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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Antônio Honório Ferreira
Discursos étnico-raciais proferidos por candidatos/as a programa
de ação afirmativa
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2010
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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Antônio Honório Ferreira
Discursos étnico-raciais proferidos por candidatos/as a programa
de ação afirmativa
Tese apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em
Psicologia Social, sob orientação da
Prof. Drª. Fúlvia Rosemberg.
São Paulo
2010
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BANCA EXAMINADORA
______________________________
______________________________
______________________________
______________________________
______________________________
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial desta dissertação/tese por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
Assinatura:_______________________________Local e Data:___________________
AGRADECIMENTOS
Meu reconhecimento e agradecimento aos que me antecederam, por tudo que edificaram
e que me serve como ponto de partida.
A minha orientadora, Profa. Dra. Fúlvia Rosemberg, pela competência, generosidade
intelectual, sentido ético, comprometimento, paciência e compreensão.
À Profa. Dra. Maria Antonieta Martinez Antonacci, ao Prof. Dr. Luiz Alberto Oliveira
Gonçalves e ao Prof. Dr.Valter Roberto Silvério pelas valiosas contribuições que me
deram por ocasião da minha qualificação .
Ao Prof. Dr. Antônio da Costa Ciampa, pela inspiração teórica, que me acompanha
desde que foi meu orientador no mestrado e por também compor esta banca
examinadora.
À Profa. Dra. Circe Maria Fernandes Bittencourt, pela sua colaboração neste momento
de defesa de tese.
À Profa. Estefânia K. Canguçu Fraga e ao Prof. Dr. Alípio Márcio Dias Casali, por
terem aceito participar, como suplentes, neste processo.
À minha família que vem me apoiando das mais variadas formas. De maneira especial
agradeço à minha mãe, que sempre valorizou e incentivou a formação escolar de seus
filhos.
Ao amigo do peito, José Gabriel da Costa, pela presença constante e iluminada e de toda
a irmandade.
Ao amigo-irmão Derli Batista da Silva e família: Cláudia Cristina Nascimento da Silva,
Cristiano Nascimento da Silva e Heitor Nascimento Batista da Silva, pela amizade e
consideração.
Ao amigo-irmão Gustavo Lopes Borba e família: Kelli Gonçalves e o pequeno
Guilherme, que me proporcionaram momentos agradáveis de convívio, pela afetividade
fraterna na “embaixada mineira” em terras paulistanas.
Ao novo amigo-irmão Luiz do Nascimento Carvalho e família: Alciene Alves Ferreira e
Maria Luiza do Nascimento Carvalho, pela hospitalidade goiânia, carinhosa e amiga na
Paulicéia e apoio bem oportuno.
A amiga-irmã Myrt-Thânia de Souza Cruz e família: Ednalva Souza Cruz, Tânison
Alves da Cruz, Victor Souza Cruz, Vincent Alves de Palma D’Elia e Pedro Cruz D’Elia,
pelos momentos de afeto compartilhados e o apoio.
À minha família paulistana, Ricardo Clerice , Rosimeire Niccioli Clerice, Ana Carolina
Clerice e Pedro Henrique Clerice, pelo acolhimento afetuoso, amizade verdadeira e
momentos de espituralidade compartilhados.
Às companheiras e companheiros do NEGRI, com os quais tive a oportunidade de
compartir bons momentos de aprimoramento acadêmico.
Aos funcionários da Biblioteca Nadir Kfouri pelo bom trabalho que realizam.
Aos(às) professores(as) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social
da PUC-SP e a Marlene Camargo, secretária do Programa.
À competente equipe da Fundação Carlos Chagas, Maria Luisa Santos Ribeiro, Leandro
Feitosa Andrade, Márcia Aparecida Caxeta Pereira, Raquel Ribeiro, Marli Ribeiro, Ida
Lewkowicz pelo apoio e colaboração.
À profa. Regina Lúcia de Souza e demais colegas de trabalho, pelo apoio e incentivo.
Aos(às) candidato(as) do Programa IFP que autorizaram o uso de suas informações para
pesquisa, das quais utilizei-me para a realização deste trabalho.
A CAPES pela concessão da bolsa sem a qual seria impossível realizar esta tese.
RESUMO
FERREIRA, Antônio Honório. Discursos étnico-raciais proferidos por candidatos/as a
programa de ação afirmativa.
Esta pesquisa se articula ou continuidade a dissertações e teses produzidas no
contexto do Núcleo de Estudos de Gênero, Raça e Idade (NEGRI), do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de
São/PUC-SP, tendo por objetivo geral procurar contribuir para a compreensão e
melhoria da prática, de processos de identificação étnico-raciais em experiência de ação
afirmativa. Seu objetivo específico é descrever e propor interpretações a discursos
étnico-raciais proferidos no contexto do Programa Internacional de Bolsas de Pós-
graduação da Fundação Ford (Programa IFP). Fundamenta-se na hipótese teórica de
Munanga (1988), que propõe a pluralidade do ser negro, no Brasil; na concepção de
racismo que integra a dimensão estrutural e simbólica na produção das desigualdades
raciais e na defesa do argumento de justiça social como a melhor justificativa, no Brasil,
para a implementação de políticas de ação afirmativa com recorte racial, a partir de
Feres Júnior (2006). Como método de pesquisa adotamos a hermêutica de profundidade
(HP). Nesta tese, as formas simbólicas analisadas provêm das respostas de candidatos
ao Formulário para Candidatura do Programa IFP, onde foram examinados os discursos
proferidos nos campos específicos relacionados à autodeclaração e identificação racial,
pela técnica de análise de conteúdo. A caracterização do perfil da amostra de autores
dos discursos que analisamos aponta para: uma proximidade com o universo de
candidatos ao Programa IFP; um percentual predominante de autores pretos e pardos,
que declararam pertencer ao grupo-alvo negro; um predomínio de jovens e de mulheres.
Dentre os 169 candidatos que compõem nossa amostra, 105, ou seja 62,1%, declararam
identificar-se como negros. Ocorreu alta freqüência da justificativa por origem para a
autodeclaração de cor/raça, o que aponta a necessidade de novos estudos. Encontramos
nítida diferença entre os subconjuntos de autores de relatos autodeclarados pretos ou se
que se identificam como negros e os autores brancos. os relatos dos autores pardos se
situam em posição intermediária. Os resultados revelam uma variedade de formas de se
apresentar como preto, pardo ou branco em um programa de ação afirmativa com
recorte étnico-racial.
Palavras-chave: ação afirmativa, negro, Programa IFP, análise de conteúdo
ABSTRACT
FERREIRA, Antônio Honório. Ethnic-racial speeches delivered by candidates for
affirmative action program.
This research articulates itself or gives continuity to dissertations and theses produced in
the context of the Núcleo de Estudos de Gênero, Raça e Idade (NEGRI), part of the
Program of Graduate Studies in social psychology from Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo/PUC-SP. Its overall goal, is to try to contribute to the
understanding and the improvement of the ethnic-racial identification processes in
affirmative action experiences. Its main specific goal is to describe and propose
interpretations to the ethnic-racial speeches delivered in the International Fellowships
Program - IFP (IFP Program) context. Based on the Munanga (1988), theoretical
hypothesis, which proposes the plurality of being negro in Brazil; in the concept the
concept of racism which integrates the structural and symbolic dimension in production
of racial inequalities and in defense of the argument of social justice as the best
justification, in Brazil, for the implementation of affirmative action policies with racial
clipping, from Feres Júnior (2006). As a research method we adopted the Depth
Hermeneutical (DH). In this thesis, the symbolic shapes examined comes from the
answers given from candidates, which filled in a form to be part of the IFP Program,
where the speeches were examined in specific fields related to self-declaration and
racial identification, by content analysis technique. The profile from the authors which
we analyzed the speech, shows that: proximity with the universe of candidates to the
IFP Program; a predominant percentage of pretos and pardos authors, which have
declared that they belong to the target group negro; with a predominance of young
people and women. Among the 169 candidates that comprise our sample, 105 or 62.1%
declared that they identify themselves as negros. High frequency occurred per source
justification for self-declaration of color/race, suggesting the need for further studies.
We found clear difference between subsets of authors which declared themselves as
pretos or who identify themselves as negros and the authors as brancos. But the reports
from the pardos show that they are located in the middle. The results reveal a variety of
ways to present oneself as preto, pardo or branco in an affirmative action program with
clipping ethnic-racial.
Keywords: affirmative action, black, IFP Program, content analysis
SUMÁRIO
Introdução: Objeto e método 01
PARTE I: O racismo e seu enfrentamento 16
Capítulo 1 – Estudos sobre o racismo e seu enfrentamento 16
Capítulo 2 – O racismo no Brasil 34
Capítulo 3 – Conceituando ação afirmativa 55
Capítulo 4 – Ação afirmativa no Brasil: debates e práticas 64
Capítulo 5 – Classificação racial no Brasil 86
PARTE II: Reflexão Identidade racial e ações afirmativas 106
Capítulo 1 – Reflexões sobre identidade 107
Capítulo 2 – De estágios para tipologia 123
PARTE III: Análise das formas simbólicas 141
Capítulo 1 – Procedimentos: corpus e grades de análise 141
1.1 Seleção da amostra e constituição do corpus 141
1.2 Análise do corpus 145
Capítulo 2 – Resultados: interpretações e re-interpretações 153
2.1 Caracterização da amostra 153
2.2 Como efetuam a declaração de pertença/identificação aos grupos-alvo 159
2.3 Como justificam a autodeclaração de cor/raça 162
2.4 Relatos sobre experiências/vivências étnico-raciais 167
2.5. Síntese dos resultados 186
CONSIDERAÇÕES FINAIS : Reinterpretações e inquietações 189
REFERÊNCIAS 193
ANEXOS 211
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Informações seletas sobre o Programa IFP 105
Quadro 2 – Estágios de desenvolvimento da identidade negra e tipologias 130
Quadro 3 – Campos do Formulário que foram analisados 143
Quadro 4 – Composição da amostra 145
Quadro 5 – BLOCO 1: Identificação do candidato
(Campos A e M do Formulário) 147
Quadro 6 – BLOCO 2: Justificativa de opção da categoria cor/raça
(Resposta à pergunta: “Por que você usou a categoria acima?”) 148
Quadro 7 – BLOCO 3: Relatos pessoais
(Respostas ao campo N do Formulário: “Relate suas experiências
ou vivências relacionadas a seu pertencimento étnico-racial”) 149
Quadro 8 – BLOCO 4: Tipos de relato 151
Quadro 9 – Temas em relatos com foco étnico-racial 175
Quadro 10 – Tipologia discursiva referente à negritude em relatos relacionados a
vivências/experiências étnico-raciais 182
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: População total e com mestrado e doutorado por cor ou raça.
Brasil 2007 10
Tabela 2: Composição do universo e da amostra de candidatos 153
Tabela 3: Subconjuntos mais freqüentes identificados na amostra 155
Tabela 4: Caracterização da amostra por sexo 156
Tabela 5: Caracterização da amostra por idade 157
Tabela 6: Caracterização da amostra por cor/raça 158
Tabela 7: Declaração de pertença por sexo, idade e cor/raça 161
Tabela 8: Distribuição de freqüência das justificativas dadas à opção cor/raça 163
Tabela 9: Justificativas dadas à opção cor/raça por sexo, idade e cor/raça e
declaração de pertença 165
Tabela 10: Presença/ausência de relato sobre experiências/vivências
relacionadas à pertença étnico-raciais por sexo, idade,
cor/raça e declaração 168
Tabela 11: Pessoas gramaticais enunciadas nos relatos por sexo, idade e
cor/raça e declaração de pertença 171
Tabela 12: Foco dos relatos por sexo, idade e cor/raça e
declaração de pertença 173
Tabela 13: Temas dos relatos com foco étnico-racial por sexo, idade e
cor/raça e declaração de pertença 177
Tabela 14: Tipos de discursos referentes à negritude mais e menos
Freqüentes nos relatos 183
Tabela 15: Tipos discursivos mais freqüentes nos relatos por sexo, idade e
cor/raça e declaração de pertença 184
ANTÔNIO HONÓRIO FERREIRA – AGOSTO/2010
1
INTRODUÇÃO: Objeto e método
Foi para estudar as identidades negras que me lancei no grande oceano que é o
campo de estudos das relações raciais brasileiras. O título inicial do meu projeto de
mestrado “A construção da identidade negra em diferentes contextos sociais”, indicava
a idéia de pluralidade identitária, inspirado que estava por um texto provocativo do
antropólogo Kabengele Munanga (1988), que apontava que a diversidade de contextos
sociais resultaria em múltiplas possibilidades de ser negro no Brasil e que também
indicava as dificuldades metodológicas para apreensão desse fenômeno o complexo e
dinâmico (MUNANGA, 1988, p. 146). Ouvi esse alerta e, naquele momento, prossegui
meu mestrado pesquisando identidades negras a partir do método de história de vida,
orientando-me pela teoria da identidade-metamorfose-emancipação de Ciampa (1986,
1999).
Vim para o doutorado ainda influenciado por esse encantamento, elaborei meu
projeto e fui para o exame de qualificação pensando em estudar identidade a partir de
discursos raciais proferidos em contexto de experiência de ação afirmativa. Naquele
momento meu projeto se intitulava “Discursos étnico-raciais e identidades em contexto
de programa de ação afirmativa”. Todavia, os resultados de minha pesquisa
descortinaram o que estava posto desde o início: a complexidade do meu objeto,
configurada na complexidade de operacionalizar a identificação racial em programas de
ação afirmativa que procuram equalizar igualdade de oportunidades laborais ou
educacionais entre negros e brancos. Quando empreendi a análise dos discursos, o
campo empírico desta tese, buscando filtrar meu objeto e integrar a preocupação
pragmática com as teorias que estava utilizando, defrontei-me com um grande
descompasso. Isto é, no âmbito da Psicologia (ou da Psicologia Social), as teorias de
identidade permitem compreender a pessoa num processo histórico, por isto estudam
história de vida. Porém, passei a perguntar-me se tal enfoque permite apoiar programas
de ação afirmativa que necessitam selecionar conjuntos de pessoas que provêm dos
segmentos da população focalizados pela ação compensatória de tais experiências.
Dei-me conta que um programa de ação afirmativa que foca grupos-alvo não
busca reconstruir, no processo seletivo, trajetórias pessoais para compreender uma dada
subjetividade, mas trabalha com um corte temporal, para captar como se a
autoidentificação da pessoa no momento de sua candidatura. Um programa de ação
afirmativa estará interessado em saber se a pessoa é um representante de um grupo
2
exposto às condições de desigualdades sociais, se compartilha da mesma trajetória do
seu grupo dessa perspectiva.
Desse modo, feito Ulisses, pude ouvir o canto das sereias sem, contudo, me
perder no mar, amarrado que estava em mastros firmes, como a concepção de racismo
adotada no Núcleo de Estudos de Gênero, Raça e Idade (NEGRI) do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de
São/PUC-SP; o texto inspirador de Munanga (1988) e a defesa do argumento de justiça
social como a melhor justificativa, no Brasil, para a implementação de políticas de ação
afirmativa com recorte racial, feita por Feres Júnior (2006). Daí a mudança de título da
proposta apresentada no exame de qualificação para a tese que ora apresento: de
identidade(s) para discursos; não mais a busca de compreensão da construção de
identidades individuais (ou pessoais) mas procurar contribuir para a compreensão de
processos de identificação étnico-raciais em experiência de ação afirmativa visando à
melhoria da prática.
Esta pesquisa se articula ou continuidade a dissertações e teses produzidas no
contexto do que, desde 1992, vem trabalhando o tema das relações raciais no contexto
da educação brasileira. Os(as) pesquisadores(as) do NEGRI vêm adotando uma
concepção de racismo que integra a dimensão estrutural e simbólica na produção e
reprodução das desigualdades raciais. Ou seja, tais desigualdades não são explicadas
apenas pelo preconceito, pelos estereótipos ou por outras atitudes ou crenças
individuais, mas também por uma estrutura de relações de poder sistematicamente
assimétricas entre os segmentos étnico-raciais.
Articular-se e dar continuidade, nesta tese, à perspectiva do NEGRI, significa
pensar a ação afirmativa como uma das estratégias (mas não a única) de combate à
desigualdade racial brasileira. No caso desta tese, descrever e propor interpretações a
discursos étnico-raciais proferidos no contexto do Programa Internacional de Bolsas de
Pós-graduação da Fundação Ford (Programa IFP),destinado, entre outros segmentos
sociais, a negros e indígenas.
No NEGRI já temos uma trajetória de trabalhos no campo de estudos das
relações raciais: as dissertações de mestrado de Rachel de Oliveira, “Relações raciais na
escola: uma experiência de intervenção”, de 1992; de Eliana de Oliveira, “Relações
raciais nas creches diretas do município de São Paulo”, de 1994; de Chirley Bazilli,
“Discriminações contra personagens negros na literatura infanto-juvenil brasileira
contemporânea”, de 1999; de Edmar José da Rocha, “Autodeclaração de cor e/ou raça
3
entre alunos(as) paulistanos(as) do ensino fundamental e médio - um estudo
exploratório”, de 2005 e as teses de Edith Piza, “O caminho das águas : estereótipos de
personagens femininas negras na obra para jovens de escritoras brancas”, de 1995 e de
Paulo Vinicius Baptista da Silva, “Relações raciais em livros didáticos de língua
portuguesa”, de 2005.
Dentre os diversos temas que o Núcleo vem privilegiando, destacarei um deles
que foi de especial apoio para esta tese, além do enfoque teórico: o da denominação,
classificação e identificação étnico-racial, pedra de toque para a seleção de candidatos
em experiências de ação afirmativa com viés étnico-racial (Piza e Rosemberg, 2003;
Rocha e Rosemberg, 2007; Rosemberg, 2004).
Se esta tese compartilha com os trabalhos supracitados no que diz respeito à
meta política, ou seja, o enfrentamento das desigualdades raciais no sistema educacional
brasileiro, ela se diferencia por focalizar o nível mais elevado da trajetória educacional
do(a) brasileiro (a): a pós-graduação. Com efeito, tendo como única exceção a
dissertação de mestrado de Neiva de Oliveira Moro, “Um estudo sobre o universitário
do anual de 1990 da Universidade Estadual de Ponta Grossa: carreiras educacionais e
raça”, de 1993, estudo pioneiro no Brasil sobre o acesso de negros ao ensino superior,
os demais trabalhos focalizaram questões relacionadas a crianças e adolescentes ou à
educação básica.
Ela se diferencia, também, porque nosso objetivo de pesquisa não tematiza a
análise das desigualdades educacionais de acesso, permanência e sucesso -, mas sim a
implementação de estratégias para sua superação via experiência de ação afirmativa
destinada, entre outros segmentos sociais, a negros. Neste ponto, a questão de demarcar
quem é negro(a) e quem não é negro –, no Brasil, é uma questão crucial. Qual a
tradução dessa pergunta na implementação de um programa de ação afirmativa? A
diversidade de tipos de relatos sobre experiências e vivências relacionadas ao
pertencimento étnico-racial que apreendi, ou de formas de se apresentar a um programa
de ação afirmativa que tem recorte étnico-racial, conduz à idéia de pluralidade ou de
diversidade contextual sugerida por Munanga (1988), candidatos pretos, pardos ou
brancos proferiram discursos variados inclusive internamente a cada segmento.
Para nós, a relevância social desta tese é ter procurado adentrar um pouco mais
na complexidade do processo de classificação/identificação racial em experiência
brasileira de ação afirmativa. De nosso ponto-de-vista, tal complexidade resulta não
apenas da “intrincada trama do nosso universo de classificações” (Silvério, 2002a,
4
p.225), mas, também, de um desencontro entre a agenda identitária dos movimentos
negros entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990 e as particularidades de
identificação étnico-racial para sustentar programas de ação afirmativa com viés étnico-
racial. Com efeito, é possível afirmar que organizações dos movimentos negros
brasileiros entre 1980 e 1990 apostaram na visibilidade numérica da população negra
como ferramenta política. A campanha que antecedeu o Censo de 1991 é prova dessa
perspectiva: “Não deixe sua cor passar em branco. Tenha bom Censo” (NASCIMENTO
e NASCIMENTO, s/d). Essa campanha pode apontar para uma certa fluidez na
demarcação das linhas de cor/raça, ao estimular a autodeclaração em outras categorias
que não a branca.
Ora, com o advento de programas de ação afirmativa, tal perspectiva torna-se
inadequada na medida em que a questão, agora, é fortalecer a diferenciação da linha de
cor para barrar candidatos “de ocasião” que se declaram não-brancos para beneficiar de
prioridades em programas de ação afirmativa. Ou seja, tais experiências abrem a
possibilidade, no Brasil, de que não declarar-se branco pode ser benéfico.
A fluidez do modo brasileiro de auto ou heteroclassificação de cor/raça vinha
sendo apontada como um obstáculo para a introdução no Brasil de experiências de ação
afirmativa, desde os anos 1990, inclusive por Rosemberg (1999)
1
. Algumas soluções
foram sendo sugeridas, por vezes, no calor do debate e sem ponderação mais
aprofundada. Bailey e Telles (2002), por exemplo, referem-se a um projeto de lei, da
então Senadora Benedita da Silva, para incluir em documento oficial declaração de
pertença (“one’s race”),sem que tenha explicitado quem faria tal classificação, sem que
se tenha idéia das possibilidades ou o de alteração de declaração pregressa. Pode-se
imaginar o estardalhaço mediático se esta lei fosse aprovada e adotada.
Instituições pioneiras, em solo brasileiro, na implementação de experiências de
ação afirmativa com viés racial logo atentaram para esta questão. Por exemplo, ela é
mencionada desde o início pelo que tem sido considerado como “primeiro projeto de
ação afirmativa para pessoas negras no Brasil” (Silva, 2003), o “Geração 21. Tal
projeto, criado em 1999, como “fruto da aliança social estratégica” entre Geledès (ONG
do Movimento Negro), Fundação Bank-Boston e Fundação Palmares, oferecia bolsas de
1
Esse foi uma das questões consideradas no manifesto assinado pelos “Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as
leis racias”, que foi entregue ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, em 30 de abril de
2008. Dentre esses “cidadãos anti-racistas” figuram Yvone Maggie, Marcos Chor Maio e Peter Fry, apenas para
apontar alguns cientistas sociais que assinaram o documento (http://revistaepoca.globo.com).
5
estudos a adolescentes negros(as) do final da série do ensino fundamental ao término
da graduação no ensino superior (Silva, 2003).
Em um capítulo específico sobre o tema no livro “Ações afirmativas em
educação: experiências brasileiras”, Cidinha da Silva (2003) adentra a discussão pública
da questão e talvez seja quem tenha introduzido as expressões “negros(as) de ocasião e
negros(as) emergentes” (p. 47): Estamos chamando de negros(as) de ocasião aquelas
pessoas oportunistas e/ou desonestas que se declaram negras com o fim exclusivo de
conseguir uma vaga, cujo acesso não seria possível caso se declarassem brancas,
morenas ou quase brancas como fizeram a vida inteira” (Silva, 2003, p. 47). E a autora
sugere, quando possível, entrevista com “especialista” para dirimir dúvida
2
.
Ou seja, apesar de a quase totalidade das experiências de ação afirmativa para
ingresso no ensino superior, via cotas ou bonificação, adotar a autodeclaração como
definição “se uma pessoa pode ou não ser considerada negra” (Ferreira, s/d apud Paixão
e Carvano, 2008, p. 82), encontramos pouca discussão pública sobre procedimentos
para impedir a passagem da linha de cor “por oportunismo”.
Rosemberg (mimeo 7) considera esta uma das tensões que a implementação do
Programa IFP enfrentou no Brasil: de um lado, não violentar os candidatos impondo-
lhes uma classificação étnico-racial que não a própria; de outro, impedir a identificação
“de ocasião” com os grupos-alvo do Programa IFP.
Com efeito, as polarizações do debate em torno das ações afirmativas na mídia e
fora dela, posições de ataque e defesa, têm dificultado uma reflexão mais interna sobre
tais estratégias na implementação de programas de ação afirmativa. Neste sentido, a
defesa de Feres Júnior (2006, p. 55) do argumento de justiça social é uma importante
aliada neste estudo, uma vez que o autor apresenta uma articulação entre o conceito de
ação afirmativa, a sustentação retórica dessas políticas e os procedimentos para sua
implementação.
Assim, de acordo com o princípio de justiça social, “a ação afirmativa justifica-
se simplesmente pela constatação de desigualdades que são grupo-específicas e,
portanto, passíveis de se tornar objeto de políticas públicas”. Trata-se de um princípio
que favorece a operacionalidade de programas de ação afirmativa, com recorte racial no
sentido de indicar critérios pragmáticos para a eleição de seus futuros beneficiários. O
2
Nota-se, com relativa frequência na literatura e em algumas experiências de ação afirmativa para
ingresso no ensino superior (por exemplo o da Universidade de Brasília), a expectativa de um critério
objetivo externo para classificação de cor/raça como no caso de Cidinha Silva (2003) o apelo a
“especialistas”.
6
autor sugere que sejam adotadas as categorias de cor/raça do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), de modo a encontrar sustentação em evidências
estatísticas de desigualdade, bem como a dispensar qualquer essencialização identitária.
Porém, isto não é suficiente, posto que resolve, apenas, um dos problemas que a
implementação de experiências de ação afirmativa devem responder: o dos grupos-alvo.
Resta, porém, o segundo problema: o da identificação. Trata-se de um campo em grande
tensão: como fazer justiça e, ao mesmo tempo, criar barreiras para evitar identificações
raciais “de ocasião” e não violentar as pessoas que se candidatam a um programa de
ação afirmativa quanto a sua pertença racial.
Esta tese procurou, então, participar da compreensão dessa complexidade,
descrevendo e interpretando discursos étnico-raciais no contexto do Programa
Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford
3
(International
Fellowships Program - IFP), procurando jogar luz nessa questão.
Quando Feres Júnior (2006) apresentou as dificuldades operacionais das
justificações de programas de ação afirmativa pautadas nos argumentos de reparação e
de diversidade, destacou a distância entre o campo retórico e o campo prático. No que
tange aos aspectos fundamentais, definição dos beneficiários e sua identificação, parece-
nos que o Programa IFP esteve consciente desse contexto político-pragmático desde o
seu início.
O objetivo do Programa IFP é aprimorar o potencial de liderança via pós-
graduação, de pessoas envolvidas com a promoção da justiça social, que provêm de
segmentos sociais subrepresentados no ensino superior. O Programa IFP foi criado no
ano de 2000 e foi implementado, gradualmente, em 22 países da África, América
Latina, Ásia, Oriente Médio e na Rússia, locais de atuação da Fundação Ford
(www.programabolsa.org.br). Apesar de seu caráter internacional, o Programa
estabeleceu que a definição de qual(is) segmento(s) seriam atendido(s) ocorreria de
acordo com a especificidade de cada país.
O Programa IFP no mundo oferece bolsas de estudo de até três anos em nível de
mestrado ou doutorado, stricto sensu ou profissional especializado, “para que mulheres
e homens, com potencial de liderança, possam continuar sua formação superior, dando-
lhes a oportunidade de se capacitarem para promover o desenvolvimento de seus países
3
O sítio oficial do Programa informa que a Fundação Ford é uma organização de caráter privado, sem fins
lucrativos, que foi criada nos Estados Unidos da América “para ser uma fonte de apoio a pessoas e instituições
inovadoras em todo mundo, comprometidas com a consolidação da democracia, a redução da pobreza e da injustiça
social e com o desenvolvimento humano” (www.programabolsa.org.br).
7
e comunidades de origem, assim como de promover maior justiça social”
(www.programabolsa.org.br).
O lançamento do Programa IFP no Brasil se deu no ano de 2001, em um
contexto efervescente de debates a respeito da implantação de ação afirmativa no nível
de graduação no país. A Fundação Carlos Chagas (FCC)
4
é a instituição brasileira
responsável pela coordenação do Programa desde 2002. A escolha da FCC como
instituição parceira da Fundação Ford (FF) na implantação do Programa IFP, deveu-se à
sua “reconhecida reputação e respeitabilidade nos campos de concursos públicos”,
formação de recursos humanos e também por sua experiência nas áreas de produção de
conhecimento sobre desigualdades raciais no sistema educacional brasileiro, bem como
o incentivo à investigação de novos temas (ROSEMBERG, mimeo 7, p . 2). O
Programa IFP, no Brasil, concedeu bolsas exclusivamente para doutorado e mestrado
stricto sensu, com prazos máximos de 36 meses e 24 meses, respectivamente,
adequando-se às normas internacionais e nacionais. No Brasil, o Programa IFP
processou sua oitava e última seleção em 2009, tendo oferecido 343 bolsas no total
(ROSEMBERG, 2009, p. 2).
Apesar de sua vinculação a um formato central, análises e descrições sobre a
implementação do Programa IFP, no Brasil, destacam algumas de suas especificidades
locais. A primeira especificidade brasileira é de ter se identificado, desde o início, como
um programa de ação afirmativa, por dar preferência a segmentos sociais sub-
representados no ensino superior brasileiro (ROSEMBERG, mimeo 6, p. 3). Operando
com uma conceituação que enfatiza a ação afirmativa como uma ação focalizada que
provê tratamento preferencial a certos grupos, visando aumentar a proporção de seus
membros em setores da vida social, nos quais tais grupos se encontram sub-
representados em razão de discriminações históricas ou atuais (CALVÈS, 2004, p. 7), o
Programa IFP no Brasil se inscreve na perspectiva de justiça social, conforme Feres
Júnior (2006, p. 47).
De acordo com Rosemberg (2008, p. 205), tal embasamento, juntamente com o
conceito de “subrepresentação” e não de exclusão social, por exemplo, favoreceu a
adoção de critérios pragmáticos para a identificação dos candidatos, por ser um
termo/conceito de “caráter descritivo e de melhor manejo operacional”. Assim, o
Programa IFP elegeu como seus grupos-alvo, pessoas que se identificam como pretas ou
4
A Fundação Carlos Chagas é uma instituição privada sem fins lucrativos, reconhecida como de utilidade pública nos
âmbitos federal, estadual e municipal e foi criada em 1964 (www.fcc.org.br).
8
pardas ou indígenas
5
ou que tenham nascido nas regiões Norte, Nordeste, Centro-oeste
ou provenientes de famílias que tiveram poucas oportunidades econômicas e
educacionais (www.programabolsa.org.br). São esses segmentos sociais, conforme
inquéritos realizados pelo IBGE, que dispõem, no país, de menor acesso à pós-
graduação. Para Silvério (2008, p. 234), ao escolher como grupos-alvo os membros dos
grupos subrepresentados por origem socioeconômica, região e origem étnico-racial, o
Programa IFP, no Brasil, agiu de modo “exemplar sobre os três principais gargalos das
desigualdades sociais brasileiras”.
O Programa IFP adotou como principal estratégia para determinar a pertença aos
três grupos-alvo, a autodeclaração dos candidatos, inclusive a pertença étnico-racial. Tal
recurso à autodeclaração está coerente com a recomendação da Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) e, também, com os princípios
democráticos, conforme indicação de Feres Júnior (2006, p. 57).
[...] em uma sociedade com instituições de matriz democrático-liberal como a
nossa, não se pode ignorar completamente a identidade que os indivíduos
escolhem. Ou seja, a autonomia moral de cada um é o pressuposto básico da
cidadania democrática, e essa autonomia inclui fazer escolhas identitárias,
por mais que estas possam parecer equivocadas aos olhos de alguns.
De início, a Equipe da Fundação Carlos Chagas considerava que tais
procedimentos adotados no Formulário para Candidatura seriam filtros para barrar
autodeclarações “de ocasião” (Rosemberg, 2004). Porém, as entrevistas previstas no
processo seletivo do Programa IFP, realizadas apenas para um pequeno conjunto de
candidatos que ultrapassavam etapas preliminares, apontaram que os filtros não eram
suficientes.
Assim, logo após a Seleção de 2003, a Equipe da Fundação Carlos Chagas
organizou um seminário com representantes dos movimentos negros e estudiosos das
relações raciais para discutir a questão: como melhorar os procedimentos do Programa
visando manter a autodeclaração de cor/raça e evitar passagem da linha de cor “de
ocasião”.
Dentre as possibilidades para diluir a tensão, ampliaram o Formulário para
Candidatura ao Programa IFP instrumento-chave do dossiê elaborado pelos
candidatos à seleção , incluindo mais duas questões: a primeira, logo após a
autodeclaração de cor/raça conforme as alternativas tradicionais usadas nos inquéritos
5
A população indígena não será objeto de estudo desta pesquisa.
9
do IBGE (branca, preta, parda, amarela e indígena), solicita ao candidato que justifique
porque optou pela categoria indicada; a segunda solicita que o candidato relate “suas
vivências ou experiências relacionadas a seu pertencimento étnico-racial” (Formulário
para Candidatura, Seleção 2004).
Foi este conjunto de respostas a estas quatro questões autodeclaração de
cor/raça, justificativa da autodeclaração, relato das experiências/vivências relacionadas
à pertença étnico-racial e identificação de pertença – fornecidas por uma amostra de 169
candidatos autodeclarados brancos, pretos e pardos ao Formulário para Candidatura da
Seleção 2007 que constituiu o corpus desta pesquisa.
Se atentarmos para a busca de solução apresentada pela seção brasileira do
Programa IFP à intrincada questão da identificação étnico-racial em contexto de
programa de ação afirmativa, em conexão com sua justificativa de busca de justiça
social, observamos que o termo “negro” assume duas conotações: de um lado uma
categoria analítica resultante da integração de pretos e pardos em um único contingente
populacional e que permite apreender a desigualdade entre brancos e negros no acesso
ao ensino superior ou a outros bens sociais; de outro, uma categoria de identificação,
identitária ou política.
Tal diferenciação nas conotações do termo negro não estava posta desde o início
da elaboração deste projeto de tese. Ela foi se configurando à medida que fomos
analisando os discursos proferidos por nossa amostra de candidatos ao Programa IFP na
Seleção Brasil 2007, bem como na releitura de Munanga (1988), de Silvério (2002a) e
no encontro com as reflexões de Sergio Costa (1997, 2001, 2002, 2007). Parodiando o
título do artigo de Rosemberg (2004) “O branco do IBGE continua branco na ação
afirmativa?”, nossa questão é: a categoria negro, construída a partir das categorias do
IBGE para sustentar o combate a desigualdades raciais, mantém esse significado quando
usada por candidatos para identificar-se como negros em programa de ação afirmativa?
Conforme mencionamos acima, o encontro com textos de Sergio Costa (2002),
especialmente o artigo “A Construção Sociológica da Raça no Brasil”, foi de grande
utilidade para domarmos o objeto de pesquisa, particularmente após a análise dos
resultados, quando observamos diferenças sistemáticas entre discursos de candidatos
autodeclarados pretos e pardos. Por vezes, discursos de candidatos pardos mais se
10
aproximaram daqueles proferidos por candidatos autodeclarados brancos do que de
pretos.
6
Evocamos, então, observações de Sergio Costa (2002, p. 54-55), quando discute
e distingue os estudos e os usos do conceito raça: de um lado, os estudos que procuram
compreender as desigualdades raciais e que adotam um modelo bipolar negro-branco de
classificação racial; de outro, os estudos que procuram compreender a construção da
idéia de nação ou de identidade negra. “Se a categoria raça constitui recurso
metodológico indispensável para a identificação das desigualdades raciais, o mesmo não
se pode dizer, todavia, do uso do conceito como categoria geral de análise da dinâmica
da sociedade brasileira” (Costa, 2002, p.49).
De um lado, portanto, não haveria contestação ao fato de que o Programa IFP
considerasse pretos e pardos como grupos-alvo, construindo a categoria negro, na
medida em que, por um lado, se agrupam frente à proximidade que apresentam quanto à
desigualdade de acesso, permanência e sucesso na pós-graduação e, por outro lado, se
distanciam de brancos (tabela 1).
Tabela 1. População total e com mestrado e doutorado por cor ou raça.
Brasil 2007.
População Com
mestrado/doutorado
Taxa
de frequência
Branca
93.762.324 513.285 0,55
Preta
14.138.162 16.397 0,12
Parda
80.302.472 72.184 0,09
Negros
94.440.634 88.581 0,09
Fonte: FIBGE, Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar, 2007.
Isto é, a distância entre brancos, de um lado, e pretos e pardos de outro, é
notável. Além disso, a proximidade estatística entre as taxas de frequência ao mestrado
e doutorado entre pretos e pardos, além do enfoque interpretativo, permite agrupá-los
em uma única categoria, a de negros.
6
Alguns professores e livros de metodologia criticam o procedimento adotado pelo NEGRI de
enunciarmos na introdução, resultados da pesquisa. Fúlvia Rosemberg, em nossos seminários, assinala
que dissertação e tese não é romance policial cuja leitura é orientada pela busca ansiosa do desfecho. Para
ela, de fato, o objeto é completamente apreendido ao final do trabalho, quando se têm os resultados em
mãos. Além disso, enunciá-los na introdução significa considerar o leitor como igual, estabelecendo
relação dialógica.
11
Porém, quando se passa para o plano das vivências e experiências relacionadas
ao pertencimento étnico-racial é possível manter esta categoria no plano analítico?
Como veremos em detalhe no capítulo 2, da Parte III, tal passagem parecenos enfrentar
óbices notáveis.
Para dar conta dessa empreitada, foi necessário fazer um percurso bibliográfico,
que permitisse “domar” o objeto de pesquisa, bem como contextualizar essa produção
discursiva. Assim, na Parte I desta tese, trataremos de estudos sobre racismo e seu
enfrentamento: estudos sobre racismo; o racismo no Brasil; ação afirmativa
conceituação e debate no Brasil; debates e práticas e classificação racial no Brasil. Na
Parte II, discutiremos algumas teorias sobre identidade racial, refletindo sobre a
adequação de sua utilização para auxiliar na implementação prática de programas de
ação afirmativa. Finalmente, na Parte III, apresentaremos análises e interpretações dos
discursos étnico-raciais proferidos por candidatos ao Programa IFP.
E como método de pesquisa, seguindo o caminho que vem sendo trilhado pelos
pesquisadores do NEGRI, adotamos a hermêutica de profundidade (HP) como
metodologia de trabalho para análise de produções dicursivas (ou formas simbólicas).
Nesta tese, as formas simbólicas analisadas provêm das respostas de candidatos à
Seleção 2007 Formulário para Candidatura do Programa IFP, onde foram examinados
os discursos proferidos nos campos específicos relacionados à autodeclaração e
identificação racial. Adotando a proposta de John B. Thompson (1995), utilizamos a HP
como interessante recurso metodológico quando propõe três etapas para a análise
discursiva: a do contexto sócio-histórico, a das formas simbólicas e a da interpretação-
reinterpretação.
John B. Thompsom (1995) assinala que todas as áreas de conhecimento
levantaram problemas de compreensão e interpretação e que uma diferença básica
entre as ciências naturais e as sociais. Nas ciências sociais, o objeto é pré-interpretado.
O mundo sócio-histórico é, ao mesmo tempo, campo-objeto, que está ali para ser
observado, e campo-sujeito, que é parcialmente construído pelos sujeitos. Como ponto
de partida, John B. Thompsom entende como necessário, inevitável, porém não
suficiente o que ele chamou de interpretação da doxa ou a hermenêutica da vida
cotidiana. Ou seja, como os objetos de nossas investigações se situam em campos pré-
interpretados, é necessário uma interpretação das opiniões, crenças e compreensões
desses sujeitos que constituem o mundo social.
12
Antes de prosseguirmos, é necessário conhecermos como John B. Thompsom
(1995) define formas simbólicas. Na introdução de seu livro, o autor reuniu
considerações históricas acerca da importância que as formas simbólicas foram
alcançando com o desenvolvimento capitalista, o qual ampliou, de forma antes
inimagináveis, as possibilidades de sua produção, reprodução e de circulação na
mediação da cultura. Para o autor, formas simbólicas são construções reconhecidas
socialmente como significativas, podendo ser lingüísticas, não-lingüísticas ou mistas
(envolvendo imagem e palavras), tais como: falas e expressões, textos escritos, gestos e
ações, imagens, rituais, programas de televisão e obras de arte, etc. Para o autor
interessa que as formas simbólicas são produzidas, vinculam e são recebidas em
contextos sociais estruturados, ou seja, contextos que envolvam relações de poder,
formas de conflito e desigualdades. As formas simbólicas não são apenas
representações, mas servem tanto para articular quanto para obscurecer relações entre
pessoas e grupos. O autor ainda afirma que as formas simbólicas, continuamente e
criativamente, estão implicadas na composição das relações sociais como tais, pois as
formas simbólicas também produzem realidade.
Para o estudo e análise dos significados das formas simbólicas, John B.
Thompson (1995, p. 182-192) apresenta cinco aspectos que lhes são típicos: os aspectos
intencional, convencional, estrutural e referencial estão relacionados aos termos
“significado”, “sentido” e “significação”. O aspecto contextual está relacionado às
características socialmente estruturadas das formas simbólicas. O aspecto intencional
caracteriza-se pelo “querer dizer”, pelo “tencionar” de quem estabeleceu ou criou as
formas simbólicas, para expressar certos objetivos e propósitos para um outro(s)
sujeito(s) e também pela capacidade de que tais expressões sejam percebidas como
intencionadas. O aspecto que John B. Thompsom chamou de convencional refere-se às
características, tanto de produção quanto de recepção, que envolvem a aplicação de
regras, códigos ou convenções que estão diretamente relacionadas com tais formas
simbólicas. O aspecto estrutural indica que as formas simbólicas são estruturalmente
articuladas em seus elementos constitutivos. O aspecto referencial nos direciona para o
que as formas simbólicas representam, pois elas “referem-se a algo, dizem algo sobre
alguma coisa”. E, finalmente, o aspecto contextual aponta que as formas simbólicas
estão sempre incluídas em processos e contingências sócio-históricas específicas de
produção, transmissão e de recepção. Em contextos sociais estruturados, as pessoas
ocupam posições e constroem trajetórias diferentes que determinam suas ações e
13
interações. Esses contextos sociais são espacial e temporalmente específicos e são
estruturados, ou seja, implicam em assimetrias e diferenças relativamente estáveis em
termos de distribuição de, e acesso a, recursos de vários tipos, poder, oportunidades e
chances de vida” (JOHN B. THOMPSON, 1995, p. 198).
Levando em conta que as formas simbólicas são produzidas, transmitidas e
recebidas em condições sociais e históricas específicas, e que a preocupação exclusiva
com a interpretação da doxa é tão ilusória como o equívoco de não levá-la em
consideração, Thompson (1995) propõe irmos além da hermenêutica de vida cotidiana,
para então assim examinarmos as maneiras como as formas simbólicas estão
estruturadas, bem como as condições sócio-históricas que as engendram. Deste modo, o
autor estabelece três fases para a HP que servem de inspiração para esta tese: análise
sócio-histórica, análise formal ou discursiva e interpretação/re-interpretação. Tais fases
“devem ser vistas não tanto como estágios separados de um método seqüencial, mas
antes como dimensões analiticamente distintas de um processo interpretativo complexo”
(1995, p. 365).
A análise sócio-histórica, que é a primeira fase, tem por objetivo “[...]
reconstruir as condições sociais e históricas de produção, circulação e recepção das
formas simbólicas(JOHN B. THOMPSON, 1995, p. 366, grifos do autor). É uma fase
importante, porque as formas simbólicas não se mantêm num vácuo, elas são pois,
fenômenos sociais circunscritos em contextos de produção, circulação e recepção, cujas
condições sócio-históricas específicas “podem ser reconstruídas com a ajuda de
métodos empíricos, observacionais e documentários” (JOHN B.THOMPSON, 1995, p.
34). O autor descreve cinco níveis distintos de análise: 1) “situações espaço-temporais”
- análise dos locais e tempos específicos nas quais as formas simbólicas são
engendradas e recebidas; 2) “campos de interação” análise das posições e trajetórias
que determinam as oportunidades de acordo com o “capital” (econômico, cultural,
simbólico) de cada pessoa; 3) “instituições sociais” análise do conjunto de regras e
recursos e as relações sociais que estabelecem; 4) “estrutura social” – análise das
assimetrias e diferenças em que se estabelecem nas instituições e nos campos de
interação, de modo sistemático e duradouro, em termos de distribuição e acesso a
recursos, bem como ao poder, oportunidades e perspectiva de realização; 5) “meios
técnicos de construção de mensagens e de transmissão” análise do substrato material
por meio dos quais as formas simbólicas são produzidas e transmitidas.
14
Assim, entendemos que os discursos produzidos por candidatos ao Programa
IFP, e que foram analisados nesta tese, constituem formas simbólicas. Além disso,
consideramos que o contexto sócio-histórico de sua produção, circulação e recepção
assimetricamente estruturado, ou seja, hierarquizado, comportando inúmeras
desigualdades, dentre elas a desigualdade racial. Segundo Costa (2007, p. 240), a
sociedade brasileira por um lado “se apresenta política e juridicamente como liberal”,
por outro lado “funciona como uma sociedade estamental ou de castas que limita
sistematicamente as chances de ascensão social dos grupos demográficos [...]”. Neste
trabalho focalizaremos as desigualdades raciais, particularmente no campo da
Educação.
Elaborada uma reflexão sobre o contexto sócio-histórico em que são construídos,
transmitidos e recebidos os relatos sobre experiências raciais, passarei à segunda fase da
HP que consiste na análise formal ou discursiva. Para John B. Thompsom (1995), esta
fase tem por objetivo descrever as formas simbólicas quanto à sua organização interna,
focalizando suas características narrativas e estruturais, seus padrões e valores. Para o
autor, os objetos e expressões que transitam nos campos sociais são também
“construções simbólicas complexas que apresentam uma estrutura articulada” (JOHN B.
THOMPSON, 1995, p. 369, grifo do autor). Ou seja, as formas simbólicas são o
resultado de ações situadas, mas que também dizem algo mais e isto exige um diferente
tipo de análise, que deve levar em conta o contexto sócio-histórico de sua produção.
Apesar de sugerir alguns métodos tais como análise semiótica, análise da conversação,
análise sintática, análise narrativa e análise argumentativa o autor não deixa de sinalizar
a possibilidade de uso de outros métodos que sejam mais adequados, pois a escolha do
procedimento de análise depende dos objetivos e circunstâncias específicas da pesquisa.
Neste sentido, acompanhando o que já vem sendo feito em diversas pesquisas do
NEGRI, usaremos o método de análise de conteúdo apoiando na perspectiva de Bardin
(1977) e Rosemberg (1981), para o estudo dos relatos sobre experiências eventuais
étnico-raciais, que será desenvolvido na Parte III. A técnica de análise de conteúdo
se propõe a descrever aspectos de uma mensagem, objetiva e
sistematicamente, e algumas vezes, se possível, quantificável, a fim de
interpretá-la, de acordo com os pressupostos da investigação. O processo de
análise de conteúdo, nesta perspectiva, nada mais é que uma tentativa de
categorizar partes de um discurso, tentando, assim, desvendar significados
pouco claros ou trazer, para o primeiro plano, aspectos comuns subjacentes e
sossobrados na diversidade estilística (ROSEMBERG, 1981, p. 70).
15
A terceira e última fase da HP é a interpretação/re-interpretação. Os
resultados das fases anteriores servem de ponto de partida para esta fase, indo além de
ambas pelo seu caráter sintético. Pela análise sócio-histórica obtêm-se luz sobre as
condições sociais de produção, circulação e recepção das formas simbólicas e pela
análise discursiva, suas características formais. É ao mesmo tempo momento de
interpretação e de re-interpretação, pois se trata de re-interpretação de um objeto-
domínio que já está interpretado e compreendido por aquelas pessoas que compõem o
mundo sócio-histórico, ou seja, trata-se de atribuir novos sentidos às formas simbólicas
estudadas.
Nesta introdução é necessário, ainda, justificar a opção por adotarmos a
expressão “discursos étnico-raciais” e não outras expressões, por exemplo, discursos
raciais. Optamos por manter esta expressão em decorrência do fato de ela ter sido
utilizada em todo material veiculado pelo Programa IFP, inclusive na solicitação ao
candidato para que produzisse um relato “relacionado às suas vivências ou experiências
étnico-raciais” (Formulário para Candidatura, Seleção 2007).
Iniciamos, a seguir, a busca por entendimento que o pesquisador empreendeu,
num caminho que, em alguns momentos, foi sinuoso, cheio de seduções e provas, mas
que, também, permitiu acumular referências firmes, que mencionamos acima, bem
como resultados instigantes e, provavelmente, inconclusivos.
16
PARTE I – O RACISMO E SEU ENFRENTAMENTO
Nesta tese entendemos ação afirmativa com recorte racial, como uma das
estratégias de enfrentamento ao racismo. Deste modo, era indispensável uma incursão
bibliográfica nos estudos sobre o racismo e seu enfrentamento, particularmente no que
diz respeito as ações afirmativas. Focalizaremos aqui: estudos sobre racismo; conceito
de ação afirmativa; o racismo no Brasil; ação afirmativa no Brasil: debates e práticas e
classificação racial no Brasil e ação afirmativa.
CAPÍTULO 1 – Estudos sobre racismo e seu enfrentamento
O racismo, no formato de teoria científica, aparece no final do século XIX. Com
a efetiva ocupação colonial da África é que teorias pseudo-científicas legitimaram e
justificaram tanto a escravidão, quanto a colonização. O preconceito em relação ao
negro, tratado como um ser humano inferior e primitivo, já ocorria entre os europeus
“antes do aparecimento da escravatura no Novo Mundo [séc. XVI e XVII]”
(TAGUIEFF, 1997, p. 47) Mas é a partir de produções discursivas de diversos
intelectuais do século XIX que se institui o racismo. Como afirma Munanga (1988,
p.20): Numa época em que a ciência se tornava um verdadeiro objeto de culto, a
teorização da inferioridade racial ajudou a esconder os objetivos econômicos e
imperialistas da empresa colonial”.
Ao efetuar uma discussão semelhante à de Munanga (1988), Taguieff (1997)
identifica autores que não reconhecem a existência de um local e data de nascimento
para o racismo, o que ele chamou de visão antropológica. Por esta maneira de ver, o
racismo seria inerente ao homem ou à natureza da sociedade. Mas, por outro lado, numa
visão que denomina “modernista”
7
, haveria aqueles que caracterizam o racismo como
fenômeno ideológico e sociopolítico que teria surgido na Europa e no Novo Mundo na
idade moderna. Assim, se colocariam, de um lado, os que pensam o racismo como
herança do etnocentrismo e de outro aqueles que o vêem
8
como resultado de uma
modernidade capitalista, individualista, igualitarista ou científica.
7
Mantivemos como está no livro, que foi editado em Portugal.
8
Neste trabalho ainda utilizaremos a antiga ortografia, que tem validade até dezembro de 2012.
17
Taguieff (1997) irá concordar com a origem européia e moderna do racismo,
mas antes irá considerar ingênuo imaginar que o racismo tenha passado a existir
depois de ser nomeado. Afirma que, no idioma francês, a palavra surgiu nos anos 1920.
A geminação [sic], num discurso explícito, da “doutrina das raças” ou da
“mística das raças”, com uma visão expressamente hostil que tem como alvo
algumas categorias raciais ou racializadas, preexistiu, e isto, desde a segunda
terça parte do século XIX, à formação da palavra “racismo”. O fenômeno
“racismo” precedeu o surgimento do termo, referindo-se a ele explicitamente
(TAGUIEFF, 1997, p. 25).
As várias formas de emergência do racismo na modernidade, desde os séculos
XV e XVI, caminharam de forma independente até o século XIX, como informa
Taguieff (1997), mas destaca um elemento que permaneceu para caracterizar este como
um fenômeno ocidental moderno: a tendência à classificação hierarquizada da variedade
dos seres humanos enquanto “raças” diferentes, como “espécies” diferentes, pondo,
assim, em xeque, o pensamento monogenista difundido até então. Na perspectiva
monogenista, era necessário definir o negro, explicar o seu aparecimento, que
acreditava-se que a origem da humanidade era uma só. Para uns, o negro era um branco
degradado, para outros, ele se tornara o que era devido às condições ecológicas e outros,
ainda, preferiram explicá-lo pela “maldição de Cam”, segundo a qual a descendência
deste deveria ser escrava dos outros filhos de Noé. Por esta última explicação, decorria
que escravizar o negro era uma forma de redenção
9
. Era a forma “cristã” de salvar-lhe a
alma, argumento este que apaziguava a consciência dos europeus em pleno iluminismo,
de modo que, mesmo algumas ordens religiosas tinham seus escravos ou se
beneficiavam financeiramente daquele comércio des-humano e lucrativo
10
.
Também identifica-se outra origem do racismo no nascimento da era moderna
ocidental. Para Munanga (2004), foi o momento de substituição do saber teológico
hegemônico pela explicação científica. Ou seja, a partir dos princípios do iluminismo,
do liberalismo, e apoiando-se em classificações naturalistas, o pensamento racista
colocou em dúvida a unidade do gênero humano, fazendo ruir o argumento bíblico da
criação. Nesta mesma linha de pensamento, tem-se a contribuição de Taguieff (1997, p.
26):
9
A pintura intitulada “A Redenção de Cam”, de 1895, de Modesto Brozos y Gomes, mostra uma avó negra de
com as os para o alto, como que em agradecimento: a filha mestiça sentada carregando o neto branco no colo.
Sentado, mais ao lado, um homem branco. Para o artista, a redenção do negro seria o branqueamento.
10
Carta Régia de 22/02/1502 mandando pagar à Ordem de Christo a vintena de ouro, dos escravos e de todas as
mercadorias que vinham da Guiné (MENDES DE ALMEIDA, 1866).
18
[...] Visto que a distinção entre as “raças humanas” é pensada como diferença
de natureza ou como desigualdade irremediável, ela desempenha o papel do
argumento principal contra a tese da unidade, actual ou original, do género
humano. A biologização vai de par com a fragmentação da espécie humana.
A Biologia desempenhou, portanto, essa função, através da classificação
científica dos grupos humanos, baseada nos caracteres físicos, tais como a cor da pele,
os traços morfológicos, etc., “características imaginadas”, no dizer de Seyferth (2002, p.
24), para explicar as diferenças raciais. A tese poligenista, que preconizava múltiplas
origens do ser humano, respaldada pela inserção do ser humano num sistema zoológico,
favoreceu o pensamento racista. Munanga (2004) considera que esse momento de
substituição do saber teológico para um novo tipo de saber, no qual prevalece uma
explicação biológica para o determinismo racial, constituiu a grande virada ideológica
de construção do racismo.
Fundamentando-se em concepção biológica de raças, o racismo seria
teoricamente uma ideologia de cunho essencialista que pressupõe a divisão da
humanidade em grandes grupos humanos denominados raças, que se diferenciariam por
caracteres físicos e hereditários comuns, hierarquicamente valorizados
11
. O fundamental
nesta ideologia é que o racismo consiste em considerar que os traços físicos e biológicos
determinam as características intelectuais e morais de um grupo específico. Para
Munanga (2004), foi quando começou-se a considerar que havia relação intrínseca entre
caracteres biológicos e qualidades morais, psicológicas, intelectuais e culturais que, de
fato, surgiu o racismo, desaguando na hierarquização das chamadas raças humanas.
Uma síntese elucidativa das origens modernas do racismo é proposta por
Taguieff (1997, p. 26). O autor estabelece três formas de pensar o racismo como um
fenômeno moderno: “uma teoria modernista restrita, uma teoria modernista ultra-restrita
e uma teoria modernista alargada”. Pela “teoria modernista restrita” identifica-se o
racismo como sucessor direto das elaborações taxonômicas de Lineu, Buffon,
Blumenbach, Camper e outros naturalistas-antropólogos, que se ocuparam, ao longo do
século XVII, de diferenciar as “raças” humanas por suas características morfológicas,
que seriam fixas e hereditárias.
pela “teoria modernista ultra-restrita”, seria reservado o termo “racismo” para
aquelas teorias e práticas, denominadas hoje de pseudo-científicas, que estabeleciam
uma relação determinista entre fenótipo e qualidades psíquicas, morais e culturais,
11
Como nos informa Seyferth (2002, p. 25), foi Cuvier quem primeiro representou “as raças como uma hierarquia
explicada pelas diferenças de cultura e de qualidade mental, com os brancos no topo e os negros na base”.
19
enfatizando uma hierarquia entre os grupos humanos. Essas teorias, biológicas e
antropológicas, foram iniciadas no final do século XVII e aperfeiçoadas no século XIX.
O racialismo de Gobineau e o racialismo evolucionista, com base na teoria de Darwin,
são exemplos deste racismo. Um racismo secular que teria como princípio de autoridade
o conhecimento científico (TAGUIEFF, 1997, p. 36).
A “teoria modernista alargada” apreende características pré-racialistas do
racismo, que teriam surgido à revelia das classificações das “raças humanas” e seriam
anteriores a elas. O que Taguieff (1997) chama de “proto-racismo moderno”
caracteriza-se por modos de exclusão e de configurações ideológicas que legitimam tais
práticas. Teria surgido entre o século XV ainício do século XVIII, e apresentaria os
seguintes ideologemas, como são nomeados pelo autor: 1) o mito da pureza de sangue;
2) o racismo escravagista e antinegrista e 3) “racismo aristocrático à francesa”:
[...] o mito do “sangue puro” e a obsessão correlativa de uma “mácula do
sangue”; a convicção de uma inferioridade natural de alguns grupos
percebidos como infra-humanos, em razão de seus costumes [...] ou da cor da
pele [...]; a visão, na doutrina aristocrática francesa dita das “duas raças” com
uma diferença hierárquica entre linhagens que distinguem e opõem as suas
qualidades hereditárias, donde a idéia de uma “luta” fatal entre nobres [...] e
os outros [...] (TAGUIEFF, 1997, p. 37-38, aspas do autor).
Foi na Península Ibérica, entre os séculos XV e XVI, que surgiu o primeiro
proto-racismo ocidental. Em Espanha e Portugal, a instituição de “estatutos de pureza de
sangue”
12
tinha como objetivo impedir o acesso de judeus ao exercício do poder
político. Imaginava-se que a pureza e a impureza fossem transmitidas hereditariamente.
Um judeu, mesmo que se convertesse, continuaria judeu. Ocorreu uma judeofobia
racializada que essencializava o diferente. Ao menos nessa parte da Europa, de meados
do século XV a início do século XVIII, nota-se um racismo maniqueísta - “nós, os
puros versus eles, os impuros” (TAGUIEFF, 1997, p, 38 e 43) - aliado à prática de
discriminação social.
Os outros dois ideologemas, o racismo escravagista e antinegrista, bem como o
“racismo aristocrático à francesa”, são considerados, por Taguieff (1997, p. 45), a partir
dos autores que datam o surgimento do racismo desde a expansão européia. É o racismo
12
“[Estatuto Puritate Sanguinis] uma sucessão de normas jurídicas, reais e eclesiásticas, instituídas na Espanha no
século XV e, posteriormente, em Portugal, onde vigoraram do século XVI ao século XVIII. No contexto do Estatuto,
negros e mulatos [judeus, mouros], entre outros, são considerados como portadores de ‘sangue infecto’, o que lhes
vedava o acesso à nobreza, aos cargos públicos e a outros privilégios” (PINTO, 1995, p. 14).
20
que surge no contato com as colônias, estruturado a partir da relação vencedores e
vencidos ou senhores e escravos. Na construção da ideologia da superioridade racial dos
dominadores primeiramente interpretaram-se, de forma imaginada, as características dos
povos dominados: seriam idólatras, canibais e anti-cristãos. Posteriormente, adotou-se o
critério da “pureza de sangue”, permitindo legitimar a estigmatização e a discriminação
dos mestiços “brancos/negros ou brancos/índios” (TAGUIEFF, 1997, p. 46).
O proto-racismo anti-judeu e o racismo colonial dos séculos XVI e XVII
antecederam o surgimento do pensamento tipológico. Os doutrinadores destes proto-
racismos não recorreram à ciência para “sacralizar as diferenças hierárquicas entre as
‘raças’, com referências a heranças de grupo erguidas em tantos destinos” (TAGUIEFF,
1997, p. 46).
Conforme a “teoria modernista alargada”, Taguieff (1997) conclui que não é a
classificação taxonômica, fundamentada pela Biologia e Antropologia que dá origem ao
racismo moderno, mesmo que este procedimento científico tenha contribuído, no século
XIX, para justificar e propagar os seus ideologemas. Para fundamentar seu argumento, o
autor recorre à tese de Eric Williams para afirmar que foi a escravatura que esteve na
origem do racismo. Taguieff (1997, p.46) completa ainda, informando que
O “preconceito de cor” é, nesta perspectiva [sic] explicado de acordo com um
modelo funcionalista: a sua função é legitimar um modo de exploração que
supõe um sistema de domínio, que naturaliza o preconceito racial, tem por
assim dizer acumulação da condição servil e da segregação ligada à cor.
Taguieff (1997), no entanto, não nega a ocorrência de um preconceito anti-negro
anterior à escravidão, como pode ser evidenciado pelos proto-racismos voltados para a
idéia de pureza de sangue e de inferioridade dos povos vencidos, como explicado acima.
Da soma de preconceito com racionalidade econômica resultou o surgimento de uma
“ordem sócio-racial”, que combinou segmentação racial com estratificação social e
econômica (TAGUIEFF, 1997; MUNANGA, 1988 e 2004).
Taguieff (1995, 1988 apud D’ADESKY, 2001, p. 25) adota o que ele chama de
modelo quadripartito para interpretar o racismo e também para configurar o anti-
racismo. O racismo, sendo definido a partir de sua relação com a noção de identidade
coletiva, pode se apresentar de forma heterófobica, como denegação da identidade, ou
seja, ele nega radicalmente a identidade de um grupo, a sua existência e seu valor (não
reconhecimento da cultura). Esse racismo atuaria, então, no sentido de apagar, anular ou
21
mesmo destruir a diferença entre os grupos. Mas, também, o racismo pode se apresentar
de forma heterófila, caracterizando-se pela denegação da humanidade do grupo alvo do
racismo (negação de uma humanidade comum). Assim, ocorre uma absolutizacão da
diferença, valorizando-a no sentido de manter-se a separação entre os grupos: por uma
“recusa de identidade (não reconhecer como digno de respeito tal cultura,
desumanizamos tal comunidade humana)”, por uma “recusa de humanidade (declar
infra-humanos tal grupo de aparência humana)” (TAGUIEFF, 1997, p. 109).
Para melhor compreensão de seu modelo (veja forma adaptada na página 15),
D’Adesky (2001) informa que Taguieff estabelece dois eixos para sua análise do
racismo. No eixo horizontal, ele coloca em oposição, de um lado, os modernos valores
absolutos do indivíduo e do universal e, de outro os valores holísticos de pertencimento
a determinada comunidade. Assim, tem-se num eixo o racismo universalista, baseado
no modo “indivíduo-universalista”, que se fundamenta na denegação da identidade do
grupo e na afirmação da desigualdade, podendo conduzir-se por uma prática de
assimilação, de uniformização ou de dominação, tendo como pressuposto essencial a
ocorrência de classificação hierárquica entre os grupos. A assimilação dos diferentes
pode se dar por via da miscigenação e pela mestiçagem, como destaca Munanga (1999).
No outro lado desse eixo horizontal, tem-se o racismo “diferencialista/comunitarista”,
que se pauta pelo modo “tradício-comunitarista”: seu pressuposto ontológico é que
existe uma diferença natural entre os grupos humanos, o que lhes permite defender a
diferenciação, a separação, a expulsão e a eliminação, se for preciso. É aquele racismo
próprio de sociedades pluriculturais hierarquizadas, tendo a segregação como prática,
como foi o sistema do apartheid na África do Sul e o Jim Crow, nos Estados Unidos.
Nesse racismo não lugar para a mestiçagem, pois ela apaga a “diferença que confere
o status de superioridade à ‘raça’ dominante e que legitima a dominação e a exploração”
(MUNANGA, 1999, p. 117).
no eixo vertical, o antagonismo é entre as categorias
“espiritualistas/culturalistas” e as categorias “materialistas/biologizantes”, colocando, de
um lado concepções ontológicas (aquilo que é), e de outro, as maneiras de se conhecer
(gnoseologia). O resultado do encontro destes dois eixos resulta na caracterização dos
quatro tipos básicos do racismo, conforme Taguieff (1995, 1988 apud D’ADESKY,
2001).
1) “Racismo universalista do tipo espiritualista”: sua base é uma teoria
evolucionista que preconiza que às raças superiores compete a missão civilizatória sobre
22
as demais. Concebe um progresso indefinido da civilização, o qual será atingido pelas
raças mais evoluídas. Deste modo, os grupos humanos são avaliados pelo grau de
evolução, “esclarecimento” e de aptidão para a civilização, sendo mais ou menos
assimiláveis.
2) “Racismo universalista de tipo bioevolucionista ou biomaterialista”: dentro do
processo evolutivo existiriam raças mais adiantadas que outras. É o pertencimento racial
que determina a primazia intelectual e civilizatória, definindo hierarquias fixas entre os
seres humanos. “Esse tipo de racismo, ressalta Taguieff, legitima a dominação colonial
ou a exterminação das raças inferiores, inaptas para o progresso” (D’ADESKY, 2001, p.
27).
3) “Racismo diferencialista do tipo espiritualista”: a ênfase aqui recai na
incompatibilidade de mistura entre os grupos humanos, reconhecidos como portadores
de especificidades identitárias espirituais/culturais que devem ser preservadas de modo
a não se misturarem. Na verdade, a mistura é percebida como algo degradante.
4) “Racismo diferencialista do tipo biomaterialista”: tem como pressuposto o
poligenismo, ou seja, que a humanidade não tem origem comum, sustentando que dos
diversos grupos humanos, as chamadas raças, derivam de espécies distintas, não
havendo assim, qualquer possibilidade de cruzamento entre elas. expressa rejeição à
miscigenação, considerada como uma transgressão às leis naturais.
Para cada tipo de racismo corresponderia um tipo de anti-racismo similar,
comportando outra forma de identidade. Segundo Taguieff (1995, 1988 apud
D’ADESKY, 2001), tem-se, então, os anti-racismos universalistas, que preconizam a
igualdade e unidade da espécie humana, rejeitando a concepção poligenista. Orientam-
se pelos valores universalmente consagrados de respeito ao ser humano, sem
discriminação de qualquer natureza. No dizer de Munanga (1999), é um tipo de
integracionismo que se pauta no indivíduo “universal”. E os anti-racismos
diferencialistas, defensores da conservação das identidades coletivas e a manutenção
das diferenças entre os grupos humanos. Preconizam sociedades plurirraciais e
pluriculturais, onde as culturas diversas poderiam compartilhar um espaço geopolítico,
tendo direitos iguais, conforme Munanga (1999). Portanto, os duplos dos racismos
anteriormente apresentados são:
1) “anti-racismo universalista de tipo espiritualista”: acredita que, em condições
favoráveis, os chamados grupos inferiores podem progredir. O progresso para todos é
23
possível, desde que haja uma educação que combata os preconceitos e as
especificidades culturais e que também racionalize os costumes;
2) “anti-racismo universalista de tipo bio-materialista”: defende que as raças
humanas são realidades temporais, pois acredita que exista a unidade humana.
Pressupõe a existência de uma raça “adiantada”, que estabeleceu um parâmetro a seguir,
a moderna civilização ocidental. Preconiza uma assimilação universal de todos os
grupos, através da miscigenação;
3) anti-racismo diferencialista de tipo espírito-cultural”: preconiza a
preservação das identidades culturais e a proteção das comunidades chamadas naturais,
contra um processo “imperialista” de homogeneização e uniformização;
4) “anti-racismo diferencialista de tipo biomaterialista”: exige respeito às
particularidades culturais, preconiza que as raças têm características
psicossocioculturais específicas, irredutíveis e não repassadas a outra raça. “Respeitar
essas diferenças bioculturais naturais é deixar cada raça desenvolver-se livremente:
‘separadas mas[sic] iguais’ ”(D’ADESKY, 2001, p 29, grifo do autor).
O modelo de Taguieff é um modelo possível para o entendimento da temática
étnico/racial, pois como nos lembra D’Adesky (2001, p. 30), “não existe uma ciência ou
uma disciplina específica sobre os problemas étnicos, menos ainda métodos e
instrumentos de análise apropriados ao estudo dessa questão”. O modelo ora proposto
dá a idéia da complexidade de tal temática. Ao perguntar “Por quê [sic] ser anti-
racista?”, essa complexidade fica ainda mais evidente, pois o autor propõe seis respostas
prováveis: 1) “Em nome das luzes”, a civilização versus a barbárie; 2) “Em nome de
uma verdade científica”, um discurso da verdade; 3) “Em nome do Bem”, um anti-
racismo moral; 4) “Em nome do impedimento do pior”, também da ordem da moral,
porém o foco não é a realização do bem, mas impedir o pior; 5) “Em nome da paz e da
igualdade”, um dever universalista de unificação do gênero humano e 6) Em nome do
direito à diferença”, para preservar a diversidade e respeitar as identidades coletivas
Taguieff (1997, 103-125). O autor não deixa de apontar que os fundamentos, para cada
uma dessas respostas, são contraditórios. Ao suposto antagonismo subentendido entre as
respostas 5) e 6), ou seja entre universalismo e diferencialismo, o autor conclui por
apontar uma solução pragmática: “o anti-racismo não pode ser abordado apenas do
ponto de vista dos seus fundamentos, de mesma forma que o racismo não é redutível a
um problema para o pensamento”. Taguieff ainda enfatiza que o racismo deve ser
24
combatido imperiosamente, no plano da ação, independentemente de ser bem conhecido
ou compreendido.
As dificuldades especulativas encontradas pela tentativa de basear a luta
contra o racismo podem e devem ser postas entre parênteses nos contextos
onde a acção [sic] não puder esperar. [...] A questão agora já não é senão de
oportunidade, e a finalidade reduz-se à obtenção de resultados, através da
adaptação às condições de contexto. A eficácia da estratégia adoptada [sic]
[...] impõe-se como o critério provisório da escolha que incide sobre a
orientação geral – universalista ou diferencialista – da acção [sic] anti-racista,
com a condição de defendermos apenas o direito à diferença, subordinando-o
à exigência de universalidade (TAGUIEFF, 1997, p. 125).
É pertinente o que o autor destaca, quanto ao caráter de urgência da luta anti-
racista, particularmente para a realidade brasileira, uma vez que já se passaram 121 anos
da Abolição da Escravatura e a população negra, em sua maioria, ainda não alcançou
seu status de cidadania. No entanto, deparamos com um tropeço em nossa viagem. O
modelo do Taguieff parece situar-se exclusivamente no plano do simbólico, do
pensamento, da ideologia. Assim, a pergunta a si fazer é mais ampla: como entender o
racismo institucional usando este modelo? Em que uma teoria de racismo, que coloca a
questão da estratégia anti-racista em termos de universalismo ou diferencialismo pode
nos ajudar na implementação de um programa de ação afirmativa? Antes de responder,
atentos à complexidade do fenômeno, façamos um breve exame de uma mudança no
conceito de racismo, estudada por alguns autores.
O racismo atual não é aquele teorizado e praticado entre os séculos XVI e o
século XVIII. Não é fruto da secularização, do positivismo científico e do “pensamento
classificatório”, do mesmo modo teorizado e praticado entre o final do culo XVIII e o
final do século XIX. Tampouco, “uma mitologia mortífera que atingiu o seu resultado
final com o genocídio nazi dos judeus da Europa, cujos traços apenas teríamos de
reconhecer e denunciar”. O racismo é, pois, um fenômeno que se recicla e se re-
contextualiza, como afirma Taguieff (1997, p. 60).
Foi a partir dos progressos das Ciências Biológicas (Genética, Bioquímica,
Biologia Molecular), nos anos 1970, que a concepção de racismo, com base em
explicações biológicas, começou a sofrer mudanças (MUNANGA, 2004). Mas, a
despeito dos avanços da ciência atual, insiste-se na hierarquização entre grupos
humanos, que agora não mais com base na Biologia, mas numa concepção
racializada (biologizada) de certa categoria social em questão, como se a ela fosse
atribuída um estigma.
25
Houve uma tendência, em estudos e textos, de chamar de racismo qualquer ação
discriminatória ou atitude preconceituosa contra mulheres, pobres, homossexuais, etc.
“Trata-se aqui de um racismo por analogia ou metaforização, resultante da biologização
de um conjunto de indivíduos pertencendo a uma mesma categoria social”
(MUNANGA, 2004, p. 26). Essa forma de racismo seria qualificada como “qualquer
atitude ou comportamento de rejeição e de injustiça social” (MUNANGA, 2004, p. 40).
Tal maneira de ver o racismo é muito criticada, como veremos mais adiante.
Kabengele Munanga (2004) considera que a virada mais importante no conceito
do racismo se deu no momento em que se passou a valorizar a diferença, mas no sentido
de manter-se a separação. O principal exemplo que esse autor nos traz é a legislação do
apartheid a partir de 1948, um projeto fundamentado no multiculturalismo, política e
ideologicamente conduzido por interesses de grupos dominantes. Assim, reivindicando
o respeito à diferença e à identidade cultural, o chamado novo racismo prescinde da
noção de raça. Segundo Taguieff (1997, p. 60), tem-se que: “O princípio da
metamorfose ideológica recente do racismo reside precisamente na deslocação da
desigualdade biológica entre as raças para a absolutização da diferença entre as
culturas”.
Para Wieviorka (1996, p. 10), a crise da modernidade “desperta os velhos
demônios do racismo e do nacionalismo”. O autor aponta, que até o início nos anos
1970, havia uma confiança no progresso da humanidade e se acreditava que o racismo
diminuiria gradualmente nos países ocidentais. Porém, mudanças no cenário econômico
e político de alguns países europeus, fez arrefecer essa idéia de um progresso inevitável
e temas como racismo, xenofobia e anti-semitismo voltaram a fazer parte da agenda
política de grande parte da Europa. Segundo o autor, nos anos 1960 no Reino Unido, já
se faziam sentir os ventos de uma mudança que atingiria a maioria das sociedades
européias. Uma das conseqüências da crise econômica foi a expansão de um discurso
racializado no tratamento dos imigrantes, o recrudescimento progressivo do racismo e
da xenofobia em diversos países: Reino Unido, França, ex-República Federal da
Alemanha, Itália, Bélgica e outros. O problema comum a todos esses países é que, a
partir dos anos 1970, nota-se um enfraquecimento da classe operária, aumento do
desemprego, bem como elevação do número de idosos. Esse cenário, de acordo com
Wieviorka, favoreceu um novo espaço para a expansão do racismo, como resultado do
ressentimento da população que se viu preterida das políticas do Estado de Bem-estar,
que não conseguiram atender às demandas sociais. A expansão do neoliberalismo nos
26
anos de 1980, fez agravar a situação de escassez de recursos e isto fez crescer os
nacionalismos e “as questões de identidades”. De acordo com Wieviorka (1996, p. 13),
Esses nacionalismos traduzem o sentimento de que a identidade e a cultura
nacionais encontram-se ameaçadas. Voltam-se contra os imigrantes, mas
também contra os judeus ou os ciganos, para denunciar a invasão cultural que
esses povos possam representar, realçando o caráter irredutível de sua cultura
ou de sua religião. O racismo, então, torna-se cultural.
O racismo foi reformulado e passou-se a combater os imigrantes na Europa e os
chamados grupos étnicos em diversas partes do mundo. É de triste lembrança as guerras
de “limpeza étnica” na antiga Iugoslávia ou em Ruanda, por exemplo.
Esse novo racismo caracteriza-se por seu foco na “cultura” e o na “raça”; na
absolutização da diferença, posta como irreduzível, o que irá definir a não
assimilabilidade entre elas e “por fim, o seu caráter simbólico, no que respeita às regras
da aceitabilidade ideológica (daí uma certa complexidade retórica): trata-se de rejeitar
os diferentes, celebrando ao mesmo tempo a diferença” (TAGUIEFF, 1997, p. 64).
Este racismo sutil e indireto é praticado sob eufemismos como o direito à
diferença, em nome da tolerância e respeito às culturas. O conteúdo para a definição do
novo racismo é diferente para cada país: nos países europeus utilizam-se categorias
culturais fechadas e estáticas, como a categoria raça; nos Estados Unidos,
diferentemente, conforme Guimarães (1999, p. 180)
o “novo racismo” estaria mais próximo do racismo à brasileira, no qual
categorias biológicas são ainda utilizadas para discriminar e excluir, mas tais
categorias não são reconhecidas ou confessadas, escondendo-se sob
codinomes, alusões e figurações. No Brasil, mas não nos Estados Unidos, a
marca principal desse racismo é que, em vez de categorias culturais, como
religião ou valores, serem consideradas irredutíveis e irremovíveis, é uma
categoria econômica a classe ou a posição econômica que é considerada
responsável pela discriminação ou exclusão social.
Dado este novo perfil do racismo, transformado em culturalismo e
diferencialismo, Taguieff (1997) chama a atenção para a exigência de atualização da
luta anti-racista, alertando que não servem mais os argumentos tradicionais de luta
contra o racismo doutrinal, pois já não se trata mais de um racismo de cunho “biologista
e inigualitarista”, pois se está no campo do racismo simbólico, afirma. É sim um
racismo sutil, implícito e velado, pois não segue uma cartilha explicitamente racializada,
acompanhada de manifestações ou reivindicações, reconhecíveis e conseqüentemente
27
condenáveis. Taguieff (1997, p. 58) afirma que, de fato, “ele é uma formação de
compromisso entre pulsões de hostilidade e o respeito da norma anti-racista
interiorizada pelo efeito da educação”. É um racismo que age no campo do simbólico,
“como uma maneira de contornar as legislações anti-racistas e de evitar ser identificado
socialmente como ‘racista’” (TAGUIEFF, 1997, p. 59).
Para pensarmos a ação anti-racista, é oportuno dar uma resposta à questão que
foi formulada logo acima. Taguieff (1995) coloca as opções de luta contra o racismo,
nos termos de escolha entre universalismo e diferencialismo. Consideramos que o
modelo é interessante, porém, no contexto brasileiro, não oferece espaço para a
implementação de programas de ação afirmativa. Uma vez que não sinaliza para o
combate ao racismo no plano material, ou seja, das desigualdades, como pode nos
ajudar na implementação de um programa de ação afirmativa? Isto porque, se de um
lado, tem-se uma negação às políticas de ação afirmativa, a partir de uma concepção
liberal subjacente à orientação universalista (PAIXÃO, 2008, p. 37), de outro a noção
de diversidade, que fundamenta uma perspectiva diferencialista, é um argumento frágil
para a defesa dessas políticas, em função da pulverização de beneficiários que
acarretaria, como atesta Feres Júnior (2006, p. 58).
O modelo de Taguieff (1995) pode permitir o entendimento do novo racismo na
Europa ou nos Estados Unidos da América, mas para o caso brasileiro, é de maior
utilidade uma concepção que aponte também para as desigualdades sociais e não para as
diferenças culturais. Além do mais, por ter como foco as diferenças culturais, um
racismo culturalista pode conduzir a uma diluição do conceito, favorecendo uma
apreensão fragmentada da realidade fenomêmica, como assinala o próprio Taguieff
(1997, p. 61). Essa falta de precisão conceitual leva Guimarães (1999) e Munanga
(2004) se alinharem ao denunciar o que consideram o risco de banalização dos efeitos
do racismo. Para Munanga (2004, p. 40), isto levaria a um “esvaziamento da
importância ou da gravidade dos efeitos nefastos do racismo no mundo”. Guimarães
(1999, p. 36) salienta que considerar racismo qualquer tipo de discriminação é
transformá-lo “numa metáfora, numa imagem política”.
28
Ao examinar a conceituação de John Rex
13
, no que diz respeito às condições
gerais que fundamentam a hierarquização social, Guimarães (1999) afirma que tais
condições se aplicariam não ao campo das relações raciais, mas a todo e qualquer
hierarquia social: gênero, classes, grupos religiosos, etnias, raças e outros. Pode-se
acrescentar a este rol, a hierarquia por idade. Porém, Guimarães (1999, p. 28) chama a
atenção para o caráter reificado que tais formas de desigualdade podem assumir, ou
seja, serem “justificadas em termos do pretenso caráter natural da ordem social”.
Segundo Guimarães (1999), a conseqüência dessa banalização é a perda de
precisão conceitual no estudo das relações raciais. Pois, que se considerar que os
grupos sociais não estão submetidos, ao mesmo tempo e da mesma forma, às condições
de desigualdade.
Apesar do fato de todos os grupos humanos considerarem “naturais” as
características pelas quais eles se diferenciam, uns dos outros, e ademais de
estarem todos submersos em situações de desigualdade de poder, de direitos e
de cidadania, o fato é que as teorias e os critérios empregados para distinguir
os grupos não são sempre os mesmos, nem m, todos, os mesmos
fundamentos e as mesmas conseqüências (GUIMARÃES, 1999, p. 29).
Da mesma forma, Rosemberg e Andrade (2008), defendendo um conceito de
heterocronia ou não-sincronia, pensam um modelo mais complexo, não convergente e
não paralelo de análise e afirmam que os vetores da desigualdade não atuam
necessariamente no mesmo sentido. Alertaram que é necessário precisão para se estudar
as diferentes formas de desigualdade, considerando as especificidades de cada
identidade social. Para os autores, as hierarquias de gênero, raça, classe e idade se
articulam de forma complexa, não sendo redutíveis umas às outras. Segundo Rosemberg
(2001), tem-se buscado, muitas vezes, no Brasil, uma compreensão simultânea dessas
hierarquias, fazendo-se uma associação linear entre os eixos de desigualdade,
dificultando uma compreensão diferenciada delas. Portanto, levar em conta um modelo
não paritário e associativo abre a possibilidade de se apreender a complexidade e as
contradições nas diversas relações inter e intra-institucionais. Para os autores isto quer
dizer
13
Sociólogo sul-africano que foi membro do comitê de experts da Unesco sobre condição da raça e do preconceito
racial, em 1967 e foi presidente do Comitê de Investigação da Associação Sociológica Internacional (www.john-
rex.com). Para Rex, qualquer hierarquia social estaria fundamentada em: “(1) uma desigualdade estrutural entre
grupos humanos convivendo num mesmo Estado; (2) uma ideologia ou teoria que justifica ou respalda tais
desigualdades” (GUIMARÃES, 1999, p. 28).
29
[...] que a interseção dessas relações pode levar a interrupções,
descontinuidades, alterações ou incremento do impacto original das
dinâmicas de raça, classe, gênero ou idade em dado contexto social ou
institucional. Nem as pessoas individualmente, nem os movimentos sociais
desenvolvem em perfeita sincronia consciência de classe, gênero, raça e
idade. Por exemplo, a busca de superação de desigualdades de gênero pode
ignorar, ou mesmo apoiar-se, em desigualdades de raça. Além disso, é
possível supor que as desigualdades não são sincrônicas nos diversos campos
sociais e nos diversos momentos da trajetória de vida de uma pessoa
(ROSEMBERG e ANDRADE, 1998, p. 434).
Sem esgotar o conceito de racismo que propõe, Guimarães (1999, p. 29) destaca
também a necessidade de um recorte ideológico
14
, considerando uma teoria que tenha
“raça” como pressuposto. Deste modo, toma emprestado de Kwame Anthony Appiah o
termo “racialismo”. Appiah (1997), procurando distinguir as diversas doutrinas que
disputam o termo “racismo” no século XIX, estabelece três classificações, de acordo
com seu entendimento. A primeira, o “racialismo”, seria uma teoria das “raças”, serviria
de pressuposto para as outras doutrinas. Segundo essa doutrina
[...] existem características hereditárias, possuídas por membros de nossa
espécie, que nos permitem dividi-los num pequeno conjunto de raças, de tal
modo que todos os membros dessas raças compartilham entre si certos traços
e tendências que eles não têm em comum com membros de nenhuma outra
raça. Esses traços e tendências característicos de uma raça constituem,
segundo a visão racialista, uma espécie de essência racial; e faz parte do teor
do racialismo que as características hereditárias essenciais das “Raças do
Homem” respondam por mais do que as características morfológicas visíveis
cor da pele, tipo de cabelo, feições do rosto – como base nas quais
formulamos nossas classificações informais.
Para Appiah (1997, p. 33), o racialismo é uma crença ou doutrina, que, por
operar coma idéia de raça, não é necessariamente perigosa “mesmo que se considere
que a essência racial implica predisposições morais e intelectuais”.
A segunda doutrina, chamada de racismo extrínseco”, considera que, membros
das diferentes raças são moralmente distintos entre si em conseqüência da chamada
essência racial que cada qual tem. “A base da discriminação que os racistas extrínsecos
fazem entre os povos é sua crença em que os membros das diferentes raças diferem em
aspectos que justificam o tratamento diferencial; [...]” (APPIAH, 1997, p. 33, grifo do
autor).
a terceira doutrina, o “racismo intrínseco”, estabelece “(...) diferenças morais
entre os membros das diferentes raças, por acreditarem que cada raça tem um status
14
No sentido crítico, pois são formas “que respaldam as desigualdades sociais e as justificam” (GUIMARÃES, 1999,
p. 29).
30
moral diferente, independentemente das características partilhadas por seus membros”.
Por isto mesmo, defendem seu direito de preferir alguém do seu próprio grupo e não de
outros, como sustenta Appiah (1997, p. 33).
Diferentemente de Appiah, no entanto, Guimarães (1999) considera que a
“essência racial” pode ser definida pela cultura, tanto na percepção das marcas físicas e
sua correlação com valores morais, psicológicos e simbólicos, quanto nas regras de
transmissão dessa “essência”.
[...] Appiah parece acreditar às vezes que essa “essência racial” tem
características absolutas que, para ele, coincidem com a definição norte-
americana de “raça”. Para mim, ao contrário, essa “essência” é definida pela
cultura, utilizando diferentes regras para traçar filiação e pertença grupal, a
depender do contexto histórico, demográfico e social (GUIMARÃES, 1999,
p. 28).
Guimarães (1999) constrói argumentos contra um realismo ontológico para a
análise dos fenômenos, defendendo a necessidade de compreender os sentidos
subjetivamente intencionados das ações sociais. Para ele, “Não é necessário reivindicar
nenhuma realidade biológica das ‘raças’ para fundamentar a utilização do conceito em
estudos sociológicos” (GUIMARÃES, 1999, p. 31). Foi tendo por base essas reflexões
de Guimarães (1999), que adotamos, neste estudo, “a perspectiva nominalista da
Sociologia que considera raça como uma construção social que ganha sentido ao ser
utilizada para orientar e compreender classificações sociais hierarquizadas”
(ROSEMBERG, mimeo 1).
Alguns estudiosos preferem adotar o conceito de etnia pensando, assim, fugir de
um discurso biologizante, o que nem sempre acontece
15
. Falar de etnia, no entanto,
pressupõe o uso do termo numa perspectiva de cultura. Mas, como nos ensina Munanga
(1988, p. 143), é muito complicado pensar o negro no Brasil como um grupo definido
por uma cultura. Incluir o Sergio Costa ? Para explicar seu posicionamento, Munanga
(2004, p. 30) toma emprestado o conceito de população de Jean Hiernaux, que o
entende como “um conjunto de indivíduos que participam de um mesmo círculo de
união ou de casamento e que, ipso facto, conservam em comum alguns traços do
patrimônio genético hereditário”.
Assim, Munanga assinala que prefere usar os conceitos Negros” e “Brancos”,
numa acepção “político-ideológica” ou os conceitos de “População Negra” e
15
O termo ‘etnia’ possui fama atualmente na França, precisamente por não poder mais ser pensado de outro
modo a não ser como substituto da palavra ‘raça’” (POUTIGNAT E STREIFF-FENART, 1998, p. 43).
31
“População Branca”. Em sua argumentação, o autor aponta para o encontro de culturas
e para o processo de miscigenação ocorrido no Brasil que dão sustentação à idéia de que
aqui temos populações e não raças. Questiona, ainda, uma tendência a se estabelecer
ligações diretas entre biologia e cultura ou raça e cultura, que deixa de considerar que a
“etnia não é uma entidade estática”.
Deste modo, por considerar que a etnia tem historicidade e evolui no tempo e no
espaço, Munanga chama a atenção para o fato de que é um equívoco pensar uma “etnia
branca” ou uma “etnia negra”, pois não levaria em conta as diferenças geográficas e
culturais da população branca e da população negra. Por isto mesmo, também seria
equivocado pensar uma cultura “negra” ou “branca” no singular. O autor julga
pertinente pensar que, no Brasil contemporâneo, estamos todos imersos numa “cultura
de massas, produto da tecnologia, dos meios de comunicação e de consumo, [...]”
(MUNANGA, 2004, p. 31).
Nesse sentido, Sansone (2004, p. 23) traz uma complementação importante, a
partir da pesquisa que realizou na região metropolitana de Salvador entre os anos de
1992 e 1994. Para esse autor, a cultura negra é resultado de um conjunto de relações
sociais, portanto
[...] nem todas as pessoas que podem ser definidas como negras num
contexto específico participam da cultura negra o tempo todo. Por essa razão,
qualquer definição que dermos da cultura negra e que tente apontar para uma
essência supostamente universal das coisas negras será um cobertor curto,
que não conseguirá cobrir todos os grupos dentro da população negra.
Neste momento que informamos que não utilizaremos o conceito etnia e que
explicitamos o conceito de raça que assumimos neste trabalho, destacamos, também,
que optamos por uma teoria de racismo que nos parece mais adequada à compreensão
do racismo no Brasil, que está atenta para as desigualdades estruturais e que também
permita incorporar estratégias de anti-racismo que incluam políticas de ação afirmativa.
Seguindo os passos dos pesquisadores do NEGRI, conceituamos racismo como
uma ideologia, uma estrutura e um processo pelo qual, grupos específicos,
com base em características biológicas e culturais verdadeiras ou atribuídas,
são percebidos como uma raça ou grupo étnico inerentemente diferente e
inferior. Tais diferenças são, em seguida, utilizadas como fundamentos
lógicos para excluírem os membros desses grupos do acesso a recursos
materiais e não materiais. Com efeito, o racismo sempre envolve conflito de
grupos a respeito de recursos culturais e materiais. E opera por meio de
regras, práticas e percepções individuais, mas por definição, não é uma
características de indivíduos. Portanto, combater o racismo não significa lutar
32
contra indivíduos, mas se opor às práticas e ideologias pelas quais o racismo
opera através das relações culturais e sociais. Na ideologia dominante, em
geral não se conhece que o racismo seja um problema estrutural. [...] o termo
racismo é reservado apenas a crenças e ações que apóiam abertamente a idéia
de hierarquias de base genética ou biológica entre grupos de pessoas. O
problema dessas definições restritas de racismo é que elas tendem a fazer
vista grossa à natureza cambiante do racismo nas últimas décadas. O discurso
do racismo está se tornando cada vez mais impregnado de noções que
atribuem deficiências culturais a minorias étnicas. Essa culturalização do
racismo constitui a substituição do determinismo biológico pelo cultural. Isto
é, um conjunto de diferenças étnicas reais ou atribuídas, representando a
cultura dominante como sendo a norma, e as outras culturas como diferentes,
problemáticas e, geralmente, também atrasadas (Essed, 1991, p. 174 apud
ROSEMBERG, BAZILLI e SILVA, 2003, p. 128).
Chamando a atenção para o campo das desigualdades, Rosemberg (mimeo 1 e 3)
nos alerta que o racismo brasileiro opera ao mesmo tempo nos planos simbólico e
material. No plano simbólico, o racismo manifesta-se através da aceitação da crença da
superioridade, entendida como natural, de um grupo racial sobre o outro, por exemplo,
na consideração da inferioridade do negro em relação ao branco. Sendo o plano das
relações horizontais
16
, temos a expressão aberta, latente ou velada, de preconceitos,
provocando efeitos deletérios e dilacerantes sem suas vítimas, mas que não é o bastante
para explicar toda a desigualdade racial no Brasil, como aponta Rosemberg (mimeo 3).
No plano estrutural ou material, os diferentes segmentos raciais têm, sistematicamente,
acesso desigual a bens materiais e o materiais, ou seja, aos recursos e equipamentos
disponíveis na sociedade.
No contexto brasileiro, o caráter de urgência a que faz alusão Taguieff (1997)
parece-nos, portanto, orientar-se para o combate às desigualdades raciais. Trataremos,
mais à frente, das desigualdades de acesso ao ensino superior.
A luta anti-racista dos grupos do movimento negro brasileiro tem sido orientada
para o combate ao racismo tanto na dimensão simbólica quanto estrutural. A demanda
por inclusão e valorização da história da África nos currículos escolares, que resultou na
aprovação da Lei 10.639
17
, é um exemplo de luta no campo simbólico. Por outro lado,
também aquelas estratégias que atacam o racismo estrutural, como por exemplo, as
políticas de ação afirmativa, que conceituaremos no Capítulo 3 e que têm sido
consideradas formas privilegiadas de combate às desigualdades, tanto por militantes
quanto por agentes governamentais (ROSEMBERG, 2005, mimeo 8), apesar da
16
Telles (2003, p. 25-26) chama de relações horizontais o eixo simbólico do sistema de relações raciais brasileiras e
de relações verticais, o eixo que trata das desigualdades raciais.
17
Foi alterada pela Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, que acrescentou a obrigatoriedade da inclusão curricular
da temática “História e Cultura Indígena.
33
variedade de conceituações e justificativas que a sustentem (Moehlecke, 2009; Feres Jr.,
2006). Vejamos, a seguir, uma panorâmica sobre as relações raciais no Brasil.
34
CAPÍTULO 2 – O racismo no Brasil
No Brasil, muito se convive com um suposto racismo sutil
18
, como aquele
que vem se configurando tanto na Europa como nos EUA, sob a denominação de novo
racismo. Durante muitos anos, argumentou-se que o Brasil não é um país racista (ainda
hoje, quem o negue), tendo como contraponto as situações de conflitos raciais em
países como a África do Sul e os EUA. Pelo fato de não ter ocorrido em terras
brasileiras uma segregação racial oficial ou leis racistas, argumenta-se que o racismo
não faz parte de nossa realidade. O que se teria no máximo, seria um preconceito de cor,
que se limitaria à esfera do privado. Porém, ao mudarem a perspectiva teórica e de
análise, estudiosos das relações raciais chegaram a conclusões diferentes a essa. Em um
breve excurso histórico poderemos ter uma visão panorâmica dessa nossa configuração
tão singular, no tocante às relações raciais.
A despeito de sofrer grande influência das teorias raciais produzidas por
cientistas ocidentais, europeus e norte-americanos, tanto no final do século XIX quanto
no século anterior, intelectuais brasileiros acabaram por adotar um pensamento original
sobre a mestiçagem, ao selecionarem o que naquelas teorias raciais ocidentais era mais
apropriado à condição de país mestiço. No Velho Mundo, a mistura de raças era vista
com maus olhos, via de regra, pela intelectualidade. Havia aqueles que teorizavam
contra a mestiçagem, alegando que brancos e negros eram de espécies diferentes e que o
efeito de um cruzamento entre ambos resultaria em anomalias e monstruosidades. Neste
grupo, Munanga (1999, p. 25) inclui Voltaire, Maupetius, Julien Offray de la Mattrie,
Edward Lang e até mesmo Kant. No grupo oposto, que considerava a unidade da
espécie e que via como positiva a mestiçagem, encontramos Buffon e Diderot. Seyferth
(2002, p.27) pondera que a atribuição de degenerescência à mestiçagem foi um dos
principais dogmas do chamado racismo científico, que o ficaram restritos ao mundo
acadêmico, tendo sido também disseminados no meio da população em geral. Silva
(2005) traz uma contribuição importante neste sentido:
A particularidade do racialismo brasileiro foi reestruturar as teorias raciais
européias ao contexto local, privando-as da concepção de necessária
degenerescência causada pela miscigenação. A doutrina do branqueamento
pendeu para uma explicação inversa ao racismo científico. Mantendo a
hierarquia em relação ao branco e apontando-o como ideal, considerou que a
inferioridade da raça negra seria abrandada com a miscigenação, à medida
18
“Racismo cordial” é o nome do livro editado pelo jornal Folha de S. Paulo e o Instituto de Pesquisas Datafolha,
resultado da pesquisa em empreenderam em 1995.
35
que os traços fenotípicos deixassem de ser tão marcados. Essa concepção
influenciou para um alto grau de importância da cor da pele na
hierarquização das pessoas (SILVA, 2005, 49, grifo do autor).
Como informa Silva (2005), a ambivalência de posições em relação à
miscigenação, que dominava o debate europeu, também dividiu a intelectualidade
brasileira. Do lado contrário à mistura das raças estavam João Ribeiro, Nina Rodrigues,
Euclides da Cunha e Monteiro Lobato e do lado favorável, João Batista de Lacerda,
Sílvio Romero entre outros. Acabou prevalecendo esta última posição, mas com a
crença de que o elemento branco se sobreporia às demais raças, consideradas inferiores.
Diversos foram os autores que reiteraram a imagem de um Brasil mestiço, que teria o
branco como elemento superior da sua constituição. No entanto, do cruzamento do
elemento branco com os grupos negro e indígena, defendiam a idéia que o país
resultaria cada vez mais branco, com o passar dos anos: a chamada “solução brasileira”
(Skidmore, 1976, p. 81 apud SILVA, 2005, p. 49). Telles (2003, p. 46), apoiando-se em
Skidmore, traz um bom exemplo do que estamos falando:
[...] em 1912, João Batista Lacerda
19
, certo de que a miscigenação acabaria
por produzir indivíduos brancos, previu que em 2012 a população brasileira
seria composta por 80% de brancos, 3% de mestiços, 17% de índios e
nenhum negro.
Do século XIX ao início do século XX, prevaleceu esse pensamento brasileiro
de supremacia branca, como nos informa Telles (2003). Pensamento que, no início, foi
influenciado por uma perspectiva eugênica neo-lamarckiana. Linha teórica de origem
francesa, que respaldava a crença na inferioridade dos não-brancos, mas que permitia
aos intelectuais brasileiros defender o processo de miscigenação, como possibilidade de
superação dessa inferioridade. No entanto, a solução que propunham, em função de “sua
sensibilidade às teorias de degeneração racial e tropical” (TELLES, 2003, p. 46), era o
branqueamento pela mistura entre brancos, negros e indígenas.
Mas a doutrina do branqueamento não ficou apenas na intenção. Esse
pensamento foi o sustentáculo da política de imigração no Brasil, como nos lembram
Silva (2005) e Telles (2003, p. 46): “O branqueamento prescrito pelos eugenistas tornar-
se-ia sustentação principal da política de imigração do Brasil”. Isto porque acreditavam
que sendo o estoque branco superior, à medida que se misturassem geneticamente com a
população negra, esta desapareceria, conforme acima ilustrado na previsão de Lacerda.
19
João Batista Lacerda foi médico, antropólogo e diretor do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, até 06 de agosto de
1915. (VERGARA, 2005, p. 511)
36
A idéia era “tornar o país mais claro” (SCHWARCZ, 1998, p. 187). Também, como
política de Estado, havia a interdição à imigração negra e asiática, esta pelo menos até
19l0. Ao situar a história demográfica do Brasil, Telles (2003, p. 47) evidencia os
efeitos da “grande imigração européia” na composição racial brasileira: “A porcentagem
da população branca em relação à população total do Brasil aumentou de 37% para 44%
entre 1872 e 1890. A população mestiça decresceu de 44% para 41% e a população
negra caiu de 19% para 15%”.
Telles (2003) aponta mudanças nas visões sobre raça no Brasil, que ocorreram
nas décadas de 1910 e 1920, em função da perda de espaço do grupo neo-lamarckiano
na comunidade eugenista, para uma nova geração de acadêmicos, inspirados por uma
perspectiva mendeliana, que o davam tanto crédito ao conceito de raça quanto seus
parceiros no exterior. Além do mais, por influência culturalista, Edgar Roquete-Pinto
fez uma consistente defesa da mestiçagem, na Primeira Conferência Eugênica
Brasileira, em 1929. Tais fatos, além da forte presença de mestiços na elite brasileira,
impediram o Brasil de seguir o caminho trilhado por países como os EUA e a
Alemanha. Conforme Telles (2003, p. 49-50),
[...] a variante da eugenia relacionada à higiene pública, compatível com a
mistura de raças e com o mito da democracia racial, ganhou adeptos, o que
não ocorreu com a eugenia reprodutiva extremista ou higiene racial ao estilo
nazista.[...] a maior parte da elite brasileira e muitos eugenistas haviam
começado a exaltar as virtudes da miscigenação brasileira, incluindo a
possibilidade de harmonia racial e união.
Sem deixar de ser valorizada , a brancura deixa de ser o objetivo. A mestiçagem
passou a ser encarada como algo distintivo da nação brasileira. O Brasil passou a ser
entendido a partir da imagem de um grande rio (europeu), que absorve os pequenos
afluentes (africano e indígena). O país visto como um “cadinho de raças”, um lugar
onde as raças se misturam, se fundem. Tornou-se comum a argumentação a favor da
existência de uma convivência harmoniosa entre as três raças. Tese fortemente presente
na obra de Gilberto Freyre, o que contribuiu para a propagação, na sociedade brasileira,
da idéia da existência de uma “democracia racial” no país. Silva (2005, p. 54) nos
lembra que
A concepção de que o Brasil era um país sem barreiras que impediam a
ascensão social firmou-se internamente. O país esforçou-se para divulgar esta
imagem no exterior, o ideário de que no Brasil as relações raciais eram
cordiais, e que não existiam demarcações sociais baseadas em critérios de
raça. Tal ideário foi, após, a década de 1930, absorvido rapidamente na
sociedade brasileira, e passou a ter uma ampla aceitação.
37
A obra de Gilberto Freyre, em 1930, deu o tom dessa visão otimista acerca da
mestiçagem (TELLES, 2003, p. 50). Segundo Schwarcz (1998, p. 178), [...] o mestiço
transformou-se em ícone nacional, em um símbolo de nossa identidade cruzada no
sangue, sincrética na cultura, [...]”. Acrescenta, no entanto, que a valorização se deu no
plano retórico, não de fato. Opinião concordante com Telles (2003) que, ao analisar as
relações raciais da América Latina, afirma que, apesar do discurso positivo em torno da
mestiçagem, as “ideologias”
20
não evitaram as injustiças. Ou seja, conforme veremos
adiante, a população mestiça autodeclarada parda situa-se em plano equivalente ao da
população de autodeclarados pretos no acesso aos bens sociais.
As primeiras organizações do movimento negro, por volta dos anos 1930,
compartilhavam desse ideário não conflitivo, pois também acreditavam que o Brasil
seria uma democracia racial. Diversos autores, tais como Fernandes (1964 apud PINTO,
1987), Nogueira (1998), Guimarães (1999), D’Adesky (2001), Seyferth (2002), Telles
(2003) entre outros, apontam o caráter assimilacionista do movimento negro brasileiro
naquele período. Guimarães (2002, p. 146) apresenta um trecho de uma declaração de
princípios do Teatro Experimental do Negro (TEN), organização que defendia os
direitos dos negros, formada em 1944, onde aparece expresso o que ele nomeou de
consenso racial-democrático: “[...] considerando que o Brasil é uma comunidade
nacional onde tem vigência os mais avançados padrões de democracia racial, apesar da
sobrevivência, entre nós, de alguns restos de discriminação”.
Uma das conseqüências da valorização do mestiço foi a desafricanização da
cultura. Para Schwarcz (1998, p. 196-197), esse foi o processo de abrasileirar aqueles
elementos culturais que estavam relacionados aos negros, tais como a feijoada, a
capoeira, que se tornaram representações simbólicas da mestiçagem, além do samba, do
carnaval. Além do fim da perseguição policial ao Candomblé e da escolha de uma santa
“mestiça como os brasileiros” para padroeira do Brasil, Nossa Senhora da Conceição
Aparecida. Também ocorreu a paulatina associação do futebol aos negros.
Esse culto à mestiçagem implicou em recusa à identidade étnica do negro
21
(BANDEIRA, 1990, p. 21), o que resultou numa negação da cultura e também de suas
20
Concepção neutra de ideologia, conforme teoria de ideologia de John B. Thompson (1995).
21
“A recusa à identidade étnica dos negros tem sido negligenciada em todo o intercurso da história, pela sociedade e
pelo Estado. Essa recusa engendrou mecanismos ideológicos e práticos de fragmentação da identidade, técnica social
de subordinação e a obediência do negro. As comunidades negras rurais são, neste sentido, expressões objetivas de
resistência e etnicidade” (BANDEIRA, 1990, p. 21).
38
heranças históricas. A despeito de se levar em consideração as contribuições dos
estoques africanos e indígenas, a cultura ocidental foi considerada melhor. Tais medidas
não foram sem conseqüências para o “indivíduo negro”, como bem salienta D’Adesky
(2001, p. 69):
[...] a indiferenciação racial através da mistura sistemática que privilegia o
tipo branco e, secundariamente, o tipo moreno mestiço, torna-se, para o
negro, [sic] exigência de despertencimento, dever de ruptura, idealização de
abertura. Em suma, a mestiçagem, que aparentemente aproxima e une, vem
ferir o indivíduo negro que não corresponde ao tipo ideal, o qual, despido de
semelhanças, supõe a exclusão e a denegação da identidade.
Ocorreria uma “negação por indiferenciação racial do negro” que é
acompanhada de uma segunda negação, que é cultural. É analisando esta dupla negação
que D’Adesky (2001) aponta as características do racismo brasileiro, nos anos de 1930,
a partir do modelo proposto por Taguieff, acima mencionado. O caráter universalista do
tipo espiritualista pode ser identificado naquilo que o racismo brasileiro elegeu como
valores superiores e universais, quer dizer, a cultura ocidental e o seu caráter anti-racista
universalista do tipo biomaterialista, no seu aspecto assimilacionista, através do
reconhecimento da unidade da espécie humana e da fusão de todos os grupos raciais,
por meio da mestiçagem. Assim, nos anos 1930, o processo de miscigenação foi
valorizado, mas tendo-se em mente o branqueamento da população e da cultura. Este é o
foco deste anti-racismo, não havendo lugar para uma total exclusão, pois as raças
consideradas inferiores teriam a chance de progredir, desde que fossem assimiladas ou
se miscigenassem. Para D’Adesky (2001), considerar esses dois eixos de análise
permite identificar o que ele chamou de “evidência consensual da mestiçagem”, que
apesar de não ser uma unanimidade
[...] mantém um insidioso racismo antinegro e antiindígena que jamais pode
ser praticado ou falado abertamente, sob pena de se romper um consenso
baseado tanto no racismo quanto no anti-racismo universalista mixófilos.
Nesse sentido, a mestiçagem, quando não é produto da “ordem natural”, deve
ser compreendida como uma prática e uma configuração ideológica tanto
anti-racista quanto racista, devido à sua indução enquanto norma valorizada,
quase imperativa, e enquanto prática discriminatória sutil (D’ADESKY
2001, p. 73).
É importante destacar que esse caráter assimilacionista do racismo brasileiro
atingiu também a gama de imigrantes que para aqui vieram. Como nos revela Seyferth
(2002, p. 36), “esperava-se a assimilação cultural e física dos europeus e o
desaparecimento dos negros e mestiços mais escuros, num prazo que variava, conforme
39
o autor, entre três gerações e três séculos”. Mas a “nação imaginada”, principalmente a
partir do Estado Novo (1937-1945) e da Segunda República (1945-1964), conforme
Guimarães (2002, p. 117), comportava um paradoxo, nos alerta Seyferth (2002, p. 36):
deveria haver a ocidentalização da população, com seu conseqüente clareamento mas,
ao mesmo tempo, os imigrantes deveriam se misturar, fundir-se, assimilando elementos
das culturas negras e indígenas. O objetivo era abrasileirar todos. Segundo Nogueira
(1998, p. 244/245), o estrangeiro seria aceito na sociedade à medida que deixasse de ser
estrangeiro.
Estudos, patrocinados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (UNESCO), permitiram revelar uma realidade diferente daquela até
então veiculada sobre as relações raciais no Brasil. Esses estudos, realizados no período
de 1951 a 1953, na Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco
22
, foram motivados
pelo interesse da instituição internacional de conhecer a suposta experiência exitosa de
relações raciais harmônicas existentes no Brasil. A idéia básica da organização era de
que o modelo brasileiro poderia ser um alento para que surgissem formas mais
democráticas de convivência racial no mundo, que ainda tinha viva a lembrança das
conseqüências trágicas da Segunda Guerra Mundial.
Conforme Schwarcz (1998, p. 202), a UNESCO esperava que esses “estudos
fizessem um elogio da mestiçagem e enfatizassem a possibilidade de convívio
harmonioso entre as etnias nas sociedades modernas”. Mas o que se viu não foi bem
isto. Se alguns estudos ainda reproduziram a maneira até então predominante de se
encarar as relações raciais brasileiras, outros caminharam no sentido da revisão crítica
dos modelos interpretativos e metodológicos. Estudos importantes, como os de Costa
Pinto, no Rio de Janeiro, Roger Bastide e de Florestan Fernandes, em São Paulo,
trouxeram à tona as desigualdades sociais entre brancos e negros no Brasil, apontando,
dessa forma, as falácias do mito: no lugar de democracia, discriminação; no lugar de
relações harmoniosas, uma “etiqueta racial” que camuflava o preconceito.
Guimarães (1999, p 75) examinou alguns estudos realizados no período de 1940
a 1960, sobretudo aqueles relacionados ao Projeto UNESCO, levando em conta o que
chamou de “diferenças ideológicas”, “diferenças interpretativas” e “diferenças
teórico/empíricas”. O autor concluiu que, apesar das divergências interpretativas, as
22
Na Bahia os estudos foram desenvolvidos por Thales de Azevedo e Charles Wagley; no Rio de Janeiro, por Costa
Pinto; em São Paulo, por Roger Bastide, Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, Virgínia Leone Bicudo e Aniela
Ginsberg e em Pernambuco, por René Ribeiro (SILVA, 2005, p. 54).
40
chamadas escolas “baiana” e “paulista” tenderam mais a pontos de convergência do que
se pensava encontrar, quais sejam: chegaram a um consenso quanto à existência de
preconceito racial no Brasil, bem como à existência de uma democracia racial, enquanto
ideologia e que, a despeito de diferenças regionais, permitiu generalizar as conclusões
que encontraram para o restante do país.
De acordo com Silva (2005, p. 55), o Projeto UNESCO contribuiu de maneira
expressiva para a crítica à idéia de “democracia racial” e também para a transformação
da maneira de se fazer Ciência Social no Brasil, particularmente no campo da
Sociologia. Neste sentido, Schwarcz (1998, p 202) considera que foram fundamentais e
reveladores os estudos empreendidos por Florestan Fernandes, que tiveram como foco o
estudo das desigualdades, a problematização da noção de “tolerância racial”, a
substituição de estudos culturalistas por interpretações sociológicas sobre o lugar do
negro nas sociedade de classes.
Para Guimarães (1999, p. 100), os estudos patrocinados pelo Projeto UNESCO
possibilitaram a construção de uma nova agenda para o estudo das relações raciais no
Brasil. Se alguns brasilianistas e pesquisadores brasileiros enfatizavam anteriormente o
caso brasileiro a partir de uma perspectiva universalista, comparativista e contrastante, a
grande contribuição do projeto foi estabelecer “uma problemática sociológica das
relações raciais propriamente brasileira”, principalmente com as pesquisas de
Fernandes.
Entretanto, as inovações introduzidas e enunciadas por Fernandes, nas Ciências
Sociais e no estudo das relações raciais no Brasil, não ficaram sem crítica por parte das
lideranças do movimento negro, pois a ênfase dos seus estudos supunha que as
desigualdades raciais eram um epifenômeno da luta de classes. Tal abordagem era
coerente com os pressupostos marxianos de Fernandes, mas que se chocava com o foco
do movimento negro nas questões mais voltadas para a cultura e para a identidade
negra. As conclusões de Fernandes, ao desmascarar o mito da democracia racial, no
entanto, foram de grande valia para o movimento negro na sua luta contra a opressão e
as desigualdades impingidas ao negro e na luta pela defesa de sua cidadania, a partir dos
anos de 1970.
Naquela época, a ditadura militar empunhava, de maneira dogmática, a bandeira
de um Brasil em que as relações raciais se davam de maneira harmoniosa e cordial, e
reprimia as manifestações em prol dos direitos de cidadania do negro, bem como
41
procurava neutralizar a influência de importantes estudiosos. Como nos lembra Telles
(2003, p. 60):
De 1964 ao final dos ano 70, à medida que o governo militar consolidava o
seu poder autoritário, os estudos sobre raças feitos por brasileiros foram
aniquilados, pois muitos dos mais influentes estudiosos de raça no Brasil
haviam sido exilados. Os estudos sobre essa questão haviam se tornado um
perigo à segurança pessoal.
Foi um momento de grande embate, pois o movimento negro defendia a tese da
existência de discriminação racial e não de classe, que se contrapunha ao pensamento da
sociedade, de modo geral e de grande parte da esquerda brasileira, além de ir contra o
ideário hegemônico que estava em voga deste 1930, de acordo com Silva (2005, p. 57).
Este ideário da democracia racial prevaleceu até 1970, apesar das conclusões contrárias
do Projeto UNESCO, as quais não foram imediatamente assimiladas pela população
brasileira, mas que inspirou diversos estudos, a partir dos anos 1970, que tinham como
objetivo o desvelamento do racismo brasileiro. Schwarcz (1999, p. 287) informa que,
nas décadas de 1980 e de 1990, os estudos demonstraram como o preconceito de cor
não estava exclusivamente atrelado a uma questão econômica e social; ao contrário,
persistia como um dado divisor social”.
Os estudos de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle e Silva (apud GUIMARÃES,
1999) evidenciaram que as desigualdades referentes às oportunidades sociais e
econômicas entre brancos e negros (pretos e pardos) apresentavam um componente
racial, que não deixava dúvidas. Hasenbalg (1979), nos seus estudos, concluiu que raça,
como conceito historicamente construído, é um critério importante para se determinar
posições tanto na estrutura de classe quanto no sistema de estratificação social; que o
racismo é mais que um epifenômeno de estrutura econômica e que sua persistência, na
sociedade brasileira, tem a ver com a garantia de interesses dos grupos hegemônicos na
sociedade. Assim, contrariamente ao que acreditava Fernandes, para Hasenbalg, a
desigualdade racial não desapareceria com o desenvolvimento do capitalismo, como nos
assinala Telles (2003).
Sintetizando o pensamento brasileiro sobre “exclusão racial”, a partir de uma
ampla revisão bibliográfica, Telles (2003, p. 16-21), ao considerar o conceito de
exclusão, afirma que as teorias raciais, no Brasil, tomaram direções distintas. A primeira
geração, tendo Freyre como principal expoente, focalizou as relações horizontais,
argumentando a favor de relações harmoniosas, considerando a mistura de raças.
42
Segundo Silva (2005, p. 60), “Os autores [da primeira geração] enfatizaram a
miscigenação racial e sustentaram as teses de que as relações raciais no Brasil são
amigáveis, calcadas na proximidade e cortesia”, negando, assim, a ocorrência do
racismo. Já na segunda geração, instaura-se, a partir de Florestan Fernandes, um novo
modo de ver a raça no meio acadêmico. A partir de estudos das relações verticais, isto é,
tendo o foco nas desigualdades estruturais
23
entre brancos e negros, foram realizadas
diversas pesquisas que possibilitaram descrever e interpretar o racismo brasileiro,
jogando por terra a interpretação de uma discriminação branda, como característica da
sociedade brasileira, sustentadas em dados empíricos, as pesquisas constataram
discriminação em diversos âmbitos e dimensões, dentre as quais, destacaremos algumas
no campo da Educação. Boa parte dessas pesquisas apoiaram-se na análise de dados
coletados pelos inquéritos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e, de
modo geral, comparam indicadores educacionais de brancos, pretos e pardos, esses
últimos segmentos agrupados sob a denominação “negros” ou “não-brancos”.
Hasenbalg (1979, p. 221) atestou que, em função dos “efeitos de práticas
discriminatórias sutis e de mecanismos racistas mais gerais, os não-brancos têm
oportunidades educacionais mais limitadas que os brancos da mesma origem social”.
Em função dos dados empíricos que encontrou, o autor constatou que “os brasileiros
não-brancos estão expostos a um ‘ciclo de desvantagens cumulativas’ em termos de
mobilidade social intergeneracional [sic] e intrageracional” (HASENBALG, 1979, p.
220). A essa mesma conclusão chegou Nelson do Valle e Silva (1988, 2000 apud
SILVA, 2005, p. 72).
Hasenbalg (1987, p. 26) destacou dois fatores explicativos para a diferença de
rendimento escolar de crianças, por classe e raça. Um deles seria um “mecanismo de
recrutamento, ou seja, o aluno negro ou o aluno pobre é absorvido pela rede escolar de
maneira diferente do aluno de classe média ou não pobre”. O outro fator, que seria
conseqüência do primeiro, conforme o autor refere-se ao comportamento dos
professores que, ao trabalharem com uma clientela homogênea, “atuam no sentido de
reforçar a crença de que os alunos pobres e negros não são educáveis”.
Rosemberg (1987, p. 22), também ao examinar rendimento escolar dos
segmentos negro e branco, a partir do estudo dos dados dos Censos de 1980 e da PNAD
1982, constatou que o “sistema escolar interpõe ao alunado negro uma trajetória escolar
23
Linha de pesquisa inaugurada com as teses de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva, em 1978, como informa
Osório (2008, p. 81).
43
mais difícil que aquela que interpõe a crianças brancas [...]”. E fazendo coro à idéia de
“mecanismo de recrutamento”, sugere que “o sistema escolar empurraria o alunado
negro preferencialmente para equipamentos destinados à população pobre, e que este
mecanismo poderia encontrar ressonância entre certas famílias negras” (ROSEMBERG,
1987, p. 23).
Gonçalves (1987, p.27) estudou os mecanismos que silenciam a criança negra
em escola pública e que dificultam o desenvolvimento da consciência de sua cidadania.
O autor conclui pela necessidade que, na produção e transmissão do saber, no espaço da
escola, seja contemplada a particularidade cultural da população negra, como forma de
se evitar o silenciamento da criança negra.
Estudando a hipótese de segregação espacial em São Paulo, Rosemberg (1990
apud SCHWARCZ, 1999, p. 292) constatou a existência de desigualdade de acesso ao
ensino básico. Para a autora, mais que os brancos, os negros freqüentam cursos
noturnos. Em outro estudo, Rosemberg (1991, p. 25), depois de analisar os dados
coletados pelas PNADs 1982, 1985 e 1987, a respeito de creche, pré-escolar e séries
iniciais da educação básica, assinalou que “as oportunidades educacionais de crianças
negras são as de pior qualidade que o sistema oferece”. Comentando a adoção de
programas de massa para educação pré-escolar, a autora destacou que eles são
oferecidos em espaços inadequados, sonegam material pedagógico, contratam
profissionais despreparados, com baixos salários e que são responsáveis por um grande
número de crianças. A autora concluiu que, desde a creche, a criança negra inicia uma
trajetória educacional marcada “por experiências frustrantes e de segunda mão”
(ROSEMBERG, 1991, p. 32).
Barcelos (1992 apud SCHWARCZ, 1999, p. 289) mostrou a existência de maior
taxa de analfabetismo para os autodeclarados pretos. Em uma pesquisa posterior,
Barcelos (1993, p. 15) assinalou que os indicadores “educacionais obtidos por pretos e
pardos são sistematicamente inferiores aos de outros grupos raciais”, constatando que a
variável raça tem um importante efeito no processo de estratificação na sociedade
brasileira.
Pinto (1993) referiu-se ao contexto educacional como um ‘ambiente’ escolar
hostil, ou pelo menos indiferente aos problemas enfrentados pela criança negra tanto na
sociedade como na escola e, portanto, discriminador, [...]” (PINTO, 1993, p. 26, aspas
da autora). A pesquisadora destacou que esse “ambiente hostil” poderia ser detectado na
44
estrutura curricular, no material didático de todas as disciplinas, bem como nas
interações aluno-aluno e professor-aluno
Silva (2005), ao efetuar uma ampla revisão da literatura sobre desigualdades
raciais, localiza e discute uma diversidade de pesquisas que analisaram as profundas
desigualdades no campo da educação: Hasenbalg (1988) constatou um aumento
exponencial das desigualdades nos níveis de ensino mais altos; Rosemberg (1998) notou
que, no Sudeste, o custo-aluno é quase sete vezes mais alto do que no Nordeste rural;
Cavalleiro (1999) revelou que os alunos brancos receberam mais elogios e proximidade
física de seus professores do que crianças negras, no pré-ecolar, as quais também não
têm a quem recorrer quando sofrem alguma discriminação, pois os professores ignoram
esses fatos; (já mencionou antes); Pinto (1993), Rosemberg (1998), Telles (2003) e
Silva (2005) observaram a produção de discurso racista em livros didáticos e de
literatura infantil; Rosemberg (2000 apud SILVA, 2005, p. 70) identificou critérios
discriminatórios na expansão do ensino. Jaccoud e Beghin (2002, p. 31-32), ao
compararem os anos de estudo de brancos e negros, verificaram que
a população negra apresenta grande desvantagem em relação à branca. [...] a
diferença em anos de estudo mostra-se mais ou menos estável, em torno de
dois anos, ao longo do tempo, ou seja, na década de 1990, os negros não
conseguem alcançar mais do que 70% da média de anos de estudo dos
brancos. De modo análogo, observa-se que, mesmo havendo redução da taxa
de analfabetismo entre negros e brancos, se mantém quase constante a
diferença percentual na taxa (cerca de 10%) [...].
Jaccoud e Beghin (2002) comentam o estudo de Soares et alii (2002), que
verificou se os diferenciais encontrados refletiriam uma situação de discriminação
pretérita. Nessa pesquisa foi feita uma simulação supondo-se que os pais dos alunos
negros teriam o mesmo nível educacional dos brancos. Os resultados revelaram que
a maior parte do diferencial racial pode ser atribuída à discriminação na
escola. A média de anos de estudo de todas as coortes de nascimento entre
1900 e 1965 é de 5,44 anos para os brancos e 3,16 anos para os negros,
perfazendo uma diferença de 2,27 anos de estudo (JACCOUD e BEGHIN,
2002, p. 34).
A partir da análise desses resultados, Jaccoud e Beghin (2002, p. 35) concluem
que, em parte, as desigualdades entre brancos e negros são tributárias da discriminação
racial vigente no âmbito escolar. Para Henriques, essa diferença de anos de estudo, entre
45
brancos e negros, a indicação de que a discriminação racial e o racismo têm efeitos
nocivos sobre os níveis de escolarização, afetando várias gerações, pois
embora todos os brasileiros tenham aumentado os níveis médio de
escolarização [no século XX], a diferença de 2,3 anos a menos para os jovens
negros em relação aos brancos permaneceu a mesma que a de seus avós
(Henriques 2001 apud SILVÉRIO, 2008, p. 219).
Osório e Soares (2005) revelaram que as desigualdades entre negros e brancos
tendem a se perpetuar. Os autores fizeram um “documentário” estatístico para estudar a
trajetória de um grupo de brasileiros que nasceram no ano de 1980, chamado de
Geração 80. Tomando como referência a PNAD 1987, os autores “seguiram” por um
período de tempo, 1987 a 2003, os grupos raciais negro e branco, chamados de
pseudocoortes e avaliaram seus resultados para os indicadores de taxa de alfabetização,
freqüência e não freqüência e série e chegaram a uma das seguintes conclusões:
Os indicadores de educação, em conjunto, nos permitiram documentar um
quadro preocupante: além de serem prejudicados por ter uma origem mais
humilde, o que dificulta o acesso e a permanência na escola, os negros são
prejudicados dentro do sistema de ensino, que se mostra incapaz de mantê-los
e de compensar eventuais desigualdades que impeçam a sua boa progressão
educacional. No caso da educação, parece óbvio que às desvantagens iniciais
– que podem ser consideradas frutos de uma discriminação indireta, resultado
da sobre-representação entre os pobres se sobrepõem discriminações
presentes no âmbito do sistema de ensino (OSÓRIO e SOARES, 2005, p.
34).
As diferenças na educação de negros e brancos, que os autores encontraram
fazendo o acompanhamento até a conclusão da graduação, levaram os pesquisadores à
seguinte constatação: “a chance de se encontrar um branco nascido em 1980 que em
2003 tinha concluído um curso superior era cinco vezes maior que a de se encontrar um
negro” (OSÓRIO e SOARES, 2005, p. 32).
Analisando, também, dados do IBGE, de 2002, Heringer (2006) apresenta outra
informação importante: “A população jovem de 20 a 24 anos também mostra níveis
expressivos de desigualdades raciais. Para 53,6% dos brancos cursando educação
superior em nível de graduação, tem-se apenas 15,8% de pretos e pardos” (IBGE, 2003,
p. 218 apud HERINGER, 2006, p. 94). Nesta mesma direção, Rosemberg (2004, p. 261)
acrescenta que o sistema educacional brasileiro mantém profunda desigualdade racial e
afirma que o segmento racial branco é o segmento privilegiado no acesso aos níveis
médio e superior do sistema. Segundo Rosemberg (2004, p. 256-7), mesmo que se
46
controle local ou região de residência e nível de renda familiar, as estatísticas
educacionais apontam melhores indicadores para o segmento branco.
Uma outra constante dessas pesquisas é que o destino educacional de pretos e
pardos é equivalente e muito diferente ao dos brancos (ROSEMBERG, 1986).
Guimarães (1999, p. 67) também afirma que não existe brandura no racismo
brasileiro, porque: “Trata-se de um racismo às vezes sem intenção, às vezes ‘de
brincadeira, mas sempre com conseqüências sobre os direitos e as oportunidades de vida
dos atingidos”.
Depois de um aprofundado estudo sobre a persistência da desigualdade racial,
Telles (2003) também assinala um recorte racial na constituição das desigualdades
sociais no Brasil. Segundo o autor, a estrutura da sociedade reflete a importância da
raça, por tanto tempo negada: “Os cidadãos brancos compõem a vasta maioria das
classes média e alta, enquanto os pretos e mulatos se encontram entre os pobres, de
modo desproporcional” (TELLES, 2003, p. 216). Atesta, ainda, que a desigualdade
racial é maior que nos EUA, “pois o Brasil tem uma estrutura sócio-econômica mais
desigual e os negros brasileiros têm menos chance de chegar a seu ponto mais alto. Um
bom exemplo disto é que, a despeito de sermos quase 50% da população, conforme
PNAD 2007 (SOARES, 2008, p. 99), não temos força política correspondente a este
contingente.
Diversos documentos produzidos pelo governo federal atual e também pelo
governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), através de seus institutos de pesquisa,
bem como por outras iniciativas institucionais, revelam que os indicadores sócio-
econômicos dos negros são sempre piores em relação aos dos brancos: salários, níveis
educacionais, índices de desemprego, etc. São muitos os indicadores que atestam as
condições desiguais entre brancos e negros. Assim, a chamada sutileza do racismo
brasileiro vem sendo confrontada e desmascarada, desde os estudos inovadores de
Florestan Fernandes, estendendo-se por diversos trabalhos valiosos tais como: Mapa da
População Negra no Mercado de Trabalho, do Departamento Intersindical de Estatística
e de Estudos Sócioeconômicos (DIEESE), de 1999; Desigualdade Racial no Brasil:
evolução das condições de vida na cada de 90, do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), de 2001 e o Atlas Racial Brasileiro, do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD), de 2004.
Para Silvério (2002a, p. 222), o Estado também tem responsabilidade nesta
realidade: “[...] a dimensão econômica explica apenas parte das desigualdades entre
47
negros e brancos, a outra parte é explicada pelo racismo, e a discriminação racial teve
uma configuração institucional, tendo o Estado legitimado historicamente o racismo
institucional”. Passa-se, então, a adotar o conceito de racismo institucional para aqueles
processos de discriminação indireta, que ocorrem nas organizações. Segundo Guimarães
(1999, p. 172), são mecanismos de discriminação inscritos na operação do sistema
social e que funcionam, até certo ponto, à revelia dos indivíduos”. Segundo o IPEA
(2005, p. 216),
o racismo institucional pode ser definido como o fracasso coletivo das
organizações e das instituições em promover um serviço profissional e
adequado às pessoas por causa da sua cor, cultura, origem racial ou étnica.
Ele manifesta-se em normas, práticas e comportamentos discriminatórios
adotados no cotidiano de trabalho das instituições, os quais são resultantes,
em larga medida, do preconceito ou dos estereótipos racistas.
O conceito de racismo institucional permite a ampliação tanto dos estudos das
relações raciais, quanto das ações de combate às desigualdades, pois nos permite
estarmos atentos a todas as ações individuais e institucionais que tenham como
conseqüências o aumento e a sustentação da subordinação do povo ‘negro’” (Miles,
1989, 51 apud SILVÉRIO, 2003, p. 326). Rosemberg (mimeo 3) um exemplo
pertinente para entendermos a necessidade da mudança de foco neste campo:
Penso que um equívoco ao se considerar que o racismo brasileiro seja
provocado exclusivamente pelo preconceito racial interpessoal. Posso
provocar ações racistas, que redundam em discriminação contra os negros,
sem que eu mesma tenha ou expresse preconceito contra negros. Quando
reduzo a verba para a escola pública de educação básica, mesmo que não seja
uma ação específica contra negros, esta redução terá um impacto na
manutenção das desigualdades materiais/estruturais contra os negros. [...] O
racismo material se sustenta também via políticas públicas “para todos” que
tratam de modo desigual pobres e não pobres.
No mesmo sentido, Telles (2003) como exemplo a destinação de
financiamento público municipal que afeta, preferencialmente, escolas com maior
proporcionalidade de alunos “brancos”. Dessa perspectiva, “a legislação anti-racismo no
Brasil, não está apta a inverter este tipo de discriminação” (TELLES, 2003, p. 269).
Portanto, para combater o racismo não bastam leis anti-discriminatórias, de caráter
penal
24
, mas também apresentar alternativas às práticas institucionais, públicas ou
privadas, que podem reproduzir, modificar e atualizar o racismo estrutural brasileiro
(SILVÉRIO, 2003, p. 326). Uma dessas alternativas é a formulação e a implementação
24
Conforme Silvério (2003, p.326), tais leis sido pouco eficazes e atuado mais ao nível individual.
48
de políticas de ação afirmativa que promovam igualdade material a negros e indígenas
em certos aspectos da vida social nos quais têm estado submetidos a condições de
desvantagens: locacional, ocupacional ou educacional, ou seja, para bens e recursos
escassos, conforme Calvès (2004, p. 36)
25
. A desigualdade locacional tem a ver com o
lugar de residência; a desigualdade educacional relacionada ao grau de escolarização e a
desigualdade ocupacional, relacionada ao posicionamento da pessoa na estrutura das
ocupações (SILVÉRIO, 2003, p. 326).
Como mostrado acima, são imensas as desigualdades no campo educacional. Por
isto mesmo, este tem sido um campo de interesse e de reivindicações do movimento
negro, desde as primeiras entidades negras
26
na década de 1930 (ROSEMBERG, mimeo
1; GOMES, 2007) e tem acompanhado “a própria história da educação brasileira ao
longo do século XX” (SILVÉRIO, 2008, p. 223).
Para tentar compreender o que levou o tema do acesso a negros, indígenas e
egressos da escola pública no ensino superior, via ações afirmativas, a ser incluído na
agenda educacional brasileira, dos anos 1990 para cá, Rosemberg (mimeo 1) destacou
quatro possíveis condições sociais: “a seletividade do sistema educacional, a
mobilização pelos cursinhos, a importância atribuída à educação pelo movimento negro
e a atuação do governo federal”. Destacaremos aqui apenas a primeira condição. Para
compreender o caráter seletivo do sistema de ensino, Rosemberg (mimeo 1) propõe três
explicações que estariam complementarmente relacionadas ao racismo. A primeira delas
é a herança do passado escravista”: aos escravos e pretos livres era vetado o direito à
escolarização
27
.
Em 1837 foi sancionada lei no Rio de Janeiro que se destinava a regular os
direitos à instrução pública primária, assim determinado: Art. 3º: São
proibidos de freqüentar as escolas públicas: Parágrafo - Todas as pessoas
que padecem de moléstias contagiosas; Parágrafo - Os escravos e os pretos
africanos, ainda que livres ou libertos (CUNHA, 1999, p. 87).
Tal situação não foi sanada com a Abolição, pois não se seguiram medidas para
compensar as condições de cativeiro, o que proporcionou desvantagens cumulativas aos
descendentes dos escravos. Como bem afirmam Silva e Rosemberg (2008, p. 75), “O
25
“A preferência não deve ser exclusiva: a pertença ao grupo nunca pode ser o único critério de distribuição do bem
raro subtraído das regras normais da competição” (CALVÈS, 2004, p. 36, tradução livre, grifo nosso).
26
Pinto (1987, p. 9) informa que por volta de 1915 já havia associações negras que reconheciam a importância da
educação para a população negra.
27
“Quanto à época da escravidão, não há consenso entre os autores sobre a extensão da escolaridade do negro”
(PINTO, 1987, p. 13).
49
país não desenvolveu política específica de integração dos negros recém-libertos à
sociedade envolvente, o que fortaleceu as bases do histórico processo de desigualdades
sociais entre brancos e negros que perduram até os dias atuais”. O direito de votar
chegou tardiamente para pretos e pardos, pois até 1960 eles eram a maioria dos
analfabetos do país (TELLES, 2003, p. 202). Esse passado tem a ver com a transmissão
geracional da possibilidade de ascensão social, facilitada que é por melhores condições
educacionais.
São diversos os pesquisadores que atribuem “a importância da escolaridade dos
pais no sucesso educacional dos filhos” (ROSEMBERG, mimeo 1, p.6). Porém,
Gonçalves (2007, p. 325) questiona o mito de que o sucesso escolar dependa, em grande
parte, do capital cultural, principalmente da família, pois famílias com pouco capital
cultural têm conseguido influenciar as gerações futuras. Para esse autor, não para
associar direta e mecanicamente sucesso escolar e escolaridade dos pais, a importância
do capital cultural teria que ser relativizado
28
.
Controvérsias à parte, examinando a escolaridade dos pais e os retornos à
educação no mercado de trabalho, a partir de evidências empíricas, Ferreira e Veloso
(2003), Ramos e Reis (2008, p. 19) afirmam que “Indivíduos com pais mais
escolarizados têm um nível médio de escolaridade bem superior ao dos trabalhadores
com pais pouco educados, indicando uma limitada mobilidade educacional”. Ramos e
Reis, ao examinarem os estudos de Lam e Schoeni (1993), acrescentam ainda que as
“diferenças nos retornos da escolaridade conforme a educação dos pais têm um papel
potencialmente importante no processo de transmissão da desigualdade de rendimentos
entre as gerações” (RAMOS e REIS, 2008, p. 24).
Aliado a um passado escravista, que se considerarem as condições
educacionais hodiernas. A segunda explicação possível estaria num “ambiente hostil”
da escola, desde o conteúdo curricular, no material didático até nas relações
interpessoais entre alunos e entre professor e aluno, como destacou Pinto (1993). É um
ambiente que deprecia a identidade racial de crianças ou de adolescentes negros,
afetando seu equilíbrio psíquico e sua autoimagem (Teixeira, 1992 apud
ROSEMBERG, mimeo 1). No entanto, a desigualdade produzida no campo da educação
28
Talvez devêssemos perguntar não pelo capital cultural, mas o quanto a família valoriza a educação de seus filhos.
Este pesquisador descende de pai não letrado e mãe que se alfabetizou tardiamente, mas que sempre teve apoio e
incentivo de seus pais.
50
não é explicada somente pelo racismo simbólico, a pesquisadora levanta a hipótese de
que esteja ocorrendo uma segregação espacial de população negra e pobre, no país.
Para fundamentar essa terceira explicação, a autora apresenta resultados de
diversas pesquisas (algumas das assinaladas acima) que sugerem: a) que negros e pobres
não freqüentam exatamente a mesma escola de brancos e não pobres, no que diz
respeito à diferenciação de recursos material, humano e de equipamentos disponíveis
nas escolas frequentadas por ambos os grupos (Rosemberg, Pinto e Negrão, 1986 apud
ROSEMBERG, mimeo 1), bem como aos estudos que se referem ao prognóstico de
desempenho e às profecias autorealizadoras (Hasenbalg, 1997 apud ROSEMBERG,
mimeo 1); b) “que famílias negras de melhor nível sócio-econômico tendam a viver em
áreas mais pobres, ou a se servirem de equipamentos sociais utilizados por famílias
brancas de nível sócio-econômico inferior”. Trata-se da hipótese de segregação
residencial, a qual Telles (2003) dedica um capítulo de seu livro, comparando a situação
brasileira com a norte-americana. Segundo o autor, a segregação no Brasil pode ser
parcialmente explicada pela classe social.
Com efeito, estudos sobre segregação residencial indicam que “integrantes de
um grupo racial se concentram no mesmo espaço” não apenas em
decorrência de condições socioeconômicas, discriminação no mercado de
trabalho, mas também da “preferência de viver nas proximidades de pessoas
pertencentes ao mesmo fenótipo” (PNUD, 2005, p. 77 apud ROSEMBERG,
mimeo 1).
Ter em mente a hipótese de segregação espacial permitirá identificar e corrigir
mecanismos de desigualdade racial nas políticas públicas, segundo Rosemberg (mimeo
1). O exemplo da instalação de um campus da Universidade de São Paulo (USP), na
zona leste, da cidade de São Paulo é um indicador dessa segregação espacial, pois, de
acordo com Guimarães (s/d, p. 2), os cursos que lá foram instalados não estão entre os
de maior valor social.
Estudos revelam, ainda, que as universidades públicas e privadas de maior
prestígio são espaços de maioria branca.
A seletividade econômica e étnico-racial do ensino superior brasileiro é
intensa: o segmento composto pelos 20% mais ricos ocupa 7% das matrículas
no ensino superior brasileiro, ao passo que os 40% mais pobres ocupam
apenas 3% das vagas. De modo equivalente, 78,5% dos estudantes do ensino
superior são branco, apesar de os brancos representarem 55% da população
brasileira, 52% do total de estudantes (em todos os níveis de ensino e de
todas as idades) e 58% dos estudantes do nível (Censo 2000 apud
ROSEMBERG, mimeo 1).
51
Sérgio Costa (2002, p. 50-51), sem aprofundar a explicitação do significado, se
refere à segregação como conceito a ser privilegiado, por considerar que tal conceiro
expressaria “melhor a realidade social das relações desiguais [...]”, ou seja, permitiria
estudar as diversas adscrições negativas a partir da dinâmica própria de cada uma, sem
dar a todas o mesmo estatuto de racismo. Deste modo, para o autor seria racismo apenas
uma segregação “propriamente racial”.
O problema de acesso do negro às universidades esbarra, ainda, na sua
invisibilidade nas estatísticas universitárias. Se dependessem de dados agregados pelo
sistema de pesquisas do IBGE (Censos e PNADs, entre outros), as instituições de ensino
superior, individualmente, não disporiam de informações sobre cada unidade. Assim,
não se teriam informações precisas que pudessem atestar a discriminação racial local e
estimular a mobilização por sua superação
29
. Uma iniciativa importante, e que se
alastrou, foi introduzida pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Até o ano 2000,
nenhuma universidade pública tinha informação registrada sobre a pertença racial ou
declaração de cor de seus alunos. Para que se tenha idéia da mudança, destacamos a
pesquisa de Moro (1993), que precisou, inicialmente, usar do recurso da
heteroatribuição de cor/raça para compor sua amostra, descrevendo a classificação
racial de seus sujeitos de pesquisa a partir de suas fotografias em suas fichas de
inscrição. Num segundo momento, na aplicação do questionário, a pesquisadora utilizou
do recurso da autoatribuição, o que possibilitou a ela denominar de negros aqueles
estudantes “que se auto-classificaram como pretos e pardos” (MORO, 1993, p. 12).
Esse mesmo expediente, também precisou ser usado por Ferreira (1998), em seu
trabalho de iniciação científica, quando pesquisou alunos matriculados no ano de 1994,
na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Foi somente a partir do debate sobre a implantação das políticas de ação
afirmativa que começaram a surgir as primeiras iniciativas visando à classificação racial
dos alunos. A UFBA incluiu a pergunta “Qual é a sua cor?”
30
, no seu formulário de
inscrição ao vestibular, pela primeira vez, em 1999, exemplo seguido por várias
universidades (GUIMARÃES, 2003c, p. 256).
29
A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e o Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) também não incluem estatísticas com recorte racial.
30
Em 1998, este pesquisador sugeriu aos órgãos competentes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que
fosse feita a identificação racial dos candidatos ao vestibular e dos estudantes ingressantes (FERREIRA, 1998, p.
106). Segundo Gomes (2004, p. 43), esse procedimento foi adotado pela UFMG a partir de 2001.
52
Os negros (pretos + pardos) encontram-se sub-representados (abaixo de sua
representação na população) nos níveis superiores de escolaridade, principalmente nas
universidades públicas e gratuitas. Como exemplo disto, Guimarães (2003a) nos
informa que, em pesquisa realizada na USP em 2001, os negros eram 8,3% (somando-se
7% dos pardos e 1,3% dos pretos) dos seus alunos. Ao passo que na população do
Estado de São Paulo, pardos representariam 20,9 % e pretos 4,4%. O autor aponta que
as causas para a pequena absorção dos negros na USP têm a ver com: “a) pobreza. b)
qualidade da escola pública; c) preparação insuficiente; d) pouca persistência (pouco
apoio familiar e comunitário); e) a forma de seleção” (GUIMARÃES, 2003c, p. 259).
A pós-graduação não constitui exceção, ao contrário, conforme afirma Silvério
(2008, p. 233)
O grande problema é que esse sistema, tal qual a graduação brasileira nas
universidades públicas, tem reproduzido, até mesmo em maior elitismo, a
estrutura de desigualdades do país; como conseqüência, ele atua mais como
um instrumento de distinção entre os seus participantes, pelas hierarquias que
estabelece, do que como instrumento de equacionamento das disparidades
regionais. De certa forma, é possível dizer que o sistema de ciência e
tecnologia gerado no país, a partir de um grande investimento do Estado, é
extremamente ambíguo, pois, se a sociedade como um todo o financiou,
apenas uma pequena parte desta mesma sociedade faz usufruto dos seus
resultados.
Apesar de ser um nível de ensino considerado bem sucedido em termos de
organização, produtividade, eficiência e eficácia, que alçou o país a uma posição de
destaque na produção de ciência e tecnologia na América Latina e no mundo
31
, as
desigualdades do sistema educacional brasileiro também configuram a pós-graduação,
dentre elas, as desigualdades regionais e raciais quanto ao acesso e produção racial.
As desigualdades raciais na pós-graduação podem ser exemplificadas com as
evidências empíricas encontradas na pesquisa de Osório e Soares. Os autores
encontraram diferenças na educação de negros e brancos no período que estudaram, de
1987 a 2003. Na Geração 80, enquanto 1% dos brancos prosseguiu seus estudos na pós-
graduação, em 2003, nenhum negro foi encontrado nesse nível. Ou seja, as
desigualdades persistiram (OSÓRIO e SOARES, 2005, p. 33).
Dados do Censo 2000 complementam a visão dessa desigualdade: o percentual
de brancos que freqüentam ou freqüentaram a pós-graduação (0,55%) é nitidamente
31
O país se encontra em sétimo lugar mundial em número de doutores, na faixa etária de 25 a 64 anos. (DOUTORES
2010, p. 18).
53
superior ao de pretos (0,12%) e ao de pardos (0,09%). A partir da análise das PNADs
1998, 2001, 2004, 2007 e 2008, os autores do estudo identificaram uma maior inclusão
dos segmentos pretos e pardos na população com mestrado e doutorado, porém, a
situação de desvantagem para os negros não se alterou.
Petrucelli (2004) utilizou resultados do Censo 2000 para questionar se o sistema
de cotas já não seria uma característica estrutural do ensino superior brasileiro, quando
observou que, de um lado, tem-se quase metade da população que se declara preta ou
parda e, de outro, uma proporção de 86,4% de brancos, que freqüentaram e/ou
concluíram mestrado ou doutorado (PETRUCELLI, 2004, p 10 e 23).
Tal desigualdade racial de acesso, permanência e sucesso na pós-graduação
brasileira foi um dos indicadores que levou o Programa Internacional de Bolsas de Pós-
graduação da Fundação Ford a incluir os negros entre seus grupos-alvo.
Para Rosemberg (2005, mimeo 8), discursos e propostas de intervenção de
diversos militantes, pesquisadores e agentes governamentais e não governamentais, têm
privilegiado as ações afirmativas, como forma de combate às desigualdades raciais. No
caso dos grupos do movimento negro, D’Adesky (2006, p. 5) assinala que tal postura se
explicaria pelo “anti-racismo diferencialista do movimento negro brasileiro, desde os
anos 1970, que orientou uma pauta de reivindicações concebidas a partir de uma
“política que faz das diferenças o fundamento mesmo de um tratamento diferente
[preferencial], [...]”.
Para nós, o foco não é a diferença, mas a desigualdade. Rosemberg detectou,
nessa defesa privilegiada das ações afirmativas, uma forte crítica às políticas de cunho
universalista, as quais, segundo afirma Silvério (2003, p. 328), não dariam conta de
reverter a situação de desigualdade impingida ao povo negro. No entanto, Rosemberg
(2005, mimeo 8), mesmo defendendo políticas públicas de ação afirmativa para o
ingresso e permanência de grupos sub-representados no ensino superior, alerta que na
“educação, nem toda desigualdade se corrigida por políticas de ação afirmativa” e
exemplifica com o caso da educação infantil
32
.
O caráter de urgência, a que se referiu Taguieff (1997), particularmente para
alterar esse quadro desvantajoso para o negro na educação, impõe a união, da sociedade
32
Não trataremos desse nível de ensino neste trabalho.
54
civil e do Estado, em torno tanto de medidas de cunho universalistas quanto de medidas
específicas de promoção de eqüidade social, isto é, de ações afirmativas.
O enfrentamento ao racismo no Brasil vem ocorrendo através de diversas formas
ao longo do tempo. Os grupos do movimento negro têm adotado estratégias variadas,
alguns enfatizando o combate ao racismo no plano simbólico, outros no plano
estrutural.
Nos próximos capítulos, conceituaremos ação afirmativa e apresentaremos um
breve histórico referente à atuação do movimento negro e sua agenda política de
enfrentamento ao racismo brasileiro.
55
CAPÍTULO 3 – Conceituando ação afirmativa
Acreditamos que o combate a toda forma de racismo, seja direto ou sutil, deva
fazer parte de uma agenda que una a sociedade civil e o Estado em torno, não da
efetivação de leis anti-racistas, mas também em ações que promovam a equidade social,
como são as chamadas ações afirmativas. As primeiras experiências ocorreram na Índia
como nos esclarece D’Adesky (2001), Feres Júnior (2006) e Wedderburn (2005)
O conceito de ação afirmativa originou-se na Índia imediatamente após a
Primeira Guerra Mundial, ou seja, bem antes da própria independência deste
país. Em 1919, Bhimrao Ramji Ambedkar (1891-56), jurista, economista e
historiador, membro da casta “intocável” Mahar propôs, pela primeira vez na
história, e em pleno período colonial britânico, a “representação
diferenciada” dos segmentos populacionais designados e considerados como
inferiores. A vida política e a obra de B. R. Ambedkar sempre estiveram
voltadas para a luta pelo fim do regime de castas. [...] Para ele, quebrar os
privilégios historicamente acumulados pelas “castas superiores”, significava
instituir políticas públicas diferenciadas e constitucionalmente
protegidas em favor da igualdade para todos os segmentos sociais
(WEDDERBURN, 2005, p. 314, grifo do autor).
“A Índia é o país de mais longa experiência histórica com políticas de ação
afirmativa, as quais começaram a ser implantadas ainda sob o domínio colonial inglês
[de 1858 a 1947], muitas vezes com o desígnio de dividir os colonizados e enfraquecê-
los [...]” (FERES JÚNIOR, 2006, p 47). No entanto, com a independência, o governo
indiano livre ratificou aquelas medidas em sua Constituição de 1950. Três anos antes,
conforme D’Adesky (2001, p. 208), o governo havia aprovado cotas para a casta dos
“intocáveis” em setores da administração e do ensino público.
Nos Estados Unidos da América (EUA), datam de 1935 as primeiras referências
à ação afirmativa com o caráter preventivo, no sentido de corrigir injustiças sociais, na
legislação trabalhista. as primeiras medidas de políticas de ação afirmativa, com o
sentido de tratamento preferencial a certos segmentos ou grupos sociais, ocorrem
durante a administração conservadora do Presidente Dwight D. Eisenhower, entre 1953
e 1961 (Guimarães, 1999). Nesse período, os EUA viviam um momento de
efervescência política em torno da luta pelos direitos civis, capitaneada, principalmente,
por lideranças do movimento negro norte-americano, que lutavam pela expansão da
igualdade de oportunidades para todos os cidadãos, juntamente com os segmentos mais
progressistas da sociedade. “É nesse contexto que se desenvolve a idéia de uma ação
afirmativa, exigindo que o Estado, para além de garantir leis anti-segregacionistas,
56
viesse também a assumir uma postura ativa para a melhoria das condições da população
negra” (MOEHLECKE, 2002, p. 117). É o que Gomes (2001, p. 37) chamou de ruptura
da noção de neutralidade estatal, pois, para esse jurista, nas sociedades em que ocorreu
escravidão, não eram suficientes proclamações jurídicas e dispositivos constitucionais
para reverter a situação dos grupos historicamente marginalizados. Tais mecanismos
revelaram-se inócuos. “Desse imperativo de atuação ativa do Estado nasceram as Ações
Afirmativas, [...]”. As negociações entre os movimentos sociais e o Estado resultaram
na implantação de vários programas, via de regra apoiados pela Suprema Corte,
conforme informa Silvério ( 2002b, p. 92)
1) exigência de desenvolvimento de ação afirmativa em empresas que
quiserem estabelecer contrato com o governo [...]; 2) discriminação não
intencional no emprego, também chamada de discriminação indireta,
proibindo a adoção de requisitos e testes para a contratação, desnecessários à
execução das tarefas às quais os candidatos se habilitem; 3) o governo federal
assegurou por meio de programas objetivos e mensuráveis, em especial nos
altos escalões de sua própria burocracia, a presença de minorias e mulheres;
4) o Congresso norte-americano incluiu um dispositivo na lei sobre obras
públicas (Public Works Employment Act), estabelecendo que cada governo,
local ou estadual, usasse 10% dos fundos federais destinados a obras públicas
para gerenciar serviços de empresas controladas por minorias; 5) o governo
federal passou a exigir que as instituições educacionais que tivessem
praticado discriminações adotassem programas especiais pra admissão de
minorias e mulheres como condição para que se habilitassem à ajuda federal;
6) incentivo às ações voluntárias de emprego e educação: essas ações
corresponderiam ao que se passou a chamar de cotas, isto é, assegurar
porcentuais mínimos de contratação e promoção de trabalhadores nas
empresas privadas e instituições públicas. E admissão de estudantes
provenientes de grupos minoritários das universidade, tendo por base a
discriminação passada.
Ao fazer o estudo das instituições jurídicas dos EUA, Gomes (2001, p. 44-48)
reconhece os seguintes objetivos das políticas de ação afirmativa:
a) proporcionar transformações de mentalidades no sentido de por fim a idéia de
supremacia seja por gênero, raça, etnia ou outra forma;
b) “não apenas coibir a discriminação do presente, mas sobretudo eliminar os ‘lingering
effects’, ie [sic], os efeitos persistentes [...] da discriminação do passado, que tendem a
se perpetuar” (GOMES, 2001, p. 47);
c) proporcionar visibilidade aos grupos sub-representados, abrindo espaço para a
diversidade nos domínios públicos e privados;
d) criar espaço para o surgimento de “personalidades emblemáticas”, indivíduos que
serviriam de exemplo para seus grupos de origem.
57
Assim, no amplo leque possível de políticas governamentais de combate à
discriminação, Gomes (2001, p. 49) identifica, ao lado de políticas “neutras” normas
meramente proibitivas, as políticas “positivas”, também chamadas de ações afirmativas.
Estas últimas podem ser políticas de iniciativa do poder executivo, do poder judiciário e
mesmo do setor privado. De acordo com o autor, as políticas de ão afirmativa se
inscrevem dentro do princípio da igualdade material ou substantiva, que, ao contrário do
chamado princípio da igualdade formal, gestado no pensamento liberal
33
oitocentista, irá
atuar junto ao indivíduo concreto, especificado. Dito de outra maneira, o Direito passa a
perceber o indivíduo em sua singularidade, considerando suas determinações de raça,
idade, gênero, etc. Pelo princípio da igualdade substantiva é possível atentar para as
desigualdades que, de fato, são observadas na sociedade.
Produto do Estado Social de Direito, a igualdade substancial ou material
propugna redobrada atenção por parte dos aplicadores da norma jurídica à
variedade das situações individuais, de modo a impedir que o dogma liberal
da igualdade formal impeça ou dificulte a proteção e a defesa dos interesses
das pessoas socialmente fragilizadas e desfavorecidas (GOMES, 2001, p. 4).
Pelo princípio da igualdade material, o legislador pode tratar os desiguais de
forma dessemelhante, contribuindo para que as situações de desigualdades não sejam
perenizadas e agravadas na sociedade (Gomes, 2001). Segundo Feres Júnior (2006, p.
50), mecanismos contra as desigualdades já estariam presentes nos princípios
normativos do Estado de Bem-Estar Social
34
. A despeito de serem reconhecidas como
sendo de cunho universal, as ações focais antecederam o que chamamos, hoje, de ações
afirmativas, tais como: “Políticas keynesianas de proteção de setores estratégicos da
economia, investimentos públicos pesados em áreas carentes, investimento em
habitação popular, seguro desemprego etc. [...]”.
De acordo com Gomes (2001), são variados os postulados filosóficos que
subjazem às ações afirmativas, mas comum a todos é serem tributários do pensamento
liberal, dentre os quais ele salienta o postulado da Justiça Compensatória e o da Justiça
Distributiva. São esses postulados, além da noção de diversidade, que irão fundamentar
33
Em uma concepção liberal clássica, ou pura, o Estado é o locus do valor da igualdade, é no Estado, ou melhor,
por meio de leis que garantem direitos universais negativos (mormente civis), que os cidadãos o verdadeiramente
iguais. (FERES JÚNIOR, 2006, p. 49) Assim, na perspectiva liberal era suficiente que o princípio da igualdade
estivesse escrito, para que ele estivesse assegurado, conforme Gomes (2001, p. 3).
34
Esse paradigma se opõe à concepção liberal pura. “[...] Estado e mercado não funcionam como esferas autônomas
geridas por valores independentes (igualdade e mérito, respectivamente). [ao contrário] o Estado subtrai recursos do
mercado [...] e os redistribui com a finalidade de promover uma igualdade maior. Trata-se aqui já de uma concepção
de igualdade substantiva” (FERES JÚNIOR, 2006, p. 49).
58
os argumentos para justificar políticas de ação afirmativa, como informam Gomes
(2001, p. 61) e Feres Júnior (2006, p. 46).
A Justiça Compensatória, que fundamenta inúmeros programas de ação
afirmativa, mesmo nos EUA, segundo Gomes (2001, p. 62), pode ter como instrumento
a “reparação” ou a “compensação” para fazer frente a injustiças e discriminações
impingidas, no passado, a um ou vários grupos numa dada sociedade. Considera,
principalmente, a persistência dessa subordinação e de seus efeitos perversos no
presente, que a “marginalização” daqueles grupos pelo preconceito, estigmatização e
pela falta de oportunidades, tende a se reproduzir ao longo do tempo, geração após
geração. Considera, também, que vantagens competitivas iniciais, quase
insuperáveis, a favor dos grupos dominantes, numa sociedade fortemente hierarquizada.
Assim, faz-se necessária a participação ativa do Estado, no sentido de estabelecer
programas de preferência em defesa daqueles grupos que foram tratados,
historicamente, à margem dos benefícios e recursos disponíveis na sociedade (Gomes,
2001).
Gomes (2001), no entanto, não deixa de apontar as falhas no argumento da
Justiça Compensatória, lembrando que a idéia de compensação pressupõe a existência
de dano, numa relação causal. Assim, muitas vezes, é difícil sustentar, por exemplo, a
tese de que o que um indivíduo ou grupo sofre hoje seja conseqüência direta de uma
injustiça que seus antecessores sofreram no passado.
Seguindo esse princípio da compensação ou reparação, Walters (1997 apud
Santos, 2007, p. 425) declara que
a ação afirmativa é um conceito que indica que, a fim de compensar negros, outras
minorias em desvantagens e as mulheres pela discriminação sofrida no passado,
devem ser distribuídos recursos sociais como empregos, educação, moradias, etc., de
forma tal a promover o objetivo social final da igualdade.
Examinando a definição de Cashmore, autor americano, Santos (2007) conclui
que sua definição também está fundamentada nesse mesmo princípio quando ele declara
que ação afirmativa é uma política pública que
é voltada para reverter as tendências históricas que conferiram às minorias e
às mulheres uma posição de desvantagem, particularmente nas áreas de
educação e emprego. Ela visa ir além da tentativa de garantir igualdade de
oportunidades individuais ao tornar crime a discriminação, e tem como
principais beneficiários os membros de grupos que enfrentaram preconceitos
(Cashmore, 2000 p. 31 apud SANTOS, 2007, p. 428, grifo nosso).
59
Também encontramos essa mesma base em Silvério (2002b, p. 91-92), quando
defende que “ações afirmativas são um conjunto de ações e orientações do governo para
proteger minorias e grupos que tenham sido discriminados no passado”. Se por um lado,
a Justiça Compensatória propugna uma justiça retroativa para reparar danos que foram
causados em tempos anteriores, a Justiça Distributiva tem seu foco na justiça social
35
no
presente e refere-se
à necessidade de se promover a redistribuição equânime dos ônus, direitos,
vantagens, riqueza e outros importantes “bens” e “benefícios” entre os
membros da sociedade. Tal redistribuição teria o efeito de mitigar as
iniqüidades decorrentes da discriminação (GOMES, 2001, p. 66).
Sendo o racismo e o sexismo barreiras, dentre outras, que são antepostas ao
pleno desenvolvimento de pessoas e grupos e ao seu acesso aos recursos e benefícios
que a sociedade oferece, é necessário que sejam criados mecanismos, como ações
afirmativas, que possibilitem, se não igualar os indivíduos, ao menos reduzir as
desvantagens competitivas entre eles. “Portanto, sob essa ótica, a ação afirmativa
define-se como um mecanismo de ‘redistribuição’ de bens, benefícios, vantagens e
oportunidades que foram monopolizadas por um grupo em detrimento de outros [...]
(GOMES, 2001, p. 68).
Uma ilustração do uso do princípio da Justiça Distributiva, encontramos numa
definição abrangente de ação afirmativa, proposta por um historiador norte-americano,
segundo o qual, ação afirmativa
significa mais do que o combate contra a discriminação. A ação afirmativa
indica uma intervenção estatal para promover o aumento da presença negra
- ou feminina, ou de outras minorias étnicas - na educação, no emprego, e
nas outras esferas da vida pública. Promover esse aumento implica levar em
conta a cor como critério relevante na seleção de candidatos para tais
oportunidades [...]. Tradicionalmente foram as pessoas brancas as favorecidas
para qualquer oportunidade social ou econômica; com a ão afirmativa, o
Estado estabelece certas preferências para as pessoas negras, ou mulheres, ou
membros de outras minorias étnicas. Essas preferências não são absolutas; a
raça é um dos critérios utilizados para a distribuição de vagas nas
faculdades ou empregos. Um candidato negro de baixa capacidade não pode
substituir a um candidato branco de alta capacidade. Mas, no caso de
competição entre dois candidatos de capacidade mais ou menos igual, um
branco e outro negro, segundo os critérios da ação afirmativa, o candidato
negro teria preferência sobre o branco (Andrews, 1997, p. 137-138, apud
SANTOS, 2007, p. 426 grifos do autor).
35
Para Feres Júnior (2006, p. 47), o conceito de Justiça Distributiva se encaixa no de justiça social.
60
Também, orientando-se pelo pressuposto filosófico da Justiça Distributiva,
Calvès (2004) chama a atenção para o fato de que uma política de ação afirmativa é uma
política preferencial e não apenas diferencial, como pôde notar em diversos países.
Trata-se de uma política de nivelamento, que visa garantir que ocorra igualdade de
oportunidades aos membros de grupos menos favorecidos na sociedade. Segundo a
autora, a política de ação afirmativa faz parte de uma lógica de encurtamento das
distâncias sócio-econômicas entre os indivíduos
36
.
Em direito internacional, como ocorre em numerosos países onde é praticada,
a ação afirmativa (discriminação positiva) é o instrumento-chave de uma
política de nivelamento entre diferentes grupos. Ela visa promover entre eles
uma maior igualdade de fato, ou, pelo menos, garantir aos membros dos
grupos em desvantagem, uma verdadeira igualdade de oportunidades. Ela se
inscreve numa lógica de diminuição da distância no plano de
desenvolvimento econômico e social e supõe, então, mais que um tratamento
diferencial, um verdadeiro tratamento preferencial (CALVÈS, 2004, p. 7,
grifo da autora, tradução livre).
Nesta mesma direção, e acrescentando um alerta quanto ao uso “naturalizado”
das categorias “sexo”, “cor”, “raça”, etnia”, implicando na distribuição de recursos
públicos, Guimarães (1999, p. 174-175) afirma que ações afirmativas “são políticas que
visam afirmar o direito de acesso a tais recursos a membros de grupos sub-
representados, uma vez que se tenham boas razões e evidências para supor que o acesso
seja controlado por mecanismos ilegítimos de discriminação (racial, étnica, sexual)”.
Guimarães (1999) ainda acrescenta que as ações afirmativas têm caráter preventivo,
visando evitar a expropriação de direitos e de oportunidades de indivíduos e grupos
fragilizados socialmente.
Ao tecer considerações importantes sobre a base filosófico-constitucional do
programa de direitos civis dos EUA, Gomes (2001) declara que é a tese da Justiça
Distributiva que apóia grande parte dos argumentos daqueles que defendem as ações
afirmativas, por considerarem que assim têm mais poder de convencimento. Mas o
36
En droit international comme dans les nombreux pays, ou elle est pratiquée, la discrimination positive est
l’instrument clé d’une politique de rattrapage entre différents groupes. Elle vise à promouvoir entre eux une plus
grande égalité de fait, ou, à tout le moins, à garantir aux membres des groupes désavantagés une véritable égalité des
chances. Elle s’inscrit dans une logique de comblement d’un écart de développement économique et social et suppose
donc, plus, qu’um simple traitement différencié, l’instauration d’um véritable traitement préférentiel” (CALVÈS,
2004, p. 7, grifo da autora).
61
autor não deixa de apontar que, também, ocorre o uso de ambas noções para a
justificação de políticas de ação afirmativa
37
, como fica bem ilustrado a seguir:
Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de
políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou
voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de
gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da
discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do
ideal de igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o
emprego (GOMES, 2001, p. 40).
Depois de percorrer algumas discussões jurídicas e normativas a respeito da
questão, Moehlecke (2002) elabora sua conceituação, também tendo como base tanto a
noção de Justiça Compensatória quanto a de Justiça Distributiva:
[...] podemos falar em ação afirmativa como uma ação
reparatória/compensatória e/ou preventiva, que busca corrigir uma situação
de discriminação e desigualdade infringida a certos grupos no passado,
presente ou futuro, durante um período limitado. A ênfase em um ou mais
desses aspectos dependerá do grupo visado e do contexto histórico e social
(MOEHLECKE, 2002, p. 203, grifo nosso).
Tendo como base o multiculturalismo, o argumento da diversidade também tem
sido usado para a justificação da ação afirmativa (GOMES, 2001; FERES JÚNIOR,
2006). Para Gomes, essa justificação é encontrada em tendências mais moderadas e
apresenta uma discussão entre universalismo e particularismo nas democracias liberais.
O princípio liberal por excelência não admite particularismos. Ou seja, pretende uma
legislação que tenha caráter universal. Diante disto, Gomes (2001) questiona se um
Estado com essa postura seria capaz de atender com eqüidade aos “cidadãos detentores
de identidades e etnias diversas da dominante”. Reportando-se ao conceito de
“reconhecimento” de Charles Taylor, Gomes irá concluir que ações com base numa
política de reconhecimento é justificativa válida para se lutar por direitos iguais entre os
cidadãos. O exemplo que evoca é o da luta pelos direitos civis nos EUA na década de
1960, que deu origem às ações afirmativas em solo norte-americano, como já dito
anteriormente.
Feres Júnior (2006, p. 47) esboça, em seu ensaio como se deu ao longo do tempo
nos EUA, a mudança dos argumentos de justificação de ações afirmativas, a partir do
37
Feres Júnior (2006, p. 48-49 ) considera que o discurso do Presidente Lyndon Johnson, proferido para a turma de
formandos da Howard University, em 1965, está baseado em ambos pressupostos, de reparação e de justiça social,
pois chama a atenção para os efeitos nefastos da escravidão e para o enfrentamento que era necessário em função das
dificuldades competitivas dos negros norte-americanos, à época.
62
que ele chamou de tipologia tripartite: reparação, justiça social e diversidade. No
primeiro momento, que perdurou décadas, prevaleceu o argumento da reparação.
Segundo Guimarães (1999), as ações afirmativas, nesse momento, estavam sob a
inspiração do direito consuetudinário inglês, que era baseado numa “antiga noção” de
reparação por uma injustiça passada, noção esta que fundamentou muitas das decisões
de Cortes norte-americanas. Feres Júnior (2006) cita os casos emblemáticos, julgados
pela Suprema Corte, o Regents of the University of Califórnia v. Bakke, em 1978 e o
Adarand Constructors Inc, v. Peña, em 1995. No segundo momento, sobressaiu o
argumento da justiça social. Para D’Adesky (2006, p. 7), justiça social é um conceito
“fundamentado na percepção de igualdade de oportunidades”. Isso significa promover,
em circunstâncias específicas, “políticas públicas capazes de compensar, reduzir,
mediante dotações desiguais (portanto, mais equitativas), as disparidades que afetam
minorias e membros de grupos em situação de desvantagem por motivos raciais, étnico,
religioso, etc”. No entanto, argumento da justiça social sofreu duros golpes nas décadas
que se seguiram ao desmonte do Estado de Bem-Estar Social norte-americano,
conforme Feres Júnior (2006, p. 52).
A defesa das ações afirmativas pelo argumento da diversidade, nos EUA, veio
crescendo nos últimos anos, dadas algumas dificuldades que as políticas de ação
afirmativa enfrentaram nesse país, sendo inclusive banidas de estados importantes,
como Califórnia, Texas e Flórida. Se, por um lado, o argumento da diversidade pôde ser
usado inúmeras vezes no âmbito da Corte norte-americana nas últimas décadas, como
nos informa Feres Júnior (2006), por outro, esse mesmo argumento trouxe
desdobramentos negativos, no sentido de diluir a importância da raça, de abrandar a
idéia de reparação e competir com a idéia de justiça social. No caso da raça, porque
outros critérios passaram a ser exigidos; a noção de reparação fica prejudicada, porque
“diversidade tem um registro temporal incerto, às vezes sugerindo a produção de um
tempo futuro quando as diferenças puderem se expressar em todas as instâncias da
sociedade” (FERES JUNIOR, 2006, p. 54). E a idéia de combate à desigualdade,
implícita na justiça social, fica comprometida pela “valorização geral da diferença”.
As ações afirmativas não ficaram restritas à Índia e aos EUA, pois diversas
outras experiências são registradas pela literatura: Malásia, antiga União Soviética,
Israel, Nigéria, Colômbia, Canadá, África do Sul, vários países da Europa Ocidental,
Austrália, Argentina, Cuba, México, Líbano, Nova Zelândia, Hungria, etc.
(MOLECKE, 2002; SILVA, 2002; CALVÈS, 2004; PINTO, 2006; D’ADESKY, 2006).
63
Na Europa, as primeiras experiências ocorreram em 1976, com as denominações de
“ação ou discriminação positiva”, ou “ação compensatória” de acordo com Molecke
(2002, p. 199) e Pinto (2006, p. 145).
A despeito da origem indiana das políticas de ação afirmativa, é o exemplo
norte-americano que mais significado tem para a política de ação afirmativa brasileira,
dadas algumas semelhanças históricas e a forte influência cultural desse país, como nos
lembra Feres Júnior (2006). Assim, foi importante esta incursão pelos princípios
filosóficos que norteiam as políticas de ação afirmativa e esta rápida mirada pela
realidade norte-americana, para podermos tratar, em seguida, das ações afirmativas no
Brasil, no Capítulo 4.
64
CAPÍTULO 4 – AÇÃO AFIRMATIVA NO BRASIL: DEBATES E
PRÁTICAS
Foi pela via da implantação de legislação antidiscriminatória
38
que os grupos do
movimento negro se pautaram durante muitos anos. Mas, posteriormente, com uma
percepção mais refinada para as desigualdades estruturais passaram a combater o
racismo institucional. Risério (2007, p. 326) nos fala dessa mudança de perspectiva nos
seguintes termos: “Se a questão central, do culo XVI ao XIX, era livrar-se da
condição escrava, passou esta questão a ser, do século XX ao XXI, livrar-se da linha de
pobreza e da condição proletária”. O novo movimento negro, surgido a partir dos anos
1970, já não trazia a visão assimilacionista e culturalista dos seus antecessores. Além do
mais, nas décadas anteriores, os grupos negros estavam envolvidos em “políticas
clientelistas e corporativistas”, como nos informa Telles (2003).
Traçando um breve percurso histórico dos grupos do chamado movimento negro
brasileiro, até o ano de 2001, podemos notar como se deu essa mudança de estratégia.
Segundo Guimarães (2003c, p.248), as entidades negras, nos anos 1920
39
, tinham em
mente que o próprio negro era responsável pelo seu infortúnio, dada as suas
precariedades de origem, de educação e de formação. Diversos autores, estudiosos do
movimento negro brasileiro, assinalam a perspectiva assimilacionista da Frente Negra
Brasileira (FNB), primeira entidade negra a atuar no campo político (1931 a 1938):
“movimento reivindicatório de tipo assimilacionista”, é como Regina P. Pinto (1987, p.
9) define a FNB. No campo da cultura, não defendiam as manifestações culturais
africanas, por considerá-las primitivas (GUIMARÃES, 1999, p. 227). Ao defenderem,
a integração à sociedade mais ampla, da forma como ocorria entre os imigrantes, havia
pouco espaço para a construção de uma identidade negra diferenciada, completa
(D’Adesky, 2001, p. 152).
em 1945, as associações negras abandonaram parcialmente o diagnóstico de
que, a despeito do “preconceito de cor”, o problema estava no próprio negro, mas ainda
compartilhavam o ideal de assimilação implícito na chamada democracia racial
brasileira (GUIMARÃES, 2003c, p. 248). Lutava-se contra os preconceitos, mas
persistiam os sentimentos de inferioridade, uma vez que a referência simbólica
38
Na Convenção Nacional do Negro Brasileiro, de 1946, os ativistas negros reivindicavam que o preconceito e a
discriminação se tornassem ofensas criminais (SILVÉRIO, 2008, p. 223).
39
Já havia uma atuante imprensa negra desde os anos 1915, como nos informa Santos (2001, p 14).
65
continuava a ser a do branco europeu (D’ADESKY, 2001, p. 152). O Teatro
Experimental do Negro (TEN) é um exemplo emblemático de defesa da visão
assimilacionista dessa época (GUIMARÃES, 1999 e 2003c), como já dissemos na
página 42.
Com o início do período ditatorial, em 1964, a idéia da democracia racial tornou-
se estratégica para os sucessivos governos militares e os grupos do movimento negro
foram proscritos. No entanto, muito desses grupos não deixaram de atuar, assumindo,
progressivamente, um discurso racialista e multicultural (GUIMARÃES, 1999, p. 227),
atribuindo o caráter de mito” à idéia de um país de convivência pacífica e harmoniosa
entre as raças. A partir dos anos 1970, o era o “preconceito racial”, mas a
“discriminação racial” o principal alvo da mobilização negra, conforme Guimarães
(2003c, p. 248):
Essa foi uma diferença crucial em relação às décadas passadas: a pobreza
negra passou a ser tributada às desigualdades de tratamento e de
oportunidades de cunho “racial” (e não apenas de cor). E os responsáveis por
tal estado já não eram os próprios negros e sua falta de união, mas o
establishment branco, governo e sociedade civil, numa palavra, o racismo
difuso na sociedade brasileira.
A passagem para uma “política negra moderna” se concretiza com a fundação do
Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, em 1978. Anteriormente a
esse fato, Telles lembra da fundação do Ilê Aiyê, na Bahia, em 1974, marcando a
transição das mobilizações culturais do passado para um protesto negro moderno”
(TELLES, 2003, p. 70), bem como das iniciativas em prol de uma identidade negra do
movimento Black Soul, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Para D’Adesky (2001, p. 153
e 161), operou-se um corte epistemológico, pois os grupos do movimento negro vieram
a assumir
uma posição anti-racista diferencialista (ou comunitarista) de tipo espírito-
cultural [...] que considera ser necessário preservar as identidades culturais
diante dos efeitos da cultura ocidental hegemônica que homogeneíza e
desenraiza o indivíduo negro, ao mesmo tempo que espelha uma imagem
depreciada e deformada do negro e de seu grupo.
66
Tivemos a oportunidade de testemunhar e vivenciar, nos anos 1980
40
, a
efervescência da mobilização para a causa do negro na sociedade, que não se restringiu
aos principais centros do país. Apesar de Andrews (1991 apud D’ADESKY, 2001, p.
155) assinalar que o que houve foi um refluxo e perda de influência política do
movimento negro nessa época, D’Adesky (2001) uma idéia positiva da expansão do
movimento negro no período, bem como Telles (2003) afirma que foi mesmo como
resposta às reivindicações crescentes do movimento negro que se implantaram
conselhos voltados à necessidade da população negra em diversos estados. Alguns
exemplos ilustram essa influência atribuída ao movimento negro em importantes
decisões governamentais e legislativas: o deputado Abdias Nascimento propôs o Projeto
de Lei 1.332, em 1983, que propunha “ação compensatória” para negros, mas que
não foi aprovado pelo Congresso Nacional; o governo brasileiro reconheceu, em 1984, a
Serra da Barriga, sede do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, como patrimônio
histórico do país; nesse mesmo ano, o governo de São Paulo instituiu o Conselho de
Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra - seguindo esse exemplo,
estabeleceram-se conselhos estaduais na Bahia, Rio Grande de Sul, Minas Gerais, Mato
Grosso do Sul e Distrito Federal e conselhos municipais no Rio de Janeiro, Belém,
Santos e Uberaba (JACCOUD e BEGHIN, 2002, p. 16); a instituição da Fundação
Cultural Palmares, em 1988, pelo Ministério da Cultura; a promulgação da Lei nº 7.716,
em 5 de janeiro de 1989, de âmbito federal, que define os crimes resultantes de
preconceitos de raça ou de cor (SILVA JR., 1998, p. 52); a introdução, nesse ano
também da história africana no currículo escolar de e graus dos colégios da cidade
de Salvador, Bahia. D’Adesky (2001) não deixa de salientar que foram medidas
tomadas por órgãos do governo, a despeito de terem objetivos comuns com os do
movimento negro e terem em seu comando muitas pessoas ligadas às associações
negras.
O papel relevante do movimento negro no processo democrático brasileiro, que
apesar de cadas vir denunciando o racismo difuso na sociedade, só veio ter suas
reivindicações contempladas a partir da Constituição de 1988. Por isto, merece destaque
a grande vitória dos movimentos sociais, particularmente negros, que conseguiram
influenciar decisivamente a Constituição, principalmente no caso da luta anti-racista,
40
Em nosso período de militância no Grupo de União e Consciência Negra, de 1982 a 1992, participamos de diversos
congressos do grupo, bem como trabalhamos em parceria com a Pastoral de Combate ao Racismo, da Igreja
Metodista. De 1993 a 1996, participamos do Grupo Interdisciplinar de Estudos Afro-brasileiros, da Faculdade de
Letras, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
67
fazendo-se aprovar o artigo 5º, inciso 42, que tipificou o racismo como crime
inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão. Além da criminalização do
racismo, o movimento auferiu outras conquistas importantes tais como: o
reconhecimento das contribuições culturais dos diversos agrupamentos étnicos e o
direito de posse e titulação das terras aos remanescentes dos quilombos.
A partir da Carta Constitucional, os grupos do movimento negro alavancaram
um forte trabalho pela cidadania do povo negro (GUIMARÃES, 2003c, p.248). No
entanto, o que se seguiu à promulgação da Carta Magna foram políticas públicas
tímidas, voltadas para a diversidade cultural e constatou-se a pouca eficácia das leis de
combate aos crimes de racismo (SILVÉRIO, 2008, p. 217). Isto fez com que o
movimento negro voltasse seu foco para ações concretas de luta contra as desigualdades
e demandasse por políticas públicas de ações afirmativas (HERINGER, 2001;
GUIMARÃES, 2003c), tema que será aprofundado mais adiante.
Essa demanda representou uma importante guinada na pauta de reivindicação
dos negros brasileiros, dando início a uma era de luta contra as desigualdades
sociais do país, vistas agora como “raciais”, independentemente do combate à
discriminação e ao preconceito (GUIMARÃES, 2003c, p. 249).
Acompanhando a mudança ocorrida em diversos movimentos sociais, vários
grupos do movimento negro estruturam-se como organizações não-governamentais
(ONGs)
41
, nos anos 1990, tendo estrutura, meios e perfil profissional diferenciados,
organizações que tornaram-se “cada vez mais seus representantes institucionais”
(TELLES, 2003, p. 73). Em 1994, o Centro de Articulação de Populações
Marginalizadas (CEAP), fundada em 1979, seguiu essa tendência de estruturar-se como
uma ONG. Muitas lideranças negras receberam o apoio da Fundação Ford para criar
ONGs, tais como: Geledés Instituto da Mulher Negra Brasileira, em 1990 e o Centro
de Estudo das Relações do Trabalho e Desigualdade (CEERT), posteriormente,
conforme Telles (2003).
De 1992 a 1997, instituíram-se vários SOS Racismo, através das organizações
do movimento negro, visando estabelecer uma linha direta para defender as timas da
discriminação racial: em 1992, pela iniciativa do Instituto de Pesquisa das Culturas
Negras no Rio de Janeiro (IPCN), funcionou o primeiro desses serviços como um
jornal. Em 1993, o Geledés também estruturou um SOS Racismo, porém no formato de
41
Em D’Adesky (2001, p. 153-156) encontramos, também, um pequeno rol dessas entidades.
68
assistência jurídica. Outros estados reproduziram tais experiências, como Rio de
Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, Sergipe e Pernambuco (TELLES, 2003, p. 74).
Em 20 de novembro de 1995, aconteceu a “Marcha Zumbi dos Palmares contra
o Racismo, pela Cidadania e a Vida”, em homenagem aos 300 anos da morte do grande
líder do Quilombo dos Palmares. Milhares de pessoas se dirigiram a Brasília e, ao final
do encontro, lideranças do movimento negro e sindicalistas apresentaram suas
reivindicações ao então presidente Fernando Henrique Cardoso. O documento
apresentava a situação do negro no país e trazia um programa de ações concretas para o
fim do racismo e das desigualdades raciais no Brasil. Em uma de suas exortações, o
documento expressava que
É dever do Estado Democrático de Direito esforçar-se para favorecer a
criação de condições efetivas que permitam a todos beneficiar-se da
igualdade de oportunidade, assegurando a eliminação de qualquer fonte de
discriminação direta ou indiretamente e reorientando o sistema educacional
no sentido da valorização da pluralidade étnica que caracteriza nossa
sociedade (JACCOUD e BEGHIN, 2002, p. 45).
A resposta do governo foi imediata. No mesmo dia, o presidente estabeleceu, por
decreto, o Grupo de Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra (GTI
População Negra), ligado ao Ministério da Justiça. Jaccoud e Beghin (2002, p. 19)
ressaltam que foi a partir da articulação dos segmentos do movimento negro, que
pleiteavam políticas públicas eficazes no combate às desigualdades, que tal iniciativa
governamental aconteceu. Pela primeira vez, na história do Brasil, um presidente da
república “reconhecia a existência de racismo no país e anunciava a possibilidade de
medidas de promoção da justiça racial, rompendo assim com décadas de negativa
formal do racismo” (TELLES, 2003, p. 77). O GTI População Negra foi organizado de
forma colegiada, contemplando oito representantes da sociedade civil, provenientes do
movimento negro (JACCOUD e BEGHIN, 2002, p. 20).
O Ministério da Justiça promoveu o Seminário Internacional sobre
“Multiculturalismo e racismo: o papel da ação afirmativa nos Estados democráticos
contemporâneos”, em 1996, tendo a participação de pesquisadores nacionais e norte-
americanos e um número expressivo de lideranças do movimento negro brasileiro.
Guimarães (2003c, p. 252) lembra a importância do acontecimento, enfatizando o
caráter oficial do evento, que foi aberto pelo Presidente da República, ladeado pelo
Vice-presidente e pelo Ministro da Justiça.
69
Foi criada a Aliança Estratégica de Afro-latino-americanos (La Alianza), em
1998, tendo o movimento negro brasileiro tido um papel fundamental nesse
acontecimento. Trata-se de uma organização, com sede em Montevidéu, que congrega
negros latino-americanos e do Caribe que têm como objetivo promover “a capacitação
de lideranças, troca de informações, debates sobre problemas comuns e o
desenvolvimento de estratégias regionais” (TELLES, 2003, p. 91).
Heringer (2001) fez um levantamento sobre as diferentes estratégias de combate
às desigualdades raciais por ONGs, órgãos do governo, empresas, universidades,
igrejas, partidos, sindicatos e outras instituições, entre o final dos anos 1990 até o ano
de 2000, em dez principais capitais do pais, inclusive no Distrito Federal. No período
considerado, foram identificadas 124 experiências. Focalizaremos, neste trabalho, as
análises relacionadas ao protagonismo do movimento negro. Foi encontrada grande
variedade de ações e organizações engajadas no combate às desigualdades. ONGs
ligadas ao movimento negro, mas também aquelas iniciativas do poder público mais
local se sobressaíram; 1/3 das experiências estavam explicitamente orientadas para o
atendimento específico à população negra. As áreas de atuação mais encontradas foram
educação, trabalho e geração de renda e direitos humanos e Advocacy, nesta ordem. Das
quinze atividades identificadas por Heringer (2001), essas estavam relacionadas às
organizações negras
42
: a) “estímulo e ampliação do acesso de afro-brasileiros ao ensino
superior”, aos moldes de cursinhos pré-vestibulares; b) “atividades comunitárias”,
principalmente em favelas ou bairros periféricos; c) “reconhecimento e titulação de
terras de comunidades remanescentes de quilombos”, atividade da Fundação Palmares,
que conta com a colaboração de diversos atores, inclusive ONGs; d) “Grupo de
Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra GTI”; e) “Projeto
Geração XXI”, uma parceria entre Geledés Instituto da Mulher Negra e Fundação Bank
Boston; d) advocay action”, uma importante estratégia utilizada pelas organizações
negras.
O então deputado Paulo Paim apresentou o Projeto de Lei 3.198, em 2000,
que “institui o Estatuto da Igualdade Racial
43
, em defesa dos que sofrem preconceito ou
discriminação em função de sua etnia, raça e/ou cor, e outras providências”, que foi
42
Em função da delimitação deste trabalho, as experiências serão apenas citadas.
43
Depois de tramitar durante dez anos no Congresso Nacional, o Estatuto foi aprovado em junho de 2010, no Senado
e sancionada como lei, sob número 12.288 no dia 20/07/2010, pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva, com várias
alterações em relação ao texto original, mas prevê a adoção de programas de ação afirmativa.
(www.portaldaigualdade.gov.br)
70
elaborado com a colaboração de diversos consultores, intelectuais ligados às questões
raciais e o movimento negro.
No Brasil, o debate político sobre ações afirmativas com recorte racial se inicia
na década de 1990, através das pautas de reivindicação do movimento negro, como
dissemos acima e tomou grande impulso com os eventos preparatórios para a III
Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerância Correlata (CMR)
44
, realizada em Durban, que aconteceu no
período de 31 de agosto a 08 de setembro de 2001. Estiveram presentes delegações de
173 países, 4 mil ONGs e mais de 16 mil participantes. As conferências anteriores
foram em 1978 e em 1983. O documento resultante dessa conferência recomendou a
adoção de políticas que visassem o desenvolvimento igualitário dos segmentos sociais
histórica e tradicionalmente marginalizados nas sociedades. Dentre suas recomendações
destacamos:
[...] 4. Insta os Estados a facilitarem a participação de pessoas de
descendência africana em todos os aspectos políticos, econômicos, sociais e
culturais da sociedade, no avanço e no desenvolvimento econômico de seus
países e a promoverem um maior conhecimento e um maior respeito pela sua
herança e cultura,
5. Solicita que os Estados, apoiados pela cooperação internacional,
considerem positivamente a concentração de investimentos adicionais nos
serviços de saúde, educação, saúde pública, energia elétrica, água potável e
controle ambiental, bem como outras iniciativas de ações afirmativas ou de
ações positivas, principalmente, nas comunidades de origem africana, [...]
(DECLARAÇÃO DE DURBAN, 2001, p. 37-38)
A CMR configurou-se como uma baliza importante para a recomposição da
agenda das relações raciais, tanto no mundo quanto no Brasil (HERINGER, 2006, p.
79), pois que reacendeu o debate e estimulou a introdução de ações afirmativas na
legislação brasileira. A possibilidade de intervir num evento da magnitude da CMR
mobilizou, ativamente, órgãos do governo, organizações do movimento negro e diversas
entidades da sociedade civil que tinham o interesse de ver suas demandas atendidas.
Assim, os eventos preparatórios da CMR contribuíram para alavancar as discussões em
torno das relações raciais vigentes até então (HERINGER, 2006, p. 79). Telles (2003, p
86 a 93) descreve com detalhes como foi trilhado esse “caminho” até Durban e destaca
a importância dessas pré-conferências, no Brasil, como verdadeiro estimulante para o
44
A exemplo de Heringer (2006, p. 80), utilizaremos CMR para nos referirmos à essa conferência, neste trabalho.
71
movimento negro brasileiro, dado o ineditismo de se poder discutir, francamente,
questões de racismo com pessoas do alto escalão do governo.
Dentre os eventos que impulsionaram as ões brasileiras de combate ao
racismo, da década de 1980 ao início do ano 2000, a CMR é considerada por muitos
estudiosos como um divisor de águas. Os pesquisadores destacam alguns fatores para
apoiar sua argumentação: a atuação do governo brasileiro, particularmente FHC, que se
empenhou diretamente para a mudança de conduta da chancelaria brasileira nos
encontros internacionais que antecederam a CMR, não mais difundindo a imagem do
país como democracia racial; a intensa mobilização do movimento negro e o
posicionamento inovador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
45
(IPEA); a
inédita cobertura que a mídia brasileira deu à temática racial, durante o evento; as
transformações que se seguiram após a conferência com o maior destaque que a
temática racial passou a ter na sociedade civil e em termos das ações governamentais
com vistas a reverter as desigualdades raciais (FERES JR., 2006; HERINGER, 2006;
TELLES, 2003; GUIMARÃES, 2003c; MUNANGA, 2001; ROSEMBERG, mimeo 1).
Segundo Guimarães (1999, p. 201), antes do impulso da CMR, há registros
históricos, no Brasil, de “algumas experiências de discriminação positiva bem
sucedidas”, ainda que não se utilizasse a nomenclatura de ações afirmativas naquela
época e que ambas não tivessem recorte racial: a lei de 2/3
46
, assinada por Getúlio
Vargas, era voltada para a admissão de trabalhadores nacionais em qualquer fábrica
instalada no país e a lei de incentivos fiscais, voltada para a nascente burguesia
industrial nordestina. O primeiro registro de tentativa de se criar uma lei que estabelecia
uma porcentagem mínima de “empregados de cor”, foi por iniciativa dos técnicos do
Ministério do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho, em 1968, mas a lei não
chegou a ser elaborada, conforme Moehlecke (2002, p. 204). Jaccoud e Beghin (2002,
p. 45) lembram que foi em 1969 que o Brasil promulgou a Convenção Internacional
sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, que preconiza a adoção
de políticas de ação afirmativa voltadas “para garantir o desenvolvimento e a proteção
dos indivíduos pertencentes a certos grupos raciais, com a finalidade de garantir-lhes o
pleno e igual desfrute dos direitos humanos”.
45
O IPEA, vinculado ao Ministério do Planejamento, publicou dados revelando a dimensão das desigualdades raciais
no país, provendo as liderança do movimento negro com argumentos sólidos (ROSEMBERG, mimeo 1).
46
[...] Decreto-Lei 5.452, de de março de 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), previa, no seu
artigo 354, cota de dois terços de brasileiros para empregados de empresas individuais ou coletivas(PINTO, 2006,
p. 146).
72
Através da legislação eleitoral, instituiu-se, nacionalmente, em 1995, a primeira
política de cotas, que estabelece que 30% das candidaturas dos partidos políticos devem
ser destinadas às mulheres. De 1996 até 2001 aconteceram várias iniciativas
legislativas, objetivando políticas de ação afirmativas. Moehlecke (2002) afirma, no
entanto, que até o final dos anos 1990, nenhum desses projetos de lei tinham sido
aprovados ou implementados. Jaccoud e Beghin (2002) fizeram um levantamento
sistematizado e detalhado das ações realizadas pelo governo federal que estavam sendo
implementadas no período de 1995 a 2002.
Os desdobramentos da CMR não tardaram a aparecer tanto no âmbito
governamental (federal, estadual e municipal), quanto na sociedade civil. Ainda durante
a Conferência, o Ministério do Desenvolvimento Agrário anunciou a adoção de 20%
para a participação de negros em posições administrativas e em concursos públicos. Em
outubro de 2001 foi a vez da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro estabelecer que
“40% das vagas nas universidades estaduais seriam dedicadas a negros e pardos”; na
sequência, através do Ministério Público de Minas Gerais, reservou-se 50% de vagas
nas universidades estaduais para estudantes da rede pública de ensino; em dezembro de
2001, o Ministério da Justiça e o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceram que ao
menos “20% dos diretores, consultores sênior e funcionários de empresas terceirizadas
que prestam serviço ao STF deveriam ser negros”; em março de 2002, o Ministério do
Trabalho determinou que 20% dos recursos do Fundo de Assistência ao Trabalhador
(FAT), para cursos de treinamento e de capacitação, fossem destinados a trabalhadores
negros, especialmente às mulheres. Seguiram-se diversas iniciativas em nível estadual e
municipal, no início de 2002, tendo algumas localidades implantado ações voltadas
exclusivamente para indígenas (TELLES, 2003, p. 96).
Para Heringer (2006), as ações no plano federal não eram, inicialmente,
resultado de ação coordenada. Só em maio de 2002 é que o presidente Fernando
Henrique Cardoso, ao lançar o segundo Programa Nacional de Direitos Humanos
(PNDH II), instituiu, também, o Programa Nacional de Ações Afirmativas, mas que não
se efetivou dada a situação política de fim de mandato. A autora destaca que, em vel
estadual, o principal acontecimento foi o ineditismo da implantação de cotas para o
ingresso nas universidades estaduais: no Rio de Janeiro, na Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF); na
Bahia, na Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
73
Uma iniciativa considerada emblemática, nesse período, foi a criação do
Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco, que consiste em oferecer bolsas
de estudo para negros e indígenas se prepararem para o concurso de diplomata do
Ministério das Relações Exteriores, um dos mais prestigiosos do país (ROSEMBERG,
mimeo 1).
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva, iniciado em 2003, de pronto mostrou-se
mais sensível às reivindicações por igualdade racial do que o de Fernando Henrique
Cardoso. Entre outras iniciativas, é possível constatar isto, segundo Feres Júnior e
Zoninsein (2006, p. 33), pela maior quantidade de ministros negros que nomeou, pelo
pioneirismo da indicação de um negro para o Supremo Tribunal Federal e pela criação
da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) com
estatuto de ministério, em março de 2003. Os autores informam, também, que, nesse
governo, difundiu-se a criação de programas de promoção da igualdade racial,
particularmente no Ministério da Educação. O presidente Lula sancionou uma lei,
muito esperada pelo movimento negro, a Lei nº 10.639, em janeiro de 2003, que tornou
obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escola de ensino
fundamental e médio de todo o país.
Diferentemente do governo anterior, onde inicialmente não havia previsão de
ações coordenadas, a criação da SEPPIR que tem por objetivo “articular, estimular e
monitorar as iniciativas em diferentes áreas, implementadas por diversos órgãos do
governo” (HERINGER, 2006, p. 87). A autora nos lembra, no entanto, que não foi sem
controvérsia a criação de uma secretaria nos moldes da SEPPIR, encarregada da
promoção da igualdade racial de forma transversal. Em seus primeiros dois anos, a
SEPPIR conseguiu trabalhar articuladamente com o Ministério da Educação, para
planejar a implantação da Lei 10.639 e para a definição de programas de acesso de
estudantes negros ao ensino superior; com o Ministério da Saúde, a autora destaca como
referência a realização do I Seminário Nacional de Saúde da População Negra, que
aconteceu em Brasília, em agosto de 2004; e a instituição do Comitê Técnico de Saúde
da População Negra; com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA) e a Fundação Cultural Palmares (FCP), a definição da política para as
comunidades quilombolas; com a Casa Civil, a elaboração de projeto para ampliação do
acesso da população negra ao ensino superior, no começo de 2004.
Em sua avaliação dos primeiros dois anos do governo Lula, Heringer (2006)
ressalta que, a despeito de louváveis iniciativas no campo da promoção da igualdade
74
racial, não havia consenso, dentro do governo, em relação a essas medidas. Isto em
função da composição heterogênea de sustentação política do governo, o que trouxe
conseqüências para o apoio ao programa de ação afirmativa.
No plano federal, Heringer (2006) informa que o governo instituiu 15% dos
recursos do Plano de Ação para o Sistema Nacional de Emprego (PLANSINE), para
atendimento a grupos vulneráveis, com recorte racial. No plano estadual e municipal, as
administrações destinaram um número de vagas para negros em concursos públicos. Até
dezembro de 2004, onze universidades estaduais haviam estabelecido programas de
ação afirmativa para alunos negros.
Para trazermos as experiências de ações afirmativas no âmbito da sociedade
civil, é importante sinalizarmos que a resistência, de parte da sociedade, às políticas
públicas com recorte racial no Brasil, foi quebrada parcialmente pela ressonância
positiva que teve, na opinião pública internacional, o fato de o país ter aposentado a
doutrina da democracia racial, por ocasião da CMR, em Durban (GUIMARÃES, 2003c,
p. 255).
Como vimos, datam da década de 1990 as primeiras iniciativas na sociedade
voltadas para o combate às desigualdades, por meio de políticas de ação afirmativa. Na
avaliação de Heringer (2006, p. 90), no entanto, a maioria das experiências “tinham um
caráter piloto e experimental, e algumas poucas delas apenas conseguiram consolidar-se
como alternativas concretas e viáveis de inclusão racial”. A autora destaca, nesse
período, as redes de pré-vestibulares comunitários, que se difundiram para todo o país.
Guimarães (2003c, p. 259) informa que a criação desses cursinhos foi a primeira
tentativa de o movimento negro fazer frente às dificuldades de acesso dos negros ao
ensino superior. Rosemberg (mimeo 1) completa afirmando que, além do objetivo de
preparar alunos negros para o vestibular, esses cursos também buscavam conscientizar
jovens negros e de camadas populares da sua condição social e racial. No levantamento
de Heringer (2001, p 20), percebemos que, apesar de ser uma experiência disseminada,
não havia uma uniformidade quanto ao público-alvo a ser alcançado nos cursinhos pré-
vestibulares: alguns não faziam o recorte racial em sua proposta. Dentre as iniciativas
que Heringer (2006) distingue estão o “Educação e Cidadania de Afro-Descendentes e
Carentes (EDUCAFRO)” e o “Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC).”
Das propostas no campo da iniciativa privada, no período de 2001 a 2004,
Heringer (2006) encontrou um maior foco tanto no ensino superior quanto na inserção
no mercado de trabalho. Verificou, também, que as empresas buscaram parcerias com
75
ONGs e que a área voltada para a “responsabilidade social empresarial” tem sido um
espaço de expansão para os programas de ação afirmativa nas empresas. também
aqueles projetos de cunho mais geral, sem focar objetivos de diversidade racial. As
ações das empresas no campo educacional têm sido voltadas para o médio prazo e de
alcance limitado, conforme afirma Heringer (2006).
Considerando o mesmo período, Heringer (2006) também avaliou as
experiências de ONGs e dos movimentos sociais. Ela encontrou muitas iniciativas onde
ocorreram parcerias com agências de cooperação internacional, destacando dois
programas apoiados pela Fundação Ford. Um deles é o Programa Políticas da Cor na
Educação Brasileira (PPCor), criado em 2001 pelo Laboratório de Políticas Públicas
(LPP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que promoveu cinco
edições do “Concurso Cor no Ensino Superior” com o objetivo de apoiar projetos
destinados a promover e ampliar as possibilidades de acesso e permanência de
estudantes negros no ensino universitário. Durante seus três primeiros anos, o PPCor
assumiu um destacado papel no cada vez mais intenso debate sobre os processos de
democratização do ensino superior
47
. Foram 27 projetos desenvolvidos por ONGs,
movimentos sociais e acadêmicos. O outro foi o apoio dado pela Fundação Ford, em
2002, ao “Concurso Ação Durban”, promovido pelo Centro de Estatística Religiosa e
Investigações Sociais (CERIS). O concurso visava dar suporte a ações consideradas
modelares, objetivando à implantação do Plano de Ação da CMR. Uma ausência notada
na análise de Heringer, é a implantação do Concurso Negro e Educação, a partir de
1999, pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd),
através da ONG Ação Educativa, com financiamento da Fundação Ford. Segundo Siss e
Oliveira (s/d, p. 2) o “objetivo do concurso é ampliar o quadro de pesquisadores na área,
[...]”.
Outras ações concretas apontadas por Heringer (2006) após Durban, voltadas
para a “ascensão social da comunidade de forma imediata”, foram aquelas realizadas na
promoção dos empresariado negro, pela “QualiAfro Diversidade na Prática” e pela
“Integrare”, ambas em São Paulo. Outra iniciativa destacada pela autora é a Incubadora
Afro-Brasileira, do Instituto Palmares de Direitos Humanos (IPDH), criada em
setembro de 2004, no Rio de Janeiro, cujo objetivo é promover a atuação de
profissionais e empreendedores negros. O Centro de Apoio às Populações
47
http://www.politicasdacor.net/
76
Marginalizadas (CEAP), em conjunto com outras ONGs, organizou a campanha “Ação
Afirmativa, Atitude Positiva”, com o objetivo de identificar com o selo da Camélia, o
símbolo que foi usado pelos abolicionistas no século XIX, aquelas empresas que
contratassem negros para seus quadros e para reconhecer aquelas empresas que lutam
pela causa do negro. Em 2004, o Sindicato dos Comerciários de São Paulo, firmou um
acordo pioneiro com uma rede de lojas, na qual se reservava 20% das vagas para
trabalhadores negros.
É em função do quadro de desvantagens, ao qual nosreferimos anteriormente,
que as propostas de ação afirmativa, objetivando ampliar o acesso de negros e indígenas
na graduação, se expandiram em todo o país ao longo dos últimos três anos, analisados
por Heringer (2006). A autora lembra que as primeiras propostas de iniciativas de ação
afirmativa para estudantes negros em universidades públicas são do final dos anos 1990.
Tais iniciativas adquiriram maior visibilidade na “versão de ‘cotas raciais’” (MAIO e
SANTOS, 2006, p. 14). A primeira, na Universidade de Brasília (UnB), cujo primeiro
projeto de cotas para negros foi apresentado em novembro de 1999, mas apenas
aprovado em 2003, depois de longo e acirrado debate, tanto interna quanto
externamente
48
; a segunda, na UERJ e na UENF, com propostas de cotas para
estudantes negros e provenientes da escola pública. As propostas dessas duas
universidades do Rio de Janeiro foram alvo de críticas, não pelo mérito da questão
em si, mas pela forma como se deu sua implantação, posto que elas sofreram
contestações judiciais por alunos que se sentiram excluídos do processo e também por
um deputado estadual
49
. Em dezembro de 2004, haviam 15 outras iniciativas de
programa de ação afirmativa em universidades públicas. Heringer (2006) nos lembra
que as políticas desses programas não seguiram um padrão comum e cada universidade
estabeleceu seu próprio procedimento para discussão e aprovação das propostas. O que
a autora destaca é que, a não ser nos casos da UnB, da UERJ e da UENF, “as demais
universidades optaram por definir reserva de vagas combinando o critério de
classificação racial
50
com o de ter estudado em escola pública do ensino médio”.
Para as universidades que instituíram reserva de vagas para negros, prevaleceu o
critério da autodeclaração para definir quem seria beneficiário, de acordo com a
classificação preto/pardo do IBGE, equivalendo ao termo negro. A Universidade
48
Conforme Steil (2006).
49
Veja também em Feres Júnior (2006).
50
Apresentaremos uma seção específica para discutirmos classificação e denominação racial no Brasil.
77
Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS) e a UnB utilizaram o método da identificação
por fotografia, o que causou alguns constrangimentos e processos judiciais. A discussão
sobre ampliação e acesso de negros ao ensino superior se expandiu para o restante do
país. Heringer (2006) elenca mais 12 iniciativas que estavam em fase de implantação, à
época de seu estudo. Hoje se contariam 83 programas implantados em nível federal,
estadual e municipal, nas modalidades de sistema de cotas ou bônus, conforme
informação no sítio do Programa Políticas da Cor. o sítio do Fórum Interinstitucional
em Defesa das Ações Afirmativas, em seu Mapa das Ações Afirmativas, a notícia de
que são setenta e nove IES, oitenta e sete iniciativas no mercado de trabalho e no plano
do poder público, duas leis federais e seis iniciativas em autarquias federais e no poder
judiciário
51
.
Além de critérios menos excludentes para o acesso, seja para estudantes negros,
indígenas ou oriundos de escola pública, é necessário garantir-lhes a permanência nas
instituições de ensino superior, de maneira que possam auferir resultados positivos em
suas carreiras. Entre as experiências que analisou, Heringer (2006) concluiu que ainda
eram incipientes a adoção de medidas auxiliares tais como bolsas, ajuda de custo,
auxílio moradia e outras. Para Rosemberg (mimeo 1), são necessárias medidas
complementares que fortaleçam o acesso ao conhecimento e sugere “a elaboração de um
projeto político-educacional e a disponibilidade de recursos materiais e humanos”.
Telles (2003, p. 278) completa afirmando que é preciso ainda auxiliar o aluno egresso
desses programas “na busca de empregos adequados à educação obtida, o que ajudaria a
superar o nível relativamente fraco de capital social que possuem”.
Digno de nota, quanto a essa atenção à permanência dos beneficiários de um
programa de ação afirmativa, é o trabalho de acompanhamento aos bolsistas, que é
desenvolvido no Programa IFP. O acompanhamento é composto de uma fase pré-
acadêmica, que se refere ao apoio dado ao bolsista antes da seleção na pós-graduação
“recursos para aquisição de livros, para viagem e estadia visando à seleção num curso
de pós-graduação, para curso de língua estrangeira e orientação para aperfeiçoamento
do pré-projeto” - e depois um acompanhamento após o seu ingresso em um curso,
consistindo de monitoramento e orientação no uso dos recursos e no desempenho
acadêmico. (ROSEMBERG, 2008, p. 211).
51
www.acoes.ufscar.br e www.politicasdacor.net
78
Como já dissemos, em outubro de 2003, foi criado um Grupo de Trabalho
Interministerial (GTI), com a tarefa de levantar dados à respeito da desigualdade racial
no ensino superior e propor medidas para saná-la. No início do ano de 2004, o
Ministério da Educação (MEC) encaminhou à Casa Civil um texto de medida provisória
autorizando a adoção de cotas, pelas universidades públicas. Heringer (2006) destaca
que, a proposta de medida provisória propunha o uso da autodeclaração para identificar
os futuros beneficiados pelas cotas. Em fevereiro de 2004, Tarso Genro assume como
novo ministro da educação, posicionando-se contrário às cotas e propondo o uso do
método de vagas sobrantes
52
. Evidentemente surgiram reações a favor e contrárias de
diversos setores, recolocando o debate nesses termos, como afirma Heringer (2006),
levando, assim, à diluição da questão principal que era do acesso às universidades
públicas. O resultado de tudo isto foi o aumento daqueles que preferiam estabelecer
cotas para estudantes egressos do ensino médio em escolas públicas e não daqueles que
defendiam a adoção de cotas para negros. Outra conseqüência do debate acerca do
acesso da população negra e indígena, apontada pela autora, foi a mobilização em torno
da democratização do ensino superior, privilegiando-se o acesso à universidade aos
alunos originários de escola pública.
Quanto ao debate sobre ações afirmativas, particularmente aquele relativo à
implantação de cotas nas instituições de ensino superior, ocorrido nas fileiras do
governo federal, Heringer (2006) nos informa que tal tema nunca alcançou relevância
no MEC. Na verdade, houve resistência por parte de alguns setores, durante todo o
governo de Fernando Henrique Cardoso. Guimarães (2003c) nos informa que, até a
realização da CMR, a maior parte da ação do governo restringia-se a programas de
cunho universalistas, como “Alvorada”, “Avança Brasil” e “Comunidade Solidária”. O
ministro da educação, Paulo Renato Souza, no princípio, não admitia “o caráter ‘racial
das desigualdades raciais, preferindo atribuí-las ao mau funcionamento do ensino
fundamental público e a questões de renda e classe social” (GUIMARÃES, 2003c, p.
254). A falta de vontade política, no entanto, foi contornada no final de 2002, em função
da pressão do movimento negro, resultando daí a única medida concreta nesse governo,
que foi a criação do Programa Diversidade na Universidade (GUIMARÃES, 2003c, p.
52
“[...] o aproveitamento de 100 mil vagas ociosas nas universidades privadas que seriam ocupadas por estudantes
negros, indígenas, portadores de deficiência e ex-presidiários, [...] A contrapartida do governo seria um plano de
renúncia fiscal que beneficiaria as universidades privadas que adotassem o sistema” (HERINGER, 2006, p. 100).
79
261 e HERINGER, 2006, p. 99). Com a criação da SEPPIR, no governo Lula, houve um
incremento no debate a respeito da ampliação do acesso de negros ao ensino superior.
Levando em consideração o embate em prol do fim das desigualdades, iniciado
nos anos 1990 aos dias de hoje, encontramos inúmeros argumentos tanto favoráveis
quanto contrários às ações afirmativas. É importante salientar que foi no meio desse
debate que foi implementado o Programa IFP, o qual se assume como um programa de
ação afirmativa na pós-graduação. Especificamente, em relação a medidas de ação
afirmativa no ensino superior, os argumentos contrários têm sido pacientemente
refutados pelos que m implantando programas de ação afirmativa” (ROSEMBERG,
mimeo 1), como veremos em seguida.
Pela ocorrência de ampla produção, tanto acadêmica quanto midiática, sobre
essa altercação, limitamos o nosso olhar à primeira arena e indicamos alguns autores
que analisaram, com maestria, os principais argumentos e os pressupostos esgrimidos
nessa contenda. Guimarães (1999, p. 165-196) discute em um capítulo os argumentos
contra e pró ações afirmativas, esquematizando-os tanto para a realidade norte-
americana quanto brasileira. Heringer (1999, p. 14 a 21) apresenta e discute os
principais argumentos a favor e contra. Jaccoud e Beghin (2002, p. 50 e 51)
complementam a discussão feita por Hélio Santos. Silvério (2002a, p. 219-246) dedica
um artigo para analisar o debate brasileiro. Moehlecke (2002, p. 197-217) também faz
uma discussão sobre o debate em um artigo. Guimarães (2002, p. 70 a 75) apresenta
alguns dados refutando os argumentos contrários às ações afirmativas e afirma que seus
detratadores fazem é defender privilégios. Telles (2003, p. 274 a 295) sistematiza e
analisa os pontos principais, além de apresentar sugestões para o desenvolvimento das
políticas de ação afirmativa. Steil (2006) organizou, num livro, o debate acadêmico
sobre a política de cotas para negros no vestibular, focalizando o polêmico processo de
implantação das cotas na Universidade de Brasília. Feres Júnior e Zoninsein (2006)
trazem textos de autores que também apresentam e discutem os pontos do debate, dentre
eles Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto. Rosemberg (mimeo 1) faz a discussão dos
argumentos contrários à introdução de ação afirmativa no ensino superior. PAIXÃO
(2008, p. 135) avaliou a coerência dos argumentos contrários, a partir de suas matrizes
teóricas subjacentes, quais sejam: liberal, democrático-racial, nacionalista, culturalista
contemporâneo, funcionalista, marxista e geneticista. Em seu texto, Paixão salienta os
pontos de convergência, bem como as contradições entre essas diferentes matrizes.
Tomando como referência essa identificação feita por Paixão, propomos uma
80
categorização dos principais elementos suscitados no debate, principalmente por aqueles
contrários à implantação das ações afirmativas no Brasil. Antes, é necessário apresentar,
de maneira sucinta, cada matriz teórica.
A visão liberal tem como principal fundamento o conceito de igualdade jurídica
de todos os indivíduos perante a lei. Basta que o Estado garanta direitos universais
negativos, para que esse princípio esteja garantido, conforme dito anteriormente. A
formação dos estratos sociais se dentro do princípio do mérito, ou seja, “os ativos
adquiríveis, tais como a experiência pessoal e profissional” (PAIXÃO, 2008, p. 137), de
cada indivíduo, o que resultaria na construção de desigualdades. Tal concepção tem
como pressuposto a competição por recursos que são escassos, bem como a defesa de
direitos individuais.
O discurso democrático-racial está fundamentado no mito da democracia racial,
que irá enfatizar o caráter miscigenado do povo brasileiro para justificar o obstáculo de
se implantar políticas de ação afirmativa, “tendo em vista as dificuldades da população
em se reconhecer como branca ou negra” (PAIXÃO, 2008, p. 139). Segundo o autor,
entende-se que no Brasil, dada a sua mestiçagem, as relações sociais ocorrem em clima
“naturalmente” paternalista e hierarquizado social e racialmente, onde cada pessoa
conheceria, por antecipação, qual é o seu lugar na sociedade. O mais importante,
segundo o autor, é a defesa do que ele chama de um ativo nacional, sustentada por
argumentos de ordem sociológica, quer dizer
[...] no Brasil, a ausência do racismo e do preconceito racial,
associada ao consenso estabelecido de que os negros são piores
do que os brancos (miscigenados ou não) em termos estéticos,
culturais se intelectivos, guardam o caráter de um patrimônio
cultural nacional imaterial (PAIXÃO, 2008, p. 140).
A fundamentação nacionalista respalda-se no modelo desenvolvimentista que
perdurou no país entre as décadas de 1930 a 1970. Nessa perspectiva, a cultura é
instrumentalizada com o propósito de construção do Estado-Nação. Para os
nacionalistas “as especificidades culturais são fundamentalmente importantes por conta
de seu valor enquanto instrumento para a modernização de uma nação portadora de
estruturas políticas e econômicas atrasadas (PAIXÃO, 2008, p. 141, grifo do autor).
Os argumentos contrários às políticas de promoção da igualdade racial derivadas
da tradição culturalista contemporânea são próprios daqueles que reconhecem que a
81
democracia racial no Brasil é um mito, mas que defendem que o país tenha alcançado
um patamar imaginado de uma sociedade moderna e industrializada”, ou seja, atingiu
uma paz inter-racial, que outros países liberais não teriam conseguido.
Para Paixão (2008, p. 152), pontos de convergência entre os argumentos
democrático-racial, nacionalista e culturalista contemporâneo. Essas visões
compartilham da visão de que o modelo de relações raciais brasileiras é único e
primordialmente virtuoso.
O ponto central das concepções funcionalistas é que geracionalmente os negros
se estabilizam em posições sociais menos valorizadas, permanecendo, de maneira
perceptível, nos estratos inferiores da pirâmide social e em grande quantidade. Haveria
uma cronicidade nessas posições em função da herança do passado escravista; em
função do peso do preconceito que seria social e não racial e em função de que a
“condição negra remontaria ao tema da pobreza e não às barreiras motivadas por
mecanismos discriminatórios derivado de sua raça(PAIXÃO, 2008, p. 145, grifo do
autor). De acordo com essa perspectiva, as desigualdades raciais brasileiras são
espontâneas e têm como causa o fato de haver mais negros na população pobre. Assim,
funcionalistas defendem a ação do Estado, junto aos setores mais pobres da população
em geral.
Segundo uma corrente hegemônica, dentro da perspectiva marxista, o racismo
não é visto como algo estrutural do sistema capitalista. A fundamentação que norteia
esse entendimento é que as contradições dentro desse sistema situam-se na luta de
classes, ou seja, entre operários e capitalistas. Compreende-se que a luta anti-racista
atingiria seus propósitos “após a superação da sociedade capitalista” (PAIXÃO, 2008,
p. 148-9). Por se guiarem por essa orientação classista, defendem princípios
universalistas na aplicação de políticas sociais.
O ponto de vista geneticista baseia-se nos avanços no campo do estudo genético,
que desautorizam o discurso racialista, que associa “características físicas a atributos
físicos, culturais e mentais” (PAIXÃO, 2008, p. 164). Também se fundamenta em
pesquisas relativas às origens do povo brasileiro, que atestaram o caráter miscigenado
de nossa população. Os opositores de políticas de equidade racial se utilizam dessas
conclusões para sustentar seus argumentos, bem como para deslegitimar o discurso do
movimento negro. O autor ainda informa que as outras seis matrizes analisadas se
identificam com a perspectiva geneticista, pois concordam que não haja uma realidade
biológica para o conceito de raça e assim mobilizam os “experimentos do campo da
82
genética, para articular discursos contrários às demandas [...]” de políticas públicas com
recorte racial resultando esse uso instrumental, em permear de racialismo “um debate
que desde seus conteúdos essenciais, prescinde de semelhante fundamentação”
(PAIXÃO, 2008, p. 165).
Seguimos apresentando os principais elementos de crítica à proposta de ação
afirmativa de recorte racial no ensino superior, que foram identificados por importantes
autores quando examinaram esses pontos polêmicos.
A questão relacionada à definição racial e a autoclassificação, considerada
uma das principais críticas a ão afirmativa no Brasil, segundo a qual não existiriam
fronteiras raciais definidas no país e, portanto, não haveria como definir quem é negro,
quem é branco. Tal apontamento foi identificado nas análises dos seguintes autores:
Guimarães (1999, p. 184, 190, 192 e 206); Guimarães (2002, p. 70 e 75); Guimarães
(2003, p. 263); Silvério (2003, p. 327 e 336); Telles (2003, p. 289); Maio e Santos
(2006, p. 33, 143 e 154); Guimarães (2006, p. 52 e 55); Azevedo (2006, p. 2006, p. 63);
Pinto (2006, p. 149); Schwarcz (2006, p. 90); Sansone (2006, p. 94); Lima (2006, p.
105); Carvalho (2006, p. 115); Pena (2006, p. 129) e Maggie (2006, p. 133/4).
Decorrente dessa questão da definição racial foi encontrado o problema do
oportunismo, ou seja, tendo em vista fronteiras raciais frouxas, haveria possibilidade
de candidatos a programas de ação afirmativa passarem a linha de cor, os chamados
“fraudadores raciais” ou “burladores raciais”. Esse elemento do debate foi identificado
por: Guimarães (1999, p. 192 e 208); Guimarães (2002, p. 75); Guimarães (2003, p.
205); Telles (2003, p. 289); Maio e Santos (2006, p. 23 e 46); Guimarães (2006, p. 52 a
55); Schwarcz, (2006, p. 90); Sansone (2006, p. 94); Carvalho (2006, p. 115); Maggie
(2006, p. 132) e Pinto (2006, p. 154/5). Considerando os estudos de Paixão (2008),
enquadramos ambos os elementos do debate, dentro das perspectivas democrático
racial, nacionalista, culturalista contemporânea e geneticista.
Como determinar qual seria o grupo-alvo das “políticas para compensar
minorias” é outro ponto levantado no debate, a partir das análises de Guimarães (1999,
p. 191) e Pinto (2006, p. 146). Consideramos que tal questionamento inscreve-se dentro
das perspectivas funcionalistas e culturalista contemporâneo.
Outro ponto problematizado e que direcionou muito das discussões a respeito da
implantação das ações afirmativas no Brasil, foi a ênfase na modalidade de cotas como
única forma de acesso dos negros no ensino superior e que sistema de cotas atenderia
somente a uma elite negra. Essas temáticas foram identificada nos estudos de
83
Guimarães (1999, p. 188 e 193); Heringer (1999, mimeo 1, p. 14); Guimarães (2002, p.
70); Pinto (2006, p. 146, 149, 162); Maio e Santos (2006, p. 14); Ribeiro (2006, p. 72);
Lima (2006, p. 107), Rosemberg (2008, p. 205) e Rosemberg (mimeo 7, p. 6). Estes
pontos podem ser alocados dentro das abordagens liberal, funcionalista, democrático-
racial, nacionalista e culturalista contemporâneo.
Um ponto que teve considerável ênfase no debate foi o entendimento que os
programas de ação afirmativa pressupunham a eliminação da idéia de mérito. Foram
vários os autores que examinaram esse argumento: Guimarães (1999, p. 185, 193);
Heringer (1999, mimeo 1, p. 14); Heringer (2001, p. 51); Silvério (2002a, p. 237);
Silvério (2003, p. 327); Moehlecke (2002, p. 210); Guimarães (2002, p. 73/4); Telles
(2003, p. 286/7); Guimarães (2003, p. 266); Pinto (2006, p. 140, 149) e Rosemberg
(mimeo 7, p. 5). Tal argumento pode ser enquadrado dentro das matrizes teóricas
liberal, funcional, democrático-racial e culturalista contemporâneo.
Argumento recorrente no debate foi a ênfase em políticas universalistas. Tal
elemento foi apontado por Guimarães (1999, p. 187 e 193); Heringer (2001, p. 50/1);
Moehlecke (2002, p. 213); Telles (2003, p. 283); Duarte (2006, p. 99/101); Pinto (2006,
p. 149) e Rosemberg (mimeo 1, p. 16). Esse argumento é próprio das concepções
liberal, democrático-racial e marxista.
A preocupação com a perda da qualidade do ensino superior e a consequente
estigmatização dos futuros bolsistas, também foram destaques no debate, conforme
Heringer (1999, mimeo 1, p. 14); Moehlecke (2002, p. 210); Telles (2003, p. 284);
Guimarães (2003, p. 263); Pinto (2006, p. 156) e Rosemberg (mimeo 1, p. 15).
Acreditamos que tais argumentam estejam fundamentados em concepções teóricas
liberais e funcionalistas.
Da mesma maneira como analisou as formas de justificativa para implantação de
ações afirmativas nos EUA, Feres Júnior (2006) examinou as conseqüências do uso dos
argumentos de reparação, diversidade e justiça social para a implantação de programas
de ação afirmativa no Brasil.
Se para os norte-americanos houve um momento onde vigorou, separadamente,
cada modo de justificação, no Brasil eles ocorreram quase ao mesmo tempo,
sobressaindo mais os argumentos de reparação e de diversidade em detrimento ao de
justiça social, pouco usado. O autor, de pronto, explicita como ele ordenaria esses
argumentos, elegendo a justiça social como sua primeira opção, depois a reparação.
84
Para ele, o argumento da diversidade não deveria ter tanta importância (FERES, 2006,
p. 31).
Tanto para o argumento da reparação quanto para o de diversidade, o autor
apontou suas limitações quanto à operacionalidade em termos de implementação. A
reparação, apesar de forte apelo moral, esbarra, primeiramente, na questão do tempo,
pois segundo o autor não se transfere direitos ou culpabilidade (em casos de vítimas da
repressão militar), de maneira fácil aos descendentes. Outra dificuldade é de identificar
os beneficiários, considerando a ampla miscigenação da população. Por esse argumento,
ao se utilizar um critério de descendência africana poderíamos ter dois resultados
opostos: ou se teria uma grande maioria a ser beneficiada ou um número muito limitado
de favorecidos (FERES JUNIOR, 2006, p. 57).
A dificuldade operacional para o argumento da diversidade decorre da noção de
grupos discriminados, pautada numa concepção pragmática que implicaria numa
pluralidade de possíveis beneficiários, o que reduziria muito o alcance de ações
afirmativas pautadas nesse argumento. É um argumento que permite pensar pequenos
grupos, mas que traz dificuldade para implementar, por exemplo, políticas de ação
afirmativa para o acesso ao ensino superior para pretos e pardos, que juntos já são quase
a metade de população brasileira, segundo PNAD 2007.
Uma concepção essencializada da diversidade é de pouca utilidade para a
justificativa de implementação de políticas de ação afirmativa, pois pressupõe a idéia de
etnia que funciona como instrumento de se racializar a cultura ou se culturalizar
percepções raciais” segundo Feres Júnior (2006, p. 58). E como nos lembra Munanga
(1988 e 2004), esse é um caminho equivocado para o entendimento da realidade da
população negra no Brasil. No entanto, o argumento culturalista tem sido muito
utilizado num discurso anti-racista diferencialista, particularmente pelo movimento
negro (D’ADESKY, 2006, p. 161). Contudo, Feres Júnior não deixa de apontar uma
contradição nessa posição. Se, por um lado, a idéia de diversidade pressupõe variados
“modos de vida dados na sociedade”, o uso político que os grupos do movimento negro
faz do conceito negro, implica em negação dessa diversidade, por não levar em conta o
fenômeno da miscigenação. Outro problema que o autor aponta é que grande parte da
população não compartilha do significado que o movimento negro dá ao termo negro,
que é a aglutinação de pretos e pardos, o que comprometeria a legitimidade das políticas
de ação afirmativa que utilizassem desse recurso (FERES JÚNIOR, 2006, p. 59). O uso
85
da categoria negro, nesse sentido aglutinador de pretos e pardos, é também criticado por
Sergio Costa (1997), como veremos mais adiante.
Contrariamente aos outros dois argumentos, o da justiça social, além de ter
amparo constitucional, “atende a todos os grupos que sofrem discriminação sistemática,
sem necessidade de maiores justificações históricas, [...]. Ademais, tal argumento pode
ser conjugado ao argumento da reparação sem prejuízo mútuo, num jogo de soma
positiva” (FERES JUNIOR, 2006, p. 31). É um argumento que tem seu foco nas
desigualdades presentes e não em injustiças pretéritas. No caso brasileiro, são diversos
pesquisadores que atestam o componente racial dessas desigualdades, como vimos
anteriormente. Quanto aos possíveis beneficiários, o autor recomenda o uso das mesmas
categorias de cor-raça do IBGE na implantação de política de ação afirmativa, de modo
que sua justificação encontre apoio nas evidências estatísticas de desigualdade. Na
defesa desse argumento, Feres Junior (2006, p. 61) ainda complementa:
[...] o argumento da justiça social tem a virtude de não demandar nenhuma
essencialização identitária além dos critérios já praticados décadas por
institutos de pesquisa governamentais. Ademais, esse princípio pode ser
estendido, a outros grupos que sofrem ou possam vir a sofrer discriminação.
Um dos argumentos contrários mais recorrentes no debate, diz respeito ao
processo de classificação racial no Brasil, pelo qual, segundo os detratores, “seria
infactível deslindar-se quem seria negro ou branco” (PAIXÃO, 2008, p. 139), ponto
frequentemente apresentado como uma das dificuldades para efetivação, de políticas de
ação afirmativa . Assim sendo, faremos, no capítulo seguinte, uma breve mirada em
parte da bibliografia pertinente, para termos uma noção da especificidade da
identificação/classificação racial na sociedade brasileira e refletirmos sobre seu impacto
na implementação de experiências de ação afirmativa.
86
CAPÍTULO 5 - Classificação racial no Brasil
Dada a diversidade de configurações societárias, nenhum organismo
internacional propôs uma classificação geral para raças ou etnias. “Assim, em pesquisas
internacionais, quando a ‘etnicidade’ é objeto de interesse, geralmente é captada
segundo as categorias locais empregadas pelo órgão oficial de estatística do país”
(OSÓRIO, 2004, p. 106). São variados os modelos adotados pelos censos, em função da
história de cada sociedade: no Brasil, pergunta-se sobre a cor ou raça das pessoas; na
Índia, a orientação religiosa; na Inglaterra, o grupo étnico; na França, a nacionalidade;
nas Ilhas Maurício, os grupos lingüísticos; nos EUA e Canadá, a raça (OSÓRIO, 2004;
PETRUCCELLI, 2007).
Blumenbach, fisiologista e antropólogo alemão (1752-1840), foi quem
introduziu a cor da pele como critério básico para diferenciar as chamadas raças
humanas no século XVIII na Europa Ocidental. Sua classificação das raças humanas
associava cor da pele e região geográfica de origem em cinco tipos: branca ou
caucasiana; negra ou etiópica; amarela ou mongol; parda ou malaia e vermelha ou
americana. Muito dessa terminologia inspirou a forma de classificar em nosso país e no
restante do mundo. O vocabulário racial com base na “cor da pele” penetrou no Brasil
no período colonial, sendo usado nos inquéritos populacionais, de forma variada, desde
o primeiro Censo Demográfico de 1872 até os dias de hoje. que se observar, de
certo, que os sentidos dos termos variaram ao longo do tempo e de acordo com
contextos específicos (ROCHA e ROSEMBERG, 2007, p. 763), como veremos mais
adiante, quando falarmos do uso da categoria cor ou raça nos censos brasileiros.
Osório (2004) e Petruccelli (2007) lembram que classificar é um ato sico do
processo cognitivo, permitindo o conhecimento e o reconhecimento, bem como a vida
societária. “Classificações são o tijolo do simbólico”, afirma Osório. Por sua vez,
Petruccelli (2007, p. 10) ressalva que o processo de classificar ocorre em contextos
estruturados, ou seja, a operação de classificar é acompanhada por uma dissimetria entre
quem se no direito de classificar e quem é alvo da classificação. “Interpenetrada pelo
uso comum das categorias de cor, se verifica a presença de uma relação de dominação
simbólica expressada na classificação”. Como bem lembram Piza e Rosemberg (2003, p
107), “As palavras para nomear a cor das pessoas não são meros veículos neutros
87
enunciadores de matizes, mas carregam índices de preconceito/discriminação, de seu
distanciamento e de sua superação”.
Osório (2004, p. 92-93) aponta que, mesmo considerando a raça como uma
“realidade sociocultural”, há que se reconhecer um embasamento biológico, porém
adverte que as diferenças visíveis daí resultantes, quando ocorrem, não produzem por si
mesmas as desigualdades, uma vez que essas são socialmente construídas. No entanto,
deve-se levar em conta os aspectos biológicos e sociais na conceituação de cor.
Conforme Soares (2008, p. 103), cor é
uma construção social baseada parcialmente em características genéticas
herdadas da mãe, parcialmente em características genéticas herdadas do pai e
parcialmente em características socioeconômicas herdadas da família na qual
a criança nasce ou adquiridas ao longo da vida.
No processo classificatório, são atribuídos termos ou palavras a coisas, classes,
ou categorias. Petruccelli (2007) demarcou como se deu a formação da lexicografia
relacionada à cor como tropo para raça. Segundo o autor, já se faziam alusões às
características dos povos desde os primeiros contatos entre os europeus e os ameríndios
e essas referências às características continuaram a ser feitas aos africanos e seus
descendentes em solo brasileiro, a partir da segunda metade do século XVI. Assim,
construiu-se, ao longo do tempo, uma diversificada nomenclatura, muito mais
sofisticada que a utilizada nos dias de hoje, conforme Osório (2004, p.104), que
contemplava à intensa miscigenação, podendo produzir ainda identidades socialmente
construídas associadas a ela. Pela pesquisa que empreendeu, Petruccelli situa, entre os
séculos XIV e XVII, o aparecimento de marcadores referentes a essa mistura de raças.
No levantamento da gênese dos termos, o autor identificou o termo pardo como um dos
mais antigos, definido como “de cor entre o branco e o preto, mulato” (Cunha, 1982
apud PETRUCCELLI, 2007, p. 19). Em português e espanhol, parece derivado do latim
pardus e do grego pardos, significando leopardo (leão-pardo). Já havia referência ao
termo pardo na carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal, em 1500, falando
sobre os nativos “que a feiçam deles he serem pardos maneira avermelhados de boôs
rrostros e boos narizes bem feitos” (Castro, 1985, p. 41 apud PETRUCCELLI, 2007, p.
17).
O substantivo mulato é proveniente do castelhano, datado de 1525 e denomina a
ascendência de “pai branco e mãe preta ou vice-versa” (Cunha, 1982 apud
88
PETRUCCELLI, 2007, p. 19), que faz referência ao mulo, que é o resultado híbrido,
fruto de mestiçagem e que é infecundo, (Bonniol e Benoist, 1994 apud PETRUCCELLI,
2007, p. 19). De acordo com esse autor, no livro de Antonil, do século XVIII, uma
referência ao termo mulato, com conotação pejorativa atribuída aos descendentes
miscigenados de africanos (PETRUCCELLI, 2007, p. 17).
O termo mestiço, definido como “nascido de pais de raças diferentes” (Cunha,
1982, apud PETRUCCELLI, 2007, p. 19), nome ibérico, do espanhol mestizo, usado
como adjetivo ou substantivo, aparece no português no culo XIV. Etimologicamente
proveniente do “latim tardio mixticus, de mixtus, particípio passivo [sic] do verbo
miscère, misturar” (PETRUCCELLI, 2007, p. 20). Foi usado, inicialmente, nas Índias
Ocidentais para designar somente a ascendência de europeus com ameríndios.
O termo preto carece ainda de precisão quanto à sua exata origem, tanto no
espanhol, quanto no português. Said-Ali (1931 apud PETRUCCELLI, 2007, p. 21)
apresenta a seguinte definição para o termo branco::
[...] em sentido rigoroso, é a neve, a cal o leite, a ucena etc. Homem ou
mulher com a pele exatamente da cor destes objetos, não existe, nem nunca
existiu, [...] Na cor da pele de qualquer indivíduo da chamada raça branca ou
caucásica transparece sempre entre o alvo e o róseo um amarelado ou
morenado mais leve nos povos septentrionais, mais fortes nas gentes do
meio-dia.
Outras denominações, com menor representatividade estatística, também foram
estudadas por Petruccelli referentes às “qualificações aplicadas à descendência de
uniões com a população indígena”, tais como caboclo, cafuzo e bugre, mas não serão
tratadas aqui por estarem fora do escopo deste trabalho. Trataremos do termo negro
mais adiante.
O que a categoria cor significa no Brasil? Guimarães (1999, p. 104-5) apresenta
um breve trajeto de ampliação dessa categoria, no campo teórico, desde o estudo
pioneiro de Donald Pierson, em Salvador, nos anos 1930. Se nesse primeiro trabalho de
pesquisa, Pierson deu indicações de que a “cor” era mais do que pigmentação, incluindo
outras características físicas, (Harris e Kottak, 1963, apud GUIMARÃES, 1999, p. 104)
conseguiram comprovar como eram importantes e em qual ordem vinham os seguintes
elementos, na definição de cor: tipo de cabelo, formato do nariz e formato dos lábios.
Afastando-se dos pressupostos racialistas da época e adentrando nos estudos de relações
raciais, a Antropologia Social permitiu uma ampliação ainda maior do significado da
89
“cor”. Os estudos que se seguiram de 1940 a 1960 possibilitaram identificar a
associação do sistema de classificação brasileiro com hierarquização social. De acordo
com Nogueira (1998, p. 244), além dos traços físicos, a “identificação da cor de um
indivíduo é influenciada pela associação a outros característicos de status, como o grau
de instrução, a ocupação e os hábitos pessoais [bem como] sua associação tradicional ou
habitual com grupos predominantemente de brancos ou de pretos”.
Segundo Guimarães (1999, p 43), diversos autores consideravam que, tanto no
Brasil quanto na América Latina, não haveria preconceito racial, mas apenas
“preconceito de cor”. Aqueles que estudaram o Brasil alegavam que não se poderia falar
em grupos raciais no país, mas apenas em “grupos de cor”. Isto devido à particularidade
da forma de classificação racial de diversos países, baseada na aparência e não na
origem. Neste mesmo sentido, Nogueira (1998
53
, p. 239), ao fazer um exame das
relações raciais nos EUA e no Brasil, apontou que, em nosso país, ocorre o “preconceito
de cor ou de marca racial”, ao passo que norte-americanos nutririam um “preconceito de
origem”. Florestan Fernandes (1965, apud GUIMARÃES, 1999, p. 46) apontou para o
fato “de que o ‘preconceito de cor’ deveria ser usado como noção nativa
conceitualizado, no início, pela Frente Negra Brasileira, em 1930 para se referir à
forma particular de discriminação racial que oprime os negros brasileiros”. Mas, ao
problematizar essa idéia nativa de “cor”, Guimarães alerta que a atribuição de “cor” a
alguém não está isenta dos valores que orientam a nossa percepção. “É desse modo que
a ‘cor’, no Brasil, funciona como uma imagem figurada de “raça” (GUIMARÃES,
1999, p. 46), um “tropo
54
para raça” (GUIMARÃES, 2002, p. 54). Isto é, “a
classificação das pessoas por cor é orientada por um discurso sobre qualidades, atitudes
e essências transmitidas por sangue, que remontam a uma origem ancestral comum
numa das ‘subespécies humanas’” (GUIMARÃES, 2003a, p. 103).
Para o autor, um discurso classificatório que se pauta em cores, como um tropo
para raça, é um discurso naturalizado, uma vez que estamos no campo das construções
discursivas, não diante de dados de uma realidade concreta.
A bibliografia produzida por autores brasileiros ou estrangeiros, tem sido
praticamente unânime em apontar que o processo de classificação de cor/raça no Brasil
é baseado na aparência e não na ascendência (Nogueira, 1998, p. 239). Alguns raros
53
O relatório que originou o livro, foi publicado parceladamente na revista Anhembi nos anos de 1954 e 1955,
conforme nos informa Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, na introdução dessa edição do livro.
54
No Dicionário Houaiss, tropo é o emprego figurado de palavra ou locução, figura. Estas observações não se
aplicam ao contexto de classificação indígena-não indígena, como nos lembra Rocha (2005, p. 26).
90
estudos, porém, se referem a um sistema classificatório que se basearia também na
origem ou ascendência.
Talvez o texto que tenha dado mais atenção a este aspecto tenha sido o de Piza e
Rosemberg (2003) que efetuam uma análise exaustiva dos Censos desde o de 1872. O
primeiro recenseamento geral da população, o de 1872, que diferenciava as pessoas pela
condição de serem livres ou escravas. As categorias de cor utilizadas foram aquelas que
estavam mais disseminadas na população à época: preto, pardo, branco e caboclo. Preto
e pardo eram as categorias de cor, reservadas aos escravos, mas também para as pessoas
livres. A categoria caboclo, que possuía raiz na origem racial do declarante, era
reservada aos indígenas (PIZA e ROSEMBERG, 2003, p 2). Percebe-se a utilização de
um critério misto de fenótipo e de origem para a caracterização racial da população
(PIZA e ROSEMBERG, 2003; OSÓRIO, 2004 e PETRUCCELLI, 2004).
Segundo Rosemberg (2003, p. 94), no entanto, nem sempre foi desse jeito, pois
“o critério de descendência vigorou no Brasil, em determinados momentos históricos
[século XVIII e século XIX] e circunstâncias”.
O segundo censo geral, o de 1890, também adotou o critério misto para compor
as categorias (preto, branco, caboclo e mestiço), de modo a referir-se, explicitamente, à
ancestralidade ou ascendência das pessoas. Nota-se que o termo mestiço substituiu o
termo pardo e deveria ser usado para se referir, exclusivamente, aos descendentes da
união de pretos e brancos (PIZA e ROSEMBERG, 2003, p 5). Os censos que se
seguiram, 1900 e 1920, não coletaram cor da população.
Apesar de o Censo de 1920 não ter incluído a investigação sobre cor/raça da
população, Piza e Rosemberg (2002), citando Lamounier (1976), destacam a
justificativa oficial referente à exclusão do quesito, na qual se percebe, novamente, um
modo de classificação de cor/raça assentado na origem:
[...] as respostas [ocultam] em grande parte a verdade, especialmente [...] de
ordinário refratários à cor original a que pertencem [...] sendo que os
próprios indivíduos nem sempre podem declarar sua ascendência [...].Além
do mais, a tonalidade da cor deixa a desejar como critério discriminativo,
por seu elemento incerto [...] (Censo 1920, apud Lamounier, 1976, p. 18,
apud PIZA e ROSEMBERG, 2003, p. 6).
O quesito voltou a ser coletado no Censo de 1940, o primeiro da série de
censos modernos decenais e que utilizam as categorias branco, preto, pardo e amarelo.
O termo mestiço deu lugar ao termo pardo e criou-se a categoria amarelo para designar
91
os imigrantes asiáticos, particularmente japoneses e seus descendentes, que ingressaram
no país a partir de 1908. O Censo de 1950, segundo dos censos modernos, seguiu as
cores do Censo de 1940 e explicitava que a categoria pardo deveria abranger os índios,
mulatos, caboclos, cafuzos e outros, um amálgama de aparência e origem.
Os Censos de 1960 e 1980 seguiram esse mesmo padrão. o Censo de 1970
não coletou a informação sobre a cor e não foram expostos os motivos para não fazê-lo.
A partir do Censo de 1991, acrescentou-se a categoria indígena e a pergunta efetuada
passou a ser “Qual a cor ou raça?”, compondo as cinco categorias que são usadas
atualmente (PIZA e ROSEMBERG, 2003; OSÓRIO, 2004 e PETRUCCELLI, 2004).
Tal inclusão merece um comentário mais pormenorizado. Quando a literatura sobre
classificação/denominação de cor/raça se refere ao sistema brasileiro como orientado
pela aparência, seu foco, sem explicitá-lo, são os segmentos branco e negro (pretos e
pardos), posto que, conforme discussão efetuada por Antonio Carlos de Souza Lima
(2007)
55
, a autoidentificação entre os indígenas ocorre pela pertença uma etnia.
Uma outra referência sobre classificação com base na origem encontra-se no
artigo de Robin E. Sheriff (2002) “Como os senhores chamavam os escravos: discursos
sobre cor, raça e racismo um morro carioca”. Trata-se de artigo primoroso, que, a
nossos olhos, dentre outras qualidades, efetua uma distinção entre denominação e
classificação racial. No primeiro caso teríamos discursos descritivos: “Esses discursos
não são, propriamente falando, raciais, mas referem-se, antes, a conceitos de cor e
aparência” (SHERIFF, 2002, p. 226). Por outro lado, a autora identificou, também, “um
discursos ou identidade e classificação racial [...] que enfatiza tanto a raça como a noção
de categorias raciais distintas” (p. 226, 227). E é nesse padrão discursivo que a autora
se defronta com processos classificatórios que remetem à origem, o que, em seu texto
foi analisado a partir dos comentários de Ana Lúcia, moradora da vizinhança pesquisada
pela autora: “Eu sou parda, mas sou da raça negra” (p. 230). Na discussão do
comentário de Ana Lúcia, Sheriff (2002, p. 231) pondera: Ela [Ana Lúcia] refuta, ao
menos parcialmente, a noção de que, no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, a
identidade racial é determinada não pela família ou pelo parentesco, mas pela cor da
pessoa”.
E, em nota refere-se a observação equivalente de Benjamin Zimmerman, em
artigo de 1952, publicado no famoso e histórico livro de Charles Wagley “Race and
55
Doutor em Antropologia Social e pesquisador do CNPq. (http://lattes.cnpq.br/0201883600417969)
92
class in rural Brazil”: “Em numerosos casos, as pessoas entrevistadas disseram que não
podiam indicar a qualidade de algumas das pessoas da lista ‘porque não conheciam suas
famílias’ [...]” (Zimmerman, 1952, p. 103, apud SHERIFF, 2002, p. 240).
Por ocasião da Pesquisa Mensal de Emprego (PME) de 1998, como ensaio para
a introdução do termo afrodescentente no Censo de 2000, conforme análise de
Schwartzman (1999, apud ROCHA, 2005, p. 69), incluiu a pergunta sobre origem a
maioria das pessoas respondeu à pergunta via origem nacional dos pais ou origem
regional brasileira, o que pode ter desqualificado investigações mais aprofundadas sobre
a referência à origem na classificação de cor/raça.
Tais comentários são necessários, posto que, no Capítulo 2, da Parte III,
discutiremos a alta incidência da justificativa origem quando os sujeitos de nossa
amostra responderam porque optaram pela categoria indicada na pergunta que seguiu o
formato tradicional do IBGE.
Outros pontos do debate são muito importantes, referem-se aos modos
brasileiros de operar as classificações (se é bipolar ou múltiplo), quais são os sistemas
de classificação adotados no país (oficial ou oficiais, popular e outros) e o sistema de
coleta de dados (se por autodenominação ou hetero-denominação) (Rocha,2005).
Quanto aos modos de operar a classificação racial, Peter Fry (1995/1996 apud ROCHA,
2005, p. 60) identifica três modos diferenciados: um para as classes médias
intelectualizadas do meio urbano, que utilizariam um modo binário de classificação
(branco x negro); outro para as camadas populares, um modelo múltiplo, variando
contingencialmente; finalmente um modelo que combinaria uma forma reduzida do
modo múltiplo ou ampliada do bipolar, que resultaria no uso de três categorias - negro,
branco e “mulato” -, que seria, para Fry, o mesmo modelo utilizado oficialmente no
censo brasileiro.
Na interpretação de Telles (2003, p. 105), são três os modos para classificar a
população brasileira, dentro “de um continuum de cores do branco ao negro”, cada qual
apresentando uma variedade de categorias. De acordo com o autor, teríamos então: 1) o
modelo oficial dos censos do IBGE (cor/raça), utilizando cinco categorias (branco,
pardo, preto, amarelo e indígena); 2) “o discurso popular”, que, à primeira vista,
indicaria o uso de uma profusão de termos para descrever raças e cores, e 3) o sistema
bipolar (branco, negro), utilizado pelo movimento negro. Telles (2003), como outros
pesquisadores, sustenta sua caracterização do modelo múltiplo na variada terminologia
utilizada pelos brasileiros para descrever as gradações de cor.
93
D’Adesky (2001, p. 135) indica o uso de cinco modos de classificação racial:
1) o uso das cinco categorias oficiais do IBGE; 2) “o sistema branco, negro e índio,
referente ao mito fundador da civilização brasileira”; 3) o sistema classificatório popular
de 135 cores, segundo apurado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD, 1976); 4) o modo binário branco e o-branco usado por inúmeros
pesquisadores nas Ciências Humanas e 5) o modelo binário branco e negro, dos grupos
e organizações do movimento negro.
Para Rosemberg (2005), seria um equívoco associar linear vocabulário racial e
classificação ou identidade racial, bem como afirmar que o vocabulário utilizado pelo
IBGE, nos Censos Demográficos e nas PNADs, seja o vocabulário oficial do país.
Analisando diversos documentos oficiais, a autora identificou uma diversidade de
termos utilizados para se referir a cor/raça, além daqueles usados pelo IBGE. Segundo a
autora, o vocabulário para denominação varia de acordo com o contexto social em que é
utilizado. Por exemplo, o termo “afro-brasileiro” é mais empregado quando o tema está
relacionado ao contexto cultural e religioso; o termo negro, aos contextos
relacionados à explicitação de discriminação e preconceito. Um exemplo que vem do
interior de um órgão de governo, o Ministério da Educação, assinala esta diversidade de
denominação racial: nas provas elaboradas, em 2003, para o Sistema de Avaliação da
Educação Básica (SAEB), tanto para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem),
quanto para o Exame Nacional de Cursos (ENC), as alternativas para o campo de
pertença étnico-racial eram branco, negro (e não preto), mulato (e não pardo), amarelo e
indígena. Desta forma, Rosemberg (2005 apud ROCHA, 2005, p. 62)
chama a atenção que os diferentes contextos institucionais acionam
repertórios lingüísticos diversos que podem, ou não, ser associados a um
modelo bipolar ou múltiplo de classificação racial. Além disso, assinala que,
mesmo o sistema classificatório equivalente ao do IBGE e que inclui cinco
termos, pode apresentar vocabulários diversos em diferentes instrumentos
produzidos pelo Estado brasileiro.
Assim, a denominação/classificação racial usada em documentos do Estado
brasileiro não se assemelha a um sistema monolítico. Deste modo, os termos preto e
pardo, apesar de fazerem parte do vocabulário do IBGE para classificação racial, por
diferentes razões, não foram utilizados em leis e decretos contemporâneos, nas provas
do MEC até 2003. Em outro documento governamental, o Relatório Preparatório para a
Conferência de Durban (Brasil, 2000), que também foi assinado por representantes da
94
sociedade civil, comissões do legislativo, representante do Ministério Público Federal e
militantes do movimento negro, Rosemberg (2005) constatou o uso de uma
nomenclatura tendente a “um modelo bipolar ‘negro/afrodescendente-branco’ e restrita
a dois vocábulos ‘negro’ e ‘afro-descendente ou afro-brasileiro’, muito distante do
vocabulário usado nas pesquisas do IBGE”.
Muitos são os autores que defendem que no Brasil adotaríamos um modo
múltiplo de classificação racial, em função do nosso extenso e variado vocabulário
racial para nomear nossa cor/raça. São diversos os estudos
56
, conforme Rocha e
Rosemberg (2007, p. 768), que “identificaram inúmeros termos, em diferentes regiões
do país, para denominar ou classificar a si mesmo no espectro de cor ou em categorias
de raça”. Para alguns estudiosos, essa profusão de termos é que singulariza o sistema de
classificação brasileiro (Telles, 2003). Já outros vêem nesse fenômeno um indicador de
que o procedimento adotado pelo IBGE, nos censos demográficos e nas PNADs, é
inadequado. Rocha (2005) e Rocha e Rosemberg (2007) discutiram esses
posicionamentos a partir da análise de dois inquéritos realizados pelo IBGE - a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 1976 e a Pesquisa Mensal de Empregos
(PME) 1998 - e também da pesquisa DataFolha 1995, os quais também foram objeto de
estudo de diversos pesquisadores (TELLES, 2003; OSÓRIO, 2004; PETRUCELLI,
2004).
Na PNAD 1976, foram arrolados 135 termos diferentes e 143 na PME 1998, a
partir do procedimento de efetuar uma pergunta aberta aos respondentes: (“qual a sua
cor” em 1976 e “qual a sua cor ou raça” em 1998 (ROCHA e ROSEMBERG, 2007, p.
768). Essa multiplicidade de termos ensejaria uma “idéia da suposta enorme
complexidade do sistema classificatório brasileiro” (PETRUCCELLI, 2004, p. 18). Tal
idéia, porém, estaria sendo sustentada pela desatenção ao uso muito reduzido de vários
termos de acordo com Telles (2003) e Rocha (2005), muitos termos foram usados por
poucas pessoas que responderam aos inquéritos. Complementarmente, os pesquisadores
notaram uma forte concentração de respostas em poucos termos, particularmente
naqueles usados pelo IBGE.
[...] o fato de que 95% dos entrevistados usaram apenas seis termos é
frequentemente ignorado. Em nova análise dos dados de 1976, encontrou-se
que 135 termos foram usados na amostra de 82.577 brasileiros, mas 45 desses
56
Rocha e Rosemberg (2007, p. 767) apresentam um rol de pesquisas sobre vocabulário racial brasileiro. Apresentam
um quadro por autor, ano, local da pesquisa e os termos de cor e/ou raça encontrados.
95
termos foram utilizados por apenas uma ou duas pessoas. Oitenta e seis (86),
ou aproximadamente dois terços (64%) desses termos foram utilizados por
apenas 279 dos 82.577 entrevistados, correspondendo a 0,3% da população.
Logo, os brasileiros utilizaram uma vasta gama de termos raciais, mas a
grande maioria utiliza os mesmos termos (TELLES, 2003, p.107).
Assim, ao contrário do que supõem os críticos dos instrumentos utilizados pelo
IBGE, dentre os seis termos que foram usados por 95% da população, cinco são os
mesmos que o Instituto aplica em suas pesquisas: branco, preto, pardo, amarelo e
indígena. A partir desses achados, pesquisadores defendem os procedimentos do IBGE
(OSÓRIO, 2004, p. 85; PETRUCELLI, 2004, p. 20; TELLES, 2003, p. 107).
Rocha (2005) considera não apropriada a interpretação de que os resultados dos
inquéritos dão suporte à idéia de que teríamos um sistema classificatório múltiplo.
Reportando-se a estudos que utilizaram diversas fontes de dados, Petruccelli (2004, p.
21) chega mesmo a indicar um crescimento da tendência para um sistema bipolar, no
sentido de que nota “uma instabilidade das categorias intermediárias de cor frente à
fixidez da dicotomia branco/negro ou branco/não-branco”.
Encontramos uma problematização interessante sobre o caráter múltiplo das
categorias de classificação racial em D’Adesky (2003) e Petruccelli (2004). Ambos
autores apontam para o caráter hierarquizador implícito nessa variedade cromática. Ou
seja, haveria uma subordinação dos diversos termos da escala cromática ou do continum
de cor, a cor branca, tomada como “norma referencial positiva” (D’ADESKY, 2003, p.
136). Dito de outro modo, o ideal de branqueamento, imporia a cor branca como padrão
estético superior a ser alcançado, o que implicaria numa hierarquização.
A diversidade de termos usualmente encontrados permitiria realçar, na
caracterização da “aparência”, o componente mais claro, numa tentativa de
procurar melhor aceitação social apesar de outro componente ancestral
socialmente inferiorizado que se quer, simbolicamente, manter dissimulado
(Queiroz, s/d, p.4; Petruccelli, 2001, p. 10 apud PETRUCCELLI, 2004, p.
19).
Ao contrário de supor apenas uma capacidade inventiva fértil no sistema
classificatório popular, D’Adesky (2003, p. 137) identifica representações coletivas
fundamentadas nos binômios “elite/povo” e “branco/negro” e também na “ambigüidade
do racismo e anti-racismo universalista dominante no Brasil”. Assim, para o autor, trata-
se de uma dissemetria em forma de um continuum vertical em que a categoria branco
se situa no topo e a categoria negro em baixo”. Essa reflexão apontaria para uma
tendência à bipolaridade do sistema de classificação racial brasileiro. Além disso,
96
Petrucelli (2004, p. 21) destaca que a instabilidade das categorias intermediárias
contrasta com a “fixidez da dicotomia branco/negro ou branco/não branco”.
Debates sobre os sistema brasileiro de classificação racial vão além da discussão
sobre as categorias de cor/raça adotados. Outro aspecto crucial, e controverso, é o
“método de identificação de pertença” Osório (2004, p. 86), isto é, a maneira de como
se define a pertença da pessoa aos grupos raciais. Osório identifica três formas: 1) por
autoatribuição de pertença, no qual o próprio respondente “escolhe o grupo do qual se
considera membro”; 2) por hetero-atribuição de pertença, no qual outra pessoa define a
que grupo a pessoa pertence e 3) por identificação biológica, através de análise do
DNA
57
. Os dois primeiros são respectivamente chamados de processo de
autoidentificação e processo de heteroidentificação, por Piza e Rosemberg (2003, p. 91).
A opção de usar um modelo ou outro, ou mesmo ambos, tem variado de acordo
com a situação/instrumento em que está sendo usado. Osório (2004, p. 94) assinala a
convivência das três formas no Brasil. Em registros administrativos, no entanto,
casos onde só é possível uso da heteroatribuição, como em registro de nascimento ou de
morte. E outros, nos quais o próprio respondente é o interessado, a informação de
cor/raça é definida por autoatribuição. O autor ainda afirma que, nas pesquisas
domiciliares, do tipo surveys, realizadas pelo IBGE, é usado um método misto de auto e
de heteroatribuição de cor/raça, pois os questionários são aplicados no responsável pela
residência ou seu substituto no momento da aplicação, que dá informação sobre sua cor
e também sobre a cor dos demais residentes, principalmente de crianças ou de outra
pessoa que esteja impossibilitada de fazer isto.
A controvérsia de estudiosos quanto ao uso da autoatribuição em pesquisas
brasileiras, acontece em função da categoria pardo. Para alguns pesquisadores, a
autoatribuição poderia facilitar o “embranquecimento” àqueles que se encontram numa
faixa intermediária do chamado continuum de cor e/ou com melhores condições
socioeconômicas. Para investigar a polêmica sobre a conveniência de se usar ou o o
método de autodeclaração, Osório (2004, p. 97-103) comparou três estudos, nos quais
os pesquisadores confrontavam os dois métodos: as eleições 1986 em São Paulo, a
pesquisa DataFolha 1995 e a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) 1996.
Analisando os resultados desses estudos, o autor encontrou um alto grau de
concordância entre os dois métodos: 76%, 72% e 89% respectivamente. Em uma
57
Este método não será apreciado neste trabalho. Para maiores considerações consultar Osório (2004, p.87 a 94).
97
pesquisa realizada nos EUA, também citada por Osório (2004, p. 101), foi detectada
uma concordância de 94% entre a classificação do entrevistado e a do entrevistador. O
que os estudos mostram é que ocorreria uma mesma percepção de raça entre
entrevistadores e entrevistados. Isto quer dizer, no contexto brasileiro, que a
heteroabribuição não está isenta da influência da idéia de embranquecimento, o que
indica que esse não é um método mais objetivo do que o método da autoatribuição.
Senão vejamos: pelo critério da heteroatribuição, foram encontrados mais brancos, do
que pelo critério de autoatribuição nas três pesquisas consideradas. Além do mais,
A abrangência da categoria parda e sua aparente indefinição, por sua vez,
paradoxalmente ampliam a objetividade da classificação. Sendo fluidas as
linhas de fronteira que separam as três grandes zonas de cor, preta, parda e
branca, a classificação ganha a capacidade de apreender a situação do
indivíduo classificado em seu microcosmo social, no contexto relacional que
efetivamente conta na definição da pertença ao grupo discriminador, ou ao
discriminado. A classificação tira assim sua objetividade não de classificar
pessoas invariável e precisamente segundo um padrão fenotípico único e
supra-local, como parecem desejar os que reclamam “precisão” ou
“objetividade científica”, mas da sua flexibilidade que lhe proporciona a
aceitação das definições locais das fronteiras de cor, sejam estas quais forem
(OSÓRIO, 2004, p. 113).
Da sua discussão com Valle Silva a respeito da pesquisa das eleições de 1986,
Osório termina por apontar o método da autoatribuição de cor como sendo o método
mais acurado, por produzir uma composição racial brasileira com menos brancos e
também por reafirmar a eficiência do sistema de classificação do IBGE, não deixando,
no entanto, de indicar um cuidado para a “sua aplicação em contextos onde o
enquadramento em determinadas categorias possa alavancar vantagens pessoais [...]”
(OSÓRIO, 2004, p. 133), como no caso de experiências de ação afirmativa com recorte
racial.
Falta ainda nos referirmos ao termo negro, que foi deixado para ser apresentado
neste momento, em função de sua especificidade e importância neste estudo. Como
vimos acima, o termo negro nunca foi usado nas categorias oficiais dos censos, mas
passou a ser incorporado, de forma positiva, pela imprensa negra, nos anos 1920 e
diversos grupos e organizações, dos anos 1930 aos dias de hoje (GUIMARÃES, 2003b,
p. 254 e TELLES, 2003, p. 134).
Piza e Rosemberg (2003) chamam a atenção para os diversos sentidos que o
termo negro pode assumir, dependendo de quem o usa e do contexto de seu uso. Os
grupos e lideranças do movimento negro têm usado o termo numa perspectiva racial-
98
política-cultural. Alguns pesquisadores das relações raciais e alguns demógrafos usam o
termo negro como sinônimo de preto, como foi o caso da pesquisa da Fundação Sistema
Estadual de Análise de Dados (SEADE), em 1992, sobre família e pobreza na cidade de
São Paulo, exemplificada pelas autoras. Isso também ocorreu no debate midiático sobre
ações afirmativas, bem como em diversos programas de ação afirmativa implantados no
país. Fazendo uma crítica ao estudo de Yvone Maggie para o catálogo das
comemorações do Centenário da Abolição, Piza e Rosemberg (2003, p. 110)
identificaram que, naquele estudo, o termo negro foi usado de modo isomorfo ao termo
branco, que não se levou em consideração os aspectos de hierarquização social. Para
as autoras, o trabalho de Maggie mostra que
em contextos puramente culturais [...] o termo negro parece adquirir um certo
isoformismo com o termo branco. A cultura negra e a cultura branca
aparentemente se equivaleriam enquanto produtos culturais cuja diferença
não implicaria subordinação e de seus efeitos.
Reiteramos que, neste trabalho, utilizaremos o termo raça a partir de uma
perspectiva ontológica nominalista, ou seja, que não reivindicamos qualquer substrato
biológico para as chamadas raças, bem como chamamos de negros o conjunto de
pessoas pretas e pardas. Na defesa do uso desse critério de agregação dessas duas
categorias para constituir-se um grande grupo populacional, o de negros, Osório (2004,
p. 113) apresenta uma justificativa estatística, ou seja, os dois segmentos, preto e pardo,
apresentam características socioeconômicas muito semelhantes, diferenciando-se pouco
entre si, em potencialmente todos os indicadores; e uma justificativa teórica, isto é,
ambos os grupos estão submetidos a discriminações de mesma natureza. Ao abordar a
situação de fronteira em que se situa a categoria pardo, o autor declara que
o propósito da classificação racial não é estabelecer com precisão um tipo
‘biológico’, mas se aproximar de uma caracterização sociocultural local. O
que interessa, onde vige o preconceito de marca, é a carga de traços nos
indivíduos do que se imagina, em cada local, ser a aparência do negro. Pardos
têm menos traços, mas estes existem, pois se não fosse assim não seriam
pardos, e sim brancos; e é a presença desses traços que os elegerá vítimas
potenciais de discriminação (OSÓRIO, 2004, p. 114).
Guimarães (2003b), em um estudo sobre a imprensa negra, no período de 1925 a
1950, em São Paulo e no Rio de Janeiro, identificou como se deu a evolução
terminológica no modo de autodesignação dos negros, no Brasil. Nesse estudo podemos
verificar as diferentes acepções que o termo adquiriu ao longo do tempo. Logo no início
99
de seu texto, o autor faz algumas observações importantes. A primeira, que o estudo se
restringe a compreender qual o caminho que negros escolarizados e militantes, em São
Paulo e no Rio de Janeiro, percorreram na construção de sua identidade racial e cultural.
A segunda refere-se a sua metodologia, informando que tomará as palavras “raças” e
“cultura”, nos sentidos que lhes foram imputados por “um grupo social determinado a
partir dos anos 1920 em São Paulo, e a partir de 1944 no Rio de Janeiro, grupo esse que
passou a se autodenominar ‘negros’ e ‘raça negra’”. O autor ainda informa que
Ao não imputar conteúdos a esses termos que não sejam aqueles
historicamente definidos pelos agentes sociais, quero evitar qualquer
discussão sobre substâncias e essências apropriadas seja à “raça negra”, seja à
“cultura negra”, seja à “identidade negra”, pois entendo que essa é uma tarefa
política que não me cabe (GUIMARÃES, 2003b, 249).
Na primeira metade do século XIX, na Bahia, o termo “preto”
58
designava os
africanos e o termo “crioulo” os negros nascidos no Brasil. Na outra metade, também na
Bahia, o termo “preto” passou a abarcar africanos e seus descendentes e “negro” deixou
de designar a “cor” e foi lentamente passando a ter um significado racial e pejorativo.
Em São Paulo, nos anos anteriores à Abolição da Escravatura, ao termo “negro” foi
atribuído uma conotação muito pejorativa e “preto” um significado neutro. No anos de
1920, os militantes do movimento negro se chamavam de “homens de core homens
pretos” e chamavam o coletivo de “classe”, um vocabulário legado do passado. As
palavras “raça” e “negro”, que também eram usadas por eles, tinham o sentido distinto
dos dias atuais. A partir da década de 1920, no entanto, começa a haver mudança na
concepção de “raça” e negro”. “O que existia de negativo, inferior e insultuoso nessas
palavras passa para um segundo plano para dar lugar à reivindicação de um sentido
positivo e arregimentador” (GUIMARÃES, 2003b, p. 255). Nesse momento, já se sentia
a influência do historiador, sociólogo e líder político norte-americano, W. E. B. Du
Bois, que foi o primeiro a teorizar sobre “raça negra”, em 1897, atribuindo-lhe um
significado que não era totalmente biológico. A partir de 1924, os termos “negros” e
“raça” começaram a denominar o coletivo, que outrora era chamado por “homens de
cor” e de “classe”. Mas com o decorrer do tempo, os termos “homens de cor” e “classe”
começaram a cair em desuso, tanto na imprensa quanto nos movimentos. O autor faz
uma ressalva para a permanência do termo “classe” até o século XXI, mas com “outro
58
Utilizaremos os termos relacionados a denominação de cor/raça entre aspas, do mesmo modo que Guimarães
(2003b, p. 247-269) usou em seu texto. São termos extraídos de jornais publicados por associações, clubes e pessoas
pioneiras do movimento negro brasileiro, no período de 1925 a 1950, estudados pelo autor.
100
significado, para designar a ausência da idéia de ‘raça’ no tratamento dado aos negros
no Brasil” (GUIMARÃES, 2003b, p. 256).
A mudança que ocorreu da autodesignação dos negros, no período de 1916 a
1970, Guimarães (2003b, p. 257) atribui a uma revolução identitária que ocorreu em
nível mundial entre o final do século XIX a meados do século XX
59
. Foram
fundamentais para essa revolução a reapropriação e aproximação de dois termos “raça”,
conceito da biologia, que foi re-significado com o sentido de comunidade histórica e
espiritual transnacional e o termo “cultura”, para denominar o grupo de manifestações
artísticas e materiais desse povo transnacional (Guimarães, 2003b, p. 257).
Essa mudança na forma pela qual os negros vinham se nomeando, tem sido
examinada e constatada em diversos estudos: Telles (2003), Osório (2004) e Soares
(2008). Nas análise que fez, relativa ao período de 1940 a 1991, Telles verificou um
“empardecimento” da população, apontando para o fato de que, no período, a população
de pardos fora a única que apresentava crescimento: de 21%, em 1940 passaram para
43%, em 1991, o que ele atribuiu à miscigenação. Quanto ao Censo de 2000, Telles
encontrou resultado inverso, ou seja, crescimento para as categorias preto e branco e
decréscimo para a categoria pardo. Sua suposição é que se não ocorreu mudanças em
fatores demográficos, tal variação seria atribuída às mudanças na autoclassificação
racial, indicando uma bipolarização preto e branco, identificada por ele. A substituição
de “cor” por “cor e raça”, na maneira de perguntar do censo, também teria influenciado
nessa escolha, segundo Telles (2003, p. 61-62).
Já Osório (2004, p. 122) levanta a hipótese de valorização de negritude. Segundo
o autor, “O aumento da declaração da cor negra e da previsibilidade do enquadramento
induzido dos que espontaneamente se declararam pretos e pardos podem ser indícios de
que essa valorização está em curso”. Tendência, que segundo esse autor, teria sido
indicada por Petruccelli (2002), quando esse comparou o aumento da proporção de
pretos no Censo de 2000 em relação ao de 1991.
Para Soares (2008, p. 99), o “enegrecimento do Brasil” está em curso desde
1940, apresentando acentuado aumento no período de 2001 a 2007. Em 1890, a
população negra era de 56%. Em 1940, essa população apresentou seu ponto
demográfico mais baixo, 35,8%, como resultado da intensa imigração européia que se
seguiu entre 1890 a 1930, quando mais de três milhões de europeus vieram para o
59
Aqui o autor faz referência indireta ao Movimento de Negritude.
101
Brasil. A partir de 1940, a população conjunta de pretos e partos não parou mais de
crescer: no Censo de 1960, 38%; no Censo de 1980, 44%; na PNAD 2002, 46% e por
último, na PNAD 2007, 49,8% da população brasileira se identificaram como preta ou
parda. Soares propõe três hipóteses explicativas para analisar esse fenômeno: 1) haveria
uma taxa de fecundidade maior para um dos grupos; 2) o processo de miscigenação e 3)
“mudanças de cor/raça idiossincráticas” ou “mudança na identificação racial”. Após
examinar empiricamente todas as três hipóteses, Soares, em concordância com
Petruccelli (2002), Telles (2003) e Osório (2004), chega à conclusão de que vem
ocorrendo, de maneira crescente, uma mudança da identificação racial favorável à
identificação preta, sentida pelos indivíduos como negra, no país.
A história até aqui é mais ou menos clara e coerente: a despeito da existência
indubitável de efeitos da taxa de fecundidade e da identificação racial ao
nascer [efeito da miscigenação], uma avalanche de mudanças da
identificação racial. Essa avalanche vem em detrimento da identidade branca
e, principalmente, a favor da identidade coletada pelo IBGE como preta, mas
muito possivelmente sentida pelos indivíduos como negra. Finalmente, essa
avalanche começa com pouca força a partir de meados da década de noventa,
mas adquire muito mais movimento a partir da mudança do milênio
(SOARES, 2008, p. 111).
Soares (2008, p. 116) situa entre 1996 e 2001 o início do processo de mudança
na autoidentificação das pessoas negras. Salienta que tal identificação ocorreu mais
fortemente na categoria preto, do que na categoria pardo, indicando, segundo o autor,
que as pessoas estariam perdendo o medo de assumir a sua identidade negra, deixando
de ter vergonha de se dizerem negras, recusando o branqueamento como forma de
legitimarem-se. Para o autor, o “escurecimento da população brasileira” tem uma
explicação que está evidente, como poucas vezes aconteceu na história das Ciências
Sociais brasileiras nos últimos dez anos: é a mudança na maneira como as pessoas se
vêem, a causa principal do fenômeno e não fatores exclusivamente demográficos.
Lembramos que foi uma década de muitas mudanças políticas e sociais, com
acontecimentos marcantes para a sociedade, dentre eles, a participação do Brasil na
CMR, em Durban e o fato de o Estado brasileiro ter passado a introduzir “a noção de
‘ação afirmativa’ como um dos princípios organizadores de algumas de suas políticas
sociais” (Zoninsein, 2004, p 107-108 apud PINTO, 2006, p. 136). Assim, podemos
considerar que a disseminação dos programas de ação afirmativa possa ser também uma
hipótese explicativa para o “enegrecimento” que está em curso no país, uma vez que são
programas que têm colocado, no debate público, o tema da classificação racial, e da
102
identificação de quem é branco, quem é negro para as experiências de ação afirmativa.
Trataremos desse componente do debate na seção seguinte, quando apresentarmos a
estratégias do Programa IFP frente aos pontos de crítica dos opositores da implantação
de ações afirmativas no Brasil.
Soares (2008) considera outras explicações possíveis ao “enegrecimento” da
população. Sem pautar-se em evidência, o autor reconhece a importância que o
movimento negro também teve nesse processo, bem como o novo papel social
alcançado pelo negro na mídia, na política, no Supremo Tribunal Federal e em
telenovelas. “Pode-se dizer que o que está acontecendo não é que o Brasil esteja
tornando-se uma nação de negros, mas, sim, que está se assumindo como tal”
(SOARES, 2008, p. 116).
Nesse contexto de mudança de identificação racial do povo brasileir -; somando-
se à luta contra o racismo, principalmente na luta contra as desigualdades raciais na
Educação, particularmente na pós-graduação e no fogo cruzado do debate a respeito da
implantação de ações afirmativas para o ensino superior - o Programa IFP adotou,
dentre uma multiplicidade de conceituações de ação afirmativa, um conceito mais
afinado com seus objetivos de justiça social. A ação afirmativa como uma ação
focalizada que provê tratamento preferencial a certos grupos (por pertença étnico/racial,
região de nascimento e condições sócio-econômicas da família de origem), visando
aumentar a proporção de seus membros em setores da vida social (pós-graduação), nos
quais tais grupos se encontram sub-representados em razão de discriminações históricas
ou atuais (CALVÈS, 2004, p. 7)
O Programa IFP no Brasil adotou como principal estratégia para a determinação
da pertença aos grupos-alvo, a autodeclaração dos candidatos, conforme dito
anteriormente. Estratégia fundamentada no princípio da confiança, conforme
Rosemberg (2008, p. 209) e em conformidade com a orientação da Convenção 169 da
OIT. No tocante ao combate a eventual oportunismo na identificação de cor/raça, o
Programa IFP solicita ao candidato três tipos de respostas na identificação de cor/raça:
1) o modelo do IBGE (branca, preta, parda, amarela, indígena), 2) declaração de
pertença étnico/racial, onde é utilizado o termo negro no formulário:
Declaro que pertenço ao(s) segmento(s) sub-representado(s) na pós-
graduação privilegiado(s) no edital do Programa Internacional de Bolsas de
Pós-Graduação da Fundação Ford e que assinalei abaixo: (entre outros)
identifico-me como negro(a) ou identifico-me como indígena e pertenço ao
povo (ROSEMBERG, 2008, p. 208/9).
103
E, para completar a sistemática de “triangulação”, incluiu uma questão aberta
“Relate suas experiências ou vivências relacionadas a seu pertencimento étnico/racial”,
cujas respostas foram analisadas nesta tese. Segundo Rosemberg (2008, p. 209), o
objetivo de tal sistemática “é a de não cometer injustiça, incluindo pessoas que passem a
linha de cor por oportunismo”. Outras estratégias utilizadas pelo Programa IFP para
conter os possíveis “fraudadores raciais” foram: “solicitar documentos, foto [...],
anunciar, no edital, a realização de entrevistas e divulgar, no site e nos cartazes, o perfil
e a “cara” dos bolsistas [...]” (ROSEMBERG, mimeo 7, p. 4), bem como a
explicitação de que se trata de um programa de ação afirmativa, seus objetivos e a quem
se destina (ROSEMBERG, 2008, p. 210).
Para sua implementação no Brasil, o Programa IFP procurou adaptar as
diretrizes internacionais às particularidades de ação afirmativa e à cultura da pós-
graduação brasileira. O dossiê para candidatura é composto de “campos relacionados às
informações sobre os atributos adscritos e que dão suporte à seleção de pessoas
provenientes de grupos subrepresentados na pós-graduação, outros à trajetória escolar,
ao curriculum vitae”, além de exigir a apresentação de um pré-projeto de pesquisa,
como ocorre em muitos programas de pós-graduação stricto sensu (ROSEMBERG,
mimeo 7, p. 6). A forma de estabelecer quem entraria no Programa revelou-se uma
inovação importante, no sentido de estar atento à inversão de uma lógica de mercado
que é desfavorável aos grupos-alvo. Assim, Rosemberg (2008, p. 206) assinala que
[...] o Programa IFP no Brasil não prefixou cota ou meta para os segmentos
sociais que privilegia. Apenas invertemos a gica do mercado: tem mais
chance no Programa quem tem menos chance no mercado. E como definir as
chances no mercado? Calculando o peso específico de cada uma das
variáveis no conjunto das três prefixadas por meio do cálculo do Probito
60
aplicado aos dados da PNAD 1996 referentes à população brasileira que
concluiu o ensino superior.
A estratégia do Programa IFP para responder a questão do mérito, ponto por
diversas vezes levantado no debate, como dissemos acima, advém da operacionalização
do conceito de ação afirmativa adotado, ou seja, seu processo de seleção, que acontece
em três fases: primeiramente identifica os candidatos, através do cálculo do Probito, em
número de 200, que teriam menor probabilidade de terminar a graduação em
60
Rosemberg (2008, p. 206) informa que se trata de uma nova metodologia desenvolvida em parceria com Sergei
Soares, pesquisador do IPEA.
104
decorrência de atributos adscritos; os dossiês desses 200 candidatos são, posteriormente
avaliados pelo mérito; selecionam-se 75 que são entrevistados. Conforme Rosemberg
(2008), os procedimentos de experiências de ação afirmativa não eliminam a avaliação
do mérito de pessoas, mas o re-situa em outro momento, posto que são pessoas os
contemplados pela experiência. E, por isso, processasse também a avaliação da pessoa,
seu mérito ou potencial”. Aqui mais uma inovação importante introduzido pelo
Programa IFP. O foco não recai apenas sobre potencial ou mérito acadêmico, mas visa
integrar três dimensões: acadêmica, liderança e compromisso social (FCC, Informe 2, p.
4-5). Para Gonçalves (2004, p. 103), apesar de “espinhoso”, o processo seletivo do
Programa IFP é um dos mais avançados em termos de ação afirmativa no Brasil.
Tais estratégias adotadas para enfrentar as particularidades da arena de debates e
experiências, possibilitaram ao Programa IFP, no Brasil, alcançar alguns indicadores de
sucesso. “Em julho de 2009, 132 dissertações e teses haviam sido defendidas. E mais
ainda: vários/as ex-bolsistas IFP de mestrado ingressaram no doutorado tendo obtido,
para tanto, bolsas de outras instituições [...] (ROSEMBERG, 2009, p. 2).
Silvério (2008, p. 236/7) considera que o Programa IFP tem alcançado seus
objetivos, porque tem permitido acesso à pós-graduação, a pessoas que o teriam essa
possibilidade; por apontar novas formas de selecionar, quando consegue que os
candidatos entrem nos melhores cursos do país; bem como por ampliar “a agenda de
pesquisa do país ao privilegiar áreas fundamentais até então pouco assistidas”.
Dados referentes a dezembro de 2008 revelam que o Programa tem atingido seus
objetivos, conforme vemos no Quadro 1 abaixo:
105
Quadro 1 – Informações seletas sobre o Programa IFP
Ano de início 2001
Número de seleções 8
Número de candidatos nas sete seleções 7797
Bolsas concedidas 295 (75% para mestrado)
Duração das bolsas
. mestrado: 24 meses + pré-acadêmico (até 12 meses)
. doutorado: 36 meses + pré-acadêmico (até 12 meses)
. média: 26,8 meses
Perfil dos (as) bolsistas* . 49,8 % mulheres
. 83% declararam-se pretos ou pardos
. 11,9 % declararam-se indígenas
. 64,1% nasceram nas regiões norte, nordeste ou
centro-oeste
. média de idade 33,6 anos
Principais campos de estudo dos (as) bolsistas* . Educação: 21,9 %
. Artes e cultura: 10,9 %
. Meio-Ambiente e Desenvolvimento: 9,3 %
. Direitos Humanos: 7,6 %
Principais universidades em que os (as) bolsistas
estudam/ingressaram*
. PUC-SP: 47 . UFRJ: 9
. USP: 15 . UFBA: 9
. UNISINOS: 12 . UFF: 9
. U. COIMBRA: 11 . UnB: 10
Em 08/05/2009 . 152 bolsistas terminaram a bolsa
. dentre eles 129 completaram o curso, 109 no
mestrado e 20 no doutorado
Tempo médio para titulação . 26,1 meses no mestrado
. 44,7 meses no doutorado
Fonte: Base de dados do Programa IFP Brasil (FCC, 2008).
* Dados referentes a dezembro 2008.
Pinto (2006, p. 136), ao estudar uma das medidas de políticas de ação afirmativa,
que foi a implantação do sistema de cotas raciais para o ingresso nas universidades
estaduais do Rio de Janeiro, assinala o impacto dessa política pública no processo de
construção de identidades sociais. Segundo o autor, a “formalização de identidades
sociais como sujeitos de direito reconhecidos pelo Estado, permitindo que aqueles que
as reivindiquem tenham um acesso diferenciado a recursos, bens e serviços, tem efeitos
profundos na dinâmica social dessas identidades” (PINTO, 2006, p. 138).
Principalmente quando consideramos “bens raros”, como no caso do acesso ao ensino
superior. Mas aqui é necessário problematizar, em acordo com Costa (2002) e Feres Jr.
(2006): se as reivindicações por ações afirmativas são sustentadas ou justificadas por
desigualdade no acesso a bens raros desigualmente distribuídos no caso a população
negra composta por pretos e pardos –, a quais identidades o autor se refere, na medida
em que o principal ator para sua reivindicação, no Brasil, é o movimento negro.
Chamamos atenção para eventual descompasso entre os que reivindicam e os que são
beneficiários de programas de ação afirmativa com recorte racial. Sentimos como
oportuno, fazermos uma reflexão sobre o conceito de identidade.
106
PARTE II – REFLEXÃO SOBRE IDENTIDADE RACIAL E AÇÕES
AFIRMATIVAS
O que se pretendia delinear aqui era o aporte de teorias não essencialistas de
identidade, compreendida como dinâmica, relacional, processual, não teleológica, como
um movimento de identificação da pessoa com seus personagens, encantados que
estávamos com teorias que: 1) pressupõem que o sujeito se faz na experiência: “O
indíviduo é o que ele faz (CIAMPA, 1986, p 135); “a experiência é o local de formação
do sujeito (BRAH, 1996, p. 116) e 2) pressupõem que o sujeito não existe previamente,
ele é produzido no discurso (BRAH, 1996, p. 120). Por tudo isto, a idéia era propor um
estudo sobre as identidades negras que levasse em consideração, abordagens teóricas
que contemplam o contexto, a importância dos grupos de referência, a manipulação de
impressão, o caráter performativo da linguagem e da identidade e “a identidade como
uma construção social personalizada”.
Por estar atado aos mastros firmes aos quais nos referimos na introdução dessa
tese, pudemos ouvir o canto dessas sedutoras sereias e por isto dar conta de perceber, no
decorrer do trabalho, que na implementação de um programa de ação afirmativa, não se
trata de conhecer ou entender subjetividades, mas de identificar possíveis beneficiários
que se enquadrem em um dos grupos-alvo do programa, no caso, o étnico/racial.
Deparamo-nos, então, com a necessidade de enfoques teóricos que fornecessem
ferramentas que permitissem compreender o como se a identificação étnico/racial.
Por se tratar de um programa de massa, que trabalha com um recorte temporal,
percebemos como impraticável recorrermos ao método de história de vida, pois o que
precisamos saber é como a pessoa se apresenta a um programa. Buscando, então, filtrar
meu objeto e integrar essa preocupação pragmática redirecionamos o barco para o
entendimento do processo de identificação. O que apresentamos a seguir é o pequeno
desvio que tomamos nessa viagem.
107
CAPÍTULO 1 – Reflexões sobre identidade
Neste capítulo faremos uma incursão reflexiva sobre as formas de
conceituação/teorização da identidade à luz de nossa inquietação quanto a processos de
identificação étnico-racial em programas de ação afirmativa.
Dada a diversidade teórico-metodológica no estudo da identidade, nota-se uma
diversidade terminológica para se referir a esse objeto. Assim, tem-se a identidade
pessoal, que está relacionada aos atributos específicos de cada pessoa; identidade social
ou identidade coletiva, que correspondem aos atributos que indicam a pertença a grupos
ou categorias; identidade do eu, que é uma identidade reflexiva tanto em Goffman
(1963) quanto em Habermas (1983)
61
. Há também o termo identidade psicológica
empregado por Costa (1989) apud Jacques (1998, p. 161) “para se referir a um
predicado universal e genérico definidor por excelência do humano em contraposição a
apenas um atributo do eu ou de algum eu como é a identidade social, étnica ou religiosa,
por exemplo”. Considerando a inter-relação entre as dimensões individual e social,
também se emprega o termo identidade psicossocial, numa tentativa de contemplar a
relação dialética entre indivíduo e sociedade, de acordo com Neto (1985) apud Jacques
(1998, p. 161).
Conforme Nunes et alii (1986), a origem do conceito está na Grécia antiga,
apresentando-se com diversas acepções, dependendo da forma de pensar de cada época.
Os autores apresentam duas formas de como as Ciências Humanas têm se apropriado do
conceito de identidade. A idéia dos autores é identificar diferença entre um modo
estável e um modo dinâmico de pensar a identidade.
Segundo Nunes et alii (1986), o pensamento ocidental
62
é resultado de uma série
de idéias desenvolvidas pelos primeiros pensadores gregos nos séculos VI a V a.C.
Parmênides de Eléia (515-510 a.C.) foi o precursor do princípio da não-contradição, que
foi posteriormente sistematizado por Aristóteles (384-322 a.C.) (NUNES et alii, 1986,
p. 27). Para Parmênides o ser é localizado no tempo e no espaço. “Consagra-se então o
conceito de identidade preso a uma realidade concreta, erigindo a era do sensório como
61
É uma identidade que não é meramente atribuída, que se desenvolve a partir de “uma identidade constituída por
papéis e mediatizada simbolicamente” precedida por uma “identidade natural”, “é o estágio de consciência de si, no
qual o pessoa pode se referir a si mesmo através da reflexão, já que entra em comunicação com um outro Eu, de
modo tal que ambos podem conhecer-se e reconhecer-se reciprocamente como Eus: [...]” (HABERMAS, 1983, 78-
79, grifo do autor).
62
Refere-se ao pensamento do homem urbano ocidental. (NUNES et alii, 1986, p. 25)
108
determinante de todos os fenômenos, quer sejam físicos, quer psíquicos” (NUNES et
alii, 1986, p. 25). No pensamento de Parmênides, a verdade poderia ser indagada na
perspectiva do ser ou do não ser, mas apenas o caminho da certeza conduz à verdade,
pois o não-ser é inalcançável, portanto não há mudança. Pensamento e ser são uma coisa
só. Este ser não divisível (indivíduo) é completamente idêntico e fixo.
Instala-se, desse modo, o princípio da identidade, espelhando o ser sobre si
mesmo, abrindo caminho para o racional, o que é objetivável, excluindo a
instabilidade, o paradoxo, do âmbito do universo do discurso lógico, que
passou a constituir-se na característica implícita dos propósitos da ciência
(NUNES et alii, 1986, p. 27).
Não é difícil de perceber, como tal pensamento esteve e está presente na maneira
de se fazer ciência, principalmente nos moldes positivistas. A busca por regularidades, a
procura por aquilo que é idêntico através do ideal de um rigor sistemático, tem
subjacente a idéia de uma substancialidade regida pelo princípio da não-contradição.
Tanto as Ciências Naturais quanto as Ciências Humanas e Sociais estão envoltas com
essa concepção dualista. Para as primeiras, Nunes et alii (1986, p. 27) exemplificam
com o postulado de que “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao
mesmo tempo”; para as Ciências Humanas, lembram as dicotomias bom/mau,
doente/sadio, lei/“fora da lei”, normal/patológico.
As idéias de Heráclito de Éfeso (séc. VI a.C.) representam outra forma de
pensar, conforme Nunes et alii (1986). Uma das idéias refere-se à unidade dos opostos.
Ao se observar uma garrafa de água meio cheia, e alguém afirmar que ela está meio
vazia, não contradição nisto. No entanto, segundo Nunes et alii, o paradoxo sempre
foi algo a ser depurado do pensamento ocidental.
Tudo (pensava Heráclito) é uma reunião de opostos ou, pelo menos, de
tendências opostas. A luta e a contradição não devem ser evitadas, pois elas
se juntaram para formar o mundo. Se eliminássemos a contradição,
perderíamos a realidade. Mas isto significa que a realidade é inerentemente
instável (MAGEE, 2001, p. 14).
Essa fluidez é a segunda idéia de Heráclito que é “Tudo flui. Nada neste mundo
é permanente. Tudo está mudando o tempo todo. [...] A mudança é a lei da vida e do
universo. Ela manda em tudo”. (MAGEE, 2001, p. 15).
Para Nunes et alii (1986, p. 30), a proposição heraclítica, “unidade que contém e
transcende todas as forças opostas”, indica uma forma de pensar não hierarquizada.
109
Quando se hierarquiza se estabelece o que é superior e o que é inferior, a partir de uma
valoração. E o modo de pensar que caracteriza o pensamento ocidental tem sido
recorrente ou a eliminar o que é diferente ou a situá-lo no campo do desvio, da
marginalidade, tomando conceitos universais enquanto norma, enquanto regra. Na visão
de Heráclito, não faz qualquer sentido essa hierarquização, que tudo está em
movimento.
Em Heráclito, uma visão de identidade tal como postulada por Parmênides e
tal como é tomada pela modernidade não teria mais sentido, pois nenhuma
coisa se acha apoiada num ponto, legitimada pela limitação do ser
engendrado pelo seu não-ser. Pelo contrário, a coexistência da polaridade,
da pluralidade (NUNES et alii, 1986, p. 30).
Para exemplificar no que resultou, na produção científica contemporânea, as
influências de Parmênides e Heráclito, Nunes et alii (1986) retratam como exemplo de
concepção estável de identidade, a obra de Goffman (1988) e como exemplo de
concepção dinâmica, apesar de algumas ressalvas, a obra de Berger e Luckmann (1985).
Veremos, mais adiante, que Ciampa (1984, 1986) também se inspirou na fluidez de
Heráclito.
Erving Goffman, sociólogo e escritor canadense, identificado com um grupo de
autores da Escola de Chicago
63
, que escrevem partindo da perspectiva do
Interacionismo Simbólico
64
(BAZILLI et alii, 1998, p. 120), defende que a “sociedade
estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como
comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias” (GOFFMAN, 1963,
p. 11). Esse conjunto de categorias e atributos informaria a “identidade social” de
alguém. Com base nessa identidade é que “se cria uma série de expectativas normativas
relacionadas ao indivíduo e que estão ligadas ao papel que o mesmo vai desempenhar,
[...] (BAZILLI et alii, 1998, p. 138). Decorreria daí, então, duas posições distintas; uma
“identidade social virtual” e uma “identidade social real”. A primeira refere-se àquilo
que foi imputado pela sociedade, “de acordo com as categorias e atributos esperados por
esta (NUNES et alii, 1986, p. 26). A segunda refere-se à “categoria e aos atributos que
ele [o indivíduo], na realidade, prova possuir, [...] (GOFFMAN, 1963, p. 12)”.
63
“A Escola de Chicago enfatiza processos e não estruturas, introspecção e não escalas de atitudes, indeterminação e
emergência e não determinação” (BAZILLI et alii, 1998, p. 31, grifo dos autores).
64
Apresentaremos um pouco mais essa linha teórica, à frente.
110
De acordo com Goffman (1963, p. 74), o conceito de identidade social refere-se
aos papéis, é aparente e tem a ver com o como a pessoa é vista ou percebida, possibilita,
assim, levar em conta o processo de estigmatização; o conceito de identidade pessoal,
que considera qual é “o papel do controle de informação na manipulação do estigma” e
a identidade do eu, possibilita levar em conta o sentido subjetivo que a pessoa a sua
situação, enquanto portadora de um atributo estigmatizável. (GOFFMAN, 1963, p. 117)
Para Nunes et alii (1986, p. 26), o fato de a identidade ser analisada tomando
como referência uma “identidade deteriorada”, ou seja, a partir do estigma, pressupõe
que Goffman considera que haja um centro, ou eixo de referência tomado como norma e
que qualquer movimento, afastando-se desse ponto, indicaria desvio
65
. Isto indicaria,
segundo os autores, uma visão dicotômica, opondo o normal ao patológico, a identidade
social real à identidade social virtual. Completam sua análise apontando o caráter
determinista da obra, uma vez que Goffman enfoca “a sociedade como produtora da
identidade”.
Na análise de Nunes et alii (1986), a abordagem de Berger e Luckman (1985)
representa a superação dos modelos teóricos pautados numa perspectiva estática da
identidade. Peter Ludwig Berger e Thomas Luckmann, sociólogos engajados no campo
da Sociologia do Conhecimento
66
, consideram que a
Identidade é evidentemente um elemento-chave da realidade subjetiva, e tal
como toda realidade subjetiva acha-se em relação dialética com a sociedade.
A identidade é formada por processos sociais. Uma vez cristalizada, é
mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relações sociais. Os
processos sociais implicados na formação e conservação da identidade são
determinados pela estrutura social. Inversamente, as identidades produzidas
pela interação do organismo, da consciência individual e da estrutura social
reagem sobre a estrutura social dada, mantendo-a, modificando-a ou mesmo
remodelando-a (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 228).
Berger e Luckmann (1985, p. 173) compreendem a sociedade como uma
realidade que é, ao mesmo tempo, objetiva e subjetiva, uma vez que ela é percebida
como um processo dialético que ocorre, simultaneamente, como exteriorização,
objetivação e interiorização. O mesmo acontecendo com a pessoa que externaliza o seu
próprio ser no mesmo momento em que interioriza o mundo social como uma realidade
objetiva.
65
Note-se que nos dois últimos capítulos do livro, Goffmam (1963) trata da temática do desvio e do comportamento
desviante.
66
“A sociologia do conhecimento deve ocupar-se com tudo aquilo que é considerado ‘conhecimento’ na sociedade”
(BERGER e LUCKMANN, 1985, p.29).
111
O início de todo o processo é a interiorização, ou seja, quando a criança
internaliza como sendo seu a “manifestação de processos subjetivos que são de outrem”
(BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 174). quando se realiza este nível de
interiorização é que a pessoa se torna membro da sociedade, num processo denominado
de socialização, que consiste num movimento consistente e de grandes dimensões que
visa inserir a pessoa no mundo objetivo de uma dada sociedade ou em determinado
segmento dela. Este processo acontece em dois estágios diferenciados: a socialização
primária e a socialização secundária (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 175).
O que a pessoa conhece como realidade objetiva nada mais seria do que o
conjunto de informações e definições que lhe são transmitidas pelos “outros
significativos”, com os quais ela se identifica. Os “outros significativos” é que
estabelecem a mediação entre o mundo social objetivo e a pessoa, fazendo uma
“filtragem” da realidade a partir de sua própria localização social e de sua história
pessoal (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 176).
Faz-se pertinente destacar pontos importantes e díspares entre a teoria de
socialização de Berger e Luckmann e os novos paradigmas nos estudos da infância.
Grigorowitschs (2008, p. 43) não concorda que haja uma ruptura entre a socialização
primária e a secundária. Para a autora, trata-se de uma constelação e não de processos
lineares. Outro ponto de discordância é que para a autora crianças não são “socializadas”, mas
“socializam-se”, são ativas no processo, tanto quanto os adultos, pois se trata de interações que
prosseguem durante toda a vida. Estas são considerações relevantes nas pesquisas que vêm
sendo desenvolvida no interior do NEGRI, segundo as quais
a criança passa de objeto de socialização a ator social, de futuro adulto a
criança historicamente contextualizada. A socialização deixa de ser vista
como uma questão de adaptação ou interiorização de normas e padrões
sociais e começa a ser entendida como um processo de apropriação, de
inovação e de reprodução (MONTANDON, 2001): as crianças são agentes
do processo de socialização de adultos e de outras crianças, de modo
equivalente aos adultos (PRADO, 2009, p 17)
Nunes et alii (1986, p. 26/27) chamam a atenção para os aspectos contextual e
processual na teoria de identidade de Berger e Luckmann (1985). Para Nunes et alii, o
foco na dimensão processual da formação da identidade sinaliza um progresso em
relação à concepção de Goffman (1963), pois a identidade não é mais imaginada
teleologicamente. A identidade passou a ser compreendida de forma mais dinâmica,
podendo ser mantida, modificada ou mesmo remodelada. No entanto, a despeito desse
112
avanço apontado, Nunes et alii consideram que o modelo de Berger e Luckmann não
superou o modelo dicotômico, na medida em que persistiu numa “referenciação
espacializada”, permanecendo “a idéia de sentido/não sentido, conflito/síntese, na
esteira continuísta da linearidade, identificada no espaço” (NUNES et alii, 1986, p. 28).
Na conclusão da reflexão que fazem acerca do conceito de identidade, Nunes et
alii (1986) apontam que, na contemporaneidade
67
, estão abertas as possibilidades para
formulações teóricas mais próximas da concepção fluida de Heráclito, uma vez que é o
tempo da velocidade; “do bombardeio de informações”; da tecnociência produzindo a
hiper-realidade; “da diversidade dos fenômenos, curvando-se inapelavelmente à sua
complexidade”; tempo de indeterminação e de instabilidade. Para os autores, seria,
então, o momento oportuno para uma abordagem de identidade
que guarde em si aspectos do mesmo e do outro. Pensar ser e não-ser,
semelhanças e diferenças. Ao invés de superar a contradição, absorvê-la num
paradoxo, onde identidade não mais se constitui num processo teleológico ou
mesmo teleonômico de um fim a atingir (NUNES et alii, 1986, p. 32, grifo
dos autores).
Assim, a identidade deveria ser considerada em formulações que postulassem a
instabilidade e a superação das dicotomias. A identidade seria uma instância o
estável, assimetricamente simétrica e atemporalmente temporal (NUNES et alii, 1986,
p. 32).
Paiva (2007, p. 85) está de acordo que nos dias atuais estamos mais propensos a
considerarmos a posição de Heráclito, depois que passamos por um longo tempo
influenciados por Parmênides, convictos que estávamos da força da permanência das
coisas. Os deslocamentos provocados pelo o que alguns chamam de globalização, e
outros de pós-modernidade, têm caracterizado um momento de “acelerada
transitoriedade”, dando a impressão de que hoje novamente estamos impedidos de nos
banhar duas vezes no mesmo rio e que pouco espaço resta para a memória”. No entanto,
o autor ressalva que, se esse fenômeno é mundial, ele não abarca a todos, ou seja, estaria
limitado “aos estratos abastados da sociedade ocidental”. Se a identidade é vazia, fluida
ou líquida como querem alguns, apontando para um questionamento da utilidade do
conceito de identidade ou mesmo para sua reconfiguração, o autor se contrapõe com
exemplos de outros pesquisadores, que estudam grupos de resistência e minorias, que
67
Em seu texto os autores falam de pós-modernidade, mas não utilizaremos tal designação, neste trabalho,
considerando tratar-se de conceito impreciso e discutível (SANTOS, 2000, p. 11 e 77)
113
“percebem a manutenção, ou mesmo o reforçamento, de referências estáveis a
coletividades que lhes forneçam um lugar no mundo, ou seja, para voltar o velho termo,
uma identidade” (PAIVA, 2007, p. 86). São rios os exemplos de produção de “novas
identidades”, como afirma Stuart Hall (1997, p. 93), produzidas politicamente, ou seja,
levando em conta o caráter “posicional e conjuntural” das mesmas, tais como
identidades étnicas, identidades sexuais, identidades culturais, identidades nacionais ou
transnacionais, etc.
Strey et alii (1998, p. 160) informam que, no campo da Psicologia, as pesquisas
sobre identidade passam, geralmente, pela Psicologia Analítica do Eu e pela Psicologia
Cognitiva. Ambas “caracterizam o desenvolvimento por estágios crescentes de
autonomia, e consideram a identidade como gerada pela socialização e garantida pela
individualização”. no campo da Psicologia Social, os autores destacam que os
estudos da identidade foram centrais na obra de William James
68
e nos trabalhos
pioneiros de George Mead, na perspectiva do Interacionismo Simbólico.
O termo ‘interacionismo simbólico’ é devido a Herberth Blumer, um dos
mais influentes autores da Escola de Chicago, [...] e designa o processo pelo
qual se constituem os me’s (mim, moi) da pessoa na interação com os outros
e com o outro generalizado, [...] por meio dos mbolos deles, as palavras e
jogos. (PAIVA, 2007, p. 78)
Papel é definido como as expectativas de comportamento ligadas à posição
social. Segundo Paiva (2007, p. 78), esse conceito sociológico tornou-se um conceito-
chave na Psicologia Social na tradição do Interacionismo Simbólico. Ocorreram
importantes usos e desdobramentos das propostas desse movimento, conforme Bazilli et
alii (1998, p. 43), dentre os quais a Teoria de Papéis, na perspectiva de Sarbin e Scheibe
(1983), da qual Ciampa (1984, 1986) se apropriou de alguns conceitos, como veremos a
seguir.
Numa perspectiva histórico-social, Ciampa (1984, 1986) leva em conta a
dimensão dialética apreendida na interação social para desenvolver a sua teoria da
identidade-metamorfose-emancipação. Compreendendo a identidade de uma forma
dinâmica e processual, o autor articula dimensões que à primeira vista se mostram
antagônicas como vida e morte, pessoa e sociedade, estabilidade e transformação,
igualdade e diferença, unicidade e totalidade, ocultação e revelação.
68
Não trataremos dessa vertente teórica neste trabalho.
114
Para Ciampa somente pelo nome não é suficiente para se conhecer uma pessoa,
outras “marcas de identidade”
69
(CIAMPA, 1984, 1986) se fazem necessárias. A pessoa
não vive como uma mônada, mas sim em relação e sua identidade está em constante
transformação
70
. Um componente importante que emerge desta abordagem relacional da
identidade (CIAMPA, 1986, p. 127 e 243) é o reconhecimento
71
.
Na abordagem de Ciampa o que se tem é a noção personagem para dar conta de
um movimento que vai além do institucional. Quem constrói o personagem é a pessoa
com sua história, com sua idiossincrasia, com sua personalidade. As personagens “são
momentos da identidade, degraus que se sucedem, círculos que se voltam sobre si em
um movimento, ao mesmo tempo, de progressão e de regressão (CIAMPA, 1986, p.
198). A identidade se concretiza no movimento das personagens. Um movimento que é
determinado por condições históricas, sociais, materiais e da própria pessoa.
O que se propõe é o estudo da personagem enquanto dar-se. Considerando a
abordagem dramatúrgica
72
, o que se busca é o entendimento do processo em que ocorre
a produção da identidade (CIAMPA, 1986, p. 159). O importante é identificar as
personagens que encarnam o drama e assim a identidade torna-se o processo de
identificação das pessoas com seus personagens (CIAMPA, 1986, p. 160).
O que pode, às vezes, dificultar a percepção desse movimento é o desempenho
dos diversos papéis pela qual se passa numa vida e que tendem a cristalizar a pessoa
pela predicação, ou seja, a pessoa passa a se identificar pelo aquilo que faz. Essa
cristalização caracteriza o “fetichismo da personagem”, quando o envolvimento
73
do
ator, com seu personagem se torna permanente.
Ocorre então uma aparência de permanência e de estabilidade. É a ordem
institucional que nos impõe uma “re-posição”, que nos obriga a uma representação
constante de personagens pressupostas, dadas como a-históricas, revelando a
“mesmice (CIAMPA, 1986, p. 165), apontando para uma não-metamorfose. Mas
69
“[...] Scheibe reconhece a existência de marcas de identidade, desde o nascimento (nome, família, nacionalidade,
etc.) [...] Estão presentes e vão ter incidência marcante, tanto na construção de identidades [...] Contudo, a influência
tem um caráter de relação dialética na qual a pessoa vai constituindo ou criando (ou não) novas marcas e relações que
influenciam o meio e o processo de mudança ou de constituição de novas identidades (BAZILLI et alii, 1998, p. 221).
70
Nota-se uma aproximação com as três concepções de identidade que Stuart Hall (1997, p. 10) faz: a) “sujeito do
iluminismo” individualista, indivisível com identidade fixa; b) sujeito sociológico” o pessoa está em interação
dialética com a sociedade e c) “sujeito pós-moderno” o pessoa é composto de várias identidades, formadas e
transformadas continuamente.
71
“Recognition is at the heart of the matter. (...) Recognition is vital to any reflexivity...” (CALHOUN, 1994, p. 20)
72
Ciampa (1986, p. 191) esclarece que o que ele faz é o uso do recurso da analogia e “não uma redução da realidade
social à realidade do teatro”. Nota-se aqui a influência da abordagem dramatúrgica de Goffman (1985).
73
Conforme a concepção de Sarbin e Scheibe (1983, p. 12) o “envolvimento pode ser considerado como uma
dimensão de intensidade com a qual um papel está ligado”, podendo variar situacional e temporariamente.
115
Ciampa (1986, p. 184) assinala que as mudanças podem ocorrer desde que a pessoa
esteja imbuída da perspectiva da “mesmidade” e não da mesmice. O que permite a
pessoa romper com as determinações.
Assim, está falando em emancipação humana. Ciampa (1999) estabelece a
indissociabilidade entre a identidade, a metamorfose e a emancipação. Para o autor,
está posto que identidade é metamorfose, mas dadas as condições hegemônicas do
capitalismo não garantias que essa metamorfose seja progressista, podendo até
mesmo ser negativa, deste modo torna-se imprescindível entender o sintagma
74
identidade-metamorfose-emancipação e desta maneira poder analisar a qualidade da
transformação ocorrida, tendo em vista alcançar uma vida-que-merece-ser-vivida.
Identidade para Ciampa, além de ser uma questão científica é, portanto, uma questão
política (1986, p. 243).
O tema da diversidade em Cross Jr., que veremos adiante e também em Ciampa
(1986, p. 138), segundo o qual a identidade “é a articulação da diferença e da
igualdade”, convida ao exame da noção de diferença.
Depois de discutir a questão da diferença dentro do movimento feminista,
preocupada em saber como a diferença é construída, dentro de discursos competitivos,
Brah
75
(1996) constata que o mais importante não é a diferença em si mesma, mas saber
quem define a diferença, como diferentes categorias de mulheres são representadas
dentro do discurso da diferença e como se dá o processo de hierarquização, pela
diferença (BRAH, 1996, p. 114/115, tradução nossa). A partir dessas questões, a autora
formulou quatro maneiras de conceituar a diferença: 1) “diferença enquanto
experiência”; 2) “diferença enquanto relação social”; 3) “diferença enquanto
subjetividade” e 4) “diferença enquanto identidade”. Dado o escopo deste trabalho, nos
deteremos principalmente na quarta conceituação. Mas é importante apontar que “o
sujeito se forma na experiência” (BRAH, 1996, p. 116, tradução nossa), não uma
teleologia; que a diferença é constituída dentro de contextos estruturados de relações de
poder, tais como diferenciação de gênero, classe e raça (BRAH, 1996, p. 118); e que o
74
Sintagma para Ciampa consiste na junção de mais de um conceito, cada qual mantendo sua especificidade, mas que
se articulam de modo a não prescindirem um do outro. No caso da identidade-metamorfose-emancipação tem-se que
a “IDENTIDADE é a formação social que se como METAMORFOSE no momento histórico em busca da
EMANCIPAÇÃO que constitui o humano concreto em individualidades e coletividades articulando como história,
sociedade e natureza” (CIAMPA, 1999).
75
Professora de Sociologia da School of Continuing Education, Birkbeck, University of London, membro da
Academy of Learned Societies for the Social Sciences e da British Sociological Association. Seus campos de estudos
são: (des)emprego e mercado de trabalho juvenil, etnicidade, teoria feminista, gênero, gênero e geração, raça e
etnicidade e teoria social (http://www.bbk.ac.uk/ce/about_staff/academic_staff/brah).
116
sujeito é produzido no discurso (BRAH, 1996, p. 120). Propõe, no entanto, uma
conexão entre identidade, experiência, subjetividade e relações sociais.
Identidades são inscritas através de experiências culturalmente construídas
em relações sociais. Subjetividade o local de processos de fazer sentido de
nossa relação com o mundo é a modalidade na qual a natureza precária e
contraditória do sujeito-em-processo é significada ou experienciada como
identidade. Identidades são marcadas pela multiplicidade de posições de
sujeito que constitui o sujeito. Por esta razão, identidade não é fixa nem
singular; antes é uma multiplicidade relacional em constante mudança. Mas
durante o curso deste fluxo, identidades assumem padrões específicos, como
em um caleidoscópio, contra conjuntos particulares de circunstâncias
históricas, sociais e pessoais (BRAH, 1996, p. 120, grifo da autora, tradução
nossa).
Encontramos em Brah (1996, p. 124) mais uma contribuição para o
entendimento da relação entre identidade pessoal e “identidade coletiva”.
Relacionamento complexo e contraditório, pois uma articulação entre identidade
pessoal e a experiência coletiva de grupo, mas o quer dizer que a identidade coletiva
seja reduzível à soma das experiências individuais.
Identidade coletiva é o processo de significação por meio do quais
experiências comuns ao redor de um eixo específico de diferenciação, seja de
classe, casta ou religião, são investidas com significado particular. Neste
sentido uma dada identidade coletiva parcialmente apaga, mas também
carrega traços de outras identidades. Isto quer dizer que a consciência
ampliada de uma construção de identidade, em um dado momento, sempre
implica uma anulação parcial da memória ou sentido subjetivo de
heterogeneidade interna de um grupo (BRAH, 1996, p. 124, grifo da autora,
tradução nossa).
No entanto, Brah acrescenta que essa supressão parcial de um sentido de uma
identidade pela afirmação de outra, não significa que identidades diferentes não possam
“co-existir”. Além de ressaltar o aspecto de diversidade, a autora chama atenção para a
dimensão processual e não teleológica da identidade. “Se a identidade é um processo,
então é problemático falar de uma identidade existente como se ela estivesse sempre
constituída. É mais apropriado falar de discursos, matrizes de significado e memória
histórica [...](BRAH, 1996, p. 124). Brah ainda reforça que, mesmo que o sujeito seja
efeito dos discursos, das instituições e de suas práticas, em algum momento ele
experimenta a si mesmo como um “eu” e pode re-interpretar e re-significar suas
posições (BRAH, 1996, p. 125).
O conceito de diferença, para Brah (1996), refere-se à variedade de maneiras nas
quais discursos específicos de diferença são constituídos, contestados, reproduzidos e
117
re-significados. Assim, “diferença não é sempre um marcador de hierarquia e opressão”
(BRAH, 1996, p. 126).
A partir de uma perspectiva não-essencialista, este trabalho procurou se
aproximar do conceito de performatividade, elaborado por Judith Butler
76
(apud
IÑIGUEZ, 2004, p. 40). A partir de suas reflexões acerca da produção performática da
identidade sexual, Butler revolucionou as noções de identidade, subjetividade e práticas
de subjetivação. “Trata-se de uma posição anti-essencialista que nega tanto o caráter
natural da identidade como seu caráter fixo e estável. A identidade é uma construção
social, [...]” (IÑIGUEZ, 2004, p. 40, tradução nossa).
A identidade sexual não é a expressão ou manifestação externa de um núcleo
natural ou essencial e o gênero é uma encenação através do qual não um núcleo que
lhe dê consistência. “O sujeito é constituído nesse processo, não é anterior a ele”
(IÑIGUEZ, 2004, p. 41, tradução nossa). Segundo Butler (1990, p. 58 apud IÑIGUEZ,
2004, p. 40), não uma essência por trás das performances ou atuações de gênero da
qual sejam expressões ou externalizações. “A interpelação do ato performativo não se
dirige, como pretende, a um sujeito que existe antes do ato, senão que, em sentido
estrito, o produz” (IÑIGUEZ, 2004, p. 42, tradução nossa).
O conceito de performatividade é tributário do conceito de ato de fala
performativo (ou realizativo), que segundo John Austin (1962, apudIGUEZ, 2004, p.
42) el decir algo equivale a hacer algo”. Para Pinto (2007, p. 16), da perspectiva dos
atos de fala, Identidades são performativas, ou seja, são efeitos de atos que
impulsionam marcações em quadros de comportamento (fala, escrita, vestimentas,
alimentação, cultos, elos parentais, filiações, etc.)”. Dentre as ações que produzem
identidades, a linguagem é um elemento fundamental, conforme Pinto (2007, p. 16).
São teorias interessantes, que me encantaram pelo seu caráter dinâmico, não-
essencialista, não teleológico, mas que esbarraram na questão do seu uso para refletir
sobre a implementação de programa de ação afirmativa na identificação de candidatos
que correspondam aos segmentos étnico-raciais priorizados. Reconhecemos a utilidade
delas para o campo de estudo da subjetividade, mas um programa de ação afirmativa,
que foca grupos-alvo, não busca reconstruir, no processo seletivo, trajetórias pessoais
para compreender uma dada subjetividade, mas trabalha com um corte temporal, para
captar como se a autoidentificação da pessoa no momento de sua candidatura. Um
76
Máxima representante da “teoria queer”, conforme Iñiguez (2004, p. 40).
118
programa de ão afirmativa estará interessado em saber se a pessoa é um representante
de um grupo exposto às condições de desigualdades sociais, se compartilha da mesma
trajetória do seu grupo dessa perspectiva. Neste ponto, estabelecer quem é negro(a) e
quem não é negro(a), no Brasil, é fundamental em experiência de ação afirmativa com
recorte racial. A pessoa precisa explicitar sua identificação com um grupo ou segmento
racial para fins de seleção. Identificar-se como negro significa reconhecer-se
identitariamente como negro?
Na implantação de programas de ação afirmativa a tensão é não violentar o
candidato na sua identificação étnico/racial e ao mesmo tempo ser justo e evitar os
“fraudadores raciais”. Lembrando Feres (2006, 57), na democracia é importante se
respeitarem as escolhas identitárias (ou identificatórias ?) que as pessoas fazem, sob o
risco de negar-lhes autonomia moral. Neste sentido, a identificação étnico-racial é uma
questão que deve ser tratada com reflexividade, principalmente no contexto de
implementação de um programa de ação afirmativa.
No acirrado debate, por ocasião da implementação de cotas para o ensino
superior, cometeram-se alguns desatinos a esse respeito: desde afirmar que bastaria
perguntar à polícia quem é negro, até recorrer à chamada neutralidade científica,
apelando-se para meios supostamente objetivos, como foi o caso do denominado
“tribunal racial” pela mídia, na implementação do programa de cotas da UnB, onde um
grupo de especialistas
77
homologaria quem era negro ou não, por meio da avaliação das
fotografias dos candidatos. Steil (2006) apresenta em seu livro o debate acadêmico que
tal medida provocou.
Um outro exemplo, que não ganhou a mídia, provém da experiência da
implementação de cotas na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).
Maria José de J.A. Cordeiro (2008), em sua tese de doutorado, transcreve a Resolução
CEPE/UEMS 382, de 14/8/2003 que estabeleceu os critérios exigidos para a
inscrição no sistema de cotas. Dentre eles: “os candidatos inscritos no percentual de
vagas para negros terão as suas inscrições avaliadas por uma comissão instituída pela
Pró-reitoria de Ensino, composta por representantes da UEMS e do Movimento Negro
indicados pelo (...) que as deferirá ou não por decisão fundamentada de acordo com o
fenótipo do candidato” (apud Cordeiro, 2008, p.66).
77
Um estudante, um sociólogo e um antropólogo da UnB, além de três representantes de entidades ligadas ao
movimento negro” (MAIO e SANTOS, 2006, p. 28).
119
Conforme apontado por Rocha (2005, p. 59), é consenso entre os estudiosos o
nível de complexidade do sistema de classificação/identificação étnico/racial brasileiro.
É um sistema sofisticado e fluido mas que permite apreender as desigualdades raciais
brasileiras quando nos baseamos no modo de identificação que vem sendo usado pelo
IBGE (OSÓRIO, 2001; Petrucelli, 2007 e outros). Como vimos no Capitulo 5, da Parte
I, o termo “negro” pode receber diversos sentidos, dependendo de quem o usa e do
contexto do seu uso (PIZA e ROSEMBERG, 2003). No contexto do Programa IFP,
percebemos, durante a análise do material empírico, que o termo “negro” assumia duas
conotações: como categoria analítica que aglutina pretos e pardos, para apreender a
dimensão de desigualdade educacional; e, como categoria política ou identitária, quando
o Formulário para Candidatura solicita ao candidato que se identifique ou não, como
negro. No caso da UEMS, como mencionamos uma comissão com representação
indicada por organizações do Movimento Negro (Fórum Permanente de Entidades do
Movimento Negro do Mato Grosso do Sul e pelo Conselho Estadual de Defesa dos
Direitos do Negro) defere (ou não) a identificação de acordo com o fenótipo do
candidato.
Contra um pretenso “objetivismo estruturalista” (COSTA, 2002, p. 51), em
termos de identificação étnico-racial, devemos nos lembrar dos apontamentos de
Munanga (1988) sobre a pluralidade do ser negro, com os quais compactuamos desde a
nossa dissertação de mestrado, que teve como título final “Identidades negras:
contextos, alternativas e possibilidades emancipatórias”. Neste trabalho atual,
conhecendo a teoria de Cross (1991), no entanto, reconhecemos a possibilidade da
pessoa também tomar caminhos regressivos no seu processo de tornar-se negra. Mas,
como dissemos, não estamos tratando de subjetividades, tampouco de identificação
política mas da maneira como a pessoa se apresenta em um programa de ação afirmativa
e de como esse programa irá eleger seus beneficiários a partir da identificação étnico-
racial.
Costa (2002, p 49) considera legítimo aglutinar pretos e pardos para o estudo das
desiguldades, no entanto, aponta como problemático o uso político-instrumental feito
pelo movimento negro, pelo poder público e pelos estudiosos das relações raciais.
No tocante ao movimento negro, Costa assinala que a idéia de uma raça negra é
uma estratégia lídima de mobilização política contra as desigualdades, uma construção
discursiva de um coletivo político. Porém, afirma o autor, “o êxito público das novas
formas de expressão ‘afro-brasileira’ não transforma o amplo conjunto da população
120
afrodescendente em uma comunidade étnica cultural e politicamente homogênea”
(COSTA, 1997, P. 173). O autor está se referindo a estratégia do movimento negro de
tentar, discursivamente, construir uma identidade coletiva que abranja tanto as
expressões de ser negro no Brasil quanto as experiências dos negros na diáspora
africana. O autor admite que tal recurso tem fortalecido a autoestima do negro brasileiro
e tem trazido subsídios para a luta contra a discriminação, mas aponta que tem tido
alcance limitado entre os negros, pois a maioria “define-se, em primeiro lugar como
brasileiro e não reconhece sua origem, nem mesmo remota, na África” (COSTA, 2001,
p. 153). Para o autor não haveria vinculação direta entre marcas fenotípicas e uma
determinação de consciência racial, no caso africana (COSTA, 1997, P. 52).
Duas considerações se fazem necessárias. Para Munanga (1990, 2004), a
identidade coletiva do negro deve se apoiar numa orientação político-ideológica, pela
tomada de consciência da situação de desigualdade e não por uma orientação
culturalista. Outro ponto é que o aporte à teoria de Cross (1991, p. 222) pode ampliar a
nossa análise, que em seu modelo de Psicologia de enegrecimento, nem todas as
pessoas se orientariam para uma perspectiva “afrocêntrica”, em seu processo, mesmo
que tivessem tido contato com o movimento social negro americano.
Brah (1996, p. 96) argumenta contra um conceito essencialista da diferença, a
partir da discussão que faz do uso político do termo negro, como um sinal para designar
realidades e contextos tão diferentes, tais como grupos afro-caribenhos e grupos sul-
asiáticos, na Inglaterra do pós-guerra. Esses grupos, influenciados pelo Movimento
Black Power, dos Estados Unidos da América, utilizavam essa “cor política”, como
forma de resistência contra o racismo centrado na cor. Segundo a autora, esse uso
aglutinador do termo negro prejudica a idéia de diversidade, por fundamentar-se numa
concepção de uma África idealizada; por negar as diferenças entre África, Caribe e sul
da Ásia; por não considerar que nem todos sul-asiáticos e afro-caribenhos se
reconhecem como “negros”; porque o discurso etnicista impõe noções estereotipadas,
bem como por confundir os diferentes significados, do uso do termo negro, pelos grupos
de militantes e pelos agentes do governo (BRAH, 1996, p. 100, tradução nossa).
Essa diversidade de ser negro nos remete, novamente, a Munanga (1988),
quando aponta para a pluralidade do ser negro no Brasil. Remete-nos, também, à
variedade de formas de se apresentar a um programa de ação afirmativa com recorte
racial, como encontramos nos relatos que analisamos.
121
Em relação às formas de intervenção estatal, no campo das relações raciais,
Costa (1997, p. 173) identifica duas concepções opostas: de um lado, os liberais que
defendem uma posição neutra do Estado em relação a promover uma identidade
coletiva. Eles não descartariam políticas de igualdade de oportunidades, mas competiria
ao indivíduo definir sua identidade. Por outro lado, os comunitaristas para os quais
caberia ao Estado promover e fortalecer “por meio de políticas de ação afirmativa, a
identidade cultural, transformando as diferenças hoje razão de discriminação e
desigualdades - em fonte de compensação e reparação” (COSTA, 1997, p. 175).
Quanto aos liberais, Costa critica-os afirmando que não para desconsiderar o
contexto de injustiça e discriminação para escolha de uma identidade cultural, ou seja,
não se trata de uma opção exclusivamente pessoal. Quanto aos comunitaristas, o autor
se contrapõe dizendo não compactuar com a idéia de que uma identidade seja construída
por fatos objetivos, “ela é o produto de significados experienciados” (COSTA, 2001,
155). Em outra crítica aos comunitaristas, Costa é taxativo em não aceitar o uso de uma
identidade política em contexto de ação afirmativa. Para ele “[...] não se verificaria a
neutralidade dos objetivos da ação do Estado, mas sua adesão a uma concepção de bem
particular e a imposição autoritária de uma forma cultural de vida específica, qual seja, a
sociedade racializada” (COSTA, 2007, p. 244).
Apontando as limitações do uso político do conceito de raça no campo dos
estudos raciais, Costa (1997, p. 172) aponta para aquilo que Munanga (1988) havia
exposto que é o fato de que os conceitos de raça e cultura não coincidem. Neste ponto,
assinalamos uma crítica fundamental de Costa às concepções de identidade cultural e de
identidade pessoal que pressupõem uma escala evolutiva de “consciência racial”. Para o
autor, essas concepções não consideram o campo das negociações e de escolhas
pessoais e coletivas que estão envolvidas no processo de identificação. Alertando para o
risco de se qualificar de falsa consciência aquilo que não se encaixa em um certo
modelo de entendimento das relações raciais no Brasil, o autor assinala que não
compete aos cientistas sociais construir, artificialmente, um lugar epistemológico
acima dos processos históricos concretos, julgando a partir dele quais são as escolhas
identitárias e as formas culturais de vida válidas” (COSTA, 2002, p. 52). Dito de outro
modo, para o autor não cabe aos estudiosos da área “hierarquizar escolhas e os padrões
identitários”.
A despeito das ressalvas quanto ao uso do conceito raça como categoria analítica
geral, para o estudo da formação nacional brasileira ou da identidade negra, Costa
122
reconhece que o agrupamento dos segmentos pardos e pretos “confere visibilidade às
dimensões raciais que co-determinam as injustiças sociais no Brasil” (COSTA, 2002, p.
49). Assim, não haveria contestação ao fato de que o Programa IFP considerasse pretos
e pardos como grupos-alvo, construindo a categoria negro, na medida em que, se
agrupam frente à proximidade que apresentam quanto à desigualdade de acesso,
permanência e sucesso na pós-graduação.
No próximo capítulo, apresentaremos a teoria de desenvolvimento da identidade
negra de Cross Jr (1991). Trata-se de uma leitura, com livre tradução em que, além do
esforço para compreender outro idioma, tive também que ir quebrando resistências
iniciais por não compartilhar da noção de estágio posta pela teoria, a qual me reportava
a abordagens essencialistas e a-históricas dentro da Psicologia de Desenvolvimento.
Mas, à medida que o autor foi descortinando a possibilidade de se trabalhar com
tipologias, que fui identificando uma consonância com a perspectiva de diversidade
defendida por Munanga (1988), e fui considerando que, o momento atual brasileiro é
um momento de efervescência política e de visibilidade militante como aquele por
ocasião da formulação teórica de Cross Jr (1991), propício ao instigamento, mais
generalizado, de “consciência de negritude”, passei a achar pertinente me inspirar nas
tipologias identificadas no modelo teórico de Cross Jr. Ou seja, inspirei-me na tipologia
proposta por Cross Jr para apoiar algumas descrições dos relatos sobre “experiências
étnico-raciais” em um contexto de programa de ação afirmativa. O autor nos informa
que esse modelo processual de desenvolvimento da identidade negra, também foi usado
em outras pesquisas, não para grupos minoritários (identidade de asiático-
americanos, identidade gay/lésbica), mas também para a experiência de americanos
brancos, bem como no campo do aconselhamento psicológico. "Assim, o que começou
focado num tempo específico se expandiu para incluir aplicações contemporâneas"
(CROSS JR, 1991, p. 158-9, tradução nossa).
123
CAPÍTULO 2 – De estágios para tipologia
William E. Cross Jr, um dos principais pesquisadores e teóricos sobre o
desenvolvimento da identidade negra nos Estados Unidos da América, é psicólogo e
professor associado na Africana Studies and Research Center da Cornell University. É,
também, professor e chefe do Doctoral Program in Social-Personality Psychology, do
Centro de Graduação da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY). Conforme
sítio da CUNY, seu livro “Shades of Black Diversity in African American Identity”,
de 1991, considerado inovador (groundbreaking book), é uma obra de grande referência
para os estudos da identidade negra. Seu modelo conceitual de estágios de
desenvolvimento da identidade negra tem gerado um grande número de ensaios,
comentários e estudos empíricos. De acordo com o sítio do Centro para Equidade
Multicultural e Acesso (CMEA), da Universidade Georgetown, entre os interesses de
investigação de Cross Jr encontramos a estrutura e as funções cotidianas da identidade
negra; conteúdo da identidade (nacionalista, bicultural e multicultural), como preditor
primário das conseqüências da identidade na vida cotidiana; personalidade geral e
orientação grupo-referencial como preditores independentes de nível de autoconceito
diferencial; etc. Como veremos adiante, as reflexões de Cross Jr. podem se aproximar
do método de pesquisa que vem sendo adotado no NEGRI – a Hermenêutica de
Profundidade – ao situar as formas simbólicas sob análise em seu contexto de produção,
transmissão e recepção.
As referências teóricas para a teoria de Cross Jr. são apontadas como sendo a
teoria do desenvolvimento da identidade, de Erik Erikson; a abordagem ecológica do
desenvolvimento humano, de Urie Bronfenbrenner e a teoria da identidade social, de
Henry Tajfel (STRAUSS e CROSS JR, 2005, p. 7). Na perspectiva de Erik Erikson, a
identidade “tem como modelo o indivíduo em situação de competência e eficácia sociais
[...]” (STREY et alii,1998, p. 160), cuja personalidade continua se desenvolvendo para
além da infância, nos oitos estágios de desenvolvimento psicossocial, cada um com um
conflito ou desafio a resolver (ALMADA, 2006).
Na abordagem ecológica do desenvolvimento humano, o sujeito desenvolve-se
em contexto, em quatro níveis dinâmicos pessoal, processual, contextual, temporal.
“Bronfenbrenner privilegia os aspectos saudáveis do desenvolvimento e explicita a
124
necessidade dos pesquisadores estarem atentos à diversidade que caracteriza o homem
[...]” (ALMADA, 2006, grifo da autora).
A partir de pesquisas com percepção visual, Tajfel concluiu que a identidade
social “está associada ao conhecimento da pertença aos grupos sociais e ao significado
emocional e avaliativo dessa pertença” (Tajfel, 1972 a, p. 292 apud VALA e
MONTEIRO, 1997, p. 291). Tajfel, juntamente com J. C. Turner, compõem a chamada
“Escola de Bristol”, cujo modelo de identidade social foi “o primeiro a colocar a
identidade no centro da análise das relações intergrupos, atribuindo-lhe uma posição
explicativa da diferenciação e da discriminação sociais, [...]” (VALA e MONTEIRO,
1997, p. 291). Diferentemente do Interacionismo Simbólico, a Escola de Bristol tem seu
foco na relação entre grupos, freqüentemente na forma de conflito (PAIVA, 2007, p.
79).
Partindo de uma revisão dura sobre os estudos clássicos norte-americanos sobre
identidade negra no período entre 1939 a 1980, Cross Jr. resgata a noção de diversidade
para a compreensão da identidade negra. O objetivo de seu trabalho é “expurgar da
Black Psychology tanto o seu aspecto bastante pejorativo quanto sua propensão
romântica, substituindo-os por um discurso centrado na diversidade e complexidade do
funcionamento psicológico negro” (CROSS JR., 1991, xiii, tradução nossa). Segundo o
autor, o modelo resultante da revisão que fez “tornou-se conhecido como o modelo do
enegrecimento [nigrescence]
78
. Nigrescence é uma palavra francesa que significa ‘o
processo de tornar-se negro’; [...]” (CROSS JR., 1991, p. x, tradução nossa). Sua
proposta teórica é descrever a Psicologia do tornar-se negro, de assumir a negritude. No
Brasil, em 1983, uma pesquisadora afirmava que “Ser negro é [...] criar uma nova
consciência que assegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a
qualquer nível de exploração. Assim, ser negro não é uma condição dada, a priori. É um
vir a ser. Ser negro é tornar-se negro” (SOUZA, 1983, p. 77).
Reconhecer-se enquanto negro é uma construção passível de acontecer ao longo
da vida, é uma jornada na busca de resgatar seu próprio valor, um processo de tornar-se
negro, ir além do estigma, da baixa estima, da inferiorização; lutar contra o racismo, o
preconceito e a discriminação e, sobretudo, lutar por cidadania. Tanto em Souza (1983)
quanto em Cross Jr (1991), notamos a influência do Movimento da Negritude, apesar de
78
“Our resulting developmental models became known as models of nigrescence. Nigrescence is a French word that
means ‘the process of becoming Black’; thus our models attempted to depict the psychology of the process of
becoming Black (CROSS JR, 1991, p. x).
125
que, na sua obra seminal, Cross Jr. (1991) não faz nenhuma referência a uma influência
direta desse movimento. Melhor dizendo, duas referências rápidas, uma a DuBois,
considerado o “Pai da Negritude”
79
, que aparece na bibliografia do livro e outra a
Fanon, um dos críticos da Negritude, que aparece como exemplo do uso da perspectiva
processual, no estudo da identidade negra (CROSS JR., 1991, p. 156).
Uma referência a DuBois aparece novamente em um texto de 1994, quando o
autor faz um histórico dos estudos que têm sido feitos na tentativa de elaboração de um
corpo teórico e empírico que dê conta do processo de transformação da identidade negra
(CROSS JR., 1994, p. 120). Uma referência mais explícita ao Movimento da Negritude
aparece em um texto de 2005, quando é apresentada a relação direta entre a teoria
desenvolvida por Cross Jr. (1991) e a apropriação que os negros americanos fizeram do
termo francês, no início dos anos 1970, inspirados pelo Movimento da Negritude, na
busca pela identidade negra
80
. Foi essa a população que Cross Jr. estudou para elaborar
sua teoria, durante a fase “Black Power”
81
do Movimento Social Negro norte-
americano, em sua cidade natal, Evanston, no Estado de Illinois e na cidade vizinha de
Chicago. Seu “Modelo de conversão Negro-to-Black [...] foi desenvolvido através de
auto-análise e estudos de observação participante” (CROSS JR., 1991, xi, tradução
nossa).
É necessário fazer uma rápida digressão a respeito do Movimento da Negritude,
para depois prosseguir apresentando a teoria de desenvolvimento da identidade negra,
segundo Cross Jr.. Negritude é um termo polissêmico, segundo Bernd (1988, p. 15),
cuja “multiplicidade de interpretações está relacionada à evolução e à dinâmica da
realidade colonial e do mundo negro no tempo e no espaço” (MUNANGA, 1988, p. 5).
A despeito da riqueza conceitual que Munanga (1988) apresenta em seu livro, Bernd
traz dois sentidos que vêm ao encontro das necessidades deste trabalho.
1) em um sentido lato, negritude – com n minúsculo (substantivo comum) – é
utilizada para referir a tomada de consciência de uma situação de dominação
e de discriminação, e a conseqüente reação pela busca de uma identidade
negra. [...] 2) em um sentido restrito, Negritude com N maiúsculo
(substantivo próprio) – refere-se a um momento pontual na trajetória da
79
Segundo Munanga, (1988, p. 36) e também Bernd (1988, p. 22).
80
“In the early 1970s the French term effectively captured the African American search for identity and today
Nigrescence Theory is synonymous with theory and research on African American identity development”
(STRAUSS e CROSS, 2005, p. 6).
81
Today we take the concept Black identity for granted, in fact, however, Black identity is a contemporary term
given credence by events primarily associated with the Black Power phase of the Black Social Movement”. (CROSS
JR, 1991, p. 151) “[…] today ‘Negro’ implies a deracinated identity” (CROSS JR, 1991, p. 152).
126
construção de uma identidade negra, dando-se a conhecer ao mundo como
um movimento que pretendia reverter o sentido da palavra negro, dando-lhe
um sentido positivo (BERND, 1988, p. 20, grifo da autora).
O período colonial do séc. XX foi o contexto de nascimento do Movimento da
Negritude. A situação colonial implicava em submissão econômica e cultural das
sociedades colonizadas, sendo elas inferiorizadas e desqualificadas em seus valores e
seu povo considerado primitivo e não-lógico. O negro foi reduzido e submetido a
condições de desumanização e humilhação, tanto no continente africano quanto nas
Américas. Essa redução visava a sua alienação, para que assim fosse dominado e
explorado, com mais eficácia, pelo colonizador europeu (MUNANGA, 1988, p. 33).
A negritude, entendida como tomada de consciência e de luta contra uma
situação de dominação e/ou discriminação, remonta às primeiras manifestações de
resistência dos escravos africanos nas Américas. Assim, pode-se considerar como
eventos precursores da Negritude: a revolta dos escravos no Haiti, que desencadeou a
independência desse país, em 1804; a disseminação de quilombos durante todo o
período escravista brasileiro; a militância de DuBois, que influenciou o “renascimento
negro”, no Harlem, nos anos de 1920, nos EUA e outros acontecimentos, conforme
Munanga (1988) e Bernd (1988). No entanto, o termo Negritude surgiu em 1939,
quando foi definido pelo poeta antilhano Aimé Césaire “uma revolução na linguagem e
na literatura que permitiria reverter o sentido pejorativo da palavra negro para dele
extrair um sentido positivo” (BERND, 1988, p. 17). É um grande movimento de recusa
à assimilação. Por assimilação entenda-se que o negro deveria assumir para si, os
valores culturais do branco. Processo que “foi apenas um mito, pois o caminho de
desumanização do negro escolhido pelo colonizador não poderia integrá-lo. Pelo
contrário, criou sua desestabilidade cultural, moral e psíquica [...] (MUNANGA, 1988,
p. 31).
O objetivo da Negritude, liderada por Césaire, Senghor e Damas era afirmar ao
mundo os valores da cultura negra (CONSTANT e MABANA, 2009, p. 6). Nesse
processo, competia aos negros expurgar e substituir atitudes negativas em relação ao ser
negro e africano, por atitudes proativas e positivas.
Em sua expansão, a Negritude recebeu influências do marxismo, do surrealismo
e do existencialismo, o que lhe proporcionou muita força. Nos EUA, nas Antilhas e na
África o movimento foi, inicialmente, muito influenciado pelo comunismo
internacional. Nesse período, Bernd (1988) pôde identificar duas tendências, uma mais
127
voltada para a “consciência de classe”, independente da cor e outra focada na
“consciência de raça”. Após a Segunda Guerra Mundial, o movimento, em sua fase
militante, se engajou na luta pela independência das colônias africanas e se
internacionalizou, chegando a “outros países do Terceiro Mundo, como o Brasil”
(BERND, 1988, p. 31).
No Brasil, tomando o termo negritude em seu sentido lato, identificamos a luta
pela consciência negra e contra a opressão desde os primeiros quilombos, como já
dissemos; a “bodorrada”, de Luiz Gama, no período pré-abolicionista
82
; uma combativa
imprensa negra, desde os anos 1915; as ações do Teatro Experimental do Negro (TEN),
nos anos 1940, em São Paulo, definido por Abdias do Nascimento como “um
instrumento e um elemento de negritude” (BERND, 1988, p. 47); a militância do
Movimento Negro Unificado (MNU), a partir de 1978, e os demais grupos, como o
Grupo de União e Consciência Negra (GRUCON), a Pastoral de Combate ao Racismo
da Igreja Metodista, a Pastoral do Negro da Igreja Católica, etc., que existiram e ainda
existem voltados pela causa da identidade negra e de combate ao racismo.
Apesar das críticas que o movimento sofreu (MUNANGA, 1988, p. 56-80),
diversos escritores realçam a atualidade da Negritude como um movimento literário,
filosófico, poético e também ideológico, como uma resposta à opressão que ainda é
relevante (CONSTANT e MABANA, 2009, p. 6).
Foi necessária essa olhada superficial para o Movimento da Negritude para
mostrarmos a aproximação da teoria de Cross Jr. com esse movimento, bem como para
situarmos a maneira como foram apropriadas algumas palavras do texto original do
autor. Nigrescence foi traduzida por “enegrecimento”, visando destacar seu caráter
processual; Blacknessque o autor utiliza em maiúsculo em todo seu texto, foi vertida
para o português como “negritude”, atendendo ao sentido lato da palavra, conforme
indicado acima. Também o termo Blackapareceu em maiúsculo no decorrer da obra
de Cross Jr., mas optamos por traduzir para “negro”, escrito em minúsculo, da mesma
maneira que foi utilizado no restante do presente estudo, particularmente no Capítulo 5,
da Parte I, que trata da denominação e classificação racial brasileira.
Cross Jr. (1991) procura articular a compreensão da construção da identidade do
negro norte-americano com a realidade do racismo local, enfatizando a importância do
82
“Em 1861 […] Luiz Gama, assume pela primeira vez o termo BODE com que pejorativamente eram chamados os
negros, devolvendo assim ao branco a ‘pedra’ que este lhe atirara: […]” (BERND, 1888, p.44, destaque da própria
autora).
128
grupo de referência
83
. Modelo interessante, principalmente por considerar que a
identidade tem muito mais a ver com componentes sociais e culturais do que
psicológicos, isto é, é um modelo que leva em conta a influência dos grupos de
referência na formação da identidade. Sobre essa influência, Cross Jr. (1991, p. 187,
tradução nossa) afirma que “A diferença básica entre os negros, na medida em que o
nível de negritude está em causa, é freqüentemente menos psicológica (relacionado à
identidade pessoal), do que cultural, ideológica e filosófica (relacionado ao grupo de
referência)”
84
.
Como nos informa Cross Jr. (1991, p. 190, tradução nossa), enegrecimento é
uma experiência de ressocialização
85
, no qual se busca a transformação de uma
identidade pré-existente, não voltada para o seu grupo étnico/racial, para uma identidade
afro-orientada. Lembra, no entanto, que uma pessoa pode ser socializada, desde sua
infância, voltada para uma identificação mais positiva com seu grupo de origem. Nesse
seu modelo revisado
86
, Cross Jr. salienta que, no primeiro estágio, encontramos duas
“tipologias”, correspondentes a essas duas possibilidades identitárias.
Um dos argumentos contra a perspectiva pejorativa, que prevaleceu nos estudos
sobre identidade negra que Cross Jr. analisou, é que sempre houve diversidade de
possibilidades identitárias para negro, como resultado da diferença de grau de
conscientização negra das gerações anteriores, ou seja, os estudiosos tendiam somente a
ver evidência de auto-ódio, quando de fato “[...] A saúde mental foi um legado das
vitórias psicológicas pessoais, que seus pais foram capazes de alcançar e passar para a
próxima geração através da socialização via família, igreja e comunidade” (CROSS JR.,
1991, xiv, grifo e tradução nossa). Assim, novamente afirmando a diversidade, Strauss e
Cross Jr (2004, p. 7) destacam que as diferentes experiências de socialização, da
infância à adolescência, é que irão determinar se a pessoa chegará a se tornar um jovem
adulto com atitudes de Pré-encontro, ou de Imersão-Emersão ou de Internalização, que
são algumas das fases identificadas, por Cross Jr (1991), em seu modelo de
desenvolvimento da identidade negra, o qual veremos mais adiante.
Assim, o que o modelo de enegrecimento se propõe é explicar como adultos
negros assimilados, desenraizados, aculturados, transformam-se, devido a circunstâncias
83
“The distinction between personal identity (‘general personality’) and group identity (‘reference group orientation’)
is crucial to my analysis” (CROSS JR, 1991, p. xiv).
84
O autor usa uma concepção neutra de ideologia, conforme conceituação de John B. Thompson (1995).
85
“Nigrescence is a resocializing experience” (CROSS JR, 1991, p. 190).
86
Em seu primeiro modelo, Cross Jr ainda compartilhava a idéia de que no primeiro estágio havia a identidade do
negro desenraizado e colonizado mentalmente a ser transformada (CROSS JR, 1991, p. 158).
129
e eventos específicos, em negros mais conscientes de seu pertencimento étnico/racial.
Propõe, então, um modelo de desenvolvimento da identidade do negro de seu
enegrecimento composto por cinco estágios, articulados entre si, num processo
contínuo. Os estágios indicam uma proeminência de certas características em relação a
outras, um padrão descritivo. Neste sentido, a teoria sugere processos que são
transitórios na construção da identidade e não uma “camisa de força”. Não se trata, por
certo, de uma perspectiva naturalizante muito comum a certas teorias de
desenvolvimento em Psicologia. “Com efeito, a negritude é um estado de espírito, o
um traço herdado, cuja aquisição muitas vezes exige um esforço considerável” (CROSS
JR., 1991, p. 149, tradução nossa).
Apresentamos, a seguir, os cinco estágios de desenvolvimento da identidade
negra, propostos e nomeados por Cross Jr (1991, p. 190) e tipologias correspondentes
aos mesmos, identificadas e nomeadas por este pesquisador, conforme Quadro 1 na
página seguinte. Em seu modelo de enegrecimento, Cross Jr., (1991, 160, tradução
nossa) indica a possibilidade para que isto seja feito: As tipologias implícitas nos
estágios e na dinâmica do processo como um todo têm comprovada relevância para
discussões de identidade pós-movimento, conseqüentemente, estudos continuam a
aparecer”. Tal tipologia não se refere a estágios de desenvolvimento nem às pessoas,
apenas qualifica, neste trabalho, os tipos de relatos identificados no corpus analisado.
Deve ser encarada apenas com fins instrumentais, pois entendemos que estamos no
campo da pluralidade.
O estágio do Pré-encontro descreve a identidade a ser mudada; o estágio do
Encontro envolve os pontos nos quais a pessoa se sente compelida a mudar e tenta
localizar ou descrever, com precisão, “aquelas circunstâncias e eventos que
provavelmente induzem à metamorfose da identidade de um indivíduo” (CROSS JR.,
1991, p. 199, grifo e tradução nossa); o estágio Imersão-Emersão descreve o ápice da
mudança de identidade e os estágios de Internalização e Internalização-Compromisso,
descrevem a familização e internalização da nova identidade.
130
Quadro 2 – Estágios de desenvolvimento da identidade negra e tipologia
Pré-encontro 1 (baixa saliência para questões raciais)
Omisso
Transcendente
Centrado no estigma
Racista anti-negro
Pré-encontro 2 (alta saliência para questões raciais)
Simpatizante
Encontro (situações que levam a tomada de consciência)
Centrado na constatação
Político
Imersão-Emersão (transição de uma velha perspectiva para uma nova
referência)
Imersão
Entusiasmado
Emersão
Estável
Imersão-Emersão
Restrição em relação à negritude
Revolta com o branco
Ativismo ou militância frustrada
Ativismo ou militância ocasional
Internalização (negritude consolidada e atenção para outras
problemáticas
Grupocentrado
Centrado no seu grupo, mas sem exclusividade
Bi-focado
Multi-focado
Internalização-Compromisso (ação em direção a compromisso ou
reciclagem)
Desistência
Comprometimento adiado
Questionamento
No estágio do “Pré-encontro”, como é chamado o primeiro momento, podemos
encontrar negros que se encaixam no perfil do auto-ódio (distantes das pessoas negras;
com estereótipos negativos internalizados, mas também negros que apresentam alta
tendência para afiliação negra, baixo nível de internalização de estereótipos negativos
para o negro e um sentido geral de aceitação e conexão aos negros (CROSS JR., 1991,
p. 169). Podemos subdividir esse estágio em Pré-encontro I e Pré-encontro II, para
mostrar essas duas possibilidades. Neste estágio se forma a primeira identidade de
alguém. Esta socialização envolve os anos de experiência da pessoa com sua família
nuclear, sua família extensa, vizinhos, comunidade e escolas; abrange todos os anos da
infância, adolescência e início da vida adulta” (CROSS JR., 1991, p. 198, tradução
nossa). As principais atitudes de pessoas no estágio de Pré-encontro I são: 1) “atitudes
de baixa saliência”; 2) “atitudes de estigma social”; 3) “atitudes anti-negro”.
131
Atitudes de baixa saliência são aquelas em que a pessoa apresenta baixa
saliência para questões raciais, não negando ser negra, mas não considerando isto um
fato relevante. Pode variar de uma baixa saliência a uma neutralidade racial. Ser negro e
ter experiência negra é algo que contribui pouco para a sua vida. As pessoas, neste
estágio, valorizam outras coisas, que não seja a negritude, tais como religião, estilo de
vida, status social, profissão, etc. “Podem considerar terem alcançado um plano mais
elevado (isto é, um humanismo abstrato), abaixo dos quais estão aqueles do mundo
vulgar da raça e da etnicidade” (CROSS JR., 1991, p. 191, tradução nossa).
Relacionadas a essas atitudes, este pesquisador sugere os tipos de relato OMISSO e
TRANSCENDENTE.
Atitudes de estigma social estão relacionadas àquelas em que as pessoas
consideram raça como um problema de estigma. “Raça é uma luta, um problema, uma
imposição. Necessitam defender-se contra a negritude enquanto um estigma” (CROSS
JR., 1991, p. 191, tradução nossa). São pessoas que têm pouco conhecimento da história
e da cultura negra. Para essa atitude, este pesquisador sugere o tipo CENTRADO NO
ESTIGMA.
Atitudes anti-negro estão relacionadas às pessoas que têm o negro como um
grupo de referência negativo, ou seja, sua atitude é anti-negritude, cuja perspectiva é
semelhante à dos racistas brancos. Detestam outros negros, não buscam suporte pessoal
em negros ou em comunidades negras. Sua visão é dominada por estereótipos racistas
em relação à negritude, ao mesmo tempo em que desenvolvem estereótipos positivos
em relação às pessoas e à cultura branca. Para elas os próprios negros são culpados por
sua condição. A tipologia que sugerimos para essa atitude é RACISTA ANTI-NEGRO.
A essas atitudes estão associadas outras características, tais como
miseducation”, que se refere àqueles negros que passaram por uma educação formal
centrada numa perspectiva ocidental e branca, distanciados de qualquer informação
sobre a contribuição da África para a civilização ocidental, no geral e para o
desenvolvimento da cultura norte-americana, em particular
87
; “uma perspectiva cultural
eurocêntrica”, isto é, a partir de sua socialização a pessoa considera corretos o padrão de
beleza e de arte brancos; “ansiedade, imagem racial ou holofote”, a pessoa fica em
alerta para qualquer sinal de negritude, preocupado quanto ao fato de ser “muito negro”,
87
Situação bem parecida com a realidade brasileira, por isto mesmo a necessidade de luta, pelos grupos do movimento
negro brasileiro, para inclusão de História da África no currículo escolar, que culminou com a promulgação da Lei
10.639, em janeiro de 2003.
132
principalmente quando está próximo de pessoas brancas; “assimilação-integração”, a
preocupação aqui é se integrar e ser aceito pelo mundo branco; estrutura de valores e
orientação de valores”, as pessoas podem não ser tão diferentes, em sua estrutura de
valores, quanto as outras de estágios mais avançados, porém colocam “prioridades em
organizações e causas que têm baixa saliência racial” (CROSS JR., 1991, p. 197,
tradução nossa).
Negros Pré-encontro II são aqueles que, a despeito de colocarem baixa saliência
sobre questões raciais e culturais negras, podem sustentar percepções e atitudes mais
positivas em direção a negros, indicando assim uma alta tendência para afiliação negra
(CROSS JR., 1991, p. 169). Chamaremos de SIMPATIZANTE esse tipo.
O que Cross Jr. (1991) salienta, a título de resumo do estágio do Pré-encontro, é
que a baixa saliência racial pode ocorrer em qualquer classe social, que diversas
situações e circunstância podem produzir atitudes de pré-encontro; o que separa negros
Pré-Encontro de negros afrocentrados é a orientação de valores, perspectiva histórica e
visão de mundo; que a possibilidade de negros Pré-Encontro faz parte da diversidade da
experiência negra; que Pré-Encontro e todos os demais estágios, não são traços
hereditários ou um ordenamento divino e principalmente, que Pré-Encontro não é uma
forma de doença mental. “As pessoas nesse estágio são tão saudáveis quanto os outros”
(CROSS JR., 1991, p. 198, tradução nossa). As pessoas, nesse estágio, além de
atribuírem baixa saliência às questões de raça e a cultura negra, podem subestimar a
existência de racismo e, conseqüentemente, ficar desprotegidas para lidar com situações
racistas que possam aparecer (CROSS JR., 1991, p. 215).
No segundo estágio, chamado de “Encontro”, situações impactantes levariam a
pessoa a tomar consciência da existência de discriminação e preconceito nota-se, então,
a emergência de uma pessoa afro-centrada. Podem ocorrer eventos dramáticos
singulares ou mesmo pequenos episódios que teriam efeito cumulativo para a
transformação da pessoa em direção à negritude (CROSS JR., 1991, p. 199-200). O
Encontro deve trabalhar na destruição da importância da identidade e visão de mundo
corrente da pessoa e simultaneamente fornecer pistas da nova identidade. Pode ser que
para alguns candidatos, participar do processo seletivo do Programa IFP, que se coloca
como um programa de ação afirmativa, tenha sido um momento de impacto em suas
vidas.
133
Segundo Cross Jr. (1991, p. 200), o Encontro envolve dois passos: 1) a
experiência do Encontro e 2) essa experiência ter um impacto pessoal
88
. Considerando
essas duas possibilidades, propomos as tipologias: CENTRADO NA
CONSTATAÇÃO, ou seja, um tipo de relato de quem passou pela experiência do
Encontro, mas que manteve inalterada sua atitude e visão de mundo em relação à raça e
a negritude, numa perspectiva integracionista e assimilacionista; e o POLÍTICO,
próprio daqueles que se vêem transformados, de maneira poderosa, em direção à
negritude. No entanto, Cross Jr. assinala que o Encontro não tem que ser
necessariamente negativo. A pessoa pode se deparar com uma informação histórico-
cultural poderosa que até então ela desconhecia, a respeito do negro ou de África e isto
transformar a vida da pessoa
89
. O autor ainda destaca que, nesse momento de “morte”
da pessoa do Pré-Encontro, ela pode experimentar uma amplitude de emoções: culpa,
raiva e ansiedade generalizada (CROSS JR., 1991, p. 201).
O terceiro estágio, chamado de Imersão–Emersão, que é uma fase de
transição, representa um turbilhão de possibilidades, quando a pessoa começa a demolir
sua velha perspectiva e tenta, ao mesmo tempo, construir o que será a sua nova forma de
referência (CROSS JR., 1991, p. 201-202). Ocorre uma verdadeira batalha entre a velha
identidade e a identidade emergente. “Todas as explosões da metamorfose da identidade
estão contidas neste estágio intermediário
90
(CROSS JR., 1994, p. 122, tradução
nossa). Esse estágio representa o ápice da Psicologia do Enegrecimento, onde o “novo
convertido” ainda não mudou, mas tomou a decisão de mudar. Como está mais
habituado com a identidade a ser demolida do que a que será assumida, tende a erigir
imagens especulativas “altamente romanceadas, simplistas e glorificadas no novo self
que virá”. Por estar em transição, o “novo convertido” é muito atraído para os mbolos
da nova identidade, uma fase de “entusiasmo racial” (STRAUSS e CROSS JR., 2005, p.
6, tradução nossa). Para quem experimentou uma conversão particularmente intensa,
este é “um período de altos e baixos, de alta energia, de assunção de riscos, chauvinismo
racial, de se achar superior, de ódio, de alegria, de extrema certeza, intercalado com
momentos de profunda dúvida” (CROSS JR., 1994, p. 122). Cross Jr. ainda aponta,
como características gerais, a atitude viciosa de atacar “o que ele considera ser seu
88
[...] we see that the Encounter entails two steps: experiencing an encounter and personalizing it” CROSS JR,
1991, p. 200).
89
diversos exemplos de pessoas que têm esse tipo de “encontro”, quando entram na faculdade, como veremos
adiante em alguns relatos dos candidatos, examinados neste trabalho.
90
“All the fireworks of identity metamorphosis are contained in this middle stage, for within its boundaries,
[...]”CROSS JR, 1994, p. 122).
134
velho self, nos outros (síndrome blacker-than-thou)
91
” (CROSS JR., 1991, p. 205,
tradução nossa); uma visão dicotomizada no mundo, para alguns os brancos são vistos
como demônios, opressores, inferiores e não humanos, enquanto os negros são tidos
como superiores, até mesmo biogeneticamente, por causa da presença de melanina.
Na fase de Imersão, a pessoa mergulha no mundo da negritude. Tudo que é
negro é inerentemente maravilhoso. É uma experiência de liberação de tudo o que é
branco: a pessoa procura percorrer o “mar da negritude”. “Esta imersão é uma sensação
dominante, poderosa e forte, constantemente energizada pela fúria, culpa e um
desenvolvimento de um sentido de orgulho”. É o momento em que a pessoa se interessa
pela estética negra no vestir, nas formas de arrumar o cabelo, na arte de origem africana.
Ocorre uma busca por nomes de origem africana para si e/ou para seus filhos e “The
label ‘Negro’ is dropped as a self-referent, and preference is given to Black, Black
American, or African” (CROSS JR., 1991, p. 203). Desenvolve-se um sentido de
fraternidade e unidade a todo o povo negro, num sentimento quase religioso (CROSS
JR., 1991, p. 207). O autor enfatiza, nesse momento, a importância do grupo de
referência,
The groups provide a counterculture to the one being replaced (the “Negro”
identity) by entangling the person in membership requirements, symbolic
dress codes, rites, rituals, obligations, and reward systems that nurture and
reinforce the emerging “new” (Black, or Afrocentric) identity (CROSS, 1991,
p. 205).
No entanto, Cross Jr. não deixa de apontar o risco para a conformidade por parte
dos novos recrutas às demandas de certas organizações negras, pois o novato que quer
se conformar ao novo padrão do grupo, procura mostrar, na ação to perform
92
, que é
negro. Para o autor, pessoas que ficam fixadas nesta fase desenvolvem uma “falsa”
identidade negra, pois é uma identidade por oposição ao branco (CROSS JR., 1991, p.
206). Para essa fase de Imersão, propomos o tipo ENTUSIASMADO.
No momento de Emersão, a pessoa não se encontra mais dominada pelas
emoções ou pensamentos obcecados. Ocorre uma busca de estabilidade e um
reconhecimento de modelos ou de heróis, que, aliados a um crescimento pessoal,
facilitam atingir estados mais adiantados no desenvolvimento da identidade. É quando a
91
“O negro fica avaliando se os outros têm nível ‘adequado’ de negritude e rotula-os de acordo com esse julgamento”
(CROSS JR, 1991, p. 205, tradução nossa).
92
“As noted elsewhere (Cross, Parham and Helms, in press), demonstrating and proving one’s level of Blackness or
Afrocentricity requires an audience before which to perform and a set of group-sanctioned standards toward which to
conform” (CROSS JR, 1991, p. 205, grifos do autor).
135
pessoa compreende que a fase da Imersão não é um fim em si mesma, e que a
possibilidade de crescimento está mais adiante (CROSS JR., 1991, p. 207). Relacionado
a esse momento, sugerimos a tipologia ESTÁVEL.
Esse estágio de transição pode inspirar, mas também pode frustrar uma pessoa.
Dada a volatilidade desse estágio, algumas conseqüências negativas podem aparecer,
tais como: “regressão, fixação ou estagnação”. Por ter experiências negativas em toda
parte, não encontrando reforço para o crescimento de uma nova identidade, a pessoa
pode tornar-se desapontada e escolher rejeitar a negritude, podendo tornar-se quase
reacionário em relação a ela (CROSS JR., 1991, p. 208). Apontamos como sugestão, o
tipo RESTRIÇÃO EM RELAÇÃO À NEGRITUDE.
Pessoas que experienciam confrontações e percepções dolorosas advindas das
formas mais cruéis e explícitas de racismo e pobreza, podem ser invadidas pelo ódio aos
brancos e permanecerem fixadas nesse terceiro estágio (CROSS JR., 1991, p. 208). O
tipo proposto é REVOLTA COM O BRANCO.
Aqueles considerados estagnados ou desistentes por Cross Jr. (1991, p. 208), são
aqueles que apresentam algum sinal de terem internalizado a nova identidade negra,
mas que desistem de qualquer envolvimento com as questões do negro, podendo
apresentar duas atitudes: a primeira daqueles que vêem o “problema racial” como algo
insuperável e sem solução, podem até se re-engajarem nas questões raciais
posteriormente, mas por um tempo retiram a “raça” de seu discurso. “Em casos
extremos podem ficar deprimidos ou em anomia, podendo experimentar um colapso
mental” (CROSS JR., 1991, p. 209, tradução nossa). Para relatos, relacionados a essa
característica, nomearemos de ATIVISMO OU MILITÂNCIA FRUSTRADA. Outra
atitude muito comum entre estudantes universitários é viverem sua “fase de etnicidade”,
mas terminada a vida de estudos na universidade, se afastam da vida negra (CROSS JR.,
1991, p. 208, tradução nossa). A tipologia sugerida é ATIVISMO OU MILITÂNCIA
OCASIONAL
No quarto estágio, nomeado de Internalização, o grupo negro torna-se o
principal grupo de referência, a pessoa desenvolve uma perspectiva afrocentrada, não
estereotipada e de valorização da negritude, porém o grau de saliência é determinado
por considerações ideológicas
93
, variando de um extremo nacionalismo (voltado para o
93
Cross Jr. (1991) utiliza uma concepção neutra de ideologia, conforme conceituação de John B. Thompson (1995).
136
próprio grupo negro) a uma perspectiva multicultural
94
. Este estágio, provavelmente,
não é o fim das preocupações em relação à negritude. Pode ocorrer necessidade de
reciclagem através de algum estágio anterior. O bom termo do conflito de identidade
racial leva a pessoa a sentir-se segura o suficiente, podendo, assim, se envolver mais
intensamente, tanto a nível pessoal quanto coletivo, com pessoas que, geralmente, não
estejam associadas a seu próprio grupo (CROSS JR., 1994, p. 122). Desse modo, a
pessoa pode voltar sua atenção para outras problemáticas identitárias, as quais podem
ser sensíveis à raça ou até mesmo neutras, tais como identidade religiosa, sexual,
ocupacional, etc. (CROSS JR., 1991, p. 210).
Como marcadores-chave da Internalização, Cross Jr. (1991) destaca que é um
momento em que a pessoa se sente calma e mais tranqüila consigo mesma. Alcança-se
uma paz interior, substituindo a “ansiedade weusi
95
” pelo “orgulho weusi (orgulho
negro) e autoaceitação negra. A característica mais importante, segundo o autor, é que
esta paz interior implica numa concepção de negritude mais aberta, expansiva e
sofisticada. Outro ponto de destaque, neste momento, é que o enegrecimento tende a ter
mais efeito sobre a identidade de grupo ou no componente grupo-referenciado do
autoconceito negro, do que na personalidade geral de alguém. Dito de outro modo, se
uma pessoa tinha um perfil de liderança no Pré-Encontro, terá o mesmo perfil na
Internalização. Se era tímido no Pré-Encontro, continuará tímido na Internalização
(CROSS JR., 1991, p. 211). Assim, o enegrecimento como uma forma de “terapia
social”, é extremamente efetivo para mudar a saliência de raça e cultura na vida de uma
pessoa, pois a mudança ocorre ao nível de orientação grupo-referencial, deste modo
não é um processo que se presta a uma terapia de identidade pessoal”
96
(CROSS JR.,
1991, p. 212, grifo do autor, tradução nossa).
Coerente com seu objetivo de afirmar a diversidade e a complexidade do
funcionamento psicológico negro, Cross Jr. (1991) pondera que, a despeito de todos
apresentarem alta saliência para questões de raça e cultura negra, neste estágio,
diferenças de grau, provavelmente por influência da ideologia de cada um.
94
“Some may progress no further than this ‘group’ centered identity (black nationalism), but others move to still
another level. They may begin to see and relish interactions with other groups, including people who are white”
(Cross Jr, 1994, p. 122, destaques do autor).
95
Weusi is Swahili for ‘black’, and weusi anxiety is the anxiety that the convert experiences when he or she worries
about being or becoming black enough” (CROSS JR., 1991, p. 205, grifo do autor).
96
“As a form of social therapy, nigrescence is extremely effective at changing the salience of race and culture in a
person’s life. It is not a process that lends itself to the needs of personal identity therapy” (CROSS, 1991, p. 212,
grifo do autor).
137
A negritude pode aumentar a saliência de raça e cultura para todos que
alcancem sucesso nos estágios avançados de desenvolvimento da Identidade
Negra, mas a Internalização não resulta em uma unidade ideológica. Pode-se
olhar isto como uma fragmentação ideológica ou como uma diversidade
ideologicamente saudável (CROSS JR., 1991, p. 213, grifo e tradução nossa)
Aqueles que constroem uma forte estrutura nacionalista (voltada para seu
próprio grupo) de sua experiência de Imersão-Emersão podem continuar neste caminho
ideológico na Internalização, mas outros podem derivar uma instância menos
nacionalista, quais sejam: a) “nacionalista vulgar”; b) “nacionalista tradicional”; c)
“biculturalmente orientado” e d) “multiculturalmente orientado”.
Cross Jr. (1991, p.212) chama de nacionalista vulgar aquela pessoa que acredita
que negros e brancos são biogeneticamente diferentes, sendo os negros de um estoque
racial “superior” e brancos, uma mutação “inferior” do estoque negro: “o racismo
reacionário do nacionalista vulgar, o qual está usualmente pautado numa mistura
estranha de mitos pseudocientíficos, distorções históricas e um indiscutível misticismo,
oferecem uma saliência e orientação para além do alcance do discurso normal” (CROSS
JR., 1991, p. 212, tradução nossa). Adotaremos a tipologia GRUPOCENTRADO.
Como nacionalista tradicional, Cross Jr. classifica aqueles que fundamentam o
seu nacionalismo em outras concepções, que não aquelas de caráter biogenético.
“Apresentam alternativas mais saudáveis, enquanto sua alta saliência e estrutura de
referência é objeto de debate e análise racional” (CROSS JR., 1991, p. 212, tradução
nossa). A tipologia proposta é CENTRADO NO SEU GRUPO, MAS SEM
EXCLUSIVIDADE.
Cross Jr. (1991, p. 2l3) chama de biculturalmente orientados aqueles que
conseguem incorporar aspectos da identidade negra, ao mesmo tempo em que também
incorporam aspectos da sociedade norte-americana mais ampla. Chamaremos estes de
BI-FOCADO. Já os multiculturalmente orientados, compartilham seu envolvimento
com a negritude com uma multiplicidade de interesses culturais e saliências. Esses serão
chamados aqui de MULTI-FOCADO
Do ponto de vista psicodinâmico, a identidade internalizada parece desempenhar
três funções dinâmicas na vida cotidiana de uma pessoa: a) defendê-la e protegê-la de
insultos psicológicos; b) fornecer um sentido de pertencimento e ancoragem (funções de
orientação grupo-referencial) e c) fornecer uma base ou ponto de partida para realizar
transações com pessoas, culturas e situações para além do mundo da negritude (CROSS
138
JR., 1991, p. 210). Dentre essas, vamos dar um pequeno destaque à segunda, por
representar o argumento da diversidade que o autor defende.
Em seu melhor as funções de orientação grupo-referencial da identidade
negra conduzem à celebração da negritude, à resolução dos problemas do
negro e ao desejo de promulgar a história e a cultura negra. Em seu pior,
fornece a base para inibição, se não destrutividade, conformidade social,
chauvinismo étnico, ideologias culturais reacionárias (ideologias com base
biogenética), e uma tendência a ver como menos do que humano, num grau
ou outro, aquelas pessoas que não “sejam negras” (tal potencial negativo e
positivo acompanha qualquer uma e todas as formas de nacionalismo,
etnicidade ou afiliação de grupo, e assim, não é a única experiência negra;
alguém pode abraçar uma perspectiva cultural sem ser reacionário, mas todas
as noções da cultura definidas biogeneticamente, são inerentemente
reacionárias (CROSS JR., 1991, p. 210, tradução nossa).
Segundo Cross Jr. (1991, p. 220), no último estágio, denominado
“Internalização–Compromisso”, depois de desenvolver uma identidade negra, que
atenda às suas necessidades pessoais, alguns negros fracassam em sustentar, por um
longo período de tempo, interesses por assuntos negros. Há, também, aqueles que
demandam um período prolongado, se não a vida toda, para conseguir um jeito de
transferir seu sentido pessoal de negritude, para um plano de ação concreto ou para um
sentido geral de compromisso. Para o autor, faltavam estudos empíricos que
focalizassem os desdobramentos da negritude em termos de compromissos assumidos e
ainda acrescenta: “Um olhar mais diferenciado para a Internalização-Compromisso está
à espera de investigações futuras”.
A negritude sendo pensada como um evento único da vida de uma pessoa
implica na experiência de atravessar quatro ou cinco estágios. No entanto, Thomas A.
Parham
97
, aluno de Janet E. Helms
98
, desenvolveu o conceito de reciclagem. Segundo
esse autor, se uma pessoa completou seu ciclo de negritude original na adolescência ou
no início da vida adulta, desafios singulares podem aparecer em outras fases de sua
vida. Esses desafios levantam questões e levam a pessoa a descobrir “lacunas” no seu
entendimento da negritude. O casamento da pessoa, o crescimento dos filhos ou um
grave incidente racista, podem significar um novo Encontro, conduzindo a uma
necessidade de reciclagem, quando “a pessoa busca por novas respostas e fundamentos
97
Thomas A Parham é professor adjunto da Universidade da Califórnia, ex-presidente da Associação Nacional dos
Psicólogos Negros. Ele tamm é membro da American Counseling Association e da American Psychological
Association. (http://www.sagepub.com/authorDetails.nav?contribId=525210).
98
Janet E. Helms, importante figura no campo da Psicologia do negro, é professora emérita no Departamento de
Psicologia Educacional, Desenvolvimento e Aconselhamento e diretora do Instituto para o Estudo e Promoção da
Raça e Cultura, da Universidade de Boston. (http://www.bc.edu/schools/lsoe/isprc/staff/helms.html).
139
continuados em seu julgamento sobre o significado de ser negro. Dependendo da
natureza e intensidade do novo Encontro, a reciclagem pode variar de uma amena re-
focalização a uma passagem, com todas as suas características, pelos estágios de
Encontro, Imersão-Emersão e Internalização (CROSS JR., 1991, p. 220). O que
propomos como tipologia, para esse estágio, é DESISTÊNCIA, COMPROMISSO
ADIADO e QUESTIONAMENTO.
Mais uma vez, reafirmando o seu argumento da diversidade, Cross Jr. (1991, p.
222) declara que o enegrecimento não resulta de uma postura ideológica
99
única, pois
nem todas as pessoas no estágio da Internalização movimentam-se em direção a um
nacionalismo negro ou ao afrocentrismo
100
. Quer dizer, “que nem todos que têm uma
identidade negra sejam, necessariamente, afrocêntricos, como definido pelas teorias
afrocêntricas e a afrocentricidade não incorpora toda interpretação legítima da
negritude”.
Ricardo Franklin Ferreira (1999) foi um pesquisador brasileiro que adotou o
modelo de Cross Jr. em sua tese de doutorado. Em seu trabalho intitulado “Uma história
de lutas e vitórias: a construção da identidade de um afro-descendente brasileiro” não
observamos o caráter plural resultante do processo de enegrecimento apontado por
Cross Jr. Ferreira (1999, p. 76) centrou-se numa perspectiva afrocêntrica no estágio
final do processo, que ele chamou de estágio de articulação, no qual haveria “o
desenvolvimento de uma nova identidade em que as matrizes africanas são salientadas”.
Abandonando, como afirmamos, a idéia de apreender “estágios de
desenvolvimento da identidade”, experimentamos, nesta pesquisa, construir uma
tipologia inspirada no modelo de Cross Jr., e empregá-la na análise de discursos
proferidos por candidatos ao Programa IFP, relacionados à sua identificação étnico-
racial. Consideramos que esta tipologia poderia captar a diversidade de apresentar-se
como negro (e como branco), o que nos apoiaria na construção de nossa argumentação.
E isto ocorreu, como veremos no capítulo 2 da Parte III.
Ao confrontarmos os tipos inspirados em Cross Jr. aos discursos proferidos
pelos candidados ao Programa IFP, observamos que nem todos os tipos foram
identificados no corpus deste trabalho. Em relação ao Quadro 1, não foram apreendidos
99
Concepção neutra de ideologia, conforme conceituação de John B. Thompson (1995)
100
“Essencialmente, o movimento afrocêntrico é uma tentativa de codificar e aplicar uma perspectiva não-ocidental
para a análise da vida negra nos Estados Unidos da América. Mais especificamente constitui uma interpretação
Ocidental (isto é, negro norte-americana) do que significa ter uma perspectiva africana, [...]” (CROSS JR., 1991, p.
222, grifo do autor, tradução nossa).
140
os seguintes tipos: racista anti-negro; estável; restrição em relação à negritude; revolta
com o branco; ativismo ou militância frustrada; ativismo ou militância ocasional;
centrado no seu próprio grupo, mas sem exclusividade; bi-focado; desistência;
comprometimento adiado e questionamento. É interessante perceber que esses tipos, que
se distanciam da negritude ou que apresentam uma negritude em oposição ao branco,
não tenham aparecido no corpus analisado. Lembrando-nos do alerta de Osório (2004),
quanto ao uso da autoidentificação, será que eles surgiriam em um contexto que não
implicasse em vantagem proferir um discurso pró negritude?
Para Iñiguez (2004, p. 92), todo discurso é produzido dentro de um contexto
específico, que ele chama de “formação discursiva”. Dito de outro modo, o sujeito
produtor do discurso encontra-se situado num “espaço social”, conforme a abordagem
de Pêcheux (1969 apud BARDIN, 1977, p. 214).
Na perspectiva foucaultiana, os discursos são práticas sociais (IÑIGUEZ, 2004,
p. 92) e, assim, devemos considerar os aspectos performativos da linguagem na sua
interface com a sua condição de produção, reprodução e circulação, considerando tanto
o contexto social e interacional, quanto no sentido de construções históricas. O aspecto
contextual é um dos cinco aspectos fundamentais para o estudo e análise dos
significados das formas simbólicas, de acordo com a HP. O contexto está relacionado às
características socialmente estruturadas
101
das formas simbólicas. Nesta tese, as formas
simbólicas que foram examinadas provêm dos discursos proferidos nos campos
específicos relacionados à identificação étnico-racial no Formulário de Candidatura ao
Programa IFP. Os discursos que analisamos ocorrem em um contexto de avaliação, em
um programa de ação afirmativa que tem, também, foco étnico-racial profusamente
divulgado via imagem das pessoas contempladas pela bolsa. Portanto, pode-se supor
que o material produzido nesse contexto é tipificado, quer dizer, fruto de um discurso
endereçado para um outro, que, nesse caso, são os avaliadores do processo seletivo.
Dentre uma diversidade de construções discursivas dos candidatos ao Programa
IFP, no ano de 2007, nove foram os tipos identificados na amostra, analisada: Omisso,
Transcendente, Centrado no Estigma, Simpatizante, Centrado na constatação, Político,
Entusiasmado, Grupocentrado e Multi-focado. As análises das formas simbólicas serão
apresentadas na Parte III desta tese.
101
Contextos que envolvem relações de poder, formas de conflito e desigualdades, conforme John B. Thompson
(1995).
141
PARTE III – ANÁLISE FORMAL DAS FORMAS SIMBÓLICAS
“Toda obra científica acabada não tem sentido senão o de
fazer com que surjam novas perguntas: assim, pois, ela exige
ser superada e envelhecer”
(Max Weber, “Le savant et la politique”)
Esta parte explora dois tópicos: no primeiro, descrevemos os procedimentos de
análise; no segundo, descrevemos os resultados, para, em seguida, propor nossas
interpretações.
CAPÍTULO 1 – Procedimentos: corpus e grades de análise
1.1 Seleção da amostra e constituição do corpus
De toda a documentação solicitada aos candidatos para participarem da Seleção
Brasil 2007 do Programa IFP (Edital, Seleção 2007), esta pesquisa analisou quatro
questões contidas no Formulário para Candidatura 2007 (Anexo I), por vezes
denominado aqui, de Formulário
102
. Esse formulário inclui uma série de perguntas,
inclusive aquelas relativas à adequação do candidato aos grupos-alvo privilegiados pelo
Programa IFP: local de nascimento, renda familiar e pessoal, educação e ocupação do(a)
pai/mãe, responsabilidades familiares e quatro perguntas sobre autodeclaração e
identificação étnico-racial.
O Formulário passou por modificações visando afinar as informações fornecidas
pelos candidatos, no intuito de coibir respostas de ocasião que objetivassem apenas a
adequação aos grupos focalizados pelo edital (FCC/IFP, 2004).
Nas duas primeiras seleções, o Formulário continha apenas duas questões
relacionadas à autodeclaração e identificação de cor/raça/etnia: uma idêntica à
formulada pelo IBGE (“Usando as categorias do IBGE, sua cor ou raça é: branca, preta,
parda, indígena, amarela) e, ao final, uma declaração do candidato de
102
O dossiê para candidatura é bastante complexo, na medida em que constitui instrumento para analisar,
simultaneamente, pertencimento aos grupos-alvo, trajetória pessoal, potencial acadêmico e de liderança, bem como
compromisso com questões sociais.
142
identificação/pertença aos grupos focalizados pelo edital (FCC/IFP, Formulário para
Candidatura, 2003).
Declaro que pertenço ao(s) segmento(s) sub-representado(s) na pós-
graduação privilegiado(s) pelo edital do Programa Internacional de Bolsas de
Pós-Graduação da Fundação Ford e que assinalei abaixo:
Nasci na região ( ) Norte ( ) Nordeste ( ) Centro-Oeste
( ) Identifico-me como indígena e pertenço ao povo ___________
( ) Identifico- me como negro/a
Após as duas primeiras seleções e observando, conforme mencionado na
introdução por ocasião das entrevistas, a passagem da linha de cor por “oportunismo” de
alguns candidatos, a Equipe da FCC realizou um seminário com lideranças do
movimento negro visando refinar as questões sobre autodeclaração e identificação
étnico-racial, procurando ajustar-se à regra que haviam estabelecido de não violentar a
autodeclaração do candidato (FCC/IFP, 2003)
Após as discussões que aconteceram no seminário, foram introduzidas mais duas
questões no Formulário: uma, logo após a pergunta “modelo IBGE”: Por que você
indicou a categoria acima?”. A outra, “Relate suas experiências ou vivências
relacionadas a seu pertencimento étnico-racial”. Tal pergunta é ampla, permitindo ao
candidato que direcione seu relato para uma variedade de aspectos do que podem ser
experiências étnico-raciais para uma pessoa que vive no Brasil. Daí termos nos
interessado, particularmente, por esta questão.
Portanto, nesta pesquisa, analisamos as respostas dadas a essas quatro questões,
além de considerarmos o Campo L do Formulário, que trata da autorização para o uso
das informações prestadas pelo candidato para fins de pesquisa (Quadro 3).
Consideramos que estas questões (com exceção da autorização) constituem o corpus da
pesquisa. Para Bardin (1977, p. 96-98), corpus “é o conjunto dos documentos tidos em
conta para serem submetidos aos procedimentos analíticos”. A autora ainda acrescenta
que, na constituição do corpus, devem-se considerar as regras de exaustividade,
representatividade, homogeneidade e pertinência, o que exporemos adiante.
143
Quadro 3 – Campos do Formulário que foram analisados
Campo A, sub-campo 3: Identificação
Sexo
( ) Masculino ( ) Feminino
Idade ( )
Tipo de bolsa
( ) Mestrado ( ) Doutorado
Usando as categorias do IBGE, assinale sua cor ou raça:
( ) branca ( ) preta ( ) parda ( ) amarela ( ) indígena
Por que você indicou a categoria acima?
Campo L: Autorização
Autorizo a utilização ( ) SIM ( ) NÃO
Campo M: Declaração
Declaro que pertenço ao(s) segmento(s) sub-representado(s) na pós-graduação privilegiado(s) pelo edital
do Programa Internacional de Bolsas da Pós-Graduação da Fundação Ford e que assinalei abaixo.
( ) Identifico- me como negro/a
Campo N: Relatos pessoais
sub-campo 3) Relate suas experiências ou vivências relacionadas ao pertencimento étnico-racial.
Fonte: Formulário para Candidatura ao Programa IFP: Seleção 2007 (FCC/IFP).
Do ponto de vista dos procedimentos, tivemos que tomar três decisões: como
compor uma amostra representativa do universo de respostas dos candidatos, como
proceder à análise, e como nos ajustar a padrões éticos que orientam a pesquisa
envolvendo pessoas. Iniciemos por esta última questão: este projeto foi submetido à
apreciação de uma comissão constituída pela sessão brasileira do Programa IFP, que
autorizou a análise dos Formulários, desde que mantivéssemos o anonimato e que não
incluíssemos, na análise, aqueles que não concederam sua autorização.
Com efeito, desde a primeira seleção do Programa IFP, seus responsáveis
incluíram uma pergunta no Formulário solicitando, expressamente, ao candidato que
informasse se concedia, ou não, autorização para que suas respostas fossem usadas em
pesquisa, guardando-se o anonimato. Portanto, nossa amostra excluiu os Formulários
que não apresentaram respostas afirmativa ao quesito relativo à autorização (Campo L
144
do Formulário). Além desses cuidados, o projeto foi objeto de análise e aprovação pelo
Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (parecer no Anexo
II).
A outra decisão tomada referiu-se ao procedimento de sorteio da amostra de
Formulários. De início, decidimos excluir da amostra os Formulários relativos às
seleções de 2004 e 2009. Isto porque 2004 foi o ano de introdução da questão “Relate
suas experiências ou vivências relacionadas a seu pertencimento étnico-racial”. Por ser
uma novidade tanto para a Equipe quanto para os/as candidatos/as, preferimos excluir
esse ano. Consideramos que tal questão é inabitual para brancos, que, no Brasil, não
consideram ter/construir uma identidade étnico-racial (BENTO, 2002). Para negros e
indígenas, apesar de habitual, a pergunta foi efetuada em contexto de programa de ação
afirmativa, daí a novidade. Por outro lado, em 2009, ocorreu uma seleção sui generis,
por prever, exclusivamente, bolsas de mestrado, o que nos levou a excluí-lo também.
Ficamos, então, com os Formulários das seleções de 2005, 2006, 2007 e 2008. A seguir,
abriram-se duas possibilidades: selecionar uma amostra distribuída por todos os anos ou
sortearmos apenas um ano e, desse universo de Formulários, extrairmos uma amostra.
Optamos por esse último caminho, na medida em que simplificava nosso trabalho e não
reduziria a representatividade da amostra. Sorteamos, então, o ano de seleção (2007 foi
sorteado) e, do conjunto de 900 formulários que continham autorização para análise,
extraímos 20% para a composição da amostra, utilizando a Tabela de Números
Equiprováveis. Desse processo resultou uma amostra composta por 180 Formulários.
Como o número de Formulário de candidatos autodeclarados indígenas e amarelos era
reduzido (onze ao todo), e que nosso enquadre teórico focalizava relações raciais da
perspectiva negra-branca, decidimos compor uma amostra exclusivamente com
formulários de candidatos pretos, pardos e brancos, o que resultou num conjunto de 169
formulários (Quadro 4).
145
Quadro 4 – Composição da amostra
Total de
formulários (A)
Não
preencherama
autorização
(B)
Não
autorizaram o
uso de suas
informações
(C)
Formulários
que não foram
utilizados
(B+C) = D
Universo
(A-D) = E
Amostra
(20% de E)
Indígenas e
amarelos
(F)
Amostra final
(E-F)
949 15 34 49 900 180 11 169
Fonte: Banco de Dados (FCC/IFP).
Nesta pesquisa, os discursos captados nos campos selecionados do Formulário
para Candidatura ao Programa IFP constituem o corpus de análise. Selecionada a
amostra de Formulários e delimitado o corpus, passamos a descrever os procedimentos
de análise.
1.2 Análise do corpus
Para esta fase de análise discursiva desta pesquisa optou-se por articular ao
referencial metodológico da Hermenêutica de Profundidade (HP), as técnicas de análise
de conteúdo, tal como utilizadas por Bardin (1977) e Rosemberg (1981): isto é, a
análise de conteúdo atuou como apoio para proceder à descrição organizada e
sistemática de conteúdos apreendidos nos formulários analisados.
As técnicas de análise de conteúdo se desenvolvem por meio de procedimentos
sistemáticos de descrição e caracterização de discursos, de forma a buscar objetividade
e constância durante a coleta de dados, num processo de ir e vir entre o material
empírico sob análise (discursos proferidos pelos sujeitos) e o objeto de investigação,
bem como o referencial teórico adotado (Bardin, 1977; Rosemberg, 1981).
Identificar os “temas”, conforme Bardin (1977, p. 105), ou estabelecer os “cortes
no fluxo da mensagem”, segundo Rosemberg (1981, p. 70), aponta as etapas iniciais no
tratamento dos dados: a categorização e a codificação. Anteriormente a isso, Bardin
(1977, p. 96) indica a necessidade de se fazer uma “leitura flutuante” no contato com o
documento a ser analisado, “deixando-se invadir por impressões e orientações”.
A codificação é o momento da transformação dos dados do texto em índices.
Organizar a codificação envolve a escolha das unidades de registro e de contexto, a
escolha das regras de contagem e a elaboração das categorias. A unidade de registro é a
unidade de sentido que corresponde ao conteúdo considerado como unidade básica, a
146
categoria para a qual será verificada a freqüência de aparecimento no discurso sob
análise. Conforme Bardin (1977, p. 105-106),
Fazer uma análise temática consiste em descobrir os “núcleos de sentido” que
compõem a comunicação e cuja presença, ou freqüência de aparição podem
significar alguma coisa para o objectivo analítico escolhido. O tema,
enquanto unidade de registro, corresponde a uma regra de recorte (do sentido
e não da forma) que não é fornecida uma vez por todas, visto que o recorte
depende do nível de análise e não de manifestações formais reguladas.
Assim, o critério de recorte na análise de conteúdo é da ordem das significações
(Bardin, 1977, p. 104). Neste sentido, o olhar do analista é orientado tanto pela teoria
quanto por seu interesse e por suas percepções (Rosemberg, 1988, p. 76).
A unidade de contexto é outra dimensão importante a ser considerada na análise,
pois, segundo Bardin (1977, p. 107), os “resultados [de uma análise] são susceptíveis de
variar sensivelmente, segundo as dimensões de uma unidade de contexto”. De acordo
com a autora, a escolha das unidades, de registro e de contexto, deve ser coerente com o
documento a ser analisado, bem como com os objetivos do estudo. A unidade de
contexto, nesta pesquisa, foi, para cada um dos quesitos analisados, a resposta do
candidato.
Outra tarefa no tratamento dos dados, a categorização, consiste na operação de
classificar o corpus procurando dar-lhe certa organização, reconstruindo-o, “produzindo
uma representação simplificada dos dados brutos”, num movimento de diferenciação e
agrupamento dos elementos, considerando os critérios que podem ser semânticos,
sintáticos, léxicos ou expressivos, conforme Bardin (1977, p. 117-119). Neste trabalho,
foram construídas categorias de análise, a partir de recortes temáticos das respostas com
base no objeto de investigação, nas referências teóricas e nas percepções do
pesquisador, atento aos critérios de construção de “boas categorias” apresentados por
Bardin (1977, p.120, grifo nosso).
1) a exclusão mútua Essa condição estipula que cada elemento não pode
existir em mais de uma divisão. [...]; 2) a homogeneidade O princípio de
exclusão mútua depende da homogeneidade das categorias. Um único princípio
de classificação deve governar a sua organização. Num mesmo conjunto
categorial, se pode funcionar com um registro e com uma dimensão de
análise. [...]; 3) a pertinência Uma categoria é considerada pertinente quando
está adaptada ao material de análise escolhido, e quando pertence ao quadro
teórico definido. [...] O sistema de categorias deve refletir as intenções da
investigação, as questões do analista e/ou corresponder às características das
mensagens; 4) a objetividade e a fidelidade [...] As distorções devidas à
subjetividade dos codificadores e à variação dos juízos não se produzem se a
escolha e a definição das categorias forem bem estabelecidas. [...]; 5) [...]a
147
produtividade Um conjunto de categorias é produtivo se fornece resultados
férteis: férteis em índices de inferências, em hipóteses novas e em dados
exatos.
Apresentamos, a seguir, as grades que foram construídas para a análise de
conteúdo dos discursos dos candidatos ao Programa IFP. Para isso, foram criados quatro
blocos de análise.
O Bloco 1 inclui categorias referentes à identificação dos candidatos, a saber:
sexo, idade, cor/raça, tipo de bolsa (quadro 5). Aqui é necessário explicitar a construção
das categorias Negro 1 e Negro 2: a categoria Negro 1 resulta da somatória das
respostas dos que se autodeclararam pretos e pardos. a categoria Negro 2 se refere
aos candidatos que, no campo M do Formulário, que solicita a declaração de pertença
aos grupos-alvo do Programa, indicaram a opção Negro.
Quadro 5 – BLOCO 1: Identificação do candidato (Campos A e M do Formulário)
CATEGORIAS
Autodeclaração Declaração de pertença
Branca Negro2
Preta Outros
Parda Não consta
21 a 30
31 a 40
41 a 50
DESCRIÇÃO
Masculino
Feminino
Mestrado
Doutorado
51 acima
Não consta
1.1. Sexo
Idade
Cor/raça
Tipo de bolsa
O Bloco 2 (quadro 6) inclui categorias que permitem descrever, de modo
agrupado, as respostas à pergunta do Formulário “Por que você usou a categoria
148
acima?”, referindo-se à opção pelas alternativas de cor/raça empregadas nos inquéritos
do IBGE.
Quadro 6 – BLOCO 2: Justificativa da opção da categoria cor/raça (Respostas à pergunta: “Por
que você usou a categoria acima?”)
Aparência
"minha cor", cabelo, traços físicos, etc.
Origem
"meus pais", "meus avós", família, ancestrais, etc.
Documento
certidão de nascimento, RG, etc.
Cultura
"identifico-me com a cultura", "identifico-me com modo de ser", etc.
Reafirmação
"sou negro", "sou indígena", "sou afrodescente", "sou branco", etc.
Postura política
militância, participação política, consciência racial (negritude)
Outros conteúdos
não se enquadra em nenhuma categoria anterior
Mista
mais de uma categoria [p. ex.: aparência (1) e origem (2) = categoria (1-2)]
Não consta
o candidato não justificou sua resposta
Os Blocos 3 e 4 incluem categorias que se propõem a descrever os relatos
pessoais dos candidatos ao campo M do Formulário: “Relate suas experiências ou
vivências relacionadas a seu pertencimento étnico-racial”.
É necessário mencionar que, conforme o Formulário para Candidatura, este
campo devia ser manuscrito. Porém, os relatos manuscritos dos candidatos eram
enviados, pela Equipe da Fundação Carlos Chagas, a um bureau de digitação visando
sua utilização mais confortável durante o processo de seleção. A digitação pelo bureau
adotou a sistemática de usar caixa alta. Para fins desta pesquisa, preferimos adotar caixa
baixa entre aspas, diminuindo a poluição visual. Por outro lado, incluímos pontuação e
149
acentuação nos relatos, posto que sua ausência no material que recebemos decorreu do
trabalho de digitação.
Além disso, ao final dos excertos transcritos, incluímos uma fórmula de
identificação dos autores: sexo (M ou F), idade (numeral), cor autodeclarada (preta,
parda ou branca) e declaração de pertença do campo M (Negro ou , esta última quando
não indicação de resposta). Por exemplo, a fórmula F/26/preta/negra indica que se
trata de mulher, tendo 26 anos, que indicou a cor preta no quesito sobre sua cor/raça
(IBGE) e declarou-se negra no campo M referente à declaração de
identificação/pertença.
No Bloco 3 (Quadro 7) foram incluídas as categorias que descrevem o foco do
relato, seu tema principal, em que pessoa é relatado, qual a terminologia étnico-racial
que usa e se menciona ação afirmativa.
Quadro 7 – BLOCO 3: Relatos pessoais (Respostas ao campo N do Formulário: “Relate suas
experiências ou vivências relacionadas a seu pertencimento étnico-racial”)
Qual é o foco do relato?
Não há relato
Étnico-racial
“Não tenho relatos graves como ser impedida de entrar em algumas instituições, de ser barrada em lugares sofisticados
para “brancos”, até porque não tenho e nunca tive condições econômicas para frequenta-los. Durante minha infância e
adolescência sempre ouvi brincadeiras de mau gosto por ser parda, cabelos não rebeldes, mas nariz “parracha”.
Ofendia-me, claro. Tive até complexos na adolescência, orgulhava-me de ter amigos(as) brancos(as) – que bobagem”
(F/55/parda/-)
Outros (cultura, desigualdade social, profissional, indefinido)
Cultura
“Eu tenho muito orgulho de ser brasileira. tenho orgulho da culinária, da música e das pessoas deste país. [...]”.
(F/23/parda/-)
Desigualdade social
“As descriminações que sofri foram mais referente a desigualdade social. Já que de certa forma estive a margem da
sociedade [...]”. (F/33/parda/negro)
Profissional
“Ao trabalhar com a população de baixa renda, percebe-se que os indivíduos carecem de atenção e de informação. [...]”.
(F/26/branca/-)
“Não tenho discriminação alguma independente do sexo, raça ou algum tipo de deficiência. em minhas aulas os alunos
trocam informações e elaboram exercícios como um todo. (F/24/branca/-)
Indefinido
“Respeito e confiança pelas crianças”. (F/26/parda/-)
Qual o tema central do relato racial?
150
Pertencimento étnico-racial
“Como sabemos, o pertencimento étnico racial é uma descoberta que você faz ao longo de sua vida. Comigo não foi
diferente [...]. (F/24/preta/negro)
“Tenho descendência afro”. (F/24/parda/-)
Discriminação étnico-racial (geral, sofrida por familiares, pelos negros ou pelo próprio candidato)
“[...] Sinto uma grande inquietação quando vejo a impunidade e discriminação [...] ao qual vivem as comunidades
negras, indígenas e etc.” (F/34/branca/-)
“[...] Um deles ocorreu com a minha tia que foi proibida de entrar em um elevador social em razão da sua cor [...]”
(F/26/parda/negro/)
“[...] Observo as grandes dificuldades encontradas pelos negros, desde o ingresso às faculdades públicas até a presença
de negros [...]”. (M/26/parda/-)
“Pensa-se que o negro e o indígena e que são discriminados. Não só. Brancos também são, [...] na minha infância foi
muito difícil superar essas dificuldades, [...] ainda era ruiva e sardenta. [...]”. (F/48/branca/-)
“Quando criança, principalmente, vivenciei momentos de discriminação, por exemplo, com apelidos na escola de
neguinha da Beija Flor, picolé de asfalto, [...]”. (F/26/preta/negro)
Ação de enfrentamento ao racismo
“Tenho contato com movimentos quilombolas, movimentos negros. [...]”. (M/29/parda/negro)
Atividade cultural
"Participei do grupo de capoeira angola [...]". (F/28/preta/negro)
Atividade profissional
"Minha experiência como coordenadora técnica há 8 anos na [...] equipamento de acolhimento destinado a adolecentes
Do sexo feminino. [...]”. (F/43/preta/negro)
Nunca "sofreu" problema étnico-racial
“Neste caso confesso que nunca tive nenhum pertencimento pois dos 20 anos aos 41, nunca tive problemas em relação a
minha cor, pelo menos a olhos vistos. [...]”. (M/50/preta/negro)
Em que pessoa o relato é narrado?
1ª do singular
3ª do singular
1ª do plural
3ª do plural
Indefinido
Misto
Terminologia étnico-racial que emprega
Se usa e o que usa
Menciona ação afirmativa?
Sim
Não
151
O Bloco 4 incluiu categorias que buscaram construir uma tipologia das
experiências/vivências étnico-raciais relatadas, inspirando-nos no modelo proposto por
Cross Jr (1991). Porém, diferentemente da proposta de Cross Jr (1991), não nos
referimos a estágios de desenvolvimento de uma pessoa referente à sua negritude, mas a
tipos de experiências apreendidos nos discursos dos candidatos. Mas, como
discutiremos adiante, é possível vislumbrar uma hierarquia entre os tipos em direção a
discursos centrados na dimensão política nos relatos relacionados a
vivências/experiências étnico-raciais.
Quadro 8 – BLOCO 4: Tipos de relatos
Omisso
quando o relato não se refere aos negros ou a relações raciais entre brancos e negros
Transcendente
o relato privilegia uma humanidade abstrata
Centrado no estigma
o relato realça apenas aspectos negativos da identificação étnico/racial
Simpatizante
o
relato
trata
de
experiências
étnico-raciais
a
partir
da
ação
de
terceiros
ou
na
cultura
negra/indígena
em
geral ou da atividade profissional
Centrado na constatação
o
relato
apenas
apresenta
uma
situação
étnico/racial
discriminatória
sem,
contudo,
apontar
envolvimento
em
sua superação
Potico
o relato foca a militância política ou acadêmica no trato de questões étnico/raciais
Entusiasmado
o relato é entusiasmado por causa de recém descoberta da negritude
Grupocentrado
o relato focaliza exclusivamente o próprio grupo étnico/racial como importante
Multifocado
o relato tem foco em causas raciais e também em outras expressões identitárias
Adotando-se os procedimentos descritos, as respostas contidas nos 169
Formulários para Candidatura foram codificadas. Em seguida, os dados foram
processados usando-se o programa Microsolft Access, o que deu origem a tabelas a
partir de cruzamentos simples entre variáveis de identificação dos candidatos e variáveis
respostas, ou seja, o conteúdo categorizado e codificado das respostas dos candidatos.
Paralelamente, líamos e relíamos as respostas, procurando captar aspectos que
poderiam ter escapado ou que complementavam a codificação, ou ainda que
exemplificassem as tendências dominantes ou as ausências apreendidas nos discursos.
152
Este conjunto de tratamentos permitiu a configuração de resultados, a nosso ver,
interessantes, e alguns deles inovadores. Antes, porém de apresentá-los, é necessário
informar que procedemos à análise via comparação entre percentuais (distribuição de
freqüência). A base para o cálculo das porcentagens nem sempre foi 169 (conjunto de
Formulários), posto que, por vezes, efetuamos reduções excluindo, por exemplo,
Formulários em que o campo/quesito não havia sido respondido. Para facilitar a leitura,
a explicitação da base para cálculo da porcentagem ocorrerá no momento específico de
apresentação dos resultados.
Outro aspecto a ser mencionado refere-se à explicitação da fonte em quadros e
tabelas: informamos a fonte “Banco de Dados (FCC/IFP)” quando as codificações
haviam sido processadas pela Equipe da Fundação Carlos Chagas. Não mencionamos a
fonte quando fomos nós que efetuamos a codificação das informações.
153
CAPÍTULO 2 – Resultados: interpretações e re-interpretações
2.1 Caracterização da amostra
Comparando-se a composição de nossa amostra com o universo de candidatos
103
que autorizou o uso de seus Formulários para fins de pesquisa, observamos uma
proximidade muito grande entre os conjuntos: maioria de candidatos a mestrado, do
sexo feminino, nas faixas etárias mais jovens e que se autodeclararam pretos e pardos,
portanto, predominantemente negros. Isto é, nossa amostra se apresenta representativa
do conjunto de candidatos (Tabela 2).
Tabela 2: Composição do universo e da amostra de candidatos
Sexo Universo
%
Amostra
%
Sexo
Feminino
Masculino
Total
612
288
900
78,0
22,0
100,0
120
49
169
71,0
29,0
100,0
Cor/raça
Branca
Preta
Parda
Outros
Negro 1
Total
154
354
336
56
690
900
17,1
39,3
37,3
6,2
76,6
100,0
31
71
67
00
138
169
18,3
42,0
39,6
0,0
81,6
100,0
Idade
21 a 30
31 a 40
41 a 50
51 e acima
Não consta
Total
372
316
163
46
3
900
41,3
35,1
18,1
5,1
0,3
100,0
80
56
26
06
01
169
47,3
33,1
15,4
3,6
0,6
100,0
Tipo de bolsa
Mestrado
Doutorado
Total
702
198
900
78,0
22,0
100,0
126
43
169
74,6
25,4
100,0
Fonte: Banco de Dados (FCC/IFP).
103
Daremos preferência ao uso do genério masculino, para não sobrecarregar o texto, a não ser quando estivermos
explicitando a variável sexo na descrição e análise das tabelas. Além disso, quando pertinente, usamos autor para nos
referirmos aos candidatos que redigiram os relatos analisados.
154
Ou seja, o corpus aqui analisado foi predominantemente produzido por autores
mulheres (71,0%), autodeclarados pretos (42,0%) ou pardos (39,6%), tendo entre 21 e
30 anos (47,3%) e candidatos a bolsas de mestrado.
104
Ao apontar as tendências predominantes no perfil dos autores dos discursos aqui
analisados, indicamos os limites das generalizações para a população brasileira. Não
estamos lidando com discursos proferidos por uma amostra da população brasileira, mas
por uma amostra de uma reduzida parcela (os que terminaram o curso superior), que
pretendem prosseguir os estudos, que se candidataram a um programa de acão
afirmativa e, predominantemente, jovens, pretos ou pardos e mulheres.
Apesar de o Programa IFP focalizar, também, a região de nascimento do
candidato, optamos por não discutir este aspecto aqui, por duas razões: em primeiro
lugar, pela quantidade de informações que eu, neófito em procedimentos quantitativos,
deveria processar, descrever e interpretar. Isto porque, e esta é a segunda razão e que se
articula à primeira, as diversas dimensões das experiências raciais no Brasil, conforme a
literatura vem mencionando (Petruccelli, 2001), estão relacionadas à região de
residência das pessoas. Neste sentido, teria que articular local de nascimento e local de
residência, o que aumentaria, em muito, a complexidade da descrição e das
interpretações.
Para que se tenha uma idéia mais precisa dos perfis dos candidatos que
predominam em nossa amostra, transpusemos, na Tabela 3, os subconjuntos mais
freqüentes, resultantes da integração das quatro variáveis que privilegiamos: sexo, cor,
idade e tipo de bolsa pleiteada.
104
É necessário lembrar que os grupos-alvo do Programa IFP no Brasil incluem outros segmentos populacionais,
além de negros e indígenas, o que explica a presença de candidatos brancos.
155
Característica Frequência %
Mulheres pretas candidatas ao
mestrado entre 21 a 30 anos
21 12,4
Mulheres pardas candidadas ao
mestrado entre 21 a 30 anos
19 11,2
Mulheres pardas candidadas ao
mestrado entre 31 e 40 anos
13 7,7
Homens pretos candidatos ao
mestrado entre 21 a 30 anos
8 4,7
Mulheres brancas candidatas ao
mestrado entre 21 e 30 anos
7 4,1
Mulheres brancas candidatas ao
mestrado entre 31 a 40 anos
7 4,1
Homens pardos candidatos ao
mestrado entre 21 a 30 anos
7 4,1
Homens pardos candidatos ao
mestrado entre 31 a 40 anos
7 4,1
Percentual da amostra 89 52,7
Fonte: Banco de Dados (FCC/IFP)
.
Tabela 3: Subconjuntos mais frequentes identificados na
amostra
Observamos que o subconjunto de mulheres pretas ou pardas, candidatas a
mestrado, tendo entre 21 e 30 anos representam praticamente ¼ dos autores de discursos
aqui analisados.
Para analisar a amostra com maior detalhe, descreveremos, a seguir, sua
composição a partir de cruzamentos simples entre as categorias de identificação.
156
a) Por sexo
Tabela 4: Caracterização da amostra por sexo
Categorias
Feminino
%
Masculino
%
Total
%
Mestrado 87 72,5 39 79,6 126 74,6
Doutorado 33 27,5 10 20,4 43 25,4
Total 120 100,0 49 100,0 169 100,0
21 a 30 58 48,3 22 44,9 80 47,3
31 a 40 39 32,5 17 34,7 56 33,1
41 a 50 16 13,3 10 20,4 26 15,4
51 acima 6 5,0 0 0,0 6 3,6
Não consta 1 0,8 0 0,0 1 0,6
Total 120 100,0 49 100,0 169 100,0
Branca 26 21,7 5 10,2 31 18,3
Preta 47 39,2 24 49,0 71 42,0
Parda 47 39,2 20 40,8 67 39,6
Negro1(Preta + Parda) 94 78,3 44 89,8 138 81,7
Total
120 100,0 49 100,0 169 100,0
Fonte: Banco de Dados (FCC/IFP).
Tipo de bolsa
Idade
Cor/raça
Nota-se maior variação no perfil de homens e mulheres na categoria cor/raça,
observando-se maior percentual de pessoas que se declaram brancas entre as mulheres
do que entre homens. Observação idêntica fora efetuada por Rosemberg e Andrade
(2008) em análise do conjunto de candidatos até a Seleção 2006. Os autores
assinalaram: uma sobrerrepresentação das mulheres entre os candidatos ao Programa
IFP (explicável, entre outros aspectos, por seus melhores resultados escolares); um
número e um percentual maior de mulheres que de homens candidatos fora dos grupos-
alvo ((ROSEMBERG e ANDRADE, 2008, p. 431).
Ao procurarem interpretar essa sobrerrepresentação de mulheres “fora do
ninho”, os autores caminham por duas linhas argumentativas: as mulheres, mais que os
homens, seriam pró-ativas e desafiariam “as regras do jogo do Programa IFP”; as
mulheres se sentiriam “mais autorizadas a se candidatarem a um programa de ação
afirmativa porque, enquanto mulheres, se consideram ‘sempre discriminadas’”, tendo
em vista a frase que constava do edital das seleções (excluída em 2007) “no Brasil, o
Programa além de estar atento à igualdade de gênero, destina-se, prioritariamente, a ...”
(ROSEMBERG e ANDRADE, 2008, p. 432). E terminam o artigo levantando questões
157
políticas: “Estaria a sociedade brasileira, neste momento do debate sobre ação
afirmativa, apta a estabelecer subcotas para homens e para mulheres? [...]” Isto seria
justo? (ROSEMBERG e ANDRADE, 2008, p. 435).
b) Por idade
Categorias
21 a 30
%
31 a 40
%
41 a 50
%
51 acima
%
Não consta
%
Total
%
Mestrado 65 81,3 39 69,6 17 65,4 4 66,7 1 100,0 126 74,6
Doutorado 15 18,8 17 30,4 9 34,6 2 33,3 0 0,0 43 25,4
Total 80 100,0 56 100,0 26 100,0 6 100,0 1 100,0 169 100,0
Feminino 58 72,5 39 69,6 16 61,5 6 100,0 1 100,0 120 71,0
Masculino 22 27,5 17 30,4 10 38,5 0 0,0 0 0,0 49 29,0
Total 80 100,0 56 100,0 26 100,0 6 100,0 1 100,0 169 100,0
Branca 13 16,3 13 23,2 2 7,7 2 33,3 1 100,0 31 18,3
Preta 38 47,5 17 30,4 13 50,0 3 50,0 0 0,0 71 42,0
Parda 29 36,3 26 46,4 11 42,3 1 16,7 0 0,0 67 39,6
Total
(Branca+Negro1)
80 100,0 56 100,0 26 100,0 6 100,0 1 100,0 169 100,0
Negro1
(Preta + Parda)
67 83,8 43 76,8 24 92,3 4 66,7 0 0,0 138 81,7
Tabela 5: Caracterização da amostra por idade
Tipo de bolsa
Sexo
Cor/raça
Quando analisamos a distribuição das variáveis de identificação por idade,
observamos, em primeiro lugar, uma intensa maioria de candidatos mais jovens, o que
acarreta uma reduzida presença de candidatos tendo 51 anos e mais. Isto pode distorcer
o significado das porcentagens neste grupo etário, cuja base para o cálculo apresenta
número reduzido de pessoas (seis candidatos apenas).
Notamos que a distribuição de frequência por idade não apresenta pontos de
inflexão no cruzamento com as demais categorias de identificação. Porém, certas
diferenças precisam ser apontadas: entre os muito jovens (entre 31 e 30 anos), notamos
um percentual maior dos que se autodeclaram pretos, seguido de pardos; no grupo
intermediário, um percentual maior dos que se autodeclaram pardos. Poderíamos evocar
os resultados da pesquisa de Sergei Soares (2008), na qual aponta um aumento de
pessoas que se autodeclaram pretas na população brasileira que não se explicaria por
razões demográficas. Também poderíamos evocar o livro de Sansone (2003), no qual
158
assinala uma variação geracional na terminologia racial usada na Bahia. Mas, essas
interpretações se desmancham ao observarmos que, nos grupos menos jovens (que são
menos representados), volta a aumentar o percentual dos que se autodeclaram pretos.
Portanto, não observamos uma tendência uniforme conforme a menor ou maior idade
dos candidatos e o uso preferencial de uma categoria de cor/raça.
c) Por cor/raça
Categorias
Branca
%
Preta
%
Parda
%
Negro1
%
Total
%
Negro2
%
Mestrado
21 67,7 50 70,4 55 82,1 105 76,1 126 74,6 77 73,3
Doutorado
10 32,3 21 29,6 12 17,9 33 23,9 43 25,4 28 26,7
Total 31 100,0 71 100,0 67 100,0 138 100,0 169 100,0 105 100,0
Feminino
26 83,9 47 66,2 47 70,1 94 68,1 120 71,0 72 68,6
Masculino
5 16,1 24 33,8 20 29,9 44 31,9 49 29,0 33 31,4
Total 31 100,0 71 100,0 67 100,0 138 100,0 169 100,0 105 100,0
21 a 30 13 41,9 38 53,5 29 43,3 67 48,6 80 47,3 52 49,5
31 a 40 13 41,9 17 23,9 26 38,8 43 31,2 56 33,1 29 27,6
41 a 50 2 6,5 13 18,3 11 16,4 24 17,4 26 15,4 21 20,0
51 acima 2 6,5 3 4,2 1 1,5 4 2,9 6 3,6 3 2,9
Não consta 1 3,2 0 0,0 0 0,0 0 0,0 1 0,6 0 0,0
Total 31 100,0 71 100,0 67 100,0 138 100,0 169 100,0 105 100,0
Fonte: Banco de Dados
Dados (FCC/IFP).
Tabela 6: Caracterização da amostra por cor/raça
Tipo de bolsa
Sexo
Idade
Quando analisamos a composição do perfil dos candidatos de nossa amostra por
cor/raça, observamos diferenças que, por vezes, aproximam pretos e brancos, outras
vezes pardos e brancos e, outras vezes, pretos e pardos. Quanto ao tipo de bolsa,
notamos um percentual maior de candidatos ao doutorado entre brancos (32,3%),
seguidos dos pretos (29,6%), que se destacam dos pardos (17,9%). Quanto ao sexo, o
percentual de mulheres é pronunciadamente maior entre os brancos (83,9%)
lembrando análise anteriormente mencionada por Rosemberg e Andrade, (2008) que
entre pardos (70,1%) e entre pretos (66,2%). Além disso, são os candidatos pretos que
apresentam o maior percentual de jovens tendo entre 21 e 30 anos (53,5%), mas também
de candidatos de meia idade (18,3%), isto é, tendo entre 41 e 50 anos. Entre os
candidatos brancos, a igualdade na distribuição dos que têm entre 21 e 30 anos e 31 e 40
159
anos (41,9%) pode ser associada ao maior equilíbrio entre as candidaturas para
mestrado e doutorado.
Finalmente, chamamos atenção para a categoria Negro 2 que introduzimos nessa
Tabela 6. Lembrando: o Formulário incluiu um campo (M) que solicita ao candidato
declarar com quais grupos-alvo do Programa IFP se identifica. Entre as alternativas,
encontra-se o termo negro. Este campo, e o uso aí do termo negro, constitui uma
estratégia metodológica da Equipe da Fundação Carlos Chagas para controlar a
“passagem da linha de cor por oportunismo”, ou para barrar negros” “de ocasião”,
conforme informamos na Introdução desta tese e que constitui um dos focos centrais de
nossa problematização.
Apesar de dedicarmos o próximo tópico à análise desta categoria, assinalamos
que o perfil dos que se identificaram como negros no campo M (Negro 2) se aproxima
mais do perfil dos que se autodeclaram pretos, do que dos pardos.
Em praticamente todas as categorias (com exceção mínima em sexo),
encontramos a seguinte sequência de proximidade na distribuição dos dados: preto,
negro 2, negro 1 e pardo. Esta proximidade na distribuição dos dados entre as categorias
preto e negro 2 pode ser explicada pelo maior número de pessoas pretas que se
identificaram como negras (Negro 2) do que entre os autodeclarados pardos, o que será
analisado no próximo tópico (tabela 6).
Em síntese, a caracterização do perfil da amostra de autores dos discursos que
analisamos aponta para: uma proximidade com o universo de candidatos ao Programa
IFP; um percentual predominante de autores pretos e pardos, que declararam pertencer
ao grupo-alvo negro; um predomínio de jovens e de mulheres. Além disso, notamos
variações no perfil de pretos e pardos, o que será uma constante na análise de todas as
demais categorias.
2.2 Como efetuam a declaração de pertença/identificação aos grupos-alvo
A preocupação com a passagem da linha de cor, em programas de ação
afirmativa, como vimos, é pertinente na implementação dessas experiências no Brasil,
na medida em que nossa classificação de cor/raça é “complexa e sofisticada”.
Para enfrentar essa complexidade, com o sugestivo título “O branco no IBGE
continua branco na ação afirmativa?”, Rosemberg (2004, p. 63) informa que foi
160
introduzida a questão incluída no campo M do Formulário para Candidatura ao
Programa IFP, objeto de análise neste tópico.
Para triangulação, incluímos no questionário um campo inspirado em prática
que vem se consolidando em programas de ação afirmativa brasileiros, para
que a pessoa declare sua pertença racial quando, então, usamos o termo negro
[...] Ao usarmos esta prática de triangulação, nossa busca é não incluir pessoas
que passam a linha de cor por oportunismo. Além disso, nossa busca é não
incluir perguntas que possam violentar o candidato(a).
Para a Equipe da Fundação Carlos Chagas, esta pergunta atuaria como filtro pois
inclui duas dimensões: de um lado, o uso do termo negro, e não mais os termos preto e
pardo; de outro, uma incitação aos candidatos que assumam sua responsabilidade
quando declaram que se identificam com este segmento racial (há alternativa
equivalente para os indígenas que devem informar a qual povo/etnia pertencem).
A sustentação para tal triangulação (pergunta no formato IBGE e solicitação de
declaração de pertença) provém, conforme Rosemberg (2004, p. 64), do trabalho de
Petruccelli (2001) sobre a Pesquisa Mensal de Empregos (julho de 1998), que efetuou
uma pergunta aberta (“qual a sua cor”), além da pergunta fechada tradicional do IBGE
que apresenta alternativas ao respondente. Com efeito, Petruccelli observou “que a
grande maioria das pessoas que responderam ‘parda’ na pergunta fechada, usaram
também denominações ‘intermediárias’ entre branco e negro na pergunta aberta”
(Rosemberg, 2004, p. 64). Ou seja, a tendência predominante da população brasileira é
que pessoas que se declaram pretas na pergunta fechada prefiram usar o termo negro na
pergunta aberta, o que não ocorre com os que se declaram pardos. Portanto, a autora
considera que, mesmo apoiando-se em indícios “metodologicamente fracos”, os
candidatos do IFP que se declaram pardos (pergunta fechada) e negros (campo M)
teriam uma identificação de pertença ao segmento negro mais consistente.
Com efeito, analisando os dados referentes aos 931 candidatos à seleção de
2003, Rosemberg (2004) observou que, dentre os 290 candidatos que optaram pela cor
preta, 97% se identificaram como negros no campo M; por outro lado, dentre os 304
candidatos que optaram pela cor parda, apenas 46% se identificaram como negros. Ou
seja, um número expressivo de candidatos pardos não declaram pertença ao segmento
negro focalizado pelo edital do Programa IFP. Entre os que optaram pela cor branca
(307 candidatos à seleção IFP 2003), apenas 3% se declararam negros no campo M, na
Seleção 2003 analisada por Rosemberg (2004).
161
Tais observações de Rosemberg (2004) sobre o Programa IFP e as discussões
efetuadas na Introdução e nos dois primeiros capítulos desta tese, conduziram-nos a
considerar esta variável como de alta relevância em nossas análises sobre os discursos
dos candidatos. Por isto, esta variável foi adotada em todos os cruzamentos que
efetuamos e, como afirmamos, foi denominada Negro 2. Os resultados referentes a
nossa amostra foram transcritos na tabela 6, lembrando que a expressão “não consta”
significa que essas pessoas não declararam pertença a nenhum segmento étnico-racial e
que o termo “outros” significa que a declaração de pertença recaiu sobre a alternativa
indígena.
Dentre os 169 candidatos que compõem nossa amostra, 105, ou seja 62,1%,
declararam identificar-se como negros.
Feminino
Masculino
21 a 30
31 a 40
41 a 50
50 acima
Não consta
Branca
Preta
Parda
Negro 1
Negro2 60,0 67,3 63,8 53,6 80,8 50,0 0,0 0,0 98,6 52,2 76,1 62,1
Outros 1,7 0,0 1,3 0,0 0,0 16,7 0,0 3,2 0,0 1,5 0,7 1,2
Não consta 38,3 32,7 35,0 46,4 19,2 33,3 100,0 96,8 1,4 46,3 23,2 36,7
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Fonte: Banco de Dados (FCC/IFP)
Tabela 7: Declaração de pertença por sexo, idade e cor/raça (%)
Sexo Idade Cor/raça
Total
Declaração de
pertença
Analisando os dados da Tabela 7, observamos que, em nossa amostra, nenhum
candidato branco identificou-se como negro, 52,2% dos pardos e 98,6% dos pretos
identificaram-se, também, como negros.
Tendo-se esta alta associação entre cor autodeclarada e identificação, ou não,
com os grupos étnico-raciais alvo do Programa IFP intensa entre os pretos,
intermediária entre os pardos e ausente entre os brancos –, o comportamento das demais
variáveis (sexo e idade) se adéqua ao que havíamos apontado no item anterior. Ou
seja: proporcionalmente menor número de mulheres que de homens se identificaram
como negras; uma configuração oscilante conforme as idades, não obedecendo a um
padrão crescente ou decrescente de identificação como negro entre os candidatos.
162
Porém, vale a pena notar aqui a alta porcentagem (80,8%) dos que identificaram como
negros que se situam na faixa etária entre 41 e 50 anos.
2.3. Como justificam a autodeclaração de cor/raça
Visando afinar o filtro para evitar passagens da linha de cor/raça “por
oportunismo”, o Formulário para Candidatura ao Programa IFP inclui uma pergunta, a
nosso ver, inédita: no campo referente à identificação, após o quesito “usando as
categorias do IBGE, assinale sua cor ou raça”, o Formulário inclui a pergunta “Por que
você indicou a categoria acima? Conforme relatório (FCC, 2004), esta pergunta foi
incluída, também (mas não somente), para auxiliar os entrevistadores a abordarem o
tema durante a entrevista, nos casos em que se defrontassem com discrepância entre a
autodeclaração e a percepção que estariam tendo de pertença étnico-racial do candidato.
Como a literatura tem mencionado (NOGUEIRA, 1998), dispomos, no Brasil, de uma
etiqueta no trato de temas raciais, que orientam o que e como devemos nos comportar
na questão. Por isto, dispor de uma justificativa escrita pelo candidato no Formulário
podia constituir uma estratégia para o entrevistador iniciar uma conversa.
Ao qualificarmos a questão como inédita, nos apoiamos nas pesquisas e nos
estados das artes já mencionados (Capítulo 5, Parte I), nos quais não localizamos
inquéritos sobre as justificativas que sustentam as opções das pessoas pelas alternativas
postas pelo IBGE. De fato, um consenso na literatura nacional, de que o modo
brasileiro de efetuar a declaração de cor/raça se assenta na aparência (FERNANDES,
1965; NOGUEIRA, 1998; GUIMARÃES, 1999). Daí a nomeação, por Oracy Nogueira
(1998) de “preconceito de marca”, em contraposição ao “preconceito de origem”.
Porém, também como vimos no capítulo (Capítulo 5, Parte I), alguns autores
vinham assinalando um modo “misto” (PIZA e ROSEMBERG, 2002; SHERIFF, 2002)
de classificação de cor/raça.
Ao analisarmos as respostas de nossa amostra de candidatos ao Programa IFP
referentes a esta questão, encontramos uma pluralidade de justificativas, sendo que a
aparência não foi aquela predominante.
Antes de detalharmos os resultados transcritos na Tabela 8, é necessário
explicitar um procedimento que adotamos. A maioria das respostas informa apenas uma
razão para justificar porque escolheu a alternativa de autodeclaração (136 ou 80,5%).
Porém, dado o número de respostas a este quesito que explicitava duas categorias,
163
decidimos alterar a unidade de análise para incluí-las. Portanto, na análise deste tópico,
efetuamos uma tabulação não tendo mais como unidade de registro o número de
Formulários, mas o número de alternativas apreendidas nas respostas à questão. Assim,
passamos de 169 respostas a 192 justificativas, ou seja, 136 justificativas provenientes
das respostas simples, mais 56 das respostas mistas.
Observamos nas respostas dos candidatos a esta questão aspectos notáveis: a
quase totalidade (97,0%) dos candidatos respondeu à questão; a justificativa mais
presente se baseia na origem, e não na aparência. De fato, o percentual de justificativas
na origem (35,4%) é quase o dobro do percentual obtido pela justificativa aparência
(19,8% das justificativas). Vejamos alguns exemplos de justificativas com base na
aparência e na origem.
“Pela cor da cútis” (M/23/branca/-)
“Pela cor da pele” (F/34/branca/-)
“Porque é minha cor de pele” (/28/preta/negro)
“Por causa dos traços que carrego” (F/29/parda/negro)
“Por ser filho e neto de casais negros” (M/29/preta/negro)
“Porque os avós eram brasileiros (afrodescendentes) e italiano” F/24/parda/-)
“Porque meus pais são brancos” (F/29/branca/-)
“Devido às origens e miscigenações de meus ancestrais” (F/30/parda/negro)
“Descendência paterna” (F/25/parda/-)
“Herança genética, mãe morena, pai mulato” (F/28/preta/negro)
Categorias
Simples
Mista
Total
%
Aparência 19 19 38 19,8
Origem 49 19 68 35,4
Documento 25 3 28 14,6
Cultura 2 7 9 4,7
Reafirmação 13 4 17 8,9
Postura política 17 4 21 10,9
Outros conteúdos 11 0 11 5,7
Total 136 56 192 100,0
Tabela 8: Distribuição de frequência das
justificativas dadas à opção cor/raça
164
Deve-se notar, ainda, o número expressivo (14,2%) de justificativas que se
apóiam em documentos, aspecto não localizado na bibliografia.
“É a informação que consta no meu registro de nascimento e entre as opções
me parece a mais coerente” (M/37/parda/-)
“Porque é a que consta na minha certidão de nascimento, porém esta
caracterização não me agrada” (F/36/parda/negro)
Em quarto lugar situam-se as justificativas sustentadas em razões políticas
(10,7%).
“Dentre essas categorias é a que política e socialmente abarca minha
autoidentificação” (F/24/preta/negro)
As justificativas que reafirmam a identificação obtiveram
8,6%: “Sou negro” (M/26/preta/negro). Finalmente, as justificativas que apelam por
razões culturais foram as menos frequentes (4,6%).
“Levei em conta a cor da pele, compleição física, pertencimento cultural e
social” (F/35/preta/negro)
“Por apresentar traços físicos, repertório cultural e sentimento de
pertencimento” (F/56/preta/negro)
De fato, tais resultados apelam por mais estudos: por exemplo, que documentos,
de onde, e de que modo “declaram” a cor/raça das pessoas. Além disso, tais resultados
intensificam os qualificativos “complexo e sofisticado” associados ao modo brasileiro
de classificação racial, sobretudo quando atentamos aos dados transcritos na Tabela 9.
Com exceção das respostas dos autodeclarados brancos e dos que se situam na faixa
etária acima de 50 anos, as justificativas apoiadas na origem são predominantes em
todos os demais subconjuntos de candidatos.
165
Declaração
Feminino
Masculino
21 a 30
31 a 40
41 a 50
51 acima
Não consta
Branca
Preta
Parda
Negro1
Negro2
Aparência
18,1 22,0 20,9 18,8 18,2 14,3 0,0 27,3 18,9 16,2 17,7 19,3 16,5
Origem
36,2 30,5 37,4 31,3 36,4 14,3 50,0 21,2 28,9 47,3 37,2 34,5 33,1
Documento
13,0 16,9 6,6 28,1 6,1 14,3 50,0 33,3 1,1 21,6 10,4 14,2 8,7
Cultura
5,1 3,4 5,5 3,1 6,1 0,0 0,0 3,0 7,8 1,4 4,9 4,6 6,3
Reafirmação
7,2 11,9 11,0 3,1 12,1 14,3 0,0 3,0 15,6 2,7 9,8 8,6 12,6
Postura política
11,6 8,5 14,3 4,7 9,1 28,6 0,0 0,0 22,2 1,4 12,8 10,7 15,7
Outros conteúdos
5,8 5,1 2,2 7,8 9,1 14,3 0,0 9,1 3,3 6,8 4,9 5,6 3,9
Sub-total 97,1 98,3 97,8 96,9 97,0 100,0 100,0 97,0 97,8 97,3 97,6 97,5 96,9
Não consta 2,9 1,7 2,2 3,1 3,0 0,0 0,0 3,0 2,2 2,7 2,4 2,5 3,1
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Tabela 9: Justificativas dadas à opçãocor/raça por sexo, idade, cor/raça e declaração
de pertença
Sexo Idade Cor/raça
Total Geral
Categoria
Poder-se-ia imaginar, por exemplo, que nos subconjuntos preto e Negro 2 as
respostas referentes à origem remeteriam a ancestrais escravizados ou ao termo
afrodescendente. Analisando, porém, em detalhes as justificativas referentes à “origem”
nesses conjuntos de candidatos, encontramos algumas poucas respostas que adotam o
termo afrodescendente: ”sou descendente de afrobrasileiro” (F/50/preto/negro); ou se
referem à origem quilombola (“sou remanescente de quilombo, tenho o biótipo de raça
negra, pele preta e cabelo pixaim F/42/preta/negra), ou, ainda, a ascendência escrava:
“sou filha, neta, bisneta de negros e tataraneta de negros escravos” (F/33/preta/negro).
Alguns candidatos aproveitaram este campo para insurgir-se contra o modo de
inquirição do IBGE, ou contra o uso do termo preto e ausência da opção negro(a) dentre
as alternativas: “identifico-me como negra, apesar de a opção não constar nas
classificações oficiais do IBGE” (F/28/preta/negro).
166
É necessário destacar, ainda, que os subconjuntos de candidatos autodeclarados
pretos e que se identificaram como negros (Negro 2) foram os que apresentaram os mais
altos percentuais de justificativas políticas e de reafirmação: “sou negro”
(M/26/preto/negro; “sou afrodescendente” (M/47/preta/negro); “porque me considero
um cidadão negro brasileiro” (M/27/preta/negro). Além disso, foram também os
subconjuntos de candidatos que menos se apoiaram em documentos para justificar sua
autodeclaração de cor/raça.
Finalmente, assinalamos que, se no tópico anterior (declaração de pertença aos
grupos-alvo do Programa IFP), o subconjunto de candidatos pretos respondeu quase que
homogeneamente negro ao campo M (“sou preto, portanto sou negro”), nesta questão
nota-se intensa variedade de respostas entre os pretos, a indicar, diferentes modos de
expressar sua identificação como negro. Este aspecto será tratado em maior
profundidade no próximo item que tem por foco os relatos relacionados às experiências
étnico-raciais.
Antes, porém, de passarmos para a descrição do próximo bloco de resultados,
vamos nos deter na análise da justificativa de autodeclaração pela origem.
Sugerimos, aqui, uma distinção (que não nos parece efetuada pela literatura),
entre modo de classificar a si mesmo e modo de classificar o outro
105
: sugerimos que a
classificação pela aparência seja o predominante quando atribuímos categoria de
cor/raça aos outros, posto que não temos, enquanto observadores dos outros, nada além
de sua aparência, a não ser nos casos em que conhecemos outros detalhes desses outros
(sua família, por exemplo). Porém, no caso de autodeclaração, os modos que nos levam
à opção por uma das alternativas na terminologia racial, parecem se originar de
múltiplas raízes. Lembramos, aqui, a pesquisa de Sheriff (2002) em “morro carioca”,
mencionada no Capítulo 5, quando interpreta a fala de Ana Lúcia, uma das moradoras
locais (“Quando a gente se reúne e você olha bem, tem mistura do negro no meio. Sabe
que tem negro na família”):
Nesses comentários Ana Lúcia refere-se a si mesma como de raça negra. Ela
refuta, ao menos parcialmente, a noção de que, no Brasil, ao contrário dos
Estados Unidos, a identidade racial é determinada não pela família ou pelo
parentesco, mas pela cor da pessoa (SHERIFF, 2002, p. 231).
105
Note bem: nossa questão aqui não é discutir se a categoria usada na auto e heteroclassificação são ou não
coincidentes. Sobre este aspecto dispõe-se de literatura especialmente os trabalhos de Telles (2002).
167
Em suma, nossos resultados também apontam nesta direção, apelando por novos
estudos no campo da classificação por cor/raça.
2.4 Relatos sobre experiências/vivências étnico-raciais
Descrevemos, nesta seção, os discursos sobre as experiências ou vivências
étnico-raciais relacionadas à pertença dos candidatos proferidos no campo “N” do
Formulário. Foram analisados 169 (cento e sessenta e nove) textos, que se
encontravam digitalizados, por isto a necessidade de se fazer o uso da expressão “sic”
alguma poucas vezes, não para menosprezar os candidatos, mas pela dificuldade de
identificar se o texto, como está apresentado, foi produzido pelo candidato ou decorre
da transcrição feita pelo bureau de digitação contratado pela Fundação Carlos
Chagas
106
.
Originalmente, os textos são manuscritos, estratégia empregada para
mobilização do candidato e para mostrar que os relatos são valorizados pela Equipe da
Fundação Carlos Chagas. São relatos curtos (em média menos de 100 caracteres por
relato digitado), em sua maioria escritos em primeira pessoa (74,1%). Muitos são
densos, alguns poucos telegráficos e burocráticos. Para um ou outro poderia usar o
adjetivo desinteressante. Outros me tocaram, especialmente aqueles com os quais pude
me identificar e reconhecer uma trajetória equivalente àquela relatada. Alguns
candidatos deixaram de preencher o campo, o que ocorreu particularmente entre
brancos, como veremos adiante. Poucos relatos (5,3%) tocam no tema da ação
afirmativa, o que causou certa estranheza. O fato é que constituem um conjunto de
produções discursivas que apresenta intensa variação interna. A seguir, alguns
exemplos.
107
“Sou filho de descendentes de negro e índios, meus pais foram trabalhadores
rurais, minha mãe toda vida foi doméstica. Não foram alfabetizados, meu pai
foi bóia-fria. Atuei em comunidades que tinham forte tradição afro-
descendente. Hoje, na Secretaria, trabalho com a diversidade do campo que
envolve indígenas, campo e quilombolas. Cabe à minha coordenação
desenvolver propostas com os grupos quilombolas. Hoje vejo um meio de
resgate, conhecimento e valorização das origens”. (M/44/preta/negro)
“A sociedade brasileira é muito racista, não apenas de cor, mas também de
classe social dentre outros. Ficamos, como sempre [...] de lado por muitas
empresas e até instituições”. (F/28/preta/negro)
106
Não tive acesso aos manuscritos, pois não se dispõe, ainda, de norma internacional no Programa IFP para o acesso
aos textos manuscritos.
107
Serão utilizados, como exemplos, relatos completos ou fragmentos dos mesmos, visando ilustrar os pontos
considerados. Serão suprimidos nomes de lugares de instituições, no intuito de preservar informações que
possibilitem a identificação do autor do relato.
168
”Filha de homem negro, sendo pertencente à etnia negra, tenho vivenciado
momentos de preconceitos e racismos velados e explícitos. Já perdi
oportunidade de emprego nas universidades públicas e privadas, devido à
minha cor de pele. Sofro exclusão social, zombarias,
perseguições/humilhações desde a infância até então.” (F/53/preta/negro)
“Quando fui morar em X, tive de comprovar que o fato de ser nordestina e
[...] não interfere na minha capacidade e na minha competência profissional.
A dedicação e o compromisso demonstrados nos desenvolvimentos das
atividades profissionais, como, também, a facilidade e o bom relacionamento
com colegas e superiores foram fatores diversos para superar as barreiras
étnicas por mim enfrentadas.” (F/29/branca/-)
“Até hoje nunca tive nenhuma experiência negativa com relação ao meu
pertencimento étnico-racial. Não costumo militar em grupos anti-racismo
porque acredito que a dificuldade venha principalmente da falta de
oportunidades, que, historicamente, neste universo, existem com o acesso à
educação e informação, que é negado às pessoas de baixa renda.
(F/31/parda/negro)
“Apesar de me considerar pertencente à raça negra, nunca sofri nenhuma
espécie de preconceito declarado.” (M/25/pardo/negro)
“Minha experiência como coordenadora técnica há 8 anos na X, equipamento
de acolhimento destinado a X. No período em gestão, cerca de 90% de X são
de origem afrodescendente, sendo as mesmas discriminadas em espaços tais
como escola, cursos ou mesmo no processo de famílias substitutas. Essas
jovens têm baixo autoestima e consideram-se inferiores por serem negras.”
(F/43/preta/negro)
a) Presença/ausência de relatos sobre experiências/vivências étnico-raciais.
Iniciaremos a análise discutindo a presea ou ausência de relatos conforme o
perfil dos candidatos (Tabela 10).
Tabela 10: Presença/ausência de relato sobre experiências/vivências relacionadas à
pertença étnico-raciais por sexo, idade, cor/raça e declaração
Categoria Com relato
%
Sem relato
%
Total
%
Sexo
Feminino
Masculino
105
42
87,5
85,7
15
7
12,5
14,3
120
49
100,0
100,0
Idade
21 a 30
31 a 40
41 a 50
51 acima
Não consta
70
48
23
5
1
87,5
85,7
88,5
83,3
100,0
10
8
3
1
0
12,5
14,3
11,5
16,7
-
80
56
26
6
1
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Cor/raça
Branca
Preta
Parda
23
67
57
74,2
94,4
85,1
8
4
10
25,8
5,6
14,9
31
71
67
100,0
100,0
100,0
Negro 1
Negro 2
124
96
89,9
91,4
14
9
10,1
8,6
138
105
100,0
100,0
169
Ao todo, 22 candidatos (13,0%) não incluíram relatos sobre suas
experiências/vivências relacionadas à pertença étnico-raciais no Formulário para
Candidatura ao Programa IFP. Para todas as variáveis referentes ao perfil dos
candidatos, com exceção de cor/raça, notamos pequena variação interna (entre 11,5% e
16,7%). Isto é, o percentual de homens e mulheres que não redigiram relatos é muito
semelhante (12,5% e 14,3%, respectivamente), bem como são semelhantes os
percentuais relacionados às faixas etárias. Porém, a variação é bem maior quando se
considera a autodeclaração de cor: no extremo superior, 25,8% dos candidatos brancos
omitiram relatos sobre experiências étnico-raciais contra 5,6% de candidatos pretos.
Candidatos pardos situam-se em posição intermediária entre brancos e pretos (14,9%
sem relatos), posição esta que se repete no transcorrer desta análise de resultados, o que
será comentado ao final deste capítulo. A notar, ainda, que apenas 8,6% dos candidatos
que se identificaram como negros (Negro 2) não redigiram relatos sobre suas
experiências étnico-raciais, o que os aproxima dos pretos.
Quanto à relativa maior ausência de relatos sobre experiências étnico-raciais nos
formulários de candidatos brancos, remetemos à ainda reduzida, mas instigante,
literatura brasileira (BENTO, 2002) sobre branquitude e branquidade. É necessário,
porém, destacar que alguns candidatos brancos relatam experiências que, para eles, se
configuram como étnico-raciais, particularmente referenciadas à própria origem
regional.
“Não estava sendo verdadeira se afirmasse ter sido discriminada ou excluída
por uma questão étnico-racial. [...] Outro aspecto tem impacto maior como
ser nordestina, mulher e jovem [...]”. (F/30/parda/-)
A análise que segue discutirá os focos e os temas apreendidos nos relatos dos
candidatos sobre suas experiências étnico-raciais.
b) Em que pessoa o relato foi enunciado
108
Ao analisarmos o Formulário para Candidatura, observamos que a quase
totalidade das perguntas usa os pronomes “você” e/ou “seu, sua”, por exemplo:
“Você morou em outro estado ou país?”; Atualmente você tem
dependentes?”; “Sua língua materna é”; “Você exerce alguma atividade de
liderança nesse trabalho?”; “Relate e comente os desafios que você tem
enfrentado em seu percurso educacional, social e profissional”.
108
A partir deste item, a não ser que seja mencionado algo em contrário, a base para o cálculo das porcentagens
elimina os Formulários que não dispõem de relatos referentes a experiências/vivências étnico-raciais.
170
Ou seja, são raros os campos/quesitos do Formulário que adotam um enunciado
que não utilize você/seu/sua. Citamos como exceções os quesitos sobre identificação, ou
enquadres referentes a RG, CPF, RNE: sexo, idade, data e local de nascimento, local de
residência estão desacompanhados dos termos você/seu/sua. Portanto, parece-nos
legítimo concluir que o Formulário adota um estilo que focaliza o eu dos candidatos.
A formulação do principal quesito que selecionamos para análise nesta tese não
foge à regra: assim, as páginas 21 e 22, portanto, ao final do Formulário, encontra-se o
Campo N “Relatos Pessoais”. O quadro 3 desse campo apresenta uma redação que,
também, apela pelo envolvimento ao eu do candidato: “Relate suas experiências ou
vivências relacionadas a seu pertencimento étnico-racial” (Formulário para
Candidatura, p. 22, grifos nossos).
Portanto, não foi surpresa constatarmos que a grande maioria dos relatos foram
enunciados exclusivamente na primeira pessoa do singular (74,1%).
“Até os 17 anos, o fato de ser mulher negra me marcou de forma muito
negativa [...] nas festas, eu quase nunca era tirada para dançar, eu conseguia a
atenção dos colegas quando me sobressaia [...]”. (F/35/preta/negro)
“Quando fui morar em X, tive de comprovar que o fato [...]”. (F/29/branca/-)
“Com relação à etnia, meu cabelo crespo e comprido é motivo para muitos
me agredirem com piadas de mal gosto. Mas prefiro os elogios [...]”.
(M/37/parda/-)
Um percentual reduzido de relatos (25,8%) adotou mais de uma pessoa em seu
enunciado:primeira e terceira do singular, primeira do singular e do plural, etc.
“Uma experiência que merece ser ressaltada, foi quando iniciei o meu
namoro com minha esposa (cor branca) que tem descendência portuguesa.
Sua mãe, ou melhor, minha sogra (cor branca), já falecida, tinha certas
restrições quanto ao namoro com um rapaz de ‘cor’ [...]”. (M/43/preta/negro)
No conjunto dos relatos, alguns poucos (15 ou 10,2%) são enunciados também
na primeira pessoa do plural, o que pode remeter a um nós coletivo, como no excerto
abaixo.
“Na minha trajetória acadêmica, como de praxe, tive a oportunidade de uma
ampla absorção ao saber [...] Durante o período do diretório acadêmico de X,
juntamente com outras representações, organizávamos a festa da Consciência
Negra [...]. Já em X, resolvemos oficializar o grupo de estudo negro [...]”.
(F43/preta/negro)
Analisando a distribuição do uso das pessoas gramaticais pelo perfil dos autores
dos relatos (Tabela 11), encontramos resultados bem interessantes.
171
Tabela 11: Pessoas gramaticais enunciadas nos relatos por sexo, idade, cor/raça e
declaração de pertença
Pessoas gramaticais
Categoria
Exclusivamente
1ª do s
ingular
%
1ª do plural
%
Outras
combinações
%
Total
%
Sexo
Feminino
Masculino
79
30
75,2
71,4
8
7
7,6
16,7
18
5
17,1
11,9
105
42
100,0
100,0
Idade
21 a 30
31 a 40
41 a 50
51 acima
Não consta
51
37
16
4
1
72,8
77,1
69,6
80,0
100,0
7
6
2
0
0
10,0
12,5
8,7
-
-
12
5
5
1
0
17,1
10,4
21,7
20,0
70
48
23
5
1
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Cor/raça
Branca
Preta
Parda
20
45
44
87,0
67,2
77,2
1
10
4
4,3
14,9
7,0
2
12
9
8,7
17,9
15,8
23
67
57
100,0
100,0
100,0
Negro 1
Negro 2
89
69
71,8
65,7
14
12
11,3
11,4
21
24
16,9
22,8
124
105
100,0
100,0
De início, observamos intenso predomínio de relatos construídos exclusivamente
na primeira pessoa do singular em todos os subconjuntos de autores. Além disso,
observamos percentuais próximos em todos os subconjuntos de autores com exceção
dos relatos de autores na faixa etária de 41 a 50 anos, brancos, pretos e que se
identificaram como negros (Negro 2). Dentre eles, autores brancos construíram, mais
freqüentemente que os demais, relatos exclusivamente na primeira pessoa do singular
(87,0%) e bem menos que os demais relatos usando a primeira pessoa do plural (4,3%).
No outro extremo, se situam os relatos de autores pretos e os que se identificaram como
negros (Negro 2), que apresentam o menor percentual de relatos na primeira pessoa do
singular, e percentual mais alto em relatos empregando na primeira pessoa do plural ou
em outras combinações (primeira pessoa do singular associada a terceira pessoa do
singular).
Uma análise interna desses relatos mostrou que, entre aqueles que empregam a
primeira pessoa do plural, encontramos enunciados que se referem a um eu coletivo,
como nos exemplos abaixo.
172
“Descoberta de meu pertencimento étnico-racial deu-se recentemente numa
das tantas manifestações que nós mulheres negras passamos”.
(F/50/parda/negro)
“Quando jovem, participei de um grupo de consciência negra, onde
discutíamos cultura, educação, problemas, soluções da nossa gente [...]”.
(M/31/preta/negro)
Vale destacar, antes de concluir este tópico, que os percentuais referentes ao
emprego da primeira pessoa do singular em relatos de autores autodeclarados pardos
(77,2%) se situam exatamente entre os de autores brancos (87,0%) e os de autores
pretos (67,2%), bem como os percentuais referentes ao uso da primeira pessoa do
plural: 4,3% entre brancos, 7,0% entre pardos e 14,9% entre pretos.
c) Os focos dos relatos
Se atentarmos, novamente, ao campo N do Formulário para Candidatura,
observamos que sua formulação não solicita um relato sobre as “experiências/vivências
étnico-raciais”, mas solicita relato de “experiências ou vivências relacionadas a seu
pertencimento étnico-racial”. Apesar da sutil diferença, consideramos que a redação da
solicitação no Formulário abria possibilidades para que o candidato focalizasse temas
para além do étnico-racial. Porém, a esmagadora maioria de candidatos de nossa
amostra (85,7%) optou pelo foco no tema das relações étnico-raciais.
“Filha de homem negro, sendo pertencente à etnia negra, tendo vivenciado
momentos de preconceitos e racismos velados e explícitos”
(F/53/preta/negro)
“É muito complicado falar deste assunto quando se sofre preconceito dentro
da própria família, já que não se tem claro a qual grupo étnico-racial pertence
[...]” (F/50/parda/negro)
Nesses relatos, encontramos, via de regra, o emprego dos termos raça, etnia, por
vezes cor e de um vocabulário racial bastante reduzido. Assim, verificamos que o termo
negro(a) – no singular ou plural – é o que apareceu em maior número de relatos
(61,9%), seguido de branco(a) também no singular ou no plural que apareceu em
12,9% dos relatos. Já o termo afrodescendente foi usado em 10,9% dos relatos;
indígena(s) (8,8%) foi usado em maior número de relatos que índio(a) no singular ou
no plural (6,1%). Preto e pardo foram os termos que menos apareceram nos relatos
(2,0% cada um deles).
173
Tais resultados convergem para aspectos assinalados na literatura: a variação
do vocabulário de cor/raça conforme o contexto em que ele é empregado (SHERIFF,
2002; SANSONE, 2003 entre outros).
Alguns poucos relatos (14,3%) têm outro foco que não o tema das relações
étnico-raciais, tratando, principalmente, de desigualdades econômicas. Com freqüência,
nesses casos, não ocorre menção aos termos raça, etnia, racismo, tampouco uso de
vocabulário racial.
“A comunidade onde desenvolvo meu trabalho é bastante carente e a maioria
de baixa renda, onde poucos têm chance em prosseguir os estudos”.
(F/38/parda/-)
“Com a vivência que tenho com a cultura popular, teatro, dança e literatura,
venho desenvolvendo ações culturais que põem em discurso algumas
ideologias, angústias e anseios do grupo ao qual pertenço”.
(M/34/parda/negro)
Na Tabela 12 transcrevemos os resultados referentes aos focos dos relatos
conforme variáveis relativas ao perfil de seus autores.
Tabela 12: Foco dos relatos por sexo, idade, cor/raça e declaração de pertença.
Focos
Categorias
Étnico-racial
%
Outros
%
Total
%
Sexo
Feminino
Masculino
90
36
85,7
85,7
15
6
14,3
14,3
105
42
100,0
100,0
Idade
21 a 30
31 a 40
41 a 50
51 acima
Não consta
60
39
22
4
1
85,7
81,3
95,6
80,0
100,0
10
9
1
1
0
14,3
18,7
4,3
20,0
0
70
48
23
5
1
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Cor/raça
Branca
Preta
Parda
12
65
49
52,2
97,0
86,0
11
2
8
47,8
3,0
14,0
23
67
57
100,0
100,0
100,0
Negro 1
114 91,9 10 8,1 124 100,0
Negro 2 92 95,8 4 4,2 96 100,0
Aqui, também, notamos uma forte homogeneidade quanto aos percentuais
auferidos por relatos focalizados em temas étnico-raciais em todos os subconjuntos de
autores (percentuais entre 80% e 86%). Três subconjuntos se destacam, porém: de um
lado, autores tendo entre 41 e 50 anos, os que se autodeclarados pretos ou que se
174
identificaram como negros (Negro 2), cujos percentuais de relatos focados em temas
étnico-raciais ultrapassam os 90%; de outro, os autores autodeclarados brancos, cujos
relatos com foco em temas étnico-raciais atingiram o percentual mais baixo (52,2%).
Novamente, os autores pardos se situam em posição intermediária entre brancos e pretos
(86,0%), desta feita mais próximos de pretos.
Quando o foco do relato se dirige a outras questões (14,3%), os temas
privilegiados referem-se à atividade profissional, condições econômicas ou à cultura.
Alguns exemplos:
“Na condição de imigrante, de certo modo, encontrei algumas resistências,
em especial no ambiente de trabalho [...]”. (F/50/branca/-)
“Por ser cidadão de classe baixa, não dispunha de renda suficiente para
custear os meus estudos e por isso tive que me individar para custear os meus
estudos e por isso tive que me individar com o crédito educativo (FIES),
como morador de subúrbio enfrentei obstáculos relativos ao transporte
coletivo [...]”. (M/23/branca/-)
“As discriminações que sofri foram mais referentes à desigualdade social
[...]”. (F/33/parda/negro)
Dentre os 21 autores de relatos que focalizam outros temas, onze (52,4%)
autodeclaram-se brancos, oito pardos (38,1%) e apenas dois pretos (9,5%), bem como
cinco dos que se identificaram como negro (Negro 2).
Dentre os relatos com foco em questões étnico-raciais (126), aprofundamos a
análise em busca de seus temas centrais. Conforme descrevemos no tópico 1.2 (p. 145),
criamos seis categorias que nos pareceram melhor articular nossos objetivos, referencial
teórico e as formas simbólicas sob análise (os relatos). Para facilitar o trabalho do leitor,
reproduzimos no quadro abaixo, essas categorias, sua definição, um exemplo, bem
como sua freqüência simples no conjunto de 126 relatos que focalizam temas étnico-
raciais.
175
Quadro 9 – Temas em relatos com foco étnico-racial
Categoria/definição
Frequência
Discriminação/preconceito étnico-racial no geral, contra familiares, negros em
geral ou contra o próprio candidato.
Exemplo: duas experiências constrangedoras e marcantes em minha vida.
A primeira [...] quando meu namoro de quatro anos teve que terminar porque a
família dele não aceitava o namoro dele com uma negra [...]”.
(F/41/parda/negro)
40
31,7%
Pertencimento: reiteração da pertença étnico-racial.
Exemplo: “A minha vida esteve sempre próxima de meu povo, minha raça e
minha família. Tive a oportunidade de conhecer as diversidades étnico-raciais
que existem em nosso país [...]”. (F/32/branca/-)
39
30,9%
Ação de enfrentamento ao racismo
Exemplo: [...] vejo com uma certa aflição como são enormes nossos
desafios [...]. A cada manhã peço forças para lutar por mais um dia [...]”.
(M/26/preta/negro)
20
15,9%
Nunca “sofreu problema” étnico-racial
Exemplo: “Apesar de me considerar pertencente à raça negra, nunca sofri
nenhuma espécie de preconceito declarado.” (M/25/parda/negro)
13
10,3%
Foco étnico-racial relacionado à atividade profissional
Exemplo: “Quando recebo alunos carentes e/ou negros [...] percebo um
certo constrangimento de alguns [...]”. (F/38/branca/-)
12
9,5%
Foco étnico-racial relacionado à atividade cultural
Exemplo: “Participei do grupo de capoeira X” (F/28/preta/negro)
2
1,6%
Dentre os relatos com foco étnico-racial e que tematizam a discriminação (40 ou
31,7%), apreendemos maior frequência de narrativas que descrevem discriminações
sofridas pelo próprio autor (25). Uma síntese deles retrata as diversas manifestações de
racismo interpessoal, desde injúrias raciais, passando por preterição na escola, na
universidade, no elevador, no trabalho, nas festas ou nas relações amorosas. Não raro
utilizam o adjetivo “doloroso(a)” para qualificar as experiências. Outras vezes, o relato
retrocede à infância e percorre a trajetória de vida, como no exemplo a seguir.
“Ouvi desde criança que meu cabelo era ruim, na adolescência sentia-me feia
e ausente e não compreendia o porque da minha depressão. Quando passei a
me definir como negra em público, cheguei mesmo a perder colegas e
(naturalmente) oportunidades de trabalho, mas a experiência que mais me
marcou vivi aos vinte e cinco anos, quando, acreditava ter elaborado
definitivamente a questão, namorava um canadense e tentaram dificultar
minha entrada no hotel em que ele estava hospedado, mesmo no ambiente de
ativistas de direitos humanos sinto o racismo cordial presente, o que é
assustador.” (F/29/parda/negro)
176
Quando analisamos os temas centrais nos relatos com foco étnico-racial
cruzados pelo perfil de seus autores, observamos, também aqui, a repetição da tendência
anteriormente mencionada: os subconjuntos de autores de relatos autodeclarados pretos
ou que se identificam como negros (Negro 2) se diferenciam de autores brancos (Tabela
13).
ANTÔNIO HONÓRIO FERREIRA – AGOSTO/2010
1
Tabela 13: Temas dos relatos com foco étnico-racial por sexo, idade, cor/raça e declaração de pertença
Temas
Categorias
Pertencimento
%
Discriminação
%
Enfrentamento
%
Nunca “sofreu”
%
Cultural
%
Profissional
%
Total
%
Sexo
Feminino
Masculino
27
12
30,0
33,3
30
10
30,0
27,8
16
4
17,8
11,1
9
4
10,0
11,1
1
1
1,1
2,8
7
5
7,8
13,9
90
36
100,0
100,0
Idade
21 a 30
31 a 40
41 a 50
51 acima
Não consta
22
9
8
0
0
36,7
23,1
36,4
0
0
17
14
6
3
0
28,3
35,9
27,3
75,0
0
11
5
3
1
0
18,3
12,8
13,6
25,0
0
6
5
1
0
1
10,0
12,8
4,5
0
100,0
2
0
0
0
0
3,3
0
0
0
0
2
6
4
0
0
3,3
15,4
18,2
0
0
60
39
22
4
1
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Cor/raça
Branca
Preta
Parda
3
20
16
25,0
30,8
32,6
4
22
14
33,3
33,8
28,6
0
15
5
0
23,1
10,2
2
2
9
16,7
3,1
18,4
1
1
0
8,3
1,5
0
2
5
5
16,7
7,7
10,2
12
65
49
100,0
100,0
100,0
Negro 1
Negro 2
36
28
31,6
30,8
36
29
31,6
31,9
20
20
17,5
21,9
11
7
9,6
7,7
1
1
0,9
1,1
10
6
8,8
6,6
114
91
100,0
100,0
178
Dentre as análises efetuadas até o momento a partir de cruzamentos entre
categorias discursivas e perfil dos autores, talvez tenha sido esta relativa ao tema
discutido nos relatos com foco étnico-racial a que apresentou maior heterogeneidade
interna. Assim, apesar de observarmos proximidade nos temas centrais dos relatos de
candidatos homens e mulheres, notamos que as autoras (17,8%), mais que os autores
(11,1%), tratam do enfrentamento ao racismo. Evocamos o artigo de Telles (2002), no
qual, analisando resultados da pesquisa do Datafolha de 1995, “Racismo Cordial”,
encontrou percentual maior de mulheres que de homens que se autodeclararam negras e
dá a seguinte interpretação: “pode ser uma reação [das mulheres] à maior discriminação
que sofrem por serem mulheres e negras” (TELLES, 2002, p. 29). Se esta interpretação
for correta, talvez possamos acrescentar que tais experiências levariam-nas a relatar
maior enfrentamento ao racismo. Por outro lado, eles mais do que elas, tratam das
relações étnico-raciais no âmbito de atividades profissionais, o que também não seria
inusitado encontrar-se.
Nos subconjuntos etários, excluindo da análise os autores com 51 anos e mais
dado seu reduzido número (apenas 4), não observamos uma tendência constante
conforme o aumento ou a diminuição da idade. Porém, novamente, o subconjunto
relativo à faixa etária entre 41 e 50 anos destaca-se por apresentar o menor percentual
(4,5%) na categoria “nunca sofreu discriminação/preconceito/racismo”. Notamos,
também, que o conjunto de autores mais jovens, raramente (3,3%) construiram relatos
focando o tema de experiências/vivências étnico-raciais em contexto profissional, o que
se pode facilmente entender.
No que diz respeito ao subconjunto de autores organizados em torno da
autodeclaração de cor/raça, autores pretos se destacam por serem aqueles que, mais
freqüentemente que os demais (23,1%), proferiram discursos tematizando o
enfrentamento à discriminação étnico-racial. Além disso, raros autores pretos (3,1%)
informaram, em seus relatos, que não “sofreram problemas” no âmbito das relações
étnico-raciais. Comparando-se os temas centrais nos relatos de autores autodeclarados
pretos e aqueles que se identificaram como negros (Negro 2), observa-se intensa
semelhança. Por outro lado, os temas centrais privilegiados nos relatos do subconjunto
de autores autodeclarados pardos se distanciam daqueles privilegiados por autores
pretos. Além disso, curiosamente, autores pardos tematizaram menos que autores
brancos a discriminação étnico-racial. Ou seja, quando candidatos brancos elaboram
relatos relacionados a vivências/experiências étnico-raciais (lembrar que vários
179
candidatos brancos não redigiram relatos), e quando seus relatos têm por foco questões
étnico-raciais, situam a discriminação/preconceito/racismo como tema central mais que
autores pardos. Por outro lado, autores pardos, nos relatos que focalizam questões
étnico-raciais, tendem, um pouco mais que autores brancos (18,4% entre pardos e
16,7% entre brancos) a informar que nunca sofreram/enfrentaram, pessoalmente,
preconceitos, discriminações ou exposições ao racismo.
Foi possível identificar um padrão entre autores pardos que, mesmo focalizando
sua pertença ou origem negra, realçam, em seus relatos, que as discriminações sofridas
não teriam sido raciais, mas econômicas e sociais.
“Sou pardo, descendente de negros e índios [...] de X. Mas, sinceramente,
nunca expus isso para adquirir qualquer vantagem em qualquer processo.
Nunca me sentid discriminado por isso, mas estou atento que minha condição
social é fator que diminui oportunidades.” (M/34/parda/-)
“Apesar de ter sofrido muitas necessidades no decorrer da minha formação, e
de ser descendente de negro, nunca sofri preconceito, sempre tive uma boa
relação na academia. O preconceito que sofri foi em decorrência da posição
social que minha família ocupa, isto é, venho de uma família carente, filha de
lavadeira.” (F/31/parda/negro)
“Observo que durante a minha jornada enquanto estudante, não tive
discriminação em relação a pertencer a grupos étnicos, mas sim por não ter
uma boa condição financeira [...].” (F/37/parda/-)
“Apesar de me considerar pertencente raça negra, nunca sofri nenhuma
espécie de preconceito declarado.” (M/25/parda/negro)
“Não tenho tido durante minha vida problemas relacionados com a minha
etnia/raça, sempre tenho sido respeitada e bem acolhida por onde passo.
Meus maiores problemas estão mesmo relacionados com questões
financeiras, como havia citado antes. Minha vida tem caminhado, apesar
das dificuldades, não precisei parar em nenhuma etapa da minha vida, com
muita luta e perseverança tenho conseguido chegar no lugar que almejo.
(F/24/parda/negro)
Mais uma vez recorremos ao texto de Munanga (1988): todos esses exemplos
provém de autores(as) que se autodeclararam pardos e se identificaram como negros no
Campo M referente à declaração de pertença aos grupos-alvo do Programa IFP. Isto é, a
cada etapa da análise, deparamo-nos com a diversidade de construções discursivas de
candidatos que, no Formulário para Candidatura ao IFP, se autodeclararam pretos ou
pardos ou que se identificaram como negros (Negro 2). Tal diversidade de modos de
expressar as experiências/vivências étnico-raciais fica mais evidente, ainda, quando
analisamos os relatos usando a tipologia inspirada em Cross Jr (1991), com foco na
negritude, o que será tratado no próximo tópico.
180
d) Tipologia discursiva referente à negritude
Conforme anunciado no Capítulo 2, da Parte II e no item 1.2, deste capítulo,
inspiramo-nos em Cross Jr (1991) para esboçar uma tipologia de “negritude” capaz de
apreender a variedade de expressões dos candidatos ao Programa IFP do que é ser
negro.
Porém, a tipologia que propomos apenas inspira-se nos estágios de
desenvolvimento da identidade negra (Black)” elaborado por Cross Jr (1991, p. 190-
223), na medida em que abandonamos a idéia de estágios evolutivos e focamos nossa
análise na descrição de tipos de discursos e não em identidades de pessoas. Com efeito,
seria teórica, metodológica e eticamente insustentável efetuar interpretações sobre a
subjetividade dessas pessoas com base em fragmentos de discursos.
Ainda lembrando o que já foi enunciado, não procuramos localizar nos discursos
aqui analisados todos os tipos (estágios) enunciados pelo autor, mas nove tipos ou
configurações discursivas referentes à negritude. Lembramos, ainda, que as análises
efetuadas focalizarão 147 relatos. Diferentemente da análise dos itens anteriores
referentes ao foco e aos temas, aqui não excluiremos os relatos que não trataram de
temas étnico-raciais, posto que “omissão” constitui uma das categorias previstas na
tipologia.
Seria possível indagar, então, por que também não incluímos na categoria
omisso, os Formulários para Candidatura que não continham relato sobre
vivências/experiências relacionadas ao pertencimento étnico-racial. Nossa interpretação
é que não podemos supor a presença da categoria “omissão” em texto inexistente, posto
que a inexistência de relato pode ser atribuída a outras razões, como descuido do
candidato no preenchimento do Formulário. Conforme relatório anual da Seção
Brasileira do Programa IFP à coordenação geral (FCC, 2007), foram observados vários
casos de descuido na montagem de dossiês para candidatura, inclusive ausência de
assinatura do candidato no Formulário, o que constitui razão suficiente para sua
eliminação do processo seletivo.
Resta-nos, ainda, justificar porque nos autorizamos a construir uma tipologia de
relatos focalizando o tratamento discursivo dado à “negritude” em programa de ação
afirmativa destinado a negros e a indígenas, entre outros segmentos sociais. Como
informado na introdução desta tese, do universo de Formulários para Candidatura a
Seleção 2007 do Programa IFP no Brasil, retivemos apenas aqueles de candidatos
181
negros e brancos, estes últimos mantidos porque poderiam constituir um grupo
contrastivo a pretos e pardos.
Explicitadas e justificadas nossas ponderações e decisões teóricas e
metodológicas, passemos à descrição dos resultados. No Quadro 10 descrevemos os
tipos, acompanhados de exemplo e da freqüência que obtiveram a partir da análise dos
147 relatos.
182
Quadro 10 – Tipologia discursiva referente à negritude em relatos relacionados a
vivências/experiências étnico-raciais
Tipologia
Frequência
Omisso: quando o relato não se refere aos negros ou a relações raciais entre brancos e negros.
“Ao trabalhar com a população de baixa renda, percebe-se que os indivíduos carecem de
atenção e de informação. Muitas vezes podemos observar que os mesmos possuem algum tipo
de informação sobre saúde e alimentação. [...]”. (F/26/branca/-)
35
23,8%
Transcendente: o relato privilegia uma humanidade abstrata
“Já sofri algum tipo de preconceito relacionado ao meu grupo étnico-racial, e mesmo assim sou
convicto de que a harmonia entre os seres humanos é a melhor solução para o convívio mais
humano, independente do grupo étnico-racial a qual pertença”. (M/36/parda/-)
8
5,4%
Centrado no estigma: o relato realça apenas aspectos negativos da identificação étnico-
racial
“A vivência de pertencimento racial de uma pessoa negra em um país racista como o Brasil e o
relato de experiências discriminatórias. [...]” (M/29/preta/negro)
25
17,0%
Simpatizante: o relato trata de experiências étnico-raciais a partir da ação de terceiros ou na
cultura negra/indígena em geral ou da atividade profissional
“Fiz aulas de dança e percussão num grupo afro X. Joguei capoeira 6 anos de minha [...].
Toquei 3 anos no maracatu X. Essas 3 atividades todas na comunidade de X”. (M/22/branca/-)
37
25,2%
Centrado na constatação: o relato apenas apresenta uma situação étnico-racial
discriminatória sem, contudo, apontar envolvimento em sua superação
“Sou pardo, descendente de negros e índios bororos do Mato Grosso, mais sinceramente nunca
expus isso para adquirir qualquer vantagem em qualquer processo, nunca me senti discriminado
por isso, mas estou atento que minha condição social é fator que diminui oportunidades”.
(M/34/parda/-)
6
4,1
Político: o relato foca a militância política ou acadêmica no trato de questões étnico/raciais
“Participação nas discussões do Movimento Negro Unificado em X (onde firmamos parceria
com o X). Participação em eventos e discussões acerca da problemática que envolve a
comunidade negra. [...]” (F/24/parda/negro)
27
18,4%
Entusiasmado: o relato é entusiasmado por causa de recém descoberta da negritude
“A descoberta do meu pertencimento étnico-racial deu-se recentemente numa das tantas
manifestações que nos mulheres negras passamos. [...]” (F/50/parda/negro)
3
2,0%
Grupocentrado: o relato focaliza exclusivamente o próprio grupo étnico-racial como
importante
“Como eu tive uma criação humilde, procuro, mesmo que eu tenha uma evolução profissional e
acadêmica, conviver com pessoas do meu grupo étnico e racial e passar o que eu tenho de
melhor para esse grupo. [...]” (F/50/parda/negro)
1
0,7%
Multi-focado: o relato tem foco em causas raciais e também em outras expressões identitárias
“[...] Foram distintos grupos de consciência étnica e de gênero: estudantes, pastorais que
marcariam profundamente minha vida e maneira de atuar no mundo. [...]” (F/42/parda/negro)
5
3,4%
Total
147
100,0%
Uma primeira observação se impõe: uma intensa diferenciação interna quanto à
frequência obtida pelos diferentes tipos discursivos propostos, o que permite efetuar um
corte nítido entre os mais e os menos freqüentes, conforme Tabela 14.
183
Tabela 14: Tipos discursivos referentes à negritude mais e menos frequentes nos
relatos
Mais freqüentes
%
Menos frequentes
%
Simpatizante
25,2
Grupo centrado
0,7
Omisso
23,8
Entusiasmado
2,0
Político
18,4
Multi-focado
3,4
Centrado na
constatação
4,1
Centrado no
estigma
17,0
Transcendente
5,4
Total
84,4
15,6
É notável que quatro dos tipos discursivos propostos simpatizante, omisso,
político, centrado no estigma por si açambarquem 84,4% dos relatos.
Parece-nos possível sugerir que, no contexto de candidatura a programa de ação
afirmativa, discursos referentes a experiências/vivências étnico-raciais cobrem um
reduzido espectro de tipos: temas relacionados à negritude ou são omitidos (23,8%) ou,
quando tratados, sustentam produções discursivas simpatizantes (25,2%), seguidas de
políticas (18,4%) e daquelas que se centram no estigma referente à condição de ser
negro (17,0%).
Este ponto de nossa análise requer uma parada para tratarmos de dois aspectos
teórico-metodológicos. O primeiro diz respeito à decisão de concentrarmos, doravante,
a análise apenas nos tipos discursivos mais freqüentes. Esta decisão decorre da reduzida
frequência observada nas demais categorias (entre um e oito, em números absolutos), o
que se acentua quando efetuamos os cruzamentos com as variáveis relacionadas aos
autores dos relatos.
O segundo aspecto refere-se à assunção de hierarquia entre as categorias
discursivas mais freqüentes que compõem a tipologia que elaboramos. Se é bem
verdade que abandonamos, por razões expostas, a noção de estágios de
desenvolvimento (no caso do estudo de Cross Jr, associados ao desenvolvimento da
identidade negra), não nos parece contra-senso apontar uma hierarquia entre os tipos
discursivos mais freqüentes, no sentido de uma aderência (ou envolvimento) mais ou
184
menos intensa , ao enfrentamento político do racismo no Brasil. Mesmo estando cientes
do alerta de Costa (2002), enunciado, mencionar tal hierarquia aqui faz sentido pois
voltaremos a discuti-la adiante quando de nossas interpretações.
Assim, sugerimos a configuração de uma hierarquia partindo do patamar de
menor aderência - a omissão do discurso sobre a “questão da negritude” -, passando
pelos tipos intermediários de discursos sensíveis ou que abordam tratamento
estigmatizado relacionados a negritude, até discursos políticos frente ao racismo.
Portanto, continuaremos a análise da tipologia em conformidade com as duas
decisões que tomamos (Tabela 15). Alertamos, porém, que reduzimos a base para
cálculo das porcentagens a 124, ou seja, ao número de relatos classificados neste
subconjunto de categorias e que correspondem a 84,4% dos Formulários que contém
relatos sobre vivências/experiências relacionadas ao pertencimento étnico-racial.
Tabela 15: Tipos discursivos mais frequentes nos relatos por sexo, idade, cor/raça e
declaração de pertença
Categorias
Omisso
%
Centrado
no estigma
%
Simpatizante
%
Político
%
Total
%
Sexo
Feminino
Masculino
25
10
27,8
29,4
21
4
23,3
11,8
25
12
27,8
35,3
19
8
21,1
23,5
90
34
100,0
100,0
Idade
21 a 30
31 a 40
41 a 50
51 acima
Não consta
17
12
4
1
1
26,6
31,6
25,0
20,0
100,0
12
8
2
3
0
18,7
21,0
12,5
60,0
0
21
11
5
0
0
32,8
28,9
31,3
0
0
14
7
5
1
0
21,9
18,4
31,3
20,0
0
64
38
16
5
1
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Cor/raça
Branca
Preta
Parda
14
4
17
70,0
7,0
37,0
1
13
11
5,0
22,4
23,9
4
19
14
20,0
32,7
30,4
1
22
4
5,0
37,9
8,7
20
58
46
100,0
100,0
100,0
Negro 1
Negro 2
21
12
20,2
14,3
24
20
23,1
23,8
33
25
31,7
29,8
26
27
25,0
32,1
104
84
100,0
100,0
Comparando-se os resultados por sexo, observamos proximidade nos discursos
masculinos e femininos nos tipos extremos e uma inversão nos intermediários:
percentual superior nos discursos de mulheres (11,8%) que nos de homens (11,8%)
centrados no estigma. Aqui nos deparamos com algumas produções discursivas das
mulheres relacionada à estética do corpo.
185
“Ouvi desde criança que meu cabelo era ruim. Na adolescência sentia-me feia
e ausente e não compreendia o porque da minha depressão. [...]
(F/29/parda/negro)
“[...] Durante minha enfância e adolescência sempre ouvi brincadeiras de
mau gosto por ser parda, cabelos não rebeldes, mas nariz "parracha".
Ofendia-me, claro. Tive até complexos na adolescência, orgulhava-me de ter
amigos(as) brancos(as)- que bobagem. E considerava-me inferior.[...]”
(F/55/parda/-)
Por outro lado, os relatos de homens, mais frequentemente que os de mulheres
(35,3% e 27,8%, respectivamente), foram classificados como discursos simpatizantes à
causa negra ou da negritude.
“Por intermédio de um diretor (X), particularmente, tive e privilegio de
receber uma formação pessoal sobre igualdade étnica. Radicado na cidade de
X, foi fundador da X de teatro (que posteriormente eu viria a integrá-la) [...].
Na mesma época, fundou o grupo de consciência negra [...], desenvolvendo
com o passar dos anos, o debate político sobre igualdade racial no estado.
Posteriormente, sua influencia política acabou influenciando nosso grupo da
inspiração dos valores étnicos”. (M/27/preta/negro)
Quanto aos subconjuntos etários, novamente nos deparamos com resultados que
desafiam a captação de uma tendência dominante, a não ser uma certa particularidade
notada nos relatos de autores tendo entre 41 e 50 anos: maior frequência que os demais,
nos tipos discursivos simpatizante e político (31,3% em ambos).
“Como coordenadora de cultura de X, foi possível ter um olhar mais
direcionado aos grupos indígenas e afro-descendentes. Quando na elaboração
do calendário de eventos, representantes destes grupos eram convidados a
participar na construção do calendário, garantindo espaço para divulgarem
seus costumes, cultura e tradições. [...]” (F/44/parda/-)
“Toda minha trajetória artística/profissional centrada nas questões
étnico/raciais, ao longo dos anos, tem possibilitado acompanhar as mudanças
significativas na sociedade brasileira, a lei 10.639, as ações afirmativas,
núcleo de mulheres negras e outros, e o resultado concreto. Desta militância
artística/acadêmica, minha experiência enquanto professor, negro, vindo da
periferia, tem respaldo em trajetória de pesquisa, participação em congressos
nacionais e internacionais. [...]” (M/47/preta/negro)
Finalmente, quando nos debruçamos sobre os resultados no subconjunto
cor/raça, observamos as tendências mais contrastantes: de um lado, autores
autodeclarados brancos, em expressiva maioria, produziram discursos omissos quanto
às questões relacionadas a negritude (70,0%) e de outro, em expressiva minoria (5,0%),
produziram discursos políticos ou centrados no estigma.
186
Em franca oposição ao subconjunto de autores brancos, situam-se autores
autodeclarados pretos ou os que se identificaram como negros (Negro 2). Aqui foram
raros os discursos que omitiram questões relacionadas a negritude (7,0% entre pretos e
14,3% entre os que se identificaram como negros/Negro 2) e muito mais freqüente, que
nos demais subconjuntos, os que elaboraram relatos políticos ou simpatizantes à causa
negra.
Porém, os discursos analisados de autores brancos parecem mais homogêneos
que os de autores pretos: em bloco (70,0%) ignoram questões relacionadas a negritude
em seus relatos; se raríssimos autores pretos omitem o tema (apenas 7,0%), ao tratá-lo,
seus discursos se dispersam (ou se abrem) pelos três outros tipos previstos.
Novamente, os autores autodeclarados pardos apresentam um padrão discursivo
que ora os aproxima de autores pretos, ora ao de brancos: um número expressivo deles
(37,0%) não trata, em seus relatos, de questões relacionadas à negritude; poucos (8,7%)
apresentaram um foco político em suas produções discursivas, porém, seus discursos se
aproximam daqueles produzidos por autores pretos quando analisados da ótica dos tipos
“centrado no estigma” e “simpatizante”.
“Com relação à etnia, meu cabelo crespo e comprido e motivo para muitos
me agredirem com piadas de mal gosto. Mas prefiro os elogios que recebo de
muitas pessoas pelo fato de me impor com minhas características naturais e
estilo. Era muito comum na minha adolescência e infância ser incomodado
com palavras pejorativas do tipo: "paraiba", como sinônimo de que todo
nordestino e inferior. Apesar disso, minha família que e oriunda do nordeste
sempre me fez sentir orgulhoso de mim e do lugar”. (M/37/parda/-)
“Minha família e etnicamente diversa, mas me reconheço pertencente ao
grupo negro, pois meus avos e meus traços se aproximam mais deste grupo.
apesar de termos indígenas, árabes, portugueses na descendência”.
(F/27/parda/negro)
A seguir, apresentamos uma síntese dos resultados para encaminharmos nossas
interpretações.
2.5. Síntese dos resultados
Apesar do interesse central desta pesquisa ter repousado, inicialmente, nos
relatos relacionados às experiências/vivências étnico-raciais, destacamos o interesse que
despertou em nós a análise das justificativas referentes à classificação por cor/raça.A
187
alta e inesperada incidência de justificativas baseadas na origem ou ascendência, em
todos os subconjuntos de candidatos aqui considerados, levaram-nos a rever a
bibliografia (PIZA e ROSEMBERG, 2002; SHERIFF, 2002; SCHWARTZMAN, 1999)
– o que efetuamos no capítulo 5, Parte I – e propor uma outra entrada para as análises de
auto e heteroclassificação de cor/raça, não mais focalizando convergências e
divergências, mas nos próprios indicadores usados.
Perguntamo-nos, durante as análises, em que medida tais justificativas baseadas
na origem, como também nos documentos, não teriam sido evocadas exatamente porque
foram efetuadas em contexto de experiência de ação afirmativa com viés étnico-racial
em meio ao debate midiatizado (que se lembre o estardalhaço em torno das
classificações dos gêmeos no processo seletivo da Universidade de Brasília
109
: “se
minha aparência pode colocar em cheque a autodeclaração que efetuei, não como
questionar a origem, já que somos um país mestiço, ou o documento que me classifica”.
Tal reinterpretação parece consistente com o fato de que os candidatos pardos foram os
que apresentaram os mais altos percentuais de justificativas referentes à autodeclaração
de cor/raça assentada na origem (47,3% das justificativas), um percentual que foi muito
pouco evocada (1,1%) por candidatos pretos.
Por outro lado, esta reinterpretação não parece se manter para as diferentes
categorias de autodeclaração, posto que os candidatos brancos também usaram-na com
frequência (21,2%). Notar, porém, que a frequência desta justificativa entre os pardos os
situam entre brancos e pretos.
Tais suposições merecem, a nosso ver, aprofundar na pesquisa. Replicar a
pergunta entre pessoas do mesmo nível educacional, porém fora do contexto de ação
afirmativa, poderá contribuir para sustentá-las, aperfeiçoá-las ou descartá-las.
O outro destaque nesta síntese e que estimulou nossas reinterpretações refere-se
a proximidades e diferenças nos discursos apreendidos nos relatos dos subconjuntos de
autores, particularmente, com respeito à autodeclaração de cor/raça.
Notamos proximidades, também, nos discursos analisados, à luz de nossas
categorias, proferidos por autores tendo entre 41 e 50 anos e por pretos. Ambos
subconjuntos de autores foram os que mais se identificaram como negros (Negro 2). Por
outro lado, seus relatos, sob o foco de nossas categorias, foram os que mais se
distanciaram dos relatos de autores brancos. Ou seja, em nosso estudo, relatos de
109
Irmãos gêmeos univitelinos, filhos de pai negro e mãe branca, Alan foi aceito pelo sistema de cotas ao vestibular
no meio do ano de 2007, da UnB e Alex, seu irmão não foi. (http://g1.globo.com/Notícias/Vestibular, 29/05/07)
188
candidatos pretos e dos que se identificaram como negros (Negro 2) e relatos de autores
brancos são contrastivos, se situam em extremos: do mais ao menos centrado em temas
étnico-raciais, em um nós coletivo e em uma abordagem política nos diversos discursos.
Os relatos de autores pardos, por sua vez, se situam em posição intermediária
entre aqueles de autores pretos e brancos. Por esta razão, apesar de termos integrado os
resultados de pretos e pardos na categoria Negro 1, em nenhuma das análises
precedentes discutimos os dados. Isto porque a posição intermediária de pardos, várias
vezes, nos permitiria, integrá-los ao subconjunto de autores brancos. Por exemplo, na
análise dos tipos discursivos: se nas categorias centrado no estigma” e “simpatizante”
os relatos de autores pretos e pardos se aproximam, na categoria “político”, os relatos de
pardos mais se aproximam dos autores brancos que dos pretos, bem como na categoria
“omisso”, os relatos de autores pardos poderiam se aproximar tanto de brancos, quanto
de pretos.
Para aprofundar esta discussão pensamos refinar nossa análise efetuando
comparações internas aos relatos de autores pardos: de um lado, relatos proferidos por
autores pardos que se identificaram como negros (52,5 deles cf. tabela 6); de outro,
autores pardos que não se identificaram como negros/Negro 2 (46,3% deles). Nossa
hipótese é que deveríamos encontrar distinções internas conforme a declaração de
pertença. Porém, é necessário confessar que não tivemos fôlego para fazê-lo neste
momento de término do doutorado. Com certeza, voltaremos, mais tarde, a analisar
estas dados.
Consideramos que este aspecto da análise dos resultados constitui o ponto
central que se liga ao objeto da investigação e às discussões efetuadas nos Capítulos 1 e
2 da Parte I desta tese. Portanto, ele será o foco de nossas considerações finais.
189
CONSIDERAÇÕES FINAIS: REINTERPRETAÇÕES E
INQUIETAÇÕES
Iniciamos estas considerações finais enfatizando que esta tese não se colocou o
objetivo de avaliar o uso de categorias de identificação em experiências de ação
afirmativa, mas de contribuir para o debate. No caso específico do Programa IFP, isto
seria no mínimo deselegante e no extremo anti-ético, na medida em que Fúlvia
Rosemberg é, ao mesmo tempo, orientadora desta tese e coordenadora do Programa IFP
no Brasil.
Por isto, não nos detivemos até agora, e não nos deteremos, na análise do uso,
pelo Programa IFP, da categoria negro no processo de seleção. Ou seja, procedimentos
internos da seleção do Programa IFP não é nosso foco aqui.
Além disso, é necessário lembrar que o Programa IFP, no Brasil e em cenário
internacional, tem como meta contribuir para “a formação de uma nova geração de
líderes da justiça social”, conforme tem se expressado Joan Dassin (2008, p. 13),
diretora executiva do International Fellowships Fund, instituição norte-americana que
coordena o Programa em contexto internacional.
No Brasil, reencontramos a mesma expressão em textos de Fúlvia Rosemberg,
coordenadora local: “Na medida em que o Programa IFP objetiva, em última instância,
a formação de líderes com a constituição de um mundo mais justo, igualitário e
solidário, a formação pós-graduada é entendida como uma das ferramentas para o
empoderamento dessas novas lideranças” (Rosemberg, 2008, p.18). Portanto, não seria
inadequado assinalarmos, além de um enfoque na justiça social, um objetivo político do
Programa IFP na meta de empoderar ou formar “líderes comprometidos com a justiça
social”. Ou seja, o Programa IFP ao adotar procedimentos que captem o envolvimento
político dos candidatos pode “empoderar” lideranças também dos movimentos negros.
Esta observação é importante, na medida em que, nestas considerações finais, o sentido
político associado ao termo negro foi captado em um subconjunto de candidatos à
Seleção 2007 do Programa IFP no Brasil que se autodeclaram majoritariamente como
pretos. Por outro lado, observamos, também, um pequeno subconjunto de candidatos
autodeclarados pretos, mas principalmente pardos, que não parecem expressar tal
comprometimento político com a causa do enfrentamento ao racismo brasileiro.
190
Voltamos, então, a nossos inspiradores: João Feres Júnior (2006), Sérgio Costa
(2002) e Kabengele Munanga (1988). Qual (quais ?) as metas de experiências de ação
afirmativa com viés étnico-racial no Brasil? Compensar injustiças sociais e/ou fortalecer
identidades negras? São elas compatíveis, convergentes?
Encontramos na literatura quem defenda uma ou outra posição com argumentos
consistentes. Basta atentarmos para o debate ocorrido entre Guimarães (1999) e Costa
(2001) - que esse último autor considerou como confronto entre posições liberal e
comunitarista. Como compatibilizar ambas posições na implementação de programa de
ação afirmativa? São posições compatíveis?
Surge, de maneira inequívoca, a problematização do uso de identidades coletivas
e, com isto, como operar a identificação de candidatos a beneficiários de programa de
ação afirmativa, que tenha recorte étnico-racial. Pelo argumento da justiça social,
segundo defende Feres Júnior (2006), tem-se a sustentação para a operacionalização de
programa de ação afirmativa, pois é a partir de evidências estatísticas de desigualdade
que se pode determinar quais são os grupos-alvo das políticas de tratamento
preferencial.
A nossa pergunta, que se reconfigurou durante o exame do material empírico,
“Como candidatos(as) se identificam ao se apresentarem a um programa de ação
afirmativa com recorte étnico-racial?”, conduziu-nos a uma aproximação mais atenta à
literatura sobre classificação racial no Brasil. Todos esses estudos, sobre cor/raça, foram
feitos em contexto em que não havia vantagem em ser negro.
Recentes trabalhos, como o de Sergei Soares (2008, p. 97), apontam um
aumento do número de brasileiros que têm se identificado com o grupo negro, aqueles
que se autodeclaram de cor “preta” ou “parda” nas pesquisas do IBGE. O autor situa
entre 1996 e 2001 o momento onde se inicia o processo de mudança na
autoidentificação das pessoas negras. Soares (2008, p. 116) salienta que tal identificação
ocorreu mais fortemente na categoria preto, do que na categoria pardo, indicando,
segundo o autor, que as pessoas estariam perdendo o medo de assumir uma identidade
negra, deixando de ter vergonha de se dizerem negras, recusando o branqueamento
como forma de legitimarem-se. Para o autor, o “escurecimento da população brasileira”
tem uma explicação que está evidente, como poucas vezes aconteceu na história das
Ciências Sociais brasileiras nos últimos dez anos: é a mudança na maneira como
algumas pessoas se vêem, a causa principal do fenômeno e não fatores exclusivamente
demográficos. Lembramos que foi uma década de muitas mudanças políticas e sociais,
191
com acontecimentos marcantes para a sociedade, dentre eles, a participação do Brasil na
CMR, em Durban e o fato de o Estado brasileiro ter passado a introduzir “a noção de
‘ação afirmativa’ como um dos princípios organizadores de algumas de suas políticas
sociais” (Zoninsein, 2004, p 107-108 apud PINTO, 2006, p. 136). Talvez possamos
atribuir essa mudança ao longo trabalho de conscientização dos grupos do movimento
negro, desde a década de 1970, bem como considerar que a disseminação de programas
de ação afirmativa possa ser também uma hipótese explicativa para o “enegrecimento”
que está em curso no país, uma vez que são programas que têm colocado, desde 2001,
no debate público, o tema da classificação racial, complexificando o ato de identificar
quem é branco, quem é negro para as experiências de ação afirmativa, principalmente
para o ensino superior.
Identificar-se como negro significa reconhecer-se identitariamente como negro?
O recurso adotado no Programa IFP, em respeito às pessoas e em conformidade com
resoluções internacionais, é a autoidentificação étnico-racial. No entanto, Piza e
Rosemberg (2003, p. 111) destacam que a autoidentificação não implica,
necessariamente, num pertencimento racial ou étnico, ou seja: “a cor auto-atribuída no
momento da declaração possivelmente limite-se a definir um traço físico que não
expressa pertencimento racial ou étnico, [...]”. Somando-se a essa observação das
autoras, os resultados que obtivemos mostram a complexidade do processo de
autoidentificação étnico-racial, no Brasil, e os cuidados que devem ser tomados sobre
sua operacionalização em programas de ação afirmativa.
Qual a meta de programa de ação afirmativa? Reforçar identidades coletivas ou
individuais? Ampliar a equidade no usufruto dos bens sociais? São elas compatíveis?
Percebeu-se, neste estudo, uma grande diversidade quando se analisam relatos
raciais, inclusive no interior de subconjuntos específicos de pessoas que se declaram de
mesma cor/raça. Isso aponta uma complexificação para a operacionalização de
programas de ação afirmativa, que tenham como foco a justiça social e não a
diversidade. Notamos mais momentos de aproximação dos relatos dos(as)
candidatos(as) brancos(as) e pardos(as), do que entre esses e os(as) de candidatos(as)
pretos(as). Os relatos dos(as) candidatos(as) pretos(as), muitas vezes, se aproximam dos
relatos dos(as) candidatos(as) que se declararam negros(as). Essa padrão não
possibilitou o uso do recurso analítico, muito recorrente nos estudos sobre desigualdade
racial, que é o de aglutinar pretos e pardos na categoria negro. Verificamos aqui a
necessidade de um refinamento desta questão em futuras pesquisas, tendo em vista que
192
o uso analítico da categoria negro, nos estudos sobre desigualdades raciais, inaugurados
por Carlos Hasenbalg (1979), potencializou lideranças do movimento negro na
construção de argumentos contra a persistência das desigualdades raciais no Brasil.
Não estamos tratando de identificação política, mas da maneira como as pessoas
se apresentam em um programa de ação afirmativa e de como esse programa irá eleger
seus beneficiários a partir da identificação étnico-racial que elas próprias informam.
Neste sentido, são perguntas que levantamos para futuros trabalhos. Vimos, pela análise
e interpretação da literatura e dos dados empíricos, que preto não é categoria
exclusivamente de aparência, pode, também, ser política. Então, cor teria o mesmo
estatuto que raça nas respostas aos inquéritos do IBGE? A literatura tem mostrado um
“destino comum” entre pretos e pardos, por que, ou como, se configura a diferença
discursiva entre os grupos em relação à negritude? Autodeclarados pardos em um
programa de ação afirmativa, continuariam pardos em outros contextos? A literatura
tem informado que a maneira predominante de declaração de cor/raça é feita pela
aparência. Contrariamente a esses estudos, nosso campo empírico apresentou alta
incidência de justificativa por origem. Em quais ocasiões e para quem se usaria um tipo
ou outro de sustentação da declaração de cor/raça? Seria capcioso da parte de pessoa
autodeclarada parda, mas com fenótipo identificável como branco, apelar para sua
origem como justificada para sua autodeclaração?
À pergunta de “quais seriam as metas de experiências de ação afirmativa com
viés étnico-racial no Brasil?”, podemos responder, tendo em vista a perspectiva de
entendimento do racismo que integra as dimensões simbólica e estrutural. Um programa
de ação afirmativa que possibilita o acesso e permanência de grupos subrepresentados,
particularmente pretos e pardos, está atingindo essas duas dimensões, uma vez que, se
por um lado ataca um dos gargalos da desigualdade, dando oportunidade para aqueles
que não a teriam, por outro pode formar lideranças e produtores de conhecimento.
Porém, cabe ainda perguntar: lideranças e produtores de conhecimento exclusivamente
alinhados com o(s) ideário(s) do(s) movimentos(s) negro(s)? E qual deles, se aceitarmos
o plural?
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http://www.ciencialat.com acesso em 05 de maio de 2008.
ANEXO I
ANEXO II
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