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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
Kátia Pavani da Silva Gomes
A CONSTITUIÇÃO DA FEMINILIDADE NA
PSICANÁLISE WINNICOTTIANA
DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
SÃO PAULO
2010
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1
Kátia Pavani da Silva Gomes
A CONSTITUIÇÃO DA FEMINILIDADE NA
PSICANÁLISE WINNICOTTIANA
DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutor em Psicologia Clínica sob a
orientação do Professor Doutor Zeljko Loparic
SÃO PAULO
2010
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Errata (sumário)
5.3.2 Um caso simples de depressão e psiconeurose e sua relação com a
feminilidade (substituindo a palavra – finalidade)
Página 16 – segundo parágrafo
“... das funções corpóreas “(substituindo a palavra – mentais).
Errata (Considerações Finais)
[...] A mulher madura quando saudável pode ser mãe e viver nova
experiência de dupla dependência agora sendo dela que um bebê depende
totalmente, porém nem sempre isso ocorre. Algumas mulheres não têm essa
condição temporariamente ou nunca. Métodos contraceptivos podem auxiliar,
mas eles e o aborto implicam em verificar a condição de saúde ou de doença
que vive cada mulher e como tais experiência ocorrem em suas vidas.
O fato de mulheres poderem viver um tipo específico de preocupação
como o vivido quando são mães, exemplifica a condição de responsabilidade e
a contribuição da mulher à sociedade. Penso que os movimentos feministas
que consideram isso têm muito a contribuir também.
Finalizo as considerações finais com o tema discutido no último capítulo
da tese, sobre os distúrbios relacionados à constituição da feminilidade. o
aqueles em que a natureza e o modo como eles acontecem na vida da pessoa
implicam em dificuldades da vivência das experiências, quando estas não
podem ser vivenciadas a partir das bases instintuais e de identificação da
mulher.
2
BANCA EXAMINADORA
______________________________
Prof. Dr. Zeljko Loparic
______________________________
Profa. Dra. Edna Peters Kahhale
______________________________
Profa. Dra. Rosa Maria Tosta
______________________________
Profa. Dra. Elsa Oliveira Dias
_____________________________
Profa. Dra. Maria de Fátima Dias
3
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, pelos cuidados e generosidade.
Ao meu pai, por sua proteção, hombridade e caráter.
Ao meu irmão Daniel, pela sabedoria e companheirismo.
Ao meu irmão Paulo, pelo carinho.
À Luana, por seu apoio.
À Keila pelo carinho.
À Gleison, que com sua presença fez esse processo ficar mais gostoso e tranquilo.
À Maria José e Liliana pelo cuidado.
À Marcia Moura Coelho, minha analista durante esse processo, obrigada!
Ao Professor Zeljko
Loparic que me deu todas as condições para que eu fizesse meu caminho
como pesquisadora, ele já sabia desde o início o que eu iria encontrar e deixou que eu
encontrasse.
À Professora Elsa Dias, por generosamente me facilitar encontrar meu lugar como analista,
por compartilhar comigo os ensinamentos de Winnicott, e sua clínica.
Às Professoras Edna Kahhale e Maria de Fátima Dias, pela minuciosa correção, pela
dedicação, e acompanhamento.
À Professora Rosa Tosta, pela participação na Banca Examinadora e pelas contribuições a
este trabalho.
À Professora Marjô, que deu forma ao trabalho, a morada do texto!
Aos meus amigos, Fernando, Marco, Lindberg, Camila e Carol, segunda família, que
interessados no tema ou não, compartilharam, pois sou eu, e são eles.
À professora Caroline R. Vasconcelos, pela sapiência, autenticidade e amizade.
Ao Ricardo e à Marília, por todas as discussões e escuta atenciosa, sobre o tema, a
psicanálise e a vida.
Ao CNPq que viabilizou esse trabalho.
4
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar a constituição da feminilidade a
partir da psicanálise winnicottiana. A feminilidade a partir da teoria de Winnicott não
pode ser pensada exclusivamente com base nas relações instintuais, e nem apenas
a partir de uma pré-sexualidade feminina que centra a temática em torno da
resolução do Complexo de Édipo e do modo com que a menina, a mulher, irá lidar
com a falta do falo. Na psicanálise winnicottiana a constituição da feminilidade é
compreendida acontecendo dentro do processo de amadurecimento humano e
depende de aquisições surgidas de experiências vividas nas relações interpessoais
com base instintual e não instintual.
Palavras-chave: processo de amadurecimento; feminilidade; identificação; relação
interpessoal; sexualidade.
5
ABSTRACT
This study presents the constitution of femininity in winnicottian psychoanalysis.
Which can not be observed or presented as centered in the Oedipus Complex, nor
even in the absence of the penis and how to deal with it. In winnicottian
psychoanalysis the femininity is understood as part of the maturational process,
based in instinctual and non instinctual relationships.
Keywords: maturational process; femininity; identification; relationships; sexuality.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................8
CAPÍTULO 1 – A FEMINILIDADE NO PERÍODO PRÉ-GENITAL...........................22
1.1 O INÍCIO DO PROCESSO DE AMADURECIMENTO.........................................22
1.2 OS ELEMENTOS FEMININOS E MASCULINOS PUROS..................................37
1.3 AS RAÍZES PRÉ-GENITAIS DA FEMINILIDADE................................................41
1.3.1 Os instintos e a elaboração imaginativa das funções corporais e as raízes da
feminilidade................................................................................................................42
1.3.2 As fases oral e anal..........................................................................................49
CAPÍTULO 2 – FEMINILIDADE NOS ESTÁGIOS DO CONCERNIMENTO,
EXIBICIONISMO E EDÍPICO................................................................................. 54
2.1 BREVE INTRODUÇÃO AOS TRÊS ESTÁGIOS.............................................. 54
2.2 A FEMINILIDADE NO ESTÁGIO DO CONCERNIMENTO.............................. 61
2.3 A FEMINILIDADE NO ESTÁGIO DO EXIBICIONISMO................................... 70
2.4 A FEMINILIDADE NA FASE EDÍPICA............................................................. 75
CAPÍTULO 3 - A FEMINILIDADE NA ADOLESCÊNCIA..................................... 81
3.1 A ADOLESCÊNCIA SAUDÁVEL..................................................................... 81
3.2 AS MOÇAS...................................................................................................... 90
3.2.1 Novas experiências de personalização das adolescentes............................ 92
3.2.2 Novas experiências de ambivalência vividas pelas adolescentes................ 97
3.2.3 A identificação cruzada na adolescência das moças................................... 105
CAPÍTULO 4 – A FEMINILIDADE NA MULHER MADURA................................. 110
4.1 A VIDA ADULTA.............................................................................................. 110
4.2 A MULHER E MATERNIDADE....................................................................... 110
4.3 A MULHER QUE NÃO É MÃE, A PÍLULA E O ABORTO............................... 114
4.4 A MULHER E A PREOCUPAÇÃO COM OS OUTROS.................................. 121
4.5 AS MULHERES MADURAS E A SOCIEDADE............................................... 126
4.6 AS MULHERES E O FEMINISMO.................................................................. 131
7
CAPÍTULO 5 – QUESTÕES CLÍNICAS RELACIONADAS À CONSTITUIÇÃO DA
FEMINILIDADE..................................................................................................... 134
5.1 DISTÚRBIOS LIGADOS À CONSTITUIÇÃO DA FEMINILIDADE.................. 134
5.2 PIGGLE – O TRATAMENTO PSICANALÍTICO DE UMA MENINA................ 135
5.3 TRÊS CASOS CLÍNICOS DE ADOLESCENTES........................................... 145
5.3.1 Um caso de limitação desde o nascimento e suas implicações na
feminilidade............................................................................................................ 147
5.3.2 Um caso simples de depressão e psiconeurose e sua relação com a
finalidade................................................................................................................ 155
5.3.3 Um caso de psicose e sua relação com a feminilidade................................ 161
5.4 DOIS CASOS CLÍNICOS DE MULHERES ADULTAS E AS DIFICULDADES NA
CONSTRUÇÃO DA FEMINILIDADE...................................................................... 165
5.4.1 O caso de uma mulher com o elemento masculino dissociado.................... 165
5.4.2 Casos em que a feminilidade está ligada ao extremo da lógica................... 168
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 172
REFERÊNCIAS..................................................................................................... 175
8
INTRODUÇÃO
Apresentação geral do tema
O homem é estudado pelas diferentes vertentes da ciência e religião sendo
utilizado como sinônimo de ser humano e a mulher como coadjuvante em tal
cenário, o que conota uma possível compreensão da mulher como menos
importante, ou apenas que o homem é tomado como referência geral, mas as
diferenças podem ser apresentadas de modo ético e científico, com menor ou
nenhum julgamento moral, econômico, social ou de qualquer outra ordem.
Atualmente uma mudança do papel da mulher na sociedade e na ciência,
pesquisas começaram a ser realizadas sobre as questões que envolvem a mulher,
ou relacionadas a gênero, feminino ou feminilidade, inicialmente ligadas a
movimentos feministas ou feitos por pesquisadoras feministas, mas que vêm
ganhando outras modalidades e compreensões.
Em recente estudo publicado no ano de 2006, na Revista de Saúde Pública,
por Estela Aquino, podemos ter uma noção geral do que ocorre com as pesquisas
no campo do gênero no Brasil. Foram identificados cinquenta e um grupo com
alguma linha de pesquisa sobre o tema, quarenta e duas teses e noventa e oito
dissertações, nas quais mais de oitenta e cinco por cento foram escritas por
mulheres. Tais trabalhos podem ser reunidos em cinco subgrupos: reprodução e
contracepção, violência de gênero, sexualidade e saúde, trabalho e saúde e temas
pouco explorados.
Entre os temas pouco estudados está o de saúde mental das mulheres, eu
ousaria dizer que não por acaso ocorre esse fato. Baseada na teoria de Winnicott,
antes de ser mulher é preciso ser uma pessoa. Ser uma pessoa saudável possibilita
9
que a feminilidade da mulher seja constituída de modo também saudável. Seguindo
tal linha de raciocínio, se a proposta for estudar saúde mental, então que se estude
a saúde mental da pessoa, seja ela mulher ou homem.
Possíveis relações entre tipos de distúrbios e feminilidade podem existir, e
precisam ser verificados a partir da compreensão do processo de amadurecimento
humano primeiramente e depois como forma de verificar alguma especificidade que
complique um distúrbio existente, então podemos atentar para o modo como se
constitui a feminilidade da mulher e se algum problema em tal constituição que
tenha afetado de forma importante seu processo de amadurecimento.
Por muito tempo a mulher foi estudada apenas como e ou possível mãe.
Winnicott embora tenha estudado muito o tema das mães e seus filhos não restringe
sua teoria a tal temática. A partir de sua teoria podemos compreender a mulher e
sua feminilidade ao longo do processo de amadurecimento humano, muito antes que
ela possa ser mãe, ainda quando o importante é estabelecer uma vida pessoal, um
mundo interno, alojar a psique no soma e realizar muitas outras tarefas
independente de ser e. Obviamente a maternidade é também apresentada pelo
autor como uma das possibilidades da mulher constituir sua feminilidade quando
adulta, mas não é a única.
A partir da década de 1970, estudos marcados pela influência dos
movimentos feministas deixaram de utilizar o termo mulher e passaram a discutir a
temática de gênero, para expor sua rejeição por abordagens marcadas pelo
determinismo biológico e que, segundo elas excluíam ou diminuíam a construção
social do feminino. Para Winnicott a pessoa é sempre constituída por suas
experiências que incluem tanto sua biologia quanto o ambiente em que vive. Mais
que o corpo, o que constitui a pessoa é sua organização psicossomática, ou seja, o
10
alojamento da psique no soma, ter um órgão genital feminino é uma das
experiências que constituem a feminilidade da pessoa do sexo feminino.
A utilização de gênero como modo de marcar a diferença social existente
entre a posição do homem e da mulher na sociedade é bastante relevante, mas não
consideramos que tal termo possa em si encerrar a discussão da diferença. É
importante que se busque compreender as razões sociais, econômicas e políticas
que mantêm uma supervalorização dos homens em algumas áreas, com maiores
salários, e outros temas extremamente importantes, como a violência contra
mulheres, muitas vezes ocorrida dentro do lar, mas tais temas não serão discutidos
neste trabalho uma vez que o eixo deste estudo é a feminilidade na teoria
winnicottiana.
A compreensão da psicanálise freudiana sobre a mulher será apresentada de
forma introdutória, com o intuito de situar as diferenças existentes nas bases dessa
e da concepção winnicottiana da feminilidade. Utilizo a apresentação da teoria
freudiana sobre o tema, feita por Chasseguet-Smirgel em seu livro: Sexualidade
feminina uma abordagem psicanalítica contemporânea. A escolha desta autora foi
feita por estar em concordância com o modo que apresenta a teoria freudiana sobre
a mulher e pela escolha dos textos de Freud que a autora fez para apresentar seu
estudo.
O primeiro é “Três ensaios”, e na sequência há três artigos escritos em anos
consecutivos que foram escolhidos pela autora e seguidos por mim para iniciar a
explicação sobre a teoria freudiana das diferenças existentes entre meninos e
meninas. São eles: 'A organização genital infantil da libido', 'O declínio do complexo
de Édipo' e 'Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre os
sexos'.
11
Nos textos citados, Freud inicialmente propôs um monismo sexual. Apenas o
órgão genital masculino seria reconhecido por meninos e meninas, eles com o pênis
e elas com seu correspondente, o clitóris. Desde esse artigo o fundador da
psicanálise coloca o complexo de castração em meninos e meninas e a inveja do
pênis nelas, além de iniciar sua explicação do núcleo das neuroses como a
repressão da sexualidade vivida pelas meninas e o papel fundamental do Complexo
de Édipo em tal núcleo.
Nesse artigo Freud deseja completar as ideias sobre a sexualidade infantil
lançadas em “Três ensaios”. Após anos de experiência e observação psicanalíticas,
ele chegou a inferir a existência de uma diferença relativamente mínima entre a
organização da sexualidade infantil e da sexualidade adulta, ambas implicando a
escolha de um objeto e o direcionamento das pulsões para esse objeto. A diferença
reside no fato de que a organização adulta é genital enquanto que a organização
infantil é fálica. (CHASSEGUET-SMIRGEL, 1988, p. 12)
A teoria freudiana apresenta o seguinte quadro: o menino vive o medo da
castração pois seus desejos libidinosos voltam-se para a mãe e a menina como é
desde sempre castrada não tem medo de tal castração, ela se rebela com a mãe por
ter-lhe feito sem pênis e se volta para o pai que se torna objeto de sua libido. O
desejo de ter um filho do pai pode funcionar como substituto do pênis. A gênese do
superego na menina é mais externa e de difícil formação do que a do superego do
menino, pois esse se identifica com a severidade do pai e a teme.
Mais tarde na década de 1930, Freud escreveu mais dois artigos
fundamentais para a compreensão de sua visão da mulher: “Sexualidade feminina” e
“A feminilidade”. Em tais artigos apresenta as ideias de que para a menina o
problema edipiano está na necessidade de mudança de objeto da mãe para o pai e
12
em ter que mudar de órgão por onde passa a libido, do clitóris para a vagina. O
papel do complexo de castração na mulher lhe confere ser membro da sociedade
em função de aceitar a castração como fato e formar um superego.
Para concluir esta breve apresentação das ideias de Freud sobre o tema é
preciso esclarecer que embora ele não faça uma relação direta entre atividade e
masculinidade, e passividade e feminilidade; confere a agressão como uma
possibilidade masculina, e não feminina, e a virilidade também, então propõe a
existência da relação com um objeto passivo, e do fato de a mulher ser socialmente
colocada em posição passiva. Freud apresenta a mulher como um ser inferior pela
própria natureza, pois falta-lhe o falo e isso lhe confere uma nativa inferioridade com
a qual a mulher precisa conviver, superar ou esconder.
Antes de introduzir o tema da feminilidade na psicanálise winnicottiana,
apresentamos brevemente, a fim de esclarecer as bases que fundamentaram esse
estudo, a mudança de paradigma da psicanálise freudiana para a winnicottiana
demonstrada por Loparic em alguns de seus artigos sobre psicanálise.
[...] é possível dizer que o exemplar principal da disciplina criada pela
pesquisa revolucionária de Freud é o complexo de Édipo, a criança na cama
da mãe às voltas com os conflitos, potenciais geradores de neuroses, que
estão relacionadas à administração de pulsões sexuais em relações
triangulares. A generalização-guia central é a teoria da sexualidade,
centrada na idéia da ativação progressiva de zonas erógenas, pré-genitais e
genitais, com o surgimento de pontos de fixação pré-genitais. O modelo
ontológico do ser humano, explicitado na parte metapsicológica da teoria,
comporta um aparelho psíquico individual. A metodologia é centrada na
interpretação do material transferencial à luz do complexo de Édipo ou de
regressões aos pontos de fixação. Os valores epistemológicos básicos são
os das ciências naturais. (LOPARIC, 2005, p. 313)
A ideia de um aparelho psíquico como modelo para compreender o ser
humano acaba por trazer poucas possibilidades de compreensão da feminilidade,
uma vez que essa é constituída a partir das experiências de cada pessoa incluindo
13
suas vivências corporais como a elaboração imaginativa de todos os órgãos e partes
do corpo.
Essa é uma explicação ou compreensão a partir da teoria winnicottiana,
que como explica Loparic nesse mesmo artigo, entre outras mudanças
paradigmáticas, tem um novo exemplar.
O novo exemplar proposto por Winnicott é o bebê no colo da mãe, que
precisa crescer, isto é constituir uma base para continuar existindo e
integrar-se numa unidade. A generalização-guia mais importante é a teoria
do amadurecimento pessoal, da qual a teoria da sexualidade é apenas uma
parte. (ibid., p. 314, grifos do autor)
A feminilidade sendo compreendida a partir desse novo modelo da
psicanálise winnicottiana, introduz um novo modo de ver a mulher, primeiro como
uma pessoa que independente do gênero ou do sexo precisa se integrar e crescer,
mas claro que conforme integra e elabora suas partes do corpo e se relaciona com
as outras pessoas constitui diversos modos de ser si mesma, inclusive um modo
feminino, que não diz respeito à maneirismos, mas a diferentes estágios a serem
experienciados pela mulher. De alguma forma esses estágios incluem seu soma e
sua psique e o alojamento do soma na psique, e como o corpo de mulher é
elaborado imaginativamente.
A feminilidade na psicanálise winnicottiana
A constituição da feminilidade na mulher será aqui apresentada a partir da
teoria do amadurecimento humano de D. W. Winnicott que inclui uma teoria da
sexualidade que é uma segunda base para o estudo proposto.
14
A feminilidade e sua origem podem, a partir da teoria winnicottiana, ser
pensadas não pela oposição ao masculino, como fazem muitas áreas da ciência
como a biologia, a sociologia e a psicanálise tradicional quando esta enfatiza o
Complexo de Édipo. Considerar fenômenos como a inveja do pênis e o Complexo de
Édipo, apenas como uma experiência de uma fase do desenvolvimento da
feminilidade e não como o fenômeno norteador e principal, abre nova perspectiva
psicanalítica para tratar questões relacionadas ao desenvolvimento da feminilidade e
da compreensão do papel da mulher na sociedade.
Para Winnicott existe uma tríade que constitui toda mulher. A bebê, a moça e
a mulher adulta. A feminilidade é a integração psicossomática que a mulher faz nos
diferentes estágios do amadurecimento humano, por identificação com outras
pessoas e com base nos instintos, integrando psicossomaticamente ser mulher e ter
um corpo de mulher sempre a partir da bebê que foi, da moça e da mulher que é.
MULHER é a mãe não reconhecida dos primeiros estágios de vida de todo
homem e de toda mulher. Seguindo essa ideia, podemos encontrar um novo
modo de especificar a diferença entre os sexos. As mulheres o possuem
quando se relacionam com a MULHER, através de uma identificação com
ela. Para toda mulher, há sempre três mulheres: 1) a bebê fêmea, 2) a mãe,
3) a mãe da mãe. (WINNICOTT, 2005, p.193)
Seja nas primeiras experiências de cuidados que recebeu, de integração das
partes do corpo, inclusive o genital feminino, seja posteriormente na possibilidade de
cuidar e se identificar e poder ser o ambiente, suportar nova relação de
dependência, na qual outros dependam dela, temporariamente.
A bebê menina que teve uma mãe suficientemente boa, mãe ambiente e mãe
objeto, que se identificou com a filha e possibilitou que ela começasse a ser poderá
se identificar com a mãe tanto como aquela que cuida como aquela que tem uma
genitalidade específica própria ao órgão genital feminino. Além de ser uma pessoa
15
ela é uma menina que será uma mulher. Isso se quando a menininha pôde se
identificar com a mãe e depois com o pai, pôde integrar seus impulsos amorosos
destrutivos, suportar a ambivalência e viver a experiência de apaixonamento.
Na adolescência, algumas dessas experiências são fortalecidas, ou quando
não ocorrem nesse período uma segunda chance para tal. De um modo ou de
outro temos aqui o que ocorre com as moças: a possibilidade real de ser ou não ser
mães, baseadas em quem escolhem para ser seus parceiros amorosos e se irão ou
não engravidar. Mas com o início da vida sexual esta questão é intrínseca para as
mulheres, independente de se efetivam ou não a gravidez e a maternidade, outras
experiências estarão sendo vividas nesse período e novas tarefas realizadas no
processo de amadurecimento.
A mãe da mãe, ou a mulher adulta, encerra a tríade feminina, com a condição
de possibilidade de cuidar dos filhos e netos, sem efetivar uma relação de
dependência absoluta novamente. É aquela que resguarda o sentimento de lar
constituído na relação mãe/bebê e mãe/pai/criança, a partir da confiabilidade
ocorrida na relação da avó com seus filhos e netos.
A teoria de Winnicott inclui, para a compreensão da feminilidade, diferentes
experiências a serem integradas e elaboradas ao longo da vida de uma pessoa.
Experiências que se iniciam desde o nascimento e só terminam com a morte.
Tenho uma tendência natural para considerar esse assunto em termos do
desenvolvimento do indivíduo, desenvolvimento que começa no início de
tudo e vai até o momento da morte, na velhice. Desenvolvimento é minha
especialidade. o me preocupa definir se o homem é melhor do que a
mulher [...]. Tudo isso deve ser deixado para os poetas. (ibid., p. 183)
Winnicott foi um pediatra que se preocupou com a psicologia das crianças e
isso o levou a estudar psicanálise, mas suas ideias demonstram que sua concepção
16
de homem é original e própria e muitas vezes não es em concordância com os
conceitos e explicações dados pela psicanálise freudiana ou kleiniana.
Como explica Dias (2003) em seu livro sobre a teoria do amadurecimento
humano, um dos pontos de diferença entre Winnicott e Freud:
refere-se ao fato de a psicanálise freudiana ter sido construída nos moldes
de uma ciência natural e [...]são as funções biológicas que fornecem o
modelo básico para o funcionamento do psiquismo primitivo e isto se
mostra, por exemplo,no modo como foi formulada a progressão das zonas
erógenas que marcam as fases da sexualidade. (p. 77)
A constituição da feminilidade acontece durante o processo de
amadurecimento e inclui a elaboração imaginativa das funções mentais e da
integração psique-soma. Como veremos mais adiante, os órgãos genitais podem
ficar excitados em bebês, mas isto não está relacionado, no começo da vida, com
fantasias em relação a outras pessoas, não tem erotismo, apenas excitação como
impulso.
Ou seja, no início da vida, a sexualidade se de outra maneira, e a
feminilidade da mulher não está sempre relacionada à fantasias e excitação do
órgão genital feminino, como veremos ao longo do texto. Diz respeito ao modo com
que o corpo da mulher é elaborado imaginativamente e como isso influencia um
modo de ser si mesma e se sentir sendo si mesma.
Este modo de ser si mesma relacionado à feminilidade é experienciado de
diferentes maneiras pela mulher de acordo com a fase de amadurecimento em que
se encontra. É interessante que o desenvolvimento da feminilidade ocorra de acordo
com o desenvolvimento físico, mas nem sempre isso acontece, e algumas
dificuldades decorrem da incongruência temporal entre o desenvolvimento físico e o
amadurecimento psíquico.
17
A teoria winnicottiana apresenta um longo caminho desde o nascimento até a
entrada da criança no estágio do Complexo de Édipo, e antes de haver o desejo
pelo pai, a identificação com a mãe, e muitas tarefas a serem realizadas antes
mesmo dessa identificação. Podemos por exemplo, verificar nas brincadeiras das
meninas em idade aproximada de dois anos, um modo específico de ser si mesmo,
ligado ao cuidado do bebê/boneca, e dos meninos na brincadeira de carrinho,
relacionado a ir para diferentes lugares, mais em uma atitude de singularidade do
que de cuidado com as necessidades, ao contrário de dar papinha, por para dormir e
outros cuidados básicos e fundamentais.
Isto significaria que os meninos não se identificam com as mães? De maneira
alguma. Os meninos se identificam com as mães, mas a partir de certo ponto, a
identificação das meninas com as mães é diferente da dos meninos com as mães, e
se tal diferença ocorre ou não ou se ocorre tardiamente pode trazer dificuldades ao
longo do amadurecimento de tal criança.
Em algum lugar, portanto, a fisiologia funde-se suavemente à
psicossomática, que inclui a fisiologia das mudanças somáticas associada
às pressões e tensões da psique. Primeiramente, existem os controles
inerentes ao processo de socialização, e mais tarde os controles e inibições
patológicas, associadas à repressão e a conflitos inconscientes da psique
(WINNICOTT, 1990, p. 45).
Os homens com o passar do tempo constituem a masculinidade e passam a
se identificar com outros homens e seus modos de ser, e modificam a relação com a
mãe. Embora a feminilidade nos meninos não seja o tema do trabalho, pode ser
esclarecedor fazer uma colocação sobre o tema.
Nos meninos a feminilidade é fundamentada numa relação de identificação
cruzada, deles com a mãe ou outras mulheres, ainda no começo da vida, e é o que
18
lhes condição de serem cuidadores e não temerem a dependência, mesmo que
essa nunca seja total como ocorre com as mulheres na gravidez. Uma vez feita tal
identificação, pode ser deixada para trás para que haja a identificação com outros
homens e a constituição da masculinidade. O homem, diferente da mulher, desde o
início da vida tem o impulso para ser só um – si-mesmo.
[...] É tudo a mesma coisa, porque ela começa sendo três,
enquanto o homem começa com um impulso tremendo para ser um
só. Um é um e completamente um só, e o será cada vez mais. O
homem não pode fazer o que a mulher faz, esse fundir-se na
linhagem, sem violar a essência de sua natureza. Isso pode ocorrer
no caso de uma doença. (WINNICOTT, 2005, p. 93).
Caso haja identificação do menino com as mulheres em relação ao modo de
funcionamento genital feminino, surgem especificidades no desenvolvimento da
masculinidade desse menino, na elaboração imaginativa das funções corpóreas do
órgão genital masculino e de fantasias relacionadas a este.
Estruturação dos capítulos
No Capítulo 1 – A feminilidade no período pré-genital é apresentada a
constituição da feminilidade ainda quando bebê é relacionada às fantasias que a
menina tem do interior do próprio corpo e do interior do corpo da e. Mais tarde é
relacionada às diferenças físicas que as meninas começam a reparar entre seus
órgãos genitais e o dos meninos, e depois em novas identificações com outras
mulheres e homens.
O Capítulo 2 Feminilidade nos estágios do concernimento, exibicionismo e
edípico refere-se ao estágio do concernimento, no qual as meninas desde esse
período terão que lidar com as fantasias acerca do próprio corpo e do corpo da mãe,
19
do que dentro de seu corpo e do da e. Além da integração das experiências
de excitação da vagina, a menina terá que lidar com o amor e o ódio que têm pela
mãe, com a capacidade de fazer estragos no corpo da mãe e de fazer reparações.
No estágio do exibicionismo, as fantasias tinham papel primordial de auxiliar
na elaboração imaginativa das funções corporais; neste período as fantasias têm
base nas experiências de incorporação e introjeção relacionadas a descoberta dos
órgãos genitais femininos e masculinos.
No estágio edípico é incontestável a inveja que ocorre nas meninas em
relação aos meninos por eles terem o pênis e elas não; mas acrescenta que se
saúde, tal inveja será deixada no passado, não se torna uma preocupação
dominante em outras fases do amadurecimento da menina, moça e mulher.
No Capítulo 3 A feminilidade na adolescência é abordada a adolescência
como o período em que surgem outras identificações e as experiências sexuais
viabilizam novas tarefas e aquisições psicossomáticas.
Experiências novas marcadas pelo próprio crescimento do corpo, como o dos
seios e a menstruação, terão que ser elaborados imaginativamente e além disso
outras partes do corpo ainda podem estar sendo elaboradas, como a boca, o
aparelho digestivo
As meninas iniciam a conquista de suportar a ambivalência no estágio do
concernimento, sendo que na adolescência, novas experiências são vividas e
apresentam a ambivalência de outro modo na vida das moças. A possibilidade de ter
relações de identificação cruzada, a menina a condição de amar e odiar a mãe, o
pai e as outras pessoas dos dois sexos.
As relações sexuais não o mais apenas potencial, e começam a ser vividas
efetivamente o que traz inúmeras novas questões como a de poder engravidar e de
20
quem seria o pai de seu filho, o companheiro, e de como pode ser a vida de agora
em diante, contendo novos e complexos projetos.
No Capítulo 4 A feminilidade na mulher madura é trazida a concepção de
que a vida adulta, a mulher pode encontrar o amadurecimento de seu
desenvolvimento pessoal e sexual, que como apontado por Winnicott (1990, p. 65),
sempre inclui as três mulheres, tantas vezes apresentadas em mitos: a bebê, a
noiva e a mulher de idade. Tal estágio inclui conquistas rumo à independência sem
que a dependência seja temida.
Os temas apresentados nesse capítulo são: a maternidade, a mulher que não
é mãe, a pílula e o aborto, a mulher e a preocupação com os outros, as mulheres
maduras, o feminismo. De modo geral, a mulher ao longo do processo de
amadurecimento modifica a relação que tem com a própria mãe, mas a identificação
com a linhagem feminina não é desfeita, ela pode se identificar mais ou menos com
modos de ser da mãe, sem deixar de ser si mesma.
No Capítulo 5 Questões clínicas relacionadas à feminilidade além da
constituição da feminilidade saudável, são apresentadas implicações clínicas que
dizem respeito à constituição da feminilidade nos diferentes estágios do processo de
amadurecimento humano, lembrando que tais transtornos não podem ser vistos
apenas a partir de uma análise da descrição da sexualidade feminina.
Metodologia
Para compreender a constituição da feminilidade na psicanálise winnicottiana,
foi necessário fazer um estudo da obra de Winnicott, tendo em vista que para o
autor, mulheres e homens são sempre analisados a partir da teoria do
21
amadurecimento humano, essa inclui uma teoria da sexualidade que não é apenas
baseada nos instintos ou em relações instintuais.
A feminilidade é constituída por homens e mulheres, ao longo de seu
processo de amadurecimento. Neste trabalho apenas estudamos a feminilidade das
mulheres. As questões clínicas apresentadas são ilustrações de situações
frequentes para os analistas que atendem mulheres. Ainda que os distúrbios não
sejam da feminilidade, ou seja, essa não é uma categoria diagnóstica, referem-se,
ligam-se às dificuldades das mulheres de integrar sua feminilidade em diferentes
estágios da vida.
Seguimos os estágios do amadurecimento para fazer a apresentação da
constituição da feminilidade, pois consideramos que é uma forma didática e clara
para o leitor ter a compreensão de que nos diferentes períodos da vida, a
feminilidade é ou não constituída a partir da saúde ou não que tem, a bebê, a
menina, a adolescente ou a mulher.
22
CAPÍTULO 1 – A FEMINILIDADE NO PERÍODO PRÉ-GENITAL
1.1 O INÍCIO DO PROCESSO DE AMADURECIMENTO
Para Winnicott (1994) de forma introdutória e sucinta, o processo de
amadurecimento humano pode ser explicado da seguinte maneira: “O bebê (menino
ou menina) herda um processo desenvolvimental. Para descrever o que acontece
temos de saber não apenas a respeito desse processo, mas também sobre a
provisão ambiental” (p. 219).
Ou seja, dois fatores fundamentais em tal processo: a tendência à
integração e o ambiente facilitador que fazem parte da conquista fundamental para
que o ser humano se desenvolva e se integre em uma unidade como um indivíduo
maduro: “Cada indivíduo está destinado a amadurecer, e isto significa: unificar-se e
responder por um eu. Em função disto, o que falha no processo, e não é integrado
por meio da experiência, não é simplesmente um nada, mas uma perturbação.”
(DIAS, 2004,p. 94)
As perturbações são evitadas pelo ambiente facilitador que proporciona que a
tendência à integração aconteça. O bebê humano não sobrevive sem cuidados
satisfatórios que não são apenas biológicos e materiais, mas também psicológicos e
afetivos, por assim dizer:
O que está, portanto, em pauta no amadurecimento pessoal, não são
funções isoladas, sejam elas biológicas, mentais ou sexuais, mas o próprio
viver humano, naquilo que este tem de estritamente pessoal: o sentimento
de ser, de ser real, de existir num mundo real como um si-mesmo. Nada
disto é dado pela concepção e pelo nascimento biológicos [...] todas as
dimensões humanas deverão ser gradualmente integradas à personalidade,
mas sempre a partir do sentido pessoal da existência, sentido que, no início,
é a mera continuidade de ser. (ibid., p. 97).
23
O processo de amadurecimento é desdobrado em estágios que fazem parte
de três fases: A primeira ocorre quando o bebê depende totalmente da e, na
segunda a dependência é relativa e na terceira que se inicia no “rumo à
independência” e chega à independência relativa. Em cada uma dessas fases o
bebê terá conquistas a realizar para continuar se desenvolvendo.
Esse amadurecimento acontece também de acordo com o sentido de
realidade que o indivíduo cria e da maneira que é sua relação com o ambiente nas
diferentes fases:
Inicialmente, o bebê vive num mundo subjetivamente concebido; passa,
depois, para uma forma intermediária de realidade a da transicionalidade
a meio caminho entre o subjetivo e o objetivo; em seguida, caminha na
direção de constituir o eu, como identidade integrada, separado do não-eu,
podendo, então, começar a perceber objetivamente o mundo externo ou
compartilhado. (ibid., p. 98)
Verifiquemos como se cada estágio das diferentes fases do
amadurecimento do indivíduo, desde sua concepção. Desde o início, a mãe e o
bebê estão em contato. Antes de nascer o bebê ouve os ritmos e conhece
sensações da mãe. Ele estará seguro se não sofrer ameaças intrusivas mesmo
quando ainda está “na barriga”. A mãe protege seu filho dessas intrusões,
protegendo a si mesma, quando a estabilidade necessária tanto para ela quanto
para o bebê e assim ele pode nascer depois de nove meses quando tem
condições para iniciar a vida fora do útero.
A preocupação materna primária é um tipo de relação primitiva, de
identificação, que se estabelece entre mãe e bebê, iniciando-se no final da gravidez
e nas primeiras semanas depois que o bebê nasce: “Acredita-se que exista uma
identificação consciente, mas também profundamente inconsciente, que a mãe faz
com seu bebê” (WINNICOTT, 1988, p. 492).
24
Em tal estado, as mães podem se identificar com seu bebê de maneira a
desconsiderar outras necessidades e atividades, pois estão completamente voltadas
a atendê-lo. Para Winnicott não são apenas fatores biológicos que explicam a
identificação da mãe e a dependência do bebê que ocorrem no estado citado, é o
amor que a mãe sente pelo filho que cria a necessidade de tentar descobrir tudo o
que ele precisa e atendê-lo prontamente.
“Na visão winnicottiana seria um procedimento simplista atribuir o estado de
preocupação materna primária, um fenômeno de intercomunicação humana, a
fenômenos ligados à biologia e à físico-química como a simbiose e o equilíbrio
homeostático” (LEAL, 2004, p. 173, grifos da autora).
As mulheres que conquistaram essa capacidade de identificação com o filho,
no final da gravidez, são chamadas pelo autor estudado, de mães devotadas
comuns, expressão [...] que serviu para designar a mãe capaz de vivenciar este
estado, voltando-se naturalmente para as tarefas da maternidade, colocando-se
temporariamente alienada de outras funções, sociais e profissionais.” (ibid., p. 165).
Essa identificação coloca a mãe em um estado muito específico de
sensibilidade aumentada. E não é recordado com facilidade, pela mulher, depois que
volta ao seu estado normal.
Poderia ser comparado a uma perturbação grave. Para Winnicott (1988), não
é possível compreender a mãe na fase inicial de vida de seu bebê sem que ela seja
capaz de estar nesse estado temporário.
Para entrar nesse estado e sair dele, é necessário que a mulher esteja
saudável no período da gravidez e do parto. Algumas mulheres, por estarem
doentes, não conseguem viver isso, o que não as condena a serem “más” mães,
porém terão que compensar a perda dessa experiência para a criança.
25
As mulheres que o fazem essa identificação com os filhos terão certas
dificuldades para cuidar deles e muitas vezes preferem, ou têm como única saída,
dar seus filhos temporariamente aos cuidados de outra pessoa.
Na tentativa de compensar sua incapacidade de se preocupar com o bebê,
tais mulheres podem extrapolar cuidados ou manter cuidados mínimos ausentes,
mas ambas as situações prejudicam o amadurecimento do bebê. Contudo, o esforço
dessas mães pode ser benéfico, se com o tempo a criança puder estabelecer uma
identificação com os pais e com a sociedade.
Essa identificação que ocorre com a mãe não pode acontecer com o bebê,
uma vez que ele ainda não tem condição de se identificar com ninguém. Então o que
ocorre com o bebê nesse período?
Ainda no útero, o feto ao se movimentar, é capaz de experimentar sensações
que dizem respeito especialmente aos movimentos de um corpo que está se
constituindo. Esses movimentos, como o de esticar braços e pernas, são uma
realização do bebê. Ele está se deparando com a parede do útero, que será parte
dos primórdios do conhecimento do mundo exterior.
Quando saudável, o bebê expressa nessa movimentação sua espontaneidade
e descobre o ambiente por oposição a seu corpo, o que só ocorre se a mãe permitir,
pois o be ainda não é alguém e depende totalmente das condições
providenciadas pelo ambiente para começar a ser: [...] a substância desses golpes e
pontapés (movimentos) está faltando, porque o bebê (por nascer ou recém-nascido)
ainda não se converteu numa pessoa que possa ter uma razão nítida para justificar
essas ações (ibid., p. 494).
O estágio da primeira mamada teórica diz respeito às primeiras experiências
da amamentação e ocorre, aproximadamente, nos primeiros quatro meses de vida
26
do bebê. O que acontece de essencial nesse estágio é: “[...] o começo do contato
com a realidade e o início da constituição de um si-mesmo que irá gradualmente
integrar-se numa unidade” (Dias, 2003, p. 165). Para que isso se dê, o bebê tem que
nascer e realizar algumas tarefas que acontecem em dois modos de existência. Tais
modos, tarefas e nascimento propriamente ditos são apresentados a seguir.
O nascimento normal implica três grandes situações para o bebê:
(1) o bebê experimenta uma interrupção maciça da continuidade do ser [...]
mas já alcançou em grau suficiente a capacidade de constituir pontes sobre
os abismos da continuidade do ser; (2) o bebê já possui memórias de
sensações e impulsos que são fenômenos próprios do si- mesmo; (3) que o
parto não seja nem precipitado nem que seja excessivamente prolongado
(WINNICOTT, 1990, p. 165).
O recém-nascido precisa se adaptar às suas novas condições de vida. A mãe
lhe ajudará a fazer isto estando atenta às necessidades do filho, podendo identificar
os momentos nos quais ele busca contato.
Este início de contato com a realidade e com os aspectos fundamentais da
constituição do si-mesmo verdadeiro do bebê, que vêm com a primeira alimentação
fora do útero, foi chamado por Winnicott de primeira mamada teórica.
A mãe, ao oferecer o seio, oferece o mundo no momento em que o be
necessita, o que confirma a ilusão dele de que é o criador do mundo. Cada vez que
isto ocorre, a permanência do mundo é confirmada, e o bebê criará a concepção da
realidade externa.
Paulatinamente, ele se orienta no tempo e no espaço, e a sensação de
segurança se transformará em autocontrole, que se origina do si-mesmo verdadeiro
do bebê (conceito que será explicado adiante).
27
Na ação do si-mesmo verdadeiro o bebê começa a constituir sua
individualidade e o sentimento de ser real. Tudo isso só ocorre se a mãe permitir que
o filho viva a experiência de onipotência. Para o recém-nascido, é fundamental que
ele tenha a ilusão de “criar o que encontra”, e isso é possível se a mãe, que no
início é o bom ambiente, sintoniza-se totalmente com o bebê e não impõe as suas
necessidades. Logo, a mãe suficientemente boa para o recém-nascido é aquela
capaz de deixá-lo viver a ilusão de ser o criador do mundo.
Na saúde, o bebê, em algum momento próximo do nascimento, desperta.
Despertar que ocorre graças à sua criatividade e à sua espontaneidade.
Nesse momento, o be está envolvido com três tarefas básicas: a
Integração, a Personalização e a Realização. Estas, na vida, acontecem em uma
união temporal e espacial, tornam-se mais complexas e nunca são abandonadas.
Porém, antes de falar sobre as três tarefas, é necessário apresentar os
estados próprios do mundo subjetivo, que ocorrem como modos de ser do bebê para
realizar as primeiras tarefas.
Um primeiro modo de ser do bebê apresenta-se nos estados excitados e
outro nos estados tranquilos. Como são vividos esses estados e sua passagem de
um para outro é algo que também será conduzido pela mãe.
Nos estados excitados aparecem os impulsos, que são as necessidades
instintuais e motoras que precisam ser realizadas para que o bebê cresça. “Winnicott
usa o termo ‘instintual’ para referir-se ao conjunto de excitações locais e gerais que
são, para ele, um aspecto da vida animal” (DIAS, 2003, p. 175).
Nos estados tranquilos, todas as pessoas devem poder descansar. um
recolhimento no mundo subjetivo, que é para o be sustentado pela mãe,
28
favorecendo assim sua entrada em um ambiente confiável, e podendo assim viver
relações de confiança com outras pessoas.
Por toda vida, o indivíduo terá que lidar com os dois estados e com a
passagem de um ao outro, mas em cada um deles ocorrem preferencialmente
diferentes tarefas a serem realizadas.
[...] os estados tranqüilos são mais claramente a ocasião para as tarefas de
integração, no tempo e no espaço, e de alojamento da psique no corpo, os
estados excitados são mais diretamente relacionados com o início do
estabelecimento do contato com a realidade – ao mamar e agarrar objetos –
além de serem o momento privilegiado para observar as raízes da
agressividade (ibid, p. 174).
As três tarefas básicas que o bebê tem nesse estágio ocorrem de maneira
concomitante e dependem uma da outra para serem realizadas. A quarta tarefa será
a constituição do si mesmo como identidade
1
:
À medida que essas tarefas estão sendo realizadas, e as conquistas estão
sendo organizadas entre si pelo funcionamento do ego, uma outra está se
processando: a constituição do si mesmo como identidade. [...] o bebê
torna-se o objeto, fazendo as suas primeiras experiências de identidade
(ibid., p. 167)
Quando o bebê nasce, como mencionado, ele ainda não é constituído
como um ser que sabe de si e pode viver sozinho. Este é o estado inicial de não
integração. Para ter o sentido de realidade e poder fazer parte dela ele precisará
constituir-se com a ajuda da mãe:
[...] a integração não é algo que pode ser tomado como garantido; é algo a
ser desenvolvido paulatinamente em cada criança. Não é apenas uma
questão de neurofisiologia, pois para este processo acontecer são
necessárias certas condições ambientais, e realmente, essas são melhor
providenciadas pela própria mãe da criança (WINNICOTT, 1995, p. 5).
1
Experiência que ocorre depois que o bebê concebeu o objeto subjetivo na fase de transicionalidade.
29
Assim o bebê começa a ser situado e a situar-se em um espaço e tempo
determinados. As possibilidades de ser do be vão sendo reunidas espacial e
temporalmente: o que antes era não integrado passa a sofrer maiores experiências
de integração, a partir de um cuidado específico da mãe, o holding
2
.
É segurando o bebê que a mãe o reúne com as partes do corpo do bebê, de
maneira a protegê-lo e favorecer sua saída, aos poucos, da experiência de não-
integração. Para isso a mãe assegura a permanência do bebê no tempo e no
espaço.
Ela é capaz de providenciar este holding porque se encontra no “estado de
preocupação materna primária”. O bebê está entregue ao mundo subjetivo: a mãe
proporcionando a ele a ilusão de onipotência, possibilita-lhe constituir seu próprio
mundo e seu si-mesmo. É o início do alojamento da psique no corpo, ou seja,
começa a existir uma pessoa em sua totalidade psique-soma, acontecendo em
espaço e tempo determinados.
“Tão importante quanto a integração é o desenvolvimento do sentimento de
que se está dentro do próprio corpo [...] e tranqüilas experiências de cuidado
corporal que, gradualmente, constroem o que se pode chamar uma personalização
satisfatória.” (WINNICOTT, 1988, p. 276).
Ao manejar seu bebê, a mãe o está introduzindo na experiência de ser uma
unidade psique-soma. Este manejo é o que Winnicott conceitua como handling:
comer e dormir, por exemplo, começam a ser sentidos como necessidades pessoais,
e não apenas instintivas.
Mas os seres humanos têm que, além disso, elaborar imaginativamente suas
funções corpóreas. Ou seja, mais do que ter um corpo e uma mente, somos uma
2
Termo utilizado em inglês por tratar-se de um conceito da psicanálise winnicottiana.
30
unidade psique-soma que irá se constituir desde quando começamos a ter
sensações pelos cuidados que recebemos quando bebês até os momentos de
experiências tão íntimas como as relações sexuais na vida adulta:
“Este manejo realizado pela mãe promove o entrelaçamento e o
fortalecimento da coexistência entre a psique e o corpo. Constatamos, então, que a
constituição do corpo é atravessada pela presença humana da mãe, num processo
em que um corpo biológico é humanizado.” (DIAS, 1998, p. 46).
As sensações criam memórias, proporcionando material para o bebê começar
a fantasiar, além de poder interligar passado, presente e futuro. Isso o ajudará a
tolerar adiamentos da satisfação instintual.
Os adiamentos conhecidos e tolerados pelo bebê enriquecem sua
potencialidade para fantasiar e o fortalecimento do sentimento de realidade da
experiência realizada.
Ao ser cuidado pela mãe, o bebê sente, no toque, que é diferente do resto do
ambiente. o alojamento da psique no corpo e só assim é possível o sentir-se real
em um mundo real. Nós não apenas habitamos o corpo, o que nos integra é viver
desta maneira, sendo psique-soma.
A psique se fundamenta no aparato do tecido cerebral e gera as condições
indispensáveis para a criação da fantasia. Ao elaborar imaginariamente suas
demandas instintivas, o bebê, por meio de seus impulsos (como o erotismo
muscular), cria material para a construção de sua psique.
Ao organizar o caos inicial do mundo, o bebê conquista um estado de saúde
em que as fronteiras de seu corpo coincidem com as fronteiras de sua psique. Além
disso, o bebê consegue integrar as experiências como eventos temporais (passado,
presente e futuro).
31
É da conquista do alojamento da psique no soma, especificamente do soma,
que a mente (ou intelecto) se origina, dependendo da qualidade dos tecidos
cerebrais para funcionar bem.
O bebê, alojado em seu próprio corpo, pode suportar as pequenas falhas da
mãe, e assim inicia maior contato com a realidade exterior. A mãe não está mais no
“estado de preocupação materna primária” e o bebê tolera ritmos diferentes de
cuidados.
A mente serve para que o bebê possa catalogar suas experiências,
estabelecendo relações entre as ações da mãe e os cuidados que recebe e quando
os recebe. Isso o ajuda a distinguir “eu” e “não eu”.
Para entrar na realidade compartilhada, o bebê terá que paulatinamente
perder a crença de que é o criador do mundo, fenômeno que Winnicott descreve
quando o objeto é subjetivamente concebido; e perceber os objetos objetivamente,
ou seja, que há objetos que não são o bebê e nem concebidos por ele. Isso
acontece com o tempo uma vez que:
No começo da vida, o bebê não tem maturidade suficiente para saber da
existência da realidade externa [...] Separar o si-mesmo dos objetos – que é
uma conquista muito sofisticada e depende de outras, anteriores se
iniciará mais tarde, a partir do estágio do uso do objeto, quando o próprio
bebê criar o sentido de realidade que é próprio a externalidade. Depois disto
ele terá ainda de completar a conquista, separando o si-mesmo do ambiente
total, o que ocorrerá no estágio do EU SOU (DIAS, 2003,p. 213, grifos
da autora).
Se a ilusão for bem instalada pela mãe ao bebê, ele pode suportar as falhas
dela sem que isto seja uma intrusão ao seu si-mesmo. A desilusão por o ser
alguém que crie tudo que queira é tolerada e necessária para que o bebê possa
32
amadurecer e compreender intelectualmente a existência do mundo e da realidade
externa. Porém, como explica Dias (2003):
O sentimento de que o mundo é criado e continuará a ser criado
pessoalmente não desaparece. Se o indivíduo permanece vivo, a sua raiz
pessoal continua fincada no mundo imaginativo, e é somente a partir daí
que a aceitação do mundo externo não equivale à aniquilação (p. 217).
O si-mesmo é o resultado de momentos de integração do bebê, no tempo e
no espaço, a partir da não-integração que é o bebê inicialmente, os períodos de
integração vão ficando mais constantes até se estabelecerem de maneira estável
que é a condição para que surja um si-mesmo unitário: “O si-mesmo unitário é
resultado da tendência integrativa e alcança um estado mais consistente e estável
no estágio em que o indivíduo, se pudesse falar, diria: EU SOU” (ibid., p. 217).
Então podemos questionar quem é o bebê antes de passar pelo estágio do
“eu sou”. Ele é os cuidados que recebe da mãe e Winnicott denomina a totalidade
desses cuidados de “seio”. “Melhor dizendo, o bebê torna-se a confiabilidade desses
cuidados” (ibid., p. 219).
Como explica Dias (2003), o “seio” para Winnicott tem dois sentidos: um de
ser “objeto subjetivo” descrito como a experiência que ocorre na vida inicial do bebê,
em que ele ainda não é alguém que se relaciona com objetos e nem pessoas; ele é
“dois em um”, ainda não tem mundo interno e externo. O outro sentido é a totalidade
dos cuidados maternos, que tem como característica central a confiabilidade que o
bebê precisa para vir a ser alguém. E para que isso ocorra é necessário que ele
passe pelo estágio da transicionalidade.
Inicialmente, o mundo subjetivo é constituído pela ilusão de onipotência do
bebê. Ele encontra os objetos no momento em que precisa deles, e essa experiência
mágica o faz crer que é onipotente.
33
Antes de poder se encontrar com a realidade objetivamente percebida, o bebê
passará por experiências que o desiludem gradativamente e fazem parte da
realidade dos fenômenos transicionais. Se antes os objetos eram subjetivos, com o
amadurecimento podem passar a ser transicionais, para depois serem objetivamente
percebidos. Neste estágio, o bebê vive a transição de estar misturado à mãe e viver
com ela como algo separado dele.
Os fenômenos transicionais se originam no fato de a mãe oferecer o objeto no
momento em que o bebê estava pronto para concebê-lo criativamente. Esse objeto
terá grande importância para o bebê, uma vez que faz as vezes da e quando ela
não está, assegura ao bebê sua permanência no mundo mesmo quando a mãe não
se encontra para protegê-lo, e ao mesmo tempo aponta a necessidade que o bebê
tem de se separar da mãe.
Ao se separar da mãe surge o espaço potencial e tanto a individualidade do
bebê quanto a da mãe podem ser percebidas, iniciando uma grande área de
criatividade do brincar infantil e mais tarde das ações criativas dos adultos.
Essa área intermediária de experiência, incontestada quanto pertencer à
realidade interna ou externa (compartilhada) constitui a parte maior da
experiência do bebê e, através da vida, é conservada na experimentação
intensa que diz respeito às artes, à religião, ao viver imaginativo e ao
trabalho científico criador (WINNICOTT, 1975, p. 30).
Neste estágio, as crianças já alcançaram a integração da personalidade e são
capazes de manter viva a imagem da mãe por maior período de tempo. Começa a
fronteira entre “eu” e “não eu”.
A criança experimenta diferentes situações e vive a realidade subjetiva e
compartilhada quase que concomitantemente, cria-se o sentimento de ‘estar sendo’
34
e aí se altera o sentido de realidade que a criança tem do objeto. Ela passa de fato a
se relacionar com o objeto.
A transicionalidade marca o início da desmistura, da quebra da unidade
mãe-bebê. O lactente, que é um criador de mundos cria [...] a área inaugural
de separação entre ele e a mãe [...] Gradualmente, do dois-em-um [...] vão
emergir dois indivíduos, o que permitirá que comece a estabelecer o que se
chama, propriamente, relacionamento (DIAS, 2003:237).
O estágio do uso do objeto diz respeito ao momento em que é conquistada,
pelo ser humano, a capacidade de usar objetos. Reiterando, inicialmente
realidade subjetiva, depois realidade dos objetos transicionais, para então ser
possível, para as crianças, fazer parte da realidade compartilhada.
A realidade externa passa a ser percebida levando em consideração a própria
natureza dos objetos, ou seja, estes têm uma possibilidade de uso implícita: “Por
exemplo, o objeto, se é que tem de ser usado, deve ser necessariamente real, no
sentido de fazer parte da realidade compartilhada, e não um feixe de projeções.”
(WINNICOTT, 1975, p. 123).
Esses objetos poderão ser utilizados se puderem ser destruídos e
sobreviverem à destruição. Para que o bebê conheça a realidade compartilhada,
precisa odiar, agredir e destruir os objetos. Assim o mundo mágico não teque ser
aniquilado, o mundo da realidade objetivamente percebida vai entrando na vida do
bebê sem que isto o invada.
Esse mundo faparte de sua vida enquanto tiver saúde, pois, além de criar,
todos precisam poder viver de maneira a conhecer os outros e saber que eles não
são apenas criação de cada um de nós, são também existentes e reais.
O amor sepossível para aqueles que conseguirem atingir este estágio.
Depois de terem odiado e agredido o objeto, este sobreviveu e poderá ser amado:
35
O estudo desse problema envolve um enunciado do valor da destrutividade.
Esta, mais a sobrevivência do objeto à destruição, coloca este último fora da
área de objetos criados pelos mecanismos psíquicos projetivos do sujeito.
Dessa maneira, cria-se um mundo de realidade compartilhada que o sujeito
pode usar e que pode retroalimentar a substância diferente-de-mim dentro
do sujeito. (ibid., p. 131)
A partir deste momento podemos dizer queduas pessoas se relacionando.
O bebê poderá então viver o estágio do concernimento: “A conquista do estatuto do
EU SOU ainda não faz do bebê uma whole person
3
. Ela é contudo, a condição de
possibilidade para o próximo estágio, o do concernimento” (DIAS, 1998, p. 172).
No estágio do “eu sou” o bebê ainda não tem a capacidade de se identificar,
ele tem uma constituição, tendências inatas de desenvolvimento, motilidade e
sensibilidade, e necessidade de elaborar imaginativamente as funções corpóreas.
Dado o setting
4
pela mãe, as sensações apropriadas a essa fase podem ser
dominadas pelo bebê, que experimenta então seus movimentos espontâneos e sua
tendência a se integrar.
Quando a presença da mãe ocorre de maneira adequada, o bebê não precisa
reagir de modo excessivo ao ambiente, não se produz uma ameaça de aniquilação
ao seu si-mesmo:
“A base para o estabelecimento do ego (si mesmo) é um suficiente ‘continuar
a ser’, que não foi interrompido por reações à invasão. Uma suficiência do ‘continuar
a ser’ é possível no início, se a mãe se encontra neste estado (de preocupação
materna primária)” (WINNICOTT, 1988, p. 496, grifos e parênteses do autor).
A partir das falhas da e comum, como uma demora para trocá-lo, o bebê
que tem a confiabilidade no ambiente pode se recuperar de tais acontecimentos por
repetidas vezes, o que lhe a capacidade de suportar as falhas da mãe que não
3
Termo utilizado em inglês por tratar-se de um conceito da psicanálise winnicottiana.
4
Idem à nota anterior.
36
são vividas pelo bebê como falhas maternas, e sim como pequenas ameaças. Não é
a pessoa da mãe que ameaça, mas sim o ambiente.
Quando a provisão de um bom ambiente, e esse contém falhas no início
da vida do bebê, ele pode começar a existir e ter um self verdadeiro, que fica intacto
e o capacita a enfrentar as dificuldades inerentes à vida. Ele passa a experimentar
as situações da vida de maneira individual, pessoal e personalizada pelos cuidados
que teve.
Para mim o si-mesmo não é o ego, é a pessoa que é EU, que é apenas EU
[...] Ao mesmo tempo, o si-mesmo tem partes, na realidade, é constituído
dessas partes. Elas se aglutinam desde uma direção interior para exterior
no curso do funcionamento do processo de amadurecimento, ajudado como
deve ser (maximamente no começo) pelo meio ambiente humano que
sustenta e maneja e, por uma maneira viva, facilita (WINNICOTT, 1994, p.
210, grifos e parênteses do autor).
Com o início da constituição do si-mesmo o bebê passa a transformar sua
relação com o ambiente e torna-se menos dependente, criando autonomia para
ingressar na realidade compartilhada de maneira própria. Porém se a mãe não
conseguir se adaptar às necessidades do bebê, ele não poderá viver a ilusão de
onipotência e terá que corresponder às necessidades da mãe, assim não ocorrem
apenas falhas ameaçadoras e suportáveis:
Pode-se dizer, portanto que a etiologia do falso si-mesmo encontra-se
especialmente na apresentação de objetos, relativa ao início do contato com
a realidade, através da relação objetal (objeto subjetivo), na etapa da
dependência absoluta. O modo de apresentação de objetos é de um tipo tal
que obriga o bebê a reagir e essa reação é do tipo que se remete ao objeto
(DIAS, 1998, p. 320).
O único modo que o bebê tem de sobreviver será fazer tudo como lhe é
imposto e então seus gestos não poderão ser espontâneos, que é quando a
instauração do falso si-mesmo e o indivíduo passa a viver de maneira falsa, sem
37
espontaneidade. Viverá por imitações, sem contato com suas necessidades, fato
que pode trazer implicações tanto para a própria pessoa por não poder ser si-
mesmo como para os que vivem com essa pessoa, pois têm a impressão errônea de
que ele/ela se adapta a qualquer situação.
1.2 OS ELEMENTOS FEMININOS E MASCULINOS PUROS
Os conceitos de elemento feminino e masculino puros foram criados para
explicar um fenômeno clínico de dissociação que o determina o desenvolvimento
da sexualidade madura em termos de heterossexualidade ou homossexualidade,
mas sim o modo impessoal ou submetido de viver dessas pessoas.
Inicialmente que se compreender que o desenvolvimento da feminilidade
não é sinônimo do desenvolvimento do elemento feminino puro, mesmo sendo este
fundamental para que o desenvolvimento da feminilidade se dê. O elemento
feminino puro está relacionado à possibilidade de ser si-mesmo e de ser criativo.
O elemento masculino puro não é sinônimo de masculinidade, mas também
precisa ser integrado, depois do elemento feminino puro, para que o processo de
amadurecimento prossiga e a pessoa continue a sentir que tem uma vida que vale a
pena de ser vivida, estar integrado, inclui integrar ambos os elementos, feminino e
masculino puros. Uma diferença que ocorre ao longo do processo de
amadurecimento entre meninos e meninas é que depois de ocorrida a primeira
experiência de ser, tendo vivido a dupla dependência com a mãe, os meninos se
identificam de maneira mais intensa com o elemento masculino puro, o fazer.
A elaboração psicossomática dos meninos ocorre de maneira que uma vez
que houve a separação eu/não-eu e passado o estágio do concernimento, a
38
preocupação do menino é muito mais orientada ao que ele vai fazer consigo e com
os outros, do que ao modo (maternal) de preocupação consigo e com os outros.
Os meninos não vão engravidar, suas brincadeiras são de carrinho, bola, luta.
As meninas brincam de ser mães, professoras. Desde a tenra infância essas
manifestações aparecem e ao longo do amadurecimento do menino e do da menina,
é notória a diferença com que eles lidam com a própria instintualidade e como o
modo com que fazem isso está ligado às identificações que ocorrem ao longo de seu
processo de amadurecimento.
Vejamos o que Winnicott escreve sobre elemento feminino e masculino puros:
Desejo dizer que o elemento que estou chamando de 'masculino' transita
em termos de um relacionamento ativo ou passivo, cada um deles apoiado
pelo instinto. É no desenvolvimento dessa idéia que falamos de impulso
instintivo na relação do bebê com o seio e com o amamentar, e,
subseqüentemente, em relação a todas as experiências que envolvem as
principais zonas erógenas, e a impulsos e satisfações subsidiárias. Em
contraste, o elemento feminino puro relaciona-se com o seio (ou com a
mãe) no sentido de o bebê tornar-se o seio (ou mãe), no sentido de que o
objeto é o sujeito. Não consigo ver impulso instintivo nisso. (WINNICOTT,
1975, p. 113, parênteses do autor)
A dissociação de um dos elementos puros, masculino ou feminino, na mulher
ou no homem, o ensejará o desenvolvimento maduro da sexualidade em termos
de heterossexualidade ou homossexualidade, o permitirá a constituição da
feminilidade ou da masculinidade, e levará a um modo de viver submisso e
impessoal.
A seguir, um caso clínico apenas para ilustrar a situação de dissociação de
um dos elementos. No livro “O brincar e a realidadeWinnicott (1975) relata o caso
clínico de um “homem de meia idade, casado, com família, e bem sucedido numa
profissão liberal” que, durante uma sessão de análise, o surpreendeu ao referir-se à
39
inveja do pênis. Nesse momento, Winnicott teve a impressão de estar ouvindo uma
moça e não um homem.
O paciente não era homossexual. A questão, portanto, não dizia respeito à
escolha do objeto, pois a inveja do pênis o representava o desejo de ter um falo
órgão que, obviamente, o paciente possuía ou uma paixão pelo pai. Havia uma
dissociação entre os elementos masculino e feminino puros. Winnicott,
reconhecendo essa dissociação, disse ao paciente que, embora soubesse que ele
era um homem, estava ouvindo uma garota. A interpretação produziu alívio no
paciente, que afirmou ao psicanalista: “Se eu fosse falar a alguém a respeito dessa
garota seria chamado de louco.”
No prosseguimento da situação clínica, Winnicott afirmou ao paciente que ele,
o analista, é que estava louco ao ouvir uma moça, mesmo estando ciente de estar
diante de um homem no divã. Com a continuação da análise, o paciente teve a
oportunidade de reviver a dissociação dos elementos feminino e masculino puros
(split-off) e, por intermédio do manejo clínico levado a efeito por Winnicott,
reconhecer tal dissociação como resultante de uma falha ambiental. Em outras
palavras, o paciente deu-se conta de que a loucura era do ambiente e não dele.
O material da análise revelou que, nos primeiros momentos de vida, esse
paciente fora tratado como menina por uma mãe incapaz de se identificar com um
bebê do sexo masculino. O histórico mostrou que o paciente, antes de começar a
ser si-mesmo, foi obrigado a se adaptar à loucura do ambiente, exercendo o papel
de bebê do sexo feminino. Em consequência dessa adaptação precoce, o paciente
viveu como se as atividades naturais da vida não passassem de tarefas impostas
pela necessidade de se adaptar à loucura do meio.
40
Tratava-se, como Winnicott acentuou, de um paciente que sofrera uma
dissociação quase completa do elemento feminino puro. Dissociação que o levara a
se adaptar, de forma exclusiva, ao meio, e o impossibilitara de possuir uma vida
pessoal e de agir de acordo com suas necessidades. Portanto, neste caso, não
estava em jogo a sexualidade adulta ou a escolha objetal do paciente, e sim sua
adaptação ao meio, produzida por uma dissociação. Caso que confirma a
necessidade de ambientação correta da criança, para que ela possa integrar os
elementos feminino e masculino puros e alcançar o estatuto de pessoa total (whole
person).
A problemática do paciente em questão foi devidamente analisada graças à
teoria do amadurecimento humano de Winnicott e à sua compreensão do elemento
feminino puro como constituinte do ser e do elemento masculino puro como
fundamento das relações objetais. Caso contrário, essas questões poderiam ser
erroneamente interpretadas como originárias de ligações objetais, de uma confusão
na sexualidade do paciente ou da constituição de sua masculinidade.
Como Winnicott demonstrou, ocorreu uma impossibilidade da constituição de
si mesmo, anterior a qualquer forma de relação objetal, pois a integração dos
elementos feminino e masculino puros não depende da mãe objeto, mas sim da mãe
ambiente. Em outros termos, da capacidade de a mãe se identificar com a criança
que foi no passado. Para que ocorra constituição da feminilidade e da
masculinidade, a mãe saudável inicialmente não diferencia a criança pelo gênero,
mas cuida e se adapta a ela porque é capaz de se identificar com o bebê que foi um
dia.
Quando isso não ocorre, para sobreviver, a criança será obrigada a cumprir o
que lhe é imposto e, consequentemente, seus gestos não serão espontâneos,
41
dando-se a implantação do falso si-mesmo. Seeste falso si-mesmo o responsável
pelo fato de o indivíduo viver de maneira falsa, sem espontaneidade, desconectado
de suas próprias necessidades. É quando ocorre a impossibilidade de
desenvolvimento do elemento feminino puro, da espontaneidade, de ser si-mesmo,
que pode incluir a impossibilidade na mulher de constituir a feminilidade.
1.3 AS RAÍZES PRÉ-GENITAIS DA FEMINILIDADE
Os cuidados recebidos pela menina no início da construção do si mesmo irão
formar as raízes pré-genitais do seu amadurecimento. Relacionados à identificação
e à possibilidade de permitir ao outro ser si mesmo, esses cuidados poderão, no
futuro, ser repassados como elemento feminino puro, quando a menina for mãe,
analista ou exercer o papel de mãe.
os meninos, para repassar tais cuidados deverão manter durante o
processo de amadurecimento pessoal a capacidade de identificação com o outro de
maneira específica, sem agir, apenas consentindo que ele seja si-mesmo. O modo
masculino exige a elaboração imaginativa do corpo do homem e de suas funções
corpóreas, inclusive da genitália.
A constituição do si-mesmo no menino é caracterizada pela vivência de uma
série de experiências de personalização distantes da primeira identificação com a
mãe nos períodos da infância. Após adquirir as noções de mundo interno e mundo
externo, e experimentar a diferença entre eu e não-eu, o menino vai lidar mais com o
que está fora e com o que exige ação, padrão que levará para uma vida adulta
saudável. Nele, o órgão genital é para fora, a excitação erótica é visível e exige
42
ação, e as fantasias na fase genital e exibicionista não se relacionam com o interior
de seu corpo e sim com ereção, rivalidade e possibilidade de penetrar.
Com as meninas ocorre um processo diferente:
A fantasia e o funcionamento femininos repousam muito mais pesadamente
sobre raízes pré-genitais, e é possível que haja mais espaço para a
participação de elementos pertencentes à menina na categoria chamada
mulher, do que para os elementos pertencentes ao menino na categoria
homem. (WINNICOTT, 1990, p. 65).
A seguir, será apresentado o papel dos instintos, da elaboração imaginativa
das funções corpóreas, e das fases oral e anal, para uma melhor compreensão da
constituição da feminilidade no período estudado.
1.3.1 Os instintos e a elaboração imaginativa das funções corporais e as raízes da
feminilidade.
Para Winnicott, os instintos são “a chave para a saúde na primeira infância”
(Winnicott, 1990, p. 57) e constituem uma força biológica intermitente na vida da
criança. Como ocorre no reino animal, o instinto, como disposição permanente para
agir de modo biologicamente determinado, prepara a criança para satisfazê-lo
quando se encontra em seu grau máximo de exigência.
O instintual, na teoria winnicottiana, não se restringe às excitações sexuais ou
a um instinto básico de vida ou de morte. No caso humano, o cerne da questão está
no conhecimento de como os instintos são integrados nas experiências pessoais. É
o que explica Loparic (2005):
O que diferencia o homem do animal não é o tipo ou o número de instintos,
mas o que acontece com estes na vida humana e na vida animal,
43
respectivamente. No homem, muito mais do que no animal, as excitações
instintuais e as funções corpóreas em geral são gradualmente integradas na
pessoa total mediante a elaboração imaginativa. (p. 319, grifos do autor)
A experiência de integração instintual em um bebê difere da de um adulto.
Este alcançou diversas capacidades, como a integração do si-mesmo e a
faculdade de se tornar uma pessoa total (whole person). Assim, as mudanças que
ocorrem ao longo do tempo referem-se ao tipo de integração da experiência e não
ao tipo do instinto.
Ao longo do processo de amadurecimento humano, essas integrações sofrem
transformações produzidas pelas fantasias. Dessa forma, como descreve Winnicott
(1990):
Algumas estruturas de excitação revelam-se dominantes, e a elaboração
imaginativa de qualquer excitação tende a ocorrer nos termos do instinto
dominante. Um fato óbvio: no bebê, é dominante o aparelho responsável
pela ingestão, de modo que o erotismo oral colorido por idéias de natureza
oral é amplamente aceito como característico da primeira fase do
desenvolvimento instintivo. (p. 58).
Na constituição da feminilidade, no início da vida, o papel dos instintos se
restringe à integração das experiências de ingestão e excreção. Ou melhor, os
instintos limitam-se às funções corpóreas elaboradas imaginativamente,
posteriormente parte das fantasias da menina relativas ao que ocorre no interior e no
exterior do seu próprio corpo e no de sua mãe. Fantasias que acompanharão as
mulheres por haver um espaço corporal interior que pode ser engravidado.
No início da vida, a tarefa da psique, por intermédio da elaboração das
funções corpóreas, é tornar o corpo físico um corpo pessoal, vivo. O que significa
“uma tarefa de temporalização e de historiação, isto é, de inserção do indivíduo
numa história ao mesmo tempo pessoal e interpessoal.” (LOPARIC, 2000, p. 23).
44
As tendências à integração pessoal e ao crescimento corpóreo são diferentes:
“A primeira é essencialmente uma questão de experiência e de formação de um si
mesmo espontâneo e pessoal num ambiente facilitador, enquanto a segunda
depende essencialmente da constituição genética (física).” (ibid., p. 5).
O termo soma significa o corpo como um todo orgânico; incluindo as funções
mentais, o termo é psicossomático. Na união com a psique, o corpo vivo – elaborado
psiquicamente é capaz de realizar as tarefas impostas pelo amadurecimento a
partir da aquisição das experiências vividas. Loparic, em seu artigo O animal
humano, acentua a importância do hífen na inter-relação psique-soma, advertindo
que essa relação não ocorre por intermédio do intelecto, pois se trata de uma
parceria psicossomática elaborada pela fantasia.
O termo fantasia recebe conceituações diferentes na psicanálise clássica e na
obra de Winnicott. Para os freudianos, a fantasia ou fantasma consiste em
representação, argumento imaginário, consciente (devaneio), pré-consciente ou
inconsciente, implicando um ou vários personagens, que coloca em cena um desejo,
de forma mais ou menos disfarçada.
Na psicanálise winnicottiana, segundo Laurenttis (2008)
[...] esimplícita a idéia de uma elaboração da própria organização somática, que de
algum modo veicula sentimentos ou idéias associados aos cuidados ambientais e
também à falha ambiental – que, em determinada época da vida, consiste, por
exemplo, no fracasso da mãe em segurar o bebê com segurança, para além de sua
tolerância. Não se aplicaria aqui a idéia de fantasia, a não ser que esse termo se
referisse à própria elaboração de modos de presença no corpo, ou de
esquematização do corpo. (p. 86)
De acordo com Laurenttis, para Winnicott o soma guarda o sentido das
experiências vividas. Dessa forma, quando o cuidado é bom, as partes do corpo do
bebê são integradas e a criança alcança uma imagem unificada de si e do mundo
45
exterior. Esse cuidado, na forma favorável como é exercido, permite que o bebê
integre suas sensações corporais, os estímulos ambientais e as capacidades
motoras que começa a desenvolver.
A fantasia que para Winnicott é anterior à objetividade, em seu estágio inicial
é muito próxima do funcionamento corporal na elaboração das funções de
determinadas partes do corpo. É posteriormente que vai existir como uma
consciência de si mesmo. Ou seja, algumas fantasias são relacionadas com o
funcionamento do corpo como um todo ou com partes do corpo, e outras
relacionadas com a consciência de ser, com o si-mesmo.
O desenvolvimento saudável do ser humano depende de seu crescimento
físico e das transformações ocorridas em seu corpo ao longo do tempo. Entre as
mudanças está a ênfase recebida por partes do corpo em cada período do
amadurecimento, dependendo da importância da parte para o período em questão.
Além da ênfase em determinada área corporal, as fantasias dominantes nos
períodos de clímax também fazem parte de um desenvolvimento sadio. A fantasia
pode ser, uma orgia desenvolvida pela alimentação e amamentação ou um orgasmo
quando a excitação é localizada nos órgãos genitais.
A elaboração imaginativa das funções corporais naturalmente não obedece a
um padrão aplicável a todos os indivíduos. Embora todos passem por esse
processo, a elaboração é realizada de forma pessoal.
A elaboração imaginativa da função deve ser considerada existente em
todos osveis de proximidade do funcionamento físico propriamente dito, e
em todos os graus de distância do orgasmo físico. A palavra inconsciente,
de acordo com um de seus sentidos, refere-se à fantasia quase física,
aquela que es menos ao alcance da consciência. No outro extremo da
escala encontra-se a consciência-de-si (awareness of the self) e da
capacidade pessoal de ter uma experiência funcional ou orgástica.
(WINNICOTT, 1990, p. 69, grifos do autor)
46
A criança precisa vivenciar e integrar uma série de experiências para alcançar
o amadurecimento necessário para utilizar representações. Essas experiências
constituirão a base indispensável para as posteriores fantasias do ser si-mesmo e da
consciência de si, pois, no início da existência, o lactante não possui uma dimensão
representacional ou simbólica.
A integração psique-soma será permitida pela maternagem correta. É
necessário que a mãe se adapte às necessidades do bebê, dê-lhe sustentação e
sobreviva aos seus ataques. Winnicott afirma que a “mãe boa” – aquela que é capaz
de se identificar com as necessidades do bebê ao responder à onipotência infantil
transmite força ao frágil ego da criança e permite a ela elaborar uma imagem de si e
do mundo exterior.
A feminilidade, no início da vida do bebê, vai se constituir a partir da
elaboração imaginativa das funções corpóreas, e o espaço “dentro” do corpo que a
menina tem poderá, em um último nível de complexidade e amadurecimento, gerar
um bebê e contê-lo seguro e saudável até o nascimento.
No livro “Natureza humana”, Winnicott (1990) afirma que o desenvolvimento
feminino e as fantasias próprias da constituição da feminilidade estão enraizados no
período pré-genital, e possuem um diferente modo de apresentação, não reduzidos
apenas a instintos e excitações localizadas nos órgãos genitais. “[...] isto pertence a
um outro modo de apresentação, que tentarei fazer sob o título de posição
depressiva no desenvolvimento emocional.” (p. 65).
A posição depressiva no desenvolvimento emocional representa um estágio
significativo no amadurecimento de meninos e meninas. Tem início no estágio do
concernimento, com conquistas que serão bases de outras, realizadas em estágios
posteriores. As crianças começarão a se relacionar levando em conta seus instintos
47
e identificações, cada vez mais de modo pessoal. Esse processo lhes possibilitará,
no futuro, se preocupar com os relacionamentos com os outros e com elas próprias
em razão das excitações e instintos vividos, assim como das relações de
identificação.
O amadurecimento infantil sofrerá imensa progressão a partir das
experiências vividas nos estágios em que o bebê ainda é sem compaixão
5
para o
momento em que passará a ser um ser compadecido. Esse processo será estudado
em maior profundidade no item posterior, sobre o estágio do concernimento. No
momento, é importante ressaltar que no estágio pré-concernimento a criança vive
experiências fundamentais em relação à integração de algumas de suas funções
corpóreas, como as ligadas à digestão e excreção.
As primeiras experiências de amamentação representam as primeiras tarefas
referentes à integração no tempo e no espaço, à elaboração imaginativa das
funções corpóreas, e ao início do ingresso na realidade compartilhada. Nas fases
oral e anal, com a ingestão e excreção de alimentos, ou seja, com a elaboração
imaginativa das funções digestivas, tem início a diferenciação entre “dentro do
corpo” (interior) e “fora do corpo” (exterior). Elaboração imaginativa que fornecerá ao
bebê a noção do que seincorporado como “próprio” e o que será excretado como
“não próprio”.
[...] quando se trata da experiência uretral ou anal, o bebê em algum
momento se torna capaz de associar a saída dos alimentos a algo que foi
ingerido e já esteve dentro e, portanto, tem uma história. Quando isso
acontece, pode-se dizer que as fantasias podem ocorrer em termos da
incorporação e excreção. (LAURENTTIS, 2008, p. 90).
5 Aproximação do termo ruthlessness em português, apresentada por Loparic em seus textos e
utilizada neste estudo.
48
Para Winnicott, as fantasias contribuem para uma fuga tanto da realidade
interna quanto da externa, e representam um modo de organização da realidade
interna a partir das experiências somáticas vividas.
Como mencionado, a adaptação da mãe às necessidades da criança que
faz dela a “mãe boa” descrita por Winnicott tem como um dos passos iniciais a
alimentação do lactante. Após algumas dificuldades naturais, a dupla mãe-bebê
começa a formar um par afinado um com o outro. A mãe aprende os sinais emitidos
pela criança em relação à troca de fraldas, alimentação, sono e carinho e, graças a
essa sintonia, viabiliza o processo digestivo da criança.
Os cuidados maternos possibilitam ao bebê atravessar com segurança e
sossego os estados tranquilos e excitados, incorporando as suas primeiras
experiências de vida e iniciando as fantasias. Nessas bases, as raízes do
funcionamento feminino e masculino começam a se diferenciar.
A menina, filha da “mãe boa” winnicottiana, poderá fantasiar a posse de
algo bom dentro do próprio corpo, e caminhar em direção a novas conquistas para a
constituição de uma feminilidade saudável. Entre essas conquistas está a
identificação com a mãe e com as outras mulheres.
A constituição da feminilidade permite à mulher experimentar ser si-mesma e
deixar que o outro seja si-mesmo por intermédio de seus cuidados, pois é capaz de
se identificar e de cuidar de outras pessoas revivendo, sem angústia, a situação
infantil de dependência absoluta.
As raízes da fantasia e do funcionamento feminino em mulheres têm origem
em um período anterior ao genital, ainda nas fases oral e anal, como veremos no
próximo segmento.
49
1.3.2 As fases oral e anal
Winnicott afasta-se dos conceitos da ortodoxia freudiana sobre as fases oral e
anal. Para ele, ambos os estágios ocorrem na fase de dependência absoluta,
quando não ocorre a relação de objeto. Para o autor as fases oral e anal são pré-
genitais e não devem ser relacionadas aos instintos genitais. Nesse momento,
acentua, a prioridade está focada na ingestão e na digestão. Como explica Loparic
(2005):
Vejamos, para começar, como Winnicott muda a concepção tradicional das
fases oral e anal. No início da vida, o tipo instintual dominante é oral visto
que as excitações do processo digestivo, mesmo não totalmente integrado,
predominam sobre todas as outras e a elaboração imaginativa organiza
todas as excitações do bebê em torno do “erotismo oral”, colorido
(acrescenta Winnicott) de idéias, isto é, de fantasias também de tipo oral.
(p. 320, grifos e parênteses do autor).
Na teoria winnicottiana, o erotismo oral caracteriza a primeira fase do
desenvolvimento instintivo, na qual o aparelho responsável pela ingestão constitui a
região primordial de excitação. As excitações genitais localizadas também ocorrem
no bebê, mas ele ainda não tem condições de experimentá-las como tais:
Para Winnicott, nesta primeira fase o bebê ainda não tem que se preocupar
com as diferenças sexuais. Nessa fase inicial, a única zona de excitação
predominante é a oral. O bebê se encontra entregue aos ataques
instintuais, experienciando todos os tipos de excitação e, como é imaturo,
não tem como discerni-las porque ainda não pode ter uma fantasia de
natureza genital. (DIAS, 2005, p. 246).
Outra distinção clara estabelecida por Winnicott sobre esta fase diz respeito
às experiências sádicas orais. Para ele, essas experiências não têm relação com
inveja, pois fazem parte da necessidade do bebê de integrar as regiões corporais
50
como a boca. Assim, os ataques ao seio materno não são intencionais ou
direcionados a uma pessoa ou a um objeto. Posteriormente, a agressividade poderá
ser direcionada e relacionada a fantasias, após a diferenciação do “eu” do “não eu”.
No processo de amadurecimento humano as experiências da fase oral e da
elaboração imaginativa das funções digestivas adquirem importância fundamental,
pois constituirão a base da saúde do ser humano, independentemente de gênero.
Mas, ao estudarmos a feminilidade, um dado secundário ganha relevância: a
implantação de um “dentro” e de um “fora” do corpo, responsável pelo despontar da
fantasia da existência, no interior do corpo das meninas, de um espaço futuramente
passível de conter um bebê.
Os meninos igualmente irão elaborar imaginativamente os espaços interno e
externo do próprio corpo, mas, como vimos, as fantasias posteriores, incluindo a
vida adulta, não decorrem da possibilidade de identificação com a e de tal modo
que possam se sentir capazes de engravidar.
[...] um evento observado frequentemente entre os cinco e seis meses – e a
atribuição de sua aquisição parte ao desenvolvimento físico do bebê e parte
a seu desenvolvimento emocional: a capacidade de agarrar um objeto e
levá-lo à boca. Segundo Winnicott: “nesse estágio, o bebê é capaz de
mostrar, através de seu brincar, que ele compreende que tem um interior e
que as coisas vêm do exterior”
6
. Por meio dessa afirmação simples [...] Fica
claro que não se trata de uma compreensão mental ou intelectual. Mediante
seu gesto, o bebê demonstra que já elaborou imaginativamente – termo que
ainda não é utilizado a existência de um fora e de um dentro, tendo
incorporado essas realidades em seu esquema corporal e no mundo como
se relaciona pessoalmente com as coisas. (LAURENTTIS, 2008, p. 101).
Depois de agarrar o objeto, o bebê pode lançá-lo longe, demonstrando
capacidade de se livrar de coisas utilizadas. O poder de se livrar de coisas
6
Winnicott, 1945a, p. 221, apud Laurenttis, 2008, p. 101
51
usadas está diretamente relacionado ao estágio anal, com a possibilidade de
excreção pós-digestão.
O estágio anal é variável para Winnicott: pode estar relacionado à experiência
erótica de um momento de excitação associado à defecação, ou à experiência de
controle do material fecal, ou, ainda, a um deslocamento do erotismo oral para a
área anal.
A fase anal, mesmo sendo variável e, consequentemente, diferenciada das
fases oral e genital, é um subproduto da experiência oral e não apenas um estágio
do desenvolvimento instintual. De acordo com Winnicott (1990) é algo que possui
uma pré-história:
A experiência anal, assim como a uretral, é dominada pela excreção de
alguma ‘coisa’. Essa ‘coisa’ tem uma pré-história. Ela já esteve dentro, e era
originalmente um subproduto da experiência oral. Por isso, as experiências
anal e uretral implicam muito mais que apenas um estágio no crescimento
do id, e tanto é assim que não é possível classificá-las e datá-las com
precisão. Apesar disso, é verdade que no interior do que se chama de etapa
pré-genital no crescimento do id, o aspecto denominado oral precede os
vários aspectos denominados anais (e uretrais). (p. 60, parênteses do autor)
O subproduto da fase oral, para Winnicott, não é o deslocamento do erotismo
oral para o anal, e sim, na fase do concernimento, um produto possível de ser dado
à mãe como presente, quando o bebê se dá conta dos ataques dirigidos a ela. Até
este momento, as excitações sentidas pelo bebê permitem que ele viva o processo
de personalização e, com o tempo, essas excitações serão vividas como
experiências pessoais.
Algumas das excitações são localizadas na região genital, o que permite à
criança ter consciência desses órgãos nos meninos as excitações penianas, nas
meninas as clitorianas. Tais excitações, no entanto, não são elaboradas
imaginativamente, pois as identidades masculina e feminina dependem da existência
52
do si mesmo, da transformação da criança em whole person. Neste período, as
raízes das fantasias constituintes da feminilidade estão fincadas principalmente na
elaboração imaginativa dos processos de ingestão e excreção. É a partir da vivência
desses processos que a criança passará, em um período próximo, de um ser
incompadecido para um ser concernido.
No caso do desenvolvimento da masculinidade dos homens, a elaboração
imaginativa da função digestiva, responsável pela experiência de ter um espaço
interno, não produz fantasias relacionadas com o interior do próprio corpo, como
ocorre no desenvolvimento da feminilidade.
Na linhagem feminina, a preocupação com o outro, surgida no estágio do
concernimento, estará presente de forma permanente, tanto no corpo da mulher,
quanto em suas posteriores fantasias sobre o interior do seu próprio corpo e o
interior do corpo de sua mãe.
O início do desenvolvimento infantil exige um ambiente totalmente adaptado
ao bebê, não importa à qual gênero pertença. Esta diferenciação, irrelevante nesse
período, tem início no estágio do concernimento, com as integrações relacionadas à
tarefa de personalização e à passagem do estado de ruthlessness ou sem
compaixão para o estado de ser concernido.
As raízes do funcionamento feminino, porém, são de origem pré-genital e
nascem com a elaboração imaginativa das funções digestivas e excretoras,
relacionadas com o locus corporal interno capaz de conter, no futuro, outro ser.
O instinto sexual liga-se durante a infância, de um modo sumamente
complexo, com a participação de todos os seus componentes, e existe
como algo que enriquece e complica a vida inteira da criança sadia. Muitos
dos medos infantis estão associados a idéias e excitações sexuais e aos
conseqüentes conflitos mentais, conscientes e inconscientes. As
dificuldades da vida sexual da criança explicam muitas perturbações
psicossomáticas, em especial as de um tipo recorrente. (WINNICOTT, 1977,
p. 181)
53
Nas meninas, a experiência da digestão, quando ocorre de forma saudável,
permite a existência, no próximo estágio, de fantasias de que seu corpo é tão rico
quanto o do menino. A ausência do pênis será apenas parte de uma fase que
possibilitará a identificação da menina com o sexo oposto, mas, de modo geral, uma
identificação maior com as outras mulheres.
Para a menina, a ausência do pênis não constitui um problema, pois, em
contraposição, ela possui seios, vagina e um espaço corporal interno que pode até
ser invejado pelos meninos, pois poderá conter um bebê. Ou seja, a elaboração
imaginativa do corpo feminino, quando ocorre de forma saudável, oferece à menina
condições de elaborar boas fantasias a respeito de seu próprio corpo e do corpo das
outras mulheres. Essa forma saudável depende do processo digestivo, que precisa
ser realizado de maneira correta, respeitando as necessidades da criança. Assim,
ela não sofrerá dificuldades corporais que prejudiquem a integração de seu corpo e
a possibilidade de senti-lo em sua inteireza.
54
CAPÍTULO 2 FEMINILIDADE NOS ESTÁGIOS DO CONCERNIMENTO,
EXIBICIONISMO E EDÍPICO
2.1 BREVE INTRODUÇÃO AOS TRÊS ESTÁGIOS
No estágio do concernimento as crianças deixam de ser incompadecidas
(ruthless) e passam a se relacionar como pessoas inteiras (whole person). Os
impulsos que eram externos ao bebê passam a ser integrados: “Este é o momento
em que os instintos que até então eram externos à pessoa do bebê passam a ser
integrados em sua personalidade, a ter sentido e a serem avaliados em suas
conseqüências.” (DIAS, 1998, p. 320).
Se no início o bebê depende de uma mãe-ambiente, que lhe dará afeto e de
uma mãe-objeto, que será o alvo da experiência excitada do bebê e, portanto, de
agressões. Nesse estágio, o bebê pode se relacionar com a mãe como uma
pessoa total.
É importante postular a existência para a criança imatura de duas mães
deverei chamar-lhes a “mãe-objeto” e a “mãe-ambiente”? [...] parece
possível usar essas palavras, [...] no presente contexto, a fim de descrever a
grande diferença que existe para o beentre dois aspectos dos cuidados
com a criança: a mãe [...] que pode satisfazer as necessidades urgentes do
bebê, e a mãe como a pessoa que afasta o imprevisível e cuida ativamente
da criança (WINNICOTT, 1987, p. 107).
Ao reunir as “duas mães”, o bebê começa a estar concernido consigo e com
os outros, passa a ser compadecido, sabe que seus ataques machucam. Mas em
seguida, pode ter um gesto reparador que, se aceito pela mãe, apaziguará os
instintos excitados do bebê e a possível elaboração destes.
55
A mãe se torna menos necessária a cada momento e o bebê se torna capaz
de assumir a função de alguém que pode sustentar a situação para outra pessoa,
sem ressentimentos. Isso marca o surgimento do mundo interno do bebê, que passa
a assumi-lo como próprio, ou seja, descobre o que é de sua total responsabilidade.
Mas para que tudo isso ocorra e que o bebê possa ser agressivo e destrutivo,
a mãe deve sustentar a situação de manter o ambiente seguro e confiável, ou seja,
comprovando que pode ser atacado, assim como ela mesma será um objeto que o
bebê utilizará e atacará e depois ele irá reparar o objeto e ressuscitar o que foi
danificado: “A resolução desta crucial dificuldade que consiste em aceitar que a
destrutividade é pessoal e convive com o amor, depende do desenvolvimento, na
criança, da capacidade de fazer reparações [...]” (DIAS, 2003, p. 261)
Vai se fundamentando a moralidade pessoal do bebê: ela não é ensinada, vai
surgindo naturalmente conforme ele se torna concernido com a mãe e com os
outros:
Na teoria winnicottiana, é assim que se constitui o fundamento de uma
moralidade pessoal, que não é imposta de fora nem ensinada, que não é
simplesmente intelectual e aprendida, mas que emerge [...] da
confiabilidade ambiental. É essa experiência que, dando sustentação ao
crescimento pessoal, leva à consciência da existência do outro
7
(ibid., p.
264).
E também é nesse estágio que a diferença entre ser um bebê do sexo
masculino e ser um bebê do sexo feminino começa a se mostrar significativa. É a
fase do exibicionismo, para Winnicott (ou lica, para Freud), na qual o órgão genital
masculino fica evidenciado e demonstra que os meninos têm algo que as meninas
não têm. Mais tarde, a diferença seque o menino pode penetrar e a menina pode
ser penetrada e ficar grávida.
7
A autora explicita que é nesse período que pode surgir a tendência anti-social, que será
apresentada posteriormente neste trabalho.
56
Nesse estágio os instintos passam a ser sentidos como parte da criança, o
são mais forças desconhecidas que precisam ser aplacadas para que a criança não
se desorganize, ou caia no vazio, entre em contato com alguma angústia
impensável. Os estados excitados e tranquilos também podem ser vividos como
parte da mesma pessoa, a criança. O reconhecimento da e como pessoa, como
aquela que cuida do “eu”, também se inicia nesse período.
A criança começa a se preocupar com os efeitos de seus atos na pessoa da
mãe, com o que pode fazer no corpo da mãe devido seus instintos e também
preocupações em relação às mudanças que acontecem em si mesmo, decorrentes
da experiência de excitação e de experiências motivadas por raiva ou ódio. É um
período de ansiedades complexas para as crianças.
Winnicott (1990) descreve o crescimento que ocorre entre o estado de
ruthlesness/incompadecido, até a criança atingir o estágio de concern/
concernimento, “da dependência do EU para o relacionamento do EU; da pré-
ambivalência à ambivalência, da dissociação primária entre os estados de
tranqüilidade e excitação à integração destes dois aspectos do self”. (p. 89, grifos do
autor).
A criança, nesse estágio, ainda não consegue suportar a culpa e o medo que
aparecem quando o reconhecimento de que a mesma mãe que cuida é a que é
atacada e agredida por ela. O que torna essa culpa e medo suportáveis é o
desenvolvimento da capacidade de fazer reparações.
A mãe sustenta a situação ao longo do tempo, condição para que o bebê
organize as consequências imaginativas dos ataques vividos, ele resgata algo de
“bom” na experiência instintiva, suas ações agressivas não destroem a mãe, assim
ele repara imaginativamente o dano causado a ela.
57
O bebê começa a separar o que é bom e o que é mau no interior do si-
mesmo, surge um mundo interno complexo, o que é mau é retido por um período
para ser utilizado em expressões de raiva e o que é bom serve para o
amadurecimento pessoal e para fazer reparações.
O pai, nesse período, tem o papel de cuidar da mãe para que o bebê possa
viver seu amor excitado sem se preocupar excessivamente com a mãe.
Gradualmente o bebê passa a suportar sentimentos de culpa do reconhecimento do
que pode causar na mãe quando nos estados excitados.
O bebê torna-se capaz de sentir tristeza por ter esses sentimentos de culpa e
carregá-los até que a elaboração imaginativa produza material para coisas
construtivas, no relacionamento, no brincar, no trabalho. O bebê tem a possibilidade
então, de diferenciar o que é bom e o que é mau no interior do si-mesmo.
Depois da amamentação, período de excitação para o bebê, pode ocorrer
durante a digestão um gesto concreto como um sorriso ou apenas um período de
contemplação que são reparadores. Os instintos são integrados pelo bebê, ele pode
aguardar a próxima mamada com ansiedade e medo suportáveis.
A organização das experiências instintivas, da destrutividade existente nelas,
da capacidade de fazer reparação e o reconhecimento dos fatores agressivos e
destrutivos no amor instintivo formam o círculo benigno, fundamental para a
continuação do processo de amadurecimento que não ocorre apenas por
introjeções, mas por incorporação de objetos e pelas experiências instintivas
propriamente ditas.
O mundo interno do bebê e das pessoas saudáveis de qualquer idade é
constituído não apenas por introjeções, o que, como explica Winnicott em “Natureza
Humana”, modifica a compreensão acerca da natureza humana.
58
O mundo interno é constituído por três elementos: pelas experiências
instintivas propriamente ditas, satisfatórias ou insatisfatórias; por objetos
incorporados, no amor-bons, no ódio-maus e por objetos ou experiências
interiorizadas magicamente, para controle-mau potencial, para usar como
enriquecimento ou controle-bom potencial. Depois de adquirida a capacidade de
estar concernida, a criança saudável poderá iniciar as tarefas do próximo estágio
sem grandes dificuldades.
O estágio seguinte, do exibicionismo, é marcado pelo início da diferenciação
entre as meninas e os meninos. Os órgãos genitais masculinos e femininos
começam a ter maior importância na vida das crianças. Tal estágio ocorre durante a
elaboração do estágio do concernimento.
Em algum momento durante a elaboração do estágio do concernimento,
provavelmente por volta dos dois anos a criança inicia o que Winnicott
nomeia fase exibicionista ou de ostentação, a mesma que Freud denominou
de fase fálica. Este é o momento, em termos do processo de
amadurecimento – e do desenvolvimento da identidade de gênero e da
sexualidade como aspectos desse processo –, em que a distinção entre
meninos e meninas começa a ter significado. O traço central da fase
exibicionista, ou fálica, relaciona-se com a qualidade que o órgão masculino
tem de ser óbvio, ao contrário da qualidade do órgão feminino de ser
escondido. O genital masculino é, portanto, central e vistoso, com suas
ereções e sensibilizações periódicas, enquanto o genital feminino “é um
fenômeno negativo”. (DIAS, 2003, p. 269)
O outro estágio a ser brevemente trazido para este estudo é o edípico,
bastante explorado por Freud. Winnicott acrescenta à prévia explicação freudiana a
descoberta de que a vida de um bebê conta com muitas experiências importantes
em seu amadurecimento e para o estudo psicanalítico antes dos acontecimentos do
estágio edípico.
Firmemente estruturada como uma unidade e tendo-se tornado uma pessoa
total, pela integração dos instintos e da responsabilidade acerca dos
59
resultados da vida instintual, pode-se dizer que a criança [...] tem agora
saúde suficiente para enfrentar e até para sucumbir às dificuldades que
são inerentes à administração da instintualidade no quadro das relações
triangulares (DIAS, 1998, p. 180)
Neste momento, a criança começa a ter dificuldades que não podem ser
resolvidas ou prevenidas pelos cuidados adequados da mãe, e consegue usar
símbolos e brincar.
Como explica Dias (1998), aparecem os instintos e as excitações corporais. A
criança terá atração pelo pai, quando menina, ou pela mãe, quando menino; com
tensões a respeito da figura parental do mesmo sexo, em função da ambivalência
ou seja, do amor e do ódio coexistindo.
Os conflitos entre amor e ódio, preservar e destruir, entre outros, permanecem
na vida da criança por algum tempo e ela pode ir elaborando-os através de
impulsos, gestos, sonhos e ideias. “A questão central, na situação edípica redescrita
por Winnicott, não é apenas a ameaça de castração, mas, pela instauração da
rivalidade, uma legitimação da potência da criança” (DIAS, 2003, p. 289).
Para a menina, acontecem muitas experiências, desde a primeira relação com
a mãe e sentimentos por ela despertados até poder se identificar com ela como
mulher: “A genitalidade feminina não pode ser definida apenas em termos negativos:
a mulher não é um macho castrado. Ela é fruto da identificação com a mãe e com a
linhagem das mulheres” (ibid, p. 185).
Segundo Winnicott a linhagem das mulheres consiste no fato de que em cada
uma sempre três: a bebê, a noiva e a mulher idosa: “quando a mãe cuida da
bebezinha, ela o faz segundo os cuidados que recebeu, ou seja, com a mão da sua
própria mãe, de modo que algo da avó passa a fazer parte da menina” (ibid., p. 282)
60
A genitalidade masculina se desenvolve de outra maneira. O homem é uno,
não na linhagem masculina três, apenas um. Os meninos na fase fálica estão
“completos”, não dependem das meninas, pois ainda nem querem engravidá-las;
mas na fase genital, eles dependem da fêmea para se completar e depois para
poderem realizar suas fantasias de penetrar na puberdade.
Para ambos, meninos e meninas, as fantasias genitais ocorrem quando a
criança não depende mais totalmente da mãe e está crescendo em direção à
independência relativa. Entretanto, para que isto ocorra, as crianças devem ter tido
um ambiente confiável, que lhes tenha proporcionado anteriormente experiências de
fantasias pré-genitais e licas. Então, inicia-se a adolescência.
Sendo a base de relação entre as pessoas uma relação dual, o início da
relação triangular se dará de forma tranquila se a menina puder estabelecer um novo
tipo de relação com o pai sem se sentir desleal com a mãe, e o menino sem se sentir
desleal com o pai. Cada um desenvolvendo suas potencialidades, inclusive futuras,
de ficar grávida ou engravidar.
Winnicott não contesta a fase edípica descrita por Freud, mas a apresenta
como posterior às outras em que a criança realiza uma série de tarefas e o ambiente
precisa realizar uma série de adaptações até que a criança seja uma pessoa total.
Complexo de Édipo refere-se a uma fase em que três pessoas totais e inteiras, a
mãe, o pai e a criança.
Não posso ver nenhum valor na utilização do termo “Complexo de
Édipo” quando um ou mais de um dos três que formam o triângulo é
um objeto parcial. No Complexo de Édipo, ao menos do meu ponto
de vista, cada um dos componentes do triângulo é uma pessoa total,
não apenas para o observador, mas especialmente para a própria
criança. (WINNICOTT, 1990, p. 67)
61
2.2 A FEMINILIDADE NO ESTÁGIO DO CONCERNIMENTO
A organização e manutenção de todas as experiências vividas no estágio do
concernimento formam uma espécie de padrão do interior do mundo interno, o bebê
é capaz de reter ou se livrar de produtos e subprodutos de suas experiências. Tais
padrões são diferentes em meninos e meninas, pois a elaboração imaginativa do
“espaço interno de dentro do corpo” da menina é diferente da do menino.
Na saúde qualquer bebê independentemente de ser macho ou fêmea precisa
viver o círculo benigno, a experiência de reconhecimento do amor instintivo e suas
consequências, a posição depressiva no desenvolvimento emocional.
Gradualmente vai ocorrendo uma integração entre a forma tranqüila de
relacionamento e a forma excitada, e o reconhecimento de que ambos os
estados (e não apenas um) constituem uma relação total com a mãe-
pessoa. É a isto que se denomina “A Posição Depressiva no
Desenvolvimento Emocional”, um estágio importante que envolve o bebê
em sentimentos de culpa, levando-o a preocupar-se com os
relacionamentos, em razão de seus componentes instintivos ou excitados.
(WINNICOTT, 1990, p. 89)
As meninas precisam elaborar as fantasias e impulsos dos estados excitados
e inicia-se a identificação com a mãe, com o que dentro do corpo da mãe e um
dia haverá dentro do corpo dela. Os meninos identificam-se com o que de bom
no corpo da mãe e no corpo deles, mas não terão um espaço que poderá gerar um
bebê dentro deles como as meninas. A compreensão da sexualidade feminina
depende mais do que ocorre nesse período do processo de amadurecimento, do
que a masculina. “[...] uma boa descrição de sexualidade feminina necessita de um
conhecimento prévio da fantasia que a menina desenvolve a respeito do interior do
62
seu próprio corpo e do da mãe, e isto pertence a um outro modo de apresentação”
(WINNICOTT, 1990, p. 65)
As meninas desde esse período terão que lidar com as fantasias acerca do
próprio corpo e do corpo da e, do que dentro de seu corpo e do da mãe. Além
da integração das experiências de excitação da vagina, a menina terá que lidar com
o amor e o ódio que tem pela mãe, com a capacidade de fazer estragos no corpo da
mãe e de fazer reparações.
Os instintos são experienciados e integrados de forma pessoal facilitados pela
mãe. De qualquer maneira, mesmo ela sendo uma boa mãe que se adapta às
necessidades de seu/sua filho/filha, as crianças começam a viver situações de raiva
e frustração.
As excitações iniciais são acompanhadas de ideias destrutivas e de raiva, e
tanto a criança quanto a mãe podem auxiliar para que tais experiências sejam
toleráveis e não se tornem demasiado sofridas para a criança. Isto pode ocorrer, por
exemplo, quando a criança recusa certos alimentos, quando a mãe deixa que outros
alimentem seu filho, ou qualquer outra circunstância que abafem, por assim dizer a
enorme quantia de excitação que ocorre na vida instintiva da criança e com ela
sentimentos de raiva e agressividade.
É simples notar quando os meninos ficam excitados do que quando as
meninas, pela aparência do órgão genital masculino, se inicia uma
diferenciação necessária na identificação da mãe com a filha menina, para poder
saber quando a menina fica excitada e com raiva. A mãe poderá então auxiliá-la na
facilitação, em diminuir tais excitações e raiva.
É mais fácil para a mãe observar a excitação do menino e auxiliá-lo nos
sentimentos decorrentes do que nas meninas. A facilitação dessa experiência para a
63
menina o é decorrente da observação da excitação, logo a menina neste período
depende de que a mãe esteja numa espécie de identificação muito acurada para
compreender o que se passa com sua filha.
A facilitação e diminuição de experiências excitadas nas crianças apenas
servem quando tais experiências são vividas com demasiada força e chegam
próximas de um limite intolerável. É fundamental que não sejam impostos valores
morais dos adultos nessa fase, como se isso fosse o equivalente a educar a criança.
Os instintos das crianças ainda precisam ser integrados e o podem ser se
existirem em momentos de excitação instintual. Não nada que a criança possa
fazer para não demonstrar sua excitação; à mãe não cabe doutrinar ou moralizar tais
acontecimentos, mas sim auxiliar para que possam ser vividos e tais experiências
sejam integradas à criança.
A mãe que apenas observa e facilita a integração dos instintos e das
experiências vividas, como a alimentação, a excreção, a excitação, sem querer
impor regras baseadas em seus valores morais, verifica que com o passar do tempo
e o amadurecimento da criança, ela começa a rejeitar alimentos que se assemelhem
às fezes.
A própria criança passa a ter sensação de repugnância em relação a certos
alimentos. Assim se inicia a diferenciação entre o que é bom e mal a partir do que é
experienciado como pessoal ou não, como integrado ou não. Isso sea base para
que a menina possa um dia sentir que ficar excitada, por exemplo, é bom ou não,
ficar menstruada, poder engravidar, alimentar-se, e poder ser o alimento de outra
pessoa, na amamentação.
Todas as experiências citadas podem ser vividas como boas ou más
dependendo de como a integração dos instintos, da excitação, da raiva, foram
64
acontecendo no processo de amadurecimento. A elaboração imaginativa das
funções corpóreas e as fantasias que acompanham a criança iniciam o
desenvolvimento da feminilidade, a partir da possibilidade de mãe se identificar
coma menina desde os primórdios de sua existência, para auxiliá-la na integração da
experiência de ter um corpo de mulher.
Isso não ocorre com os meninos, assim como o fato de que a menina ao
reconhecer que a mãe ambiente é a mesma que a mãe objeto e que ela é a mesma
pessoa em estados excitados e estados tranquilos, ela tem que lidar com a
ambivalência dos sentimentos em relação à mãe acrescentando os sentimentos e
fantasias decorrentes do apaixonamento pelo pai.
Para a menina aqui se fundamenta a relação que mais tarde será de
apaixonamento pelo pai, mas isso ocorre se a mãe possibilita que essa relação
se inicie entre o pai e a filha e se o pai consegue manter uma relação pessoal com a
filha.
Nos meninos o que ocorre é que a relação interpessoal com o pai, além de
proteger a mãe e liberar a criança para o amor instintivo, lhes dá condição de
identificação com o pai como homem, aquele que tem o poder e a potência que mais
tarde serão deles.
Nas meninas a relação com o pai também ocorre por uma identificação com o
homem que tem o pênis, através do delírio comum, nessa fase de que tem ou
tiveram um pênis, mas com o tempo a negação da diferença deixa de existir e as
diferenças entre meninos e meninas passam a ser experienciadas por ambos, no
início do desenvolvimento da masculinidade ou da feminilidade.
É nesse período que se fundamenta a elaboração imaginativa das funções
corporais das excitações ocorridas no genital feminino nas meninas e do início da
65
organização de um mundo interno que inclui a fantasia do que dentro de seu
corpo.
A fantasia inicial de que o que dentro do corpo é algo bom, de que ter o
corpo de menina é uma boa experiência, possibilitará que um dia, no futuro essa
menina tenha condição de gerar um bebê, sem sentir demasiada ansiedade
decorrente da fantasia de que não pode gerar algo bom, de que de dentro de si não
há “coisas” boas.
É interessante notar que nesse período surge o início de identificação da
menina com a mãe, que dará condição de a menina quando crescer ser uma mulher
que possa, entre outros acontecimentos, experienciar ser aquela que amamenta.
A mãe que suporta os ataques agressivos do bebê sem retaliação facilitando
para que a criança seja ela mesma, possibilita que um dia a menina também venha
a suportar a força dos ataques agressivos que existem durante a amamentação e a
irritação do bebê ocorrida no período de desmame.
A capacidade de se preocupar com o outro surge nesse momento, não de
forma mágica, precisa ser facilitada pelo ambiente e vivida como uma experiência
pessoal da criança. Nesse estágio o bebê inicia a integração da vida instintiva e os
impulsos agressivos e eróticos passam a ser dirigidos ao mesmo objeto, ao mesmo
tempo.
Como explica Garcia (2009), isto ocorre quando o bebê, “desenvolveu a
capacidade de combinar, em relação a um único objeto, a experiência erótica com a
agressiva, o que significa que ele conquistou a capacidade para ambivalência.”
(p. 87).
dois momentos que podem ser diferenciados de acordo com o
amadurecimento do bebê ou da criança, que ocorrem no estágio do concernimento.
66
No primeiro momento o pai ainda não existe como terceiro, ou seja, quando ocorre
nas experiências na relação entre mãe e bebê. No segundo momento o pai passa a
existir como terceiro, não mais como facilitador nas tarefas da mãe, mas como
aquele que colocará limites e que protege a mãe dos impulsos destrutivos da
criança. Isso auxilia a criança a viver tais impulsos sem que as fantasias de
destruição de um dos pais seja demasiada assustadora.
Nesse estágio a mãe existe para o bebê, como uma pessoa externa a ele,
fora de sua ilusão de onipotência, o que favorece que ele se dê conta de ter uma
membrana limitadora, alcançando maior coesão psicossomática.
[...] de modo que o lactente vem a ter um interior e um exterior, e um
esquema corporal. Deste modo começam a ter sentido as funções de
entrada e saída, além disso, se torna gradualmente significativo pressupor
uma realidade psíquica interna ou pessoal para o lactente. (WINNICOTT,
1983, p. 45)
Garcia (2009) aponta que a identidade unitária fortalecida pelo sentimento de
viver dentro do corpo possibilita que o bebê reconheça um eu na mãe, ou seja, ele a
reconhece como uma pessoa, e na saúde, uma pessoa que tem valor para ele. Ele
também se dá conta de que a mãe que cuida dele nos estados tranquilos é a mesma
que suporta que ele a use nos estados excitados: é dela que ele depende, quem
cuida dele, e ela é também objeto de seu amor instintivo.
Para o bebê humano é muito difícil aceitar este fato, pois nesse momento
ainda o por parte dele uma discriminação clara entre as suas
intenções e o que de fato ocorre – esta discriminação está começando a ser
constituída pois as funções e as elaborações imaginativas das funções
“ainda não são muito claramente distinguidas em termos de fato e fantasia”
(p. 89)
67
O bebê gradativamente passa de um estado de incompadecimento para um
estado de preocupação consigo e com o outro; começa a se preocupar com as
consequências de seus ataques ao corpo da mãe.
A autora também explica que seguindo a analogia proposta por Winnicott
entre o que ocorre no mundo interno do bebê e o processo digestivo, nessa fase,
temos:
O bebê mama e o leite ingerido é sentido como bom ou mau dependendo
da experiência instintual ter sido satisfatória ou insatisfatória; ela será
insatisfatória, por exemplo, se tiver sido perturbada por um excesso de raiva
devido à frustração. Aqui cabe ressaltar que, embora uma mamada possa
ser plenamente satisfatória, do ponto de vista do ego, portanto incorporada
como um bom objeto, pois a mãe pode manter-se em pleno contato com o
bebê e comunicar-se com ele durante toda a experiência, ela será sempre
um pouco insatisfatória do ponto de vista instintual ou motor, “por causa das
exigências infantis onipotentes”
8
(1988, p.106). Mas, se a mamada foi
insatisfatória do ponto de vista das necessidades do ego o objeto será
incorporado como mau.(GARCIA,2009, p. 90).
Seguindo a explicação de Garcia sobre a analogia, feita por Winnicott, entre o
processo digestivo e as primeiras organizações de mundo interno do bebê, em
decorrência de como acontece a mamada, e da sustentação da mãe no tempo e no
espaço para que o bebê possa fazer a digestão, o bebê pode separar o que é bom e
o que é mau, ou seja, o que apóia o ego ou o que lhe é persecutório.
Tal separação ocorre inicialmente no mundo interno, o que é bom pode ser
conservado para ser utilizado no crescimento pessoal e para fazer a reparação onde
imaginativamente o bebê fez estragos, por exemplo, no corpo da mãe, e o que é
mau pode ser retido para depois ser utilizado em expressões de raiva.
Os estragos e reparações são feitos pelo bebê e pela criança, repetidas
vezes. A mãe sustenta esta situação, sem retaliar o bebê ou a criança pelos estragos
8
WINNICOTT, 1988, p. 106, apud GARCIA, 2009, p. 90.
68
feitos. Assim a cada experiência dessa o círculo benigno se estabelece e a criança
tem menos medo do que pode acontecer em decorrência de seu amor instintivo.
Dessa maneira, passa a crer no seu empenho construtivo, e começa a
suportar os resultados de seu amor instintivo, desenvolvendo a capacidade
para um sentimento de culpa verdadeiro. Este surge a partir da integração
que a criança faz da mãe-objeto com a mãe-ambiente, do amor tranquilo
com o amor excitado e do amor com o ódio e se torna uma fonte saudável
de atividade nos relacionamentos, sendo uma das fontes da potência e da
construtividade sociais. [...] No entanto, essa culpa é silenciosa, não
consciente, potencial e é anulada pelas atividades construtivas, surgindo
como tristeza ou estado de ânimo deprimido quando, por algum motivo, a
oportunidade de reparação não aparecer. (ibid., p. 91)
Conforme é integrado o sentimento de culpa, conquista feita a partir da
constituição do círculo benigno, ele se transforma em senso de responsabilidade. As
relações interpessoais dos que alcançam essa capacidade de se responsabilizar
incluem aceitar sua destrutividade pessoal e sua condição de fazer reparação. Isto
faz com que seja desnecessário o uso da projeção como forma de lidar com a
própria agressividade ou destrutividade.
Na relação com o outro, as sensações e impulsos vão sendo integrados e
enriquecidos pelas fantasias, relacionadas a si mesmo e às outras pessoas. Daí
poderá acontecer a experiência de amor verdadeiro,
A tolerância da criança para com seus próprios impulsos destrutivos,
tolerância constituída pela sobrevivência da mãe, resulta na capacidade de
desfrutar das idéias (mesmo as destrutivas) e das excitações corporais que
lhe são correspondentes. Tal desenvolvimento espaço “para a
experiência de concernimento que é em última análise, a base de tudo
aquilo que for construtivo”
9
. Sem a destrutividade, diz Winnicott, não há
amor verdadeiro. (DIAS, 2003, p. 264)
9
WINNICOTT, 1984c, p. 68, apud DIAS, 2003, p. 264.
69
Essa experiência dá condição à pessoa para viver as identificações cruzadas,
de se colocar no lugar do outro. O pai começa a ter um papel diferente de ser
extensão dos cuidados dados pela mãe. Ele se apresenta agora como uma pessoa
que tem condição de ser duro, implacável. Torna-se significativo o fato de o pai ser
um homem, que pode ser temido, amado, respeitado.
Nesse momento o pai aparece como terceiro na relação, e não a criança. Por
isto, a importância, de como o pai e a mãe se apresentam tanto como casal como
sendo pessoas diferentes para a criança, a qual poderá iniciar uma relação pessoal
com cada um dos pais.
‘A tarefa do pai, neste estágio, é proporcionar à criança um ambiente
familiar que seja indestrutível em certos aspectos essenciais para que ela
possa integrar seus impulsos destrutivos com os amorosos e encontrar
meios de proteger, de si mesma, pessoas e objetos valorizados’
10
. O
ambiente indestrutível que o pai ajuda a criar e manter está relacionado com
a sua aceitação da destrutividade da criança, no sentido de limitá-la ou
mesmo impedi-la, se necessário, e isto é feito sem retaliações. Dessa
maneira o pai reconhece a potência da criança e lhe permite ser capaz de,
no estágio edípico, odiá-lo e rivalizar com ele. Se o pai é fraco ou ausente, a
criança perde a capacidade para o amor excitado, inibição do impulso e
pode se estabelecer um permanente medo de que, a qualquer momento,
algum aspecto da destrutividade fuja ao controle. (GARCIA, 2009, p. 94).
Mais tarde na fase do exibicionismo, no segundo momento do estágio do
concernimento, é que a criança se como o vértice do triângulo, ela sendo a
terceira, fato que não é traumático se ela pode lidar com a raiva que ocorre ao saber
disso e utilizá-la para masturbação e as fantasias que a acompanham.
A diferença de gênero passa a ser importante no processo de
amadurecimento de cada um, não apenas como início da sexualidade relacionada
às excitações penianas e clitorianas, mas também como a apropriação do que
10
WINNICOTT, 1986e, p. 85, apud GARCIA, 2009, p. 94
70
dentro de si, aspectos bons e maus, construtivos e destrutivos e as fantasias
relacionadas a esse aspectos.
Tanto a ereção fálica quanto a excitação do clitóris começam a ter
importância própria. Até então estas excitações podiam ocorrer, mas não
tinham o caráter sexual e de gênero que agora adquirem; estavam, antes,
associadas com a excitação da alimentação ou da idéia da alimentação e,
um pouco depois, com as atividades excretórias. (DIAS, 2003, p. 269)
A constituição da feminilidade se iniciou em período anterior nas vivências das
experiências pré-genitais com a elaboração dos processos digestivos e da excreção,
com o início da separação entre o que é bom ou mau feita primeiramente a partir da
organização inicial do mundo interno da menina, e das fantasias que ela faz sobre o
que há dentro de seu corpo do que há dentro do corpo da mãe.
Fantasias estas que serão enriquecidas ao longo do processo de
amadurecimento humano, a partir de novas experiências de elaboração imaginativa
das funções corporais decorrentes das relações interpessoais que surgem depois do
início da integração do self em um si-mesmo unitário e da capacidade conquistada
no estágio do concernimento de se responsabilizar pelos danos causados, próprios
da destrutividade pessoal e da possibilidade de reparação.
2.3 A FEMINILIDADE NO ESTÁGIO DO EXIBICIONISMO
Anteriormente ao estágio do exibicionismo, as fantasias têm papel primordial
de auxiliar na elaboração imaginativa das funções corporais; com base nas
experiências de incorporação e introjeção relacionadas à descoberta dos órgãos
genitais femininos e masculinos. Para o menino o medo da castração traz ansiedade
71
e ao mesmo tempo alívio, pois ele não consegue matar o pai, apenas o faz ou
deseja fazer em fantasia. Nas meninas há, além do medo da castração, o do que
pode acontecer com o próprio corpo. Winnicott (1997) explica tal ansiedade:
A menina, como o menino, possui sentimentos sexuais físicos apropriados ao tipo de
fantasia. Poderia dizer-se, de um modo útil, que enquanto o menino no auge da sua
onda sexual (na idade em que realiza os primeiros passos e na puberdade) está
especialmente receoso da castração, na menina da fase correspondente o problema
é um conflito em suas relações com o mundo físico, provocado por sua rivalidade
com a mãe, que foi originalmente para a criança a própria configuração do mundo
físico. Ao mesmo tempo, a menina sofre temores com respeito ao seu corpo, medo de
castração como o menino, o medo de que seu corpo seja atacado por figuras
hostis de mãe, em represália pelo seu desejo de roubar os bebês à sua mãe e muito
mais”. (p. 170, grifos nossos)
O objeto a ser destruído na fantasia é a mãe, também a primeira a ser amada
pela criança. Para o menino a destruição da e em fantasia e a necessidade de
que ela sobreviva, traz ambivalência, mas esta não está associada às fantasias de
roubar a mãe.
...quando uma mulher fica grávida e tem um bebê, precisa estar apta a
enfrentar o sentimento, situado algures nela, de que o bebê foi roubado do
interior do corpo da própria mãe dela. Se não puder sentir isso, a par do
conhecimento dos fatos, ela perde algo da gratificação que a gravidez pode
acarretar e muito do júbilo especial de presentear sua própria mãe com um
neto. (WINNICOTT, 1977, p. 175)
Fantasias relacionadas ao fato de ter um corpo de menina, de querer o bebê
da mãe, não no sentido de desejar o falo, mas da necessidade de elaborar o próprio
corpo, de ser si mesma, menos dependente da mãe por mais que haja semelhanças
com ela, iniciam a constituição da feminilidade. Isto ocorre antes de haver qualquer
sentimento de inveja em relação ao menino ter pênis.
Como descrito anteriormente, no início da organização do mundo interno a
criação e separação do que é bom e do que é mau é feita em analogia com o
72
processo digestivo, que ao longo do amadurecimento será elaborado de diferentes
maneiras por meninos e por meninas.
Nas meninas, quando algum problema e fantasias de que o que há dentro
delas ou dentro do corpo da mãe é algo ruim, persistem durante seu
amadurecimento, o desenvolvimento da feminilidade como um processo que inclui a
elaboração imaginativa dos órgãos genitais femininos e a identificação das meninas
com sua mãe e com outras mulheres fica comprometido.
Daí podem surgir ideias fixas de supervalorização do pênis e uma fixação de
meninas e meninos na fase fálica, o que irá comprometer o desenvolvimento de sua
sexualidade no momento em que, na saúde, meninos e meninas percebem que os
meninos têm o pênis e as meninas terão seios e poderão engravidar, assim
poderão constituir uma realidade pessoal, de uma pessoa total, que poderá se
relacionar com outras pessoas totais. Essas relações se estabelecem mais
fortemente a partir do próximo estágio, ou da fase lica, na qual acontecem as
conquistas relacionadas ao Complexo de Édipo e que se faz necessário, para viver
as experiências desse período, que existam pessoas totais e separadas se
relacionando.
Na saúde, as meninas fazem uma identificação com as outras meninas,
moças e mulheres, no modo de se relacionar com o próprio corpo, em relação às
excitações que sentem e aos cuidados que podem oferecer a outras pessoas,
exemplo: em suas brincadeiras o modo que cuidam de suas bonecas/bebês. A
fantasia das meninas...
...normalmente é da ordem do recolher, do guardar em segredo, do
esconder. Em termos anais, uma dificuldade de separar-se das fezes, e
em termos urinários existe a tendência à retenção, mas no que diz respeito
à genitalidade, as idéias alcançam sua expressão máxima através da
identificação com a mãe ou com meninas mais velhas, que seriam capazes
de ter experiências e de conceber”. (WINNICOTT, 1990, p. 64)
73
A sexualidade infantil faz parte do modo com que será constituída a
feminilidade nas meninas e nos meninos, com as diferenças específicas a cada
gênero. Embora o tema do trabalho não seja sobre a masculinidade e nem o
desenvolvimento de processos próprios ao amadurecimento dos meninos, faço
neste momento uma pequena apresentação do que pode ocorrer quando no
segundo momento do estágio do concernimento, os meninos não conseguem se
identificar com os outros homens, como alguém que tem um corpo próprio e que
inclui a elaboração imaginativa das funções do órgão genital masculino e fantasias
relacionadas a ele.
Os meninos podem se identificar com a mãe nos cuidados que ela oferece,
mas se não tiverem uma identificação com o pai e/ou outros homens nas fantasias
referentes ao próprio corpo, de menino/homem, correm o risco de carregar ao longo
do processo de amadurecimento o sentimento de não ter um corpo próprio. Assim o
processo de personalização fica comprometido, podendo até ocorrer algum tipo de
dissociação.
Retomando o tema do trabalho, a feminilidade, quando a menina é saudável,
se desenvolve a partir do modo de integrar as experiências relacionadas aos
instintos, à sexualidade, e às identificações, e tudo isso se inicia muito cedo na
infância. Primeiro na relação de dependência total com a mãe, depois na
dependência relativa, e na relação com o pai e com as outras pessoas.
As raízes da sexualidade da menina remontam diretamente aos primeiros
sentimentos de voracidade e avidez em relação à mãe. Existe uma
graduação desde o ataque faminto ao corpo materno até o desejo maduro de
ser como a mãe. O amor da menina pelo pai tanto pode ser determinado por
ele ter sido roubado (por assim dizer) à mãe, como pelo fato dele, na
realidade, ser especialmente carinhoso com a filha. (WINNICOTT, 1977, p.
175)
74
O pai tem papel fundamental no desenvolvimento da feminilidade da menina.
O apaixonamento da menina pelo pai pode ocorrer se a mãe consegue deixar de
ser objeto subjetivo, se aceitar as próprias falhas e apresentar o pai à menina como
alguém em quem se pode confiar.
Mas o pai, assim que apresentado, terá seu modo próprio de se relacionar
com a filha, e ele mesmo pode se apresentar confiável e efetivar uma relação de
cuidados e afeto com a filha a partir de suas próprias características.
No início como é a mãe que apresenta o pai à menina, ela tem
responsabilidade de facilitar ou não a relação do pai com a filha, mais tarde serão as
características de cada um que demonstrarão como se a relação. No estágio do
uso do objeto cabe à mãe facilitar tal relação, mas:
Muitas meninas, não vão tão longe em seu desenvolvimento emocional a
ponto de ficarem solidamente afeiçoadas ao pai e correrem o enorme risco
inerente a um conflito com a mãe. Alternativamente, forma-se uma
dedicação ao pai, mas ocorre uma regressão (como se designa), a partir de
uma relação fracamente adquirida com o pai. (ibid., p.170, parênteses do
autor)
Fato que mais uma vez nos leva a considerar a importância desse estágio no
desenvolvimento da feminilidade da menina. É nesse momento que o pai começa a
ser apresentado para a menina e passa a ser importante para ela, como homem,
como a pessoa que ele é, e não como parte da mãe.
Apenas quando teve uma relação fortemente adquirida com o pai e uma
identificação com a mãe podendo mesmo amando-a, em certos momentos, mais
especificamente no estágio do concernimento, começar a agredi-la e a competir com
ela é que a menina poderá mais tarde se apaixonar por ele e viver os
acontecimentos do Complexo de Édipo.
75
2.4 A FEMINILIDADE NA FASE EDÍPICA
A análise winnicottiana dessa fase coloca a incontestável inveja, que ocorre
nas meninas em relação aos meninos por eles terem o pênis e elas não; mas
acrescenta que se saúde, tal inveja será deixada no passado, não se tornando
uma preocupação dominante em outras fases do amadurecimento da menina, moça
e mulher.
Loparic (2005) apresenta este tema em seu texto “Elementos da teoria
winnicottiana da sexualidade”:
A inveja do pênis caracteriza, portanto, somente uma fase, de resto bastante
curta, do desenvolvimento sexual feminino, em que a menina precisa
integrar o seu elemento masculino. Esse período logo é ultrapassado pela
inserção desse elemento no todo das aquisições anteriores (inclusive as
mais primitivas), entre outras a de ter um interior e de poder guardar
segredo prefigurações da capacidade genital plena de engravidar, dar à
luz e amamentar [...] (p. 332, grifo e parênteses do autor)
Na fase edípica as crianças têm excitações corpóreas que ainda não podem
ser vividas em sua plenitude, por imaturidade psíquica e somática. Há, portanto, um
trabalho de elaboração psicossomática dessas excitações e das fantasias
relacionadas a elas, antes que a pessoa possa de fato viver o clímax ocorrido na
relação sexual.
A presença dos pais, nesse momento, assegura limites externos à pessoa e à
sua impossibilidade, e diminui a ansiedade gerada pelas fantasias e excitações
corporais, ou seja, para além do medo da castração, o alívio da limitação
colocada diante de uma impossibilidade real vivida pela criança em seu desejo pelo
progenitor do sexo oposto.
76
Em sua tese de doutorado, Maria de Fátima Dias discorre sobre esta fase da
sexualidade infantil a partir da teoria winnicottiana:
A atitude paterna revela duas coisas, a primeira, um fato inegável, é que
uma imaturidade somática real na criança. Neste momento de sua
existência, a criança pode apenas sonhar e fantasiar com a genitalidade,
numa postura de preparação para a vida sexual que virá com a puberdade.
O que a criança precisa neste momento é das brincadeiras que aliviarão as
angústias desta idade [...]. O segundo aspecto revelado nesta atitude
paterna, é a do reconhecimento de que no filho uma potência sexual,
mas que esta não pode ser direcionada para esta mulher [...]. (DIAS, 2005,
p. 253).
Nas meninas a limitação da excitação em relação ao pai, colocada pelo
próprio pai e pela mãe que apresenta o pai como seu marido, ao mesmo tempo em
que a identificação com a mãe e outras mulheres sendo aquelas que não têm o
pênis, como apresentado anteriormente.
A análise winnicottiana da feminilidade inclui a sexualidade que não restringe
ou prioriza a castração como fundante, e sim apenas como uma fase passageira,
considerando prioritário, para que a feminilidade se desenvolva, um modo de relação
da menina com a mãe e a elaboração imaginativa do órgão genital feminino. Para
Winnicott (1990):
É aconselhável não confiar demasiadamente no mito de Electra, pois em
primeiro lugar é preciso colocar a pergunta: ele é apresentado para ilustrar a
sexualidade feminina que se desenvolve num estilo masculino, com a inveja
do pênis e o complexo de castração como termos centrais, ou para
descrever aquela que se desenvolve mais diretamente a partir da
identificação e da rivalidade com a mãe e da elaboração imaginativa da
função do órgão genital especificamente feminino? (p. 67)
meninas cujas fantasias e o modo de desenvolvimento sexual se fixam ao
complexo de castração, mas isto se dá quando uma complicação no processo de
amadurecimento que impossibilita que a inveja do pênis seja apenas uma fase
77
passageira no desenvolvimento feminino. Quando isto não ocorre teremos alguns
problemas posteriores, os quais são explicados no capítulo quatro deste trabalho.
Antes e depois de ocorrer a inveja do pênis, excitações próprias do órgão
genital feminino e correspondentes fantasias que constituem grande parte do
desenvolvimento da sexualidade feminina e da constituição da feminilidade.
A excitação vaginal diferente da excitação do pênis, não é observável, ao
passo que no menino, ter um pênis passa a ser o que caracteriza suas fantasias e o
modo de elaborar seu corpo, como um que tem a potência ligada à ereção peniana.
Na menina as fantasias e o modo de elaborar o corpo estão ligados ao fato de
ter um órgão excitável, mas que não é visto pelos outros. A excitação se mantém
secreta e está diretamente relacionada com a identificação da menina com as outras
meninas de ter um lugar “dentro” de si que pode guardar um bebê.
Com o tempo, a menina aprende a apreciar os seios. Estes tornam-se
quase tão importantes para a moça quanto o pênis para o rapaz, e quando
ela fica sabendo que possui a capacidade, que um rapaz não tem, de conter
gerar, transportar e amamentar bebês, conclui que já nada tem o que
invejar. [...] Naturalmente, se não for permitido à menina ou se ela própria
não consentir o conhecimento de que possui uma parte excitante e
importante do seu corpo em seus órgãos genitais, ou ainda se lhe proibirem
que a isso faça referência, a sua tendência para inveja do pênis é
aumentada. (WINNICOTT, 1977, p. 180).
As fantasias femininas referem-se a modos de identificação e rivalidade com a
mãe e da elaboração imaginativa da função do órgão genital feminino e dos seios;
quando houve saúde no período anterior, elas foram capazes de ter sonhos
plenamente genitais acompanhados das seguintes idéias, segundo Winnicott (1990):
A idéia da morte da mãe e conseqüentemente a da sua própria morte. A
idéia de estar roubando da mãe o seu marido, seu pênis, seus filhos, e
como resultado, a idéia de sua própria esterilidade. A idéia de ver-se à
mercê da sexualidade do pai. A idéia de um compromisso com a mãe que
perpassa a homossexualidade. (p. 77)
78
para o menino, nessa fase, a ambivalência de amor e ódio acontece na
relação com o pai, quando é com ele que acontece a rivalidade. Para a menina
ainda ocorre a ambivalência na relação com a mãe. A sobrevivência da mãe que se
iniciou frente aos ataques impiedosos no estágio do concernimento, na constituição
da feminilidade se mantém como experiência a ser integrada por mais tempo do que
na constituição da masculinidade.
Na fantasia feminina, se misturam a ideia de morte da mãe e à de sua própria,
ideias de que mesmo que a mãe sobreviva ainda um enfrentamento a fazer, que
surge com as fantasias de roubo do marido ou dos filhos da própria mãe.
Quando há saúde, a mãe é confiável para a bebê, e existe de maneira
própria. O que antes da fase do concernimento não era importante desde que a mãe
cuidasse adequadamente do bebê, nessa fase passa a ser. As características
pessoais da mãe tornam-se relevantes nas identificações que a menina precisa
fazer para que as fantasias ligadas à rivalidade com ela possam ser integradas sem
oferecer risco de dissociação, ou de não poder se identificar como aquela que terá a
capacidade de gerar um bebê no futuro.
As fantasias de compromisso com a mãe que perpassam a
homossexualidade na menina, e de ficar à mercê da sexualidade do pai, surgidas na
fase edípica, vão ser elaboradas de acordo com a relação amorosa e afetiva do
casal e a saúde de cada um.
Pai e mãe, ao lidar com tais fantasias das meninas, que geralmente surgem
em brincadeiras e precisam ser acolhidas, já que podem conter excitação corpórea e
ansiedade gerada por tal excitação e pelas fantasias relacionadas, possibilitam que
a ansiedade não seja uma experiência desorganizadora ou demasiado caótica, ao
contrário, os pais auxiliam na integração da experiência.
79
Na fase edípica, o menino “faz uma espécie de acordo”, mesmo que
inconsciente, com o pai, identifica-se com ele, perde um pouco da capacidade
potencial instintiva, nega parte do que vinha reivindicando, o amor da mãe e substitui
esse desejo por uma irmã, tia, babá, outra pessoa menos envolvida com o pai, assim
sua potência não é só dele, é também a do pai. “Por identificação com o pai ou com
a figura paterna, o menino obtém uma potência adiada mas própria, que podeser
recuperada na puberdade.” (WINNICOTT, 1990, p.73)
A masculinidade do menino se constitui, nesse estágio, a partir da sua
identificação com o pai, como aquele que tem a potência de realizar. Potência que
no menino ainda precisa esperar para se realizar na puberdade. Os meninos, como
apresenta Winnicott em “Natureza humana”, terão fantasias de morte do pai e,
portanto da própria morte, de sua castração ou a do pai, de se tornar inteiramente
responsável pela satisfação da mãe, e de um compromisso com o pai que perpassa
a homossexualidade.
As ansiedades dos meninos, nesse período, são geradas por fantasias em
relação ao pai, muito mais do que em relação à mãe. Sua identificação é com a
figura masculina, a mãe e as outras mulheres não têm tanta importância como o pai.
Vemos nas brincadeiras infantis de meninos com a idade aproximada de
cinco anos, a luta, brincar com espada, enfiar objetos em buracos, brincar com
outros meninos. Nessa idade se inicia a fase em que os meninos não têm interesse
nas brincadeiras das meninas e nem de brincar com elas.
Isso depende, além da presença de um pai amoroso, confiável e que se
relacione com o filho, de qual ambiente em que vive o menino e como são colocados
os papéis masculinos e femininos, ou seja, do contexto social cultural mais amplo, e
de alguma identificação com a mãe e outras mulheres.
80
A feminilidade também se constitui nos meninos, de forma diferente das
meninas, mas é fundamental para o desenvolvimento da sexualidade e do processo
de amadurecimento deles. Ocorre que os meninos em seu processo de
amadurecimento precisam identificar-se com a capacidade de cuidar das mulheres,
identificar-se com o papel de mãe, mas não com a genitalidade feminina. Para
Winnicott (1990):
A feminilidade no menino (bem como a masculinidade) também é
fundamental, ainda que variável de acordo com a hereditariedade, as
influências ambientais pertencentes ao contexto individual e os padrões
culturais mais amplos. É necessário distinguir entre a capacidade do menino
para se identificar com a mulher quanto à sua genitalidade feminina, e sua
capacidade para identificar-se com a mulher quanto ao seu papel de mãe.
Esta última é mais aceita em nossa cultura do que a primeira, e também é
menos problemática para a genitalidade masculina do indivíduo, pois ela diz
respeito ao tipo de fantasia mais do que à localização de funções corporais.
(p. 66, parênteses do autor)
Ao se identificar com o papel de mãe, o menino pode cuidar de si e dos
outros. Eles se identificam com o cuidar, mas não com a genitalidade feminina. A
fantasia do que dentro de seu corpo e do corpo da mãe, não faz mais parte do
processo de elaboração das funções corporais dos meninos. A ereção e futura
potência do pênis estão ligadas à fantasias de poder penetrar e engravidar, mas não
de ser penetrado ou engravidado. Eles não desenvolvem o cuidar da maneira
específica que ocorre com as meninas, que se identificam com o papel de
cuidadoras ao longo de todo seu processo de amadurecimento, inclusive quando
surgem fantasias de serem penetradas e engravidadas. Esse cuidar é desenvolvido
na relação afetivo-amorosa que a menina terá na adolescência e na idade madura,
tanto com amigas, como a própria mãe e com o homem que for seu marido. Tais
aspectos são abordados no capítulo quatro deste trabalho.
81
CAPÍTULO 3 – A FEMINILIDADE NA ADOLESCÊNCIA
3.1 A ADOLESCÊNCIA SAUDÁVEL
Na teoria winnicottiana a adolescência é compreendida como um período em
que as experiências que não foram integradas na infância podem, então, ser, uma
vez que os adolescentes ainda contam com a facilitação do ambiente, dadas pela
família. É uma segunda chance para novas aquisições e realizações das tarefas
iniciais, e as que já foram integradas na infância, podem ser sedimentadas.
Inicialmente a grande mudança é que o que antes era fantasia agora pode
se tornar real. Situações como a de engravidar passam a fazer parte da vida dos
adolescentes. Assim escreve Winnicott (1995):
O garoto ou a garota desta faixa etária está lidando com as mudanças
pessoais da puberdade. Ele ou ela iniciam descobertas na capacidade
sexual e em manifestações sexuais secundárias com uma história pessoal
passada, e isto inclui um modelo pessoal nas organizações defensivas
contra ansiedades de vários tipos. (p. 80)
Entretanto, não ocorrem apenas mudanças sexuais ou físicas na vida dos
adolescentes. Outro aspecto de grande importância é que a adolescência revive
angústias da vida infantil. É um período de muitas incertezas e novidades, e de
isolamento na tentativa de manter-se sendo “si-mesmo”.
Como explica Dias (1998): “[...] as angústias típicas da adolescência repetem
as angústias dos estágios precoces: o adolescente é tal como o bebê,
essencialmente isolado. E apenas a partir desse isolamento que ele pode se lançar
e talvez vir a estabelecer alguma relação.” (p.187)
82
A adolescência, um período de mudanças, não pode e nem precisa ser
entendida pelos jovens. Eles vivem e passam por dificuldades e incompreensões
diárias. os pais têm sim que, por vezes, tomar decisões pautadas em sua
maturidade. Eles são a referência e o suporte que o adolescente precisa para poder
ser imaturo. Sobre a imaturidade dos adolescentes, Winnicott (1975) ressalta que:
“[...] os adultos maduros têm de saber a respeito disso e acreditar em sua própria
maturidade como nunca [...]” (p. 197)
Outra característica que pode ser tomada como própria da adolescência é
que os jovens não aceitam soluções falsas: eles são idealistas. Tudo isso ocorre
para que cresçam e para que com o tempo, possam ter, por exemplo, visão do futuro
e planos menos ideais e mais reais. Ou seja, realizar projetos que vão para além dos
sonhos. Para sintetizar este aspecto é possível afirmar que:
O principal é que a adolescência é mais do que a puberdade física, embora
se baseie sobretudo nesta. A adolescência implica crescimento, e esse
crescimento leva tempo. E, enquanto o crescimento se encontra em
progresso, a responsabilidade tem que ser assumida pelos pais. Se eles
abdicam, então os adolescentes têm de passar para uma falsa maturidade e
perder sua maior vantagem: a liberdade de ter idéias e de agir segundo o
impulso (ibid., p. 202).
É uma fase também, em que as experiências são muito ligadas ao existir, ao
encontrar um modo pessoal de existir, ou à busca por se tornar real, viver na
realidade compartilhada, sem perder a subjetividade, aceitar a raiva e agressividade
próprias, sem destruir efetivamente as coisas e pessoas odiadas. E os adultos
precisam respeitar isso:
Os adultos devem manter entre si aquilo que vêm a compreender a respeito
da adolescência. Seria absurdo escrever para os adolescentes um livro
sobre a adolescência; esta é uma fase que precisa ser efetivamente vivida,
e é essencialmente uma fase de descoberta pessoal. Cada indivíduo vê-se
engajado numa experiência viva, num problema do existir.” (WINNICOTT,
2005, p. 115)
83
O fato é que os adolescentes têm que lidar com fenômenos próprios à
puberdade, alguns deles pertencentes ao desenvolvimento da capacidade efetiva de
manter relações sexuais e de conflitos e organizações de defesas que acontecem
nesse período, decorrentes desse novo modo de relação.
Quando falamos de adolescentes saudáveis, entendemos que essas pessoas
puderam viver na infância experiências que os possibilitaram experienciar o
Complexo de Édipo plenamente desenvolvido, puderam se identificar com os pais e
viver as principais posições do relacionamento triangular, se apaixonando por um
dos pais e se identificando numa maior totalidade com o outro, a partir de modos de
organização pessoal para suportar e aceitar as tensões criadas na relação triangular.
Também, derivadas das experiências da infância de cada adolescente,
subsistem certas características e tendências pessoais herdadas e
adquiridas, fixações a modalidades pré-genitais de experiência instintiva e
resíduos da dependência e da implacabilidade infantis; e, além disso,
restam todos os tipos de padrões doentios associados a falhas de
amadurecimento em nível edípico ou pré-edípico. (ibid., p. 117).
A família, para o adolescente, ainda é fundamental e de suma importância.
Assim como os amigos, a escola, o clube, os ambientes sociais mais amplos são
onde o adolescente experiencia muitas de suas vivências e a busca por sentir-se
real.
Os pais muitas vezes não têm condição de lidar com os acontecimentos da
adolescência dos filhos, período de ansiedade, recolhimento e outros sentimentos e
vivências difíceis para os pais aceitarem que os filhos vivam, mas o lar ainda precisa
ser o local de confiança e possibilidade de certo retorno à dependência quando as
ansiedades se tornam insuportáveis. Se a família não pode ser usada ou deixada de
lado conforme a necessidade do adolescente, outras organizações sociais precisam
conter e facilitar as experiências próprias da adolescência.
84
O crescimento não é apenas questão da tendência herdada; é também
questão de um entrelaçamento complexo com o meio ambiente facilitante.
Se a família ainda tem disponibilidade para ser usada, ela o é em grande
escala, mas se não mais se encontra disponível para esse fim, ou para ser
posta de lado (uso negativo), torna-se necessária, então, a existência de
pequenas unidades sociais, para conter o processo de crescimento
adolescente. (WINNICOTT, 1975, p.194, parênteses do autor)
Os extremos entre necessidade de independência absoluta e dependência
regressiva podem coexistir e muitas vezes se alteram de forma rápida. O que facilita
nossa compreensão sobre esse aspecto é aceitar que os adolescentes iniciam uma
tarefa difícil nesse período da vida, para além das inerentes ao sexo.
Começam a se relacionar com os outros a partir de um modo pessoal e
individual, ou seja, escolhem os grupos que farão parte e como será sua
participação no grupo, como agir, pensar; e viver cada nova relação passa agora por
uma experiência bastante individual e, em última instância isolada, uma vez que
deriva da necessidade de poder agir na sociedade sem perder a relação com o
mundo subjetivo, sem ter que ser submisso a uma realidade que não pode ser
experienciada pelo adolescente.
Os grupos de adolescentes são compostos de pessoas que se unem por ter
gostos em comum, e que se juntam para ter mais força para poder viver sem perder
a subjetividade e em certo grau seu isolamento. Esses grupos, muitas vezes não são
compreendidos pelos pais nem pela sociedade de modo geral.
Tais experiências de manter a subjetividade e o isolamento para se fortalecer
como indivíduos podem ser vistas em suas vestimentas, cortes de cabelos e hábitos,
e que passada a adolescência, são deixados para trás, certificando-os como
próprios de uma época da vida, da adolescência.
O isolamento marca as experiências sexuais dos adolescentes mais jovens.
Eles ainda não sabem como se e se é que têm de fato um impulso sexual,
85
também não sabem se isso ocorre de forma homossexual, heterossexual ou
narcisista.
A constante atividade masturbatória, nesse estágio, pode constituir uma
maneira de ver-se livre do sexo, e não uma experiência sexual; e as
atividades homossexuais ou heterossexuais compulsivas podem servir ao
mesmo propósito ou como forma de descarregar tensões, antes de
representarem formas de união entre pessoas humanas integrais.
(WINNICOTT, 2005, p. 118)
A união entre pessoas totais manifestam-se primeiramente de forma afetiva e
sentimental em jogos sexuais incompletos. Assim, os instintos acontecem de
maneira integrada aos afetos e sentimentos; mas enquanto isso não é possível os
púberes e alguns adultos usam o sexo para se livrar da tensão instintual.
Na adolescência muitas experiências que foram integradas na infância podem
ser vividas novamente e outras que não foram têm tal oportunidade, o que significa
que os adolescentes não podem se relacionar como adultos ainda.
É ilusório pensar que filhos que foram bem cuidados pelos pais terão menos
problemas na adolescência. Eles poderão não desenvolver transtornos, poderão ser
saudáveis, mas neste período a saúde contém problemas próprios ao crescer e se
tornar alguém.
Se fizermos tudo o que pudermos para promover o crescimento pessoal em
nossa descendência, teremos que ser capazes de lidar com resultados
espantosos. Se nossos filhos vierem a se descobrir, não se contentarão em
descobrir qualquer coisa, mas sua totalidade em si mesma, e isso incluirá a
agressividade e os elementos destrutivos neles existentes, bem como os
elementos que podem ser chamados de amorosos. Haverá uma longa luta,
à qual precisaremos sobreviver. (WINNICOTT, 1975, p. 193)
Os adolescentes vivem a integração dos instintos, inclusive dos destrutivos,
que se iniciou, se tudo correu bem, no estágio do concernimento, e muitas serão as
86
maneiras de agredir as pessoas, principalmente os pais, quando se sentirem
desrespeitados em sua jornada de existir como pessoa total e de modo próprio.
Eles não agradecem as noites em claro que os pais passam acordados, e de
fato não consideram isso um esforço ou uma tarefa. A recompensa virá mais tarde,
na vida adulta e quando eles mesmos se tornam pais e mães, ou têm a capacidade
de se identificar com os pais e mães que tanto se esforçaram para cuidar deles na
infância e adolescência.
Crescer implica em poder ocupar o lugar do genitor, e uma decorrente
fantasia de morte, de um dos genitores, o lugar de si-mesmo; o que significa que
crescer é um ato agressivo, e o que antes na infância tinha poucas possibilidades de
realmente destruir, agora que a pessoa não é mais tão pequena precisará lidar
com a própria força e potencial destrutivo contendo-os para que não haja efetivação
da destruição.
Uma das formas de manejar tal destrutividade, é aceitar a rebeldia
adolescente como passageira e própria do crescimento.
[...] Sei, naturalmente, que rapazes e moças podem conseguir atravessar
esse estágio de crescimento num acordo contínuo com os pais reais e sem
manifestarem necessariamente qualquer rebelião em casa. Mas lembremo-
nos de que a rebelião é própria da liberdade que concedemos a nossos
filhos, criando-os de maneira tal, que ele ou ela existem por seu próprio
direito. Em certos casos poder-se ia dizer; “Semeamos um bebê e colhemos
uma explosão”. Isso é sempre verdadeiro, mas nem sempre o parece.
(WINNICOTT, 1975, p. 196)
O adulto considera o adolescente imaturo, e ele realmente o é. Tal
imaturidade faz parte desse período da vida das pessoas. Por isso necessidade
de que os adultos e a sociedade possam compreender a rebeldia dos adolescentes
e gradativamente, conforme suas possibilidades, considerá-los menos imaturos e
com maiores condições reais de lidar com situações da vida adulta.
87
Quando há circunstâncias em que a pessoa tem que se tornar responsável de
maneira súbita, por morte de um dos genitores ou outra experiência em que o jovem
não tem como permanecer imaturo, então grande perda da espontaneidade e da
capacidade de brincar, perde-se o impulso criativo despreocupado e a chance de se
rebelar contra o que não é tido como pessoal.
No entanto, quando uma exigência deliberada por parte dos pais, para que
o adolescente torne-se maduro abruptamente sem que isso seja em decorrência de
algum problema real, como o exemplificado, então, os pais fazem falta aos filhos
num momento crítico.
Nos termos do jogo, do jogo da vida, abdicamos exatamente quando eles
chegam para nos matar. Alguém fica contente? Certamente não o fica o
adolescente, que agora se transforma em estabelecimento. perda de
toda a atividade e dos esforços imaginativos da imaturidade. A rebelião não
faz mais sentido e o adolescente que vence cedo demais vê-se apanhado
em sua própria armadilha, tem de tornar-se ditador e ficar à espera de ser
morto; ser morto não por uma nova geração de seus próprios filhos, mas
pelos irmãos. Naturalmente, ele busca controlá-los. (WINNICOTT, 1975, p.
197)
Tal concepção permite afirmar que a melhor coisa que pode acontecer para a
sociedade e para os adolescentes é que sua imaturidade seja respeitada, para que
com a passagem do tempo e a integração de experiências uma maturidade real e
verdadeira seja consequência do que foi vivido. A falsa maturidade é a
personificação de um adulto, de um modelo adulto predeterminado e sem nenhuma
ligação real com o adolescente.
Quando a imaturidade do adolescente não é respeitada, ocorre algo como um
convite, sem possibilidade de declinação, para um baile à fantasia, eterno. E quem
convida, obriga o adolescente a usar uma fantasia extremamente grande ou
pequena, na qual terá que passar o resto da vida tentando caber: uma falsa
88
vestimenta de adulto. O mais saudável que pode ocorrer nesta situação é a rebeldia
e a não aceitação da situação, por parte dos adolescentes.
Inicia-se novamente aquilo que começou no estágio da transicionalidade,
acontecimentos que não são somente pertencentes à realidade concebida
subjetivamente e nem exclusivamente à realidade percebida objetivamente, mas
agora com a incorporação da agressividade, dos instintos, da força, e da
sexualidade, mas agora em uma pessoa que tem fisicamente condição de ser
agressivo, e de ter relação sexual.
A passagem do tempo, as vivências, possibilitam que o adolescente,
gradativamente, aceite a responsabilidade pelo que acontece em suas fantasias
pessoais. Sempre havendo o risco de que quando forem intoleráveis, os
adolescentes manifestem sua agressividade com pensamentos e um potencial
suicida, ou sob forma de busca de perseguição a posição persecutória livra o
adolescente da necessidade da lógica.
Para Winnicott (1975) a mais difícil de todas, nesse período, é a tensão
própria à fantasia inconsciente de sexo, que inclui o sofrer e fazer sofrer, matar e ser
morto.
Às vezes, aceita-se como evidência que rapazes e moças ao viverem
“pulando para cima e para fora da cama”, como se diz, e que têm relações
sexuais (e talvez uma gravidez ou duas), atingiram a maturidade sexual.
Mas eles mesmos sabem que isso não é verdade e começam a desprezar o
sexo, como tal: ele “é fácil demais”. A maturidade sexual deve incluir toda a
fantasia inconsciente do sexo, e o indivíduo, em última análise, deve ser
capaz de chegar a uma aceitação de tudo o que surge na mente,
juntamente com a escolha de objeto, a constância objetal, a satisfação
sexual e o entrelaçamento sexual. também o sentimento de culpa que é
apropriado, em termos da fantasia inconsciente total. (p. 200, grifos e
parênteses do autor).
As ansiedades causadas pela possibilidade real de ter ações agressivas, ou
de manter relações sexuais, não mais apenas em fantasia ou potencial, ainda não
89
são parte de escolhas e aquisições maduras, que viabilizam certa permanência das
escolhas por terem sido feitas de maneira respeitosa consigo mesmo.
Os adolescentes acreditam ainda na grande potência de suas vontades e
ações, mesmo que não saibam como realizá-la, colocá-la em prática, exigem que
seus ideais sejam cumpridos e ficam muito decepcionados quando isto não ocorre.
Tal liberdade de pensamento é o que lhes possibilita ser tão rebeldes e
revolucionários, pelo menos, nas ideias e ideais que têm. “Não é próprio ao
adolescente ter uma visão a longo prazo, que pode chegar mais naturalmente
àqueles que viveram através de muitas décadas e começaram a envelhecer”. (ibid.,
p. 201)
Outra característica bem marcada na adolescência é a tendência a ter um
julgamento moral bastante rígido parecido com o que ocorre na infância quando as
noções de verdadeiro e falso começam a surgir.
Mesmo que não saibam o que pretendem fazer, têm que fazer algo, iniciar
uma profissão, continuar os estudos. A vida adulta está cada vez mais próxima, o
futuro começa a ser apresentado como necessidade de organização de projetos que
os possibilitem ter um lugar no mundo, na sociedade. Como fazer isso sem perder a
pessoalidade, sem ter que se submeter à realidade compartilhada e manter a
realidade subjetiva é algo que traz ansiedades e dificuldades próprias à luta por
sentir-se real.
A adolescência é o momento da vida da pessoa em que tudo está suspenso,
ainda não é adulto e não é mais criança; ainda não é profissional, mas não é
apenas estudante. Ainda não tem maturidade para constituir a própria família ou
para ter filhos, mas já tem iniciada a vida sexual.
90
rebeldia e dependência. E nenhuma delas pode ser aplacada pelos
adultos, pais ou profissionais que se relacionem com adolescentes. A
impossibilidade de atingir um meio termo os coloca numa posição de ter que viver
suas experiências como se nenhuma delas tivesse sido vivida por outra pessoa
antes. E ainda, cabe aos adultos, que se responsabilizem por eles.
3.2 AS MOÇAS
Para compreender como ocorre o desenvolvimento da feminilidade nesse
período da vida das mulheres, é importante lembrar que mesmo que as coisas
tenham ocorrido bem até o momento, na adolescência muitas experiências são
vividas para fortalecer aquisições e conquistas feitas pela pessoa até este período.
As duas principais conquistas do processo de amadurecimento feitas pelas
adolescentes relacionadas à constituição da feminilidade são: primeira, a de suportar
a ambivalência vivida na relação com a e ou outras mulheres, fazendo a
integração de tal experiência pela identificação com as outras moças e a mãe,
ambivalência vivida no estágio do concernimento, mas naquele momento sem a
possibilidade real de engravidar, o que implica em nova elaboração imaginativa de
funções corporais e fantasias, e novas integrações que ocorrem no processo de
personalização. E a segunda, também iniciada no período anterior, a integração de
aspectos masculinos, consequência da capacidade de se relacionar em função de
identificações cruzadas.
Na adolescência um novo período em que, por causa das vastas
implicações do novo e rápido avanço em termos de encontrar e enfrentar o
mundo, há recorrência de uma necessidade a manter aberto um caminho de
volta para a dependência. Clinicamente, isto tende-se a manifestar-se na
fase da pré-puberdade quando o adolescente está com 12 a 14 anos de
91
idade, após o que a dependência pode muito facilmente tornar-se absorvida
pela dependência natural que se acha livre de elementos regressivos
relativos aos pais e que volta o olhar para o status de adulto[...]
(WINNICOTT, 1994, p. 204)
Apenas quem pode destruir pode construir, e quem pode sentir raiva e
agredir, pode amar, logo, são as conquistas de integração da ambivalência e dos
sentimentos de raiva e amor, dos impulsos destrutivos e dos amorosos iniciadas no
estágio do concernimento que darão condição para as adolescentes viverem as
experiências próprias ao próximo estágio, edípico.
Na fase edípica, as meninas sentem inveja dos meninos, se dão conta de que
eles têm algo que elas não têm, isso lhes causa tristeza, e a reconhecida inveja do
pênis, própria às experiências desse período. Exatamente, neste momento, há
fantasias e acontecimentos relacionados às relações triangulares, às identificações
com pessoas do mesmo sexo e com pessoas do sexo oposto, o início da escolha de
objeto que é relacionada aos fatores citados anteriormente e ao modo com que os
pais se relacionam com seus filhos, agora que eles têm, em fantasia, possibilidades
de se relacionar com um dos progenitores e rivalizar com o outro.
Em “Natureza Humana” Winnicott (1990) relata a precariedade que ocorre em
algumas vivências próprias à sexualidade feminina, em termos de um
desenvolvimento homossexual, na adolescência.
A menina se transforma em mulher na adolescência ou na idade adulta, mas
o caminho é mal pavimentado, e oferece muitas oportunidades para o
desenvolvimento em termos homossexuais, etc. Por este modo de
descrever a sexualidade feminina, fica claro que há muitos motivos para que
a menina se sinta infeliz ou magoada quando os irmãos se exibem, fazendo
com que ela se sinta inferior. Por vezes, ela tenta corrigir sua inferioridade
usando todo seu corpo como um representante do falo, ou encontrando na
sua boneca um falo ao invés de um bebê. (p. 63)
92
Contudo, mesmo que o caminho seja precário, a feminilidade nas moças
desenvolve-se em termos heterossexuais quando possibilidade de integrar as
experiências anteriores, na infância, que são as bases para o si-mesmo, ou seja,
integrar o corpo de menina e elaborar imaginativamente este corpo, tal como é; e
encontrar na adolescência a possibilidade de identificação com a mãe e as outras
mulheres, integrando o modo de sexualidade feminina, com órgãos genitais internos,
e também com um modo de cuidar específico.
As moças que se identificam com as outras mulheres e com a mãe, tanto no
modo de relacionar que inclui o cuidar, e ter a possibilidade de suportar uma
relação de dependência total, como o que ocorre na preocupação materna primária
quanto na genitalidade e modo de se relacionar sexualmente femininos, podem
viver experiências de intimidade com a mãe e outras moças.
Reviver a conquista de suportar a ambivalência em relação à mãe, que os
rapazes não precisam, e que é relativa à constituição da feminilidade das moças,
lhes um sentimento de ser mulher e de no futuro poder ser o ambiente de outra
pessoa que viverá o sentimento de ambivalência em relação a ela.
3.2.1 Novas experiências de personalização das adolescentes
No período da adolescência muitas mudanças físicas acontecem e a tarefa de
tornar-se si-mesmo é complexificada por tais mudanças, assim como o é, a
elaboração imaginativa das funções corpóreas, que inclui os sentimentos, as partes
do corpo e as funções das partes do corpo. Tal elaboração feita quando há o
alojamento da psique no soma condição para o que o indivíduo temporalize suas
93
experiências, constitua sua história em espaço e tempo devidos, organizados a partir
de suas próprias experiências de vida.
Experiências novas marcadas pelo próprio crescimento do corpo, como o dos
seios e a menstruação, terão que ser elaboradas imaginativamente. Também a
adolescente precisa de auxílio do ambiente para integrar os sentimentos e partes do
corpo como os seios e o órgão genital feminino.
Além disso, outras partes do corpo ainda podem estar sendo elaboradas,
como a boca, o aparelho digestivo. As moças saudáveis não precisam comer
compulsivamente, pois o alimento estará sendo escolhido por elas, não sendo
necessário comer de modo a reagir a algum estímulo. Mais que serem alimentadas,
elas querem se alimentar.
A escolha dos alimentos, por exemplo, indica boa organização de si mesmo e
a busca por se sentir real sem ter que reagir, podendo agir de modo espontâneo.
Isto consequentemente faz com que o aparelho excretor também funcione bem e
seja elaborado imaginativamente como parte de si, o que implica de maneira geral
em saúde relacionada a estas partes do corpo. Segundo Dias (2003):
“A experiência de alimentação imaginativa é muito mais ampla do que a experiência
puramente física exigindo algo mais do que dormir e ingerir leite, e algo mais do que
obter a satisfação instintiva de uma boa refeição”
11
. São justamente as coisas que um
bebê faz enquanto mama, e que não são as que o fazem engordar, que corroboram o
fato de ele “estar se alimentando e não apenas sendo alimentado, estar vivendo uma
vida e não apenas reagindo aos estímulos que lhe são oferecidos”
12
(p. 107)
Isso se dá quando tudo corre bem nas experiências de organização de mundo
interno e a possibilidade de viver a realidade compartilhada sem perder a
subjetividade. O que na adolescência é difícil de acontecer, que as adolescentes
11
WINNICOTT, 1933, p. 21, apud DIAS, 2003, p. 107
12
Idem à nota anterior
94
correm o risco de alguma parte do corpo não ser elaborada imaginativamente pois
todo o corpo, a temporalidade e espacialidade estão sofrendo alterações assim
como nos estágios precoces do processo de amadurecimento.
Na puberdade, às importantes alterações devidas ao crescimento físico e ao
desenvolvimento da sexualidade, acrescenta-se a capacidade física para a
experiência genital e para matar de verdade [...]. Ou seja, surge uma
potência nova e assustadora, uma vez que aquilo que pertencia ao domínio
da fantasia pode agora tornar-se realidade concreta: o poder de destruir, e
até de matar, a possibilidade de prostituir-se, engravidar, enlouquecer com
drogas, suicidar-se.
Um outro ponto a mencionar [...] são as angústias típicas da adolescência,
que repetem as dos estágios primitivos: o adolescente é, tal como o bebê,
essencialmente isolado. E, tal como no bebê, é apenas a partir desse
isolamento que ele pode se lançar e vir a estabelecer alguma relação
sentida como real. (ibid., p. 293)
A comunicação entre mãe e jovem filha neste período é fundamental no
auxílio das vivências de ser mulher, apenas se a mãe tem sua feminilidade bem
constituída é que poderá identificar-se com a filha e a jovem com ela, e auxiliá-la
com as mudanças tais como o crescimento dos seios e a menstruação. A provisão
do bom ambiente nesse estágio também depende da comunicação e da não
comunicação vividas entre a mãe e a filha.
A mãe que respeita o modo com que a filha vai elaborar as mudanças
ocorridas em seu corpo, possibilitando que ela a procure quando necessário, seja
por algum gesto ou por uma comunicação explícita que a moça faça, dá condição de
que as mudanças sejam paulatinamente vividas como pessoais, sem estranheza. Tal
estranheza e o sentimento de irrealidade com relação a si mesmo ocorrem quando o
que é não-eu não pode ser repudiado porque o ambiente retalía.
Daí podem-se originar alguns distúrbios como a recusa a se alimentar,
anorexia, a compulsão alimentar, como reação à violação do cleo incomunicável
do si-mesmo frente a um ambiente invasivo, a compulsão sexual ou masturbação
95
compulsiva. A gravidez na adolescência pode ser entendida como forma de realizar
que algo dentro de si é bom, é pessoal e não pode ser invadido ou tocado.
Os problemas para as moças surgem se a mãe por algum motivo não tem a
capacidade de respeitar a comunicação ou não comunicação que elas tanto
precisam. Algumas mães por suas histórias de vida não aceitam que as filhas
tenham segredos e que não queiram lhes contar tudo o que acontece. Isso é uma
invasão contra a qual as adolescentes vão se defender intensamente, buscando um
modo de proteger seu núcleo incomunicável.
Em seu texto “Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de
certos opostos” Winnicott (1983) descreve um sonho de uma paciente que ilustra a
tentativa de uma mãe em saber de tudo o que ocorre com sua filha.
A paciente sonhou que duas amigas eram oficiais aduaneiras e investigaram
todos os pertences dela e de seus amigos, mas ela sabia de ante-mão que nada
iria ser encontrado. O sonho lembrou um episódio da infância da paciente em que
pegara sem pedir um caderno de poemas de uma amiga e escrevera que era seu
caderno secreto. A mãe leu e perguntou para a menina de onde ela havia tirado um
pensamento que estava escrito. O maior problema não era a mãe ter lido, mas ter
dito à menina que leu e perguntado de onde ela havia tirado tal ideia. “Eis um
quadro de uma criança estabelecendo um eu privado que não se comunica, e ao
mesmo tempo querendo se comunicar e ser encontrada. É um sofisticado jogo de
esconder em que é uma alegria estar escondido mas um desastre não ser achado.”
(p. 169, grifos do autor).
Algumas meninas são afortunadas por terem mães que respeitam seus
segredos, que são próprios da constituição da feminilidade no que se refere ao
interior do próprio corpo que é sempre um segredo para qualquer mulher. Para tanto
96
é necessário que a mãe tenha a capacidade de fazer a chamada comunicação
silenciosa e respeitar que a filha, assim como ela, tem um núcleo incomunicável que
não pode ser violado.
[...] Embora as pessoas normais se comuniquem e apreciem se comunicar,
o outro fato é igualmente verdadeiro, que cada indivíduo é isolado,
permanentemente sem se comunicar, permanentemente desconhecido, na
realidade nunca encontrado.
Na vida e vivendo, esse fato duro é amenizado por se compartilhar o que
pertence a toda a gama da experiência cultural. No centro de cada pessoa
um elemento não comunicável, e isto é sagrado e merece muito ser
preservado. Ignorando por um momento as experiências ainda precoces e
perturbadoras da falha da mãe-ambiente, eu diria que as experiências
traumáticas que levam à organização das defesas primitivas fazem parte da
ameaça ao núcleo isolado, da ameaça dele ser encontrado, alterado, e de
se comunicar com ele. [...] (ibid., p. 170, grifos do autor)
A moça que pode fazer os três tipos de comunicação, a silenciosa, a explícita
e a intermediária que pertence à criatividade e às experiências culturais, pode ter o
mundo interno constituído a partir de suas próprias experiências e enriquecido pelas
identificações cruzadas. A comunicação com a mãe e com outras mulheres e
homens não será feita para aplacar a desconfiança ou impossibilidade de ter
segredo, mas pela necessidade da adolescente de conquistar confiança e de poder
ter um segredo.
O que é não-eu pode ser repudiado e o será sem que o ambiente invada ou
retalie e assim por mais que a adolescente busque a reafirmação de quem é,
sempre contando com quem pode vir a ser, em tal busca, não sofre rupturas em sua
continuidade de ser, podendo criar uma identidade e uma forma de comunicação
pessoal.
Uma moça que não tenha o direito de exercer a não comunicação, terá que,
em último caso, defender-se com a constituição de um falso si-mesmo que proteja o
97
verdadeiro: este nunca será encontrado e ficará quanto mais invadido mais
escondido.
O falso si-mesmo se comunicará de forma submissa, ou seja correspondendo
às expectativas alheias, de modo que a pessoa que utiliza tal defesa está muito
implicada com qualquer relacionamento ou experiência: quem está implicado é o
falso si-mesmo.
A moça que não tem condição de viver as experiências sem usar esse tipo de
defesa a partir de identificações e de seus instintos sendo elaborados
imaginativamente pode precisar se defender, como na situação explicada, ou até
engravidar na tentativa de nunca estar só, uma vez que estar para ela, é viver
uma intensa angústia por não se sentir alguém, pelo sentimento de vazio e de que
não há nada e ninguém ali onde deveria ser.
3.2.2 Novas experiências de ambivalência vividas pelas adolescentes
Para apresentar a primeira conquista, a capacidade de viver a ambivalência,
são trazidos para este estudo trechos de uma entrevista terapêutica de Winnicott
com uma adolescente chamada Jane, e de comentários dele sobre essa
entrevista
13
.
A escolha de tal entrevista para apresentar o tema da ambivalência na
adolescência das moças ocorre por dois fatores: o primeiro é que Winnicott o
descreve cuidadosamente nas entrevistas apresentadas, e o segundo é que embora
esse sentimento seja vivido de forma intensa pela moça, não constitui parte de uma
13
A entrevista pode ser lida na íntegra em seu livro “Explorações Psicanalíticas”, com o título:
Deduções a partir de uma entrevista terapêutica com uma adolescente.
98
patologia, ou seja, apresenta-se o sentimento de ambivalência, como ocorre na
adolescência de moças saudáveis. Este caso ilustra, segundo Winnicott (1994),
apenas o retrato de uma moça.
Espero que tenham obtido desta descrição de caso algo do que obtive da
experiência real. Senti-me muito próximo da sensibilidade desta moça
adolescente e de seu contato vivo com seus mecanismos primitivos e
estados próximos da doença. Não praticamente um transtorno
psiquiátrico que não tenha sido aflorado, mas contudo, acho que a moça é
sadia. Duvido que ser tão interessante ou tão penosamente próxima da
verdade crua quando estiver com 25 anos. Aos 17, é uma jovem notável e
desajeitada. [...] apenas o retrato de uma moça. (p. 259)
Jane conta para Winnicott que a e tem muitos problemas, é muito
inteligente e profunda; a irmã é mais tímida, apenas 14 meses mais velha que Jane,
e elas não se dão bem, Jane a ama, mas a irmã sente muito ciúme dela. Jane diz
que as pessoas a consideram excêntrica, e seu pai bastante convencional; ela tem
pouco contato com o pai, que é separado da mãe.
Jane diz amar muito a mãe, mas não quer intimidade ou envolvimento
emocional com ela. Ela queria um irmão mais velho que fosse uma mãe para ela,
sem ser e, que tivesse um ombro no qual ela pudesse chorar, diz que jamais
choraria no ombro da mãe.
Ainda sobre a impossibilidade de ter que se preocupar com a mãe, Jane diz à
Winnicott: “O senhor vê, estou tentando ser um indivíduo, sim, estabelecer a minha
própria identidade, e enquanto estou fazendo isso, não posso dar-me ao luxo de
assumir as preocupações de mamãe. [...]” (ibid., p. 252).
Aqui verificamos que embora a mãe de Jane tivesse vivido uma depressão
quando ela tinha 12 anos, a moça sabia que não poderia suportar ser
responsabilizada pelos problemas da mãe.
99
O conflito em relação à mãe aparecia misturado com a dificuldade de Jane de
se separar da irmã, vivia com ela uma relação muito intensa e profunda, assim como
primitiva. A irmã era um objeto subjetivo para Jane, este foi o modo que ela
encontrou para se defender contra a ausência paterna ou de qualquer outro homem
adulto em sua vida e de não ter que se responsabilizar pela solidão e tristeza da
mãe.
Essas informações levaram Winnicott a considerar que a defesa de Jane seria
contra um elemento sexual em seu relacionamento com a mãe. Hipótese que
pode ser modificada com o exame cuidadoso feito por Winnicott e Jane em relação à
necessidade que ela tinha de se defender contra a intimidade com a mãe.
[...] estava tentando lidar com as rígidas defesas de Jane em seu
relacionamento com a mãe, e seus sentimentos conflitantes para com a
irmã. Esta ideia de uma defesa contra a homossexualidade fez sentido para
ela e debate isso com tanta facilidade que rapidamente me dei conta de que
a dificuldade principal não residia ali, onde eu havia esperado encontrá-la.
Ela disse perceber que sua 'repulsa de todo contato com a mãe era o
negativo do elemento sexual no relacionamento'. (ibid., p. 256, grifos do
autor)
As implicações clínicas da mudança que a teoria do amadurecimento humano
trazem para a clínica psicanalítica são várias e complexas. Como o é este o tema
do trabalho aqui proposto, fica registrada a observação, de que no caso de Jane tal
teoria foi fundamental para que Winnicott pudesse contrariar a própria hipótese de
homossexualismo para compreender a impossibilidade de ela ter intimidade com a
mãe.
O que ocorreu com esta moça, foi que na impossibilidade de agredir a mãe e
demonstrar seu impulso destrutivo, tampouco pôde manter uma relação de amor, e
assim experienciar a ambivalência e suportá-la para poder viver as relações
100
pessoais e amorosas de forma segura, ou seja, sem medo de efetivamente destruir
a mãe.
Tais defesas ocorreram também pela ausência de um pai ou homem que
fizesse o papel de quem cuida da mãe contra os impulsos destrutivos da criança
quando mãe e criança não conseguem fazer isso entre si.
Podemos verificar nesta fase, que diferentemente do que ocorre no início, no
estágio do concernimento, as experiências de ambivalência, na adolescência das
moças não ocorrem apenas em relação aos impulsos de amor destrutivos em
relação à mãe e aos buracos que podem fazer na mãe e em outras pessoas. A
preocupação neste estágio se amplia com o início da vida sexual, não mais apenas
em fantasia ou potencial, mas acontecendo de fato nas primeiras relações
amorosas.
Uma parte da iniciação da vida sexual, é indiferente em moças e rapazes, à
medida que utilizam o sexo para se livrar dos próprios impulsos, ou seja, o sexo
como modo de tentar diminuir, ou tornar suportável, a vivência da própria
destrutividade e agressividade.
A consciência e responsabilidade, das dores e tristezas que podem causar
uma relação de intimidade com outra pessoa, é uma aquisição que ocorre mais
tarde, no início da vida adulta, quando a pessoa já tem condição de viver um
relacionamento amoroso no qual não precise destruir o outro, nem desconsiderá-lo,
mas também acredita na capacidade do outro de se proteger e colocar limites
possíveis para que a relação possa ter continuidade.
Na adolescência o sexo pode servir como meio de se livrar dos próprios
instintos:
101
Havia uma importância especial para ela desta fusão e defesa contra fusão.
Não ingressamos nisso imediatamente. Em outras palavras, o ato sexual
físico mantinha as duas personalidades livres quanto ao fundir-se e a outros
mecanismos que pudessem ameaçar a qualidade intacta do indivíduo. Ela
andava procurando e encontrando o tipo de rapaz que vai para a cama; eles
têm um relacionamento sexual e, depois, se separam. Encontram-se e
separam-se e nenhum dos dois afetou o outro, e, a cada vez, um perigo foi
evitado. Cada um dos dois manteve sua própria individualidade. (ibid., p.
257)
Nas meninas, a excitação não é visível, cabe à mãe estar atenta e identificada
com a menina para que possa auxiliá-la. É importante para tanto que haja aceitação
da mãe de que a menina cresceu e agora como ela, será uma mulher que irá
procurar um homem para ser seu companheiro.
Na adolescência as fantasias de destruição e assassinato dos rapazes são
em relação ao pai, mas a das moças, são em relação à mãe, como explica Winnicott
em “Natureza Humana”. Caso a mãe não tolere a alta agressividade que pode
aparecer em alguns momentos, as moças correm o risco de ter que fingir ausência
do sentimento de raiva e esconder a própria excitação, entrando em um estado de
confusão em relação a si mesma. Por outro lado, se as mães aceitam com muita
facilidade a agressividade das moças, sem nenhuma oposição, estas não terão
como identificar seu potencial de conquista e sedução, de integrar a feminilidade
como parte desse jogo.
No caso de Jane, antes de se relacionar com a e, ela teria que alcançar
um si mesmo unitário. E assim ocorre com qualquer moça, nesse estágio. Para
suportar o sentimento de ambivalência em relação à mãe, é necessário que haja a
conquista de um self unitário, que entre outras experiências pode viver e suportar o
sentimento de ambivalência.
O sentimento de ambivalência nesse estágio difere do que se inicia no estágio
do concernimento, pois agora, se saúde, a moça não tem mais a mãe como
102
objeto subjetivo, porém, mesmo quando saúde, os adolescentes podem, em
períodos de extrema dependência, reviver a concepção de objetos subjetivos, seja
com os pais, ou com outras pessoas, por exemplo, quando se apaixonam. E este
sentimento pode diferir em moças e rapazes, sendo que um dos riscos que as
moças vivem e os rapazes não, é a gravidez na adolescência. O início da vida
sexual não implica, desde o surgimento da pílula anticoncepcional, em gravidez,
mas sempre a possibilidade dela acontecer, e isto faz parte da vida imaginativa
das moças.
Assim, o início da vida sexual de uma moça e sua possível gravidez, nos leva
a considerar tanto o aspecto objetivo, da pouca condição que uma jovem tem de
cuidar de um filho, sendo que vive a necessidade de recorrer à dependência dos
pais tanto em termos econômicos/sociais, quanto os psicológicos, e ainda quanto
aos aspectos: fantasioso, inconsciente, e subjetivo; a maternidade pode ser
sonhada, imaginada, como tentativa da moça em mudar a relação que tem com os
pais, consigo mesma e/ou com o namorado.
Winnicott (2005) apresenta a dificuldade que as moças vivem ao iniciar a vida
sexual sem que esta seja parte de uma relação de amor, que é construída com o
tempo e com o amadurecimento do casal. Tal dificuldade surge, pois há uma área na
vida de qualquer pessoa, na das moças também, que a lógica e a fantasia não se
unem.
Estou tentando ver se consigo demonstrar a vocês que, do meu ponto de vista,
uma área não resolvida na qual a lógica, e os sentimentos, a fantasia inconsciente,
etc, não se juntam. Eles não se relacionam um com outro de modo apropriado, não
se resolvem um ao outro, embora seja necessário possuir os dois, e seja necessário
tolerar as contradições. É claro que podemos resolver qualquer problema refugiando-
nos na área cindida do intelecto. De algum modo estamos livres de sentimento nesse
local: poderíamos dizer “dialético”; colocamos isto contra aquilo e podemos resolver
qualquer problema que exista. Ou, se não podemos, nos tornamos capazes. Mas se
nos refugiamos no intelecto cindido, não vão vocês pensar que conseguimos dizer:
“Certo, há problemas que não podem ser resolvidos, e nós conseguimos tolerar
tensões”. (p. 205, grifos do autor)
103
O início da vida sexual das moças, apenas em uma relação estável, como
parte de um casamento no qual era esperado gerar e criar filhos, não existe
bastante tempo. Com a invenção e o uso da pílula, a vida sexual das mulheres se
modificou de forma considerável.
Muitas moças deixaram de se preocupar com sua sexualidade como parte de
sua intimidade. Para ter uma relação sexual não se preocupam mais com uma
relação amorosa que se constitui baseada na confiabilidade, o que pode levá-las a
fazer sexo com rapazes que não se comprometem com elas, não utilizam todos
contraceptivos, correndo o risco de gravidez e de doenças mais graves, incluindo
risco de morte.
Quando isto ocorre, é possível afirmar que o está em jogo apenas uma
gravidez na adolescência, mas uma revolta, uma busca por um ambiente confiável
que se perdeu, que a vida das moças que aceitam tamanhos riscos, passou a
valer tão pouco.
Ainda há atualmente, moças que se questionam sobre o uso da pílula, estas o
fazem, quando têm consciência das consequências de uma gravidez nesta idade, o
que não ocorre apenas quando elas têm informações técnicas e objetivas sobre a
gravidez na adolescência. Claro que tais informações fazem parte de sua
consciência, mas como apresentou Winnicott, na citação anterior, nessa área, a
lógica não basta para explicar os acontecimentos.
O que realmente as leva a considerar as dificuldades de ter um filho nessa
fase da vida é o fato de terem um bom ambiente na adolescência e não quererem
perdê-lo, e se uma família confiável para a qual possam retornar em condições
de insegurança e ansiedade.
104
Além disso, se o processo de personalização tem acontecido com sucesso,
ou seja, se a moça consegue integrar as experiências próprias da adolescência, tais
como crescimento dos seios, menstruação, insegurança em relação ao que fazer
com o próprio corpo e com o do namorado, a gravidez seria um problema e não um
modo de tentar, consciente ou inconscientemente, encontrar um ambiente confiável
que deixou de existir.
Quando a moça tem um bom ambiente e questiona o uso da pílula e de
outros métodos contraceptivos, devido à consciência e medo da possibilidade real,
ou da fantasia de engravidar, ela pode viver a relação sexual de forma diferente,
suportando as inseguranças próprias de fazer sexo sem querer engravidar.
A vivência da relação traz ansiedade, medo e insegurança, que levam as
moças a considerar como, quando e com quem vão se relacionar sexualmente,
devido ao risco que correm. Isto claro, quando não o desejo de engravidar, seja
ele consciente ou inconsciente, o que implica em viver a situação amorosa como
ambiente necessário para que haja a relação sexual, além da vivência da
experiência de integrar os órgãos genitais, de nova maneira, agora como alguém
que tem um corpo que pode ter prazer com outra pessoa. a vivência de que tal
experiência precisa acontecer com alguém que a moça ame, confie e esteja criando
uma relação, que aos seus olhos seja estável naquele momento, apesar de todas as
intempéries da adolescência.
A responsabilidade por ter uma relação sexual, para a moça, é então, vivida
numa relação de cumplicidade com o rapaz que ela escolheu. Quando isto ocorre, a
moça tem a consciência de todas as transformações que podem ocorrer em sua vida
se tiver uma gravidez indesejada, na adolescência. Mudanças no próprio corpo, na
vida em família e na demanda que um filho tem. Sua vida não será a mesma e ela
105
perderá em grande parte, a condição de adolescente, que pode retornar a depender
dos pais, uma vez que com a gravidez haverá outra pessoa, muito mais dependente,
dela e de seus pais.
3.2.3 A identificação cruzada na adolescência das moças
Para apresentar a segunda conquista que se fortalece na adolescência e faz
parte da constituição da feminilidade das moças, a integração de aspectos
masculinos e se interrelacionar em função de identificações cruzadas, vale
mencionar que Winnicott (1990) no capítulo um, parte dois, do livro “Natureza
humana”, escreve que para fazer uma boa descrição da sexualidade feminina é
necessário conhecer a fantasia que a menina desenvolve a respeito do interior de
seu próprio corpo e do corpo da mãe. O autor faz tal descrição sob o título de
“posição depressiva no desenvolvimento infantil”.
Mais à frente ainda nessa mesma obra, capítulo dois, parte três, explica a
importância do fenômeno citado: “A capacidade do bebê ou do indivíduo de aceitar a
responsabilidade pela intenção destrutiva no impulso amoroso total, incluindo a raiva
pela frustração, que é inevitável por causa das exigências infantis onipotentes.”
(WINNICOTT, 1990, p. 106)
Esse fenômeno inicia-se na infância a partir de conquistas realizadas no
estágio do eu sou e mais ainda no estágio do concernimento, para meninos e
meninas. A afirmação de Winnicott que a posição depressiva é fundamental para que
possamos descrever a sexualidade feminina, levou neste estudo à investigação de
tal posição e, como foi descrita pelo autor, especialmente em relação ao
desenvolvimento da feminilidade das moças.
106
As meninas iniciam a conquista de suportar a ambivalência no estágio do
concernimento, sendo que na adolescência, novas experiências são vividas e
apresentam a ambivalência de outro modo na vida das moças.
Elas, quando saudáveis, sabem, pois se deram conta, bastante tempo que
a mãe ambiente é a mesma mãe objeto, a mãe que é atacada e odiada é a mesma
que é amada. A partir dessa integração, das mães sujeito e objeto em uma
pessoa, há identificação, mas a mãe possibilita que a menina se constitua como uma
pessoa separada e diferente dela.
Ainda que haja uma identificação suficiente da mãe com a menina e da
menina com a mãe, outras identificações são necessárias para que a excitação das
moças seja integrada como experiência boa e para que elas possam agir de modo a
expressar seus sentimentos de amor e ódio por outras pessoas, respeitando a si
mesmas e aos outros.
Vale ressaltar que embora seja necessário que a menina tenha conseguido se
identificar com a mãe e separar-se dela no estágio do concernimento para iniciar
suas conquistas rumo à independência, na adolescência, outras identificações são
também fundamentais para que sua feminilidade seja integrada tanto nas relações
que têm base instintual quanto nas de base não instintual.
O que importa neste momento é lembrar que as relações de objeto se
desenvolvem de maneira gradual e são realizações em termos do desenvolvimento
emocional do indivíduo. Inicialmente o objeto é subjetivo, não está separado do
sujeito. A partir de conquistas feitas ao longo do amadurecimento o indivíduo chega
no estágio de ter se tornado uma unidade.
Na medida em que o menino ou a menina, individualmente, chegam a uma
organização pessoal da realidade psíquica interna, esta última é
constantemente comparada com exemplos da realidade externa ou
107
compartilhada. Desenvolve-se uma nova capacidade de relação de objeto, a
saber, uma capacidade baseada num intercâmbio entre a realidade externa
e exemplos oriundos da realidade psíquica pessoal. (WINNICOTT, 1975, p.
78)
Desse estágio o que Winnicott apresenta de inovador e fundamental para a
compreensão da constituição da feminilidade, é que há um estabelecimento de
relacionamentos baseados não nos instintos, mas nos afetos, nas identificações.
Portanto, diferente do que coloca a psicanálise tradicional, os instintos são sempre a
força que leva as pessoas a agirem ou que lhes possibilitam ser. As identificações
viabilizam que a pessoa seja e só depois de ser é que poderá agir.
Fazer, ou o elemento masculino puro, não é exclusivo dos homens, é
necessário a qualquer ser humano. É na identificação com os homens que as moças
poderão ser e fazer. Na adolescência a importância dos inter-relacionamentos com
base nas identificações cruzadas, reside no fato de as moças saudáveis poderem
manter o mundo subjetivo, e viverem a realidade compartilhada, sem que um ou
outro seja aniquilador.
Neste estágio iniciam-se os jogos sexuais. Mas antes deles há ainda algo
mais importante que são os jogos que favorecem os adolescentes de serem si
mesmos, jogos que ocorrem quando há uma identificação da pessoa com um grupo
que aceite aquele que ele é naquele momento, e havendo mudanças, novos grupos
são buscados, porém segue a brincadeira de experimentar ser si mesmo, se
identificando com outros, sem se alienar de si.
Experiências dadas nas relações de identificação cruzada possibilitam que
todos os outros jogos aconteçam, inclusive as paixões adolescentes. Inúmeras
introjeções e projeções são feitas, o colocar-se no lugar do outro: tudo isto é vivido
com intensidade em tal período.
108
A psicanálise tradicional tratou de forma exaustiva os fenômenos ocorridos
nas relações de objetos determinadas pelos impulsos; todas as que não são, mas
que têm base em identificações ficaram de fora, principalmente na adolescência,
período em que os instintos começam a ser sentidos de maneira também intensa.
Por isso, com base na teoria winnicottiana, chamamos a atenção para a
importância das identificações nas inter-relações, e agora de forma específica, na
constituição da feminilidade nas moças.
Ter a condição de se identificar imaginativamente com homens nesse estágio,
sem perder as outras identificações feitas anteriormente desde a primeira com a
mãe, que depois será transformada para a mãe/mulher e as outras meninas, moças
e mulheres, auxilia a moça a escolher com quem irá se relacionar amorosamente. “A
identificação imaginativa com o macho enriquece a percepção que a menina faz da
função do homem, e eventualmente fortalecerá sua ligação pessoal ao homem que
ela vier a escolher.” (WINNICOTT, 1990, p. 63)
As moças, quando tudo corre bem, conseguem fazer a escolha de seus
namorados, com base em seus impulsos e nas identificações com eles. Assim as
adolescentes que ainda não integraram aspectos da personalização próprios às
mudanças desse estágio correm mais riscos de se relacionar de modos também não
integrados. O problema que as adolescentes enfrentam é que a desilusão ainda não
foi estabelecida, de maneira que as idealizações e ilusões ainda são bastante
presentes nas experiências, de modo geral, incluindo as primeiras relações
amorosas e sexuais. Mas ao adolescente não é possível ser maduro e nem ter
responsabilidade sobre si mesmo e com os outros, de modo que fundamental então,
não é o que acontece sexualmente, não é o início das relações sexuais, mas a
109
possibilidade de enfrentar as desilusões, sem se perder de si, sem que haja
desintegração ou dissociação.
A tarefa das moças é muito mais relacionada com a conquista de integração
de experiências relacionadas às identificações, à condição de suportar ambivalência,
conviver com as desilusões, tornar-se cada vez mais incorporada, ou personalizar-
se, para que o encontro com os outros não as façam perder as conquistas
anteriores, a organização do mundo interno, a separação que é dada na pele em
última instância, entre elas e os outros.
Os instintos fazem parte de todas essas experiências, contudo apenas
poderão ser integrados nas relações interpessoais a partir de conquistas gradativas
feitas em cada estágio do amadurecimento humano.
A constituição da feminilidade na adolescência das moças se trata da
condição a ser conquistada, de suportar a ambivalência, de modo um pouco
diferente do que ocorre no estágio do concernimento, e de conviver com as
desilusões cada vez mais existentes diante das ilusões e idealizações concebidas.
110
CAPITULO 4 – A FEMINILIDADE NA MULHER MADURA
4.1A VIDA ADULTA
Na teoria do amadurecimento humano de Winnicott, a vida adulta consiste em
realizar três tarefas: manter-se vivo e criativo, aceitar a impotência e a imperfeição e
poder envelhecer e morrer.
A primeira diz respeito ao fato de o adulto não perder contato com a realidade
compartilhada e a realidade subjetiva. Poder viver de modo criativo implica dar
constante sentido à vida.
A segunda faz parte de uma depressão, quando não constitui uma doença, ou
seja, saber que a vida é imperfeita e nem tudo ocorre do jeito que gostaríamos, mas
que ainda assim vale a pena viver.
E a terceira, que inclui a morte como parte do amadurecimento humano,
significa que, para envelhecer e morrer, a pessoa tem que ter vivido aentão e tem
que estar em condição de ser si-mesmo e se saber si-mesmo, que só ocorre quando
há o sentido de ser em uma totalidade.
4.2 A MULHER E A MATERNIDADE
A importância da relação entre mãe e filho, principalmente entre e e bebê
na teoria winnicottiana, pode ser verificada ao longo de toda a obra do autor e
analisada sob diferentes aspectos.
No presente capítulo iremos apresentar a maternidade relacionada à mulher
madura e à sua feminilidade. Pensando no ciclo hormonal e na idade cronológica
111
poderíamos reunir três grupos de mulheres: as jovens adultas, as mulheres que
estão prestes a viver a menopausa e as mulheres que estão experienciando a
menopausa. Porém essa divisão de categorias pode encobrir o que de mais
importante nas vivências desse estágio, que mais do que estarem relacionadas a
ciclos hormonais ou cronológicos, referem-se à conquistas psicossomáticas, a
processos de personalização vividos pelas mulheres, à sua condição ou falta de
condição de experienciar relações e situações comuns a esse estágio.
Quando saúde, a idade cronológica é similar ao amadurecimento pessoal.
Uma jovem adulta saudável tem em princípio, condição psíquica para ser mãe.
Diferentemente da adolescente, é capaz de lidar com todas as transformações
que a maternidade traz. Não é fácil, mas possível.
As transformações que a gravidez traz estão relacionadas ao fenômeno de
poder deixar de ser apenas filha para ser mãe, sendo que quando saúde, tal
transição não é novidade para as mulheres que têm seu desenvolvimento baseado
na linhagem feminina, uma vez que, como mencionado anteriormente na introdução,
são sempre três: a bebê, a mãe e a avó.
A condição de possibilidade de ser mãe é dada ao longo do processo de
amadurecimento quando a filha pode se identificar com a mãe e saber que o que
tem dentro de si é bom e pode guardar um bebê, e se saudável, entrar no estado de
preocupação materna primária.
Ou seja, o estado em que a mãe se encontra no final da gravidez e nas
primeiras semanas de vida do bebê após o nascimento é que a possibilita se
identificar com ele a ponto de saber quais são suas necessidades e providenciar o
que for preciso para que elas sejam atendidas.
112
[...] lidamos com um estado muito especial da mãe, uma condição
psicológica que merece um nome, tal como Preocupação Materna Primária.
... Esta condição gradualmente se desenvolve e se torna um estado de
sensibilidade aumentada durante, e especialmente, no final da gravidez;
continua por algumas semanas depois do nascimento da criança; não é
facilmente recordada, uma vez tendo a mãe se recuperado
dela...(WINNICOTT,1988, p. 493, grifos do autor).
Nada mais interessa à mulher nos primeiros meses de vida de seu bebê, ela
não quer trabalhar, se cuidar e na verdade nem se lembra que ela existe para além
do bebê.
Não acredito que seja possível compreender o funcionamento da mãe na
fase mais inicial da vida de um bebê, sem entender que ela deve ser capaz
de atingir este estado de sensibilidade aumentada, quase uma doença, e
recuperar-se dele. (Introduzo a palavra doença” porque é necessário que a
mulher seja saudável tanto para desenvolver este estado quanto para se
recuperar dele quando o bebê a libera. (ibid., p. 494, grifos e parênteses do
autor).
É fundamental que a mãe ou alguém que cuidará do bebê como se fosse a
mãe entre neste estado para que haja o início da constituição da personalidade do
bebê como explica Leal (2004):
[...] vemos que Winnicott coloca este estado emocional de total devoção por
parte da mãe, como ponto de partida do processo de constituição da
personalidade, condição básica sem a qual processos essenciais como a
formação de um eu unitário, o alojamento da psique no corpo e a inserção
na realidade serão prejudicados ou podem nem se dar. (p. 162)
Isso não decorre de teoria nem de técnica, as es entram em tal estado
porque estão extremamente preocupadas com seus bebês e com o fato de terem
que cuidar deles. Elas sabem quão frágeis são seus bebês no início da vida e que
são totalmente dependentes delas, isso é o que as faz entrar no estado de
preocupação materna primária.
113
Winnicott chamou essas mães de “mães devotadas comuns” e sobre isto diz
que por devotadas apenas quis dizer devotadas, não nada de mágico nisso
explicando em seguida que as mulheres não ficam neste estado sempre, e que
fazem muitas coisas na vida, trabalham, jogam etc, até que um dia “elas hospedam
um novo ser humano que decidiu chegar... com um crescente de demandas e que,
um dia em um futuro longínquo, haverá paz e silêncio novamente” (WINNICOTT,
1988, p. 5).
Uma mulher precisa de tempo para se preparar para ser mãe, ela terá os
nove meses de gestação para fazer tal preparo, mas ainda assim será possível
se ela tiver as memórias de quando ela foi um bebê e de ter sido cuidada ou não o
que fará total diferença ao facilitar ou dificultar sua tarefa de ser mãe. “Afinal de
contas, ela foi um bebê no passado, e ela tem em si as memórias de ter sido um
bebê; ela também tem as memórias de ter sido cuidada, e essas memórias a
auxiliam ou atrapalham em sua própria experiência como mãe.” (ibid., p. 6)
Além de suas próprias memórias a mulher precisa de um ambiente que cuide
dela enquanto ela cuida do bebê, um ambiente físico como um bom médico,
hospital, casa, condições de higiene e saúde e também um bom ambiente
psicológico, um marido e uma família que a apóiem e cuidem dela de maneira
apropriada.
O papel do pai é de suma importância e apenas a mulher saudável escolhe o
homem que vai querer que seja pai de seu filhos, as que não têm essa condição
acabam por viver na gravidez um período de muita insegurança, dificultando sua
iniciação como mãe.
Assim ela poderá realizar a tarefa que se iniciará quando o bebê nascer, e
que não se trata apenas de cuidar para que o bebê mame e seja limpo; a mãe terá
114
que providenciar o holding, que é um cuidado muito específico que não se aprende
em livros.
Trata-se de a mãe estar de tal modo em contato com seu bebê que ela sabe
quando ele precisa relaxar, quando ele precisa ser pego, ser deixado etc. Tal
contato é viabilizado pela condição da mãe de amar adaptada às necessidades dos
bebês em diferentes momentos de suas vidas. Para esclarecer, o trazidos os
diferentes significados para o amor entre mães e filhos de acordo com Winnicott
(2005):
À medida que a criança cresce, o significado do termo 'amor' vai se
alternando, ou enriquecendo-se com novos elementos:
i.Amor significa existir, respirar; estar vivo identifica-se a ser amado.
ii.Amor significa apetite. Aqui não preocupação, apenas a necessidade de
satisfação.
iii.Amor significa contato afetuoso com a mãe.
iv.Amor significa a integração (por parte da criança) do objeto da experiência
instintiva com a mãe integral do contato afetivo; o dar passa a relacionar-se ao
receber, etc.
v.Amor significa afirmar os próprios direitos à mãe, ser compulsivamente
voraz, forçar a mãe a compensar as (inevitáveis) privações por que ela é
responsável.
vi. Amar significa cuidar da mãe (ou do objeto substituto) como ela cuidou da
criança uma prefiguração da atitude de responsabilidade adulta. (p. 19, grifos
do autor)
4.3 A MULHER QUE NÃO É MÃE, A PÍLULA E O ABORTO
Buscamos até este momento do estudo evidenciar toda importância e
complexidade da maternidade na vida da mulher e como esta influencia a
constituição da sua feminilidade. Mas há o contraponto que ocorre quando a mulher
não quer ter filhos, mas engravida e faz um aborto, ou toma pílula para não
engravidar. Ainda assim sua feminilidade é constituída, mas de outra forma.
115
Em relação ao uso da pílula, bastante difundido, queremos apresentar o modo
com que isso influencia as mulheres em seus relacionamentos afetivos e sexuais e
com o próprio corpo, consigo mesmas, ou seja, influencia toda sua feminilidade.
Winnicott em seu texto “A pílula e a lua”, apresenta o uso da pílula
relacionando-o às mudanças que promove na sociedade, e na vida imaginativa das
mulheres, que segundo o autor não foi devidamente considerada quando
relacionada ao uso da pílula: “eu apostaria que não fizemos nossa lição de casa no
que diz respeito ao lado imaginativo disso” (WINNICOTT, 2005, p.198).
Para compreender as interferências do uso da pílula na constituição da
feminilidade da mulher é preciso analisar os seguintes aspectos: 1) o uso de um
remédio quando não doença; 2) uma aproximação de um modo masculino de
integrar a sexualidade; 3) o uso pela falta de condição ambiental de cuidar de um
bebê.
A pílula não é o único todo contraceptivo eficiente, mas é o mais utilizado,
outros como os internos que o colocados no corpo da mulher e o masculino
que não requer uso contínuo e nem altera em nada o corpo do homem.
A utilização da pílula traz um controle necessário da taxa de natalidade:
[...] algum método acaba sendo descoberto quando o ambiente se torna
insuficiente para dar conta do número de crianças. O mundo teve,
realmente, um excelente método, até recentemente. As pessoas morriam de
disenteria e outras coisas, mas agora os médicos aparecem e dizem: 'vocês
não precisam morrer de disenteria, não precisam morrer de malária, não
precisam morrer de doenças nem de epidemias. (ibid., p. 206).
As mulheres têm papel principal no controle de natalidade, uma vez que são
elas que estão sendo responsabilizadas por utilizar um método para não engravidar.
116
Isto tem sido apresentado como uma forma de controle que a mulher exerce sobre o
próprio corpo.
Mas segundo a teoria winnicottiana, a saúde acontece quando o corpo é vivo,
quando uma integração psicossomática, e se isso ocorre a mulher não vai querer
engravidar se não m condição para cuidar de um bebê, mas não para auxiliar a
sociedade na manutenção da taxa de natalidade.
A pílula e seu uso têm sido associados à saúde, desde que utilizada por
mulheres que tenham tido uma boa integração psicossomática e optem por não ter
filhos em dado momento da vida.
O uso da pílula também está relacionado ao lado imaginativo, não apenas ao
lógico. Quando moças começam a usar a pílula mesmo que não tenham iniciado sua
vida sexual, apenas para fazerem parte de um grupo, ou para se sentirem mulheres,
identificando-se com as que usam, então temos uma situação de despersonalização,
em que o corpo passa a ter que ser controlado e não integrado.
A pílula viabiliza que a mulher tenha relação sexual e não engravide, o que
trouxe uma liberação sexual e um novo modo de lidar com a sexualidade feminina,
aproximando o sexo para a mulher apenas como fonte de prazer, o mais
necessariamente ligado à vontade de ser mãe.
A liberação sexual da mulher envolve a mudança de um paradigma em que
ela foi vista por séculos, a separação entre a mulher com a qual se tem prazer e
aquela identificada à maternidade. Porém, mais importante do que este paradigma,
o que ocorre é a dissociação de algumas mulheres, ou de muitas, relacionadas aos
processos de personalização. Na saúde, quando não ocorre esse tipo de
dissociação, a mulher durante o processo de amadurecimento humano, consegue se
117
identificar com a mãe, com as outras mulheres e com os homens nas chamadas
cruzadas.
A identificação com a mãe lhe condição de ser e se sentir viva numa
relação conjugal que envolva a maternidade. Inclusive se sentirá em condição de
cuidar quem sabe que um dia recebeu tais cuidados quando foi filha.
A identificação com as outras mulheres favorece a integração de experiências
que não estejam relacionadas à maternidade, mas, a padrões culturais que
influenciam os padrões pessoais de feminilidade.
Há modos de se relacionar com os outros e consigo mesma a partir do mundo
subjetivo, que nas mulheres vêm acompanhados da elaboração imaginativa do
órgão genital feminino e da fantasia sobre o que dentro de si, um mundo possível
de guardar algo muito especial.
Tal fantasia de guardar algo especial, ou como Winnicott relaciona em
“Natureza Humana” (1990) de poder guardar um segredo estão relacionados ao lado
feminino da natureza humana. Quando a mulher tem a ideia de que o que tem
dentro de si é especial, não se relaciona com os outros de modo a desconsiderar tal
experiência, o que lhe um sentimento de si mesma integrado às experiências
corporais.
A sexualidade feminina inclui as diferentes naturezas de cuidado e amor,
levando em consideração suas necessidades em termos de assistência física, da
capacidade de concepção e percepção de mundo subjetivo e objetivo. O que
significa que independente de ser mãe, a vivência da sexualidade da mulher implica
a possibilidade de ser ambiente para outro indivíduo.
Quando dissociação ou despersonalização relacionada a essa
possibilidade, escrita acima, a mulher pode aproximar seu modo de integrar a
118
sexualidade a um modo masculino, no qual, não faz parte, ter um lugar dentro de si
que pode ser ambiente para outro ser humano.
Assim o corpo passa a ser desconsiderado e não mais vivido como um
possível ambiente para outro ser humano, e o que de potencialmente especial
nisso não é considerado como especial e nem como tipicamente feminino.
Algumas mulheres realmente não têm condição de cuidar de um bebê, e a
sociedade não tem condição de dar assistência a essas mulheres no sentido de
cuidar de seus filhos. Uma das saídas para isto é a diminuição da natalidade.
estou dizendo: “É claro que reconhecemos que existem épocas em que
dizemos, 'sim, nós matamos bebês'. Só que o fazemos de modo respeitoso”
Não porque os odiemos esse é o ponto. Matamos os bebês porque não
podemos proporcionar-lhes um ambiente adequado para que eles cresçam.
(WINNICOTT, 2005, p. 209).
Quando há saúde, a continuidade do processo de personalização na vida
adulta é que condição da mulher de se relacionar sexualmente com um
companheiro maduro, o que ocorre nas relações em que ambos se responsabilizam
pelo que podem fazer um com o outro no ato sexual, inclusive com o corpo do outro
e o que vai deixar o outro fazer com o próprio corpo.
A relação sexual pode ser uma forma de relação íntima entre dois seres
humanos quando não utilizam o sexo como um modo de se livrar dos impulsos,
podem experienciar os impulsos e suas satisfações ou frustrações de outras
maneiras.
Mas algo muito diferente disso também pode ocorrer, pessoas que
precisam se livrar dos impulsos, os quais não são vividos como próprios, e de fato
não foram incorporados, logo o sexo também não é vivido como próprio. Quando
119
uma mulher vive essa dissociação um complicador, uma possível gravidez de
uma mulher que não vive o corpo como próprio.
E a mãe que o teve uma boa integração psicossomática terá dificuldades
em auxiliar o bebê nesta tarefa, se for bebê fêmea a identificação com a e como
aquela que tem um corpo de mulher assim como o seu fica comprometida e toda a
constituição da feminilidade dessa pessoa implicará em retomar o processo de
amadurecimento especialmente a integração psicossomática para que a feminilidade
seja constituída.
Para tais mulheres o uso da pílula pode ser benéfico ao auxiliar na
impossibilidade real de cuidar de um bebê, o que não modifica em nada uma
situação anterior de não integração dos instintos, mas é uma opção social de
controle de natalidade.
O aborto é mais complexo do que a utilização de pílula como modo de
diminuir ou controlar a população. Ele implica em uma decisão de ação ilegal, no
Brasil, e em uma complicada maneira de explicitar a falta de condição da mulher em
ter um filho e cuidar dele.
O aborto diz respeito a questões religiosas, legais e psicológicas. As últimas e
que nos interessam neste trabalho implicam em pensar em quem é a mulher que
decide fazer o aborto, em qual estágio do amadurecimento pessoal ela se encontra
e se ela realmente teria condição de cuidar de um filho.
Cuidar não no sentido de ter capacidade econômica, ou intelectual, mas de
poder se identificar de tal modo com aquele bebê, que mesmo que ele não fale, ela
sabe o que ele precisa e faz com que as necessidades do bebê sejam atendidas,
não de forma mecânica, mas de forma pessoal, ou seja, o insere na possibilidade de
se tornar um ser cada momento mais integrado. Isto implica em ter uma
120
preocupação com o outro que não é baseada em regras morais, mas em cuidados
pessoais.
O estudo do aborto sugere que as mulheres imprimem uma construção
característica aos problemas morais, vendo os dilemas morais em termos
de responsabilidades conflitantes. Essa construção foi historiada através de
uma seqüência de três perspectivas, cada qual representando um
entendimento mais complexo do relacionamento entre o eu e o outro, e
cada transição envolvendo uma reinterpretação crítica do conflito entre
egoísmo e responsabilidade. A seqüência do julgamento moral das
mulheres vai de uma preocupação inicial com a sobrevivência a um exame
da bondade e finalmente a uma compreensão reflexiva do cuidado como o
guia mais adequado para a solução de conflitos nas relações humanas. O
estudo do aborto demonstra a centralidade dos conceitos de
responsabilidade e cuidado nas elaborações do domínio moral das
mulheres, o estreito vínculo no pensamento das mulheres entre as
concepções do eu e de moralidade, e por fim a necessidade de uma teoria
desenvolvimental ampliada que inclua, em vez de regras inquestionadas, as
diferenças na voz feminina. Tal inclusão parece essencial, não apenas para
explicar o desenvolvimento das mulheres, mas também para entender em
ambos os sexos as características precursoras de uma concepção moral
adulta. (GILLIGAN, s/d, p. 115)
A teoria winiccotiana propõe uma ética do cuidado, tema que não será
discutido nesse trabalho, mas que nos indica que a constituição da feminilidade nas
mulheres implica em analisar os diferentes estágios do amadurecimento da mulher e
como são feitas suas tarefas de personalização, integração no tempo e no espaço e
de sua entrada na realidade compartilhada, mas também em sua específica
possibilidade de ter um filho e ter ou não condição de cuidar dele.
Uma mulher pode ser feminina, integrar sua feminilidade, cuidar de si e dos
outros, e ainda assim o querer ou não ter condição de reviver uma relação de
dupla dependência como acontece na gravidez e nos primeiros meses de vida de
um bebê.
121
4.4 A MULHER E A PREOCUPAÇÃO COM OS OUTROS
A preocupação na teoria winnicottiana está relacionada às aquisições feitas
no estágio do concernimento, independente de serem meninas ou meninos. Todos
aqueles que constituem um si-mesmo saudável vivem esse período e adquirem a
capacidade de se preocupar/concernir.
Essa é uma compreensão que nem sempre existiu na Psicanálise. O modelo
tradicional da Psicanálise descreve o desenvolvimento do superego e não da
preocupação/concernimento, o qual foi apresentado por Freud a partir de uma
estrutura que organiza diferentes julgamentos morais entre homens e mulheres.
Nossa compreensão acerca do desenvolvimento do senso de justiça, com
base na teoria winnicottiana, decorre da capacidade de concernir/preocupar-se. Tal
conquista não está de modo algum relacionada a sujeitar-se às exigências da vida,
mas sim da aceitação que a destrutividade é pessoal e da possibilidade de
reparação do estrago feito.
Esse tema foi explicado no estágio do concernimento, mas é resumidamente
apresentado aqui, para poder fazer a discussão da existência ou não de um modo
feminino de se preocupar. Para a apresentação do surgimento da moralidade
pessoal e da condição de se preocupar/concernir, vale trazer as concepções de Dias
(2003):
Na teoria winnicottiana, é assim que se constitui o fundamento de uma
moralidade pessoal, que não é imposta de fora nem ensinada [...] É essa
experiência que, dando sustentação ao crescimento ambiental, leva à
consciência da existência do outro e à capacidade para identificação
cruzada, que é um pôr-se no lugar do outro. [...] É de notar que, em
Winnicott, a moralidade se constitui num contexto não-edípico, não estando
referida à lei ou à interdição; o que lhe é essencial não está definido em
termos de adequação ou transgressão a não ser secundariamente, para o
indivíduo socializado -, mas em termos do cuidado em permitir, à criança,
ser si-mesma, de tal modo que também ela adquire a capacidade de deixar
ser o outro como um si mesmo. (p. 264)
122
Ou seja, a capacidade de se colocar no lugar do outro, de ser si-mesmo e
deixar que o outro seja si-mesmo acontece tanto em mulheres quanto em homens.
Desde que a criança tenha tido a possibilidade de confiar no ambiente e reparar os
danos causados por sua destrutividade sem ser retaliado, porém, uma diferença
no modo que isso ocorre entre mulheres e homens, não em termos de ser mais ou
menos justo, de ter melhor ou pior senso de justiça, mas de um lado feminino da
natureza humana que faz parte do desenvolvimento de qualquer mulher e de um
lado masculino da natureza humana que faz parte do desenvolvimento de qualquer
homem.
As mulheres se desenvolvem numa linhagem feminina de identificação com a
mãe diferente do que ocorre com os homens. Elas são sempre três, uma bebê, uma
noiva e uma avó, o que inclui poder cuidar de si, ser o ambiente e cuidar do outro e
deixar que cuidem dela.
Os homens têm um desenvolvimento uno, a partir da primeira identificação
realizada no início da vida, sempre terão memória dela e poderão cuidar de outras
pessoas e de si mesmos, mas fundamentalmente desenvolvem-se a partir do
cuidado consigo.
Eles podem ter um desenvolvimento mais feminino e desenvolver a
capacidade de cuidar sendo um ambiente para os filhos, por exemplo, mas de
alguma maneira precisam desenvolver um aspecto agressivo, de luta, para poderem
engravidar uma mulher.
No desenvolvimento da sexualidade madura, na vida adulta, isto fica explícito,
o homem não precisa se preocupar com o que vai acontecer com seu corpo depois
de uma relação sexual, a mulher sempre tem essa preocupação; em seu corpo algo
pode ser feito, uma gravidez pode ocorrer sempre que há uma relação sexual.
123
O colocar-se no lugar do outro para a mulher, na relação adulta entre homem
e mulher, sempre implica em três aspectos, uma preocupação consigo mesma, com
o outro que ela escolhe se relacionar e com o que pode ser gerado de tal relação. A
preocupação masculina é apenas uma, ele pode se ocupar de organizar modos de
que tal relação seja segura para ele e não lhe ofereça riscos de fazer algo no corpo
da mulher, como uma gravidez, mas sua preocupação é apenas uma.
A preocupação humana implica em modos de existir, e de ser responsável,
principalmente na vida adulta, período em que, nas pessoas saudáveis, muitas
aquisições foram feitas e condições e capacidades conquistadas, incluindo a de
escolher as pessoas com as quais se relacionar, e como se responsabilizar por tais
relações.
Loparic (2003) em seu livro “Sobre a responsabilidade” apresenta a nova
maneira introduzida por Heidegger, de colocar a questão da origem da
responsabilidade humana. “... não é imposta pelas leis da natureza ou da moral, mas
pela exigência de dar sentido à presença.” (p. 36). Sobre as diferentes
responsabilidades, o autor escreve:
No nível ontológico, o homem tem que cuidar dos diferentes sentidos da
presença dos entes no seu todo. No nível ôntico, ele tem que ocupar-se e
preocupar-se com os entes eles mesmos. O cuidado (Sorge) para com a
transcendência torna-se, no nível ôntico, cuidado para com diferentes
mundos-projetos que, por seu turno, nos impõem tarefas referentes aos
outros seres-humanos e às que dizem respeito às coisas intramundanas.
Em resumo, a questão da responsabilidade bifurca, desde o início: uma
linha vai em direção dos projetos a priori do sentido do ser e a outra em
direção do deixar-ser os entes eles mesmos, os humanos e os
intramundanos, à luz desse ou daquele sentido do ser, anteriormente
projetado, e num mundo-projeto em que nos movemos. (p. 37)
No mesmo texto Loparic explica que a responsabilidade não se origina a partir
de um modo de manter a preservação da vida e nem de interesses pessoais ou não.
124
No plano ôntico a responsabilidade se na presença concreta dos outros, ou seja,
para ser responsável primeiro é preciso ser um ser total, uma pessoa inteira.
Segundo o autor dois tipos de responsabilidades concretas, as quais são
interessantes para o estudo sobre o desenvolvimento da responsabilidade implicado
na constituição da feminilidade. São eles: cuidar dos outros, preocupando-nos com
eles; e nos responsabilizarmos pelas coisas primeiras, nos modos de lidar com os
entes, do domínio das obrigações morais e legais.
O primeiro modo sempre foi atribuído socialmente como uma obrigação da
mulher, desde ser a responsável pelos cuidados com a casa, com o marido, e com
os filhos. O segundo modo de se responsabilizar é visto socialmente como papel do
homem e da mulher.
Carol Gilligan fez uma apresentação a partir de três pesquisas com uma
população de mulheres, da moralidade e responsabilidade femininas, ou que são
atribuídas à feminilidade em seu livro “Uma voz diferente”. Sobre sua pesquisa ela
escreve o seguinte:
Quando se começa com o estudo das mulheres e se extraem constructos
desenvolvimentais a partir de suas vidas, o esboço de uma concepção
moral diferente da descrita por Freud, Piaget ou Kohlberg começa a surgir e
esclarece uma definição diferente de desenvolvimento. Nessa concepção, o
problema moral surge de responsabilidades conflitantes e o de direitos
em disputa, e exige para sua solução um modo de pensar que é contextual
e narrativo em vez de formal e abstrato. Essa concepção de moralidade
como envolvida com a atividade de cuidado centra o desenvolvimento moral
em torno da compreensão da responsabilidade e dos relacionamentos,
assim como a concepção de moralidade como eqüidade vincula o
desenvolvimento moral à compreensão de direitos e regras. (s/d., p. 29).
Ao relacionar a origem da moral com a responsabilidade e como atividade de
cuidado, Gilligan se aproxima da teoria winnicottiana, que além de apresentar a
origem da moral nos relacionamentos humanos, desde o primeiro quando a mãe
125
cuida do bebê que é totalmente dependente dela, Winnicott nos apresenta a
obediência não mais como sinônimo de desenvolvimento.
Amadurecer é poder viver de forma pessoal, aceitando a realidade
compartilhada sem perder a subjetividade. assim é possível que uma pessoa se
responsabilize por aquilo que lhe tem importância, isso não pode ocorrer por
imposição, mas por ela ter sido respeitada, para conquistar uma preocupação
verdadeira para tal pessoa.
A civilização começou de novo dentro de mais um ser humano, e os pais
deveriam ter um código moral à espera do filho para quando ele, mais tarde,
começar a procurar algum. Uma função pertinente a essa atitude será
humanizar a própria moralidade exaltada, mas imperfeita, da criança, sua
aversão à obediência, às custas de um modo de vida pessoal. É bom que
essa moralidade exaltada seja humanizada, mas não deve ser eliminada
como poderá ser por pais que dêem um demasiado valor à paz e
tranqüilidade. A obediência acarreta compensações imediatas e os adultos
incorrem muito facilmente no erro de confundir obediência com crescimento.
(WINNICOTT, 1977, p. 109
).
A aproximação entre a pesquisa de Gilligan e a teoria winnicottiana, baseada
na fundamentação filosófica apresentada por Loparic, origina uma nova
compreensão da moral feminina na psicanálise, deixa de ser compreendida como
uma falta de condição da mulher de viver as exigências da vida, e de considerar que
as mulheres têm menor senso de justiça.
Para uma compreensão da moralidade baseada no cuidado e desenvolvida
nos relacionamentos humanos, o que coloca as mulheres em outro modo de relação
com a moralidade é o fato de poder ser alguém que tem outra pessoa dentro de si,
totalmente dependente dela. A partir de sua condição de cuidar de outro ser humano
de modo bastante específico quando mãe.
Isto não indica que homens sejam menos responsáveis ou preocupados, mas
que se alcançaram as conquistas iniciadas no estágio do concernimento, e foram
126
respeitados em seu sistema moral pessoal, conquistaram a moralidade baseada no
cuidado e não na imposição de um sistema de regras.
4.5 AS MULHERES MADURAS E A SOCIEDADE
A Psicanálise tradicional foca todo o desenvolvimento da feminilidade, ou dos
estudos acerca da mulher, no trauma sentido pela falta e pela consequente inveja do
pênis.
Winnicott apresenta a genitalidade plena da mulher como um estágio em que
ocorre a igualdade entre homens e mulheres no sentido de sua potencialidade. Elas
se tornam invejadas pelos meninos, podem atrair, ficar grávidas, ter mistérios.
Isto desde a puberdade, mas na idade madura, a mulher além de não ter mais
a inveja do pênis está tomada por outras questões, como ser uma pessoa autônoma
numa sociedade machista, ser e e trabalhar, cuidar da casa e de si mesma, dos
filhos, ser esposa.
Na idade madura, quando a mulher está saudável, os diferentes modos de
viver e se relacionar fazem parte da vasta e complexa gama de experiências vividas,
incluindo todas as fantasias que enriquecem as experiências reais de um indivíduo.
É uma característica da maturidade, e conseqüentemente da saúde, que a
realidade psíquica interna do indivíduo se enriqueça o tempo todo com
experiências, e faça com que as experiências reais do indivíduo sejam o
tempo todo, ricas e reais. Desse modo, tudo o que existe sobre a face da
Terra pode ser encontrado no indivíduo, que é capaz de sentir a realidade
de tudo o que seja verdadeiro e passível de ser descoberto. (WINNICOTT,
2005, p.189)
Quero dizer com isto que se uma mulher não tem condição de ser uma
profissional de sucesso, mãe, esposa, ou qualquer outro papel, não significa que ela
127
seja menos mulher ou menos capaz, apenas que ela não terá nenhum ganho em
realizar tais papéis, pois é o que se espera dela. O ganho será sentido como real
quando cada papel e modo de se relacionar da mulher for pessoal, e fizer parte de
sua possibilidade real integrando as experiências subjetivas.
Winnicott nunca fez apologia de que ser mãe é sinônimo de ser mulher. A
maternidade assim como as outras experiências vividas por uma mulher só vão valer
a pena se forem experienciadas como reais, pessoais.
A possibilidade de se preocupar e de ser ambiente para o bebê, de poder se
identificar, e cuidar de um modo específico, isso pode ser vivido na maternidade ou
em outras relações como, por exemplo, a de um analista que cuida de um paciente
que regrediu à fase de dependência total.
Outra conquista da maturidade da mulher é a de poder fazer muitas
identificações cruzadas e poder encontrar uma vida masculina identificando-se com
homens. Winnicott apresenta como a mais grosseira aquela que na identificação a
mulher usa o homem, transfere sua masculinidade a ele e pode viver sua
experiência de mulher.
A partir do estudo da obra de Winnicott da linhagem feminina, em que o autor
coloca a mulher sendo sempre três, a bebê, a noiva/fêmea e a avó, a experiência
citada, de ser mulher numa identificação cruzada com o homem e usando-o, faz
parte das experiências vividas pela fêmea.
Embora as mulheres sejam sempre as três da linhagem, nos diferentes
estágios da vida, características aparecem com mais força em uma ou outra, a partir
da condição e das conquistas feitas. Na idade madura, a genitalidade é plena e a
mulher tem condição de viver uma relação com o homem/macho e assim o usa, não
mais como um pai ou alguém que ela tenha que cuidar, mas como seu homem.
128
É oportuno lembrar que essa foi assim chamada por Winnicott de
identificação cruzada mais grosseira, pois como ele explica em seu artigo de 1964,
“Este feminismo”
14
, na idade madura o alívio para as frustrações relacionadas às
experiências instintivas de base sexual, provém da vida cultural, que tem mínima
vinculação com o sexo, o que nos apresenta outros modos de identificação cruzada
menos grosseiras, mais ligadas aos vários aspectos da vida que nada tem que ver
com o sexo.
Ainda nesse texto, Winnicott diz que as identificações cruzadas com base nas
relações instintivas ou não, simplesmente identificatórias, constituem as relações
dos casais nos diferentes períodos de união e de diversas maneiras.
Uma mulher que tenha sempre um homem doce e compreensivo como
companheiro, pode ter que exacerbar sua masculinidade ou usar outro homem para
isso, pois há momentos em que a doçura nada pode auxiliar uma pessoa e a
grosseria e rudeza são necessárias.
Por outro lado, homens maternais podem ser ótimas mães substitutas o que é
de muita necessidade quando uma mulher tem muitas ocupações, muitos filhos, não
consegue se identificar com o filho ou quando fica doente. Homens assim não
conseguirão fazer os dois papéis ser boa mãe e bom pai ao mesmo tempo, mas
auxiliam a mulher que não está em condição de cuidar de si ou de seus filhos.
Algumas mulheres precisam que seus companheiros sejam maternais com
elas em momentos de dificuldades. Isso pode ser bem manejado pelo casal. Torna-
se, porém um problema quando a mulher demanda que seu marido se torne seu pai
por tempo indefinido e tal homem não estar preparado para lidar com sua
companheira como uma filha, mas sim como uma mulher.
14
Texto integrante da obra de Winnicott de 2005: “Tudo começa em casa”.
129
Para a mulher, embora as amizades cumpram muito a função materna, se a
necessidade é absoluta e cria-se uma espécie de dependência entre as amigas,
ainda há sempre o temor de viver complicações homossexuais.
Tais formas de relação, próprias à idade madura nos levam a considerar, a
complexidade vivida pelas mulheres e homens nessa fase. o são mais
necessidades de iniciar a integração de experiências das tarefas básicas, mas
dependem de todas as experiências vividas e aquisições feitas ao longo do processo
de amadurecimento humano.
A mulher madura tem de se haver com as integrações feitas e não feitas, com
as dificuldades de ter uma realidade interna, um mundo subjetivo e viver na
realidade compartilhada sem perder a subjetividade.
Nas relações de amizade, de coleguismo, de paixão, de amor, ganha-se
muito com as experiências compartilhadas, mas apenas quando a vida psíquica é
importante, quando não possibilidade de viver a realidade em suas diferentes
formas, objetiva, subjetiva, potencial, então tais relações são meros complicadores
ou apenas fenômenos sem importância.
A vida cultural pode ser aproveitada por aqueles que têm como
experienciar as diferentes realidades de experiências, e aí pode-se até viver grandes
paixões na vida madura.
Quando a paixão acaba, na vida madura, diferente do que ocorre na
adolescência, as pessoas não crêem que vão morrer e que não vão sobreviver à
perda do outro que era grande parte de si. Na vida madura, quando a paixão acaba,
as pessoas ficam juntas se conseguirem outros modos de viver experiências ricas,
ou seja, que valham a pena para elas, seja através de trabalho, estudo, arte, ou se
separam exatamente para conseguir viver isso.
130
As mulheres maduras vivem suas paixões, seus trabalhos, suas amizades, de
maneira que possam continuar sendo si mesmas por mais que novas experiências
sejam integradas e iniciadas em novas ou antigas relações, e outras sejam
rompidas.
O fato é que isto tudo nada tem a ver com a experiência traumática da falta.
Caso haja uma impossibilidade de a mulher madura de se sentir uma pessoa total,
sem trauma em relação à falta do pênis, tal mulher pode encontrar muitos problemas
aquém dos ditos de ordem sexual, surgidos em estágios anteriores ao do Complexo
de Édipo.
A mulher madura não tem sua saúde fundamentada na sexualidade, mas em
todo o processo de amadurecimento humano, na personalização, na integração e
vivência dos instintos e nas identificações com as outras mulheres e homens com
quem se relaciona.
A feminilidade da mulher madura não está restrita à sua escolha sexual ou ao
modo com que vive sua sexualidade, ela é mais ampla e diz respeito ao modo com
que uma mulher pode ser si mesma, estar no mundo, em relação com os outros
seres humanos.
A escolha profissional, a escolha dos amigos, do companheiro, de ficar , se
forem feitas com base nas experiências pessoais, não de um falso si-mesmo
defensivo, são as bases de constituição da mulher madura.
Caso ocorra um estancamento no processo de amadurecimento na vida
adulta, se este trouxer alguma implicação para esse processo, a constituição da
feminilidade poderá sofrer implicações.
131
4.6 AS MULHERES E O FEMINISMO
O feminismo foi apresentado por Winnicott em seu texto de 1964, “Este
feminismo”, no qual coloca uma das raízes do feminismo na fixação de alguns
homens e mulheres na fase lica, anterior ao período de conquista da genitalidade
plena.
O autor ainda apresenta o pior dessa fixação como a ênfase dada por alguns
homens ao aspecto “castrado” na personalidade feminina e falsa ideia de que as
mulheres são por isso inferiores, ideia esta tão difundida pela psicanálise tradicional
e outras teorias.
O feminismo segundo Winnicott (2005), além da fixação da fase fálica, se
pelo “protesto feminino contra uma sociedade masculina dominada pela ostentação
da fase fálica”. (p. 188).
As discussões atuais sobre o feminismo englobam vários campos de
pensamento, teorias e modos de compreensão. Uma delas considerada uma
bioética feminista, foi apresentada por duas autoras que utilizaram as ideias de
Margaret Little como uma de suas bases de referência.
Little foi paciente de Winnicott e assim como ele apresenta as questões
feministas não como enraizadas na inferioridade, mas sim em um grupo que é
socialmente e historicamente considerado a partir de teorias que têm o homem
como referência e assim não dão conta de explicar os fenômenos que dizem
respeito às mulheres.
... e particularmente a bioética crítica de inspiração feminista, traduz e
representa esta nova onda reflexiva da bioética em que aqueles(as)
historicamente desconsiderados(as) nos estudos éticos, sejam eles(as)
mulheres, crianças, minorias étnicas e raciais, deficientes físicos e mentais,
132
idosos, pobres, passam a compor a pauta de discussões. Ou ainda nas
palavras de Margaret Little, "(...) algumas pessoas sugerem que a bioética
feminista se refere às questões das mulheres na bioética, ou mesmo que
são mulheres falando de bioética. Muito embora tenha relações com ambas
as coisas, a bioética feminista não é equivalente a nenhuma delas. A
bioética feminista é a análise de todas as questões bioéticas sob a
perspectiva feminista (...)" (10). Parafraseando Little, diríamos que a bioética
crítica é a análise de todas as questões bioéticas, seja a eutanásia, o aborto
ou a alocação de recursos em saúde, sob o compromisso compensatório de
interesses dos grupos e pessoas socialmente vulneráveis. (Diniz e
Guilhem, s/a, s/p)
Embora não haja nenhuma razão plausível para a desigualdade de direitos
entre homens e mulheres, esta ocorre e é fato. Por muito tempo a mulher não era
considerada uma cidadã como o homem, inclusive do ponto de vista legal, exemplo
disso é que por algumas razões próprias de sociedades em que o homem é o
centro, esse poderia devolver a esposa, depois de casados, caso descobrisse que
ela já havia consumado o ato sexual com outro homem. A mulher não tinha como se
separar, legalmente o início do divórcio no Brasil se deu no ano de 1977.
As violências físicas e sociais contra a mulher ainda são importantes e
relevantes, há diferenças de salários, de cargos de chefia, de poder político e
embora na esfera pessoal a mulher saudável apenas precise conquistar sua
feminilidade do ponto de vista pessoal, a partir do ambiente que teve desde o início
de sua vida e de acordo com as conquistas e condições pessoais.
Socialmente é importante que a mulher conquiste um espaço e lugar de
igualdade de direitos, que respeite as diferenças sem que sejam tomadas como
inferioridade, assim a sociedade poderá de fato lucrar com a importância da
mulher na sociedade.
Importância apresentada por Winnicott em diferentes momentos, por exemplo
em seu texto de 1957: “A contribuição da mãe para a sociedade”
15
. Ainda hoje tais
15
Texto integrante da obra de Winnicott de 2005: “Tudo começa em casa”.
133
conquistas precisam ser feitas e órgãos mundiais têm se ocupado dessa discussão
de organizar modos para que a igualdade de direitos seja fato nas sociedades
atuais. Um desses órgãos é o Fundo das Nações Unidas para o Desenvolvimento
das Mulheres, que em relatório fez vários estudos sociais, do qual é trazida a
seguinte declaração:
As mulheres em todo o mundo estão a mudar a forma como pensamos sobre a
responsabilização e a governação democrática. Impacientes com a prestação de
serviços inadequados, com decisões judiciais fundadas em preconceitos de gênero, e
com a sua exclusão das oportunidades de mercado e dos lugares de decisão política,
as mulheres exigem que os detentores do poder corrijam as suas falhas na resposta
às necessidades das mulheres ou à proteção dos seus direitos. dois elementos
essenciais nos esforços das mulheres para reformar os sistemas de
responsabilização; primeiro, as mulheres exigem ser incluídas nos sistemas de
fiscalização a todos os níveis; segundo, as normas face às quais são julgadas as
ações dos detentores do poder devem incluir o progresso dos direitos das mulheres.
Quando nos questionamos quem responde às mulheres?” sabemos quem deveria
responder às mulheres, mas não o faz. Agora as mulheres não exigem apenas que
os detentores do poder lhes respondam mas que, a partir de agora, respondam pela
igualdade de gênero. (HEYZER, 2008/2009, p.126)
Faz parte da maturidade da mulher a conquista de não ter mais inveja do
pênis, o que ocorre no período da genitalidade plena. Tal período inclui uma relação
de igualdade de direitos entre mulheres e homens que inclusive libera a mulher para
viver sua relação com o homem que escolher de maneira totalmente livre para ser si
mesma, e como disse Winnicott, usar o homem por procuração.
Apenas quando uma relação madura, de confiança e de duas pessoas
totais é que esse tipo de uso, por assim dizer, pode ser feito sem que outra pessoa
seja ou se sinta agredida de modo irreparável. Usar, destruir em fantasia, agredir e
reparar fazem parte da relação saudável entre as pessoas maduras, e assim
também ocorre com as mulheres e seus companheiros na fase madura.
134
CAPÍTULO 5 QUESTÕES CLÍNICAS RELACIONADAS À CONSTITUIÇÃO DA
FEMINILIDADE
5.1DISTÚRBIOS LIGADOS À CONSTITUIÇÃO DA FEMINILIDADE
Os distúrbios relacionados à constituição da feminilidade são aqueles em que
a natureza e o modo como eles acontecem na vida da pessoa implicam em
dificuldades da vivência das experiências da mulher quando estas não podem ser
vivenciadas a partir das bases instintuais e de identificação da mulher - ainda que
sua idade cronológica lhe conferisse, se assim pudesse, o status necessário para
viver tais experiências.
Para apresentar alguns distúrbios relacionados às dificuldades encontradas
na constituição da feminilidade, são utilizados casos apresentados por Winnicott em
sua obra. São propostos como exemplares: um caso de uma paciente criança
vivendo questões relacionadas às conquistas do estágio do concernimento e outros
três casos de adolescentes um de limitação cerebral ocorrida desde o nascimento
e suas implicações na feminilidade; um caso simples de depressão e psiconeurose e
sua relação com a feminilidade, e um de psicose e sua relação com a feminilidade.
Para finalizar, são apresentados também, casos de mulheres adultas: uma que teve
uma dissociação do elemento masculino e outra de dissociação do intelecto (split off
intelect).
Tais exemplares foram escolhidos, pois o esses os que Winnicott
claramente menciona por terem alguma relação com dificuldades apresentadas na
experiência de ser mulher, de ter um corpo de mulher e viver como mulher. E
também porque com esses exemplares clínicos podemos ter um panorama geral
135
das dificuldades da constituição da feminilidade nos diferentes estágios do processo
de amadurecimento humano. Não se encerra aqui o estudo dos casos clínicos
relacionados a problemas na constituição da feminilidade, mas temos um
mapeamento de quais situações e experiências que pode ser utilizado na
compreensão diagnóstica e tratamento desses casos clínicos. Passemos agora, ao
estudo dos casos propostos.
5.2 PIGGLE – O TRATAMENTO PSICANALÍTICO DE UMA MENINA
Para esclarecer as questões clínicas relacionadas à constituição da
feminilidade no estágio de dependência relativa, ou melhor, quando ela está
impedida de se constituir por algum motivo, é apresentada uma análise de trechos
selecionados para fazer este estudo, do caso Piggle.
Inicialmente que se esclarecer que tantas outras importantes
contribuições do caso para a compreensão da teoria, técnica e clínica
winnicottianas, como a verificação da impossibilidade do brincar na criança, ou a
relevância da técnica criada por Winnicott de análise segundo a demanda. Mas para
a compreensão do tema apresentado neste trabalho, todas as outras contribuições
serão suspensas, pois fogem do propósito atual, que é estudar a feminilidade na
teoria winnicottiana, e neste caso mais especificamente, como ocorre no estágio do
concernimento
Antes do Dr. Winnicott conhecer Gabrielle, a mãe lhe enviou uma carta, na
qual relatou que a menina de dois anos e quatro meses, não estava conseguindo
dormir à noite o que parecia afetar a vida da criança e seu relacionamento com os
pais. Disse que era difícil descrever a menina como bebê, pois sempre pareceu uma
136
pessoa formada, foi amamentada durante nove meses, e “demonstrou desde cedo
sentimentos apaixonados pelo pai e certa arrogância com relação à mãe”
(WINNICOTT, 1987b, p. 21).
Contou também que o nascimento da irmã, de sua filha mais nova, havia lhe
deixado ansiosa e que ela, a mãe pensava que teria sido muito cedo para Gabrielle
ter uma irmã. A mãe diz que a menina passou a ficar aborrecida e deprimida com
facilidade, demonstrava mais afeição e ao mesmo tempo ressentimento em relação
à mãe e era mais reservada em relação ao pai.
Durante a noite tinha fantasias de ser filha de um papai preto e uma mamãe
preta, que a perseguia e perguntava-lhe de seus “mamás”, apontando para os seios.
A mamãe preta podia se comunicar por telefone com ela, ficava dentro de sua
barriga.
Vemos aqui um elemento importante na fantasia de Piggle, o fato de a mãe
preta estar localizada dentro de sua barriga, o que nos remete ao texto de “Natureza
Humana” em que Winnicott fala das raízes das fantasias das meninas, apresentado
no capítulo um deste trabalho. A digestão e excreção são processos de início da
personalização. Quando tudo corre bem, o que há dentro do corpo da menina é bom
e o que é ruim pode ser excretado, não fica dentro da barriga.
Piggle não consegue viver essa experiência de ter algo bom dentro de si e
que poderá mais tarde até dar um presente, inclusive as fezes podendo ser um
presente da criança. Nessa menininha o que ocorreu foi uma experiência de viver o
que há dentro de si como ruim, como persecutório e não como próprio de si mesma.
Winnicott, a partir da primeira carta da mãe, em seu relato, fez algumas
observações como nota de rodapé e colocando alguns trechos em itálico, nos quais
assinala que muito mais tarde veio a saber que a e de Gabrielle também havia
137
vivido a experiência do nascimento de um irmãozinho quando tinha a mesma idade
de Piggle. (ibid., p.21)
A mãe de Gabrielle não conseguira lidar com a ansiedade trazida pelo
nascimento de um irmão em tão tenra idade, fato que em si já poderia trazer
conflitos para crianças na idade de Gabrielle, conforme dizia a e. Mas segundo a
análise a partir da teoria do amadurecimento humano podemos dizer que para
Piggle o principal evento que ocorreu não foi o nascimento da irmã, mas a mudança
da mãe que já não podia mais ser suficientemente boa para Gabrielle naquele
momento.
A mãe de Gabrielle disse também que a menina havia se dado bem com a
irmã, que o problema começou a ocorrer em seu relacionamento com os pais e na
dificuldade de entrar em estados tranquilos, como o que ocorre durante o sono. E
que ela havia enfrentado dificuldades em ter uma segunda filha naquele momento,
mas não apresentou a questão desse modo, apenas referindo-se ao que supunha
ser o problema, o nascimento da irmã.
Como dito anteriormente a menina passou a ter alguns problemas mas que
não tinham relação direta com o nascimento da irmã, e sim com a mudança de um
modo de cuidar que a mãe havia estabelecido até então. Outra fantasia de Gabrielle
apresentada pela mãe nesta carta era sobre os “bebê-cars”, mas que não foi muito
bem explicada nesse momento. Por isso a análise de tal fantasia será realizada
posteriormente.
Na primeira consulta foram encontrar Winnicott, Gabrielle, seu pai e sua mãe.
A menina estava séria e segundo o autor: “disposta a trabalhar” (ibid., p.25).
Inicialmente Piggle estava tímida e Winnicott fez contato com ela usando os
brinquedos e “mostrando-os” ao ursinho, assim ela também começou a brincar.
138
Passou a tirar os brinquedos e a dizer mais um, mais um, mais um, e
Winnicott lhe disse que um deles era um bebê Sush, e ela começou a contar de
como foi quando a irmã nasceu. Depois ela tentou enfiar um boneco em um carro de
brinquedo, não conseguiu, pegou uma varinha e enfiou na boneca e disse que a
varinha entrava. Winnicott comentou sobre o homem enfiar algo na mulher para
fazer um bebê ela mudou de assunto e quis ir ver a mãe.
Winnicott perguntou sobre o “bebê-car”, o que ele comia. Ela disse que não
sabia e pediu para ele desenhar um homem em uma lâmpada. Então começou a
guardar tudo dentro de caixas, ela fez questão de guardar todos os brinquedos.
Winnicott disse algo sobre a mamãe preta, Gabrielle o falou nada sobre isso e foi
para a sala de espera.
Na entrevista com a mãe, enquanto o pai ficou com Gabrielle na sala de
espera, a mãe contou que Gabrielle havia mudado muito desde o nascimento da
irmã, não aceitava ser Piggle, queria ser chamada de bebê ou de mamãe, deixou de
ter o equilíbrio físico que havia conquistado, parou de brincar e queria apenas ficar
no berço chupando o polegar.
Os pais se sentiam desorientados e a situação realmente mostrava que algum
problema estava ocorrendo com Piggle. A menina na hora de ir embora disse que
Dr. Winnicott não entendia nada de “bebê-car”, e que ela não queria voltar a vê-lo,
mas o ursinho queria. E ficou claro que a cor preta ali estava relacionada à
desilusão.
Em uma brincadeira de Piggle, ela queria que a mãe caísse e fosse tratada
por ela, o que dizia respeito à agressividade da menina e do pai, já que cair naquela
brincadeira significava engravidar.
139
Nos comentários sobre a primeira entrevista com Piggle, Winnicott mostra que
a paixão pelo pai não podia ser vivida por Piggle que ainda tinha a mãe como objeto
subjetivo. Ao nascer a irmã, a mãe de Gabrielle começou a tratá-la como uma
pessoa diferente dela, o que Gabrielle não conseguiu integrar como experiência
pessoal, por isso Winnicott faz a hipótese de que a mãe preta seria um vestígio da
mãe ambiente, objeto subjetivo.
Piggle não estava preparada para viver a ambivalência simples, e assim
surgiram elementos como o “bebê-car” e a mamãe e o papai pretos. Uma resolução
temporária foi a regressão tornando-se um bebê no berço. Na carta escrita pelo pai,
ele conta que Piggle ainda estava muito confusa, com novas fantasias e pesadelos
que ora queria ora não queria ver Dr. Winnicott, mas que embora ele houvesse dito
que a menina estava bem o pai estava preocupado.
Em carta escrita pela mãe, ela contou que Piggle havia demonstrado medo de
passar o preto dela para a mãe, o que era ruim, e de machucar a mãe com suas
fezes. Pediu para ir ver Dr. Winnicott e o fato de ele recebê-la tranquilizou os pais
que segundo a e puderam agir com maior naturalidade em seus cuidados com a
menina.
A consideração principal a ser feita sobre esta primeira entrevista, é o modo
com que Winnicott faz e apresenta suas hipóteses, sempre baseado nos modos de
relações que aparecem na relação analítica e no que dali surge sobre as relações da
paciente com as pessoas fora da análise, a mãe e o pai.
Embora em uma análise clássica se pudesse investigar a respeito de inveja
da mãe ou sobre o Complexo de Édipo surgido da relação entre a criança e os pais,
não foram essas as situações apresentadas por Piggle em sua brincadeira com
Winnicott. O que foi apresentado foi o medo da mamãe preta que estava dentro
140
dela, e o medo do “bebê-car” que ainda não se sabia o que era. Tal medo não se
dava por inveja da mãe ou por um apaixonamento pelo pai, muito pelo contrário,
ocorreu exatamente porque a mãe ainda era tida por Piggle como objeto subjetivo e
deixou de cuidar da menina desse modo, sendo objeto subjetivo.
A mãe mudou com o nascimento de Susi, irmã de Piggle, e de modo a não
desiludir Piggle em pequenas doses, gradativamente, tal que a menina não pôde
lidar com a mãe como pessoa total e separada dela naquele momento, por isso
houve a regressão e a necessidade de Piggle de ser tratada como bebê.
Os problemas apresentados por Piggle relacionados ao processo de
personalização são fundamentais na constituição da feminilidade. Se Piggle
continuasse a experienciar o que tem dentro de si como algo ruim, seu processo de
personalização estaria comprometido de tal modo a manter fantasias sobre o que
de ruim nela, dentro dela, complicando ou até impedindo que conquistasse o status
de pessoa total incluindo o que dentro de si mesma e que também é bom, assim
não podendo viver de maneira total os próximos estágios e de chegar a ter fantasias
posteriores relacionadas, por exemplo, à inveja e ao Complexo de Édipo.
Na segunda consulta, bastante diferente do ocorrido na primeira, a menina
chegou confiante, sem timidez e sabendo que seria atendida por Dr. Winnicott, logo
foi aos brinquedos, tirou os trenzinhos e começou a brincar. Pediu para Winnicott
fazer a lâmpada em que haviam desenhado um homem na primeira sessão, vomitar.
Ele desenhou uma boca na lâmpada.
Ela pegou outro vagão de trem e perguntou sobre o “bebê-car”. Winnicott
perguntou o que era e fez uma interpretação dizendo que era o lado de dentro da
mãe, de onde nascem os bebês. Piggle consentiu e se sentiu aliviada dizendo que o
lado de dentro era preto. Ela começou a encher um balde de brinquedos até que não
141
coubessem mais e alguns caíam para fora, o que havia sido interpretado como fazer
um bebê. Por ter comido muito vorazmente, o transbordar dos brinquedos era como
o vomitar que Piggle havia feito anteriormente na mesma brincadeira com a
lâmpada.
Eles tiveram um diálogo em que Piggle era a mãe e Winnicott o bebê voraz,
que ama muito a mãe, que a devora e depois vomita, explicitando o medo do lado de
dentro que era preto. O mundo interno de Piggle o estava podendo ser
experienciado como pessoal devido ao temor de fazer algo ruim na mãe por sua
voracidade.
Continuou com brincadeiras utilizando carneirinhos de brinquedo que comiam
outros animais. Depois ela era o papai e a mamãe e Winnicott o bebê . Em seguida
incluiu o pai na brincadeira e iniciou uma nova fase no jogo, dizendo que ela também
era um bebê, descendo da cabeça e entre as pernas do pai.
Começaram com uma brincadeira em que Piggle nascia inúmeras vezes e
Winnicott ficava muito bravo pois ele queria ser o único bebê. Ela pedia para que os
bebês fossem colocados na lata de lixo. Winnicott perguntou se dentro da lata de
lixo era preto, e descobriu que ele na brincadeira era Gabrielle e ela era todos os
outros bebês. Piggle diz que Winnicott não podia ser o único bee ela agora era
um bebê leão, recuperando sua voracidade.
A brincadeira terminou depois de vários nascimentos de Piggle, passando da
cabeça às pernas do pai, e quando ela disse que havia nascido e que não era preto
dentro. Ela recuperou a experiência de nascimento sem os temores do início da
sessão.
Nos comentários de Winnicott ele apresenta os temas da sessão: ter bebês
em termos de vomitar, a gravidez como consequência da voracidade, a existência
142
de um “preto” interior e ódio do interior. Também a transferência ocorrida entre
Piggle e Winnicott como único modo possível dela ser voraz, a identificação
transitória da menina com os pais possível depois de ter vivido a experiência de ser
um bebê leão voraz. Então Piggle pôde nascer de um interior não preto, sendo
concebida pelo pai.
Os temas apresentados por ele explicitam mais uma vez a problemática
ocorrida com Piggle em termos de sua teoria do amadurecimento humano, e não em
termos de Complexo de Édipo ou de inveja. Ou seja, as questões estavam atreladas
à relação de dupla: de Gabrielle com a mãe, de Gabrielle com o pai, ou de Gabrielle
com Winnicott, com quem pudesse oferecer ambiente, para que ela experimentasse
o nascimento do interior de alguém que não tivesse o interior preto, e que ela
pudesse ser voraz. Mesmo que naquele momento isso pudesse ser uma regressão
a um estágio anterior, era uma regressão necessária.
Depois dessa sessão a mãe escreveu uma carta para Winnicott, dizendo que
a mãe preta passou a ter características boas e que Piggle lhe disse que a mãe
preta estava dentro dela. A mãe de Piggle se preocupou, considerando que poderia
haver uma confusão de Piggle sobre seus aspectos bons e maus. Entretanto, o que
realmente ocorria não era uma confusão entre o que é bom ou mau no sentido de
um valor, mas do que era próprio ou não do que podia ser vivido como pessoal ou
não e quando Piggle pôde viver sua voracidade como pessoal poderia ter algo bom
dentro de si mesmo sendo voraz.
Na carta seguinte da mãe, ela conta que Gabrielle está vivendo uma real
destrutividade e raiva da mãe. E pode-se verificar, a partir do relato do pai, o
sentimento de culpa relacionado a tal destrutividade. Surge nesse período, antes da
143
terceira consulta uma demanda por parte de Piggle em ver o Dr. Winnicott para falar
sobre a mamãe preta, o “bebê-car” e os “mamás”.
Estar com a mãe preta dentro dela sem que isso a atemorizasse a ponto de
não poder ser si mesma, foi o início da possibilidade de Piggle se identificar com a
mãe, inclusive com a que ela tinha raiva e precisava destruir ainda que em fantasia.
Na terceira consulta a menina estava menos tensa, mas entrou na sala
com o pai. Quis brincar exatamente com os brinquedos da última sessão, pegou os
vagões de trens, as bexigas, os cachorros e os empurrou contra o chão. Um dos
cachorros estava com raiva, ela ainda não podia tomar a raiva como algo próprio.
Deixou cair o trem, indicando defecação, e tentou colocar o homenzinho e a
mulherzinha dentro do carro, ainda trazendo como era para ela a questão do
nascimento relacionada à excreção, ou à fantasia pré-genital. Piggle disse que o
homenzinho era grande demais para entrar no carro, foi para perto do pai e como da
última vez, brincou de nascer dele, usando todo seu corpo. Ela queria que ele,
repetidas vezes, a colocasse em cima de sua cabeça e fosse escorregando até o
chão.
A menina conseguiu dizer a Winnicott que ele/bebê lhe causava muito medo,
ao que ele respondeu que o medo era porque ele foi um bebê muito zangado. Ela
pede para ele ficar zangado, ele fica, e diz que queria que o papai lhe desse um
bebê: a menina pergunta para o pai se vai dar um bebê ao Dr. Winnicott.
Daqui ao fim da consulta podemos verificar várias vezes a necessidade de
Piggle de experienciar o medo que tinha do “bebê-car” e da mãe preta. Nesse
momento do tratamento, havia sido constatado que o que o pai havia feito com a
mãe, tê-la engravidado foi o que a deixou suja e preta. Piggle pôde viver tal medo,
144
não apenas na relação com Winnicott sendo um bebê bravo, mas com a ajuda do
pai que lhe possibilitou nascer, sem que isso destruísse ou tornasse a mãe preta.
A partir da experiência do nascimento, na brincadeira com o pai, e de poder
brincar com a fantasia sem estar nela distanciando-se um pouco da ansiedade, mas
podendo vivê-la com certa proteção de Winnicott e do pai, Piggle pôde identificar
sua boneca como um bebê, deixando clara sua possibilidade de se identificar, a
partir daquele momento, com a mãe, como menina.
Nas sessões seguintes e nas cartas dos pais apareceram questões e
ansiedades próprias à genitalidade. Primeiro, a menina disse de uma dor no “pipi” e
depois sobre seus “mamás” (seios) e os da mãe, concluindo que um dia os “mamás”
de Piggle seriam grandes como os da mãe. Isso retomando a identificação com a
mãe e a elaboração imaginativa do próprio corpo, que um dia terá mamás (seios) e
poderá ser penetrado, engravidado, não por oralidade, ou voracidade, mas por ter
uma relação sexual, isso tudo ainda em forma de fantasia, e a excitação clitoriana
sendo elaborada imaginativamente, por exemplo, na masturbação.
A partir da quarta consulta as questões próprias ao estágio edípico ficaram
mais evidentes, a ideia da raiva da mamãe de Gabrielle por ser a menininha do
papai se sobrepôs à raiva dela em relação aos novos bebês.
Como vimos no caso de Piggle, para ocorrer a identificação com a mãe,
enquanto futura mulher, a necessidade de a menina desenvolver a capacidade
de viver a ambivalência entre amor e ódio, sem que essa coloque em risco as
fantasias que a menina faz do interior do próprio corpo e do corpo da mãe. Caso tal
ambivalência não possa ser vivida, a identificação não pode ser feita e a
incorporação de que há algo de ruim, preto, apenas ódio dentro de si e da mãe.
145
Assim, o engravidar se torna ruim, consequência de uma voracidade oral, e não uma
experiência de poder ter um interior bom que poderá inclusive guardar bebês.
5.3 TRÊS CASOS CLÍNICOS DE ADOLESCENTES
A adolescência foi discutida neste trabalho no capítulo 3, especificamente
sobre a feminilidade nesse período de vida das mulheres. Agora são apresentadas
questões clínicas relacionadas à feminilidade na adolescência.
A sexualidade não é em si uma questão clínica, ela pode se tornar uma
questão clínica psicanalítica dependendo do modo como é vivida. Pensar na
sexualidade como problema em si mesmo restringe o ser humano a uma pequena
gama de experiências e assim a clínica também.
Na adolescência as meninas começam a se relacionar sexualmente, mas este
pode não ser um problema e sim parte de outras questões maiores que angustiam e
atrapalham a vida das moças.
De qualquer maneira, a partir da psicanálise winnicottiana, verificamos as
questões clínicas investigando as duas bases do amadurecimento humano, a
instintual e a relacional e como elas se conectam ou não.
Os instintos relacionados aos órgãos genitais são elaborados
imaginativamente de um modo diferente, na adolescência; tornam-se mais
importantes que na infância, período em que apenas havia fantasias e sensações
que não podiam ser realizadas por falta de amadurecimento pessoal, próprio às
crianças.
Não pretendemos dizer com isto, que o adolescente seja maduro, muito pelo
contrário, ainda se encontra em um período da vida em que tudo é questionado e
146
questionável, pois suas experiências ainda se assemelham às da criança, tendo a
proteção dos pais, ainda nessa fase de início de rumo à independência.
As moças, especificamente, iniciam uma nova fase no processo de
personalização e de elaboração imaginativa das funções corpóreas. Os seios
começam a ficar maiores, o início da menstruação, e da possibilidade de ficar
grávida.
Tais mudanças podem ser vividas sem grandes angústias, de modo a serem
experiências de mudanças naturais e próprias a uma determinada moça, ou seja, ela
sabe que isso ocorre com as moças de modo geral e com ela de um modo pessoal
que não a atrapalhe em seu processo de amadurecimento, pelo contrário, que seja
vivido como próprio à nova fase que se inicia.
Mas há moças que experienciam estas tarefas do processo de personalização
como um problema, pois não conseguem, por alguma conquista que não foi feita no
passado ou pelas novas demandas instintuais e relacionais que surgem, viver as
experiências desse período como pessoais e próprias.
Algumas dessas questões são mais diretamente relacionadas com a
constituição da feminilidade, e é sobre elas que este estudo irá se ater a partir deste
momento. Para tanto será realizada a apresentação comentada de dois casos
clínicos descritos por Winnicott em seu livro: “Tudo começa em casa”.
O primeiro a ser apresentado trata de uma moça que teve problemas logo no
início de sua vida, os quais a impediram de viver as experiências com certo grau de
profundidade. É um caso de uma paciente com questões mais relacionadas às
primeiras tarefas dos estágios iniciais do processo de amadurecimento humano,
especialmente relacionados à experiências que possibilitam a diferenciação de
vivências inerentes à constituição de um mundo interno e um externo, à dificuldade
147
de fazer identificações e não apenas cruzadas, identificações com a mãe e com as
outras moças, e dificuldades de integrar as experiências instituais.
O segundo é um caso que Winnicott classifica como de psiconeurose simples,
portanto, no qual é possível apontar as dificuldades comuns a qualquer moça que
não tenha tido um começo difícil, mas que mesmo assim passa por todas as
experiências e dificuldades próprias da adolescência.
5.3.1 Um caso de limitação desde o nascimento e suas implicações na feminilidade
Trata-se de uma adolescente de dezesseis anos atendida por Winnicott. A
moça nasceu com o cordão umbilical amarrado em volta do pescoço e havia lesado
muitas células nervosas, fato que implicou em limitações na vivência de algumas
experiências.
Winnicott a descreve como uma moça, bela, atraente e amadurecida
emocionalmente. Em sua primeira consulta trouxe um livro e disse que era muito
interessante, mas Dr. Winnicott percebeu que ela tinha dificuldades para entender o
livro, e que apresentava uma profundidade limitada.
A moça se esforçava na escola, mas nunca conseguia chegar a resultados
muito bons e era cobrada por isto. Eles fizeram vários rabiscos e um deles se
transformou em uma cabeça, um corpo e algo que parecia uma corda. Winnicott
disse-lhe que havia uma corda enrolada na criança, que ela contou que havia
nascido com o cordão umbilical enrolado em seu pescoço.
Winnicott disse à paciente que eles tinham ali, um desenho sobre a situação,
e ela respondeu que não havia pensado nisso. Ele também comentou que ela havia
ficado com a capacidade do cérebro danificada, logo, não adiantaria ficar se
148
esforçando, seria mais válido ter paciência consigo mesma e verificar um modo de
lidar com tal situação, de ter tido uma limitação cerebral pelo fato ocorrido em seu
nascimento.
A moça saiu da primeira entrevista com a sensação de que havia alguem que
realmente a compreendera. Winnicott poderia, como ele disse, ser usado pela moça,
ele a liberou de ter que ser alguém que ela jamais poderia ser.
A possibilidade de usar Winnicott, implica na capacidade de usar o objeto,
que até então não havia sido uma conquista iniciada pela moça em tratamento
psicanalítico com Winnicott.
Tal capacidade depende da realidade do objeto e, portanto da condição da
pessoa que o usa de viver experiências de realidade compartilhada, e de poder
destruí-lo em fantasia e perceber a realidade do objeto sem que isso seja
atemorizante. Depois de destruir pode haver amor.
O objeto está sempre sendo destruído. Esta destruição se torna o pano de
fundo inconsciente para o amor de um objeto real, ou seja, um objeto
situado fora da área do controle onipotente do sujeito. [...] O estudo deste
problema envolve um enunciado do valor positivo da destrutividade. Esta,
mais a sobrevivência à destruição pelo objeto, situa este último fora da área
dos objetos estabelecidos pelos mecanismos mentais projetados do sujeito.
Desta maneira, é criado um mundo de realidade partilhada que o sujeito
pode usar e que pode retroalimentar a sustância diferente-de-mim no
sujeito. (WINNICOTT, 1994, p. 177)
A moça em tratamento não podia separar eu não-eu de modo que fenômenos
que poderiam ser menos complexos numa adolescência regular, para ela se
tornavam exageradamente difíceis e complexos.
Ela tinha crises agudas quando encontrava o limite de sua capacidade de
tolerar, que era realmente pequeno, e a família não sabia o que fazer quando isso
irrompia a organização da casa. Em uma dessas ocasiões Winnicott foi atendê-la em
149
casa. Ela havia ido a uma festa na qual se interessou por um homem, e ele por ela,
mas ela não sabia como lidar com a frustração que sentiria por não efetivar uma
relação sexual com ele.
Ela não havia conquistado a capacidade para lidar com seus próprios instintos
e relações que exigissem um tempo de espera, quando ocorria de ficar interessada
por um rapaz, eram atemorizantes para ela. Tal situação havia deixado-a
desesperada e aliviada ao mesmo tempo.
Nessa sessão, ela disse a Winnicott que seu problema o era o sexo, mas o
fato de não poder tomar a pílula e assim sentir-se inferior em relação às suas
amigas. Os pais dessa moça não deixavam que ela tomasse a pílula, pois diziam
que isso só poderia acontecer quando ela estivesse se relacionando seriamente com
um rapaz. Eles diziam que ela precisava aprender a se conter.
Na adolescência, se conter não é exatamente algo cil, muitas vezes pela
própria imaturidade do adolescente é impossível se conter diante de algumas
situações. Para esta moça, que não sabia como lidar com os próprios impulsos e
nem com suas relações de identificação, por exemplo, com as amigas, seria mais
difícil ainda.
A preocupação dela era de ficar explícito quão diferente ela era das outras
moças. E ter a pílula mesmo que fosse para não usá-la daria a ela um pouco mais
de condição de se sentir parte do grupo, semelhante às outras meninas. E mais que
isso, seria uma possibilidade de a família se tornar um ambiente de sustentação, tão
necessário para a tal moça naquele período, isto os indica um modo de lidar com o
adolescente que muitas vezes agrava o problema vivido. A moça precisava de um
ambiente que lhe desse confiabilidade, e esperança de que suas limitações não
150
seriam prejudiciais ao ponto de colocá-la em uma situação de não pertencimento ao
grupo de amigas.
Ocorre que ela viva isso na família, que não conseguira proporcionar à
moça o sentimento de pertencimento sendo que, por falta de condição dos pais, e
principalmente da mãe, é que o assunto do início da sexualidade das moças,
geralmente é tratado e conversado com as mães ou com outras mulheres com que
se tenha uma relação de intimidade.
A mãe da moça não teve condição de conversar com ela para saber que na
realidade ela não estava preocupada em se segurar e nem em fazer sexo, mas sim
em fazer parte do grupo de amigas.
A falta de identificação da mãe com a moça no período da adolescência
implica em algumas dificuldades para a constituição da feminilidade nessa fase. A
impossibilidade de manter um relacionamento de intimidade, de confiança e de
poder contar um segredo à mãe, como no caso da adolescente que Winnicott
atendeu, que não podia contar com a mãe em suas novas experiências de se tornar
moça, aumentaram as dificuldades trazidas pela adolescência.
Poderíamos pensar que o conflito dessa moça pudesse ser investigado como
sendo de natureza edípica, mas ocorre que mais importante do que a dificuldade de
lidar com uma relação sexual ou fantasias sobre elas, essa moça tinha problemas de
outra natureza, iniciados anteriormente ao estágio edípico, ainda na época de seu
nascimento. E até que ela conversasse com Dr. Winnicott, isso nunca havia sido
colocado desse modo. O que pode ser visto na fala da moça,
Então ela me disse: Veja só, o problema não tem nada a ver com sexo, tem a ver
com a pílula. Todas as minhas amigas tomam pílula. Se eu não puder tomá-la vou me
sentir inferior e infantil.” [...] A questão era: para essa garota de dezesseis anos, a
pílula era uma questão de status terrivelmente importante. Se ela estivesse tomando
a lula tudo estaria bem. Essas pessoas sentem que se algo fosse diferente, então
tudo estaria bem. (WINNICOTT, 2005, p. 203)
151
A história de ter passado sua vida escolar, até aquele momento, sendo
cobrada por resultados que não tinha condição de alcançar e ainda pela falta de
condição da família de suportar suas crises quando no limite de sua tolerância eram
fenômenos mais importantes do que a frustração de encontros amorosos ou
sexuais, fez com que ela não pudesse confiar em sua capacidade e nem reconhecer
suas limitações.
Em seu trabalho “A imaturidade do adolescente
16
Winnicott apresenta a
importância da escola como possibilidade de um lugar onde haja alívio dos padrões
familiares estabelecidos, a importância da família em relação às necessidades e à
imaturidade do adolescente.
No caso das moças especial atenção às novas experiências do processo
de personalização. A mãe que foi moça se identifica mais uma vez de forma
profunda e primitiva com a filha e a auxilia a integrar as mudanças somáticas, agora
não mais a partir do holding enquanto tal, mas com o manejo da situação,
suportando a agressividade da adolescente e sua consequente tentativa de
reparação.
As adolescentes tratam as mães com profundo sentimento de ambivalência.
Inicia-se uma complexa aceitação de que se dependeu da mãe e que ainda ela é
necessária, mas que não reconhece como parte dela. A diferenciação,
discriminação entre a moça e a mãe implica em se ter um espaço interno próprio e
reconhecer a separação de si com a mãe, e saber que ela tem seu próprio espaço
interno também, tarefas muito complexas para as adolescentes que são imaturas e
muitas vezes dependem quase absolutamente da mãe novamente, como foi na
primeira infância.
16
Texto integrante da obra de Winnicott: “tudo começa em casa”
152
A moça atendida por Winnicott não encontrou na escola um lugar de alívio
para os padrões da família e nem na própria família. Faltou-lhe a possibilidade de
retorno a uma relação de dependência e imaturidade.
Tanto a escola quanto os pais cobravam dela responsabilidade e
independência, que eram impossíveis que ela tivesse ou pudesse tolerar naquele
momento. Tal moça o pôde desenvolver a capacidade de envolvimento que
depende da primeira identificação da mãe com a menina, e depois da separação,
podendo a mãe ser vista como uma pessoa total.
muitas razões para se acreditar que o envolvimento em seu sentido
positivo emerge no começo do desenvolvimento emocional da criança,
num período anterior ao do complexo de Édipo clássico, que implica em
uma relação entre três pessoas, cada uma sentida como pessoa total pela
criança. Mas não é necessário que haja uma precisão absoluta quanto ao
tempo, e, de fato, a maioria dos processos que se iniciam nos primeiros
meses de vida nunca se estabelecem plenamente e continuam sendo
fortalecidos pelos crescimento que prossegue nos anos subseqüentes da
infância e, na verdade, da vida adulta e até mesmo da velhice. [...] É um
desenvolvimento que se liga essencialmente ao período da relação de dois
corpos. (Winnicott, 1987a, p.106).
A moça atendida por Winnicott precisaria viver na experiência clínica, no
tratamento psicanalítico, a experiência de integrar o soma, os impulsos, mas não os
sexuais, relacionados ao desenvolvimento de sua genitalidade, impulsos ainda mais
primitivos de ter um mundo interno e ser uma pessoa.
Assim poderia se identificar com as outras moças sem precisar copiar o
comportamento de usar a pílula, para se sentir pertencente ao grupo. Ela mesmo
que não usasse a pílula, no momento em que pudesse integrar seu corpo como
diferente do da mãe e das demais moças poderia viver as experiências
psicossomáticas de maneira pessoal e verdadeira.
153
Ela precisou desenvolver um falso si-mesmo para conseguir chegar à
adolescência sendo uma moça. Tal defesa o implicou em vivência compulsiva de
relações sexuais sem intimidade, por isso o uso da pílula em si não era uma questão
relacionada à contracepção, mas sim ao uso fantasioso da pílula, de uma
viabilização de se sentir como as outras, mesmo que de modo falso, embora ela não
soubesse que este era um modo falso de alcançar uma identidade por identificação.
Havia a necessidade de uma identificação que ainda não incluía escolha de
objeto, mas sim uma vivência de ser si mesma e a partir disso poder usar o objeto,
que foi o que ela conseguiu com Winnicott. Ele apresentou o momento que iniciou a
possibilidade da moça de usá-lo, da seguinte maneira:
[...] e eu lhe disse: “Veja” (eu não a protegi de modo algum), “você nasceu
com essa coisa em volta do pescoço; você ficou azul e foi prejudicada
quando nasceu, mas está lutando para ir em frente. Você acabou ficando
com uma capacidade cerebral limitada, mas com o tempo talvez melhore e,
se tiver um pouco de paciência, poderá descobrir o que fazer em relação a
isso ainda não sei o quê. O fato é que seu problema o é ficar se
esforçando, e sim que possui um cérebro danificado. Ela foi para casa [...].
Estabelecemos uma relação muito boa, ela agora pode me usar, e eu dei
um jeito para que ela possa viver uma vida normal em que ninguém fique
esperando que ela faça o que não pode, pois certas coisas precisam de
uma profundidade de personalidade e de intelecto que es além de sua
capacidade. (WINNICOTT, 2005, p. 202)
A questão é que quando uma moça não pode, no processo de
personalização, integrar o mundo interno terá que utilizar uma defesa falso si-
mesmo para seguir adiante no processo de amadurecimento, mas a continuidade
desse processo se de maneira superficial, e é uma luta constante pois não se
tem uma vivência de mundo pessoal ao qual retornar quando tudo fica muito difícil
ou complexo.
Na adolescência, o que poderia ser vivido como uma experiência de
enriquecimento de mundo pessoal passa a ser angustiante e insuportável, como o
154
fato de se interessar por um rapaz e ser correspondida, que na saúde seria mais
gratificante do que desesperador, diferente do que foi para a paciente de Winnicott,
e não usar pílula seria apenas algo desnecessário e não a explicitação de que havia
algo de errado com ela.
Esse algo de errado surge da impossibilidade de viver as experiências com
profundidade, a partir de si mesma, como o que ocorreu com a moça atendida por
Winnicott que sempre se esforçou para ser diferente do que podia ser.
Apenas a partir de uma análise dos acontecimentos que a impediram de se
aprofundar em suas experiências, das consequências decorrentes de ter nascido
com o cordão umbilical amarrado no pescoço e de não ter tido um ambiente que lhe
possibilitasse integrar as experiências do processo de personalização,
principalmente as constituintes da diferenciação eu não-eu, é que a moça poderia
começar a viver de um modo um pouco mais pessoal.
E com essa possibilidade, quem sabe um dia teria, condição de suportar a
ambivalência que surge da destrutividade e da possibilidade de reparação, que
constituem base para os relacionamentos de intimidade e amorosos, incluindo as
relações sexuais, ou seja, a integração dos instintos relacionados à região genital e
que começam a ter importância real e não apenas potencial na adolescência.
Nessa fase as experiências de personalização referentes a integração dos
instintos relacionados às partes genitais poderão ser vividas totalmente, isto é,
de modo pessoal, se as experiências anteriores relacionadas a ter um interior e às
fantasias que as moças fazem de seu interior e o do corpo da mãe foram vividas e
elaboradas imaginativamente nos estágios anteriores à adolescência. Caso
contrário, é necessário que o psicanalista tenha condição de atender às
necessidades e para tanto compreender que essas necessidades de uma
155
adolescente nem sempre, e na realidade, muitas vezes não estão relacionadas à
sexualidade ou ao início da vida sexual.
5.3.2 Um caso simples de depressão e psiconeurose e sua relação com a
feminilidade
Nesta parte do trabalho é apresentada uma questão clínica muito comum aos
adolescentes: a depressão relacionada à psiconeurose. É destacado como o humor
deprimido pode até auxiliar as moças na adolescência a viverem a experiência de
reparação necessária para controlar o impulso destrutivo, que pode ocorrer
quando amor, ou seja, quando o ambiente permanece sustentando as
necessidades da pessoa.
É neste momento do estudo do processo do amadurecimento humano em
relação à constituição da feminilidade que podemos compreender o que Winnicott
apresentou no estudo da posição depressiva e como esta é fundamental para a
compreensão da sexualidade feminina, conforme o capítulo 1 da parte dois de seu
livro “Natureza Humana”.
As moças na adolescência viverão com muita intensidade o sentimento de
culpa surgido da destruição da mãe em fantasia, mas o mais importante não é a
culpa, é o modo como a destrutividade e a possibilidade de reparação acontecem, e
a vivência de suportar um período de humor deprimido decorrente de tais
experiências.
Dessas experiências de destrutividade e reparação é que surgirão as
fantasias e possíveis organizações pessoais para lidar com elas, principalmente as
relacionadas ao próprio corpo e ao que pode ocorrer no corpo da mãe.
156
Caso isso seja tomado em segundo plano e coloque-se, como mais
importante, questões relacionadas ao ódio reprimido e à sexualidade, muito do que é
relevante será omitido, como explica Winnicott (2005):
Aqui se poderia falar de ódio reprimido e de desejo de morte na posição
heterossexual, conduzindo a uma inibição dos impulsos instintuais. O que é
característico, no entanto, seria omitido nessa linguagem, ou seja, o humor,
a sensação de falta de vida da moça. Se ela ficasse viva, sua mãe sairia
ferida. Trata-se de um sentimento de culpa operando preventivamente. (p.
63)
Para Winnicott um valor na depressão, ou no humor deprimido, que é a
possibilidade de manter uma guerra interna por determinado período de tempo sem
que isso seja desintegrador, sem que se perca o sentido de si mesmo. É a
possibilidade de a pessoa controlar o ódio e de arranjar os elementos internos bons
e maus, o que implica em ter conquistado uma organização de si mesmo e força de
ego, pois há aceitação do ódio e esse se encontra sob controle.
Nas moças isso acontece de forma importante em relação às fantasias que
têm sobre elas mesmas, a possibilidade de engravidar indica que existe vida interior.
O mundo interno das moças parte de bases diferentes da dos rapazes, elas podem
ter elementos subjetivos não específicos e ainda assim permanece o sentido de
haver mundo interno. “As meninas tendem a manter os elementos subjetivos não-
específicos – porque elas podem pensar em possíveis gestações e bebês. Os bebês
naturalmente contrariam a idéia da falta de vida interior. Os meninos invejam o
potencial que as meninas têm.” (WINNICOTT, 2005, p. 64).
A possibilidade de engravidar contraria a ideia de falta de vida interior, mas
isto não alivia a culpa preventiva sobre os sentimentos ambíguos que as moças têm
em relação às suas mães, e além disso, um novo modo de viver a ambivalência,
157
iniciada como experiência no estágio do concernimento. A estruturação desses
elementos bons e maus, de amor e ódio, de culpa e reparação, frequentemente
levam à vivência do humor deprimido na adolescência. Assim como ocorreu no caso
apresentado por Winnicott.
Tal apresentação ilustra a situação clínica de uma moça de quatorze anos em
estado de humor deprimido, com si mesmo bem estabelecido, o que a possibilitou
contar um sonho e fazer uso de tal sonho na experiência analítica para curar sua
depressão.
Assim é o início da descrição de Winnicott sobre o caso: “Uma garota de
quatorze anos foi trazida ao Hospital infantil Paddington Green por causa de uma
depressão ria o suficiente para fazer com que seu desempenho escolar se
deteriorasse”. (WINNICOTT, 2005, p. 63)
Esta paciente estava com dificuldades para continuar sua vida normalmente,
ponto inicial da apresentação de Winnicott. É importante destacar tal ponto, pois
casos em que o humor deprimido não impede a pessoa de continuar a vida, apenas
exige que tenha paciência e tolerância, e que seu ódio esteja sob controle, não era o
caso da moça em atendimento.
Embora tivesse boa constituição de si mesma, se desorganizou nas tarefas
cotidianas. Mas apresentou um sonho fundamental em seu tratamento analítico,
menos importante por apresentar o ódio inconsciente, e mais relevante pela
sensação de falta de vida e a culpa preventiva que sentia, pois sua saúde implicava
em que a mãe sairia ferida, ainda que em fantasia.
Eis o sonho que a menina contou para Winnicott: “Numa entrevista
psicoterapêutica (uma hora), a garota descreveu um pesadelo no qual sua mãe
158
havia sido atropelada por um carro. O chofer do carro tinha um boné, como o de seu
pai.” (ibid., p.63)
A interpretação de Winnicott desse sonho foi a seguinte:
Interpretei para ela que seu intenso amor pelo pai explicava a ideia da morte
da mãe, enquanto ao mesmo tempo havia uma relação sexual representada
em termos violentos. A garota viu que a razão para o pesadelo era a tensão
sexual e o amor. Aceitou o fato de seu ódio em relação à mãe, a quem era
muito dedicada. Seu humor mudou. Foi para casa livre da depressão e
tornou-se capaz de apreciar novamente a escola. A melhora perdurou. (ibid.,
p.63)
Tal interpretação foi possível, como explicou Winnicott, pois a menina era
capaz de enfrentar as tensões internas envolvidas no sonho, ela era capaz de
reavaliar as novas experiências vividas e se sentir responsável por tais experiências.
Segundo o autor: “A causa principal do humor deprimido é uma nova experiência de
destrutividade [...] As novas experiências precisam de uma reavaliação interna, e é
essa reavaliação que encaramos como depressão.” (ibid., p. 65)
O tratamento da depressão não depende de um psicanalista animador, e nem
de palavras de incentivo, o necessário é que a pessoa possa entrar no estado de
humor deprimido sem ser pressionada a demonstrar falsa melhora com sorrisos e
palavras de fingido contentamento.
As situações de perseguição reais como um professor austero, um colega
hostil, podem fazer com que a maldade interna seja aliviada pela existência da
projeção de tensões internas que encontram eco em tais perseguições. E o melhor
que o analista pode oferecer é tolerância e paciência com o paciente deprimido para
que ele encontre a recuperação espontânea. É fundamental suportar com o paciente
essa existência que no momento se parece com dias de neblina, nos quais pouca
luz pode entrar espontânea e paulatinamente.
159
O valor da depressão está na possibilidade de conquista da destrutividade
enquanto experiência pessoal e necessária para que haja outra conquista no
processo de amadurecimento humano, a de responsabilidade pelos próprios
sentimentos. Uma pessoa saudável não precisa usar mecanismos de projeção para
lidar com os impulsos e pensamentos destrutivos.
Estou falando, portanto, de algo que tem que ocorrer em todo e qualquer
indivíduo o desenvolvimento da capacidade de assumir responsabilidade
pela totalidade dos sentimentos e das idéias desse indivíduo, estando a
palavra “saúde” intimamente relacionada ao grau de integração que torna
essa ocorrência possível. Uma coisa pode ser dita da pessoa saudável: ela
não precisa ficar usando o tempo todo a técnica da projeção para lidar com
seus impulsos e pensamentos destrutivos. (ibid., p. 71)
As adolescentes precisam destruir a mãe em fantasia, para se constituírem
como mulheres. Tal tarefa traz diferentes tipos de fantasia relacionadas a modos de
ser mulher, e cada moça poderá experienciar as vivências relacionadas ao seu
amadurecimento como mulher de uma maneira, mas as ansiedades geradas pela
culpa preventiva referentes à destruição da mãe precisam ser vividas para que a
moça possa vir a se constituir como mulher adulta.
Poder se apaixonar e escolher com quem irá se relacionar, escolher os
modos de relação que terá, qual grau de comprometimento, de intimidade, como
fará para se prevenir de uma gestação em um período tão conturbado como a
adolescência, são algumas dessas vivências.
E entra novamente o valos da depressão na constituição da feminilidade
das moças. Aquelas que não tiveram condição de viver o início do processo de
conquista da destrutividade inerente e pessoal, no estágio do concernimento, terão
na adolescência uma segunda chance para isso, mas agora com o seguinte
problema: o que antes era potencial, na adolescência é possibilidade real, então se
160
a moça não puder se responsabilizar pelas escolhas que faz no que se refere aos
modos de relação que estabelece com as outras pessoas, torna-se refém de si
mesma, no sentido de não poder, de fato, escolher como irá se relacionar.
A adolescente por estar numa fase de amadurecimento em que ainda não
pode sustentar suas ideias e atos por si mesma, precisa da família para que possa
decidir, ainda que de maneira muito frágil, como vai se relacionar.
aqui um dilema. A adolescente não pode, pois ainda é imatura, se
responsabilizar por muita coisa, mas se alguma conquista de responsabilidade não
acontece, ela pode engravidar sem querer nem poder cuidar de uma criança, pode
ser infectada por alguma doença sexualmente transmissível, ou seja, pode se
colocar em situações de risco, por o ter condição de experimentar tais relações
como arriscadas.
O fato é que pouco se pode fazer em relação a exigir compreensão da
adolescente sobre essas questões, porém se a família pode auxiliá-las, na gradativa
integração da destrutividade e pode suportar o humor deprimido decorrente, está
uma boa maneira de se possibilitar que as adolescentes não se coloquem em
situação de risco.
Estamos lidando com um aspecto do sentimento de culpa que provém da
tolerância aos impulsos destrutivos do amor primitivo. A tolerância aos
impulsos destrutivos resulta numa coisa nova: a capacidade de ter prazer
em idéias, mesmo que sejam idéias destrutivas, e as excitações corporais a
elas correspondentes, ou às quais elas correspondem. Tal desenvolvimento
espaço para a experiência da preocupação, que em última análise é a
base de tudo aquilo que for construtivo. (ibid., p. 77)
As moças que puderem alcançar a condição de sentir prazer em ter ideias,
inclusive destrutivas, quando elaboradas imaginativamente pelas funções corpóreas
relacionadas, não precisam efetivamente destruir os objetos que amam. Elas podem
construir coisas, relações, de modo que o humor deprimido se tornará uma situação
161
que com paciência irá passar e fará com que mais tarde elas possam construir
baseadas na preocupação com os outros e consigo mesmas, evitando uma gravidez
fora de época, relações amorosas destrutivas, e até a compulsividade destrutiva,
mais comum na adolescência, que ainda é mais honesta, como evidencia Winnicott
(2005), que uma construtividade não baseada no sentimento de culpa, e portanto
falsa.
5.3.3 Um caso de psicose e sua relação com a feminilidade
Neste item é apresentado um caso de uma moça de dezesseis anos que
ilustra uma situação clínica de tratamento de uma adolescente psicótica e como a
constituição de sua feminilidade foi afetada pela doença de Hesta. Embora tivesse
dezesseis anos na época da primeira consulta, comportava-se como uma menina de
oito anos. Teve sua primeira crise no período de sua primeira menstruação, época
em que o relacionamento entre os pais não estava bom.
Ela carregava um frequente sentimento de inadaptação, era muito sensível ao
que os outros pensavam a seu respeito, apresentava uma oscilação maníaco-
depressiva, e havia o medo de que ela pudesse se matar. Recusava-se a ser
internada. Os pais conseguiram uma pessoa para cuidar de Hesta em casa, o que
foi muito bom para ela.
Hesta dizia que seu único problema eram os pais, e que quando deixada
sozinha, ficava bem. Ela contou a Winnicott que teve uma depressão aos quatorze
anos, não relacionou o início de sua crise com o início de seu ciclo menstrual, fatos
que foram concomitantes, e ela não aceitava isso como explicação. Ela não gostava
162
da cidade, preferia ficar no campo, onde morava e jogou com um amigo pela
primeira vez o jogo dos rabiscos, que fez com Winnicott em sua primeira consulta.
No jogo Winnicott pôde notar a natureza de duas etapas dos rabiscos de
Hesta, uma relacionada aos instintos, que segundo Winnicott eram bem integrados.
Ela era capaz de usar suas experiências instintuais de forma criativa: a menina
demonstrava autoaceitação, fez um desenho de si mesma com suas curvas e traços
que mostravam como era corpulenta, tinha capacidade de aceitar a puberdade como
uma fase passageira para depois se tornar uma mulher adulta. Em seus desenhos
símbolos, como um chapéu, que podem ser relacionados ao órgão masculino,
mostrando controle de Hesta sobre a inveja do pênis.
Hesta não tinha problemas dessa natureza, instintual, em relação ao estágio
do Complexo de Édipo. Ela precisava retomar o processo de elaboração imaginativa
iniciado em um estágio bastante anterior, relacionado ao aparelho digestivo e à
constituição de mundo interno, uma das bases para a constituição do si mesmo.
Além disso, havia a impossibilidade de fazer identificações cruzadas, que era
a outra natureza de problemas vividos por Hesta. A mãe era bastante autocontrolada
e se mostrava feliz, mas em um de seus desenhos a moça mostrou como era por
vezes deixada de lado. Ainda assim sua identificação com a mãe havia sido iniciada.
Mas com o pai a moça teve uma experiência de real desilusão em uma época
específica, o que a impossibilitou de iniciar a experienciar as identificações cruzadas
que reúnem os elementos masculino e feminino puros.
No início do jogo dos rabiscos Hesta fez um desenho, foi o quarto desenho
do jogo, de “um homem sinistro”, que poderia ser pensado como o pai como figura
sexual, ou como o médico que tentou tratá-la a pedido dos pais, e como isso poderia
ser vivido por Hesta como uma ameaça à sua pessoalidade. Passado algum tempo,
163
no décimo terceiro desenho, ela fez um menino, e admitiu uma identificação
masculina, o que a preparou para se livrar do sentimento de inadequação vivido e
relacionado à fase fálica.
No caso de Hesta, assim como em muitos casos de psicose, houve uma
dissociação, que a impediu de continuar o processo de amadurecimento a partir da
primeira crise ocorrida na adolescência.
Se Winnicott tivesse aceitado a explicação de que a crise ocorrida com Hesta
aconteceu por conta de sua primeira menstruação, seria impossível verificar a
dissociação ocorrida muito anterior a tal período, e que de fato foi o que fez com que
Hesta não pudesse limitar bem sua realidade pessoal e a realidade compartilhada.
A moça não tinha nenhum problema de ordem sexual, ela tinha sim, questões
relacionadas à elaboração imaginativa de funções do aparelho digestivo, e à
impossibilidade de fazer identificações cruzadas, o que a impedira de viver de forma
saudável as experiências relacionadas à fase fálica, mas que não foram iniciadas
questões relacionadas à tal fase por algum problema de ordem sexual.
O problema de analisar o caso clínico de Hesta, e de outros pacientes, a partir
da teoria da sexualidade freudiana, o são consideradas as duas raízes da teoria
da sexualidade, uma instintual e outra identitária, apresentadas por Loparic (2005)
em seu artigo “Elementos da teoria winnicottiana da sexualidade”. E sem avaliar
essas duas raízes o tratamento psicanalítico pode ser fixado na base instintual de
natureza genital e não tratar da necessidade do paciente.
Hesta, por exemplo, teve o início de suas crises no mesmo período em que se
iniciou sua menstruação, mas como ela mesma disse a Winnicott, isso não era um
problema, suas questões se iniciaram em um período muito anterior do processo de
amadurecimento humano, que culminaram em uma crise aos quatorze anos,
164
momento em que também surgiram questões de ordem sexual, as quais só puderam
ser analisadas e tratadas com base na raiz identitária da sexualidade.
Hesta não conseguia se identificar com os homens, pois houve uma real
desilusão vivida na relação com seu pai, acontecida em um momento de sua vida
que a menina não tinha como lidar com tal desilusão tendo sido, portanto,
experienciada como desintegradora. E assim não havia possibilidade de ela admirar
os meninos, e muito pelo contrário do que normalmente ocorre, ela não tinha
nenhuma inveja deles até sua adolescência.
A constituição da feminilidade de Hesta, e de outras adolescentes que tenham
vivido crises psicóticas, poderia acontecer se houvesse a retomada do processo
de amadurecimento humano desde o momento em que houve o trauma, aqui
entendido de maneira muito resumida e rápida, como a impossibilidade do ambiente
de se adaptar às necessidades da pessoa.
Opostamente ao que ocorre na fase fálica com a maioria das meninas, Hesta,
não sentia nenhuma inveja do pênis, pois não havia também nenhuma identificação
dela com meninos ou homens, o que não impediu que ela tivesse boa aceitação de
seu corpo como um corpo de mulher.
Seu sentimento de inadaptação e medo de ser lésbica não tinham relação
com sentimento de inveja, mas com a dissociação de elementos masculinos e
femininos puros e a impossibilidade de estabelecer relações de identificação
cruzada até a adolescência.
165
5.4 DOIS CASOS CLÍNICOS DE MULHERES ADULTAS E AS DIFICULDADES NA
CONSTITUIÇÃO DA FEMINILIDADE
5.4.1 O caso de uma mulher com o elemento masculino dissociado
O caso apresentado neste momento faz parte do capítulo dez do livro “O
brincar e a realidade”, intitulado: Inter-relacionar-se independentemente do impulso
instintual e em função de identificações cruzadas. É um caso de uma paciente de
Winnicott, mulher de quarenta anos de idade, professora, solteira, que tinha uma
vida empobrecida por ser incapaz de se “colocar no lugar de outras pessoas”, tal
incapacidade lhe servia como uma defesa organizada. Como descreve Winnicott
(1975), a paciente:
Ficava isolada ou, então, esforçava-se por uma relação de objeto com apoio
instintual. Havia motivos muito complexos para a dificuldade especial dessa
paciente, mas poder-se ia dizer que ela vivia num mundo permanentemente
deformado pela sua própria incapacidade de sentir qualquer interesse pelos
sentimentos ou dificuldades de outra pessoa. (p. 178)
A mulher tinha empatia e simpatia pelos grupos de pessoas espezinhadas,
acreditava que as mulheres eram pessoas de terceira classe e os homens não
conseguiam fazer parte de sua vida de maneira cotidiana. Tinha o elemento
masculino dissociado, o que fazia com que tivesse dificuldade em se relacionar com
homens.
Depois de algum tempo de análise a paciente relatou a Winnicott que não
podia chorar ali, pois a análise era tudo que ela tinha, e não podia perder tempo
chorando: mas chorou aos soluços. Desde esse período e nos próximos dois anos, a
paciente começou a poder se identificar com alguns de seus alunos, principalmente
166
os rapazes talentosos, suas realizações eram como se fossem dela. Disse a
Winnicott, como parte de um sonho, que tinha um aluno em especial que era muito
talentoso e que ia sair da escola para arranjar um emprego, o que para ela seria
uma calamidade.
Nesse período da análise, vários sonhos relatados pela paciente indicaram a
frágil constituição de seu si-mesmo, sentindo-se à deriva, como alguém que não tem
nenhum controle ou condição de escolha na própria vida. Sendo assim, nada e
ninguém poderia se adaptar às necessidades dela, ficando desprotegida para se
relacionar com outras pessoas. E sem saber o que achavam dela, ela também não
sabia o que pensava de si mesma.
Depois houve um período em que outros temas importantes surgiram na
análise, como “... a natureza implacável da luta entre seu eu (self) feminino e o
elemento masculino dissociado e expelido (splitt-off)”. (ibid., p. 183). Ela
desenvolveu uma técnica para projetar seu elemento masculino dissociado, e assim
se relacionar com os homens, como se parte de seu si-mesmo pudesse ser
identificada neles. E sabia que era mulher, sentia-se uma mulher, mas isto implicava
em ser uma pessoa de terceira classe.
O seguimento da análise se deu com novas memórias da paciente e seu
relato sobre a relação dos pais e a relação deles com ela. Lembrou-se dos pais
sendo afetivos e interessados um pelo outro, e do alívio que sentira certa vez que
viu os pais se beijando. Lembrou-se também, da relação com a mãe, e de ter seu
rosto apoiado na manta da mãe, remetendo a um estado de união em que ainda,
mãe e bebê, eram uma dupla indissociável. Esse fato lhe daria condição de
experienciar um bom ambiente ainda no começo de sua vida, exatamente por ter
tido alguém, a mãe, que se identificou com ela e se adaptou às suas necessidades.
167
A partir desse momento a paciente pôde começar a viver experiências
enriquecedoras e de fato poder se identificar com homens e mulheres, essas não
sendo pessoas de terceira classe, inclusive com seu analista, que nesse mesmo
período teve que sobreviver aos ataques da paciente que vieram junto com sua
capacidade de empatia. A voracidade e a crueldade, em forma de grandes
exigências, surgiram da nova crença de que o analista era outra pessoa,
independente dela e que ele tinha a capacidade de se cuidar, logo ela não precisava
se preocupar com ele.
Pela primeira vez ela lamentou a morte da mãe e começou a viver
imaginativamente, inclusive a relação com a e, que antes não era base para sua
constituição de si-mesmo, ou pelo menos não era uma base segura, confiável,
passou a ser quando ela mudou o modo de ver os pais, a partir da nova condição de
viver e integrar seu si-mesmo feminino e o elemento masculino dissociado e
expelido.
Todo o trabalho analítico aqui apresentado não foi baseado em interpretações
clássicas, como referência de tratamento. E se assim tivesse sido feito, muito do que
foi alcançado como resultado não poderia ter ocorrido. Isso porque as pessoas
doentes, em sua maioria, apresentam defesas, como a paciente citada, e/ou,
elementos dissociados de seu si-mesmo, e ainda muitas experiências não foram
integradas para que o processo de amadurecimento fosse continuado, assim como a
experiência de ser si-mesmo.
Este é o caso de uma paciente que não podia constituir sua feminilidade, pois
não tinha condição de se identificar com mulheres ou homens. Inicialmente suas
únicas identificações possíveis eram com o elemento masculino expelido que ela
podia reconhecer como existente nos homens, e nela, a partir de certo momento da
168
análise, o que não constituía uma relação inter pessoal, mas de partes dela que
podiam se relacionar com partes de alguns homens.
A identificação com mulheres também não podia acontecer, pois ela era
incapaz de se colocar no lugar de qualquer outra pessoa, por mais parecida
fisicamente que outras mulheres pudessem ser com ela. Além disso, havia o fato de
considerar as mulheres como pessoas de terceira classe. Quando começou a se
identificar com as pessoas, primeiro com homens e depois com mulheres, sentia-se
como parte do grupo das pessoas de terceira classe, as mulheres.
A impossibilidade de fazer identificações trouxe a essa paciente um
empobrecimento de mundo que inviabilizava que mantivesse qualquer relação de
intimidade e de comunicação real entre duas pessoas. Ela não podia estar com os
outros de modo a considerá-los, e de ter real interesse por eles, assim como de
acreditar que alguém pudesse estar com ela de modo a se preocupar e se importar
com ela.
Tal empobrecimento de mundo fez da paciente uma mulher sem feminilidade
e sem masculinidade, sem possibilidade de constituir uma sexualidade nem em
termos de impulsos instintivos e nem a partir de identificações com outras pessoas.
5.4.2 Casos em que a feminilidade está ligada ao extremo da lógica
outra gama de distúrbios relacionados à constituição da feminilidade
adulta com o extremo da lógica. Tais casos não têm origem na impossibilidade de
fazer identificações ou em alguma dissociação de elemento feminino ou masculino
puros. Estão relacionados com o fenômeno clínico denominado por Winnicott de split
off intelect, ligados ao extremo da lógica, utilizado por algumas pacientes na
169
tentativa de entender e explicar uma nova experiência sexual trazida a partir do uso
da pílula.
As mulheres adultas que não são casadas, mas têm vida sexual ativa,
encontram no uso da pílula uma possibilidade de diminuir muito a probabilidade de
indesejada gravidez. Antes da existência da pílula, as mulheres não podiam viver
sua sexualidade com tanta liberdade. Ainda que não seja um modo de prevenir
contra doenças sexualmente transmissíveis, a pílula impede a gravidez que também
é um problema para uma mulher sem companheiro que não queira ou não possa
criar um filho.
Tal liberdade modificou o modo como as mulheres se relacionam
sexualmente. Se antes a sexualidade estava diretamente relacionada à procriação,
depois da pílula a sexualidade feminina passou a ter maior ligação com o prazer
ao menos é isso que se almejava mas daí decorrem algumas questões com as
quais nos deparamos na clínica. Uma delas está ligada ao extremo da lógica como
tentativa de compreender a sexualidade exclusivamente vivida na busca de prazer.
Winnicott apresenta casos como esses no texto, “A pílula e a lua”, os quais
trago para apresentar as dificuldades relacionadas à constituição da feminilidade
quando esta é atravessada pelo extremo da lógica. Um deles é o de uma mulher que
já havia sido casada e tido filhos, e que quando foi procurar Winnicott, estava
divorciada e muito sozinha. Depois de algum tempo de tratamento, sentiu-se mais
solta e aceitou um convite de um homem para jantar. Aconteceu de na mesma noite
irem para o quarto, mas ele o tinha preservativo, então ela usou a desculpa de
estar menstruada para não ter relação sexual com ele, que se assustou com o fato
de ela não usar pílula.
170
Ela, por sua vez, achou incrível o homem querer dormir com ela, sem ter
preservativo, e presumir que ela devesse usar pílula. A lógica dos fatos está correta,
é bastante inseguro manter relacionamento sexual com uma pessoa que não se
conhece e em quem não se confia. A mulher tinha ótimo raciocínio lógico, porém
uma profundidade e complexidade nisso que lhe ocorreu que ela não de viver.
Além de correr perigo, ela estaria mantendo relação sexual com um homem com
quem ainda não tinha intimidade, e o relacionamento sexual implica em alto grau de
intimidade, quando as duas pessoas estão querendo algo mais do que uma rápida
busca de prazer, ou alívio imediato para a instintualidade.
Mesmo que a vontade de manter relação sexual com o homem fosse grande
naquele momento, ela não o fez por causa de um motivo lógico, se ele tivesse
contraceptivo, ela o teria feito. E é nesse ponto que precisamos chegar ao discutir a
feminilidade na idade madura quando relacionada ao extremo da lógica. Toda a
parte que o diz respeito à lógica fica esquecida, os sentimentos em relação a si
mesma, e até o próprio corpo não são levados em conta. O instinto passa a dominar
a experiência que já não pode ser vivida em sua totalidade psicossomática.
As mulheres são diferentes dos homens: para elas a relação sexual implica
em receber outra pessoa dentro de si. Para os homens isso não acontece. Por mais
que possam manter uma relação sexual sem intimidade, para as mulheres, isso
ocorre de forma a desconsiderar o modo como acontece a relação sexual por ser
mulher, por ter um corpo de mulher. Quando isso ocorre as contradições próprias
das experiências humanas não podem ser toleradas, e ficam refugiadas na área
cindida do intelecto, como explica Winnicott no artigo citado.
A liberação sexual viabilizou que a mulher possa ter relação sexual sem
engravidar, mesmo que o homem não use preservativo. Entretanto não fez e nem
171
fará com que a mulher tenha outro modo de manter relação sexual que exclua sua
experiência como alguém que recebe outra pessoa dentro de si e todas as
elaborações imaginativas decorrentes do modo que se a relação sexual para a
mulher devido a ter o órgão genital feminino escondido.
A mulher que experiencia o sexo de maneira a desconsiderar seu corpo e o
modo como a relação sexual implica em entrar em contato íntimo com outra pessoa,
pode fazer assim se utilizar do extremo da lógica para viver tal experiência, o que
implica em destituir sua feminilidade de uma das características mais primitivas da
mulher, a elaboração imaginativa de seu órgão sexual. Ou seja, se relacionar com
base apenas nos instintos, restringe a mulher a um modo de relação ao invés de
liberá-la para complexificar sua experiência nas relações interpessoais com os
parceiros que ela vier a ter.
172
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo do presente trabalho foi apresentar a constituição da feminilidade
na psicanálise winnicottiana. Este trabalho só pôde ser feito a partir de minha
demanda em compreender e atender as necessidades das pacientes atendidas por
mim. Optamos por apresentar os casos de Winnicott para ilustrar as situações
clínicas, pois foram estes que me orientaram para compreender os meus, e assim
consideramos que podem orientar também os leitores deste trabalho.
O estudo, num primeiro momento, possibilitou inferir que a feminilidade e suas
questões relacionadas não são questões clínicas em si, ou seja, problemas no
processo de amadurecimento humano que podem envolver aspectos inerentes à
constituição da feminilidade, mas não que eles sejam em si um distúrbio. Ainda em
relação a isto, podemos dizer que a feminilidade ocorre e se constitui ao longo do
processo de amadurecimento humano de forma específica em mulheres e homens,
os quais não foram analisados aqui, mas tal estudo pode ser bastante relevante para
a compreensão da masculinidade dos homens e sua constituição.
Quanto à constituição da feminilidade nas mulheres pudemos concluir que
algumas tarefas próprias de cada estágio do processo de amadurecimento humano
possibilitam que a constituição da feminilidade ocorra de modo saudável, ou seja,
as aquisições feitas em alguns estágios dão condição para que as mulheres se
constituam a partir da elaboração imaginativa das partes e funções corpóreas,
inclusive dos órgãos genitais, mas não apenas deles.
As raízes da feminilidade não têm base na elaboração imaginativa dos órgãos
genitais, mas na constituição do si-mesmo que inclui a identificação primária e
depois outras identificações feitas nas relações da criança com as outras pessoas. A
173
base das raízes da feminilidade está inicialmente na elaboração imaginativa do
aparelho digestivo e excretor. Nesta elaboração estão as raízes das fantasias que a
menina fará do interior do próprio corpo e do corpo da mãe.
A elaboração imaginativa dos órgãos ligados ao aparelho digestivo viabiliza a
menina a viver uma boa ou má experiência do que dentro de si, de quem ela é e
de quem os outros são. Boa e experiência no sentido winnicottiano, boa
experiência é aquela que pode ser vivida de modo pessoal, e aquela que não
pode ser vivida de modo pessoal e precisa da criação de defesas contra o ambiente
invasivo, caótico ou perfeito.
Nesse momento é fundamental que a mãe possa se identificar com a be
primeiramente como a bebê que ela foi um dia, mas também como a mulher que sua
filha será no futuro.
Isto se a partir do modo com que a mãe cuida da filha atendendo suas
necessidades pessoais e suas necessidades de menina. A menina, no estágio do
concernimento, começa a sentir excitações em seus órgãos genitais, mas isso não é
aparente como nos meninos, e não está unicamente relacionada à sexualidade,
aliás, não está em nada relacionada com a sexualidade madura ou genital.
A mãe precisa auxiliá-la a lidar com tais excitações que no início acontecem
quando a menina se alimenta, quando dorme, em vários momentos. À mãe apenas
cabe esperar que a excitação passe, pois ainda no início é isso que a criança
precisa, elaborar algumas partes do corpo e não julgamentos morais antecipados
por parte da mãe, e que ainda não fazem sentido algum para a criança.
As meninas, nesse estágio começam a se preocupar ou mais precisamente,
estarem concernidas com elas mesmas e com os outros, com a mãe. Há uma
experiência própria das meninas que é de poder destruir a mãe sem que ela seja
174
destruída de fato, uma vez que ela ainda precisa da e e que um dia ela será
semelhante a mãe, uma mulher. Esse último evento não acontece com os meninos.
Eles podem depois de destruir a mãe em fantasia se identificar com os outros
homens quando a relação com as mulheres, mesmo que com a e, fica difícil, ou
quando de fato se identificam com o modo masculino de viver determinadas
relações.
O estágio do Complexo de Édipo não é a base da constituição da sexualidade
nem tão pouco da feminilidade, é apenas mais um estágio do processo de
amadurecimento humano. As tarefas e aquisições desse estágio que estão
relacionadas à constituição da feminilidade são principalmente a identificação com a
mãe e outras mulheres, a possibilidade de viver relações de identificação cruzada
que viabilizam que a menina também se identifique com o pai o admire, o destrua
em fantasia, o ame, e se apaixone por ele.
Na adolescência a experiência de ambivalência é vivida com bastante
intensidade pelas meninas, assim como as experiências relacionadas ao processo
de personalização, neste estágio a possibilidade real de engravidar traz nova
experiência de si mesma e a moça para conseguir continuar amadurecendo e
constituindo sua feminilidade precisa integrar essas experiências de elaboração
imaginativa das funções corporais, incluindo agora a elaboração imaginativa dos
órgãos genitais e do que há dentro de seu corpo.
175
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