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circular o expresso 2222 / Que parte direto de Bonsucesso pra depois /
Começou a circular o expresso 2222 da Central do Brasil / Que parte direto
de Bonsucesso pra depois do ano 2000.” Como já disse, ao tocar os ritmos do
interior brasileiro com a guitarra elétrica dos Beatles e dos Rolling Stones,
choquei os espíritos continentais do meu país. Logo, era considerado uma
ameaça à segurança nacional. A Tropicália foi a minha cria, meu destino e
meu espaço de afirmação como brasileiro.
Hoje, quando muito se fala de globalização, que não é exatamente a que
eu cantava em “Parabolicamará”, quando muito se teme a homogeneização
que ela traria, quando guerras de novo são encetadas sob a alegação de
garantir a supremacia de determinados valores, considerados superiormente
humanos, penso nos meus ancestrais portugueses, que “da ocidental praia
lusitana… foram dilatando a fé, o império, e as terras viciosas d’África e
d’Ásia andaram devastando.” E como na época disso se orgulhou o poeta
Camões. Penso nos meus ancestrais africanos, em homens e mulheres
litorâneos, debruçados sobre o Atlântico, que significava riquezas, comércio,
desgraça, escravidão e saudade. E penso num dos resultados disso tudo, o
Brasil de hoje, com seu peculiar amálgama de tragédia e celebração da vida.
A História, como Deus, tem formas tortas e insuspeitas de ir escrevendo o
seu texto.
Em algum momento, declarei não ter medo de não ser brasileiro. Somos
o que somos, apesar de nós, por nós e contra nós. Mas com outro poeta
português de olhos também fixos no mar, sempre soube que não sou um, sou
muitos. Este que significativamente chamou-se Pessoa, se em um de seus
vários eus sofreu a nostalgia do império perdido, não foi por uma grandeza
terrena, mas por uma outra inefável, que podia habitar os campos da Antiga
Grécia, expressar-se no idioma bretão, ou celebrar o pequeno rio de sua
aldeia. Tudo podia, desde que a alma não fosse pequena.
Quando a desconfiança da hegemonia do nacional se alastrou pelo
mundo, eu como bom litorâneo já estava preparado. E na minha condição de
homem, reconheci minha metade mulher; na de heterossexual, vislumbrei
minha sensibilidade homo; na de negro, exaltei minh’alma de todas as cores,
na de crente, abracei o credo de todos os deuses. Como político, vi na
ecologia a possibilidade de superar nossas mesquinharias imediatistas e dar
uma dimensão mais cósmica às nossas ações em sociedade. Hoje, como
ministro da Cultura do meu país, vejo no conceito de cultura a possibilidade
de lidar com o ser humano brasileiro em todas as suas dimensões,
mergulhado num meio ambiente Brasil que é sempre já natureza e cultura.
Como artista e cidadão do mundo, vejo na cultura o espaço para o encontro
de países, credos, etnias, sexualidades e valores, na cacofonia de suas
diferenças, no antagonismo de suas incompatibilidades, na generosidade de
um lugar comum, algo que nunca existiu, mas sempre foi sonhado por
aqueles que deixam seu olhar se perder no horizonte.
A vocação do menino de Salvador de Todos os Santos, umbigo atado ao
torrão natal e alma vagabunda de navegador, me acompanha por todos os
portos em que hoje aporto, para falar na linguagem internacional da música
sobre um certo povo, que habita em algum lugar, e sobre esse lugar comum,
onde todos somos iguais em nossas imensas diferenças.
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Disponível em (http://www.cultura.gov.br/site/2006/06/23/discurso-do-ministro-gilberto-gil-no-
isummit-2006/). Acesso em 12/01/2010.