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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Cibele Pereira Agibert
O cortiço de Aluísio Azevedo (1890): relações entre ciência e
literatura
MESTRADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA
SÃO PAULO
2010
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Cibele Pereira Agibert
O cortiço de Aluísio Azevedo (1890): relações entre ciência e
literatura
MESTRADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA
Dissertação apresentada à
banca examinadora da
Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título
de Mestre em História da
Ciência, sob a orientação da
Profa. Dra. Lilian Al-Chueyr
Pereira Martins.
SÃO PAULO
2010
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Agibert, Cibele Pereira
O cortiço de Aluísio Azevedo (1890): relações entre ciências e literatura”
São Paulo, 2010
xii, 49 p.
Dissertação (Mestrado) PUC - SP
Programa: História da Ciência
Orientadora: Profa. Dra. Lilian Al-Chueyr Pereira Martins.
Banca Examinadora
_________________________________
_________________________________
_________________________________
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial desta dissertação por processos fotocopiadores ou eletrônicos.
Ass.: __________________________________________________________
Local e data: ____________________________________________________
Cibele Pereira Agibert
Dedico este trabalho aos meus pais Adil e Neusa
e família, cuja distância não impediu que me
incentivassem por meio de palavras consoladoras
a prosseguir na trajetória do mundo acadêmico.
Agradeço à Profa. Dra. Lilian Al-Chueyr Pereira
Martins por ter me orientado com dedicação,
empenho e nobreza de espírito em suas atitudes.
AGRADECIMENTOS
Ao Criador, por ter me iluminado e me fortalecido face às dificuldades
encontradas.
À Profa. Dra. Ana Maria Haddad Baptista por suas primeiras orientações nas
disciplinas cursadas.
Aos professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência
da PUC/SP, sobretudo à Profa. Dra. Vera Cecília Machline e Profa. Dra. Márcia
Helena Mendes Ferraz, por terem contribuído através das disciplinas ministradas
para o desenvolvimento desta dissertação.
Às professoras Dra. Maria Elice Brzezinski Prestes e Dra. Vera Cecília Machline
pelas valiosas sugestões apresentadas durante a qualificação.
Às minhas ex-professoras do magistério, Arlete Cunha, Rosemeire Carvalho de
Oliveira, Sueli Bugana Peres e aos demais. Muito obrigada por terem me ensinado
o verdadeiro compromisso no tocante ao ato de ensinar.
À Luciana dos Santos Cerqueira, Roberto Soeiro de Souza, Edenise Siqueira,
Priscila Xavier Gomes de Siqueira, Márcia Aparecida Debone, Maria Adriana
Pagan, Claudia Rocha Ulian, Mariana de Arruda Souto Pagliari, Solange da Silva
da Veiga Lima e Maspole Antonio D‟Orazio, Sérgio Firmino Pedrosa da Silva, Elian
Custódio de Oliveira, Edvaldo Limeira, Úrsula Lopes, Andrea Pappiani, Arnaldo
Marinho da Silva, Sérgio Delgado que muitas vezes prestaram solidariedade a
mim.
As diretoras Nayara Aparecida Abdalla Teixeira, Maria Aparecida Camargo Ribeiro
e aos coordenadores Jairo Rodrigues da Fonseca e Marcello Reis de C. Melo por
terem demonstrado compreensão e paciência diante das minhas decisões.
Aos colegas do curso de História da Ciência com os quais partilhei momentos de
interação referentes à reflexão, compreensão, discussão nos trabalhos em equipe.
Em especial à Solange Cunha devido a sua generosidade em se dispor à ajudar-
me com a formatação final deste trabalho.
À Professora Dra. Angélica de Oliveira por ter me auxiliado no início da carreira
docente.
A todos do Colégio E. E. Prof. Francisco Gonçalves Vieira, em que trabalhei
durante anos, cujo Projeto Interdisciplinar Prova do Livro, despertou em mim o
interesse pela obra O cortiço de autoria de Aluísio Azevedo de que trata o tema
desta dissertação.
À secretária do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência da
PUC/SP, Verônica Aparecida dos Santos Martins, por sua consideração e respeito
ao longo do curso.
À Comissão Regional da Diretoria de Ensino Norte 1 e supervisora Mônica Lopes.
Ao Programa “Bolsa Mestrado” da Secretaria de Educação do Estado de São
Paulo por ter financiado esta pesquisa.
RESUMO
O objeto de estudo desta dissertação é a obra O cortiço de autoria de
Aluísio de Azevedo (1857-1913) que foi publicada no Brasil em 1890. É um estudo
de interface, pois, além dos aspectos literários, procura lidar com a ciência da
época e como ela é retratada neste romance.
Esta dissertação é composta por uma Introdução e mais três capítulos. O
Capítulo 1 apresenta o autor Aluísio Azevedo e os personagens da obra O cortiço.
O Capítulo 2 discute sobre aspectos científicos, sociais, históricos e literários
relacionados ao Cortiço. O capítulo 3 apresenta algumas considerações finais
sobre o assunto, comentando acerca das relações entre ciência e literatura nesta
obra.
Em termos literários, o romance O cortiço apresenta alguns aspectos que
se enquadram no Realismo tais como basear-se na observação e coleta de dados.
Por outro lado, apresenta várias características do Naturalismo literário tratando
das condições fisiológicas e da influência que o meio exerce sobre os indivíduos
(determinismo). Retrata parte da situação social e urbanística da cidade do Rio de
Janeiro em que proliferavam os cortiços, que abrigavam a escória e devido às
suas péssimas condições constituíam um foco de doenças, como a febre amarela,
por exemplo. Além disso, a influência que esse ambiente exercia sobre
comportamento de seus habitantes.
Palavras-chave: Azevedo, Aluísio; literatura e ciência; cortiço; febre amarela.
ABSTRACT
The subject of this dissertation is the novel O cortiço (The slum) written by
the Brazilian author Aluísio Azevedo (1857-1913), published in 1890. Besides
dealing with literary features, this study also deals with some features related to the
science of the 19
th
century in Brazil and how they are portrayed.
This dissertation contains an introduction and three chapters. Chapter 1
presents the author Aluísio de Azevedo and the characters of the novel O cortiço.
Chapter 2 discusses about some scientific, social, historical and literary features
related to this novel. Chapter 3 provides some final remarks on the subject.
As concerning literature, the novel O cortiço (The slum) displays some
characteristics which belong to Realism such as observation and data collection in
its composition. On the other hand, displays several characteristics which belong to
Naturalism such as dealing with physiological conditions, and determinism. It
portrays part of the social situation as well as the urbanization conditions of Rio de
Janeiro city in the end of 19
th
century. The bad conditions in the slums enabled the
spread of diseases such as yellow fever, for instance. Besides that, it also deals
with the influence of such environment on their inhabitant‟s behavior.
Key-words: Azevedo, Aluísio; science and literature; slum, yellow fever.
SUMÁRIO
Introdução…………………………………………………………………..…....p. 01
Capítulo 1 Aluísio Azevedo e os personagens do O cortiço................p. 04
1.1 Aluísio Azevedo.......................................................................................p. 04
1.2 O cortiço São Romão...............................................................................p. 20
1.3 Os moradores do cortiço São Romão......................................................p. 22
Capítulo 2 Aspectos científicos e literários relacionados ao cortiço.p. 29
2.1 História, política e sociedade...................................................................p. 29
2.2 As doenças no cortiço.............................................................................p. 39
2.3 Do Realismo ao Naturalismo...................................................................p. 42
Capítulo 3 Considerações finais.............................................................p. 45
Bibliografia...................................................................................................p. 47
1
INTRODUÇÃO
O objeto de estudo desta dissertação é a obra O cortiço de autoria de
Aluísio de Azevedo (1857-1913) que foi publicada no ano seguinte à
proclamação da República em nosso país. No entanto, não se trata de um
estudo voltado somente a aspectos literários. Trata-se de um estudo de
interface, pois procura lidar também com a ciência da época e como ela
comparece neste romance.
Trabalhos que envolvem as relações entre ciência e literatura não são
simples porque requerem um domínio de ambas as áreas. Assim, esta
pesquisa representa uma primeira tentativa singela em fazer esta aproximação
que esperamos poder aprimorar em escritos futuros.
Consideramos que este romance, escrito no final do século XIX,
considerado como integrante da escola naturalista, se presta a este tipo de
análise que apresenta situações em que ciência e literatura aparecem lado a
lado. Nas palavras de Alexander Gode-Von Aesch, “Certamente, os primeiros
traços de tais tendências transcientíficas, quase sempre foram
contemporâneas aos primórdios do naturalismo. [...]”
1
. Isso não se aplica
somente à Europa (ou mais especificamente à Alemanha, a que ele se refere),
mas também ao Brasil, como veremos nos capítulos que se seguem.
No decorrer do século XIX o avanço tecnológico se tornou um dos
objetivos da ciência. A ciência deveria fazer previsões e a ideia do progresso
era muito forte, manifestando-se no positivismo que teve ampla aceitação em
nosso país.
O objetivo deste trabalho é averiguar como a ciência da época e a
situação social, política ou mesmo urbanística comparecem na obra O cortiço
que tem como cenário uma parte da cidade do Rio de Janeiro. Iremos nos
concentrar principalmente nos aspectos relacionados à medicina, as doenças e
sua relação com o tipo de habitação.
Esta pesquisa segue a linha de História, ciência e cultura. Além do
romance analisado, consultamos diversas obras tanto voltadas para a literatura
1
Alexander Gode-Von Aesch, Natural science in German romanticism (New York: AMS Press, 1966), p.
17.
2
como para a ciência que constam em nossa bibliografia final. Em relação à
literatura utilizamos, por exemplo, o estudo sobre o naturalismo feito por Laura
Camilo dos Santos (O naturalismo em cena: estudo da evolução da linguagem
naturalista de Aluísio Azevedo em O mulato sob uma perspectiva genética),
biografias de Aluísio Azevedo como, por exemplo, Aluísio Azevedo, um
romancista do povo, de Paulo Dantas. Em relação aos aspectos médicos,
obras sobre a febre amarela como a de Jaime Larry Benchimol, dos micróbios
aos mosquitos: febre amarela e a revolução pasteuriana no Brasil, dicionário
médico do culo XIX como o de J. P. Beaude e a obra de Sidney Chalhoub,
Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. Utilizamos também obras
que tratam das relações entre ciência e literatura como Natural science in
German romanticism, de Alexander Gode-Von Aesch.
Esta dissertação consiste nesta Introdução e mais três capítulos. O
Capítulo 1 apresenta o autor Aluísio Azevedo e os personagens da obra O
cortiço. O Capítulo 2 discute sobre aspectos científicos, sociais, históricos e
literários relacionados ao Cortiço. O capítulo 3 apresenta algumas
considerações finais sobre o assunto, comentando acerca das relações entre
ciência e literatura nesta obra.
3
Foto de cortiço carioca, com Aluísio Azevedo, autor de romance
clássico sobre o assunto em destaque.
Fonte: Sidney Chalhoub, Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte
imperial. (São Paulo: Companhia da Letra, 1996).
4
CAPÍTULO 1
ALUÍSIO AZEVEDO E OS PERSONAGENS DO CORTIÇO
Neste capítulo apresentaremos ao leitor o autor Aluísio Azevedo (1857-
1913), o espaço onde se desenrola a trama e comentaremos a respeito das
personagens, que fazem parte do romance de sua autoria, O cortiço.
1.1 ALUÍSIO AZEVEDO
Aluísio Tancredo de Azevedo nasceu na cidade de São Luís, capital do
Estado do Maranhão no dia 14 de abril de 1857
2
. Foi batizado na igreja de São
João Batista em 30 de maio do mesmo ano e registrado como filho natural de
David Gonçalves de Azevedo
3
. Como seus irmãos, Artur e Américo, somente
foi reconhecido formalmente pelo pai, no dia 23 de julho de 1864, depois da
morte do marido legítimo de sua mãe, Emília Amália Pinto de Magalhães
4
,
como atesta a certidão emitida na data de 11 de abril de 1881.
O duplo registro
garantia a Aluísio e seus irmãos todos os direitos e as prerrogativas que a lei
concedia aos filhos naturais
5
.
Como a família de Aluísio era numerosa, seus estudos foram
prejudicados, pois ele não teve a oportunidade de frequentar as Universidades
2
Paulo Dantas, Aluísio Azevedo um romancista do povo. (São Paulo: Edições Melhoramentos, 1954), p.
15.
3
David Gonçalves de Azevedo (1816 1878), viúvo, amasiado com Emília por volta de 1854, tornou-se
vice-cônsul de Portugal em 1859, chanceler do consulado na Capital, cavaleiro da Ordem de Nossa
Senhora de Vila Viçosa e da Imperial Ordem da Rosa. Era admirado pela elegância dos trajes e conhecido
em São Luis por “Davi, o Belo”. [Jean-Yves Mérian, Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913). (Rio de
Janeiro: Espaço e Tempo Banco Sudameris Brasil, 1988), pp. 25, 29; Raimundo de Menezes, Aluísio
Azevedo, uma vida de romance. (São Paulo: Livraria Martins Editora, 1958), p. 49].
4
Emília Amália Pinto de Magalhães (1818 - ?), foi obrigada pela família a casar-se com Antonio Joaquim
Branco. Separou-se dele devido aos maus tratos a que era submetida, indo morar com a filha pequena
na rua do Sol, perto da fonte do Ribeirão. Foi acolhida na casa de uma família amiga. Tempos depois,
juntou-se a David Gonçalves de Azevedo. (Raimundo de Menezes, Aluísio Azevedo, uma vida de
romance. [São Paulo: Livraria Martins Editora, 1958), p. 49].
5
Jean-Yves Mérian, Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913). (Rio de Janeiro: Espaço e Tempo Banco
Sudameris Brasil, 1988), p. 38.
5
de Recife ou do Rio de Janeiro ou mesmo aprofundar seus estudos de pintura
como gostaria. Apesar disso, teve o privilégio de viver numa das famílias mais
cultas de São Luís. Seu pai e sua mãe foram seus primeiros mestres
6
.
Emília Amália Pinto de Magalhães entre os dois filhos: Artur direita) e
Aluísio (à esquerda).
Fonte: Carlos Emílio Faraco, Álvaro Cardoso Gomes, Antonio Carlos
Olivieri. Literatura autores & época. (São Paulo: Editora Ática, 1994), p.
104.
6
Mérian, Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913), p. 41.
6
De acordo com Dunshee de Abranches, um amigo da família, Dona
Emília, a mãe de Aluísio, era uma mulher culta sob muitos aspectos. Foi essa
imagem que serviu de inspiração para o tipo ideal de mãe de família que
aparecia nas crônicas escritas por Aluísio, na revista O Pensador. Dona Emília
incentivou em Artur e Aluísio, o gosto pela leitura. Eles tiveram à sua
disposição, além da excelente biblioteca em casa, os livros do Gabinete
Português de Leitura cujo presidente era seu pai
7
.
Foto de David Gonçalves de Azevedo em 1865 esquerda), no centro, o
bacharel José Correia Loureiro, cônsul de Portugal em São Luís do Maranhão.
Arquivos de Aluísio Azevedo Sobrinho, no Rio de Janeiro.
Fonte: Mérian, Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913), p. 28.
7
Mérian, Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913), pp. 14, 41.
7
Aluísio foi o segundo filho do casal, sendo que seu irmão mais novo
chamado Américo morreu muito jovem e Artur, o mais velho, tornou-se famoso
teatrólogo, poeta, repentista e cronista, que auxiliou Aluísio
8
.
O Gabinete Português de Leitura possuía, em 1867, um acervo de 4.892
volumes. Eram essencialmente romances, folhetins, contos, poesias em
português ou traduzidas do francês. Algumas dessas obras haviam sido
traduzidas e publicadas em São Luís. As obras mais recentes eram
rapidamente adquiridas. Em alguns casos, a diferença cronológica com a
Europa era de algumas semanas apenas, o tempo da travessia por mar
9
.
No Gabinete encontravam-se também numerosas revistas: Revue des
Deux Mondes, Revista Britânica, Revista Germânica, Mundo Ilustrado, Magasin
Pitoresco, Jornal das Famílias e os principais jornais do Rio de Janeiro.
Embora essas revistas viessem de Paris e o idioma fosse o francês, os títulos
no Fichário apareciam em português
10
.
Nesta época, Aluísio manifestou interesse pela pintura e arranjos de
cenário. Estas foram suas atividades iniciais quando de sua primeira estada no
Rio de Janeiro. Após 1880, o romancista já consagrado, participou do cenário e
da montagem de várias peças de teatro. Como conhecia a língua francesa
pode traduzir peças de teatro francesas; como por exemplo, o drama de Victor
Hugo, Le Roi s’ Amuse, com título de Triboulet. Além disso, escrevia em
italiano e traduzia do espanhol. Escreveu algumas peças, com seu irmão Artur
Azevedo como, por exemplo, Casa de Orates, Flor de Lis, para manter-se
11
.
Aluísio Azevedo, que saiu do liceu sem ter estudado latim, conseguiu
adquirir um conhecimento suficiente deste idioma a ponto de utilizá-lo
adequadamente em O mulato (1881) na fala da personagem Cônego Diogo,
doze anos depois. Ao que tudo indica, o romancista recebeu as primeiras
noções de latim por intermédio de sua mãe, um pouco no liceu, e
posteriormente aperfeiçoou esses conhecimentos como autodidata
12
.
8
Paulo Dantas, Aluísio Azevedo um romancista do povo. (São Paulo: Edições Melhoramentos, 1954), p.
15.
9
Essas obras constam no Catálogo da Biblioteca do Gabinete Português de Leitura do Maranhão (1867).
Havia centenas de obras voltadas para a ciência, escritas em francês. [Mérian, Aluísio Azevedo, vida e
obra: (1857-1913), p. 41].
10
Mérian, Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913), p. 41.
11
Ibid., pp. 418-419.
12
Ibid., p. 50.
8
A obra O mulato de Aluísio Azevedo foi publicada no ano de 1881. Nesta
época, o Maranhão destacava-se por ser uma província agrária e escravagista.
Sua população, africana de origem, chegou a superar aos poucos a dos
senhores brancos
13
. Com o término da Guerra do Paraguai
14
(1864-1870),
houve a retomada da campanha em favor da abolição da escravatura. A
promulgação da Lei do Ventre Livre em setembro de 1871 agravaria a situação
desta província em que a economia, baseava-se parcialmente no cultivo de
algodão e açúcar dependendo da mão de obra escrava
15
.
O mulato retrata a situação dos escravos que prestavam serviços para
seus senhores. Os corretores de escravos os examinavam como se estivessem
comprando cavalos. Havia por parte da população, discriminação e preconceito
racial em relação a Raimundo, a personagem central do romance
16
.
Note-se que, mesmo se alguns mulatos livres, de pele mais ou menos
clara, ocupavam uma posição social comparável à dos brancos, eles não eram
menos imunes ao desprezo da população branca do que os pretos e mestiços
pobres e a maioria vivia na miséria. Numerosos artigos na imprensa da época
como, por exemplo, “Os cortiços”, publicado no Diário do Maranhão em 8 de
outubro de 1875, denunciavam a existência, na entrada da cidade, de cortiços
superpovoados, abafados e escuros onde se refugiavam os escravos foragidos
e onde a febre amarela, a varíola, a tuberculose e o beribéri proliferavam
17
.
No início da década de 1870 o positivismo estava se difundindo entre os
jovens intelectuais do Maranhão e muitos positivistas pertenciam também à
13
Mario M. Meireles, História do Maranhão, p. 284.
14
A Guerra do Paraguai (1864-1870) envolvendo o Brasil e a Argentina, sob a ótica brasileira, foi um
conflito que resultou dos planos expansionistas do ditador paraguaio Solano López. Para o Paraguai, o
conflito é visto como uma agressão de vizinhos poderosos a um pequeno país independente. E neste
sentido, Brasil e Argentina definidos como nações dependentes, teriam sido manipuladas pela Inglaterra
para destruir uma pequena nação. O Paraguai depois do conflito perdeu partes de seu território para o
Brasil, e acabou se convertendo em um exportador de produtos de pouca importância. Contava com
uma população de aproximadamente 231 mil habitantes em 1872, constituída de velhos, mulheres e
crianças. O Brasil ficou mais endividado com a Inglaterra. O Exército sustentou a luta na frente de
batalha com seus erros e acertos. [Boris Fausto, História do Brasil (São Paulo: Universidade de São
Paulo, 2009), pp. 208-216].
15
Mérian, Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913), p. 53; Jerônimo de Viveiros, História do Comércio
no Maranhão, p. 422.
16
Aluísio Azevedo, O mulato. In: Aluísio Azevedo: ficção completa em dois volumes, org. Orna Messer
Lavin (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005): p. 264.
17
Mérian, Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913), p. 64.
9
maçonaria. Por exemplo, o pai de Aluísio que exercia uma alta função
maçônica
18
.
Quando era adolescente, Aluísio trabalhou como auxiliar de comércio e
balconista
19
. Pela manhã varria os cantos da casa, espanava o balcão, e os
móveis, deparando-se com comerciantes brutos, e patrões que gritavam,
destruindo seu mundo de jovem candidato a escritor. Ao longo do dia, além de
aguentar a grosseria de seus patrões, ganhava apenas o alimento necessário
que parecia dado como esmola. E durante à noite, num quarto abafado,
deitado numa cama simples, sob a luz de uma candeia, entregava-se à leitura
enquanto os companheiros de trabalho dormiam. Aluísio trabalhou desde os
doze anos de idade para manter-se; foi mestre-escola, despachante da
alfândega, guarda-livros, desenhista de jornal, cenógrafo, professor de
desenho em casas particulares, jornalista, retratista, e até gerente de um hotel,
e tudo isto antes dos vinte anos de idade
20
.
Aos dezenove anos Aluísio desembarcou no Rio de Janeiro. A presença
de seu irmão Artur, estabelecido, dois anos no Rio de Janeiro e que
começava a ser conhecido como autor dramático, poeta e jornalista facilitou
sua entrada num mundo que lhe era desconhecido
21
.
Segundo Emílio Rouède, amigo de Aluísio, durante os dois anos e meio
em que esteve no Rio de Janeiro viveu em companhia dos amigos, Artur
Barreiros e Veridiano Henrique dos Santos Carvalho, numa pensão do bairro
de Santa Tereza
22
.
Aluísio Azevedo frequentou, durante dois anos, um círculo de jovens
intelectuais, escritores, artistas e homens políticos, que marcaram a vida
cultural, social e política do último quarto do século XIX. Em 1880, fez uma lista
dos amigos que tinha no Rio de Janeiro, destacando três deles: Teixeira
Mendes, Lopes Trovão e José do Patrocínio
23
.
18
Mérian, Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913), p. 78.
19
No romance O cortiço, o termo utilizado é “caixeiro”.
20
Paulo Dantas, Aluísio Azevedo, um romancista do povo, pp. 20-22.
21
Mérian, Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913), p. 95.
22
Emilio Rouède, “Aluísio Azevedo”, A Semana, 20/11/1886, p. 373 apud, Mérian, Aluísio Azevedo, vida
e obra: (1857-1913), p. 95; Alceste Veridiano Henrique dos Santos Carvalho, “Folhetim”, Diário do Rio de
Janeiro, 9/6/1878, apud, Mérian, Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913), p. 95.
23
Mérian, Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913), p. 96.
10
Teixeira Mendes, que iria fundar com Miguel Lemos a Igreja Positivista
no Brasil, lutou em prol do estabelecimento da República no Brasil, ao lado do
propagandista e futuro deputado republicano Lopes Trovão, signatário do
manifesto republicano de 1870 e que em 1880 manifestava conferências
republicanas. O outro amigo era José do Patrocínio, um dos jornalistas
abolicionistas mais ativos. Aluísio, que já havia tido contato com as ideias
positivistas e republicanas quando ainda estava em São Luís, através do
convívio com esses homens, aprofundou seu conhecimento da filosofia
positivista
24
, expressando suas ideias em vários poemas e desenhos
25
.
Nessa época, Aluísio foi bastante crítico em relação à instituição da
Igreja sob todos seus aspectos, denunciando a falsa moral e a hipocrisia das
práticas religiosas; sendo contra a credulidade, o obscurantismo e o fanatismo.
Isso transparece claramente na personagem Raimundo, onde Cônego Diogo,
encomenda a morte do mulato porque na época não se aceitava casamento de
brancos com negros ou mestiços como era o caso de Raimundo que desejava
casar-se com sua prima, Ana Rosa. Por outro lado, Aluísio valorizava a
instrução, a ciência, o progresso e a higiene
26
.
Ao que tudo indica, Aluísio Azevedo conhecia as principais obras dos
romancistas naturalistas portugueses e franceses, sobretudo Eça de Queirós e
Émile Zola, cujas ideias eram debatidas entre seus colegas na época em que
Aluísio vivia no Rio de Janeiro
27
.
Por outro lado, Aluísio tinha noções de psicopatologia e de fisiologia que
utilizou na composição de vários personagens em seus romances. Na
preparação da obra O Homem, o romancista manteve contato com um
estudante, Alcides Flávio
28
, que compunha uma tese sobre histeria
29
e
24
A filosofia positiva de Auguste Comte (1798-1857) se caracterizava pela aceitação da lei dos três
estados (teológico, metafísico e positivo) que se aplicavam tanto a ciência como a sociedade e eram
permeados pela ideia de progresso [Auguste Comte, Curso de filosofia positiva. Trad. José Arthur
Giannotti e Miguel Lemos (São Paulo: Abril Cultural, 1978), p. IX].
25
Ivan Lins, História do positivismo no Brasil (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967), p. 109;
Mérian, Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913), p. 96.
26
Mérian, Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913), p. 96; ver a respeito da ideia de progresso bastante
difundida no século XIX em Robert Nisbet, História da ideia de progresso.
27
Mérian, Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913), p. 520.
28
Antonio Fernandes Figueira (1863-1928), bacharel em letras pelo Colégio Pedro II, defendeu em 1887
sua tese intitulada Condições patogênicas e modalidades clínicas da histeria. Dedicando-se à pediatria,
foi clinicar em Simão Pereira, distrito do Município de Juiz de Fora. Em 1895 conquistou o prêmio
Alvarenga, da Academia Nacional de Medicina, apresentando a monografia: Diagnóstico das
11
auxiliava-o no subsídio científico
30
. Por exemplo, Dona Marciana, em situações
em que era contrariada jogava água no ambiente, não aceitou a gravidez da
filha e acabou sendo internada num hospício
31
.
Através dessa convivência com seu amigo e vizinho, Alcides Flávio,
Aluísio frequentou hospitais e várias vezes obteve informações com médicos
32
.
Na época, a patologia do sistema nervoso e a alienação mental interessavam
não apenas aos médicos
33
. Alguns cientistas, como por exemplo, Pierre Janet
(1859-1947), Jean Martin Charcot (1825-1893), Joseph J. F. Babinski (1857-
1932) se dedicavam ao estudo das desordens mentais e emocionais,
acompanhando pacientes onde estas se manifestavam incluindo os
histéricos
34
. É bem possível que Aluísio Azevedo tenha se inteirado dos
estudos acerca da histeria com os médicos com quem convivia na época.
Aluísio Azevedo morou em uma casa de pensão. O local era
caracterizado por suas ruínas e imundícies e situava-se à rua Formosa, cujas
locomotivas que passavam estremeciam as paredes da casa, enegrecidas
pela fuligem. Em volta dos quintais sujos, os moradores constituíam-se na sua
cardiopatias infantis. Em 1903 publicou Elements de Séméiologie Infantile, obra prefaciada pelo Prof.
Hutinel. No Hospital São Sebastião, do Rio de Janeiro, dirigiu a enfermaria de doenças infecciosas de
crianças. Escreveu Consultas práticas de Higiene Infantil, Elementos de Patologia Infantil. Fernandes
Figueira foi também homem de letras. Escreveu aos 17 anos suas primeiras poesias Adejos. Sob o
pseudônimo de Alcides Flávio, publicou diversos livros: Velaturas (prosa), Sonata em menor e
Ephemeros (versos). Sua obra poética foi reunida por Solidonio Leite, seu grande amigo e biógrafo, no
volume Montanha e Valle, englobando também um livro não publicado Noite. Foi membro do Instituto
Histórico. Escreveu a biografia de Torres Homem, deixando, igualmente, memória sobre o Padre
Antônio Vieira. Publicou em 1925, pela Editora Briguiet, de Paris, o Vocabulário Médico Francês-
Português. [Carlos da Silva Lacaz, Vultos da medicina brasileira. (São Paulo: Pfizer, 1963)]. No ano de
1924, no Abrigo-Hospital Arthur Bernardes, no bairro de Botafogo, destinado a clínica e a cirurgia
pediátricas e vinculado as ações da Inspetoria de Higiene Infantil, Antonio Fernandes Figueira praticou a
medicina [Gisele Sanglarde, A Primeira República e a constituição de uma rede hospitalar no Distrito
Federal. In: História da saúde no Rio de Janeiro: instituições e patrimônio arquitetônico (1808-1958),
org. Ângela Porto (Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2008): p. 73].
29
A histeria corresponde a uma classe de neuroses, identificada desde a época de Hipócrates e
atribuída, na Antiguidade ao mau funcionamento do útero (hysterion). Janet e Charcot dirigiram a
atenção médica para a histeria ao final do século XIX. Freud, influenciado pelo último, começou a
investigar com Breuer os mecanismos psíquicos envolvidos na moléstia. No decorrer de seus estudos,
descobriu a fantasia inconsciente, o conflito, a repressão, a identificação e a transferência, assinalando o
começo da psicanálise. Freud explicou os sintomas histéricos como sendo o resultado de lembranças e
fantasias sexuais reprimidas que eram convertidas em sintomas físicos. [Burness E. Moore, Bernard D.
Fine; trad. José Octávio de Aguiar Abreu. Termos e conceitos psicanalíticos (Porto Alegre: Artes Médicas,
1992), p. 87].
30
Alcides Flavio, Velaturas (Rio de Janeiro: Livraria Castilho, 1920), p. 12.
31
Aluísio Azevedo, O cortiço, pp. 464-575.
32
Mérian, Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913), p. 524.
33
Ibid., pp. 523-524.
34
Pedro Janet. As nevroses (Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1924), pp. 72, 146, 325.
12
maioria de pobres operários, estivadores e carregadores que cheiravam a suor
e cachaça. É neste ambiente que mais tarde, o romancista, vivendo nessas
habitações coletivas do Rio, iria encontrar a matéria-prima para a elaboração
dos seus livros. Ele vestia calças de brim, camisa de cetineta
35
. Na sala havia
uma mesa acumulada de livros e de papéis, duas estantes de ferro e uma
cama
36
.
Por volta do ano de 1886, Aluísio morava em uma casa na rua Rezende,
correspondente ao número 135, em um quarto pobre. Nesta ocasião, ele era
descrito como um homem de estatura média, olhos aveludados por cílios
longos, rosto claro, bigode e traje apurado
37
.
Foto de Aluísio Azevedo (1857 -1913). Fonte: Dantas,
Aluísio Azevedo, um romancista do povo.
35
Tecido de algodão e seda, ou só de algodão, que imita o cetim.
36
Paulo Dantas, Aluísio Azevedo, um romancista do povo, pp. 12-13.
37
Alcides Flavio, Velaturas (Rio de Janeiro: Livraria Castilho, 1920), p. 12.
13
Aluísio lutava para viver, tinha dificuldades financeiras e por isso
restringia-se muito ao que era possível. Quem não o conhecia não o
compreendia. Por traz de um sorriso de satisfação escondia por vezes algumas
contrariedades
38
.
Posteriormente passou a residir nos fundos de uma pensão situada na
rua Aristides Lobo, número 115, cujo dono, chamava-se Sr. Falconet
39
.
Além de romancista, Aluísio Azevedo destacou-se como caricaturista de
revistas ilustradas ao lado de Ângelo Agostini
40
e Bordalo Pinheiro
41
. Desta
maneira, percebe-se que Aluísio Azevedo lutou intensamente, fazendo disso
um meio de vida, nas revistas O Fígaro e O Mequetrefe, deixando a marca do
seu traço nas páginas daqueles periódicos, tracejando os hábitos e costumes,
as figuras dos políticos que dominavam e satirizando as autoridades. Poucos
escaparam de sua ironia e de suas irreverências, que atingiram até mesmo o
clero de quem se tornara inimigo ferrenho
42
.
Como escritor, Aluísio Azevedo procurou viver através do que escrevia
no final do Império e no início da República. Contudo, Aluísio foi cônsul,
seguindo a tradição, pois era filho de um vice-cônsul de Portugal no
Maranhão
43
.
De 1895 a 1913, durante os 16 anos em que foi cônsul Aluísio Azevedo,
não deixou de publicar por falta de inspiração nem por desencanto com as
38
Alcides Flavio, Velaturas (Rio de Janeiro: Livraria Castilho, 1920). p. 12.
39
Ibid., p. 14.
40
Ângelo Agostini (1843-1910) nasceu em Vercelle, no Piemonte, Itália; passou a infância e adolescência
em Paris, onde estudou pintura. Veio para o Brasil em 1859 e depois de rápida estada no Rio, fixou-se
em São Paulo, onde fundou as revistas semanárias o Diabo Coxo, em 1864, e trabalhou em O Cabrião
em 1866, com Antonio Manuel dos Reis, Américo de Campos e outros. Transferiu-se para o Rio, em
1868, colaborando no Arlequim, na Vida Fluminense e no Mosquito, depois a cargo de Bordalo Pinheiro
e Manuel Carneiro. Manteve a Revista Ilustrada, de 1876 a 1891, combatendo a escravidão, como vinha
fazendo naquelas em que colaborava. Mestre de caricatura, jornalista exímio, Ângelo Agostini por meio
da sua profissão assinalou, com a Revista Ilustrada, grandes momentos da imprensa brasileira. [Nelson
Werneck Sodré, História da Imprensa no Brasil (Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S. A., 1966),
pp. 252-253].
41
Rafael Augusto Bordalo Pinheiro (1846-1905). Foi um artista português e caricaturista popular que se
destacou por suas críticas violentas, de temperamento inquieto, turbulento, vivia ao mesmo tempo com
seu gênio irônico e rebelado. No ano de 1875 apareceu no Rio de Janeiro, frequentava as rodas
literárias, e logo depois, acabou lançando um jornal de caricaturas intitulado O Mosquito. Neste jornal
ridicularizou o Governo, as Câmaras, o Exército, a Marinha, os Ministros e o Clero. (Raimundo de
Menezes, Aluísio Azevedo, uma vida de romance, pp. 65-66).
42
Raimundo de Menezes, Aluísio Azevedo, uma vida de romance, s.p.
43
Mérian, Aluísio Azevedo vida e obra (1857-1913), pp. 595-596.
14
letras, em virtude de seu afastamento do Brasil, mas pelo contrário, por causa
das novas atribuições relacionadas à carreira de diplomata
44
.
Em 1895 Aluísio Azevedo, prestou concurso na Secretaria do Exterior e
acabou nomeado vice-cônsul em Vigo (Espanha). No ano de 1897 foi eleito
para a Academia Brasileira de Letras (Cadeira 4). Desde então foi
transferido para o Vice-consulado de Iokoama (Japão) e em 1899 tornou-se
cônsul sem vencimentos em La Plata (República da Argentina).
Aluísio Azevedo tornou-se cônsul de classe em 1903, sendo
designado para servir em Salto Oriental, no Uruguai. A seguir, foi transferido
para Cardiff, na Inglaterra. Depois, em 1906, foi promovido para cônsul de
classe em Assunção
45
.
À esquerda Aluísio se apresenta em uniforme consular.
Fonte: Dantas, Aluísio Azevedo, um romancista do povo.
44
Mérian, Aluísio Azevedo vida e obra (1857-1913), p. 601.
45
Raimundo de Menezes, Aluísio Azevedo, uma vida de romance, pp. 330-331.
15
No ano de 1909, Afrânio Peixoto
46
conheceu Aluísio Azevedo em
Nápoles (Itália). No que concernia aos livros de Aluísio, Afrânio teceu
comentários dizendo não gostar do O homem, por tratar-se de uma obra que
tinha como temas ciência, histeria, hipnotismo, processos de realismo. Quanto
às obras O mulato, O cortiço, A casa de pensão e O coruja, estas
compensavam tal tentativa de romance naturalista
47
. Neste mesmo ano Afrânio
Peixoto passou a ser seu médico e Aluísio procurou seguir seus conselhos, no
que dizia respeito aos seus problemas de saúde que se agravavam na
mudança do outono para o inverno. Ele tinha no direito de galo, no
esquerdo gota, a bexiga era tida como velha e achacada
48
e para a artrite
Afrânio prescreveu o uso de iodureto
49
.
Em 1912 Aluísio Azevedo foi atropelado por um carro. Um ano depois,
sofreu uma crise cardíaca
50
. Faleceu em Buenos Aires, como cônsul do Brasil,
em janeiro de 1913 aos 56 anos de idade
51
.
Após sua morte Coelho Neto redigiu uma carta, onde solicitou o traslado
do corpo de Aluísio para o Brasil. O Itamarati atendeu a seu pedido. No final de
1919, realizou-se o repatriamento do corpo de Aluísio Azevedo. Um navio
mercante trouxe do Rio da Prata a carga mortuária: o esquife. Desembarcou no
Rio de Janeiro em 9 de setembro, recebendo todas as honras que lhe cabiam
como cônsul e escritor de renome. Seu corpo foi levado para a sede da
Academia, onde realizou-se uma seção solene. Nesta seção solene Coelho
Neto relatou coisas do passado que viveram juntos.
46
lio Afrânio Peixoto (1876-1947) foi professor de Higiene da Faculdade Nacional de Medicina,
tratadista e mestre eminente de Medicina Legal da Faculdade de direito. Veio da Bahia para o Rio de
Janeiro trazendo sua tese de doutoramento, Epilepsia e crime (1897). Exerceu a prática médica no
Hospital Nacional de Alienados e tornou-se o braço direito de Juliano Moreira, na reforma da psiquiatria
no Brasil. Estudou no Instituto Pasteur, em Paris. Afrânio Peixoto serviu às letras e à ciência. Escreveu
romances e ensaios, tais como: A esfinge, Maria bonita, Poeira da estrada, Fruta do mato, Parábolas,
Bugrinha, As razões do coração, Sinhazinha, Missangas e uma antologia brasileira, em quatro volumes
(1921). Sobre a medicina publicou obras como Medicina legal (1911), Psicopatologia forense (1911),
Higiene geral (1913) e Medicina preventiva (1913). [Carlos da Silva Lacaz, Vultos da medicina brasileira
(São Paulo: Pfizer, 1963), p. 40].
47
Afrânio Peixoto, Poeira da estrada, ensaios de críticas e de história (Rio de Janeiro e São Paulo e Belo
Horizonte: Livraria Francisco Alves, 1921), p. 212.
48
Achacar, dor, enfermo, cheio de achaques. [Francisco da Silveira Bueno, Grande dicionário
etimológico-prosódico da língua portuguesa, vol. 1 (São Paulo: Edição Saraiva, 1963), p. 44].
49
Aluísio Azevedo, Obras completas de Aluísio Azevedo. O touro negro (São Paulo: Livraria Martins,
1938), p. 165.
50
Mérian, Aluísio Azevedo vida e obra (1857-1913), p. 624.
51
Paulo Dantas, Aluísio Azevedo, um romancista do povo, p. 43.
16
Do Rio de Janeiro, seus restos mortais seguiram viagem em outro navio
e foi transportado para São Luís do Maranhão. Quem acompanhou o esquife
em nome da família foi seu sobrinho Artur Azevedo Filho
52
.
A carta solicitando o traslado dos restos mortais de Aluísio Azevedo está
reproduzida na página que se segue.
52
Raimundo de Menezes, Aluísio Azevedo, uma vida de romance. (São Paulo: Livraria Martins Editora,
1958), pp. 326-327.
17
Reprodução da proposta que o redator, Coelho Neto, e vários
acadêmicos dirigiram à Mesa da Academia para que esta interviesse
junto ao Itamarati no sentido de que os restos mortais de Aluísio
Azevedo fossem trasladados para o Brasil.
Fonte: Paulo Dantas, Aluísio Azevedo, um romancista do povo.
18
As principais obras de Aluísio Azevedo classificam-se em naturalistas: O
mulato (1881), Casa de pensão (1884), O coruja (1885), O homem (1887), O
cortiço (1890); românticas: Uma lágrima de mulher (1879), A Condessa Vésper
(1882), Girândola dos amores (1882), Filomena Borges (1884), A mortalha de
Alzira (1894); fisiológicas: O Livro de uma sogra (1895), O homem (1887) e
descritivas: O Touro Negro (1938)
53
.
Para compor seus personagens de O cortiço, Aluísio procurou conhecer
de perto os cortiços ou “cabeças de porco
54
. Nas palavras de Pardal Mallet:
Os primeiros apontamentos para O cortiço foram colhidos em
minha companhia em 1884, numas excursões para estudar
costumes” nas quais saíamos disfarçados com vestimenta de
popular tamanco sem meia, velhas calças de zuarte
remendadas, camisas de meia, rotas nos cotovelos, chapéus
forrados e cachimbo no canto da boca
55
.
Na década de 1880 o Cabeça de Porco foi, talvez, o maior cortiço do
Rio de Janeiro. Era um verdadeiro bairro, constituído por sobrados, térreos e
quartos. Os sobrados e térreos, eram subdivididos, por sua vez, em muitos
outros quartos. Na ocasião de sua demolição, em 1893, a Prefeitura contatou
20 proprietários do cortiço. A principal proprietária, Felicidade Perpétua de
Jesus, possuía casas e parte do terreno
56
. Com relação aos moradores do
cortiço, eles eram caracterizados da seguinte forma:
A respeito dos seus moradores, dizia-se que eram „capoeiras,
ladrões, meretrizes de baixa classe e assassinos‟. Entre as
centenas ou milhares de moradores, muitos eram capoeiras
aglutinados pelas relações pessoais, muitos eram trabalhadores
53
Raimundo de Menezes, Aluísio Azevedo, uma vida de romance, s. p.
54
O “Cabeça de Porco”, antes de se incorporar ao nosso vocabulário como sinônimo depreciativo de
‘habitação coletiva’, era um vasto cortiço situado próximo à estação da Estrada de Ferro D. Pedro II
[(Lilian Fessler Vaz, “Notas sobre o Cabeça de Porco”. Revista Rio de Janeiro 1 (2, 1986): 30-31]. Este foi
construído pelo Conde D’Eu e como os outros cortiços era uma construção de madeira com numerosas
divisões internas. No “Cabeça de Porco” viviam cerca de 4000 pessoas [Moacyr Scliar, Oswaldo Cruz:
entre micróbios e barricadas (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996), p. 35].
55
Pardal Mallet, apud, Raimundo de Menezes, Aluísio Azevedo, uma vida de romance, p. 175.
56
Lilian Fessler Vaz. “Notas sobre o Cabeça de Porco”, Revista Rio de Janeiro 1 (2, 1986): 30-31.
19
da pedreira que procuravam moradia próxima ao trabalho. É
provável que a pedreira esteja na origem do cortiço (...). Neste
ponto, é de se assinalar a semelhança da presença da pedreira
junto ao mais famoso cortiço da cidade e no romance O cortiço,
de Aluísio Azevedo, da mesma época
57
.
A personagem central do romance O cortiço, João Romão era
proprietário de uma pedreira.
O escritor, sempre à procura de colher, com fidelidade, cenas e tipos
para os seus romances, vestiu um casaco manchado, calças remendadas e
alugou um quarto num cortiço de Botafogo, onde passou a viver e registrar
suas observações.
Foi através de uma identificação muito próxima com o povo
em sua vida de todos os dias, que Aluísio Azevedo conseguiu penetrar mais
facilmente no mundo das vilas operárias. Por outro lado, este disfarce afastava
as desconfianças e lhe permitia perceber aspectos mais autênticos do
comportamento dos habitantes. Isso aconteceu durante algum tempo até que
ele foi visto na rua bem vestido sendo confundido com um policial. Segundo
Domingos Barbosa, nesse tempo, o autor por um triz, escapou de ser
anavalhado por um temível capoeira: Gustavão
58
.
Nas palavras de Afrânio Peixoto:
O romancista seria incapaz de escrever sem o documento
humano que ele ia procurar onde existisse, mesmo nas pocilgas e
nos alcoices
59
da Saúde, entre marítimos e soldados, gente de
toda a laia, rufiões e comborças
60
para os trazer aa realidade
de suas ficções. Ele mesmo recortava e pintava bonecos, aos
quais emprestava vida, atitudes, sentimentos, ações, caráter, com
os quais falava e convivia, para a sua obra
61
.
57
Lílian Fessler Vaz. “Notas sobre o Cabeça de Porco”. Revista Rio de Janeiro. 1 (2, 1986): 30-31.
58
Raimundo Menezes, Aluísio Azevedo, uma vida de romance, pp. 174-175.
59
Prostíbulos (Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário da língua portuguesa ed.
imp.).
60
Comborças: amantes, Rufiões: indivíduos que se metem em brigas por causa de mulheres de
reputação [Antonio Geraldo da Cunha, Dicionário etimológico da língua portuguesa. ed. imp. (Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1998), pp. 198, 693].
61
Afrânio Peixoto, Poeira da estrada, p. 222.
20
E de acordo com a pesquisa realizada, foi assim que Aluísio procedeu
ao viver em um cortiço por um tempo.
1.2 O CORTIÇO SÃO ROMÃO
A obra O cortiço de Aluísio Azevedo remete-se ao cortiço São Romão,
situado no bairro do Botafogo. Neste local eram alugadas casas por mês e
tinas para lavadeiras por dia e tudo devia ser pago adiantado. O preço de cada
tina equivalia a quinhentos réis, com sabão à parte. As moradoras do cortiço
tinham preferência e não pagavam nada para lavar, devido à abundância da
água e do espaço de que se dispunha no local para estender a roupa. Deste
modo, acudiam lavadeiras de todos os pontos da cidade
62
.
Neste cortiço, quando havia vaga em uma das casas, ou um quarto, ou
um canto onde coubesse um colchão, surgiam inquilinos a fim de disputá-la.
Porém este local ia se constituindo numa grande lavanderia, agitada e
barulhenta, com as suas cercas de varas, hortaliças, pequenos jardins, e os
gotejantes jiraus
63
, cobertos de roupa molhada. E naquela terra encharcada e
fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a crescer, um mundo,
uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, naquele
lamaçal
64
.
Durante o período de dois anos aumentou muito a quantidade de
moradores no cortiço. Por outro lado, Miranda um negociante português,
estabelecido na rua do Hospício com uma loja de fazendas por atacado,
comprou um sobrado que ficava situado à direita da venda que pertencia a
João Romão, um dos personagens sobre o qual falaremos mais adiante, de
modo que todo o lado esquerdo do prédio, direcionava-se para o terreno do
vendeiro com as suas nove janelas
65
.
Miranda estava ficando cada vez mais indignado ao ver que uma
verdadeira floresta crescia junto de sua casa, por debaixo das janelas, e cujas
62
Aluísio Azevedo, O cortiço. In: Orna Messer Lavin (org.), Aluísio Azevedo: ficção completa em dois
volumes (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005), p. 452.
63
Jirau: espécie de estrado. [Antonio Geraldo da Cunha, Dicionário etimológico da língua portuguesa.
ed. 1ª imp. (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998), p. 455].
64
Aluísio Azevedo, O cortiço, p. 452.
65
Ibid., p. 452.
21
raízes minavam por toda a parte, ameaçando rebentar o chão em torno dela,
rachando o solo e abalando tudo. À noite e aos domingos, intensificava-se
ainda mais sua irritação, quando se recolhia
66
.
Após esta breve apresentação do ambiente, passaremos à descrição
das personagens que o habitavam.
66
Aluísio Azevedo, O cortiço, p. 453.
22
Moradores à entrada de um cortiço no Rio de Janeiro.
Fonte: Carlos Emílio Faraco; Álvaro Cardoso Gomes; Antonio Carlos
Olivieri, Literatura Autores & Época. (São Paulo: Editora Ática, 1994),
pp. 118-119.
1.3 OS MORADORES DO CORTIÇO SÃO ROMÃO
Um dos moradores do cortiço, que é também a personagem principal,
João Romão, trabalhou durante doze anos, como empregado de um vendeiro
que enriqueceu com seu trabalho em uma suja e pobre taverna em Botafogo.
Devido às suas economias e ao recebimento de ordenados vencidos, acabou
adquirindo do ex-patrão a venda e o que estava dentro dela, mais um conto e
23
quinhentos em dinheiro. Como proprietário, João Romão passou a trabalhar
ainda mais, obcecado pelo desejo de enriquecer, sujeitando-se às mais duras
privações. Chegava a ponto de dormir sobre o balcão da própria venda, em
cima de uma esteira, fazendo como travesseiro um saco de estopa cheio de
palha
67
.
Outra personagem, Bertoleza, era uma crioula trintona, escrava de um
velho cego que morava em Juiz de Fora, à quem pagava vinte mil réis por mês.
Era amigada com um português que tinha uma carroça de o e fazia
entregas na cidade. Certo dia, este português, puxou uma carga superior às
suas forças e caiu morto. Ela desejava um companheiro de raça branca, que
considerava superior à sua
68
.
Contraste: A negra Bertoleza e João Romão, o dono do cortiço.
Fonte: Carlos Emílio Faraco, Álvaro Cardoso Gomes, Antonio
Carlos Olivieri. Literatura Autores & Época (São Paulo: Editora
Ática, 1994), p. 123.
67
Aluísio Azevedo, O cortiço, p. 441.
68
Ibid, pp. 441-442.
24
Dona Estela, mulher do negociante Miranda há treze anos, causou uma
série de desgostos ao seu marido. Antes de terminar o segundo ano de
matrimônio, o Miranda flagrou-a com outro. Apesar disso, por interesses
econômicos permaneceu casado com ela
69
. Com o tempo, o desprezo que um
sentia pelo outro foi se acentuando. Nem mesmo o nascimento da filha,
Zulmira, serviu para unir o casal. Pelo contrário, agravou ainda mais a situação;
a pobre criança tornou-se um fator isolador que se estabeleceu entre eles.
Sendo assim, Estela amava-a menos do que lhe pedia o instinto materno por
supô-la filha do marido, e este a detestava porque tinha convicção de não ser
seu pai
70
.
Henrique, um jovem de quinze anos, viera terminar na corte alguns
estudos que lhe faltavam para entrar na Academia de Medicina. Destacava-se
por ser bonito, acanhado e delicado. Era estudioso e comedido em seus
gastos
71
.
A personagem Botelho era tido como um pobre-diabo de setenta anos.
Sua aparência o tornava antipático. Cabelos brancos, curtos e duros, como
escova, barba e bigode do mesmo estilo; magro e pálido, com uns óculos
redondos que davam ao seu rosto uma expressão de abutre, além do seu nariz
curvado e sua boca sem lábios, com os dentes gastos, que pareciam ter sido
cortados ao meio
72
. Trajava-se sempre de preto, andava com um guarda-chuva
debaixo do braço e um chapéu surrado. Como não tinha recursos, vivia à custa
do Miranda, com quem trabalhou por muitos anos. Conservou-se amigo do
patrão, a princípio por acaso e mais tarde por necessidade
73
.
Leandra, apelidada de “Machona”, era uma portuguesa feroz, que
sempre berrava, tinha “pulsos cabeludos e grossos, anca de animal do campo”.
Tinha duas filhas, Ana das Dores (das Dores), Nenen e o filho Agostinho,
menino muito levado, que gritava tanto ou mais que a mãe
74
.
A das Dores morava em sua casinha à parte, mas toda a família
habitava no cortiço. Ninguém sabia ao certo sobre a vida da Machona: se era
69
Aluísio Azevedo, O cortiço, p. 445
70
Ibid., p. 445.
71
Ibid.
72
Ibid., p. 456.
73
Ibid., pp. 456-457.
74
Ibid., p. 463.
25
viúva ou desquitada; quanto aos seus filhos, não se pareciam uns com os
outros. Sua filha das Dores, que tinha uns vinte e cinco anos, afirmava ter sido
casada e que largara o marido para amigar-se com um comerciante; e que
este, partiu para sua terra e não a desamparou, deixou o sócio em seu lugar
75
.
A Nenen com dezessete anos, de aparência espigada, franzina e forte, e
orgulhosa da sua virgindade, acabou escapando como enguia por entre os
dedos dos rapazes que a queriam sem ser para casar. Sabia engomar bem,
fazia roupa branca de homem com muita perfeição
76
.
A moradora Augusta carne-mole, brasileira, branca, era mulher de
Alexandre, um mulato aparentando quarenta anos, soldado de polícia,
presunçoso, honesto e de grande bigode preto. Vestia calças brancas
engomadas e botões limpos na farda, quando estava de serviço. Ele tinha
filhos pequenos, dentre os quais se destacava a Juju, que vivia na cidade com
a madrinha. A madrinha de procedência francesa chamava-se Léonie, uma
cocote de trinta mil-réis para cima, que morava num sobrado na cidade
77
.
A Leocádia era mulher de um ferreiro chamado Bruno, portuguesa
pequena e socada, de carnes-duras, com uma fama terrível de leviana entre as
suas vizinhas
78
.
Paula uma velha cabocla, aparentava ser meio idiota, era respeitada por
todos moradores do cortiço. Dispunha de suas virtudes na benzedura de
erisipelas e no corte de febres por meio de rezas e feitiçarias. Ela era muito
feia, de aparência triste, com olhos desvairados, dentes cortados à navalha,
formando ponta, como dentes de cão, cabelos lisos, escorridos e ainda escuros
apesar da idade. Chamavam-na de “Bruxa”
79
.
Dona Marciana era uma mulata, muito séria e asseada em exagero. Sua
casa estava sempre úmida por causa das lavagens constantes. Quando estava
de mau humor começava logo a espanar, a varrer febrilmente e quando a raiva
era grande, corria a buscar um balde de água e descarregava-o com ria pelo
75
Aluísio Azevedo, O cortiço, p. 463.
76
Ibid.
77
Ibid.
78
Ibid., p. 464.
79
Ibid.
26
chão da sala. Ela tinha uma filha chamada Florinda de quinze anos, pele
morena, beiços sensuais, bonitos dentes, e olhos luxuriosos de macaca
80
.
Dona Isabel, era uma pobre mulher consumida por desgostos. Fora
casada com o dono de uma casa de chapéus que, depois de falido suicidou-se,
deixando-a com uma filha doente e fraca, Pombinha. Dona Isabel sacrificou-se
para educar a filha oferecendo-lhe um estudo acompanhado por um professor
de francês
81
.
Pombinha, como era chamada pelos seus vizinhos, era tida como a flor
do cortiço. Ela era bonita, doentia e nervosa ao extremo; loura, muito lida,
com uns modos de menina de boa família. Sua mãe não permitia que ela
lavasse roupas nem que as engomasse, mesmo porque o médico a proibira
expressamente
82
.
Pombinha tinha um noivo, chamado João da Costa, que trabalhava no
comércio, estimado pelo patrão e colegas, com muito futuro, e que a adorava e
a conhecia desde pequena. Dona Isabel não consentiu casamento imediato,
até porque Pombinha, aos dezoito anos, não tinha ainda alcançado a
puberdade. A mãe de Pombinha cuidava da filha com afinco
83
.
Albino era um jovem sujeito afeminado, fraco, cor de aspargo cozido e
com um cabelinho castanho, fino e escorrido. Ele exercia a função de lavadeiro
e vivia entre as mulheres, com quem estava familiarizado. Elas na presença
de Albino falavam diversos assuntos e lhe faziam confidências dos seus
amores e das suas infidelidades. Albino não fumava, não bebia e tinha sempre
as mãos geladas e úmidas
84
.
O Jerônimo era um português, de trinta e cinco a quarenta anos, alto,
ombros largos, barbas ásperas, cabelos pretos e maltratados caídos sobre a
testa, usava um chapéu de feltro ordinário: pescoço semelhante a de um touro
e cara de Hércules, possuía olhos humildes como os olhos de boi, que
exprimiam tranquila bondade
85
.
80
Aluísio Azevedo, O cortiço, p. 464.
81
Ibid.
82
Ibid., p. 465.
83
Ibid.
84
Ibid., p. 466.
85
Ibid., p. 469.
27
Sua mulher chamava-se Piedade de Jesus; teria trinta anos, boa
estatura, carne ampla e rija, cabelos fortes de um castanho em tom amarelado
escuro, dentes pouco alvos, mas lidos e perfeitos, cara cheia, fisionomia
aberta; denotando por meio dos olhos e pela boca uma simpática expressão de
honestidade simples e natural
86
.
A personagem destaque é Rita Baiana, tida como mulata, que respirava
o asseio das brasileiras e um odor sensual de trevos e plantas aromáticas. Ela
era irrequieta, e saracoteava seu atrevido e rijo quadril baiano, respondendo
para a direita e para a esquerda, e pondo à mostra um fio de dentes claros e
brilhantes que enriqueciam a sua fisionomia com um realce fascinador
87
.
Firmo o rival de Jerônimo, era um mulato vaidoso, de uns trinta e tantos
anos, magro, trapaceiro, presunçoso. Possuía pernas e braços finos, pescoço
estreito, porém forte; não tinha músculos, tinha nervos. Tinha um bigodinho
crespo, grande cabeleira encaracolada e negra, usava chapéu de palha,
curvado sobre a orelha esquerda. Vestia um paletó surrado e usava camisa de
chita nova e ao pescoço, um lenço alvo e perfumado. Fumava charuto e na
mão segurava um grosso porrete, que nunca sossegava, por entre os dedos
magros e nervosos
88
. Ele foi oficial de torneiro, e jogava dados ou a roleta que
multiplicavam seu dinheiro, que logo gastava na farra com sua atual amante
Rita Baiana. Firmo nasceu no Rio de Janeiro, na Corte; frequentou dos doze
aos vinte anos diversos grupos de capoeiras. Envolveu-se em eleições nos
tempos do voto indireto, e depois, desgostou-se com o sistema de governo
renunciando às lutas eleitorais. Ele almejava um emprego numa repartição
pública, tendo como ideal de vida, um salário de setenta mil-réis mensais, e um
expediente das nove da manhã às três da tarde
89
.
O velho Libório era um morador que ocupava o pior canto do cortiço e
sempre ficava a procura das sobras alheias, como um mendigo. Na estalagem
diziam os moradores que ele mantinha dinheiro guardado. Libório era tão feroz,
que as mães recomendavam aos seus filhos que tomassem cuidado. Posto
que o velho, quando via uma criança desacompanhada, punha-se logo a
86
Aluísio Azevedo, O cortiço, p. 477.
87
Ibid., p. 483.
88
Ibid., pp. 487-488.
89
Ibid., p. 488.
28
rondá-la, a cercá-la, até apoderar-se do doce ou o vintenzinho que a
pobrezinha trazia consigo
90
.
Além das personagens mencionados anteriormente, podemos
mencionar Delporto e Pompeo que morreram vitimados pela febre amarela.
É importante mencionar que diversos estudiosos consideram o próprio
cortiço como a personagem principal. Esta interpretação aparece, por exemplo,
em Benjamin Abdala Junior ou em Carlos Faraco
91
.
90
Aluísio Azevedo, O cortiço, p. 492.
91
Benjamin Abdala Júnior, Samira Youssef Campedelli. Tempos de literatura brasileira (São Paulo: Ática,
1985), pp. 146-148; Carlos Faraco, “O povo como personagem” pp. 221-243. In: Aluísio Azevedo. O
cortiço. 37ª ed. (São Paulo: Ática, 2009), p. 232.
29
CAPÍTULO 2
ASPECTOS CIENTÍFICOS E LITERÁRIOS
RELACIONADOS AO CORTIÇO
Neste capítulo discutiremos a respeito do contexto histórico, político e
social em que se insere o Cortiço. Trataremos de algumas particularidades da
ciência da época e da corrente literária naturalista.
2.1 HISTÓRIA, POLÍTICA E SOCIEDADE
O Brasil durante o século XIX esteve alicerçado ao regime monárquico.
E no fim do século, ocorreram mudanças sucessivas, como a abolição da
escravatura (1881), a proclamação da República (1889), a revolta de Canudos
(1896-1897) e a industrialização. A modernização manifestou-se no início do
século XX, tendo como cenário principal a cidade do Rio de Janeiro, sede do
governo
92
.
Nesta época a cidade perdeu muito da sua antiga aparência colonial,
transformando-se em centro dinâmico e básico da economia do país
93
. Por
outro lado, juntamente com a “racionalização urbana” e o brilho das melhorias,
destacavam-se a desigualdade crescente, a pobreza e a submissão de boa
parte da população, que pouco absorvia desse conjunto de novas
introduções
94
.
Áreas recém descobertas, como o Brasil, começavam a receber grupos
de europeus a procura de fortuna. Ocorreu uma corrida desenfreada para o
enriquecimento por meio do comércio o qual necessitava de mão de obra para
92
Moacyr Scliar, Oswaldo Cruz: entre micróbios e barricadas (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996), p.
33.
93
Principalmente em 1889, com a instalação do regime republicano e a concomitante mudança no eixo
econômico, político e geográfico do país. (Lilia Moritz Schwarcz, Retrato em preto e branco. Jornais,
escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX (São Paulo: Companhia das Letras, 1987), p. 49.
94
Lilia Moritz Schwarcz, Retrato em branco e negro. Jornais, escravos e cidadãos em são Paulo no final
do século XIX (São Paulo: Companhia das Letras, 1987), p. 49.
30
progredir. A atividade comercial configurou-se como um dos mais importantes
meios de acumulação de riqueza e concentração de capital nesse tempo
95
.
De certo modo, o final do século XIX o se caracterizou apenas pelo
aumento de fábricas no Rio de Janeiro, mas pelo fato de ter havido uma
extinção do sistema escravista, o declínio da atividade cafeeira na província do
mesmo local e o grande afluxo de imigrantes estrangeiros. Disto resultou um
processo de crescimento populacional acelerado via migração, que agravou o
problema habitacional da cidade. Este fato acarretou-se na impregnação dos
cortiços e do quadro agravante das epidemias de febre amarela que arrasavam
a cidade
96
.
O cenário se apresentava com muitos contrastes. De um lado, a
natureza era esplendorosa; de outro, a cidade que crescia desordenadamente
com ruelas estreitas, lixo e sujeira por todo o lado. O tráfego tornava-se
confuso, e nas ruas do centro, mal davam passagem para carroças, caleches,
charretes e carrinhos puxados pelos burros sem rabo, tidos como
carregadores. Os bondes trafegavam por meio da tração animal, exceto alguns
movidos a eletricidade. As calçadas eram apertadas por causa dos vendedores
ambulantes, como no caso, do cesteiro, do vaqueiro, do paneleiro, do doceiro,
do funileiro, e do leiteiro
97
.
No Rio de Janeiro havia por toda parte um quiosque improvisado, feito
de madeira e zinco. Em seguida, uma espelunca fecal, infectando à distância o
local, também um homem oferecendo broas de milho, lascas de bacalhau,
sardinhas, café, cachaça, fotos pornográficas, bilhetes de loteria, jogo do bicho.
Note-se que as pessoas abastadas, que residiam em Petrópolis, mantinham-se
longe do calor e dos mefíticos eflúvios do Rio
98
.
Por um lado, os aristocratas, frequentavam o centro do Rio, local em que
à porta das lojas, dos cafés e dos prédios de escritórios eram visitados por
elegantes cavalheiros de bigodes finos, fumando cigarros. As senhoritas, por
sua vez retornavam das compras, e passavam por ali com suas blusas
95
Laura Camilo dos Santos Cruz, O naturalismo em cena: estudo da evolução da linguagem naturalista
de Aluísio Azevedo em O mulato sob uma perspectiva genética (São Paulo: Linear B; Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2008), p. 37.
96
Maurício de Almeida Abreu. A evolução urbana do Rio de Janeiro. ed. (Rio de Janeiro:
IPANRIO/ZAHARAR, 1988), p. 57.
97
Moacyr Scliar, Oswaldo Cruz: entre micróbios e barricadas, pp. 33-34.
98
Ibid., p. 34.
31
rendadas, e com suas compridas e armadas saias, de chamalote de tafetá.
Usavam chapéus elegantes que combinavam com o rosto sem indício de
maquiagem. Depois, elas entravam em suas carruagens e dirigiam-se para
casa, para as mansões de Botafogo ou Laranjeiras
99
.
Sendo assim, os administradores da Corte, imaginaram observar cenas
estarrecedoras: ao descrever os cortiços, eles aparentemente reconstruíram as
condições existentes nos navios, incluídos os negreiros que haviam sido
considerados responsáveis pela geração do veneno da febre amarela. Estas
habitações coletivas eram lugares sujos e com excesso de pessoas, inundados
por águas servidas e por produtores renitentes de eflúvios miasmáticos. Além
disso, quando o vômito preto retornava a cada verão, os imigrantes recém-
chegados morriam em grande número nesses locais. Enquanto a população
negra da Corte resistia bem ao flagelo, uma vez que os negros morriam em
números maiores de doenças, como a tuberculose e a varíola, e as autoridades
públicas não estavam preparadas, quanto mais priorizá-las e combatê-las
100
.
Os pobres em situação diferente dos aristocratas moravam nos cortiços.
O cortiço, contudo, não era a única forma de subabitação. As favelas
começavam a surgir nos morros da cidade. Os negros que o governo havia
alforriado para que lutassem pelo país na guerra do Paraguai e os praças que
retornavam da campanha de Canudos (onde havia um lugar conhecido
justamente por esse nome, Favela) foram os primeiros habitantes dos
barracos
101
.
No tocante aos aspectos urbanísticos, entre os fatores morbígenos
102
sobressaíam-se as habitações coletivas, em que se aglomerava uma multidão
carente na área central do Rio de Janeiro. Por outro lado, os médicos culpavam
tanto os maus hábitos e a devassidão dos pobres como a ganância dos
proprietários que especulavam a vida humana em habitações pequenas,
úmidas, desprovidas de ar e luz
103
.
99
Moacyr Scliar, Oswaldo Cruz: entre micróbios e barricadas, pp. 34-35.
100
Sidney Chalhoub, Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial, p. 89.
101
Moacyr Scliar, Oswaldo Cruz: entre micróbios e barricadas, pp. 35-36.
102
Causadores de doenças.
103
Jaime Larry Benchimol. Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada (Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 2001), p. 30.
32
O desenvolvimento das Indústrias no Século XIX levou às más condições
sanitárias e à propagação de doenças (desenho inglês de 1852). Esta mesma
situação repetiu-se no Brasil, anos depois.
Fonte: Roberto de Andrade Martins & col., Contágio: a história da prevenção
das doenças transmissíveis. (São Paulo: Moderna, 1997), p. 115.
A identificação dos cortiços como focos geradores dos germes da febre
amarela foi fato de enorme significado simbólico e político. Não havia na época
uma definição acerca do que era um cortiço. Numa cidade que apresentava um
déficit de moradias na segunda metade do século XIX, a tendência era
considerar que qualquer habitação que não fosse limpa e onde vivessem
muitas pessoas fosse assim considerada. Os higienistas descobriram que os
cortiços se espalhavam por toda a área central da cidade. Passaram a
defender planos de transformação radical do espaço urbano para o bem da
saúde pública. A ideia era evitar a produção de emanações miasmáticas, pois
se acreditava que em locais onde houvesse um aglomerado de pessoas ou
animais, as emanações oriundas de seus corpos (os miasmas), corrompiam o
33
ar ocasionando doenças
104
. Eliminar esses miasmas parecia impossível, e eles
procuraram dispersar o veneno através da abertura de ruas e avenidas bem
largas. Quanto aos cortiços, previa-se a demolição a todos
105
.
Com efeito, nesses locais ocorria uma degradação das condições
habitacionais, com o surgimento em grande mero de moradias coletivas que
se destacavam como casa de cômodos, cortiços e estalagens
106
.
Convém ressaltar que a proliferação dos cortiços na área central da
cidade era preocupação por parte das autoridades públicas, que os combatiam
principalmente por meio de um discurso sanitarista
107
. Em 1886, por exemplo, o
Conselho Superior de Saúde Pública escreveu alguns relatórios
108
.
Todos deploravam as condições dos cortiços e concordavam em
que as habitações eram higienicamente perigosas e que os
moradores deveriam ser removidos “para os arredores da cidade
em pontos por onde passem trens e bondes”. Os relatórios
pressionavam o governo a expropriar os cortiços, destruí-los e
construir casas individuais para o pobre
109
.
A cidade portuária do Rio contava com sua ralé incluindo videntes e
ciganas. Já no Beco dos Ferreiros estavam as casas de ópio, como a do chinês
Afonso; deitados em camas, nus da cintura para cima, os viciados aspiravam a
droga nos cachimbos aquecidos por lamparinas de azeite
110
.
Além deste quadro desolador, o Rio ainda era assolado por pestilências
como a varíola, a peste, o cólera. A febre amarela era tão frequente que as
104
Roberto de A. Martins & col., Contágio. História da prevenção das doenças transmissíveis (São Paulo:
Moderna, 2001), p. 110.
105
Sidney Chalhoub, Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial, p. 88.
106
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Dos cortiços aos condomínios fechados: as formas de produção da
moradia na cidade do Rio de Janeiro Ribeiro (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; IPPUR; UFRJ; FASE,
1997), p. 173.
107
Pessoa que, mediante treinamento e experiência, está habilitada em assuntos de sanitarismo e saúde
pública. (Clayton Lay Thomaz, Dicionário médico enciclopédico Taber, trad. Fernando Gomes do
Nacimento, 17ª Ed. (São Paulo: Manole, 2000), p. 1579.
108
Maurício de Almeida Abreu. A evolução urbana do Rio de Janeiro, ed. (Rio de Janeiro:
IPANRIO/ZAHARAR, 1988), pp. 49-50.
109
Conselho Superior de Saúde, Pareceres sobre os Meios de Melhorar as Condições das Habitações
Destinadas às Classes Pobres (Maurício de Almeida Abreu. A evolução urbana do Rio de Janeiro. ed.
(Rio de Janeiro: IPANRIO/ZAHARAR, 1988), p. 68.
110
Moacyr Scliar, Oswaldo Cruz: entre micróbios e barricadas, p. 36.
34
companhias de navegação européia anunciavam viagens diretas a Buenos
Aires, sem o risco de passar pelo Brasil. A doença manifestava-se por meio
dos sintomas de febre e icterícia, daí o nome, a febre amarela que era velha
conhecida dos brasileiros
111
.
Esta população era comparada às classes perigosas de que se falava
na primeira metade do século XIX. Ela era constituída por ladrões, prostitutas,
malandros, desertores (do Exército, da Marinha e de navios estrangeiros),
ciganos, ambulantes, trapeiros, criados, serventes de repartições públicas,
recebedores de bondes, engraxates, carroceiros, floristas, bicheiros, jogadores,
receptadores, pivetes (a palavra existia). E a figura tipicamente carioca do
capoeira
112
, cuja fama já se espalhara por todo o país onde o número calculado
girava em torno de 20 mil às vésperas da República.
Morando, agindo e
trabalhando, na maior parte, nas ruas centrais da Cidade Velha, essas pessoas
estavam vinculadas nas estatísticas criminais da época, especialmente nos
casos de contravenções referentes à desordem, vadiagem, embriaguez e jogo.
Em 1890, estas contravenções foram responsáveis por cerca de 60% das
prisões de pessoas recolhidas à Casa de Detenção
113
.
Nessa época os higienistas
114
, passaram a discutir sobre as condições
de vida na cidade, propondo intervenções mais ou menos drásticas para
restaurar o equilíbrio do organismo urbano que consideravam doente
115
.
Os higienistas tratavam de aspectos relacionados à estrutura urbana e
dos costumes e práticas tradicionais da cidade. Estas práticas vinculavam-se
aos corpos enterrados nas igrejas, no centro da cidade; animais mortos que
eram atirados nas ruas; montes de lixo e valas a céu aberto; matadouros,
111
Moacyr Scliar, Oswaldo Cruz: entre micróbios e barricadas, p. 19.
112
Note-se que o capoeira não podia viver sem a visão do sangue. Passava pela rua uma banda marcial
e era certo que a sua frente iriam gingando dezenas de capoeiras... Rente lhes estava algum barrigudo, e
logo experimentavam navalhas em tal ventre distendido. Fazia-se isso à luz meridiana, quase sem
punição, porque os políticos de hoje endeusada monarquia, necessitavam dos bandidos para as
tranquibérnias eleitorais”. [Alcides Flavio, Velaturas (Rio de Janeiro: Livraria Castilho, 1920), p. 41].
113
José Murilo de Carvalho, Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi (São Paulo:
Companhia das Letras, 1987), p.18.
114
Os médicos higienistas se preocupavam em combater doenças epidêmicas propondo medidas
profiláticas. Eles desejavam obter a salubridade pública não importando o tipo de medida que
assegurasse isso. Por exemplo, interdição de casas, desalojamento de uma família e a própria invasão
doméstica a título de visita sanitária. (Paulo Bourrol & Candido Espinheira, Relatório apresentado ao
Estado de São Paulo que propõe a profilaxia de doenças epidêmicas e compõe as organizações sanitárias
do Estado de São Paulo (São Paulo, 1894). Como médicos higienistas do Estado de São Paulo, podemos
citar Candido Espinheira e Paulo Bourrol.
115
Jayme Larry Benchimol, Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada, p. 30.
35
açougues, mercados que do ponto de vista da integridade dos alimentos eram
potenciais corruptores do ar; as fábricas, hospitais e prisões se igualavam na
falta de higiene; as ruas que eram estreitas e tortuosas que dificultavam a
renovação do ar; as praias eram imundos depósitos de fezes e lixo. Assim
sendo, quase não havia praças, nem arborização no Rio de Janeiro
116
.
Porém a cidade edificada sem planejamento ficava à mercê de
especuladores que punham os interesses econômicos acima da salubridade
pública. Além disso, não era submetida a um plano racional que assegurasse a
expansão para bairros mais salubres, através da imposição de normas para
tornar higiênicas as casas construídas: o alargamento de ruas, a abertura de
avenidas e praças, a arborização; a instalação de redes de esgotos e água
etc
117
.
... As freguesias centrais foram as primeiras a se beneficiar das
benesses urbanísticas...
Fonte: Maurício de Almeida Abreu. A evolução urbana do Rio de
Janeiro. 2ª ed. (Rio de Janeiro: IPANRIO/ZAHARAR, 1988), p. 42.
116
Jayme Larry Benchimol, Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada, p. 30.
117
Ibid.
36
Neste sentido, a contribuição dos higienistas, foi a de promulgar as
primeiras leis submetendo o crescimento espontâneo da cidade a normas e
interdições. E mesmo não conseguindo evitar o retorno de epidemias,
especialmente a febre amarela, os higienistas ajudaram a promover mudanças
no tocante aos padrões de sociabilidade, bem como as formas de organização
do espaço urbano
118
.
Os debates acerca do saneamento da capital intensificaram-se por conta
das duas epidemias de febre amarela, nos anos de 1873 e 1876, que
causaram por volta de 3.659 a 3.476 óbitos numa população que era estimada
em 270 mil habitantes. Também havia rumores generalizados de que o
governo imperial estava ocultando os verdadeiros números que representavam
um divisor de águas na história da febre amarela no Rio de Janeiro
119
.
Nesse contexto, acabou sendo elaborado o primeiro plano urbanístico
para o Rio de Janeiro, por uma comissão de Melhoramentos de que fazia parte
o engenheiro inspetor das Obras Públicas
120
Francisco Pereira Passos.
Decorreriam assim, três décadas até que Pereira Passos e o governo federal
submetessem o Rio de Janeiro aos procedimentos de que reclamavam os
médicos desde 1850
121
.
O grande problema no combate a febre amarela era a ignorância de sua
causa. Na década de 50 ela era atribuída a indigestão, supressão da
transpiração, exposição à chuva, umidade da noite e insolação, como também
as fadigas do corpo e do espírito e as contrariedades morais, o terror
122
.
Em 1880 o médico Domingos Jose Freire Junior atribuiu a febre amarela
a um micróbio, um parasita. Entretanto o médico Juan Finlay de Havana
percebeu que a evolução da doença coincidia com o aumento da quantidade
de mosquitos. E ao aprofundar seus estudos, concluiu que o Culex fasciatus
(atual Aedes aegypti) era o mosquito associado à febre amarela. Deste modo,
118
Jayme Larry Benchimol, Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada, p. 30.
119
Para as estatísticas oficiais sobre o número de mortos de febre amarela no Rio, ano a ano, de 1850 a
1907, ver Plácido Barbosa e Cássio Resende, Os serviços de saúde pública no Brasil (Sidney Chalhoub,
Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial, p. 203).
120
No chamado “Massacre de Manguinhos” foram cassados, por interferência direta do ministro Rocha
Lagoa, ex-diretor do Instituto Oswaldo Cruz (1964-69), os cientistas Augusto Cid de Mello Perissé; Haity
Moussatché; Hugo Souza Lopes; Moacyr Vaz de Andrade; Sebastião José de Oliveira; Fernando Braja
Ubatuba; Tito Cavalcanti, Herman Lent; Domingos Arthur Machado Filho e Masao Goto. (Jayme Larry
Benchimol, Febre amarela a doença e a vacina, uma história inacabada), pp. 30-31.
121
Jayme Larry Benchimol, Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada, pp. 30-31.
122
Moacyr Scliar, Oswaldo Cruz: entre micróbios e barricadas, p. 38.
37
convenceu cinco voluntários a se deixarem picar por mosquitos alimentados
com sangue de doentes, e estes, contraíram a doença
123
.
Em 1900 esta comissão dirigiu-se a Cuba. Com a finalidade de procurar
pelo doutor Finlay, que, aos 67 anos, continuava ainda defendendo suas ideias.
E depois disto, partiram para o trabalho experimental
124
. Neste período os
soldados americanos e imigrantes recém-chegados sem experiência prévia
sobre febre amarela, foram expostos aos mosquitos que tinham picado
doentes, contraindo a enfermidade. E concluiu-se que Finlay tinha razão
125
.
Oswaldo Cruz, que mesmo a distância acompanhava esses trabalhos,
era um defensor da chamada “teoria havanesa”. E em janeiro de 1901, Emílio
Ribas, diretor do Serviço Sanitário de São Paulo, desencadeou uma campanha
de combate ao mosquito.
126
.
Fonte: Jaime Larry Benchimol, Dos micróbios aos mosquitos:
febre amarela e a revolução pasteuriana no Brasil (capa).
123
Moacyr Scliar, Oswaldo Cruz: entre micróbios e barricadas, p. 39.
124
Ibid.
125
Ibid.
126
Ibid., p. 40.
38
Oswaldo Cruz comentava sobre suas ideias com o amigo Sales Guerra.
Médico de J. J. Seabra, titular do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, ao
qual estava vinculada a Saúde Pública. Sales Guerra foi convidado para
assumir o órgão na época (janeiro de1903) devido ao afastamento do antigo
diretor. No entanto, ele acumulou este com o cargo de professor da Faculdade
de Medicina, o que era proibido por lei
127
.
Mesmo a construção de vilas operárias a partir da década de 90, não
eliminou os cortiços, que continuavam a abrigar a maior parte da população
pobre da cidade, que ainda concentrava-se no centro. Assim sendo, somente
no início do século XX, é que esta situação passaria por mudanças
128
.
Na época da publicação do romance de Aluísio Azevedo O cortiço, como
comentamos anteriormente, os habitantes do Rio de Janeiro preocupavam-se
com o destino dos cortiços. Diante da afluência de imigrantes numa cidade que
estava despreparada para recebê-los. Havia também o aparecimento dos
novos cortiços e outros tipos de habitações cujas condições eram precárias
como as favelas, por exemplo. Havia uma preocupação por parte da população
com os riscos de uma epidemia de febre amarela
129
.
A imprensa do Rio de Janeiro condenava a miséria do povo e os perigos
que representavam os cortiços para a salubridade da capital. A Gazeta de
Notícias dedicou diversas reportagens à discussão deste problema durante o
mês de fevereiro de 1884
130
.
O governo provisório da República por meio de um decreto de 18 de
janeiro de 1890, baseado no artigo 82, permitia não o fechamento, mas
também a destruição dos estabelecimentos insalubres considerados como
focos de infecção
131
.
Com o advento da República em 1889, alterou-se a organização das
competências municipal e federal, cabendo ao município do Distrito Federal
gerir todas as ações de higiene urbana. Dentre essas medidas tomadas pela
prefeitura, convém mencionar a derrubada do cortiço Cabeça de Porco, no
centro do Rio de Janeiro, em fevereiro de 1893, exatamente um ano após a
127
Moacyr Scliar, Oswaldo Cruz: entre micróbios e barricadas, p. 40.
128
Maurício de Almeida Abreu, Evolução urbana do Rio de Janeiro, p. 57.
129
Jean Yves-Mérian, Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913), p. 443.
130
Merrian, Aluísio Azevedo, vida e obra, p. 518.
131
Ibid., p. 443.
39
promulgação da lei que concedeu poderes à prefeitura para atuar na higiene da
cidade
132
. Assim, a destruição do Cabeça de Porco na gestão do médico e
prefeito Barata Ribeiro (1892-1893) reforçou a vitória da política higienista e
abriu o período de forte intervenção pela qual a cidade passaria ainda pela
gestão do prefeito Pereira Passos (1902-1906)
133
.
2.2 AS DOENÇAS NO CORTIÇO
No ano de 1876 o governo imperial direcionou sua atenção para a
questão da saúde pública, nomeando uma comissão para estudar os motivos
que ocasionavam a persistência e o desenvolvimento da febre amarela e de
propor maneiras de erradicá-la. Essa comissão foi presidida por José Pereira
Rego (barão do Lavradio), que na época havia sido presidente da Junta Central
de Higiene blica. Ela constituía-se de dicos, como Antonio Corrêa de
Souza Costa, João Vicente Torres Homem, Vicente Cândido Figueira de
Sabóia, Hilário Soares de Gouvêa e João Baptista dos Santos. Esta comissão
encaminhou ao governo imperial dois relatórios e projetos apresentando as
providências a serem tomadas e indicando medidas de promoção na melhoria
das condições higiênicas da cidade, assim como o combate aos locais
insalubres e a reorganização dos serviços sanitários terrestres e marítimos de
todo o Império. Estas medidas foram convertidas posteriormente em posturas
pela Câmara Municipal e estavam vinculadas a proibição do despejo de lixo em
praias, aterros e outros lugares assim como o estabelecimento de hospitais
134
.
Em 1889, por meio do decreto n. 10.230 o Instituto de Higiene da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro estabeleceu os seguintes objetivos:
132
Os cortiços eram considerados, desde o Império, como lugar da desordem e do contágio, e foram
inúmeras as tentativas de destruí-los ou impedir que fossem construídos. Contudo, a questão da
propriedade privada o cara ao Império, poderia abrir um precedente no que tange à posse do
escravo impedia que as demolições ocorressem; quanto à fiscalização, sempre se encontrava uma
forma de burlá-la. [Gisele Sanglarde, “A Primeira República e a Constituição de uma Rede Hospitalar no
distrito federal.” In: História da saúde no Rio de Janeiro: instituições e patrimônio arquitetônico (1808-
1958), org. Ângela Porto (Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2008): p. 65].
133
Ibid.
134
Maria Rachel Fróes da Fonseca, “A saúde púbica no Rio de Janeiro Imperial.” In: História da saúde no
Rio de Janeiro: instituições e patrimônio arquitetônico (1808-1958), org. Ângela Porto (Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2008), pp. 41-42.
40
[...] a instrução aos alunos da cadeira de higiene, o estudo das
epidemias e epizootias, a instrução higiênica aos docentes das
escolas primárias e aos alunos da Escola Normal e a
disseminação das noções indispensáveis de higiene pessoal e
domiciliar pela população do município da Corte. Em
contrapartida, o serviço de análises e exames de bebidas,
substâncias alimentares e de interesse da saúde pública seria
feito por um laboratório específico, o laboratório do estado, criado
pelo mesmo decreto
135
.
No ano de 1890, por meio do decreto n. 169 definiu-se a constituição de
um Conselho de Saúde Pública e a organização do serviço sanitário terrestre
da República, que ficaria a cargo da Inspetoria Geral de Higiene, com sede na
cidade do Rio de Janeiro. Cabendo as seguintes responsabilidades:
[...] À inspetoria era responsável pelo estudo das questões de
higiene pública, assim como o saneamento das localidades, a
adoção de meios de prevenção de epidemias e endemias, a
organização dos socorros públicos, a direção do serviço de
vacinação, a inspeção sanitária das escolas, fábricas, dos
hospitais, hospícios e de outras habitações, a fiscalização da
alimentação pública, a fiscalização sanitária de cemitérios e
outras construções suscetíveis de comprometer a saúde pública.
Entre as atribuições dos delegados de higiene estava a
fiscalização das condições físicas e de funcionamento de
instituições hospitalares e das casas de saúde
136
.
Neste mesmo ano com o Código de Posturas Municipais, regulava
várias atividades, especialmente as referentes às casas de aluguel e de pasto.
135
Decreto n. 10.232 de abril de 1889 Encontrado na Colleção das Leis do Império do Brazil de 1889.
(Maria Rachel Fróes da Fonseca, “A saúde púbica no Rio de Janeiro Imperial.” In História da saúde no Rio
de Janeiro: instituições e patrimônio arquitetônico (1808-1958), org. Ângela Porto (Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2008)): p. 45.
136
Maria Rachel Fróes da Fonseca, “A saúde púbica no Rio de Janeiro Imperial.” In História da saúde no
Rio de Janeiro: instituições e patrimônio arquitetônico (1808-1958), org. Ângela Porto (Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2008): p.45.
41
Estas medidas visavam à beneficiar a população no tocante a higiene e ao
mesmo tempo criavam dificuldades aos proprietários, visto que eram irrealistas
para a época. Elas direcionavam-se, na exigência de caiar as paredes duas
vezes por ano, azulejar cozinhas e banheiros, arejar quartos com aparelhos de
ventilação, limitar o número de hóspedes e o melhoramento das residências
137
.
Desta forma, o Código deixava transparecer a preocupação republicana
com o controle da população marginal da cidade. Sendo assim, havia a
inclusão na proibição dos hotéis, hospedarias e estalagens que recebessem
pessoas suspeitas como: ébrios, vagabundos, capoeiras, desordeiros em geral.
Ainda era exigido o registro de todos os hóspedes, com anotação de nomes,
empregos e outras características. Estas listas eram entregues à polícia no dia
seguinte até as nove horas da manhã. As penalidades pelo descumprimento
dos dispositivos iam desde multas até prisão por 30 dias
138
.
O Rio possuía em 1888, 1.331 estalagens e 18.866 quartos de aluguel,
onde moravam cerca de 46.680 pessoas, incluindo todo o vasto contingente do
mundo da desordem. E de uma hora para outra, todos teriam registro na
polícia, ou ficariam sem ter onde morar, caso os proprietários não cumprissem
rigorosamente a lei
139
.
No Rio de Janeiro nesta mesma ocasião Domingos Freire, professor da
Faculdade de Medicina, buscava ativamente a adesão voluntária do povo por
meio de anúncios, artigos, visitas periódicas a cortiços e estalagens, a
hospitais, à hospedaria dos imigrantes e aos navios que fundeavam na baía.
Ele encontrou surpreendente acolhida nas camadas populares
140
.
Até a proclamação da República, os dados revelam o crescimento do
número de vacinações efetuadas no Rio de Janeiro e em outros centros
urbanos do Sudeste
141
.
137
José Murilo de Carvalho, Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, p. 167.
138
Para um resumo do Código, Jose Murilo de Carvalho sugere que se consulte Ana Marta Rodrigues
Bastos, O Conselho da Intendência” (José Murilo de Carvalho Os bestializados: o Rio de Janeiro e a
República que não foi, p.167).
139
José Murilo de Carvalho, Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, pp. 35-36.
140
Jaime Larry Benchimol, Dos micróbios aos mosquitos: febre amarela e a revolução pasteuriana no
Brasil (Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; Editora UFRJ, 1999), p. 39.
141
Ibid.
42
2.3 DO REALISMO AO NATURALISMO
O Realismo se firmou na França após 1850 e um de seus principais
representantes foi Gustave Flaubert (1821-1843). Caracterizou-se pela
observação metódica e objetiva; pela busca incessante de documentos,
essenciais para o ofício de escritor. Era importante observar as coisas em sua
realidade e generalizá-las sob a forma de leis. Este tipo de procedimento se
aplicava também aos fenômenos psicológicos
142
.
Os romances realistas de Flaubert se inspiravam em acontecimentos
reais, contemporâneos ou históricos. Ele pesquisava a herança, a conduta, os
lugares onde tinham vivido seus personagens, procurando estar o mais
próximo da realidade possível
143
.
A corrente literária naturalista, uma das tendências existentes no século
XIX, caracterizava-se por enfatizar particularmente as condições fisiológicas, a
influência do meio e das circunstâncias que determinariam a pessoa humana.
Na França, um de seus representantes foi Émile Zola (1840-1902), que
escreveu romances onde predominava o instinto, “a besta humana”. Seus
personagens frequentemente se caracterizavam pela impulsividade e natureza
frustrada. O remorso sentido por um casal de assassinos no romance Therèse
Raquin era atribuído pelo autor a uma desordem orgânica. O clima que existia
era de vulgaridade material. Os meios preferidos eram os populares ou a
periferia
144
.
O romancista naturalista seria um observador que verificava as leis
reveladas pela observação. Sua experiência consistiria em dar movimento aos
personagens em uma história particular para mostrar que a sucessão de fatos
seria tal onde haveria o “determinismo” dos fenômenos estudados. A intenção
seria o conhecimento do homem em sua ação individual e social. Ao detectar
as leis que regem os indivíduos e sociedades, o romancista estaria
contribuindo para o progresso
145
.
142
André Lagarde, Laurent Michard, XIX ème siècle. Les grands auteurs français du programme (Paris :
Les Éditions Bordas, 1967), p. 457.
143
Ibid., p. 457.
144
Ibid., pp. 455 ; 483.
145
Ibid., p. 483.
43
O romance naturalista no Brasil está relacionado a duas datas: 1877 e
1881. A primeira corresponde à publicação do romance O coronel sangrado, de
autoria de Luis Dolzani (cujo pseudônimo era Inglês de Sousa). A segunda
corresponde à publicação da obra O mulato, de Aluísio Azevedo
146
.
Muitas vezes o naturalismo é confundido com o realismo na crítica
literária. Ambos pressupõem uma submissão do texto artístico à realidade.
Excluem a idealização da realidade que aparecia no romantismo. De modo
semelhante ao que aconteceu na Franca, no Brasil essas correntes literárias se
caracterizaram pela observação e experiência empírica como fontes de
conhecimento para o escritor ou artista em geral
147
.
No Brasil o movimento naturalista foi bastante influenciado pela filosofia
positivista. Registrava o presente com temas inovadores em linguagem atual.
Denunciou a hipocrisia e trouxe à luz as lutas sociais. O antiesteticismo
naturalista era uma reação contra aqueles que procuravam estabelecer uma
grande distância entre arte e realidade social
148
.
Um dos temas abordados pelo naturalismo era o papel que o indivíduo
teria na sociedade. Questionava se ele seria um elemento de transformação
social ou se permaneceria impotente nesta transformação. Muitas vezes no
romance naturalista é destacada justamente a impotência do indivíduo na
transformação social. Isso se refletia em um pensamento pessimista que foi
vigente no final do século XIX
149
.
De acordo com Benjamin Abdala Junior, o realismo-naturalismo dominou
a literatura brasileira entre 1881 e 1902, entrando em declínio no início do
século XX
150
. A literatura nesse período fazia uma reflexão sobre a
individualidade da cultura brasileira, sem idealizações românticas. Uma figura
bastante popular nesta época foi Rui Barbosa
151
.
146
Afrânio Coutinho, A literatura no Brasil, p. 69.
147
Benjamin Abdala Júnior, Tempos da literatura brasileira, pp. 132-133.
148
Ibid., p. 135.
149
Ibid.
150
Ibid., pp. 136-137.
151
Ibid., pp. 137-138.
44
Na época em que surgiu no Brasil a corrente naturalista foi vista por
alguns como uma literatura “imoral”. Abordava temas como o anticlericalismo, o
republicanismo, a reação contra o puritanismo
152
.
Após as contribuições de escritores naturalistas como Aluísio Azevedo,
por exemplo, que eram comprometidos com o social, vieram outros que
caracterizaram um naturalismo acadêmico e institucionalizado que girava em
torno da Academia Brasileira de Letras. Eram naturalistas burocratas como
Henrique Maximiliano Coelho Neto (1864-1934), Julio Afrânio Peixoto (1876-
1947), que se destacavam por um estilo mundano, meio jornalístico e meio
sofisticado
153
.
Segundo Abdala Junior, no romance O cortiço as pessoas existem em
função de um espaço que simboliza forças econômicas em luta. Os dramas
individuais são deixados em segundo plano cedendo espaço para os dramas
coletivos. Retrata uma realidade onde se destaca a influência que o meio
exerce sobre o homem
154
.
Representando o proletariado urbano de fins do século XIX em
formação, o romance apresenta um ambiente coletivo: o cortiço, propriedade
de João Romão. As personagens são vistas em conjunto sendo
despersonalizadas e sofrendo forte influência do meio. O cortiço pode ser
considerado a principal personagem que age como se fosse um governador
que absorve e domina seus habitantes
155
.
Nas palavras de Carlos Faraco:
[...] Mas o grande personagem é mesmo o próprio cortiço, que
aos poucos vai adquirindo vida própria e arrastando a tudo e a
todos na sua família de degradação. O escritor procurava
demonstrar um dos grandes princípios do naturalismo: o de que o
meio, por ser mais forte acaba condicionando o homem
156
.
152
Benjamin Abdala Júnior, Tempos de literatura brasileira, pp. 138-139.
153
Alfredo Bosi, História concisa da literatura brasileira, 40ª Ed. (São Paulo: Editora Cultrix, 1994), pp.
198; 205.
154
Benjamin Abdala Júnior, Tempos de literatura brasileira, p. 146.
155
Ibid.
156
Carlos Faraco, “O povo como personagem”, p. 232.
45
CAPÍTULO 3
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em termos literários, o romance O cortiço apresenta alguns aspectos
que se enquadram no Realismo, pois para compor suas personagens Aluísio
Azevedo baseou-se em observação, coleta de dados, inclusive aqueles
relacionados à conduta. Ele retratou uma parte da realidade da cidade do Rio
de Janeiro. Como vimos no Capítulo 1, ele vestiu um casaco, calças
remendadas e alugou um quarto num cortiço em Botafogo onde passou a viver
e registrar suas observações. Ele procurava se colocar na condição dos
habitantes do cortiço para poder compor suas personagens. Esta atitude é
semelhante à adotada por Émile Zola em relação aos habitantes de uma mina
para compor suas personagens em O Germinal.
Por outro lado, apresenta várias características do Naturalismo literário
tratando das condições fisiológicas e da influência que o meio exerce sobre os
indivíduos. Em O cortiço é possível perceber que o meio levou diversas
personagens a tomarem determinadas atitudes. Por exemplo, João Romão
tornou-se cada vez mais ambicioso sem se preocupar com as condições de
vida dos moradores do cortiço, explorando-os. Teve a mesma atitude em
relação à Bertoleza, porém em um grau maior chegando a forjar uma carta de
alforria para se beneficiar da situação. Devido às atitudes de João Romão
Bertoleza foi levada ao suicídio.
Outra personagem que acabou se degradando no decorrer da trama foi
Piedade, que após ser abandonada por seu marido Jerônimo tornou-se ébria e
prostituiu-se, passando a viver em condições piores as anteriores, no cortiço
Cabeça de Gato. O personagem Jerônimo de trabalhador converteu-se em
criminoso ao assassinar Firmo, para unir-se a Rita Baiana. Poucos moradores
do cortiço não foram afetados pelas condições do meio como Alexandre ou
Henrique, por exemplo. Muitos deles morreram em decorrência das condições
de insalubridade e do incêndio que ocorreu no cortiço.
Foi possível perceber através desta pesquisa alguns aspectos
relacionados com a vida de Aluísio Azevedo que normalmente não aparecem
nos livros didáticos. Por exemplo, o fato de Aluísio quando adolescente ter
46
trabalhado como balconista e executado também serviços de limpeza e sofrido
maus tratos por parte dos patrões. Além disso, esteve sujeito a dificuldades
financeiras e más condições de moradia. Assim, essas experiências podem ter
contribuído para a composição de suas personagens.
O cortiço consiste em uma amostra da situação social do Brasil, mais
especificamente da cidade do Rio de Janeiro. Como vimos no Capítulo 2 desta
dissertação, no final do culo XIX houve um aumento de fábricas no Rio de
Janeiro, ascensão da classe comerciante e uma aceleração no crescimento da
população em parte causado pela imigração desenfreada que acarretou a
proliferação dos cortiços. Esses consistiam em um ambiente insalubre
favorável a disseminação de doenças como a febre amarela por exemplo.
Essas habitações, onde havia uma grande quantidade de pessoas eram
consideradas um ambiente favorável a produção de miasmas que seriam
responsáveis pelas mais diferentes doenças.
O problema dos cortiços representou uma preocupação para os
médicos higienistas levando-os a propor e tomar medidas que restaurassem a
boa qualidade do ambiente. Vários relatórios sugeriam que os cortiços fossem
expropriados e destruídos sendo substituídos por casas individuais para a
população desfavorecida. Além do quê, os próprios habitantes do cortiço eram
discriminados por várias razões inclusive por serem relacionados a
marginalidade, vadiagem e criminalidade. Representavam a escória que
ameaçava os outros segmentos da sociedade. A situação gerada pelos cortiços
provocou debates sobre questões de higiene pública, a tomada de uma rie
de medidas e a proposta de medidas legais muitas vezes autoritárias que
restringiam a liberdade de ir e vir de seus habitantes.
Outro elemento presente neste romance de Aluísio Azevedo é o
problema racial, a situação de desigualdade e desconforto dos negros no
período que se seguiu à abolição da escravatura.
Este estudo proporcionou a oportunidade de reflexão sobre vários
aspectos da relação entre literatura e ciência que podem ser objeto de
investigação futura. Concordamos com Gode-Von Aesch de que o romance
naturalista, oferece um material rico para estudos que lidem com essa
interface.
47
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