas a partir de critérios
exclusivamente artísticos (“inventados”), como é o caso, por exemplo, do Brás Cubas, de
Machado de Assis, em que a consciência da ausência de correspondência entre a ficção e a
realidade exclui qualquer problematização acerca da “verdade” ou da “mentira”, porque se
sabe (e se quer) “mentira”. Outra coisa é a criação de um mundo literário que se imagina,
sim, representação da realidade, mas de uma realidade “exótica”, porque não é aquela
compartilhada pela maioria esmagadora dos que teorizaram sobre o que seria a “realidade”.
No primeiro caso, teríamos a mais bem acabada manifestação anti-realista, no segundo
caso, ainda que “irrealista” a partir dos parâmetros lógico-racionais, continuaríamos a ter
“realismo”.
Como concepção estética, poderíamos, então, dizer que as narrativas simbolistas são
“realistas”, porque se pretendiam como representações da realidade. No entanto, não da
realidade sensível, comprovável pela ciência, mas do real “irreal” (e vai no uso da palavra o
peso da tradição racional...), ou seja, metafísico, místico, esotérico, espiritual. Nesse
sentido, a ficção simbolista relativizaria a noção de “verdade” instituída, buscando
representar uma outra categoria do que fosse o “verdadeiro”.
Tal processo de representação da realidade é semelhante ao que Auerbach descreve
ao comentar o estabelecimento do “verossímil” no relato bíblico, em cotejo com a narrativa
de Homero, e que mostra a configuração do caráter de desejo de fidelidade ao que se
concebe não só como “realidade”, mas principalmente, como “verdade”:
Tinha que escrever exatamente aquilo que lhe fosse exigido por sua fé na
verdade da tradição, ou, do ponto de vista racionalista, por seu interesse
na sua verossimilhança seja como for, a sua fantasia inventiva ou
descritiva estava estritamente delimitada
. Sua atividade devia limitar-
se a redigir de maneira efetiva a tradição devota. O que ele produzia,
portanto, não visava, imediatamente, à ‘realidade’ quando a atingia,
isto era um meio, nunca um fim mas à verdade. (AUERBACH, 2007,
p. 11, grifos nossos)
Evidentemente, há claras distinções entre os dois relatos – o bíblico e o simbolista
mas se mantém o ponto de contato na identificação e representação de uma realidade
distinta daquela capaz de ser aferida pela razão e na qual se acredita como a única
verdadeira. Em última análise, o texto simbolista veicularia um discurso, portanto,
oprimido pelo domínio ideológico vigente.
É essa diferença em relação à realidade compreensível pela razão que faz com que
outras estratégias de representação literária sejam utilizadas. Não a necessidade
descritiva, não há a marcação precisa de tempo e espaço, pois todos esses elementos não
são pertencentes à realidade que se deseja representar. Auerbach, ao falar do relato bíblico,
chega mesmo a defender a inerência a esse do “segundo sentido”, do “caráter recôndito e
obscuro” (AUERBACH, 2007, p. 12), o que nos lembra bastante a construção do texto
simbolista.
Na história de Isaac não é somente a intervenção de Deus no princípio e
no fim, mas também, os elementos factuais e psicológicos no seu interior
que permanecem obscuros, tocados apenas de leve, carregados de
segundos planos; e é justamente por isso que não precisam de
investigação profunda e interpretação, mas ao exigem. (AUERBACH,
2007, p. 12)
Não é, assim, a simbolista, uma narrativa que se afaste da representação da
realidade, mas que representa uma realidade não “representável” pelas estratégias que
caracterizam a tradição tipicamente realista; daí o estranhamento que causam no leitor
acostumado à representação do mundo sensível construído pela lógica racional.
Desse modo, embora a narrativa simbolista possa ser considerada oposta ao
realismo, tal oposição se sustenta caso a compreendamos a partir do ponto de vista
adotado pelo próprio realismo, qual seja, a visão racional e científica do mundo. Ao
contrário, se buscarmos um prisma externo, relativizando o próprio conceito de realidade,
percebemos que ambas as narrativas realista e simbolista estão mais próximas do que
desejavam.
A princípio, a observação que fizemos, acerca da substituição que o Simbolismo
propõe da noção de realidade, poderia colocá-lo na mesma posição arrogante do
realismo/naturalismo, quanto à detenção do conceito de “verdade”. Mudam os paradigmas,
mas mantém-se a pretensão de se entoar um discurso que se quer monofônico, único,
porque verdadeiro. No lugar da visão científica, coloca-se a visão religiosa. Dogmas por
dogmas. No entanto, parece-nos que, no jogo ideológico do 1900, não é possível que essa
troca seja uma banalidade, e a proposta de mundividência simbolista possa ser dotada de
tanta autossuficiência quanto a do conhecimento estabelecido como tal.
Estamos diante de uma luta intensa pela apreensão do saber. Enquanto os
realistas/naturalistas endossam o discurso dominante da ciência como o único capaz de
explicar o que é o mundo, os simbolistas entoam outro coro. Esse entoar dissonante lança
sobre o discurso científico a dúvida, a incerteza - será essa a única explicação para as coisas
que nos cercam? Essa dúvida marca vários contos de Horto de mágoas de modo exemplar,
através da ambiguidade entre o uso de esquemas lógicos como estruturadores do
pensamento que “quer conhecer” e sua negação com a instauração do insólito, do
aparentemente sobrenatural e do predomínio da subjetividade, a descaracterizar e colocar
em descrédito tais esquemas lógicos (cf. “Confirmação”).
Se por um momento parece que o discurso simbolista é tão doutrinário e dogmático,
quanto o próprio discurso realista/naturalista, muito embora seja seu avesso, essa avaliação
não procede, pois esbarra na posição que ambos ocupam no campo intelectual. Dentro
desse campo, falar a “sua verdade”, para os realistas/naturalistas, é falar a verdade”. Falar
a “sua verdade”, para os simbolistas, é falar “uma mentira”. Daí porque esse último ato de
fala não pode ser considerado autoritário, ou dogmático, ou doutrinário, mas sim um falar
cético, que busca instaurar necessariamente a polifonia e a desconfiança na realidade como
ela dominantemente se apresenta. Abre a múltipla possibilidade de interpretação, tentando
deslocar o olhar contaminado para outro ponto de vista. É, em suma, um tentar “duvidar”
da verdade instituída pelo vislumbramento de uma diferente possível “verdade”.
Não se trata simplesmente de trocar uma determinada noção de realidade por outra,
como doutrinas que se substituem ou que se colocam como opções de mundividência a
quem se apresentem. A realidade alicerçada no conhecimento científico, sobretudo
positivo, é um terreno sólido demais. Em contrapartida, o mundo construído pelas
narrativas simbolistas chega ao leitor contaminado pela quase inexorável marca da
impossibilidade, identifica-se, para a ideologia dominante, ao nefelibatismo inconciliável
com as noções de “verdade”, de “fato” e, portanto, de “realidade”.
Por isso, a expressão dessa realidade irrealista”, por si só, é um elemento
profundamente corrosivo, embora aparentemente inofensivo, pois facilmente colocado em
descrédito pelas leis que regem o mundo “como ele se apresenta”.
Na verdade, a questão central da distinção entre ambas as narrativas é de fundo
epistemológico. Enquanto o realismo/naturalismo é o representante literário de dada visão
epistemológica – aquela absolutamente dominante na civilização ocidental, baseada na
aceitação da ciência como aferidora da verdade e na tecnologia como arauto do progresso
da humanidade o Simbolismo constitui-se como revisor desse recorte, projetando uma
outra possibilidade de conhecimento, que não seja baseado na lógica cartesiana e na ciência
positiva. Assim, o Simbolismo sempre institui a dúvida, diante do senso comum
estabelecido pela ordem dominante, e sugere outra ordem de realidade.
Parafraseando Vilém Flusser (2002), poderíamos dizer que enquanto a ordem
dominantemente científica pergunta-se “por quê?” e responde à pergunta a partir da
observação racional da realidade, os simbolistas e sua ordem particular perguntam-se “para
que tudo isso?”, chegando a respostas que não podem se basear na análise objetiva da
realidade, mas em seu aspecto “religioso”, “sacro”, “metafísico”.
É a essa “dimensão sacra do mundo”, que, por paradoxal que pareça, é seu quinhão
absolutamente humano - demasiadamente humano - e como tal irredutível a explicações
objetivas, que o simbolista busca conhecer epistemologicamente e que investiga, dando luz,
em suas obras.
Enquanto realistas/naturalistas embebidos no Positivismo, amantes do bem-viver
proporcionado pelo progresso, preocupam-se em desvendar o mundo pelo conhecimento
científico, simbolistas e decadentistas, tomados pelo tédio diante da “modernidade
material”, introjectam-se em busca de sua própria humanidade talvez perdida, seu sentido
sagrado, porque imaterial, intangível.
Para melhor explicar a distinção entre os dois tipos de “saberes” o científico,
representado pelos realistas/naturalistas, de um lado, e o “sacro”, representado pelos
simbolistas, de outro, vamos citar as palavras de Vilém Flusser (2002). Nas passagens que
citaremos, é usada uma ilustração – a do céu estrelado – para demonstrar a distinção
epistemológica existente entre os dois tipos de mundividência que citamos. A começar, pela
visão científica:
O mundo dos astros, aquilo portanto que se nos apresenta, nas noites
claras como céu estrelado para inspirar nossos poetas e amantes, e nos
telescópios para inspirar os cosmonautas, não tem, no fundo, nem poetas,
nem amantes, nem cosmonautas por finalidade. É, pelo contrário, um
conjunto de fenômenos que resultaram de um processo causal e que
tendem a transformar-se nesse processo. (...) O mundo dos astros teve
início na explosão de tudo que era nada. Essa explosão pôs em
movimento uma cadeia de causas e efeitos. Tratava-se de uma
transformação progressiva e violenta de matéria em energia (...) O “algo”
atual do mundo dos astros é um estágio efêmero desse processo. É óbvio
que num mundo assim a pergunta “para que tudo isto” não cabe. O
mundo dos astros é pura absurdidade. A contemplação do céu estrelado,
longe de inspirar a visão do “puro Ser”, da Divindade, ilustra a ilusão
absurda e diabólica do mundo que nos cerca. Em momentos de
recolhimento podemos admirar-lhe o rigor e a beleza da sua estrutura,
articulável em poucas proposições matemáticas simples. Podemos
admirar o mundo dos astros como obra de arte, mas como obra de arte
inteiramente inútil. É o maior exemplo de “arte pela arte”. As perguntas
que esse mundo impõe começam, todas elas, pelo termo “como?”
inquisitivo, ou pelo termo “por quê?” inquisitivo ou indignado.
(FLUSSER, 2002, p. 24-26)
Essa, no entanto, pode não ser a “verdade única”, como queriam os simbolistas,
mas, simplesmente, uma versão para o que seria real. É preciso questioná-la, duvidar de
suas máximas, de seu ponto de observação, de seu método. A ciência não consegue
responder às inquietações do espírito humano, não responde ao “para que tudo isto?” que o
angustia definitivamente. Logo, é necessária a revisão dos conceitos de verdade, de
realidade, de possibilidade de conhecimento. Flusser continua sua explanação acerca dessa
outra verdade possível, na passagem que transcrevemos a seguir:
Limitemos um pouco a visão colossal que nos tem preocupado até agora
(mundo dos astros), e contemplemos o sistema galáctico do qual a nossa
Terra modesta é parte. (...) Consideremos portanto essa nossa Mãe
amorosa que é a Terra. É ela um corpo a um tempo conservador e
altamente mutável. Tudo nela é moderado. As temperaturas variam
constantemente, mas dentro de limites muito modestos. uma pressão
quase constante, mas maleável, que sua atmosfera gasosa exerce sobre a
solidez fluida da crosta. Suas substâncias se encontram em todos os
estágios de agregado. São sólidas, viscosas, líquidas, emulsões e gases. A
mais ínfima variação de temperatura ou pressão (ínfima se comparada
aos extremos que regem o cosmos) transforma sólidos em gases ou
comprime gases. E, como estágio intermediário, incrivelmente
improvável e incrivelmente fugaz, correm, fluem e derramam-se os
líquidos em busca da vida. (FLUSSER, 2002, p. 27-28)
Percebemos nitidamente a linha sinuosa do pensamento do filósofo nos levando a
outro ponto de vista sobre a realidade que nos cerca, relativizando, através da força enfática
do discurso, os conceitos que a ciência erigiu com estabilidade praticamente inabalável. É
exato esse o percurso que também pretendem cumprir, com suas obras literárias, os
simbolistas, os decadentistas e, especialmente, os contos que nos propusemos a ler.
“Incrivelmente improvável”. Para eles, é assim que se coloca o mundo diante das fórmulas
científicas que o tentavam explicar. Poeticamente, Vilém Flusser prossegue, argumentando
em favor da ótica que vemos defendida também pelo Simbolismo/Decadentismo. A citação
é longa, mais valem as linhas, por sua beleza persuasiva e pela elucidação do duelo
epistemológico travado entre as duas visões de mundo cotejadas:
Nossos ventos assopram nossas nuvens, nossos rios modelam nossas
montanhas, nossos oceanos, inspirados por nossa Lua, retocam
constantemente nossos continentes. Fazem-no para produzir praias
ensolaradas, para criar o ambiente daquele milagre indescritível que é o
surgir da primeira gota daquele polímero viscoso chamado
“protoplasma”, da primeira gota da vida. Como se deu essa conspiração
gigantesca? Como se constelaram as galáxias e astros, como se
conjugaram as influências físicas, rmicas, eletromagnéticas, óticas,
químicas, e incontáveis outras para produzir esse milagre? Como se
contorceu esse cosmos gigantesco todo, para dar à luz essa ínfima
gotinha? E qual é a estrutura dessa gotinha? Ela contém, em sua
organização, o projeto de toda aquela evolução que passa pelos
protozoários, resulta na incrível riqueza de formas das espécies vegetais e
animais, produz o homem com sua capacidade de abranger, de maneira
misteriosa, o cosmos inteiro pela sua força articuladora, pela ngua e
passa, quiçá, além do homem para criar seres ainda mais divinos e
diabólicos que ele. E tudo isto estava contido, em projeto, naquela
primeira gotinha? Não podemos crer, por instante sequer, que tudo é
resultado de um “acaso”. Seria uma “explicação”, cuja inautencidade
existencial grita para os céus. Mas, afinal, “acaso” não é sinônimo de
“milagre”? Não, o mundo dos astros tem uma finalidade, e sentimo-la
dentro da própria medula de nossos ossos. Todo esse processo
aparentemente absurdo tem por finalidade produzir o Sol, e a Terra, e a
vida, e o homem, e aquele espírito humano que indaga por sua finalidade.
(FLUSSER, 2002, p.28)
É adotando essa perspectiva “religiosa”, sacra”, “metafísica” e, ao mesmo tempo,
profunda e dolorosamente humana, que Gonzaga Duque desconstrói o discurso
estabelecido pela ficção realista/naturalista, colocando-o em dúvida e em descrédito, e erige
sua outra “realidade” nas narrativas de Horto de mágoas . Assim, assumindo sua posição
antagônica ao discurso estabelecido, propõe a orquestração da polifonia ao entoar sua fala
insubmissa.
A fim de melhor compreender tal desconstrução a que se propõe o autor,
estabelecemos algumas linhas de leitura neste trabalho. Considerando como motivo central
da obra sua relação conscientemente tensa com o campo intelectual vigente, marcado pelo
Positivismo e pelo Materialismo, começamos por observar os contos em que a temática
ocultista se manifesta com clareza, quais sejam, “Ciúme póstumo”, “Confirmação” e
“Posse suprema”, entoando uma voz insubmissa, contribuindo para a polifonia do contexto
literário daquele tempo. Ampliando nossa perspectiva quanto à tensão estabelecida e a
polifonia buscada, passamos a ler “Benditos olhos!...”, conto que nos serviu de base para a
análise do discurso narrativo insólito, antinatural e burilado, ao modo do art noveau, que
predomina na maioria dos contos trabalhados, comprovando a quebra não com a visão
de mundo realista/naturalista, mas também com sua dicção.
Além desses dois pontos, mais três, intimamente ligados, representam outras
facetas da mesma insubmissão narrativa de Horto de mágoas que desejamos investigar,
reforçando a opção estética dissonante do autor: o enfoque do feminino transgressor, como
elemento corrosivo da moral estabelecida visto em “Aquela mulher...”, “Miss Fatalidade”
e “Agonia por semelhante” a irrupção da autoconsciência literária, com a defesa explícita
da posição simbolista/decadentista verificada em “Sapo!...”, “Ruínas” e “Morte do
palhaço” e a tematização da morte, como realidade indefectível a se impor à vida
desenvolvida em “Idílio Roxo” e “Sob a estola da morte”.
Cabe ressaltar, ainda, que alguns referenciais teóricos que usamos na leitura dos
contos da obra em questão, somente serão apresentados ou discutidos por ocasião dos
respectivos capítulos. Escolhemos esse procedimento para tornar mais clara ao leitor as
conclusões a que pretendemos chegar.
7 O discurso “científico” de “Ciúme póstumo”
“(...) não existe posição exterior - nem absoluta e nem
relativa - para o sujeito: sujeito e objeto desaparecem na
relação/operação de observação/manipulação. O que o
sujeito observa/manipula não é o objeto, mas a
observação/manipulação do objeto.”
(Jesús Ibañez)
“A ciência sem a é aleijada; a sem a ciência é cega.”
(Einstein)
O conto que nos propusemos a ler neste capítulo a fim de melhor estabelecer o que
chamamos de exotismo ficcional é “Ciúme póstumo”, de Gonzaga Duque, publicado, após
a morte do autor, no volume Horto de mágoas, em 1914. Como dissemos, tomaremos
por base, daqui para frente, a edição crítica de Júlio Castañon Guimarães, lançada em 1995.
Diferentemente de outros contos do mesmo livro, como ocorre, exemplarmente, em
“Agonia por semelhança”, em que o relato se confunde com uma espécie de investigação
psicológica e íntima da memória afetiva, ou em “Morte do Palhaço”, no qual um quê
autoconsciente e meta-artístico suplanta a ação em si, em “Ciúme póstumo” desenvolve-se
claramente um enredo, ainda que pequeno. Nele, entrecruzam-se dois cleos temáticos,
anunciados no próprio título: o ciúme amoroso e a existência póstuma. Há, no conto, três
mulheres que morrem e continuam, após a morte, a relacionarem-se com seus amados de
uma maneira esotérica, através da transposição de seus espíritos para flores. Em uma delas,
surge o ciúme póstumo, que dá título à narrativa.
Apesar da duplicidade temática, trata-se, em última instância, de se fazer no conto o
relato da experiência de um grupo de amigos com o fenômeno espiritual citado - a
metempsicósis a fim de confirmar sua existência. Raul, um herdeiro rico e excêntrico,
exemplo daquele que se recolhe a sua “torre de marfim” para fugir à pequenez burguesa do
mundo concreto, refugiando-se em sua exótica casa, cercado de seletíssimos amigos, revela
seu contato com o estranho fenômeno e o faz ver aos companheiros, buscando comprovar
sua existência (material e espiritual).
Raul lembra o pico dândi baudelairiano, tão caro ao Decadentismo, que, apesar de
fazer parte da elite social, evoca uma ácida crítica à ascensão da sociedade burguesa
industrializada, respaldada pela economia liberal, fomentadora da produtividade e do
progresso. Segundo Oliveira (2008), o dândi decadentista:
Ergue-se em reação à mesmice burguesa que assola a sociedade
industrial, crente na ciência e no progresso. Sinaliza, de forma irônica,
mordaz, lúdica porém lúcida, a desordem das coisas e coloca em cena,
teatraliza o capitalismo e a decadência da sociedade que pensa ter
atingido um alto grau de civilização (...). Os dândis, portanto,
encarnavam um Eu solitário que se encontrava paradoxalmente à margem
e dentro da aristocracia ou da alta burguesia
(...). (OLIVEIRA, 2008, p.
12)
Se em outros contos podemos perceber maior distanciamento entre as estratégias
realistas e simbolistas/decadentista de composição ficcional, aqui, conforme nos deixa
antever o enredo e as intenções do discurso narrativo, o desejo de representar a realidade
esotérica, tornando-a, comprovadamente, “verdadeira”, estreita a relação entre essa
narrativa e o realismo (como o caracterizamos no início deste trabalho). Apesar disso,
mantém-se a dicção e, sobretudo, a atmosfera simbolista, garantindo o exotismo do texto,
mesmo em relação à tradição realista.
Embora o conto comece com certa localização espácio-temporal, esta é claramente
imprecisa:
É curioso!... Esta flor geme nos meus dedos disse-nos Raul, ao termo
de uma noite, na sua predileta saleta da frontaria, correndo os dedos
pelas finas escamas de uma sempre-viva, colhida nessa manhã, que fora
de Finados, em uma cova esquecida. (DUQUE, 1995, p. 67, grifos
nossos)
Sabemos que é “uma noite” de um dia de “Finados”, nada mais. Sabemos que a
ação central se passa em uma “saleta”, a predileta do protagonista, nada mais. Tal
imprecisão é ainda ampliada por todo esforço do narrador, no processo descritivo do
ambiente, em frisar seus aspectos exóticos – marcas chinesas, árabes, indianas, europeias de
toda espécie espalham-se pela decoração da saleta, tirando do leitor qualquer pista que
precise o espaço em que se desenrola a narrativa. Há, portanto, a criação de uma atmosfera
mística, em que se ressalta o afastamento da “saleta” do resto do mundo objetivo.
É exatamente essa construção do espaço narrativo, à moda da “torre de marfim”
isolada e exótica - , que percebemos na seguinte passagem:
E como o ar pesasse, carregado e feio fora, abrimos as duas estreitas
vidraças de cedro esculpido. Foi preciso, porém, descer as cortinas de
gaze negra, gouachadas bizarramente pela fantasia de Giacomelli numa
esquisita teoria de passarinhos tropicais e ramos lilases, para desviar o
ultraje da curiosidade burguesa a esse misterioso interior de afortunado
senhor, mancebo e iniciado, que consumia o ouro capitalizado de
avoengos célebres numa deliciosa existência de Mago, sem convívio que
pudesse prejudicar as sutilezas e extotismos da sua nevrose.
(DUQUE, 1995, p. 67, grifos nossos)
Dispensável apontar a dicção simbolista na descrição. Embora se descreva o
concreto, a seleção vocabular revela um juízo de valores que nos remete diretamente à
mundividência daquele movimento. Palavras como “negra”, “bizarramente”, “esquisita”,
usadas para a configurar a decoração da saleta, criam a atmosfera necessária para a
experiência esotérica que será presenciada. A oposição entre o protagonista avaliado de
modo francamente positivo (“deliciosa existência de Mago”) ao efetuar a transfiguração do
elemento material em imaterial em oposição ao “ultraje da curiosidade burguesa”
estabelece os valores anímicos sobre os quais se erigirá a narrativa. Além, é claro, da
passagem grifada que aponta, indubitavelmente, para o isolamento que cerca Raul e seus
amigos.
Em relação ao tempo, da narrativa, também a imprecisão domina, levando-nos a
uma espécie de tempo mítico, fora do mundo real. No presente da narrativa, que não
sabemos exatamente qual é, evocam-se tempos passados pouco marcados. O
relacionamento com Maria Eugênia e com Ivonne emergem de momentos não definidos.
Ao leitor não é dado saber em que ordem cronológica se deram esses romances, quanto
duraram ou que tempo os separam do momento presente. O único elemento temporal
concreto é a distância de dois anos entre a morte de Maria Eugênia e o fenômeno da
metempsicósis da emblemática sempre-viva.
A mesma indefinição como marca da entrada em um tempo mítico ocorre de
maneira ainda mais clara quando se faz o relato paralelo do episódio transcorrido com Raul
na Índia e que lhe deu conhecimento sobre o fenômeno: “Demais, continuou ele, uma vez
na Índia(...)” (DUQUE, 1995, p. 69). Lembrando o universo das narrativas de
encantamento, percebe-se, aqui, a imaterialidade do tempo, que não é certamente o
marcado pelo relógio.
Acerca da construção do espaço e do tempo, nos contos de Gonzaga Duque como
um todo, comprobatórias de nossa observação são as palavras de Massaud Moisés, a seguir:
Se por atmosfera’ entendermos geografia, concluiremos que as
narrativas de Gonzaga Duque transcorrem num espaço virtual,
imaginário, que tanto pode ser a paisagem carioca como a de qualquer
parte. As histórias fluem sob o signo da inespacialidade e da
atemparalidade,em conseqüência do caráter poético: como poesia,
equacionam-se numa região e num tempo supostos, ou suspensos no
vácuo, fora da ambiência geográfica e cronológica sugerida pelo relógio.
Os elementos de uma e de outra dimensão, colhidos da realidade tangível
e diária, dispõem-se num plano de abstração e generalização. (MOISÉS,
1985, p. 142)
Da mesma maneira, os personagens apresentados constroem-se com base em
preceitos semelhantes aos que vimos usados em relação ao ambiente e ao tempo. A marca
que os caracteriza é a singularidade. Raul, a todo tempo, é descrito como alguém único e
diferente. Típica dessa construção é a inusitada comparação a seguir, que nos remete a
outro tempo e insere o personagem em uma existência diferente da vulgar:
Estirado na otomana policroma, uma cigarrilha no lábio, Raul
continuava, preguiçoso, a amaciar carícias sobre a corola pluripétala,
como um antigo pajem, elegante e loiro, deveria ameigar a cabecita
emplumada do falcão realengo por saber dos beijos que a princesinha
herdeira lhe dera no transbordo d’alegria, à volta da caçada venturosa.
(DUQUE, 1995, p. 67)
Ademais, a seleção lexical novamente nos aponta a atmosfera simbolista, pelo seu
preciosismo.
Fanny, a personagem feminina viva, amiga de Raul, também é construída como um
“ser de exceção”. Sua primeira característica exemplar é o “descolamento” que nela
existia entre o corpo e o espírito, que a tornava elevada e não-mulher. Nesse ponto, é
interessante o cotejo entre a apresentação de Fanny, feita pelo narrador (mas claramente do
ponto de vista encarnado por Raul) e de Maria Eugênia, feita pelo próprio protagonista. As
razões apontadas para a não realização amorosa entre Raul e Maria Eugênia, e que
causaram a morte, por frustração, da jovem, referem-se, por um lado à “sua vulgaríssima
educação de menina romântica”. Mais à frente, Raul explica que o que o levou ao abandono
de Maria Eugênia foi a fuga ao que chama, sintomaticamente, de “infecção amorosa”, pois
ela “era uma mulher sedutoramente empolgante” e “desafiava o instinto (DUQUE, 1995,
p. 69). Sem se deixar levar pela sensualidade feminina, marcada de forma negativa pelo
texto devido, provavelmente, ao fato de representar um impedimento à elevação metafísica,
Fanny faz-se digna, ao contrário da mulher comum, de pertencer à élite de Raul e de
presenciar a experiência metempsicótica.
Fanny, felina rapariga cultivada pela existência dissipadora de dez anos
d’Europa, nossa companheira na restrita, ignorada elite de Raul, que
exemplarizava ao seu sexo a independência espiritual sem as
preocupações sensualizantes da feminilidade, tomou a sempre-viva para,
por si própria, constatar a observação. (DUQUE, 2007, p. 67)
A terceira personagem, e mais curiosa, é o narrador. O texto é narrado em primeira
pessoa, porém, estranhamente em relação ao mais comum em narrativas desse foco, o
narrador não é o protagonista. Certamente, razões para isso. Tais razões encontram-se
intimamente ligadas à função doutrinária do texto.
O personagem-narrador, do qual sequer conhecemos o nome, apresenta, por não ser
protagonista, traços de objetividade comuns ao narrador de terceira pessoa, interessantes ao
desejo doutrinário do conto.
Percebemo-lo como narrador no segundo parágrafo do texto, quando surgem
algumas formas verbais na primeira pessoa do plural. Porém, em boa parte da narrativa, o
que temos é uma espécie de observador privilegiado - porque capaz de compartilhar do
espaço e do tempo intangíveis nos quais se movimenta o grupo de amigos e ocorre o
fenômeno oculto - sem, no entanto, agir de forma decisiva na fabulação dos
acontecimentos.
Se não age, apesar de personagem, tem o narrador, outra função. Parece-nos que sua
missão é a de incorporar na trama narrativa o olhar do mundo avesso ao ocultismo, de
representar, mesmo que provisoriamente, a mundividência cientificista e materialista.
Enquanto Raul experimenta sentir as vibrações vitais vindas da flor, o narrador diz-se
incrédulo.
Sua posição secundária, em relação aos fatos ocorridos, garante que Raul ganhe o
centro da narrativa e faça predominar sua visão de mundo esotérica, a fim, sobretudo, de
convencer aos que não creem que o fenômeno ocultista seja real. Isso ocorre tanto no plano
do narrado, com o predomínio absoluto das ações, objetivas e subjetivas, de Raul sobre as
dos demais personagens, quanto no plano da narração, quando Raul ganha voz e se torna o
narrador da digressão engendrada na história central.
O personagem-narrador não é capaz de alijar-se, como agente, do relato que faz,
mantendo-se em segundo plano, como chega mesmo a ceder sua voz na narrativa a Raul,
durante o flash back feito pelo protagonista. Essa abnegação do personagem-narrador é
fundamental para que o conto alcance seu objetivo maior, que é a comprovação irrefutável
da existência da metempsicósis.
Embora a intenção do discurso narrativo seja a negação da visão
predominantemente cientificista da realidade, em voga na época de sua escritura, sobretudo
nos textos naturalistas, o caminho escolhido pelo conto para isso revela as intensas trocas
efetuadas entre o Simbolismo e a base epistemológica do seu tempo. Toda tentativa
comprobatória do fenômeno é, por si só, ambígua, uma vez que há um enorme esforço para
que ele seja confirmado do ponto de vista, justamente, da racionalidade, embora sua
essência - para além da physis - prescinda da razão.
O conto, aliás, estrutura-se, em termos de organização discursiva, à semelhança de
um relato de fundo científico. No início, o fenômeno apresenta-se ao leitor como
possibilidade (hipótese). O próprio Raul sugere a incerteza, ao caracterizar o que presencia
como algo “curioso”, como se dele ainda não houvesse conhecimento concreto. Fanny e o
narrador são chamados a “experimentar”, mas em suas mãos o fenômeno não se
materializa. Gera-se a dúvida necessária para se alcançar o conhecimento. Em uma de suas
poucas intromissões pessoais, o narrador sugere: “É nossa fantasia que trabalha neste
esoterismo flóreo...”, entoando a voz da razão cética.
No prosseguimento, no entanto, Raul formula sua “tese”:
- Eu acredito em metempsicósis disse gravemente Talvez não
saibam...
- Então essa sempre-viva...
- Pode ser a alma d’alguém... (DUQUE, 1995, p. 68)
Procedendo racionalmente, Raul apresenta a possível causalidade do fenômeno,
discorrendo sobre seu caso de amor com Maria Eugênia, sua morte prematura e o fato de a
sempre-viva, que agora reagia somente aos afagos do protagonista, ter sido colhida,
justamente, de sobre o túmulo da jovem. Justifica-se, aí, no apelo afetivo, o fato de,
logicamente, a flor se animizar naquela situação específica, o que fora comprovado pela
ausência de reação da sempre-viva ao toque de Fanny e do narrador.
Tal causalidade reforça-se por outra estratégia racional e científica: a tomada do
“testemunho de autoridade”. Não se trata de “opinião”, de “fé”, de “crença”, mas de
“fato”. E, por isso, busca-se a “prova”, palavra que irremediavelmente nos remete ao
campo científico. A estratégia argumentativa racional e lógica da exemplificação é
outro indício desse procedimento na narrativa. Ao contar o episódio vivido na Índia, a clara
intenção de Raul convertido providencialmente em narrador é explicar o fenômeno e
comprová-lo, o que são prerrogativas do saber científico.
Realmente, o olor do que ele tinha na mão era como aveludado,
semelhante a uma carícia consoladora e lenta de resignada, ou
semelhante ao hálito quente de uma boca de soluços a dizer a primeira
palavra de perdão. Trocamos as flores; a que passou para mim, perdeu a
singularidade do seu perfume, confundindo-se com os demais jasmins da
sua espécie, e a que cedi ao Khodja ganhara o exalo suavíssimo e
característico do primeiro. Admirei-me, mas a prova era flagrante.
(DUQUE, 1995, p. 69, grifos nossos)
Na passagem anterior, apesar do plano imagístico, temos o relato de uma
experiência bastante próxima da científica, baseada, inclusive, na observação e na
experimentação: os sentidos humanos são chamados a observar e se chega, então,
logicamente, a uma conclusão flagrante e inquestionável. Embora pudéssemos supor que
tais fenômenos ocultistas sejam dados ao conhecimento (misterioso), o que nos parece
interessante em relação à proposta simbolista de oposição ao materialismo e ao
cientificismo dominante é que a preocupação doutrinária do conto acabe por fazê-lo
apropriar-se de mecanismo típicos do racionalismo, demonstrando a ambiguidade complexa
das relações estabelecidas.
Para a completa comprovação da “tese”, falta a “experimentação”, que se
concretiza quando Raul, intencionalmente, como quem controla variáveis contextuais,
coloca, lado a lado, o ramo de miosótis, para o qual se transmigrou a alma de Ivonne, sua
antiga amante, e a sempre-viva, que traz o espírito de Maria Eugênia. Agora, diante dos
olhos de Fanny e do narrador (e, portanto, do leitor), a metempsicósis se materializa e se
confirma, indubitavelmente, como fato: a sempre-viva afasta-se, magoada e ciumenta, do
ramo de miosótis.
Se voltarmos a analisar o papel do personagem-narrador na estruturação da ação
relatada, veremos que se confirma ainda mais nossa hipótese de leitura. No enredo em si,
sua representatividade é absolutamente frouxa. Não há profundidade sequer na
caracterização do personagem-narrador, em diferença ao que ocorre com Raul e com
Fanny. Sua existência ficcional não parece estar plenamente justificada no âmbito interno
da obra. Dele, não sabemos nada e não conseguimos entender o que o liga a Raul, a Fanny
ou às amantes mortas, fazendo de sua presença na narrativa algo artificial, afuncional, do
ponto de vista estreito da articulação do narrado. O que se frisa a seu respeito é algo que,
pela lógica interna da organização do conto, apenas o afastaria da elite do protagonista - era
um incrédulo:
Eu, por meu turno, fiz também a experiência; mas, em mim, a
incredulidade destruía a necessária perscrutação do fenômeno. (DUQUE,
1995, p. 68)
De fato, no conto três momentos em que o personagem narrador expõe-se
como primeira pessoa. E em todos eles observamos, basicamente, o mesmo procedimento:
o esvaziamento da voz da razão, preenchida paulatinamente pelo conteúdo esotérico.
A passagem anteriormente citada revela bastante bem esse processo. A voz que
narra, incorporada no personagem secundário, falseia-se. Embora diga ser de alguém à
margem da crença no fenômeno ocultista exposto no conto, enxerga-o, e assim o relata ao
leitor, a partir da perspectiva de quem nele crê. Vemos que a não ocorrência do fenômeno
nas mãos do personagem-narrador não é creditada a sua “não-existência” (conclusão
facilmente tirada por quem seja “incrédulo”), mas ao fato de que não há a “credulidade”
necessária à “perscrutação do fenômeno”, o que, obviamente, é uma leitura de mundo
esotérica e não racional.
Há, portanto, um logro construído a fim de enganar o leitor, dando consistência à
conclusão a que o texto pretende chegar. Observando-se, rapidamente, os explícitos,
diríamos que o narrador não acredita no fenômeno ocultista observado, pelo menos ao
princípio, e que o fato de tê-lo presenciado, leva a que ele passe a acreditar. Porém, sem
muito esforço, os explícitos se revelam ambíguos, apontando, para seu verdadeiro sentido.
É o que acontece, de modo exemplar, na maior intromissão do personagem-
narrador, que ocorre ao fim do conto:
Fixamos o olhar na ampula. Sem dúvida, a flor inclinara-se demasiado
para o lado oposto ao do ramúsculo de miosótis, sem dúvida... (DUQUE,
1995, p. 72, grifos nossos)
A repetição estilística da expressão sem dúvida, rompe com o ceticismo que no
início do conto se forjara construir, no simulacro de discurso científico. E poderia estar
presente na voz daquele que se apresentara como representante da mundividência científica,
a fim de dar pertinência à intenção de revisão epistemológica do conto. No entanto,
sabemos que tal mundividência, de modo algum, teve quem a representasse de fato.
Vejamos, acerca disso, a continuação da intromissão do personagem-narrador:
E, com minha incredulidade de materialista falsificado, procurei explicar
o caso por uma influência do calor, entrei logo nas demonstrações da
Física com a notável tibieza de conhecimentos tarrafados em bibliotecas
d’algibeira, e d’um elementarismo quase pó, tão insignificante que eu
mesmo não despegava o olhar do Hieng-fong, menos curioso que
impressionado (DUQUE, 1995, p. 72)
As flagrantes ambiguidades no discurso do personagem-narrador anteriormente
transcrito falam por si sós. Não nenhuma convicção nos conhecimentos científicos, na
Física ou no materialismo que pudesse nos convencer de que, de fato, esse foi, em algum
momento, um “incrédulo”.
Em defesa da construção do conto, poderíamos dizer que agora o poder
persuasivo da experiência e do relato de Raul desfizera a cosmovisão pragmática do
personagem-narrador. Porém, como provamos, desde o início do texto o personagem-
narrador mostrara-se como alguém preparado para persuadir-se, pois já entoava, nas
entrelinhas, a voz esotérica.
No jogo do texto, porém, o que se espera é que o leitor “creia” na veracidade da
“incredulidade” desse personagem-narrador, sob o risco de o conto não alcançar seu
intento.
É necessário que se veja o personagem-narrador como um “incrédulo” que
presenciou o fenômeno ocultista, pois assim, ao relatá-lo, torna-se ele o portador confiável
da “verdade”, uma vez que estaria acima de qualquer suspeita, por não pertencer ao grupo
dos que “já acreditavam”. É por isso que, apesar de manter-se praticamente um narrador
observador na maior parte da narrativa, é preciso que retome seu posto e se expresse em
primeira pessoa na conclusão a que chegou o conto:
E fui notando que, pouco a pouco, a crassulácea mais se inclinara,
apenas equilibrada pelo mergulho do pequenino hastil, e, com a lentidão
dum fumo tenuíssimo que se desprende, arredava-se, devagar, do
contacto daquele ramo a que o estreito cano da porcelana chinesa cingia.
Lento e lento o belo corimbo jalde vergou-se no bordo. o havia a
mais leve viração. Era evidente que a flor tinha movimento. Atendi-a.
E vi, por vezes, um arrepio encrespar suas escamas, fazê-la estremece.
Depois, notei bem distintamente que ela se debruçava dolorida e
desenganada, e mais pendia, sempre mais, sempre vagarosa, e a mais ‘té
deslocar-se de todo, mal segura pelo encurvamento imbele do pedículo.
(DUQUE, 1995, p. 72, grifos nossos)
O uso da primeira pessoa é, inclusive, dissonante, dentro do próprio conto. Em
outros pontos a vivência dos fatos, embora experimentada pelo personagem-narrador, era
transmitida ao leitor à moda da observação; mas não aqui. Aqui, era necessário o relato
pessoal desse personagem-narrador que se quer passar por “incrédulo”, era necessário que
ele notasse, visse e bem distintamente, pois assim se garante a isenção necessária para
que o fenômeno esotérico ganhe foros de “realidade”. Interessante é a eliminação pessoal
de variáveis que pudessem explicar, sob a ótica cientificista, o fenômeno: Não havia a
mais leve viração. Era evidente que a flor tinha movimento”.
Essa intenção discursiva justifica, inclusive, a própria criação ficcional da cena de
ciúme póstumo. Como fazer com que um “incrédulo” experimentasse o fenômeno? Era
necessário que ele o visse, o notasse bem distintamente, no âmbito da realidade sensível.
Mas como, se é necessária a crença para que o fenômeno se manifeste com o próprio
personagem, de acordo com o que nos foi dito no início do conto? Daí o subterfúgio da
aproximação das duas flores que personificavam as amantes, para que a “experiência”
gerasse o ciúme e a concretização do fenômeno, fora do alcance ou da influência daqueles
que nele creem. Eliminar-se-ia, assim, logicamente, qualquer variável concreta que pudesse
ser levantada como causa do fenômeno, a não ser a “verdade cientificamente provada” de
que ele é resultado irrefutável da metempsicósis.
O personagem-narrador, identificado ao incrédulo, seria, portanto, o representante
isento da ótica racionalista e teria, pessoalmente, observado o fenômeno e eliminado
qualquer possibilidade, quer de burla, quer de explicação científica (no sentido físico), do
que ocorrera com a sempre-viva, garantindo, de modo indefectível, a existência do mundo
sobrenatural, cuja representação metonímica foi a metempsicósis.
Revela-se, assim, o conto como uma (quase) “narrativa de tese”, próxima em
demasia, justamente, da ficção da qual mais queria se afastar. As armadilhas do pensamento
científico, lançadas pesadamente sobre a crença esotérica, não permitem que o conto se
desprenda da tradição realista e nem mesmo da estrutura de organização lógica naturalista.
Tudo no conto transforma o metafísico em físico, a despeito do desejo latente de se
conquistar exatamente o resultado oposto. A revisão epistemológica busca fazer crer aos
leitores uma nova “verdade” revelada pela narrativa transforma o texto em representação
mimética de um mundo abstrato possível, que é construído pelas mesmas estratégias de seu
avesso concreto.
8 “Confirmação” ou o acaso não existe
se passaram trinta anos desde que publiquei um relatório
dos experimentos tendentes a mostrar que fora de nosso
conhecimento científico existe uma Força utilizada por
inteligências que diferem da comum inteligência dos mortais
... Nada tenho a me retratar. Confirmo minhas declarações
publicadas. Na verdade, muito teria que acrescentar a
isto.
(Croockes - 1898).
O conto “Confirmação” em muito se aproxima de “Ciúme póstumo”, uma vez que
tem por objetivo aparente o endosso da existência natural do mundo dos espíritos. Em
ambos os contos, percebemos o intuito de que a narrativa estabeleça a verdade dos fatos, a
partir do ponto de vista metafísico. Há, porém, uma nítida distinção entre ambos, no que diz
respeito às escolhas literárias feitas. Em “Ciúme póstumo”, a atmosfera misteriosa, o
trabalho artesanal e original com a linguagem poeticamente elaborada, a apresentação de
personagens com pouco contorno realista, a quase inexistência de marcações espácio-
temporais específicas fazem com que o ficcional distancie-se do real, com que se sinta um
mundo quase em tudo diferente do nosso. Ainda que, em última análise, queira-se
convencer da existência do fenômeno paranormal observado, adotando-se a perspectiva
positiva, científica, como dissemos, toda narrativa é cercada de uma aura de irrealismo
bem cara à estética simbolista. O mesmo não ocorre em “Confirmação”.
Aqui, poderíamos dizer que se narra “à moda realista”. Por isso, o leitor segue a
história sem esforço, acompanhando um enredo relativamente encorpado, temporalmente
marcado e linearmente apresentado (com um pequeníssimo – e estratégico – flash back). Os
personagens são verossímeis, reconhecemo-los como se a um de nós exceção seja feita ao
espectro de Flávia -; também o espaço narrativo integra a mesma aparência de realidade.
De igual forma, a linguagem adotada é bem mais objetiva do que na narrativa de que
tratamos, com poucas passagens em que se reconheça o preciosismo vocabular e sintático
que prolifera em “Ciúme póstumo”. Na verdade, “Confirmação” parece inclusive ganhar
um aspecto cronístico interessante, referindo-se a elementos da contemporaneidade em que
fora escrito, revelando, no entanto, uma “fatia de realidade” pouco representada pela
literatura realista/naturalista em voga. Aí está sua excepcionalidade e seu caráter insólito.
A história se inicia de modo convencional, com a localização temporal e espacial e a
apresentação do narrador e de Carlos Fragoso, seu amigo que o conduzirá à observação de
uma experiência positiva de foro “sobrenatural”. Os dois personagens são caracterizados
como incrédulos”, o que tem, para a estruturação argumentativa do conto, função
semelhante a que apontamos existir em “Ciúme póstumo”. Ocorre que o que está sob o
julgamento da credulidade não é bem a confirmação, que o título anuncia, da existência
física de um mundo espiritual, mas de um outro elemento que o desenrolar do conto,
pela estratégia do suspense, deixará perceber.
Essa leitura é respaldada pela referência a elementos da realidade histórica logo no
início do conto, na fala de Carlos Fragoso:
Eu sou como tu és, um incrédulo; considero tudo isso uma bruxaria e por
mais que
Mousieur Boraduc e Mister William Crookes
constatem a
existência de uma força consciente extra-humana, estaciono
precavidamente nalgumas experiências magnéticas do coronel de
Rochas, ainda assim com esse enviesado sorriso voltariano que nos
sublinha a emancipação mental sob a dúvida condescendente (...).
(
DUQUE, 1995, p. 79, grifos nossos)
Embora não tenhamos reconhecido Monsieur Boraduc, William Croockes (1832-
1919) e Coronel de Rochas (1837-1914) foram afamados cientistas da época que votaram
suas experiências para a comprovação positiva da existência de fenômenos paranormais. A
referência a eles pressupõe a consideração, ainda que parcialmente cética na fala da
personagem, de que suas descobertas fazem parte inegável do universo “científico”. Essa
consideração se confirma quando Carlos Fragoso conversa com Dr. Pôncio de Almeida,
antes de presenciarem a experiência:
- Guardaremos o segredo, respondeu Carlos, não obstante ser um
fato
científico.
- Sim, é um fato científico.(...).
(DUQUE, 1995, p. 81, grifos nossos)
Pelo que se vê, não trata o conto de confirmar a existência factual do que se
observará na experiência, uma vez que, segundo sua ótica, tal fato é cientificamente
considerado verdadeiro, mas de outra questão que ainda não se apresentou e da qual mais
tarde trataremos. Cabe, agora, discutir um pouco mais a ótica representada pelo conto.
Novamente, Gonzaga Duque deseja relativizar o conceito de realidade, de verdade,
usando para isso o instrumental de seu tempo. Como dissemos, os diálogos entre a
filosofia e a ciência positivistas, de um lado, e a literatura, de outro, vão muito além do
Naturalismo. Os contos com que trabalhamos, especialmente “Confirmação”, comprovam
isso. Aqui, de modo eficaz, o narrador e seu amigo são céticos, incrédulos, logo só
acreditam no que a ciência positiva confirma como verdade.
A experiência a que assistiriam, no entanto, não estava em dúvida mesmo antes de a
acompanharem, uma vez que o uso de artifícios textuais e contextuais que garantem sua
veracidade. O caráter cronístico a que nos referimos e que se configura na referência a
William Croockes e a Coronel de Rochas, por exemplo, é um testemunho de autoridade
irrefutável e uma estratégia realista típica, dado o estreitamento entre o literário e o seu
referente na História. A atualidade das referências é notável e coloca o enredo na vanguarda
de certa abordagem científica a do “Spiritualism”. As pesquisas de Croockes a que se
refere Carlos Fragoso em sua fala ocorreram entre 1869 e 1875, período recentíssimo em
relação à provável produção do conto, e tratam do ponto de vista de “fenômeno natural”
aquilo a que se tratava como “fenômeno sobrenatural”. Com isso, o conto estabelece-se
sobre um patamar de realidade distinto daquele em que se colocaram realistas/naturalistas,
embora ambos se fundamentem sobre a mesma base: a ciência positiva.
Nesse tocante, a própria construção da personagem que é o representante
propositalmente ambíguo da ciência e do espiritismo Dr. Pôncio de Almeida é
reveladora. Desde o início do conto, somos levados a confiar na honestidade e na correção
científica do personagem, por mais desconcertantes que possam ser as experiências que faz.
A argumentação de Carlos Fragoso na defesa da verdade científica dessas experiências fica
clara na passagem:
Mas a justíssima reputação científica de mestre Pôncio, a sua
propriedade profissional e, particularmente, esse razoável sigilo com
que ele cultiva o ocultismo, me fazem crer que, realmente, alguma
coisa de verdade nas suas experiências. (DUQUE, 1995, p. 79, grifos
nossos)
Percebe-se a organização lógica da argumentação da personagem, poderosa arma
persuasiva racional, em que o rol de causas leva à conclusão de modo silogístico. Não
como desacreditar das experiências de Dr. Pôncio, diante da evidência dos fatos, ainda que
certo ceticismo, conveniente ao texto e à razoabilidade, permaneça.
Assim como William Croockes, ilustre membro da Royal Society, químico e físico
com ampla e conceituada produção científica, nosso personagem também tem uma fama a
zelar. Como toda descoberta - ainda que científica - que não obedece ao senso comum e
rompe com o stabilishment, ele quer deixar em segredo sua experiência, o que, inclusive,
distancia-o da publicidade charlatã:
Confio nos senhores, disse-nos, por isso admito-os numa das
experiências que vou fazer. Em outras tenho colhido resultados
extraordinários!... Mas, sobre ela, nem uma palavra!... Se transpirar o que
vamos assistir, a minha reputação estará perdida... (DUQUE, 1995, p. 81)
O risco de perder a credibilidade também marcou a vida de William Crookes, com
quem o personagem Dr. Pôncio apresenta claras semelhanças. Por causa de suas
experiências na confirmação dos fenômenos paranormais manifestados por mediuns
conhecidos na época e, principalmente, pela publicação, no Quarterly Journal of Science,
do artigo intitulado “Spiritualism Viewed by the Light of Modern Science”, Croockes quase
teve sua filiação a Royal Society anulada e causou raivosas reações no meio científico.
Como seu personagem Dr. Pôncio de Almeida - e sua referência na realidade
William Crookes o conto mistura propositalmente realidade e ficção, ciência e
espiritismo, numa simbiose completa. A cena final descrita da experiência paranormal é
extremamente semelhante às que foram efetivamente feitas por diversos estudiosos na
virada do século XIX para o XX, na vaga do Espiritismo Científico, como anunciara a
citação dos cientistas que comentamos. Há, portanto, uma estreita relação entre a ficção
literária e seu referente imediato, tal como pressupunha o paradigma do
realismo/naturalismo convencional.
No plano da expressão, percebe-se mesmo uma tendência à descrição física,
incomum aos textos simbolistas, que revela as intenções claras do enunciador do texto em
estreitar a relação mencionada. A título de exemplo, vejamos:
Dentro, no saguão assoalhado de quadradinhos de mármore preto e
branco, o porteiro fumava o seu cigarro, tranquilamente recostado numa
cadeira de vimes e no claro muro do fundo, vivamente iluminado pelo
farol pendente do teto branco, negrejavam as enormes letras do stico
em curva: Casa de Saúde do Dr. Pôncio de Almeida. (DUQUE, 19995, P.
80)
A atenção a pormenores sem aparente importância para o enredo e a escolha de
adjetivos objetivos a serviço da mera descrição prendem-se a um estilo bastante diverso do
que se verifica em outros contos simbolistas e, certamente, têm uma razão de ser. Outras
vezes, a apresentação objetiva de elementos da cena ajuda a criar o clima desejado à
credibilidade do fenômeno e da personagem que o conduz. Haja vista, a esse respeito, a
descrição física de Dr. Pôncio e de seu gabinete de trabalho, em que se revelam as “altas
estantes de livros” (DUQUE, 1995, p. 80-81), símbolos do conhecimento
institucionalizado.
Somada a isso, a localização em que ocorre a experiência reforça ainda mais o
vínculo que se deseja estabelecer entre espiritualismo e ciência. O Hospital de Dr. Pôncio é
também, como a própria personagem, um espaço dúbio. O narrador, como fruto de sua
observação de personagem, molda a atmosfera científica indelével do lugar:
Ergue-se, encaminhando-nos por um corredor monotonamente branco. A
fria intensa claridade dos aparelhos de gás fazia-o mais frio e mais longo.
Respirava-se um ambiente acre de desinfetantes, que acordavam imagens
incômodas de trabalhos cirúrgicos, avivadas pela sucessão de portas
eqüidistantes e numeradas, rasgando escuros quadros oblongos n’alvura
envernizada dos muros. Os nossos passos abafavam-se no capacho
corrido do soalho cerado. (DUQUE, 1995, p. 81).
Com exceção da dicção simbolista da passagem “rasgando escuros quadros
oblongos n’alvura envernizada dos muros”, a caracterização do ambiente se por
descrições que sublinham elementos como claridade e equilíbrio, indubitavelmente ligados
ao espírito racional. Marca-se o caráter cientificamente asséptico, silencioso, branco, limpo,
“cirúrgico” do hospital como forma de contaminar com essa mesma atmosfera a
experiência paranormal que se irá presenciar.
A linguagem, no entanto, apresenta, no decorrer da narração uma ambiguidade
interessante, que contribui para o jogo simbiótico entre a ciência e o espiritismo, sendo um
dos cernes do conto. Da mesma maneira como se passa dos fatos comuns ao incomum, a
expressão lingüística narrativa acompanha esse processo. Da entrada do narrador e de
Carlos Fragoso no hospital até a chegada ao quarto negro em que observarão o trabalho da
medium Edwiges na materialização do espírito recém desencarnado, uma sutil transição
de perspectivas e de enunciação.
O ambiente científico do hospital mescla-se com elementos espaciais naturais com
um quê gubre e misterioso. Do branco asséptico e iluminado dos corredores, passam as
personagens a “ruazitas de um jardim poeticamente sossegado ao luar” e, depois, a um
“solitário casinholo escondido entre arbustos” (DUQUE, 1995, p. 82). Não os dados
objetivos da espacialização apontam uma nova ambientação, como a própria linguagem do
narrador se altera, adequando-se ao momento de transição do conto. Surgem alguns
preciosismos vocabulares, uma nítida subjetivação da linguagem, tendendo ao
sensorialismo do narrador na captação e na exposição do fato:
Na friagem da noite clara, toda aveludada de luz nas alturas, toda segredo
de frondes na terra, o aroma das violetas derrama-se como a tentação
suspirada das serenatas sevilhanas, e, sem cuidados, antegozei a surpresa
que me esperava, porque a bruxaria de mestre Pôncio ia-se
transformando em delícias imprevistas... modernismos de higiene
hospitalar, com os quais as dores fingem discretos sorrisos de coragem,
portões de cenografias dramáticas, jardins amaciados pelo plenilúdio...
(DUQUE, 1995, P. 82)
O limite entre a razão e a fé se dilui intencionalmente, misturam-se ambos no
discurso e na seleção de fatos do enredo e ao lado dos “modernismo de higiene hospitalar”
(visto ironicamente pelo narrador), tem-se um universo onírico e metafísico que se expande
e se recolhe em igual proporção, num movimento de claro-escuro:
(...) quando mestre Pôncio (...) feriu com os dedos três pancadinhas
cabalísticas na porta, apoderou-se de mim uma volúpia, prevendo
surgirem dali teorias bailantes de criadas seminuas. Mas, a porta cedeu
sem ruído. (DUQUE, 1995, p. 82)
A enunciação narrativa cede espaço para a composição da linguagem mais
tipicamente simbolista, num embate proposital em que esta não substitui definitivamente o
tratamento realista que já se apresentara. Tal embate aparece metonimicamente
representado na interessante passagem “as paredes pretas forradas ou pintadas de preto,
como as câmaras dos ocultistas, o teto negro, pareciam abalar a chama do gás que ardia”
(DUQUE, 1995, p. 82), em que a luz, imagem codificada pelo senso comum como da
ciência, da observação racional, embora se deixe “abalar” pelos traços negros do ocultismo,
com eles convive.
Forma-se uma espécie de terreno movediço, criado na ambiguidade marcante da
linguagem, do espaço, das personagens e do próprio enredo, em que não se distingue o que
é e o que não objetivo, científico, verdadeiro, real, natural.
A cena final da narrativa, que se estende pausadamente por três páginas, é resultado
da confluência e da amalgamação dessas perspectivas distintas que perderam sua distinção.
É, portanto, a naturalização e a aquisição de foro de fato científico irrefutável da
materialização do espírito.
A respeito da apresentação dessa cena, é patente a lentidão com que se apresenta.
Aliás, antes de se chegar a ela o que se tem é somente travessia: primeiro, efetuada pelo
narrador e por Carlos Fragoso, da casa ao hospital; depois, dos dois e de Dr. Pôncio até a
pequena sala em que se encontram com a médium Edwiges; até finalmente chegarem ao
quarto preparado, para a experiência paranormal, em que está a moribunda. Essa travessia,
além de contribuir com os elementos dos quais já tratamos, especialmente o de conferir
foro científico ao que as personagens vão observar, remete-nos também a um movimento
ritualístico, demonstrando mais uma vez a inteligente organização da narrativa para a
defesa dos fenômenos espirituais, a partir do ponto de vista daqueles que são seus maiores
opositores. É como se a organização narrativa valesse como uma ponte, como um caminho
que liga o conhecimento positivo ao espiritual, fazendo com que se equivalham.
Talvez seja por isso que grande parte da narrativa seja o enveredar pelo hospital até
se chegar ao contato com o sobrenatural. As personagens e o narrador vão se impregnando
de ares científicos, para observarem desse ponto de vista a experiência espiritual, que valerá
como fenômeno físico.
Nesse processo final, novamente, parte-se da dúvida cética, ou seja, da posição de
isenção necessária para que a experiência seja observada cientificamente. Cabe lembrar
aqui que William Croockes, figura histórica que colabora para a contextualização realista
do conto, também em sua investigação científica do “Spiritualism” começa por
desacreditar dos fenômenos que vai analisar. Transcrevemos a seguir um comentário seu do
artigo aqui já citado:
Prefiro entrar na investigação, sem noções preconcebidas sejam quais
forem, como do que possa ou não ser, mas com todos os meus sentidos
alerta e prontos para transmitirem a informação ao cérebro; acreditando,
como creio, que não temos, de nenhuma maneira, esgotado todo o
conhecimento humano ou examinado as profundezas de todas as forças
físicas. (...) O crescente emprego dos métodos científicos produzirá uma
geração de observadores que lançará o resíduo imprestável do
«Spiritualism», de uma vez por todas, ao limbo desconhecido da magia e
da necromância
.
(CROOCKES, )
Em Confirmação”, o ceticismo necessário para o ponto de partida é do narrador
que, diante da preparação da médium e do Dr. Pôncio para a experiência, relata:
Apesar do estado nervoso em que me sentia, tive um sorriso com a
mímica do ilustre professor, desconfiei dele.
(DUQUE, 1995, P, 83)
Para que o conhecimento ganhe estatuto positivo deve o observador destituir-se de
qualquer preconcepção, estando apto a fazer o relato científico do fenômeno. No conto, o
narrador é esse observador confiável, que vem de fora, que não conhece Dr. Pôncio, que é
convidado justamente para legitimar a experiência.
Da mesma forma, se é o narrador que confirmará o caráter verídico do fenômeno,
precisa, por isso, converter-se em um observador atentíssimo. É necessário que seus
sentidos estejam aguçados, que assim se pode garantir a real existência do fenômeno
observado. A reiteração dessa observação atenta, dessa vigília dos sentidos é patente nesse
momento do texto. Ouvir, ver, eis os verbos, eis as ações da observação positiva e científica
capazes da “confirmação”:
Agucei o olhar. Esperei. Os segundos corriam menos velozes que o meu
coração. Ouvia, bem distintamente, o respirar opresso de Carlos. (...)
Doíam-me os olhos no esforço do atendimento.
(DUQUE, 1995, p. 83)
Até a culminância pleonástica:
E vi, bem claramente vi, vi com estes olhos que tenho, vi com a
consciência que possuo, um halo de cor azulada, incerto, estonteado,
ondulante como a primeira chama de um prunch a crescer no espaço
(DUQUE, 1995, p. 83)
Desse modo, o relato ficcional feito pelo narrador, que se configura no próprio
conto, é também, de novo de modo ambíguo, o relato do observador privilegiado,
autônomo, confiável, capaz de atribuir legitimidade à experiência da materialização do
espírito. Tal experiência foge, portanto, totalmente do âmbito da metafísica, da
sobrenaturalidade. Ao contrário, o relato ficcional - realista - feito pelo conto, como
“espelho da realidade”, seguindo o paradigma narrativo daquele tempo, não só parece
distanciar-se do aspecto de “invenção” assumida, de “criação”, de “poiesis”, tão cara à
estética simbolista, como também, por isso, vai inserir no rol dos fatos a serem
representados, de forma verossímil, as manifestações do Spiritualism”.
No entanto, não se esgotam nisso as estratégias do conto. Como já dissemos alhures,
um delicado componente de suspense que salva o conto do modelo realista, instaurando
a pitada simbolista indefectível e contribuindo ainda mais para a dubiedade da narrativa.
Temos no conto um narrador de primeira pessoa cuja história em quase nada nos
interessa e da qual quase nada é revelado, a não ser o que é absolutamente necessário para
transformá-lo em observador confiável da experiência, conforme apontamos: seu
ceticismo e sua isenção. Embora este seja um narrador bem mais palpável que o de “Ciúme
póstumo”, é importante que, o mais das vezes, suas marcas se diluam e a narrativa a
impressão de ser feita pelo viés do narrador-observador.
Dentro dessa análise, bastariam, como elementos constitutivos da estrutura do
conto, portanto, o narrador, que representa a sociedade cética, Dr. Pôncio, que representa a
Ciência autorizada, e a medium Edwiges, que representa a paranormalidade testada, para
que o conto funcionasse como narrativa de tese e “confirmasse” a existência física e
positiva do espírito. Ocorre que Carlos Fragoso. Qual a função desse personagem? A de
mais um representante do mesmo ceticismo do narrador, como poderíamos pensar a
princípio?
Parece-nos que não. Carlos Fragoso é o personagem com traços mais fortes no
conto. O narrador revela-nos sua personalidade com tintas de investigação psicológica,
transformando-o no componente genuinamente simbolista do conto. Vejamos a passagem
em que se dá a primeira descrição de Carlos Fragoso pelo narrador:
Deixei Carlos falar. A sua voz quente e meiga, com um quase
imperceptível tremor nervoso que, acentuando as labas, lapidava ceras
palavras com o esmero facetado de pedras preciosas. Ao demais, seu
intelectualismo cultivado, independente de ortodoxias limitadoras, tinha
o encanto duma ardorosa imaginativa e, por isso, seus exageros teóricos,
expostos numa cintilante linguagem de inéditos neologismos, lhe davam
às imagens e às idéias o feitio bizantino duma arte meticulosa e
requintada. (DUQUE, 1995, p. 79-80)
Não precisamos nos esforçar muito para ver nessa apresentação a própria
representação da mundividência e das ações simbolistas corporificadas na personagem. Da
mesma forma, a escolha lexical e a criação de uma imagística sinestésica fazem-se em
sintonia com aquilo a que Carlos Fragoso parece representar de modo quase que
autorreflexivo: o espelho daquele que, como o autor, apreende o mundo como simbolista.
Porém, o mais importante e que revela a marca mais criativa e autêntica do conto
anuncia-se na continuação do discurso do narrador, que abandona temporariamente o fulcro
do enredo para dedicar-se à exploração do perfil da personagem:
Estava, então, no período floral dos vinte e seis anos, possuía uma carta
de médico, a inquietadora notícia de um avô que morrera escabujando na
cela dum manicômio e a perigosa auréola donjuanesca dos amorosos
irresistíveis. (DUQUE, 1995, p. 80)
Interessante é perceber que também certa ambiguidade fértil na construção da
personagem, que é dico e, portanto, iniciado no saber científico, mas com uma
sintomática loucura ascendente e uma clara tendência subjetiva.
É nesse momento do texto que o narrador, sem motivo aparente, efetua um pequeno
flash back, contando um caso amoroso de Carlos Fragoso com a formosa Flávia, amante tão
dedicada ao amor que foi capaz de em seu nome macular a própria moral. Nosso Don Juan,
no entanto, abandona-a, substituindo-a por outra amante fugaz.
Essa história ficou estrategicamente solta até o final da narrativa e parecia mesmo
um apêndice sem importância, até confirmar-se como índice do que aconteceria. O passado
de Carlos Fragoso lança na narrativa o seu verdadeiro insólito, o elemento que, para além
da lógica positivista, continua sem explicação razoável, pois estabelece uma relação de
causa-e-efeito metafísica: Flávia é a moribunda cujo espírito a médium Edwiges faz-se
materializar.
Aí está a corrosão do discurso científico, a duplicação de vozes que ecoam no conto,
transformando-o em arena polifônica desconstrutora da “verdade” instituída e dos
paradigmas da representação literária realista-naturalista. É interessante, a esse respeito,
uma observação de Dr. Pôncio sobre as circunstâncias que propiciaram a ocorrência da
experiência de materialização do espírito:
Sim, é um fato científico. O que lhe falta é assentimento à experiência
que contraria a educação sentimental dos homens. A prova, de hoje,
devemo-la unicamente ao acaso, porque se trata de moribunda sem
amizade ou parentes aqui. É uma rapariga que me foi entregue,
agonizante, por proteção oculta... São raras, são raríssimas essas provas.
Ah! Os senhores o avaliam as dificuldades com que luto! Depende
tudo de um feliz acaso, como este, e é sempre em segredo que trabalho.
(DUQUE, 1995, p. 81)
Essa fala é a chave da grande ironia do texto. Embora a ciência possa até mesmo
comprovar a existência factual do fenômeno observado, destituindo-lhe o caráter
sobrenatural, enquadrando-o positivamente na “natureza”, como ocorre no âmbito do texto
e de certa parcela da comunidade da época que aderiu ao Espiritismo Científico”, o conto
extrapola essa leitura do mundo. Não se pode reduzir o que aconteceu aos olhos do
narrador, de Carlos e de Dr. Pôncio, pela interferência da médium Edwiges, a uma “prova”,
e muito menos a uma “prova” dada ao “acaso”. mais coisas entre o céu e a terra do
que desconfia nossafilosofia”, diz-nos o conto, com seu desenlace. O “acaso”, elemento
da ordem racional para designar o não controlável, a imprevisibilidade devida ao limitado
conhecimento humano, é descartado e põe em descrédito o próprio discurso da ciência,
entoado por Dr. Pôncio.
Dr. Pôncio, com seu saber científico, está à margem da “verdade” das coisas. O
implícito do texto é que ele nem desconfia do que de fato está ocorrendo. O encontro de
Carlos Fragoso com o espectro de Flávia é obviamente um fato articulado em um nível
desconhecido das variáveis controladas pela ciência e pela observação sensível. Foge,
portanto, da explicação racional que a época queria atribuir a tudo, até mesmo ao
“Spiritualism”.
Como simbolista, o conto apresenta uma leitura paralela a que literalmente se faz. O
leitor atento percebe um enredo subterrâneo, que veio à luz no flash back e nos dois
parágrafos finais, que se desenrola para a verdadeira “confirmação” do modo como o
mundo está organizado, do ponto de vista metafísico. Flávia e Carlos Fragoso têm seus
espíritos unidos, não pelo acaso, mas por uma confluência cósmica, que permanece
impenetrável e incognoscível, dado o final sem explicações racionais:
O meu amigo ergueu-se num ímpeto de terror, e quis fugir, mas o braço
luminoso do espectro o conteve e como Carlos, assombrado, voltasse o
rosto para ela, vimo-lo tomar-lhe a cabeça entre as mãos e beijar-lhe a
boca...
Um grito rompeu o terrível silêncio da alcova, um grito que navalhou os
recessos dos que o ouviram e se resumia todo no pavor de um nome que
fora amado Flávia!... E Carlos Fragoso desabou no chão, com todo o
peso do seu corpo para sempre inutilizado.
(DUQUE, 1995, p. 84)
As palavras de Dr. Pôncio aqui destacadas e que atribuíam ao acaso o
encaminhamento a ele, naquele momento - justo o em que Carlos Fragoso foi acompanhar a
experiência - do corpo da rapariga moribunda, tem que ser ressignificadas. Ficam em aberto
as verdadeiras motivações de tudo o que se desenrolou no enredo, como se tudo obedecesse
a uma outra lógica que transcende à racional, como se houvesse uma orquestração a que
não se conhece o início nem o fim, mas que estabelece certa relação de causalidade
totalmente imaterial.
Nesse sentido, “Confirmação” é um interessante espécime de conto simbolista, que,
mesmo apropriando-se da dicção realista e atribuindo caráter legitimador da verdade às
experiências positivas científicas, ainda consegue driblar as amarras da ideologia
dominante, infiltrando-a com a desconfiança de que para tudo pode-se ter outra explicação
que não a absolutamente racional estabelecida.
9 “Posse suprema”: desejo e sublimação
Chamarei de religiosidade nossa capacidade para captar a
dimensão sacra do mundo. (...) Pessoas religiosamente
surdas vivem em mundos rasos e chatos, movimentam-se
entre coisas transparentes (porque em tese inteiramente
explicáveis), e dirigem-se para a morte que torna absurdos
os mundos, as coisas e a própria vida. A capacidade
religiosa torna profundo o mundo, opacas as coisas (porque
nunca inteiramente explicáveis), e torna problemática a
morte. (FLUSSER)
A epígrafe anterior, de Vilém Flusser, tanto serve para encerrar a leitura proposta de
“Confirmação”, como para introduzir o conto que agora leremos. Nela, o filósofo do
ceticismo defende a compreensão de que o mundo é parcialmente inexplicável, por ter uma
“dimensão sacra” que necessariamente escapa ao conhecimento da ciência e da tecnologia,
exato como nos levou a crer a revelação do final da narrativa de “Confirmação” e exato de
onde partirá o próximo conto.
Completando o grupo de contos cujo enredo se liga explicitamente às questões
metafísicas, ao espiritualismo, ao esoterismo, à religiosidade, temos “Posse suprema”.
Nesse conto, a atmosfera e a expressão literária simbolistas encontram-se manifestadas de
modo exemplar. Se em “Ciúme póstumo” e ainda mais em Confirmação”, reconheamos
alguns resquícios de referencialidade entre o que se representava no conto e a realidade
como a compreende a lógica racional à moda realista, em “Posse suprema” esse vínculo se
esgarça a quase se romper, levando o leitor a enveredar por uma narrativa que em tudo
conduz a um mundo construído pela imaginação, inexistente, mágico, diferente do
encontrado para além das páginas do livro. Aqui, essa estratégia, que lança o conto em um
plano mitológico, está a serviço da discussão de arquétipos humanos, como veremos mais à
frente.
A narrativa se inicia com a criação de um ambiente lúgubre, através da
personificação do “velho sino do mosteiro(DUQUE, 1995, p. 37) a arfar e anunciar, junto
aos demais sinos que replicam agônicos por toda cidade, a morte. Por dois parágrafos,
desdobram-se as imagens funéreas, em uma dicção aliterativa, musical, que busca
contaminar a tessitura linguística pela sensação auditiva despertada na cena pelo réquiem
entoado pelos sinos. O leitor está diante da mais pura expressão simbolista. A seleção
vocabular não mente, a relação sintagmática que é estabelecida, também não. Vemo-nos
diante de claras expressões ao gosto daquela estética:
O velho sino do mosteiro arfou nos eixos, baloiçou o bojo e, num
arremesso acrobático, esboqueado para o ar, rodou arrastando o
tangedor pela concavidade fônica e despejou o rebôo do alarma
fúnebre sobre a extensão quieta da cidade, à hora branca desse
crepúsculo doentio de inverno em vésperas
E logo, acordando sobre a dormência final do eco, outro, além,
bamboou o requiem de sua mágoa... e outros, de pontos afastados – das
torres emerges do sarapintado fervilhar das casarias; de torres grisatas
das distâncias, no círculo imenso das últimas habitações limítrofes
tangeram o responsório cavo do De profundis que vibrava largo,
pela agonia açucenal da tarde, ecoando nos horizontes o estrugido
lamentoso das exéquias. (DUQUE, 1995, p. 37, grifos nossos)
O tempo narrativo é mítico. Não nenhuma referência concreta que nos leve a o
localizarmos no percurso histórico, como o conhecemos externamente à arte. Intuímos
apenas tratar-se de um passado não-marcado, um momento que nos remete muito mais à
fantasia criada pelos contos de fada medievais que povoam o imaginário ocidental, do que a
um tempo de fato “existido”. Além disso, temos o outono e sua atmosfera cinzenta, tão ao
gosto simbolista, a espalhar-se pelo conto, a vagamente delimitar o momento da narrativa, e
o entardecer, a “hora branca desse crepúsculo doentio de inverno em véspera”, como
marcas temporais do início do conto.
O mesmo processo de não-marcação ocorre com o espaço. Um reino, uma cela
monástica, um templo religioso, lugares distintos em tudo daquilo a que nos acostumamos e
de onde normalmente estamos, é o que encontramos no texto. Nesse tempo e nesse espaço
estranhos apresentam-se os personagens principais também raros, retirados da mesma
ambiência onírica do tempo e do espaço narrativos: uma princesa morta, um monge cercado
de mistério.
O enredo se espessa com o anúncio da morte inexplicada e inexplicável pelos
padrões da normalidade material - de Eugênia, filha única do Rei. Embora nesse conto,
diferentemente dos outros dois trabalhados, o diálogo fértil entre o ocultismo e a ciência
não se faça de modo determinante no plano do enredo, certamente se constrói nas
entrelinhas e na cosmovisão defendida. Temos aqui, também, fortes indícios desse que é
um dos pontos neurais da ficção de Gonzaga Duque, conforme já comprovamos. Assim o
narrador apresenta ao leitor a morte da princesa:
Nesse momento oscilava, descendo os grandes, vastos degraus raspados
do marmóreo paço real, rica padiola de lhama rutilante, ansiando a
pesada marchetaria de sueiras, onde se inteiriçava, sob o fofo acoberto de
rosas olorentes e camélias nevadas, o virgem corpo da bem-amada
princesa Eugênia, filha extremada e única do Rei, morta de uma
misteriosa moléstia inqualificada no diagnóstico complicado das
patologias. (DUQUE, 1995, p. 37, grifos nossos)
Em meio ao evidente tratamento simbolista da linguagem, à apresentação diáfana e
sinestésica da cena, ao preciocismo lexical e à sintaxe extensa e obscura, chega mesmo a
soar deslocado o uso dos vocábulos de marca científica “diagnóstico” e “patologias”. No
entanto, reconhecendo as relações ambíguas a que já nos referimos, tal uso justifica-se para,
evidentemente, descartar a filiação da história que se vai contar da realidade como a
decodifica, compreende e representa a lógica racional, tutelada pela ciência, o que é
corroborado pelo sintomático início do parágrafo seguinte – parecia inda um sonho”
(DUQUE, 1995, p. 37). Dessa maneira, introduz-se o insólito, o misterioso e obscuro
motivo da morte de Eugênia.
Mas à frente na narrativa, a mesma estratégia se repete, criando o suspense
necessário ao desvelamento do plano maravilhoso do conto, avesso aos paradigmas
realistas que imperavam na época:
E quem podia alvear o lutulento segredo daquela morte, se a ciência da
camarilha régia encolhera desalentadamente os ombros, aturdida e
vexada, diante desse fim repentino, quando a meiga e donzela Senhora,
alta noite, à luz do velário lavrado e na parcearia familiar das serviçais,
falava docemente do seu noivado vesperal!... (DUQUE, 1995, p. 38,
grifos nossos.)
O tom interrogativo com que se inicia a passagem anterior contamina
inexoravelmente a narrativa pela dúvida epistemológica que, de forma fundamental, norteia
a construção dos contos que estamos discutindo. Quem poderia explicar o ocorrido ou, por
extensão, qualquer ocorrido?
A ciência, aqui de modo exemplar, aparece como impotente, imprimindo ao texto a
contemporânea postura cética em relação às possibilidades de conhecermos, de fato, o que
nos cerca, a partir dos parcos instrumentos que a razão nos proporciona. É muito eficaz a
seleção lexical feita na passagem que grifamos, em que a ciência aparece em desalento,
encolhendo emblematicamente “os ombros”, “aturdida e vexada” diante da sua própria
incapacidade explicativa.
Esse é, obviamente, o discurso, não da ciência, mas da mundividência a que se filia
o autor. Naquele tempo, em que o cientificismo alcançou seu apogeu positivo, em que se
acreditava na ciência como na panaceia alcançada pelo método da observação e da
experimentação, em que a oposição entre o homem (“sujeito”) e o mundo (“objeto”)
construíra “o” conhecimento verdadeiro, era inadmissível a possibilidade da não-explicação
ou da colocação do “incrível”. Essa ciência que encolhe os ombros e se abstém de explicar
é ficcional e expressa a crise epistemológica a que esse conto (e outros que lemos neste
trabalho) quer levar. Internamente à narrativa, colabora para esse discurso da ciência, falso
(fictício, inventado) sobre si mesma, a não-marcação espácio-temporal. Percebemos que
não é a ciência da virada do século XIX para o XX que se autofragiliza, mas a da
“camarilha régia”. No entanto, a estratégia verossímil não invalida a corrosão cética
promovida e encaminha-nos para a entrada no ocultismo que marca o conto.
O espanto diante da inexplicável morte é no texto compartilhado por toda
comunidade, que parece perdida diante da dúvida gerada pela crise das certezas científicas.
Percebemos que não é a morte em si que estarrece o povo, mas sua não explicação, a
ausência de uma causa plausível, enfim, a falência das respostas lógicas:
Toda esta gente respeitosa em vão buscava compreender como podia
acabar assim uma tão meiga e donzela Senhora (...) Fora de repente,
como num assalto de encruzilhada trevosa, que ela caiu ao pronunciar o
nome do esposo prometido. (DUQUE, 1995, p. 38, grifos nossos)
Essa é a senha para a procura de outras explicações. O leitor, que já fora avisado do
insólito do conto por sua ambientação espácio-temporal não-marcada, pelas escolhas
linguísticas e estilísticas feitas, é levado definitivamente para um mundo organizado sobre
outros moldes e atendendo a outras leis que não as que foram outorgadas pelo pensamento
racional.
Essas novas leis são apresentadas por índices certeiros, que pontuam todo o texto, a
começar pela descrição da morte da princesa Eugênia:
Ia dizer Dom Arnaldo... E o sabor delicioso desse nome esbranquiçou-
lhe os lábios, ela toda tremeu, desvairada, numa ânsia, mais lívida que
camélias na cumplicidade dormente do jardim realengo. Por duas vezes
levou a brancura de seus dedos fuselados à nuca, acusando o raspo
rilhento de uma dor medular, e rolou abraceira do móvel com um grito
agudo, estrídulo, aterrorizante, d’alma arrancada na ponta resplandecente
de um estilete assassino. (DUQUE, 1995, p. 38)
Algo ocorrera. A morte é antecedida por ações específicas e significativas da
princesa por duas vezes levou a brancura de seus dedos fuselados à nuca”
denunciando a dor medular” que sentia. Mas qual sua causa? De que mal sofria? Não
causa lógica, nem mal material, posto que o índice do obscuro se coloca ao se pormenorizar
o “grito agudo, estrídulo, aterrorizante” e, mais explicitamente ainda, "d’alma arrancada
na ponta resplandecente de um estilete assassino”.
A dor sentida não tem uma causalidade clinicamente comprovável. Trata-se de um
crime! Mas de um crime cuja arquitetura e execução não estão na seara da realidade
concreta. Tudo acontece magicamente, como uma espécie de milagre, na verdade
anunciado na própria caracterização inicial da protagonista.
Essa caracterização utiliza-se do estereótipo feminino da literatura universal, em que
nobreza, pureza e beleza unem-se em um só ser, e remete-nos à ambiência medieval em que
esse determinado modelo de figura feminina associa-se à imagem da Virgem Maria:
(...) uma tão meiga e donzela Senhora, delgada e alta, do enlace delicado
e nobre das bizarras flores ornamentais dos brasões, que possuía
mansuetudes piedosas de Protetora a que o fulvo ensolarado de seus
cabelos longos espargia clarões aureolantes d’Aparição angélica.”
(DUQUE, 1995, p. 38)
A apresentação de Eugênia no conto começa marcada, portanto, pela sublimação.
Sua beleza é intensa, porém fora do alcance desse mundo de carne e osso. São sintomáticas
as expressões que a descrevem, reforçando seu caráter sagrado, proibitivo ao amor
mundano, ao qual iria, paradoxalmente, entregar-se com o casamento com Dom Arnaldo.
Nesse contexto, a morte é elemento necessário à manutenção do estado de pureza que a
define, como percebemos na passagem a seguir:
Tornara-se-lhe fatal, tornara-se-lhe desventura essa celigênea beleza
d’Enviada... Ah! Ninguém sabia!... tornara-se-lhe desventura essa beleza
celeste androgínea imagem de arcanjo, branca de Paros e banhada pela
luz gloriosa do primeiro sol das Messes... por ser assim tão bela,
paralisou-se-lhe o sangue no pequeno coração. (DUQUE, 1995, p. 38-39)
Nesse momento da narrativa, a meticulosa escolha vocabular para a caracterização
preliminar da causa absurda da morte de Eugênia é reveladora. Morre por sua “celigênea
beleza d’Enviada”, por sua “beleza celeste”, por sua “androgínea imagem de arcanjo”.
Sublimação clássica em mais alto grau é o que determina a morte de Eugênia. Nesse
tocante, cabe salientar que a protagonista do conto não é, propriamente, a princesa, mas seu
cadáver, seu corpo destituído de vida e aparentemente ainda mais interdito ao amor
sensual - sem que se incorra em séria subversão moral o que também colabora para o
processo de sublimação. Os momentos referentes à vida de Eugênia entram no plano
narrativo do flash back e são usados com o intuito único de esclarecer, do ponto de vista do
maravilhoso, as razões que determinaram a misteriosa morte da donzela.
Nessa parte da narrativa, surge aquele que se tornaria frei Hildebrando. Eugênia,
viva, no flash back, era escravizada magicamente por um rapaz, a quem não parecia
conhecer e que a dominava inteiramente:
Ela, por acaso, tinha contado às suas camareiras que havia um moreno
rapaz, do tipo quente das terras santas da Palestina, que, senhor de uns
olhos negros, a escravizava com uma força estranha, sem que lhe
houvesse energia para resistir à imperiosa fixação das belas e firmes
pupilas. (DUQUE, 1995, p. 39)
A partir desse ponto, a ambiência religiosa do conto se acirra a cada linha e parece
conduzir para a polarização do bem e do mal. Simbolicamente, enquanto Eugênia é
marcada pela pureza cristã, ingenuidade e tibieza, encarnadas na pele clara, nos cabelos
dourados de uma Virgem Maria, remetendo-nos ao celestial, o rapaz opõe-se, de certa
forma, a esses símbolos, aparecendo como ardiloso e dominador, em um corpo moreno de
olhos negros. O feminino e o masculino, como os definem os estereótipos, parecem
confrontar-se. No entanto, evitando soluções maniqueístas, o narrador matiza a
apresentação de Hildebrando e a própria reação de Eugênia, dando-lhes maior
complexidade.
No nível textual, cria-se uma certa ambiguidade. Hildebrando não pode ser
definitivamente representante do mal, visto que o narrador conserva-lhe traços positivos.
Da mesma maneira, não se pode descartar inteiramente o desejo de correspondência de
Eugênia ao magnetismo do rapaz, relativizando o jugo a que parecia sujeita. Senão,
vejamos:
Às vezes, em liturgias festivas da Sé, se abaixava o pálio de suas
pálpebras à contagem recolhida e atenta do rosário, uma ardência
occiptal, como se lha mordesse a placa de um cáustico, fazia-a volver a
cabeça, com lentidões mansas de automatismo, para o aglomero em que
se achava esse moço; e, desde logo, o estio claro de seus olhos ficava
sobre ele numa calma de meio-dia, aclarando-o em apoteose à força
dominadora de sua beleza manceba. Se, nas cerimônias dos torneios,
sorria à indiscrição de suas Damas, involuntariamente, fatalmente, esse
sorriso, começando em resposta, conduzia-se para ele, marmorizando-se-
lhe nos lábios para gozo dele, tão dele!... porque era para ele que seus
olhos se volviam humildes como dois anhos imbeles e perdidos. Onde
quer que fosse, onde quer que estivesse, o belo mancebo estaria
sempre, fazendo dela uma escrava pelo poder magnético do seu olhar...
Depois, ele se fora. Nunca mais o vira. Mas, em sonhos, nos cismares
das Trindades, irradiava-se-lhe a visão completa desse desconhecido,
belo e forte como os moços tostados da Samaria. (DUQUE, 1995, p. 39)
É patente o clima de sedução, de dominação do feminino pelo masculino, mas que
se dá em um campo que não é somente o do corpo. Há claramente o poder mágico - que nos
remete ao momento da morte de Eugênia (a “ardência occiptal”) - de uma dominação por
forças ocultistas, manipuladas pelo sedutor rapaz. Ao mesmo tempo, por mais “imbeles e
perdidos” que estejam os olhos de Eugênia, não relatos de mal-estar, de angústia diante
do domínio sobre ela exercido. Quando ela não mais o vê, o poder de Hildebrando não se
manifesta em pesadelos temíveis, mas em sonhos e, ainda mais importante, “nos cismares
das Trindades”, na hora da Ave-Maria. Da mesma forma, o narrador cuidadoso apresenta
Hildebrando com certa simpatia, um “belo mancebo”, “desconhecido moreno, belo e forte
como os moços tostados da Samaria”. A profusão de elementos da mitologia judaico-cristã
daria certamente um capítulo à parte, o qual nos eximiremos de escrever, mas cabe frisar
que um e outro Eugênia e Hildebrando – prendem-se a ela positivamente, neutralizando o
maniqueísmo a que já nos referimos.
Embora os dois não se caracterizem exatamente como elementos opositivos,
certamente um conflito no conto, conflito esse que gera o drama existencial de Hildebrando
e a morte de Eugênia: o conflito entre o desejo sexual e a sublimação desse desejo. Eugênia
despertava em Hildebrando o pior dos desejos sexuais, posto que representava não qualquer
mulher, mas a mais santa delas, a indesejável. Desejá-la o consumia e destruía, por isso se
recolhe ao monastério, na tentativa da sublimação. Mas os sonhos da princesa com o
moreno desconhecido confirmam que Hildebrando continuava a dominá-la e a manipulá-la
magicamente, cedendo sempre ao seu indomável desejo. A complexidade anímica do
personagem ganha ares freudianos na luta interna com sua libido. Na passagem a seguir,
lembramo-nos claramente da interpretação erótica dos êxtases religiosos, feita pela
psicanálise e representada artisticamente pelo “Êxtase de Santa Tereza”(1652), de Bernini
(1598-1680), agora com os papéis sexuais trocados:
Penitência e vigílias de remissão, votiva talvez, feitas com tanta
humildade e provações, o santificaram no espírito misericordioso da
comunidade. Mas, não o viram, os velhos monges, ao atravessar o
claustro, em cujo fundo uma pesada lâmpada de prata cochilava
eternamente a sua claridade diante da loira efígie de uma Virgem, dobrar
os joelhos, e, em êxtasis, contemplá-la como uma recordação evocada...
(DUQUE, 1995, p. 39)
Para usar as palavras da psicanálise, poderíamos dizer que duelam os instintos de
Eros e Tânatus, tanto no sentimento de culpa que gera penitências e vigílias, quanto no
êxtase diante da efígie da Virgem.
A rica coincidência entre Eugênia e a Virgem já havia sido denunciada quando o
rapaz escolheu como nome na ordenação monástica o de frei Hildebrando de Santa
Eugênia, numa contradição entre a ação purificadora do recolhimento à ordem religiosa e a
adoração à “Santa Eugênia”, que se revelou objeto de desejo claramente sexual. Essa
contradição percorre o texto, definindo os contornos psicológicos e morais do personagem
masculino e motivando o desenrolar do enredo. A luta entre as duas forças internas o
desejo e a sublimação – justifica o crime praticado obscuramente por Hildebrando.
Não estamos aqui, lembramos, em um mundo como o nosso. O enredo vai
apresentando elementos mágicos, insólitos, que no âmbito da ficção irrealista são
possíveis. Para falar de um aspecto tão humano e complexo, como a luta entre os instintos
eróticos e a preservação da civilização, não se utilizam dados do cotidiano raso, como os
tomados nas narrativas típicas do realismo/naturalismo convencional, mas de um plano
mítico, que revelaria dramas arquetípicos.
Se Hildebrando é apresentado em permanente dilema, também é paradoxal a
imagem da mulher construída na narrativa. Embora Eugênia identifique-se, em primeiro
nível, com a Virgem, conhecemos o gosto simbolista e decadentista pela figura de Salomé,
em seu papel corrosivo, como expressão de uma feminilidade sedutora que leva o homem à
perda da razão. Eugênia, por trás da imagem virginal aparente, exerce também sobre
Hildebrando um poder de Salomé, que reduplica a relação de jugo do conto. Se
Hildebrando mantém Eugênia subjugada pelo mágico amuleto de uma alquimia fantástica,
Eugênia o subjuga pelo seu poder essencialmente feminino, hipertrofiado, freudianamente,
pela interdição que representa. Sobre isso, é interessante nos voltarmos para as palavras de
Baudelaire, para quem a mulher era:
Dos mais duradouros prazeres, o ser para o qual, ou em benefício do
qual, tendem todos os seus esforços; (...) para quem os poetas compõem
suas jóias mais delicadas; a mulher, numa palavra, o é somente para o
artista em geral e para G. em particular, a fêmea do homem. É antes uma
divindade, um astro que preside todas as concepções do cérebro
masculino, é uma reverberação de todos os encantos da natureza
condensados num único ser; é o objeto da admiração e da curiosidade
mais viva que o quadro da vida possa oferecer ao contemplador.
(BAUDELAIRE, 1964, p. 64)
É essa essência feminina de Salomé que domina Hildebrando e, apesar de seus
evidentes esforços de sublimação, o faz continuar em seu ritual obscuro na busca da
realização do desejo de possuir Eugênia. Seu drama íntimo é de uma intensidade atroz. A
luta moral o dilacera, evidenciando o duplo jogo de submissão a que nos referimos. Por
mais que tente fugir, desesperadamente, do desejo despertado pela beleza feminina de
Eugênia, não consegue. Escondido dos monges, idolatra a figura da amada Eugênia
transportada para a pequenina chapa de cobre, fazendo-a, consequentemente, lembrar-se
dele em um processo fantástico, para o qual não temos, nem pedimos, explicações lógicas.
O conflito existencial de Hildebrando alcança o cume quando o mosteiro, onde se
refugiara de seu próprio desejo, é invadido pelo mundo profano, através da notícia do
casamento da princesa. O pobre frei, perdendo o domínio da sublimação que buscava,
redobrada pelo ciúme a força da sedutora Salomé em que Eugênia se transformara para ele,
mas luta ainda:
Uma vez que a frívola curiosidade mundana feriu a palrice dos monges,
moscardeando pelo refeitório a notícia do próximo matrimônio da
princesa Eugênia, frei Hildebrando, de costume absorto, enregelou-se
como um cadáver, ergueu-se ao depois, profundamente emocionado em
passos inconscientes de microbato e foi genuflexear-se diante da efígie
loira da Virgem, prostrado e humilíssimo, faces no chão, gorgorejando
rezas confusas que lhe sacudiam por espaços o tronco em convulsões de
soluços. Muito mais tarde, já batera no carrilhão a undécima badalada do
repouso, frei Hildebrando retirou-se para a cela, levando escondido nas
mãos o rosto que, quando a quando, erguia em súplica ao céu, num
desespero implorativo de relapso aterrorizado. E mal fechou a porta,
desabou de joelhos à frente da velha cruz d’ébano, pendente do muro, a
dizer frases fervorosas de aflitiva confissão. (DUQUE, 1995, p. 40)
O conto, a partir desse momento, passa a revelar as ações que desconhecíamos até
então, e que causaram a morte da princesa. O narrador, efetuando uma detalhada
apresentação do dilema anímico que dilacerava Hildebrando, vai elucidando para o leitor o
processo mágico que tirou a vida da princesa.
Hildebrando, em grande luta interior, pega da chapa metálica na qual aparecia a
imagem da amada, e num ritual de paixão e devoção absolutamente religiosa, intermediado
por Deus, vê avivar-se e quase que se materializar diante de si, a figura de Eugênia.
Percebemos mais uma vez que, apesar de se anunciar um assassinato, o narrador não cede
às simplificações e mantém em alta tensão dramática a apresentação psicológica daquele
que se transformará no criminoso. A própria invocação de Deus para colaborar na magia da
transfiguração do amuleto na imagem personificada de Eugênia é prova da profunda
complexidade com que a luta entre o desejo e a sublimação se estabelece e na qual as
noções de bem e de mal são relativas.
Toda su’alma afluíra ao chamejar da pupilas; falavam seus lábios de
sangue, sem modular sons... Uma rajada convulsiva abalou-o. Ele
arquejou... Mais cavo e dolorido tornara-se-lhe o rosto. Por momentos,
escondeu no seio aquela imagem, levada com ambas as mãos febris,
olhar erguido, chamando a piedade de Deus. Por momentos, levou-a
apaixonadamente à quentura da boca, pálpebras descidas, evocando a
visão da bem-amada. Então, como um albor que dessora do crepúsculo
água-tintando o horizonte, vagaroso surdiu, esmaecendo na chapa, o
miniaturado retrato da princesa Eugênia. Reluziu ao fundo a cabeleira
ruivácea, tal veludo d’oiro que longe passa na penumbra de uma capela...
Pouco a pouco ela veio se aclarando num reluzir de luar ovante. Aflorou
numa corola flava fez-se sol. Ao mesmo instante, suas faces que eram
indecisões espectrais, seus olhos que vacilavam um gríseo vago de
madrugada, surgiram encantadamente vivos! (DUQUE, 1995, p. 40-41)
Cabe aqui a observação de que a própria religiosidade é também, no conto, um
elemento ambíguo. Por um lado, temos a religião institucionalizada, representada por toda a
gama de símbolos do catolicismo, que sustenta em Hildebrando o sentimento de culpa por
seu desejo sexual, gerando a necessidade da sublimação. Essa religiosidade aniquila o
sujeito, por controlar-lhe sua “pulsão de vida”, por negar-lhe sua libido. Por outro lado,
como religiosidade corrosiva em relação às forças que limitam a essencialidade humana,
temos o poder oculto, o magnetismo mágico e alquímico da placa metálica, responsável por
alimentar o instinto fálico e sedutor do frei, logo, por alimentar também, duplamente, sua
“pulsão de vida” e “sua pulsão de morte”.
A descrição do ritual mágico que levou ao assassinato de Eugênia está longe de ser
feita negativamente pelo narrador. Ao contrário, temos uma evocação religiosa ardente, um
momento de súplica comoventemente apaixonada a Deus, a quem Hildebrando pede
piedade, e à própria imagem virginal da princesa, a quem chama. Por essas intervenções
de Deus e da Virgem a imagem surgida na placa vai-se transfigurando em aparição viva,
gerando o gozo fugaz de Hildebrando, para em seguida, caprichosamente, apagar-se,
levando o frei ao desespero e, privado de sentidos, ao assassinato, cuja arma foi,
emblematicamente, um crucifixo:
Antes que ele pudesse gozar a transfiguração de seu enlevo nessa
miniatura tornada realidade, a visão esmoreceu, se diluindo... no grisato
translúcido da chapa apagou-se. A mão de frei Hildebrando, num
impulso mau, empolgou o crucifixo d’estanho, no cordão cintural da
oparlanda e com o ângulo do extremo riscou a chapa. A aresta angular
apanhou a imagem pela nuca, mas a força empregada desviou a cruz que
ziguezagueou o rasgo, o repisou; por fim, desceu violentamente,
partindo-se. Vacilou-lhe o pulso febril, abatera-se0lhe a mão raivosa.
(DUQUE, 1995, p. 41)
Que forças seriam responsáveis pelo capricho de a imagem aparecer, despertando o
desejo de Hildebrando (“pulsão de vida”), e desaparecer, levando-o ao desespero, ao
“impulso mal”, a ceder a Tânatus? O sujeito aparece entregue totalmente a si, à sua
essência humana, entrando em profunda crise com a civilização castradora.
Por outro lado, Hildebrando queria mesmo matar Eugênia ou, como podemos
deduzir pela leitura da passagem anterior, apenas dominá-la pelo poder que tinha, evitando
que se casasse? O uso do crucifixo como arma do crime enriquece de símbolos essa
narrativa mitológica e amplifica a luta das forças fundamentais do ser humano que se
processa no íntimo do frei. Amor e morte, Eros e Tânatus, conflituam-se nos princípios
religiosos de sublimação e pecado.
Deixando-se levar por seu instinto de destruição, por sua ira incontrolável,
Hildebrando comete um horrível e duplo sacrilégio. No entanto, a ambiguidade da
apresentação da cena permite uma outra leitura, uma vez que o objeto sagrado usado para
tocar a nuca de Eugênia sugere-nos que a morte não era o propósito de Hildebrando, mas
ocorreu em consequência da cegueira apaixonada, do descontrole da força mágica que
possuía pela idolatria amorosa. Vítimas ambos - Eugênia e Hildebrando.
As cenas que se passam a seguir a esse primeiro clímax narrativo instituem um novo
momento, de um erotismo tipicamente decadentista e de resolução dos conflitos centrais
que dilaceram não a alma de Hildebrando, mas a de todo ser humano. Vários parágrafos
introdutórios levam o leitor ao velório de Eugênia, em uma igreja com monjas brancas,
construindo uma atmosfera fúnebre, através de uma linguagem com profundas marcas
simbolistas, em que se mistura a descrição física com a apresentação metafísica de imagens
soturnas e espectrais apenas sugeridas. Nessa ambientação sensorialista, sinestésica,
aparece frei Hildebrando, perdido em uma incompreensão sobre os acontecimentos quando
o corpo inerte de Eugênia. O amor até então platônico, cultuado à distância e pelo
instrumento mágico da chapa metálica, ganha a possibilidade da realização corpórea. Para
isso, no entanto, é necessária uma subversão ainda maior das regras morais e religiosas que
já marcavam a interdição da relação amorosa durante todo o conto.
Numa alucinação estertorante de lágrimas, histerizado e ansioso, teve
pela primeira vez, ao alcance de suas mãos profanas, aquele corpo que
vivera em seu cérebro, fluidificado na evocação dos visionamentos,
tangível e real nas hipnoses da solidão. Olhava-o estranhamente como se
olhasse para um doce engano desfeito, como se descerrasse pálpebras
para uma verdade desiludidora, extasiado e nulificado. (DUQUE, 1995,
p. 42)
É flagrante a percepção da transição do platonismo para a possibilidade de
concretização do desejo, com toda a carga de decepção que a transição da fantasia para a
realidade pode trazer. No conto, no entanto, lembramos novamente, não a figura
feminina viva, capaz de desfazer as idealizações construídas, mas seu cadáver. Por isso que,
se por um lado, a morte torna mais terrível a consumação do desejo, por outro a permite,
pois admite que o outro, Eugênia, continue a ser somente a imagem projetada pelo sujeito,
na forma sedutora de um corpo de mulher já sem vontade.
Quando cai a noite, intensificando a ambientação de morte, todos se vão, ficando
apenas as monjas brancas a velarem a Virgem e “a massa escura” de Hildebrando. É
quando se prepara o contato corpóreo e necrófilo entre ele e Eugênia. A narrativa, porém,
não apresenta diretamente essa ação. Antes, em momentos longos, mas nem por isso
cansativos, o narrador consegue imprimir um ritmo dramático e complexo, dando espaço
para as profundas dúvidas humanas que se configuram, essencialmente, como o eixo central
de discussão do conto :
Cravavam-se-lhe os olhos neste rosto impassível, mas, inutilmente,
porque a sua compreensão se estorcia nos emaranhos supliciadores das
duvidas. muito lentamente, depois de atendê-lo devagar, e,
devagar, reunir os fragmentos das poluídas recordações, sentiu a luz
íntima do entendimento luzir como braseiro de pira abandonada, e
absorveu-se na fascinação estranha desta máscara lívida que o fitava,
através dos intertícios das cerradas conchas das pálpebras, com fixo,
insistente olhar de remorso. Borbulhou-lhe nos bios uma frase de
chamamento e amor, espalhou-se no vazio este nome magoado e querido,
volatilizando-se num suspiro de harpa religiosa em dedos de Santa
apaixonada. Pareceu-lhe, então, que este impassível rosto se reanimava –
o arco da boca curvou à modulação de um alento, jasmineando o sorriso
tímido das núpcias; no entardecimento melancólico das órbitas desceu a
volúpia de uma carícia, alquebrou-se o duro olhar fitante, estrelou uma
promessa. (DUQUE, 1995, p. 42-43)
Como em uma tragédia descontrolada, Hildebrando não parece ter a exata noção do
que fizera por amor. Como um louco, alheio à realidade a sua volta, às interdições impostas
pelo mundo moral e religioso a que tanto buscou adequar-se, cede ao desejo, a Eros:
Automaticamente a mão do monge estendeu-se num desvelo enamorado;
seus dedos correram pelos cabelos da morta, alisando-os, tremendo e
persistindo ao contato painento de seus fios. Automaticamente seu braço
serpenteou esta linda cabeça, possuiu-a num afago. Então, no crescendo
da posse, no esquecimento da realidade
, suas mãos profanaram a vasta
mortalha flórea. (DUQUE, 1995, p. 43)
Se, como dissemos, o fulcro do conto é o dilema entre o desejo e a sublimação, as
cenas que se seguem à citada anteriormente encaminham para o desfecho desse conflito
essencial do homem e apresentam a mundividência defendida pela narrativa. Titubeando
entre interrupções culposas e retomadas, a profanação do cadáver vai se intensificando,
como uma espécie de epifania, mas não sem a reação das forças que simbolizam a
repressão e a sublimação do desejo.
Hildebrando, à medida que toma Eugênia em seus braços, que toca seu corpo
virginal, que deixa atuar sua libido, vê-se cercado de sinais fantásticos de julgamento e
condenação. Não sai incólume do crime que cometeu, não contra a vida de Eugênia, mas
contra a castração dos desejos eróticos. Seus julgadores são, emblematicamente, elementos
do âmbito sobrenatural, ligados à mitologia judaico-cristã, à simbologia católica: as monjas
brancas, feitas em figuras fantasmagóricas, as Virgens doloridas e, sobretudo, o Executor
divino:
Fantasmas parados, em mortalhas brancas, apunhalavam-no com pupilas
de aço em órbitas sem pálpebras; pulverulências cinerais d’espectros
glácidos deslizavam em pelotões unidos num taciturno cerimonial de
druidas, gemendo dolências de desamparo; arquejavam flácidas, tentando
serpentear no espaço, as colunas marmóreas da nave por onde faiscavam
gládios espiralentos de fogo em monstruosos pulsos luzentes. O recinto
fizera-se maior, desdobrara-se, alargara-se como se abrangesse a
imensidade. Para o fundo imenso, no termo longínquo das muralhas, sob
o mistério d’abside, pés desnudos, dominando um luar gélido de astro
morrente, descansava à sombra cerúsea de um Executor divino, ereto e
terrível, empolgando pelas extremidades, em reta sobre o regaço, a
lâmina vingadora... Choravam, nos santuários, os doloridos rostos das
Virgens... (DUQUE, 1995, p. 44)
Embora tenha lutado contra seus instintos eróticos, tenha buscado a todo custo a
sublimação imposta, Hildebrando quebra com toda e qualquer moral vigente. É um
sacrílego em alto grau. Domina a Virgem por forças ocultas, a mata, possui seu cadáver,
profana a nave de uma Igreja, sob o testemunho das imagens religiosas.
A narrativa, porém nem julga, nem condena Hildebrando. Ao contrário, dando-lhe a
dimensão humana mais profunda, apresenta com misericórdia sua atitude apaixonada, sua
loucura, como sinais positivos:
Hildebrando ergueu-se pido. Acordado pelo alarma, apanhou atônito o
cadáver da sua princesa, agarrando-o num ímpeto de socorro tardio, pelo
busto rígido cujas mãos pendiam inertes, e colou esta linda cabeça
marfinada ao peito do burel e reteve este corpo de noiva embalsamada
nos seus estendidos e musculosos braços cingidores, dominador,
desafiando os anátemas, afrontando as cóleras do céu, desdenhando
da excomunhão dos homens, a boca crispada para as alturas num grito
de estátua, olhos alucinados, como um soberbo grupo de arrebatamento
acusando pelo elance da postura o desespero terrível de uma posse eterna
que irá como uma verdade pela noite da Loucura à constatação suprema
da Morte! (DUQUE, 1995, p. 45, grifos nossos)
O que se é claramente a vitória do impulso erótico e do impulso de morte sobre a
civilização que impinge ao homem a castração e a culpa e que exige a sublimação a todo
custo como forma de domínio. Gonzaga Duque demonstra em “Posse suprema” a
consciência fina e arguta de que:
(...) o homem urbano, civilizado, atento às suas emoções, foi obtido às
custas da disciplinarização através de uma mentalidade que valorizava a
higiene, a estabilidade da família nuclear, o lazer controlado, a técnica e a
ciência. Ao mesmo tempo que ele descobre sua personalidade, aprende a
controlar, regularizar suas emoções e seu comportamento. (LINS, 1991,
p. 41-42)
Vera Lins considera Gonzaga Duque um franco-atirador que “tanto investe contra o
que lhe parece grosseiro e estúpido, como defende o que parece tornar a vida e a arte mais
dignas” (LINS, 1991, p. 33). Em “Posse suprema”, o franco-atirador apresenta toda sua
artilharia, fazendo uma profunda subversão do establishment social e moral.
A escolha pela ambientação insólita e fantástica é o primeiro ponto dessa subversão,
ao afastar, deliberadamente, a narrativa do padrão vigente, instituído pela sociedade
cientificista e positivista. Nessa ambientação, instala-se, por conseguinte, outra
possibilidade epistemológica, duvida-se da capacidade científica de responder às questões
colocadas e abre-se espaço para uma nova compreensão do que seja o mundo,
relativizando-se o próprio conceito de verdade. Porém, não só o universo externo ao
homem é repensado. “Posse suprema” entranha-se na alma humana e na sua constituição,
procedendo à reflexão interna, à leitura do sujeito em sua composição mais íntima, de onde
brotam dilemas individuais, mas arquetípicos.
Como consequência, a subversão atinge a própria religião institucionalizada,
abalada pelo franco-atirador, ao ser apresentada como instrumento de dominação dos
instintos primordiais do ser humano, através dos recalques incutidos e da sublimação
erótica exigida. Mas não abandona a religiosidade em sua essência redentora, para além dos
dogmas. No conto, subversivamente, através da morte, afirma-se a vida, que pode então ser
vivida intensamente em suas potencialidades subjetivas plenas. A narrativa efetua, assim,
uma vigorosa afirmação do sujeito, do eu, do homem, sobre tudo que o possa destruir ou
tolher: a estreiteza da realidade, os ditames do conhecimento racional, a moral religiosa, a
civilização castradora e a morte material.
10 “Benditos olhos!”: o duplo insólito
Colocada no âmago da problemática literária, que
começa com ela, a escritura portanto é, essencialmente, a
moral da forma, a escolha da área social no meio da qual o
escritor decide situar a Natureza de sua linguagem. Mas esta
área social não é a de um consumo efetivo. Para o escritor,
não se trata de escolher o grupo social para que escreve: ele
sabe perfeitamente que, a menos que se conte com uma
Revolução, será sempre para a mesma sociedade. Sua
escolha é uma escolha de consciência, não de eficácia. Sua
escritura constitui uma maneira de pensar a Literatura, não
de difundi-la.
(Roland Barthes)
O conto “Benditos olhos!” desenvolve, aparentemente, um dos eixos temáticos mais
típicos de Horto de mágoas: o que associa intimamente duas das forças motrizes da
humanidade o amor e a morte. No entanto, antes de tratar desse aspecto, gostaríamos de
destrinchar outro, que embora não seja exclusivo do conto em questão, nele se manifesta
muito bem e a que chamamos, em outro ponto deste trabalho, de exotismo narrativo, ou
instauração do insólito, no plano da enunciação.
Para muitos críticos, esse era um dos pontos mais comprometedores da narrativa
simbolista. A constatação de um discurso contaminado por estratégias que em muito
lembravam a expressão estética do art nouveau, com seu estilo decorativo, ornamental e
floral, levou-os a considerar inviável a narrativa contada por esse tipo de enunciação ou
escritura insólita. Vejamos, a exemplo, o que Bosi avaliou:
Isto não quer dizer que os nossos decadentes não hajam tentado as várias
sendas da prosa: o romance, o conto, a crônica, a prosa de arte, a crítica.
Fizeram-no difusa e copiosamente, mas com precários resultados, à
exceção, talvez, de Nestor Vítor, o maior crítico do Simbolismo. O
“poema em prosa”, de que haviam dado exemplos Baudelaire e Rimbaud,
é gênero difícil, pois não tolera por muito tempo a indefinição e a
vaguidade no discurso não rítmico(...) (BOSI, 1988, p. 329)
Mais à frente, na mesma obra, Bosi assim comenta o discurso em prosa de Gonzaga
Duque, em seu Mocidade morta: “nosso Gonzaga Duque não ultrapassava, em geral, a
mera verborragia” (BOSI, 1988, p. 331).
Brito Broca corrobora essa mesma opinião acerca da “verborragia” dos prosadores
simbolistas, parecendo, definitivamente, não compreender sua função estilística:
Desde o começo do século que se implantou em nossas revistas literárias
e mundanas, com vinhetas e ilustrações, um gênero de crônica meio
poemática, espécie de divagação fantasista sobre motivos abstratos, mero
jogo de palavras, em que se exercitavam a habilidade e o engenho verbal
dos autores.
2
Sob a rubrica, nesses casos nitidamente pejorativa, de “prosa poética”, tais críticos
colocavam toda a narrativa simbolista que, para eles, não excedia às experiências de um
cultismo vazio. Para nós, no entanto, tal enunciação, a que chamamos de insólita, é mais
um dos modos de burlar a mundividência realista/naturalista e positivista que se impunha
como verdade única.
Alinhando-se, portanto, ao que a crítica tradicionalmente chama de “prosa poética”,
de fato, “Benditos olhos!”, como a grande maioria dos contos de Gonzaga Duque, não faz
do trabalho do leitor uma investida fácil. Utilizando estruturas sintáticas longas, o mais das
vezes subordinadas umas às outras, nas quais se intercalam vários termos acessórios aos
essenciais da oração; recorrendo a uma escolha vocabular requintada e particular, muitas
vezes, inclusive, neológica, e construindo metáforas únicas, excepcionais e imprevisíveis, o
2
Apud: BOSI, Alfredo. Hisria concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1988, p. 329.
discurso do conto demonstra o quanto a linguagem literária da narrativa simbolista supera o
uso vulgar da língua. Não erram os críticos que veem aqui uma aproximação entre o
discurso literário e o plástico do período, o problema é seu juízo de valores. De fato, assim
como o art nouveau, a enunciação insólita desses contos, e da prosa simbolista como um
todo, é, com seu trabalho artesanal, francamente uma resistência à seriação anônima a que a
indústria começava a reduzir a arte.
Se em outros contos, como em “Confirmação”, esse dado estilístico não parecia tão
evidente, neles estava a exceção e aqui se apresenta a regra. O estilo de Gonzaga Duque é
apurado e quase hermético, solicitou do escritor e solicita de quem o decodifica atenção
total e cuidado pormenorizado com cada vocábulo que sintagmaticamente se combina com
outro para a complexa construção do sentido da narrativa. Negando-se a fazer com que a
linguagem facilite o fluir do enredo, esses contos, dos quais “Benditos olhos!” é exemplo,
constroem seu fio narrativo e suas ações em segundo plano, sempre por trás do discurso que
se apresenta como enigma, a que o olhar e a reflexão detetivesca do leitor precisa desvendar
calmamente. O plano da enunciação esconde, com seu entrelaçar, o enunciado. Não
fluência discursiva que permita a visão pronta, instantânea, da história (objetiva ou
subjetiva) narrada. Definitivamente, não é um discurso acessível àqueles que esperam que
entre o texto e o sentido não haja mais do que simples palavras transparentes e quase
imperceptíveis, um discurso que propicie a passagem do escrito para o mundo representado
num lapso. É obviamente intencional o rebuscado trabalho desse discurso difícil que não se
ultrapassa com poucos passos, que exige de seu leitor a dedicação de espírito e as condições
de leitura que a própria mundividência simbolista pregava como ideais para a vida, ligados
eles à circunspecção, à introspecção, à reflexão e, sobretudo, ao tempo.
Os contos, por sua linguagem, demandam tempo. Tempo para a leitura, para a
compreensão e para a reflexão posterior. Tempo meditativo. Eis uma tomada de posição
estética que implica posição ideológica e filosófica. Para esclarecermos essa posição,
tomemos a argumentação de Vilém Vlusser, ao distinguir pensamento e reflexão. Segundo
o filósofo, a civilização ocidental, marcada pela ciência e pela tecnologia, privilegiou o
pensamento à reflexão. A diferença sutil entre os conceitos seria a seguinte:
(...) o pensamento se precipita sobre os corpos para compreendê-los, e se
agarra a eles para modificá-los. O pensamento é portanto um processo
explosivo que se expande para dentro do mundo dos corpos para devorá-
los. O método desse devorar é a ciência e a tecnologia. Mas existe outro
movimento do pensamento, um movimento oposto. Nesse movimento
contrário o pensamento se vira contra si mesmo. A palavra “reflexão”
indica a direção desse movimento, que denota um recuo em direção
oposta ao avanço. (FLUSSER, 2002. P. 40)
Embora se estabeleça após essa passagem a oposição entre a ciência e a tecnologia,
de um lado, e a filosofia, de outro, podemos muito bem aplicá-la ao movimento promovido
pela arte simbolista/decadentista, tanto mais ela exija de seu fruidor “reflexão”. Opondo-se
ao pensamento científico, aquele que se projeta sobre o mundo das coisas e que utiliza o
discurso o mais referencial possível, a “reflexão” desencadeada pelo discurso simbolista
refinado e demasiadamente poético é uma óbvia reação ao mundo estabelecido pela
dinâmica do progresso material da Belle Époque.
Nos anos da Belle époque, em que o tempo começava a rarear diante da urgência
solicitada pelo progresso, em que as máquinas invadiam o cotidiano e diminuíam o contato
entre homem e natureza, o discurso da prosa simbolista articulava-se propositalmente para
ser um entrave, um obstáculo à fruição rápida, proclamada pelas tecnologias que
revolucionariam a obra de arte no século XX. Ele diz não à máxima capitalista de que
“tempo é dinheiro”, recusa-se a transformar a dimensão humana e subjetiva do tempo em
medida cronometrável. O tempo da narrativa e demandado pela narrativa é, no caso do
discurso de Gonzaga Duque, um tempo genuinamente anímico e incontável. Por isso, na
escritura, as frases organizam imagens cuidadosamente construídas e muito
vagarosamente, com a intervenção cirúrgica e artesanal da reflexão pausada e do
sentimento, passamos delas ao seu sentido.
A linguagem literária, por constituir-se a partir de um burilado trabalho de artífice
da palavra, intermedeia um prolongado contato do homem consigo mesmo, levando-o,
portanto, à reflexão que se tornara quase impossível no mundo fora da arte. À rapidez
fluida e alienante da vida moderna que se anunciava, propõe-se a meditação estendida e
forçada pela fruição artística.
Sobre essa relação tão particular entre a literatura, o homem e o tempo, são
reveladoras as palavras de Hauser (2003), ao analisar o esteticismo surgido no fin de siècle
francês, e sua relação com a noção temporal, exemplarmente discutida por Proust (1871-
1922), no seu Em busca do tempo perdido (1913-1927):
A cultura estética subentende um modo de vida marcado pela inutilidade
e superfluidade, quer dizer, a consusbstanciação da passividade e da
resignação românticas. Mas supera o romantismo; não só renuncia à vida
por amor à arte, mas busca na própria arte a justificação da vida.
Considera o mundo da arte a única compensação verdadeira para os
desapontamentos da vida, a genuína realização e consumação de uma
existência intrinsecamente incompleta e inarticulada. Isso, no entanto,
significa não só que a vida parece mais bela e mais conciliatória quando
envolta em arte, mas, como pensava Proust o último grande
impressionista e hedonista estético - , adquire realidade significativa
na lembrança, na visão e experiência estética. Vivemos nossa experiência
com superlativa intensidade não quando deparamos com homens e coisas
na realidade o “tempo” e o presente dessas experiências são sempre
“perdidos” -, mas quando “recuperamos o tempo”, quando deixamos de
ser atores para ser espectadores de nossa vida, quando criamos ou nos
deleitamos com obras de arte, por outras palavras, quando recordamos.
Em Proust, a arte toma posse do que Platão lhe tinha negado: ideias a
verdadeira lembrança das formas essenciais do ser. (HAUSER, 2003, p.
910)
Nas narrativas de Gonzaga Duque, o tempo demandado pela leitura não se perde,
mas se recupera, posto que provoca no leitor, necessariamente, o deslocar-se do mundo
objetivamente colocado, pausterizado, que prescinde da reflexão, para outro, criado pela
arte, para a decodificação meditativa.
As narrativas mais tradicionais, como sabemos, preservavam, ainda que algumas
vezes de modo tênue, um vínculo ancestral com o discurso histórico (historiográfico) -
objetivo, denotativo, e, em última análise, referencial e, por isso, afastavam-se pouco (ou
bem menos do que a poesia) da linguagem em seu uso comunicativo imediato. Não é isso,
no entanto, que percebemos na narrativa simbolista. A literatura, diante do progresso
material e científico nos anos de 1900, ou identifica-se e confunde-se com ele, tanto nas
ideias quanto no discurso, como ocorre no realismo/naturalismo, ou reage, num instinto de
autopreservação e oposição, como acontece na narrativa simbolista, que sublinha
acentuadamente seu caráter intrinsecamente artístico.
Logo, o discurso da narrativa simbolista cumpre, de modo hipertrofiado, a “função
poética da linguagem”, construindo um enorme fosso entre a linguagem cotidiana da
comunicação entre os homens e a enunciação literária.
Hauser (2003), comentando o discurso simbolista e decadentista, faz o seguinte
relato bastante esclarecedor das peculiaridades que vemos desenvolvidas nas narrativas de
Gonzaga Duque, compreendidas com portadoras de um discurso exponencialmente
literário:
Na realidade, a arte jamais fora levada tão a sério quanto agora; nunca se
pusera tanto esforço e tanto empenho em escrever poemas habilmente
cinzelados, uma prosa impecável, frases perfeitamente articuladas e
equilibradas. Nunca a “beleza”, o elemento decorativo, o elegante, o
requintado e o dispendioso tinham desempenhado papel tão
preponderante na arte; nunca esta fora praticada com tanto preciosismo e
virtuosismo. (HAUSER, 2003, p. 932-933)
Como Barthes dizia, a literatura deve resgatar a língua do grau zero em que a
comunicação cotidiana a lançou, alçando-a ao grau cem pelo inusitado de seu uso (cf.
BARTHES, 1993). É exatamente isso que percebemos a cada linha de muitos dos contos de
Horto de mágoas, como em “Benditos olhos!”. Para deixar ainda mais claro nosso ponto de
vista, transcrevemos a seguir uma passagem em que Barthes diferencia a fala da escritura
(escritura cuja complexidade se intensifica no caso de nossos contos), demonstrando que
deve ser próprio da literariedade uma certa contracomunicação intimidadora:
Toda fala está nesse gasto das palavras, nessa espuma levada sempre
mais longe, e, existe fala onde a linguagem funcione claramente como
uma voração que arrancasse apenas a ponta móvel das palavras; a
escritura, pelo contrário, está sempre enraizada num além da linguagem,
desenvolve-se como um germe e não como uma linha, manifesta uma
essência e ameaça um segredo, é uma contracomunicação, intimida.
(BARTHES, 1993, p. 127)
A criação neológica, patente na obra em estudo, indicia também essa
contracomunicação produtiva, na medida em que faz da própria língua fonte de realidade.
Nos contos de Gonzaga Duque, o mais das vezes, percebemos essa intenção estilística de
um enunciador excessivamente competente, conhecedor de um vocabulário gigante,
construtor impecável de frases e de imagens, que impõe ao leitor a tarefa de descortiná-las
naquele movimento retrospectivo e reflexivo a que já nos referimos.
No entanto, ao contrário do que se de pensar, não é essa simplesmente uma
“prosa poética”, uma “verborragia” em que o discurso engole o enredo ou o torna de pouca
expressividade, em que o objetivo da enunciação encerra-se em si mesmo, como trabalho
literário exaustivo. Há, nesses contos, um nítido conluio entre o plano da enunciação e o do
enunciado. Tão complexa quanto o discurso é a história que se deseja contar.
O uso absolutamente inventivo (poético) da língua para se construírem os contos,
não inviabiliza, portanto, sua feição narrativa. Sem ceder às facilidades, o narrador de
“Benditos olhos!” apresenta-nos um enredo encorpado, conta-nos uma história
multifacetada.
O conto se abre com a ficcionalização da situação de enunciação. Um narrador
primordial apresenta ao leitor as páginas escritas por um “pobre espírito crepusculado”, um
“ex-escrevente de cartório”. Aqui, o ficcional se desdobra. O conto apresenta uma pequena
introdução em que se faz uma simulação do próprio momento da enunciação. Por esse
motivo, o corpo do conto encontra-se aspeado, reportando-nos a uma voz replicada.
Conhecemos a origem, ficcional, da narrativa: um ex-escrevente de cartório busca
registrar nas páginas que se seguirão as angústias que dilaceram sua alma. aqui
percebemos o critério a ser usado por esse narrador de primeira pessoa na seleção dos
acontecimentos. Não lhe interessarão os fatos externos por si sós, mas a consequência
subjetiva de tais fatos em sua “alma”. Por isso, pode parecer, ao leitor desatento, que existe
no conto certa fragilidade da fabulação. Mas, ao contrário, os fatos estão ali, narrados não
de modo explícito e detalhado, mas revelados na medida em que significam algo para a
vivência íntima do narrador ou produzem efeitos em sua subjetividade.
Interessante é também observar a concorrência, para a caracterização do narrador
apresentado, de elementos de mundos muito díspares: se por um lado temos o prosaísmo de
sua condição social (um ex-escrevente de cartório), por outro se apresenta a complexidade
de seu drama existencial, do qual resulta a narrativa. Na verdade, o que se vai narrar no
conto é justamente uma experiência fantástica, um acontecimento que muda a rotina
miserável do escrevente de cartório. A narrativa reivindica a tese de que para todos é
possível a experienciação do insólito.
E eu que o escrevera, e eu que o diga a todo mundo, para que todo
mundo saiba como na obscuridade de uma alma de escrevente
desprezível se forma e se ilumina o poema espiritual de um culto
escrito na pulsação de cada segundo, a cada gotejar de sangue(...).
(DUQUE, 1995, p. 85)
A história começa com a exposição retórica do estado anímico do narrador
diante da beleza de certos olhos verdes: “Quem viu olhos mais lindos?..”. (DUQUE,
1995, p. 85). Esse é o estopim para a entrada na narrativa das construções metafóricas que
tanto lembram o tratamento poético da linguagem, mas que na verdade acentuam sua
literariedade em oposição ao discurso em prosa então predominante.
Não faltam ao texto elementos claramente narrativos, como a localização espacial e
temporal e a ocorrência de ações. Temos nosso narrador personagem tomado de devoção
apaixonada pelos olhos de uma mulher “desde um dia morno”, em uma “igreja floreada
para o cerimonial litúrgico da serena padroeira”. Como se vê, os dados objetivos da
narrativa (tempo, espaço, enredo) estão presentes, mas não do modo direto que teríamos
caso essa fosse uma escritura histórica. Seu caráter de escritura literária em alto grau parece
dissimular os aspectos narrativos, escondendo-os propositalmente atrás de um discurso
difícil e imprevisto, como já expomos.
Os acontecimentos precisam ser caçados pelo leitor, que nunca tem sua tarefa
facilitada. O enredo subjaz à própria escritura literária, essa sim mais visível (ainda que
enigmática), mas existe fortemente e revela o aspecto genuinamente humano dos
acontecimentos, sua manifestação anímica.
O primeiro acontecimento concreto, que mencionamos, é a visão inaugural, pelo
narrador, dos olhos verdes, referidos no título. Tais olhos o seduzem perdidamente. Do
mesmo modo como vimos ocorrer em “Posse suprema”, anuncia-se um conflito entre o
humano e o sagrado. A sedução feminina começa a exercer sua força sobre o homem no dia
da padroeira e em plena igreja. O narrador, sintomaticamente, revela o embate mencionado,
ao expressar certo pedido de desculpa à “Senhora do Céu, preterida pelo sensual olhar da
mulher. Assim, o conto se insere em um movimento consciente de dessacralização:
Mas... ó gloriosa Senhora dos us! Por que negar?... Eu vos lobriguei,
eu vos percebi mal distintamente, nessa festiva manhã de vossa
comemoração. Esses lindos olhos me dominavam, me escravizavam com
a estranha claridade de sua luz, me prendiam e me arrastavam pela
irresistibilidade da sua misteriosa cor de onda aberta, espumejante onda
de mar livre, que eu fantasiei na lucidez da imagem sugerida: côncava,
enorme, verde, liquescente, reluzindo ao clarão verdíneo de uma
apoteose primaveril, e súbita estacada para o esplendor de seu exubero
colorido de águas em massa, à ardentia canicular dos flavos meses
tropicais. (DUQUE, 1995, p. 85-86)
Novamente, como em “Posse suprema” a atmosfera criada é a do pecado.
Novamente, também, a figura feminina ganha ares de Salomé, construída pelo misto de
elementos positivos e negativos. Apresentada metonimicamente por seus olhos verdes, a
mulher é desejada e repelida: “Maus, criminosos que eles foram, esses lindos olhos!... eu os
bendigo.” (DUQUE, 1995, p. 86).
O narrador em vão tenta resistir aos olhos que o chamam como cânticos de sereia.
Aliás, a imagem marítima a que as sereias nos levam é recriada para a apresentação da
força magnética do olhar feminino. O verde dos olhos a justifica, como percebemos na
citação já feita.
Também é interessante fazer aqui um paralelo entre os elementos e as imagens
criadas no conto e as antológicas descrições de Bentinho sobre os olhos de ressaca de
Capitu. Tal como na obra de Machado de Assis, publicada em 1899 (e o conto em 1905),
saem dos olhos femininos ondas de um mar revolto a envolver e tragar o narrador
impotente. As aproximações não param aí. Relembremos a passagem de Dom Casmurro:
Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que
arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de
ressaca. Para o ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às
orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão
depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava
e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.
(ASSIS, 2002, p. 26)
No conto, também o narrador busca recorrer aos estratagemas de Bentinho, na
tentativa de fugir ao jugo dos olhos sedutores da mulher. No entanto, nada em volta
consegue salvá-lo do inevitável mergulho, já que o mundo se anula diante daqueles olhos.
Em derrredor nada existia senão eles. Em vão procurei a resignada
quietude das Virgens elas me apareciam nos diluimentos dos vagos
sonhos através uma gaze malva e tenuíssima; inutilmente dilatei as
pálpebras, divaguei o olhar atônito, vazio, idiotado pela pompa dos
ouropéis estrelantes, pelos fartos, rubros veludos ornamentais, e eles
ficavam na minha retina, insensivelmente, como devem ficar as coisas
nos eixos ópticos de um bambino ou na impotência perceptiva dos
imbecis.” (DUQUE, 1995, p. 86)
O conto vai-se desenvolvendo, a partir de então, através de duas vertentes
antagônicas, mas complementares. Uma delas representa as ações objetivas que compõem
um enredo mais ou menos ao modo realista. O narrador conhece a amada na igreja,
apaixona-se por seus olhos, mas ela some. Ele procura reencontrá-la, até que consegue
revê-la em um camarote de teatro. No entanto, algo de errado: para seu desespero ela
está doente, com tuberculose, e morre, não sem antes consentir com certa aproximação
entre os dois.
Paralelamente a esse enredo que conta dos fatos da realidade fora do sujeito,
porém, uma narrativa da intimidade, que permite a irrupção do insólito. Nela, surgem
elementos extraordinários, que promovem uma ação subjetiva, psicológica, de
transformação do narrador, que, no entanto, manifesta-se também, insolitamente, no mundo
da realidade concreta (do conto).
A visão dos olhos verdes da amada desencadeou no narrador uma relação
simbiótica. Seus olhos não veem mais por si, mas pela interferência dos benditos olhos
amados. O verde dos olhos espalha-se pela natureza, em particular e estreita convivência
com o narrador. Os olhos, se não estão presentes como eles mesmos, materializam-se em
sua cor nos variados matizes do mar e das plantas. A própria relação do narrador com o
mundo se altera após esse movimento subjetivo e mágico.
Amadas meticulosidades de botânico estudioso, paixões esmiuçantes de
cultivador exótico, carinhos atentivos, todas as pacientes, pequeninas
observações de estufa e de laboratórios, nasciam no meu íntimo, viçando-
o como o verde de um campo em maio, trazendo para ele íntimo
humilde de humilíssimo escrevente de cartório o alarma hosânico dos
verdes da Primavera verdejante.
(DUQUE, 1995, p. 87)
A princípio, a interferência do olhar amado efetua uma amplificação sensorial no
narrador. Como um novo homem, sensibilizado pelos verdes olhos vistos, ele redescobre o
mundo, mudado em infinitas filigranas que proporcionam as mais variadas sensações e
deleites. Supera assim sua condição social prosaica, alcança uma experienciação da
natureza diferente, de que não parecia antes ser capaz.
E, passando horas de espreita e análise, examinando a grama opulenta
desta cor vivente, descobri sutilezas de nuanças, dominantes exageros de
tons, que poderiam chegar à delicada visão de um artista da raça,
singular depositário de predileções investigadoras para a emotividade
egoísta do seu requinte. (...) Tudo quanto eu ia vendo e analisando estava,
lembrava os lindos olhos da minha esguia madressilva pálida, mais,
muito mais lindos agora pelo aroma que se me infiltrava no ser, derruía
vigores voluntivos, deleitosamente me inebriava e me trazia ao cérebro
uma nunca experimentada sensação voluptuosa de espiritualidades,
como se esse aroma se exalasse daqueles olhos, num extravasamento
lascivo de corolas abertas, cedidas ao gozo prolífero do pólen arrebatado
às anteras desejosas... (DUQUE, 1995, p. 88, grifos nossos)
Estamos no momento do enredo factual imediatamente após o primeiro contato do
narrador com a mulher na igreja, quando ele a procura para um reencontro. As
modificações íntimas são motivadas pela paixão. Embora não visse os olhos, a impressão
causada foi tamanha, que existiam imaterialmente em tudo que se revelava ao narrador,
como de um modo inaugural, pelo sentido da visão. Aqui não temos, portanto,
simplesmente um clichê romântico, mas um processo mais complexo e mais profundo que
se desencadeia, gerando alterações em uma sensibilidade. O amor pelos olhos verdes e a
simbiose instalada foram capazes de trazer habilidades e aptidões, sentimentos e sensações
ao narrador, que antes ele não supunha existirem, passando a ter, através de seu novo olhar,
acesso a uma nova alma.
No desenrolar do enredo, vamos a um outro ponto, quando o narrador revê os olhos
perdidos da amada. As recordações do olhar que levaram o narrador àquela inédita
sensibilidade pictórica, sensorial e anímica não encontram eco nos olhos verdes revistos.
Ele os acha agora diferentes.
E ali os tinha diante de mim. Hoje (tão diferentes!), traziam a melancolia
de uma onda rasa na faixa arienta de um mar fechado. Não sei que
esvaecimento de tarde crepusculava a esmerealda clara, a preciosa
esmeralda desses olhos. (DUQUE, 1995, p. 88)
No nível do enredo dos acontecimentos concretos, a modificação do olhar da amada
indicia a doença que a levará à morte. Os olhos embaçados e crepusculares, de um verde
obscuro, distintos dos que antes irradiavam luz como esmeraldas claras, são olhos de
tuberculosa, consumida pela tosse incessante, pela falta de ar, pela tibieza do corpo. Porém,
para o enredo subjetivo, que constitui a essência do conto, a alteração nos olhos da amada
levará a outras consequências.
A simbiose efetuada no contato inicial do narrador com esses olhos, responsável
pela profunda alteração em sua sensibilidade, fadá-lo-á a experienciar também novas
transformações que intensificarão o insólito do conto.
Passamos, no plano do enredo factual, ao momento em que o narrador começa a
desfrutar da intimidade da amada, condição importante para a permanência da influência
mágica que os olhos verdes exercem sobre ele.
Cheguei, enfim! A penetrar na modestíssima habitação reclusa da moça
senhora dos lindos olhos. Vassalagem submissa, humilhações recurvadas
de escravo fizeram-me ganhar a singela intimidade da pacata, mansa,
burguesa existência do seu lar. (DUQUE, 1995, p. 88)
Pela seleção vocabular da passagem destacada anteriormente e do parágrafo que a
segue, poderíamos dizer que a figura feminina não estabelece uma identidade com os olhos
verdes que seduziram o narrador. É como se os dois mulher e olhos tal como na
“Teresa” do poema de Bandeira (“Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o
resto do corpo nascesse”), constituíssem-se em existências autônomas e o narrador
quisesse o convívio com a figura feminina por não poder ter somente seus olhos. Daí por
que considera “vassalagem submissa”, “humilhações recurvadas de escravo” - expressões
cujos termos certamente associam-se a acepções negativas - as posturas que toma para
poder conquistar a confiança da “moça senhora dos lindos olhos”.
Da mesma forma, são sinais dessa dissociação os comentários feitos em relação ao
corpo da mulher, só agora percebido pelo narrador.
Nunca reparei bem esta flor sentimental e exótica; e neste momento,
depois de tão longo tempo, é que notava, atento, encolhido à braceira de
um velho sofá de família, a forma esvelata, esguia, franzina do seu corpo
(...) (DUQUE, 1995, p. 88)
Outra prova da dicotomia existente entre a mulher e seus olhos verdes que vivem
como entidades mágicas é a narração da morte. Sem preparação, ela se abruptamente ao
leitor. Não se veem, como se poderiam esperar, relatos comovidos que revelem a perda do
objeto de desejo. Ao contrário, a escolha da indeterminação do sujeito e mesmo de certas
imagens que nos remetem ao campo semântico da luminosidade, contribuem para que a
cena seja impessoal e, até mesmo, positiva. Vejamos:
Por uma florescente manhã de arrulos e sol, vestiram-na cuidadosamente
de cetinosas brancuras e foram deitar o seu franzino corpo no forro
branco-mate do caixão lilás. (DUQUE, 1995, p. 89-90)
Nesse momento, o narrador parece ainda não ter a consciência das implicações
subjetivas que a morte da mulher acarretará. Como viventes separados, o corpo morre, mas
e os olhos? aos poucos sua finitude é percebida pelo narrador, levando-o, sim, ao
desespero.
(...) e, quando só, em frente à inércia dessa esvelta matéria, pronta para o
ignoto esponsal da terra, comecei a notar, amante e mísero, o luar
suavíssimo dos verdes translúcidos que manchava a sua face tranquila de
adormecida eterna, a frieza óssea de suas mãos, a alvura dos cetins, veio-
me uma desesperada saudade de seus lindos olhos, que me pareciam
ter transbordado o colorido vivente das pupilas sob a algidez da sua
morta querida. (DUQUE, 1995, p. 90, grifos nossos)
A partir deste ponto, o enredo factual abandona seu aspecto realista e cede lugar ao
insólito. Tudo o que se passa então - as ações e suas consequências - somente pode ser
compreendido se nos investimos da aceitação da irrealidade.
A constatação de que com a morte da mulher o narrador não mais poderá vislumbrar
seus verdes olhos provoca, como em “Posse suprema”, a profanação do cadáver, que o
desejo de revê-los precisa ser loucamente realizado. Entramos, portanto, em um mundo de
ações insólitas, porque distintas das usuais e esperáveis, e que resultam em fatos também
insólitos.
E não pude me conter... Impelido pela imperiosidade de um desejo,
ergui-me, fui debruçar-me, enlouquecido, sonâmbulo, sobre o ataúde...
Num gesto brusco, dilatei as pálpebras, e mergulhei, sôfrego, o meu olhar
vivo no morto olhar desse cadáver virgem... (DUQUE, 1995, p. 90)
A cena passional e dessacralizante certamente provoca o choque e, no plano do
enredo subjetivo, corresponde à reafirmação da simbiose. Em vão o narrador procura com
seu olhar no olhar morto a luz que guiou sua transformação sensorial e anímica e,
naturalmente, não a encontra. Magicamente, o resultado é uma nova modificação, mas
agora em sentido inverso.
No plano das ações concretas, tomado também pelo insólito, como dissemos,
somos levados ao presente da enunciação e conhecemos o que foi feito do narrador depois
da experiência fantástica por que passou. A morte dos olhos verdes representou a própria
perda da visão do narrador. Cego e sem vida, ele vaga esmolando.
Que me importa mais? Vivi por aqueles lindos olhos, amei-os, segui-os
até que eles se foram para verdejar a natureza nas Primaveras álacres... E,
como eles não existem e eu não vivo, rolo a minha restante
existência de porta em porta, tateando muros de antigos caminhos
conhecidos, ou guiado pela piedade dos que passam, choramingando
súplicas para o resgate das almas sofredoras, levando sobre a íris a crosta
da catarata e nos ombros a seda verde da opa esmoler, ambas verdes,
ambas ainda da cor daqueles lindos olhos, daqueles benditos olhos!...
(DUQUE, 1995, p. 91)
Não há, na relação de causa-e-efeito estabelecida, nada que possa ser sustentado
pela gica. Estamos claramente em um mundo movediço, mágico, incerto, fantástico, no
qual se prescinde da base firme e incontestável da razão para as explicações dos
fenômenos. No mundo convencionalmente entendido como real, muitas podem ser as
causas da cegueira, mas não está entre elas a atribuída pelo conto.
Evidentemente, as simbologias trabalhadas pelo conto (dos olhos, da profanação, da
cegueira, do verde etc) poderiam ser levantadas, apontando mais caminhos para a
compreensão da narrativa, mas gostaríamos de encerrar a leitura deste conto lembrando-nos
de um elemento curioso que o marca: seu caráter biográfico. Gonzaga Duque, justamente
em um conto cuja enunciação é duplamente ficcionalizada, o que o afasta em pelo menos
dois graus da narrativa biográfica, expõe aquele que seria talvez o mal que mais o fez
padecer uma precoce e intensa catarata que praticamente cega um de seus olhos e quase
dizima também o outro. Aqui talvez tenhamos uma narrativa parabólica em que o autor,
pelo viés mítico do insólito, busca compreender e assimilar sua própria vivência pessoal.
11 “Aquela mulher...” , “Miss Fatalidade”e “Agonia por semelhança”: as
esfíngicas e decadentes Salomés
E que gozo sentir-me em plena liberdade,
Longe do jugo atroz dos homens e da ronda
Da velha Sociedade
— a messalina hedionda
que, da vida no eterno carnaval
se exibe fantasiada de vestal.
(Gilka Machado)
Que venhas lá do céu ou do inferno, que importa,
Beleza! ó monstro ingênuo, gigantesco e horrendo!
Se teu olhar, teu riso, teus pés me abrem a porta
De um infinito que amo e que jamais desvendo?
De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,
Que importa, se és quem fazes – fada de olhos suaves,
Ó rainha de luz, perfume e ritmo cheia! –
Mais humano o universo e as horas menos graves?
(Baudelaire)
Horto de mágoas, como dissemos, é um livro cujos contos, de formas variadas,
promovem profundas rupturas com o estabelecido. Sua filiação ao Decadentismo é
flagrante, posto que, além da oposição deliberada à perspectiva estética e ideológica
realista/naturalista, nele percebemos a visão pessimista e desencantada do mundo, que leva
ao desenvolvimento de narrativas centradas no subjetivismo e nas dimensões misteriosas da
existência, como pudemos observar em outros momentos.
Nesse contexto, surge, como forte influência, a poética de Charles Baudelaire
(1821-1867) e certamente de outros artistas como Verlaine (1844-1896), Mallarmé (1842-
1898), Huysmans (1848-1907) e Wilde (1854-1900), cujas obras também haviam
denunciado uma sociedade urbano-industrial impregnada por uma racionalidade científica e
pragmática, própria do materialismo burguês, que despontava como algo abjeto. Havia a
sensação de se viver uma época terminal, de ruína cultural e política, decadente, portanto -
termo que depois foi adotado para autodenominar o sistema sentimental que definia o
grupo.
Em relação às posturas sociais, os decadentistas combatiam a moral burguesa
hipócrita, que impunha valores como trabalho alienante, casamento e puritanismo sexual.
Desse combate, surge consequentemente o culto a figuras dissonantes desse padrão. Em
relação ao homem, aparece a imagem do dândi excêntrico, que desfruta de uma existência
aristocrática, mas desdenha dos princípios morais fundamentais da sociedade a que
representa, exigindo seu direito à futilidade e ao artifício. Em relação à mulher, ganham
contorno a prostituta, a lésbica e a femme-fatale, que desrespeitam os preceitos sociais,
religiosos ou morais.
A femme-fatale é no Decadentismo representada, muitas vezes, pela imagem mítica
de Salomé - mulher diabólica, fêmea fálica, dançarina de encantos delirantes, que introjeta
uma nova erótica, e que aparece reincidentemente nas obras de Huysman (Às avessas, de
1884), Wilde (Salomé, 1892) e nas telas de Gustave Moreau (L’apparition e Salomé, de
1876). Aqui, no entanto, não figuram somente os elementos bíblicos ou clássicos da
Salomé, mas constitui-se uma nova representação, acrescida de ingredientes que remetem à
época nova em que se vivia.
Se a Salomé bíblica instigava, como modelo clássico, pelo teor de sedução, no
Decadentismo, a ela se agrega o índice da ruptura com os preceitos morais arraigados,
representativos do conservadorismo. Por isso, esse eterno-feminino parece evocar, na
Salomé decadentista, a mulher livre que emerge com a modernidade, que sai às ruas e se
deixa desejar pelos olhares cobiçosos dos transeuntes, como uma melindrosa, luxuosamente
vestida, maquiada e perfumada, que, à semelhança da serpente, fascina e repele.
As Salomés de Gustave Moreau eram alvas como as deusas clássicas,
mas calçavam sandálias com saltos, suas faces eram maquiadas e seus
corpos adornados. Sua anatomia unia o ideal da beleza clássica,
encarando o fascínio do artista simbolista e decadente pelos corpos
ondulantes e olhos magnetizantes. (OLIVEIRA, 2008, p. 18)
No Brasil, essa nova representação do feminino, construída pelos decadentistas
europeus, encontra claros ecos, tanto no plano das artes, quanto no plano da própria
sociedade.
Em seu estudo sobre as representações pictóricas e discursivas da mulher nas
revistas Fon-fon! e Para todos, do início do século XX, Cláudia Oliveira (2008) aponta
aspectos interessantes que colocam tais representações no caminho da modernidade.
Analisando ilustrações, fotos e textos literários (contos, crônicas e poemas), Oliveira (2008)
vai-nos mostrando o surgimento de uma nova imagem de mulher na cidade do Rio de
Janeiro, que abandona os cuidados masculinos e a preservação da casa, para se lançar,
emancipada, nas ruas, onde se expõe ao olhar coletivo e se deixa registrar pelas penas ou
pelas lentes objetivas daqueles que militavam nas revistas literárias e mundanas de então.
Causam frisson, pela quebra de expectativa de suas rotinas; despertam o flirt,
seduzindo, com seu caminhar autônomo, os observadores e, evidentemente, criam um novo
paradigma: o da mulher moderna.
Essa criação se aos poucos e as primeiras mulheres a serem flagradas no
ambiente urbano, onde circulavam sozinhas, sofrem a pressão da sociedade conservadora.
(...) moças “inocentes” e “de respeito” não podiam andar pelas ruas da
cidade atraindo a atenção sobre si. Moças e mulheres “de respeito”
também não podiam andar desacompanhadas e deveriam seguir regras
estritas no caminhar (...). Como moças elegantes, “decentes” e
“discretas”, seus passos eram firmes e pidos e seus olhos desviados da
câmera do fotógrafo. Para não serem vistas como desejosas de participar
da liberdade ocular da cidade moderna, não deixavam perceber qualquer
sinal de prazer ao andar pela Avenida, pois no discurso conservador,
hesitar, chamar a atenção e olhar eram características de uma
feminilidade transgressora.
(OLIVEIRA, 2008, p. 41)
Como veículo de uma nova ordem social, os periódicos do início do século XX
colocam-se na vanguarda dessa representação moderna da mulher. Gonzaga Duque, um dos
criadores da Fon-fon!, ajudou a conceber a revista como espaço de resistência ao
convencionalismo e sempre buscou vincular o texto escrito à ilustração ou à fotografia,
como amante das artes plásticas que era, materializando nas páginas da revista o corpo
feminino que caminhava pelo bulevar.
Com esse espírito, as revistas ilustradas construíam uma feminilidade urbana
carioca que era sinônimo de mistério e fascínio. O olhar daqueles que a registravam, tanto
nas ilustrações e fotos, quanto nos contos e crônicas, fazia-o ressaltando uma espécie de
“erotismo moderno”, ligado a uma publicidade do corpo feminino ainda não experimentada
antes do século XX e opondo-se ao conservadorismo daqueles que condenavam a
emancipação da mulher como a passante soberana da avenida e como sujeito de seu próprio
corpo.
Sobre essa tomada de posição ideológica dos narradores, pictóricos ou não, das
revistas ilustradas daquele tempo, Claudia Oliveira registra o seguinte:
No olhar do narrador, as novas avenidas pareciam ter sido feitas para ela,
porque era nas calçadas que se oferecia a possibilidade de um olhar
furtivo sobre suas meias de seda. (...) Assim, as revistas iniciam uma
exploração da imagem da mulher, dividida entre o narrador, o fotógrafo e
o ilustrador, que caracterizava uma verdadeira perseguição visual.
(OLIVEIRA, 2008, p. 37)
Ou ainda:
As mulheres pareciam querer se mostrar sedutoras aos olhos do narrador,
através da utilização de uma linguagem corporal que partia do domínio
do recato e do pudor, mas rompia e, de certo modo, violava os códigos de
uma sociedade falsamente puritana. (OLIVEIRA, 2008, p. 39)
Em Horto de mágoas (1914), Gonzaga Duque discute ficcionalmente a temática da
feminilidade em pelo menos três contos: “Aquela mulher...”, “Miss Fatalidade” e “Agonia
por semelhança”. Nos três, de modos distintos, deparamo-nos com figuras de mulher que
encarnam o mito salomélico e matizam, em complexas nuances, a relação entre o
masculino e o feminino.
Dentre eles, aquele em que os elementos que a modernidade forjava para a nova
imagem feminina foram centralmente enfocados é “Aquela mulher...”. Seu enredo
apresenta dois momentos básicos: o primeiro deles, mais curto, corresponde ao flagrante da
passagem pela rua da mulher a que o título se refere; o segundo momento, em tensão com o
primeiro, é o da reclusão da figura feminina ao ambiente privado.
No primeiro momento do enredo, colaborando para a construção da imagem
feminina mencionada, o conto nos revela sua protagonista como um espécime da Salomé
moderna, que adere a atitudes anticonvencionais. O texto inicia-se apresentando “Ela”, uma
figura singularíssima de mulher em seu passeio pelas ruas da cidade. Elegantemente
vestida, de pele alva e rubras cabeleiras, “Ela” passa despertando comentários e desejos em
homens e mulheres que, dentro da dubiedade de atitudes que marca a Salomé, finge não
ouvir e perceber. O conto registra, como crônica de costumes que de certa forma é em seus
primeiros parágrafos, o curioso momento do cotidiano carioca do início do século XX e do
ainda tíbio processo de emancipação feminina, ligado intimamente ao movimento de
urbanização.
O conto parte da mesma imagem amplamente registrada pelas revistas literárias e
mundanas da Belle Époque carioca, como a Fon-fon!, a princípio, através dos pincéis de
ilustradores, como J. Carlos, e, posteriormente, pelas lentes dos fotógrafos. As mulheres
saem às ruas e delas passam às capas e às páginas dos periódicos para o deleite dos voyeres.
“Ela” é o protótipo da mulher moderna, que ganha o espaço público sozinha,
caminhando a passos firmes e apresentando-se como modelo da moda urbana, ao mesmo
tempo em que é, paradoxalmente, censurada pela própria cidade. Ninguém lhe faz
companhia nesse passeio pela rua, o que acentua sua independência, mas causa também a
maledicência. “Ela” vacila entre os pólos da admiração e da inveja, da exaltação e da
condenação. Nesse vacilar, apresenta-se a hipocrisia da sociedade burguesa, que fez das
ruas espaço por excelência de exibição pessoal, mas que cobra o preço da saída do privado
para o público, de acordo com uma moral que não combina com o movimento alucinado
dos grandes centros.
Às três horas, pelas ruas d’exibições, Ela surgia impressionantemente
fantasmagórica, no seu passo firme e lançado de pernalta, tecidos ricos
amortalhando seu esqueleto bizarro, trescalante de aromas mornos de que
se enchia o ar no movimento de sua marcha. Os dandinados vadios, que
se preparavam para os hospícios e para os cárceres, lapidavam-na com
pilhérias ultrajantes, que Ela não ouvia ou fingia não ouvir; os senis e os
parvos, enfronhados no respeito conselheiral de suas sobrecasacas ou
com estudados desdéns de acadêmicos, chasqueavam-lhe ao bater dos
tacões; e as velutinadas bonecas de elegância crispavam-lhe os bios
com desprezos ofensivos, invejando-lhe, porém, os panos do vestuário, o
requinte dos utensílios mundanos (...) (DUQUE, 1995, p. 93)
A passagem anterior demonstra a ironia crítica do narrador em relação ao
julgamento coletivo. Dândis jovens, velhos acadêmicos e “bonecas de elegância”, tão
distintos entre si na palheta que compõe o todo social, igualmente se juntam no preconceito
em relação à mulher que passa, com sua excentricidade e autonomia. Sua solidão não se
limita à do passeio, mas abrange a própria condição de mulher diferente, inesperada e, por
isso, incompreendida e condenada.
Ao mesmo tempo em que “Ela” representa a típica mulher do início do século XX,
e, portanto, adequa-se a um padrão a se firmar futuramente, também encarna a
individualidade feminina em oposição ao juízo do senso comum, integrando um
movimento que se opõe ao masculino, ao racional e ao autoritário, à ciência e ao poder.
Por isso, na construção de sentido do conto, o narrador prefere marcá-la com signos
da diferença a apresentá-la como uma tendência geral, observada nas grandes cidades que
se modernizavam. Um dos eixos da narrativa é justamente o da oposição entre a figura
feminina e o grupo social, com suas convenções morais:
Entretanto, a estranha criatura, que excitava hostilidades e fecundava
invejas, atraindo o olhar da multidão sem se inquietar com ele,
indiferente às normas e rompendo com a firmeza duma Evidência a teia
visgosa dos comentários da Hipocrisia, era um ser delicado,
espiritualmente meigo e bem diverso em tudo dessa aparência de ironia
lúgubre de Rops com requintes de atriz famosa. (DUQUE, 1995, p. 94)
A figura feminina é representação do comportamento destoante, da tomada de
atitude anticonvencional e, portanto, especula a própria imagem do intelectual decadentista
ou simbolista. Não é à toa que no conto vai-se delineando uma forte oposição entre a
aparência e a essência. Se aparentemente “Ela” encarna o protótipo da mulher moderna,
podendo-se confundir com o próprio processo de modernização contra o qual decadentistas
se colocavam, essencialmente “Ela” que passa na rua é simulacro da verdadeira, que se
a conhecer na intimidade de sua casa, sob a providencial mediação da fruição artística,
como nos mostra o segundo momento do enredo.
Nessa oposição, no entanto, a liberdade protagonizada pela figura feminina que sai
às ruas, não é discutida, do ponto de vista da enunciação narrativa, sendo reconhecida como
elemento positivo, mas relativiza-se do ponto de vista social. Ou seja, embora a dicotomia
entre aparência e essência pudesse polarizar também o externo e o interno, o público e o
privado, levando a um julgamento condenatório da emancipação feminina, isso não ocorre.
A perspectiva do narrador é a de valorizar o caminhar impetuoso e libertário da mulher
pelas ruas da cidade, mas também de ressaltar que essa impetuosidade somente se expressa
de maneira original e verdadeira no recolhimento ao privado. As razões encontram-se
justamente no descompasso entre a mulher ousada que encarna a mundividência
simbolista/decadentista e a sociedade do início do século XX, que, embora seja
historicamente responsável pelo surgimento desse novo papel feminino, não o aceita.
Corria, pela bisbilhotice das calçadas, que Ela, essa perambulante
caricatura da Morte em alto chic de season e polvilhos perfumados, era a
múmia bem-querida à excentricidade de um lord milionário, que
vagamundeava seu spleen por países de sol e terras virgens. (DUQUE,
1995, p. 44)
Percebemos com nitidez que o narrador não critica, em seu discurso, a liberdade
sexual que a mulher que sai livre às ruas poderia ter. Não julgamentos morais quanto às
relações entre “Ela” e seus pretensos amantes. O que se condena é a “bisbilhotice”, é a
postura maledicente daqueles que a viam passar pelas calçadas tão dona de si, é, em última
análise, a hipocrisia dominante.
A sexualidade feminina assumida, inclusive, é um dos pontos fundamentais
trabalhados no conto. No plano do enredo, da mulher sensual que desperta a luxúria nas
ruas, passamos a outra com um erotismo ainda mais complexo e completo à medida que a
podemos observar mais de perto. Tal erotismo intenso derrama-se pela narrativa na
representação da figura feminina sedutora que “Ela” vai encarnando, de modo intencional e
consciente, quando entregue à música e à literatura em sua casa. A noção de corpo
feminino amplia-se no texto, como um espaço de prazer, mas de um prazer misto e
totalizante, em que o físico e o espiritual se encontram, ou melhor, fundem-se.
Em sua privacidade, “Ela” revela ao olhar de um narrador embevecido, aquilo que
na rua se pode apenas intuir, a verdadeira femme-fatale. Se na rua ela desfilava sua
antevista sensualidade, despertando invejas e desejos, via-se lá a ponta de um iceberg,
cuja base se espraiaria totalmente quando “surpreendida na sua intimidade”. Na rua, “Ela”
era um corpo desejado, a imagem apenas da mulher sem a marca da individualidade, em
seu recanto, desdobrava-se em matéria e espírito, ambos igualmente tomados por um
erotismo novo e imprevisto que unia as duas pontas do mesmo ser.
Por isso, o lugar privado constroi-se de modo especial, como um ambiente único,
composto por aquilo que contradiz a rua, símbolo do progresso e da urbanização, mas
também da pasteurização humana e da pulverização do sujeito. Dessa construção fazem
parte primordial as inúmeras referências artísticas, importantes tanto para o estabelecimento
da atmosfera que suscita a erotização feminina, quanto para a tomada de postura ideológica
e para a discussão estética explícita a que o conto se propõe ao final, como veremos.
Ao ambiente urbano das bisbilhotices e das massas anônimas e amorfas, opõe-se,
assim, uma “locanda de vilegiatura”, em que natureza e arte se entrosam perfeitamente.
Surpreendida na sua intimidade, nos aposentos duma English Pension
alcandorada nos barrocais dum monte, paredes brancas entre vergadas
mangueiras velhas e pouco distante de fragas musgosas, enfestoadas de
avencas, por onde cantava uma estreita faixad’água nascente,
surpreendida nessa locanda de vilegiatura a que seu entendimento de arte
e o seu educado gosto de peregrina das civilizações deram o encanto dum
pequeno Corot pendente sobre o divã, e um rutilante ocaso marinho de
Turner, enchendo três palmos do muro junto ao qual mandara colocar o
piano para desfastio de suas leituras, é que se admirava em todo o seu
valor de mulher, como os inapreciáveis exotismos duma flora fantástica
sob os vidros das estufas. (DUQUE, 1995, p. 94, grifos nossos)
O bucolismo evidente do ambiente de isolamento a que “Ela” se recolhe apresenta-
se como reação tipicamente decadentista à urbanização que avilta o caráter essencial do ser
humano. Mas não é somente a nostalgia da natureza recuperada na habitação de férias
encrustrada na montanha, entre mangueiras e fontes d’água, que favorece o resplandecer do
“valor de mulher” em sua plenitude. Somada a isso temos a arte, presente em várias das
suas manifestações. O narrador apresenta-nos uma personagem de forte sensibilidade
artística, que frui a obra não só com seu espírito, mas, principalmente com seu corpo
erótico.
Da pintura, surgem referências a Rops (1833-1898), a Corot (1796-1875) e a Turner
(1775-1851). São quadros dos dois últimos que adornam a casa de “Ela”. Da música, são
citados Schubert (1797-1828) e Beethoven (1770-1827), tocados em êxtase ao piano. Da
literatura, escolhe-se Wilde (1854-1900), Mallarmé (1842-1898) e Samain (1859-1900),
cujos versos criam o ambiente afrodisíaco em que “Ela” se revela inteiramente. Essas
referências indicam claramente uma opção estética. As notas são românticas, simbolistas,
decadentistas e tocam a alma e o corpo de “Ela”. Como chaves, abrem as portas do prazer
sensorial da mulher e do homem que a observa.
sim; tinha-se o ameaço, a aura da vertigem, de uma temulência
prazerosa, ouvindo-se-lhe a voz clara e acre, tal devera ser a das Nixes,
acaso falassem elas, porque havia nessa boca o frescor salobro de uma
vaga que espadana ao sol do meio-dia canicular. (DUQUE, 1995, p. 94)
A escolha lexical carregadamente sensual faz a Salomé que passeava seu corpo
impessoal pelas ruas da cidade acentuar-se em erotismo e sedução não corpóreos, mas
também anímicos. Aos poucos, essa atmosfera vai-se desenvolvendo. A princípio é apenas
a cantiga que “Ela” entoa, como uma nixe, que atordoa a presença masculina constituída no
narrador. Em seguida, vão-se somando outros elementos os versos, o piano. De dentro da
mulher, de sua alma exposta pela intermediação da arte, surge um fogo obviamente erótico
que toma seu corpo, agora personalizado.
E já ela toda se mostrava.
Vinha-lhe à boca os versos de Wilde como um revólver de pérolas
que saíssem dum coração sangrando; sonetos de Malllarmé serenos
e misteriosos como deuses de pedra na sombra roxa dum bosque;
quadras de Samain que parecem escritas sobre veludo negro como
estilete de ouro candente... Uma emoção, esmerilhenta de fino
de rubis triturados, ruborizava, em lavis d’aquarela, a brancura
ártica de sua pele... Flamavam-lhe os cabelos num calor de
fornalhas, havia não sei quê de delirante e iluminado no seu olhar.
Ela ardia
! Assim vibrada lembrava
uma criação infernal
,
nervosa Vênus dos histerismos esculpida em mármore e
vivificada pelo Fiat de um gesto maldito. (DUQUE, 1995, p.
95, grifos nossos)
O narrador procede, a partir dessa transformação a que parece assistir de perto, a
uma descrição minuciosa do processo lento de revelação dessa feminilidade erótica,
fazendo-nos, também, observadores privilegiados. Tal descrição apela para todos os
sentidos humanos, numa festa sensorial que busca registrar as impressões mais íntimas que
o cantar, o declamar, o tocar e o mover-se da figura feminina despertam nela mesma,
agente seguro do seu erotismo, e em quem a vigia. A satisfação é sinestésica, feita de
referências pictóricas, táteis, sonoras, explicitadas no jogo entre o branco de sua pele a
revelar-se e o vermelho sensual de seu sangue aquecido e de seus cabelos ruivos, em seus
tons vocais delirantes, no piano que vibra músicas cheias de volúpia, nas palavras da poesia
decadentista. Trata-se de uma fruição artística e sexual.
A narrativa constroi assim um movimento de excitação contínua de que participam
“Ela” e seu parceiro, mas que “Ela” protagoniza. um embate entre a permissão e a
proibição, entre um certo recato angelical e uma voluptuosidade satânica, delicadamente
conduzido por “Ela”, que promove uma erotização profunda e crescente, apresentada por
um narrador tomado de desejo sexual incontido.
Na desenvoltura do movimento escapavam-se-lhe alguns botões do
roupão e, favorecido pela trama das guipuras, ia-se o nosso olhar
bisbilhoteando nudezas, lambendo a carne excitante da sua gorja, a
suavíssima curva dos miúdos seios de estéril, mais claros e mais macios
que a nata fresca de uma queijaria do Tirol.
Ela apercebia-se admirada e desejada, mas sabia ter a nimiedade da
excitação: não consentia aos olhos mais do que o necessário para
prejulgar, nem ao desejo senão o bastante para adivinhar. (DUQUE,
1995, p. 96, grifos nossos)
As imagens eróticas prescindem de comentários. A ousadia da sexualidade
defendida pela narrativa é flagrante, mas não explícita. Se Mallarmé acreditava que
“nomear um objeto equivale a suprimir os três quartos de prazer da poesia, que é feito de
adivinhar pouco a pouco: sugeri-lo, eis o sonho”, o prazer sensual também assim se
alcança. E é exato isso que percebemos nas linhas que se seguem às destacadas
anteriormente. De modo preciso, a narrativa vai-se encaminhando para a exacerbação do
desejo erótico, alcançado pela sugestão permanente, que se satisfaz em ficar, tantricamente,
com sua culminância suspensa. A aproximação entre a fruição artística e a relação sexual
vai-se mostrando inequívoca. “Ela”, como sujeito erótico, com suas “garras de amor”, toca
o teclado do piano, imagem do masculino, levado a um êxtase que é também sexual.
Esquecia os botões escapados, a meia discrição das rendas, a mesquinha
nudez do colo; e, indolente, desprezando cobiças, menosprezando
tentativas, passava, corria os seus lindos dedos pelo teclado que
estremecia em arrepios sensuais, ao afrodisíaco, terrível contacto dessas
pequeninas garras de amor... (DUQUE, 1995, p. 96)
Da ação erótica da mulher passa-se a um orgasmo corpóreo e anímico que se esboça
apenas, envolvendo-os todos, sem, porém, concretizar-se inteiramente, esgarçando as
sensações de deleite até onde pudessem ir:
E eram suspiros desabrochados entre esperanças e desenganos, cicios
segredantes de rogos e promessas, surdos choques de beijos cheios de
amor e gratidão, ou gritos violentos, arrebatamentos indômitos, uivos de
crises passionais, que volteiavam pela sala, a enchiam, a animavam com
a palpitação intensa de uma forte vida humana, e compelia à expansão do
instinto sofreado, instigando-o, inflamando-o.
Mas, quando o gesto nos completava o pensamento, ainda que fosse no
embaraço súplice de uma carícia, no arquear tímido de um pretendido e
meigo abraço, Ela paralisava a ação e anulava o arrojo com o simples
enrestar de um olhar nos olhos de quem a cobiçasse (...) (DUQUE, 1995,
p. 96-97)
Na narrativa, a sexualidade ganha foros legítimos, pois nasce daquilo que a
mundividência simbolista/decadentista mais valoriza: a essência anímica do ser. Ao
contrário da sublimação do desejo, de sua anulação para purgar a culpa do pecado sexual, o
erotismo impõe-se, no conto, como necessidade genuinamente humana. A arte aqui não
apareceu como mecanismo de canalização dos desejos a serem frustrados sublimadamente,
mas como instrumento mesmo de erotização, que a partir dela a alma se expande em um
movimento de fruição/excitação que, finalmente, materializa-se no corpo de modo
orgásmico. Ela a arte desperta o desejo sexual, faz vibrar a alma e o corpo, tocados
ambos por um prazer erótico intenso e prolongado. Embora o toque seja substituído pela
sugestão, o gozo se dá inteiramente.
No fim do conto, o enredo é interrompido para a introdução de um comentário do
narrador, que evidencia a simbologia meta-artística e autorreflexiva da narrativa. Embora a
leitura aqui proposta do conto seja procedente, o parágrafo final abre novas possibilidades
interpretativas, já insinuadas em algumas passagens anteriores. “Ela”, sintomaticamente
apresentada por um dêitico, ainda que grafado com maiúscula, pode-se preencher
semanticamente com outro valor: a Estrofe Decadente.
Bem lhe coube, àquela mulher estranha, a singular alcunha com que o
risonho espiritualismo dos Delicados a aclamou: Ela foi a esfíngica,
lavorada Estrofe Decadente. De fato, isso foi, por sua perturbante
originalidade e por seu incomparável espírito... (DUQUE, 1995, p. 97)
Com isso, toda a narrativa ressignifica-se: a experiência sensual/sensorial referir-se-
ia ao modo particular como a relação entre a arte e o público deve ser estabelecida, o gozo
sugestivo de corpo e alma é o seu resultado. Mas, principalmente, a posição marginal de
“Ela” demonstraria o lugar estético reservado àquela poética que ousa diferençar-se.
Ah! estúpido olhar da Convenção, tu não sabias quanto era formosa essa
mulher que julgavas feia! Não compreendeste sua beleza, porque a
Sanção fez da tua visualidade um aparelho estreito e mediocremente
sensível, onde se refletem as imagens posadas segundo os ditames de
velhas regras e de usadas teorias. O que é estranho, novo, nobre e
grandioso, foge à tua apreensão tu fitas sem entender, tu percebes sem
sentir, tal o olhar do ignorante com os mundos siderais, que ele confunde
numa só forma e num mesmo brilho. (DUQUE, 1995, p. 97)
Como Vera Lins (1991) nos tinha perfeitamente revelado, Gonzaga Duque,
tomando a voz narrativa, configura-se como o franco-atirador, o intelectual combativo,
ciente do estigma a que estavam fadados ele e sua estética, ininteligíveis aos olhares
viciados da “Sanção” e da “Convenção”. O conto, com suas múltiplas plataformas de
leitura, torna-se, assim, exemplo contundente do quanto pode ser engajada a narrativa
simbolista/decadentista, se observarmos o mundo (social ou artístico) a partir de seu ponto
de vista. Tanto na apresentação da figura feminina libertária social e sexualmente, quanto
na sua interface literária opositora em relação ao estabelecido, longe estamos aqui da pecha
de alienado e de nefelibata que sempre caiu, preconceituosa e pesadamente, sobre os
ombros do estilo.
A questão feminina, como dissemos, transforma-se em Horto de mágoas, em um
claro eixo temático que discute as sutilezas das relações não sociais como subjetivas
entre o homem e a mulher. Nessa linha de discussão, a imagem da femme-fatale, da Salomé
decadentista, também aparece em “Miss Fatalidade”, embora em outra perspectiva,
comprovando a versatilidade do autor na abordagem da matéria narrativa decadentista. Seu
título nos remete de pronto ao imaginário que cerca a sedutora mulher que personifica a
própria “Fatalidade”, ou seja, aquela sob o jugo de quem ficam os homens, sem escapatória.
Mais do que em Aquela mulher...”, em “Miss Fatalidade”, o mito decadentista da
voluptuosa Salomé se concretiza com “angulações de uma beleza perversa, de encanto
contaminador, cujo surto motiva espasmos de prazer e terror” como nos diz Luiz Edmundo
Bouças Coutinho (2002, p. 142). A figura feminina é aqui tributária legítima do processo de
apropriação e transformação que o Decadentismo fez do mito bíblico, acrescentando-lhe a
necessária perversidade erótica, tão cara a esse estilo. Sobre essa apropriação,
exemplificada pelo conto que ora estudamos, leiamos as palavras de Paula Mourão (1997):
O mito de Salomé, ao longo da história das suas ocorrências textuais,
cada vez se afasta mais da glosa do texto matricial dos Evangelistas, e
progressivamente se encaminha para a miscigenação com diversas
figuras mitológicas que se estruturam segundo um mesmo paradigma
disfórico, de sexo representado como ritual violento, angustiante,
provocador de ruínas, morte e destruição. (MOURÃO, 1997, p. 116)
Tal representação é seguida, com exatidão, na construção da imagem de mulher
apresentada nesta narrativa de Gonzaga Duque, que, como a Salomé pintada por Gustave
Moreau e analisada por Latuf Mucci (2002), constitui-se na própria encarnação da Luxúria:
Salomé emblema, absolutamente, a deidade simbólica da indestrutível
Luxúria, a deusa da imortal Histeria, a beleza maldita entre todas pela
catalepsia, que lhe inteiriça as carnes e lhe enrija os músculos, a Besta
monstruosa, indiferente, irresponsável, insensível, a envenenar, como a
Helena antiga, tudo quanto dela se aproxima, tudo quanto a vê, tudo
quanto a toca. (MUCCI, 2002, p. 17)
De forma análoga, em “Miss Fatalidade”, o relato dos acontecimentos nos apresenta
essa Salomé destrutiva, ícone polimorfo do amor e da morte, que leva todos seus inúmeros
amantes à ruína.
Esse conto é o que, em Horto de mágoas, melhor apropria-se do paradigma da
narrativa convencional, em que os elementos estruturais como enredo, tempo e espaço
encontram-se bastante bem definidos. Da mesma forma, a linguagem utilizada no conto
afasta-se flagrantemente do burilamento estilístico que vimos ser a marca do discurso do
autor nos outros textos estudados; aqui ela ganha certa naturalidade incomum à obra, além
do uso bem mais evidente e produtivo do discurso direto. Creditamos essa diferença na
construção narrativa à intenção deliberada do autor de justamente colocar, em primeiro
plano, a história em si, a fabulação, os acontecimentos, para os quais se volta
exclusivamente a atenção do leitor, que se depara com a aparição da inacreditável Salomé.
A narrativa se organiza em dois momentos distintos: o primeiro, que corresponde a
um passado remoto, apresenta-nos os principais personagens do conto - o narrador,
Hortência e seu amante – e o segundo, que se passa em um passado mais recente, desdobra-
se em dois outros planos o do reencontro entre o narrador e o amante de Hortência e o do
relato do amante sobre as desventuras causadas nele e em outros homens por Hortência, a
própria encarnação da Miss Fatalidade.
No primeiro momento do conto, cria-se uma atmosfera que em muito lembra o
dandismo decadentista: o narrador e seu fino amigo João Carlos jantam no elegante salão
da British Pension, conversando sobre as “intimidades de boemia literária com Harold
Swan” (DUQUE, 1995, p. 113), quando percebem a presença de uma mulher excepcional,
que se faz notar antes mesmo de ser vista, pelo perfume sedutor que exala:
Procurei instintivamente donde vinha o hálito dessa flor dos luares e fui
esbarrar com os olhos numa radiosa rapariga loira, que tomara lugar em
mesa fronteira à nossa, com o busto contornado pela carícia fresca de
cassas brancas e rendas caras, perfumada e florida como uma deusa em
festa. (DUQUE, 1995, p. 113)
O deslumbramento que essa Salomé provoca está sendo apenas esboçado. O
narrador perde-se na beleza da mulher, embevece-se de maneira explícita, revelando um
desnorteamento que só o desenrolar do conto provará de que intensidade poderia ser.
Não sei dizer o estremação que me abalou nem de que modo me portei,
mas sei que João Carlos suspendeu o volutear bizarro da sua frase e fixou
nos meus olhos as suas rútilas pupilas negras. Compreendi então o
alvoroço que essa senhora me causara, e sorrindo, a disfarçar o efeito do
relâmpago emotivo, volvi-me para João Carlos:
- É uma mulher fulminante, João. No gênero nada de melhor; mata
ao primeiro choque. (DUQUE, 1995, p. 113)
Ainda que não saiba dos fatos que mais tarde ser-lhes-ão revelados pelo relato do
amante, no segundo momento do conto, o narrador indicia a história com sua profética fala.
Nesse ponto do enredo, a aparente normalidade dos fatos logra o leitor de Gonzaga Duque,
acostumado a outro universo ficcional. No entanto, esse estado de coisas vai sendo corroído
com pequenos outros indícios, a se somarem à fala destacada do narrador, preparando o
insólito que irromperá no segundo momento da narrativa.
A começar pelo inescapável magnetismo que a figura feminina exerce sobre o
narrador de forma a tirar sua autonomia de sujeito, seu poder de decisão:
(...) eu não mais pude desprender da fascinação dessa mulher. Amiúde
entre o espaço duma sílaba vocalizada e de dois segundos passados, iam-
se-me com os olhos os desejos para ela. E de instantes a instantes, apesar
da distância, descobria-lhe belezas componentes da harmonia perfeita.
(DUQUE, 1995, 113)
E seguem vários períodos de descrição exaustiva da estonteante beleza sica da
mulher, intensificando seu poder. A sedução exercida é tão potente que promove em torno
da figura feminina uma tal anulação dos demais elementos da realidade, que assim nos é
apresentado, porque assim percebido pelo narrador enfeitiçado, o amante que a acompanha:
Mas, um momento, reparei o que quer que fosse, que se lhe aproximara.
Intrigado, perguntei a João Carlos:
- Dize-me tu que é que ela tem ali, quase no ombro esquerdo?
João examinou. E enviesando a boca de nojo:
- Se não é um carrapato deve ser o amante (DUQUE, 1995, p. 114)
A opção esdrúxula de reificar o amante justifica-se, portanto, como estratégia
discursiva para acentuar a força atrativa que nossa Miss Fatalidade exerce sobre o
inadvertido narrador.
O aparente prosaísmo das cenas até aqui apresentadas e que fazem, desse momento
inicial do conto, uma narrativa bastante distinta das que já estudamos é posto em vida
pelo seguinte fragmento:
Uma tristeza obscura me acabrunhou. Donde viria ela? Por que me
assaltava? Saudade, certo que não era. João Carlos foi o meu íntimo
desde a adolescência, mas havia uns vinte anos que habitava Londres,
raramente aparecendo no Rio, e ainda assim por semanas, à pressa e
nauseado. Eu me habituava aos seus demorados eclipses. Saudade de o
deixar, pois, não era. Nada sei. Foi, no entanto, uma tristeza que me
abafou a alma... (DUQUE, 1995, p. 114-115)
Essa passagem, em que o narrador apresenta-se tomado por sentimentos
incompreendidos, revelados pelas interrogações retóricas, fará a transição para o segundo
momento narrativo, em que o relato ganhará as tintas do insólito e no qual a Salomé
decadentista tomará forma completa.
Ocorre um corte temporal - a passagem de dois anos - e encontramos o narrador em
uma estação termal, conversando com um homem que se apresenta como o amante que
acompanhava a estonteante mulher, naquela noite na British Pension, cujos acontecimentos
foram relatados no primeiro momento do conto. Depois de breve diálogo entre os dois, a
voz narrativa é cedida ao amante, que se encontra em situação de total desespero. Somos,
finalmente, apresentados à Salomé diabólica, representada por Hortência, a Miss
Fatalidade. Conhecemos que, ao lado de Hortência, o amante rico e bem sucedido,
encontrou a falência, em uma série irreal de infortúnios. O relato do pobre homem não
deixa dúvida, porém, sobre sua posição ainda apaixonada, mesmo diante das evidências,
que o conto depois nos dará de forma irrefutável, acerca das causas dos fracassos
experimentados: a figura feminina.
E em vinte quatro horas perdi o dinheiro empregado! O meu desespero
foi inarrável. Temi enlouquecer. Com o novo fracasso tive a apreensão de
perder Hortência, porque era ela, ela, unicamente ela o que eu queria!
Apavorado, roído pelo insucesso, perseguido por pensamentos maus,
corri a quantos conhecia rogando-lhes o apoio, pedindo quantias
emprestadas para tentar outra vez a sorte. Nada encontrei... Nada!...
(DUQUE, 1995, p. 116)
Para a personagem, o drama que o dilacera não é da ordem dos fatos objetivos, da
corrosão da fortuna, da sorte financeira que o abandonou, mas resultado do temor de perder
aquela que passou a lhe dar sentido à existência. O discernimento racional do personagem
fora embotado pelo processo de encantamento promovido pela Miss Fatalidade, a Salomé
que opera sua dança sedutora, símbolo da beleza maldita, que instaura simultaneamente a
excitação sensorial e o engano. Ela certamente encarna a oposição à heroína romântica,
aplacando a sede decadentista pelo novo e pelo proibido.
Conhecemos também a maldição que acompanha Hortência. A personagem relata
ao narrador e aos leitores os sucessivos casos que comprovam a relação de causalidade
estabelecida entre o amor inevitável despertado por essa Salomé e a destruição dos
amantes. Foram dizimados, pela femme-fatale, em oito anos, um banqueiro russo, um barão
austríaco, dois oficiais vienenses, um rapaz de uma ilustre família italiana e a personagem,
que tentava, inutilmente, livrar-se da ascendência da amada havia dois anos.
Um terror acompanha-lhe os passos; os que a veem e se apaixonam têm-
lhe medo; ela própria aterroriza-se com o Amor. Faz-se em torno de sua
divina beleza uma atmosfera de pressentimentos, comparam-na, talvez
impropriamente, à mancenilheira; houve mesmo quem a chamasse
amorfófala fatal do amor... Uma tolice! (DUQUE, 1995, p. 117)
A exclamação final demonstra que, apesar de a personagem estar reclusa e distante
de Hortência, e de ela mesma expor em detalhes os fatos que parecem irrefutáveis,
estabelecendo a insólita relação de causalidade que citamos, ainda encontra-se sob a
influência maléfica de Salomé. A total impossibilidade de fugir aos engenhos diabólicos
dessa mulher é tragicamente exposta pelo personagem.
Eu sou o primeiro a considerar o meu ridículo, porque diante do que
expus, toda a queixa é ridícula. Mas, que hei de fazer, se a amo? Amo-a,
sim, amo-a com toda a minha alma; amo-a, sim, através do meu terror.
(DUQUE, 1995, p. 118)
A relação paradoxal entre o amor e o terror causados no sujeito, aqui revelada com
clareza, marca o conto como representante típico do universo decadentista, no qual a
atração incondicional pelos estados lúgubres e mórbidos da existência, vistos como estados
de satisfação e de gozo. A femme-fatale, nesse contexto, é figura exaltada, buscada, que
consome o imaginário atormentado do homem, mais que lhe dá o prazer supremo.
Se me viesse às mãos outra fortuna voltaria para Hortênia; iria de bom
grado entregar-me ao seu ambiente maléfico. Às vezes, chego a crer que
o Diabo, vendo-a o formosa, opôs à perfeição de Deus o ardil do seu
engenho. Ah!.... O senhor não a conhece, o senhor simplesmente viu-a...
(...)
O seu afeto é delicado e enorme, ela sabe amar; enfeitiça, seduz,
prende, escraviza com a sua ternura, que não tem semelhante na terra! O
seu espírito... Deus meu! Nem sei a que a comparar! Atrai e encanta.
Ouvi-la é amá-la, porque a música da sua voz traduz todas as belezas
dum cérebro de artista... E a sua distinção, a sua elegância, o seu fino,
perfeito bom-gosto!... Não corpo que melhor se vista, não mãos
mais bem feitas nem unhas tão bem tratadas, nem epiderme mais fresca e
mais cheirosa, nem cabelos mais quentes!... Que força malvada, que
poder diabólico a perseguem?...
Como uma medusa, uma sereia, uma Salomé cujo corpo sensual executa sua dança,
pedindo a cabeça de João Batista, Hortência domina totalmente a personagem masculina,
cujo fim não pode ser outro que não a morte, vindo coroar a relação como uma espécie de
orgasmo macabro. Desprovido dos sentidos, ele põe “termo à sua angustiosa paixão com
um tiro certeiro de revólver no ouvido...” (DUQUE, 1995, p. 119). Dá-se a vitória da
transgressora feminilidade, ou como diria Baudelaire: “a mulher tem fome e quer comer.
Sede e quer beber. No cio quer ser comida. Que glória!” (apud: OLIVEIRA, 2008, p. 20).
A relação entre a imagem feminina e a transgressão, que nos remete diretamente ao
ideário decadentista, ganha contornos inusitados em outro conto de Horto de mágoas:
“Agonia por semelhança”. Nele, em vez de termos a mulher materializada em um ser
sedutor que subjuga eroticamente o homem como ocorre em “Aquela mulher!...” e em
“Miss Fatalidade” - somos levados a algo ainda mais corrosivo, a uma espécie de arquétipo
feminino sobre o qual se curvam todos os sentidos masculinos, excitando os desejos mais
recônditos e proibidos.
O conto apresenta um enredo de cunho absolutamente psicológico. Não
propriamente ações. Toda história narrada passa-se na mente do protagonista Paulo
obsessivamente tomada por uma imagem de mulher que lhe surge e a qual ele quer e
precisa desvendar, como a uma esfinge. No entanto, apesar da ausência de fatos
convencionais, temos um encadeamento temporal exato, que, embora não marcado
cronologicamente, revela a progressão dos acontecimentos da reconstituição da memória. O
narrador esforça-se em elucidar detalhadamente o jogo do relembrar a que se entrega a
personagem, evidenciando o processo doloroso das idéias que se associam, em busca de
uma reminiscência passada, por alguma razão obliterada. Revela em minúcias a agonia da
procura na lembrança, a angústia em identificar, entre o que ficou retido do passado, o
referente da imagem que assombra como um fantasma o personagem.
Todo esse estado de coisas mental tem início também por um fenômeno
psicológico: a associação de idéias como reveladora de estratos inconscientes do sujeito.
No primeiro parágrafo do conto, Paulo, que lia Panteu (1892), de Joséphin Péladan (1858-
1918) escritor ocultista francês -, para a leitura e, ao acaso, observa um lenço negro sobre
o mármore de um toucador. Essa visão é o estopim para a observação dos processos da
mente humana a que o conto se dedica. O lenço negro desperta na alma de Paulo uma
“saudadeque vai ganhando, aos pouco, a forma esvaecida de um corpo de mulher.
(...) esta mancha negra e imóvel veio dominá-lo, a encontrar com as
flocosidades baixantes de seu íntimo, atormentado sempre nas
indagações e dúvidas hamléticas de uma psicopatia escandinava,
brumosa como os horizontes hibernais dos mares longínquos do extremo
norte. E quando se fundiram as duas nebulosidades – a ressalta da
objetividade febril do lenço negro, a expelida pela subjetividade febril do
seu espírito agônico -, uma forma se condensou na fusão extrema, forma
rubenesca de mulher veripotente, sadia da idade produtiva, com alvores
lácteos em cristais palidamente sanguíneos, trevores caliginosos de olhos
incendidos e uma severidade fantástica do paládium de luar boreal sobre
toda a cabeça, toucando de velhice o que era palpitantemente moço,
palpitantemente forte, palpitantemente desejável. (DUQUE, 1995, p.
49-50)
O surgimento dessa “forma rubenesca de mulher”, a partir da fusão do lenço com os
nebulosos pensamentos do protagonista, acompanha-se de uma forte erotização, revelada de
modo emblemático pelo discurso narrativo. Embora a forma feminina, a princípio, somente
exista na mente da personagem, o narrador a torna concreta pela enfática utilização de
referências plásticas a descreverem essa imagem renitente. Aparece o corpo feminino como
um elemento paradoxalmente latente e sico, decomposto em partes evidentemente
sensuais.
A memória, por uma razão ainda não apresentada, mas antevista, não recupera o
referente da imagem prontamente, mas o fragmenta em abdômen, quadril, coxas, músculos,
seduzindo a personagem e a abandonando totalmente à obsessão de evocar esse corpo.
Novamente, a mulher, como uma fêmea a dominar o macho, cerca por completo o homem,
exercendo seu poder de modo ainda mais forte do que o visto nos outros contos, porque
dessa vez prescinde de sua presença material, avançando, devastadora e simbolicamente,
sobre o pensamento masculino por ela obcecado.
Paulo quedou repará-la, calcando com a investigação o amplo desenho do
corpo, como se decalcasse do original uma cópia fidelíssima de
pinacoteca, seguindo, amoroso e lento, a flexibilidade angular do suporte
abdominal aberto em bifurcação esquemática de um caule afrodisíaco e
fecundo descendo empós, lento e amoroso, ao rígido delineamento das
coxas, serenamente lançado numa pureza apaixonada de molhagem
Ática, túmida de tendões, dura de músculos, com as pletóricas academias
flamengas, apoteose épica de carnalidade apolentada das mulheres
robustas d’Anvers e da Flandres. (DUQUE, 1995, p. 50)
A seleção vocabular não deixa dúvida sobre o intenso erotismo da imagem
projetada na mente de Paulo e a que, à revelia da abstração, observa com rigor objetivo. A
ambiguidade entre a descrição detalhada de aspectos sicos sensuais e o fato de essa ser
somente a imaginação da personagem torna mais complexo o jogo de dominação do
feminino, como já dissemos, pois desfaz a oposição natural entre a subjetividade e a
objetividade. A Salomé ressurge de forma imagética e, por isso, ainda mais potente. Ela não
se manifesta externamente ao homem, mas constituiu-se em parte dele, de seus
pensamentos obsessivos. “Se desejarem saber mais a respeito da feminilidade, indaguem da
própria experiência da vida dos senhores.” (FREUD, 1996, p. 134). Por ela, a personagem
enreda-se em suas próprias lembranças, a fim de decodificá-la.
na rede memorativa, tinha-se-lhe intumescido uma célula
reminiscente, associando a visão a uma fugitiva, apagada lembrança de
corpo semelhante que se esbatia, se difundia em resíduos sepiosos de
abandonada fusilagem secular, e seu espírito febricitava no desejo de
evocá-lo desse passado que lhe ficara em retalhos no amontoado das
recordações, desprezado entre sensações gozadas. (DUQUE, 1995, p.
50)
O conto vai assim discutindo dois elementos básicos – por um lado, a complexidade
das relações entre a memória e o sujeito, relações essas capazes de revelar o inconsciente,
como se verá mais à frente, e, por outro, a subordinação do homem ao eterno-feminino,
aqui representado arquetipicamente por essa mulher enigmática que acorda e domina o
erotismo masculino somente com sua imagem.
Paulo tem a certeza íntima de que essa visão sedutora de mulher refere-se a alguém
que efetivamente conheceu e que lhe despertou, na verdade, no mundo da experiência
física, os desejos carnais agora excitados pela simples imaginação. Sua luta interior
corresponde ao enveredar pelos caminhos muitas vezes inóspitos da memória, para trazer à
tona essa mulher esquecida.
Mas teimava na doentia procura da recordação, forçando a memória para
coordenar uma imagem igual, uma esquecida já, talvez inexistente
imagem, se não fora a persistência desta visão que se lhe antojara sempre
e se lhe antojara hoje, mais viva do que nunca, mais remitente, mais
lúcida, perseguindo-o como um remorso, espectro vingativo de quem
quer que fosse, obstinando em se fazer saudoso como sombra sonâmbula,
deslizante e melancólica de esposa morta no esfalfamento sonhador de
um nupcial de uma noite e que ele agora desejava reconstituir, chamar a
si, recompô-la, revivê-la com toda a intensidade de vida que tivera... Ia
recordando aos poucos, aos poucos ia relembrando; ia refazendo, ia
remodelando aos poucos e aos poucos... e lentamente, e vagarosamente,
parecia-lhe distinguir, muito longe, alguém semelhante a quem ele
procurava pacientemente, dolorosamente... (DUQUE, 1995, p. 50-51)
Na passagem transcrita anteriormente, percebemos a reincidência com que essa
imagem sedutora e enigmática de mulher primordial “lhe antojara sempre”, perseguindo-o
como uma sombra, uma vingança, um remorso elementos que indiciam a identificação
final, no inconsciente de Paulo, da mulher que o seduz. No entanto, as tentativas de
rememoração parecem travadas pela barreira do esquecimento. A imagem não encontra seu
duplo, que permanece oculto em alguma parte da psique do protagonista. Desesperado por
encontrar a resposta para essa fixação sedutora, Paulo esforça-se em lembrar-se da mulher
que representa a visão que o acompanha. Pensa em amantes do passado, mas nenhuma
lembrança concreta parece corresponder à imagem obsessiva da Salomé que lhe devora as
entranhas.
E procurava aflitivo, retrocedendo ao passado, aos tropeços por
escombros de recordações, perdendo-se no reconhecimento de formas
exumadas, pálidos escaveiramentos de gozos extintos, que serravam a
dentuça na algidez desesperada do olvido
, pasmando as órbitas vazias
numa loucura de terror eterno; farrapos esquálidos de brancuras
arminhentas de ideais sucumbidos, sudários esfrangalhados de
crenças perdidas; casos que existiam para a sua vida como
fatalismos, acidentes por que passara, tudo que tinha rolado na
desagregação dos anos de que perdera a noção, vinha estorvar-
lhe o retroceder ansioso para a distância incalculada onde
permaneceria serena, impertubável como um ídolo budista,
plantado à porta de um relicário, essa misteriosa figura de
mulher esfíngica aguardando impassível a satisfação da
semelhança procurada. (DUQUE, 1995, p. 51, grifos nossos)
A dificuldade do processo de rememorar, de encontrar em si mesmo as respostas
adormecidas das sensações eróticas despertadas, é aqui apresentada com grande força
estilística, através de imagens que apresentam o poder destrutivo do tempo em relação ao
que se fez passado - “formas exumadas”, “farrapos esquálidos”, “sudários esfrangalhados
de crenças perdida” –, lançando ao sujeito o grande desafio do resgate do que foi e do que
viveu. A explicitação da metáfora da “esfinge“impertubável como um ídolo budista”
revela a posição limite do sujeito que precisa decifrá-la, com o auxílio da memória
enfraquecida pelo tempo, para não ser por ela devorado.
Por isso, a personagem busca completar as lacunas do corpo lembrado. Tenta juntar
às partes que já tem claras o quadril, as coxas, o abdômen outras mais, que elucidem o
mistério imposto pela Salomé do seu inconsciente: ele quer o rosto. Esboça-se uma
dicotomia requintada entre o abstrato da visão que persegue Paulo e a concretude da mulher
que deve ter existido e agora se encontra apenas em sua memória.
Desde que o seu extravagantismo de nevrótico impulsionara-o à
conquista daquela mulher, vivia neste tormento de memória, gozando a
mágoa de não gozar, porque esse gozo se transformara numa amargura
investigadora de semelhantes da imaginação ou fosse pela verdade
despertadora de uma recordação empalidecida, macerada na coma
consumptiva da faculdade rememorativa ou grangrenada nas agitações de
uma vida extraordinária de doente.
E dia a dia peregrinou por essa preocupação de descobrir a afinidade
existente entre a amante excêntrica de hoje e alguém que vivera
intimamente consigo (...) (DUQUE, 1995, p. 52)
Dilacerado pela fixação de encontrar as origens dessa excitação, de localizar um
corpo concreto para a visão sedutora que o persegue, Paulo avança sobre a própria memória
de onde salta um busto, um decote, um colo, uma garganta, unindo-se aos fragmentos de
mulher já relembrados.
Ele conhecera uma garganta semelhante, e mais a aproximativa
valorizava-se pela correspondência igualitária do colo, régio, digno de
tão lindo pescoço, colo feito para ofegos lentos de paixão, nu, coroado
das espumas valencianas de um decote de gorgurão azul, ao soro
luminoso das estearinas de enormes lustres resplandecentes dos salões de
luxo. Mas, onde?... Onde?... Esculturava então os ombros, a altura
carnuda do rebolo, a linha contornada do braço, as cavidades
gorduchentas dos cotovelos róseos e o enlaço elegante dos antebraços
cujas mãos tinham o característico quirognomônico das mãos de prazer,
moles e voluptuosas. (DUQUE, 1995, p. 53)
A sensação erótica é clara. Essa é a Salomé arquetípica que lhe rouba os sentidos,
despertando-lhe desejos intensos e primordiais. Cada parte desse corpo, que é o da própria
fêmea essencial, seduz, explicitando a volúpia, cuja gênese ele procura. Trata-se da busca
pelo conhecimento de seu erotismo, da descoberta da sua pulsão original para o sexo, que
se esconde certamente na visão perseguida. Novas hipóteses são formuladas pela
consciência de Paulo.
Na adolescência, quando o organismo recebia os saculejos da virilidade
apontada, conhecera uma mulher... que deveria ter sido assim, com
aquele busto, com aquele pescoço... talvez fosse uma tia, diante de quem
passara horas a notar, a namorar, silencioso, numa idolatria de desejos, a
beleza radiosa de flor aberta donde se exalava o aroma sensual do
Pecado, criminosamente penetrante, deliciosamente convidativo...
(DUQUE, 1995, p. 53)
aparece a associação entre o desejo sexual e a sublimação efetuada pela moral,
nessa imagem sensual que obcecadamente se antepõe ao personagem. Essa visão feminina
parece ter surgido de um desejo castrado, frustrado, irrealizado, por uma fêmea proibida
que lhe moldou a libido. Mas Paulo sabe que ainda não a encontrou. Ele precisa somar ao
corpo a cabeça, encontrar no rosto ainda olvidado a identidade que explicará tantos desejos
confusos, renascidos na imagem que o persegue.
Debalde queria fugir ao desespero dessa obssessão, esquecer a
impertinência mórbida da semelhança prejulgada, mas a energia
alquebrava-se-lhe vencida pela hiperexcitabilidade; e, se via essa mulher,
o prazer de possuí-la mudava-se no tormento de aproximá-la a alguém
que lhe enfermava o espírito, que rastejava por dentro dele, cascavelando
a presença letal do vírus, e estendendo na sua alma o silêncio angustioso
dos isolamentos oceânicos aos prenúncios dos ciclones. (DUQUE, 1995,
p. 54)
A escolha cuidadosa dos vocábulos usados para definir a lembrança vaga da mulher
que o persegue leva-nos a Salomé decadente e enigmática, feita em cascavel, em vírus letal,
em ciclone, ícones dessa femme-fatale do inconsciente. Por mais que tente escapar, Paulo
retorna a ela, num moto-contínuo doentio. Sua memória, transformada em um labirinto no
qual se perdeu essa buscada fêmea primordial, é exigida ao máximo, como forma única de
aplacar o desespero do protagonista.
Pareceu-lhe lembrar-se mais nitidamente de alguém. Existiu quem quer
que fosse com aquela cabeça... E procurava sôfrego, queimando de febre
pela labiríntica tecedura do estafante rebuscamento de recordações, essa
apagada visão errante, espectral, voltando sempre, sempre fugindo, de
que ele se despegara e a que se fundia, temendo-a, desejando-a (...).
(DUQUE, 1995, p. 54)
Cada vez mais, ficam explícitos os elementos psicanalíticos com que o conto
trabalha. A lembrança estabelece com o sujeito que busca avivá-la um jogo entre o velar-se
e o revelar-se, que nos remete aos embates entre o consciente relativamente em equilíbrio e
o desnorteamento desencadeado pelo inconsciente a aflorar. O desejo e o temor se unem
nessa reminiscência salomélica.
O próprio sujeito, sozinho, não consegue ultrapassar os limites que seu consciente,
em instinto de autopresenvação, impõe. A revelação da gênese do erotismo do personagem
e, consequentemente, da mulher cuja visão o persegue precisa ser intermediada por algo
que exceda a subjetividade. Por isso, Paulo recorre a velhas fotografias, como testemunhas
da memória sabotada pela consciência, entre as quais pretende encontrar a materialização
da imagem e a decodificação do enigma imposto por essa esfíngica Salomé obcecante.
Rápido correu a buscá-las; espalhou-as diante dos olhos, tomando
analiticamente uma a uma que lhe caíam das mãos, mudas, inúteis como
esboroamentos de velho solar inabitado, nos charaviscais impenetráveis
de domínio extinguido. Uma a uma... e nada!... e nada!... Moças cabeças
de raparigas amadas; melancolias expressivas de tuberculoses
incipientes; traços saudosos de família. Uma a uma... e nada!... e nada!...
(...)
Mas, na última, um cartão carbonado e fino das oficinas de Nadar, onde
se manchava a brancura serena de uma velçhice nobre, rompeu estranha
impressão que o fez dilatar as pupilas, fixando nele o olhar. (DUQUE,
1995, p. 55)
A narrativa aqui lança mão ainda mais um pouco do recurso, bastante utilizado
nesse conto, do suspense. Todo o processo de rememorar da personagem, como
investigação psicológica meticulosamente executada pelo narrador, acirrou no leitor, sem
dúvida, a expectativa da revelação final, que ainda precisará de alguns parágrafos para se
fazer. No ponto crucial a que se refere a passagem anteriormente transcrita, o suspense
mantido intensifica o drama interno de Paulo em tomar ou não consciência do que lhe foi
revelado pela visão do retrato. O dilema entre o consciente e o inconsciente, entre a moral e
o desejo, entre a sublimação e a erotização, tornam o complexo, que saberemos ser o
edipiano, ambíguo.
E por um tempo vagaroso esteve analisando este rosto fotografado,
comparando a honestidade expressiva desta séria fisionomia boa com a
resfolegante avidez da outra; o traquilo olhar veludoso e protetor que a
carbonagem melancolizava com o esfuziamento lúbrico das grandes
pupilas funestas dessa que extravasara o satanismo da carne irritante na
histérica anormalidade de seus nervos... E bem devagar, começou a sentir
um alívio intenso pela tremura dolorosa das suspeitas, afastando-se da
impressão primeira, seguro do valor diferencial dos detalhes. Ah! Se era
de sua mãe este retrato!... (DUQUE, 1995, p. 56)
O conto opta por uma hábil saída que possibilita múltiplas leituras, criando um final
em aberto. Percebemos com clareza a autosugestão, a tentativa de Paulo de se persuadir do
engano provocado pela “primeira impressão”: esta não era não podia ser - a Salomé que
lhe roía as entranhas sensualmente, pois esta era sua mãe!
O incesto prenunciado é rechaçado pela consciência angustiada da personagem,
ainda que todo o conto tenha apresentado índices certeiros de sua ocorrência. Não é à toa
que em diversos momentos a imagem renitente da mulher ganhara atributos ligados à
fertilidade, à maternidade, como na passagem a seguir:
Aí, nestes repletos quadris, larga bacia de fecundadora
proeminenciando a fartura abaulada e orgulhosa de um
ventre
frutificador, ele sentia o que quer que fosse de alguém, talvez dessa
saxônica mulher carnuda, de uma robustez pagã para a multiplicação da
raça dos fortes e dos musculosos. (DUQUE, 1995, p. 51, grifos nossos)
Certamente, a “primeira impressão” não foi mentirosa, mas sua aceitação, ainda que
no âmbito do discurso do narrador, que nesse caso adota o ponto de vista de Paulo, não
pode se dar, ao menos explicitamente. O parágrafo que se segue à revelação do complexo
edipiano, negado pela força das oposições criadas entre a pureza da mãe e o erotismo da
fêmea, auxilia a amplificação da ambiguidade da narrativa, com o ressurgimento da
imagem obcecante, agora contaminada pela flagrante sensação de culpa e de aversão ao
próprio instinto.
Ressurgira. Parecia-lhe ter surdido de uma desconhecida paragem negra
de hulha, solo infecto de lodo, ambiente asfixiante de charqueadas, por
onde coleia um monstro escamado de bostelas pútridas, cujas escamas
viciosas, esverdinhadas e ulcerentas, destilando pus, matraqueiam
soturnamente à distensão nervosa do rastejo; cuja carranca feita de crânio
descarnado de gorila tem clarões orbitais de brasidos do inferno, e ri, e ri,
com a enorme fauce bárbara, emaranhada de fibrilhas chagosas de carne
nauseabunda, atulhada de restos macerados da Dedicação e da Honra,
besuntada de escuro sangue coagulado, de rubro sangue vivo e de
excremento... Ressurgira! (DUQUE, 1995, p. 56)
As entrelinhas do discurso deflagram-nos a sexualidade contaminada pela avaliação
moral negativa. A imagem sedutora da mulher surge de um lodaçal, de um “solo infecto”,
que é o do inconsciente revelado. No entanto, essa imagem não some da mente de Paulo; a
sublimação não é mais possível. Ao contrário, a visão da Salomé ressurge mais uma vez,
e mesmo que a personagem não assuma de modo explícito as evidências incestuosas, que
apontam claramente para uma atmosfera decadente, a perseguição erótica continua, como
uma maldição eterna e primordial que o feminino impõe ao homem.
12 “Sapo!...”, “Ruínas” e “Morte do palhaço”: a profissão de fé
simbolista/decadentista
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
(Drummond)
O Decadentismo, como corrente estética finissecular que foi, apresentou sua
sensibilidade marcada por traços que revelavam uma específica e demolidora reação de
certo grupo de intelectuais e artistas ao mundo moderno que se anunciava. Essa
sensibilidade expressou-se, por exemplo, no desajuste diante do desenvolvimento técnico-
científico que se impunha ao cotidiano dos que viviam nos grandes centros urbanos
industrializados, na deliberada oposição ao domínio racionalista que exilou os valores
sentimentais e anímicos e na incorporação estética de componentes oníricos, espirituais,
ocultos, como forma de se fazer oposição ao estado de coisas que a Belle Époque
constituíra. Caracterizado pelo ostensivo pendor voluptuoso para a morbidez, impregnado
de luxo e refinamento na busca de sensações novas, mais intensas, fruídas na temática
extravagante e no requinte da forma, foi frequentemente associado à ideia de esteticismo e
aos artifícios estilísticos antinaturalistas elementos claramente usados como armas no
combate ao utilitarismo capitalista.
Localizado na transição de um século para outro, o Decadentismo, portanto, traz em
seu bojo o natural germe da mudança, inerente aos ritos de passagem que se estabelecem
nessas ocasiões. Distinguindo-se como arte de crise, corresponde a uma atitude paradoxal,
dúbia e ambivalente, perante a sociedade urbano-industrial - percebida como processo de
declínio irreversível - e a uma avaliação preponderante de que os efeitos da moderna
racionalidade científica e pragmática, da qual o materialismo burguês é resultado imediato,
são abjetos. Daí surgir no Decadentismo a recusa do utilitário, de um praticismo social
unicamente orientado para os valores mercantis e, como contraponto, a projeção para o
“culto do eu”.
Luís Edmundo Bouças Coutinho, em ensaio sobre Sá-Carneiro (1997), identificou o
estilo como “Estética da Encruzilhada”, referindo-se ao seu caráter simultaneamente
desestruturante, por abalar as certezas que até então serviam de suporte à tradição literária,
e revitalizador, pela tomada de consciência da crise que pairava sobre o homem
finissecular. A indecisão própria da encruzilhada em que vemos se mover o Decadentismo
não faz dele, no entanto, uma estética incapaz de protagonizar a inovação, consideração um
pouco distinta da feita por alguns críticos, cujo pensamento exemplificamos com a seguinte
citação de Gilberto Mendonça Teles:
O Decadentismo ou movimento decadentista do fim do século passado, é,
na verdade, uma tendência antiga nas literaturas, ganhando relevo
principalmente a partir do século XVII. Trata-se de um fluxo e refluxo
dinamizador da vida cultural e se explica talvez por essa dialética entre o
real e o irreal que assinala a trajetória do homem e, portanto, os
movimentos literários. Parece refletir o lado negativo da polaridade
vida/morte e, também, o pessimismo da observação de que as
civilizações acabam por entrar em decadência.
(TELES, 1972, p. 32-33)
O Decadentismo não nos parece ser simplesmente uma ponte entre os estilos
oitocentistas e a modernidade, nem somente um retorno a dado estado de espírito da
humanidade refletido na arte; ele engendra já uma profunda renovação estética. Nesse
sentido, a obra corpus deste estudo, embora representante do Simbolismo brasileiro,
aproxima-se muitas vezes desse matiz decadentista que surgiu primeiramente na Europa,
como apontamos em outros momentos. Pela leitura parcial que já apresentamos de Horto de
mágoas, constatamos não a consciência de oposição a um campo intelectual solidamente
estabelecido, mas também a deliberada intenção de construir um discurso narrativo
flagrantemente vanguardista. Acreditamos, como Flora De Paoli Faria (2003), respaldada
pela farta produção crítica de Mário Praz, que o Decadentismo, no nosso caso
exemplificado pela obra simbolista/decadentista de Gonzaga Duque, prefacia a vanguarda,
pois claramente apresenta elementos estéticos dissonantes da tradição, ligados à
consolidação de novas estratégias narrativas cujo objetivo era superar o projeto
realista/naturalista.
Surgem, como vimos, práticas discursivas que auxiliam na quebra da relação servil
que vinculava a literatura à ciência, possibilitando, por exemplo, a liberação da vida interior
e a aceitação de formas religiosas e ocultas de contato com mundo, longamente
amordaçadas pelos dogmas racionalistas. Coube ao Decadentismo, portanto, o
compromisso de representar o colapso do discernimento positivista, mostrando sua
transitoriedade e relativizando seu modo sedimentado de produzir conhecimento ou de
organizar a expressão.
Em Horto de mágoas, esse protagonismo vanguardista a que nos referimos se dá,
em alguns momentos, de modo consciente, em contos que se transformam em verdadeiras
profissões de simbolista/decadentista. em “Aquela mulher!...” percebemos a
autoconsciência estética, mas em “Sapo!...” e “Ruínas” essa estratégia é a própria mola
propulsora das narrativas.
“Sapo!...” é o caso mais explícito. Conto curto e obviamente alegórico põe no foco
das discussões a opção do autor pelo deslocamento estético em relação ao centro do campo
artístico dominante. Representado pelo sapo, figura de decodificação simbólica clara, o
artista simbolista/decadentista vaga pelo negrume da noite, ignorado e repelido, sofrendo o
amargor da recusa e da inaceitabilidade. As trevas o protegem da violência.
Como vimos, ficar na obscuridade, para o grupo de artistas e intelectuais aqui
referido, é mais do que o resultado da ação opressiva das tendências estéticas elitistas e
sufocantes; é, sobretudo, uma atitude de autorreconhecimento. Estamos diante de um moto-
contínuo, do qual o Simbolismo/Decadentismo é o sujeito e o objeto, e que justifica o
caráter periférico do estilo no quadro intelectual da virada de século: ao mesmo tempo em
que sua marginalidade revela a intolerância do discurso estético vigente com outra
possibilidade expressiva, é necessária para a própria construção da identidade do
movimento como reação; aponta não para a ruptura com os padrões oficialmente
colocados pela estética realista/naturalista, como indica a renovação possível da arte.
No conto de Gonzaga Duque, o sapo, alegoria do simbolista/decadentista, aparece
cumprindo um caminho que pode ser trilhado na sombra. Esta é a condição de sua
aparição - a marginalidade. Seu percurso é em direção aos subterrâneos do mundo, toma o
“declive largo da estrada”:
Quando a treva se derramou serena e lenta o focinho repelente de um
enorme sapo surgiu no envesado rasgão de uma brenha. E logo do
negrume frio da estupilha, todo o seu curto e grosso corpo mole
despejou-se para o declive largo da estrada. (DUQUE, 1995, p. 75,
grifos nossos)
A escolha lexical desde esse início já indicia o sapo com a marca da diferença, como
um ser torto, inverso, pelo avesso, posto que se origina “no envesado rasgão de uma
brenha”. Sem forma precisa, o sapo pula pela estrada escura, espaço que é também
disforme e de onde pretende deslocar-se para alcançar seu verdadeiro ambiente, sempre
mais abaixo. Nesse contexto, a treva é um símbolo dúbio. Se pode ser compreendida como
a sombra lançada sobre simbolistas/decadentistas marginais, ao mesmo tempo refere-se ao
mundo obscuro que se configurou com o estabelecimento da modernidade. Rasgando essa
escura brenha, surge o sapo, vagando no negrume amorfo, antiartístico, para chegar ao
charco, onde vive a resistência:
A paisagem não tem cor, debuxa-se numa carbonagem forte, recortada e
chata seria sombra esfarrapada e extática ou penedia estorvante e bruta
se, por vezes, não na acordassem farfalhos bocejantes da ramaria
agreste... (DUQUE, 1995, p. 75)
A descida é seu objetivo. Sair da treva densa e alcançar a baixada do vale, os
charcos onde vislumbra a beleza do espetáculo natural, mal julgado pelos homens, e sempre
avaliado negativamente como os pauis da terra, os lodaçais, os pântanos em que proliferam
as piores espécies viventes, é seu intento.
A oposição entre o alto e o baixo é produtiva no conto. A grande treva em que “a
paisagem não tem cor” fica no cume da estrada, entre o céu e o pântano. À medida que o
sapo pula estrada abaixo, anuncia-se uma nova realidade, em que a beleza pode ter seu
lugar. O sapo decai, juntando-se aos demais decaídos, e acima, no céu, surge paralelamente
uma estrela que se deixa admirar.
Trilos delirantes de larvíparos crivam de suspeitas a mancha negra da
macega... A pouco e pouco pelas alturas, e de onde em onde, acende-se,
súbito uma estrela... (DUQUE, 1995, p. 75)
Entre o céu e o charco, está o cume da estrada, o mundo estabelecido, onde
sempre o perigo. Lá se encontra o julgamento do senso comum, para o qual o sapo nada
mais é do que um ser aviltante.
E o sapo continua. Vai só. A solidão envolve-o, a treva protege-o. Ai
dele, se alguém aparecesse e se a noite não pudesse nos socalcos da
escarpa e nas touceiras das quebradas e negror das furnas! Ai dele!...
porque ninguém o quer, ninguém o ama... A mão da criança desloca
pedras para o lapidar, o cajado longo do pastor esgravata-o e escorcha-o
nas grotas, o bordão da velhice fere-o, as raparigas, então essas, têm-lhe
um horror como se topassem bruxedos!...
(DUQUE, 1995, p. 75-76)
Não fosse sua posição marginal, sua solidão sombria, evidenciar-se-iam as reações,
que vêm até dos mais fracos e também periféricos em relação à sociedade crianças,
velhos, raparigas que, levados pelos preconceitos arraigados, não veem no sapo mais do
que o arquétipo do alijado. Nessa relação, está a incapacidade que é também desejo
identificatório - de quebrarem-se os paradigmas e impor-se como um novo modelo.
No entanto, não ferve a peçonha nas suas mandíbulas, nem possui armas
para destruir os campos e arruinar as choças! É pacífico e bom, mas é
feio e repulsivo. Como não mata o homem, o homem não o evita,
esmaga-o. Teceram lendas, com os dedos ágeis da mentira, para o
perseguir – ele é o agoiro que arrasta à desventura, é o bruxo dos
feiticeiros, a alma penada do purgatório, o mensageiro do inferno. Se
penetra o portal de uma choupana, fugindo aos temporais ou indo à caça
dos destruidores, é que vem para secar o leite ao seio das mães, cegar
criancinhas, estuprar virgindades... E a água de que bebeu logo ficou
salobra, a roupa em que se roçou transformou-se num cáustico... É o
sapo! (DUQUE, 1995, p. 76)
Na passagem anterior, o narrador mistura ao discurso alegórico sua própria
superação, esclarecendo o projeto simbolista/decadentista e sua oposição ao contexto
artisticamente dominante. Ainda que possa se referir a pragas naturais, a ação de “destruir
os campos e arruinar as choças” leva-nos diretamente ao jogo histórico do processo de
industrialização, julgado positivamente por aqueles que louvam o “conforto e o bem-viver”
belle-epoquianos advindos do progresso material, mas negativamente considerados pelos
“sapos” decadentistas. O sapo “não mata o homem”, ou seja, discorda da ação, para ele
predatória, que o capitalismo industrial moderno promove. Por dela discordar, por vê-la
com olhos menos encantados do que os que se sentem no limiar de um futuro promissor
executado pelo progresso, o sapo é repelido e alvo dos mais diversos preconceitos.
O espaço em que se sente bem é o charco, a antítese da civilização, onde ainda havia
a possibilidade de a poesia e a arte florescerem como resistência à massificação, à alienação
e à fragmentação do sujeito, impostas pelo sistema vigente. Em termos alegóricos, o charco
corresponde a um mauvais lieu social, ao antro da boêmia, dos desregrados, dos marginais.
O contexto decadentista fez da boêmia a mais radical negação do capitalismo e da
burguesia, por constituir-se na destruição de seus pressupostos básicos o trabalho e a
moral. Hauser (2003), observando a boêmia francesa composta a partir da geração de
Baudelaire, faz o seguinte comentário:
A boêmia convertera-se numa horda de vagabundos e marginais, uma
classe onde residem a desmoralização, a anarquia e a miséria, um grupo
de desesperados, que rompem não só com a sociedade burguesa, mas
com toda a civilização ocidental. (HAUSER, 2003, p. 921)
É justamente esse o ambiente representado alegoricamente pelo charco no conto de
Gonzaga Duque, ambiente formado pelas imagens baixas tão representativas do lameiro,
dos insetos, do pântano.
Mas, agora, nos charcos da baixada, para outra vez e olha. Passam
topázios flamejantes, lanternando o negrume liso do lodo... Lírios
recendem... Esmeraldas notívagas surdem das tábuas e das ninféias, num
enxame... diamantes nas folículas rasteiras do lameiro... Toda uma
rutilação no pântano!... O sapo contempla.
Do empapaçado das margens, aqui, além, lá-baixo, retine uma orquestra
bárbara, trilante e áspera, entre cicios febris e coaxos rítmicos. Parece
que é o ar que retreme, que a própria treva é uma poeira efervescente e
sonora... E o sapo escuta.
Aquela massa repelente está comovida e contemplativa: e como toda a
joalheria dos insetos e o murmúrio das trevas o fazem cismador, levanta
os bugalhos para o céu, recamado de estrelas. Deslumbra-se e extasia-
se, a ver e ouvir, numa fascinação que lhe traz à papeira regougos
surdinados, como a ensaiar um canto... (DUQUE, 1995, p. 76)
A oposição significativa da treva com o rutilar do brejo aponta a deliberada escolha
estética e ideológica dos decadentistas. As luzes e os sons harmônicos, que povoam o
charco, o lameiro, o pântano, produzidos pela “joalheria dos insetos”, seres vis na visão
dominante, comovem a “massa repelente” que é o sapo, tornando possível a reação
sensorial ao mundo sem cor, sem luz, sem música. O belo está onde não se esperava
“rompe o asfalto”.
O sapo frui o inusitado espetáculo artístico, que, no entanto, não é totalmente capaz
de o reconciliar com o mundo fora desse contexto marginal, não lhe traz felicidade, mas
resignação com sua posição revés. Para o decadentista, a arte, ainda que de uma beleza
distinta, nascida no mauvais lieu, está fadada ao massacre do mundo moderno, e precisa
manter sua necessária posição de marginalidade.
Ah! Triste vivente, asqueroso batráquio, horrendo sapo!... que doce alma
de poeta tu possuis! Bom e simples animal, solitária e inofensiva criatura,
ninguém te quer, ninguém te ama, porque és feio, és feíssimo, tens o
aspecto nojento duma bostela, e porque não ofendes e porque não
seduzes, a maldade dos homens, que é a normalidade humana, te repele,
te injuria, te assassina!
És sapo! Sapo! Irmão dos desgraçados que se amamentaram na Desgraça,
igual aos infelizes que nasceram da Infelicidade, enxotados, batidos,
infamados, porque ninguém os quer, ninguém os quer amparar!...
(DUQUE, 1995, p. 76-77)
A seleção vocabular revela o projeto estético decadentista como uma poética do
deslocamento e, portanto, vanguardista. “Asqueroso”, “horrendo”, “infelizes”,
desgraçados”, “enxotados”, “infamados” são qualificativos decisivos para compreendermos
a avaliação que esses artistas fazem de si mesmos. A redefinição do belo (“tens o aspecto
nojento duma bostela”), prefácio das vanguardas, é flagrante na passagem anterior e no
conto como um todo. Logo, o discurso do texto não instaura a ironia, mas a metáfora. A
arte decadentista encontra sua manifestação naquilo que fora rejeitado pela convenção, revê
paradigmas, sem buscar sucedê-los, quer, por isso, sinceramente, manter-se “sapo”, sob a
pena de, ao contrário, perder sua identidade transgressora.
Hauser, ao fazer a diferenciação entre a boêmia romântica e a decadentista, refere-se
à expansão da marginalidade para a própria vida desse último grupo de artistas. Não a
poesia decadentista busca distanciar-se do estabelecido como única e inalienável forma de
reação ao mundo capitalista, como os poetas deliberadamente entregam-se a toda sorte de
experiências marginalizantes.
Baudelaire, Verlaine e Toulouse-Lautrec são alcoólicos, Rimbaud,
Gaugin e Van Gogh vagabundos e andarilhos sem eira nem beira,
Verlaine e Rimbaud morrem em hospital, Van Gogh e Toulouse-Lautrec
vivem por algum tempo num hospício, e a maioria deles consome a
existência em cafés, cabarés, bordéis, hospitais ou nas ruas. Destroem em
si mesmos tudo o que poderia ser útil à sociedade, investem contra tudo o
que oferece permanência e continuidade à vida e enfurecem-se contra si
mesmos, como se estivessem ansiosos por exterminar em sua própria
natureza tudo que m em comum com os outros. (HAUSER, 2003, p.
921)
A simples inserção, ainda que tangencial, no padrão comportamental burguês
lançaria por terra a empreitada decadentista. Negar em si mesmo qualquer utilidade, como
analisa Hauser, é a mais corrosiva forma de negar o mundo alienante contra o que se coloca
o artista decadente. São ecos desse processo as palavras finais do conto de Gonzaga Duque,
em que o narrador toma o sapo como interlocutor, definindo-lhe a essência marginal:
A tua pele é negra e horrenda, a tua forma enoja, os teus gestos, os teus
movimentos, a tua obscuridade irritam... o, o podes ter uma alma,
não podes ser bom. És mau e estúpido. Por quê? Porque és sapo,
unicamente sapo... sapo!... sapo!... (DUQUE, 1995, p. 77)
Embora saibamos que tal passagem possa ser compreendida como ironia em relação
ao discurso do senso comum, consideramos mais interessante e pertinente a leitura que
indica a aceitação irrevogável pelo narrador do papel de “sapo” do simbolista/decadentista,
que “mau e estúpido” não se enquadra deliberadamente no modelo vigente daqueles que se
julgam com alma e bons, a exemplo dos boêmios franceses, cujo mestre foi Baudelaire.
Se “Sapo!...”, como vimos, procede à representação alegórica dos artistas
simbolistas/decadentistas, “Ruínas” refere-se ao ambiente em que surgiu a sensibilidade
desse grupo - o próprio momento da “decadência”; o estabelecimento inexorável da
civilização urbano-industrial moderna. O enredo do conto nos apresenta Pero Roiz, como
protagonista, cujo ponto de vista serve ao narrador de terceira pessoa. Pero Roiz, um ancião
recluso em sua casa no monte, tão distante a princípio da cidade que se espraiava no vale,
o processo de urbanização se acelerar à sua volta. O conto começa com Pero Roiz
observando a derrubada de um “vetusto ipê”, como metonímia de toda derrocada do
ambiente natural em que se exilara. Passa-se depois a um flash back de ordem psicológica,
o rememorar do personagem dos fatos ocorridos no passado recente, quando a cidade e a
multidão avançaram sobre o morro em que vivia isolado.
Nesse ponto, a posição simbolista/decadentista diante das mudanças ocorridas no
mundo explicita-se. Pero Roiz a defende, como reação ao progresso.
De ano a ano, estas terras que ele vira em matas, alastrando, ramalhando
exúberas, a lhe dilatarem a existência com perfumes acres de suas resinas
e o exalo sedativo de suas folhagens; a lhe deliciarem os ouvidos duros
com a orquestração dos passarolos atilantes nos florais madrigalescos da
Primavera; e que lhe deslumbravam a retina com a tinturaria prodigiosa
de suas flores e a gama iluminada dos festões pendentes e das
entrelaçadas franças, desapareciam sob o iconoclatismo da ferramenta
afiada para a conquista das habitações recentes. (DUQUE, 1995, p. 121,
grifos nossos)
Percebemos na passagem, como forma de oposição ao progresso, uma certa
nostalgia da natureza, pouco exemplar do decadentismo francês, por exemplo. A natureza,
no entanto, não é aqui simplesmente convencionalismo bucólico. Além da óbvia antítese da
cidade, ela é o instrumento que proporciona a expansão do espírito humano, esse sim o
centro do conto. A idílica paisagem justifica-se, na passagem destacada longa e
enfaticamente - não por si, mas pela plenitude sensorial advinda do contato entre o homem
e o ambiente. Cheiros, sons, visões afetavam positivamente o sujeito, despertando-lhes
sensações diversas e profundas “a lhe dilatarem a existência”. Em oposição a esse estado
pleno do sujeito, aparece a modernidade urbana, que tudo destrói.
E [as habitações] eram divididas em quadrados, divididas em ângulos,
em nesgas, donde brotavam alicerces, e logo muros, e logo paredes,
telhados, chaminés, mirantes, e logo ruelas em ziguezagues, caminhos,
quintalejos nus, e já postes telegráficos, e poviléu estranho, híbrido,
chalrento, furioso de instalação, irriquieto e ávido, abrindo lojas,
montando oficinas, comerciando, mercadejando, produzindo e
desvirtuando, arruinando o edenismo salutar e consolante dessas alturas
verdes, tão belas outrora! (DUQUE, 1995, p. 122)
A repetição do termo “divididas” em um escritor com tão profundo domínio
vocabular é evidentemente estilística e pode ser entendida como clara referência ao
processo de fragmentação do sujeito na modernidade contra a qual o conto se coloca. A
visão do todo integrado, da natureza em que se inseria harmonicamente o homem, é
afetada, de forma irremediável, pela nova ordem. Sob a égide da velocidade, habilmente
transposta para o texto pela organização sintática coordenada, ritmada pelo polissíndeto e
pela enumeração excessiva, o mundo moderno arruína o “edenismo salutar”, que o
Decadentismo tem por impossível. Culminando o processo de aniquilamento do homem,
a mercantilização. Para Hauser (2003), o Decadentismo expressa a:
(...) consciência de estar no fim de um processo vital inevitável e na
presença da dissolução da civilização. (...) Para o decadente, “tudo é
abismo”, tudo esimpregnado de temor da vida, de insegurança: “Tout
plein de vague horreur, menant on ne sait où” [Tudo cheio de um horror
indefinível, levando sabe-se para onde], como diz Baudelaire.
(HAUSER, 2003, p. 915)
A mesma sensação de absoluto desajuste diante do novo estado de coisas ainda
indefinido, revelada por Baudelaire no fragmento transcrito por Hauser, toma também Pero
Roiz. Diante do esfacelamento do mundo em que vivera em relativa harmonia, não há o que
se fazer, a não ser o recolhimento íntimo, em que a arte aparece como companhia, mas não
como redenção.
E como lutar? Onde buscar a energia para resistir (...)? Fechou-se no que
lhe restava, já não sorrindo à cidade crescente lá-baixo, no val, nos
aterros, nas praias... agora, assombrado diante dessa invasão desesperada,
casas sobre casas, amontoadas em fila, em grupos; d’esguelhas, umas;
outras montadas sobre outras; aqui, baixas, escarando hiatos de portas
como goelas sem ar; para lá: esguias, raquíticas, beiçando sacadas, como
se toda aquela gente emigrasse, foragida de terras devastadas, batida por
uma praga, correndo em êxodo sob o ululo danado de um cataclismo,
saraivando dardos, estrugindo trons, derrubando, esmagando, trucidando.
Então Pero Roiz, trêmulo, encarquilhado, esmoendo desgostos, recorria
ao seu velho cravo, um abancado instrumento italiano que viera em
tempos ainda do Sr. D. João VI, para as predas educativas de sua mãe, e
comunicava às teclas de ébano a profunda dolora de sua alma. (DUQUE,
1995, p. 122)
São particularmente interessantes na passagem transcrita duas menções - uma
temporal, outra espacial - que nos remetem indubitavelmente à cidade do Rio de Janeiro:
são as menções aos tempos de D. João VI e à cidade que cresce pelos aterros e pelas praias,
a qual Pero Roiz vislumbra de seu lugar privilegiado no monte, revelando a típica geografia
carioca e a expansão urbana sofrida no início do século XX. Raríssimas em Horto de
mágoas, essas referências articulam-se com o contexto histórico particular a que o conto
representa. Afastam a impressão de que o autor expressa um sentimento importado;
confirmam que a visão defendida é de um sujeito/cidadão que e sente a sua cidade em
transformação.
Essa transformação, no entanto, é observada de um ponto de vista problematizado,
uma vez que insere a cidade na deriva do sistema capitalista moderno, em que as pessoas
transformam-se em bandos, perdendo sua individualidade; em que tudo se torna
mercadoria; em que a ordem é a “utilidade”. Pero Roiz reage a tudo, enclausurando-se e
dedicando-se à mais inútil das atividades: tocar seu cravo sem som. A arte, ainda que
emudecida pela modernidade, é a resistência de Pero Roiz.
Mas o imperfeito instrumento, contaminado pelo mal arcaico, afrouxava,
sanfonando as composições sentimentais do ignorado virtuose, e as
cordas partiam-se enferrujadas, insubstituíveis, porque o modernismo não
lhe dava concerto, apodando-o com gargalhadas e comentários que
refranziam as válvulas cardíacas do velho. (DUQUE, 1995, p. 122)
Vemos nessa passagem uma relação ambígua da arte com a modernidade. Ao
mesmo tempo em que o cravo aparece como resistência às transformações, não se pode
mais desejar um retorno anacrônico ao passado que ele recupera. O cravo aparece
“contaminado pelo mal arcaico”, suas cordas não se substituem. É, de certa forma,
semelhante ao que ocorre com a “auréola” perdida do conhecido texto de Baudelaire
3
:
3
“Perda de auréola”, in Pequenos poemas em prosa. Edição bilíngüe. Tradução de Dorothée de Bruchard.
Florianópolis: Editora da UFSC ; Aliança Francesa de Florianópolis, 1988, p. 217.
ainda que ela represente um tempo em que o moderno não estivesse presente a incomodar
com seu movimento trepidante, não havia mais jeito de recuperá-la.
Pero Roiz e seu cravo inaudito representam um tempo de crise, em que se embatem
o passado e o futuro, o velho e o novo, a natureza e a urbanidade, a arte e a civilização, e do
qual surge a sensação da “decadência” – “Je sui l’empire à la fin de la decadence”
[
Eu sou
o império no final da decadência
]
, como disse Verlaine. Pero Roiz experimenta a mesma
sensação e podia ser o sujeito da frase, como indicava desde o início o próprio tulo do
conto de Gonzaga Duque – “Ruínas”.
A constatação da crise é, no entanto, privilégio de certa sensibilidade, com a qual se
identifica o protagonista do conto, endossando a opinião decadentista. Para a multidão
daqueles que promovem o crescimento urbano, não há crise, progresso. Daí porque uma
das oposições mais marcantes da narrativa ser a do indivíduo versus o coletivo, oposição
indiciada pela clausura do personagem e pela total incomunicabilidade de sua manifestação
artística.
Para fugir ao desacato Pero Roiz fechava as portas, se encarcerava no seu
casebre, e horas e horas ficava-se ao cravo enlevado nas suas músicas
memoriadas ou nas suas composições originais, de uma arte delituosa
mas repassada de tanta sinceridade emocional, de tão poderosa
singeleleza expressiva que se diria um salmo monacal desempetalando-
se, como um lírio casto, na garganta fresca de um adolescente. No dia
seguinte as pupilas nevoentas do velho celibatário encontravam o
casario miúdo e feio do nascente bairro, suas mãos trêmulas
aferrolhavam, prestes, as janelas. As ruínas aumentavam!... As
ruínas aumentavam!... (DUQUE, 1995, p. 123, grifos nossos)
Embora pudéssemos dizer que haja na postura de Pero Roiz elementos escapistas,
possivelmente tão alienantes quanto à realidade a que se opõe, o próprio narrador aponta a
inutilidade da fuga diante do estabelecido. Por mais que a clausura e a estreita relação com
o cravo, metonímia da expressão artística, busquem resgatar uma realidade e um tempo
perdidos, as ruínas aumentam. A força da imagem do “lírio casto, na garganta fresca de
um adolescente” a opor-se dramaticamente a das “pupilas nevoentas do velho celibatário”
mostram o fracasso da investida e corroboram a crise.
Em vão seus dedos senis batiam iterativos no ébano do teclado, as
articulações rangiam desengonçadas, “toc, toc”, os martelos estalejavam,
tensos, investindo para o espaço, inúteis, sem ferir a sonância das cordas.
As últimas, os farruscos arames retorcidos nas craveiras, gastas ao
constante tornear da chave, partiam-se uma após outra, aos poucos, num
estalido, “lasc”, e zimbravam zunindo enrodilhando-se. (DUQUE,
1995, p. 123)
A “decadência” não está fora, no mundo em crise, mas no próprio instrumento
que representa a reação. As ruínas são ambíguas, posto que se referem tanto ao espaço
edênico, tomado pelo crescimento urbano, quanto ao cravo, cujas cordas se rebentam uma a
uma, tornando seu som inexistente, incompatível com a nova realidade.
Que música estranha, essa que seus dedos carfológicos batiam! Apenas,
quando por quando, uma frouxa corda rara tentilava acordada, lúgubre,
gemedora... E no silêncio do velho cravo, o silêncio que se abria empós
os desconjuntos secos do teclado, posava profundo como a mudez dos
recôncavos sob o apagar dos ecos. Mas ele ouvia a sua música, ele bem
na ouvia porque não descansava de dedilhar as teclas d’ébano, e se
ninguém ouvisse, se ninguém entendesse... que lhe importava isso?... se
ele a ouvia, se ele a entendia, e os seus olhos se imobilizavam num
ventremular vesperescente de orvalhada, e os seus lábios surdinavam o
responso melancólico das irreparáveis saudades, que clareavam nas
carquilhas da sua cara a consolação extreme de luz mortuária, lampejo
cirial de crença para a visualidade paralisante das vascas. (DUQUE,
1995, p. 124)
Intensifica-se a oposição a que nos referimos entre o sujeito, ao lado do qual se
coloca a arte decadentista, e os outros, representantes da civilização moderna. Embora
possa parecer inútil todo e qualquer esforço de reação, Pero Roiz continua a tocar seu
cravo, a despeito de toda a lógica, de não haver mais cordas, de não se emitirem mais sons,
de não ser mais ouvido.
também um certo insólito, característico das narrativas de Gonzaga Duque,
nesse personagem que escuta uma música inaudível, que representa imageticamente a
resistência da arte e da subjetividade à opressão do progresso e do praticismo.
Os martelos em vão se deslocam, se agitam; as articulações das teclas
ringiam, raspavam “toc, toc, toc”, inutilmente, inutilmente, inutilmente...
Ruínas!... Ruínas!
Às vezes, uma das cordas restantes gania um som cruciante de dor, batida
forte, e demorava-se vibrando, tinindo, fremindo, abrindo asperezas
ressonantes em ondas agudas, num grito; em ondas sucedâneas de
soluços, transformando-se em cicios de queixas, em suspiros múrmuros,
em vagidos de exangue... E “lasc!” a corda estalava. Pero Roiz arrepiava
num calafrio, mas continuava, mas batia sempre o seu delírio do
instrumento de mágoas, de dizê-las em música que o seu cravo para
ele comunicava, a martelar seco, a se desarticular oco, “toc, toc, toc”,
inutilmente, inutilmente, inutilmente... Ruínas!... Ruínas!...
(DUQUE, 1995, p. 124)
O trabalho estilístico da linguagem, através da enumeração de verbos de campo
semântico sonoro, transforma o cravo e suas cordas e, por extensão, Pero Roiz, pela
evidente simbiose que há entre a personagem e o instrumento - em uma espécie de ser
agônico a cuja morte assistimos. Essa morte, no entanto, estende-se quase que
infinitamente. Tocar o cravo é o que resta a Pero Roiz como sinal de resistência. Quanto
mais inaudível aos outros o som do instrumento, mais forte é sua resistência. Daí a
necessidade de realce, pela repetição, de que é tudo inútil, de que são ruínas.
O cravo, desgastado, sem cordas, inútil do ponto de vista prático, emite os sons
íntimos do personagem, expõe sua alma, ainda que ninguém a perceba ou a compreenda.
Desse modo, a música surda de Pero Roiz revela ambiguamente não a impossibilidade
de absorção, pelo mundo moderno, da arte nos moldes decadentistas, como também, e
principalmente, sua capacidade, ainda torta e dissonante, de resistir.
Era um som lúgubre de carpintaria mortuária, esse bater incansável que
lhe ia aos ouvidos como deflagrações sonoras de noturnos plangentes,
nevoando dentro dele a melodia estesiante dos sofrimentos, como se
numa atmosfera vibratilizada por choros de violinos, um luar de safira
tremesse no engaste opalíneo do u distante, desolado e frio, a penetrar
átomos preciosos da sua lapidação, visto través a esfumarada vidraçaria
de uma estranha rosácea gótica. Pero Roiz bem sentia essa música!... e
tão funda, e tão intensa, penetrava-lhe na alma, como tão sentida d’alma
lhe transbordava, que ele se ficou eternamente, talvez, a sonhá-la, a
entendê-la, a ouvi-la, hirtos os dedos ósseos no teclado mudo, cabeça,
pensa sobre o velho cravo inútil que fora o seu espírito, que fora o seu
coração, donde se esvaíram todos os sons, onde se esfarriparam todas as
cordas, ao solapar dos anos, no desabamento da ilusões, pondo-lhe nas
pupilas nevosas a refletibilidade espelhenta de si próprio. (DUQUE,
1995, p. 125)
Essa imagem final do conto, em que o personagem petrifica-se tocando o cravo
eternamente, demonstra a posição deliberadamente paradoxal da arte decadentista diante do
estado de coisas que o mundo moderno se lhe apresenta. Transformadora e impotente, viva
e morta, possível e impossível, a arte de Pero Roiz é como a flor drummondiana cuja “cor
não se percebe”, cujas “pétalas não se abrem”, cujo nome “não está nos livros”, mas que
busca vencer, com sua força poética e com sua voz dissonante, “o tédio, o nojo e o ódio”.
Além desses dois contos trabalhados, outro exemplar bastante exótico e
complexo de narrativa autoconsciente em Horto de mágoas, na qual Gonzaga Duque reflete
sobre sua poética simbolista/decadentista e a explicita para seu público. É “Morte do
palhaço” que, como “Sapo!...”, também apresenta certo tratamento alegórico da matéria
ficcional. Nele, aparece como figura absoluta William Sommers, um clown que representa
metonimicamente o artista à procura de sua mais pura expressão. Há, no percurso que esse
personagem sui generis cumpre no texto, um platonismo da concepção artística, como o
que Hauser (2003) observou em Mallarmé. Segundo Hauser:
Mallar era um platônico, que considerava a realidade empírica
ordinária como a forma corrompida de um ser ideal, intemporal e
absoluto, mas que queria realizar o mundo das idéias, pelo menos em
parte, na vida deste mundo. Vivia no vácuo de seu intelectualismo,
completamente desligado da vida prática cotidiana, e quase não tinha
relações com o mundo fora da literatura. Destruiu toda a espontaneidade
em seu próprio íntimo e tornou-se, por assim dizer, autor anônimo de
suas obras. (...) Passou a vida inteira escrevendo, reescrevendo e
corrigindo uma dúzia de sonetos, duas dúzias de poemas curtos e uns seis
mais extensos, uma cena teatral e alguns fragmentos teóricos. Sabia que
sua arte era um beco sem saída, e é por isso que o tema da esterilidade
ocupa tanto espaço em sua poesia. (HAUSER, 2003, p. 926)
Essa análise da poética de Mallarmé aplica-se perfeitamente à trajetória do artista
representado no conto que ora estudamos, conforme passaremos a comprovar. William
Sommers vive, no início da narrativa, uma crise em relação à sua expressão artística, que
passa a desviar dos padrões repetidos com sucesso durante tanto tempo no circo em que se
apresentava. algo em seu íntimo que não permite mais a reprodução mecânica dos
mesmos movimentos inexpressivos, levando-o a buscar singularidades, excentricidades,
“bizarrices” em suas apresentações, que de alguma forma pudessem constituir a superação
do modelo vigente. A atmosfera simbolista/decadentista pode ser claramente percebida
nessa procura estética.
Ele próprio não poderia explicar, se o quisesse, a transformação que o
movia impulsivamente, cuja origem ignorava. Começara por uma espécie
d’enfastiamento, um cansaço dos velhos exercícios aprendidos, que
executava sem orgulho, mesmo sem a consciência de encontrar neles a
sua subsistência. Sobreviera-lhe, depois, uma displicência, quase a se
confundir com o spleen, amarga e crescente, dessas cabriolas cediças,
desse revolvido repertório de jogralices tradicionais, imutáveis, estafadas,
remendadas com retalhos d’entremez e rebotalhos de burletas.
Sem saber por quê, sentia a aspiração de uma arte que não se agachasse
na recolta dos dichotes de bastidores, nem repetisse desconjuntos de
títeros, mas fosse uma caricatura sintética de idéias e ações, o traço
carregado e hilariante, dolorosamente sardônico, do delírio humano em
todas as suas expansões, desde as que o rebaixam ao similar das lesmas
viscosas, as que o elevam ao icarismo dos condores arrogantes, uma
forma não usada, não feita, da sátira gesticulada, delineando no exagero
representativo o ridículo das intenções. (DUQUE, 1995, p. 57-58)
Na passagem anteriormente transcrita, expõem-se os dois pontos fundamentais e
complementares da posição estética simbolista/decadentista, como vanguarda do campo
intelectual em que surgiu: a ruptura com o modelo vigente e automático de arte e o desejo
da expressão inédita e inovadora ainda que não totalmente delineada. Não há, em William
Sommers, a clareza do que seria exatamente essa expressão inédita. Na verdade, o que
temos, no conto e no movimento estético aqui representado, é o sentido do desajuste, a
sensação da inadequação, a tentativa, muitas vezes vã, de superação do estabelecido e do
desgastado.
Por isso, Sommers caracteriza-se como um ser angustiado, tomado por um
obsessivo desejo de algo inconcreto, desconhecido, misterioso. Seu percurso não é o do
encontro, mas o da permanente procura até as últimas consequências possíveis.
Que era?... Alguma coisa devia existir, que ao certo existia, embrionária,
ou completada, esparsa pelos seres ou reunida em alguma parte
desconhecida, sonho ou realidade... talvez o inédito... Fosse o que
fosse!... mas que o enfermava, que o enlouquecia quase, pela grandeza do
almejo nos estreitos limites do seu espírito inculto. (DUQUE, 1995, p.
58)
O que ele pretendia era alcançar a expressão ideal, como se fosse possível a última e
definitiva forma de arte, constituída na captação, em um gesto, de toda a essência do
homem e do mundo. É o platonismo em mais alto grau.
Essa busca, no entanto, está fadada à frustração, fazendo do protagonista um
torturado pela idéia fixa que tem. O conto, cuja ação é de fundo quase integralmente
psicológico, apresenta-nos em detalhes a angústia íntima de Sommers. Quanto mais o
palhaço procura a impossível manifestação artística, aquela que seria sua acrobacia
definitiva, mais se afasta das coisas da vida comum, de seus pares e de seu público,
tornando-se um incompreendido.
Gradativamente, enquanto mergulhava nessa ambição, enquanto
sonhava e tateava o tenebroso desse ignoto, perdia os favores dos
empresários e a simpatia das platéias. Houve noite em que os silvos do
desagrado lhe vararam o amor-próprio. William vergou-se, cortado pelo
desprezo da multidão que o afrontava com o riso alvar dos seus críticos,
com o motejo idiota dos seus censores, e redobrou de esforços para
estertorizar a expressão desejada, para precisar a mímica reveladora e
emocionante que sonhava. Mas, como conseguir essa coisa abstrata?
Onde descobrir essa misteriosa forma inovadora, esse mágico, encantado
novo que lhe pressentia e por cuja conquista se cansava?... (DUQUE,
1995, p. 59)
Novamente, vemos a flagrante descrição autoconsciente, embora alegórica, da
posição simbolista/decadentista. Opta-se pelo lugar marginal, o único capaz de
proporcionar a aproximação com o ideal artístico imaginado. Da mesma forma, indica-se
também a tensão entre a negação de uma estética que se percebe ultrapassada, com a qual
não se quer compactuar, e a crise de ainda não encontrar o que a substitua exatamente. Eis
o “labirinto finissecular”.
Alienado do mundo em que antes vivia em relativa harmonia, William Sommers
deseja, no entanto, uma última apresentação, em que tentará condensar o esforço da
torturante procura pela expressão ideal. Ícone do estranho, o palhaço veste-se de modo
incomum, e entra no picadeiro assustando a plateia atônita
Rasgaram o sussurro das respirações sôfregas guinchos de goelas
ressequidas; uma voz, rouquenha d’enfado e regougante de horror,
estalou afronta inconsciente, pedindo que terminasse. William
estremeceu, sacolejado no seu orgulho, mas logo deu de ombros com
desdém. Que lhe importaria o entendimento da turba?... Sua alma estava
toda na desejada perfeição deste trabalho. Fora ele que o criara, era ele o
primeiro que o executava. Amava-o, pois, como um esforço seu. Agora
queria completá-lo para sua própria admiração. E que delícia em se sentir
estranho, atormentador, horroroso!.... (DUQUE, 1995, p. 64)
O desdém ao reconhecimento estético e a consciência do não atendimento ao gosto
convencional tornam reconhecível a postura dissonante típica do simbolista/decadentista.
No entanto, a impossibilidade de que a expressão se manifeste na totalidade da
representação platônica, como deseja Sommers, leva ao final trágico, fadando o palhaço à
morte.
Nada mais se viu. Então, irrompeu do povo um urra de ovação, sob o
barulho das palmas. Mas um baque seco repercutiu no extremo da
galeria. Sommers perdeu num vôo a barra de um trapézio, atravessou o
vácuo, foi arrebentar o crânio numa arquitrave do teto. (DUQUE, 1995,
65)
O conto conota, com a necessária morte de William Sommers, a intransponível
passagem entre a idéia e a expressão, entre a essência e a aparência, entre o desejo e a
realização, impregnando com o sentimento decadente, não o mundo e a arte, como o
próprio homem, arremessado ao nada. O fim do conto antecipa o questionamento, tão caro
entre os decadentistas e que irá se desenvolver exemplarmente em outras narrativas de
Horto de mágoas, de que a existência humana assim como a arte - esbarra
inexoravelmente na limitação dela mesma. Se para a arte, o limite é a expressão, para a
vida, o limite é a morte.
E assim ficou o estranho clown caricaturando a Morte, tornando-a
pavorosa pela ironia de ser a própria Morte que gargalhava por esta boca
resfriada o desdém do seu triunfo, incontado e insentido, mas que nunca
se apagaria da emotividade dos que o fitaram porque em seus
pensamentos ou em sonhos a caveira continuaria a rir, a rir imóvel, sem
risos, num desesperado, afrontoso ríctus de inexprimível sarcasmo.
(DUQUE, 1995, p. 65)
13 “Idílio roxo” e “Sob a estola da morte” : os sortilégios da morte
Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
(Manuel Bandeira)
O Simbolismo/Decadentismo apresentou, como um de seus grandes temas, o tema
da morte. Anna Balakian (1986), em seu estudo sobre o estilo, disse que a imagética do
Simbolismo está marcada pelo sentimento de decadência, “estado de espírito do poeta que
está assombrado com a crueldade do tempo e a iminência da morte. É um açambarcamento
com o eu e com os mistérios de uma fixação interior sobre os limites incompreensíveis
entre a vida e a morte” (BALAKIAN, 1986, p. 58). Os simbolistas foram levados quase que
obsessivamente ao deparar-se insistente com a “implacável presença da maior das
evidências da vida e do universo, (...) destruidora impiedosa de todos os esforços e
devaneios humanos” (BUENO, 1994, p. 23): a morte.
Em Horto de mágoas, o tema da morte percorre quase todas as narrativas. Nos
contos em que o ocultismo e suas tensões com a ciência figuravam como o elemento
fulcral, a morte constituíra-se o dado essencialmente ensejador das discussões propostas.
Sem ela, em “Ciúme póstumo”, não haveria a metempsicósis, nem as reflexões resultantes
da observação do fenômeno. A morte também é por certo fundamental na construção do
projeto narrativo de Confirmação”, visto que o que se discute é justo a comprovação da
existência espiritual, somente verificável com a morte de Flávia. Da mesma forma, em
“Posse suprema”, todo o profundo estado dilemático, toda luta interior que dilacera o
protagonista, resulta na morte e da morte da figura feminina. Além desses, contos como
“Benditos olhos!” e “Ruínas”, embora não tratem diretamente de fenômenos ocultos para
os quais a morte e as consequências dela advindas são essenciais, instauram o insólito que
os marca com o uso do tema em questão: no primeiro, através da relação de causalidade
ilógica estabelecida para a cegueira do protagonista e, no segundo, através da petrificação
mortal de Pero Roiz diante de seu cravo, a tocar uma música eterna como reação à
realidade decadente.
Nos contos citados, no entanto, a morte não é tratada em si mesma. Ou seja, não é
ela o alvo direto da especulação narrativa. Não é sobre ela que se quer refletir, pelo menos
de modo frontal e inequívoco. Observa-se a morte, mas obliquamente, de esguelha, sem se
a encarar totalmente. As angústias humanas que a cercam não são discutidas em plenitude,
não se pretende defini-la ou julgá-la, não se deseja expressar uma verdadeira, ou autêntica,
divagação sobre a relação entre o sujeito e a morte, em tais contos.
Neles, a morte aparece como mediadora de outras discussões, o que se quer é a
investigação do que a morte pode provocar nas diversas situações criadas na ficção. Em
alguns casos, como os de “Ciúme póstumo” e “Confirmação”, a morte provoca a sua
própria superação, ou seja, indica a possibilidade de que algo existe – de que nós existimos
- para além dela. Por isso, sua observação torna-se irrelevante, posto que o sujeito não sente
na morte a finitude, mas a transcendência.
Em outros casos, como em “Posse suprema” ou “Benditos olhos!”, a morte é
elemento provocador do enredo e de outras questões que não implicam necessariamente
embora tangenciem - a reflexão sobre ela mesma. Neles, da ocorrência da morte, pouco
problematizada como fenômeno em si, decorrem os fatos que formam a história narrada e
que promovem alterações internas ou externas nos protagonistas.
No entanto, em três outros contos, além dos que até aqui listamos, o tema da morte é
realmente parte central do enredo e das discussões. Neles, a morte aparece em si,
compreendida de maneiras diferentes, ora como a ceifadora cruel das alegrias e
possibilidades, ora como a irônica e debochada fatalidade. Passa-se a ver de perto as
sensações que ela pode despertar no espírito humano, desde o horror, a desilusão ou a
desesperança até, ao contrário, a motivação da existência a findar-se, tornando possível o
gozar da vida que resta.
Em dois desses três contos em que a morte se mostra a si, esse tema fundamental
associa-se intimamente ao do amor: em “Idílio roxo” e “Sob a estola da morte”, nos quais
temos casais cuja realização amorosa encontra-se ligada à doença e à consequente morte de
um dos integrantes ou de ambos. em “A morte do palhaço”, a morte associa-se
intimamente ao próprio drama de existir, como veremos. Além disso, neles a morte não é a
da velhice, fim da vida vivida anos a fio, mas a que rouba repentinamente a juventude, por
isso ainda mais incompreensível e inaceitável. E por isso também, mais impositiva se faz a
reflexão sobre ela.
Em “Idílio roxo”, o paradoxo que de certa forma se instaura no título do conto é
revelador da posição bastante significativa diante da morte, defendida na narrativa. A
flagrante positividade do substantivo, que nos remete a um lírico bucolismo amoroso,
relativiza-se francamente com o adjetivo improvável com o qual é caracterizado. A cor
“roxo” escapa da previsibilidade do “idílio” e conota uma atmosfera sombria, soturna,
macabra, lembrando-nos das “correspondências” baudelaireanas. Esse paradoxo indicia o
ambíguo valor da morte diante da vida que será desenvolvido pelo conto, como veremos.
O conto, narrado em primeira pessoa, inicia-se com os personagens principais
instalados no mesmo hotel, em uma cidade serrana: o narrador, construído com ares de
dândi, passando uma espécie de veraneio, e Sara, procurando, provavelmente, os bons ares
da serra para cuidar da doença que a tomava, a tuberculose. A ação narrativa se concentra
em um pequeno espaço de tempo - o de um dia com uma “clara manhã d’equinócio” em
que a tosse de Sara cessou um pouco e lhe permitiu um passeio ao lado do narrador – e em
alguns poucos flashes backs explicativos.
Sara nos é apresentada, a princípio, como uma moça fútil, preocupada em demasia
com as aparências sociais e com a sua própria. O narrador também encarna uma certa
superficialidade elitista, nesse início da narrativa, colaborando com a mis en scene da
personagem feminina. Além dos dois, também D. Maria, dama de companhia de Sara, a
quem pedantemente chamam de Mary “para afetar vilegiatura nobre de tourists da nata,
da upper cream(DUQUE, 19995, p. 99), e que intermedeia o convívio social da jovem.
Esse arcabouço narrativo simples é o que gera a discussão sobre as relações do sujeito com
a morte.
O narrador é quem nos conduz a essa discussão. A futilidade de Sara instala um
comportamento ridículo. A morte que se lhe avizinhava parecia ser ignorada, em uma
espécie de má-consciência, em um tipo de cinismo deliberado e inautêntico. Sara, embora
soubesse que sua doença a consumia, encenava uma existência falsa, tentava fingir que
vida sem morte.
O resto da vida que se lhe esvaziava, noite a noite, nos esburgos da
gosma pulmonar, dir-se-ia concentrar-se nas preocupações elegantes da
sua pessoa, cuja plástica delgada d’estátua alegórica movia-se com a
coleante flexibilidade das serpentes feridas.
Quando ela aparecia ao sol das dez, na sala do hotel, agitando rendas
sobre rendas, numa feliz ilusão de se fazer menos magra, e mais
polibétala que uma rosa branca, a encher o ambiente com trescalos
fidalgos de crab-apple, não havia pupila que não cintilasse de desejos
acesa, nem percepção que se enganasse com a saúde artificial daquela
criatura, esvelta e solerte, que silfara, angustiosa, nos acessos da tosse,
durante o silêncio pesado das noites. (DUQUE, 1995, p. 99-100)
Percebemos que a consciência da morte é burlada por engodos inúteis. O jogo entre
a realidade noturna e a diurna é somente a ponta de uma oposição maior entre a aparência e
a essência, entre a inautenticidade e a autenticidade.
O ponto de vista do narrador, contrário à teatralização da vida feita por Sara, nos é
revelado sub-repticiamente pela construção metafórica da linguagem e pela escolha lexical.
Percebemos sua avaliação crítica, na passagem destacada acima, por exemplo, na tensão
estética causada pela imagem dos “esburgos da gosma pulmonar” em contraposição à
“polibétala rosa branca”, evidenciando, pelo choque antitético, a incoerência da
personagem que concentra em vão seu resto de vida “nas preocupações elegantes da sua
pessoa” e em enganar, a si e aos outros, com sua “saúde artificial”.
A alienação da existência é o que caracteriza Sara nesse início de narrativa, posto
que busca neutralizar aquela que se coloca insistentemente diante dela como diante de
todos nós a todo o momento. Assim, Sara vive uma vida falsa, ilusória, menor, negando-
se a ver de frente a morte que se aproxima e, por conseguinte, a dar real significado à sua
existência.
No entanto, o dia com a “clara manhã d’equinócio” chega para pacificar o peito de
Sara e, justamente, quando os indícios da morte próxima não se fazem sentir, ocorre a
ressignificação da existência para a personagem. Não que a morte tenha se escamoteado,
logrado Sara. Ao contrário, se a tosse - elemento que individualiza na personagem a
presença de “sua” morte - não aparece, a roxidão se espalha por toda a natureza, como um
símbolo da morte absoluta. Por isso, para a reversão do estado alienado da personagem,
torna-se necessário sair do espaço social do hotel para o contato com paisagem natural.
Sara e o narrador vão a passear e encontram em cada canto uma imagem da morte.
A estratégia da discussão da morte empreendida pelo conto se constrói a partir da
percepção de que a morte não se somente para Sara, mas sua presença se sente
disseminada pela vida toda e pela paisagem desse “idílio roxo”, como uma realidade da
qual nada nem ninguém podem escapar:
Março extinguia-se numa viuvez serena de quaresmas florescentes e
vesperais crepúsculos
agoniados de
violetas
machucadas.
À margem
do caminho, na ramaria alta das velhas árvores, por onde cigarras, ao
mormaço equatorial das sestas, sanfoneavam em pós prelúdios de cicios
longos, nevavam pulverizações suaves de ametistas trituradas, como se
uma triste flor invisível abandonasse, no desalento dos repúdios, o pólen
ressequido e inútil. E esse brando colorido de melancolias vivas
derramava-se do céu pela extensão queda dos vales, alastrando-se no
círculo enorme de toda a paisagem, distendendo os planos pelo
esbatimento das distâncias, envolvendo a longitude num afago dormente
de lágrimas ainda não enxutas, e lilaseando a faixa do horizonte, lá-
baixo, numa tenuidade de zainfe sagrado, aberto sobre a remotíssima
paragem dos prometimentos fugitivos. (DUQUE, 1995, p. 100, grifos
nossos)
Os elementos da natureza apresentados pelo narrador falam simbolicamente da
morte de modo irrefutável e lembram aos personagens e aos leitores sua presença macabra
constante. Nesse ambiente em que tudo se refere à morte, Sara te que aceitá-la
inevitavelmente, experienciando uma espécie de epifania.
Esse processo é, no entanto, paulatino. Seu começo se com a entrega de Sara às
sensações que o convívio campestre lhe possibilita, revivescendo de certa maneira.
Sara descansou mais sobre o meu braço a leveza do seu busto. Muda,
pisando serena e certa, pupilas absortas e brumosas das sugestões
sentimentais deste vagaroso crepúsculo d’Endoenças, suas pequeninas
narinas de nervosa resfolegavam; havia no seu respiro o rítmico siflo,
quase imperceptível, do soprar dum fole. Pelo langor do seu corpo
percebi que o recolhimento da paisagem a envolvia, possuindo-a,
fazendo-a penetrar o seu mistério, alentando-a pel’acridade
aromática do seu bafo... E silêncio, extensões, hálitos mornos de folhas,
emanações da terra, embriagavam-na, excitavam a sua imaginativa,
fazendo-a construir, mentalmente, com a nostalgia da hora, o romance
das tristezas que as tuberculosas soem compor, tecidos de ilusões e
lembranças vagas, como uma música que expira sob a dormência de uma
volúpia. (DUQUE, 1995, p. 100-101, grifos nossos)
A vida de Sara é como “uma música que expira sob a dormência de uma volúpia”.
A tomada de consciência desse estado de coisas implica a mudança. Levada pelas várias
sensações que a natureza propiciava, Sara despe-se das aparências sociais, encara-se como
tuberculosa, e sonha um romance que pode ser o resto de sua existência, não mais
concentrada nas “preocupações elegantes de sua pessoa”.
A partir desse ponto, o casal, que até então vinha acompanhado por Mary, passa a
seguir sozinho, completando a transformação da personagem. Para Sara, agora, a existência
perde a ilusão da infinitude. A vida das aparências sociais afigura-se-lhe como um
simulacro sem sentido, como uma inócua maneira de negar o inegável e, por isso, de viver-
se inautenticamente um tempo perdido. Surge, daí, a frustração pelo não-feito, pelo não-
vivido, pelo não-gozado.
com Sara totalmente consciente da morte que lhe espera, temos a seguinte
passagem elucidativa:
- Sabe?... levo um grande pesar da vida...
E depois de uma pausa atalhando-me a pergunta:
- É o de nunca ter experimentado a sensação de um beijo... de amor.
Oh! Nunca os lábios de um homem tocaram-me nas faces!
Quando a fixei, ela tinha inclinado a cabeça aflita, seu olhar negro e
veludoso boiava no alvejamento de Desejos angustiosos, e eram tão
súplices os seus lábios! Era tão pedinte a sua boca! Que eu tive o impulso
de lhe dar o consolo desta carícia. Mas, os bizarrismos de seu espírito
d’enferma crestaram bem cedo os rebentos do meu amor; seria
impossível revivescê-los agora pelo desvario concupiscente de um gozo
efêmero e favorecido. Ela, compreendendo meu pensamento, gemeu
ofegante:
- Beija-me... Sim?
Mudamente obedeci. (DUQUE, 1995, p. 101-102)
Se no narrador ainda existem pruridos morais que impedem a realização plena da
existência a se materializar no beijo de amor em Sara, o pudor foi superado pelo desejo
de “viver mais” que a morte lhe impôs. “A camuflagem do tema da morte é chamada
‘valores’. Os valores são outras tantas tentativas de negar a morte” (FLUSSER, 2002, p. 97-
98), por isso Sara parece os abandonar, no fragmento acima, ao imaginar os melindres
morais do narrador e, apesar deles, arremessar-se ao beijo como a única possibilidade de
vida diante da iminente morte. Se o gozo do beijo é efêmero – como a própria vida também
o é não nisso demérito, nem razão para não o experimentar; ao contrário, vivê-lo é um
imperativo.
A morte torna urgente a vida. E Sara sabe.
Ao curvar-me para ela, procurando sua fronte, encontrei a febre de seus
lábios sôfregos à espera dos meus. E unimo-los docemente,
demoradamente, numa junção noival, premindo as nossas mucosas na
umedecência dos mesmos anseios; euperdida a razão, animalizado pelo
contacto ofertante da imácula carne febril; ela – dominada pelo seu gozo,
radiando nas faces, esfuziando no olhar, aceso o hálito fremente, que lhe
punha no respiro compassado a delonga sugada dos prazeres primeiros...
(DUQUE, 1995, p. 102)
Mas se vida, morte ou vida autêntica se consciência da morte e o
conto não cede às idealizações possíveis. O gozo da existência não elimina a dureza da
finitude humana, mas a aceita como condição. Por isso, é absolutamente necessária, para a
defesa do ponto de vista do conto sobre a morte (e sobre a vida), a cena que se segue:
Por fim, vencida, cerraram-se-lhe as pálpebras, exaustas; uma palidez de
luar morrente alastrou-se por suas faces, marmorizando-lhe a linda
cabeça de bambina, e um acesso de tosse rouca sacudiu-lhe a escoriada
caverna do busto.
A noite despregava-se lenta, lentíssima, de opérculo remoto, franzindo a
quietude roxa do espaço e, no isolamento ‘stagnado, o balido fanho duma
ovelha tardia cavou o silêncio, sonorizando nas quebradas o eco
reminiscente do Ângelus.
Sara, acometida por outro acesso de tosse, levou rapidamente o lenço à
boca, mas, inútil a presteza do gesto! – de seus lábios escapou-se, de jato,
uma golfada de sangue, que estalou, surda; no chão, e ficou-se
coagulhenta, estriada em lágrimas solidificadas, sulferina e refulgente, na
rouxidão do dia extinto. (DUQUE, 1995, p. 102)
“A morte admite somente duas atitudes: negá-la e continuar representando, ou
aceitá-la e cair no mutismo” (FLUSSER, 2002, p. 98). A hemoptise é a afirmação da morte
como parte integrante da vida, de cuja aceitação depende a existência autêntica. Sara não
volta a se perder na ilusão que o gozo de amor poderia lhe dar, pois é lembrada da morte
pela golfada de sangue. Seu “dia foi bom, pode a noite descer”.
O fim do conto reafirma, com o eco estilístico, que a morte se impõe sempre e a
todos:
Só, infiltrante e dulçoroso, o aroma virgem dos brancos lírios vivia no ar,
como se o óleo perfumado e purificador de uma âmbula houvesse
escorrido sobre s para a extrema-unção do nosso noivado sem mácula,
e – assim, confundindo-se com a Natureza, lembrava d’álgum modo,
n’agonia silenciiosa da tarde, o hálito de um resignado sorriso à ilusão
inefável de um gozo que nunca mais voltaria... nunca mais!... nunca
mais!... (DUQUE, 1995, p. 103)
Se em “Idílio roxo”, através de Sara e de sua decisão de “viver mais” a despeito de
qualquer outra coisa, a narrativa vem lembrar a presença da morte e sua necessária
aceitação para a existência autêntica, em “Sob a estola da morte”, a história narrada o
exemplo oposto para chegar à mesma conclusão. Aqui, um casal apaixonado sonha realizar
seu amor, mas tanto ela quanto ele encontram-se doentes. Ela sofre de um mal cardíaco,
que a fragiliza excessivamente, e ele, de tuberculose. O conto começa com a apresentação
das duas figuras arruinadas fisicamente, como “fantasmas de uma lenda suave e triste de
amor”:
Ela é fina e leve, tem a esvelteza delgada duma flor mística, de vitral; sua
palidez lembra um velho vestido de núpcias e seus olhos negros, nesse
tom morno da face macerada, à tênue penumbra dos negros bandos que
se lhe avizinham dos supercílios, têm o luciolar funéreo duma lâmpada
de oratório, ‘través vidraças dum casal de aldeia onde se sabe pairar a
Morte. (...) Segreda a circunspecta ciência, pondo-lhe os olhos d’envez,
que seus dias estão em página final, pois esse coração, que tanto amor
contém, presto estalará repentinamente, num simples esforço da sua
dinâmica.(...)
Ele, também, está escavado das faces, sua brancura sugere
reminiscências d’estátuas tumulares. (DUQUE, 19995, p. 105)
Durante todo o conto, porém, o que temos é uma constante “camuflagem” da morte
que se anuncia vigorosamente para ambos. O instrumento usado para tanto é o sonho, a
idealização, a imaginação. Ao invés de viver, os amantes preferem projetar uma existência
meramente imaginária, uma irrealização de vida que jamais se concretizaria. Alimentam-se
das imagens que inventam, mas que falsas, só os fazem experimentar uma espécie de
torpor, de anestesia alienante diante do que realmente ocorre com eles.
Ela repete: - É lindo! automaticamente, levada, fascinada por estes
aspectos idealizados, que os ilude, a ambos, com o seu gozo
imaginário duma vida intensa e casta, em que a materialidade se
escoa pela trama delgada duma fantasia e parece, por isso, mas vívida,
mais penetrante por ser como o refinamento das propriedades
revigorantes da Terra farta e poderosa. (DUQUE, 1995, p. 107, grifos
nossos)
Se o sonho é o instrumento alienante, verdadeiramente escapista, o tempo é o cruel
inimigo ao qual a evasão jamais conseguirá vencer. Enquanto nutrem suas idealizações
amorosas o tempo não os poupa e corre, devorando-lhes a saúde e a possibilidade de terem
uma existência feliz. As bodas que programam sempre para mais tarde impossibilita-os de
viver plenamente, enquanto os dias e os meses cumprem seu concreto destino de se
sucederem, obedecendo com rigor à cronometria da natureza.
No conto, o jogo entre o sonho e o tempo ou entre a vida e a morte - é
perfeitamente construído, apontando a triunfante vitória deste sobre aquele. Por causa desse
jogo, ao contrário do que ocorre na imensa maioria dos contos de Horto de mágoas, em
“Sob a estola da morte” a marcação temporal é bastante precisa, o tempo narrativo é
apresentado cronologicamente especificado em inúmeras passagens. Tal marcação ocorre,
porque o tempo é também matéria da história.
A narrativa desenvolve-se entre os meses do outono e do inverno, os personagens
veem abril, maio, junho passarem, e vivem de projetos frustrados que, no âmbito da
narrativa, servem para demonstrar a existência inautêntica, o tempo perdido.
Quando maio vier, com suas manhãs festivas, muito brandas e muito
claras; quando passarem, caminho da Matriz florida, os bandos brancos
das donzelas comungantes, eles farão suas núpcias...
Devem esperar maio. É um mês ramalhento e álacre. Violetas e rosas
pelos canteiros. Retinge-se o céu de novo, bimbalham os sinos... Ah! O
sol já não queima... Depois... (DUQUE, 1995, p. 106)
Embora as reticências pudessem criar no leitor apresentado às fraquezas físicas
dos personagens a impressão de que ficou em suspense a consciência não dita da morte
que lhes chegaria, o parágrafo seguinte frustra essa expectativa, corroborando a idealização
da realidade que marca a “vida não vivida” dos dois.
E se calam, a rebuscar nos sonhos as doçuras dos desejos. Ela, porém,
delira por apressar o esponsório, quer saber o que farão e de sua
pequenina boca empalidecida sai o gemido da pergunta: - E... depois...?
Ele acorda do devaneio mudo, meneia a cabeça loura: - Ah!... sim...
depois... Então começa a filigranar os encantos de uma existência
primitiva, tranqüila e feliz, de rústicos (...). (DUQUE, 1995, p. 106)
São os dois exemplos daqueles que se enganam ao negar a morte. Explica-lhes bem,
a passagem a seguir:
A grande conversação que é a civilização, com todos os seus feitos, é esta
conspiração tácita [de fazer de conta que não morte], e o nosso fazer
de conta que não há morte é o segredo do qual todos participamos. A fita
que representamos é interrompida, raras vezes, por um leve piscar de
olhos, um sorriso conspiratório apenas esboçado, pelo qual
reconhecemos uns aos outros como atores da mesma peça chamada
“vida”. É como se quiséssemos dizer uns aos outros: “Pss, não divulgue
que estamos mentindo, não estrague o faz-de-conta da vida”. (FLUSSER,
2002, p. 98)
Embora os personagens encarnem muito bem seus papéis no “faz-de-conta” que
fazem da vida, a missão do conto é revelar a mentira em que vivem. A aproximação do
inverno é um dos mecanismos simbólicos usados para esse drible. Por isso, a cada “cena”
projetada dessa “fita”, ocorre uma referência ao tempo que passa inexorável. O narrador
age como aquele que conspira contra a “conspiração tácita” da vida negando a morte, e,
como dono da palavra, não há como fazê-lo calar. Vejamos:
Pela manhã, inda n’água-tinta da madrugada, levarão seus cântaros à
fonte, irão colher os frutos, juntar os molhos de silvas e bogaris para
Jesus crucificado, para a pequena mesa de repastos... (...)
Mas, o tempo vai passando, voando, Vêm as chuvas de abril. A terra
úmida, aumenta a debilidade de ambos. Ela, às vezes, leva a mão ao
peito, como ferida por uma lâmina aguda. Ele mais cavernoso, lívido,
arqueja e, a espaços, cospe a lama sanguínea do pulmão. (DUQUE,
1995, p. 107)
O narrador, com sutilezas discursivas, apresenta os fatos de modo
multiperspectivado, ao lançar mão do discurso indireto livre. Os verbos no futuro revelam a
mundividência dos personagens, que se deixam levar pela ilusão do “estar por vir”,
enganam-se em sentir prazer no imaginar a vida, em vez de vivê-la. Em contrapartida, o
narrador observa o tempo e sua ação sobre os personagens, explicitando seu ponto de vista
ao leitor: a falsidade da imagem criada nos sonhos dos amantes.
Esse jogo estende-se por boa parte do conto e intensifica-se, na passagem
cronológica do tempo, com a aproximação do inverno, símbolo da morte, quando a angústia
de não ter vivido começa, finalmente, a tomar conta do íntimo das personagens, como
condição para o fim da inautenticidade da existência.
- Que será de nós, Virgem Santa?
Não é a intempérie que os aflige. Ah! Não! Ainda horas de sol, em
pausas longas cessa o peneirar das nuvens e os verdes do parque
reaparecem frescos e rútilos... Mas, visivelmente, as mãos dela estão
mais transparentes... a testa, que os bandos, muito negros, cortam num
branco triângulo estreito, vai ressecando em tons de osso velho e nas
pálpebras há tumescências lassas de cansaço. Que será?
Ela, também, a si mesma pergunta: - Que será? notando-lhe, nele, esse
ofego constante das narinas sob o duro afilamento do nariz, essa febre
que, em dados momentos, o enrubesce e sempre lhe está escaldando o
hálito. De dia para dia sua máscara cinge-se mais à ossamenta,
n’adaptabilidade modelante duma pelica molhada; suas pupilas,
absorvidas por esse sonambulismo contemplativo do esgotamento,
coloram-se dum outoniço azul indeciso, espelhando estagnações
nostálgicas que se diriam feitas de lágrimas vertidas ao gemer de violinos
sacros. Que será? (DUQUE, 1995, p. 108)
A percepção da realidade, antes exclusiva do ponto de vista do narrador, começa a
entranhar-se nos personagens, instaurando a angústia que os leva à pergunta retórica
reiterada - “Que será?” - e cuja resposta ainda se negam a ouvir: é a morte. Em seu papel de
desvelador da realidade e, portanto, da morte o narrador repete, como um estribilho
implacável: “E o tempo vai passando, voando.”
Os amantes pioram de sua saúde. A morte se aproxima. Essa aproximação coloca-os
em um limite em que nada mais resta a não ser uma profunda angústia. Para Heiddeger, a
angústia é o traço totalizante que define a essência do ser, pois o remete à totalidade da
existência como ser-no-mundo (apud: WERLER, 2003, p. 104-105).
E ela chega e lhe sorri. Logo, para o animar, recosta-se no mesmo leito,
ao lado dele, toma-lhe a mão fria e inerme, e lhe vai dizendo doces
mentiras enquanto lhe afaga os seus cabelos louros: “Os dias tépidos
virão e, com eles, a saúde... a ventura... os desejados esponsais...”
Com esforço ele agradece-lhe num sorriso, mas sorri com a tristeza
refrangida da resignação.
No entanto, a angústia cresce, envolve-o numa prostração, e lhe põe
sombras amarguradas nas pupilas vítreas. (DUQUE, 1995, p. 109)
É dessa angústia, provocada pela consciência agora inalienável da morte diante de
si, da morte de si, que surge a ação derradeira da narrativa, a última tentativa de prolongar a
vida, tornando-a significativa.
Ao sentir que ele morre, embora tente subterfúgios – um milagre, um socorro
celeste – a esperança se esvai e ela se transforma:
Mas, a impressão desses olhos sem pestanejos, mal fechados e frios,
olhos nem adormecidos nem acordados e que fitando já não veem, a dor
de o perder revoluciona a ruína esguia e macilenta da sua vitalidade que
se desloca num tumular vertiginoso ‘té à boca estendida num beijo sobre
a boca, que imperceptivelmente anseia, que imperceptivelmente se move,
exausta... (DUQUE, 1995, P. 110, grifos nossos)
A presença da morte do amado e a sensação de sua própria morte “revolucionam” a
personagem, que passa a ser o sujeito de sua vida, usufruindo o tempo que resta como
tempo presente, já que não há mais futuro a se projetar. A consciência da morte, porém, dá-
se tardia e, no plano do texto, nada mais resta à personagem a não ser morrer, visto que
toda a vida projetada não poderá mais ser vivida. Diante da realidade cruel da finitude que a
morte se nos apresenta, o desenlace insólito e simbólico do conto, é a coroação do
aprendizado que ele nos transmite: “o tempo vai passando, voando”. O beijo entre os
amados é o momento da morte conjunta, do fim de uma existência somente planejada, e
não executada.
E ao toca-lo, ao impulso de se unir... todo o seu corpo treme numa
crispada de resfriamento, à passagem d’aura fatal. Empolga-a uma
vertigem. Sente-se arrastada num turbilhão azoinate. Nada mais
compreende. E ambos, a um tempo, retesam-se, inteiriçam-se...
Súbito, com um hausto longo, as suas almas desprendem-se numa
deflagração de luz invisível para a Imensa luz... (DUQUE, 1995, p.
110)
Embora o narrador acene com a perspectiva da vida após a morte, das almas que se
unem em uma “Imensa luz”, o último parágrafo do texto não respalda o otimismo desse
novo projetar da existência. Ao contrário, o que nos são revelados são os corpos mortos,
como matéria consumida pelo tempo não aproveitado por ambos.
Então, as cabeças pendem-lhes, pesadas e inertes, e na dolorosa vaga de
suas pupilas sumidas, como no entreaberto fixo de suas bocas, congela-se
a indecifrabilidade duma expressão, que se não saberia dizer se era a
dor de não gozar ou se o gozo de não sofrer. (DUQUE, 1995, p. 110)
O saldo da existência apenas sonhada, e não vivida, vacila entre duas possibilidades
igualmente trágicas e complementares, enunciadas na última linha do conto. Na expressão
indecifrável de suas bocas de cadáveres encontram-se amalgamados o desperdício e o
sofrimento da existência. A morte apazigua o sofrimento de viver, sofrimento que nunca
fora apaziguado pelo gozo, gerando o círculo vicioso da vida inutilizada, da existência
inautêntica contra a qual o conto, e a mundividência de Horto de mágoas nele expressa,
flagrantemente se coloca.
14 Conclusão
“Com suas lembranças, (...) abre janelas sobre um
passado fora do ‘Índex às avessas que é a lista de
obras-primas’. Nomes, figuras aparecem e alargam
a visão de um passado delimitado por um cânone
restritivo e uma história de memória curta.”
(Vera Lins)
Horto de mágoas insere-se no contexto da Belle Époque brasileira como um
conjunto amplo e complexo de narrativas, cuja intenção fundamental é a insubmissão
diante da construção do cânone que se consolidava pelas mãos da crítica oficial do período.
Reler seus contos constitui uma atitude em prol do resgate da polifonia da Literatura
Brasileira produzida naquele início do século XX. Deles, ecoam vozes distintas,
multiformes, que apresentam ambiguidades férteis para a compreensão das tensões
resultantes dos embates ideológicos e estéticos de uma época extremamente nuançada entre
o deslumbramento diante do poder da ciência positiva e do progresso tecnológico, de um
lado, e a sensação de decadência da humanidade em um mundo a fragmentar o sujeito, de
outro. Entre os dois extremos, lugar para tantas manifestações, para todo um horto de
mágoas.
A esse respeito, cabe lembrar que uma das acepções de horto é justamente a que se
refere ao terreno onde se cultivam plantas para experiência, com o cuidado e a atenção do
especialista, tal como Gonzaga Duque fez ao produzir seus contos como exemplares
exóticos, dissonantes de um discurso mais amplamente conhecido. Caminhando por esse
terreno, deparamo-nos com a composição de algumas paisagens, de alguns jardins
formados por espécimes que se assemelham e que se configuram como leitmotivs da obra.
Um deles é a discussão das tensões entre o conhecimento científico e a experiência
ocultista, relativizando oposições aparentemente sólidas sobre as quais se erigia o mundo
por vir. Tal relativização, além de fazer ecoar vozes reprimidas, antecipa discussões
maiores que somente com o avanço dos anos estruturar-se-ão de modo mais acabado, como
o ceticismo diante das verdades aparentemente inabaláveis que a ciência construía e o
enfrentamento do insólito que o mundo pode nos apresentar.
Outra dessas paisagens configuradas pelas narrativas de Gonzaga Duque revela as
transformações sociais e artísticas de um tempo moderno, em que a transgressão parece
ser a única posição legítima, encarnada por femmes-fatales, dândis excêntricos, boêmios
inveterados e artistas decadentes. A consciência do papel de opositor lança novos olhares
sobre o campo intelectual estabelecido naquele momento, levando-nos a, no presente, rever
paradigmas aparentemente fechados.
Por fim, mais um jardim se deixa perceber entre as paisagens cultivadas
cuidadosamente pelo exotismo autor: aquele em que, ampliando-se os dramas dos sujeitos
historicamente marcados, passa-se ao ontológico, encara-se a morte e seus sortilégios,
diante das quais a vida se torna mais uma grande ilusão. Reafirmando toda a postura
ideológica marginal do Simbolismo/Decadentismo, a discussão da relação entre a vida e a
sua finitude efetuada por essas narrativas das maneiras as mais diversas fortalece o elo,
talvez esgarçado pelo estado de coisas socioeconômico finessecular, entre a arte e as
angústias mais profunda e verdadeiramente humanas.
O horto de Gonzaga Duque, tal qual o de Cristo, é, portanto, um lugar de
padecimentos, de dores, de mágoas, pois nele instaura-se de forma indelével a dúvida
diante das respostas apaziguadoras e prontas que nos são dissimuladamente apresentadas
como verdadeiras. As certezas da ciência, da sociedade, da literatura e da própria vida são
postas em xeque por essas insólitas narrativas. Cabe a nós, leitores de um outro tempo em
que também se abalam as certezas de toda ordem, dar-lhes o ouvido e o entendimento
necessários.
Como nos disse Ronaldo Lima Lins, na apresentação ao Impressões de um amador,
de Gonzaga Duque:
Duas são as formas de entender o presente. Uma predominante depois do
século XVIII, retira as energias do futuro. É a construção de um edifício
projetado no ar das ideias, orientado por uma postura de insatisfação com
o estado de coisas. A outra, em estado de cruzamento com a primeira,
entende a História como um exercício de reflexão. Dentro de tal
perspectiva, pessoas, momentos ou épocas vividas fundamentam algo ou
valores perdidos. Num país como o Brasil, entender o que somos
depende de exigências cujos postulados permanecem em xeque, tão
jovens e pouco maduros ainda nos mostramos. A importância de
Gonzaga Duque e sua releitura concentram-se, em parte nesse vetor.
Cansados de olhar para a frente, constatamos que a modernidade
avassaladora do século XX está em crise e o nos acomodamos com
ela. Observado agora, não espanta o relativo esquecimento a que se
relegou este autor, e a oportunidade de suas reedições tem lugar no
instante em que novas necessidades nos assaltam. O que aconteceu? Por
que somos o que somos? (apud: DUQUE, 2001)
Neste trabalho, motivou-nos, de certa forma, perguntas como as formuladas
anteriormente. Com ele, pretendemos lançar alguma luz sobre Horto de mágoas, esta obra
esquecida entre tantas outras, mas que nos apresenta curiosíssimas narrativas, tão distintas
do que nos acostumamos a considerar o modelo finissecular da Literatura Brasileira, que
nos descortina uma outra possibilidade de nos entendermos e de repensarmos nossa
identidade literária.
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