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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Desenvolvimento urbano econômico e sustentável: a
constituição de uma nova cosmografia urbana em
Uberlândia (MG).
Larissa Brito Ribeiro
Mestrado em Antropologia Social
Brasília
Novembro de 2010
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LARISSA BRITO RIBEIRO
Desenvolvimento urbano econômico e sustentável: a
constituição de uma nova cosmografia urbana em
Uberlândia (MG).
Larissa Brito Ribeiro
Orientador: Gustavo Sérgio Lins Ribeiro
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social
do Departamento de Antropologia da
Universidade de Brasília como requisito
parcial para obtenção do título de
Mestre.
Brasília
Novembro de 2010
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Desenvolvimento urbano econômico e sustentável: a
constituição de uma nova cosmografia urbana em
Uberlândia (MG).
Larissa Brito Ribeiro
Banca Examinadora:
Prof. Gustavo Sérgio Lins Ribeiro - Presidente (DAN/UNB)
Profa. Cristina Patriota de Moura - Examinadora (DAN/UNB)
Profa. Brasilmar Ferreira Nunes - Examinador (ICHF/UFF)
Profa. Kelly Cristiane da Silva Suplente (DAN/UNB)
4
A Paulo Henrique. Com amor.
5
Agradecimentos
Relembrar os tempos, retomar a memória, pessoas, olhares, gestos, neste momento,
parece tornar tão fugaz a intensa experiência vivida durante o mestrado no Departamento de
Antropologia da UNB e em Brasília, que posso tomar estes agradecimentos como uma
forma condensada de expressar tudo a todos aqueles que neste trabalho se fazem presentes.
Aos moradores das margens dos córregos e do rio Uberabinha com os quais tive
contato, sou grata pela atenção com que me receberam em suas casas, algumas vezes sob a
desconfiança plausível diante de meu interesse sobre suas vidas naquele lugar. Este é apenas
um primeiro passo na reflexão sobre as múltiplas questões relacionadas às dúvidas por vocês
colocadas, com a esperança e propósito de que possamos avançar. À Máucia, sou grata pela
atenção com que me recebeu no Centro de Documentação em História da Universidade
Federal de Uberlândia, com suas sugestões ímpares de trabalhos associados à temática aqui
discutida e pelas dicas preciosas de acesso à documentação necessária para as análises aqui
realizadas. Ao pessoal do Arquivo Público de Uberlândia, pela presteza com colaboraram na
agilidade do fornecimento da documentação solicitada, fundamental para que o andamento do
trabalho fosse possível e pela paciência para com as dúvidas que eu apresentava para o
entendimento daquela documentação.
A meus pais, grandes guerreiros das intempéries da vida vivida em busca de maiores
oportunidades e condições de estudos para seus filhos. À minha mãe, professora primária,
incansável em somar em casa o aprendizado da escola. A ela um carinho especial pela estante
azul, nossa primeira e singela biblioteca, carinhosamente pintada junto comigo e minhas
irmãs em nossa infância e estrategicamente colocada à porta de nosso quarto, fonte de
inspiração para meus livros de hoje. Meus irmãos e irmãs, companheiros de diferentes
trajetórias, obrigada pela força, torcida, apoio e compreensão pelos tempos de reclusão. A
meu irmão Fernando, a vida nos ensina, como num eterno retorno elíptico, que ela tem seu
próprio tempo. Obrigada por me fazer atentar a isso.
A meu esposo, Paulo Henrique, meu delírio e minha paz. A você, um terno
agradecimento pelo companheirismo e compreensão durante esse tempo em que você
permaneceu em nossa casa em Uberlândia e eu estive dividida, “na estrada”, entre Brasília e
Uberlândia. Um período obviamente permeado por angústias fortuitas, mas sobrepujadas pela
vontade ainda maior de estar junto e pelos laços de gostos, amores, desejos, sonhos e projetos
6
compartilhados. Obrigada pela companhia e apoio constante e inestimável durante o tempo
angustiante de escrita desta dissertação.
Minhas amigas e amigos Luciana, Sir, Déia, Mirela, Kênia, Cicci e Serjão, valeu pela
força, torcida e compreensão pelas ausências. No DAn, um agradecimento especial à Glêides
Formiga, uma inesperada e improvável amiga e companheira de todas as horas, angústias e
alegrias e, principalmente, das coisas da vida no mestrado que não se resumem aos livros.
Juliane Bazzo, amiga e colega emprestada da UFPR, foi muito bom ter tido a grata surpresa
de te conhecer na UNIMONTES e, logo em seguida, te ter conosco na UNB. Espero que a
vida possa nos brindar com a bela e intensa alegria de sua companhia e de nossas trocas tão
especiais. À Fernanda Maidana, amiga da Katakumba, do DAn e da Colina. Fernandinha,
obrigada pela parceria, pelo carinho, pela atenção com que ouviu meus imbróglios e
compartilhou comigo o dia-a-dia da vida no DAn, em Brasília, na Katakumba e na Colina.
Fabíola Gomes, obrigada pela maneira carinhosa de clarear minhas idéias nos momentos de
dúvidas e incertezas. Parceira das boas risadas. A sua não será esquecida, Fafá!!! Diogo
Neves, obrigada pelas boas risadas, pela companhia e pelos mapeamentos “dantescos”.
Walison e seu parceiro Léo Jaime nas boas inspirações. Sei que você tem muitas outras Wali,
mas esta foi a melhor! Obrigada pela inspiração sempre presente pela leveza e alegria. Carol,
Diogo Bonadiman, Paula Bauduíno, Antônio Guerreiro, Eric Gomes, Júlia Otero, obrigada
pelo muito que aprendi com vocês em nossas aulas. Soninha e André, obrigada por
gentilmente me permitirem fazer da sala que dividíamos na katakumba quase que minha
terceira casa nas idas e vindas semanais entre Brasília e Uberlândia. Júlia Brussi, Lílian
Chaves, Simone Miranda, Yoko Nitahara, Josué Tomasini, Alda Lúcia, Carlos Alexandre,
Anna Davison, Goiás, Luis Cayón, Elena Nava, Marcus Cardoso, Aina Guimarães, Patrik
Thames, Gonzalo, Fernando Firmo, Mariana Lima, obrigada pela companhia, pelo café, pelas
trocas de experiências, leituras e conversas nas horinhas de descuido e nas madrugadas
viradas na katakumba.
A Marcely, minha companheira de quarto na Colina, sou imensamente grata pela força
e encorajamento ao início e término de cada dia, com seu sorriso e sotaque paraense, sempre
animador. Ao meu primo Raphael e sua esposa Flávia, grandes companheiros e apoiadores
desta empreitada. Obrigada por me abrigarem em sua casa antes da vaga na Colina. Seu apoio
nos primeiros momentos de estada em Brasília foi imprescindível para que o mestrado fosse
realizado.
Este mestrado teria sido improvável sem o estímulo de meu orientador durante a
graduação no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia, Paulo
7
Roberto Albieri Nery. Foi a formação que com ele tive ao longo dos anos de Iniciação
Científica, em que foi meu orientador, que me despertou a perseverança em prosseguir em
meus estudos. A ele um terno agradecimento por ter acreditado e apostado em mim. Na UFU
sou também grata aos demais professores, especialmente Eliane Schmaltz e Mônica Abdala,
pela maneira com que educam com entusiasmo, comprometimento e afeto para com seus
alunos. Obrigada pelo carinho, força e estímulo ao longo de minha jornada até aqui.
Aos professores do DAN, obrigada pelos prestimosos ensinamentos. Um
agradecimento especial a Paul Eliot Little, Mariza Peirano, Marcela Stockler, Cristina
Patriota, Wilson Trajano, José Antônio Vieira Pimenta, Cristian Theófilo. Ao meu orientador
Gustavo Lins Ribeiro, obrigada pela abertura com que recebeu a proposta de orientação de
meu trabalho e nele apostou com suas leituras atentas de meu texto, bem como pelas reflexões
sugestivas sobre os caminhos que o trabalho apontava, combinadas à autonomia necessária no
desenvolvimento do trabalho. Um agradecimento especial pela generosidade com que me
apoiou no momento de finalização desta dissertação diante das intempéries com que a vida às
vezes nos surpreende.
À Profa. Cristina Patriota de Moura e ao Prof. Brasilmar Ferreira Nunes, obrigada por
aceitarem o convite para participar da banca de defesa de minha dissertação e pelos
inestimáveis apontamentos sobre meu trabalho.
A Rosa e Adriana, um carinho especial pelo apoio, compreensão e torcida.
Ao Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Tecnológica (CNPQ), sou grata pelo
apoio financeiro sem o qual este mestrado não teria sido possível.
8
Resumo
O presente estudo trata do processo de remoção de moradores que habitam as margens
urbanas dos córregos da cidade de Uberlândia (MG) e do rio que a corta, Uberabinha, e sua
relação com as políticas públicas de planejamento e desenvolvimento urbano. De favelados, a
invasores e criminosos ambientais, as diferentes classificações destes moradores remetem a
contextos diferenciados do planejamento urbano na cidade. Interessou-me entender a força
dessas classificações nos processos de remoção para a implantação de planos e projetos
urbanos, o que me levou a analisar o modo como o poder público local reivindica estes
territórios mobilizando a ideologia do desenvolvimento para dar-lhes nova significação,
contemporaneamente, sob o signo da sustentabilidade. Para tanto, analiso eventos nos quais
esses planos e projetos urbanos são elaborados e mobilizados, bem como aqueles em que as
classificações dos moradores são postas em operação pelo poder público local nos processos
de reivindicação destas áreas, constituindo-as enquanto cosmografias urbanas vinculadas às
ideologias do desenvolvimento urbano econômico ou sustentável.
Abstract
This study deals with the process of removing people from the urban margins of
Uberlandia city‟s streams and Uberabinha river, which crosses it, where they use, and used, to
live and with the relationship of such a process with the urban planning and development
public policies. From favelados (slummers) to invaders and to environmental criminals, the
different classifications of these people refer to different contexts of this city‟s urban
planning. This classifications‟ strength in the removal processes for implementing urban
projects raised my interest and led me to examine how the local government reivindicates
these territories to the extent of mobilizing the development ideology to give them new
meanings under the current sign of sustainability. To do so, I analyze both the events in which
these plans and urban projects are developed and mobilized as well as the events in which the
classifications of such inhabitants are put into operation by the local government following
the process of reivindicating these areas and making them up as urban cosmographies linked
to the urban development or economic development ideologies.
9
Sumário
Introdução ............................................................................................................................... 10
1. Prólogo.............................................................................................................................10
2. Mobilizando a ideologia do desenvolvimento.................................................................15
3. Em campo, qual campo?..................................................................................................18
4. Das margens do rio às Cidades Sustentáveis: integrações empírico-descritivas ............ 25
5. Ideologia, poder e cultura na constituição dos territórios urbanos..................................32
6. Cosmografias urbanas.......................................................................................................35
Capítulo I - Uberlândia: progresso e desenvolvimento na conformação das
cosmografias urbanas ........................................................................................................... 38
1.1. Progresso e desenvolvimento como ideologia ............................................................. 39
1.2. Planos e projetos na constituição de territórios urbanos .............................................. 47
1.3. Uberlândia na esteira do progresso e desenvolvimento ............................................... 50
1.3.1. Os “desbravadores” da Farinha Podre ............................................................... 53
1.3.2. Formação e “fundação” da cidade na “boca do sertão” ..................................... 57
Capítulo II - Cosmografias urbano-desenvolvimentistas ................................................. 68
2.1. Planejamento para iluminar os caminhos do desenvolvimento .................................. 69
2.2. O Plano.........................................................................................................................82
2.3. Trator e polícia x espingarda na disputa pelos territórios urbanos: a favela .............. 88
2.3.1. Público ou Humanitário?...................................................................................92
2.3.2. Extinção ou desfavelamento?............................................................................89
2.3.3. O Bispo e os interesses do povo.......................................................................102
Capítulo III - Constituindo uma cosmografia urbano-ambiental ................................. 108
3.1. Planos Diretores e a virada da cidade à cidade sustentável........................................109
3.1.2. Do Movimento Nacional pela Reforma Urbana aos Planos Diretores: pelo
direito à cidade sustentável.........................................................................................111
3.2. Planos Diretores, Parque Linear e preservação ambiental.........................................113
3.2.1. O Projeto...........................................................................................................118
3.2.2. O Plano Diretor de 2006....................................................................................124
3.2.3. O Parque Linear do Rio Uberabinha e o interesse público...............................134
3.3. De moradores, favelados e criminosos ambientais.....................................................144
Considerações Finais ............................................................................................................153
Referências Bibliográficas .................................................................................................. 159
Anexos ................................................................................................................................... 169
10
Introdução
1. Prólogo
Ao avistar, no ano de 2006, o que minha memória associou a uma pequena roça em
meio à cidade de Uberlândia, em Minas Gerais, às margens do rio que a corta, Uberabinha,
questionei-me como isso seria possível numa cidade marcada pela promoção da imagem de
cidade desenvolvida? Para o leitor experimentado e conhecedor acadêmico da vida urbana,
um tal estranhamento pareceria ingênuo, mas só se explica pela associação de minha memória
e origem à profusão de projeções da imagem da cidade de Uberlândia captada em jornais
impressos, mídia televisiva, discursos políticos e empresariais e em revistas locais e
nacionais, parecendo não haver alternativas para se falar desta cidade sem passar pelo rótulo
do desenvolvimento. Um olhar mais atento reconheceria que, contemporaneamente, o
marketing das cidades é algo comum. O que explicaria, então, a particularidade de meu
estranhamento?
Vivo em Uberlândia há cerca de doze anos e desde então sou surpreendida por
„paradoxos do desenvolvimento‟, seja no âmbito lingüístico, religioso, político, econômico ou
social. Paradoxos no sentido de que a imagem projetada e promovida da cidade ora inclui ora
exclui aqueles elementos que seriam considerados adequados a uma imagem de cidade
desenvolvida. A exemplo disso, essa mesma „pequena roça‟ e seus moradores são tomados no
primeiro plano de uma charge, ilustração de uma reportagem num jornal local, que tem ao
fundo o centro da cidade com seus prédios e aviões cruzando seus ares, indicando o
desenvolvimento destacado na reportagem
1
. Nela se discute a “cultura predominante na
cidade”, se seria caipira ou não. Mobilizada pela presença de uma de suas moradoras num
programa televisivo nacional, em razão de seu uso do „r‟ retroflexo, pico na cidade, por
vezes motivo de risos e piadas no programa, a reportagem conclui que o crescimento rápido
escondeu traços da tradição caipira na cidade, originária dos migrantes que nela se
estabeleceram marcando-a por uma “mistura de culturas”.
“Uberlândia não vai deixar de ser uma cidade do interior. E de Minas. Com todas as
características de uma cidade do interior. Mas os 600 mil habitantes, prédios, avenidas,
economia, indústrias e desenvolvimento indicam que está longe de ser uma cidade caipira. Se é
que chegou a ser um dia. É claro que, na sua formação, o pequeno povoado atraiu vários
1
Anexo 1
11
moradores de fazendas e pequenas propriedades rurais. Alguns vivem por aqui, falando com o
sotaque que lhe é peculiar e agindo com a inocência que foi perdida há anos na “cidade grande”.
Mas não da forma caipira de ser. Porque caipira que é caipira vive isolado, longe até mesmo das
grandes fazendas. E, exatamente por isso, sofre. Pena para garantir a subsistência em condições
precárias. E ainda é discriminado, chamado de tolo, burro, preguiçoso. Um verdadeiro “Jeca
Tatu”. Talvez por isso, a participação de uma uberlandina de Tupã no Big Brother Brasil, famoso
programa da Rede Globo, tenha mexido tanto com o brio dos uberlandenses”
2
.
Interessante notar que se esta „pequena roça‟, como também denominam alguns de seus
moradores, é constitutiva da história da formação da cidade e é trazida à tona na reportagem
como indicativa de sua “mistura de culturas”, ela logo cederia espaço para novos projetos de
desenvolvimento da cidade. Aquela não era a única “pequena roça” e além dela outras
famílias que utilizam as margens urbanas do rio para morar seriam removidas para a
construção de um Parque Linear, para promoção do “desenvolvimento sustentável” da
cidade.
Dessa forma, os moradores dessas “pequenas roças” e demais moradores somaram-se
aos muitos paradoxos com os quais me deparei ao longo desse tempo e que se constituem por
comparação à minha região de origem nas pequenas cidades e corrutelas do Norte de Minas
Gerais, avaliada como uma das regiões mais pobres do estado, área de expansão da atuação da
SUDENE
3
para além da região Nordeste e por alguns considerada como bolsão de pobreza.
Lá, minha experiência com “pequenas roças” em meio à cidade era comum, mas após a
vinda para Uberlândia é que minha memória estabeleceu um paralelo entre sua existência em
meio a “cidades desenvolvidas” e em cidades consideradas pobres; associação que se
desdobrou em um primeiro questionamento sobre a existência, em Uberlândia, de um
“singular mundo rural” em meio ao urbano, suscitado pela reportagem, por oposição à
profusão de imagens projetadas de cidade desenvolvida.
Esta idéia de “cidade desenvolvida” povoava meus pensamentos desde os momentos
que antecederam a partida de minha família do Norte de Minas Gerais, nos muitos
comentários sobre Uberlândia que ouvia daqueles que ficaram e que ainda repercute por
aquela região. As experiências que vivi em Uberlândia nesses doze anos foram alimentadas
por tais „paradoxos do desenvolvimento‟ e foram eles que me serviram de provocação inicial
para a compreensão do processo de remoção desses moradores às margens urbanas do rio
2
TIBÚRCIO, Luciana. “Uberlândia é uma mistura de culturas”. Jornal Correio de Uberlândia, Uberlândia
04/02/2007. (Uberlandina é uma expressão empregada por um cronista do referido Jornal, Luiz Fernando
Quirino, para designar indivíduos não nascidos em Uberlândia, mas que a adotaram como cidade-mãe, nela
fixando raízes, para nela trabalhar e dela defensora, como um filho “natural” da terra, diferindo dos nascidos na
cidade, chamados de uberlandenses).
3
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste. Entidade de fomento econômico de alternativas de
desenvolvimento para a região nordeste do país.
12
Uberabinha e dos córregos da cidade e sua relação com as políticas públicas de planejamento
urbano.
Se a imagem de “cidade desenvolvida” poderia levar a compreender a experiência
desses moradores a partir de sua singularidade, da particularidade que os tornam um grupo
específico em relação aos demais grupos com os quais se relacionam em meio urbano
desenvolvido, suscitadas pela reportagem, a atenção etnográfica assentou-se nos muitos
elementos que foram surgindo a cada contato, relato, evento ou documento como associados
ao processo de remoção. Ao seguir a trilha da maneira como esses elementos apareciam em
minha busca etnográfica, a busca pela singularidade se esvaiu diante da condição tênue de
permanência desses moradores evidenciada ao longo do tempo da pesquisa, o que explica, por
exemplo, alguns trechos da narrativa no futuro do pretérito, pois trato aqui de um objeto de
análise que se constitui em processo.
Um dos primeiros elementos que me trouxe dúvidas sobre sua permanência naquele
local surgiu quando, em agosto de 2006, assisti a uma audiência pública em Uberlândia para
revisão do Plano Diretor da cidade. Nela, destaque especial foi dado pelo secretário de
Planejamento Urbano e pelo representante da empresa de consultoria contratada para
coordenar os trabalhos do Plano Diretor
4
à construção de um Complexo de Parques Lineares
composto por um conjunto de parques interligados construídos às margens urbanas dos
córregos e do rio Uberabinha, para preservação do meio ambiente e promoção da
sustentabilidade na cidade. Sua fala suscitou um possível vínculo entre o modo como o
discurso da sustentabilidade agora se inseria nas questões urbanas em Uberlândia e sua
relação com a remoção dos moradores daquelas áreas.
Esta era a terceira audiência pública sobre o Plano Diretor, na qual seriam apresentadas
as propostas para o Plano após o primeiro diagnóstico realizado sobre a cidade mediante
aplicação de questionários e reuniões setoriais nos bairros. Na ocasião, quando passada a
palavra ao público presente, um representante do Instituto Cidade Futura mencionou a falta
de participação efetiva da população de Uberlândia na constituição do Plano Diretor, tal como
prevê o Estatuto das Cidades, questionando “que modelo de cidade queríamos e qual estava
sendo proposto”. Um panfleto foi distribuído pelo Instituto, intitulado “Olho Vivo no Plano
Diretor” tendo em sua principal chamada “Por uma cidade sustentável que ofereça igualdade
4
TESE Tecnologia em Sistemas Espaciais, empresa estabelecida na cidade de Curitiba-PR, desenvolve Planos e
Projetos em Ambientes de Geotecnologias e de Sistemas de Informações Geográficas para as áreas Pública e
Privada, atuando, além da criação de Planos Diretores e Projetos Urbanos e de Arquitetura, na capacitação e
treinamento em Geotecnologias, criação de Sistemas de Informações Geográficas, Planos de Gestão Ambiental,
bem como elaboração de Projetos de Captação de Recursos.
13
de oportunidade para todos”
5
, indicando interpretações relativamente diferentes daquelas
apresentadas pelo gestor público e pelo representante da empresa de consultoria. Mas, apesar
de ler o panfleto logo após a audiência, não ficou claro o teor das divergências expressas nas
falas e no panfleto.
A apresentação das propostas foi dividida de acordo com os capítulos previstos no
Plano Diretor e destaque especial foi dado à temática do meio ambiente. O Parque Linear
seria construído no mesmo local onde avistei aquelas “pequenas roças”, sem a apresentação
do Projeto e a menção aos moradores que residem na área, abrindo-me a questão sobre o lugar
desses moradores no Projeto.
Em uma das visitas realizadas à Secretaria de Planejamento Urbano e Meio Ambiente
no ano de 2007 para consultar o projeto, perguntei ao então assessor de Meio Ambiente sobre
o destino das famílias residentes no local de sua implantação. Segundo o assessor, as famílias
seriam indenizadas e boa parte das casas à margem direita estavam desapropriadas,
aguardando a saída dos moradores, sendo que à margem esquerda havia „uma certa resistência
dos moradores em vender suas casas‟. “As negociações”, segundo ele, “estavam sendo feitas
na própria secretaria, outras no Ministério Público”.
Nessa ocasião tive acesso apenas aos mapas do projeto e, dadas as dificuldades
vislumbradas na primeira visita para ter acesso à documentação do mesmo, resolvi não dar
seguimento aos questionamentos sobre o porquê da diferenciação nas negociações e da
entrada desse novo ator nelas. Parti, então para o Ministério Público. Inquéritos Civis haviam
sido abertos pela Promotoria de Meio Ambiente, Urbanismo e Habitação contra vários
moradores, através dos quais foram intimados a desocupar a área mediante a Lei de Crimes
Ambientais por residirem em Área de Preservação Permanente (APP), conforme previsto na
Lei 4771/65 - Código Florestal. Dada a extensão da área do projeto ao longo do rio, as
dificuldades dela decorrentes para a localização e identificação das pessoas a serem
removidas, busquei entrar em contato com os moradores intimados no Inquérito.
Nas conversas que tive com eles, especialmente com dois que viveram em épocas
distintas na área - Sr. Luís que construiu seu barraco em 1976 e Sra. Fatinha que “comprou o
direito” em 1991- alguns temas pareceram importantes para entender suas vidas naquele
local
6
. Procurando levantar suas histórias de vida naquele lugar, esses temas apareceram
recorrentemente associados às classificações que deles eram feitas pelos atores que buscavam
5
Olho Vivo no Plano Diretor. Boletim Informativo da ONG Cidade Futura. Edição Especial. Ago/2006.
6
Ao longo desta dissertação os nomes dos moradores foram preservados, por sua solicitação, dado que o
processo de investigação do Inquérito Civil encontrava-se em andamento.
14
por sua remoção da área. Quando perguntados se achavam que deveriam sair daquele lugar, a
afirmação do direito à indenização - seja pelo tempo de moradia no local, seja por terem
“comprado o direito” de um outro morador para morar naquela casa ou barraco, ou pelo
investimento de uma vida feito ali - era remetida à classificação de invasor que agora aparecia
com a intimação pelo Ministério Público que, segundo eles, retirava-lhes o direito à
indenização. Se, por volta da década de 1970 eram favelados, agora eram tidos como
invasores.
Ao longo do período entre a audiência pública do Plano Diretor e as visitas aos
moradores, tive contato com alguns professores dos cursos de História e Geografia da
Universidade Federal de Uberlândia que me informaram da existência de moradores às
margens do rio Uberabinha desde a década de 1970, tal como mencionado pelos próprios
moradores
7
. Segundo eles, remoções fazem parte da história do lugar e planos de urbanização
que incluíam as margens urbanas do rio Uberabinha e dos principais córregos da cidade foram
realizados desde a década de 1950, tendo sido objeto de estudo em algumas teses e
dissertações sobre a cidade.
Os elementos que até então se colocaram nesse primeiro acercamento ao tema pareciam
se ligar a uma trama cujo fio ainda não me era conhecido. Indagações daí decorrentes
pontilhavam minhas reflexões em busca da compreensão da realidade com a qual me
deparava. Tratava-se de um mesmo território disputado como local de moradia pelos
moradores e como objeto de projetos de desenvolvimento pelo poder público. As
classificações decorrentes desta disputa indicavam que os modos e meios, bem como os
argumentos do poder público local para as remoções apareciam contextualmente
diferenciados nos relatos dos moradores e professores. Qual era, então, a importância desses
contextos na mudança identificada nas classificações dos moradores e nos modos e meios
para sua remoção? Quais as razões que impulsionavam a implantação desses planos e projetos
urbanos por parte do poder público local? Em quê residia a importância desses planos e
projetos para a reivindicação da área pelo poder público?
Tomando como ponto de partida os depoimentos dos moradores, busquei ler as teses e
dissertações indicadas pelos professores bem como outras identificadas na pesquisa
bibliográfica sobre trabalhos que tinham como tema a cidade de Uberlândia, para alcançar
7
Agradeço à Profa. Vera Salazar Pessôa, professora aposentada do curso de Geografia da Universidade Federal
de Uberlândia, que conheci num curso de especialização em Educação Ambiental na Faculdade Católica de
Uberlândia. Devo-lhe a indicação do trabalho da Profa. Maria Clara Tomaz Machado, do curso de História da
Universidade Federal de Uberlândia, que gentilmente me recebeu em sua sala, oferecendo algumas pistas sobre a
temática e a indicação de outros trabalhos que pudessem me auxiliar na compreensão da história da cidade de
Uberlândia.
15
elementos que pudessem me auxiliar a responder a essas indagações. Estes trabalhos nos
propõem que a par da multiplicidade de agentes que constituem diferentes territórios no
interior da cidade de Uberlândia, uma elite se formou ao longo de sua história buscando
constituí-la como uma história singular, mobilizando uma ideologia do progresso e do
desenvolvimento como um elemento característico e particular à cidade para atrair recursos e
empreendimentos. Nesse processo, a organização do espaço urbano teve importância
significativa através de iniciativas particulares do mercado imobiliário e das ações do poder
público local, constituído em sua maioria por integrantes dessas elites.
A trama de elementos históricos, políticos, econômicos e sociais levantada com a
leitura destes trabalhos, e esboçada no primeiro capítulo, tornou-se objeto de atenção durante
todo o período da pesquisa. O diálogo constante com ela auxiliava a fazer sentido o processo
de remoção daqueles moradores mediante planos e projetos para o desenvolvimento da cidade
e possibilitava acercar-me dos contextos em que ocorreram a mudança nas classificações dos
moradores e sua remoção.
Nestas fontes, oriundas do campo da História, Geografia e Arquitetura, a cidade
aparece ora como cenário de forças de mercado que controlam seu crescimento e ordenação
do espaço urbano, ora como cenário de mecanismos de controle social. É vista também a
partir da materialização de um imaginário social e político ou sob o prisma das vivências, das
relações estabelecidas pelos diferentes sujeitos sociais. Restava definir de que modo a teoria
antropológica que me servia de âncora textual, cognitiva e psíquica possibilitaria articular um
melhor ângulo para construção dos dados que surgiram em campo (Peirano, 2001; 2006).
2. Mobilizando a ideologia do desenvolvimento
Mais do que reconhecer a heterogeneidade do social e uma multiplicidade de
representações do urbano em face de uma ideologia do desenvolvimento que se revela
distante da “realidade” interessava-me entender a mobilização dessa ideologia pelo poder
público local para reivindicar essas áreas em face daqueles que as tomam como fonte de
moradia. Assim, a noção de espaço urbano ampliou-se para territórios que se constituem
enquanto cosmografias (Little, 1996), no sentido de que as ações do poder público local em
relação à área estudada e as posições dos moradores revelam visões de mundo (ideologias)
inscritas em um lugar específico.
16
A noção de “mobilização de uma ideologia” não se confunde com idéias levadas
adiante pelas elites ou classes dominantes na defesa de sua dominação, baseada
exclusivamente numa racionalização da conduta orientada pelo interesse. Parto do princípio
peirceano de que as razões para agir são sustentadas por crenças que se expressam por meio
de signos através uma consciência (mediata e imediata) que se posiciona em relação a outra
em face de um objeto, portanto, por meio da ação social. Crenças, no entanto, jamais estáticas
em razão das dúvidas surgidas da tensão entre nossas crenças e as crenças alheias face a um
mesmo objeto (Peirce, 1955). Na acepção peirceana,
“Um signo, ou representâmen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo
para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente,
ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do
primeiro signo” (Peirce, 2008:46)
8
.
Tomo a ideologia do desenvolvimento como constitutiva da história do Ocidente
(Nisbet, 1985), com origem num contexto histórico e social específico, propagando-se
mundialmente enquanto discurso global (Ribeiro, 2007). No entanto, na mesma medida em
que adquire feições particulares em contextos específicos porque acionada pelos sujeitos
sociais em suas ações, podendo ser mesmo negada em razão das crenças particulares desses
sujeitos, apresenta-se contemporaneamente em tensão sobre seu significado: se econômico,
social, sustentável, auto-sustentável, etnodesenvolvimento e demais qualificações
contemporâneas.
Inspiro-me, também, na noção de ideologia de Wolf (1999), no sentido de que ela
existe porque tem conteúdo, trata de algo, tem funções e faz algo pelas pessoas através de
pessoas reais, concretas. Estas pessoas, por sua vez, ocupam posições diferenciais nas
diferentes configurações sociais, desempenhando um papel na aproximação das demais
pessoas envolvidas ou dividindo-as. A eficácia da mobilização das ideologias tem relação
com as dimensões semânticas e pragmáticas da linguagem que, como propõem Austin (1962),
8
Os signos, segundo Peirce, apresentam-se em contexto sob três formas. Tomo a liberdade de trazer a definição
que Peirano (2006:146) nos apresenta por ser geral e bastante representativa das construções elaboradas por
Peirce (1955): Ícones são signos que representam um objeto por similaridade ou identidade parcial, imagens
que estimulam mentalmente sua idéia [...]. Índices são signos que se referem a seu objeto não tanto por
similaridade ou analogia, mas em razão da conexão dinâmica, da contigüidade entre o objeto individual e os
sentidos ou memória de quem ou do que ele é signo[...]. Símbolo refere-se ao modo universal, convencional,
neutro e independente de contexto imediato que é caracterizado pela generalidade, pela lei, pelo pensamento
abstrato. [...] signos combinam os três componentes, isto é, em todos os signos um liame de ícone, índice e
símbolo um domina, determina ou é enfatizado, porém os demais estão presentes. [...] estão englobados na
tríade acima dimensões semânticas e pragmáticas simultâneas”.
17
é tomada como forma de ação, atuação sobre o real e, portanto, como forma de constituição
deste, e não apenas como correspondência direta com a realidade.
Wolf (1999), no entanto, inspirado em Pierre Bourdieu, aponta a posição social do
sujeito como um dos elementos importantes na eficácia da mobilização de certos
interpretantes (Peirce, 1955), distanciando-se relativamente de uma visão que, segundo o
autor, subjaz às análises de Austin, de que o poder da fala performativa deriva da linguagem
em si. A relação triádica que compõe o signo entre fundamento, objeto e interpretante
proposta por Peirce é tomada por Wolf (1999) como meio de captar a forma como a mente ou
pensamento apreende a realidade, tomando a linguagem como mecanismo de referência
dinâmica e múltipla. Isto porque o terceiro elemento retomado por Peirce da filosofia da
linguagem, o interpretante (face a um objeto) é o elemento chave para esse trânsito entre
pensamento e contexto social. Walter-Bense (2000), em sua análise da referência ao
interpretante do signo em Peirce nos esclarece:
“Cada signo, como relação triádica, é um signo completo quando um meio designa um
objeto para alguém ou dito de outro modo quando alguém emprega um meio para a
designação de um objeto. Esse „alguém‟ é também denominado intérprete do signo.
Contudo na aplicação ou interpretação de um signo não se deve apenas pensar numa
pessoa para a qual ou a partir da qual um signo é formado, mas também que um signo é,
em geral, „interpretável‟, isto é, que tem um significado. Este o é fornecido junto à
referência ao meio ou ao objeto, mas requer um terceiro elemento, o que vale, em geral,
dizer „aquilo que interpretar‟, ou o „interpretante‟ do signo, isto é, a conexão sígnica na
qual o intérprete compreende o signo. [...] o interpretante é „um signo que interpreta‟ ou
uma „consciência que interpreta‟, sendo que aqui aconsciência‟ não deve restringir-se ao
ato de pensar, mas incluir, segundo Peirce, também a sensação e a experiência. Todos os
interpretantes juntos formam um „campo interpretante‟ ou um „campo de significação‟, isto
é, cada tipo de interpretação se baseia em interpretações já existentes, as quais fornecem o
fundo para interpretações especiais [...] o campo interpretante não é apenas uma conexão
de vinculações. A ele pertencem também sensações e ações com base em signos, além do
pensamento, o qual se expressa em signo. (Walter-Bense, 2000:23-28 grifos da autora).
O contexto de fala, dessa forma, pode fornecer um quadro de quem está usando ou
manipulando as formas culturais e lingüísticas, em relação com quem e em quê
circunstâncias. Os processos comunicativos no interior dos quais a ideologias são mobilizadas
na constituição de cosmografias urbanas aqui estudadas são, então, reveladores de repertórios
simbólicos partilhados socialmente, mas não homogeneamente, e como modos de agir no
mundo. Eles tornaram-se ponto de partida importante para análise do fenômeno com o qual
me deparava. Restava definir, de que modo abarcá-los.
18
3. Em campo. Qual campo?
Favela, remoções para beneficiamento do local, planos e projetos urbanos, meio
ambiente, invasor, pareciam ser noções que se entrecruzavam num deslocamento semântico
subjacente aos novos modos e meios para as remoções dos moradores e novas concepções
sobre o espaço urbano. Um deslocamento que, no entanto, como se verá mais adiante, não
está restrito ao âmbito local, mas situado no plano de conformação de novas cosmopolíticas
internamente ao sistema mundial
9
. Mas como nos alerta Peirano (2006:32), dados derivam e
partem de eventos empíricos, se se pretende tratar da ação social. sempre um
acontecimento, seja um evento, estória, relato, que detém certo privilégio do momento
etnográfico decisivo (ibid, 2001:37). Os eventos e relatos que me levaram à percepção da
mudança de favelados a invasores, de planos para o desenvolvimento econômico a planos e
projetos para desenvolvimento sustentável, levaram à questão sobre como, então, dar conta
desse processo?
A análise situa-se em três momentos diferenciados em torno dos quais busquei captar
a mudança. Num primeiro momento, inspirada pelos relatos dos moradores, pela leitura das
teses e dissertações mencionadas e pela existência de um Inventário Temático que resultou
dessas teses, disponível no Centro de Documentação Histórica da Universidade Federal de
Uberlândia
10
, busquei consultar algumas de suas fontes. Nesse sentido, busquei as Atas e
Processos do Legislativo Municipal e a documentação do Inventário na tentativa de
compreender o contexto de enunciação das falas dos atores mencionadas em tais trabalhos,
especialmente aqueles que tratavam de um Plano de Urbanização da década de 1950 que
referenciou obras na cidade até por volta da década de 1980 que implicavam na remoção dos
moradores.
Num segundo momento, tomei como fonte as discussões sobre o Plano Diretor de
1994 registradas nas Atas do Poder Legislativo; os registros áudio-visuais que compuseram o
memorial do Projeto de Lei do Plano Diretor, tanto das Reuniões Setoriais realizadas nos
bairros quanto das Audiências Públicas realizadas no Auditório da Câmara Municipal
11
,
9
Ribeiro (2007:14) assim define cosmopolítica: “cosmopolitics are global discourses that are aware of their
political nature. Cosmopolitics are discursive matrices intrinsically related to political interpretations and actions
of global reach”.
10
Ver (Machado & Lopes, 2008).
11
Dadas as dificuldades de acesso a esse material diretamente na Câmara Municipal, de acordo com a Secretária
da Presidência da Câmara em razão de problemas técnicos no aparelho de reprodução áudio-visual, tive acesso a
parte do mesmo através da empresa que realizou as filmagens, Cinecom Filmes, contactada durante a realização
19
ambas para a revisão do Plano Diretor de 2006 que inclui o Projeto Parque Linear do Rio
Uberabinha e demais parques nos córregos da cidade, que implicou em novas remoções dos
moradores às suas margens; meus próprios registros das audiências de que participei; registro
áudio-visual da sessão da Câmara Municipal sobre a votação do Projeto de Lei do Plano
Diretor, somado à documentação relativa à representação contrária à condução da revisão do
Plano Diretor, apresentada pelo Instituto Cidade Futura ao Ministério Público Estadual. Além
desse material, um Inquérito Civil Público contra o Município instaurado para averiguar
riscos a moradores ribeirinhos; intervenção em área de preservação permanente” que
resultou na remoção desses moradores também foi fonte de análise, além de entrevistas com
representantes da Prefeitura e do Instituto Cidade Futura.
Buscava nessas fontes os atos comunicativos referentes aos planos e projetos que
incluíam as margens urbanas dos córregos e do rio Uberabinha, tomando como âncora
cognitiva a teoria da linguagem em seu contexto de enunciação, tal como proposto por Wolf
(1999) e Peirano (2001, 2003, 2006). Minha intenção era buscar nestes atos comunicativos as
visões de mundo que referenciavam a reivindicação pelo poder público local dessas áreas e de
que modo elas se relacionavam com a classificação de seus moradores face a seus projetos.
Com referência ao primeiro momento da pesquisa, a consulta iniciou-se no período
referente ao fim do Estado Novo. É nesse contexto que a idéia de planejamento para a
resolução dos problemas urbanos e veiculação do desenvolvimento econômico surge e se
afirma na cidade de Uberlândia. Uma questão, no entanto, se abriu aqui. Abordar os atos
comunicativos a partir da teoria da linguagem em seu contexto de enunciação implica em
simultaneamente abordar o vivido. Como, então, fazê-lo por meio de registro de atos passados
e não vivenciados por mim, registrados em documentos como Atas e Processos do
Legislativo?
A pesquisa documental realizada partiu de uma postura adotada nos trabalhos de
campo realizados no Arquivo Público Municipal. Mais do que uma visita para consulta aos
documentos, a atenção dirigiu-se também à observação da forma de atendimento, da
orientação às consultas, breve observação das relações entre os funcionários, do
comportamento destes em relação ao público e do tratamento dado aos documentos,
fornecendo pistas para a análise.
das audiências. O restante do material tive acesso através da documentação apensada ao Inquérito Civil n°.
MPMG 0 0702.09.001218-9, instaurado pelo Ministério Público de Minas Gerais, a partir do Expediente
013/2006, em decorrência da Representação apresentada pelo Instituto Cidade Futura.
20
Em minha primeira visita ao Arquivo expus aos funcionários que pretendia consultar
os documentos da Câmara que diziam respeito às votações dos projetos urbanos. Se
inicialmente me dirigi ao Arquivo para consultar as Atas e jornais, com esta exposição mais
ampla de meu interesse tinha a intenção de identificar quais os documentos possíveis a
respeito dos projetos haveria ali. Logo me chamou atenção a forma como as consultas aos
documentos eram orientadas e como a organização/catalogação destes os expunham.
A primeira indicação foi a consulta ao catálogo de Processos onde estes estão
organizados em sequência numérica crescente, organizada a partir dos números dos Processos
e suas datas, compondo uma sequência temporal que se inicia com o processo número 01, de
13.12.1947, referente ao Regimento Interno da Câmara que regulamenta os atos do
legislativo
12
. Os Processos são compostos por um conjunto de documentos organizados em
sua maioria por ordem de data, numa sequência temporal que, reproduz os atos de sua
discussão e votação na Câmara
13
. Em um panfleto disponível na recepção do Arquivo Público
tem se que:
“O Arquivo Público de Uberlândia ArPU, implantado em 1988 encontra-se vinculado à Secretaria
Municipal de Cultura Divisão de Memória e Patrimônio Histórico. Preserva a documentação
pública, produzida pelo legislativo e executivo municipal, atualmente tendo como instrumento a
tabela de Temporalidade publicada em 03.02.2009 através do Decreto nº. 11.539. [...]. É um acervo
que constitui fonte inestimável de informações para o estudo da memória, história da cidade e
também como prova para proteção dos direitos do cidadão” (Folder - Arquivo Público de
Uberlândia).
Na definição institucional daquilo que é seu objeto, exposta no respectivo folder,
apoiando-se no historiador Marc Bloch, propõe: “O passado é, por definição, um dado que
nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que
incessantemente se transforma e aperfeiçoa”. Mas enquanto sujeito que “guarda” o passado,
de modo não aleatório, o próprio Arquivo Público transforma fatos em dados na forma que os
compõem e dispõem ao público. Pretendendo “preservar os fatos” relativos aos atos
administrativos como prova documental destes, o Arquivo Público fornece a possibilidade de
os diferentes governos que compõem a administração local relatarem a realidade dos fatos
12
Como registro de um ato inaugural que restabelece a instituição, o Regimento Interno da Câmara Municipal de
Uberlândia referente ao período em que se inicia a análise proposta no capítulo dois, foi formulado no fim do
Estado Novo, em dezembro de 1947, restituindo a instituição que, como as demais no país, haviam sido extintas
durante a ditadura Vargas. Após parecer das Comissões e discussão na Câmara, foi aprovado em 13/11/1954.
13
1) Projeto de Lei, Resolução, Indicação ou Requerimento, acompanhado de justificativa; 2) Projeto de Lei,
Resolução, Indicação, Requerimento, carimbado e datado com os dizeres Considerado objeto de deliberação.
Instaurar processo, assinado pelo Presidente e Secretário, bem como carimbado, datado e assinado por cada uma
das Comissões; 3) Pareceres das Comissões; 4) Proposição de Lei, Resolução, Indicação, Requerimento,
assinado pelos componentes da Mesa Diretora (Presidente, Vice-Presidente, 1º Secretário e Secretário) com
carimbo datado denominado Autógrafo de Lei, assinado pelo Presidente da Câmara, indicando sua Sanção. No
caso de Leis ou Resoluções, designando seu referido número.
21
apoiados numa função referencial da linguagem (Jakobson, s/d), na qual a sequência linear
dos fatos confere-lhes realidade. Como nos lembra Santos (2001):
“quando um evento se transforma em fato, por meio de um relato autorizado,
imediatamente coloca à disposição dos atores um conjunto preliminar de instruções que
fornece a orientação correta das leituras de eventos futuros ou passados, utilizados, por
sua vez, para reforçar o próprio relato. É também essa circularidade que poder-se-ia
sugerir, voltando a Crapanzano a ideologia de uma linguagem referencial mascara e
esconde” (Smith apud Santos, 2001:51).
No entanto, ainda não estava respondida a pergunta sobre como analisá-los. Processos
constituem-se de um conjunto de documentos que podem ou não serem levados à deliberação
da Câmara para execução dos atos neles solicitados ou propostos, a depender da interpretação
favorável do Presidente da Câmara para sua distribuição na Ordem do dia seguinte e da
votação favorável à deliberação pelo Plenário da Câmara. Neles incluem-se Indicações e
Requerimentos que podem ser apresentados por cidadãos comuns ou vereadores indicando ou
solicitando, dentre outras coisas, obras ou demais serviços que julgarem necessários para o
lugar onde moram ou a cidade como um todo, podendo ser acompanhados de justificativas.
Projetos de Lei ou Resoluções, que compõem a maioria dos Processos consultados, em
geral são apresentados por vereadores, mas também podem ser apresentados por cidadãos
comuns, desde que obedeçam a certos critérios lingüísticos formais
14
. Os Projetos de Lei ou
Resoluções podem ser oriundos de Requerimentos ou Indicações, ou podem ser apresentados
diretamente pelo Prefeito, pelas Comissões Permanentes ou por um vereador à Mesa da
Câmara, composta pelo Presidente, Vice-presidente e Secretário. Por vezes, alguns dos
Processos consultados são compostos por estudos relacionados ao Processo, com vistas a
validar ou invalidar seus objetivos. Reportagens de jornais da cidade também são encontrados
como parte da documentação dos Processos, informando o contexto ao qual se refere a
matéria atinente ao Processo ou mesmo publicações a seu respeito aprovando-o ou criticando.
Se o Requerimento, Indicação ou Projeto de Lei são considerados objeto de
deliberação, é instaurado o Processo para o estudo das Comissões relacionadas ao assunto de
que tratam. Elas poderão propor emendas, aprová-los da forma como estão, ou rejeitá-los.
Após os pareceres das Comissões e apresentados no Expediente do dia, os Processos são
postos na Ordem do dia para votação. Não havendo discussão, o projeto é considerado
aprovado. O termo Ordem do Dia denomina parte dos atos da Câmara em que são discutidos
14
À época da reconstituição da Câmara Municipal de Uberlândia com o fim do Estado Novo, os projetos de lei
podiam ser apresentados apenas pelo Prefeito, vereador ou Comissão da Câmara, conforme Regimento Interno
da Câmara Municipal de Uberlândia aprovado em 13/11/1954.
22
e votados Requerimentos, Indicações e Processos, inserida na totalidade dos atos ordinários e
extra-ordinários da Câmara, denominada Ordem dos trabalhos
15
. Um grande facilitador da
apreensão desse movimento dos atos estava na própria disposição e catalogação dos
documentos, sendo de desconhecimento dos funcionários que atendem diretamente ao público
no Arquivo.
No período pesquisado, as Atas das sessões das reuniões ordinárias e extra-ordinárias
também são organizadas em ordem temporal e catalogadas como Processo. Cada reunião
ordinária e todas as sessões que lhes compõem é arquivada em uma pasta por reunião e uma
para cada reunião extra-ordinária, e inserida na mesma sequência catalográfica dos Processos.
As Atas da Câmara, por sua vez, são escritas por um(a) escrivã(o), em uma estrutura
que reproduz a sequência da Ordem dos trabalhos. Assim registradas e disponibilizadas no
Arquivo Público juntamente com os Processos, Atas e Processos agem como índices (Peirce,
1955) que, por uma conexão dinâmica entre o registro e os atos nas reuniões, por uma
contigüidade entre o registro e o contexto, certificam sua referencialidade e, portanto,
autenticidade
16
.
No interior da estrutura dos atos ordinários da Câmara, eventos podem ocorrer, às
vezes esperados, outras vezes imponderáveis, por vezes surpreendentes. Estes estão mais
propensos a ocorrer nos pedidos da palavra e nos denominados apartes pelos vereadores, que
podem demonstrar consenso ou conflito em torno das matérias em questão
17
. Podem ser
utilizados para interromper a Ordem dos Trabalhos, dependendo da adequação dos
argumentos à regulamentação no Regimento, cuja aprovação pelo Presidente envolve disputas
em torno do tempo concedido e das temáticas.
Diferentemente dos rituais, eventos, segundo Peirano (2001) são, por princípio, mais
vulneráveis ao acaso e ao imponderável, às vezes esperados, críticos, mas não menos
tangíveis ou desprovidos de estrutura. Sendo ambos, rituais e eventos, sistemas culturais de
15
1) Abertura da sessão e registro dos vereadores presentes; 2) Leitura, discussão e votação da ata da sessão
anterior; 3) Leitura do expediente: correspondências recebidas e expedidas; despacho do expediente: votação de
requerimentos, indicações e Projetos de Lei e encaminhamentos às Comissões; 4) Expediente: apresentação dos
pareceres das Comissões, de despachos das sessões anteriores; 5) Ordem do Dia: discussão e votação das
matérias dadas para a Ordem do Dia: requerimentos e Projetos de lei.
16
Em trabalho final de um curso ministrado por Mariza Peirano no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional, em 1993, Boixadós (1994) analisa fundações de cidades na Argentina,
em fins do século XVI como rituais. Sua fonte de dados são os Testemonios e Actas de Fundación, redigidos
pelo escrivão no contexto da fundação. Para a autora, com o objetivo de registrar a ação realizada, a Acta é parte
essencial da própria ação de fundar a cidade, certificando sua autenticidade.
17
Evidentemente, a concessão dos apartes passa pela interpretação do Presidente da Câmara a respeito das
adequações nos casos previstos no regimento, pela eficácia das argumentações dos vereadores para pedidos de
aparte e de suas negociações a partir do Regimento Interno que os regulamenta, bem como pelos vínculos e
interesses políticos entre os vereadores envolvidos na matéria em questão, inclusive o Presidente da Casa.
23
comunicação simbólica, tomo esses eventos gerados pelos apartes como “eventos
comunicativos” (Daniel, 1996: 73) no interior da estrutura registrada em Ata.
Evidentemente muitos outros elementos relacionados aos atos comunicativos que
compõem tais eventos não são descritos nas atas, tais como atitude moral, psicológica e
corporal do atores envolvidos, organização do espaço e distribuição das pessoas nele, os
acordos e estratégias elaboradas nos bastidores da Tribuna, as disputas e negociações em
torno do Regimento Interno relacionadas ao tempo de fala concedido pelo Presidente e ao
andamento das questões. A presença destes pôde ser percebida quando assisti a algumas
reuniões da Câmara para complementar minha compreensão da dinâmica das reuniões
registrada nas Atas pesquisadas. Levando em conta as atribuições do Arquivo Público
Municipal, a forma como os documentos estão organizados e dispostos e a „intocabilidade‟ de
sua ordem por parte dos funcionários do Arquivo e seus visitantes, tomei-os como registro
comunicativo de um passado que se quer referencial, como realidade. Os eventos
comunicativos em torno do Plano de Urbanização presentes nesses registros foram, dessa
forma, fonte importante para apreensão da reivindicação das áreas aqui estudadas.
No entanto, como nos propõe Peirano (2001) apoiada nos teóricos e filósofos da
linguagem como Peirce (1955), Jakobson (s/d) e Austin (1962), a linguagem extrapola a
função referencial, seus usos e funções derivam do contexto da situação e decorrem de
propriedades intrínsecas à linguagem. De acordo com Peirano (ibid), eventos, tal como rituais,
ampliam e focalizam, põem em relevo o que é usual em uma sociedade e focalizá-los é tratar
da ação social no contexto da situação. Assim, optei por seguir a pista dos eventos
comunicativos relacionados às disputas por estes territórios que identifiquei e registrei ao
longo da pesquisa. A abordagem dos eventos e rituais como estratégia analítica, proposta por
Peirano (2001), permitiu-me, dessa forma, um recorte empírico dos atos comunicativos em
que a ideologia é mobilizada pelos atores sociais, de acordo com o que propõe Wolf (1999),
para entender como a mobilização da ideologia do desenvolvimento através dos planos
urbanos, constantes nos Processos e Atas consultados, constituem espaços urbanos enquanto
cosmografias (Little, 1996) urbanas.
Dos relatos dos moradores colhidos nas visitas que realizei às suas casas ao Inquérito
Civil instaurado pela Promotoria, passando pelos Atos e Processos da Câmara, as audiências
públicas sobre o Plano Diretor e os documentos a ele relacionados, os dados que me
permitiram compreender a relação entre o processo de remoção dos moradores e os planos
24
urbanos apareceram-me como signos (Peirce, 1955) que compunham um fio condutor a partir
das categorias nativas em sua estreita relação com processos mais amplos
18
.
Considerando que a abordagem analítico-descritiva proposta depende
simultaneamente dos dados coletados em campo e da integração descritiva realizada para dar
conta dos vínculos do fenômeno estudado com os processos relativos à integração do sistema
mundial percebidos em campo, a abordagem teórica situa-se, nesta introdução, assinalando o
modo de olhar esses vínculos.
No primeiro capítulo procuro levar o leitor à produção da ideologia do
desenvolvimento, sem pretender esgotá-la, abordando aspectos estruturais e históricos com os
quais ela está relacionada, sua relação com planejamento urbano e como é posta em operação
na constituição das cosmografias urbanas. Com essa primeira parte do primeiro capítulo
procuro compor elementos que permitam auxiliar a compreensão, numa segunda parte, do
processo de constituição da cidade de Uberlândia enquanto núcleo urbano. Na segunda parte
do capítulo busquei não apenas uma reconstituição da história da região e da cidade como
modo de situar o leitor sobre as questões que aqui pretendo analisar, mas também evidenciar a
estreita relação desse processo com a mobilização da ideologia do progresso e do
desenvolvimento na constituição das cosmografias urbanas, no qual a circulação e
transformação de signos a elas associados tem papel especial.
Num segundo capítulo, abordo uma análise documental das Atas da Câmara e Jornais
da cidade, realizada no Arquivo Público Municipal de Uberlândia, e no Centro de
Documentação e Pesquisa em História da Universidade Federal de Uberlândia, entre o fim do
Estado Novo e meados da década de 1980. Procuro apresentar possíveis vínculos entre o
Plano de Urbanização elaborado neste período e a constituição de uma cosmografia urbano-
desenvolvimentista na cidade de Uberlândia a partir da concepção de cidadania identificada
localmente, suas derivações contextuais a partir de sua inserção na configuração social,
política e cultural da época. Interessa-me especialmente as idéias de interesse público e
18
O leitor perceberá que os posicionamentos dos moradores aparecem aqui, por via direta, através de trechos
seus relatos colhidos por mim em que as classificações que deles eram feitas pelo poder público aparecem,
apresentados entrecortados no texto ou, indiretamente, por via das disputas por seus territórios de moradia pelo
poder público, captadas nos jornais ou atas pesquisadas. Diante do material de que dispunha, procurei me
concentrar, neste momento da análise, nos eventos que colocavam em relevo as classificações contextuais dos
moradores por parte do poder público local, sua relação com os planos e projetos urbanos que envolve(ia)m os
territórios em questão e sua estreita relação com a mobilização da ideologia do desenvolvimento por parte do
poder público. Ao concentrar-me nesta análise centrei-me na constituição das cosmografias urbanas por parte do
poder público local, deixando para uma oportunidade futura a consideração das cosmografias dos próprios
moradores.
25
coletividade na definição do Plano de Urbanização e suas relações com as classificações das
pessoas que habitam os territórios para os quais o Plano é destinado.
No terceiro e último capítulo trato das mudanças na concepção de planejamento
urbano a partir da década de 1990 decorrentes dos acordos internacionais e das lutas do
Movimento Nacional pela Reforma Urbana que tomam a cidade como um dos lócus
destinados a viabilizar a mudança sócio-ambiental a partir da idéia de cidade sustentável.
Procuro situar como os signos decorrentes dessas mudanças circulam nacionalmente a partir
do Estatuto das Cidades e localmente a partir dos Planos Diretores da cidade de Uberlândia
elaborados em 1994 e 2006. Trato ainda de como projetos urbanos de cunho ambiental
decorrentes desses Planos implicam em uma nova cosmografia urbana da qual decorrem
outras classificações dos sujeitos que habitam os territórios onde serão implantados os
projetos.
4. Das margens do rio às Cidades Sustentáveis: integrações empírico-descritivas
As margens do rio Uberabinha e de córregos que cruzam a cidade de Uberlândia foram
historicamente utilizadas como fonte de moradia e renda, especialmente a partir da década
1970, um dos períodos de maior crescimento demográfico da cidade
19
em meio aos projetos
nacionais de desenvolvimento e descentralização da produção industrial. Nesse contexto,
essas áreas foram ocupadas principalmente por migrantes que não obtiveram trabalho e renda
suficientes para lhes fornecer outras condições de moradia ou mesmo por migrantes que, em
suas cidades de origem, tinham nas atividades próprias da zona rural sua principal fonte de
trabalho. Alguns deles constituíram, às margens do rio, suas “pequenas roças” onde cria(va)m
gado, galinhas, porcos e produze(ia)m hortaliças etc. Para D. Fatinha e outr(a)os moradore(a)s
como Cláudia e D. Sebastiana, vivem “como se fosse uma roça, com uma certa distância das
outras casa, com sossego e silêncio, apenas com o barulho das água do rio”.
Em meio ao rápido crescimento demográfico da cidade nesse período e à expansão da
produção industrial, planos de ordenamento do espaço urbano eram implantados tomando por
base um Plano de Urbanização elaborado em 1954, incluindo uma intervenção nas margens
do rio Uberabinha e alguns córregos da cidade. À década de 1970, várias foram as tentativas
19
Sobre a Evolução Populacional de Uberlândia, ver Anexo 2.
26
violentas da prefeitura local de remoção dos moradores às margens do rio e córregos para
implantação de obras previstas nesse plano, utilizando-se de tratores para remover à força as
famílias que ali habitavam.
As margens dos rios e córregos no país constituíram-se, a partir de 1965, como Áreas
de Preservação Permanente (APP), pela Lei Federal 4771/65 - Código Florestal. Esta foi
regulamentada pelas Resoluções 302/2002, 303/2002 e 369/2006 do Conselho Nacional de
Meio Ambiente (CONAMA), adotando novas definições com alterações significativas,
principalmente em relação às dimensões das áreas de APP. Tais alterações consideram as
responsabilidades assumidas pelo Brasil por força da Convenção da Biodiversidade, de 1992,
da Convenção Ramsar, de 1971 e da Convenção de Washington, de 1940, bem como os
compromissos derivados da Declaração do Rio de Janeiro, de 1992” (Brasil, 2002)
20
.
Trata-se de áreas cobertas ou não por vegetação nativa, que têm como função
ambiental, nos termos da referida lei, preservar os recursos hídricos, a paisagem, a
estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e
assegurar o bem estar das populações humanas. Como exemplo de APP estão as florestas e
demais formas de vegetação natural situadas ao longo dos rios e córregos, com suas
dimensões que variam de 30 a 500 metros, de acordo com a largura dos cursos d‟água, ao
redor de lagos e lagoas, áreas de nascentes, encostas com mais de 45 graus de declividade,
manguezais e matas ciliares (Brasil, 1965)
21
. No caso das áreas urbanas, a Lei Federal
7.803/89 regulamenta o Código Florestal para estas áreas, definindo estas dimensões de
acordo com o disposto nos Planos Diretores e Leis de Uso do Solo dos municípios, regiões
metropolitanas e aglomerações urbanas que devem respeitar os limites mínimos impostos pelo
digo Florestal (Brasil, 1989).
Qualquer intervenção nestas áreas passou, a partir do ano de 2001, a requerer
autorização de órgão ambiental competente, a depender do âmbito de atuação da intervenção,
sob pena de punição mediante a Lei Federal 9.605/98 Lei de Crimes Ambientais. Foi
inicialmente a partir da Medida Provisória 2.166, de 24/08/2001, que regulamentou os
artigos 1
o
, 4
o
, 14
o
, 16
o
e 44
o
da Lei 4.771/65 (Código Florestal), que a possibilidade de
supressão em Áreas de Preservação Permanente passou a ser considerada, apenas para os
casos de utilidade pública e interesse social, sendo, no ano de 2006, regulamentada pela
20
Acordos assinados pelos governos brasileiros que dizem respeito à conservação da diversidade biológica, uso
sustentável de suas partes constitutivas, a repartição justa e eqüitativa dos benefícios que advêm do uso dos
recursos genéticos (Convenção da Biodiversidade); relacionados ainda à conservação e uso correto das terras
úmidas (Convenção de Ramsar); ou ainda à proteção da flora, fauna e das belezas cênicas dos países da América
(Convenção de Washington).
21
As dimensões destas áreas foram alteradas pelas leis 7.511/86 (Brasil, 1986) e 7.803/89 (Brasil, 1989).
27
Resolução CONAMA 369/06, alterando o termo para intervenção, num indicativo de que
tanto as áreas de APP com cobertura nativa quanto aquelas que não as têm, requerem
autorização do órgão competente (Brasil, 2001b, 2006), como o Instituto Brasileiro de Meio
Ambiente (IBAMA), Instituto Estadual de Florestas (IEF). Em Minas Gerais a autorização é
expedida pelo IEF, órgão integrante do Sistema Estadual de Meio Ambiente (SISEMA), ou
Conselho Municipal de Meio Ambiente deliberativo, a depender da existência deste no
município e do tipo de intervenção.
Na década de 1990, um projeto de construção do Parque Linear do Rio Uberabinha
foi elaborado para ser construído nas margens urbanas do rio. O projeto inclui áreas de lazer
com ciclovias, uma estação náutica, estação de cultura, estação ecológica, “estação
buritis”, oferecimento de serviços diversos como lanchonetes, lojas, venda e aluguel de
caiaques, restaurante, teatro, salas de convenções, espaço de pesquisas, etc. (Pereira, 2004).
Obras que margearão o rio em seu perímetro urbano, iniciando-se nos limites das áreas central
e oeste da cidade.
O projeto tem sido divulgado como parte de um plano maior de despoluição do rio e
recuperação de suas margens, promovido pelo Departamento Municipal de Água e Esgoto -
DMAE. Inserido num capítulo inteiro dedicado ao meio ambiente no Plano Diretor da cidade,
de 2006, o projeto aparece incluído num Complexo de Parques e Unidades de Conservação
(Uberlândia, 2006)
22
que interligará o parque às margens do rio Uberabinha aos localizados
nas margens dos principais córregos que cortam a cidade.
A realização do Plano Diretor deu-se em cumprimento à Lei 10.257/01 Estatuto das
Cidades, que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 (Brasil,
1988), estabelecendo diretrizes gerais da política urbana e utilizado como instrumento da
política de desenvolvimento e expansão dos municípios (Brasil, 2001a). De acordo com o
documento Plano Diretor Participativo, publicado pelo Ministério das Cidades por ocasião
do período que antecedeu ao prazo para que as prefeituras municipais elaborassem seus
planos diretores em 2006, o Plano Diretor é um “pacto entre a população e seu território”,
fornecendo os parâmetros para a gestão democrática do espaço local, com o “poder de induzir
e modelar o próprio desenvolvimento” sendo principal instrumento norteador do
planejamento para o ordenamento do espaço urbano (Brasil, 2005). Desta forma, além de
regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição, o Estatuto das Cidades, implementado
localmente a partir dos Planos Diretores, permite articular a implementação da Agenda 21,
22
Ver Anexo 3.
28
dada a força de lei dos Planos Diretores, estabelecida pela Constituição de 1988 (Brasil,
2005).
Documento assinado durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento, em 1992, no Rio de Janeiro (ECO 92), a Agenda 21 é concebida como
instrumento, através da Agenda 21 Local, de planejamento para as cidades e diferentes bases
geográficas como estados, regiões, países, etc., que tem por princípio norteador a idéia de
desenvolvimento sustentável, numa busca por conciliar desenvolvimento econômico e
sustentabilidade ambiental.
De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, a Agenda 21 pode ser definida como
um instrumento de planejamento para a construção de sociedades sustentáveis, em diferentes
bases geográficas, que concilia métodos de proteção ambiental, justiça social e eficiência
econômica (Brasil, s/d). Concebida como uma plataforma para ação ambiental internacional
para o século 21, a partir de uma série de formulações e diretrizes para implementação do
desenvolvimento sustentável, sendo uma delas a elaboração das Agendas 21 locais pelos
governos locais, a Agenda 21 Global reconhece em seu capítulo 28 a cidade como um dos
pilares para implementação do slogan Pensar Globalmente, Agir Localmente" (Brasil, 2003).
Entretanto, constitui-se em uma declaração de intenções que não tem força de lei. Agenda 21
e Plano Diretor seriam, portanto, instrumentos complementares de planejamento urbano, para
implantação das “cidades sustentáveis” (Brasil, 2005).
O documento elaborado pelo Ministério das Cidades no período que antecedeu à I
Conferência Nacional das Cidades em 2003 destaca a importância que as cidades adquiriram,
com a Agenda 21, na implementação do desenvolvimento sustentável a partir de uma nova
leitura dos modelos de urbanização existentesque inclui a gestão democrática para recriar
as cidades como centros de criatividade econômica, social e, sobretudo, de reinterpretação de
suas características culturais”. Destaca também as mudanças ocorridas no tocante à
reconstrução das cidades pelos ambientalistas e urbanistas, apontando para uma nova
percepção do planejamento das cidades:
“Hoje o planejamento urbano admite e reconhece as cidades com se fossem
ecossistemas. Como estruturas que favorecem uma relação de equilíbrio entre suas
partes, criando uma cadeia harmônica de "alimentação". Neste contexto, o incentivo à
consolidação de arranjos produtivos locais em bases sustentáveis, que devem agregar
valor às atividades geradas localmente, são fundamentais na produção de cidades
sustentáveis, sempre e quando apoiadas em estruturas deliberativas e democráticas,
devidamente institucionalizadas, atemporais, suprapartidárias e paritárias, entre
sociedade civil e instituições governamentais, como são os runs das Agendas 21
Locais. A transformação do modelo atual de cidade requer um esforço coletivo, pois
passa pelo pressuposto maior de transformação em sociedades sustentáveis, com todas
29
suas particularidades sócio ambientais, produtivas e essencialmente culturais
preservadas. Este eixo estratégico não desestimula a execução de atividades e ações
menores em prol do sonho, que tem como ferramenta preciosa a educação formal e não
formal. A transformação das cidades atuais em cidades sustentáveis demanda
necessariamente um processo democrático que indique de forma legítima a cidade que
os cidadãos desejam. O processo de Agenda 21 Local possibilita a criação de acordos
aceitos por todos e adotados como um compromisso coletivo com um futuro em
harmonia com o ambiente e com as condições necessárias para uma vida digna e
saudável” (Brasil, 2003:06-07).
Podemos identificar nestes três instrumentos de ordenamento do espaço urbano -
Estatuto das Cidades, Plano Diretor e Agenda 21 - um conjunto de mudanças nas idéias que
orientam o uso e apropriação deste espaço, identificadas na produção de um vocabulário que
fornece novos termos à fala dos atores sociais. Mello (2006) aponta que este novo vocabulário
enuncia e anuncia novas formas de fazer política. A Agenda 21, nesse caso, constitui-se para a
autora em um discurso que visa instrumentalizar os enunciados, produzindo novas
representações do mundo social que buscam legitimar uma determinada classificação do
mundo num contexto de classificações em disputa. Nestas, o local aparece como lócus
privilegiado onde ações concretas são possíveis para a transformação da relação entre as
sociedades humanas e seu meio ambiente comum, dada a perda do referente nacional para
estabelecer as convergências necessárias à regulação do referente social, a nação, e do
referente espacial, o território nacional.
Acselrad (2006) aponta a inserção desse processo numa “inflexão discursiva”
produzida na década de 1980 que acompanha a nova ordem mundial, marcada pelo
deslocamento da economia mundial de sua inscrição no sistema de Estados-Nação para novas
formas de organização caracterizadas pela desregulação institucional, em que o local aparece
ora como lócus de uma “política alternativa de resistência, ora como arena de assimilação e
adaptação ao discurso dominante” (Acselrad, 2006:14). Para ele, “A reestruturação da
geografia da circulação e da acumulação do capital altera assim as configurações espaciais e
as escalas de governo existentes, inaugurando novas e contraditórias formas de produção do
espaço e apropriação do meio ambiente” (ibidem).
Nesse mesmo contexto, Maricato (2000) nos chama atenção para o papel da Agenda
Habitat II
23
, realizada em 1996, em Istambul, juntamente com os documentos produzidos pela
OCDE Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico, pelo Banco
Mundial e por ONGs, como a rede internacional HIC Habitat International Coalition, que
23
Documento resultante da Conferência das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos Habitat II
(Maricato, 2000).
30
contribuem para uma crescente importância e autonomia das cidades em contraposição ao
alegado declínio do Estado-Nação. Estes documentos, segundo a autora, estão repletos de
demandas e reivindicações tradicionais do campo da esquerda democrática, como a
descentralização e afirmação do poder local, parcerias e autogestão dos serviços coletivos.
Tratam-se de bandeiras onipresentes nos programas das entidades de movimentos populares
incorporados às novas demandas no interior do sistema mundial.
Nesse cenário, a formulação de novas estratégias de financiamento das cidades face à
redução da capacidade dos Estados Nacionais de regulação de suas economias a partir da
década de 1970 desencadeou um certo consenso, conforme aponta Harvey (2005), de que a
reorientação a posturas “empreendedoras” na governança urbana poderiam impulsionar o
desenvolvimento econômico, levando a um investimento na melhoria da imagem das cidades.
Abre-se, então, a uma “política de lugares” pela construção de centros culturais, de
entretenimentos, empresariais, pela requalificação, gentrification, ou mesmo revitalização de
locais específicos das cidades
24
.
Nesse contexto, as "cidades sustentáveis", “cidades globais", "cidades
empreendedoras", "cidades-modelo" ou "cidades saudáveis", apresentam-se como alternativas
de 'sobrevivência' no mercado globalizado (Compans, 2001), como uma forma de atrair fluxos
financeiros, de produção e de consumo, pela criação de um “ambiente favorável aos
negócios” (Harvey, 2005). É em um cenário de estímulo aos multiculturalismos, de tomada
do patrimônio material e imaterial, da memória, do meio ambiente, das produções culturais
locais, como “vantagem competitiva” (Compans, 2001), que operações urbanísticas
público/privadas são associadas a essas novas estratégias dos governos locais, conforme nos
aponta Harvey:
“Ao que parece, as cidades e lugares hoje tomam muito mais cuidado para criar uma
imagem positiva e de alta qualidade de si mesmos, e m procurado uma arquitetura e
formas de projeto urbano que atendam a essa necessidade. [...] Dar determinada imagem à
cidade através da organização de espaços urbanos espetaculares se tornou um meio de
atrair capital e pessoas (de tipo certo) num período (que começou em 1973) de competição
interurbana e de empreendimentismo urbano intensificados” (Harvey, 2009:91-92).
A inflexão discursiva apontada por Acselrad (2006) e a produção de novas
representações do mundo social indicada por Mello (2006), entendidas no interior desses
processos sócio-político-econômicos mais amplos, apontam para a importância das noções de
24
O trabalho de Carman (2006) é um bom retrato dos processos de revitalização de espaços urbanos que tomam
o patrimônio cultural como nova forma de inserção da cidade no mercado globalizado.
31
desenvolvimento econômico e desenvolvimento sustentável nas mudanças em relação às
formas de produção e apropriação do espaço e do meio ambiente urbanos.
Nesse quadro, a noção de cidades sustentáveis parte do princípio de reconstituição das
cidades a partir do reconhecimento de que o processo desorganizado de urbanização, as
perspectivas de desenvolvimento econômico dirigidas à cidade, a (des)regulamentação
econômica e o planejamento urbano de até então, são elementos que contribuíram para um
quadro social, ambiental e biofísico de degradação, marcado pela queda na qualidade de vida
nas cidades. Dessa forma, a implementação da noção de cidades sustentáveis baseia-se, em
geral, na proposta de reformulação das cidades a partir da idéia de desenvolvimento
sustentável, associando desenvolvimento econômico a políticas públicas de ordenamento
territorial, a dinâmicas participativas e preocupação com o meio ambiente.
Essa reformulação implica frequentemente em sobreposição ou, por vezes,
substituição de territórios urbanos constituídos, modificando as funções e usos destes em
busca do estabelecimento de modos „sustentáveis‟ de organização do espaço, devendo tais
iniciativas, estar sob o aparato legal que subsidie os projetos urbanos implantados. Mas em
que termos ocorrem estas mudanças?
A análise aqui empreendida parte do reconhecimento básico de que tais mudanças na
constituição dos territórios urbanos não se dão apenas no plano prático, material, concreto e
utilitário. Da geografia, Raffestin (1993) propõe que “território” e espaço” não são termos
equivalentes. O espaço é anterior ao território, sendo este o resultado da apropriação concreta
(ação humana) ou abstrata (representação - imagens ou modelos, a exemplo da cartografia
que, de acordo com Raffestin, surgiu com o Estado Moderno como instrumento de poder) de
uma determinada área geográfica por meio da projeção de um trabalho, isto é, energia e
informação, adaptando as condições dadas às necessidades de uma comunidade ou sociedade
no interior de relações de poder.
Em outro sentido, parto do pressuposto da importância das ideologias como signos que
expressam crenças que sustentam as razões para agir na conformação dos territórios
estudados. Centradas na noção de desenvolvimento, estas ideologias reivindicam a
manutenção ou incremento dos padrões de crescimento econômico associando-os,
posteriormente, à garantia da qualidade de vida às gerações presentes e futuras na
reconfiguração dos territórios urbanos.
Essa combinação entre um referente passado, o desenvolvimento econômico e um
referente futuro, a garantia da qualidade de vida das gerações futuras, nos leva a tomar a
noção de desenvolvimento como um sistema ideacional, tal como proposto por Ribeiro
32
(1992), simultaneamente ideológico e utópico, como referentes para as ações voltadas ao
urbano. Em seus termos, Ideologia refere-se a um “conjunto de referentes passados que são
construídos com o propósito de interpretar e, com frequência, manipular o presente” (ibid.,
1992:07), enquanto as utopias operam com uma manipulação de uma concepção de vida do
futuro, no presente. O entendimento do modo como as ideologias se associam à constituição
dos territórios urbanos requer, então, entender de que forma elas estão relacionadas às ações
humanas.
5. Ideologia, poder e cultura na constituição dos territórios urbanos.
Ideologia é um conceito polêmico nas ciências sociais desde sua acepção marxista de
ocultação e mascaramento da realidade social, baseando-se, portanto, num conjunto de
pressupostos dentre os quais situa-se a oposição entre verdade e falsidade. A análise das
ideologias nessa vertente, segundo Durham (2004), centra-se em sistemas tomados como
estruturados e cristalizados de representações como a religião, as idéias políticas, a filosofia, o
direito, em busca da desmistificação de sua dominação. De acordo com a autora, análises
deste tipo fundam-se na separação entre realidade social e universo simbólico, centrando-se
na busca por explicitar a distância entre a ideologia e a realidade social.
Para Durham, mesmo os debates promovidos a partir do conceito de ideologia no
sentido de superar essa oposição entre representações e realidade social, tal como os de Louis
Althusser e Antônio Gramsci, pretendendo que a ideologia tende a abranger toda a cultura,
permanecem subordinando a análise das manifestações ideológico-culturais à luta de classes.
Para ela, tais análises implicam que a produção cultural tem em vista sua contribuição para o
enfrentamento das classes fundamentais e sua compreensão está estreitamente atrelada à
totalidade do processo histórico.
Dessa forma, para Durham “o conceito de ideologia constitui um instrumento de
análise referente a modos específicos de produção, de conhecimentos que são próprios da
sociedade capitalista. Por isso, não pode ser confundido com o conceito antropológico de
cultura, nem substituí-lo” (Durham, 2004:276). Para a autora, as análises e interpretações de
fenômenos culturais fundadas no conceito de ideologia vão no sentido inverso àquelas
próprias das investigações antropológicas cujo procedimento parte das práticas sociais
concretas e representações sociais formuladas pelos grupos sociais. De modo inverso, aquelas
33
partem de um plano macropolítico como parâmetro de relevância dos fenômenos estudados,
sua contribuição para a preservação ou destruição da ordem vigente, preocupada com a
reprodução do modo de produção e suas inerentes formas de dominação. Para Durham, a
utilização do conceito de ideologia parece-lhe “mais adequada quando aplicada no seu sentido
original, como instrumento para refletir sobre as transformações mais amplas e globais que
afetam o sistema político em seu conjunto, em sua vinculação com o modo de produção, e que
é feita apreendendo-se apenas os aspectos mais gerais do intrincado jogo dos interesses
específicos e das lutas e conflitos internos que agitam a vida social (Durham, 2004:279).
Numa outra vertente, da antropologia clássica, Louis Dumont trata a ideologia como o
conjunto de valores e idéias comuns, próprios do conjunto de uma sociedade ou de grupos
mais restritos, sendo um conjunto social de representações. Comparando a ideologia àquilo
que na antropologia americana chama-se de „cultura‟, por oposição à „sociedade‟ o autor
aponta que ela não é toda a realidade social havendo a necessidade de incorporar os traços
sociais não-ideológicos na análise, os quais são geralmente associados à „sociedade‟ na
antropologia americana, portanto, fora da „cultura‟ (Dumont, 1992, 2000a, 2000b).
Paralelamente, toma por base o postulado metodológico de que a ideologia é central em
relação ao conjunto da realidade, pois, “o homem age conscientemente, e acedemos
diretamente ao aspecto consciente de seus atos” (Dumont, 1992:51, nota 1a, grifos do autor).
Sua análise não pretende desvincular ação e representação, pois parte da noção de
ação social de Talcott Parsons numa combinação da representação e ação a partir de
Durkheim e Weber que entende que a ação social está orientada a certos objetivos, portanto,
ela está sujeita a avaliações que, por sua vez, estão assentadas num quadro de sistemas sociais
que se constituem por uma integração de critérios de avaliação. O processo de avaliação para
Parsons serve para diferenciar estas ou aquelas unidades numa ordem hierárquica (Dumont,
1992). No entanto, Parsons prioridade à estrutura normativa da ação, deixando de lado o
substrato da ação, que combina os interesses que engendram os conflitos e as instabilidades
sociais (Lockwood, 1977). Nesse sentido, as avaliações às quais estão sujeitas a ação social
em Parsons, assentadas que estão na estrutura normativa, subjazem a noção de adoção do
valor para Dumont. Para este, adotar um valor é hierarquizar; um processo que está, portanto,
diretamente associado à estrutura normativa de modo situacional, sendo a noção de poder aí,
residual, resultado do modo de acesso à realidade com que Dumont se defronta, através dos
textos indianos que lhe permitem captar as representações conscientes da teoria da pureza que
lhe deram acesso à ideologia geral indiana.
34
Num outro sentido, Wolf (1999) em sua busca por analisar o modo como interagem as
relações que moldam o processo de formação de idéias com as que regem a economia e a
organização política e social dos grupos sociais, situa a ideologia no interior da cultura. Idéias,
no entanto, não se confundem com ideologias. Aquelas estão associadas a toda uma gama de
construções mentais, preenchendo todos os domínios humanos, num sentido que Wolf afirma
diferente das ideologias por estas sugerirem “esquemas unificados ou configurações
desenvolvidas para subscrever ou manifestar poder. A equiparação de toda ideação com
ideologia mascara a forma em que idéias passaram a ser vinculadas com poder (Wolf,
1999:04)
25
. A cultura seria, então, “a matéria prima a partir da qual as ideologias são
construídas e ganham influência (...) a ideologia seleciona do plano mais geral da cultura
aquilo que lhe é mais adequado, o que pode atuar como marcas, símbolos ou emblemas de
relações que se quer destacar” (Wolf, 1998: 156). Distinguindo os modos como o poder se
situa em diferentes níveis, seja nas relações interpessoais, em meios institucionais e no nível
das sociedades, a colocação da ideologia no interior da cultura possibilita Wolf analisar os
modos como as idéias se relacionam ao poder tanto nas conformações sociais ocidentais como
não ocidentais
26
.
Dessa forma, tomar a ideologia no interior da cultura tal como propõe Wolf (1998;
1999) nos fornece um quadro de análise importante para o estudo das ideologias associadas à
imagem da cidade tais como identificadas em Uberlândia e como elas se associam à
conformação dos territórios urbanos. Seguindo o autor, parte-se do pressuposto de que as
idéias e ideologias não existem apenas na „mente‟ humana, ou apenas em seu oposto direto,
nas racionalizações da conduta orientada pelo interesse, ou que sejam orientadas pela
estrutura normativa dos sistemas sociais, mas estão estreitamente relacionadas às
conformações sociais e às configurações culturais através das relações de poder
estabelecidas. A conformação dos territórios urbanos pode ser, desta forma, um dos elementos
com os quais as ideologias estão estreitamente relacionadas nas conformações e configurações
culturais.
25
Tradução livre
26
É importante salientar com Ribeiro e Feldman-Bianco (2003) que, sobre a relação entre cultura e poder, os
esforços de Eric Wolf para compreendê-las procuram “trazer a lógica cultural para o âmbito das relações de
poder, não com a finalidade de tornar a cultura completamente derivativa do poder, mas como tentativa de
demarcar as conexões e os constrangimentos que unem as várias dimensões das relações de poder na sociedade
aos parâmetros culturais que estão embutidos na arena social (Yengoyan apud Ribeiro & Feldman-Bianco,
2003:47).
35
6. Cosmografias urbanas
As análises aqui empreendidas inserem-se no reconhecimento da perspectiva clássica
na antropologia de que as culturas atribuem significação diferenciada às noções de espaço de
acordo com um universo próprio de valores, denotando que os sistemas simbólicos entre os
quais são elaboradas são constitutivos da vida social. A antropologia clássica, desde Evans-
Pritchard (2007) sobre os Nuer do Sudão Meridional, a Marcel Mauss (2003) sobre a
morfologia social das sociedades Esquimós e Edmund Leach (1996) em seus estudos sobre a
sociedade Kachin, vem apontando para o componente simbólico da ação humana como parte
constitutiva de sua organização social e da constituição de seus domínios territoriais.
A par dessas considerações, a análise aqui proposta requer a consideração de
fenômenos que ultrapassam e se relacionam ao mesmo tempo com o lócus específico de
análise. Se num primeiro momento minha memória conduziria-me a uma “alegoria da vida no
campo” (Clifford apud Marcus, 1991), a compreensão das múltiplas determinações da
permanência e remoção dos moradores que habitam às margens do rio Uberabinha e dos
córregos na cidade de Uberlândia requer a consideração das justaposições de fenômenos e
processos históricos sociais, mundiais, nacionais e locais que nele se revelam. Os planos e
projetos destinados a esses territórios são, assim, uma forma de acesso a essa temática. Assim,
a análise afasta-se da alegoria fundada na homogeneidade cultural, intocada por processos
mais amplos, baseada em uma identidade exclusiva desses moradores, e evita-se as dualidades
tradição-moderno, rural-urbano, as quais são problemáticas, conforme nos chama atenção
Marcus (1991).
Nesse sentido, as constantes investidas sobre os moradores das margens urbanas do rio
e córregos de Uberlândia, motivadas por planos e projetos de ordenamento urbano, bem como
por ordenamentos jurídicos contemporâneos, associados a diferentes perspectivas de
desenvolvimento, requerem o enfrentamento da sobreposição destes diferentes planos e
projetos que trazem consigo uma concepção do espaço urbano e do uso desses espaços como
territórios de moradia.
Penso nessa sobreposição a partir da noção de cosmografias sugerida por Little (1996)
em sua abordagem do processo de estabelecimento de territórios na Amazônia. Numa
conjunção entre cosmologia/ideologia e geografia em que visões de mundo (cosmos) são
inscritas em áreas geográficas específicas, “Cosmography will be defined here as collective,
historically-contingent ideologies and environmental knowledge systems used by a social
36
group to establish and maintain human territories” (Little, 1996:04). Tomando por base a
proposta do autor de que “the ideology and/or cosmology of a specific group are essential
dimensions of a cosmography since they orient the way the group collectively identifies with
and uses biophysical space” (1996:05), a tomada da ideologia aqui parte da estreita relação
entre seus elementos discursivos e empíricos na constituição das cosmografias.
Desta forma, a elaboração e implementação de planos e projetos urbanos, bem como o
uso pelos moradores das margens urbanas do rio e córregos da cidade de Uberlândia como
espaço de moradia, são concebidos como estreitamente associados a uma apropriação social e
material do território, no sentido de uma „produção do espaço‟, nos termos de Lefebvre, como
propõe Little (1996):
“The work of Henri Lefebvre (1991) is crucial here for the way that he analyzes the
“production of space”, giving it a historicity and tying it to spatial practices. For Lefebvre,
“appropriation implies time (or times), rhythm (or rhythms), symbols, and a practice
(356). Through the process of appropriation, “a natural space [is] modified in order to
serve the needs and possibilities of a group” (165) and social groups are able to produce
ever-new spaces and territories” (Little, 1996).
O conceito de cosmografias proposto por Little torna-se, então, central para
compreender o modo como se relacionam as práticas e ideologias inseridas na
superposição/sobreposição de territórios envolvidas no processo de constituição das cidades
sustentáveis que marcam uma mudança na concepção dos territórios investigados nas políticas
urbanas. Tais práticas, assentadas que estão em ideologias desenvolvimentistas e ambientais,
revelam a maneira como o poder público local usa e apropria-se desses espaços enquanto
território e como classificam as pessoas que os tomam enquanto território de moradia no
processo de constituição de suas cosmografias.
A abordagem diacrônica de duas versões das cosmografias desenvolvimentistas
(econômica e ambiental) permite analisar as mudanças ocorridas no interior da ideologia
desenvolvimentista e sua expressão, no urbano, de um processo macro-histórico-social, em
busca da constituição contemporânea das cidades sustentáveis e suas implicações particulares
relativas ao contexto da cidade de Uberlândia, mas que se expressam em várias outras cidades
do país
27
. Remoções, uma de suas várias implicações, se relacionam às mudanças na
concepção sobre o urbano e à constituição dessas cosmografias.
27
No que diz respeito às situações semelhantes às aqui tratadas, de ocupação de áreas de preservação permanente
em meio urbano, muitos são os casos relatados de ocupações destas áreas para as quais se voltam o poder
público local, tendo em vista sua regularização e recuperação ambiental através dos Parques Lineares e
constituição de “áreas verdes”. Araújo (2002), em seu estudo realizado sobre as interfaces entre a legislação
37
Assim, busco compreender o processo de remoção dos moradores que habitam as
margens urbanas dos córregos da cidade de Uberlândia e do rio que a corta, Uberabinha. Sua
remoção contemporânea para a construção de um Complexo de Parques Lineares na cidade
atualiza classificações das pessoas que habitam esse espaço e do próprio espaço urbano
elaboradas por parte do poder público local sob uma nova concepção de desenvolvimento.
ambiental federal e a questão urbana, aponta para a problemática das ocupações das áreas de APP urbanas,
revelando ser uma questão presente em muitas cidades brasileiras. Segundo a autora, somente em São Paulo,
“estima-se que mais de um milhão de pessoas vivem em áreas que deveriam ter pouca ou nenhuma ocupação por
força da legislação de proteção de mananciais. Entre as áreas ambientalmente protegidas que são comumente
ocupadas de forma irregular pela população de baixa renda, as APP têm lugar de relevo” (Araújo, 2002:08). São
Paulo, bem como São Carlos, Campinas, Curitiba, Porto Velho, dentre outras, são exemplos das muitas cidades
brasileiras que têm optado pela implementação dos Parques Lineares como alternativa de recuperação ambiental
das margens urbanas de seus rios.
38
Capítulo I
39
Uberlândia: progresso e desenvolvimento na conformação das
cosmografias urbanas
Com o intuito de analisar, ao longo da dissertação, o modo como se constituem
diferentes cosmografias urbanas, desenvolvimentistas e ambientais, na cidade de Uberlândia e
como elas implicam em diferentes classificações das pessoas que ocupam esses territórios,
faz-se importante tomar uma perspectiva histórica, social e cultural da constituição das
ideologias do progresso e desenvolvimento e do modo como se inserem no país e na cidade
para, posteriormente, discorrer sobre como operam na conformação dos espaços urbanos
enquanto cosmografias (Little, 1996).
A ideologia do progresso e desenvolvimento é constitutiva da história do Ocidente
(Nisbet, 1985), tem origem num contexto histórico e social específico e se propaga
mundialmente enquanto discurso global (Ribeiro, 2007) vinculado à expansão do sistema
econômico, político e social do pós-guerra. A constituição das cosmografias urbanas em
Uberlândia está estreitamente associada ao modo como historicamente esta ideologia se
projeta no contexto mundial, bem como ao modo como foi mobilizada nacionalmente e
localmente para dar significação ao espaço urbano enquanto território humano e para a
classificação das pessoas nesses territórios.
Assim, busco inicialmente traçar as características gerais dessa ideologia para, em
seguida, tratar do modo como é operada localmente, levando em conta quais atores disseram o
quê a quem, em que espaços e em quais circunstâncias políticas, econômicas e sociais num
plano mais geral da constituição da cidade. Pretendo, deste modo, fornecer elementos para o
entendimento da conformação das cosmografias urbanas desenvolvimentistas e ambientais a
partir da análise da constituição das margens urbanas dos córregos e do rio Uberabinha em
Uberlândia enquanto territórios urbanos.
1.1. Progresso e desenvolvimento como ideologia.
De acordo com Nisbet (1985), nenhuma idéia foi tão ou mais importante durante quase
três mil anos que a de progresso, sendo, em sua forma mais inclusiva, o substrato de outras
como liberdade, justiça, igualdade e comunidade, por exemplo. Seu núcleo central, segundo o
40
autor, é a crença de que a humanidade partiu de uma condição original de primitivismo,
barbárie, num contínuo avanço ao futuro. Síntese do passado e profecia do futuro no presente,
a idéia de progresso, para Nisbet (1985), é inseparável de um sentido de tempo unilinear, uma
noção do movimento histórico contínuo, gradual, entendido como natural e inexorável, cujo
fluxo constitui-se sempre num avanço em relação a uma condição anterior.
Em seu estudo sobre a gênese, desenvolvimento e consolidação da idéia de progresso,
Nisbet (1985) rompe com a perspectiva de que tal noção pode ser encontrada a partir do
século XVII e propõe sua existência não absoluta, mas marcante, na Grécia Antiga, por
volta do século VI a.C., juntamente às de decadência e recorrência cíclica. Tal deslocamento
possibilita a Nisbet (1985) o ponto de partida para pensar como essa idéia incorpora a noção
de universalidade na Idade Média tornando-se um dos axiomas mais duradouros e fortes do
mundo ocidental, apesar de sua não generalidade, tanto nos núcleos acadêmicos quanto fora
deles.
Para o autor, desde os gregos podemos identificar duas visões da idéia de progresso
intimamente relacionadas. Uma é a que propõe uma lenta, gradativa e acumulativa melhoria
no conhecimento relacionado às artes, à ciência e tecnologia, que proporciona ao homem
múltiplas maneiras de lidar com os desafios colocados pela natureza ou pelo esforço em
conviver em grupos humanos. A outra está relacionada à condição espiritual do homem na
terra, sua felicidade, independência dos tormentos da natureza e da sociedade, sua serenidade
e tranqüilidade, tendo como meta uma maior perfeição da natureza humana. De seu
interrelacionamento resulta a idéia, não absoluta, de que um maior conhecimento levaria à
decadência moral e espiritual.
À concepção de crescimento do saber através do tempo e à conseqüente perspectiva de
um avanço natural da condição humana, derivada dos pensadores clássicos pagãos, somou-se
a noção dos filósofos cristãos de unidade do gênero humano, bem como a de necessidade
histórica e do desenrolar da história através de largos períodos de um desígnio presente no
início da história. Assim, a confiança de um futuro orientado a este mundo, com ênfase na
perfeição espiritual gradual e cumulativa da humanidade, culminaria numa idade de ouro na
terra, o milênio com Cristo que voltaria como rei.
Mas é quando o Cristianismo é reconhecido pelo Império Romano enquanto religião
oficial do Estado que a idéia de progresso ganha efetivo impulso. Nele se fundiram as
concepções judaicas de história como sagrada, guiada por Deus e necessária e de numa
idade futura de ouro na terra, às gregas de crescimento natural, de mudança concebida como
potencialidade e da existência de etapas de avanço do conhecimento e da humanidade. Para
41
Nisbet (1985), esta fusão pode ser encontrada em São Paulo. Este, ao conceber a Igreja
como desenvolvendo-se através do tempo e destinada à abrangência universal, contribui para
o alargame nto do milenarismo judaico que passa a englobar toda a humanidade.
Progresso, então, passa a adquirir uma feição universal.
na Idade Média, associada a essa concepção cristã de progresso, a atenção dedicada
à tecnologia, às descobertas científicas assim como o reconhecimento, ainda que o
generalizado, da noção de indivíduo como não subordinado a grupos corporativos
configuravam um contexto propício à consolidação da crença secular do progresso.
Anunciava-se, assim, um relativo afastamento das concepções que propunham a prevalência
de uma atenção voltada para além deste mundo.
Recrudescendo relativamente durante os séculos XV e XVI, no período do
Renascimento sob a perspectiva de uma recriação da civilização a partir da retomada das
idéias e virtudes gregas e romanas, mas mantendo a idéia de superioridade desse período
entendido como Idade do Ouro pelas suas proposições contrárias a tudo o que fosse medieval
- a idéia de progresso é retomada com força no século XVII com a Reforma. Com ela, rompe-
se com a dicotomia entre o mundano e o divino, num processo que Louis Dumont (2000a)
propôs como fundamental para que a noção de Indivíduo enquanto Valor englobante se
estabelecesse definitivamente no Ocidente. Esta ruptura é entendida por Nisbet como
elemento essencial para o florescimento, no culo seguinte, da idéia secular e moderna de
progresso estreitamente associada ao milenarismo puritano proporcionado pela unidade entre
religião e ciência.
É nesse contexto que se consolida a idéia, inicialmente gestada em Santo Agostinho,
de unidade do gênero humano face aos povos não-ocidentais e não-cristãos contatados a partir
do século XVI. As diferenças entre estes e os povos europeus foram entendidas, segundo
Nisbet (1985) a partir de duas perspectivas. Uma delas sustentada em uma teoria do
desenvolvimento social, baseada na colonização desses povos, sob uma interpretação secular
do movimento histórico que culminaria na civilização da humanidade, eurocêntrica por
referência. A outra, uma interpretação cristã e providencialista, baseada num movimento
progressivo rumo à evangelização da humanidade a partir da tutela dos povos não-cristãos
como meio de apressar seu desenvolvimento ou evolução.
Evolução, Progresso e Desenvolvimento até então, segundo Nisbet (1985), são idéias
sinônimas, aplicadas indistintamente, sempre se referenciando a um processo de mudança
acumulativa e processual. Elementos importantes se integram a essa perspectiva, como a
ascensão da burguesia européia ao poder no século XVIII associado ao progressivo
42
desenvolvimento das forças produtivas, bem como a difusão do racionalismo e do empirismo,
associando desenvolvimento à possibilidade de intervenção social, tal como nas propostas de
Fourier, Saint-Simon e Auguste Comte. No entanto, é por uma apropriação da idéia de
progresso também pela Economia que a noção de desenvolvimento terá novas conotações e
alcançará um caráter ainda mais inclusivo. Na economia, evolução é reduzida a progresso e
este a crescimento econômico.
Ribeiro (1990, 1992 e 2007) propõe que é após a Segunda Guerra Mundial que
desenvolvimento tornou-se um dos discursos mais inclusivos no senso comum e na literatura
especializada, tornando-se “uma das idéias básicas da cultura moderna européia ocidental”,
“algo como uma religião secular” (Dahl & Hjort apud Ribeiro, 1992: 02) uma vez que “opor-
se a ela é uma heresia que é quase sempre severamente punida” (Maybury-Lewis apud
Ribeiro, 1992: 02). Marcada historicamente por uma plasticidade semântica, a idéia de
desenvolvimento é tomada por Ribeiro (1992) como uma ideologia/utopia central no mundo
moderno, que se constitui em uma cosmopolítica (2007), uma forma simbólica particular
originária do mundo ocidental capitalista „desenvolvido‟ que se propõe como universalmente
válida, no sentido de organizar a divisão internacional do trabalho.
O discurso de posse do presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, em 20 de
janeiro de 1949, é o marco simbólico principal do estabelecimento de “desenvolvimento”
enquanto noção institucionalmente utilizada para referenciar a nova geopolítica que emerge
no contexto do pós segunda guerra. Nele emerge uma nova classificação de países
subdesenvolvidos a partir do contraste com traços característicos das sociedades “avançadas”
da época: altos níveis de industrialização e urbanização, tecnificação da agricultura, rápido
crescimento da produção material e dos níveis de vida (Esteva, 2000; Escobar, 1996).
Nesse contexto, Sbert (2000) nos aponta que, com o deslocamento para a palavra
desenvolvimento, a idéia de progresso permaneceu implícita como dogma, afastando-se das
elaborações de seus ideólogos e filósofos do século XVIII e XIX, a exemplo de Comte,
Condorcet, Hegel, Marx. “O discurso desenvolvimentista agora era obra de „experts” (p. 287).
Progresso passa então a ser aplicado apenas ao Primeiro Mundo e desenvolvimento tornou-se
um caminho para o progresso.
Centrado no estudo do desenvolvimento enquanto regime de discurso e representação,
inspirado nos trabalhos de Foucault em que analisa as formas como as relações estruturais
governam a „consciência‟ e os corpos, Escobar (1996) toma o desenvolvimento como
formação discursiva que origem a um aparato eficiente que relaciona formas de
conhecimento com técnicas de poder. Ele quer entender como certas representações se tornam
43
dominantes e dão forma a modos de imaginar a realidade e interagir com ela, produzindo
modos permissíveis de ser e pensar, ao mesmo tempo que desqualificam outros.
Em um contexto marcado pelas lutas anticoloniais asiáticas e africanas, por crescente
nacionalismo latinoamericano, necessidade de novos mercados, pela guerra fria, o temor ao
comunismo e à superpopulação, a na ciência e tecnologia, Escobar (1996) aponta a
formação do discurso do desenvolvimento a partir de um deslocamento do discurso bélico ao
campo social e a um novo território geográfico, o Terceiro Mundo. Nesse contexto, a pobreza
passa a ser entendida e definida mundialmente a partir de parâmetros econômicos como renda
per capita, tornando desenvolvimento, entendido como crescimento econômico, sua solução e
criando indicadores universais “objetivos” como o Produto Interno Bruto para medir a
performance do desenvolvimento (Escobar, 1996). Novos mecanismos para se operar em
nível global são, então, instaurados, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco
Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Banco Mundial) em 1944, a
Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945. Especificamente direcionados à América
Latina, foram criados a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) pela ONU, em
1948, propondo diversas ações voltadas ao desenvolvimento via urbanização, industrialização
e substituição de importações, e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em
1954.
Furtado (2008)
28
aponta uma importante diferenciação entre progresso e
desenvolvimento que se configura nesse cenário. Do interior das repercussões e
conseqüências das teorias cepalinas, das quais foi colaborador nas décadas de 1950 e 1960,
em que desenvolvimento via substituição de importações aparecia como alternativa às visões
etapistas de desenvolvimento como processo natural e inexorável e como forma de superar as
relações de dependência centro-periferia, Furtado (2008) aponta que desenvolvimento se
diferencia de progresso por traduzir uma visão de mundo em termos de solidariedade social,
no caso do progresso, e de solidariedade internacional, no caso do desenvolvimento.
“A idéia de progresso permitiria traduzir a nova visão de mundo em termos de
solidariedade social, de forma a contrabalançar os efeitos das forças desestabilizadoras.
(...) Da mesma maneira que a idéia de progresso tornou-se alavanca ideológica para
fomentar a consciência de interdependência em grupos e classes com interesses
antagônicos nas sociedades em que a revolução burguesa destruíra as bases tradicionais
28
Publicado originalmente em 1978, como os demais trabalhos do autor, este é marcado pela perspectiva
econômica histórico-estrutural em que busca associar, de acordo com Alfredo Bosi, em seu Prefácio ao livro, “os
interesses particularistas dos agentes individuais (pressupostos da microeconomia liberal) e as necessidades e os
projetos das nações-Estado, que não se comportam como meros agregados desses mesmos interesses” (In:
Furtado, 2008:10).
44
de legitimação do poder, a idéia de desenvolvimento serviu para afiançar a idéia de
solidariedade internacional no processo de difusão da civilização industrial no quadro da
dependência. (...) O novo pacto entre interesses externos e dirigentes internos, em que se
funda a industrialização dependente, viria substituir o mito das vantagens da
especialização internacional pela idéia mobilizadora de desenvolvimento.” (Furtado,
2008:100-105 Grifos do autor).
Para o autor, a idéia de desenvolvimento que surge neste contexto tem um conteúdo
estreitamente economicista, associada a uma performance internacional e se apresenta
dissociada das estruturas sociais, expressão de um pacto entre grupos internos e externos
interessados em acelerar a acumulação. Durante sua atuação na CEPAL, no Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico (BNDE), na Superintendência para o Desenvolvimento do
Nordeste (SUDENE), e como Ministro do Planejamento no governo João Goulart, Celso
Furtado propunha políticas de desenvolvimento associadas à criação de um processo de
acumulação dinâmico endógeno, contraditoriamente dependente do capital externo para se
firmar, mas que seria garantida por um Estado planejador e regulador. Ao contrário, o que
houve nos países latino-americanos, principalmente a partir dos governos militares, e demais
países periféricos, foi uma política desenvolvimentista que reproduziu as relações de
dependência centro-periferia, através de uma produção industrial baseada no controle da
produção pelas corporações transnacionais sem, portanto, assentar as bases para o acesso
soberano desses países à “civilização industrial”, o que requer, para o autor, a modificação
global do sistema, através do controle dos recursos de poder
29
.
Na esteira da reprodução dessas relações de dependência centro-periferia encontra-se a
“teoria da modernização” que deu o tom das intervenções desenvolvimentistas que
associavam crescimento a planejamento por meio da industrialização, urbanização, criação de
infra-estrutura, inovações tecnológicas e incentivo às políticas de crédito, extensão rural e
transferência de capital e tecnologia dos países desenvolvidos para os subdesenvolvidos,
como no pacote da Revolução Verde. Pensando a modernização via urbanização e
incorporação do mundo rural ao processo de desenvolvimento, as teorias da modernização
tiveram, no campo, uma forte associação à reprodução do latifúndio pelos laços estreitos com
o uso de fertilizantes e agrotóxicos e mecanização da produção, que tiveram como resultado
significativa degradação ambiental e grande êxodo rural face às dificuldades de manutenção
dos pequenos produtores nesse quadro de produção (Rist apud Pareschi, 2002).
29
Sobre a implantação das políticas desenvolvimentistas da CEPAL (Comissão Econômica para a América
Latina) e as críticas a ela formuladas, não somente pelas próprias revisões posteriormente elaboradas por Celso
Furtado, mas também pelos teóricos da Dependência, a exemplo de Fernando Henrique Cardoso, Enzo Falleto e
outros, ver Ribeiro (1990).
45
Podemos perceber, como sinaliza Ribeiro (1992), que desde o século XIX a
progressiva integração do sistema mundial demandou ideologias e utopias para dar sentido às
posições desiguais dentro do sistema, fazendo crer na existência de um ponto que pode ser
atingido e que, em geral, é definido pelos Estados-nações que lideram a “corrida” a um futuro
melhor. Mantendo diversas das conotações relacionadas à sua idéia matriz, a de progresso,
desenvolvimento no pós Segunda Guerra Mundial se vê cada vez mais secularizado. Podemos
dizer que, a partir de então, desenvolvimento emerge em lugar de progresso (sem excluí-lo),
como importante signo interpretante (Peirce, 1955) para classificação de pessoas, sociedades,
países, cidades, grupos humanos, etc., em suas diferentes variações: desenvolvimento
industrial, capitalista, socialista, comunitário, dependente, combinado, auto-sustentado,
sustentável.
Ribeiro (1992) e Pareschi (1997) chamam atenção para as fortes críticas a que a idéia
de desenvolvimento foi sujeita, a partir da segunda metade do século XX. Algumas foram
formuladas pela corrente crítica pós-modernista, na década de 1990, outras elaboradas pelos
movimentos sociais dos anos 1960 e 1970, na esteira dos movimentos da contracultura, dentre
eles, o movimento ambientalista, cujas reivindicações contribuiriam para um novo
deslocamento semântico da ideologia do desenvolvimento, colocando-a ainda mais como
objeto de disputa.
O ambientalismo é marcado por um espectro ideológico intrincado e diversificado que
inclui posturas tanto conservadoras, quanto progressistas, românticas ou apocalípticas. Em
Pareschi (1997), encontra-se uma interessante e profícua análise sobre o ambientalismo
enquanto ideologia e utopia, num desdobramento das análises de Ribeiro (1992). Inspirada em
Louis Dumont, em sua análise da composição interna do discurso ambientalista, a autora
aponta que o ambientalismo pode ser considerado como uma variação da ideologia mais geral
das sociedades modernas, o individualismo. Trata-se, no entanto, de uma combinação da
valorização da igualdade e liberdade, próprias daquela ideologia, com a valorização do todo e
não das partes - o indivíduo como valor própria das ideologias holistas, não ocidentais, nos
termos do autor, resultado de um inter-relacionamento entre elas (entendidas como a biosfera,
o ecossistema, o planeta, o homem, demais seres vivos, natureza). Como ideologia, o
ambientalismo, também é utopia, não homogênea, mas que mescla características de utopias
milenarista (quiliástica), liberal-humanitária e socialista-comunista.Trata-se de uma
ideologia/utopia que orienta as ações internas ao movimento ambientalista em suas diferentes
vertentes, preservacionistas, conservacionistas ou socioambientalistas no interior de um
campo de disputas, cuja busca por legitimidade está, em geral, associada à(s) ciência(s) que
46
informam seus discursos. Ocorre, portanto, uma seleção e hierarquização de valores
considerados fundamentais:
“... a Natureza, em seu estado mais selvagem e primitivo, como veremos na noção de
wilderness; a Harmonia nas relações Homem-Natureza e Homem-Homem (ecologia da
mente, ecologia profunda); a Justiça Social (Igualdade e Democracia); a Solidariedade,
principalmente com as gerações futuras; o „desenvolvimento sustentável‟ para algumas
vertentes; e o „crescimento zero‟ para outras” (Pareschi, 1997:40).
Tais movimentos surgem e se propagam num contexto marcado por mudanças
significativas na organização dos fluxos de poder político e econômico no interior do sistema
mundial. De acordo com Ribeiro (1992), tais mudanças são caracterizadas por uma relativa
“morte das utopias”, marcada pela retração do socialismo como visão alternativa ao sistema
capitalista de vida, pela crítica aos metarrelatos da modernidade proposta pelo discurso pós-
moderno e às perspectivas de desenvolvimento até então implantadas, estreitamente
associadas à idéia de crescimento econômico.
É nesse cenário que desenvolvimento sustentável aparece como um novo metarrelato,
uma nova ideologia/utopia que combina um referente passado, desenvolvimento econômico, e
um referente futuro, a garantia da qualidade de vida das gerações futuras, indicando um novo
deslocamento semântico pelo qual a idéia de desenvolvimento passa, somando-se às suas
diferentes outras significações no quadro de disputa por validação das ações de seus agentes.
A razão prática e a racionalidade que busca adequar meios aos fins últimos, fatores que
subjazem à idéia de planejamento, retomam a cena, agora sob a perspectiva de que
planejamento e tecnologia bem articulados produzem desenvolvimento sustentável.
“... desenvolvimento sustentável supõe uma na racionalidade dos agentes econômicos
articulados em ações rigorosas de planejamento (ideologia central do modelo de
desenvolvimento e das formas de expansão transnacionais do capitalismo em vigor) que
compatibilizem interesses tão diversos quanto a busca de lucro do empresário, a lógica do
mercado, a preservação da natureza e, quem sabe, até justiça social já que a miséria é uma
das maiores causas da degradação ambiental. A exploração de um segmento social por
outro(s) o sendo problematizada de frente, acaba sendo aparentemente resolvida como
mais um subproduto da instalação de um modelo racional, adaptado às realidades do
nosso tempo, sobretudo em termos de controle da eficiência do processo produtivo e do
crescimento populacional” (Ribeiro, 1992:18).
Planejamento para o desenvolvimento é um fator central, desde o contexto do pós
Segunda Guerra Mundial, nas teorias da modernização bem como nas teorias Marxistas-
Leninistas de planejamento industrial (Little, 1992:18). Desenvolvimento urbano, como um
47
dos critérios para avaliação do nível de desenvolvimento dos países, estreitamente associado a
processos de industrialização, torna-se um elemento importante da atenção dos planejadores.
1.2. Planos e projetos na constituição de territórios urbanos
Buscando compreender o papel da urbanização na mudança social em sua análise dos
processos decorrentes da “virada pós-moderna” iniciada por volta dos anos 1970, Harvey
(2009) aponta uma diferença significativa entre as idéias modernistas e pós-modernas de
planejamento e desenvolvimento e nas formas de considerar o espaço. Segundo o autor, o
planejamento urbano modernista que se consolida no pós Segunda Guerra é caracterizado pela
idéia de que planejamento e desenvolvimento devem concentrar-se em planos urbanos de
larga escala, abrangentes e integrados, de alcance metropolitano, baseados na racionalização
dos padrões espaciais e dos sistemas de circulação, tendo em vista a promoção da igualdade,
do bem-estar, e veicular os fluxos da produção fordista para o crescimento econômico. Por
outro lado, o planejamento urbano pós-modernista é definido pelo autor como marcado por
projetos urbanos a partir de uma concepção de tecido urbano como algo fragmentado sob o
qual se reconhece as tradições vernáculas, as histórias locais, desejos, necessidades e fantasias
particulares em projetos sob medida para esses espaços, segundo objetivos e princípios
estéticos, numa acepção estreitamente associada a modos de produção flexível dos espaços
urbanos e da produção industrial (Harvey, 2009:69)
30
.
“Hoje em dia, é norma procurar estratégias „pluralistas‟ e „orgânicas‟ para a abordagem
do desenvolvimento urbano como uma „colagem‟ de espaços e misturas altamente
diferenciados, em vez de perseguir planos grandiosos baseados no zoneamento funcional
de atividades diferentes. A „cidade-colagem‟ é agora o tema e a „revitalização urbana‟
substituiu a vilificada „renovação urbana‟ como a palavra-chave do léxico dos
planejadores” (Harvey, 2009:46).
30
Evidentemente, as duas concepções aqui esboçadas são apresentadas por Harvey com um nível de
complexidade e diferenciação interna maior do que o aqui apresentado. A relativa simplificação resultante desse
esboço tem o único objetivo de apresentar um quadro geral das diferentes concepções de planejamento
apresentadas pelo autor. Além do mais, é importante destacar que o próprio autor ressalta que a expansão do
fordismo-keynesianismo aos países periféricos não se deu de forma igual, estando sujeita aos ordenamentos
internos a cada país das relações de classe e, conseqüentemente, aos modos internos de administração das
relações de trabalho, das políticas de bem-estar e da política monetária e fiscal que, por sua vez, estão
estreitamente atrelados à sua posição na hierarquia da economia mundial (Harvey, 2009).
48
O planejamento urbano no Brasil durante muito tempo esteve associado a políticas
diferenciadas voltadas ao urbano, tais como as políticas de saneamento, transporte e
habitação. Segundo Villaça (1999), tais políticas não tinham como objetivo explícito a
organização do espaço intra-urbano. A primeira expressão de uma política nacional de
planejamento urbano foram as implementadas pelo SERFHAU (Serviço Federal de Habitação
e Urbanismo). As ações do SERFHAU - atreladas à elaboração de uma primeira PNDU -
Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, inserida no II PND Plano Nacional de
Desenvolvimento, elaborado pelos governos militares - pretenderam estimular os
planejamentos individuais das cidades, estreitamente atrelados a uma política nacional de
desenvolvimento e ocupação do território nacional, num modelo fortemente concentrado no
nível federal.
Segundo Villaça (1999), a noção de planejamento urbano no Brasil surge num
contexto de crise de uma primeira influência de um urbanismo de origem francesa que tinha
como principais focos o embelezamento e o melhoramento das cidades, o saneamento e a
circulação. É por volta da década de 1930 que a noção de planejamento urbano começa a ser
enunciada como estratégia para resolver os chamados “problemas urbanos”, a partir de uma
concepção de que os problemas manifestos nas cidades são resultado de seu “crescimento
desordenado”, associando as cidades ao “caos urbano‟. Para resolvê-lo começava-se a propor
um planejamento integrado, de base técnica e científica, elaborado por especialistas pouco
engajados com a realidade sócio-cultural, que buscavam associar racionalidade e eficiência,
cuja origem assentava-se no movimento anglo-saxão do City Planning. Substituindo ou
englobando o City Beautiful do urbanismo francês, este novo tipo de planejamento é tido
como um processo, sendo o plano sua expressão material orientadora. No entanto, segundo
Villaça (1999), no que tange à resolução dos problemas sociais o plano se transforma em
plano-discurso, como a salvação dos males urbanos aos quais a classe dominante responde
com planos diretores, sejam eles técnicos e científicos, distanciados da realidade sócio-
cultural e da participação dos agentes sociais, sejam os planos diretores formulados junto às
entidades de classe e movimentos sociais, previstos na Constituição de 1988.
Desta forma, o que se convencionou chamar de planejamento urbano desde os
governos militares se relacionava às políticas públicas urbanas, entendidas por Villaça (1999)
como ações efetivas dos governos voltadas ao urbano, sendo originárias do governo federal
ou estadual. Estas políticas públicas urbanas, em sua acepção, não resolvem o “caos urbano”
como divulgado nos planos, mas, ao contrário, privilegiam a produção, através de obras de
infra-estrutura e outras que atendam à especulação imobiliária, estando sujeitas a diferentes
49
interesses locais. De acordo com o autor, é apenas a partir da década de 1990 que se retoma a
noção de integração, originária dos planos inspirados no City Planning, agora sob novos
moldes, fazendo ressurgir e se afirmar a noção de Plano Diretor, resultado de sua
obrigatoriedade advinda dos artigos 182 e 183 da Constituição de 1988, especialmente, a
partir de sua regulamentação com o Estatuto das Cidades.
Não é o objetivo aqui fazer um escrutínio dos planos e projetos no sentido de em que
medida foram ou não aplicados em sua totalidade. A execução ou não do plano e a resolução
efetiva ou não dos problemas que a partir dele se pretendeu resolver é a medida da análise de
Villaça (1999) para pensar o planejamento urbano no Brasil. Nesse sentido, o autor cunha a
noção de plano-discurso, uma ideologia de mascaramento da realidade, que oculta as ações
concretas do Estado.
Levando-se em conta a particularidade da história da cidade de Uberlândia, e do objeto
de disputa resultante dos planos urbanos na cidade, a implantação, ainda que parcial dos
planos e projetos, leva a tomá-los, num primeiro nível de análise, como uma forma de
apropriação do espaço pelo poder público, no sentido apresentado por Raffestin (1993), de
constituição de um território a partir de sua apropriação abstrata, entendida como
representação do espaço. Planos, projetos, tais como modelos e imagens cartográficas,
conduzem a uma representação do espaço e funcionam como forma de apropriação e
organização, constituindo-o enquanto território. Num segundo nível, mas simultâneo ao
primeiro, parte-se do princípio de que esses mesmos planos e projetos contêm em si modos de
significação do espaço que são mobilizados em contextos específicos, por sujeitos específicos,
como orientadores do que pode ou não ser feito naqueles espaços enquanto territórios
específicos, por quem e para quem.
Ao inspirar-me em Raffestin (1993) e em Wolf (1999) distancio-me sem
desconhecê-lo - do foco nas práticas e processos materiais que servem à reprodução da vida
social e que conformam noções de espaço a partir das relações de produção, centro da análise
de Harvey (2009). Afasto-me, igualmente sem desconhecê-lo, de um foco estrito no espaço
urbano a partir de sua organização material concreta e da ideologia enquanto mascaramento
da organização concreta real, presente em Villaça (1999). O que proponho é o
reconhecimento da importância das ideologias mobilizadas por esses planos na conformação
dos territórios urbanos, estando diretamente associadas aos elementos empíricos e discursivos
das cosmografias.
A preocupação com a organização de um espaço urbano que revele um “urbano
civilizado, progressista, desenvolvido” é elemento que ressalta nas fontes estudadas desde o
50
início da constituição do núcleo urbano de Uberlândia. Parece não haver alternativas para
falar da cidade sem passar pelo viés do progresso e do desenvolvimento, dada a força de uma
elite local que se constituiu inicialmente em torno de certas famílias dos “pioneiros” da
ocupação da região às quais se somaram novos sujeitos - principalmente comerciantes e
industriais - incluídos em uma experiência social tida como predestinada. Esses grupos
buscaram formular no discurso e projetar no espaço elementos que denotassem, desde o início
da constituição da cidade, princípios de civilidade, modernidade, progresso e
desenvolvimento. Referiam-se não apenas ao espaço urbano concreto mas também ao
comportamento das pessoas, classificando aquelas mais ou menos associáveis a essas idéias,
retirando-as ou excluindo-as de uma espécie de espírito interior que congrega a diversidade de
formas de uso e apropriação desse espaço.
Remoções, deslocamentos, dizimação de povos indígenas e quilombolas, fazem parte
da constituição do Triângulo Mineiro em geral e do espaço urbano de Uberlândia em
particular. Captar o modo como as perspectivas de ordenamento do espaço urbano e as
classificações das pessoas nesse espaço para sua conformação estão diretamente associadas a
certas ideologias requer uma breve retomada dos cenários que informam essa associação,
configurando os limites estruturais e históricos dos contextos em que as ideologias são
mobilizadas na conformação das cosmografias urbanas.
1.3. Uberlândia na esteira do progresso e desenvolvimento
A formação da cidade de Uberlândia é resultado do processo de colonização e
ocupação do interior do país que, nas regiões atualmente conhecidas como Triângulo Mineiro
e Alto Paranaíba, tem início por volta do século XVII, com as expedições sertanistas. Da
geografia histórica, Lourenço (2005) nos aponta a conformação das formas de contato com a
população indígena e quilombola na região, a formação do espaço agrícola e dos primeiros
núcleos urbanos, bem como a política colonial de ocupação do espaço no Triângulo Mineiro,
como elementos importantes a serem considerados na formação do território na região,
processos que tem relações diretas com a formação do espaço urbano.
Neste contexto, as populações nativas eram vistas a partir de uma noção de unidade do
gênero humano. A elas dirigiu-se uma interpretação secular do movimento histórico que
51
culminaria na civilização da humanidade, eurocêntrica por referência. Esta interpretação iria
se associar à conformação econômica e política das relações coloniais, fornecendo um
importante quadro para analisar as associações entre as ideologias do progresso e
desenvolvimento na constituição dos territórios na região do Triângulo Mineiro e na cidade de
Uberlândia. É a partir desse cenário que se configura uma idéia de que o progresso e o
desenvolvimento da cidade devem-se às riquezas naturais da região, à localização da cidade e
à genealogia das famílias “fundadoras” tomadas como “pioneiras”, “desbravadoras do sertão”.
A par da multiplicidade de agentes que constituem diferentes territórios no interior da
cidade de Uberlândia, uma elite que se formou ao longo de sua história buscou constituí-la
enquanto uma “história singular”, entendida como devedora de uma capacidade
empreendedora dos “desbravadores do sertão” na região do Triângulo Mineiro. Nela teriam
se estabelecido não como aventureiros, mas com propósitos firmes de ocupação e fixação
econômica, com objetivo de desenvolver a região, fundando um destino para aqueles que para
a cidade vieram, um destino que em Uberlândia, em sua concepção, adquiriu características
particulares aliando trabalho, ordem e progresso.
Percorrendo fontes históricas locais tais como jornais, revistas e trabalhos de
memorialistas, assim como diferentes produções acadêmicas, pude encontrar referências, em
diferentes décadas do século XX, dessa estreita associação entre trabalho, ordem e progresso
na cidade:
“A população é hospitaleira, franca e ativa, concorrendo tudo isso para seu engrandecimento. O
povo é laborioso e inteligente. Enquanto os homens trabalham na roça, as mulheres dos
agregados fiam e tecem. Todos cuidam com amor de sua obrigação. Aqui não se conhece
ociosidade
31
.
“... como os antigos bandeirantes que com seus próprios recursos perlustraram o desconhecido
interior, fazendo da ilha de Vera Cruz a grande nação continental brasileira, os novos
exploradores do século XX, pagando à terra os benefícios só delas colhidos, rasgam o seio
virgem, de caminhos na celeridade das projeções cinematográficas vão gritar aos brasileiros que
todo o interior do Anhanguera dista cinco dias de Santos, ou do Rio de Janeiro, ou de Belo
Horizonte ou de São Paulo
32
.
“A população em geral pobre, mas muito laboriosa e ambiciosa de melhorar, bastante cohesa
pelos tempos, esboçando o nucleo de uma nova aggremiação social e civil, que o tempo
amalgamou e tronou prospera e forte”
33
31
Capri, Roberto. Município de Uberabinha: physico, econômico, administrativo e suas riquezas naturaes e
agrícolas). S.P. Capri Andrade Editora, 1916, p. 21. Citado por Machado (1990).
32
Leme, Inácio Paes. “Viação no Triângulo”. A tribuna. Uberabinha, nº 49, 15/08/1920. Em referência à
Companhia Mineira de Autoviação Intermunicipal, que construiu as primeiras estradas de rodagem na região,
ligando a cidade de Uberlândia com as demais mencionadas, além de outras localizadas na região do Triângulo
Mineiro e Goiás. Citado por Soares (1995).
33
Pezzuti, Pedro. Parecer. In: Município de Uberabinha. História, administração, finanças, economia.
Uberabinha: Livraria Kosmos, 1922, p.12. Citado por Dantas (2001).
52
“O progresso é o ritmo ardente e sublime da grande epopéia do trabalho. Trabalhar é progredir
ao hino homérico das picaretas de aço e das impulsões das alavancas, surgem supremas as
parábolas de ouro do grande evangelho da indústria. O progresso é o batismo evangélico da luz,
vazando da ânfora imensa dos séculos sobre a cabeça dos povos”
34
.
Por uma escadaria originalíssima chegamos às elevações do club, onde se focalizam os seus
diversos compartimentos destinados a festas e danças, à biblioteca, ao bar e tantas outras
modalidades de conforto aos associados. Imponente, suntuoso e riquíssimos em arte e linhas
arquitetônicas, por sem vida, o Uberlândia Club. Empreendimento, aliás que projetará, ainda
mais o nome e as tradições, que o é de trabalho, de progresso e de grandeza no Triângulo
Mineiro”
35
.
“Porém a Uberlândia de 1961, a cidade trepidante, a monumental Uberlândia do progresso e do
trabalho, do asfalto e do s neon dista longa, longa etapa do vilarejo fundado por um mestre
escola. Hoje é a Uberlândia capital miniaturizada, um aglomerado de pessoas que trabalham
incessantemente. Uma agitação constante. Arranha-céus se erguem”.
36
“Desde os tempos de Uberabinha que a cidade deslancha em cima da estrada. Atrás das
picaretas, da pá, o caminho foi levado à civilização e espantando o bucólico carro-de-boi. E as
rodas que avançavam longe queriam mais e mais caminhos para que Uberlândia cumprisse os
sonhos de seus pioneiros e espalhasse pelos sertões goianos e mato-grossensses o progresso com
suas novidades chegadas da beira-mar”
37
.
“Uberlândia em sua origem, não está alicerçada em grandes fortunas, mas no trabalho de gente
que aqui se fixou, trazendo como referência sua profissão. Nosso caminho foi de pedra, forçando
crescimento único, para que seu fruto pudesse ser usufruído por tantos outros. Reconhecemos que
nossa trajetória é única e por isso inconfundível entre milhares de outras histórias. Os primeiros
passos foram lentos, porém seguros, fazendo com que a vida acontecesse rápida, nos moldes que
vivenciamos hoje. Uberlândia, fruto de trabalho responsável
38
.
Em meio a disputas internas e com as elites que se constituíram em outras cidades da
região, entre elas Uberaba e Araguari, a elite de Uberlândia, composta pelos setores
agropecuário, comercial e, posteriormente, industrial e de serviços, construiu e mobilizou uma
ideologia progressista ao longo de sua história, como um elemento característico e particular à
cidade, que funda e orienta seu progresso e desenvolvimento para atrair recursos e
empreendimentos. Na busca por compreender o modo como opera essa ideologia no processo
de significação da cidade como centro desenvolvido é importante remontar ao período de
colonização da região. Não é o intuito aqui esgotar as questões relativas ao processo de
colonização na região, mas apontar elementos que permitam combinar uma perspectiva
histórica com a análise antropológica, com vistas a traçar um esboço geral do cenário a partir
do qual se configuram as cosmografias urbanas que discutirei. Pretendo também situar, ao
longo da dissertação, dois movimentos simultâneos na conformação dessas cosmografias: a
34
Água... meus netinhos. A tribuna. Uberlândia, nº. 982, Ano XIV, 18/03/1936. Citado por Machado (1990).
35
O Repórter, 21.10.55, página 04.
36
Costa, Marçal. “Uberlândia, 73 anos de existência e trabalho”. Correio de Uberlândia, nº 9.241, 03/08/1961.
37
Silva, Antonio Pereira da. 50 anos trabalhando com amor:ACIUB. Uberlândia: Gráfica Sabe, 1984.
38
Virgílio Galassi. Prefeito Municipal de Uberlândia entre 1970-1973, 1977-1982 e 1996-2000. Entrevista
concedida ao Projeto Nossas Raízes. Secretaria Municipal de Cultura e Arquivo Público Municipal da Prefeitura
Municipal de Uberlândia. Disponível em Uberlândia (2000).
53
remoção ou deslocamento dos grupos sociais neles existentes, classificados mediante a
mesma ideologia mobilizada para ocupação e apropriação desses territórios.
1.3.1. Os “desbravadores” da Farinha Podre
As expedições sertanistas na região têm início por volta de 1682, quando uma
Bandeira liderada por Bartolomeu Bueno da Silva (o Anhanguera), partiu do trecho até então
conhecido, que chegava até Mogi-Guaçu (SP), retornando à Capitania de São Paulo com
notícias de achados de ouro na região situada entre Minas Gerais e Mato Grosso. Seu filho, o
Anhanguera II e João Leite da Silva Ortiz, partindo entre 1722 e 1725, descobriram as Minas
dos Goiases, nas cabeceiras do rio Vermelho, afluente da bacia do Araguaia. Num trânsito
pela picada aberta no caminho, posteriormente denominada Estrada do Anhanguera, paulistas
criaram arraiais em torno das lavras, as áreas de mineração, iniciando a colonização na região,
então denominada Julgado do Desemboque, conhecida como Sertão da Farinha Podre
39
,
deixando de pertencer à Capitania de São Paulo para passar à Capitania de Goiás em 1736
após disputas entre os governos destas.
No entanto, segundo Loureiro (2005), a colonização da região iniciou-se de fato após
1830. Até esse período a política territorial do Estado Colonial Português e do incipiente
Império brasileiro empreendeu o desaparecimento dos índios Caiapós aí localizados, resultado
da campanha de seu extermínio e aprisionamento empreendida por Antônio Pires de Campos
na região, uma vez que eram vistos como ameaça à estabilidade dos arraiais de ouro em Goiás
e ao trânsito na estrada do Anhanguera. Paralelamente a essa campanha, constituiu-se
aldeamentos sob direção de um padre jesuíta, um administrador e um governador dos índios,
nos quais foram distribuídos índios bororos, parecis, chacriabás e acroás, que ficariam
responsáveis pela defesa do trânsito na estrada, sob jurisdição da Capitania de Goiás que
temia a disputa com as autoridades mineiras pela região. A ausência de povoados e fazendas
na região nesse período é atribuída por Lourenço (2005) à política territorial do Império
39
Segundo Dantas (2009) duas explicações para esse nome entre os memorialistas da região: “A primeira
delas é atribuída a uma lenda, segundo a qual alguns viajantes, ao passarem pelo território, em direção às minas
goianas, deixaram algumas bruacas com torrões de farinha de mandioca, porque era comum fazerem depósito de
víveres próximo a ribeiros [sic], ao retornarem, essas haviam apodrecido. A segunda explicação é menos
fantasiosa e se apega a fatores mais razoáveis, afirmando que o nome não é original, visto, em Portugal, existiu a
freguesia São Paio da Farinha Podre e, no centro-oeste mineiro, um córrego de mesma alcunha, afluente do
rio das Mortes” (Teixeira apud Dantas, 2009:27)
54
português e à resistência caiapó entre Goiás, noroeste de São Paulo, Pontal do Triângulo e
leste de Mato Grosso do Sul (Lourenço, 2005: 54).
Nesse período, a ocupação do interior da Colônia foi marcada inicialmente pela
distribuição de vários territórios restritos às regiões auríferas, com “vazios” ocupados pelas
populações indígenas resistentes. Entre elas, o trânsito nas picadas abertas, foi restringido à
estrada do Anhanguera, posteriormente tornada oficial e denominada Estrada Real, sendo
proibida a abertura de novas e o trânsito pelas outras, com o objetivo de desestimular os
fluxos não controlados pelo Estado e contrabandos nessas regiões. A região, então,
denominada Sertão da Farinha Podre, passou a ter um papel defensivo e militar, bem como de
pouso de tropas nos aldeamentos indígenas para os viajantes que transitavam na região entre
São Paulo e Goiás (Lourenço, 2005).
Com a reformulação da política territorial realizada pelo Marquês de Pombal, na
segunda metade do século XVIII, o povoamento da Colônia passou a ser uma importante
questão na disputa de territórios com a Espanha. De inspiração iluminista, a estreita
associação entre Território e Povo, para a soberania do Estado, promovida pela administração
pombalina, implicou numa busca pela laicização da administração da colônia, com o
estabelecimento dos chamados Diretórios, substituindo a elite religiosa jesuítica por homens
de confiança da aristocracia colonial, comerciantes e funcionários seculares (Marcílio apud
Lourenço, 2005).
A demarcação de fronteiras e o povoamento do território colonial foram outra
estratégia utilizada pelo Marquês, como forma de refrear as ambições da Espanha e também
da Inglaterra que, em apoio a Portugal na guerra contra Espanha, adquiriu grande influência
sobre a administração da colônia. As populações indígenas passaram, então, a serem vistas
como fonte de povoamento associado ao estímulo ao estabelecimento de populações brancas
nos aldeamentos, de modo a ampliar as condições de miscigenação. Nessa política territorial
pombalina para as colônias, a evangelização para o desenvolvimento ou evolução espiritual dá
lugar prevalecente à civilização via miscigenação. Com uma clara intenção civilizadora,
buscava acabar com as influências indígenas, tidas como inferiores, e intencionava
homogeneizar cultural e racialmente a colônia pela miscigenação e europeização, sendo uma
das estratégias utilizadas a proibição do uso das línguas nativas, tornando o português a língua
oficial.
“Durante o século XVIII houve um projeto civilizador voltado para a Colônia. Embora
tenha sido desenvolvido na Metrópole, tal projeto foi, em linhas gerais, absorvido pelas
elites coloniais. Uma das principais idéias era a crença de que a sociedade branca vista
55
como a „civilizada‟, deveria incorporar outras áreas à fronteira, preferencialmente ricas e
com possibilidades de produzirem. (...) O Projeto Civilizador proposto para Minas Gerais
seria levado a efeito se houvesse um controle sobre a existência dos que viviam no
Sertão, e se este fosse estendido também às terras” (Amantino apud Dantas, 2009:27).
A grande pressão sobre a região aurífera, na porção central de Minas, gerada pelo
crescimento demográfico e a produção agrícola que essa população exigia - contando com
cerca meio milhão de pessoas por volta de 1763 - estimulou a emigração para as regiões de
fronteira, dos então geralistas, marcando uma decadência da produção aurífera nas comarcas
da região central da Capitania de Minas Gerais e o enriquecimento de outras, como as de
Paracatu
40
, Serro Frio
41
e principalmente a de Rio das Mortes
42
, a partir de atividades
agropastoris e manufatureiras (Lourenço, 2005).
No entanto, a ocupação da região mais à oeste, hoje conhecida como Triângulo
Mineiro e Alto Paranaíba, até então pertencente à Capitania de Goiás, enfrentou a resistência
dos quilombos localizados próximo à Picada de Goiás
43
. Várias foram as expedições de
extermínio dos quilombos no bojo das reformas pombalinas, em pleno apogeu do projeto
geopolítico de ocupação do interior da colônia face à influência estrangeira.
De acordo com Lourenço (2005), nesse ínterim, concomitantemente às expedições de
extermínio, em apenas um ano foram concedidas um total de 362 sesmarias na região de
localização dos quilombos, próxima à Picada de Goiás, na região dos Arraiais do
Desemboque e de Araxá. Nestas, as águas salitrosas, juntamente com as proximidades das
picadas de Goiás e Desemboque, contribuíram para a transformação da região em pólo da
pecuária extensiva de corte.
Lourenço aponta que se pode identificar, até então, duas formas diferentes de
ocupação. Foi a localização dos núcleos mineradores de acordo com as determinações
geológicas da extração que conformou o traçado das estradas, ligando-os aos núcleos de
exportação no litoral. Já na ocupação pela atividade agropecuária, as picadas funcionavam
como vetores ao longo dos quais iam se instalando as fazendas e fundando povoados, que
dependiam do acesso aos mercados para a comercialização nos núcleos urbanos do leste. De
acordo com Lourenço (2005) essas ocupações se estruturavam em parentelas, desde as
40
Atualmente constituída por partes das mesorregiões do Alto Paranaíba, Noroeste e Norte de Minas Gerais.
41
Atualmente constituída por partes das mesorregiões do Norte de Minas, Vale do Jequitinhonha e Mucuri.
42
Composta atualmente por partes das mesorregiões Sul/Sudoeste de Minas, Zona da Mata e Campo das
Vertentes.
43
Estrada aberta para retirar a extração do ouro de Goiás da influência paulista existente na estrada do
Anhanguera e passar o controle da fiscalização à região aurífera de Minas, drenando-a diretamente para o Rio de
Janeiro.
56
expedições sertanistas até os assentamentos das fazendas e arraiais, uma condição importante
para a exploração da terra:
“Normalmente, após um pioneiro tomar posse das novas terras, voltava ao núcleo de
origem para trazer sua família esposa, filhos, dependentes e escravos, se os tivesse
para iniciar a estruturação do sítio ou fazendas. Após algum tempo, uma vez constituída a
unidade produtiva, o pioneiro poderia retornar várias vezes à região de origem para
buscar parentes (consangüíneos ou rituais), para que se estabelecessem nas vizinhanças
(Lourenço, 2005:125).
Em 1807, nos relata Lourenço (2005), o geralista Antônio Eustáquio se estabelece nas
terras de seu irmão José Manoel de Oliveira e Silva, que o antecedeu na região e, em 1812,
construiu uma chácara denominada Boa Vista, em terras indígenas, na vizinhança da Aldeia
de Uberaba, um dos aldeamentos bororos criados no século XVIII que passaram a estar sob
sua direção ao ser nomeado diretor dos índios aldeados na faixa da Estrada dos Goiases,
durante a política territorial pombalina. No mesmo ano é erigida a capela de Santo Antônio e
São Sebastião e então criado o arraial da Farinha Podre, que adotaria o nome de Uberaba em
1820 (Pontes apud Lourenço, 2005).
Atraídos pelas terras férteis em torno desse arraial, especificamente na área entre o rio
das Velhas e Uberaba Legítimo
44
, onde hoje se localiza a cidade de Uberlândia, o geralista
João Pereira da Rocha, se apossou de terras devolutas na região, próximas às margens dos rios
e córregos, onde os solos eram de melhor qualidade (Soares, 1995) e, em 1821, obteve sua
carta de sesmaria. Acompanhado de alguns homens, montou benfeitorias e plantou roças,
voltando em seguida a Paraopeba para buscar a família, escravos e protegidos. Seus quinze
filhos se estabeleceram em suas terras, além de ter cedido posses em seus domínios a outros
dependentes. Algum tempo depois, José Alves de Resende, conhecido de João Pereira da
Rocha em sua região de origem, Paraopeba, estabeleceu sesmaria em terras vizinhas às deste,
ambas terras indígenas. Estas, por ação de Antônio Eustáquio, diretor dos aldeamentos e
sargento-mor da região do Sertão da Farinha Podre, juntamente com sesmeiros, fazendeiros e
pequenos sitiantes, foram expropriadas e os índios deslocados e concentrados numa área mais
ao norte, dentro da política de concentração de grupos indígenas (Carneiro da Cunha apud
Lourenço, 2005).
Em 1822 o regime sesmarial é extinto e, por mobilização da aristocracia rural cafeeira,
em 1850, a lei . 601 de 18 de setembro, Lei de Terras, é instituída. Correia (2002)
procurando entender as categorias de posse e propriedade na região do Parque Nacional
44
Hoje denominado Rio Uberabinha.
57
Grande Sertão Veredas, nos aponta que, com a instituição da Lei de Terras, é criado o
instituto da propriedade privada no Brasil, passando a aquisição da terra a dar-se somente
mediante compra, fundamentando o modelo capitalista baseado na concentração fundiária da
terra e na produção para o mercado externo. De acordo com o autor, os trabalhadores ficaram
atrelados ao latifúndio, podendo até adquirir um pedaço de terra, mas a compra ficou atrelada
à venda de sua força de trabalho para acumulação de um capital.
Acompanhando esse processo na região estudada com Oliveira (1997), podemos
perceber que, no final do século XIX, temos uma nova configuração das relações, que
seqüência àquela iniciada pela Lei de Terras, com a mudança do trabalho escravo, em 1888,
para o trabalho livre. É nessa conjuntura, segundo o autor, que o lema positivista ordem e
progresso é incorporado ao imaginário brasileiro, associando a nova noção de trabalho às
idéias de ordem e progresso.
É nesse cenário que se a formação do cleo urbano da cidade de Uberlândia,
caracterizado por um controle político, econômico e ideológico da terra urbana e rural, que se
reflete no modo como ao longo de sua história vão sendo constituídas diferentes cosmografias
urbanas.
1.3.2. Formação e „fundação‟ da cidade na “boca do sertão”
A formação do povoado que deu origem à cidade de Uberlândia se deu a partir da
venda, em 1832, de parte das terras de João Pereira da Rocha a Luiz Alves Carrejo e seus três
irmãos. A construção da paróquia Nossa Senhora do Carmo, em 1857, na fazenda de
Felisberto Alves Carrejo, entre os córregos São Pedro e Cajubá
45
, oficializou o arraial com
nome de Arraial de Nossa Senhora do Carmo e São Sebastião da Barra de São Pedro de
Uberabinha
46
. O arraial mais tarde foi elevado à categoria de vila, emancipando-se da
45
Ver Anexo 4
46
De acordo com Dantas (2001:30), “... o nascimento das cidades no Brasil está ligado ao relacionamento entre
o Estado e a Igreja, esta que exercia um papel político e social, normativo e institucional. Geralmente, a
aglomeração humana se dava ao redor de um templo ou capela, que era a garantia de auxílio mais próximo, de
serviços institucionais (registros de nascimento, batismo, casamento) e eclesiásticos. À medida que ocorria o
reconhecimento das categorias eclesiásticas para uma construção, quais sejam capela, paróquia e matriz, o
reconhecimento civil do povoamento era simultâneo, ou seja, a construção da capela sinalizava o povoado, a
paróquia designava o arraial e, por fim, a matriz identificava a freguesia”. As categorias posteriores seriam vila
e cidade.
58
Comarca de Uberaba com o nome de São Pedro de Uberabinha, em 1888 e, em 1929, adota o
nome Uberlândia.
Alem (1991) aponta uma apropriação seletiva da terra no Triângulo Mineiro, no
contexto de sua constituição enquanto mercadoria, com a promulgação da Lei de terras em
1850, na medida em que os sesmeiros continuaram lançando mão da atração de parentes e
conhecidos para a aquisição das terras. Assim, a formação do povoado entre as primeiras
fazendas e a expansão do solo urbano estando atrelada à incorporação das terras rurais cria um
continuum de concentração de terras rurais e urbanas. Desse modo, as terras destinadas ao
núcleo urbano aparecem como mercadoria e como expressão do poder político da elite
proprietária, que faz da emergência da cidade um processo controlado” (Alem, 1991:86).
Segundo o autor, é quando a cidade se torna centro de produção e acumulação econômica que
o controle político e econômico sobre o solo urbano terá importância ainda maior,
expressando-se na diferenciação sócio-econômica e espacial da população do arraial, numa
indicação de que “deter capital imobiliário é decisivo na composição das elites políticas
locais, ao longo de toda a história de Uberlândia” (Alem, 1991:87).
Ao controle da terra urbana esteve associado o processo político de constituição do
espaço urbano, desde a formação do arraial, para o qual algumas famílias proprietárias de
terras se juntaram para definir a terra que lhe seria destinada, por compra dos sesmeiros ou
doações destes para a capela. A construção da capela evitava a necessidade de deslocar-se a
um arraial distante para as realizações religiosas e institucionais que lhe eram inerentes. Essa
mesma conformação política é apresentada por Dantas (2009) como importante elemento para
a emancipação da freguesia da Comarca de Uberaba, que marcou as disputas políticas de
Uberlândia, à época São Pedro de Uberabinha, entre os líderes políticos dos grupos
Chimangos e Cascudos (liberais e conservadores, respectivamente) por uma união situacional
em prol da emancipação que significava, para ambos os partidos, “maiores espaços políticos e
oportunidades para o desenvolvimento da freguesia” (Dantas, 2009:43).
A par dos sérios conflitos existentes entre os líderes políticos liberais e conservadores,
posteriormente denominados coiós e cocões, Dantas (2009) aponta que não havia
significativas diferenças ideológicas entre eles, interessando-lhes manter-se no poder. Um
quadro que, segundo Jesus (2002), permanecerá até a década de 1980 do século XX.
Essa articulação político-econômica marcou o esforço desses grupos por
transformações na cidade que pudessem alçá-la como centro mais importante política e
economicamente do extremo oeste mineiro”, então conhecido como “boca do sertão”, face a
duas outras importantes cidades da região, Araguari e Uberaba. Como esclarece Dantas
59
(2009), o léxico sertão no Brasil do século XIX não indicava um espaço geográfico
específico, designando negativamente as áreas despovoadas, afastadas do litoral e desprovidas
de melhorias técnico-científicas, desconhecedoras de hábitos modernos, portanto, distantes, da
“civilização”. Segundo a autora, a elite local comercial e agrícola buscou distanciar-se da
associação com a “boca do sertão”, para destacar a cidade face às demais, através de uma
“fabricação” do urbano pela modernidade e progresso. Para tanto, em sua perspectiva,
requeria-se o controle e manutenção do poder não apenas na cidade, mas também na região
(Dantas, 2009).
A mobilização de uma ideologia do progresso e desenvolvimento promovida por esses
grupos teve papel significativo nessas disputas. Para tanto, contribuíram, além da ação e
articulação direta de sua elite local em busca da atração de investimentos para a cidade -
estreitamente articulados às políticas nacionais e internacionais de progresso e
desenvolvimento a produção de uma série de trabalhos de memorialistas e a atuação dos
órgãos de imprensa locais.
Dantas (2001) procura compreender a gênese do discurso que proporcionou a
consolidação da associação da imagem de progresso à cidade tanto quanto a constituição de
um “imaginário grandiloqüente” associado às noções de trabalho, ordem e progresso.
Segundo a autora, os memorialistas geralmente são pertencentes ao chamado grupo de
intelectuais da cidade que têm como interlocutor privilegiado a elite local e geralmente
desenvolvem seus trabalhos com apoio institucional. Pretendendo reproduzir a história com
base na “exatidão dos fatos”, realizam uma seleção e uma versão de acordo com a
interpretação que mobilizam e que querem destacar. Para Dantas (2001:72) sua importância
reside em que como “formadores de um discurso vieram consolidar as representações
construídas pela classe dominante, confirmando e legitimando-as, garantindo assim a
hegemonia do grupo político no poder, ao mesmo tempo em que buscavam forjar uma dada
memória”.
Em geral têm formação acadêmica, às vezes exercendo ao mesmo tempo a profissão
de professor, jornalista, vereador, etc., o que lhes confere um poder simbólico no
fornecimento de sentido ao mundo na produção do imaginário local
47
. Como guardiões da
47
De acordo com Dantas (2001), o imaginário tem sido confundido com outras noções vizinhas: representação,
símbolo e ideologia. Buscando diferenciá-los para localizar sua análise, a autora, baseando-se em Jacques Le
Goff e Roger Chartier, propõe que representação seja entendida como “um processo de abstração intelectual,
configurações que conferem sentido ao mundo”. O imaginário é tomado, então, como sendo a materialização da
representação, uma resposta à dinâmica conflituosa desta, ao operar com projeções futuras. No entanto,
imaginário se difere do mbolo, uma vez que este, em sua concepção, “exprime uma correspondência entre um
objeto e outro, espelha o referencial sem ultrapas-lo. Já o imaginário se sobrepõe ao referencial sem a
60
memória histórica local, os memorialistas aparecem como intérpretes do poder público local
para referenciar suas ações interna e externamente à cidade, ao mobilizar os signos do
desenvolvimento como interpretantes (Peirce, 1955) para significar a cidade, o espaço urbano,
o estilo de vida dos moradores, planos e projetos para a cidade
48
.
Suas obras são caracterizadas pela exaltação aos acontecimentos sociais, políticos e
econômicos que marcaram o desenvolvimento da cidade desde seus primórdios, pela
glorificação dos “personagens ilustres”, representantes da elite local, pela ênfase num espírito
progressista da população, considerada ordeira e laboriosa, pela produção das corografias
49
,
relatos dos melhoramentos realizados e pelo uso de fotografias de personagens políticos e
lugares da cidade considerados importantes. Todos esses elementos interpretados segundo os
signos do desenvolvimento. As obras têm como tema a cidade em geral ou a história de
determinadas instituições, como a da Associação Comercial e Industrial de Uberlândia
(ACIUB), ou de “personagens ilustres”, como por exemplo, a biografia de Alexandrino
Garcia, presidente da Companhia de Telefones do Brasil Central (CTBC), considerado um
dos maiores empresários da cidade, ambas as obras de autoria de Antonio Pereira, que os
considera como tendo estreita influência e colaboração com o desenvolvimento da cidade.
De acordo com Dantas (2009), desde os últimos anos do século XIX e primeiros do
século XX, é comum entre os memorialistas, e nas demais produções historiográficas da
cidade, atribuir o seu progresso a determinadas pessoas. É nesse sentido que a cidade é
“fundada” pelos pioneiros e não formada a partir de um processo histórico que incluiria os
necessidade de eximi-lo”. Por fim, imaginário se distingue de ideologia, na medida em que a segunda “tende a
impor à concepção de mundo um sentido de mascaramento que legitima as formas de dominação” (Dantas,
2001:19). A meu ver, o trabalho de Dantas aproxima-se deste na medida em que toma os sujeitos sociais na
mobilização dos símbolos e as relações de poder inseridas na produção local do imaginário composto pelas
noções de progresso e civilização. No entanto, afasta-se na medida em que este trabalho considera esta produção
local a partir das origens da própria noção de progresso e desenvolvimento, portanto, requerendo considerar as
configurações sociais no plano nacional e do sistema mundial. Desse modo, ao considerar a mobilização pelos
sujeitos locais das noções de progresso e desenvolvimento, considero-a no interior das estruturas sociais e
históricas nas quais esses sujeitos estão inseridos, especificamente as políticas coloniais e posteriormente
nacionais de ocupação do território nacional e de estabelecimento de núcleos urbanos. É a consideração desses
limites estruturais e históricos na formulação e mobilização das idéias pelos sujeitos sociais no interior dos
processos comunicativos que permite trabalhar com uma noção de ideologia distanciada da idéia de
mascaramento da realidade.
48
Dentre as principais obras memorialistas na cidade podemos destacar: CAPRI, Roberto Capri. 1916.
Município de Uberabinha.Physico, econômico, administrativo e suas riquezas naturaes e agrícola. São Paulo:
Andrade e Dia, 1916. PEZZUTI, Pedro. Municipio de Uberabinha. Uberabinha: Typ. Livraria Kosmos, 1922.
Arantes, Jerônimo. 1938. Corografia do Município de Uberlândia. Uberlândia. Pavan. ______1957. Monografia
de Uberlândia. Rio de Janeiro: Universal Publicidad. ______ 1972. Como fizeram Uberlândia. ______ 1982.
Memórias Históricas de Uberlândia. Ed. Uberlândia: Zardo. ______1980. Álbum da Câmara Municipal de
Uberlândia. Uberlândia: Zardo. ______. 2003. Cidade dos sonhos meus: memória histórica de Uberlândia.
Uberlândia: Edufu.TEIXEIRA, Tito. 1970. Bandeirantes e Pioneiros no Brasil Central. História da criação do
município de Uberlândia: Uberlândia Gráfica.
49
Tratam-se de textos em que são descritos os aspectos geográficos da cidade.
61
conflitos com a população existente. Aos “fundadores” são associadas características que
posteriormente identificariam os indivíduos que coadunassem com o destino de progresso e
desenvolvimento “fundado” por eles, dentre elas a de ser uma pessoa idônea, laboriosa,
religiosa e instruída, empreendedora, honesta e não dada a conflitos, consciente de suas
atitudes no interior de um projeto de civilização do interior de Minas Gerais, que aja junto
com outros, num projeto coletivo para a edificação de Uberabinha. “Desse modo, demonstra-
se que o progresso local tem lastro, é verídico e autêntico” (Dantas, 2009:50).
A imprensa também exerceu papel importante. O primeiro jornal foi criado no ano de
1897, e seguido de vários outros, de duração efêmera
50
. Em geral, estavam associados ao
grupo que constituía o governo municipal da época ou à sua oposição. Seja de que lado
estivessem, reivindicavam o propósito de contribuir para o progresso da cidade e declaravam
ter por objetivo fazer a cidade ser conhecida além das fronteiras regionais para alcançar uma
posição de importante centro comercial. De nenhum modo marcados por um discurso
homogêneo e ileso aos conflitos, os jornais à época eram palco de disputas pelos grupos
políticos locais, cocões e coiós, ambos, no entanto, circulando em torno de uma mesma
ideologia, a do progresso local.
“Como uma tribuna, muitas vezes, suas ginas eram palco das disputas pelo domínio
político das frações da classe dominante, reivindicações de melhoramentos, vitrine de
paisagem urbana, esclarecimentos diversos, defesa ardorosa de princípios e projetos,
panfletagem política, demonstração das condições sociais, políticas e culturais. Em suma,
um espaço privilegiado de lutas em que suas palavras de ordem buscam consenso em torno
dos projetos sociais e políticos vencedores” (Dantas, 2001:105).
De propriedade particular, em algumas ocasiões declarando seu apoio explícito a um
dos partidos, cocão ou coió, por vezes estes jornais eram utilizados pela Câmara Municipal
para apresentar relatórios, prestações de contas, atas das reuniões, publicar leis, etc. Em sua
atuação, estes jornais estiveram estreitamente associados às reivindicações da elite local por
empreendimentos que pudessem efetivar o progresso da cidade (Dantas 2001; 2009). No
entanto, qualificavam-se por uma neutralidade e factualidade de suas notícias. Reivindicando,
tal como os memorialistas, uma função referencial da linguagem (Jakobson, s/d), plena de
50
Dantas (2001, 2009) relata a existência de mais de quarenta títulos de jornais; um número, segundo a autora,
considerável para uma média populacional de 10.00 habitantes, de maioria analfabeta, e considerando-se as
dificuldades de comunicação e distância das principais cidades do país. Entre 1897 e 1929 relata: A Reforma,
Gazeta de Uberabinha, A nova Era, O Progresso, A Livraria Kosmos, Paranahyba, O Brasil, O Commercio, O
binóculo, O Diario de Uberabinha, A Noticia, A Escola, A Tribuna, A Chispa, O Aerolitho, O Lampeão, O
Corisco, O Garotinho, O Lápis, O Rabixo, O Relâmpago, O Sabre, A Letra 7, A Esperança, Sertão Judiciário, A
Espora, Reflexo, O Alarme, A Reação, A Marposa, A Farpa, Triangulo Mineiro, A Garra, O Ideal, O Município,
A Folha Municipal, Cidade de Uberabinha, A Semana, A Voz de Uberabinha, Ferrão, Gavião, Martelo,
Chaleira, Violino, A Escola e Almanak de Uberabinha (Dantas, 2009:101).
62
objetividade, as interpretações fornecidas por estes jornais pretendiam uma relação direta com
a realidade factual.
De acordo com Dantas (2009), as reportagens destes jornais eram marcadas pela
identificação de problemas urbanos e pela convocação para a mobilização para sua resolução,
prenunciando um futuro de progresso. Além disso, havia anúncios de produtos diversos, bem
como de moda européia, instruções de conduta à mesa, aulas de idioma francês e de piano,
divulgação de um clube literário, realização de espetáculos teatrais e bailes, signos locais e
nacionais da civilização, modernidade e progresso, os quais, segundo Dantas (2009: 104) são
indicativos da preocupação da elite local por atualizar-se de acordo com o que acontecia e era
consumido em outros locais, como Rio de Janeiro e São Paulo.
A articulação entre a elite local, os memorialistas e a imprensa, referencia-se e resulta
em uma série de projetos políticos para alcançar o progresso e desenvolvimento local. Entre o
final do século XIX e o início do século XX, o traçado urbano, a arquitetura das casas e a
distribuição das atividades no espaço urbano existentes passam a ser entendidos como
atrasados, não-civilizados, bem como as técnicas utilizadas no campo. A circulação e criação
de animais na cidade, a poeira nas ruas, a arquitetura colonial das casas, a configuração
irregular do espaço
51
e os hábitos de seus moradores passaram a ser entendidos pela elite local
como rústicos e rurais. Aspectos estes que a elite tratava de afastar da cidade para nela
imprimir ares de civilização, modernidade e progresso.
“No traçado final do século XIX, a cidade, circundada por chácaras, assemelhava-se ao
patrimônio primitivo com pouco mais de uma dezena de logradouros. A cidade que nascera
dos caminhantes e do trajeto dos geralistas lembra o caráter “semeador” de que fala
Buarque de Holanda, pelo qual as cidades brasileiras, como as demais de colonização
portuguesa, não chegaram a contradizer o quadro da natureza, enlaçando na linha da
paisagem. O mundo rural interpenetrava o espaço urbano em formação; a irregularidade
marcava o traçado de ruas estreitas, dos becos e do acanhado núcleo e o aumento
populacional exigiria a expansão do sítio territorial, incorporando áreas rurais (Dantas,
2009:108-109).
Dantas (2009) aponta que estas transformações se iniciam com a modernização do
campo a partir da inserção de técnicas de manejo e cultivo do solo, mecanização da lavoura e
disciplinarização do trabalhador. Uma modernização do campo estreitamente associada à da
cidade, através da reformulação do espaço urbano e o reordenamento das atividades em seu
interior. Uma complementaridade campo e cidade que também se expressava na produção
agrícola e industrial nascente. Desse modo, o espaço urbano começa a ser transformado de
51
Ver Anexo 5.
63
modo a nele imprimir aquilo que era interpretado como moderno, associado a progresso e
civilização, em estreita relação com o campo.
A pretendida organização do espaço urbano ocorre no mesmo contexto de uma série
de alterações sobrevindas na cidade que são tomadas na maioria das fontes consultadas como
advindas do tripé Ferrovia Ponte - Estradas de rodagem. Em decorrência das ligações
comerciais estabelecidas pela elite local com a economia paulista, predominantemente
cafeicultora, através do fornecimento, para aquela região, de cereais, principalmente arroz e
milho, um crescente fluxo foi estabelecido entre o Triângulo Mineiro e o estado de São Paulo.
À construção de uma ferrovia pela Companhia de Estradas de Ferro Mogiana, em 1895,
ligando Campinas à região, à construção da ponte Afonso Pena sobre o rio Paranaíba, em
1909, ligando Minas Gerais a Goiás e à criação da Companhia Mineira de Autoviação, em
Uberlândia, para a construção de estradas ligando a cidade à ponte Afonso Pena e a outras
cidades no Triângulo Mineiro, sul de Goiás e Mato Grosso, é atribuída a constituição das
condições propícias decisivas para que as ligações comerciais com a economia paulista
impulsionasse o crescimento econômico e populacional da cidade de Uberlândia, à época
Uberabinha, contribuindo significativamente para seu destaque em relação a Araguari e
Uberaba:
Uberabinha vendia e comprava, financiando com sua riqueza florescente, o
desenvolvimento de outras regiões, eis que seus prazos nas vendas atingiam até doze
meses, enquanto que as compras feitas na região eram à vista, eis que eram pagas as
mercadorias. Além do próprio comércio, Uberabinha participava como entregadora das
vendas diretas feitas aos grandes centros de São Paulo e Campinas. Recebia esses
produtos em consignação e os armazenava até que os carros de boi chegassem para
apanhá-los. Couro, banha, fumo, recebidos como pagamento de abastecimento eram
imediatamente repassados aos compradores paulistas. E tudo isso afinal, foi o embalo
inicial do nosso progresso, circulando através da Ponte Afonso Pena, da Cia Mineira de
Viação e da Mogiana
(Silva, 1983:12).
As disputas entre as elites locais de cada uma dessas cidades estiveram estreitamente
associadas ao processo de constituição desse tripé. Uberaba foi a primeira a se destacar
economicamente. Dos estudos econômicos sobre a constituição de Araguari, Uberaba e
Uberlândia enquanto núcleos urbanos, Guimarães (1991), numa visão compartilhada por
Lourenço (2005) e Dantas (2009), aponta que o destaque inicial de Uberaba deveu-se à rota
fluvial que ligava o percurso entre os portos paulistas e o rio Grande, no porto de Ponte Alta,
próximo a Uberaba, estabelecendo uma segunda “rota salineira” através da qual vendia-se o
gado para o litoral e comprava-se sal para abastecer a região do Triângulo, Mato Grosso do
64
Sul e Goiás. A movimentação de mercadorias e pessoas, decorrente da instauração desse
porto, contribuiu para o crescimento econômico e populacional de Uberaba, por volta de
1850, fazendo surgir na cidade a expressão “Paris Rio de Janeiro Uberaba” para se referir
à condição de modernidade que alcançara como centro de negócios e sócio-cultural (Dantas,
2009). O desvio da rota salineira para o rio Paraguai provocou uma crise no período inicial de
constituição de seu núcleo urbano. Mas Uberaba teve novo crescimento econômico com o
atendimento da demanda de algodão em decorrência da guerra civil norte-americana, por
volta da década de 1860, que atingiu a produção algodoeira do sul dos Estados Unidos, bem
como da Guerra do Paraguai, tornando-se ponto de passagem e abastecimento de tropas que
para lá se dirigiam.
Novo impulso para Uberaba adveio no período do fim do Império, momento em que a
economia brasileira baseia-se no modelo agrário exportador que prevaleceu até a década de
1930. Nesse contexto é construída uma ferrovia pela Companhia Mogiana de Estradas de
Ferro, em 1889, com início em Campinas e ponta de linha em Uberaba, com capitais
advindos dos produtores paulistas de café e dos incentivos do governo. A importância
econômica da ferrovia na região, segundo Guimarães (1991), relaciona-se à expansão da
produção para o fornecimento de produtos ao litoral, à entrada da imigração européia e dos
produtos manufaturados, bem como às existentes discussões sobre os propósitos de
transferência da capital federal para o Centro-Oeste. A construção da estação ferroviária em
Uberaba, segundo o autor, estabeleceu seu domínio sobre o território do Triângulo Mineiro,
Mato Grosso e Goiás. Assim, Uberaba destacou-se economicamente e como referência de
modernidade e civilidade com a existência de escolas, teatro, cinema, construções
arquitetônicas segundo os padrões urbanísticos europeus, levando suas elites a cunhar-lhe o
título de “Princesa do Sertão” (Dantas, 2009).
Quando em 1897 a linha férrea Mogiana é estendida até a cidade de Araguari,
passando por Uberlândia (à época, Uberabinha), as transações de mercadorias entre São Paulo
e Goiás passam a estar concentradas em Araguari e Uberaba sofre uma retração em seu
domínio, dividindo-o com aquela cidade. Quando, em 1911, Rodrigues Alves, na presidência
da República, se compromete com o governo de Minas Gerais a eleger como seu sucessor
Afonso Pena, então governador de Minas Gerais, caso a extensão da ferrovia para Mato
Grosso tivesse ponto de origem em São Paulo, e não em Uberaba, a cidade sofre novo
retrocesso no comércio, fixando as bases de sua economia na produção de gado Zebu.
Mantém sua força econômica, mas conhece uma paulatina retração do seu domínio
econômico face a Araguari e Uberabinha.
65
Em Uberabinha, a passagem dos trilhos da Mogiana pela cidade para alcançar
Araguari, segundo Guimarães (1991), Dantas (2001 e 2009), Soares (1988; 1995), não causou
impacto inicialmente sobre sua colocação regional frente a Araguari e Uberaba. Para esses
autores, a cidade ganhou impulso econômico somente após o empreendimento privado da
construção da ponte Afonso Pena sobre o rio Paranaíba, em 1909, juntamente à construção de
uma ligação por estrada de rodagem da cidade a esta ponte e às demais cidades do Triângulo
Mineiro, em 1913, pela Companhia Mineira de Auto-Viação Intermunicipal, de propriedade
de um morador de Uberabinha.
Além do tripé Ferrovia-Estrada-Ponte, como fonte inicial de impulso econômico da
cidade, algumas fontes ressaltam suas condições topográficas (Guimarães, 1991) e
geográficas (Soares, 1995) ou os interesses do governo da Primeira República (Guimarães,
1991) na construção da ponte. Outras ressaltam a intervenção direta de empresários, políticos
e fazendeiros da própria cidade seja no traçado da ferrovia (Temer, 2001), na construção das
estradas de rodagem (Soares, 1988 e 1995), ou na construção da ponte e da ferrovia (Dantas,
2001, 2009; Machado, 1990).
Uma disputa se estabelece, então, entre as elites para destacar suas cidades na região
do Triângulo Mineiro. Se Uberabinha havia se destacado em relação a Uberaba, dada a
redução do fluxo econômico desta, para sua elite comercial, agrária e industrial nascente, o
ritmo do processo de urbanização que conferia nova estética ao espaço urbano, o início das
atividades industriais, a posição de entreposto comercial constituída pelo tripé Ferrovia-
Estrada-Ponte, eram elementos importantes para destacar-se frente às demais. Faltava agora,
Araguari. Os jornais locais, bem como a produção de memorialistas das três cidades são o
espaço privilegiado para expressão dessas disputas.
Um dos elementos tomados para compor tais justificativas é a noção de posição
geográfica privilegiada ou estratégica, composta inicialmente pelo tripé Ferrovia-Estrada-
Ponte, bem como pelas condições geográficas marcadas por terra fértil, água abundante e
topografia favorável à agricultura, às quais posteriormente se somaram as rodovias que
passam pela cidade e a distância entre grandes capitais do país: São Paulo, Rio de Janeiro,
Belo Horizonte (e, posteriormente, Goiânia e Brasília). Num conjunto de tipificações que vão
compondo essa noção, ela emerge na imprensa local e discursos políticos, como um signo
interpretante (Peirce, 1955) que desde esse contexto segue sendo mobilizado pela imprensa
local em diferentes contextos, por algumas produções acadêmicas locais, bem como pelo
poder público e pelas diversas empresas estabelecidas na cidade em seus sites institucionais
para significar a cidade como desenvolvida e favorável à atração de novos investimentos.
66
Com o crescimento econômico e populacional de Uberabinha, atribuído à sua posição
geográfica privilegiada/estratégica, o espaço urbano começa a ser ordenado de modo a
conferir-lhe a “civilidade” compatível com o progresso por vir. Progresso é estabelecido como
um processo aberto, um futuro a ser implementado no presente, para o qual a cidade deve
estar preparada por antecipação:
“Uberabinha que encontra da parte dos chefes toda a boa vontade, que dispõe com facilidade de
todas as condições para o seu melhoramento, como sejam a topographia invejável, a abundancia
de água, ar e luz, está talhada para ser uma cidade modelo desde que se faça „toilete‟, desde que
se prepare para receber o progresso” (Jornal O progresso, 06/10/1907) citado em Dantas,
2001:37.
Dantas (2001; 2009) aponta as primeiras iniciativas de reordenar o espaço urbano com
a aprovação da primeira lei promulgada na cidade, Lei 1 de 12 de janeiro de 1898, o
Código de Posturas Municipais e, posteriormente, pelo primeiro Plano Urbanístico realizado
entre os anos de 1907 e 1908. Temer (2001) buscando compreender a circulação das idéias
urbanísticas na cidade de Uberlândia, propõe que este primeiro plano tem inspiração nas
transformações realizadas pelo prefeito Pereira Passos na cidade do Rio de Janeiro que, por
sua vez, tomaram como modelo as reformas realizadas em Paris pelo Barão de Haussmann.
Nestas, a idéia central é a de melhoramentos que conjugavam elementos técnicos (abertura e
regularização do sistema viário, saneamento) e estéticos (como jardins e praças). No interior
da cidade, a construção da ferrovia pela Companhia de Estradas de Ferro Mogiana viria a
deslocar o centro urbano de modo planejado através deste primeiro plano, derrubando casas,
deslocando moradores, dando-lhe nova configuração
52
, para retirar-lhe o caráter rural e
irregular. Tratava-se não apenas de alterações materiais concretas no espaço urbano mas,
simultaneamente, de uma nova significação desse espaço.
A partir da década de 1940, temos um cenário em que a cidade é inserida em novos
contextos do processo de ocupação e interiorização econômica do país através do projeto
“Marcha para o Oeste”, no governo Getúlio Vargas, e que culmina na construção de Brasília
no governo Juscelino Kubistchek. De acordo com Ribeiro (2008), a construção da nova
capital expressava-se como o limiar da integração do Centro-Oeste à economia nacional e o
início da penetração da Amazônia em larga escala, um contexto propício à ideologia nacional
desenvolvimentista.
Machado (1990) atribui esses dois fatores como elementos importantes para o
estabelecimento da posição estratégica de Uberlândia como pólo comercial, uma vez que,
52
Ver Anexo 6.
67
como parte da “Marcha para o Oeste”, Uberlândia se tornou base da expedição Roncador-
Xingu, para a qual foram construídas novas estradas interligando a região do Triângulo
Mineiro a Goiás e Mato Grosso. De acordo com a autora, a construção de Brasília, por sua
vez, faz da região de Uberlândia “ponto obrigatório de entrecruzamento do sul, norte e
nordeste com o Centro-Oeste do país somado a uma série de investimentos federais
canalizados para a cidade como forma de viabilizar a integração nacional, tais como
investimentos no aeroporto, constituição de uma unidade do Exército e instalação do 15º
Distrito Florestal.
Nesse contexto da política e ideologia desenvolvimentista, novas transformações
ocorreram tanto no plano do sistema mundial, quanto nacional e localmente. No interior desse
processo de desenvolvimento econômico, a elite local buscou antecipar a preparação para a
“vinda do desenvolvimento” através de uma série de articulações, dentre elas, uma nova
organização do espaço por meio de um novo Plano de Urbanização. Novas articulações
políticas são realizadas e novas configurações são identificadas na constituição do espaço
urbano, objeto do capítulo seguinte, no qual busco analisar a constituição de uma cosmografia
urbana desenvolvimentista e o modo como, nesse processo, as pessoas são classificadas no
interior de seus territórios.
68
Capítulo II
69
Cosmografias urbano-desenvolvimentistas
2.1. Planejamento para iluminar os caminhos do desenvolvimento.
“Um plano, é preciso traçado. Um plano exeqüível. Simples. Dentro
dos limites de nossas possibilidades naturais. Um plano a ser
executado em alguns anos, sem solução de continuidade, de alicerce
muito sólido a novas empreitadas”
53
.
Não façamos planos pequenos; êles não tem o mágico poder de
animar o espírito dos homens e provavelmente não seriam nunca
realizados. Façamos grandes planos, ponhamos espírito elevado e
esperança no trabalho, recordando que o nobre e lógico programa,
uma vez traçado, nunca morre, que será depois de nossa ausência,
uma coisa viva, confirmada sempre com crescente insistência [sic]
54
.
Inicio este capítulo seguindo as derivações da noção de Plano de Urbanização que
emerge em Uberlândia em fins da década de 1940 e as mudanças decorrentes da entrada de
novos atores em sua elaboração. No contexto do (re)stabelecimento dos poderes executivo e
legislativo municipal após a derrubada de Getúlio Vargas da presidência no Estado Novo,
novos arranjos entre os grupos políticos locais são realizados e com eles a noção de plano de
ação administrativa surge em Uberlândia como resultado de uma Comissão de Inquérito de
modo a reorganizar a casa após a noite trágica da ditadura Vargas. Nesse contexto, um
conjunto de classificações é elaborado em relação aos governos locais anteriores para validar
a proposição desse Plano, que tinha como objetivo realizar um marco de reconstrução em
relação ao período anterior.
Em relação ao espaço urbano, esta Comissão resultou em um Plano de Urbanização
tomado como interpretante (Peirce, 1955) principal para as obras públicas nele previstas
realizadas até por volta da década de 1980, dentre elas a canalização de alguns córregos, bem
como uma obra para ser realizada nas margens do rio Uberabinha, que foi reformulada e
resignificada em um novo contexto semântico contemporâneo. Procurarei, então, apresentar
possíveis vínculos entre este Plano e a constituição de uma cosmografia urbano-
desenvolvimentista na cidade de Uberlândia num processo que perpassa uma caracterização
53
Gonçalves, Oswaldo Vieira. Uma idéia feliz. Jornal Correio de Uberlândia. Ano XI, nr. 2354. 04.04.1948.
Reportagem constante no Processo nº. 61, de 24.01.1948.
54
Daniel C. Burham, figura central do movimento City Beautiful dos Estados Unidos, que deu início ao City
Planning Movement, citado por Roscoe (1954).
70
de territórios da cidade como de interesse público, para o desenvolvimento da cidade, em
torno da qual decorrem disputas pela (des)caracterização das pessoas que habitam nestes
territórios.
Adentramos ao elemento desencadeador dessa elaboração a partir do Processo de
número 15, disponível para consulta no Arquivo Público Municipal, intitulado Planejamento
para obras públicas urbanas, instaurado em dezessete de dezembro de 1947, que resultou
numa Comissão de Inquérito em diversas frentes na Câmara, dentre elas uma Comissão de
Urbanismo que, em seu relatório final, propôs a confecção de uma Planta Cadastral da cidade
e de um Plano de Urbanização. Neste mesmo Processo encontram-se um conjunto de
documentos - requerimentos e abaixo-assinados - elaborados por moradores de diversos
bairros da cidade, solicitando asfaltamento para seus bairros, energia elétrica, água, esgoto,
pontes. As solicitações são iniciadas com um abaixo-assinado encaminhado ao Prefeito
nomeado à época em janeiro de 1947, seguido de outros, endereçados à Câmara Municipal,
bem como ao Prefeito, aos vereadores e ao Presidente da Câmara eleitos no pleito municipal
realizado com o fim do Estado Novo.
Entre os mais de cem processos consultados, esse é um dos poucos compostos por
abaixo-assinados. Em sua consulta no Arquivo Público, os abaixo-assinados apareceram-me
inicialmente como índice de instrumentos através dos quais no fim do Estado Novo as
reivindicações podiam localmente alcançar as decisões político-administrativas em
Uberlândia, devendo, portanto, obedecer a uma linguagem convencional própria deste tipo de
documento para que sejam adequados a seus fins imediatos. Contendo dados aparentemente
de caráter estritamente referenciais, factuais, como data, endereçamento, descrição e
localização dos problemas a que se referem e as solicitações ou reivindicações para sua
solução, estes documentos descrevem a situação das ruas e/ou bairros da cidade para os quais
se dirigem os pedidos e solicitam conclusão, melhoramento ou realização de obras. Qual
seria, então, o lugar ocupado por estes abaixo-assinados na formulação do Plano de
Urbanização que resulta do Processo de que fazem parte, se este Plano não aparece em suas
reivindicações?
A pista para responder a estas perguntas estava nos próprios documentos e seu vínculo
com o decorrer do evento em que se compôs os atos relativos a este Processo, bem como na
consideração da configuração social, política e cultural no qual estava inserido. Somente após
compreender a lógica de funcionamento e organização dos documentos pelo Arquivo Público
Municipal, identificada pela catalogação e organização dos Processos e Atas do legislativo, é
que uma leitura desses documentos inseridos no evento tornou-se possível. Vejamos:
71
Enquanto abaixo-assinados, as assinaturas que identifiquem os solicitantes não podem
faltar, sob pena de descaracterização do documento, referenciado pelo seu próprio nome. No
entanto, neles encontramos as assinaturas em forma que expressam o conteúdo que lhes
constituem, para além de sua referencialidade: de próprio punho, por extenso, as assinaturas
seguem aos pedidos, sendo associadas às ruas/bairros aos quais se dirigem a solicitação.
Predominantemente indéxicas, ao mesmo tempo em que identifica os solicitantes daquelas
ruas/bairros, liga-os àqueles a quem se dirigem a solicitação pela presença icônica do
mecanismo endereçado-solicitação-solicitantes, indicando a qualidade da relação entre eles
como contextualmente aberta às reivindicações:
“À Câmara Municipal de Uberlândia
“Os abaixo-assinados, proprietários e moradores ás Ruas Particular da Agenor Paes, Rezende,
Ipiranga e Uberaba, tendo em vista o mau estado de conservação destas vias públicas, a falta de
água e a falta de conclusão da rêde de luz e fôrça nas ruas Uberaba e Rezende, por intermédio
dessa egrégia Câmara e solicitando a aprovação ilustre e imediata de seus ilustres membros,
requerem à Prefeitura Municipal a execução dos serviços, em caráter urgente(...)
Confiados no esclarecido e patriótico espírito de justiça de V. Excias, em pról do bem e do
conforto da coletividade, agradecidos pedem e esperam DEFERIMENTO ou aprovação unânime
de V. Excias [sic].
Uberlândia 18 de dezembro de 1947
Seguem as assinaturas
55
.
Desse mecanismo decorre que mais do que „descrever‟ situações, palavras em
pronunciamentos aparentemente descritivos como as presentes nos abaixo assinados, indicam
circunstâncias, pronunciadas para descrevê-las, podem fazer coisas por meio de seu
pronunciamento, como nos lembra Austin (1962). Dessa forma, abaixo-assinados sugerem
uma relação semelhante àquelas que Peirano (2006) observa em documentos como a Carteira
de Identidade que mobilizam ao mesmo tempo uma linguagem da
participação/identidade/solidariedade e da racionalidade burocrática/causalidade, sendo
possível através deste documento observar o Estado no dia-a-dia das pessoas. Semelhante
mecanismo podemos perceber nos abaixo-assinados que permitem observar o dia-a-dia das
pessoas no Estado ao serem colocados como símbolo de cidadania em um contexto de
(re)constituição do Estado-Nação, por meio dos ícones e índices que expressam a relação
entre as pessoas e entre elas e o Estado. Essa observação, no entanto, requer situá-la no modo
como essas mudanças se processaram localmente em relação ao contexto nacional.
Em princípio, a mudança poderia ser pensada a partir de uma nova concepção de
cidadania no contexto pós-Estado Novo, caracterizando uma situação nova diante da apontada
55
Processo nº. 15, de 17.12.1947. Câmara Municipal de Uberlândia.
72
por Peirano (2006) de uma cidadania regulada instituída a partir dos anos 1930, via carteira
profissional
56
. Implicaria também em uma nova percepção da nação face ao que Reis (1988)
propõe em relação ao Estado Novo. Partindo da concepção de nação apresentada por Dumont
(1970)
57
para analisar diferentes contextos de construção do Estado Nacional no Brasil e,
portanto, sua historicidade, a autora propõe que o Estado Novo pode ser caracterizado pela
preeminência do indivíduo coletivo favorecido pela autoridade vis-à-vis a solidariedade,
conferindo à autoridade a responsabilidade de promover a solidariedade.
Localmente, o contexto analisado sugere uma concepção de nação como “a sociedade
que se como constituída de indivíduos” enquanto valor, nos termos de Dumont (1970) e
com ela uma extensão da cidadania em termos tipológicos, englobando direitos civis, sociais e
políticos, proposta por Marshall (1967). Esta sugestão surge por inspiração no trabalho de
Carvalho (2002) que, apoiado nessa perspectiva tipológica de T. H. Marshall, propõe que
entre 1945 e 1964 deu-se início à primeira experiência que se poderia chamar de democrática
no Brasil, com a cidadania englobando, ainda que de modo complexo e conflituoso, os
direitos políticos, sociais e civis. Esse mesmo período é visto por Almeida Júnior (1997)
como marcado por uma das maiores expressões da participação política de massa, ainda que
no plano não-institucional.
No entanto, se o contexto analisado sugere uma concepção de nação como “a
sociedade que se como constituída de indivíduos” (Dumont, 1970), e com ela o exercício
dos direitos pelos indivíduos via abaixo-assinados como símbolo de cidadania, é por uma
filiação política que as reivindicações ganham força mediante novas interpretações. Com ela
as reivindicações adquirem força ilocucionária, nos termos de Austin (1962) em que dizer
algo é fazer algo, produzindo certos efeitos e dando novos rumos às solicitações presentes nos
abaixo-assinados.
Inserida na sequência dos atos/documentos que compõem o Processo, temos uma
Proposição assinada pelos únicos dois vereadores da oposição, eleitos à época, ambos do
Partido Social Democrático (PSD). Seu conteúdo propõe a formação de uma Comissão
Especial “para levar a efeito o planejamento das realizações que se devam levar a efeito em
56
Como emblemas de identidade cívica no Brasil dos anos 1930, Peirano nos chama atenção que a cidadania
regulada (Santos apud Peirano, 2006:125) nesse contexto tinha na carteira profissional sua principal expressão
como símbolo de cidadania, mas que não significava o reconhecimento da igualdade entre os indivíduos e a
participação integral de todos na comunidade.
57
Para Dumont (1970:33), a nação constitui-se ao mesmo tempo em uma coleção de indivíduos e um indivíduo
coletivo, do que decorre o paradoxo das nações modernas: “At the least, the two conceptions must be ranked, so
that one prevails upon the other: either the human individuals composing the nation, or the nation as a whole,
will bear the main stress, but not both at once”.
73
pról de Uberlandia” [sic]
58
, a partir do estudo dos problemas relacionados à água e esgoto em
Uberlândia e demais obras em um dos distritos da cidade. Em sua justificativa para a
Proposição atribuem os problemas que a cidade apresentava, indicados pelos abaixo-
assinados, à “situação excepcional a que Uberlândia atingiu”.
Realizando um ato ilocucionário do tipo exercitive (Austin, 1962), tanto a expressão
Propomos, que compõe a Proposição dos Vereadores, como Reivindicamos, Requeremos,
Solicitamos, que compõem os abaixo-assinados que a antecedem, são atos de fala que têm
força ilocucionária (ibid) exercendo poderes, direitos ou influência. No entanto, a Proposição
dos vereadores ao conclamar para um trabalho comum e coordenado com os demais
vereadores também se caracteriza por ser simultaneamente do tipo comissive (ibid), através do
qual comprometem-se com o proposto, tendo por efeito dar início à construção de um campo
semântico comum em torno da idéia de planejamento. Ainda que as razões para a proposição
da Comissão não fossem as mesmas dos vereadores da bancada da situação, como se verá
mais adiante, sua proposição, somada aos abaixo-assinados que compuseram o Processo
número 15, torna-se feliz, bem sucedida, ao afirmarem que o único propósito de todos os
vereadores é o progresso constante de Uberlândia numa alusão a que mesmo sendo da
oposição têm o mesmo objetivo. Assim, recebem parecer favorável da Comissão Permanente
de Viação e Obras Públicas, para formação de uma Comissão que tinha por objetivo a
formação de uma “Comissão para apresentar o plano de trabalho”.
Note-se que até o momento, temos a proposição de uma “Comissão Especial” e uma
“Comissão para apresentar plano de trabalho”, estando ambas em suas definições ainda em
aberto. Comissões Especiais são compostas por vereadores indicados pelo Presidente ou pela
bancada, considerando-se as disputas internas a depender do tema da matéria. Diferentemente
das Comissões Permanentes (como a de Finanças, Obras, Legislação, etc.), têm prazo
determinado para conclusão dos trabalhos, sendo as Comissões Temáticas ou de Inquérito
exemplos de Comissões Especiais.
No entanto, é por uma filiação política específica no contexto da disputa política pós-
Estado Novo que as reivindicações ganham novo conteúdo e adquirem novos rumos
expressos através da definição do tipo de Comissão a ser formada. A constituição de alianças
pelos partidos locais em nível nacional durante a “Revolução de Trinta” teve implicações
importantes para a constituição do contexto em que emerge o campo semântico em torno do
planejamento a partir das disputas envolvidas em torno dessa idéia.
58
Proposição dos vereadores Antônio Thomaz de Rezende e Afonso Campos Lima, de 16/12/1947. Processo nr.
15. Câmara Municipal de Uberlândia.
74
A situação político-partidária em Uberlândia entre 1910 e 1930 foi marcada por uma
disputa acirrada pelo poder entre o Partido Republicano Municipal (PR) e o Partido
Republicano Mineiro (PRM), ambos organizados em torno de duas grandes famílias das elites
político-econômicas da cidade, os Rodrigues da Cunha e os Freitas Costa, denominados
popularmente de Cocões e Coiós, respectivamente. Apesar do apoio do comando
“revolucionário” ao Agente Executivo
59
à época da “Revolução de Trinta”
60
, Rodrigues da
Cunha (PR), para sua continuidade à frente do governo municipal, com o fim do Estado
Novo, uma idéia de “obscuridade” foi formulada para se referir a este período e seus
respectivos governos locais aliados nacionalmente a Vargas. Pretendia-se romper com este
período e construir novas alianças entre partidos que se opunham, agora em torno de um novo
período que se iniciava.
Realizadas as eleições em 1947, com o fim do Estado Novo, e restabelecidas as
Câmaras Municipais, assume a presidência da Câmara Municipal de Uberlândia o jurista Jaci
de Assis, que havia assinado o Manifesto dos Mineiros
61
em uma das edições posteriores à
primeira, e José Fonseca e Silva como prefeito. Ambos pertenciam à UDN, União
Democrática Nacional, partido que congregava a maioria dos antigos cocões e que, tal como
em nível nacional, reproduzia localmente a oposição ao governo Vargas. Com eles,
planejamento emerge como elemento iluminador para os caminhos do desenvolvimento por
uma filiação pessoal e política daqueles que reivindicavam nos abaixo-assinados ao
Presidente da Câmara.
O primeiro movimento em que identificamos essa filiação encontra-se em um dos
abaixo-assinados presentes no Processo de número 15, entregue em fins de dezembro de
1947, logo após a assunção de Jaci de Assis à Presidência da Câmara com o restabelecimento
das eleições e reconstituição das Câmaras Municipais:
59
Até 1930 o Agente Executivo exercia também a função de Presidente da Câmara Municipal.
60
Freitas (1999) nos relata que a região do Triângulo Mineiro adquiriu importância estratégica militar e política.
Por um lado, para inibir a intenção do Presidente Washington Luís de estabelecer na região um interventor para
Minas Gerais, bem como para impedir que as “forças inimigas” (dos Estados de Goiás e São Paulo) pudessem
tomar a região. As primeiras iniciativas para preparar a região para o movimento foi, então, a criação de dois
comandos de operações militares, um em Uberaba para defesa da fronteira paulista e outro em Uberlândia na
defesa da fronteira goiana, rearticulando, nesta última, a elites político-econômicas no poder.
61
Carta assinada por advogados e juristas de Minas Gerais contra o governo Getúlio Vargas, pelo fim do Estado
Novo.
75
Uberlândia, 25 de dezembro de 1947
Exmº. Dr. Jaci de Assis
Nesta
É com grande prazer que os moradores dos prolongamentos das ruas 24 de maio e Uberaba
nos dirigimos a v. excia, DD Presidente da Câmara dos Vereadores, que vimos solicitando a todos
os vereadores municipais, como se pelos requerimentos dirigidos á Prefeitura, sendo dois para
instalação de luz e um para abrimento de dois trechos das supracitadas ruas, que é do
conhecimento de v. excia, requerimentos estes que foram postos à margem.
O povo de Uberlândia houve por bem, o sabemos, escolher v.excia. para o líder representante
deste mesmo povo, dado o espírito altruísta de que é possuidor que é de conhecimento de todos.
Dr. Jaci, pedimos instalação de luz em nossas ruas, de há muito, sempre menosprezados.
Vivemos sem o direito de citadinos. Não temos luz como também não temos o direito de chegar ás
nossas casas, por falta de via pública, uma lenha e qualquer outro carreto de nossa inerente
necessidade. Contribuindo como os demais habitantes da cidade, quites com as taxas impostas
pela Prefeitura, porém insulados, vimos pedir a v. excia se digne de interceder por nós, junto ao
Dr. Cleanto Gonçalves, que seja autorizada a Companhia Prada efetuar o serviço de luz. Se for,
exclusivamente de alçada da douta e digníssima Câmara, solicitamos ao ilustre e digno
Presidente tomar em consideração nosso apelo, que é justo, não menos interesse, pedimos pelo
serviço das ruas, pois v. excia poderá vir a esta parte da cidade para constatar o que aventamos.
Confiados integralmente na deferencia do conspícuo amigo do povo, que sempre foi, esperamos,
para breve, mais um ato de filantropia do grande benfeitor de Uberlândia.
Com o maior aprêço e estima subscrevo-me.
Orozimbo Arantes”[sic](grifos meus)
62
.
Se nos demais abaixo-assinados que compõem o Processo as reivindicações são feitas
por moradores, no requerimento transcrito acima elas são feitas por meios indéxicos
associando a reivindicação individual aos demais abaixo-assinados entregues à prefeitura,
constantes no mesmo processo
63
: vimos solicitando a todos os vereadores municipais, como
se pelos requerimentos dirigidos à Prefeitura”. Ainda, diferentemente dos demais abaixo-
assinados em que as reivindicações são dirigidas ao Prefeito, aos Vereadores, ou à Câmara
Municipal, como entidades abstratas, neste as reivindicações ganham força ao endereçar-se à
pessoa
64
que ocupa a Presidência da Câmara, Jaci de Assis. Mobilizam-se características que
lhe são associadas como as de filantropia e altruísmo, acentuando ainda mais, e sob novas
formas, os aspectos icônicos e indéxicos dos abaixo-assinados, ao vincular citadinos, ao invés
de moradores, à pessoa do Presidente.
Se o contexto nacional pós-Estado Novo poderia sugerir uma nova concepção de
cidadania, como mencionei anteriormente, e ainda sua extensão, em termos tipológicos,
englobando direitos políticos, sociais e civis (Marshall apud Peirano, 2006:132) a todos
62
Câmara Municipal de Uberlândia. Processo número 15 de 17/12/1947.
63
Indexicalidade que é também produto da ordem e arquivamento dos documentos juntos numa mesma pasta
referente a um mesmo processo.
64
Aqui, definida de modo relacional e socialmente determinada, por oposição ao Indivíduo enquanto valor,
autodeterminado, singular, livre e igual como proposto por Dumont (2000 a; b).
76
cidadãos
65
, a concepção de cidadania apreendida nesse documento revela-se numa
combinação paradoxal entre o direitos associados ao pertencimento à cidade como citadinos e
a relação altruísta exercida pelo Presidente da Câmara. Não é baseando-se numa concepção
de nação composta por indivíduos como valor último (Dumont, 1970), mas na filiação ao
grupo via seu representante que a cidadania aí ganha força.
Esses grupos, em Uberlândia, giram em torno dos Cocões e Coiós, UDN e PSD ou
Arena 1 e Arena 2/MDB respectivamente:
“como água e vinho, Cocões e Coiós nunca se misturam”; "O que era de um lado era de um lado.
Não existia essa de passar de um lado para o outro. O fio do bigode valia";“embora Cocão e
Coió tivessem suas pendengas, muitas delas resolvidas no braço, e que nos dias de eleição,
faziam até os defuntos votar, todos os seus integrantes eram pessoas íntegras e se Uberlândia é o
que é hoje se deve a eles”; "Uberlândia cresceu com eles; nós devemos muito a eles. É verdade.
Embora divergentes, tanto um grupo como o outro tinha essa preocupação"
66
.
Mas se as reivindicações alcançam na filiação pessoal e política sua eficácia
67
com o
seu reconhecimento a partir da instauração do Processo, é exatamente a relação de filiação
política que lhes dará novos contornos.
Em março do ano seguinte é instaurado o Processo 61 para “estudar os diversos
problemas do município e oferecer, com seus relatórios, sugestões para a sua solução”. Se os
objetivos permanecem basicamente os mesmos da proposição inserida no Processo nº. 15
pelos vereadores do PSD, as razões mudam. Se, naquela, a noção de desenvolvimento é o
interpretante (Peirce, 1955) trazido pelos vereadores do PSD para significar os problemas
indicados pelas reivindicações que, em sua concepção, requeriam planejamento, no Processo
61 novas interpretações surgem com enunciação de um contexto diferente, pelo novo
agente que nele se insere, Jaci de Assis (UDN). Em discurso proferido na Câmara que abre o
65
De toda forma, Peirano (2006:133) aponta para o etnocentrismo da perspectiva tipológica da cidadania
apresentada por T. H. Marshall e seu caráter a-histórico, “como se o Estado Nacional se encontrasse em sua
forma definitiva e o conceito de cidadania plena e categoricamente estabelecido”.
66
POPÓ, Pedro. A eterna briga entre Cocão e Coió. seis décadas grupos rivais travam duelo por liderança.
Jornal Correio de Uberlândia. 25 jun. 2006. Disponível em
<http://www.correiodeuberlandia.com.br/texto/2006/06/25/19237/a_eterna_briga_entre_cocao_e_coio.html>. A
partir das eleições em 1984, uma candidatura caracterizada de esquerda, do PMDB, que teve como bandeira a
Administração Participativa, emerge defendendo uma independência e distanciamento destes grupos que, no
entanto, é contestado pelo autor da reportagem ao mobilizar a genealogia simultaneamente familiar e política do
referido candidato. Contemporaneamente, os cocões defrontam-se majoritariamente com candidatos locais do PT
que tem, naquele candidato do PMDB, sua referência para reivindicação de uma participação popular nas
políticas locais.
67
Nos termos de que a linguagem usual não é qualitativamente diferente da linguagem da magia, como propôs
Stanley Tambiah citado por Peirano (2001). Nestes termos, a noção de eficácia reconhecida por Mauss (2003b)
ao unir atos e representações, bem como as noções de crença, força e poder mágicos fundidos no mana (a
verdadeira eficácia das coisas), é trazida por Tambiah (1985) para propor a eficácia que deriva de atos
performativos em ritos e eventos.
77
Processo 61, Jaci de Assis atribui a idéia de desmantelo à situação em que se encontra o
município indicada pelas reivindicações.
Senhôres Vereadores:
Do alto pôsto, a que me elevastes numa honrosa e expressiva unanimidade, venho
acompanhando vóssa dedicação e vósso trabalho em favor da causa publica.
Afastadas as divergências partidárias, decorrentes da luta eleitural, e todos agora
unificados em tôrno de um unico proposito, vóssa ação tem sido norteada pelo desejo de servir ao
povo.Posso afiançar o vosso interêsse pelas coisas de Uberlândia e a ansiedade em buscar
soluções para os seus diversos problemas.
Todos porém estivémos á margem da administração e o mesmo acontece com o ilustre
prefeito, sr. José Fonseca e Silva, cuja preocupação de realmente construir eu pósso testemunhar,
pois com ele tenho estado em permanente contacto.
Os que viémos das oposições, desconhecemos as coisas do municipio , pois tudo foi sempre
procrastinado ao povo pelos detentores do podêr, durante a noite tragica da ditadura; os que
caminharam para esta casa, vindo do que a ditadura criou encontram-se na mesma situação, pois
aos proprios amigos negavam os prefeitos a exata realidade. Estamos todos, portanto, tateando.
O conhecimento da situação financeira da Prefeitura está nos chegando ás mãos através de
informações esparsas do Executivo.
Os multiplos e complexos problemas do municipio, em todos os setôres, estão desafiando
nossa argucia. Quasi tudo está por fazer, e o que foi feito, infelizmente, sem orientação tecnica e
apenas com intuitos politicos, carece de reconstrução quasi total. [...] Não podemos traçar um
plano de recuperação do municipio, de reconstrução e de articulação, sem estarmos inteiramente
ao par de todos os problemas, em suas minuncias.
Para que possamos realizar, de conjunto, um trabalho dessa natureza, será preciso que a
Camara se transforme em uma grande comissão de inquerito, repartida em diversas comissões,
estudando todos os assuntos, coligindo os erros e as causas desses erros, sugerindo os
remedios.[...]Carecemos estudar as causas, as origens e as consequencias de todos os problemas
do municipio, inquirir o povo e as Associações de classe, ouvir a palavra dos homens de
Uberlandia, realizando um imenso inquerito coletivo, para depois nortear nosso trabalho de
reconstrução e construção. [...]
E será, harmonisando a sua mensagem com os relatórios das comissões, que a Camara
Municipal ficará tendo em suas mãos o maior, o mais completo, o melhor material para poder
então legislar e organizar a vida do municipio depois do desmantelo e da desorganização a que
foi lançada, durante tantos anos.
Com o proposito de auxiliar esta ação, sem que neste meu gesto possais ver senão a vontade
de colaborar numa obra administrativa que marque nossa passagem por esta Casa, formulo
algumas sugestões, para as quais solicito a honra de vosso estudo.
Sois testemunha de que, como presidente, meu trabalho tem sido apenas no sentido de orientar
e afastar divergências, criar um clima de confiança e de respeito, manter o prestigio da Camara
perante a opinião publica.
Nunca expressei minha opinião pessoal para com vossas deliberações, timbrando em deixar
sempre ao vosso esclarecido critério e elevado patriotismo a solução dos assuntos aqui
debatidos.É ainda com este mesmo proposito que formulo as sugestões, que passo a ler e que o
vosso discernimento saberá apreciar com justiça [...]
Estas comissões, presididas por um dos vereadores, e compóstas de elementos de valor do
município, convidados pela Camara, realizarão um inquerito completo, exaustivo mesmo, ouvindo
o povo, as Associações de classe as autoridades, todos enfim que desejarem colaborar neste
serviço de alto merecimento[sic]”
68
.
A presença de outras funções da linguagem propostas por Jakobson (s/d), nesse
discurso, para além da referencial no sentido da mera transmissão de informações que
68
Processo nº. 61. De 27.01.1948. Proposição apresentada pelo Presidente da Câmara, Jacy de Assis, em
24.01.1948.
78
justifiquem as comissões, pode nos indicar as disputas em jogo e entender a força da entrada
desse ator nos novos andamentos do Processo. Embora haja prevalência da função conativa,
cuja orientação, nos termos de Jakobson (ibid), é centrada nos destinatários com o objetivo de
influenciá-los, convencê-los por meio da sugestão para as comissões (Urge, Carecemos,
formulo, sugiro.), também a participação importante da função poética, pondo em
evidência a forma da mensagem, valorizando as palavras e suas combinações. Percebe-se que
há uma preocupação com o "como dizer".
Embora o discurso seja apreendido em texto-documento e através dele não seja
possível captar os efeitos de sua configuração fonológica, podemos identificar na sua abertura
um efeito da orientação simultânea ao emissor e destinatário que será relevante para a
configuração do interesse público, do povo. Como nos propõe Jakobson (ibid), falar implica
em seleção de um signo em lugar de outro, por semelhança ou dessemelhança, e combinação
pela conexão com outros signos no interior da sequência da fala. Assim, a frase de abertura do
discurso, Do alto posto a que me elevastes numa honrosa e expressiva unanimidade(...)
seguida de Todos, porém, sempre estivemos à margem (...), operam por meio de uma seleção
do signo equivalente me em lugar de eu, equivalentes mas ao mesmo tempo diferentes porque
o segundo requer a combinação com o verbo elevastes que suprime o pronome vós. Assim, ao
mesmo tempo em que destaca sua posição enquanto Presidente da Câmara sem a necessidade
de mencioná-la, coloca-o como um igual, numa operação que leva-o a posteriormente incluir-
se entre seus destinatários como Todos, empregado em lugar de nós, como se discursasse para
os demais vereadores e para si mesmo. Assim, ao longo do discurso reitera constantemente
seu pertencimento ao nós, que o vincula ao desejo de servir ao povo, associado àqueles a
quem se dirige mas a quem também pertence.
Por meio desta operação, o Presidente da Câmara coloca todos, inclusive os
vereadores do partido fundado por Vargas, PSD, sob a mesma condição, tateando em meio à
escuridão administrativa e legislativa deixada pela noite trágica da ditadura. Por meio da
função poética seleciona estes qualificativos que, combinados, fornece-lhes um interpretante
(Peirce, 1955) para os problemas da cidade, a noite trágica da ditadura, diferente daqueles
apresentados pelos vereadores do PSD. Este interpretante, por sua vez, lhe permite selecionar
e combinar noite, escuridão a Comissão de Inquérito que poderia iluminar a noite/escuridão
para os rumos da reconstrução, dando especificidade à Comissão Especial que os vereadores
do PSD propuseram.
É também o lugar de fala de Jaci de Assis que lhe possibilita a felicidade (Austin,
19620 de seus pronunciamentos pois, Inquérito implica em investigação de algo ainda
79
obscuro, o que exigiria uma ginástica discursiva dos vereadores do PSD, a quem é associada a
ditadura, para justificar a investigação de seus próprios partidários. Desenvolvimento, que
então qualificava a causa dos problemas para os vereadores do PSD, para os quais a solução
era o planejamento, passava, então, a ser uma condição futura, a qual dependia de
planejamento.
O Processo segue acompanhado de rias reportagens de jornais locais que
apresentam-se como interlocutores externos privilegiados da Câmara em suas realizações, seja
para publicações de suas leis, seja para criticar ou, na maioria das vezes referendar suas
realizações. Para além do leitor, os jornais têm a Câmara Municipal como destinatário
privilegiado de suas mensagens, nas quais prevalecem uma função conativa (Jakobson, ibid),
buscando influenciar as decisões legislativas. Afirmam a importância das Comissões de
Inquérito para levantamento dos problemas que possibilite um plano geral de ordem técnica e
racional e, por isso, supostamente a-político, atribuindo a idéia de improviso a todas as ações
administrativas anteriores que não tinham como foco um plano que orientassem as ações
atuais e futuras. Ressaltando a filiação política de Jaci de Assis à UDN, as reportagens
comprometem-se com a linha de conduta desse grupo político, conclamando pela rápida e
efetiva instauração das Comissões e a participação do povo, para que os trabalhos resultem
num “espelho atual de nossa situação”
69
.
Povo, nestas reportagens e na acepção do Presidente da Câmara apresentada logo
acima, implica ao mesmo tempo um ser coletivo composto de indivíduos os quais serão
supostamente beneficiados, bem como aqueles que comporão as comissões, seja a convite do
Presidente da Câmara, seja por disposição própria. No primeiro caso, fazer parte de um ser
coletivo implica em ter seus interesses supostamente mediados por representantes de grupos
como associações de classe, imprensa, clubes, estabelecimentos de ensino, “grupos, enfim,
onde com mais facilidade se discute o interesse geral”
70
. No segundo, ao mesmo tempo em
que estes representantes pertencem ao ser coletivo, dele se destacam seja por características
pessoais e profissionais, seja pelo pertencimento a um daqueles grupos, o que lhes confere um
caráter especial na composição da figura de representantes dotados de espírito público,
portanto, do interesse público:
“são todos homens de posição definida na sociedade, inteligentes e egrégios, de responsabilidade
moral e profissional, embora a respeito de um ou de outro, muito poucos felizmente, seja lícito
inquirir pelas demonstrações de seu espírito blico. Sim, porque no caso de que tratamos o
69
Processo nº. 61, de 27.01.1948. Jornal Correio de Uberlândia. Ano X, nr. 2328, de 27.01.1948.
70
Processo nº. 61. Jornal Correio de Uberlândia. Ano XI, nr. 2360, de 13.03.1948.
80
essencial é o espírito público, não obstante sejam também muito valiosas as qualidades de que
dispõem e a que acima aludimos”
71
.
Em outra reportagem o editor insta a Câmara Municipal à urgência da designação dos
membros da comissão, para que se possa completar o quadro nacional de planejamento que se
esboça em sua mensagem por meios icônicos em âmbito estadual com o governador Milton
Campos e federal com o presidente Dutra, unindo o povo de Uberlândia à nação.
Que é das Comissões?
Há vários dias o Sr. Jaci de Assis aventou na Camara a idéia de se nomearem diversas
comissões de estudos, com a finalidade de se estabelecer um planejamento para a solução de
nossos problemas mais urgentes e com bases futuras de maior envergadura. Todo mundo aplaudiu
a lembrança, pois em nada poderia ser melhor, desde que se quisesse realmente executar um
trabalho útil ao pôvo. [...]
Minas Gerais parece ter saído do marasmo em que se debruçara pelos séculos que
decorreram desde o seu povoamento. Milton Soares Campos vem de encontrar um caminho
seguro, organizando um plano que se executa e deverá servir de base a empreendimentos mais
avançados de nossa parte. O Governo Federal, por sua vez estuda um plano de trabalho - o
SALTE, palavra que exprime Saúde, Alimentação, Trabalho e Energia, alicerce de toda e
qualquer nação que se quer projetar no concerto universal, estruturando antes a raça.
Uberlândia, que é o município, tem de completar, e o quanto antes, o quadro que se esboça pela
Federação e pelo Estado, organizando também o seu plano de trabalho, conjugado, na medida do
possível, com os dois outros. Mas para isso o primeiro passo seria a indicação dos nomes que
comporiam as Comissões [...] Não tarde a Câmara em assunto de tamanha importância. O pôvo
está ansioso pela solução de seus problemas [sic]
72
.
Dentre as várias comissões propostas encontra-se a Comissão de Urbanismo, com o
objetivo de estudar todos os problemas da cidade e ainda “o Plano Diretor da Cidade e das
vilas tendo em vista a sistematização, o embelezamento e a extensão da cidade”
73
. Como
resultado é publicado um relatório que amplia e intensifica a força das reivindicações, mas
sob novas interpretações, através das quais buscam legitimar a necessidade da Planta
Cadastral e Plano Urbanístico ao tomar a cidade de São Paulo como interpretante do uso
desses mecanismos para a definição dos rumos do desenvolvimento.
À sequência dos documentos inseridos nestes Processos, composta por proposição,
relatórios, reportagens de jornais, soma-se o parecer favorável ao Projeto de Lei que autoriza
ao Prefeito a contratação de órgão para a confecção da Planta Cadastral
74
. Em um conjunto de
redundâncias composto pelos signos verbais, estes documentos organizados em um único
Processo legitimam as investigações por meio da relação indivíduo-grupo-povo associada aos
71
Processo nº. 61, de 27.01.1948. Jornal O Repórter. 12.03.1948.
72
Processo nº. 61, de 27.01.1948. Jornal Correio de Uberlândia. Ano XI, nr. 2342, de 17.02.1948.
73
Processo nº. 61. De 27.01.1948. Proposição apresentada pelo Presidente da Câmara, Jacy de Assis, em
24.01.1948.
74
Processo nº. 124, de 06.07.1948.
81
integrantes das Comissões, ao mesmo tempo em que legitimam os resultados das próprias
investigações por sua caracterização puramente referencial como refletindo a “situação em
que se encontra nossa cidade”. Esse duplo movimento possibilita que a confecção da Planta
Cadastral e do Plano Diretor ou Plano de Urbanização seja, ao final, interpretada como de
necessidade pública eliminando as ambigüidades, ausências e contradições reveladas entre as
reivindicações apresentadas nos abaixo-assinados e a necessidade do Plano, significando-o,
dessa forma como de interesse público.
Como nos propõe Peirce (1955), um signo pode significar a partir de aspectos variados
ou segundo diferentes preceitos explicativos. A entrada de novos sujeitos nas discussões
relativas aos Processos nº. 15, dos abaixo-assinados, e do Processo nº. 61, de proposição das
Comissões de Inquérito, referendadas pelas reportagens de jornais que compõem estes
Processos, possibilita uma caracterização dos problemas da cidade a partir dos diferentes
preceitos explicativos que estão em jogo apresentados pelos diferentes atores.
Tal caracterização toma rumos não anunciados nos abaixo-assinados, a partir de
disputas em torno de uma versão das “razões de fato” para os problemas que a cidade
apresenta naquele contexto, e se em meio a um conjunto de hierarquizações e posições
entre os sujeitos que dialogam e disputam em torno dessas caracterizações, no interior das
quais a própria noção de cidadania está em jogo e adquire diferentes significações. Nesse
processo, as reivindicações ganham eficácia a partir do modo como os atores entram em
relação com um Terceiro, o Presidente da Câmara Jaci de Assis, eleito no pleito pós-Estado
Novo, pertencente à UDN, partido contrário a Vargas, fundamento último das negociações a
respeito das reivindicações apresentadas nos abaixo-assinados, tal seu poder político,
econômico, social e simbólico no contexto pós-Estado Novo
75
. É a partir do estabelecimento
de vínculo com esse ator político pertencente ao grupo local contrário à ditadura Vargas que
as reivindicações ganham força pela interpretação que este lhes concernentes ao contexto
político à época. Como resultado, os problemas apresentados nas reivindicações que eram,
para o grupo pertencente ao partido fundado por Vargas, índices do desenvolvimento
alcançado pela cidade são, para o representante da UDN diretamente envolvido nas disputas,
índice dos problemas decorrentes da administração local vinculada a Vargas.
Desenvolvimento passou a ser tomado, então, como ícone de uma situação futura.
75
Jacy de Assis foi deputado estadual em Goiás e forte opositor a Pedro Ludovico, o interventor do Estado
nomeado após a “Revolução de Trinta”. Temendo perseguição política mudou-se para Uberlândia em 1937
atuando como advogado e assinou o Manifesto dos Mineiros contra a Ditadura Vargas. Além de vereador, foi
fundador da Faculdade de Direito, contribuindo posteriormente para a criação da Universidade Federal de
Uberlândia, que conta com um grande acervo do jurista em sua biblioteca, além de nomear a Faculdade de
Direito, uma escola municipal e o presídio da cidade.
82
A despeito do contexto nacional em que planejamento emergia como estratégia para
resolver o caos urbano gerado pelo crescimento econômico, como apontei no capítulo I, os
diferentes atores envolvidos lhes dão significações próprias e por vezes diferentes. A
prevalência de uma ou de outra estando também associada à força de seus atos de fala nas
negociações em que são postos em questão.
O movimento espiralar dessa caracterização faz com que a idéia de cidadania
estreitamente vinculada à noção de pertencimento à cidade como citadinos seja associada à de
pertencimento ao povo, entendido simultanea e paradoxalmente como pertencimento a um
coletivo indiferenciado, a um grupo local e a características pessoais e profissionais daqueles
que supostamente defendem os interesses do povo. É esse movimento, que redunda na noção
de interesse público, que terá efeitos, não previstos nos abaixo-assinados, na reivindicação de
territórios da cidade por meio do Plano de Urbanização de que resultam as Comissões. Sua
força enquanto instrumento para ação pública, no entanto, não estaria limitada a uma função
referencial da linguagem nele presente, mas no uso motivado dos signos que compõem o
Plano de Urbanização e a Planta Cadastral, na transferência de propriedades, valores e
poderes e na mobilização de interpretantes específicos do contexto do planejamento urbano
internacional.
2.2. O plano
Elaborada a Planta Cadastral pelo Departamento Geográfico do Estado de Minas
Gerais, o Plano de Urbanização dela originado é entregue em março de 1954 à Câmara
Municipal. Inseridos nos atos da Câmara na sequência catalográfica de Processos
76
e Atas,
Planta e Plano são apresentados em um relatório acompanhado de uma minuta de sua entrega
ao Prefeito e, outra, de entrega ao Presidente da Câmara. Compõe-se de uma introdução na
qual o Engenheiro responsável, Otávio Roscoe, faz uma breve descrição da cidade de
Uberlândia e as razões da necessidade do plano, através da qual retoma desenvolvimento
como signo interpretante da situação da cidade àquela época, utilizando-o em meio à função
poética da linguagem ao empregar recursos de metonímia, personificação, qualificativos e
superlativos que suplementam a própria mensagem e redundam no signo do desenvolvimento.
76
Processo nº. 816, de 16.03.1954.
83
“A jovem e progressista cidade triangulina representa autentico orgulho da terra e da gente
brasileiras. Possui as características de grande Urbe, tais a sua fisionomia e ritmo trepidante de
sua vida.
O desenvolvimento surpreende e ultrapassa qualquer expectativa, com surto de progresso que se
apóia na visão, no descortínio e no entusiasmo de seus filhos. O futuro e suas possibilidades de
evolução, é impossível prevê-los. A necessidade, portanto, de se elaborar o plano de expansão
para a cidade se fazia sentir de forma imperiosa “O surto formidável de desenvolvimento
repentino dessa cidade, de seu comércio e indústria, e conseqüentemente o acréscimo de
transporte vem criando problemas que precisam de ser encarados de frente” [sic] (Roscoe,
1954:01-08).
À introdução segue-se o relatório da Planta Cadastral e do Plano de Urbanização.
Planta Cadastral e Plano de Urbanização são instrumentos de regulação do espaço urbano
mutuamente referenciados, compostos por relatórios e mapas também mutuamente
referenciados, sendo, dessa forma, cada um deles signos de dupla natureza, verbal e não
verbal. Num escrutínio da cidade, a Planta Cadastral tomada pelo relator da Comissão de
Urbanismo como “espelho atual de nossa situação”, atua como ícone, por uma similaridade
com o território da cidade, sua imagem fiel no presente, revelando o ponto de partida do Plano
de Urbanização que, por sua vez, estreitamente atrelado à Planta Cadastral, age como ícone de
uma condição futura que se quer para a cidade, antecipando uma realidade espacial.
É urgente e necessário para melhor se legislar sobre melhoramentos urbanos a elaboração de
planta cadastral da cidade de Uberlandia. (..)A planta cadastral contém com detalhes não a
altimetria e planimetria, mas também todos os seus prédios, lotes vagos, declividades das ruas,
etc. (...) O plano diretor e o plano urbanístico poderão ser elaborados definitivamente depois
de pronta a planta cadastral, pois só ela fornecerá os defeitos a corrigir e os problemas a resolver
(...) Nessa planta serão representados os arruamentos, praças, edificações, cursos d‟água, lagos,
estradas de ferro e de rodagem, pontos, iluminação, cemitérios, etc.”
77
.
Estes signos aparecem no relatório da Planta Cadastral e do Plano de Urbanização
78
por meio de elaborações peculiares. O trecho relativo à Planta Cadastral compõe-se de uma
linguagem quase ininteligível ao antropólogo(a) ou ao cidadão comum que consulta o Plano
no Arquivo Público, não versados no conhecimento da engenharia civil e arquitetura.
Triangulação e poligonação como medidas de base compostas a partir dos vértices
instaurados com estacas pela cidade para regulação da superfície e para cobrir totalmente a
área urbana da cidade, são remetidas às Plantas confeccionadas, ou mapas. A apresentação
77
Processo nº. 61, de 27.01.1948. Relatório Geral do Vereador Enoque Caldeira Paiva, Presidente da Comissão
de Inquérito e Urbanismo. Publicado em Jornal Correio de Uberlândia, de 10.07.1948.
78
Roscoe, Octávio. 1954. Relatório do Plano de Urbanização de Uberlândia e Planta Cadastral de Uberlândia.
Processo nº. 816, de 16.03.1954.
84
das plantas separadas do relatório remete à própria imagem da cidade, pela natureza imitativa
que a compõe enquanto ícone da mesma. No entanto, associadas ao relatório da Planta, é
constituída enquanto realidade factual, inquestionável de interpretações diferentes daquelas
que nela se apresentam pela natureza referencial que, através do uso da linguagem cnica
pretende fixar, tornando-a fonte importante para reivindicação desses espaços enquanto
territórios de interesse público, como demonstrarei adiante.
Analisando o papel da cartografia na reivindicação e controle de territórios, Little
(1996) relata-nos como a introdução da noção de perspectiva, de técnicas de escala
matemática e de coordenadas globais deram aos mapas uma face manifestamente científica
que postula uma representação objetiva do mundo. Esta exerce papel significativo no uso dos
mapas como armas de poder no controle dos territórios, seja como modelos de um território já
constituído, seja como modelos para sua consolidação, antecipando uma realidade espacial.
O plano de urbanização, por sua vez, atrelado ao relatório da planta remete à condição
futura, por seu caráter incompleto, orientado para a mudança. Esta, por outro lado requer um
símbolo que a oriente de modo universal e reconhecido pelo pensamento abstrato, o
movimento City Planning norte-americano.
“Ao iniciarmos esta exposição na parte que nos foi dado fazer, relativamente ao plano de
urbanização de Uberlândia, será interessante recordar as palavras cheias de esperanças e de
beleza do líder do movimento City Planning”, dos EE. UU. Da América do Norte, Daniel C.
Burham:
Não façamos planos pequenos; eles não têm o mágico poder de animar o espírito dos homens e
provavelmente não seriam nunca realizados. Façamos grandes planos, ponhamos o espírito
elevado e esperança no trabalho, recordando que o nobre e lógico programa, uma vez traçado,
nunca morre, que será depois de nossa ausência, uma coisa viva, confirmada sempre com
crescente insistência. Recordamos que nossos filhos farão as coisas que a nós fizeram vacilar.
Roguemos para que sua divisa seja a ordem e seu guia a beleza
O desenvolver do movimento urbanístico norte-americano e o apoio que o seu povo lhe
empresta, são do conhecimento geral e dispensam comentários” (Roscoe, 1954:04).
Mais do que uma mera associação de idéias do City Planning ao Plano de Urbanização
de Uberlândia, proponho que ocorre uma transferência de propriedades que tem no agente,
o engenheiro que o realiza, o poder de mobilizar tais propriedades e transferi-las daquele
movimento para o Plano de Uberlândia.
Predominando as funções referencial e conativa da linguagem no relatório, o
Engenheiro complementa-as e imprime força ilocucionária (Austin, 1962) à sua mensagem
por meio da função poética (Jakobson, ibid), ao usar de termos rebuscados, personificação da
cidade e ao remeter a interpretantes que circulam nos níveis nacional (o “animador progresso
observado em todas as cidades brasileiras”) e internacional (o representante do movimento
85
City Planning; às opções relativas ao planejamento nos Estados Unidos). Estes interpretantes
desta forma, conferem força à elaboração da idéia de coletividade que segue imediatamente à
transferência de propriedades do City Planning ao Plano de Uberlândia.
“Planejamos um trabalho de conjunto, sem nos determos no exame de problemas locais ou
interêsses de cada parte. Isto constituiria árdua e infrutífera tarefa, visto ser impraticável
conciliar os objetivos de todos, que se chocam entre si. Um plano de urbanização é trabalho que
diz respeito à coletividade e não poderá, portanto, ser subordinado às injunções particulares.
Qualquer rumo que se lhe dê, fugindo à rotina, provocará indubitàvelmente celeuma e
vontade, por parte de muitos (...) É o mal de que precisamos fugir, procurando tão somente
consultar os altos interesses da população, geralmente incompatíveis com os individuais (...) Em
empreendimento de tal transcendência, temos de contar com homens verdadeiramente patriotas,
que não dêem ouvidos aos derrotistas e jacobinos, que, com sua demagogia, tanto mal têm
causado ao país (...) Tem-se-nos facultado observar, o que causa justificada alegria, que a
população de Uberlândia acompanha com interesse e entusiasmo este movimento, deixando-se
contaminar pelo desejo de colaboração para o engrandecimento da cidade. São todos unanimes
em confiar na ação e na força que emanam do plano e na capacidade de transformação de seus
valores naturais[sic] (Ibid, p.05-06).
Coletividade é, então, apresentada não como um conjunto de crenças comuns em torno
do plano, mas como algo acima dos diferentes posicionamentos em face do Plano previsto
pelo engenheiro, constituído a partir dos diferentes interpretantes que lhe dão forma. Apesar
do mágico poder de animar o espírito dos homensde que passa a ser dotado, o Plano de
Urbanização, na acepção do engenheiro, depende de que seu espírito seja animado pela
conquista da opinião pública.
“Convém que todos se empolguem pelos ideais que estão sintetizados no vasto programa.
Qualquer idéia atirada em terreno estéril, estiola e morre, não passando além de projeto. Impõe-
se portanto a formação de ambiente favorável à conquista da opinião pública, promovendo-se
campanha entusiástica pela qual se venha interessar nosso povo [sic] (Ibid, p. 06).
Enquanto relatório técnico elaborado por um especialista, surpreendeu-me que quatro
páginas seguidas do Plano fossem dedicadas à “conquista da opinião pública”, à “situação do
Brasil em face do urbanismo no Brasil” e à “urgência das iniciativas”, para então adentrar
ao “funcionamento do plano”. Mais do que relatar, descrever o planejado, o relatório instrui a
ação de seu destinatário para a construção de um “governo eficiente”, marcada pela ligação
com a ação urbanística internacional, com uma tendência nacional, e pela “energia e decisão”,
para com aqueles que governam, na implementação do Plano. Deste modo, sua mensagem
combina uma paradoxal existência de unanimidade em torno do Plano com a existência de
interesses particulares contrários a ele na construção da idéia de coletividade. A solução para
86
esse paradoxo é então, a conquista da “opinião pública”, a técnica e bases racionais do plano,
apontados como meios para superação dos obstáculos com “energia e decisão”.
Urgência das Iniciativas
Com a valorização da propriedades as desapropriações para solução dos problemas que vem
surgindo dia a dia, tornam-se inexeqüíveis. Por isso mesmo a questão deve ser encarada com
energia e decisão, pois quanto mais as relegarmos, mais difíceis se nos tornarão. O programa é a
preparação de plano para a cidade, contornando os maiores obstáculos, aliando a técnica às
possibilidades de realização, com vista prática e objetiva, em bases racionais, tendo-se em mira
assegurar a saúde, segurança, condições de trabalho e bem-estar em geral” [sic] (Ibid, p. 07).
A partir de então, o plano segue com as proposições, com cinco pontos centrais,
tráfego, urbanização, zoneamento, arborização e seção técnica, numa linguagem que,
puramente referencial, por vezes remete ao “ideal da técnica urbanística moderna norte-
americana”, reiterando desenvolvimento como signo interpretante para as proposições. Entre
seus pontos mais destacados encontram-se aqueles que se dirigem aos territórios aqui
estudados, córregos urbanos e rio Uberabinha, prevendo a canalização dos primeiros para
veiculação do zoneamento da cidade, criando “avenidas de desafogo” para o tráfego, que
cruzariam a cidade em todos os seus pontos cardeais, separando avenidas de circulação
motorizada e ruas de socialização.
No rio Uberabinha, o Engenheiro destaca o “ponto de relevo” do Plano que oferecerá
magnífico ambiente sob o ponto de vista paisagístico”, prevendo uma avenida marginal ao rio,
com faixa gramada e arborizada. Nele combinava em uma obra duas das grandes funções
urbanas, circulação e cultivo do corpo e espírito, propostas pela Carta de Atenas de 1933,
símbolo do planejamento modernista que influenciou o planejamento urbano internacional
especialmente no pós-Segunda Guerra, inclusive o City Planning norte-americano (Temer,
2001; Harvey, 2009), signo interpretante primordial do engenheiro Otávio Roscoe para o
Plano de Urbanização de Uberlândia.
Entregue em 1954 à mara Municipal, o plano é aprovado em 1956 sem nenhuma
discussão em plenário, num indicativo de um certo consenso em torno do mesmo. O
entendimento de Villaça (1999) de que o planejamento urbano nos moldes do City Planning
tem o planejamento como processo e o plano como sua expressão material orientadora nos
ajuda a entender os trabalhos que mencionam este Plano de Uberlândia mas nos levam a
novos apontamentos. Em geral, estes trabalhos questionam a força do Plano por não ter sido
implantado na íntegra, com algumas das obras previstas tendo sido realizadas nas décadas de
1970 e 1980, além de não ter sido capaz de disciplinar o crescimento da cidade, ficando
87
sujeito à especulação imobiliária. Trata-se de não confundir plano com planejamento, como
nos propõe Villaça (1999).
O Plano de Urbanização de Uberlândia condensa uma série de disputas em torno dos
valores e visões de mundo dos atores envolvidos na elaboração da necessidade do Plano,
transferindo para um Terceiro, o engenheiro responsável por sua elaboração, a garantia do
significado do Plano. Nestas disputas, os atos de fala têm importância significativa nas
negociações, a depender da força ilocucionária neles presente e de sua felicidade (Austin,
1962) face aos demais, algo que envolve uma série de injunções, como o lugar social dos
falantes, o contexto e a adequação dos signos utilizados que têm papel crucial nos rumos da
disputa. Entre as disputas em torno dos problemas que a cidade apresentava no fim do Estado
Novo e a entrega do Plano à Câmara Municipal percebe-se a dimensão de construtividade em
torno das significações dos problemas urbanos e de suas soluções que estão estreitamente
relacionadas aos aspectos pragmáticos das transações verbais entre os atores em disputa.
Significado o Plano a partir da transferência de propriedades que nele se realiza e pelo
uso das noções de desenvolvimento e coletividade enquanto signos interpretantes, o Plano
torna-se expressão material orientadora do planejamento, tal como nos propõe Villaça (1999),
instrumento para a ação dos governos a partir de então, fornecendo-lhes um relato autorizado
para as obras públicas neles previstas. O planejamento daí decorrente, ou seja, o processo,
segundo Villaça (ibid), entra novamente em uma série de injunções nas quais os atores
envolvidos defrontam-se a partir de caracterizações fundamentais nas disputas pelos
territórios aos quais as obras previstas no Plano são destinadas.
Neste processo, a antecipação de uma realidade espacial mediante o Plano de
Urbanização, busca conferir à cidade e, especificamente às áreas aqui estudadas, uma visão
de mundo marcadamente desenvolvimentista, constituindo-a enquanto cosmografia, cuja
busca por consolidação está imersa em disputas em torno da caracterização das pessoas que
habitam esses territórios.
88
2.3. Trator e polícia x espingarda na disputa pelos territórios urbanos: a favela.
Larissa: Quando o senhor veio pra Sr. Luís... parece que havia muitas casas
aqui na beira do rio, era isso mesmo?
Sr. Luís: Tinha uma favela ali... Era uma espécie de uma favela no caso né?...
Posto que era uma favela do lado de lá e do lado de lá. Teve um prefeito aqui em
Uberlândia que mandou destruir tudo, eu não quero é falar o nome da pessoa,
do Prefeito viu? Mandou rancar tudo, passar trator por cima, desmanchou tudo.
Larissa: Mas o pessoal já tinha saído das casas?
Sr. Luís: Não querida, nããão amor, ele passou foi o trator e mandou as pessoa
sair de casa né? Pegou um indivíduo bem nesse local aqui assim onde eu e
que tinha uma casinha e ele foi dentro puxou uma espingarda e falou pro
tratorista que se ele entrasse com os trem tudo morria... mas não atirou no
rapaz não.(...) é porque o prefeito queria esse local limpo, pra beneficiar o local
? Ele achava de outra forma, queria na base da estupidez ele poderia chegar
assim e mandar nas pessoas no caso, né? [...] Mas... como eu disse pra e do
lado de lá tinha uma favela e até a ponte do Vau, e as pessoa criava vaca, criava
porco, e era uma coisa como se fosse uma fazenda né?As pessoas falava que era
uma favela, né? (grifos meus).
Favela é um termo corrente no Brasil desde os anos 1920. Valladares (2005),
procurando entender o processo de construção social das representações sobre a favela,
aponta-nos que no século XIX, tanto na Europa quanto no Rio de Janeiro, os chamados
cortiços eram considerados espaços da pobreza, alvo de intensas campanhas de remoção e
extinção, especialmente com a implantação, no Rio de Janeiro, de um plano de reforma
urbana, realizado pelo prefeito Pereira Passos, entre 1902 e 1906, de cunho higienista,
inspirado nos princípios de melhoramento e embelezamento do urbanismo francês do Barão
de Haussmann.
A problemática relativa aos cortiços chamou a atenção para a favela como espaço que
despontava como território da pobreza no Rio de Janeiro. De acordo com a autora,
inicialmente a atenção voltou-se para o Morro da Providência, por sua ligação com a Guerra
de Canudos, dada a instalação no Morro de seus antigos combatentes com a finalidade de
pressionar o Ministério da Guerra a pagar salários atrasados. A associação do termo favela ao
Morro deu-se em razão de existir em Canudos uma planta chamada favella, que deu o nome
ao Morro da Favella, situado no município de Monte Santo na Bahia, base das operações do
exército contra Canudos, planta também encontrada no Morro da Providência estendendo seu
nome a ele e posteriormente aos demais morros no Rio de Janeiro.
O termo favela se generalizou, de acordo com a autora, na segunda década do século
XX, tendo contribuído para isso a difusão, no imaginário social, das representações acerca de
89
Canudos retratada na obra Os Sertões, de Euclides da Cunha. Esta obra forneceu aos
intelectuais do Rio de Janeiro à época um olhar, a partir de Canudos e do sertão, para as
populações dos morros cariocas, centrado na idéia do “meio ecológico como condicionador
do comportamento humano, persistindo a percepção das camadas populares como
responsáveis pelo seu próprio destino e pelos males da cidade” (Valladares, 2005:36).
Em Uberlândia, os moradores das áreas às quais eram destinadas as obras previstas no
Plano de Urbanização de 1954 e, recentemente, num Projeto para a promoção do
desenvolvimento sustentável da cidade, estiveram sob constantes investidas de remoção por
parte do poder público local, sustentadas em diferentes classificações desses moradores as
quais se iniciaram com o termo favelados. Ao realizar a pesquisa no Arquivo Público
Municipal, os trechos das falas do Sr. Luís em epígrafe ressoavam em minha consciência
levando-me a questionamentos sobre em quê residia a força dessas classificações nas
remoções dos moradores para implantação das obras previstas no Plano. Em minhas reflexões
pairava uma certa dúvida sobre uma relação mecânica e direta entre favela e remoção e
buscava entender de que modo essa relação se constituía, quais os atores envolvidos e em que
contextos essa classificação teria eficácia, alcançando os efeitos esperados, na justificação
para as remoções.
Em Uberlândia, as primeiras derivações do termo favela são encontradas no ano de
1954, a partir de um incidente em que chuvas torrenciais levaram ao soterramento de casas,
desaparecimento e morte de pessoas que habitavam a Vila das Tabocas, localizada nas
proximidades de um dos córregos da cidade, de mesmo nome da Vila. Uma disputa, então se
estabeleceu na Câmara Municipal em relação à responsabilidade pelo ocorrido, deflagrada a
partir da apresentação de uma Moção de Pesar às vítimas por um vereador da UDN e um
Projeto de Lei pelo Prefeito (PSD) que previa auxílio às mesmas, ambos referindo-se a elas
como “famílias pobres que perderam suas casas”, “famílias operárias”, tratando-se de uma
zona eminentemente operária”.
Acusando o poder público local de responsabilidade pelo ocorrido, referindo-a ao
grupo político no poder à época, do PSD, o vereador propõe que o fato deveu-se à autorização
da prefeitura para a construção das casas naquele local, sem urbanização e segurança, diante
da qual um outro vereador do partido do prefeito saiu em sua defesa descrevendo as
habitações existentes no local, as quais comparou, por um recurso metafórico de transferência
de sentido “às casas de favelas existentes nos grandes centros”
79
. Uma classificação que foi
79
Câmara Municipal, Uberlândia. Ata do dia 18.12.1954.
90
acrescida por um dos jornais locais, Correio de Uberlândia, de propriedade de um grupo
político pertencente à UDN, que caracterizou a Vila das Tabocas como “um antro de
vadiagem”:
Antro de vadiagem
Além da pobreza que impera em „Tabocas‟, a vadiagem faz lá o seu reino. Homens fortes tocam
viola, o dia inteiro enquanto mulheres magras, macilentas e esquálidas, mendigam tostões que
eles mesmos irão gastar em farras e cachaçadas ao rebolar dos sambas em chão-batido. Rara é a
semana em que não ocorrem cenas de sangue em „Tabocas‟ (...) Em „Tabocas‟ a única lei é a
peixeira. (...) É assim a „cidade dos párias‟, favela uberlandense em franco e crescente
desenvolvimento
80
.
Esta classificação indicou-me um delineamento, em Uberlândia, de um quadro
semântico em torno desses moradores à essa época, em que determinados atores tomavam
signos que circulavam no âmbito nacional, como o termo favela, como interpretantes para as
questões locais, consolidando-os paulatinamente, mas de modo particular às injunções
políticas locais. De acordo com Valladares (ibid), nessa mesma época, década de 1950, no
Rio de Janeiro, temos um período marcado pela valorização da favela enquanto comunidade,
no contexto do desenvolvimentismo e cooperação internacional de ajuda à pobreza, com
grande influência das ações de Dom Helder Câmara e do padre e sociólogo Louis-Joseph
Lebret, numa perspectiva diferenciada das remoções anteriores.
Em Uberlândia ainda ressoaria até o final da década de 1970 as representações da
favela como “doença social” a ser “extirpada”, num indicativo da importância do contexto e
das configurações locais para se analisar injunções decorrentes de processos que ocorrem
simultaneamente em nível local e nacional. Essas associações aparecem de diversas formas e
por diferentes atores, o que revela a dimensão de construtividade das classificações dos
moradores das áreas aqui em estudo, num processo de tipificação que, segundo Crapanzano
(1992), estabelece hierarquias e posições entre os sujeitos.
Retomando Peirce (1955), se um signo representa algo para alguém apenas quando
em relação a um interpretante, favela e favelado são signos que circulam em um jogo
complexo em que ser favelado para os jornais e o poder público local, implica em por vezes
ser marginal, afeito à bebida, à violência, à vadiagem, à delinqüência, à mendicância, à
especulação ilegal e indevida do espaço urbano, ou em ser pobre em razão de contingências
da vida ou de limitações individuais. Estas tipificações tomam como interpretantes ora uma
80
Tabocas A cidade dos párias. Jornal Correio de Uberlândia, de 21.07.1955.
91
“psicologia” ou uma “moral do favelado”, ora as “condições estruturais da sociedade
capitalista”.
Os discursos acerca da favela nesse período vão crescentemente se concentrando em
torno desse segundo interpretante, que não exclui o primeiro, mas o engloba, sendo
mobilizado nas falas dos atores promotores das remoções, especialmente quando procuram
justificá-las tomando a favela como índice de problemas presentes ou futuros ou quando
buscam justificar o não atendimento à totalidade dos moradores nos programas habitacionais
existentes à época. Em ambos os casos são interpretados como uma doença, um mal para a
qual desenvolvimento passa a ser ora a causa, ora a cura, ou, as duas coisas ao mesmo tempo.
Entre as décadas de 1960 e 1970 a cidade de Uberlândia quase duplica seu tamanho
demograficamente, no bojo das políticas de crédito, extensão rural e transferência de capital e
tecnologia dos países desenvolvidos para os subdesenvolvidos, como nas políticas de
“modernização da agricultura” do pacote da “Revolução Verde”, como opção para o
desenvolvimento econômico, especialmente para o Cerrado, com o Programa de
Desenvolvimento do Cerrado
(POLOCENTRO) e, em Minas Gerais, com o Programa de
Crédito Integrado (PCI), vinculado ao Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG)
(Pessôa, 1982; Schneider, 1996; Oliveira, 1997; Miranda, 2003).
Em estreita relação com os processos de industrialização e urbanização, a
“modernização da agricultura” tem sua expressão no privilegiamento da produção para a
exportação e/ou produtos agroindustrializáveis. Essa relação se expressa em Uberlândia na
implantação de sua Cidade Industrial (década de 1960), Distrito Industrial (década de 1970),
na mecanização da agricultura, incorporação de novas terras para expansão da produção e
redefinição de seu uso. Estes fatores convergiram para um grande êxodo rural na região do
Triângulo Mineiro para Uberlândia, migrações de pequenas cidades da região e de cidades de
outras regiões do país. Migrações que ocorreram em grande parte em razão da busca por
empregos gerados na cidade em torno da indústria e setor de serviços, estando associado ao
aumento da concentração de populações em diferentes espaços da cidade, especialmente as
margens dos córregos e do rio Uberabinha, sendo vistos como novos focos de favela.
Nesse contexto, as favelas começam a ser enunciadas em contraposição à interpretação
de Uberlândia como cidade desenvolvida. Essas associações entram em um jogo local ora
como instrumento de enfrentamento dos adversários políticos, ora para enfrentamento de
interpretações advindas de jornais de circulação nacional que “denegririam” a imagem de
cidade desenvolvida, indicando a instabilidade das representações a respeito de cidade, que
também giravam em torno das favelas que buscavam erradicar”.
92
As tentativas de “erradicar”, “exterminar” as favelas, seguiram sendo uma prática
comum a dois Prefeitos das duas frentes políticas à época, Arena 1 e Arena 2
81
, que se
revezaram no poder entre os anos de 1967 a 1982 quando de suas buscas por implantação das
obras previstas no Plano de Urbanização. As argumentações em torno destas práticas em sua
relação com a implantação das obras do Plano alcançaram efeitos mais ou menos eficazes em
face dos novos atores que entram em cena em favor daqueles classificados como favelados,
levando a uma mudança na significação da ão de “extinção”, “erradicação” para
“desfavelamento”. Para compreender esse deslocamento semântico analisarei alguns eventos
descritos nos documentos levantados na pesquisa realizada no Arquivo Público Municipal e
no Centro de Documentação e Pesquisa em História da Universidade Federal de Uberlândia.
Neles as remoções apareciam associadas à realização das obras previstas no Plano de
Urbanização de 1954 para os locais onde estavam situadas as favelas.
2.3.1. Público ou humanitário?
As favelas em Uberlândia na década de 1970 eram localizadas em diversos pontos da
cidade
82
. Tiveram atenção especial por parte do poder público as habitações localizadas às
margens do Córrego São Pedro, cuja canalização estava prevista no Plano de Urbanização de
1954, dando origem a uma “avenida de desafogo” que corta o eixo leste-oeste da cidade, hoje
uma de suas avenidas de maior fluxo de veículos. Além desta, havia as habitações localizadas
nas imediações do Córrego Jataí, onde foi construído o maior Parque da cidade Parque do
Sabiá - e um estádio de futebol com capacidade para 50.000 pessoas, também previstos no
Plano, ambos recorrentemente mobilizados como índices do desenvolvimento da cidade,
compondo os cartões postais e diversos sites, institucionais
83
ou não. As habitações às
margens do rio Uberabinha para o qual havia obra também prevista no Plano, e habitações às
margens de outros córregos, foram e seguem sendo alvo de remoções, sob novas elaborações.
Em outubro de 1975, disputas em torno da validade de um pedido de empréstimo feito
pelo prefeito à época, da Arena 2, para realização de obras na cidade, dentre elas a
continuidade da canalização do Córrego São Pedro, levaram o prefeito à Câmara Municipal
81
Constitui-se de um desmembramento local dos grupos políticos que anteriormente eram filiados à
UDN/Cocões e PSD/Coiós, como alternativa para manterem a distinção durante os governos militares.
82
No discurso oficial atual, mesmo os bairros com condições mais precárias em termos de equipamentos
públicos raramente são enunciados como favela. Bairros populares é o termo mais usual.
83
A exemplo disso ver <http://www.uberlandia.mg.gov.br/secretaria.php?id_cg=149&id=17>
93
para “prestar esclarecimentos” a respeito do assunto. Sua presença na casa começa a ser
debatida na sessão anterior nas quais um conjunto prévio de informações a respeito das
remoções dos moradores começa a ser enunciado fornecendo os elos argumentativos entre as
remoções e a validade ou não do empréstimo para as obras:
(...) sobre os afavelados das margens do rio Uberabinha, o que está acontecendo ali é de
estarrecer! - A prefeitura notificou com um prazo bem grande para que eles se retirassem dali
porque a Prefeitura precisava dos terrenos. - ...quando da construção da Avenida Rondon
Pacheco a municipalidade encontrou os mesmos problemas com os afavelados que ali residiam.
“não tendo argumentos necessários para tirar dali aqueles pobres coitados usará o nome do
Coronel do 36º BITZM e autoridades” (Vereador A.S. Arena1)
84
.
Na reunião seguinte, na qual o Prefeito esteve presente, a intensidade e tensão da
disputa podem ser percebidas em Ata pela grande oscilação das funções da linguagem
(Jakobson, 1971) presentes nas interações entre os vereadores e nas interpelações destes à
platéia. Girando em torno do empréstimo, o fluxo do embate de argumentos tinha a finalidade
de estabelecer, ou não, a adequação política, jurídica, normativa e moral das ações do Prefeito
relacionadas às obras para as quais era feita a solicitação. Por vezes permeadas pela função
referencial, especialmente aquelas em que os questionamentos apresentaram-se como
pretensamente “neutros”, ainda a presença marcante da função metalingüística em que, a
partir do recurso à lei, procurava-se restabelecer o código que regula os termos dos temas
discutidos ou, unindo a função metalingüística à conativa, buscava-se induzir o interlocutor a
destacar elementos de sua própria fala que são usados na sequência para invalidar seus
argumentos.
Fortemente marcadas pela função poética, as falas dos vereadores que questionam o
prefeito usam de metáforas para sugerir diversas associações não diretamente relacionadas ao
tema em questão, o empréstimo, mas a partir das quais buscam alcançar o efeito de invalidar
sua proposição. Nestas metáforas, associações feitas em relação à pessoa do prefeito, à sua
capacidade administrativa, à sua ética e moral, ou à sua filiação política, se comunista, em
pleno regime militar, buscavam invalidá-lo sugerindo sua cassação. Dentre essas metáforas,
as disputas em torno dos meios utilizados para remoção dos favelados aparecem e nos
permitem evidenciar novos rumos que a temática da favela tomava:
Vereador A.S (Arena 1/UDN) Sr. Prefeito, com relação ao caso que vivi nas margens do rio
Uberabinha é que vossa excelência sem o mínimo de sentimento humanitário tenta por todos os
meios tira-los daquele local sem nada lhes oferecer em troca a não ser o transporte porque vossa
84
Câmara Municipal, Uberlândia. Ata da Décima Sessão da Oitava Reunião Ordinária, de 30.10.1975, fl. 02.
94
excelência não os aloja em terrenos próprios do Município pois existe uma lei emanada do ex-
prefeito Virgílio em que vossa excelência pode estribar.
Prefeito (Arena 2/PSD) (...) vossa Excelência diz que talvez até brutalmente nos tiramos aqueles
que estão na beira do Rio vossa excelência naturalmente justamente por entender que vossa
excelência não quer fazer demagogia, justamente por entender que vossa excelência não quer
fazer política, eu acho que seus sucessores ou fontes que vossa excelência foi buscar informações
falharam, eu fui presentemente, eu estava o tempo todo o senhor vereador deve ter ficado uns
noventa dias mais ou menos, porque nos começamos a tentar porque nos precisávamos daquela
via porque é uma via publica e via publica é da prefeitura, nos temos obrigações de cuidar das
coisas da municipalidade as terras das margens do rio Uberabinha são terrenos que constitui
ruas os terrenos de servidão do poder publico, mandamos uma primeira notificação que eles
teriam que tomar providências de mudar, porque eles estavam mau situados, a primeira conversa
que eu ouvi era que era terreno da marinha, evidentemente que era informação jogada ali por
alguém que não entende o que é terreno de marinha, nos fizemos uma notificação, começamos
noventa dias após mais ou menos, propuzemos fazer a mudança, dar algum pequeno auxílio que
nunca foram dinheiro da prefeitura, foram auxílios de dinheiro que arranjamos com amigos,
porque não tínhamos verba votada por esta casa para dar nada a ninguém e eu vou provar que a
lei que vossa excelência citou não tinha verba não tinha autorização do legislativo para dar
dinheiro para ninguém mas demos, e oferecemos emprego na prefeitura ou fora dela, oferecemos
para aqueles mais necessitados que ficassem na ICASU por um determinado período até que a
ICASU podesse cuidar de sua situação. É tanto que nenhuma violência foi cometida que
praticamente quase todos do lado de lá mudaram e praticamente do lado de cá quase todos, então
temos hoje lá quarenta e nove casas, praticamente aqueles que entraram no foro [sic]
85
Nesse trecho da disputa, dois componentes são fundamentais para seu entendimento: a
ação central, a remoção, e seu efeito, o destino dos moradores. A metáfora utilizada pelo
vereador para qualificar a remoção, “sem o mínimo de sentimento humanitário”, “por todos os
meios” é proferida apoiando-se em ter “vivido” por cerca de noventa dias, como menciona
o Prefeito, aproximando-o mais da humanidade dos moradores, por contraposição ao Prefeito.
Seu pronunciamento tem por efeito a busca por parte do Prefeito da qualificação da remoção
como não violenta, portanto, não desumana. Para isso, o Prefeito apóia-se numa ação
passada, a remoção, cuja significação é sustentada no aspecto referencial do relato, por sua
presença in loco durante a ação, a qual os demais vereadores, inclusive seu interlocutor
imediato, não presenciaram: “eu fui presentemente, eu estava o tempo todo”. A ação é
realizada após a presença in loco de seu interlocutor, cuja ausência confere um caráter de
abertura à significação da ação realizada, a partir da qual o Prefeito mobiliza uma
caracterização objetiva da ação central, a remoção, a partir de outras ações a ela relacionadas,
como indicadoras da não violência pretendida.
Na construção das metáforas, ações que antecedem à remoção e não propriamente a
ação da remoção - são mobilizadas para qualificá-la: “propuzemos fazer a mudança...”,
“demos[dinheiro]” . Na ausência do aspecto referencial relacionado ao efeito pretendido pelo
Prefeito como próprio a cada ação “concordaram” e “aceitaram”, a caracterização objetiva do
85
Câmara Municipal, Uberlândia. Ata da Primeira Sessão da Nona Reunião Ordinária, de 03.11.1975, fls. 08-09.
95
efeito “praticamente quase todos do lado de mudaram e praticamente do lado de quase
todos” pretende dar conta do modo da remoção sem explicitá-lo.
Caracterizada a remoção pelo prefeito, sua justificação pela enunciação do
qualificativo de público para a reivindicação da posse da área, por sua vez, ao mesmo tempo
em que se refere, sem a necessidade de mencioná-la, à exclusão daqueles que ali habitam e à
exclusividade da posse da prefeitura, amalgamando ruas e margens do rio num, e único
objeto da posse. Das cerca de duzentas casas removidas mencionadas pelo prefeito, restavam,
ainda, quarenta e nove, cujos moradores, resguardados por uma ação judicial, eram ainda mais
desqualificados em sua pretendida permanência na área por uma caracterização objetiva por
meios metafóricos “é proprietário”, “tem dois lotes”, “é um verdadeiro latifundiário”, signos
expressivos, indicadores da reivindicada legalidade da ação central, a remoção. A suposta
propriedade privada, invalidando a ação dos moradores, validaria a remoção.
Restava ao vereador, então, qualificar o efeito enunciado da remoção, o destino dos
moradores: porque vossa excelência não os aloja em terrenos próprios do Município pois
existe uma lei emanada do ex-prefeito Virgílio em que vossa excelência pode estribar
(Vereador A.S - Arena 1/UDN). Buscando restabelecer o código da questão em disputa, o
Prefeito trechos da lei que previa a doação de “até o limite de 100 lotes dos terrenos
pertencentes ao patrimônio municipal com a finalidade de alojamento dos afavelados” e
prossegue:
Prefeito (Arena 2/PSD) A prefeitura não tem esses terrenos que vossa excelência pensa não (...)
Agora eu pergunto um terreno no bairro Altamira é a mesma coisa que um terreno no bairro N.S.
das Graças qual desses iria para o B. N. S. das Graças e qual desses iria para o B. Altamira.
Vereador A.S (Arena 1/UDN) Vossa excelência poderia vender um terreno no B. Altamira e
comprar um alquer de terra no Óleo
86
.
Prefeito (Arena 2/PSD) (...) mas é tempo de vossa excelência senhor vereador buscar resolver
os problemas neste sentido lendo as pesquisas que foram feitas pela ICASU 90% deles responderá
que estava morando ali porque era perto do centro, porque era perto das escolas, porque o lugar
era saudável e porque tinha água perto se vossa excelência os mandasse para traz do Óleo eles
não irão, eu garanto a vossa excelência.
87
A alternativa apresentada pelo vereador, de doação de lotes torna-se, então, infeliz, nos
termos de Austin (1962), por não alcançar o efeito desejado, o compromisso de doação dos
lotes, ao ser invalidada pelo Prefeito por meio da função metalingüística, focalizando o
código, ao apontar a ausência de regulamentação da lei que prevê as doações e por um aspecto
86
Referindo-se a terras nas proximidades do Córrego do Óleo, localizado na região oeste da cidade, distante das
margens do rio Uberabinha.
87
Câmara Municipal, Uberlândia. Ata da Primeira Sessão da Nona Reunião Ordinária, de 03.11.1975, fls. 08-09.
96
referencial impossibilitador das doações: a inexistência de terrenos suficientes para doação. A
menção à pesquisa realizada junto aos moradores simultaneamente invalida a proposição do
vereador e reforça a ação da remoção. Em termos metafóricos, sem a necessidade de
mencioná-lo, para o Prefeito, ainda que houvesse terrenos suficientes, eram os moradores que
não queriam sair, restando a remoção, por ser área pública, da prefeitura.
Estava circunstancialmente esgotado o campo semântico em torno da remoção.
Favelados, antes entendidos como “vadios” e “violentos”, tomados aqui como “pobres
coitados” com os quais deve-se agir com humanidade são removidos em prol do público do
qual são excluídos. O Prefeito, em sua feliz caracterização da remoção pelas ações periféricas
a ela, mas não a própria remoção, havia passado de realizador de uma ação desumana a
defensor do interesse público através da remoção. Esta sendo, no relato do morador em
epígrafe o próprio ato da derrubada da casa ou do barraco, a despeito da concordância ou não
do morador, sendo o trator, para o morador, um índice do modo como a ação foi realizada,
signo expressivo da ação violenta que o Prefeito pretendia negar.
A ação movida pelos moradores que permaneceram alcança ganho de causa em seu
favor um ano mais tarde, quando assume o novo prefeito, da Arena 1 - UDN, dando ensejo a
um novo evento e a uma ampliação do campo semântico em torno da favela e das remoções a
partir de uma reportagem em jornal local.
2.3.2. Extinção ou desfavelamento?
Se o ganho de causa em favor dos moradores em princípio favoreceria sua
permanência nessas áreas, as construções elaboradas pelos jornais e vereadores na Câmara
Municipal a partir do início do mandato do novo Prefeito da Arena 1-UDN intensificam os
aspectos pragmáticos de suas falas, incitando à ação “urgente” diante do temor do aumento do
número de favelas, agora significado como objetivamente real em razão dos aspectos
referenciais mobilizados para explicar suas origens e suas causas estruturais
88
. A crescente
industrialização” e sua conseqüente afluência de grande número de famílias”; a perda pelo
ex-prefeito da ação na justiça “movida por favelados das margens do rio Uberabinha”; a
propaganda intensiva de uma suposta ou pretendida industrialização como elementos
88
Veja: 1) Favelas: um desafio à capacidade uberlandense. In: Jornal O Triângulo, 21.03.1977; 2) O prefeito e
as favelas. In: Jornal O Triângulo, 22.03.1977; 3) Câmara Municipal, Uberlândia. Ata da Terceira Sessão da
Segunda Reunião Ordinária, de 21.03.1977.
97
geradores da habitação marginal são o apoio referencial para novas justificativas da
necessidade de remoção.
Começam a ser anunciadas, naquele contexto, ações no sentido de viabilizar a
construção do Parque do Sabiá e do Estádio Municipal, ambos na região do Córrego Jataí
onde habitava um grupo de moradores também tidos como favelados. Além dessas obras o
término e reformas da canalização do Córrego São Pedro para conclusão da Av. Rondon
Pacheco somam-se às demais obras previstas no Plano de Urbanização de 1954,
configurando o contexto para novas remoções.
89
Em meio a um clima de “urgência” das remoções, novas formas de remoção são
enunciadas a partir de uma experiência “exemplar” proposta pelo jornal local O Triângulo
como desfavelamento, realizada na cidade de São José dos Campos. Uma situação similar à
de Uberlândia é tomada como interpretante para a proposição de novas formas de remoção:
um grande número de famílias ocupando uma área às margens de um córrego na zona central
da cidade. Naquele caso, menciona a reportagem, a Prefeitura comprou os barracos dos
moradores ao preço equivalente à construção de suas casas num local na periferia, para as
quais a Prefeitura ofereceu plantas das casas e urbanizou com água, esgoto, energia elétrica,
linha de ônibus e escola. Os barracos foram destruídos para canalização do córrego e
construção de uma avenida que ligaria as regiões norte e sul da cidade
90
.
Naquele momento estava ampliado o campo semântico sobre o favelado e a remoção,
Antes tomada como vadio, afeito à bebida, à mendicância, pobres coitados, a noção de
favelado passa a incluir a condição de trabalhador do campo, pertencente a um “exército
industrial de reserva” atraído por empregos na cidade. A favela, no entanto, permanece como
uma ameaça, numa condição ambígua entre “extirpação” de um “quisto social” e
“desfavelamento”. Extirpação sendo entendida como remoção sem destino programado para
os moradores que possivelmente poderia dar origem a novas favelas em outros locais.
Desfavelamento visto como ação programada, caracterizada especialmente pelo destino certo
dos moradores em um novo bairro na periferia. Frente à industrialização que fatalmente
levaria ao aumento da população, caberia, para o autor da reportagem, conduzir os rumos da
industrialização, da cidade e da população.
A ampliação desse campo semântico incorpora, então, a necessidade do Plano Diretor
que em 1954 foi proposto como orientador da expansão urbanae agora passa a incluir a
programação industriale a “proteção da população contra os males da população que virá”.
89
Processos nº. 3946, de 18.05.1977 e nº. 4100 de 17.03.1978.
90
Favelas: um desafio à capacidade uberlandense. In: Jornal O Triângulo, 21.03.1977.
98
O Prefeito, de acordo com o jornal, deve ser o condutor da definição dos rumos da
industrialização, como um Terceiro fundamental que define-os através de uma “conduta
racionalizada” cujo quadro interpretativo é fornecido pelo Plano Diretor, instrumento para
reivindicação das áreas nele previstas.
Chegado o fim do primeiro ano do mandato do Prefeito, estas construções são
atualizadas e as elaborações em torno da necessidade de remoção se intensificam, incitando-o
à ação. Tratava-se, no entanto, de um tipo específico de ação, realizada “como um coronel”
justificada por uma “ausência de autoridade” do Prefeito
91
. A força ilocucionária dessas
incitações apoia-se não em rumores, mas em elementos relacionados referencialmente aos
efeitos da perda da ação judicial pelo Prefeito anterior.
A atribuição das favelas ao marketing da cidade para atrair novas indústrias começa a
ganhar força a partir do ano de 1978 acentuando ainda mais o clima de urgência das remoções
presente nos jornais locais e nas discussões na Câmara Municipal. As proposições de doação
de lotes aos moradores das favelas tornam-se paulatinamente mais infelizes, nos termos de
Austin (1962), sob a argumentação de que as doações atrairiam mais favelados para a cidade,
tornando-a “uma das maiores favelas do país”. Uma alternativa à favela e à atração de
favelados começa a ser enunciada a partir da divulgação de um trabalho realizado pelo
Secretário da Câmara Municipal à época, Dorivaldo Alves do Nascimento, do partido do
prefeito, Arena 1 - UDN
92
.
Na tribuna o vereador inicia sua fala por um levantamento realizado nas favelas do rio
Uberabinha e da área do Córrego São Pedro. A evocação referencial de sua pesquisa destaca
elementos objetivos de dados como quantidade de famílias e seus respectivos filhos, se
analfabetos ou não, a existência ou não de renda, cidade de origem, tempo de moradia naquele
local. Na sequência, por um efeito de seleção e combinação próprio da função poética
(Jakobson, s/d), busca dar sentido à sua visão de favela a partir de uma “visão geral” da favela
e do favelado que toma como interpretante as favelas nas grandes cidades e metrópoles do
país para enunciar a situação igual em que caminha Uberlândia”. Seu pronunciamento
fornece um quadro interpretativo para as proposições e ações seguintes relativas às favelas, no
qual o núcleo favelado é composto de marginalizados, principalmente por razões
econômicas, vivendo em quase total promiscuidade
93
.
91
Vereador O. C. F. (Arena 2/PSD). Câmara Municipal, Uberlândia. Ata da Segunda Sessão da Oitava Reunião
Ordinária de 18.10.1977.
92
Câmara Municipal, Uberlândia. Ata da Quarta Sessão da Sexta Reunião Ordinária de 21.08.1978.
93
ibid
99
Seu pronunciamento é feliz (Austin, 1962), tendo por efeito a congratulação e
endossamento de vários vereadores da casa, do partido da situação e da oposição, e pelo jornal
O Triângulo que, não apenas reproduz o trabalho do vereador
94
, mas enfatiza os aspectos
referenciais apresentados por ele para descrever a favela, intensificando os efeitos do trabalho
ao atribuir o aumento do número de favelas ao marketing da cidade
95
. Remetendo a uma
reportagem publicada pelo mesmo jornal no ano anterior
96
, o texto retoma a necessidade de
planejamento e zoneamento para propor que sejam previstas áreas de destinação dos
moradores das favelas. Soluções são urgentes e iminentes, segundo as reportagens. No
entanto, apenas em fins de dezembro as remoções começam a ser anunciadas, mas não
propriamente realizadas, quando o jornal O Correio publica a reportagem Polícia convocando
favelados:
O Bacharel Francisco Alves da Silva, Delegado Regional de Segurança Pública de Uberlândia,
está convocando os favelados que se acham residindo na imensa Avenida Rondon Pacheco, a fim
de que venham a sair do local onde se encontram, pois aquela artéria vai precisar dos espaços
ocupados, para receber melhorias. Por outro lado, o Delegado procura mostrar aos favelados que
colaborem com a polícia no sentido de se evitar que outros casebres, a maioria vendida por
indivíduos que se aproveitam da desgraça alheia, venham a ser instalados na extensão daquela
avenida, pois isso implicaria em nova diligência policial e consequentemente aumentaria o difícil
problema que a Prefeitura Municipal está procurando solucionar. O Dr Francisco Alves da Silva
tem recebido os favelados com muito calor humano e percebe que vai receber colaboração deles
em favor do seu trabalho que é, acima de tudo, uma exigência ligada ao desenvolvimento de uma
parte importante de nossa cidade
97
.
A função referencial estrita em que se apóia a reportagem afirma, por uma construção
descritiva do fato, uma ação realizada por ninguém menos que um Bacharel, Delegado de
Polícia, para a qual sugere que não caberiam outras interpretações para além daquelas que
declara: a intenção de obter a colaboração dos moradores - a despeito de uma possível ação
violenta advinda da Polícia - com a sua saída do local em razão da exigência ligada do
desenvolvimento da cidade. Três dias após, o jornal O Triângulo, publica uma reportagem
com o título Delegado está intimando favelados:
Um favelado informou que a polícia estava agindo por ordem do Prefeito, para pressioná-los a
desocupar o local, mas segundo o Delegado Regional de Segurança, Dr. Francisco Alves,
entrevistado ontem pelo vereador João de Oliveira Paulino, assegurou-lhe que está agindo por
conta própria e com a finalidade única de realizar um policiamento preventivo, visando apenas
questões de segurança. Ainda, segundo João Paulino, o delegado informou que a operação tem
por fim cadastrar todo o pessoal que mora nas favelas de Uberlândia com a finalidade de facilitar
o trabalho da polícia e possivelmente descobrir algum marginal „encastelado‟ em alguma área de
habitação marginal. Ao falar com os moradores, o delegado teria apenas alertado cada um deles
94
Dorivaldo denuncia o problema das favelas. In: Jornal O Triângulo, de 24.08.1978.
95
Favelamento, a séria denúncia de Dorivaldo. In: Jornal O Triângulo, de 24.08.1978.
96
Favelas: um desafio à capacidade uberlandense. In: Jornal O Triângulo, 21.03.1977.
97
Polícia convocando favelados. In: Jornal Correio de Uberlândia, de 30/31.12.1978.
100
sobre a situação irregular em que estão morando e que brevemente terão que deixar o local.
Aquela autoridade não estaria agindo com a finalidade de promover o desfavelamento, ação que
somente poderá ser tomada pela Prefeitura. O Delegado Regional de Segurança de Uberlândia
está convidando as pessoas que moram na favela da Av. Rondon Pacheco para comparecerem na
delegacia, onde estaria pedindo para desocuparem o lugar porque nele a prefeitura precisa
realizar um plano de obras. Isto segundo o jornal Correio de Uberlândia‟ e algumas pessoas
ouvidas
98
.
A evocação em tom de denúncia do jornal salta aos olhos. O jornal assume uma
posição de defensor dos favelados e sugere uma emboscada: os moradores são convidados a
comparecer à delegacia para serem “fichados”, como criminosos auto-declarados.
Se as iniciativas para a ação do Delegado não estão explícitas na reportagem do jornal
O Correio, em O Triângulo, as declarações do Delegado seguem sendo apresentadas
mediante declarações de Terceiros através das quais, por meio de uma linguagem puramente
semântico-referencial, procura-se alcançar validade irrefutável para sua denúncia ao trazer à
reportagem diferentes versões do fato: a de um vereador da bancada de oposição (Arena 2-
PSD), supostamente interessado na “verdade dos fatos”, trecho da reportagem do jornal
Correio de Uberlândia, de propriedade de um grupo político ligado à Arena 1-UDN; e a
versão dos próprios moradores.
A reportagem de „O Triângulo‟ ouviu ontem João Gonçalves Neto, 70 anos. (...) Ele informou
que compareceu à delegacia na última quinta-feira e que lá recebeu instruções para retirar-se do
local „porque todos os barracos serão demolidos pela prefeitura”. (...)
“Outro morador da favela, Antônio Moreira de Araújo (...) Ele esteve na delegacia na última
quinta-feira e disse que foi muito bem tratado mas o delegado lhe disse que teria que desocupar o
lugar com urgência „porque a prefeitura vai passar as máquinas por cima dos barracos nos
próximos dias‟ (...) „o delegado falou que se chegar mais alguém por aqui é para a gente
denunciar. Quem não denunciar sai junto com o novo morador”
99
.
Estava deflagrado e explicitado não apenas o caráter iminente da remoção, mas a
caracterização antecipada da ação como violenta, pela “intimação” dos favelados para serem
“fichados” na Delegacia e pela declaração do modo como a ão seria realizada: porque
todos os barracos serão demolidos pela prefeitura”; porque a prefeitura vai passar as
máquinas por cima dos barracos nos próximos dias”; Quem não denunciar sai junto com o
novo morador”
100
.
As crenças e dúvidas em torno do modo como as remoções aconteceriam, levantadas
por essas reportagens, mais do que revelar uma disputa pela “verdade dos fatos”, nos
98
Delegado está intimando favelados. In: Jornal O Triângulo, 03.01.1979.
99
Ibid.
100
Ibid.
101
permitem identificar o posicionamento dos jornais, do delegado e da Prefeitura acerca da
favela e do lugar enquanto objeto de significação. Para o Delegado a favela é alvo de suspeita.
A despeito do “calor humano” com que estaria recebendo os moradores, a favela, para o
Delegado, carece de policiamento preventivo para identificar “marginal encastelado” em área
de „habitação marginal‟, uma tautologia que coloca sob suspeita uma possível diferenciação
entre morador e “marginal” pelo delegado. Essa indiferenciação, no entanto, é significativa
para seu propósito: desocupar a área para a prefeitura realizar um Plano de Obras, sendo
infeliz em sua tentativa de negar seu comprometimento com a ação da Prefeitura indicado
pelas falas dos moradores. Se as dúvidas incitadas pelo jornal O Triângulo giravam em torno
do modo da remoção, não estava em questão as razões da remoção, a construção de uma
avenida para a “vinda do progresso”, mas a continuidade da instalação de novos barracos nas
favelas que permaneciam indesejadas. Para tanto, o jornal propõe novamente, face à ação do
Delegado, o desfavelamento com destino certo dos moradores. As remoções são cada vez
iminentes, como sugere a reportagem de O Triângulo: “como se alojará tanta gente em tão
curto espaço de tempo?”, índice da extirpação e não desfavelamento realizado pela Prefeitura,
como anunciado pelo Delegado.
A problemática das favelas e a necessidade de sua remoção segue sendo acalorada por
denúncias de surgimento de novos focos de favela na Câmara Municipal e nos jornais
locais
101
. As reivindicações de doações de terrenos perdem cada vez mais força pela
enunciação do crescente aumento do número de favelas e as remoções o justificadas pela
reivindicação das áreas como de utilidade pública em razão das obras para elas previstas
102
.
Entre o ano de 1979 e 1980 seria concluído o asfaltamento da Av. Rondon Pacheco e a
Prefeitura daria início às obras de construção do Parque do Sabiá e do Estádio Municipal,
ambas regiões de habitações caracterizadas como faveladas. Um programa habitacional
denominado Projeto Embrião é, então enunciado como solução para as favelas. O vereador
Dorivaldo Alves do Nascimento faz novo pronunciamento na Câmara retomando o trabalho
apresentado no ano anterior
103
.
A entrada em cena do vereador Dorivaldo Alves é central para um primeiro
deslocamento de sentido na visão acerca da remoção e do favelado em relação àquela
apresentada pelo Delegado. Se em seu pronunciamento anterior o favelado era definido como
um marginalizado por razões econômicas, neste o vereador propõe uma diferenciação entre
101
Câmara Municipal, Uberlândia. Ata da Segunda Sessão da Primeira Reunião Ordinária de 16.02.1979;
Câmara Municipal, Uberlândia. Ata da Segunda Sessão da Segunda Reunião Ordinária de 16.03.1979.
102
Câmara Municipal, Uberlândia. Ata da Terceira Sessão da Primeira Reunião Ordinária de 19.02.1979.
103
Câmara Municipal, Uberlândia. Ata da Terceira Sessão da Segunda Reunião Ordinária de 19.03.1979.
102
marginal e marginal penal, sendo o primeiro o verdadeiro favelado “produto de um contexto
social” e o segundo “um indivíduo capaz de praticar toda a sorte de crimes”, sendo este, o
“verdadeiro marginal”. Para o vereador, favelado é uma condição que o indivíduo favelado
carrega consigo, “é existencial”. Transferir o favelado para outras áreas da cidade, ainda que
de modo programado como sugeria o jornal O Triângulo -, é apenas transferir a favela.
A migração e o favelamento são tidos pelo vereador como fatos incontestáveis em
razão da industrialização. Desfavelar implicava, então, retirar a condição de favelado
daqueles que seriam transferidos para outras áreas da cidade, mas também impedir a chegada
de novos “candidatos a favelados”. Restava, então, na proposição do vereador, a criação de
um Centro de Triagem e Fiscalização, “dirigido por assistentes sociais e supervisionado pelo
Secretário de Ação Social” com a “colaboração da Polícia Rodoviária, vigilantes na Estação
Rodoviária e na FEPASA”. Seu trabalho alcança os efeitos esperados, sendo reconhecido pelo
Ministério do Interior para a realização de pesquisas para solução do problema
104
e a
assinatura de um convênio com o Ministério para a criação de uma Agência de Orientação e
Encaminhamento ao migrante em Uberlândia que, segundo (Machado, 1990), somada o
trabalho desenvolvido pela Instituição Cristã de Assistência Social de Uberlândia (ICASU) e
pelo Albergue Noturno Ramatis, realizavam uma triagem dos migrantes que chegavam a
Uberlândia autorizando a permanência apenas daqueles que possuíam mão-de-obra
qualificada para a indústria.
2.3.3. O Bispo e o interesse do povo
Embora a intimação dos moradores pelo Delegado sugerisse um caráter de iminência
das remoções, foi somente no fim daquele mês que o jornal O Triângulo anunciou: José
Carneiro começa a enfrentar o problema das favelas
105
. Um novo ator, Dom Estevão
Cardoso de Avelar, é trazido à cena pelo jornal, na defesa dos moradores das favelas e
planejamento é enunciado como legitimador da ação da remoção:
“Mas com a intervenção do Bispo Diocesano D. Estevão Cardoso de Avelar, que foi conversar
com o Prefeito Virgílio Galassi, sobre o assunto, a ordem [da remoção] foi suspensa. O Secretário
de Ação Social, Dr. José Carneiro, também entrou em contato com o Bispo Diocesano, a quem
comunicou que todas as medidas estão sendo tomadas para que nenhum favelado seja
prejudicado com uma mudança forçada, sem qualquer planejamento. Na ocasião, o secretário
104
Câmara Municipal, Uberlândia. Ata da Quarta Sessão da Quarta Reunião Ordinária de 18.05.1979.
105
José Carneiro começa a enfrentar o problema das favelas. In: Jornal O Triângulo, 31.03.1979.
103
comunicou que o seu assessor principal, Major Pedro Caetano, estava com instruções para
cuidar do problema dos favelados em Uberlândia”.
A entrada desse ator na defesa dos moradores trouxe novos e importantes elementos
para a disputa em torno das favelas e das obras a serem realizadas na cidade explicitando
elementos importantes para o entendimento da reivindicação dos territórios pelo poder
público local.
Em novembro daquele ano, 1979, em reunião na Câmara Municipal para discussão da
Proposta Orçamentária do ano de 1980
106
, um vereador da Arena2 MDB faz a leitura de
uma carta do Bispo na qual se posiciona contrário a um projeto do Prefeito (Arena 1-UDN),
incluído na Proposta, para destinação de uma verba de CR$ 65.000.000,00 (sessenta e cinco
milhões de cruzeiros) para a construção do Estádio Municipal
107
: “A Igreja de Uberlândia,
vem de público, manifestar sua desaprovação ao projeto, considerando-o contra os interesses
do povo”
108
. A absorção de “um quarto do orçamento”, como menciona o vereador, destaca o
volume da verba dentro do orçamento, sendo considerada ilegítima por não ser o Estádio de
Futebol “primeira necessidade” do povo.
A linha argumentativa do vereador que a carta é clara e o tom da disputa durante
as três sessões em que foi discutida a Proposta Orçamentária: a Igreja, sendo o povo (e não
apenas seu representante) é ator legítimo na defesa dos interesses do povo:
“muitos querem que a Igreja não fale de política, mas a Igreja é todo o povo de Deus, não é o
Bispo nem o padre, e sim cada um de nós, é Igreja. Ela vem lembrar que o povo não quer estádio,
nem mesmo os ricos, pois não foram vendidas cadeiras cativas (...) A Igreja é povo, e todos devem
gritar contra o mau uso do dinheiro público” (Vereador J. O. P Arena2/MDB).
As disputas deflagradas pela leitura da carta giram entre dois pontos centrais: a
validade da participação da Igreja nas decisões do Legislativo e sobre a defesa do interesse do
povo. Naquele momento, as obras do Estádio estavam em andamento. Em razão disso,
vereadores do partido do Prefeito declaravam como “certa” a não aprovação da emenda
contrária à destinação da verba para o Estádio, como uma realidade dada. No entanto, a
“realidade objetiva dos fatos” era insuficiente para aprovação da Proposta Orçamentária,
106
Câmara Municipal, Uberlândia. Ata da Oitava Sessão da Nona Reunião Ordinária de 27.11.1979.
107
À época popularmente denominado Estádio Virgilão, em referência ao Prefeito Municipal. Hoje denominado
Estádio Municipal João Havelange, construído na mesma área do Parque do Sabiá, atualmente denominada
Complexo Parque do Sabiá. A esse respeito ver: 1) <http://www.uberlandia.mg.gov.br/secretaria.php?id
_cg=149&id=24)>; 2) <http:// www.uberlandia.mg.gov.br/midia/ imagens/planejamento_urbano_e _meio_am
biente/parque_sabia.jpg>.
108
Arquivo Público Municipal. Carta do Bispo Dom Estevão Cardoso de Avelar. Livro de Correspondências
Recebidas. 27 nov. 1979.
104
restando desqualificar a proposição do vereador de destinação da verba para obras nas
periferias da cidade, as favelas, apoiado na carta do Bispo.
Diante da platéia presente na Casa naquela noite, os vereadores da bancada do Prefeito
declaram a emenda do vereador, contrária à verba para a construção do Estádio, como
inconstitucional, “com suporte no apoio indigente na espécie de pessoas recalcadas e
inconformadas”, “fanáticas” e “desequilibradas “desqualificadas como o próprio Bispo”,
demagógica para com a população favelada” ali presente.
Entretanto, grande parte da discussão registrada em Ata gira em torno da atuação do
Bispo. A carta, lida pelo vereador da Arena2-MDB, é composta de uma única página. É
objetiva em termos de seu posicionamento (na defesa dos interesses do povo”) e de sua
fundamentação (em uma “política social, cujas linhas essenciais foram definidas no último
documento da CNBB”). Sua força na deflagração da disputa residindo em grande parte na
figura política de expressão nacional de Dom Estevão e do contexto em questão
109
. Em razão
disso, a estratégia dos vereadores do partido do Prefeito parte de uma separação entre o Bispo
e a Igreja Católica usando de diversos expedientes para desqualificar a atuação de Dom
Estevão em Uberlândia e definir o lugar de atuação da Igreja.
Na tentativa de desqualificação de sua atuação usam de recursos metafóricos sob a
menção de sua trajetória político-religiosa: “veio de Marabá por questões de Terras e quer
fazer aqui o mesmo, deve ele cuidar de seu rebanho”, “foi praticamente expulso de lá”; sobre
sua legitimidade na defesa dos interesses do povo: “não pode dizer o que fazer com o dinheiro
do povo”, os vereadores foram eleitos pelo povo, o Bispo não foi eleito pelo povo”; e,
finalmente, sob a separação entre religião, política e administração: “o Bispo deve ficar
cuidando da Igreja, não deve se imiscuir na administração”.
Nessa perspectiva, por uma enunciação da separação entre a Igreja e o Direito Civil, os
vereadores da bancada do Prefeito separam política de administração, através da qual buscam
desqualificar a legitimidade reivindicada pelo vereador da atuação política da Igreja: porque é
109
Antes de ser Bispo em Uberlândia, D. Estevão havia sido Bispo na cidade de Marabá, no Pará por uma
designação inserida no projeto do Governo Federal de levar à região a civilização ocidental, no contexto da
construção da Transamazônica. Designação cujos propósitos foram contrariados em razão da atuação política de
D. Estevão, iniciada em torno de denúncias de desrespeito à legislação trabalhista cometidos pelas empreiteiras
responsáveis pela construção da Transamazônica na região. A partir de sua atuação na região de Marabá, D.
Estevão tornou-se paulatinamente uma figura de posição marcada no regime militar, com suas declarações à
imprensa sobre as conseqüências da Transamazônica que havia levado o progresso à região, mas que não
beneficiava as populações mais pobres. Membro da ala progressista do episcopado nacional na Confederação
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), defensor dos direitos humanos e figura atuante na Pastoral da Terra na
região de Marabá, D. Estevão foi preso, e libertado por intervenção do Bispo de Belém, acusado de violar a Lei
de Segurança Nacional e inocentado depois de uma nota de solidariedade emitida pela CNBB, no mesmo ano de
sua transferência para Uberlândia, em 1978 (Baranowske & Silva, 2006).
105
povo. Argumentando que “não admite emendas porque são meramente políticas; dar casas aos
favelados é correr o risco de trazer todos os favelados do Brasil para Uberlândia”, o vereador
do partido do Prefeito propõe que as decisões relativas ao orçamento são estritamente
administrativas, não cabendo, portanto, a defesa dos interesses do povo à Igreja.
“... a Igreja desaprova o projeto considerando-o contra os interesses do povo. Ora, muito bem
senhores vereadores atentem bem para a desinformação do ilustre Bispo de Uberlândia. Ele não
sabe que a matéria orçamentária é de exclusiva competência do Prefeito e mesmo que o Projeto
Orçamentário seja rejeitado, legalmente o Prefeito pode promulgá-lo não tomando conhecimento
da decisão da Câmara! (...) Nós temos que ter o nosso estádio de futebol e nem a intromissão
indevida do Bispo nos negócios do Estado vai permitir que nosso estádio não seja construído
(Vereador A. B. Jr. -Arena1/UDN)
110
.
A discussão nas quatro sessões é tensa, tendo sido a primeira dada por encerrada em
conseqüência da permanência do vereador do partido do Prefeito na tribuna mesmo após a
cassação de sua fala por “quebra de decoro”. A segunda sessão foi marcada por atos de
desagravo” realizado um vereador do partido de oposição retrucando a “afronta” ao Bispo e
ao mesmo tempo rendendo-lhe homenagens, bem como um “ato de desagravo” ao Prefeito e
os vereadores de seu partido por parte de um de seus vereadores. A debandada geral da
bancada do Prefeito e de alguns da oposição quando da votação da Proposta Orçamentária na
terceira sessão é justificada por um vereador da bancada do Prefeito “para não votar a emenda
dos favelados” pois “garante que com trator o problema será resolvido”, encerrando as
discussões da sessão. Como resultado, na quarta e última reunião a Proposta Orçamentária
não é votada por falta de quórum. As investidas dos vereadores do partido do Prefeito
alcançam o efeito pretendido, a aprovação da Proposta por decurso de tempo, ainda que sob
protestos da bancada de oposição.
Em meio às discussões, o vereador Dorivaldo Alves do Nascimento, do partido do
Prefeito, que havia apresentado por três vezes trabalhos na Câmara sobre a problemática da
favela é recorrentemente solicitado a se posicionar favorável à emenda. Recorrendo, no
entanto, à distinção entre marginal e marginal penal por ele elaborada em seu terceiro
trabalho apresentado anteriormente à Câmara, recorre à proposição de existência de “falsos
favelados” para justificar sua posição contrária à emenda proposta. Afirmando sua formação
católica, propõe um desvirtuamento das funções dos membros do clero e se posiciona
favorável à verba para o Estádio em razão de que “uma vez parado agora trará maiores
prejuízos ao próprio povo e que o Prefeito resolverá o problema das favelas”. A fala de
110
Câmara Municipal, Uberlândia Ata da Nona Sessão da Nona Reunião Ordinária, de 28.11.1979, fls. 96.
106
Dorivaldo Alves encerrando as discussões é expressiva da posição dos vereadores do partido
do Prefeito: ele o vereador que fez “um dos trabalhos mais sérios sobre o problema das
favelas”, votava contra a emenda, remetendo à caracterização mais objetiva da questão
enunciada nas discussões, a construção já iniciada do Estádio.
As disputas em torno deste evento são exemplares para a apreensão não apenas do
conteúdo dos eventos anteriores como também resumem-nos e auxiliam-nos a explicitá-los
em seu conjunto. Se inicialmente questionávamos uma relação mecânica e direta entre a
classificação de favelados e sua remoção, estas dúvidas residiam no fato de que as próprias
concepções que giram em torno da categoria de favelados e favelas são ampliadas ou
reduzidas em seus contextos semânticos imediatos.
Nesse processo, as remoções e sua significação enquanto extirpação ou
desfavelamento não dependem exclusivamente de uma tipificação específica e estática dos
moradores como favelados. No entanto, todas as tipificações em torno do termo indicavam
um posicionamento desfavorável, uns mais outros menos, em face da reivindicação do
território pelo poder público, a depender dos atores da tipificação e dos interpretantes que
mobilizam. A significação das remoções são atreladas ao destino dado aos moradores e não
exclusivamente em torno do modo de sua realização. Este, por sua vez, aparece nos discursos
do poder público em torno da construção ou desconstrução da legitimidade do ato cuja força
ilocucionária tem estreita relação com a reivindicação da área a partir da idéia de interesse
público.
Uma mudança começa a ser aberta no contexto de redemocratização do país, em que
um grupo político ligado ao PSD-Arena2-MDB/PMDB surge na cidade com uma proposta de
“democracia participativa” que, em seus discursos incluía uma nova concepção de povo e
público, favela e remoção: “aqui é importante rever conceitos do tipo “o povo quer”, o
povo precisa, quer e sente como prioritário(...) assumindo que somos funcionários do poder
público e, portanto, funcionários daquelas pessoas com quem estamos conversando de casa
em casa nas reuniões e nos grupos de liderança”
111
. Com este grupo político, uma redução
do número de famílias moradoras das margens do rio Uberabinha e córregos da cidade foi
promovida com a realização de um programa de “desfavelamento‟, com urbanização de
111
Uberlândia. Prefeitura Municipal. Secretaria Municipal de Trabalho e Ação Social. 1984. Democracia
Participativa: a experiência de Uberlândia. Uberlândia, mimeo. (Proposta de desfavelamento apresentada pela
Secretaria Municipal de Trabalho e Ação Social Divisão de Habitação, elaborada pelo prefeito do PMDB que
venceu as eleições logo após a ditadura militar). Em entrevistas concedidas em jornais locais, este ex-prefeito
afirma independência política a partir da proposta de Democracia Participativa formulada em seu Plano de
Governo e o vínculo inicial ao Arena2/MDB apenas em razão de não haver alternativas para vinculação política
durante a ditadura fora dos dois únicos partidos à época Arena1/UDN e Arena2/MDB.
107
algumas favelas e transferência de outras, como a das margens do rio Uberabinha em que as
famílias foram deslocadas para um bairro afastado da cidade, com infra-estrutura de água, luz,
rede de esgotos e transporte coletivo (Greco, 1986).
As noções de público no decorrer desses eventos indicam-nos aquilo que Fuks
(2001:79) propõem como componentes do interesse público, que engloba interesses públicos
secundários e primários. Os primeiros estão relacionados ao “Estado como pessoa jurídica”
que se expressa no modo como os órgãos da administração vêem o interesse público.
Interesses públicos primários se referem ao interesse social, ao interesse da sociedade. O
interesse público secundário nem sempre estando associado aos interesses da sociedade.
Ao longo do capítulo percorremos o modo como o Plano de Urbanização de 1954
tornou-se instrumento a partir do qual as áreas foram reivindicadas para o desenvolvimento da
cidade. As disputas em torno da caracterização dos problemas da cidade que seriam
resolvidos a partir do Plano de Urbanização ocorrem no interior de um conjunto de
classificações e hierarquizações estreitamente associadas às relações de poder entre os sujeitos
envolvidos. Estas disputas resultam numa determinada e específica noção de interesse do
povo e expressão da coletividade em torno do Plano, que prevalece a partir da força dos atos
de fala e da posição social dos sujeitos envolvidos. Desenvolvimento econômico e interesse
público dessa forma, constituem-se como signos a partir dos quais os grupos promotores das
remoções reivindicavam esses territórios, constituindo-os enquanto uma cosmografia
desenvolvimentista, marcada pelo ordenamento da cidade em torno da industrialização e
fluxos de produção, dela excluindo signos que, em sua perspectiva, são antinômicos ao signo
desenvolvimento, a exemplo das favelas. Um processo que ocorre num movimento
paradoxalmente aberto, circunstancial e ao mesmo tempo decorrente de processos relativos à
integração do sistema mundial e em estreita relação com as relações de poder no interior dos
quais esses signos são constituídos e mobilizados, trazendo novas demandas e significações,
como veremos no capítulo seguinte.
108
Capítulo III
109
Construindo uma cosmografia urbano-ambiental
3.1. Planos Diretores e a virada à cidade sustentável
As margens urbanas do rio Uberabinha e dos córregos da cidade de Uberlândia
seguiram sendo alternativa de habitação para famílias que ali se instalaram desde a década de
1990, sendo algumas remanescentes do projeto de “desfavelamento” realizado no início da
década de 1980. Em face destas ocupações, estas áreas continuaram sendo reivindicadas pelo
poder público local para a construção de um Complexo de Parques Lineares
112
, assim como
por um novo ator, o Ministério Público Estadual, mediante a instauração de um Inquérito
Civil Público para averiguar “risco a moradores ribeirinhos e intervenção em área de
preservação permanente”.
Das propostas apresentadas no Plano de Urbanização de 1954, de canalização dos
córregos e construção de vias marginais ao longo do rio, para veiculação do zoneamento da
cidade, em 1994 surge a proposta de implantação do Parque Linear do Rio Uberabinha no
Plano Diretor aprovado naquele ano, tendo como objetivo a recuperação das margens do rio e
sua transformação em “grande eixo de lazer”. Sua elaboração enquanto Projeto deu-se em
1999, através de um concurso público realizado pelo Departamento de Água e Esgoto
(DMAE) da cidade. Foi alçado a demanda pública no Plano Diretor de 2006 e aprovado pelo
Conselho Municipal de Desenvolvimento Ambiental (CODEMA), em 2008, tomando por
base o “projeto vencedor do concurso público, levando-se em consideração o Plano Diretor do
Município de Uberlândia”
113
.
Esta mudança entre o Plano de Urbanização de 1954 e o Plano Diretor de 2006 me
levou a abordar neste capítulo possíveis vínculos entre as novas significações que o poder
público local atribui a estes espaços e a constituição de uma cosmografia urbano-ambiental
em Uberlândia. Se, sob a reivindicação da área a partir do Plano de Urbanização de 1954, as
classificações dos moradores e a significação das remoções entram num complexo jogo em
torno das noções de favela e favelados, de que modo, então, se dariam as classificações num
contexto de reivindicação para recuperação ambiental? Retomando Peirce (1955), um signo
significa quando em relação a um interpretante. Que interpretantes são mobilizados pelos
112
Este Complexo compõe-se de parques lineares nas margens urbanas dos córregos não canalizados interligados
ao Parque Linear do Rio Uberabinha. Ver Anexo 3.
113
Ata da 2ª Reunião do Conselho Municipal de Desenvolvimento Ambiental de Uberlândia (CODEMA),
realizada em 24 de abril de 2008.
110
atores da remoção para significação da área e qual a influência desse novo contexto de
significação nas classificações dos moradores que habitam a área de implantação do Parque?
Nessas reivindicações estava em questão a construção do interesse público associado
ao Plano Diretor pelo poder público local e à reivindicação pelo Ministério Público em torno
da área. O acompanhamento das disputas que perpassaram o processo de elaboração dos
Planos Diretores, bem como a análise do Inquérito Civil Público, forneceram-me elementos a
partir dos quais alcancei respostas possíveis às dúvidas que permeavam a mudança percebida
em relação às reivindicações da área e ao tratamento dado aos moradores.
Meu acesso ao contexto geral de elaboração do Plano Diretor de 1994 deu-se através
de trabalhos que o tomam como parte da análise. Centrei-me nas construções em torno do
Parque Linear presentes nas discussões do Projeto de Lei desse Plano Diretor às quais tive
acesso nas Atas do Legislativo na Câmara Municipal de Uberlândia. Minhas principas fontes
de acesso às elaborações em torno da noção de interesse público associada ao Plano Diretor
encontram-se nos eventos que compõem o processo de revisão do Plano Diretor em 2006,
acompanhados através dos registros áudio-visuais das audiências públicas e reuniões setoriais
realizados pela Prefeitura Municipal de Uberlândia, de reportagens de jornais locais e das
discussões do Projeto de Lei de revisão do Plano Diretor na Câmara Municipal.
Ao procurar possíveis respostas às perguntas que me orientavam em torno da
problemática estudada, não pretendi dar conta da complexidade que envolve a elaboração de
um Plano Diretor ou mesmo avaliar em que medida os Planos Diretores de Uberlândia
atendem às diretrizes da legislação federal que regulamenta desde o modo de sua elaboração
até os aspectos básicos que deve conter. Procuro captar no interior do evento em que se
constitui a revisão do Plano Diretor, em 2006, os atos comunicativos que giram em torno da
constituição da cidade enquanto território regulado pelo interesse público, em um tenso
processo local em que circula uma concepção de cidadania que emerge a partir do processo
que levou à aprovação da lei federal que regulamenta a elaboração dos Planos Diretores: o
Estatuto das Cidades.
A participação da população em sua formulação, execução e acompanhamento,
princípio fundamental do Plano Diretor, previsto e regulamentado pelo Estatuto das Cidades e
Resoluções publicadas pelo Conselho Nacional das Cidades, abre uma perspectiva de
cidadania preconizada e reivindicada por diferentes movimentos sociais quando da
Assembléia Nacional Constituinte, especialmente pelo Movimento Nacional da Reforma
Urbana. Tais regulamentações são os eixos argumentativos em torno do qual a efetiva
111
representatividade do interesse público é reivindicada por diferentes atores envolvidos na
revisão do Plano Diretor em 2006.
Qual seria, então, a importância da inclusão do Projeto do Parque Linear do Rio
Uberabinha nesses Planos Diretores? De que modo essa interação entre Plano e Projeto se
relaciona com a reivindicação das áreas pelo poder público local e com as caracterizações dos
moradores na área de sua implantação? A busca pela resposta a esta pergunta requereu-me
remontar brevemente à emergência do Plano Diretor enquanto instrumento da política urbana
nos municípios brasileiros de modo a entender de que forma ele cria condições para o
exercício da participação popular, reivindicada pelos atores que contestavam o Plano Diretor
em Uberlândia, fornecendo-lhes preceitos interpretativos para suas reivindicações.
3.1.2. Do Movimento Nacional pela Reforma Urbana aos Planos Diretores: pelo
direito à cidade sustentável.
A elaboração dos Planos Diretores Municipais tornou-se obrigatória a partir da
Constituição Federal de 1988 que incorporou, em seus artigos 182 e 183, princípios
fundamentais sobre a política urbana propostos pela Emenda Popular de Reforma Urbana
apresentada pelo Movimento Nacional de Reforma Urbana (MNRU) na Assembléia Nacional
Constituinte.
Uma proposta de reforma urbana formulada pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil foi
apresentada ao Congresso Brasileiro em 1963. Interrompida pelo Regime Militar, a
discussão sobre a reforma urbana é retomada entre os anos 1970 e 1980. Os movimentos
sociais ganham mais visibilidade no contexto de abertura política, tendo como marco
importante, de acordo com Uzzo e Saule Jr. (2010), o documento publicado pela Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 1982, intitulado “Solo Urbano e Ação Pastoral”,
no qual defendia a função social da propriedade urbana. Estes movimentos sociais tomaram
força com a Assembléia Nacional Constituinte, articulando demandas e embates com
poderosos lobbies dos grupos conservadores em torno da modificação do perfil excludente
das cidades brasileiras.
O MNRU constituiu-se por um conjunto heterogêneo de atores sociais, como a
Federação Nacional dos Arquitetos, Federação de Órgãos para Assistência Social e
Educacional (FASE), Federação Nacional dos Engenheiros, movimentos sociais de luta pela
112
moradia, Articulação Nacional do Solo Urbano (ANSUR), Movimento dos Favelados,
Pastorais, Associação dos Mutuários, Instituto dos Arquitetos, Federação das Associações
dos Moradores do Rio de Janeiro (FAMERJ) (Uzzo e Saule Jr., 2010).
Suas reivindicações, inicialmente caracterizadas como de cunho local de luta pela
moradia, foram ampliadas para uma reivindicação do direito à cidade, caracterizado pela
gestão democrática e participativa, pelo estabelecimento da função social da propriedade - que
submete o direito de propriedade ao interesse coletivo e estabelece sanções aos proprietários
em caso de seu descumprimento -, pela garantia da justiça social e de condições dignas a
todos os habitantes das cidades e, finalmente pela função social da cidade que define que a
política de desenvolvimento urbano tenha como objetivo ordenar o desenvolvimento das
funções sociais das cidades (Uzzo & Saule Jr., 2010).
As propostas do MNRU foram classificadas como empecilho ao desenvolvimento do
país, instrumento de desordem social e uma ameaça ao direito de propriedade pelos grupos
conservadores na Constituinte, formadas especialmente por grupos econômicos que atuam no
mercado imobiliário e na construção civil, bem como por tecnocratas do planejamento e da
gestão urbana. As mudanças propostas pelo MNRU defrontaram-se com a proposta desses
grupos de condicionar a definição de quando a propriedade urbana cumpre sua função social a
partir de duas outras leis: os Planos Diretores Municipais e uma lei federal, o Estatuto das
Cidades, que regulamentaria os instrumentos jurídicos e urbanísticos previstos nos artigos 182
e 183 da Constituição que compõem o capítulo da Política Urbana (Maricato, 2001; Uzzo &
Saule Jr., 2010).
Aprovada a Constituição de 1988, o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) foi,
então, constituído, tendo em vista pressionar o Congresso Nacional para regulamentação do
capítulo da Política Urbana. De acordo com Uzzo & Saule Jr. (2010) a participação ativa do
FNRU na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-
92), em 1992, a partir da qual foi elaborado o “Tratado por Cidades Justas, Democráticas e
Sustentáveis”, e na Conferência Habitat II, realizada em Istambul em 1996, da qual resultou o
documento “Agenda Habitat”, conferiu maior força política aos movimentos populares
urbanos no Brasil para o reconhecimento do direito à moradia na Constituição Brasileira
como um direito fundamental, no ano 2000.
O direito à moradia, incluído no direito à cidade, foi, por sua vez, incorporado pelo
Estatuto das Cidades, aprovado em 2001, após 18 anos de tramitação no Congresso, prevendo
a elaboração de Planos Diretores obrigatórios sob pena de improbidade administrativa para o
Prefeito ou para os vereadores. O Estatuto das Cidades condensa, assim, uma série de
113
reivindicações do MNRU, ratificadas pelas Conferências realizadas pelas Organizações das
Nações Unidas, através das quais é incorporada a gestão democrática da cidade para a
garantia do acesso à cidade sustentável, um conceito institucionalmente estabelecido pela
“Agenda Habitat”. Definida como o “direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento
ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao
lazer, para as presentes e futuras gerações” (Brasil, 2001), a defesa por uma cidade
sustentável está articulada com a Agenda 21 Global e corroborada pela Agenda 21 Brasileira
(Bezerra & Fernandes, 2000; Brasil, 2005), sendo os Planos Diretores um dos modos de
articular sua implantação em razão de sua força de lei (Brasil, 2005).
Entre a promulgação da Constituição de 1988 e a aprovação do Estatuto das Cidades
em 2001, o primeiro Plano Diretor de Uberlândia derivado das diretrizes da Constituição
Federal começa a ser elaborado em 1990. neste Plano podemos destacar alguns elementos
que permitem compreender as mudanças nas significações dadas às áreas aqui estudadas.
3.2. Planos Diretores, Parque Linear e preservação ambiental
Elaborado a partir da contratação, em 1990, do Escritório Jaime Lerner de
Planejamento Urbano, de Curitiba, o Plano Diretor de 1994 foi desenvolvido por esta empresa
juntamente com os técnicos da Secretaria Municipal de Planejamento, da Prefeitura Municipal
de Uberlândia. De acordo com Temer (2001) a contratação da empresa para a elaboração
deste Plano Diretor relaciona-se com a preocupação dos gestores da cidade de sua associação
com um “nome de peso no contexto do planejamento nacional” (p.92), a griffe Jaime Lerner,
num desejo de associar Uberlândia à boa qualidade urbana alcançada em Curitiba.
Elaborada a versão preliminar do Plano Diretor, uma comissão interdisciplinar de
professores da Universidade Federal de Uberlândia se reuniu para avaliar as suas propostas.
Em seu parecer, analisado por Soares (1995) e Temer (2001), a comissão apontou para a
importância do reconhecimento de que o crescimento econômico dos municípios envolve
custos ambientais e sociais, principalmente no que se refere à qualidade de vida, que devem
ser observados pelos administradores, conforme previa a Constituição Federal de 1988. Em
razão da complexidade do planejamento das dimensões econômico e social do município,
neste parecer os professores recomendaram a consideração do tempo de elaboração do Plano
em razão da necessidade de assimilação, pelo conjunto da sociedade, da complexidade que o
114
envolve, dada a profunda interferência em suas vidas, bem como sua efetiva participação na
elaboração do Plano.
De acordo com Soares (1995), muito pouco destas recomendações foi considerado,
refletindo a mentalidade autoritária de intervenção no espaço urbano por parte dos
administradores e gestores públicos uberlandenses. Segundo a autora, isso resultou em que o
Plano aprovado fosse marcadamente centrado na elaboração por técnicos e especialistas em
planejamento que desconheciam a realidade de Uberlândia, desconsiderando não apenas as
pesquisas desenvolvidas sobre o município pelos estudiosos e técnicos da Universidade
Federal de Uberlândia, como também pela própria Prefeitura.
O projeto foi entregue, então, pelo Prefeito, do Partido Progressista (PP), vinculado ao
segmento ruralista da cidade e associado aos antigos Cocões, à Câmara Municipal e
considerado objeto de deliberação em 04 de outubro de 1993. Foi apresentada, por um
vereador da bancada de oposição, do Partido dos Trabalhadores, uma proposta de emenda
substitutiva ao artigo 10 do Plano Diretor que em sua redação original previa que “o Rio
Uberabinha e suas margens deverão ser tratados como grande eixo de lazer da cidade, sendo
prioridade sua recuperação”:
“O Rio Uberabinha e suas margens deverão ser tratadas visando a defesa do meio ambiente, com
a implantação da mata auxiliar [sic] sendo proibida a construção de qualquer tipo às suas
margens ainda não construídas na data em que a lei entra em vigor
114
.
A discussão em torno desta emenda nos revela importantes elementos para identificar
as novas visões que emergem do poder público local em relação às áreas estudadas. A partir
dela estava deflagrado o campo semântico em torno do qual a área passaria a ser reivindicada
pelo poder público local.
“Eu gostaria de chamar a atenção dos nobres pares dessa Casa pelo seguinte. Porque o Rio
Uberabinha, assim como todas as margens de córregos ela tem que ser devidamente preservada.
E isso está também garantido na constituição e da forma como está proposto o Rio Uberabinha e
suas margens deverão ser tratadas como grande eixo de lazer da cidade. Então esse vereador tem
uma grande preocupação para que preserve o ximo possível as margens do Rio Uberabinha.
Porque se a gente for causar destruição a beira, nessa margem. Realmente vai prejudicar tanto o
meio ambiente, como a vida do cidadão. Então eu acho que essa emenda aqui vem contribuir no
sentido da preservação, de cada área também ter o seu espaço de cinqüenta metros para que ele
não possa fazer nada ali. Para preservar a margem natural do Rio Uberabinha” [sic] (A. F.,
Partido dos Trabalhadores PT)
115
.
114
Uberlândia, Câmara Municipal. Ata da Quarta Reunião do Segundo Período da Segunda Sessão
Extraordinária, realizada em 23.03.1994, folhas 41-42. Emenda Substitutiva nº. 58, altera o caput do Artigo do
10.
115
Ibid, folha 42.
115
Ainda que não mencione em sua defesa da emenda a regulamentação, em termos
específicos, prevista na Constituição para o uso destas áreas, a proposta de emenda do
vereador A.F. tem por efeito uma série de apartes contrários a ela. Estava em questão a
definição do que se entendia por preservação das margens do rio. Diferentes preceitos
interpretativos são mobilizados pelos diferentes vereadores que pedem os apartes para
defender suas posições. Estava em questão não apenas o uso futuro da área para a construção
do Parque Linear, proposto no artigo 38 do Projeto de Lei, mas também aquele existente:
um clube particular, conhecido na cidade como de uso das elites uberlandenses, denominado
Praia Clube, que tem parte de suas instalações em ambas as margens do rio, no trecho em que
se localiza. O estabelecimento do código comum de uso das margens do rio para interpretação
do que se entendia por preservação tornava-se, então, necessário.
“Aqui diz tudo a boa intenção dos governantes do município. Entretanto, com a emenda do
vereador uma preocupação muito grande, quando ele diz imperiosamente proibindo qualquer
tipo de construção. Veja bem que nós temos hoje um clube que zela inclusive por um trecho muito
grande a margem do Uberabinha, que tem de ser considerado isso. Então, qualquer tipo de
construção a sua proibição nós estaríamos num retrocesso, e nós estaremos fazendo com o meio
ambiente. E com o meio ambiente tem que ser feito com sensatez, com uma visão de meio
ambiente” (G.J., Partido da Mobilização Nacional - PMN)
116
.
Por um efeito elíptico, o vereador G. J., ao dizer um clube que zela inclusive por um
trecho muito grande a margem do Uberabinha” [sic], suprime a menção ao nome do clube e,
dessa forma, evita uma possível interpretação de uma defesa exclusiva de suas instalações nas
margens do rio e, assim, de um uso contrário aos preceitos constitucionais em relação ao meio
ambiente como bem de uso comum do povo. Por meio da função poética (Jakobson, s/d), ao
suprimir o nome do clube substitui sua defesa pela defesa do “meio ambiente” e a significa
por uma combinação com uma “visão de meio ambiente” conectada na sequência da frase,
ampliando o campo de significação em torno da defesa do meio ambiente para as instalações
do referido clube.
O autor da emenda pretendia validar sua proposição mediante o restabelecimento do
código, a partir da Constituição Federal, reivindicando a proibição a quaisquer tipos de
intervenção na área a partir daquela data. Restava aos vereadores eliminarem contradições
que, em decorrência da aprovação da emenda do vereador, pragmaticamente pudessem
perturbar o resultado que adviria da aprovação da emenda: a problematização da existência do
clube e a não aprovação do artigo que previa a construção do Parque Linear. Diante da busca
116
Ibid
116
pela validação pelo autor com base na Constituição Federal, restava ampliar o sentido do uso
possível da área como de lazer, para a população de baixa renda.
“Do jeito que o A. está propondo, amanhã você não pode colocar ali, quadras poliesportivas,
você não pode colocar isso para a população. Eu acredito que vai ter que colocar quadras
poliesportivas de basquete, de futebol de salão, essas coisas todas áreas de lazer para a
população. Agora se você está proibindo construir é proibido qualquer tipo de construção nas
suas margens. Então você não pode fazer uma praia ali para a população aproveitar, tomar um
sol, quer dizer eu acho que emenda aí, você vai fazer ciclovias” [sic] (L. C. S. , Partido
Progressista Brasileiro PPB)
117
(grifos meus).
“Eu esqueci de externar um sonho meu. E agora quando o vereador colocou a questão da praia
no Rio Uberabinha, veio a oportunidade de externar. Eu tenho um sonho (...) que se construa
naqueles trechos praia, para aquele pessoal, que é pessoal realmente de baixa renda, e um pobre
do Planalto, do Cazeca, esse é o nosso sonho, e eu tenho certeza que não é utopia não e vai virar
realidade” [sic] (G.J., Partido da Mobilização Nacional - PMN)
118
(grifos meus).
Por um efeito de seleção e combinação, o uso do artigo indefinido “uma” que precede
o substantivo “praia”, em lugar do artigo definido “o”, que especifica, identifica e nomeia o
clube, ou sua supressão, os vereadores selecionam por semelhança ao substantivo, “uma
praia” e “praia” em lugar de “o Praia”, colocando os dois tipos de intervenção nas margens do
rio - das “elites” e da população de baixa renda” - num mesmo plano de significação. Ao
mesmo tempo, abre o campo semântico para outros tipos de intervenção associadas à
população de baixa renda que, defendidas pelo vereador em aparte seguinte, reforça e amplia
o sentido da preservação.
“Eu tenho impressão que o vereador, apesar de ser louvável o mérito dele querer preservar as
margens do Rio Uberabinha, mas Uberlândia hoje o município de Uberlândia está com poucos
terrenos para poderem serem utilizados para os trabalhadores, para lazer em doação a entidades.
Eu acho que seria a solução o uso das margens do Rio Uberabinha para clubes de lazer, dos
trabalhadores, inclusive. E nós achamos então, e nós somos contrário a posição dele. E eu acho
que deve ser utilizado e realmente fazer se exceções e com critérios, e não fazer uma coisa de
forma a proibir simplesmente né. Nós não acreditamos que essa seja a solução [sic] (R. B.,
Partido da Frente Liberal PFL)
119
.
Dessa forma, em face do uso da Constituição para justificativa da emenda supressiva
pelo vereador do PT, que compõe a bancada da oposição à época e que em seus discursos
reivindica a defesa dos interesses da população trabalhadora, a rejeição à emenda torna-se
feliz, nos termos de Austin (1962), mediante a ampliação para uma intervenção para a
“população de baixa renda”. Desse modo, a rejeição à emenda tem por efeito simultaneamente
a busca pelo vereador do PT por retomar a interpretação da emenda em seu trecho que diz
117
Ibid, folha 43.
118
Ibid
119
Ibid
117
sendo proibida a construção de qualquer tipo às suas margens ainda não construídas na
data em que a lei entra em vigor” (grifos meus), e propor uma mudança no texto da emenda,
proibindo “qualquer tipo de construção que venha a prejudicar a ecologia e o meio ambiente”
(A. F., Partido dos Trabalhadores PT).
O termo recuperação proposto no texto original do Plano Diretor é, então, retomado
pelo vereador que inicia a discussão da emenda G.J. (PMN), da bancada do Prefeito, para
englobar tanto as construções existentes na área, quanto as futuras, ambas como
preservadoras do meio ambiente. Preservação, que no discurso ambientalista em âmbito
nacional e internacional está associada à intocabilidade de uma determinada área a ser
preservada (Diegues apud Pareschi, 1997), passa a incluir o uso das margens do rio para
instalações com vistas ao lazer
120
.
A derrubada da emenda do vereador coloca em questão sua segunda proposta de
emenda supressiva do artigo que propunha a construção de vias marginais ao rio Uberabinha -
retomadas do Plano de Urbanização de 1954 - mobilizando como interpretantes para sua
argumentação, a marginal do rio Tietê em São Paulo, como um índice da poluição que a
marginal do rio Uberabinha causaria à cidade de Uberlândia e ao próprio rio. Em sua
justificativa, preservação estava associada a não intervenção às margens do rio, protegendo a
mata ciliar e evitando “qualquer tipo de poluição”. A não aprovação da emenda anterior que
previa o impedimento de “qualquer tipo de construção a partir daquela data”, resultou,
portanto, na rejeição deste segundo texto da emenda do vereador e, dessa forma, na aprovação
da construção das vias marginais, bem como do artigo 38 que previa o desenvolvimento de
projetos para a implantação do Parque Linear do Rio Uberabinha.
120
A Constituição Federal de 1988 contém um conjunto de artigos que prevê a proteção ao meio ambiente em
suas diversas formas. Mas é o Código Florestal, Lei 4771/65, que regulamenta as áreas de preservação
permanente em seu artigo e : “A supressão total ou parcial de florestas de preservação permanente será
admitida com prévia autorização do Poder Executivo Federal, quando for necessária à execução de obras, planos,
atividades ou projetos de utilidade pública ou interesse social”. Deste modo, Araújo (2002) nos chama atenção
que no período entre o Código Florestal, a Constituição Federal e o ano de 2001, havia uma série de
controvérsias sobre a possibilidade de intervenção nestas áreas. Para a autora, estas “são áreas nas quais, por
imposição da lei, a vegetação deve ser mantida intacta, tendo em vista garantir a preservação dos recursos
hídricos, da estabilidade geológica e da biodiversidade, bem como o bem-estar das populações humanas”. Para a
autora, estas controvérsias deram origem à Medida Provisória 2.166-67, no ano de 2001, prevendo para as
áreas urbanas que “a supressão de vegetação em área de preservação permanente situada em área urbana,
dependerá de autorização do órgão ambiental competente, desde que o município possua conselho de meio
ambiente com caráter deliberativo e plano diretor, mediante anuência prévia do órgão ambiental estadual
competente fundamentada em parecer técnico”.
118
3.2.1. O Projeto
Em 1999, o Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE) em meio a um plano
de despoluição do rio Uberabinha lança um concurso Público para escolha de um projeto para
o Parque Linear. Foi vencedora uma equipe composta por um grupo de professores da
Universidade Federal de Uberlândia. Realizei visitas à Secretaria Municipal de Meio
Ambiente nas quais buscava por informações a respeito do projeto que me eram fornecidas de
modo parcial, seja por mapas, seja por material ilustrativo, ou em breves conversas a respeito.
A partir das duas primeiras visitas percebi que maiores informações sobre sua implantação
requeriam um domínio maior da legislação que a envolvia. mais tarde entendi que dizia
respeito não apenas à legislação que regula as áreas de preservação permanente, mas também
a concessão de autorização para implantação do Parque, bem como a realização do Plano
Diretor e alguns de seus instrumentos, como a declaração de utilidade pública para
desapropriação dos terrenos localizados na área. O entendimento desta legislação tornou-se
um desafio para o acesso às informações que pudessem compor um quadro que levasse à
compreensão da visão contemporânea do poder público local sobre as áreas estudadas. Na
verdade, somente na medida em que os argumentos que acompanhassem minhas solicitações
fossem baseados nessa legislação é que novas informações me seriam fornecidas.
Na segunda visita realizada, me foi passado um material em slides que, de acordo com
a Diretora de Patrimônio Ambiental, foi utilizado pela equipe vencedora para a apresentação
do Projeto e cedido à Secretaria. Se na primeira visita quando solicitei acesso ao projeto, me
foram fornecidas as pranchas/mapas de cada trecho do projeto, foi somente em uma terceira
visita, em que solicitei acesso à documentação do projeto, que me foi feita uma apresentação
geral pela arquiteta que coordena a sua implantação, com base nos slides entregues pelo
coordenador da equipe vencedora do projeto. De acordo com a arquiteta, este material é
sempre utilizado na Secretaria de Meio Ambiente para apresentação do projeto àqueles que
desejam conhecê-lo. Mais do que uma descrição em termos puramente referenciais daquilo
que se pretende implantar, a sequência de slides nos permite acessar o conteúdo das visões
dos formuladores do projeto. Do primeiro ao sexto slide, a apresentação é dedicada à
perspectiva adotada pela equipe do projeto:
A perspectiva adotada inverte a demarcação social particularista de ocupação do espaço urbano,
privilegiando-o como espaço de sujeitos sociais diversos, de identidades e sociabilidades diversas
que, de fato, constroem a cidade, seja porque nela trabalham, produzem e pagam impostos; seja
porque a escolheram como locus de suas histórias diferentes (Slide 4).
119
Este plano de urbanização proposto para o Parque reconhece a diversidade dos sujeitos sociais
que podem utilizar as margens do rio e trata de prover essa área de componentes sociais e
culturais estimulantes (Slide 5).
Onde houver uma nova estrutura de convívio, de práticas esportivas e de lazer, eles estarão,
porque têm o direito de estar. Onde puderem, vão querer pescar, nadar; vão fazer seus rachas;
jogar diversos jogos; farão seus passeios, pic-nics, churrasquinhos coletivos; levarão as crianças
para brincar; vão reunir dezenas de novos congos, moçambiques, catupés, marinheiros, suas
Folias de Reis, assim como suas duplas de sica sertaneja, seus grupos de capoeiras, seus
pagodes e bandas de rock and roll, seus grupos de dança de rua, de teatro amador; vão formar
blocos de sujos no carnaval, vão dançar seus forrós, vão buscar sessões de cinema alternativo,
vão fazer suas festas de república e tantas outras; vender seus produtos artesanais e suas comidas
típicas; ritualizarão suas crenças diversas e, sem esgotar todas as possibilidades, eles o querer
ter acesso às múltiplas formas de convívio e de conversa (Slide 6)
121
.
Ao repassar essas imagens, minhas dúvidas sobre o lugar dos moradores em um novo
projeto para a área permaneciam. Qual era o lugar dos moradores no reconhecimento da
“diversidade de sujeitos sociais” nos usos possíveis das margens do rio anunciados pelo
projeto? Como fonte comunicativa do projeto, cujo recurso principal é a imagem por meio de
um recurso tecnológico que permite uma determinada edição do modo e da sequência de
apresentação das imagens através da qual se pretende expressar uma idéia, esse conjunto de
imagens implica em uma seleção de determinados signos em combinação com outros através
das quais expõem a mudança pretendida pelo projeto.
Composto por uma sequência de cem slides, o material disponibilizado segue da
apresentação da perspectiva adotada no projeto (slides 01 a 06) à definição da noção de
Parque Linear e sua inserção na arquitetura urbana (07 a 09), vista aérea parcial da área (10) e
os mapas dos trechos que designaram as etapas de implantação (11 a 14). Na sequência (15 a
20), um conjunto de “imagens atuais” da área é seguido pelas “diretrizes paisagísticas” que
orientam a implantação (22 e 23) para, finalmente, apresentar o projeto paisagístico do Parque
(24 a 100) entremeado pelos equipamentos a serem utilizados:
PARQUE LINEAR UBERABINHA
Entende-se por Parque Linear
uma forma de recuperação das
matas ciliares dentro do
perímetro urbano,
transformando-as em áreas de
lazer e circulação de pedestre
e ciclista, unindo diversos
bairros ou comunidades.
Criando, através de massas
verdes, todo um ecossistema
composto de fauna e flora
antes inexistente no tecido
urbano.
121
Ver Pereira (2004).
Projeto Parque Linear do Rio Uberabinha. Slide 7
Projeto Parque Linear do Rio Uberabinha. Slide 1
120
paisagem: imagens atuais
paisagem: imagens atuais
paisagem: imagens atuais
paisagem: imagens atuais
passeio e ciclovia
posto 1
posto 1
quadras esportivas
Projeto Parque Linear do Rio Uberabinha. Slide 16
Projeto Parque Linear do Rio Uberabinha. Slide 15
Projeto Parque Linear do Rio Uberabinha. Slide 21
Projeto Parque Linear do Rio Uberabinha. Slide 20
Projeto Parque Linear do Rio Uberabinha. Slide 32
Projeto Parque Linear do Rio Uberabinha. Slide 27
Projeto Parque Linear do Rio Uberabinha. Slide 52
Projeto Parque Linear do Rio Uberabinha. Slide 35
121
estação náutica
estação cultura: vista desde a rua
estação ecológica
estação buritís
Evidentemente, entre um projeto arquitetônico-paisagístico e sua implantação um
conjunto de possibilidades que pode implicar em adequações em relação àquilo que foi
inicialmente previsto em razão das características intrínsecas do material elaborado enquanto
meio comunicativo dos propósitos do projeto. O apoio nestas imagens para exibição do
projeto revela um conjunto de relações que pretende destacar.
Enquanto meio comunicativo das intervenções propostas, um conjunto de signos são
selecionados em lugar de outros e são combinados de tal modo a comunicar uma mensagem,
o que implica em uma seleção de imagens e textos para compor um diagrama. Tal como uma
sentença, para que a disposição das palavras seja compreensível é preciso que ela sirva como
um ícone. De acordo com Peirce (2008: 64), “a única maneira de comunicar diretamente uma
idéia é através de um ícone, e todo método de comunicação indireta de uma idéia deve
depender, para ser estabelecido, do uso de um ícone”.
Para o autor, ícones distinguem-se em três subclasses: imagens, diagramas ou
metáforas. No primeiro caso, trata-se de um signo que estabelece uma relação direta e
Projeto Parque Linear do Rio Uberabinha. Slide 73
Projeto Parque Linear do Rio Uberabinha. Slide 61
Projeto Parque Linear do Rio Uberabinha. Slide 89
Projeto Parque Linear do Rio Uberabinha. Slide 99
122
simples com o objeto, por semelhança. No caso do diagrama trata-se de um ícone de relações,
ou seja, ele representa as relações, a semelhança entre o significante e o significado consiste
apenas na relação entre as partes que compõem o diagrama. o terceiro opera por meio de
um paralelismo com alguma outra coisa. Essas três subclasses, portanto, produzem uma idéia
interpretante, seja do objeto propriamente dito, ou das relações entre suas partes.
No caso que nos interessa, a área é apresentada como inabitada, pelas “imagens
atuais” que, selecionadas, são combinadas, na sequência da apresentação elaborada, com as
imagens prospectivas da área e dos elementos que nela serão inseridos para sua
transformação. O diagrama que essa sequência compõem enuncia a idéia de uma relação entre
o “presente de então” e o “futuro pretendido” que o projeto pretende expressar. Tal como o
diagrama em que se compõem um silogismo, a conclusão depende das relações apresentadas
nas premissas. Desse modo, mais do que descrever uma mudança pretendida, o diagrama é
expressivo das transformações que propõe: da revitalização ambiental com vistas à geração de
espaços de lazer.
Essas relações são apresentadas, no entanto, num modelo em que se constitui um
diagrama e, por tanto, implica num ato seletivo de redução em relação ao fenômeno que
representa. Mas, segundo Peirce (2008:65) “uma importante propriedade peculiar ao ícone é a
de que, através de sua observação direta, outras verdades relativas a seu objeto podem ser
descobertas, além das que bastam para determinar sua construção”. Deste modo, tomo o ato
seletivo a partir do qual a sequência de slides é composta, comunica uma mensagem e enuncia
uma idéia, como compondo um modelo enquanto preceito argumentativo a partir do qual o
projeto é apresentado enquanto proposta de recuperação das margens do rio Uberabinha
122
.
Um modelo, no entanto, não encerrado, como é próprio dos ícones em seu caráter aberto.
É essa abertura do modelo apresentado que leva os agentes públicos encarregados da
implantação do projeto a se defrontarem com diferentes situações não explicitadas no modelo:
aprovação do projeto, financiamento, desapropriações e remoções de moradores. No interior
desse processo um conjunto de elaborações associadas ao projeto e aos moradores é realizado
em um processo dialógico de classificação e validação das ações do poder público para
implantação do parque. Depois da elaboração do projeto do Parque em 1999, o início de suas
obras se deu efetivamente apenas em 2009 quando da liberação de uma verba oriunda de
medidas compensatórias da construção da Usina Hidrelétrica Capim Branco na bacia do rio
122
De acordo com Freitas (2003) esses mesmos slides compuseram um Album de Figurinhas elaborado na
cidade a partir da Lei Municipal de Incentivo à Cultura e distribuído nas escolas municipais, constituído em um
“jeito de contar a história da cidade”, enunciando modos e sujeitos adequados ao viver a cidade.
123
Araguari, e do Praia Clube em razão das construções nas margens do rio Uberabinha. Como
balizador das ações relacionadas ao que é público, o diálogo direto ou indireto com a lei
espreita quase todas as situações envolvidas no processo de implantação do Parque. No
entanto, intrigava-me que a possibilidade de implantação de um parque às margens do rio que
não implicaria em intocabilidade da área, como propunha o vereador do PT, com a construção
de diversos equipamentos de lazer, pudesse ter maior legitimidade em face das habitações dos
moradores com os quais tive contato. Questionava-me sobre os modos como se davam as
classificações desses moradores por parte dos agentes da remoção para considerar suas
habitações no mesmo local onde seria implantado o parque.
Entre a elaboração do Projeto e o início de sua implantação, a remoção dos moradores
estava envolta em dois eventos que corriam paralelos mas que tinham relação direta com ele:
a revisão do Plano Diretor de 1994 e a instauração de um Inquérito Civil Público para a
investigação de risco a moradores ribeirinhos e intervenção em área de preservação
permanente”. Após a aprovação da Medida Provisória 2.166-67, no ano de 2001 e da
Resolução CONAMA 369/06, intervenção em áreas de preservação permanente urbanas
passaram a estar condicionadas à utilidade pública, interesse social e à aprovação do Plano
Diretor da cidade
123
. Deste modo, optei por analisar (1) alguns eventos no interior do processo
de revisão do Plano Diretor em 2006, no qual o projeto do parque linear passou a estar
inserido, fornecendo o elo argumentativo para sua aprovação pelo Conselho de
Desenvolvimento Ambiental no ano de 2008, e (2) o Inquérito Civil Público. Este Inquérito,
instaurado no ano de 2001 contra o Município de Uberlândia, concorreu paralelamente ao
Plano Diretor e resultou na remoção dos moradores, sendo finalizado com a apresentação do
Projeto do Parque Linear como prova da iniciativa de recuperação da área pelo Município. É
em torno da revisão do Plano Diretor e do Inquérito que são delineadas duas interpretações
convergentes para as condições de permanência dos moradores na área.
123
A MP 2.166-67, de 24 de agosto de 2001, regulamenta a Código Florestal no que diz respeito à possibilidade
de supressão das áreas de preservação permanente, tanto rurais quanto Urbanas. Em seu artigo prevê: “inciso
2º “A supressão de vegetação em área de preservação permanente situada em área urbana, dependerá de
autorização do órgão ambiental competente, desde que o município possua conselho de meio ambiente com
caráter deliberativo e plano diretor, mediante anuência prévia do órgão ambiental estadual competente
fundamentada em parecer técnico”. A Resolução CONAMA 369/2006, que “dispõe sobre os casos excepcionais,
de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental, que possibilitam a intervenção ou supressão de
vegetação em Área de Preservação Permanente- APP”, prevê em seu artigo que “O órgão ambiental
competente somente poderá autorizar a intervenção ou supressão de vegetação em APP, devidamente
caracterizada e motivada mediante procedimento administrativo autônomo e prévio, e atendidos os requisitos
previstos nesta resolução e noutras normas federais, estaduais e municipais aplicáveis, bem como no Plano
Diretor, Zoneamento Ecológico-Econômico e Plano de Manejo das Unidades de Conservação, se existentes, nos
seguintes casos (...) a implantação de área verde pública em área urbana”.
124
3.2.2 O Plano Diretor de 2006
Conforme apontei anteriormente, a revisão dos Planos Diretores por aqueles
municípios que tinham aprovados seus planos há mais de dez anos tornou-se obrigatória a
partir da aprovação do Estatuto das Cidades em 2001. Resoluções Recomendadas do
Conselho das Cidades foram expedidas em 2005
124
e 2006
125
ratificando os prazos e as
condições de elaboração, previstos no Estatuto das Cidades, para aqueles municípios que
ainda não tinham, e revisão para Planos com mais de dez anos, até o dia 10 de outubro de
2006.
As discussões em torno do Plano Diretor são iniciadas em Uberlândia em março de
2005, quando da realização de um seminário pela Assembléia Legislativa do Estado de Minas
Gerais, denominado “Desafios da Agenda Municipal 2005”. Nele foi debatido, entre outros
temas, a realização dos Planos Diretores por parte dos municípios. Um debate é então iniciado
pelo jornal Correio de Uberlândia em matéria publicada em 30 de março de 2005, intitulada
“Evento debate revisão do Plano Diretor: Um dos desafios é a redução dos vazios urbanos,
comuns em Uberlândia”:
“Todos os municípios brasileiros com mais de 20 mil habitantes têm a outubro de 2006 para
implantar ou revisar o Plano Diretor Municipal. A exigência é parte da Lei nº 10.257, aprovada
em 2001, que estabeleceu o Estatuto das Cidades, que tem como principal propósito promover o
desenvolvimento sustentável das cidades brasileiras. Apesar de a elaboração do Plano Diretor ser
obrigatória cinco anos, o diretor de Programas e Projetos Metropolitanos da Secretaria de
Estado de Desenvolvimento Regional e Política Urbana (Sedru), Paulo Henrique Rocha Leão,
disse que o número de cidades em Minas Gerais que discutiu e aprovou o Plano Diretor é
pequeno. "Temos ouvido muitas reclamações quanto aos prazos, mas é preciso levar em
consideração que a determinação está em vigor desde 2001", destacou. Entre os pontos a serem
discutidos está a questão dos vazios urbanos, bastante evidentes em Uberlândia. Para resolver a
situação, o Estatuto das Cidades aponta três saídas: edificação compulsória, cobrança do
Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) de forma progressiva e desapropriação com o
pagamento de títulos de dívida ativa. "O principal objetivo é reocupar estas áreas centrais,
evitando a expansão da cidade para a periferia", explicou Paulo Henrique Rocha.
Discussão local
Legalmente, o projeto de revisão do Plano Diretor deve ser de autoria do Poder Executivo,
mas a intenção, segundo o prefeito Odelmo Leão (PP), é que a proposta seja encaminhada à
Câmara após ser debatida com a comunidade. Sobre a existência dos vazios urbanos, o prefeito
adiantou que o problema será resolvido com a implementação de um novo projeto de habitação,
em fase de elaboração. Quanto à implantação da cobrança do Imposto Predial e Territorial
Urbano de forma progressiva, dispositivo previsto no Estatuto das Cidades, Odelmo Leão
praticamente descartou a possibilidade. "Não discutimos sobre isso, primeiramente temos que
discutir este planejamento (habitacional). Uma coisa que nós determinamos é que pessoas
detentoras de terrenos em Uberlândia façam os passeios como determina a lei e possam conservá-
124
Brasil. Ministério das Cidades. Conselho das Cidades. Resolução Recomendada 25, de 18 de março de
2005.
125
Brasil. Ministério das Cidades. Conselho das Cidades. Resolução Recomendada 09, de 08 de junho de
2006.
125
los", afirmou. O prazo final para que o projeto de revisão do Plano Diretor seja sancionado é 11
de outubro de 2006
126
.
O campo semântico em torno da revisão do Plano Diretor estava anunciado. Usando
do recurso à lei, Estatuto das Cidades, a reportagem estabelece o código a partir do qual busca
referenciar a mensagem veiculada: todos os municípios, inclusive Uberlândia, têm um prazo
para revisar seu plano diretor. A figura de um Terceiro, o diretor de Programas e Projetos
Metropolitanos da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional e Política Urbana
(Sedru), presente no evento é, então, mobilizada como garantidora do significado da
proposição do jornal para relatar uma das questões mais polêmicas na discussão da revisão do
Plano Diretor: os vazios urbanos. Apoiado na função referencial da linguagem (Jakobson,
s/d), no sentido da mera transmissão de informações, própria do discurso jornalístico, o autor
da reportagem mais do que relatar os fatos enuncia o delineamento do quadro das disputas que
estarão em jogo ao longo da revisão do Plano Diretor: os prazos para realização da revisão, a
participação da sociedade e a efetividade dos instrumentos do Plano Diretor. Novas
reportagens são publicadas pelo jornal nos meses seguintes, todas anunciando a determinação
do Estatuto das Cidades para a realização ou revisão do Plano Diretor e os prazos para tal.
As reportagens são contundentes e incitam à ação: o Plano Diretor precisa ser
implantado e prazo para sua realização, sob pena de improbidade administrativa para o
Prefeito. Um campo semântico em torno da urgência para a revisão do plano diretor é, então,
instaurado, colocando em curso um embate em torno dos argumentos jurídico-políticos a
respeito da adequação das ações dos grupos envolvidos.
De acordo com estas reportagens, desde março de 2005 um grupo de profissionais
liberais da cidade que compunham uma “Comissão popular para o Plano Diretor”, se reuniu
com o objetivo de capacitar pessoas para dar sugestões, informando-as sobre o que é o Plano
Diretor, quais os direitos que o Estatuto das Cidades prevê e que devem constar no Plano
através dos “instrumentos da política urbana”, incentivar a participação e mobilização popular
no processo, tomando por base uma cartilha elaborada pelo Ministério das Cidades contendo
as principais diretrizes a serem seguidas pelas prefeituras na elaboração do Plano.
Apoiadas na função referencial em busca de “retratar os fatos”, as reportagens
procuram dar voz aos diferentes atores em disputa. O poder executivo local é apresentado
como responsável pela realização das audiências públicas e do cumprimento do Estatuto das
126
Tadeu, Rogério. Evento Debate Revisão do Plano Diretor. Jornal Correio de Uberlândia, 30.03.2005.
Disponível em: <http://www.jornalcorreio.com.br/texto/2005/03/30/8510/evento_debate_revisao_do_plano_
diretor.html>.
126
Cidades. Ocupa espaço nas reportagens que argumentando, por meio de recursos metafóricos
de transferência de sentido às ações do poder executivo, o “cumprimento do Estatuto das
Cidades, seguindo as orientações da cartilha publicada pelo Ministério das Cidades”, e a
“instituição de uma comissão para tratar do assunto”. De acordo com a fala do Secretário de
Planejamento Urbano, em reportagem sobre reuniões realizadas pela Comissão Popular para o
Plano Diretor: A convocação e a coordenação das plenárias são prerrogativas do Poder
Executivo que elaborará um cronograma de trabalho e depois estabelecerá uma comissão
para acompanhamento composta por vários setores da sociedade civil”
127
.
A Comissão mencionada pelo Secretário é instaurada por meio de Decreto municipal,
publicado em 01 de dezembro de 2005
128
, e republicado em 23 de janeiro de 2006
129
. A
publicação do Decreto teve por efeito uma ampliação do campo semântico em torno das
disputas a respeito da participação da sociedade. Se, por um lado, o poder executivo,
responsável legal pela condução dos trabalhos de revisão do Plano Diretor, representado pelo
Secretário de Planejamento Urbano e Meio Ambiente, reivindicava em suas entrevistas ao
jornal local o “cumprimento do Estatuto das Cidades”, a publicação do Decreto Municipal
tem por efeito novos questionamentos por parte do Instituto Cidade Futura
130
sobre o
cumprimento dos preceitos do Estatuto e do Conselho das Cidades.
Questionando a constituição da Comissão de Revisão do Plano Diretor, o Instituto
Cidade Futura protocolou uma representação junto ao Ministério Público para que tome
“providências legais para que os direitos dos cidadãos de Uberlândia sejam assegurados no
processo de Revisão do Plano Diretor”
131
. Para o Instituto, a Comissão de Revisão do Plano
Diretor, tendo sido constituída por um Núcleo Gestor composto por uma Equipe de
127
Paranhos, Rick. Sociedade discute os rumos de Uberlândia. Jornal Correio de Uberlândia. Uberlândia, 30
dez. 2005. Disponível em: < http://www.correiodeuberlandia.com.br/texto/2005/10/30/13598/sociedade_dis
cute_os uberl.ht ml>.
128
Uberlândia. Prefeitura Municipal de Uberlândia. Decreto 10.096, de 30.11.2006. Disponível em
<http://www.uberlandia.mg.gov.br/midia/documentos/procuradoria/2320.pdf>
129
Uberlândia. Prefeitura Municipal de Uberlândia. Decreto 10.173, de 20.01.2006. Disponível em
<http://www.uberlandia. mg.gov .br/midia/documentos/procuradoria/2357.pdf>
130
Atualmente o Instituto Cidade Futura é denominado Movimento Cidade Futura. Em entrevista realizada com
o diretor executivo do Movimento, Frank Barroso, mencionou que a denominação Instituto veio a substituir a
denominação inicial de ONG em razão da multiplicidade de atuações das ONGs no Brasil e no mundo, algumas
delas distanciadas da noção de movimento social. Em reunião realizada com os integrantes da instituição optou-
se pela denominação de movimento que se adequaria melhor à sua atuação. Em seu site institucional, o
Movimento Cidade Futura é definido como “articulado pelo Instituto Pro Cidade Futura, uma organização
autonôma e independente, de atuação nacional constituída como associação civil sem fins lucrativos, apartidária
e pluralista. Fundada em 1990, em Brasília, a entidade trabalha pela função social da cidade e atua no campo das
políticas públicas e do desenvolvimento local”. In: < http://www.cidadefutura.net.br/index.php/2008080919/insti
tucional/projetos/joquem-somos.html>.
131
Inquérito Civil nº. MPMG-0702.09.001218-9, instaurado pelo Ministério Público de Minas Gerais - 10ª
Promotoria de Justiça da Comarca de Uberlândia a partir do Expediente 013/2006, fls 02-04.
127
Coordenação (técnicos de diversos setores da administração da Prefeitura, profissionais
especialistas e empresa consultora) e uma Equipe de Acompanhamento (vereadores,
CODEMA, COMPHAC, IAB, OAB, ACIUB, CDL, SINDUSCON, SECOVI, e ASSENG,
Ministério Público e registradores de Cartório), não contemplava o disposto na Resolução
25 do Conselho das Cidades. Daqui em diante, o campo semântico em torno da disputa
circula privilegiadamente em torno da função metalingüística, através da qual os diferentes
atores buscam estabelecer o código a partir do qual a adequação legal de suas ações em
relação à revisão do Plano Diretor pudesse ser alcançada, tendo o Ministério Público Estadual
em suas instâncias estadual e municipal como garantidor último das negociações entre os
agentes locais.
Estava em questão nessa Representação os temos da participação da sociedade na
condução da revisão do Plano Diretor que circulava em torno da idéia de coordenação,
“compartilhada” ou “centralizada” e as decorrências dessa significação. Nesse sentido, o
Instituto Cidade Futura busca o estabelecimento do código de suas reivindicações do
descumprimento da Lei pelo poder público local pontuando no texto de sua representação os
itens da Constituição Federal, do Estatuto das Cidades
132
, das Resoluções Recomendadas de
nº. 25
133
e 34, expedidas pelo Conselho das Cidades naquele ano que, em sua concepção, não
eram assegurados pelo Decreto 10.173/2006 que instituía a Comissão de Revisão do Plano
Diretor. Apresentou como evidência cópias de cada um dos códigos reivindicados juntamente
com a resposta do Secretário de Planejamento Urbano a ofício do presidente da Comissão de
Políticas Urbanas solicitando esclarecimentos sobre a constituição da Comissão do Plano
Diretor. De acordo com o Instituto Cidade Futura, a coordenação da revisão do Plano Diretor,
nos termos do Decreto, estava centralizada nos órgãos da administração e delegada à empresa
consultora, restringindo a participação da sociedade da condução dos trabalhos, e inclusive do
Ministério Público, no acompanhamento das atividades:
“O decreto 10.173/06 da Prefeitura Municipal estabelece a criação do Núcleo Gestor dividido em
duas equipes: a) uma Equipe de Coordenação, e b) uma Equipe de Acompanhamento. O referido
decreto o esclarece as funções de cada equipe. No entanto, de acordo com os conceitos e
nomenclatura das palavras, todas as pessoas em consciência sabem disso, acompanhar não é
sinônimo de coordenar (...) Neste caso, a Resolução 25 do Conselho Nacional, citada acima, é
132
“Art. 2
o
A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: (...) II - gestão democrática por meio da
participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na
formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano”.
133
“A coordenação do processo participativo de elaboração do Plano Diretor deve ser compartilhada, por meio
da efetiva participação do poder público e sociedade civil, em todas as etapas do processo, desde a elaboração
até a definição dos mecanismos para tomadas de decisões”.
128
esclarecedora. Fica provado, então, que o decreto prejudica os segmentos da população, inclusive
do Ministério Público (...)”
134
.
Naquela mesma semana, uma entrevista é concedida pelo Diretor Executivo do
Instituto Cidade Futura ao jornal Correio de Uberlândia, na qual menciona a apresentação da
Representação no Ministério Público e a recusa em participar da Comissão de Revisão do
Plano Diretor, para a qual o Instituto havia sido convidado em razão das irregularidades na
formação da Comissão de Revisão do Plano Diretor. Em seguida à fala do Diretor, o jornal
apresenta a versão do Secretário de Planejamento Urbano afirmando que "estamos fazendo
tudo de acordo com orientação do Ministério das Cidades". Por meio da referência à presença
de um Terceiro em um evento realizado na cidade, “uma das maiores autoridades do País
quando se trata de reforma urbana, o diretor de planejamento urbano do Ministério das
Cidades, Benny Schasberg”
135
, o secretário busca validar sua proposição de “cumprimento do
Estatuto das Cidades”. Soma-se a isso a chamada para si, de sua formação acadêmica, como
arquiteto e urbanista, para distanciar sua ocupação no cargo por razões políticas e a realização
da revisão do Plano Diretor de uma “forma „caseira”.
A notificação do poder executivo local pelo Ministério Público é entregue em 06 de
março de 2006 e, em 24 de março de 2006, é realizada a primeira audiência pública do Plano
Diretor no plenário da Câmara Municipal de Uberlândia. O evento é aberto pelo responsável
pelo cerimonial com o convite para compor a mesa, dentre outros, ao Prefeito, um vereador da
base aliada, Secretário de Planejamento Urbano e representantes de entidades integrantes da
Comissão de Revisão do Plano Diretor, com a menção à composição da Comissão e
finalizando com a menção à obrigatoriedade e prazo para a realização dos Planos Diretores de
acordo com o Estatuto das Cidades. O clima é tenso, com a abertura das falas por parte do
vereador representante do poder legislativo conclamando para a importância da realização do
Plano Diretor e para a “agilidade necessária, mas o bom senso permanente para que façamos o
melhor possível para nós mesmos”
136
.
134
Inquérito Civil nº. MPMG-0702.09.001218-9, instaurado pelo Ministério Público de Minas Gerais - 10ª
Promotoria de Justiça da Comarca de Uberlândia a partir do Expediente 013/2006, fl. 08. Representação
apresentada pelo Instituto Cidade Futura em 30.01.2006.
135
Silva, Selma. Plano Diretor precisa ser implantado. Jornal Correio de Uberlândia. Uberlândia, 04 fev. 2006.
Disponível em: <http://www.correiodeuberlandia.com.br/texto/2006/02/04/15974/plano_diretor_precisa_ser_
implantado.html>
136
Vereador N. O. S (PSDB) em abertura à Audiência Pública para revisão do Plano Diretor de Uberlândia,
realizada pela Prefeitura Municipal de Uberlândia. Fala captada em registro áudio-visual disponível nos autos do
Inquérito Civil . MPMG-0702.09.001218-9, instaurado pelo Ministério Público de Minas Gerais - 1
Promotoria de Justiça da Comarca de Uberlândia, a partir do Expediente 013/2006, em decorrência da
Representação apresentada pelo Instituto Cidade Futura.
129
A sequência das falas, do cerimonial ao vereador, pertencente à bancada do Prefeito,
passando pelo Prefeito, compõem uma sequência de argumentos que o tom da audiência
em torno da urgência dos trabalhos em prol da aprovação do Plano Diretor dentro do prazo
previsto pelo Estatuto das Cidades. Com uma expressão séria, fala pausada, tom grave, a fala
ritual do prefeito de Uberlândia, privilegiadamente marcada pela função poética (Jakobson,
s/d), abre oficialmente e, como veremos mais adiante, encerra o evento em torno da
participação popular para a revisão do Plano Diretor, compondo elementos para o alcance dos
efeitos pretendidos dos atos do poder executivo nessa revisão:
“Boa noite a todos, senhoras, senhores, senhoritas, jovens, [1] meu caro vereador M. que
representa o excelentíssimo presidente da Câmara vereador Tenente Lúcio,[2] meu caro
secretário doutor Luiz Humberto Finotti que tem a missão ao lado do núcleo gestor de preparar o
futuro de Uberlândia nesse momento propício, [2] minha cara coordenadora da empresa TESE,
Mirna Couto, [2] minha cara professora Marlene Colessanti, [2] meu caro doutor Milton Leite,
[2] meu caro doutor Luciano Pereira Silva. [3] Como prefeito de Uberlândia nesse momento, [2]
eu elevo o meu pensamento a Deus e peço que ele ilumine [1] a todos[2] para que realmente
nesses dias de discussão [2] que será feito com toda a comunidade uberlandense [2] até o mês de
outubro aproximadamente, [2] nós possamos receber as luzes [2] para que realmente possamos
oferecer à nossa cidade o melhor projeto e aquilo que ela espera da gente. [3] Portanto, [1] com
essas palavras e com a qualidade de prefeito municipal de Uberlândia [2] e em cumprimento ao
contido na lei 10.257/01, [1] o Estatuto das Cidades, [2] declaramos aberta essa primeira
audiência pública de discussão [1] com a comunidade na revisão do plano diretor aprovado em
1994. [2] Agradeço a presença de todos [2] e em especial de nosso anfitrião, [2] no caso nosso
vereador Magoo [1] e desejo que os trabalhos sejam profícuos, [1] reflitam a visão dos
problemas críticos para o desenvolvimento do município de Uberlândia”
137
.
Como ato oficial de abertura das audiências públicas, o Prefeito é circunstancialmente
feliz, nos termos de Austin (1962) em seu objetivo institucional de cumprimento dos preceitos
legais relativos ao Plano Diretor. Por um efeito de seleção e combinação próprio da função
poética, o Prefeito cumprimenta os presentes na audiência em uma sequência gradativa que
culmina no Secretário de Planejamento Urbano, que tem a missão ao lado do núcleo gestor
de preparar o futuro de Uberlândia nesse momento propício”, momento no qual dirige o
olhar para os integrantes do cleo que compõe a mesa, e completa sua fala com os
cumprimentos individualizados aos integrantes do núcleo gestor. Uma pausa anterior à
menção dos nomes é significativa, no sentido de conferir-lhes deferência e consideração em
relação à missão da qual faziam parte. No primeiro trecho de pausa destacado com o tempo
[3] o Prefeito ressalta sua posição para conferir sentido à sua função no evento para, em
seguida, antecedido por uma nova pausa [3] conferir legitimidade aos atos do executivo,
137
O.L.C, prefeito de Uberlândia (PP) em abertura à Audiência Pública para revisão do Plano Diretor de
Uberlândia, realizada pela Prefeitura Municipal de Uberlândia. Fala captada em registro áudio-visual elaborado
para a composição do Memorial do Processo do Projeto de Lei 071/2006 de Revisão do Plano Diretor.
130
mediante a mobilização de um símbolo, o Estatuto das Cidades, transferindo, pelas palavras
pronunciadas, as propriedades daquele símbolo às ações relacionadas às audiências públicas.
Ressalte-se que sua fala se insere num contexto de contestação da legitimidade dos
atos do poder executivo relativos à revisão do Plano Diretor. Quando da realização desta
primeira audiência o executivo havia sido notificado pelo Ministério Público da
Representação por parte do Instituto Cidade Futura questionando a composição da Comissão
de Revisão do Plano Diretor, a coordenação dos trabalhos pela empresa contratada e
reivindicando a realização das audiências públicas para atendimento do Estatuto das cidades
no que dizia respeito à participação popular.
Desse modo, as ações seguem com o uso de diversos meios de comunicação de
sentido à validação do evento, como a presença dos técnicos de registro áudio-visual entre os
presentes na audiência para registrá-la
138
, exibição de um vídeo institucional do Ministério das
Cidades sobre o Plano Diretor, um grande cartaz elaborado pelo município com os dizeres
“Plano Diretor de Uberlândia Audiência pública para discussão e revisão Sua participação
pode mudar nossa cidade”, ícones do pretendido cumprimento do Estatuto das Cidades e das
recomendações do Conselho das Cidades.
Transferido o sentido do cumprimento do Estatuto pelo prefeito, sua fala é seguida
pelo Secretário de Planejamento Urbano que busca circunscrever, por meios metafóricos, os
termos do entendimento da gestão democrática em torno discussões “políticas”, mas “a-
partidárias”, bem como a partir da instituição posterior do Conselho da Cidade e do
significado da participação não apenas através das audiências públicas, mas através do
recebimento e discussão das informações: “Eu acho que a gente tem de receber essas
informações, a gente tem de discutir essas informações e essa equipe toda disponível para
isso”
139
.
Caberia ao secretário conferir o sentido da participação da empresa de consultoria
contratada para a revisão do Plano Diretor, contestada pelo Instituto Cidade Futura,
convidando à mesa a representante da consultoria, apresentada como “socióloga e especialista
na mobilização comunitária” que, por sua vez, se coloca como mais do que especialista, uma
cidadã e, como cidadã, estaria no mesmo plano dos demais cidadãos presentes na audiência
pública. De acordo com a representante da consultoria, “mesmo não sendo cidadã
138
Conforme o previsto no inciso V, do artigo 8°, da Resolução Recomendada de n°. 25, do Conselho das
Cidades, de 18.03.2005.
139
L. H. F. Secretário de Planejamento Urbano, durante a 1ª Audiência Pública para revisão do Plano Diretor de
Uberlândia, realizada pela Prefeitura Municipal de Uberlândia. Fala captada em registro áudio-visual elaborado
para a composição do Memorial do Processo do Projeto de Lei 071/2006 de Revisão do Plano Diretor.
131
uberlandense, uma vez que o Estatuto da Cidade é uma lei federal, as realizações do plano
diretor de Uberlândia também diziam-lhe respeito.
Desse modo, o poder executivo é circunstancialmente feliz (Austin, 1962) em suas
ações, apesar das manifestações contrárias à metodologia utilizada para as discussões
realizadas no decorrer da audiência e daquelas que se seguem à realização da primeira
audiência pública, e apesar da representação apresentada no Ministério Público pelo Instituto
Cidade Futura, tendo por efeito a declaração do Promotor de Justiça em entrevista ao jornal
local:
O promotor F. G., que é curador do Meio Ambiente, alegou que neste primeiro momento não tem
nenhuma crítica quanto à participação popular e lembrou da abertura da primeira audiência
pública, quando o prefeito O. L. agradeceu a presença de representantes de várias entidades de
classe e associações. "Não tenho nenhuma informação de que alguma instituição interessada foi
proibida de integrar os trabalhos que ainda estão no começo", diz. F. G. esclareceu que, por
enquanto, não vai tomar nenhum tipo de medida porque o momento é de organização do trabalho
e não de propostas, quando então sim a participação popular deverá ser obrigatória. "Estou
acompanhando bem de perto tudo isso e ainda não vi prejuízo nenhum porque as comissões
técnicas estão fazendo parte", ressaltou o promotor
140
.
A realização da audiência pública segue com uma contestação na imprensa de um
integrante do “Fórum Permanente do Orçamento Participativo”, a partir de preceitos
interpretativos diferentes daqueles apresentados pelo poder público local. Com eles, busca
validar a reivindicação da participação popular a partir do reconhecimento da atuação dos
movimentos populares na cidade, diferenciando, deste modo, os “interesses da sociedade” dos
“interesses da Administração Municipal”. Segundo o representante do Fórum, a
Administração Municipal “insistentemente se esconde na tecnocracia numa tentativa de
prevalecer na revisão do plano os interesses da Administração Municipal e não os da
sociedade”
141
.
No entanto, as enunciações desses grupos não alcançam o efeito pretendido em razão
do contexto circunstancial de suas ações. A Procuradoria Geral do Município apoiando-se em
termos referenciais à Portaria que publica os integrantes das equipes, reivindica o
“cumprimento de seu papel” e, portanto, do Estatuto das Cidades, apresentando ao Ministério
Público como evidências da participação da sociedade, independentemente da „facção‟
140
Castro, Margareth. Começa a Revisão do Plano Diretor. Jornal Correio de Uberlândia. Uberlândia, 09 abr.
2006. Disponível em: <http://www.correiodeuberlandia.com.br/texto/2006/04/09/17418/comeca_a_revisao_do_
plano_diretor.html>
141
Ferrar, Marcílio Marquesini. Desorganizando o consenso. Jornal Correio de Uberlândia. Uberlândia, 31 mar.
2006. Sessão Ponto de Vista. Disponível em: <http://www.correiodeuberlandia.com.br/texto/2006/02/04/15974/
plano_diretor_precisa_ser_implantado.html>
132
política”, o questionário entregue à população, a Portaria publicada e a agenda de reuniões
setoriais e audiências públicas:
“A PROCURADORIA GERAL DO MUNICÍPIO, vem em atenção à notificação S/Nº, de
06.04.2006, que pede informações sobre o expediente referenciado, dizer que independentemente
da „facção‟ política a que pertença os integrantes da instituição denominada „Instituto Cidade
Futura‟ e independentemente da ótica que tal instituição queira vislumbrar, o Município de
Uberlândia está cumprindo com o seu papel de forma transparente, consultando a população em
audiências públicas e individualmente com panfletos que irão formatar o anseio do povo dos
diversos segmentos da sociedade civil organizada. Inobstante a grita formulada sem razão pela
Instituição Reclamante, a Portaria 19.849 de 21.03.2006 publicada pelo órgão oficial „O
MUNICÍPIO‟, garante ampla participação da população e de inúmeros seguimentos
representativos do Município de Uberlândia, que ao contrário do que afirma o reclamante,
estarão efetivamente contribuindo para a formatação do novo Plano Diretor de Uberlândia.
Ademais, caso não seja de conhecimento da instituição, o Ministério Público tem papel
fundamental no acompanhamento dos trabalhos de formatação do Plano Diretor, tanto que faz
parte do núcleo gestor de acompanhamento”
142
.
As reuniões setoriais transcorrem na semana posterior à resposta da Procuradoria
Geral do Município. Realizadas nas quatro regiões da cidade em escolas municipais, cada
uma das reuniões setoriais foram divididas em três momentos que conjugavam todas as suas
ações, sendo uma para cada setor: entrega de cartilhas elaboradas pela Prefeitura sobre o
Plano Diretor cujo conteúdo compõe-se de um trecho explicativo do que é o Estatuto das
Cidades, seguido do próprio Estatuto, bem como da Lei complementar 078 referente ao Plano
Diretor de Uberlândia de 1994, que seria revisto naquelas reuniões e audiências - entrega e
preenchimentos dos questionários que comporiam o diagnóstico da cidade, coleta de
sugestões e assinaturas das atas e, por fim, apresentação da síntese das propostas.
Em um primeiro momento, da abertura das reuniões, o Secretário de Planejamento
Urbano abordava rapidamente o tema Plano Diretor, do quê se trata, de que modo a população
poderia contribuir e fazia um resumo dos trabalhos realizados até aquele momento. Em um
segundo momento, a condução das reuniões era passada à representante da empresa de
consultoria contratada, “especialista em mobilização social”, apoiada pelos técnicos da
prefeitura e demais integrantes da empresa de consultoria. Uma sondagem entre os
participantes sobre o quê sabiam sobre o Plano Diretor era realizada, sendo complementada
pela representante da empresa ou resignificada nos termos do idioma relacionado à legislação
pertinente ao Plano Diretor por meio das operações de seleção e combinação, próprias da
função poética (Jakobson, s/d):
142
Inquérito Civil nº. MPMG-0702.09.001218-9, instaurado pelo Ministério Público de Minas Gerais - 10ª
Promotoria de Justiça da Comarca de Uberlândia a partir do Expediente 013/2006. Carta-resposta da
Procuradoria Geral do Município da Prefeitura Municipal de Uberlândia, de 02.05.2006, fls 28-33.
133
“Com esses elementos, a gente poderia então dizer de uma forma muito simples, porque às
vezes nos gabinetes, né, a gente fica dando apelido, nome complicado né, num tecnocrês assim...
que a gente acaba não entendendo. (...) Então, a gente poderia dizer, em linhas gerais, numa
linguagem bastante simples, que o plano diretor é aquilo que orienta... como diz é, é um plano que
orienta o crescimento da cidade como é que essa cidade Uberlândia tem que crescer nos próximos
anos e como é que ela tem que crescer no sentido de dar à população, né, proporcionar à
população de Uberlândia moradia digna, saneamento, ensino de boa qualidade, saúde, habitação,
transporte, ou seja, todos os serviços urbanos, é... e todos os... o uso de todos os equipamentos
urbanos que a cidade tem direito. Quer dizer, o plano diretor orienta o crescimento da cidade
para que as pessoas tenham uma vida digna. E como é que a gente vai saber qual é a direção,
qual é o rumo que esse crescimento tem que ter? Como disse muito bem o senhor A., e
complementando esse nosso conceito, baseado no processo de consulta à população, que nós
começamos na audiência pública, tamos continuando nessa segunda etapa como disse o
secretário de planejamento, então a partir dessa consulta à população que é quem de fato sabe o
quê que a cidade precisa é que nós vamos depois construir as propostas do Plano Diretor. Gente
ficou claro o quê que nós vamos fazer aqui e qual é a importância do Plano Diretor na cidade?
143
.
Em seguida, os participantes eram divididos em grupos que, segundo a condutora das
reuniões, permitiriam o maior aprofundamento das questões e dariam oportunidade a que
todos discutissem. Neles eram discutidos temas apresentados pelo Secretário de Planejamento
ao início das reuniões como meio ambiente, sistema viário, desenvolvimento econômico,
política social que, em geral, eram apresentados a partir de símbolos, cuja contigüidade
convencional do idioma relativo à cidade, estariam relacionados à identificação dos temas.
Deste modo, poluição sonora, poluição dos rios e córregos, áreas verdes, arborização, eram
acionados como símbolos de questões relacionadas ao tema do meio ambiente; educação,
saúde, habitação, segurança, cultura, esporte e lazer, associados à política social. Estes por sua
vez, eram orientados a serem identificados a partir das noções de “fragilidades”,
“potencialidades” e “sugestões de soluções”.
3.2.3. O Parque Linear do Rio Uberabinha e o interesse público
Nessas reuniões, em geral, o tema das áreas de preservação permanente, suscitado a
partir das “áreas verdes” e discutidos na temática do meio ambiente, aparecem entre os temas
apresentados pelos participantes das reuniões, moradores dos bairros, como “fragilidades”,
sob os signos da degradação, despoluição, erosão, lixo e falta de preservação, de fiscalização
e identificação de quem polui por parte do poder público local. Como solução para tais
“fragilidades”, os parques lineares aparecem suscitados ora pelos técnicos da prefeitura que
143
Consultora O., representante da empresa TESE Consultoria. Fala captada em registro áudio-visual da Reunião
Setorial Leste elaborado para composição do Memorial do Processo apensado ao Projeto de Lei 071/2006 de
Revisão do Plano Diretor.
134
coordenam as reuniões em grupos, ora por alguns funcionários da prefeitura que participam
das reuniões também como moradores de bairro, ou profissionais ligados à área de meio
ambiente, arquitetura e urbanismo.
Expressivo dessa emergência dos parques lineares como solução para as áreas de
preservação permanente nos córregos urbanos e rio Uberabinha, ao longo das discussões do
Plano Diretor, é o encaminhamento dado à sugestão de uma moradora, V.C., na reunião
setorial da região central da cidade sobre o rio Uberabinha. Entre sua fala e o registro da
sugestão pelos coordenadores da reunião, um conjunto de signos são postos em discussão em
torno da interpretação adequada para sua sugestão:
“Eu quero falar sobre praças, é... da região, que eu acho que até foi apontado como ponto forte
tem várias praças que eu acho que elas são muito pouco... tem muito pouco... tem pouco
cuidado né, e acho que elas não tem... não são muito também utilizadas como espaço público,
assim como o rio Uberabinha que além do problema da poluição, é um rio que fica... lá largado lá
embaixo, né, no fundo da cidade assim... lá embaixo. E, acho que é um rio... de qualquer forma só
por ser um rio né, eu acho que é importante. Tem lugares, tem cidades, eu trabalhei no Vale
do Jequitinhonha, que o rio tem um papel muito importante na cidade. Eu vejo uma diferença
muito grande pra Uberlândia. É... então, além do cuidado, né, que... que... assim ambiental
mesmo, mais diretamente, né, em relação à poluição, tudo... é... eu acho que tem que ter... aí é
mais... é uma sugestão mesmo, eu acho que é importante que o rio possa ser acolhido e possa ser
utilizado mesmo como espaço público pra cidade, para os moradores da cidade, tem um gramado,
tem um área ali em torno dele que é... que é um espaço bom assim... significativo que é muito
pouco utilizado e que a cidade parece que nem muito, nem considera muito a existência do rio
Uberabinha
144
.
Um outro morador apresenta a sugestão de considerar o Parque Linear como ponto
positivo para a cidade, como um dos “pontos fortes”: “Eu queria colocar como ponto positivo
o projeto do Parque Linear do Rio Uberabinha, que abrange ali a parte do bairro Tabajaras,
né? mesmo pra ficar registrado a importância desse projeto enquanto qualidade urbana pra
Uberlândia que vai mudar toda uma característica de lazer”. Ao final da reunião, a
representante da empresa consultora conduziu a leitura dos registros das sugestões realizados
pelos técnicos da prefeitura que lhe auxiliavam nas reuniões, dividindo-as de acordo com o
registro entre “pontos frágeis”, “pontos fortes” e “sugestões”. Dúvidas a respeito do registro
da sugestão da moradora V.C. quanto ao rio Uberabinha leva a questionamentos por parte da
moradora sobre o registro:
Coordenadora: “Sugestões: recuperar as áreas verdes e aumentar nos bairros mais pobres, o plano
diretor de arborização, o tratamento das margens do rio Uberabinha, a expansão da preservação
histórica (...) Tá bom? Tá ok gente?
144
Moradora V.C. Fala captada em registro áudio-visual da Reunião Setorial Central, elaborado para
composição do Memorial do Processo apensado ao Projeto de Lei 071/2006 de Revisão do Plano Diretor.
135
Moradora V.C.: “Não... não é tratamento das margens, que eu falei, é tanto tratamento das águas
quanto...”
Coordenadora: “Não, mas... aqui tá... tratamento das margens. Você quer coloque tratamento das
águas e das margens?
Moradora: “É... não é tratamento das margens. É tratamento das águas e a realização de ões
tendo como referência as margens do rio
Coordenadora: “Mas acho que foi nesse sentido, né? que foi colocado?”
“Implementação do Parque Linear”. Sugere um técnico da prefeitura, apontando para o
quadro de registros, como solução para as dúvidas em torno da interpretação adequada para a
sugestão da moradora. As dúvidas, no entanto, permanecem:
Coordenadora: “Tá. Podemos considerar implantação do Parque Linear, aqui? Pode ser?
Moradora L.: “Mas tem que ter o cuidado, né? É o cuidado que ela tá falando”
Coordenadora: “Tá. E então põe aqui: tratamento das águas e cuidado do entorno. É isso?
Moradora V.C: “Não é só isso...”
Tratava-se da definição de um código comum para a sugestão apresentada pela
moradora que não se ligava apenas à substituição de seu enunciado por um outro, objetivo,
pendente para o código: “tratamento das margens do rio Uberabinha” ou “implantação do
Parque Linear do Rio Uberabinha”.
Estava em questão o que Jakobson (s/d) chama atenção em relação aos dois modos de
interpretação de qualquer signo lingüístico que colocamos em operação no processo de
comunicação: um ligado ao plano da substituição (o eixo metafórico) e o outro ao plano da
combinação (o eixo metonímico). Assim, apoiado em Peirce, nos lembra Jakobson (s/d):
“Uma dada unidade significativa pode ser substituída por outros signos mais explícitos do
mesmo código, por meio de que seu significado geral se revela, ao passo que seu sentido
contextual é determinado por sua conexão com outros signos no interior da mesma sequência”
(p.41). Deste modo, nos processos de tradução intralingual de sentido “uma palavra ou um
grupo idiomático de palavras, em suma, uma unidade de código do mais alto nível, pode
ser plenamente interpretada por meio de uma combinação equivalente de unidades de código,
isto é, por meio de uma mensagem referente a essa unidade de código” (p.65). Uma vez que
no processo comunicativo diferentes preceitos são acionados na interpretação do signo
lingüístico, a função metalingüística é posta em ação pelos atores da interação para alcançar
um acordo sobre o entendimento da interpretação a ser alcançada de modo que a transmissão
da mensagem seja assegurada.
136
No entanto, ao substituir a reflexão apresentada pela moradora pela sentença
“tratamento das margens do rio Uberabinha” ou “implementação do Parque Linear do Rio
Uberabinha”, o desacordo com relação ao código parece residir na centralidade no eixo
metafórico (que não exclui o eixo oposto) por parte da coordenadora e do técnico da
prefeitura, definidores circunstanciais do significado que levará ao registro da sugestão, e no
eixo metonímico por parte da moradora. Essa centralidade no eixo metafórico faz com que a
ausência de elementos que remetam ao contexto para o entendimento do quê significa o
parque e a aceitação da tradução feita pela coordenadora e técnico pela moradora estejam
comprometidos.
A menção ao Parque Linear nesta, como nas demais reuniões, não eram acompanhadas
da exposição do quê implicaria a implantação do parque, o que era na verdade este parque, o
que, neste caso, aparentemente, era de desconhecimento por parte da própria coordenadora e
do técnico. Assim, o Parque não implicava necessariamente no “cuidado” indicado pela V.C
moradora e ressaltado pela moradora L. Na ausência de equivalência dos signos utilizados, a
troca de mensagens tornou-se infrutífera, levando a moradora a uma busca pela combinação
equivalente de unidades de código, ou seja, uma mensagem referente à unidade do código,
explicitando sua sugestão, que foi, então, anotada por ela em um papel e colado no quadro de
registros como “sugestão”, juntamente com projeto do Parque Linear sugerido pelo outro
morador como “ponto forte” da região.
A questão relativa ao tempo disponível para as discussões permeou algumas das falas
dos moradores nelas presentes e em algumas audiências públicas, levando a interpretação
desses moradores da audiência e reuniões como espaço para “tomada de sugestões” ou
“pesquisa de opinião” e não propriamente de discussões. Deste modo, o estabelecimento de
um código comum entre os moradores e os coordenadores da reunião que permeie o caminho
entre a sugestão e o registro a ser encaminhado para a composição do diagnóstico que levaria
ao projeto de lei permanece uma questão ainda não respondida neste momento da revisão do
Plano Diretor, mas cria condições a enunciação dos parques lineares como solução para as
margens dos córregos e do rio Uberabinha, somadas a novas elaborações que são realizadas
nos dias subsequentes às reuniões setoriais. Assim, na semana seguinte ao término das
reuniões setoriais, nas quais a população era “consultada”, podia-se ler em um jornal:
“A Secretaria Municipal de Planejamento Urbano e Meio Ambiente vai incluir no Plano Diretor
um amplo projeto de recuperação dos rregos da cidade (...) Além disso, existem outras obras
anteriores como a despoluição do rio Uberabinha e a criação do parque linear. Após a conclusão
serão aproximadamente oito quilômetros, em ambas as margens, de recuperação das matas
137
ciliares com equipamentos de lazer. „Esse rio, após totalmente despoluído, consistirá em um ponto
turístico‟, aponta Claudio Guedes”
145
.
A reportagem tem por efeito a suspensão pelo Ministério Público de todos os
Procedimentos e Inquéritos Civis instaurados pela Promotoria de Meio Ambiente, Urbanismo
e Habitação para “apurar responsabilidades acerca das degradações ocorridas nas matas
ciliares dos córregos que atravessam a cidade e poluição através de despejos de resíduos
líquidos nos mesmos (...) a fim de que o Município promova os levantamentos técnicos
necessários tal como informado no periódico local, os quais deverão conter a identificação de
todos os proprietários das matas ciliares (duas margens), devendo constatar a condição de
preservação destas áreas, diagnosticando-as por inteiro, além de informar, metro a metro, o
projeto de recuperação que será executado em cada área”
146
.
Na continuidade das discussões da revisão do Plano Diretor, após as reuniões setoriais,
foi realizada a segunda audiência pública, na qual se apresentou o diagnóstico das condições
da cidade elaborado pela empresa de consultoria contratada a partir dos levantamentos feitos
nas reuniões setoriais e dos questionários entregues à população; diagnóstico a partir do qual
seria elaborado o Projeto de Lei do Plano Diretor. A audiência é marcada por disputas em
torno dos termos do entendimento do que seria uma audiência pública, o quê refletiria os
termos da consulta popular que garantiria a participação popular prevista no Estatuto da
Cidade; disputas que se refletiriam posteriormente em nova representação apresentada ao
Ministério Público. Expressivas dessas disputas, as falas do morador E.P, do representante da
empresa de consultoria e do secretário de Planejamento Urbano e Meio Ambiente transcritas
da segunda audiência pública abaixo
147
nos permite compreender o conteúdo dessas disputas:
“Meu nome é E., sou morador do bairro Santa Mônica. Como eu considero que essa é uma
audiência pública, portanto audiência é para ser escutado, certamente eu não vou circunscrever a
minha fala apenas a uma pergunta, quero fazer algumas considerações que são importantes e vou
me ater ao tempo que é algo democrático para que todos possam falar (...) Eu acho que o
diagnóstico apresentado nessa proposta pelo C., eu acho que é um diagnóstico que ainda está
superficial. Apesar de ter muitos números, esses meros não apresentam os problemas
fundamentais da cidade. (...) Eu não recebi o questionário (...) e acho que um questionário como
esse não pode ser chamado de consulta popular. Isso é uma pesquisa de opinião. Quando você
responde um questionário todos sabem pelas técnicas de pesquisa na sociologia, na ciência
política, que todo questionário está sujeito a uma conjuntura (...) então chamar aquilo de consulta
145
Corrêa, Gleide. Plano Diretor da cidade contempla ações ambientais. Jornal Correio de Uberlândia,
Uberlândia 11 mai de 2006. Caderno Cidade.
146
Inquérito Civil nº. MPMG-0702.09.001218-9, instaurado pelo Ministério Público de Minas Gerais - 10ª
Promotoria de Justiça da Comarca de Uberlândia a partir do Expediente 013/2006, fls 02-04.
147
Falas captadas em registro áudio-visual da segunda audiência pública de Revisão do Plano Diretor de 2006,
elaborado para composição do Memorial do Processo apensado ao Projeto de Lei 071/2006 de Revisão do Plano
Diretor.
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popular tá muito distante. (...) eu teria questões pra discutir e gostaria de apresentar e gostaria de
ser consultado e o Estatuto da Cidade me garante que eu deva ser consultado. Não que minha
opinião vai valer, mas minha opinião deve estar na esfera pública. (...) Achei que a apresentação
foi extremamente superficial, e que a gente precisava aprofundar no debate. Acho que no
documento de 400 páginas deve melhor, mas acho que mesmo assim a gente precisa debater
mais”(E.P. morador).
“Eu vou... eu vou pedir permissão à prefeitura, mas eu acho que eu vou responder de maneira
menos... politicamente adequada. Como é que é teu nome? Edson o trabalho não é superficial. Me
desculpe mas isso eu não posso nem colocar em discussão. Ele tem problemas claro que tem. Ele
é interminável mas ele não é superficial. Eu o posso ter colocado bobagens em 400 palavras,
nem ser superficial em 400 páginas, não existe isso em minha vida profissional. Acho que vose
precipitou ao responder isso. Desculpe a equipe da prefeitura mas essa situação está descartada.
Segundo, você fala questões, análises qualitativas, e você desconfia dos números, não existe
cientificidade se você não acreditar nos números. Eu sei que os números podem ter outras
leituras, eu insisti nisso na minha análise. Os mesmos aspectos que eu apresento como negativo
ele pode ser elemento positivo. Os mesmos aspectos que é ponto forte ele é ponto fraco. Eu insisti
nisso. Se não ficou claro, a tua leitura foi superficial. Você me desculpe responder assim(...) Tem
problemas, eu assumo, mas jamais superficialidade, e jamais descaso da nossa parte ou da parte
da prefeitura, de chamar um ou outro setor. Acho que isso não existe. Você me desculpe porque se
for assim fica difícil a discussão. O que eu posso te dizer é que os dados são oficiais (...) Agora se
eu o for acreditar nos dados, e ficar no qualitativo, claro que eu levo em consideração o
qualitativo, adoraria fazer um plano no qualitativo, seria muito mais fácil. Em uma semana eu
faria um sobrevôo aqui, não colocaria nem a mão no papel, e faria o plano. Acho que também não
certo, né? Muito mais cil pra fazer mas acho que não certo. Você me desculpe, né? Mas é
que... fica difícil assim, né? Eu acho que a gente tem que ter clareza. (...) Então, eu pediria que
você observasse bem isso porque isso é uma maneira estratégica de trabalhar, né? Pode parecer
ousada, mas ela está extremamente comprometida com os interesses da maioria. Só que eu sei que
eu tenho que fazer concessões. Enfim” (Representante da empresa de consultoria)
“Você falou do lazer público, né? O colega falou aqui aquela hora falou que aqueles
questionários não podem ser considerados consulta popular. Eu fiquei impressionado com uma
coisa dessa que a gente compilou, sabe? tabulou 26.000 questionários onde a maioria coloca o
parque sabiá como uma área... uma marca da cidade, a maioria disparada em várias coisas, quê
que é o parque do sabiá? É a grande área de lazer pública que nós temos na cidade, no
município, é uma área multifuncional, tem o meio ambiente conservado, tem o zoológico,
tem o esporte e o lazer. Eu acho que a partir do momento que a população coloca como a grande
marca da sociedade, sabe? ela acentua, em todas as reuniões que nos fizemos setoriais, inclusive
a rural, primeira coisa a ser dita é o meio ambiente. Está também naquelas compilações todas lá.
Eu acho que isso, isso que cê tá perguntando aí é o caminho que a gente tem que seguir em função
dessas respostas dadas aqui gente. muito claro! A gente que viu isso aí, o lazer blico,
através das áreas verdes, através do meio ambiente, é a nossa grande saída do futuro, nós não
temos outra alternativa” (Secretário de Planejamento Urbano e Meio Ambiente).
Naquela oportunidade, é importante lembrar, ainda estava em curso o questionamento
sobre os termos da participação popular a partir da representação realizada pelo Instituto
Cidade Futura sobre a coordenação dos trabalhos e a atuação da empresa de consultoria à
frente da coordenação. O Ministério Público ainda não havia se pronunciado. Participação,
opinião, consulta, diagnóstico, audiência, são termos que circulam no léxico dos atores
diretamente envolvidos nos embates em torno da definição do código que rege a condução
dos trabalhos de revisão do Plano Diretor. Trata-se de um mesmo objeto cujos signos
significam a partir de diferentes preceitos explicativos. Na sequência dessas falas, o
139
representante do Instituto Cidade Futura aponta para a linguagem utilizada na apresentação do
diagnóstico, questionada por alguns moradores presentes na audiência como de difícil
compreensão, e para a necessidade, como prevê o Estatuto das Cidades, de capacitação das
pessoas para que elas possam discutir o Plano Diretor.
Estava em questão nessa disputa não apenas a asseveração da transmissão da
mensagem à diversidade de moradores presentes na audiência, mas, também, o entendimento
do quê o diagnóstico expressava. Considerando os princípios fundamentais previstos no
Estatuto da Cidade, os signos que compõem as perguntas presentes nos questionários
148
entregues à população não estabeleciam uma relação de contigüidade com esses princípios, o
que colocava o estabelecimento dessa relação que resultaria no diagnóstico a cargo dos
coordenadores dos trabalhos.
Para o morador E., consulta implica em conversa, debate, troca, possibilidade de
discutir, de argumentar, contra-argumentar e não em um circuito fechado pergunta-resposta.
O representante da empresa consultora, por sua vez, reivindica a crença nos números e,
portanto, a cientificidade do diagnóstico e a legitimidade da “maneira estratégica de trabalhar
que representa os interesses da maioria”. O Secretário de Planejamento Urbano, toma como
signo dos interesses da maioria aquilo que, de acordo com os questionários, naquele contexto
se confunde com os interesses da Administração, o Parque do Sabiá, estabelecido anos antes,
como vimos no capítulo dois, sob intensa e desigual disputa com os moradores daquele local.
Como uma unidade de sentido que expressa uma mensagem, uma conclusão a respeito
dos dados coletados ao longo das reuniões e questionários, o diagnóstico resulta de um ato
seletivo dos signos relacionados aos “pontos fortes”, “pontos fracos”, “soluções” apresentados
pelos moradores, baseado nos preceitos interpretativos daquele ou daqueles que os
selecionam, os coordenadores dos trabalhos, e que são combinados, por contigüidade entre
um signo e outro, em uma determinada sequência que designa o sentido contextual da unidade
significativa em que se compõe o diagnóstico.
O diagnóstico, como elemento que serviu como base para a elaboração do Projeto de
Lei do Plano Diretor, pode expressar e suscitar diferentes interpretações, a depender do modo
como os signos são selecionados e combinados em uma unidade de significação. Na disputa
entre os atores, mais que uma diferença de interpretação dos dados, estava em jogo a seleção e
combinação que resultaria em uma certa mensagem a ser considerada na composição do Plano
Diretor. O questionamento do morador acerca da interpretação dada sobre os termos da
148
Ver Anexo 7.
140
audiência, consulta ou participação, defronta-se diretamente com a composição apresentada
pelo representante da empresa de consultoria, na medida em que este revela em sua fala
modos de seleção e combinação baseados em uma “consulta de opiniãoque colocaria em
questão, desta forma, a possibilidade de acordo entre a empresa e a população com relação
aos termos dos códigos utilizados para expressar a mensagem encaminhada para o Projeto de
Lei e, portanto, da representação dos interesses da população.
Uma verificação do acordo do código utilizado seria reivindicada por um professor da
Universidade Federal de Uberlândia, integrante da Equipe de Acompanhamento da Comissão
de Revisão do Plano Diretor, na quarta e última audiência pública realizada antes do
encaminhamento do Projeto de Lei à Câmara Municipal. Os trabalhos de participação da
sociedade abertos pelo Prefeito na primeira audiência pública são encerrados também por ele
após a fala do Secretário de Planejamento Urbano e Meio Ambiente e do Procurador Geral do
Município, buscando conferir legitimidade e legalidade à elaboração do Plano Diretor.
Diferentemente da tensão e seriedade imprimida pelo Prefeito na primeira audiência, na
última audiência busca conferir um clima mais ameno, com sorriso estampado, interagindo
com a platéia, em sintonia com um determinado sentido de participação democrática que
buscava conferir à participação da sociedade nas audiências.
“Bom dia a todos... (silêncio) Bom dia gente?
Bom dia!
Muito bem!
Meu caro secretário Luiz Humberto Finotti, na sua pessoa quero saudar toda a sua equipe, você,
pelo empenho, denodo, esforço, pelo gesto democrático que a Secretaria de Meio Ambiente fez na
elaboração desse plano gestor da nossa cidade. Eu quero aqui de público dar o reconhecimento
do Prefeito e os agradecimentos da população de Uberlândia pelo seu trabalho e toda sua equipe.
Meu caro professor doutor Oscar Virgílio, da mesma forma também eu quero de público
homenageá-lo, o senhor e toda sua equipe, pelo trabalho, pela participação, principalmente dessa
fase de elaboração do Plano Diretor em sua lei final. Senhores vereadores Baiano, Magoo,
Carlito Cordeiro, Vilmar Rezende, Joaquim Vitor, Cabo Garcia, Pastor Leandro, Misac Lacerda,
Aniceto Ferreira, cumprimento-os pela presença e digo aos senhores vereadores que o Município
neste ato dá cumprimento à lei que determinava que até o dia de hoje, fosse, obviamente,
apresentado à Câmara dos Vereadores o projeto final sobre o Plano Diretor. Portanto, estamos
cumprindo tudo aquilo que a lei determina. Meu caro consultor jurídico, doutor Sacha Rek, um
prazer conhecê-lo aqui agora (...) eu quero também cumprimentar o senhor, a sua empresa, pelo
trabalho, pela dedicação, e pela maneira como ajudou Uberlândia a conduzir o seu Plano
Diretor. (...) Bom, eu queria de maneira muito especial, agora registrar também o meu
agradecimento ao núcleo gestor. Vocês foram peças fundamentais para que esse momento de hoje
pudesse acontecer e da forma como está acontecendo. Um Plano Diretor democrático que
procurou ouvir todas as regiões de Uberlândia, aqueles que se interessaram pelo debate, aqueles
que quiseram participar das diversas reuniões que o núcleo gestor levou a toda a cidade de
Uberlândia, a participação inclusive através de 85.000 questionários retornados a nós em torno
de 35.000 e aproveitado em torno de 26.000, foi a maneira mais democrática que se elaborou
talvez na cidade de Uberlândia um plano diretor. Eu acho que todos aqueles que quiseram,
tiveram a oportunidade de participar, de discutir, de dar a sua posição e de dar a sua
contribuição. Portanto, como Prefeito de Uberlândia cabe a mim agora receber essa mensagem e
enviá-la aos senhores vereadores, à Câmara de Vereadores, do qual, farei, no dia de hoje. (...). E
portanto, acho que agora o próximo passo é a Câmara discutir democraticamente apreciá-lo,
141
votá-lo e a partir daí nós instalarmos o Conselho Municipal do Plano Diretor e darmos sequência
aos nossos trabalhos. Muito Obrigado e um bom dia a todos”
149
.
O Secretário de Planejamento Urbano e Meio Ambiente é, então, convidado pelo
cerimonial a comparecer à mesa para a entrega do Projeto de Lei ao Prefeito:
Tá aqui Prefeito, tá nas suas mãos pra passar pro poder legislativo pra dar sequência aos
trabalhos (L.H.F., Secretário de Planejamento Urbano e Meio Ambiente).
Muito obrigado. E pode ter certeza que foi um Plano que num teve em momento nenhum
interferência do prefeito. Ele foi feito de maneira democrática por todos aqueles que participaram
dele (O.L.C. Prefeito de Uberlândia).
A enunciação de tais palavras tem importância significativa com relação à participação
popular na revisão do Plano Diretor. Contestado em várias instâncias e momentos
diferenciados, o poder executivo local se em uma condição de legitimação de seus atos a
partir dos mesmos signos utilizados pelos seus contestadores: a Constituição Federal e o
Estatuto das Cidades. Na ritualização dos atos de abertura e encerramento, por meio da
seleção e combinação das palavras em uma determinada sequência buscam uma transferência
de sentido aos atos do executivo como adequados àqueles signos. Como nos lembra Austin
(1962), mais do que descrever situações, certos enunciados fazem algo por meio de seu
próprio pronunciamento, constituindo-se em atos performativos nos quais a enunciação
constitui sua realização. Um ato que tem por efeito o questionamento por parte do professor
quanto à legitimidade do procedimento de transferência do Projeto de Lei à Câmara sem
passar pela revisão do Núcleo Gestor do Plano Diretor:
“... penso que, antes do projeto de lei que é um instrumento legal ser encaminhado a sua
excelência o senhor prefeito ele precisa, precisava e precisa, passar por uma reunião do plenário
do cleo gestor para que todos os membros pelo menos titulares do par governamental e do par
da sociedade civil aqui representada, possa, apreciar e verificar se o que foi dado formato legal
está tudo de acordo com o que foi acordado e negociado entre os rios setores sociais e o poder
público. Acho que para considerar que realmente o trabalho está encerrado conforme determina a
própria constituição do núcleo gestor e o Estatuto das Cidades e Constituição Brasileira, isso não
se encerra da forma adequada, legal e legítima dessa maneira. (...). Portanto, eu penso que se
esse procedimento não for feito fica uma lacuna, infelizmente, e uma situação muito
desagradável pro nosso município que tanto amamos e que tanto queremos o melhor. (...) O
núcleo gestor tem que defender o projeto que for para a câmara. Ora, se o núcleo gestor vai
discutir quando ele tiver na câmara ele não tem condição de defender o que for encaminhado
pra Câmara. Isso é uma aberração, mas tudo bem eu acato (...) Isso bom, isso corretíssimo.
Agora, como é que isso vai para a câmara e é entregue para a sua excelência o senhor o prefeito
149
O.L.C. Prefeito Municipal de Uberlândia (PP). Fala captada em registro áudio-visual da Quarta Audiência
Pública de Revisão do Plano Diretor, elaborado para composição do Memorial do Processo apensado ao Projeto
de Lei 071/2006 de Revisão do Plano Diretor.
142
sem o núcleo gestor apreciar e dar sua palavra final, parece que há um equívoco aí nesse
processo. Com todo respeito e a disposição de colaborar”
150
.
O Prefeito foi, circunstancialmente, infeliz na tentativa de transferência do Projeto de
Lei do Plano Diretor à Câmara Municipal, tendo os critérios de adequação de seus atos
contestados pelo professor. Imediatamente, o Procurador Geral do Município procura
preencher a lacuna aberta pelos questionamentos do professor, lembrando do prazo legal para
entrega do Projeto de Lei e afirmando a possibilidade de acompanhamento do Projeto pelo
núcleo gestor paralelamente à Câmara Municipal e de manifestações contrárias a ele na
própria Câmara. O Procurador Geral do Município atua, então, naquele contexto imediato,
como garantidor último do significado dos atos do Prefeito de transferência do Projeto de Lei
à Câmara, garantindo circunstancialmente os efeitos pretendidos pelos atos do Prefeito, com o
encerramento imediato da audiência logo após a fala do Procurador sem, portanto,
interrompendo as discussões previstas nas resoluções do Conselho das Cidades.
Alguns dias depois, nova representação é apresentada pelo Instituto Cidade Futura,
demandando a realização de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), em razão do
prazo definido por lei para a entrega do Projeto de Lei do Plano Diretor. Em sua
reivindicação, o TAC possibilitaria que novas audiências fossem realizadas, evitando que o
Prefeito e o Presidente da Câmara respondessem por improbidade administrativa e a cidade
fosse prejudicada em relação ao recebimento de recursos federais e/ou de empréstimos do
Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) ou do Banco Mundial, em razão do
atrelamento de certos financiamentos para a cidade à realização do Plano Diretor.
O Projeto de Lei, no entanto, foi entregue à Câmara e teve parecer favorável da
Constituição de Legislação e Justiça, com 53 emendas, e parecer contrário da Comissão de
Políticas Urbanas, com indicação de firmação de um Termo de Ajustamento de Conduta
(TAC) com o Ministério Público para dilação do prazo para análise, revisão e aprovação do
Plano. Em sua justificativa, esta Comissão afirma que diretrizes do Estatuto da Cidade não
foram atendidas, ao não se demarcar no território a aplicação de instrumentos urbanísticos,
como por exemplo, o IPTU progressivo, não garantir a função social da propriedade e da
cidade, ao não definir o que é propriedade não utilizada e sub-utilizada, não prever as áreas de
ocupação por população de baixa renda, não estabelecer as diretrizes concretas para as
políticas urbanas, sendo um Plano “Diretor abstrato” e, principalmente, por não haver tempo
150
L. G. F. V., professor da Universidade Federal de Uberlândia. Fala captada em registro áudio-visual quarta
Audiência Pública de Revisão do Plano Diretor, elaborado para composição do Memorial do Processo apensado
ao Projeto de Lei 071/2006 de Revisão do Plano Diretor.
143
hábil para a análise de todos os documentos apensados, entregues à Comissão três dias antes
da data limite para votação. Nos dizeres do Presidente da Comissão “É tirar o nome de
Uberlândia desse Plano Diretor que ele serve para qualquer cidade”.
Quando da entrada do Projeto de Lei na Ordem do Dia em que o Parecer contrário da
Comissão de Políticas urbanas foi apresentado, sob um acordo de uma consulta ao Ministério
Público de estabelecimento de um TAC e justificando o temor por um processo por
improbidade administrativa caso não transferisse o Projeto de Lei à Comissão seguinte, o
Presidente da Comissão de Políticas Urbanas transfere o Projeto para a Comissão de
Administração Pública. Esta, por sua vez, em um dia concede o parecer favorável à sua
tramitação, mobilizando como interpretante para sua decisão o prazo limite estabelecido pelo
Estatuto da Cidade e pela Resolução Recomendada pelo Conselho das Cidades, com
manifestação de voto em separado por um vereador do PV, contrário ao parecer. O vereador
afirma o não cumprimento do Estatuto das Cidades diante da inexistência de instrumentos de
política urbana.
A representação apresentada pelo Instituto Cidade Futura no Ministério Público leva à
notificação dos Poderes Legislativo e Executivo no mesmo dia da votação, mas após sua
realização. Diante da aprovação do Projeto de Lei, o Instituto entra com nova representação
solicitando a anulação da lei e a propositura de Ação Civil Pública contra o Município. Mas
um parecer afirma a inaplicabilidade da Ação Civil Pública em razão de que a lei que a regula
prevê a condenação em dinheiro ou o cumprimento de fazer ou de não fazer. Uma vez
aprovado o Plano Diretor, a representação tem por parecer a Recomendação para a
complementação do Plano que será realizada a partir das leis municipais derivadas ou ao
associadas: Lei de Uso e Ocupação do Solo, Lei de Parcelamento do Solo, Código de Obras,
Código de Posturas, Lei Ambiental.
***
Aprovado o Plano Diretor, estava cumprido um dos requisitos para a aprovação do
Parque Linear do Rio Uberabinha pelo órgão ambiental local, o Conselho de
Desenvolvimento Ambiental (CODEMA). Do que depreendemos até aqui, as áreas das
margens dos córregos e do rio Uberabinha foram disputadas pelo poder público desde a
década de 1970, tendo sido significada por uma noção de interesse público imprimida pelos
integrantes da Comissão de Inquérito entendidos como “legítimos representantes do interesse
público”, e transferida ao Plano de Urbanização resultante desta Comissão. O interesse
144
público associado aos interesses da administração que, por volta da década de 1970, ganhou
força sobre a reivindicação dos interesses do povo no bojo das disputas em torno da
construção do Parque do Sabiá, contemporaneamente é apresentado no diagnóstico do Plano
Diretor de 2006 como representando simultaneamente os interesses da administração e da
sociedade (Fuks, 2001). Assim entendido, o Parque do Sabiá é mobilizado como ícone do
interesse público em relação aos Parques Lineares.
A forma centralizada e direcionada como as reuniões do Plano Diretor foram
conduzidas pelo poder público, sem o tempo hábil para discussões que possibilitassem um
acordo para o estabelecimento do código da interpretação correta entre a sugestão falada e a
sugestão anotada, possibilitou condições para que o Parque Linear proposto pela
administração fosse alçado à demanda pública de preservação ambiental no Plano Diretor de
2006. Quais seriam, então, as implicações para os moradores dessas áreas da reivindicação
pelo poder público para o atendimento do interesse público em que foi transformado o
Parque? Se, sob a reivindicação da área mediante obras previstas no Plano de Urbanização de
1954, as classificações dos moradores e a significação das remoções entram num complexo
jogo em torno das noções de favela e favelados, de que modo, então, se dariam as
classificações num contexto de reivindicação da área para recuperação ambiental?
3.3. De moradores, invasores e criminosos ambientais
“o meio ambiente veio para uns seis anos”(...) depois que o meio
ambiente veio para é que eles falaram que a gente não tem mais
direito de indenização(...) Eles juntaram esse pessoal todo aqui no meio
ambiente e a gente não tem mais direito de indenização. Para a
prefeitura agora, nóis é tudo invasor” (D. Fatinha, moradora da área).
As margens do rio e dos córregos de Uberlândia desde o ano de 2001 foram alvo de
uma dupla reivindicação pelo poder público que corria paralela e convergentemente. Se a
partir do ano de 1999 o poder público local tinha em vista essas áreas para a construção do
Parque Linear, a partir de 2002 elas também passam a ser alvo do Ministério Público local
com a instauração de um Inquérito Civil Público contra o Município para averiguar “riscos a
moradores ribeirinhos; intervenção em área de preservação permanente”
151
.
151
Inquérito Civil Público, nº. MPMG-0702.08.001913-7, fls. 01.
145
Após a visita à casa de D. Fatinha, moradora da área às margens do rio Uberabinha
onde seria implantado o Parque Linear, o trecho de sua fala em epígrafe insistia em meus
pensamentos. Ele me parecia emblemático das falas de demais moradores com os quais tive
contato e que apontavam pelo direito à indenização por sua remoção da área e a perda do
direito quando da entrada do “meio ambiente” - aqui identificado na figura da Procuradoria de
Meio Ambiente, Urbanismo e Habitação do Ministério Público - a partir das notificações que
haviam recebido individualmente para desocuparem a área. Intrigava-me como a dupla
reivindicação do poder público incidia sobre o modo como a remoção dos moradores se
realizaria e a força de novas classificações deles nesse processo. Segui, então, a pista da
análise do Inquérito em busca de apreender nele o modo como estas classificações se davam e
de que modo ele fornecia preceitos para a reivindicação da área pela Prefeitura local.
O Inquérito Civil é composto por um complexo jogo dialógico em que se encontram,
como representado, o Município de Uberlândia e, como representante, o Ministério Público
do Estado de Minas Gerais. No centro se encontram os moradores que são retratados como
estando sob ameaça de risco em razão de possíveis inundações, ou suspeita de crime
ambiental, nos termos da Lei Federal nº. 9605/98 Lei de Crimes Ambientais - por residirem
às margens do rio. O transcorrer do inquérito coloca os moradores sob um instável processo
de tipificação de cujo resultado dependia suas condições de permanência na área e as
possibilidades de construção do Parque Linear.
Uma reportagem do jornal Correio, intitulada “Risco de inundação ameaça
famílias”
152
constitui-se em uma primeira fonte de informação para o Ministério Público
acerca da existência de moradores às margens do rio. Como é próprio da linguagem
jornalística, a reportagem pretende “descrever” fatos, enunciando determinados signos que na
sequência comporiam uma informação objetiva, expondo dados da realidade. No entanto,
mais do que retratar fatos, o jornal fornece uma interpretação deles tomando a distância de
50 metros do leito do rio enquanto simultaneamente risco de inundação e invasão da área,
sem referência ao conteúdo que evidencia a interpretação da situação como “risco” ou
invasão. Numa conjunção de sobreposições de fatos, “risco” soma-se a “margens do rio”,
“invasões”, “distância de 50 metros” que resultam em uma interpretação pelo Promotor da
“Descrição do Fato: Risco a moradores ribeirinhos, intervenção em área de preservação
permanente”
153
. Já estão delineadas as linhas interpretativas a partir das quais os moradores
seriam classificados ao longo do Inquérito.
152
Jornal O Correio, de 21 de novembro de 2002.
153
Inquérito Civil Público, nº. MPMG-0702.08.001913-7.
146
De imediato, o Ministério Público constitui-se como um Terceiro, que atua como
„garantidor do significado‟, nos termos de Peirce (1955), como intérprete legítimo dos fatos,
retratados por outros intérpretes. Por definição, Inquéritos Civis têm como objetivo averiguar
fatos. Versões de tais fatos são apresentadas por intérpretes convocados pela Promotoria, que
partem da versão oficial apresentada por ela. Desde a apresentação da reportagem do jornal
como fonte motivadora da instauração do Inquérito, pode-se identificar, nas versões
apresentadas pelos diferentes intérpretes, uma ideologia de uma linguagem puramente
referencial (Jakobson, s/d) - pretendendo que não possibilidades de outra interpretação
além da que está exposta - em que estão baseados os diferentes atores envolvidos no
inquérito.
A reportagem traz uma foto retratando barracos situados às margens do rio que são
descritos da seguinte forma: “Invasão: Barracos ocupam área localizada na margem esquerda
do rio Uberabinha”. A foto é estampada pelo jornal como ícone de uma verdade quase
incontestável: a existência de risco de inundação e a condição de invasores. Se as descrições
aparentemente imparciais apresentadas pelo jornal não são suficientes para um veredicto final
pelo Ministério Público, dado o caráter intrínseco do Inquérito que requer provas para tal, elas
são suficientes para a construção de um suposto interpretativo e promover sua instauração.
Em resposta à notificação encaminhada pelo Ministério Público, a Secretaria de Meio
Ambiente apresenta um Relatório de Vistoria realizado por um ggrafo contratado pela
Secretaria
154
. O relatório é caracterizado por vistoria in loco, realizada durante três horas,
“descrevendo” as condições da área. Utilizando de uma linguagem técnica e especializada, o
geógrafo inclui em seu relatório uma “descrição” da existência de degradação ambiental
acentuada e pontos de supressão do solo. A maior parte do Relatório consta de informações
acerca da existência de residências nas margens do rio e relatos de nove moradores, dos quais
dois relataram inundações e os demais as negaram. Além destas informações o Relatório
consta da própria observação do geógrafo no sentido de constatar possibilidade de
inundações, concluindo:
“Em atendimento à notificação da curadoria de meio ambiente, que solicita apresentação de
„informações, inclusive apontando medidas acerca do noticiado em periódico local, que narra
possíveis riscos e inundação a famílias residentes próximas ao rio Uberabinha‟, no dia 31/03/03
foi realizada vistoria „in loco‟ sendo constatado o seguinte: no trecho do rio Uberabinha, entre o
Praia Clube e o anel viário/bairro São José, a mata ciliar encontra-se bastante degradada, sendo
que alguns pontos sua supressão foi total; (...) De acordo com as observações realizadas „in loco‟
e depoimentos dos moradores abordados, verifica-se a existência de algumas moradias em área
154
Ofício 158/2003 da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Social, contidos nos autos do
Inquérito Civil Público, nº. MPMG-0702.08.001913-7.
147
de risco de inundação do rio Uberabinha. Constata-se que os referidos moradores têm
consciência deste risco, cujo grau de intensidade varia conforme a intensidade e duração dos
episódios chuvosos ao longo dos anos. Alguns moradores alegam não ter outra moradia,
enquanto outros afirmam que recusaram-se mudar para imóveis oferecidos pelo poder blico
municipal, em razão da distância destes imóveis em relação à área central da cidade. A maioria
dos imóveis visitados são de responsabilidade do poder público municipal (áreas verdes e áreas
de preservação permanente)”
155
.
Constatar, nos termos de Austin (1962), mais do que uma representação da realidade,
implica em uma ação sobre ela. A princípio, constatar pode ser tomado como um
performativo cuja força ilocucionária pode levar a classificá-lo como de tipo verdictive por
emitir um juízo dos moradores a respeito da residência em área de preservação permanente,
da degradação da área e da consciência dos moradores do risco que correm mais do que por
sua existência de fato. Note-se que nenhum laudo técnico é apresentado indicando as
condições de risco dos moradores, apresentando, por exemplo, as condições do solo, vazão
das águas do rio que indicaria possibilidades de inundação de suas casas ou mesmo da
poluição das águas do rio. Entretanto, é a posição do sujeito que o pronuncia, seu lugar de fala
no contexto do Inquérito que ainda busca pelos fatos que constitui o constatar como um
proferimento de tipo exercitive. Ao tomar uma decisão de tipo exercitive, advogando a
residência dos moradores na área de preservação permanente, conscientes do risco e
implicando degradação ambiental, o geógrafo contratado pela Secretaria de Meio Ambiente
advoga que seja da forma como decidiu que fosse, em um proferimento cuja força
ilocucionária faz agir no sentido de dar novos rumos às tipificações dos moradores.
É este relatório que atesta uma das conclusões dos autos ao Promotor. Estas são
marcadas pela avaliação do Promotor dos relatórios e proferimentos apresentados como
resposta às suas notificações. Nenhum veredicto parcial é apresentado nestas conclusões. Em
geral, elas são seguidas de novas notificações para complementação por parte de outros
intérpretes, de acordo com as interpretações colocadas pelos anteriores. As tipificações vão se
emoldurando a partir das interpretações e as condições de prova dos fatos vão sendo
construídas a partir delas.
A seqüência é marcada pela solicitação de vistorias pela Polícia Militar de Meio
Ambiente e pelo Serviço de Estágio e Auditoria Ambiental da Promotoria de Justiça do
Cidadão. Diferentemente das notificações e ofícios expedidos às Secretarias Municipais da
Prefeitura de Uberlândia, o ofício à Polícia Militar de Meio Ambiente encerra com ensejo de
155
Relatório de Vistoria 34/03, expedido pela Divisão de Fiscalização e Controle Ambiental da SEMMADS
Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Grifos meus), constante nos autos do
Inquérito Civil Público, nº. MPMG-0702.08.001913-7.
148
“renovar protestos de elevada estima e distinta consideração”, num proferimento de tipo
behabitives (Austin, ibid) que indica comprometimento e compartilhamento com uma linha de
conduta. Além de ser um exercício de autoridade, este cumprimento age aprovando o
comportamento ou conduta da Polícia de Meio Ambiente, indicando-a como interpretante
legítimo para o fornecimento de provas.
Vistoria, como a acepção do termo indica, implica em passar em revista, ver,
comprovar com os próprios olhos. Se o Relatório de Vistoria realizado pelo geógrafo da
Secretaria de Meio ambiente constata degradação ambiental, risco, ainda que parcial, aos
moradores e responsabilidade do poder público municipal pela área, a vistoria realizada pela
Polícia de Meio Ambiente adquire outros efeitos. Seus relatórios são apresentados em
Boletins de Ocorrência, tais quais quaisquer daqueles utilizados em outras denúncias de todo
tipo de ocorrência, inclusive crimes.
O Boletim é dividido em seções que incluem 1) Dados da Ocorrência, 2) Qualificação
dos envolvidos e 3) Histórico da Ocorrência, incluindo espaço para descrição dos Modos da
Ação Criminosa”. Uma ampla descrição é realizada na “Qualificação dos envolvidos”
fazendo parecer que estamos diante de uma ausência completa de dúvidas acerca da
identificação do “envolvido”. O Histórico da Ocorrência, por sua vez, relata tempo de
residência, descrição das casas, inclusive dos materiais com os quais foram construídas,
criação de animais, relatos de inundação e existência ou não de documentos comprovando a
propriedade do imóvel. A distância das residências em relação ao leito do rio é item presente
em todos os Históricos dos BO‟s.
Coordenadas geográficas são apresentadas nos Dados da Ocorrência em todos os
Boletins, sem, no entanto, mencioná-las no Histórico da Ocorrência. Nestas, em geral, não há
referência à metodologia empregada para a medição das distâncias, exceto em um
Condomínio fechado, de classe média, em que foram citadas coordenadas geográficas para
localização do imóvel registradas através de “aparelho GPS Garmin III Plus, com margem de
erro de 4 metros”
156
. O registro da coordenada e da metodologia utilizada atesta a localização
exata das construções na área de preservação permanente mencionadas no Histórico
157
.
Nos outros 30 BO‟s, em geral, a descrição do Histórico da Ocorrência toma por base
uma distância de 50 metros da margem, sem que a metodologia que, associada à coordenada
geográfica, permitiria a localização exata da residência, comprovando ou não a infração, fosse
156
Boletim de Ocorrência 1615/03, expedido em 06/06/2003, constante nos autos do Inquérito Civil Público,
nº. MPMG-0702.08.001913-7.
157
ibid
149
registrada. Como interpretante reconhecidamente autorizado pela Promotoria, a Polícia de
Meio Ambiente fornece elementos que, juntamente com o Relatório de Vistoria elaborado
pelo geógrafo e apresentado pela Secretaria de Meio Ambiente, vão sendo construídos como
em fatos. Ainda que não sejam apresentadas metodologias técnicas e científicas como
prova dos fatos, tal como no condomínio fechado de classe média, é o relato autorizado
daqueles que constataram in loco que faz com que sejam reconhecidos.
Se, num primeiro momento, não faz muito sentido a referência aos 50 metros da
margem do rio nos Boletins de Ocorrência, ou a constatação da localização das residências na
área de preservação permanente pelo geógrafo, sem a caracterização explícita das razões de
seu registro, essa ausência indica uma dimensão ainda aberta de construtividade da
caracterização da ação dos moradores, em razão do caráter intrínseco de um Inquérito. Mas é
sob um pressuposto interpretativo comungado pelos agentes envolvidos - Secretaria de Meio
Ambiente, Promotoria e Polícia Militar de Meio Ambiente qual seja a Lei 4771/65, Código
Florestal - que os fatos são descritos e a interpretação última dada pelo Terceiro, a
Promotoria de Meio Ambiente, como fundamento último das negociações entre os sujeitos,
guardião do significado, que mobiliza a lei como interpretante legítimo.
Constatar também é acionado como índice de existência referencial para construção
da significação por parte da Divisão de Assistência e Promoção Social, da Secretaria
Municipal de Ação Social.
“A equipe técnica da Divisão de Assistência e Promoção Social efetivou em 11/03/05 visitas às
margens do Rio Uberabinha a fim de constatar a persistência ou não de moradores em áreas
suscetíveis à inundações. Num primeiro momento foi averiguado a região do bairro São José onde
foram visitadas 12 (doze) residências sendo que as mesmas estão em área de risco, apresentando
regularidade ou não quanto ao registro do imóvel e num segundo momento, na data de 14/03/05,
foram visitadas 20 (vinte) famílias que residem na área dos bairros D. Zulmira e Jaraguá”
158
.
Como interpretante legítimo das condições sociais dos moradores, os técnicos da
Secretaria de Ação Social associam a condição de risco a uma situação de vulnerabilidade
tomando por evidência as condições precárias das moradias, a situação cio-econômica dos
moradores, com renda mensal de menos de um salário mínimo. É por uma construção
interpretativa que soma risco, vulnerabilidade, situação sócio-econômica que novos
encaminhamentos ao Inquérito tornam-se possíveis, com a notificação da Secretaria de Meio
158
Parecer Técnico emitido pela Divisão de Assistência e Promoção Social da Secretaria Municipal de Ação
Social em 15/03/05, em resposta à notificação da Promotoria de Meio Ambiente, Urbanismo e Habitação,
expedido em 06/06/2003, constante nos autos do Inquérito Civil Público, nº. MPMG-0702.08.001913-7.
(grifos meus).
150
Ambiente pelo Ministério Público para identificar pormenorizadamente os moradores e
promover ações sociais voltadas a estes.
Identificados os moradores, a Secretaria de Meio Ambiente informa a “inclusão das
famílias nos Benefícios Sociais pela Secretaria de Ação Social, segundo os critérios
exigidos”
159
, e a proposta de recuperação da área mediante a implantação do Parque Linear do
Rio Uberabinha. Apresentada a proposta do Parque, duas classificações dos moradores se
estabelecem: (1) proprietários cujos imóveis foram declarados como de utilidade pública para
a execução das obras de saneamento e recuperação ecológica das margens do rio Uberabinha
e (2) invasores” da área de preservação permanente. Procedimentos administrativos são
instaurados individualmente pela Promotoria contra cada um dos moradores, cuja natureza
transmuta de “risco a moradores ribeirinhos, intervenção em área de preservação
permanente” para “imóvel localizado em área de preservação permanente”. Através deles os
moradores foram notificados individualmente para prestarem depoimento e se pronunciarem
sobre a disposição de celebrar Termo de Ajustamento de Conduta (TAC)
160
. O registro dos
depoimentos dos moradores foi realizado pela oficiala que digitou e assinou o termo, a partir
de uma espécie de “tradução” da fala dos moradores. Consta, em geral, do tempo de
residência no local, se houve enchente ou não, se é proprietário do imóvel ou não,
fornecimento de energia e água no local, cadastramento da Prefeitura em programas
habitacionais para os não proprietários e interesse em assinar o TAC. Em geral, não houve
assinatura do TAC, seja pelos proprietários solicitando indenização por parte da prefeitura, ou
aqueles indenizados, declarando o comprometimento da Prefeitura em demolir as
edificações, ou pelos não proprietários, declarando “que não tem onde morar e é pobre no
sentido legal”, ou que “não tem outro lugar para trabalhar”
161
.
159
Memorando 821/SMDS-DAPS, expedido pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social da
Prefeitura Municipal de Uberlândia, em 16 de agosto de 2005, expedido em 06/06/2003, constante nos autos do
Inquérito Civil Público, nº. MPMG-0702.08.001913-7.
160
O Termo de Ajustamento de Conduta, de acordo com as notificações, versaria sobre as seguintes obrigações:
“Primeira: obrigação de demolir/remover toda a edificação havia em área de preservação permanente,
entendendo-se esta como fruto de intervenção humana; Segunda: obrigação de promover o plantio de mudas ou
gramíneas na área em que se encontrava a edificação; Terceira: obrigação de cumprir as cláusulas anteriores
no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, a contar da data de celebração do termo de ajustamento de conduta,
para em seguida comprovar o efetivo cumprimento; Quarta: conforme o caso, e desde que havido dano
ambiental de elevado impacto, o representado prestará compensação ambiental consistente em serviço
ambiental à comunidade ou doação de bens a órgãos ou instituições ambientais; Quinta: previsão de multa no
caso de descumprimento das cláusulas anteriores no valor de R$50.0000,00 (cinqüenta mil reais)”
(Procedimentos Administrativos de n°s. 041, 042, 043, 044, 045, 046, 047, 049, 050, 051, 052, 053, 054, 055,
056, instaurados pela Promotoria de Meio Ambiente, Urbanismo e Habitação no ano de 2006, apensados ao
Inquérito Civil n° MPMG-0702.08.001913-7.
161
A exemplo dos moradores notificados a partir dos Procedimentos Administrativos de n°s. 046, 047, 051, 050,
053, 054.
151
Como nos lembra Peirce (1955), um signo pode significar a partir de aspectos variados
e de preceitos explicativos diversos adquirindo a face de índice, símbolo ou ícone. O Terceiro,
como garantidor do significado, ao longo de um processo de caracterizações que se
mantiveram com caráter aberto e dialógico, transforma o signo de índice em símbolo,
referindo-se à lei, um modo tido como universal de interpretação das ações dos sujeitos, por
sua convencionalidade, neutralidade e independência do contexto imediato. O somatório do
fluxo de tipificações tomadas pela Promotoria de Meio Ambiente, enquanto Terceiro legítimo
para mediar as relações entre os sujeitos, resulta em crime ambiental, declarado através das
notificações resultantes da Portaria acima mencionada.
Reguladas por uma legislação específica para essas áreas, a classificação dos
moradores como criminosos ambientais e os termos da notificação apresentada alcançaram os
efeitos pretendidos, a saída de muitos moradores não proprietários da área, sob o temor de não
poderem pagar a multa indicada. No interior do Inquérito, não ocorre uma disputa de
tipificações, mas interpretações dos diferentes intérpretes que, somadas, afastam a tipificação
inicial imprimida pela Promotoria, a de ribeirinhos”, e corroborando a de invasores,
apresentada pelo próprio interpretante motivador da instauração do Inquérito, a Prefeitura
Municipal, que se sobrepõe à de “pobres” ou “trabalhadores” declaradas pelos moradores.
Caracterizada a área como objeto de recuperação ambiental, o Inquérito Civil público é feliz
(nos termos de Austin, 1962), em seus objetivos ao proceder à remoção, tendo por efeito o
início dos trabalhos de construção do Parque Linear.
A problemática relativa à construção do interesse público em torno do Plano Diretor -
condição para que o projeto do Parque Linear atendesse aos requisitos da Resolução
CONAMA 306, da Medida Provisória 2.166-67 e da Resolução CONAMA 369/06
162
para
sua aprovação no Conselho de Desenvolvimento Ambiental - coloca em questão, desta forma,
o interesse e os direitos dos moradores diretamente atingidos pelo projeto, como a realização
de audiências públicas em caso de implantação de projetos urbanos como prevê o Estatuto das
Cidades e o próprio Plano Diretor de 2006. O projeto, no entanto, é apresentado após a saída
de moradores de alguns dos trechos de implantação do Parque, da seguinte forma:
“O projeto parque linear do rio Uberabinha está sendo feito naquele local, traçando a via
marginal de modo a proteger aquela área como de preservação permanente. As demais
benfeitorias, também estão sendo realizadas de forma a tornar o local recuperado, cumprindo a
função sócio-ambiental da cidade”
163
.
162
A saber, em casos excepcionais utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental.
163
Relatório Técnico n°. 127/2009, da Secretaria Municipal de Meio Ambiente da Prefeitura Municipal de
Uberlândia, anexado ao Ofício n°. 522/2009, em resposta da mesma Secretaria aos Ofícios n°. 1117/2009 e
152
O cumprimento da função sócio-ambiental da cidade reivindicado pela Secretaria de
Meio Ambiente coloca dessa forma, as margens dos córregos e do rio Uberabinha como
associadas, portanto, a uma cosmografia urbano-ambiental que expressa interesses originários
do âmbito administrativo da cidade e que, no contexto do Plano Diretor de 2006,
considerando-se o modo como foi realizado, expressa uma noção particularmente aberta de
interesse público. Uma cosmografia que, para o poder público local, designa sustentabilidade
como sinônimo de desenvolvimento, a partir de critérios estéticos, paisagísticos e políticos
associados à preservação ambiental, definidos no interior de num processo no qual o modo
como os sujeitos entram em relação entre si e com essas noções está imerso nas conformações
sociais e culturais atravessadas por demarcações de poder. Cosmografia cujos sujeitos a ela
considerados adequados transmuta daqueles que tomam esses territórios como lugar de
moradia a um sujeito diverso, mas indeterminado, associado à noção de interesse público.
Uma noção, no entanto, não isenta de um tenso processo de disputas em sua definição, no
qual grupos distintos, com visões de mundo diferenciadas, com lugares sociais próprios e com
discursos específicos se enfrentam diante de propostas de intervenção no território urbano.
1118/2009, expedido em 06/06/2003, constante nos autos do Inquérito Civil Público, . MPMG-
0702.08.001913-7.
153
Considerações Finais
154
O ponto de partida para a reflexão que apresento nesta dissertação constituiu-se em
torno da tênue permanência dos moradores das margens urbanas do rio Uberabinha e córregos
urbanos da cidade de Uberlândia em face dos Planos e Projetos urbanos elaborados que
incluíam estas áreas. Segui a pista de temas recorrentes nas falas desses moradores, nas
conversas que tive com alguns deles, que circulavam em torno das classificações que deles
eram feitas no processo de implantação dos tais Planos e Projetos. Interessava-me entender a
força dessas classificações nos processos de remoção para sua implantação, o que me levou a
analisar o modo como o poder público local reivindica estes territórios mobilizando a
ideologia do desenvolvimento para dar nova significação a estas áreas.
A noção de cosmografias proposta por Little (1996) permitiu-me, desta forma,
compreender o modo como a constituição de territórios urbanos por parte do poder público
está sujeita a uma série de injunções derivadas das configurações sociais, políticas e culturais
locais. Estas, por sua vez, tem estreita relação com o processo histórico de constituição do
núcleo urbano de Uberlândia, proveniente do controle e incorporação de terras rurais
transformadas em urbanas e da mobilização da ideologia do progresso e do desenvolvimento.
A consideração das configurações sociais, políticas e econômicas derivadas desse
processo teve importância significativa para apreensão do modo como diferentes sujeitos
sociais exercem um papel na definição dos territórios urbanos no interior das políticas
públicas urbanas em Uberlândia. Como nos lembra Wolf (1999), a seleção e controle de
determinados interpretantes (Peirce apud Wolf, 1999), derivados da forma como os sujeitos
entram em relação no interior das conformações sociais e culturais atravessadas por
demarcações de poder, são operações estratégicas na construção, manutenção e mobilização
das ideologias.
Como Dumont (1970, 1992, 2000a, 2000b), percebo a ideologia como um conjunto
social de representações em que o valor indica diferença e traz como desdobramento uma
hierarquia de domínios. Mas creio ser igualmente importante trazer a ideologia para o interior
da cultura, nos termos de Wolf (1998; 1999), para poder tratar da ação social no contexto da
situação, bem como do conflito de valores, captando a dinâmica da definição dos termos em
torno dos quais planos e projetos são definidos. Recuperando a perspectiva clássica da
Antropologia de que as culturas atribuem significação diferenciada às noções de espaço, de
acordo com um universo próprio de valores, e que os sistemas simbólicos entre os quais são
elaboradas são constitutivos da vida social, abordar a ação social no contexto da situação, nos
permite perceber o modo como os sujeitos sociais entrem em relação com essas noções no
interior das disputas por suas definições.
155
Ao longo da dissertação pudemos ver como a elaboração de Planos e Projetos urbanos,
aqueles derivados dos contextos e disputas políticas locais ou das demandas legais e políticas
advindas do plano nacional, condensam uma série de disputas em torno de sua realização. O
movimento em torno da caracterização desses Planos e Projetos faz com que as idéias de
cidadania e participação, nas definições do interesse público, estejam estreitamente
relacionadas à força de dos atos de fala dos atores envolvidos nos processos comunicativos
em que estas noções são postas em questão, demarcados que estão pelas relações de poder no
interior das conformações sociais e culturais em que ocorrem.
Como pudemos ver ao longo do capítulo dois, diferentes concepções de cidadania são
postas em operação por diferentes sujeitos sociais em suas reivindicações em torno das
questões relativas ao urbano e aos territórios urbanos. Ao longo dos processos que resultaram
na elaboração do Plano de Urbanização de 1954, pudemos ver estas concepções girando em
torno do exercício dos direitos por indivíduos via abaixo-assinados como símbolo de
cidadania; por meio de uma relação pessoal e política com o Presidente da Câmara; ou por
meio de uma filiação social pela mobilização orientada pela Pastoral da Terra através do
Bispo. Ao analisar os eventos em que estas concepções foram postas em questão no interior
da construção das cosmografias urbanas pelo poder público, pudemos perceber não apenas
concepções de cidadania vinculadas à noção de indivíduo enquanto valor, mas,
simultaneamente, à valorização de um sentido coletivo.
A análise do contexto de fala em que essas noções são postas em operação permitiu
compreender a forma como as disputas em torno da definição dos territórios urbanos como de
interesse público tem estreita relação com a maneira como os atores entram em relação nessas
disputas e com a força dos atos de fala em que uma ou outra daquelas concepções de
cidadania é mobilizada. A eficácia desses atos de fala relaciona-se com a posição social do
sujeito, com as dimensões semânticas e pragmáticas da linguagem em uso nessas interações e
do contexto da situação, resultando em determinados efeitos que orientarão os rumos das
disputas.
Dessa forma, no capítulo dois percorremos o modo como a partir da filiação pessoal
política as reivindicações presentes nos abaixo-assinados ganham eficácia com o seu
reconhecimento na instauração do Processo. Acabam, por outro lado, dando contorno aos
rumos das reivindicações que redundarão na noção de Plano de Urbanização como resultado
de uma determinada noção de interesse do povo e expressão da coletividade, tornando-se
instrumento a partir do qual as áreas aqui estudadas são reivindicadas para o desenvolvimento
da cidade.
156
A regulamentação por lei federal, o Estatuto das Cidades, da participação da
população na formulação, execução e acompanhamento dos Planos Diretores, no entanto, não
afasta as determinações das configurações locais em torno das definições da participação e,
portanto da cidadania na elaboração e revisão do Plano Diretor. Ao longo do capítulo três
pudemos ver que o Estatuto das Cidades condensa uma série de disputas nacionais em torno
das definições da política urbana, abrindo uma perspectiva de cidadania preconizada e
reivindicada por diferentes movimentos sociais quando da Assembléia Nacional Constituinte;
concepção que gira em torno da participação direta, seja de indivíduos, grupos, associações de
segmentos da população, na defesa do direito à cidade. No entanto, se essa concepção
fornece localmente os elos argumentativos para atuação individual e direta de moradores de
Uberlândia na revisão do Plano Diretor em 2006, ou para associações de grupos como o
Instituto Cidade Futura, Comissão Popular para o Plano Diretor ou Fórum do Orçamento
Participativo, ela estaria sujeita ao modo como esses grupos entram em relação com o poder
público local e à felicidade (Austin, 1962) deles na reivindicação das definições dos termos
em questão. Em torno da definição do código que regula os termos da participação popular
estava em questão a efetiva representatividade do interesse público reivindicada por esses
diferentes atores a qual também estava sujeita aos modos como as reuniões e audiências
foram conduzidas pelo poder público local.
Se os grupos políticos conservadores, cocões e coiós - que tiveram atuação direta na
conformação dos rumos da política urbana desde a formação do núcleo urbano , continuam
em atuação, como nos aponta uma reportagem publicada no mesmo contexto de elaboração
do Plano Diretor
164
, é por novos modos e enfrentamentos diferentes que a conformação da
noção de interesse público é realizada. Tomando como interpretante para suas ações “o
cumprimento do Estatuto das Cidades”, o “cumprimento das exigências dispostas na Lei
Federal 10.257, Estatuto das Cidades”
165
(note-se que é o mesmo interpretante mobilizado
pelos demais atores envolvidos) o poder público busca por meios estritamente referenciais
levantar “evidências” do cumprimento do disposto na lei por uma construção metafórica de
sentido. Ao reivindicar o “cumprimento do Estatuto das Cidades” sem explicitar o conteúdo
164
POPÓ, Pedro. A eterna briga entre Cocão e Coió. seis décadas grupos rivais travam duelo por liderança.
Jornal Correio de Uberlândia. 25 jun. 2006. Disponível em <http://www.correiodeuberlandia.com.br/texto/2006
/06/25/19237/a_eterna _briga_entre_cocao_e_coio.html>. Na reportagem o prefeito, à época da elaboração do
Plano e reeleito no pleito de 2008, é tomado como representante dos cocões, pertencente a ala ruralista da cidade,
tendo sido presidente do Sindicato Rural de Uberlândia.
165
Ofício 0257/2007 de 08.08.2007 da Presidência da Câmara em resposta ao Ofício nº 671/2007 PGJ em que
encaminha as peças alusivas à fase de discussão preliminar do Plano Diretor junto à comunidade, de maneira
a demonstrar o cumprimento das exigências dispostas na Lei Federal 10.257, de 10.07.01 (Estatuto das
Cidades”(grifos meus). Constante no Inquérito Civil Público MPMG 0702.09.001218-9.
157
de sua ação, pretende que as “evidências” levantadas sejam suficientes para legitimar suas
ações.
Deste modo, busca significar sua atuação em face das reivindicações de efetiva
participação da sociedade como independente “de qualquer facção política”
166
, colocando
ênfase na participação da sociedade por via direta e individual na apresentação de propostas e
críticas pela Internet ou entregues no Escritório do Plano Diretor, bem como pela atuação de
segmentos da sociedade na Comissão de Acompanhamento do Plano Diretor. Assim, o poder
público dá novas significações à participação direta - associada à tomada de opinião de
moradores presentes nas audiências e reuniões - bem como à participação de segmentos da
sociedade como acompanhamento dos trabalhos sem, no entanto, explicitar o conteúdo destas
significações. Deste modo, no interior dos eventos em que essas significações são postas em
operação, o poder público é feliz (Austin 1962) em seus propósitos de encaminhamento e
aprovação do Plano Diretor pela Câmara Municipal, cumprindo com os prazos determinados
pelo Estatuto das Cidades.
Do que pudemos depreender, Planos e projetos urbanos não expressam apenas uma
racionalização das ações em torno de sua elaboração, mas também estruturas lógicas,
transferências de sentido, associações metafóricas e metonímicas que expressam iconicamente
as disputas nas quais estão envolvidos. Sendo também ícones de uma condição futura que o
poder público pretende para as margens urbanas dos córregos e do rio Uberabinha, os Planos
e Projetos revelam uma visão de mundo desenvolvimentista (econômica e sustentável) a partir
da qual busca-se validar suas ações e no interior da qual os seus moradores entram em um
complexo jogo de classificações no qual as relações de poder estão demarcadas.
Desse modo, a forma como o projeto Parque Linear do Rio Uberabinha, tal como o
Parque do Sabiá, são alçados à demanda pública é expressiva do modo como a noção de
interesse público é construída no bojo das disputas em torno da definição do cumprimento da
função sócio-ambiental da cidade, bem como da construção (in)adequação dos moradores a
essa noção. A noção de cidade sustentável, entendida como “direito à terra urbana, à moradia,
ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao
trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”, não está, desta forma, imune às
conformações sociais, culturais e políticas, à força que adquirem os atores nas negociações
166
Inquérito Civil nº. MPMG-0702.09.001218-9, instaurado pelo Ministério Público de Minas Gerais - 10ª
Promotoria de Justiça da Comarca de Uberlândia a partir do Expediente 013/2006. Carta-resposta da
Procuradoria Geral do Município da Prefeitura Municipal de Uberlândia, de 02.05.2006, fls 28-33.
158
dos códigos que regulamentam suas ações e que terão papel significativo nos rumos da
definição do que se entende como acesso ao direito à cidade.
159
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153-16.
169
Anexos
170
Anexo 01
Jornal Correio de Uberlândia. Domingo, 04 fev. de 2007.
171
Anexo 2
Evolução Populacional de Uberlândia
Área
1940
1950
1960
1970
1981
1991
2000
2010
Urbana
22.123
35.799
71.717
111.466
231.598
358.165
488.982
583.879
Rural
20.056
19.185
16.565
13.240
9.363
8.896
12.232
16.406
Total
42.179
54.784
88.282
124.706
240.961
367.061
501.214
600.285
Fonte: Censos Demográficos - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
172
Anexo 3
Fonte:Freitas (2009)
173
Anexo 04
174
Anexo 5
M
a
p
a
d
e
S
ã
o
P
e
d
r
o
d
e
U
b
e
r
a
b
i
n
h
a
(
1
891) Disponível em:<http://www.uberlandia.mg.gov.br/midia/imagens/planejamento_urbano_e_meio_ambiente/mapa_ udia.jpg> Acesso em 13/02/2010.
175
Anexo 6
Anexo 07
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo