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Sílvia Regina de Almeida Fiuza
Imagens do Feminino:
A Construção de Gêneros na Televisão Brasileira
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História Social da Cultura do Departamento de História da
PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para
obtenção do título de Doutor em História.
Orientador: Ricardo Augusto Benzaquen de Araújo
Rio de Janeiro
Outubro de 2010
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610627/CA
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lvia Regina de Almeida Fiuza
Imagens do Feminino:
A Construção de Gêneros na Televisão Brasileira
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do
grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em
História Social da Cultura do Departamento de História do
Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Ricardo Augusto Benzaquen de Araujo
Orientador
Departamento de História
PUC-Rio
Prof. Antonio Edmilson Martins Rodrigues
Departamento de História
PUC-Rio
Prof. Gilberto Cardoso Alves Velho
Departamento de Antropologia
Museu Nacional-UFRJ
Prof. Luiz Fernando Dias Duarte
Departamento de Antropologia
Museu Nacional-UFRJ
Profª Maria Alice Rezende de Carvalho
Departamento de Ciências Sociais
PUC-Rio
Profª Mônica Herz
Vice-Decana de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 08 de outubro de 2010.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610627/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
universidade, da autora e do orientador.
Sílvia Regina de Almeida Fiuza
Graduou-se em História na Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro em 1982. Tornou-se mestre
em Antropologia Social pelo Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1989.
Trabalhou como pesquisadora do Centro de
Documentação e analista de texto do departamento de
controle de qualidade da Rede Globo. Foi gerente do
Centro de Documentação e Pesquisa do Sistema Globo
de Rádio e gerente de ciência e ecologia da Fundação
Roberto Marinho. Em 1999, tornou-se coordenadora do
Projeto Memória das Organizações Globo. Atualmente é
gerente do conhecimento da Central Globo de
Comunicação, responsável pelos departamentos Memória
Globo e Globo Universidade.
Ficha Catalográfica
CDD: 900
Fiuza, Sílvia Regina de Almeida
Imagens do feminino : a construção de gêneros na
televisão brasileira / Sílvia Regina de Almeida Fiuza ;
orientador: Ricardo Augusto Benzaquen de Araújo.
2010.
301 f. ; 30 cm
Tese (doutorado)Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, Departamento de História, 2010.
Inclui bibliografia
1. História Teses. 2. História social da cultura. 3.
Televisão. 4. Gênero. 5. Feminino. 6. Ficção seriada.
7. Sociabilidade. 8. Rede Globo. I. Araújo, Ricardo
Augusto Benzaquen de. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História.
III. Título.
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À Ana Carolina, minha filha e amiga
Ao Otávio, por seu companheirismo e amor
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Agradecimentos
Ao meu orientador Ricardo Benzaquen de Araújo, pelo seu estímulo, confiança e
amizade. Sua orientação precisa, análise sofisticada e liberdade intelectual foram
essenciais para que eu ousasse nas minhas reflexões e enveredasse pelos mais
diferentes campos do conhecimento. A ele, minha sincera gratidão e admiração.
À Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), em particular,
aos professores do departamento de História pelo apoio dado ao longo da minha
vida acadêmica, principalmente durante o doutorado. Os cursos dos professores
Margarida de Souza Neves, Luiz Costa Lima e Ricardo Benzaquen de Araújo
foram fundamentais para o desenvolvimento dessa tese.
Aos funcionários do departamento de História da PUC-Rio pela permanente
acolhida nesses anos todos. À Edna Maria Lima Timbó meus agradecimentos pela
ajuda nas tarefas administrativas durante os anos de doutorado.
Aos professores José Reginaldo Gonçalves e Luiz Costa Lima pelas sugestões
dadas no exame de qualificação. Elas tiveram grande importância nos rumos
tomados por esse trabalho.
Ao professor Gilberto Velho, meu orientador na dissertação de mestrado realizada
no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, na
UFRJ, em 1989. Sua contribuição intelectual e sugestões de leitura têm sido muito
construtivas para minha trajetória acadêmica.
À Celmy de A. Araripe Quilelli Corrêa pela escuta atenciosa, sensibilidade
apurada e reflexão inquietante, que me ajudaram a acreditar nesse trabalho e a
buscar caminhos originais para desenvolvê-lo.
À amiga Maria Helena Guimarães Pereira pelo apoio ao longo da minha vida
pessoal, profissional e acadêmica. Essa tese contou com seu cuidadoso trabalho de
copidesque, tornando-a mais compreensível e prazerosa de ser lida. Além disso,
como leitora, deu contribuições significativas ao desenvolvimento dos
argumentos.
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Ao Leandro Paz Ramalho pelo trabalho de pesquisa e elaboração de resumos da
documentação primária. Leandro, Ana Carolina Fiuza Fernandes e Marco Roxo
deram uma colaboração importante nos fichamentos dos textos.
À Carolina Gonçalves, pelo trabalho meticuloso de organização das referências
bibliográficas e de formatação dessa tese. Ao Julian Michael Rory James Bradley,
pela contribuição nas traduções de textos.
À direção da Rede Globo que, ao longo de 25 anos, tem me propiciado uma
atividade profissional voltada para a reflexão e a crítica. A liberdade de
pensamento e de opinião foi essencial para que eu pudesse elaborar essa tese.
À equipe da Gerência do Conhecimento da Rede Globo, da qual fazem parte os
departamentos Memória Globo e Globo Universidade. O trabalho realizado ao
longo desses anos tem sido enriquecedor, tanto do ponto de vista profissional
quanto pessoal. É animadora a convivência com pessoas que valorizam o
conhecimento e acreditam que ele pode contribuir para a cultura empresarial e
para a sociedade brasileira. Sou grata, em particular, à Ana Paula Goulart Ribeiro,
com quem tenho partilhado desafios profissionais, intelectuais e pessoais. Seu
estímulo a esse doutorado, as sugestões de leituras e discussões sobre os
conteúdos foram muito importantes.
Aos amigos que têm acompanhado meu percurso acadêmico. Momentos de
dúvidas, incertezas, cansaço, descobertas, empolgação foram compartilhados com
muitos deles. Sempre pude contar com o estímulo para chegar ao fim. A eles, um
sincero agradecimento.
Aos meus pais, Lúcia e Herbert, ao meu irmão, Sérgio, e a meus avós, Lédia,
Eulália (in memorian), Alcides (in memorian) e Benedicto (in memorian).
Acredito, verdadeiramente, que nossas biografias têm um papel significativo em
nossas escolhas e projetos. A vida familiar, as histórias individuais e coletivas
compõem o mosaico do qual faço parte e constituem referência importante para
minhas observações intelectuais.
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À Gláucia e à Sandra (in memorian) por me ajudarem nesses quase cinco anos a
manter a vida doméstica funcionando, enquanto eu mergulhava nos livros. Ao
Beto e à Wilma, pelo permanente apoio nos momentos de dúvidas e incertezas.
A convivência com minha filha Carol, com meus enteados Joana, Bebel e
Antônio, e com meus sobrinhos Fernanda e Rafael, foi inspiradora para trabalhar
com a construção de gêneros na sociedade contemporânea. Eles reforçaram minha
convicção de que há múltiplas possibilidades de construção do indivíduo no
mundo em que vivemos e me ensinaram o quanto é importante aprender a lidar
com as diferenças. A eles, um agradecimento carinhoso.
Ao Otávio Geminiani Escobar, um agradecimento muito especial. O convívio
prazeroso, o respeito e a generosidade que marcam nossa vida em comum, a troca
afetiva e intelectual, a busca permanente por uma relação homem-mulher intensa
e verdadeira foram essenciais para que eu me aventurasse nesse empreendimento
acadêmico. Desejo que essa tese seja mais um passo em nossa trajetória a dois.
Dedico essa tese à Ana Carolina, minha filha. Quando pesquisei e escrevi minha
dissertação de mestrado sobre adolescentes da Zona Sul do Rio de Janeiro, ela era
uma menina de quatro anos. As expectativas maternas sobre a criação de filhos
certamente influenciaram na escolha do objeto da pesquisa e na sua análise. Agora
ela é uma jovem mulher de 24 anos, historiadora e profissional promissora, com
seus desencontros e encontros amorosos e projetos de maternidade. Com ela tenho
compartilhado momentos de dúvidas, alegrias, tristezas, esperanças. Juntas,
temos refletido sobre as relações humanas e buscado cada vez mais compreender
e conviver com as diferenças pessoais. Sua sensibilidade, delicadeza, curiosidade
intelectual e sinceridade afetiva ajudaram-me a pensar a feminilidade no mundo
contemporâneo. À Carol, minha sincera gratidão.
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RESUMO
Fiuza, Sílvia Regina de Almeida; Araújo, Ricardo Augusto Benzaquen de.
Imagens do Feminino: A Construção de Gêneros na Televisão
Brasileira. Rio de Janeiro, 2010, 301 p. Tese de Doutorado Departamento
de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Essa tese analisa as representações femininas na ficção seriada da Rede
Globo, a partir dos seriados Malu Mulher e Mulher, e das minisséries Anos
Dourados e Hilda Furacão. Ao considerar a televisão um veículo que se
caracteriza pela velocidade, fragmentação e simultaneidade dos conteúdos, é
possível encontrar nessas narrativas a presença de múltiplos ethos e identidades
regidas por dois princípios antagônicos um hierárquico e outro igualitário.
Geradas por matrizes narrativas diversas que se mesclam como o melodrama, o
realismo e o naturalismo, essas ficções híbridas constroem tipos ideais de gênero,
em particular o feminino, que também são marcados pelo fracionamento e
convivência de valores, visões de mundo e estilos de vida heterogêneos. Criam,
ainda, uma sociabilidade entre indivíduos e coletividades separados do ponto de
vista objetivo idade, sexo, posição social, econômica e cultural e subjetivo
biografias, códigos morais e comportamentais , em um diálogo polifônico que
envolve autor, personagens, diretor, produtor e público. Esse dialogismo leva a
dois movimentos simultâneos e, aparentemente, opostos: a mimese, a
identificação com os aspectos que são familiares; e a aspiração, o desejo de
alcançar aquilo que está distante. Essa dupla faceta conduz a um acordo ficcional
que verossimilhança à narrativa. Todos esses elementos fazem com que a
ficção seriada televisiva brasileira possa ser pensada como uma espécie de
moldura para o comportamento do homem contemporâneo, articulando as
dimensões interna e externa de sua vida e estruturando suas experiências passada
e presente.
Palavras-chave
Televisão; gênero; feminino; mulher; identidade; sociabilidade; memória;
ficção seriada; melodrama; realismo; naturalismo; seriado; minissérie; Rede
Globo.
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Abstract
Fiuza, Sílvia Regina de Almeida; Araújo, Ricardo Augusto Benzaquen de
(Advisor). Images of Feminine: The Construction of Genders on
Brazilian Television. Rio de Janeiro, 2010, 301 p. D. Thesis
Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
This thesis analyzes the female representations in the serial fictions
produced by Globo TV Network studying the series Malu Mulher and Mulher,
and the miniseries Anos Dourados and Hilda Furacão. Considering the television
set as a means of transmission which is characterized by its velocity,
fragmentation, and simultaneity of contents, one is able to identify in these
narratives the presence of multiple ethos and identities ordered by two opposite
ideas: one is hierarchical; the other is equalitarian. Originated through different
ways of narratives that intermix such as the melodrama, the realism and the
naturalism, these hybrid fictions construct ideal types of gender, particularly the
feminine, that are also identified by fragmentation and heterogeneous values and
style of life. These produce a sociability between individuals and social groups
separated by objective aspects age; sex; social, economical and cultural
positions , and subjective points biographies; moral and behavioral conducts.
That conviviality creates a polyphonic dialogue which incorporates author,
characters, director, producer, and the audience. This dialogism leads to two
simultaneous tendencies, apparently in opposite directions: the mimesis, the
identification with familiar issues; and the aspiration, the desire to reach what is
so distant. This double feature allows a fictional agreement that gives
verisimilitude to the narrative. All of these elements make the Brazilian television
serial fiction to be thought of as a frame for the behavior of the contemporaneous
individual, articulating the objective and subjective dimensions of life and
structuring their past and present experiences.
Keywords
Television; gender; feminine; woman; identity; sociability; memory; serial
fiction; melodrama; realism; naturalism; series; miniseries; Globo TV Network.
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SUMÁRIO
1. Introdução 12
2. A Televisão como Objeto de Estudo 22
2.1. A Televisão Emoldura Memórias 22
3. A Produção Acadêmica sobre a Ficção Seriada na Televisão 41
3.1. No Brasil 41
3.2. Nos Países Anglo-Americanos 54
4. Melodrama, Realismo, Naturalismo: Narrativa Mestiça 65
5. Representações do Feminino: Imagens se sobrepõem 114
6. As Identidades Femininas na Televisão 158
6.1. Malu Mulher 166
6.2. Mulher 190
6.3. Anos Dourados 217
6.4. Hilda Furacão 238
7. Conclusão 255
8. Referências Bibliográficas 270
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Seria mil vezes lastimável se as mulheres escrevessem como
os homens, ou vivessem como os homens, ou se parecessem
com os homens, pois se dois sexos são bem insuficientes,
considerando-se a vastidão e a variedade do mundo, como
nos arranjaríamos com apenas um? Não deveria a educação
revelar e fortalecer as diferenças, e não as similaridades?
Virgínia Woolf , Um Teto Todo Seu
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1. Introdução
A escolha da televisão como objeto de estudo e, particularmente, da ficção
seriada, deve-se a razões intelectuais e pessoais. Sempre chamou minha atenção a
capacidade dos conteúdos veiculados pela televisão de criar referências comuns
para os mais diferentes segmentos da sociedade, além de entreter. Indivíduos com
biografias particulares e trajetórias diversas, pertencentes a camadas sociais e
culturas variadas, são capazes de compartilhar discursos, adotar padrões estéticos
comuns e participar de uma sociabilidade virtual a partir do consumo de
narrativas televisivas. E mais ainda: quando se trata de ficção, de teledramaturgia
brasileira, nota-se que as histórias dos heróis e heroínas, vilões e vilãs elaboradas
com base nas convenções do melodrama, mescladas ao realismo e, em especial, ao
naturalismo pico da crônica, fornecem uma espécie de “cartografia dos
sentimentos” para os espectadores, fazendo-os associar suas experiências
singulares com as vivenciadas pelas personagens da tela.
É certo que as leituras são diferentes em função das biografias, visões de
mundo e estilos de vida específicos. Mas é intrigante como uma narrativa
produzida industrialmente, isto é, obedecendo à lógica do mercado, marcada pela
velocidade e fragmentação, características da edição em televisão; e consumida de
forma privada, em meio a outras atividades, é capaz de atuar fortemente como
referência para a subjetividade e para a construção de identidades na sociedade
contemporânea. Nesse caso, optei por trabalhar com a construção de gêneros, em
particular do gênero feminino
1
, por considerar a televisão um veículo privilegiado
na apresentação dos diversos “tipos ideais” de mulher que estão em cena desde a
segunda metade do século passado. Desde os anos 1950, coincidindo com o
1
Uso a categoria “gênero” conforme formulada por Teresa de Lauretis, isto é, considerando a
diferença entre sexos não uma questão puramente biológica, mas também uma representação
cultural em permanente construção. Inspirada nas considerações teóricas de Foucault, que a
sexualidade como uma “tecnologia sexual”, ela observa: “As concepções culturais de masculino e
feminino como duas categorias complementares, mas que se excluem mutuamente, nas quais todos
os seres humanos são classificados, formam, dentro de cada cultura, um sistema de nero, um
sistema simbólico ou um sistema de significações que relaciona sexo a conteúdos culturais de
acordo com valores e categorias sociais.(...) O sistema de sexo-gênero [enfim,] é tanto uma
construção sociocultural quanto um aparato semiótico, um sistema de representação, que atribui
significado (identidade, valor, prestígio, posição de parentesco, status dentro da hierarquia social
etc.) a indivíduos dentro da sociedade.” LAURETIS, T., A Tecnologia de Gênero, p. 211.
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surgimento da televisão, assiste-se, no Brasil, a uma série de transformações
sociais e culturais que trouxeram para o universo feminino temas considerados
tabus, tais como: divórcio, sexualidade, controle da natalidade, aborto, novos
arranjos familiares, inserção no mercado de trabalho, entre outros. Uma
multiplicidade de configurações do feminino passa a existir na sociedade e a
ficção televisiva torna-se uma de suas principais vitrines.
Além da curiosidade intelectual, minha trajetória profissional é marcada
por esse veículo. 25 anos trabalho na TV Globo em áreas voltadas para a
atividade de pesquisa. Comecei como pesquisadora no Centro de Documentação
da empresa, um arquivo com todo o conteúdo audiovisual e textual produzido
pelo telejornalismo, esportes e entretenimento (ficções seriadas, programas
infantis, de humor, auditório, variedades etc.). Em seguida, fui analista de texto no
setor de controle de qualidade que tem como principal atribuição analisar o
conteúdo das sinopses e as propostas de programas apresentadas por autores e
roteiristas de teledramaturgia e das demais áreas de entretenimento. Em 1999,
assumi a gerência do departamento Memória Globo, responsável pela história
institucional das empresas que compõem as Organizações Globo, em particular a
Rede Globo. Uma das principais atividades é um programa de história oral do
qual participam funcionários e ex-funcionários (autores, atores, diretores,
jornalistas, executivos, técnicos, entre outros) com o objetivo de cruzar as
biografias individuais com a trajetória da empresa e, também, com o contexto
histórico do país e do mundo. Em 2007, tornei-me responsável pela Gerência do
Conhecimento, que além do Memória Globo, se ocupa do Globo Universidade,
departamento que cuida do relacionamento da empresa com o meio acadêmico.
Portanto, a escolha da ficção seriada televisiva (também conhecida como
teledramaturgia ou teleficção) como objeto tem uma dupla consequência: por um
lado, em função da familiaridade com o tema e da facilidade de acesso aos
documentos e conteúdos, foi possível dispor de um material de pesquisa
significativo para a análise; por outro, traz uma preocupação importante para
qualquer pesquisa no âmbito da história, antropologia ou sociologia, que é a
necessidade de buscar um distanciamento mínimo do objeto de estudo para tratá-
lo com liberdade teórica. Sabe-se que as chamadas neutralidade e imparcialidade
há muito deixaram de ser imperativos para as Ciências Humanas e Sociais. Porém,
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o fato de trabalhar na empresa de comunicação responsável pelas obras de ficção
estudadas, impõe um cuidado adicional a esse empreendimento acadêmico. Estou
consciente da dificuldade e dos limites desse contexto, mas considero que
qualquer atividade intelectual, em maior ou menor grau, requer atenção especial
em relação à presença do bias do pesquisador.
Esse estudo pretende investigar a construção de gêneros nas narrativas
ficcionais, particularmente da Rede Globo. Considero a televisão um meio que se
distingue pela fragmentação, simultaneidade e velocidade dos conteúdos
veiculados, levando a uma estrutura não linear dos discursos e representações, o
que me faz acreditar que é capaz de formar representações do feminino também
marcadas pelas mesmas características. Essas “memórias”, embora possam
parecer transitórias e pouco consolidadas devido às especificidades do veículo, se
traduzem, social e individualmente, em valores, comportamentos e estilos de vida
compartilhados por diversos segmentos da sociedade brasileira.
Isso se dá, a meu ver, por um aspecto decisivo para se compreender a
televisão e como ela emoldura memórias: seu estado de permanente diálogo
com os espectadores, estabelecendo um “pacto de leitura”. Esse movimento de
captar e expressar ethos diferenciados existentes na sociedade implica em uma
situação ambígua: provoca a identidade, a mimese no que se refere aos elementos
afins; e cria um sentimento de aspiração pelo que é diferente, desperta o desejo
por aquilo que é inatingível. Essa tensão entre identidade e aspiração produz uma
espécie de “espelhamento” quanto à realidade/ficção apresentada.
Optei por analisar em especial a minissérie e o seriado. Esta escolha se deve
ao fato de, no meu entender, serem textos que permitem lidar com três pontos
importantes. O primeiro, como assinalei, é a possibilidade ou não de o discurso
televisivo, com suas características de virtualidade e velocidade, consolidar
conteúdos que construam memórias, individuais e coletivas, que representem
experiências possíveis de realização do indivíduo na sociedade contemporânea. O
segundo se relaciona à constituição híbrida da narrativa ficcional seriada da
televisão brasileira, isto é, diferentemente da visão tradicional que opõe realismo e
melodrama, assiste-se aqui à conjugação de elementos do romance-folhetim e do
melodrama com traços realistas, próximos do naturalismo típico da crônica. No
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15
meu entender, essa narrativa “mestiça” contribui para dar verossimilhança ao
conteúdo retratado.
Por último, as ficções televisivas são um palco privilegiado para se
analisarem os “tipos ideais”
2
de realização do feminino (e do masculino também),
que vão sendo construídos, postos em conflito e sobrepostos, de modo a traçar
uma trajetória que não se de maneira linear nem unidirecional de
“liberalização” das representações da mulher na televisão. Trajetória esta que
reflete as diversas possibilidades de construção da identidade feminina na
sociedade brasileira.
Escolhi para tratar desses temas dois seriados voltados explicitamente para a
problemática feminina Malu Mulher, exibida em 1979 e 1980, e Mulher, que foi
ao ar em 1998 e 1999 , e duas minisséries Anos Dourados e Hilda Furacão,
exibidas em 1986 e 1998, respectivamente. As últimas, apesar de não terem tido
como objetivo principal discutir temas voltados para a mulher (o primeiro é o que
se convenciona chamar de “história de época” e o segundo, adaptação de um
romance), têm como eixo das narrativas o universo feminino. Todos foram
apresentados na faixa das 22h, horário ainda considerado “nobre”
3
, com uma
audiência significativa (a média é de 20 pontos no Ibope, a metade da média de
audiência da “novela das oito”). Trata-se também de um horário em que menor
ingerência da Censura Federal (no período militar) e do Ministério da Justiça
(responsável pela classificação indicativa dos programas de televisão).
2
A partir da compreensão de Max Weber, entendo “tipo ideal” como construções abstratas que se
aproximam da realidade e servem para analisar um objeto pertencente ao campo das Ciências
Sociais. O “tipo ideal”, enquanto conceito aproximativo, abstrato e individualizante (porque
abstrai de fenômenos concretos o que existe de particular, isto é, um “conceito histórico
concreto”), permite apreender o conteúdo simbólico da ação (ou das ações) que configuram um
fenômeno cultural. Nas palavras de Weber: “Observa-se um tipo ideal mediante a acentuação
unilateral de um ou vários pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quantidade de
fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor número
ou mesmo faltar por completo, e que ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente
acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento. Torna-se impossível
encontrar empiricamente na realidade esse quadro, na sua pureza conceitual, pois trata-se de uma
utopia. A atividade historiográfica defronta-se com a tarefa de determinar, em cada caso
particular, a proximidade ou afastamento entre a realidade e o quadro ideal (...)”. WEBER, M., A
Objetividade do Conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política, p. 106.
3
O “horário nobre” (prime time) corresponde à faixa de programação que vai das 18h às 24h,
sendo que o “pico de audiência” se no horário entre 19h e 21h, composto pelo trio “novela das
sete”, Jornal Nacional e “novela das oito”. Os seriados e minisséries costumam ir ao ar após um
programa de entretenimento (humor e variedades) ou jornalístico, exibido logo após a “novela das
oito”.
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É importante ressaltar que nas quatro ficções analisarei representações
femininas das camadas médias da sociedade brasileira, com sua multiplicidade de
valores morais, comportamentos, estilos de vida e biografias. É possível
identificar dois códigos morais regendo as relações sociais, familiares e entre
gêneros: um hierárquico, “arcaico”, baseado na acentuada segregação de papéis
conjugais e dos espaços feminino e masculino, no controle moral da mulher pelos
membros masculinos, no convívio entre as gerações marcado pelas ideias de
autoridade e respeito; e outro individualista, “moderno”, onde o igualitarismo
articula as relações entre gêneros e gerações, a noção de escolha norteia as
visões de mundo, há valorização do exercício das subjetividades e ênfase no
indivíduo sujeito moral dotado de um self particular. Porém, não são dois mundos
sociais estanques: ora serão vistos universos onde predominam valores
hierárquicos em que há a possibilidade de individuação; ora universos claramente
individualistas, nos quais princípios hierárquicos podem ser ativados.
4
Esse é um
dilema específico das camadas médias urbanas fazer valer os valores individuais
ou ser englobado pela família/sociedade. Aplica-se, portanto, às histórias aqui
trabalhadas.
5
A tese foi construída obedecendo à gica de apresentar, inicialmente, os
elementos teóricos que tornam a ficção seriada produzida na televisão um objeto
de estudo acadêmico. A constituição da memória no mundo contemporâneo, as
diversas correntes de pensamento na análise da indústria cultural, a formação da
narrativa ficcional seriada e como ela se modela aos veículos de massa; e a
construção da noção de gênero feminino na cultura ocidental formam os quatro
capítulos mais teóricos que introduzem outro, mais analítico, onde verifico como
os conceitos e as categorias operam nas ficções televisivas selecionadas. No
próximo capítulo, discutirei a ideia de “memória” no mundo ocidental e como a
televisão pode servir de palco para modelar e emoldurar memórias coletivas e
4
Cf. FIGUEIRA, S., Uma Nova Família? O Moderno e o Arcaico na Família de Classe Média
Brasileira, passim; VELHO, G., Individualismo e Cultura: Notas para uma Antropologia da
Sociedade Contemporânea, passim.
5
Cabe ressaltar que a televisão aberta, em particular a TV Globo, constrói seu discurso (no caso
das ficções, em especial) para um público que ela denomina de “médio” e predominantemente
feminino, isto é, grupos sociais que se situam nas faixas intermediárias do ponto de vista
sociocultural e de consumo. Seria interessante verificar se as categorias sociológicas que estão
sendo trabalhadas aqui se adequariam a outras camadas sociais.
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individuais. Mostrarei as diversas vertentes de análise sobre a indústria cultural e
como cada uma delas contribui para pensar nos discursos veiculados pela
televisão e nas possíveis formas de diálogo com os públicos. No capítulo seguinte,
faço uma discussão acerca da produção científica sobre ficção seriada na
televisão, na qual identifico três linhas: pesquisas sobre a história e a produção;
estudos de recepção; e análises de discurso. Comparo também essas reflexões
sobre a narrativa ficcional brasileira, onde, semelhante ao que aconteceu em
outros países da América Latina, a adoção da ótica dos Estados Culturais levou a
uma ênfase na ideia de “cultura popular”, com as dos países anglo-saxões,
particularmente os Estados Unidos e a Inglaterra. Em ambos, muitas análises que
aderiram ao dialogismo dos Estudos Culturais voltaram-se, prioritariamente, para
a discussão sobre a construção de gêneros.
No quarto capítulo, examino essa ficção enquanto construção “mestiça”, que
concilia narrativas historicamente antagônicas como o melodrama e o realismo, e
incorpora o naturalismo típico da crônica. Discuto também em que medida os
elementos constitutivos dessa ficção a retórica, o clichê, a serialização e o
“gancho” constituem “molduras” para essa narrativa. No capítulo seguinte, trato
da construção da noção de “feminino”, ou seja, como a categoria “mulher” forma-
se na cultura ocidental a partir de três abordagens: o antifeminismo, a sacralização
do feminino e a cultura feminina. Todos esses capítulos fornecem os elementos
teóricos para, no sexto, analisar os “tipos ideais” presentes nos seriados Malu
Mulher e Mulher e nas minisséries Anos Dourados e Hilda Furacão. Nesse
capítulo mais analítico, busco compreender como as questões teóricas abordadas
nos capítulos anteriores operam nessas criações dramatúrgicas. Além de refletir
sobre a composição dessas narrativas e os modelos femininos presentes, procuro
compreender qual a lógica social que prevalece nos diversos discursos:
hierárquica ou igualitária. Por último, na Conclusão, retomo minhas hipóteses
iniciais e as confronto com o material teórico e empírico trabalhado ao longo da
tese. Discuto as associações feitas entre cultura de massa (televisão), ficção
seriada e feminino e identifico que elas se baseiam na ideia de uma relação “nã-
autêntica” com a realidade (ou “não-aurática”, nos termos de Benjamin). Percebo
ainda que a teleficção que acabou por vigorar no Brasil, caracterizada por uma
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espécie de “mestiçagem” de gêneros culturais, cria a verossimilhança necessária
para que ela articule experiências passadas e presentes.
Para desenvolver o estudo, selecionei como fontes documentais as sinopses,
a apresentação dos personagens e os scripts (ou roteiros) escritos pelos autores, as
sinopses e os scripts apresentados à Censura Federal (no caso de Malu Mulher,
série exibida ainda no período de ditadura militar). Além disso, assisti aos DVDs
com episódios selecionados dos seriados e com edições compactadas das
minisséries. Consultei também artigos de imprensa publicados na época de
exibição de cada história, boletins de divulgação da TV Globo e depoimentos
concedidos ao programa de história oral do departamento Memória Globo pelos
autores Antonio Calmon, Euclydes Marinho, Gilberto Braga, Glória Perez,
Manoel Carlos e Walther Negrão, todas publicadas em livro
6
; os diretores Wolf
Maia, Dennis Carvalho, Roberto Talma e Daniel Filho; e pelo ex-vice-presidente
de operações da Rede Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, Boni. Todas
elas estão disponíveis no site Memória Globo
7
.
Foram avaliados os 32 scripts da série Malu Mulher e as histórias em vídeo
de dez episódios contidas em um DVD com 8 horas de duração. Optou-se por
focar a análise nas dez histórias selecionadas: Acabou-se o que era Doce, Ainda
não é Hora, Com Unhas e Dentes, Até Sangrar, A Amiga, Duas Vezes Mulher,
Antes dos 40, Depois dos 30, Filhos, Melhor não Tê-los, Ainda não é Hora,
Infidelidade e Legítima Defesa da Honra e outras Loucuras. Os autores desses
textos são Euclydes Marinho, Manoel Carlos, Armando Costa, Martha Góes e
Walther Negrão. Avaliei também os pareceres da Censura Federal sobre alguns
desses episódios, obtidos na sede de Brasília do Arquivo Nacional.
Serviram como fonte documental para a análise do seriado Mulher, os
scripts de 53 episódios e o DVD com 19 deles, correspondendo a um total de
13h48 de duração. Foram escritos por Álvaro Ramos, Doc Comparato, Daniel
Filho, Lynn Mammet, Maria Helena Nascimento, Euclydes Marinho, Antônio
Calmon, Rosane Lima, Flávia Lins e Silva, Jorge Duran, Geraldo Carneiro, Glória
6
Cf. MEMÓRIA GLOBO, Autores: História da Teledramaturgia. Livros 1 e 2, passim.
7
Cf. MEMÓRIA GLOBO, www.memoriaglobo.com.br.
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19
Perez e Maria Adelaide Amaral. Optei por concentrar o estudo em 15 episódios
editados no DVD: O Princípio de tudo, Escolhas, Desejos incontroláveis, Casa de
ferreiro, A hora da verdade, Menina ou menino, A decisão final, A cerimônia do
adeus, A hora da verdade, Família, Pai de família, Maternidade, Mães de
Família, Grávidas e Mãe.
A sinopse, os scripts dos 20 capítulos e o DVD de 7h10 de duração com um
compacto da minissérie Anos Dourados, de autoria de Gilberto Braga, foram
analisados. Para Hilda Furacão, da autora Glória Perez, também utilizei como
fonte documental a sinopse, os scripts dos 32 capítulos e o DVD com um
compacto da minissérie com 13h48 de duração. Assisti aos dois seriados e às duas
minisséries quando foram ao ar. Portanto, eles compõem a minha memória
individual sobre as representações do feminino na televisão.
Outra questão importante a assinalar se refere às condições de recepção
desse material: diferentemente do que acontece com o telespectador quando essas
ficções são exibidas, assisti às histórias sem as interrupções determinadas pelo
intervalo comercial ou mesmo pela grade de programação que veicula os
programas em um determinado dia e horário. Os seriados foram apresentados
semanalmente e, portanto, o espectador teve intervalo de uma semana entre um
episódio e outro. Mas os seriados foram longos, demoraram dois anos no ar. As
minisséries, diferentemente, foram relativamente curtas se compararmos com os
seriados. Anos Dourados, seis semanas e Hilda Furacão, oito. Além disso, sua
veiculação era sucessiva, de terça-feira a sexta, com intervalo de três dias.
Portanto, situações muito diferentes da minha, que assisti a todo o material
linearmente, mais de uma vez, sem grandes intervalos.
8
Embora tivesse acesso (e assistido) ao conjunto do material audiovisual dos
seriados e das minisséries na íntegra, optei por trabalhar com os episódios e os
compactos que são de domínio público por serem vendidos no mercado
9
. A
8
Seria interessante comparar com a novela brasileira, composta, em geral, por cerca de 200
capítulos exibidos durante quase nove meses, seis dias na semana. Essa empreitada ficará para um
trabalho futuro.
9
Todo o material de texto e imagens da TV Globo é acessível ao público acadêmico para realizar
suas dissertações de mestrado, teses de doutorado e pós-doutorado, e pesquisas de professores
sobre temas ligados à televisão, particularmente aos produtos da TV Globo. O Globo
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20
preferência se deve ao fato de considerar esses materiais representativos do
conjunto de conteúdos e suficientes para a análise que se pretende desenvolver.
Estou ciente de que eles passaram por uma seleção dos produtores para serem
editados. Contudo, lendo a maior parte dos scripts dos seriados e os de todos os
capítulos das minisséries, considero o material escolhido adequado aos objetivos
desse trabalho. Ao comparar os scripts escritos pelos autores com as imagens das
edições, não verifiquei alterações significativas que pudessem interferir nos
resultados da análise.
Estudar a ficção seriada televisiva como objeto no campo da história
enfrenta vários desafios: primeiro, porque, conforme muitos estudiosos têm
chamado a atenção, a falta de um objeto específico ameaça levar a um total
relativismo em que os limites significam dizer “tudo é história” ou “nada é
história”. Logo, a teleficção, assim como muitos outros assuntos não estudados
tradicionalmente pela pesquisa histórica, pode ser considerada um objeto exótico
que invade a área aproveitando-se dessa amplitude metodológica. Segundo, a
escolha de um tema considerado maldito por estudos tradicionais nas Ciências
Sociais, especialmente os inspirados em certas análises da Escola de Fankfurt que
desqualificam a indústria cultural, torna necessário um esforço adicional para dar
ao objeto relevância intelectual. Nesse sentido, foi necessário dialogar com
autores de outras áreas de conhecimento, tais como Antropologia, Sociologia,
Teoria Literária, Comunicação e Psicanálise. Terceiro, trata-se de pensar a ficção
como objeto da história. É possível usar a narrativa ficcional como meio para se
ter acesso a realidades? Trava-se aqui a discussão sobre a proximidade entre o
„histórico‟ e o „ficcional‟ que são duas formas de apreender a realidade. Seria a
história uma ficção na medida em que ela, no ato interpretativo, produz
narrativas que a aproximam dos discursos ficcionais?
10
Ou a narrativa histórica,
Universidade, área responsável pelo relacionamento com o meio acadêmico, se encarrega de
atender aos pedidos.
10
Segundo as concepções de Hayden White, a história é “um artefato verbal, produto de um tipo
especial de uso da linguagem”, que faz com que seu discurso se aproxime do discurso literário.
Essa visão acaba levando-o a afirmações do tipo “todas as histórias são ficções.” Considerando
que os discursos históricos produzem interpretações narrativas, um tipo específico de uso da
linguagem, White afirma que o “enredamento” criado é resultado tanto de análises gicas quanto
tropológicas. O historiador, em sua análise interpretativa, extrai das fontes indícios das relações
entre os acontecimentos aliados a uma série de procedimentos estéticos relativos à forma narrativa,
o que significa escolher um modo para se contar a história. Ele observa que as estruturas de enredo
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21
embora não tenha um objeto específico e esteja sujeita à parcialidade de quem a
escreve, não abandona completamente a aporia da verdade?
11
Seria o caso de
pensar que é no ato de leitura, no momento interpretativo, que as narrativas
„históricas‟ e „ficcionais‟ se entrecruzam? Seriam, conforme Ricouer assinala,
duas formas de usar o imaginário para fazer a conexão entre o tempo vivido e
o tempo do mundo, tornado-os legíveis aos olhos humanos?
12
Essas questões
servirão de pano de fundo para o desenvolvimento das hipóteses desse trabalho.
utilizadas pelos historiadores em suas análises são a tragédia, o romance, a comédia e a sátira,
formas disponíveis em nossa cultura. WHITE, H., Teoria Literária e Escrita da História, p. 5-8.
11
Luiz Costa Lima, ao perceber a falta de um objeto específico para a história e considerá-la uma
experiência humana localizada no tempo e no espaço, observa que isso não faz com que ela
abandone seu compromisso com a busca da verdade. Para ele, ficção e história são modos
diferenciados de narrativas. A primeira “põe a realidade entre parênteses”, tornando-a mais
envolvida com a mímesis e, assim, mais permeável à imaginação; a segunda, embora submetida à
parcialidade de quem a escreve e, assim, sujeita ao julgamento do seu agente, não é
“constitutivamente imaginativa”. Ela tem “caráter deliberativo; semelhante à verdade judiciária.”
LIMA, L. C., História. Ficção. Literatura, p. 65. O autor lembra ainda que “... a própria prática
verossímil, comum à história e à ficção, se especializa em duas acepções distintas. No caso do
historiador, o verossímil visa construir a verdade. Já no caso do ficcionista significa „quase
verdadeiro ou um pouco verdadeiro ou que talvez possa um dia tornar-se verdadeiro... O que
parece verdadeiro não precisa, no menor grau que seja, ser verdadeiro; mas deve positivamente
parecê-lo.” LIMA, L. C., A Aguarrás do Tempo, p. 105.
12
Paul Ricouer se utiliza de uma visão hermenêutica para aproximar história e ficção. Para ele, é
no ato de leitura, enquanto momento interpretativo, que se dá essa aproximação: “A ficção é quase
histórica, tanto quanto a história é quase fictícia”. A proximidade da ficção com a história se daria
na medida em que ela lida, por meio da “voz narrativa”, com acontecimentos “irreais” como se
fossem fatos passados. E a história se assemelha à ficção por relatar acontecimentos “reais”
passados construídos pela “presença narrativa”. Ao fazê-lo, a história reinscreve o tempo da
narrativa no tempo do universo por meio do imaginário. Aí estaria o entrecruzamento entre história
e ficção, pois ambas recorrem às mediações imaginárias na reconfiguração do tempo, o que
justificaria os empréstimos tomados da literatura pela história quanto aos modos de discurso (ora
romanesca, ora irônica, ora mica etc.). Ricouer adverte ainda que para que essa relação entre
história e ficção ocorra sem prejuízos para a primeira, é preciso haver um “pacto de leitura” entre a
“voz da narrativa” e o “leitor”. Porém, ele observa que os limites desse pacto são distintos nas
narrativas ficcionais e históricas. Enquanto na primeira a imaginação não tem maiores controles,
na segunda uma intencionalidade de ser o mais fiel ao passado (daí a importância dos rastros,
dos documentos). O tempo histórico seria, assim, uma ponte entre o tempo vivido e o tempo
uniforme e impessoal do mundo, construída pela criação de certos conectores como, por exemplo,
o calendário, a sequência de gerações, os arquivos, documentos e traços. RICOUER, P., Tempo e
Narrativa, p. 273-332.
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2. A Televisão como Objeto de Estudo
2.1. A Televisão Emoldura Memórias
As sociedades contemporâneas, complexas e heterogêneas, têm como
características fundamentais as múltiplas percepções e referências da realidade.
Essa multiplicidade conduz à fragmentação das experiências e à procura de
elementos que ordenem e deem coerência às identidades individuais e coletivas.
Ao contrário das sociedades tradicionais, hierárquicas e ritualistas, em que a
memória é experimentada coletivamente, e uma percepção do grupo de que
presente e passado se ligam naturalmente, o que assistimos é a transformação da
memória coletiva em individual, psicológica, subjetiva, biográfica, voluntária e
deliberadamente evocada.
Essa transformação vem sendo objeto de reflexão de historiadores,
antropólogos, filósofos e cientistas sociais. Estudos das tradições comemorativas
em países como a França mostram como as comemorações de grandes eventos
históricos têm servido para concretizar formas políticas de identidade, tornando-se
símbolos de uma ampla memória nacional
13
. Nora
14
identifica essa passagem da
memória coletiva para a memória individual como o fim da memória vivenciada
pelas sociedades como afetiva e mágica, aberta à dialética do lembrar e esquecer,
vulnerável a apropriações, suscetível a longos repousos e periódicos
renascimentos, por uma memória englobada pela história, uma reconstrução
(sempre problemática e incompleta) de acontecimentos do passado, uma produção
intelectual que organiza o que foi vivido de forma analítica e crítica, ligada a
13
Historiadores como Philippe Ariès e Maurice Agulhon estudaram as práticas comemorativas do
final do século XVIII e início do século XIX, e identificaram a paixão pela comemoração como
estando vinculada à necessidade de a sociedade em reafirmar a ligação com o passado. Ariès
observou que o culto à personalidade floresceu nas comemorações dos grandes eventos históricos
como imagem memorial que define a concepção de Estado-Nação. Práticas comemorativas se
tornaram formas essenciais da moderna política de representação. Ao refletir sobre como as
imagens comemorativas podem ser usadas para dar concretude a formas políticas de identidade,
Agulhon mostrou como os símbolos republicanos da França deixaram de significar uma causa para
se tornarem mbolo de uma ampla memória nacional, como a figura de Marianne, representação
simbólica da virtude republicana e da permanência de seus valores de Liberté, Égalité, Fraternité.
Ele observou como uma imagem, uma vez inventada, tende a proliferar em uma multiplicidade de
configurações e, se identificada com uma causa poderosa, poderá, eventualmente, se tornar um
“tipo ideal”. HUTTON, P. H., History as an Art of Memory, p. 1-26.
14
Cf. NORA, P., Les Lieux de Mémoire, p.23-43.
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23
continuidades temporais, a progressões e a relações entre as coisas. Para ele, a
passagem da memória tradicional à memória “desenhada” pela história induz os
grupos sociais a buscarem uma definição de sua identidade pela revitalização de
sua própria história. O nascimento de “lugares de memória” se deve à necessidade
de se encontrar suportes onde ancorar e cristalizar acontecimentos vividos pelos
grupos sociais. A obsessão pelas comemorações, criadas e reverenciadas pelas
sociedades, revela a necessidade delas resgatarem o vínculo com o passado. Trata-
se de uma “memória dilacerada”, cuja fragmentação não chega a apagar o
sentimento de continuidade. Mas é uma continuidade residual, isto é, os “lugares
de memória são restos”.
No Reino Unido, estudos sobre as tradições comemorativas do período
moderno enfatizam sua natureza construída como consequência das mudanças e
inovações promovidas pelo período industrial. A economia industrializada, a
crescente urbanização das sociedades e sua organização em Estados nacionais
fizeram com que os costumes fossem aos poucos abandonados ou remodelados.
Para Hobsbawm
15
, isso teria levado essas sociedades a irem atrás de um novo
passado para se identificarem. Ele denomina de “tradições inventadas” as práticas
rituais ou simbólicas que inculcam valores e normas de comportamento através da
repetição, criadas para estabelecer uma continuidade artificial com o passado.
“Tradições inventadas” ou “lugares de memória” são categorias que tratam
da mesma questão: como a memória da coletividade se mantém englobando
experiências mnemônicas individuais. Halbwachs
16
, dando continuidade aos
estudos de Durkheim sobre a precedência do fato social e do sistema social sobre
os fenômenos de ordem psicológica e individual, considera impossível conceber a
evocação e a localização de lembranças se não as inserirmos nos quadros sociais
que servem de referência a essa reconstrução denominada memória. Para ele
contrariamente às teorias freudianas que acreditam que as memórias são
preservadas no inconsciente da psique do indivíduo -, cada memória individual é
um ponto de vista sobre a memória coletiva; ponto de vista que se altera conforme
o lugar ocupado por cada um na coletividade. Para Halbwachs é impossível
15
Cf. HOBSBAWM, E.; RANGER. T., A Invenção das Tradições, p. 25.
16
Cf. HALBWACHS, M., A Memória Coletiva, p. 53-54.
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24
evocar e localizar lembranças se não as inserirmos nos quadros sociais que servem
de referência à memória. Esta relação hierárquica entre memória coletiva e
memória individual faz com que as lembranças individuais sejam sempre
provisórias. Ou seja, podem ser preservadas com o suporte da confirmação do
grupo.
Coloca-se aqui uma questão: esta subordinação das memórias individuais à
memória coletiva só poderia ser pensada no plano do real, assim mesmo se
entendemos indivíduo e sociedade como categorias autônomas. No plano do
imaginário, como na literatura de Proust
17
, os efeitos de rememoração produzidos
em Swann ao degustar as madeleines ou ao vagar pelos recantos de Combray
revelam que não há subordinação da memória individual à memória coletiva. Suas
lembranças, em geral, articulam a dimensão privada à blica em um mesmo
plano e, em certos momentos, ocorre o contrário: as lembranças coletivas são
envolvidas pelas individuais. Esta observação é pertinente, particularmente, em
relação ao objeto desta pesquisa: a construção do feminino na ficção televisiva
brasileira. As imagens femininas presentes na teledramaturgia ligam a dimensão
individual e coletiva da memória dos espectadores. um repertório
compartilhado que promove uma coesão em relação às percepções sobre o
feminino. Porém, em assuntos tidos como tabus, as biografias e as características
morais e psicológicas do espectador singular vêem à tona, promovendo uma
sobreposição do indivíduo à coletividade e rompendo a coesão inicial.
Todorov
18
observa que no processo de rememoração, o que está em jogo
não é a oposição entre memória e esquecimento, mas sim uma interação entre
esquecimento e conservação. A memória seleciona o que será lembrado a partir de
critérios, conscientes ou não, que servirão para orientar o uso presente que se fará
do passado. Foucault
19
sugere uma “arqueologia da memória”. Ele estabelece a
distinção entre a história das ideias aquela que procura produzir uma
continuidade entre o passado e o presente e a história do discurso aquela que
revela descontinuidades históricas, isto é, como as imagens vão sendo
17
Cf. PROUST, M., No Caminho de Swann, passim.
18
Cf. TODOROV, T., Les Abus de la Mémoire, p. 14.
19
Cf. FOUCAULT, M., A Arqueologia do Saber, p. 3 passim.
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25
continuamente apropriadas e redesenhadas para comunicar pensamentos. O
passado estaria sendo sempre remodelado pelo discurso presente. Mais do que
separá-lo como memórias residuais, para Foucault cada época reconstrói o
passado com as imagens que se adaptam às necessidades presentes. E sua
reinterpretação será feita de acordo com os elementos que constituem as
identidades individuais e coletivas de um determinado tempo histórico.
Nesse sentido, a análise de Paul Ricoeur
20
será mais útil à abordagem que se
pretende desenvolver. Ao defender uma “memória esclarecida pela historiografia”
e a busca por uma “política da justa memória”, Ricoeur propõe adequar os relatos
de memórias individuais à “veracidade” histórica, produzindo, assim, uma
reflexão sobre a própria temporalidade (relação entre o presente da memória de
um acontecimento e o passado histórico desse acontecimento). Em outras
palavras, sugere uma articulação entre memórias individual e coletiva. Para
Ricoeur, a especificidade da memória (e também a sua fragilidade e os seus
abusos) se a partir da sua dupla dimensão do privado e do público. A memória
“privada” pertence a um indivíduo e, portanto, é intransferível e parte integrante
das experiências vividas pelo sujeito. Ela atesta a continuidade temporal desse
indivíduo, a sua biografia. Por meio de um processo de rememoração, estabelece a
continuidade entre presente, passado recente e passado remoto. É esta memória
que estaria em jogo nos processos psicanalíticos e na literatura „proustiana‟, em
que as reminiscências surgem de experiências percebidas como absolutamente
singulares. Na memória “pública”, as lembranças individuais se fortificariam
graças às narrativas coletivas, como nas comemorações, quando um
reconhecimento da coletividade sobre o acontecimento vivido e um consenso de
que ele deve ser reverenciado e compartilhado por todos. Segundo Ricoeur, a
mediação entre memória individual e memória coletiva passaria pelo viés de uma
identidade narrativa inscrita no tempo e na ação. E aqui podemos pensar na
narrativa televisiva exercendo exatamente este papel de mediadora das dimensões
privada e pública da memória.
20
Cf. RICOEUR, P., A Memória, a História, o Esquecimento, p. 105 passim.
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26
Um exame das análises sobre televisão permite afirmar que, em geral, elas
se desenvolvem em três vertentes, não necessariamente opostas: a crítica aos
efeitos da indústria cultural; a percepção do consumo cultural como uma relação
dialógica entre produção e recepção; e a televisão como emblema das relações
espaço-temporais e da sociabilidade do mundo contemporâneo. Essas três
abordagens estarão, permanentemente, dialogando ao tratar da construção de uma
memória (ou memórias) do feminino na televisão, em particular na ficção
seriada. Assim, torna-se fundamental fazer referência aos argumentos de cada
uma.
Os efeitos da indústria cultural foram amplamente estudados pela Escola de
Frankfurt e, ainda que a maior parte das análises se refira ao contexto da
Alemanha nazista e ao do pós-guerra, serviu de referência a reflexões posteriores
sobre o tema, especialmente sobre a televisão. Adorno e Horkheimer
21
, pensando
sobre o cinema, o jazz, a fotografia e o dio, veem o totalitarismo político e a
massificação cultural como duas faces da mesma moeda. Para eles, a “arte”
produzida pela indústria cultural é uma arte mercantilizada que banaliza a vida
cotidiana, e o prazer artístico proporcionado por ela leva à passividade e ao
adestramento. O cinema, a fotografia, o jazz e o rádio seriam, portanto, os meios
encontrados pelo capitalismo para entreter e divertir as massas, uma forma de
controle social para garantir a reprodução capitalista, ao passo que a verdadeira
arte exigiria concentração e contemplação como forma de apreender seu
verdadeiro sentido e deixar aflorar no espectador os sentidos da crítica e da
resistência. Segundo Adorno e Horkheimer, a indústria cultural, através do
esquematismo, da repetição imposta pela reprodução técnica, da ênfase à
superfície em detrimento do conteúdo, da onipresença dos clichês e dos
estereótipos, da padronização dos gostos, da consagração do estilo, da
mercantilização da criação, do incentivo à distração, ao prazer e à diversão, do
desestímulo à reflexão e à crítica cumpre a função de dar suporte à reprodução da
21
Cf. ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M., A Indústria Cultural: O Iluminismo como
Mistificação das Massas, p. 169 passim.
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27
racionalidade capitalista, eliminando, assim, as possibilidades da “verdadeira
arte”.
22
Kracauer
23
se aproxima de Adorno e Horkheimer ao analisar a fotografia e
observar que ela não preserva a transparência do objeto mas, ao contrário,
captura-o como um continuum espacial. Em oposição à linguagem capturada pela
memória, que manteria o real significado de seu conteúdo, a fotografia não
capta a “verdade” do original, mas sim a configuração espacial de um certo
momento, uma espécie de “resumo” do conteúdo original. Ao capturar fragmentos
e produzir uma semelhança entre a imagem e o objeto, apaga os contornos da sua
história. A aparência (produzida pela fotografia) elimina a transparência
(produzida pela obra de arte), ou seja: “a ideia-imagem cancela a ideia”
24
. Sua
análise sobre o sucesso dos best sellers segue na mesma direção: representam
formas de proteção da classe burguesa contra a decadência da cultura e da
educação. Kracauer, a partir das análises de Max Weber sobre o capitalismo que
leva ao “desencantamento do mundo, à ausência de ilusão”, conclui que novelas
como as de Stefan Zweig, por exemplo, têm forte efeito sobre os leitores porque
“mantêm o idealismo a qualquer preço”. Para o autor, as novelas de Zweig m
ressonância nas classes médias e, especialmente nas massas empobrecidas, porque
exigem
não a distância, pela qual se paga caro, mas o coração, que é gratuito. O sentimento
é tudo quando todo o resto falta. Ele humaniza a tragédia sem extingui-la e
obscurece a crítica, que poderia se tornar perigosa para a conservação de conteúdos
envelhecidos
25
.
Aplica o mesmo raciocínio ao analisar os cineteatros de Berlim, no final da
década de 1920, por incitarem a distração dos berlinenses. Para Kracauer, os
grandes aparatos desses cineteatros têm como único fim “manter o público
amarrado ao que é periférico para que não se precipite no vazio. Nestes
espetáculos a excitação dos sentidos se sucede sem interrupção, de modo que não
22
Para os autores, a verdadeira arte estaria na tragédia cuja substância se situava na oposição
indivíduo/sociedade. A cultura de massa, ao estimular uma “falsa identidade entre a sociedade e o
sujeito”, neutralizaria o trágico, liquidaria o indivíduo e dissolveria a arte. Ibid., p. 169 passim.
23
Cf. KRACAUER, S., Fotografia, p. 63-80.
24
Ibid., p. 75.
25
KRACAUER, S., Sobre Livros de Sucesso e seu Público, p. 113.
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28
lhe haja espaço para a mínima reflexão”.
26
As luzes dos refletores e os
acompanhamentos musicais cumpririam a função de manter o espectador na
superfície, na “pura exterioridade”, criando, assim, as condições para a distração.
Benjamin
27
entra nessa discussão levantando a possibilidade de a indústria
cultural pôr em jogo uma nova percepção em que o valor de culto da obra
artística é substituído pelo seu valor de exposição. Esta transformação ocorreria
em função de uma exigência do público de maior proximidade em relação ao
objeto artístico e a um acolhimento da possibilidade de sua reprodução. Isso
conduziria ao declínio da “aura” da obra de arte, aqueles elementos temporais e
espaciais que lhe dão uma existência singular. Ao se aproximar da obra de arte e
tirar o seu caráter único por meio da reprodutibilidade, “as massas” fazem com
que a obra sofra uma espécie de emancipação da sua “existência parasitária que
lhe era imposta pelo seu papel ritualístico”. Há, para Benjamim, uma mudança na
recepção, na fruição da obra artística, um novo sensorium, onde um sentido
para o que é idêntico e um espaço para a experiência e a sensibilidade. E o público
não separa a crítica da fruição.
Ao analisar o cinema, Benjamim observa que mais do que em qualquer
outra arte as reações do indivíduo são condicionadas, desde o início, pelo caráter
coletivo dessa reação. O espectador busca na película a distração através da
“percepção tátil” provocada pelas sequências de imagens absorvidas em seu fluxo.
E essas percepções individuais somadas se tornam coletivas. Abre-se a
possibilidade da diversão e da distração na fruição artística. Cria-se uma nova
atitude em relação à obra de arte, um novo modo de participação dos indivíduos
diante da arte.
E aqui é possível aproximar Benjamim do pensamento de Simmel
28
, quando
este se refere à cultura como cultivo. Ou seja, a cultura indo além das suas
habilidades naturais, desenvolvendo mais do que aquilo que lhe é inerente. A ideia
de cultura como cultivo implicaria a noção de aperfeiçoamento do indivíduo ou
26
KRACAUER, S., Culto da Distração, p. 346.
27
Cf. BENJAMIN, W., A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica, p. 165-196.
28
Cf. SIMMEL, G., Subjective Culture, p. 227-234.
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29
de um grupo de indivíduos, o que aconteceria quando as dimensões objetiva e
subjetiva aparecessem articuladas. Simmel observa que tanto a expansão da
subjetividade quanto a da objetividade podem produzir cultura, mas não
necessariamente como cultivo. De certa forma, ele resgata o lugar do estilo, da
padronização, demolindo o conceito de cultura como erudição. As salas de
cinema, os clubes de jazz ou a televisão, reproduzindo uma cultura padronizada,
podem vir a contribuir para a cultura como cultivo, ao passo que a obra de arte
singular, que proponha a exacerbação da subjetividade, não obrigatoriamente
estará cumprindo esta função.
Se essa discussão travada no pós-guerra por Adorno, Horkheimer, Kracauer
e Benjamim, entre outros, teve a fotografia, o best seller, o jazz, o cinema e o
rádio como emblemas da indústria cultural, atualmente parcelas significativas da
intelectualidade transpõem essas análises para a televisão. Estudiosos têm acusado
a televisão de, ao difundir uma cultura do tipo homogênea, destruir as
características culturais de cada grupo; estimular uma reação acrítica e de
passividade ao propor conteúdos que, condensados, fragmentados e nivelados,
não provocam nenhum esforço por parte do fruidor “...não provoca espanto nem
interesse, não resulta misteriosa nem particularmente transparente.”
29
Através da
repetição da imagem e da velocidade impostas pela edição, impedir a retenção de
conteúdos; criar produtos que obedecem à lei da oferta e da procura e que são
voltados exclusivamente ao entretenimento e ao lazer e, assim, explorar apenas
a „sensibilidade superficial‟. Provocar também emoções intensas em vez de
sugeri-las e, por fim, incentivar o conformismo e o conservadorismo dos
costumes, dos valores culturais, dos princípios religiosos, das tendências políticas.
Em contraposição a essa visão, outra chave interpretativa tem se feito
presente nas análises sobre a televisão: vê-la por uma perspectiva dialógica. A
partir da noção bakhtiniana de que qualquer discurso possui uma natureza
relacional, ou seja, qualquer enunciado possui „outros enunciados‟, e existe em
relação ao contexto de „outros enunciados‟, pensa-se uma produção cultural como
um permanente diálogo entre uma multiplicidade de vozes que compõem o
29
SARLO, B., O Sonho Acordado, p. 53.
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30
próprio texto cultural. Ao analisar a obra de Dostoiévski, Bakhtin
30
identifica o
romance polifônico como aquele em que uma orquestra de vozes e consciências
diferenciadas estão em constante interação. Não se trataria de defender ou refutar
o poder dominador do discurso de um dos personagens (ou do autor), mas de
catalisar a troca dialógica entre personagens que se comunicam sem perder a sua
individualidade. Talvez aqui pudéssemos novamente trazer Simmel para
aproximá-lo de Bakhtin na medida em que a interação criada pelo romance
polifônico, articulando vozes diferenciadas, cria as condições para produzir
também uma articulação entre a voz objetiva do autor e as vozes subjetivas dos
personagens. Nesse sentido, o romance polifônico seria também um exemplo de
realização da cultura como cultivo.
Essa intertextualidade identificada por Bakhtin existe não apenas com
discursos prévios, mas também com quem os recebe. Associando-se às
preocupações da teoria contemporânea da recepção de Iser, em que o ficcional de
um texto é reconhecido através de convenções compartilhadas pelo autor e o
público, numa espécie de “contrato” que faz do texto não um discurso, mas um
“discurso encenado”
31
, Bakhtin pensa no discurso artístico como uma
interlocução, uma relação entre o texto e o leitor, de quem se busca uma
compreensão receptiva e de quem o texto depende para sua concretização.
Ao transpor essa análise para o consumo cultural, Chartier
32
propõe romper
com a concepção de uma separação radical entre criação e consumo, produção em
oposição à recepção, que leva a outras oposições do tipo criatividade x
passividade, consciência x alienação, liberdade x dependência. Ao contrário da
visão de que o público que consome um produto cultural, nesse caso os
enunciados televisivos, é moldado por ele sem resistência, de forma passiva, o que
se busca com a abordagem dialógica é pensar essa relação como a produção de
um texto. O texto é produto de uma leitura (ou melhor, leituras), é uma construção
do seu leitor, só adquire sentido através da diversidade de interpretações que
constroem as suas significações. A do autor é uma delas, mas não a única, nem
30
Cf. BAKHTIN, M., Problemas da Poética de Dostoiévski, p. 3 passim.
31
Cf. ISER, W., O Fictício e o Imaginário, p. 7 passim.
32
Cf. CHARTIER, R., A História Cultural: Entre Práticas e Representações, p. 59.
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31
aquela que encerra a “verdade” da obra. Assim como a leitura, o consumo também
modifica o seu objeto. Consumir uma mensagem televisiva, portanto, significa se
apropriar dela, interpretá-la, construir um significado.
Essa visão dialógica marcou fortemente as análises de pesquisadores dos
chamados Estudos Culturais, que emergiram na Escola de Birmingham, Grã-
Bretanha, nos anos 1970, e que tiveram como foco de seus trabalhos as culturas
jovens e operárias, os conteúdos e a recepção da dia. Nesse sentido, foi
precursor o trabalho do estudioso de literatura Richard Hoggart sobre culturas
populares. Seus estudos revelaram as fragilidades das análises que tendiam a
superestimar a influência da indústria cultural sobre as classes populares”. Ao
analisar os receptores, era possível perceber que estes têm a capacidade de
“resistir” às suas mensagens. Hoggart influenciou fortemente outros estudiosos
britânicos como Raymond Williams e Edward P. Thompson, que buscaram
compreender, com uma inspiração marxista, a construção da história a partir das
lutas sociais e da interação entre cultura e economia (e não a primeira sendo um
mero reflexo da segunda), em que é central a noção de resistência à ordem
dominante capitalista. A eles se juntou o jamaicano Stuart Hall, professor de
literatura, que elegeu como objetos de estudo temas até então considerados
indignos pelos meios acadêmicos, como jazz, cinema, fotografia, movimento
punk e televisão. Hall
33
, ao estudar as mídias audiovisuais, desenvolve um quadro
teórico que sublinha que o funcionamento de uma mídia não se limita a uma
transmissão mecânica (emissão/recepção), mas pressupõe uma formatação do
33
Stuart Hall, usa o conceito gramsciniano de hegemonia e afirma: “As indústrias culturais têm de
fato o poder de retrabalhar e remodelar constantemente aquilo que representam; e, pela repetição e
seleção, impor e implantar tais definições de nós mesmos de forma a ajustá-las mais facilmente às
descrições da cultura dominante ou preferencial... Essas definições não têm o poder de encampar
nossas mentes; elas não atuam sobre nós como se fôssemos uma tela em branco. Contudo,
invadem e retrabalham as contradições internas dos sentimentos e percepções das classes
dominadas; elas, sim, encontram ou abrem um espaço de reconhecimento naqueles que a elas
respondem”. E conclui: “Creio que uma luta contínua e necessariamente irregular e desigual,
por parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar constantemente a cultura
popular; para cercá-la e confinar suas definições e formas dentro de uma gama mais abrangente de
formas dominantes. pontos de resistência e também momentos de superação. Esta é a dialética
da luta cultural. Na atualidade, essa luta é contínua e ocorre nas linhas complexas de resistência e
da aceitação, da recusa e da capitulação, que transformam o campo da cultura em uma espécie de
campo de batalha permanente, onde não se obtêm vitórias definitivas, mas onde sempre
posições estratégicas a serem conquistadas ou perdidas”. HALL, S., Da Diáspora: Identidades e
Mediações Culturais, p. 238-239.
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32
material discursivo (discurso, imagens, relato) em que pesam a tecnologia, a
produção e os modelos cognitivos. De um lado,
as gramáticas midiáticas presidindo a produção da mensagem e, de outro, as
referências culturais dos receptores.... A noção de decodificação convida a levar a
sério o fato de que os receptores têm estatutos sociais, culturas, e que ver ou ouvir
um mesmo programa não implica tirar dele um sentido ou uma recordação
similares.
34
Na América Latina, a influência dos teóricos da cultura de tradição europeia
(nem sempre da britânica) nas pesquisas sobre a mídia, particularmente sobre a
televisão, se fez presente nas contribuições de Jesús Martín-Barbero
35
, estudioso
da comunicação e da cultura latino-americana, com sua teoria sobre as mediações,
e do antropólogo argentino Nestor Garcia Canclini
36
, com a noção de “hibridação
cultural”.
Barbero, em seu clássico Dos Meios às Mediações, observa que os novos
modos de percepção, o novo “sensorium” defendido por Benjamin, que produz
uma “dessublimação” da obra de arte, leva à aceitação de que uma pluralidade
de experiências estéticas, uma multiplicidade de fazer e usar a arte. Barbero,
utilizando também o conceito de hegemonia de Gramsci, identifica o valor do
34
MATTELART, A.; NEVEU, É., Introdução aos Estudos Culturais, p. 68.
35
Jesús-Martin Barbero, nascido na Espanha e radicado na Colômbia desde 1963, é considerado
hoje um dos mais importantes teóricos da comunicação e da cultura na América Latina. Sua
análise sobre os fenômenos comunicacionais e culturais caracteriza-se, fundamentalmente, pela
transdisciplinaridade em um diálogo permanente com autores clássicos dos domínios da filosofia,
antropologia, comunicação, estética, semiótica, epistemologia. Sua principal contribuição é no
sentido de superar as visões que dissolvem a dinâmica da comunicação na generalidade da
reprodução social ou dissociam as tecnologias de informação da vida dos receptores. Ao
identificar a sociedade contemporânea como uma sociedade da comunicação, Barbero observa que
os processos comunicacionais, enquanto operadores de sentido, e o mercado, enquanto operador de
valor, são os responsáveis (com suas contradições) pelos vínculos sociais entre os sujeitos. Sua
proposta decorre daí: por meio das mediações lógicas de produção e lógicas de recepção,
matrizes culturais e formatos industriais é possível compreender como se dão os processos de
comunicação. Seu estudo enfoca, especialmente, as sociedades latino-americanas e o papel da
televisão nessas culturas, buscando verificar o que de singular e o que produz identidade entre
elas.
36
O antropólogo argentino Néstor-Garcia Canclini é um estudioso das relações que configuram o
mundo contemporâneo, em especial a realidade social complexa da América Latina. Ao constatar
uma “modernização tardia” no continente latino-americano, Canclini percebe a coexistência entre
as tradições culturais e a modernidade. Observa ainda que os projetos de modernização, ainda em
curso, são questionados pelas “filosofias pós-modernas”. Ao se debruçar no contexto latino-
americano, Canclini utiliza uma abordagem interdisciplinar com disciplinas que se ocupam em
estudar a cultura antropologia, sociologia, história, literatura, filosofia, história da arte etc. para
compreender como se desenvolve o diálogo entre “cultura erudita”, “cultura popular” e “culturas
de massas” (esta apoiada pelos avanços tecnológicos) no contexto latino-americano.
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“popular” não em sua autenticidade ou beleza, mas sim na sua “representatividade
sociocultural”, na sua capacidade de materializar e de expressar “o modo de viver
e pensar das classes subalternas, as formas como sobrevivem e as estratégias
através das quais filtram, reorganizam o que vem da cultura hegemônica, e
integram e fundem com o que vem de sua memória histórica”.
37
O autor identifica duas etapas no processo de implantação dos meios de
comunicação na América Latina: a primeira, do final dos anos 1930 até o final dos
anos 1950, em que os meios massivos tiveram o papel de representar, a partir do
populismo, os porta-vozes dos sentimentos nacionais da população. Cinema e
rádio proporcionaram a comunidades de algumas regiões a primeira vivência
cotidiana da Nação. A segunda, a partir dos anos 1960 e que tem na televisão o
principal veículo, é associada à ideia de desenvolvimento e da consolidação de um
mercado consumidor interno. A televisão torna mais abrangente a indústria
cultural nesses países, ao reforçar a percepção do nacional e mesmo extrapolar as
fronteiras nacionais. A sedução tecnológica, o estímulo ao consumo, o desejo por
estilos de vida urbanos são alguns dos ingredientes que dominam a proposta
cultural do novo meio. Ao unificar as nações e dar hegemonia aos discursos que
preconizavam a modernidade, a televisão trouxe para o mundo contemporâneo
segmentos da população que até então não usufruíam dos bens culturais
considerados modernos. É nesse sentido que Barbero, embora identifique a
tendência à homogeneização cultural em detrimento das “entonações regionais”,
considera a televisão um espaço onde as mensagens são apropriadas, negociadas e
reinterpretadas de acordo com as matrizes culturais populares. Propõe, assim,
analisar a televisão a partir das mediações, ou seja, “dos lugares dos quais provêm
as construções que delimitam e configuram a materialidade social e a
expressividade cultural da televisão”.
38
Barbero elege três mediações para efetuar sua análise: a cotidianidade
familiar, a temporalidade social e a competência cultural. A cotidianidade
familiar lhe permite perceber as formas de leitura e codificação das mensagens
37
MARTÍN-BARBERO, J., Dos Meios às Mediações: Comunicação, Culturas e Hegemonia,
p.105.
38
Ibid., p. 292.
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34
televisivas. As situações de reconhecimento, a simulação e a retórica do contato
direto, a sensação do imediato, da simulação do diálogo coloquial (familiar), em
que a preeminência do verbal sobre o visual vá ao encontro de culturas fortemente
orais, fazem com que a família seja um lugar social privilegiado para se pensar a
televisão. A temporalidade social da televisão, diferente do tempo produtivo que
transcorre e é medido, é um tempo repetitivo, composto por fragmentos. A
televisão organiza o seu tempo através do cruzamento de gêneros e tempos, ou
de acordo com a forma de rentabilidade e do palimpsesto, nos termos do autor.
Enquanto gênero, pertence a um conjunto de textos que são replicados em
diferentes horários e dias da semana; enquanto tempo, cada texto remete a uma
sequência horária daquilo que o antecede e que o sucede. A articulação entre o
tempo social e o tempo organizado pela televisão constitui outra mediação a ser
analisada.
A competência cultural é a terceira mediação considerada por Barbero.
Segundo ele, a televisão é um meio privilegiado para a convivência de dois
mecanismos opostos: aqueles que desativam as diferenças sociais e culturais e
produzem uma integração ideológica; e aqueles que reforçam as matrizes
culturais, as diferenças sociais. A televisão promove a junção de uma “cultura
gramaticalizada”, aquela que remete a compreensão e a fruição de uma obra às
regras de sua produção, com uma “ cultura textualizada”, ou seja, aquela em que o
sentido e a fruição de um texto remetem sempre a outro texto, como ocorreria no
folclore, na cultura popular, na cultura de massa. Dessa forma, a dinâmica cultural
da televisão atuaria por meio de seus gêneros, ativando a competência cultural dos
espectadores e dando conta das diferenças sociais.
A essas três mediações, Barbero agrega um quarto eixo de análise: as
lógicas de produção e dos usos. Lógicas da produção são os aspectos relativos à
competitividade industrial (tecnologia, investimentos, diversificação-
especialização profissional etc.), os processos de decisão (quem, quando e com
que critérios se decide o que deve ser produzido), as ideologias profissionais, a
criatividade, o desejo de inovação (que se relacionam, com tensão ou não, com as
exigências do sistema produtivo, com as regras do gênero, com as demandas
sociais) e as estratégias de comercialização (definidas desde a concepção do
produto e que deixam suas marcas no formato). Como lógicas de uso, o autor
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35
compreende a recepção dos programas televisivos a partir do conceito de que os
produtos culturais são resultados de conflitos, mestiçagens, negociações culturais.
Busca entender como a hegemonia cultural se impõe e as resistências que ela
enfrenta, os modos de apropriação e as respostas dos diversos grupos sociais (para
ele, especialmente, das camadas populares). Verifica que os habitus de classe
atravessam os usos da televisão, os “modos de ver”, possíveis de serem detectados
através da observação etnográfica. Barbero utiliza essas mediações para mostrar
como um meio de massa, no caso a televisão, passa a cumprir o papel de
mediadora entre as classes e as culturas com gostos e estilos de vida
diferenciados.
As reflexões de Néstor Garcia Canclini sobre as hibridações culturais, isto é,
como estruturas e práticas culturais que existiam de forma separada passam a se
combinar e acabam por gerar novas estruturas, objetos e práticas, foram essenciais
para as pesquisas sobre televisão na América Latina. Seus estudos sobre os
processos de hibridação cultural (ou mestiçagem, ou sincretismo, como ele
próprio às vezes chama) levaram a relativizar a noção de identidade não por
questionar a existência de identidades “puras” ou “autênticas”, como também por
colocar em evidência o risco de delimitar identidades autocontidas ou que se
firmam pela oposição à sociedade nacional ou à globalização. Propõe, assim,
deslocar o objeto de estudo da identidade para a heterogeneidade e a hibridação
interculturais:
não basta dizer que são identidades caracterizadas por essências autocontidas e
a-históricas, nem entendê-las como as formas em que as comunidades se imaginam
e constroem relatos sobre sua origem e desenvolvimento. Em um mundo tão
fluidamente interconectado, as sedimentações identitárias organizadas em
conjuntos históricos mais ou menos estáveis (etnias, nações, classes) se
reestruturam em meio a conjuntos interétnicos, transclassistas e transnacionais. As
diversas formas pelas quais os membros de cada grupo se apropriam dos
repertórios heterogêneos de bens e mensagens disponíveis nos circuitos
transnacionais geram novos modos de segmentação....
39
Segundo Canclini, assim como a oposição entre tradicional e moderno não é
suficiente para se compreender as sociedades contemporâneas, as noções de
erudito, popular e massivo não explicam as realidades culturais. É preciso
eliminar essa concepção em três camadas do mundo da cultura e explorar suas
39
CANCLINI, N.G., Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade, p. 23.
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hibridações. Não é que a circulação mais fluida e complexa dos bens culturais
tenha diluído as diferenças sociais. O que ele enfatiza é que a reorganização dos
cenários culturais e os cruzamentos constantes das identidades seja pelos
movimentos transnacionais (produzidos pelas mais diversas formas de difusão das
culturas), seja pela desterritorialização (a perda natural da cultura com os
territórios geográficos e, ao mesmo tempo, certas relocalizações territoriais
relativas, parciais, das velhas e novas produções simbólicas) , exigem investigar
de outro modo as ordens que sistematizam as relações materiais e simbólicas entre
os grupos sociais. Os cruzamentos constantes entre o “culto” e o “popular”
acabam, segundo ele, por tornar obsoleta a oposição entre ambas e relativizam,
portanto, a oposição política entre hegemônicos e subalternos. As operações
interculturais dos meios massivos e as novas tecnologias, a reapropriação que os
mais diferentes receptores fazem deles tornam sem sentido as teses da
manipulação de grupos produtores. Enfim, as hibridações culturais levam a
concluir que
hoje todas as culturas são de fronteira. Todas as artes se desenvolvem na relação
com outras artes: o artesanato migra do campo para a cidade; os filmes, os vídeos e
canções que narram acontecimentos de um povo são intercambiados com outros.
Assim as culturas perdem a relação exclusiva com seu território, mas ganham em
comunicação e conhecimento.
40
Pensar na realidade criada pela televisão como emblema das relações
espaço-temporais contemporâneas é o que propõe a terceira vertente de análise. A
construção da realidade televisiva, segundo Gumbrecht
41
, se baseia na
convergência de três instâncias: o acontecimento transmitido “ao vivo” (mesmo
que estejamos falando da impressão de ser ao vivo), as exigências técnicas do
meio e a privacidade do telespectador. São elas que, juntas, criam a ideia de que o
telespectador participa do que acontece na tela, de um „espectador-cúmplice‟ que
vivencia os acontecimentos em toda a sua extensão. Acontecimentos que, ao se
tornarem visíveis para o telespectador, definem uma realidade. Ou seja: aquilo que
define o real é o visível; e o que é visível é o “verdadeiro”. Ele exemplifica esta
realidade televisiva lembrando que os representantes das nações, ao se
40
Ibid., p. 348.
41
Cf. GUMBRECHT, H. U., Modernização dos Sentidos, p. 261- 292.
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encontrarem, apertam as mãos cordialmente tantas vezes quanto forem necessárias
para que o gesto seja bem apreendido pelas câmeras de televisão e, assim, adquira
autenticidade. Esta realidade televisiva dissolveria a esfera espaço-tempo.
Gumbrecht, baseando-se na análise de Koselleck, ressalta que o
pensamento moderno caracterizou-se pela assimetria entre o espaço da
experiência e o horizonte da expectativa. A diferença entre experiência e
expectativa foi aumentando progressivamente até possibilitar o surgimento da
noção de um “tempo novo”, distanciado das experiências vividas. O passado
deixou de possuir um caráter exemplar, capaz de modelar acontecimentos futuros,
e inaugurou-se, então, a percepção de um “futuro inédito”, o futuro como desafio,
que se acreditava poder ser formado e preparado pelas ações do presente. Isto teria
implicado a ideia de curso histórico enquanto uma linha do tempo. A aceleração
dos ritmos temporais da experiência característicos da modernidade levou à noção
de um tempo histórico com prazos cada vez mais breves, ou seja, de tempo como
transição. Passado, presente e futuro começaram a se entrelaçar de maneira
qualitativamente nova: o tempo histórico sendo percebido na sua singularidade.
A partir do final do culo XX, surge o que Gumbrecht denomina de
“período pós-moderno”, um tempo que rompe com a noção de sequência de
épocas (ordenadas teleologicamente, por exemplo) para mostrar-se como uma
diversidade proliferadora de tempos. No tempo social contemporâneo, o presente
se torna cada vez mais amplo. Como o futuro ficou pouco atraente, o homem
reluta em cruzar o limiar entre o presente e o futuro. Perdeu-se a ambição de
abandonar ou superar o passado; perdeu-se a obsessão pela inovação, legado da
noção de “tempo histórico”. Esse presente contínuo, ampliado, é o ponto de
convergência entre um passado que o homem reluta em abandonar e um futuro no
qual resiste em ingressar. Nesta „destemporalização‟, em que o tempo não aparece
mais como agente de mudança e o futuro não se apresenta mais como horizonte
aberto a ser moldado pelo presente, um enfraquecimento do papel do sujeito.
Ainda que ele continue observando o mundo e produzindo representações, sua
experiência não aponta mais para uma intervenção na realidade. A espacialidade
também se altera por uma espécie de „desreferencialização‟, a “desassociação
entre a posição do corpo do experimentador/agente e as zonas acessíveis à sua
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experiência/ação”.
42
Para mudar de uma zona a outra, não é necessário nenhum
movimento do corpo e, portanto, não exige nenhum tempo.
A televisão pode ser pensada como um emblema desta nova relação espaço-
temporal inaugurada pela contemporaneidade. A televisão especialmente após o
surgimento do controle remoto que permite a rápida mudança de canais e,
consequentemente, de espaços e tempos produz uma espécie de
„desterritorialização‟, uma transformação das formas de se perceber o próximo e o
longínquo, tornando mais próximo aquilo que é vivido “à distância” do que aquilo
que cruza o espaço físico cotidiano. E, paradoxalmente, essa nova espacialidade
não retira o indivíduo de seu mundo, mas emerge da experiência privada que é
convertida pela televisão em um território virtual. A percepção do tempo por ela
instaurada está marcada pelas experiências de simultaneidade, instantaneidade e
do fluxo ininterrupto de imagens e sons. Ao confundir os tempos e comprimi-los
na simultaneidade do tempo atual, a televisão produz um culto ao presente em
que os espectadores têm a impressão de que tudo que se vê é um gerúndio
interminável. Ela concebe um presente contínuo, ampliado, em que o passado é
descontextualizado, aparecendo como presente. Este presente contínuo também
remete a uma ausência de futuro, a uma sequência de experiências que não se
cristalizam em duração e não criam um horizonte de futuro. O fluxo da televisão,
o continuum de imagens efêmeras que produz, acaba por atenuar as fronteiras dos
gêneros televisivos, fazendo com que se interpenetrem cada vez mais.
43
A mediação introduzida pelo fluxo televisivo refere-se ainda a novas
sociabilidades, aos novos “modos de estar juntos” do mundo contemporâneo. A
narrativa produzida pela televisão (e isso se potencializa com a internet) se
converte em poderoso agente de uma “cultura mundo”, que expressa novas
sensibilidades e identidades: uma cultura, ou melhor, culturas sem memória
territorial, fragmentadas e transitórias. O mundo virtual por ela criado produz um
espaço público que conecta indivíduos separados por barreiras geográficas e
sociais, tornando-se palco de sociabilidades impossíveis no “mundo real”. A
42
Ibid., p. 261-292.
43
Cf. MARTÍN-BARBERO, J.; REY,G., Os Exercícios do Ver: Hegemonia Audiovisual e Ficção
Televisiva, p. 29-37.
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televisão capta, expressa e constantemente atualiza representações de uma
comunidade imaginária, fornecendo um repertório comum a pessoas de
gerações, sexo, regiões e posições sociais diferentes
44
. Com base no conceito de
laço social desenvolvido por Durkheim, Wolton
45
observa que o espectador, ao
ver um programa de televisão, agrega-se a esse público potencialmente imenso e
anônimo que a assiste simultaneamente. Esse “laço invisível” não se manifesta
apenas no ato de assistir, mas também no fato de a sociedade se reconhecer
enquanto público que compartilha os mesmos conteúdos. E, ao fazê-lo, ela oferece
à sociedade formas de representação de si mesma. A televisão estabelece,
portanto, uma convivência social marcada por um certo acordo, neutralizando as
dimensões objetivas da vida, ou seja, sociais riqueza, posição social, cultura
etc., e também a dimensão subjetiva, estritamente individual caráter, reações
psíquicas, crenças etc. Produz-se, assim, uma „sensação de igualdade‟ de forma a
garantir o prazer e a satisfação coletivas.
46
Esta sociabilidade criada pela televisão é reforçada pelo tipo de narrativa
que predomina: os programas propõem uma “conversa” entre os membros desta
comunidade imaginária em que o que está em jogo é a sua manutenção a ideia
do bate-papo característico de alguns discursos televisivos. A substância da
“conversa”, às vezes, é menos importante do que manter a interação. Isso se dá na
ficção seriada as telenovelas, por exemplo que criam uma intimidade com o
espectador ao conectar os domínios público e privado, sintetizando problemáticas
amplas em tramas pontuais e, ao mesmo tempo, sugerindo que dramas individuais
possam vir a ter um significado coletivo. Ocorre também nos telejornais, que
produzem uma espécie de “desmontagem” dos discursos a respeito dos
44
Adota-se a ideia de que a televisão constrói uma “comunidade imaginária”, segundo LOPES,
M.I.V. de, Para uma Revisão das Identidades Coletivas em Tempo de Globalização e
HAMBURGER, E., O Brasil Antenado: A Sociedade da Novela. As autoras baseiam-se nos
estudos de Benedict Anderson sobre o surgimento dos Estados Nacionais na Europa do século
XIX e sua associação à consolidação de um sentimento de pertencimento a uma “comunidade
imaginária” promovida pelo surgimento da imprensa e das nguas nacionais. Essa comunidade é
intrinsicamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana; seus membros, mesmo não conhecendo os
demais, percebem a existência de uma unidade da qual todos participam. E ainda que os limites
não existam empiricamente, seus indivíduos são capazes de criar e imaginar as fronteiras, assim
como seus membros.
45
Cf. WOLTON, D., Elogio do Grande Público: Uma Teoria Crítica da Televisão, p. 122-136.
46
Cf. SIMMEL, G., Sociability, p. 127-140.
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40
acontecimentos, construindo uma polifonia de vozes o apresentador chama o
repórter, que por sua vez chama o entrevistado, com uma voz se encaixando na
outra que dialogam com o espectador. E até mesmo nos reality shows que
oferecem ao telespectador uma “realidade cotidiana”, virtual, na qual ele pode
interferir e mudar o rumo dos acontecimentos, funcionando como uma espécie de
compensação à realidade do espectador perdida ou não identificada por ele
diante de tantas realidades vividas simultaneamente no mundo contemporâneo
47
.
Todos esses gêneros televisivos geram no indivíduo a sensação de que ele está
unido por um laço invisível à sociedade.
A televisão pode ser entendida como legítima representante da indústria
cultural, pondo em cena um novo sensorium que leva à promoção do prazer e à
diversão na fruição de seus conteúdos. Pode também ser pensada como meio
difusor de uma narrativa que põe em diálogo uma multiplicidade de vozes - tanto
de produtores quanto de receptores que modelam os seus conteúdos. Sua
fragmentação, simultaneidade e virtualidade levam a uma mudança nas relações
espaço-temporais tradicionais, provocando uma “desterritorialização” e uma
“destemporalização” do espectador. E, embora provoque essa alteração espaço-
temporal, é um agente formador de uma “comunidade imaginária” que promove a
sociabilidade entre indivíduos que estão desconectados tanto do ponto de vista
objetivo quanto subjetivo. Por tudo que foi identificado até agora, a televisão pode
ser pensada como palco para a construção de representações, em particular de
representações femininas, que moldam “memórias coletivas e individuais” (ou
públicas e privadas, nos termos de Ricoeur) sobre o papel da mulher na sociedade
brasileira. Estas representações, que se cristalizam em “lembranças passadas” e
“lembranças presentes”, profundamente marcadas pelas características do veículo,
são muito evidentes na ficção seriada da televisão brasileira.
47
Cf. GUMBRECHT, H. U., Perda do Cotidiano. O que é “Real” no Nosso Presente?, passim.
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3. A Produção Acadêmica sobre a Ficção Seriada na
Televisão
3.1. No Brasil
Os estudos sobre ficção seriada no Brasil caminharam em três direções, e
em algumas produções encontram-se duas ou mesmo as três abordagens
combinadas: análises sobre a história e a produção dessas ficções, estudos de
recepção usando a metodologia etnográfica herdada da Antropologia e análises
das narrativas que modelam os gêneros dramatúrgicos veiculados na televisão. A
despeito da opção adotada, esses estudos, em geral, se direcionam para dois eixos
teóricos: a teoria crítica da indústria cultural, desenvolvida por pensadores da
Escola de Frankfurt, em particular Adorno e Horkheimer; e os Estudos Culturais,
que assumem a premissa de que há um diálogo entre emissor e receptor na
transmissão das mensagens televisivas.
Estudos sobre a história e a produção televisiva como os de Ortiz, Borelli e
Ramos
48
têm como enfoque principal o desenvolvimento da teledramaturgia
brasileira. Eles partem da evolução histórica da telenovela, desde os primeiros
folhetins franceses importados e publicados nos rodapés dos jornais, passando
pelas radionovelas, os teleteatros, as primeiras novelas melodramáticas, até as
telenovelas realistas que marcam o período que se inaugura no final da década de
60 com Beto Rockfeller, exibida na TV Tupi dos Diários Associados, e que se
firmam na TV Globo a partir de Véu de Noiva. Ao traçar essa trajetória, os autores
buscam entender como se deu o “abrasileiramento” de uma estrutura dramática
que, produzida em escala industrial, tornou-se um dos ícones da modernização da
sociedade brasileira. A análise sobre a lógica e os processos de produção dessas
ficções faz com que os autores percebam que, apesar de serem narrativas
marcadas por fortes determinações empresariais e econômicas, subsiste uma
contradição entre cultura e mercadoria, entre padronização e diferença, o
que leva a narrativa a ser estirada por fios que puxam em sentidos opostos, um
48
Cf. ORTIZ, R.; BORELLI, S. H. S.; RAMOS, J. M. O., Telenovela: História e Produção, p. 11
passim.
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42
que procura a uniformidade e a racionalização, outro que desliza para a
diferenciação e a criatividade”.
49
Nesse processo de aclimatação do gênero aos trópicos, percebe-se a
tentativa dos dramaturgos da chamada “fase realista da teledramaturgia” (em
contraposição aos típicos melodramas característicos do final dos anos 1950 e
início dos 1960) em defender a concepção de que a ficção televisiva, mesmo
assentada na noção de divertimento e de sua capacidade de magnetizar amplas
faixas de consumidores, não é um gênero “alienador”. Janete Clair, por exemplo,
assumia buscar um ponto médio entre o mero entretenimento e a problematização
de questões psicológicas e existenciais. Dias Gomes e Lauro César Muniz,
herdeiros de uma visão nacional-popular preconizada pelo Partido Comunista
Brasileiro, vão buscar em suas histórias conciliar um gênero popular voltado para
a diversão com a possibilidade de conscientização ao conectar os conteúdos das
novelas com questões sociais e políticas. Acreditavam mesmo que o caráter
catártico da novela possibilitava criar no espectador um espaço para reflexão.
Em O Carnaval das Imagens: A Ficção na TV, outro estudo pioneiro e
emblemático sobre a história, produção e construção da narrativa da ficção
televisiva brasileira, Michèle e Armand Mattelart procuram mostrar como se deu a
apropriação do gênero dramatúrgico na televisão. Os autores, partindo das soap
operas americanas sustentadas pela indústria de produtos de higiene e limpeza,
exibidas primeiramente no rádio e, em seguida, na televisão, fazem uma
verdadeira arqueologia da telenovela brasileira. Identificam três fases desse
processo: uma primeira, marcada inicialmente pela importação ou adaptações
sumárias de grandes romances populares da literatura mundial (obras de
Alexandre Dumas, Victor Hugo, Charles Dickens, entre outros) transpostos
para outros meios da indústria cultural, como o cinema e o rádio. Em seguida,
inicia-se um período de predomínio de adaptação de roteiros importados da
Argentina, México e Cuba, com forte traço melodramático, muitos deles
apresentados como novelas radiofônicas. Esse período culmina com a exibição na
TV Tupi de O Direito de Nascer, que reedita na televisão o sucesso que a novela
tivera no rádio. Na TV Globo, esse estilo se consolida com as novelas da autora
49
Ibid., p. 122.
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43
cubana Glória Magadan, ambientadas no México, Espanha, Marrocos ou Rússia,
trazendo os cenários dos castelos e tavernas, personagens seguindo os estereótipos
do herói e vilão melodramáticos, e temas que punham em jogo a luta entre o Bem
e o Mal, romances arrebatadores, identidades trocadas, sociedades secretas e
assassinatos misteriosos. O terceiro período é marcado pela penetração do
realismo na estrutura dramática da novela inaugurado com Beto Rockfeller que,
segundo os autores, trata-se do “primeiro arquétipo real da novela brasileira
moderna”, para se consolidar, em seguida, na ficção seriada exibida na TV Globo
a partir de 1969. As frases feitas e grandiloquentes são substituídas por uma
linguagem mais coloquial; o herói não é mais o portador do Bem nem o executor
da vingança, mas um sujeito inseguro, cheio de erros e dúvidas, buscando, através
da astúcia, ascender na escala social. O aumento de cenas externas, decorrência do
avanço tecnológico que já permite a gravação com câmeras portáteis e o uso
intensivo do videoteipe, e um ritmo de edição mais rápido e fragmentado,
espelham uma sociedade urbana, moderna, dirigida por homens que vivem
mundos e tempos diversos. A vida das classes médias urbanas, especialmente as
do Rio de Janeiro e São Paulo, invadiu as telenovelas.
Embora seja possível identificar uma historicidade e traçar parentescos entre
outros gêneros e a teledramaturgia brasileira, essa penetração da realidade social
no jeito de contar histórias na televisão, produziu uma ruptura nas convenções
estéticas e de consumo características das produções de ficção até então
existentes. Segundo os autores, a dramaturgia da televisão brasileira, em especial
a telenovela, se configura como um
misto de memória narrativa tradicional e de modernidade (...). Elas podem surgir
como o tempo da paixão, o tempo dos sentimentos, o tempo da libido familiar,
contrastando com o tempo elíptico, fragmentado, e ao mesmo tempo instintivo e
abstrato, que explode, por exemplo, no videoclipe, na era da pós-modernidade.
Com efeito, a originalidade da novela é combinar uma maneira de narrar
fragmentada no plano da forma televisiva com uma estrutura narrativa de longa
duração. A rítmica do fragmento corresponde à nossa imersão visual no mundo
tecnológico moderno e satisfaz às modalidades contemporâneas da percepção
estética. Haveria, então, combinação de uma estética do ritmo e da velocidade com
uma estética da paixão.
50
50
MATTELART, A.; MATTELART, M., O Carnaval das Imagens: A Ficção na TV, p. 81-82.
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44
Hamburger
51
também identifica três etapas na história da ficção seriada
brasileira e enfatiza a lógica da produção. O primeiro período, que se inicia com
os teleteatros, substituídos rapidamente pela importação e adaptação de textos de
autores latino-americanos, especialmente cubanos, é considerado pela autora
como “fase fantasia”, profundamente melodramática e pré-industrial. Segue-se o
período pós-68, mais precisamente de 1970 a 1989, quando a expansão e a
consolidação da indústria da televisão no Brasil e a incorporação de elementos
realistas e contemporâneos, com ênfase em temas de cunho nacional-popular na
estrutura melodramática do folhetim televisivo. Ao utilizar diálogos coloquiais,
tratar de temas próximos aos universos dos espectadores, mostrar personagens
usando figurinos e comportamentos contemporâneos, a ficção seriada, em
particular a telenovela, passou a ser uma vitrine privilegiada do “ser moderno”.
Esse período, segundo a autora, construiu uma relação de cumplicidade entre o
espectador e a teledramaturgia, criando a noção de que compartilham de um
mesmo repertório de valores, visões de mundo, padrões culturais e estéticos. A
década de 1990 inaugura o período (ainda em curso) de diversificação da estrutura
e da programação televisiva. Apesar de continuar captando e expressando
repertórios compartilhados de valores e comportamentos, a maior competição
entre as emissoras de televisão, a entrada de públicos com menor poder aquisitivo
no mercado e o surgimento de canais fechados (a cabo ou por assinatura) estariam
alterando o cenário da indústria televisiva e, consequentemente, o consumo de
ficções seriadas.
Estudos de recepção realizados por antropólogos e estudiosos da
comunicação têm acrescentado novos elementos à discussão. Ondina Fachel
Leal
52
, em trabalho pioneiro denominado A Leitura Social da Novela das Oito,
sobre a recepção da novela Sol de Verão (1982-83) por dois grupos de famílias
uma chamada de classe dominante (no singular) e outra de classes populares -,
situadas em Porto Alegre, relativiza o poder atribuído à televisão na transmissão
de mensagens. Ainda que reconheça contribuições da teoria crítica ao perceber
com clareza a vinculação entre a produção de bens culturais e um dado modo de
51
Cf. HAMBURGER, E., O Brasil Antenado: A Sociedade da Novela, p. 28-38.
52
Cf. LEAL, O. F., A Leitura Social da Novela das Oito, p. 17 passim.
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produção econômica, Leal observa que diversas reelaborações possíveis de um
mesmo bem cultural produzido massivamente, e suas formas de consumo e
decodificação são baseadas em especificidades familiares, socioculturais,
experiências cotidianas e biográficas. A autora opõe-se às teses defendidas por
adeptos da teoria crítica da Escola de Frankfurt, que consideram que a indústria
cultural, em particular a TV, possui um papel homogeneizador ao impor
mensagens hegemônicas e suprimir a diversidade de valores e visões de mundo de
cada grupo social. Chama a atenção para o fato de o universo de classes populares
reconhecer a novela e a televisão como representantes de uma fala moderna, culta
e dominante, própria das classes médias urbanas. Assisti-las significa participar
desse domínio e se reveste de características ritualísticas que mobilizam todo o
espaço doméstico. Em contrapartida, destaca a pesquisadora, no grupo de classe
dominante a novela é tida e desdenhada como popular, identificada como não
fazendo parte do repertório erudito.
Prado
53
analisa como mulheres da pequena cidade de Cunha, na região
denominada Alto do Vale do Paraíba, no Estado de São Paulo, lidam com as
representações femininas mostradas nas novelas de televisão, especialmente
Roque Santeiro e Selva de Pedra (2ª versão), exibidas em 1985 e em 1986. A
pesquisadora compartilha das propostas dialógicas dos Estudos Culturais, que
consideram existir na emissão de qualquer produto cultural um espectador do
outro lado do vídeo com poder de reinterpretação das mensagens de acordo com
seus referenciais sociais e culturais. Enfatiza a preexistência desse diálogo entre
televisão e público na sociedade; a televisão busca junto à sociedade os seus
valores básicos dominantes para retransmiti-los; e, mesmo assim, as diferenças de
ethos e visões de mundo no interior da sociedade provocam discussão sobre esses
valores. Para Prado, os conteúdos veiculados são processados, filtrados,
reelaborados, reapropriados e reinterpretados pelo espectador. E acrescenta:
Uma coisa é o que a televisão traz, outra coisa é o que os telespectadores fazem do
que ela traz. Uma coisa são os aspectos mais externos, mais superficiais que, como
certos modismos, são absorvidos sem maiores ônus sociais; que vêm e vão como a
própria moda. É o caso de expressões usadas nas novelas, por exemplo... É o caso
também de determinadas modas...São elementos adotados e abandonados como
53
Cf. PRADO, R. M., Mulher de Novela e Mulher de Verdade: Estudo sobre Cidade Pequena,
Mulher e Telenovela, p. 107 passim.
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qualquer modismo. Mas outra coisa são os aspectos mais internos, mais profundos,
referentes a valores e moral, como as atitudes e comportamentos das personagens
televisivas. Estes, se forem de encontro aos valores do grupo social alcançado pela
televisão, não podem ser adotados sem maiores ônus; ao contrário, implicarão em
sanções variadas.
54
A autora exemplifica com os padrões de comportamento predominantes nas
mulheres de Cunha. Embora tendam a orientar suas visões do feminino para um
controle da sexualidade, para o mundo doméstico no qual as mulheres devem ser
recatadas e protegidas por pais, maridos e irmãos, para que não rompam com
esses padrões e sejam acusadas de reputação, as alusões às personagens de
novela revelam o desejo de ruptura, ou a tentativa de ruptura, ou mesmo a ruptura
com os padrões tradicionais. Vê-se, assim, que as avaliações das mulheres de
Cunha sobre as mulheres de novela estão baseadas na oposição
controle/liberdade, dependência/independência, moderno/arcaico. Prado lembra
ainda que a novela pode ser encarada através de seus componentes míticos e
rituais. Enquanto mito, fornece um quadro de referências que possibilita às
pessoas confrontarem suas próprias referências e reagirem de acordo com seus
valores construindo uma leitura própria. Enquanto ritual, o “ver a novela”
constitui um momento especial e “sagrado” em que o
fluir das atividades corriqueiras é suspenso e as atenções são voltadas para o vídeo,
as pessoas tomam os seus respectivos lugares conforme a hierarquia doméstica, e
a conversa é permitida nos intervalos, para a consideração sobre os
acontecimentos da trama e os personagens... Como mito, serve de espelho para as
relações sociais vividas no cotidiano; e como ritual, põe em relevo certos
elementos da vida social.
55
Lopes, Borelli e Resende, em Vivendo com a Telenovela: Mediações,
Recepção, Teleficcionalidade, analisam a recepção da telenovela em quatro
famílias de São Paulo, pertencentes a camadas sociais diferentes, com origens,
padrões de consumo, biografias, valores e visões de mundo diferenciados.
Inspiradas nas reflexões dos Estudos Culturais sobre “culturas populares”,
particularmente nos conceitos de “mediação” de Jesus Martín-Barbero e de
“hibridações”, de Néstor Garcia Canclini, as autoras constroem uma metodologia
para investigar a telenovela segundo quatro mediações que formam “a malha de
54
Ibid., p. 110.
55
Ibid., p.125-126.
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interações recíprocas entre produção, produto e recepção: cotidiano familiar,
subjetividade, gênero ficcional e videotécnica.”
56
Ao considerarem que o espaço da família é por excelência o cenário
imediato onde se o consumo da telenovela, a dinâmica familiar é de
importância crucial para compreender as diferentes formas de apropriação e de
construção de sentido sobre os conteúdos ficcionais. Portanto, o cotidiano familiar
é a primeira mediação a ser considerada. A mediação subjetividade, por sua vez,
permite captar os processos de construção de identidades e sensibilidades que
operam na interação indivíduo-televisão. Possibilita também tratar, de forma
individualizada, as histórias de vida de cada membro da família na sua interação
com a telenovela. O gênero ficcional é uma mediação que permite o estudo da
telenovela como uma narrativa de matriz popular, que produz e reconhece
sentidos, e cria um repertório compartilhado entre produção e recepção. Trata-se,
assim, de um modelo híbrido de narrativa que transcende as fronteiras do gênero.
A videotécnica concebe a telenovela como um produto televisivo submetido
a condições específicas de produção, organização e técnica. Esta mediação é
pensada a partir da imbricação de três campos: o processo industrial do texto
novelístico, os diversos modelos de texto audiovisual que enredam o mundo da
produção ao do receptor, e as operações de sentido presentes na telenovela e que
são ativadas pelas “leituras” dos receptores. Assim como o gênero ficcional, a
videotécnica participa diretamente do repertório compartilhado”.
As autoras, ao adotarem essa metodologia no estudo de recepção da
telenovela por quatro famílias, trabalham com algumas hipóteses teóricas que
acabam por se confirmar na pesquisa. A primeira é a que a telenovela é um gênero
que representa uma “modernização tardia”, porque nela estão postos em
funcionamento dispositivos tecnológicos de ponta com discursos e gêneros tanto
arcaicosquanto “modernos. residiria sua caracterização como um produto
cultural híbrido. A segunda é que a telenovela possui uma matriz popular (herança
do melodrama, das tradições culturais orais e do circo) que ativa na audiência uma
competência cultural e técnica em função de um repertório comum,
56
LOPES, M. I. V. de; BORELLI, S. H. S.; Resende, V. da R., Vivendo com a Telenovela:
Mediações, Recepção, Teleficcionalidade, p. 15 passim.
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compartilhado, de “representações identitárias”, seja sobre a realidade social, seja
sobre o indivíduo. O fato de os sujeitos partilharem experiências, públicas e
privadas, a partir de leituras da telenovela não significa um consenso de sentido,
mas sim a luta pela sua interpretação mais legítima. Outra questão indicada pelas
autoras é que, apesar de a televisão impor uma programação ao receptor, cada
família cria o seu “palimpsesto” de recepção, isto é, cada uma organiza o tempo
ocupado e a sequência horária daquilo que se assiste. Por último, ressaltam que as
lógicas da produção e dos usos da telenovela expressam-se em cada família
através de suas histórias particulares com os meios. Todos esses aspectos, juntos,
irão criar um “pacto de leitura” ou “ um pacto de recepção” entre o que é
produzido e o que é consumido, gerando, assim, uma leitura do gênero ficcional
pelo receptor:
Confirma-se o pressuposto teórico da existência de um contrato de leitura, ou
melhor, de um pacto de recepção que prevê que o leitor/espectador mergulhe no
fascínio das narrativas, das histórias, enredos, façanhas e personagens
reconhecendo esse ou aquele gênero ficcional, falando de suas especificidades,
construindo uma competência textual narrativa, mesmo quando ignora as regras de
produção, gramática e funcionamento dos territórios de ficcionalidade. Pode-se
assumir, neste contexto, o pressuposto da existência de um repertório
compartilhado.
57
Almeida
58
realiza uma etnografia riquíssima sobre a construção do nero
feminino e o consumo entre espectadores da novela O Rei do Gado em Montes
Claros, cidade do interior de Minas Gerais. A autora também parte das premissas
dos Estudos Culturais para efetuar sua pesquisa, considerando que as ficções
televisivas, associadas a mudanças na vida cotidiana e aos padrões de
relacionamentos amorosos e familiares, provocam um processo reflexivo nos
espectadores. Ao assistir a uma novela coletivamente e ao conversar sobre
televisão, espectadores das mais diversas camadas sociais reveem ou reforçam
seus pontos de vista, analisam suas vidas pessoais e biografias. Como, em geral,
essas ficções giram em torno de temas amorosos e familiares, são esses os campos
privilegiados em que o espectador estabelece diálogos, reflete sobre padrões e
comportamentos ligados às relações mulher-homem, pais-filhos e à sexualidade.
A autora destaca ainda que permitem ao espectador se familiarizar com uma
57
Ibid, p. 301.
58
Cf. ALMEIDA, H. B. de, Telenovela, Consumo e Gênero: “Muitas Mais Coisas”, p. 47 passim.
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multiplicidade de mundos sociais diferentes do seu universo particular, com
diversos estilos de vida e padrões de consumo. Assim, ela discute a recepção da
novela em termos de um processo reflexivo do eu, baseada nas concepções de
Giddens combinadas com a ideia de educação sentimental, nos termos de Geertz:
processo que ao mesmo tempo interpreta os fatos culturais e constrói nos
indivíduos uma sensibilidade social e cultural. Almeida explora a noção de que a
novela pode exercer nos espectadores uma ação semelhante àquela que Geertz
discute para a prática da briga de galos entre os balineses
59
.
A novela, enquanto texto cultural, é capaz de realizar uma pedagogia
sentimental ao provocar nos telespectadores um processo reflexivo a partir da
convivência com as narrativas. Ao entrar em contato com certas situações,
sentimentos e valores mostrados na ficção, eles refletem, discutem (e, em certos
casos, reconsideram) aspectos de suas vidas privadas, suas concepções e seus
valores pessoais e coletivos. Essa reflexão é feita, fundamentalmente, através das
relações afetivas e familiares tratadas pela dramaturgia. Contudo, Almeida
observa que,
diferentemente da briga de galos, a novela não é feita por quem assiste e não é um
ritual no qual é preciso atuar. Ela está inserida no ritmo cotidiano ao mesmo tempo
em que permite descansar e relaxar desse mesmo cotidiano, mas trata igualmente
de sentimentos, embora sejam aqueles associados à esfera feminina. Ademais, a
novela efetua comentários culturais acerca de uma sociedade em processo de
transformação, permitindo inclusive uma justaposição de concepções sociais nem
sempre coerentes e tampouco complementares, e agrega em um texto (ou em
vários) certa heterogeneidade de representações. De modo semelhante ao exemplo
balinês, a novela demonstra igualmente uma série de hierarquias sociais, ali
especialmente representadas pela posse de bens de consumo e bens simbólicos dos
personagens, nas formas de hierarquias sociais de classe, potencial de consumo,
gênero, raça, geração. Por fim, mostra inclusive como agir diante dessas
hierarquias e como manipulá-las numa sociedade de consumo. As novelas mostram
o que significam e como podem ser visíveis os sinais de prestígio e poder, como
59
“O que a briga de galos diz, ela o faz num vocabulário do sentimento a excitação do risco, o
desespero da derrota, o prazer do triunfo. Entretanto, o que ela diz não é apenas que o risco é
excitante, que a derrota é deprimente ou que o triunfo é gratificante, tautologias banais do afeto,
mas que é com essas emoções, assim exemplificadas, que a sociedade é construída e que os
indivíduos são reunidos. Assistir a brigas de galos e delas participar é para o balinês uma espécie
de educação sentimental. Lá, o que ele aprende, é qual é a aparência que tem o ethos da sua cultura
e sua sensibilidade privada (ou, pelo menos, certos aspectos dela) quando soletradas externamente
num texto coletivo; que os dois são tão parecidos que podem ser articulados no simbolismo de um
único desses textos; e a parte inquietante que o texto no qual se faz essa revelação consiste
num frango rasgando o outro em pedaços, inconscientemente.” GEERTZ, C., A Interpretação das
Culturas, p. 317.
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lutar por prestígio, como mantê-lo, em meio a uma rie de relações afetivas e
familiares.
60
Coutinho
61
analisa a novela Barriga de Aluguel, de Glória Perez, também
como um texto cultural, uma produção simbólica que articula representações,
categorias e classificações de determinados segmentos sociais e que, através do
trabalho antropológico, é possível ser interpretada. A pesquisadora, considerando
que a narrativa da ficção seriada é essencialmente polissêmica discurso
composto por vários discursos sobre a moral, costumes, sentimentos, ética, entre
outros , identifica no enredo da telenovela dois discursos antagônicos: o da
“família moderna”, que se guia por códigos individualistas na construção das
identidades e das relações familiares; e o da “família tradicional”, onde o código
hierárquico informa a moralidade e a visão de mundo dos seus membros.
A autora utiliza os argumentos de Velho
62
para observar que em
determinados universos morais, os códigos individualistas ou os hierárquicos
podem assumir relevância, mas não de forma absoluta. sempre a
“possibilidade de individualização” ou de “instâncias desindividualizadoras”.
Assim, ela analisa Barriga de Aluguel como um texto que põe em questão dois
modelos familiares que ora se impõem, ora se retraem: um arcaico, onde há
acentuada segregação de papéis conjugais e dos espaços femininos e masculinos,
uma cultura feminina voltada para o ambiente privado e doméstico, o controle
moral da mulher por parte dos homens, pais e maridos, e o convívio entre as
gerações marcado pela assimetria e pelas noções de respeito e autoridade. E outro,
individualista, “moderno”, onde o igualitarismo articula as relações no interior da
família e entre os seus integrantes, as noções de opção e escolha norteiam as
visões de mundo, e o exercício das subjetividades e a ênfase nas biografias
individuais são valorizados. Destaca ainda que cada um desses modelos
predomina nos universos sociais tratados na novela. O subúrbio é caracterizado
por famílias com um ethos fortemente marcado por uma divisão de trabalho em
seu interior em que cabe à mulher, como símbolo da moral doméstica,
60
ALMEIDA, H. B. de, Telenovela, Consumo e Gênero: “Muitas Mais Coisas”, p. 207-208.
61
Cf. COUTINHO, M. R., Telenovela e Texto Cultural: Análise Antropológica de um Gênero em
Construção, passim.
62
Cf. VELHO, G., Individualismo e Cultura: Notas para uma Antropologia da Sociedade
Contemporânea, p. 15-34.
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51
desempenhar as tarefas do lar e relacionadas aos cuidados com a família; ao
homem está reservado o papel de sustento da unidade familiar estando sua
identidade, portanto, associada ao domínio público e ao desempenho no trabalho.
Cabe a ele ainda zelar pela honra da família controlando a moralidade da mulher e
das filhas. O convívio entre os membros do núcleo familiar marido e mulher,
pais e filhos - é amparado pelas noções de respeito e obediência. A Zona Sul
carioca, por sua vez, é identificada por indivíduos cujas visões de mundo e estilos
de vida são guiados pelos princípios da igualdade entre gêneros e gerações,
autenticidade e singularidade nas opções e projetos de vida, ênfase na
subjetividade e na ideia de indivíduo sujeito moral, dotado de um self particular.
Silva
63
, em estudo sobre mito e ideologia racial nas novelas Corpo a Corpo
e Vale Tudo, ambas de autoria de Gilberto Braga e exibidas na TV Globo,
identifica na teleficção brasileira a possibilidade de ser pensada como uma
narrativa mítica que permite a atualização de determinadas regras sociais nos
universos dos espectadores
64
. Estes, ao se posicionarem diante das atitudes dos
personagens, estão definindo ou redefindo suas próprias atitudes em relação a
essas regras. Os comentários sobre os personagens se referem, em geral, às
relações de consanguinidade e afinidade.
Dois temas o amor e a família aparecem nas narrativas entrelaçados,
instaurando uma contradição entre as relações amorosas (individuais) e as
familiares. Esta contradição é o motor das duas novelas analisadas e perpassa
tanto o desenvolvimento da trama principal quanto das paralelas. A repetição
desse conflito entre fazer valer os valores individuais ou ser englobado pela
família, em quase todas as ficções dramatúrgicas na televisão, poderia fazer
pensar que em cada uma temos uma “versão do mesmo caso”. E que, embora essa
repetição possa levar ao desinteresse do público, o que acontece é o contrário.
Este fato faz com que Silva, apoiando-se em Lévi-Strauss e Edmund Leach,
levante a hipótese de que a novela pode ser considerada um relato mítico em que a
repetição tem a função de revelar sua estrutura. Como um mito, ela é uma
linguagem e seu significado não pode ser apreendido apenas no nível do conteúdo
63
Cf. SILVA, D. F. da, O Reverso do Espelho: O Lugar da Cor na Modernidade, p. 22 passim.
64
Cf. MAGGIE, Y., A Quem Devemos Servir? Impressões sobre a Novela das Oito, passim.
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52
manifesto na encenação. E, ainda que possua uma relação evidente com a
realidade, não pode ser pensada apenas como sua representação. A contradição
que perpassa as histórias ajuda a descrever uma série de possibilidades de relações
sociais no interior do universo simbólico no qual a ficção televisiva se inscreve. E,
a partir da análise de Leach sobre a constituição binária do mito em que para cada
par de oposição uma terceira categoria que faz a mediação e busca resolver de
forma lógica contradições reais, Silva conclui que a telenovela é um relato do
mito de origem da sociedade brasileira modernizada. Em todas as “versões” o que
está em jogo é a convivência entre valores “modernos” e “tradicionais”.
Essa tensão entre duas éticas uma igualitária-individualista e outra
hierárquica-holista, nos termos de Dumont também informa o recorte teórico
dado por Gomes
65
ao estudar a produção ficcional televisiva brasileira e compará-
la com as soap operas e seriados norte americanos. Ela parte das análises de
Roberto da Matta
66
sobre “a natureza sociológica do dilema brasileiro”, cuja
ambiguidade coloca a nossa sociedade diante de dois destinos diferentes e, até
mesmo, opostos: de um lado, a hierarquia social, o status, a gica relacional, e de
outro o individualismo, a lógica igualitária. Numa se valoriza a construção da
“pessoa”, isto é, seu pertencimento a uma rede de relações pessoais, privadas;
noutra o que se afirma é a perspectiva do “indivíduo” enquanto ser singular,
dotado de subjetividade própria, porém um “indivíduo-cidadão”, um igual nas
relações sociais públicas. A telenovela, assim como outras formas de
“congraçamento coletivo” da sociedade brasileira, tais como o carnaval e o
futebol, é um espelho ou um filtro através do qual olhamos para nós mesmos.
Gomes, analisando a novela Roque Santeiro, de Dias Gomes, identifica na
construção da narrativa da telenovela o predomínio da perspectiva relacional,
mesmo que às vezes em tom crítico ou irônico. Cada personagem é, segundo ela,
“parte” de um “todo”, ou seja, é o fato dela em primeiro lugar pertencer ou estar
relacionada a um determinado grupo ou a uma teia de relações, e encarnar o ethos
desse grupo, que lhe confere o status de personagem. O “personagem-indivíduo”
65
Cf. GOMES, L. G. F., Novela e Sociedade no Brasil, p. 4 passim.
66
Cf. MATTA, R. da, Carnavais, Malandros e Heróis: Para uma Sociologia do Dilema Brasileiro,
p. 119-138.
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53
é sempre empurrado para uma solução final: ou é transformado em “pessoa” e,
portanto, incluído na rede de relações pessoais, ou é “expulso da narrativa. A
prática do individualismo na sociedade brasileira, tal como espelhada na
telenovela, deve ser compreendida de forma negativa, algo desordenador, que fere
as regras da sociabilidade.
Ao analisar o herói dos seriados americanos, ela observa que sua “missão”
deve ser orientada para uma ação. Seja na esfera pública, seja na privada, ele deve
agir racionalmente e instrumentalmente para atingir os fins desejados ou, então,
criar os meios para ter controle sobre os eventos e não ficar à mercê deles. O
herói americano, diferente do herói em Roque Santeiro, não é necessariamente
um ser “predestinado”. Caso seja, terá que prová-lo e explicá-lo com ações. É a
sua eficiência em saber lidar com um certo conhecimento, um certo saber, que
determina a trajetória da maioria dos heróis desses seriados. Ele deve ser um
patrimônio comum da sociedade americana e deve se empenhar para colocar o seu
saber a serviço das regras sociais.
Outro aspecto constitutivo dos personagens dos seriados americanos é a
valorização dramatúrgica do trabalho, seja ele intelectual ou manual. A ideia de
vocação para um ofício e as carreiras profissionais são tão fundamentais que
aparecem não na construção dos personagens como também no próprio enredo
do seriado. Não é à toa que muitos giram em torno de universos de médicos,
advogados, empresários, policiais etc. A autora conclui que o que o telespectador
apreende é que para esta sociedade o trabalho e, portanto, a carreira profissional,
são essenciais não apenas para a compreensão de personagens e enredos mas,
sobretudo, são cruciais para a existência social de cada membro da sociedade.
Essa valorização da vida pública através do trabalho (e aqui a influência da
ética protestante analisada por Weber não pode ser ignorada) é precedida nesta
sociedade pelo individualismo, pelo cultivo de uma vida privada. Assim, todos
devem estar empenhados individualmente em formular algum tipo de projeto que
lhes seja próprio para adequá-lo à sua condição de cidadão. O vilão desses
seriados é apresentado como o indivíduo que, por não ter conseguido formular o
seu projeto, ter aberto mão de sua autonomia e liberdade de escolha, acaba por
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comprometer sua condição de cidadão e coloca em risco a autonomia, a liberdade
e os direitos dos outros.
na telenovela brasileira, Gomes observa que as ações se referem muito
mais ao exercício do poder do que “ao agir no mundo na busca por maior
autonomia dos indivíduos e cidadãos. Ela especula sobre a pouca valorização do
trabalho (seja intelectual, seja braçal) na teledramaturgia brasileira. Ao contrário
dos seriados americanos onde o trabalho (e o processo educativo de aquisição de
conhecimento) é marca da independência ou conquista, na ficção brasileira é
associado ao infortúnio e à pobreza, sinal de dependência e inferioridade social.
Isto representaria, para a pesquisadora, uma ausência de “vida pública” para os
personagens. Estes, situados “fora da cena da vida social brasileira”, estariam
confinados à instituição familiar, às relações de caráter privado, aos sistemas de
lealdade e alianças que se formam a partir dos grupos domésticos. O trabalho e a
escola só adquirem importância quando transformados em extensões da vida
doméstica.
A comparação entre as ficções seriadas brasileira e anglo-americana é
fundamental para compreendermos as construções de gênero que estão em jogo
nas produções analisadas nesse trabalho. Isso porque não só expressam ethos
diferenciados que levam a modelar de modo também diferenciado as narrativas
sobre o feminino, como os estudos sobre televisão nos Estados Unidos e na
Inglaterra tiveram na construção do gênero feminino um dos seus principais
enfoques.
67
3.2. Nos Países Anglo-Americanos
Como vimos anteriormente, os estudos no Brasil deram maior ênfase à
história, produção, recepção e análise da narrativa. Estas reflexões, em geral,
tendem a ver a teledramaturgia como expressão de uma “matriz popular”,
representante de uma “cultura popular” brasileira e/ou de uma “cultura de massas”
67
Optei por analisar a produção ficcional das televisões norte-americana e inglesa porque os
estudos acadêmicos realizados são muito focados na construção do gênero feminino,
especialmente nas análises sobre os seriados (material que serve de documentação para esse
trabalho). Não abordarei a ficção seriada televisiva em outros países da América Latina, embora
reconheça que eles possuem forte e tradicional produção acadêmica sobre o assunto. O desafio
ficará para trabalhos futuros.
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55
(modelada pelos avanços tecnológicos). Isso tanto para pesquisadores que
seguiram a tradição da Escola de Frankfurt, que a consideram um gênero
“menor”, produzido em um ritmo industrial que padroniza gostos e homogeniza
experiências; quanto para os Estudos Culturais, que adotam uma perspectiva
dialógica na qual o que está em jogo nas narrativas ficcionais é um vocabulário
simbólico, construído não pelos que a criam, mas também pelos
telespectadores. Independentemente dos possíveis questionamentos sobre o
conceito de cultura popular (e seu contrário, cultura erudita), assim como
sobre o conceito de cultura de massas, a maioria das análises (tanto as que
depreciam o nero quanto as que o valorizam), conclui que a dramaturgia da
televisão é uma narrativa que expressa representações e articulações de
determinados grupos sociais associados às camadas menos letradas e
intelectualizadas. E, com exceção dos trabalhos de Leal (1986), Prado (1987),
Coutinho (1993), Almeida (2003) e Hamburger (2005), as pesquisas sobre a
teledramaturgia brasileira focaram muito pouco nas questões associadas à
construção de gênero, em particular do feminino.
nos países anglo-americanos, boa parte dos trabalhos sobre a ficção na
televisão embora tenham tido influência das pesquisas sobre culturas populares
iniciadas pela Escola de Birmingham acabaram por extrapolar as discussões
acerca da polarização entre “cultura de massa” e “cultura erudita”, e deram ênfase
ao discurso produzido por essas narrativas na construção do gênero feminino. Ao
fazerem-no, abriram espaço para pensar essas narrativas como formadoras de
cartografias dos sentimentos e do prazer.
As análises pioneiras sobre televisão nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha
tiveram forte influência da crítica feminista. Ao estudarem as soap operas
americanas e inglesas, vespertinas, de baixo custo, pesquisadoras feministas como
Tania Modleski chamaram a atenção para o fato de essas ficções constituírem um
locus privilegiado para a proliferação do estereótipo da dona de casa preocupada
com questões pessoais ou familiares, subordinada ao trabalho doméstico e aos
interesses patriarcais. Modleski
68
, ao comparar as produções cinematográficas
com as televisivas, argumenta que a narrativa, a edição, a mise-en-scène e a
68
Cf. MODLESKI, T., Loving with a Vegeance: Mass-Produced Fantasies for Women, passim.
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56
audiência da última estão em consonância com o trabalho doméstico. Ela se
baseia nas análises de Laura Mulvey
69
sobre o cinema hollywoodiano, para quem
o espectador do cinema, controlado pela economia do olhar e envolvido com os
conceitos psicanalíticos de voyeurismo e fetichismo, é construído como
masculino. O privilégio dado ao olhar do personagem central masculino faz com
que os eventos sejam compreendidos através do seu ponto de vista (e aqui a
oposição à narrativa televisiva, baseada no diálogo, na conversa, na fala,
essencialmente feminina, deve ser destacada).
a televisão, ainda que incorpore a forma narrativa tradicional do realismo
clássico de Hollywood, é essencialmente segmentada. Ou seja, a audiência
aproveita muito mais livremente a história do que o faz com outras formas de
mídia como o cinema ou a literatura. Segundo Modleski, os ritmos da televisão e
das atividades domésticas são estruturados em torno de padrões de distração e
interrupção. O caráter episódico e multilinear da estrutura narrativa das soaps é
fabricado com o foco nas donas de casa, tornando-a essencialmente feminina.
Porém, uma narrativa feminina que está, em última instância, a serviço do
patriarcado porque reforça as imagens de “mãe ideal” e de “guia moral e
espiritual”, fornecendo a essa audiência acesso aos motivos e desejos das
personagens enquanto, ao mesmo tempo, a encoraja a reprimir e sublimar os seus
próprios desejos. O argumento da autora é que essas formas seriadas investem na
condição central da vida da mulher que é esperar: esperar o telefone tocar, o bebê
acordar ou a família se reunir. Ela salienta que, diferentemente do que se afirma,
as soap operas não apresentam famílias ideais, harmônicas, capazes de resolver
todos os conflitos. As histórias, com sua variedade de dilemas insolúveis, dão a
entender que a telespectadora feminina não está sozinha em sua dificuldade em
manter a unidade familiar. O que é exigido, segundo Modleski, é a tolerância da
“boa mãe” capaz de ver que não há resposta certa e errada, e que é compreensiva e
simpática “tanto com o pecador quanto com a vítima”.
As soaps convencem as mulheres de que seu maior objetivo é ver suas
famílias unidas e felizes, enquanto as consola pela incapacidade de realizar esse
ideal e trazer mais harmonia ao lar. Esse objetivo é impossível de ser alcançado
69
Cf. MULVEY, L., Visual Pleasure and Narrative Cinema, passim.
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57
porque elas não oferecem um reflexo da família do telespectador, e sim uma
“extensão” para sua família, tornando-se uma espécie de consolo para a
experiência real da dona de casa, uma saída para suas frustrações e contradições
implícitas em seus papéis sociais. E aqui cabe destacar o prazer que as
telespectadoras têm em desprezar as vilãs das histórias que usam a gravidez e o
casamento para atingir seus objetivos. Para Modleski, a recusa da vilã em apreciar
e concordar com as necessidades dos outros personagens contrasta com o papel da
heroína (e também da telespectadora) e fornece um “escape para a raiva
feminina”. A frustração das telespectadoras é direcionada contra o único
personagem que se recusa a aceitar sua falta de poder, que procura para si tudo,
sem nenhum constrangimento: a vilã.
70
Ang
71
analisa a série americana Dallas tendo como suporte teórico os
conceitos difundidos pelos Estudos Culturais. Por entender um programa de
televisão como um texto, ou seja, um sistema de representações que consiste em
uma combinação de signos visuais e audíveis que adquirem significado (ou
significados) somente através da leitura, Ang se baseia em cartas de
telespectadores holandeses para identificar as características textuais de Dallas
que organizam suas experiências e quais os significados ideológicos, sociais e
culturais envolvidos nelas. Observa, ao se perguntar sobre a popularidade da série
entre esses telespectadores, que as pessoas a veem fundamentalmente porque
“sentem prazer”. Não exatamente um prazer como resultado automático de
alguma “satisfação de necessidade”, mas principalmente como efeito da produção
de um “artefato cultural”. Que Dallas oferece entretenimento é inquestionável
para a autora. Ela se pergunta sobre o que faz da série um entretenimento favorito
e quais os valores que o constroem.
O prazer de assistir a uma série está diretamente associado ao produzido
pela televisão em geral. Para a maioria dos espectadores, significa distrair-se,
relaxar, descansar do trabalho. Entretenimento pertence ao domínio do lazer, “um
tempo para si mesmo” na vida diária das obrigações do mundo do escritório, da
escola ou dos afazeres da casa. É visto como algo positivo, um direito. Além
70
Cf. THORNHAM, S., Women, Feminism and Media, p. 59-64.
71
Cf. ANG, I., Watching Dallas: Soap Opera and Melodramatic Imagination, passim.
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58
disso, o estudo de Ang, baseado em depoimentos, indica que a grande atração que
o seriado exerce sobre as pessoas se deve especialmente ao fato de que a história
está conectada com as histórias individuais de vida, com a situação social em que
as pessoas se reconhecem (por estar ou por desejar estar), com as preferências
estéticas e culturais ali mostradas. Para a pesquisadora, assistir a uma série como
Dallas
é mais do que vê-la; é se envolver, deixar-se em suspenso, compartilhar os
sentimentos dos personagens, discutir suas motivações psicológicas e suas
condutas, decidir se estão certos ou errados, em outras palavras, viver seus
mundos.
72
O envolvimento e o prazer produzidos por Dallas nos telespectadores
podem ser vistos sob a ótica do realismo empirista em que a representação da
realidade deve coincidir com a vivida pelas pessoas comuns; ou ser
reconhecível, comparável com o seu próprio meio; ou apresentar um mundo
provável, coerente, normal‟. Será “irreal” se as pessoas consideram a
realidade social mostrada simplificada, exagerada ou refletindo clichês. Essa
concepção empirista do realismo apresenta problemas na medida em que se baseia
no pressuposto de que o “texto” pode ser uma reprodução direta, imediata ou
reflexo do “mundo exterior”, ignorando o fato de que tudo o que é processado no
texto é resultado de seleção e adaptação: elementos do mundo real funcionam
como matéria-prima para a produção do processo textual. Assim, nunca o texto
poderá ser um espelho do real; ele constrói uma versão. E é precisamente essa
“ilusão” criada a partir da realidade que modela o prazer de assistir a uma série
como Dallas. É exatamente por reconhecer a natureza ficcional do texto e poder
esquecê-la que o espectador se sente confortável para “deixar a narrativa fluir
sobre elesem nenhum esforço. Se a forma da narrativa produz o prazer, o que é
dito também. Se o texto de Dallas pode ser lido no nível denotativo, isto é, se os
conteúdos manifestos são vividos como realistas (ou não), ele também pode ser
lido em um nível conotativo como possivelmente “real”, reconhecível. O
espectador põe o nível denotativo “entre parênteses” selecionando os elementos
que lhes dão significados emocionais. O que é reconhecido como real não é o
conhecimento do mundo, mas a experiência subjetiva do mundo: “uma estrutura
de sentimento”.
72
Ibid., p. 28.
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59
Ang introduz o conceito de fantasia para valorizar essa “cartografia dos
sentimentos” fornecida pelas séries:
produzir e consumir fantasias permite brincar com a realidade, o que pode ser
sentido como “liberador” porque é ficcional, não real. No jogo da fantasia,
podemos adotar posições e testá-las, sem termos que nos preocupar com seu „valor
de realidade‟ (...). Sob o aspecto da fantasia, podemos ocupar essas posições sem
termos que experimentar suas consequências verdadeiras. Pode até ser, então, que
essas identificações sejam prazerosas, não porque imaginam ser a „utopia‟ presente,
mas porque criam a possibilidade de sermos pessimistas, sentimentais ou
desesperados com a impunidade sentimentos aos quais raramente nos permitimos
no campo de batalha dos verdadeiros conflitos sociais, políticos e pessoais, mas
que podem oferecer conforto se somos confrontados com as contradições em que
vivemos.
73
Fantasia, portanto, é uma dimensão da subjetividade que é fonte de prazer
porque coloca a „realidade‟ em suspenso e constrói soluções imaginárias para
contradições reais.
Ao analisar as personagens femininas em Dallas, a autora observa que elas
são produtos da ficção e que, enquanto tal, não constituem um pacote de imagens
para serem “lidas” referencialmente, mas um conjunto de “desafios textuais” para
envolver o telespectador na fantasia. O resultado é que personagens femininos
(Sue Ellen ou Christine Cagney) não podem ser contextualizados como imagens
„realistas‟ das mulheres; devem ser aproximadas como “construções textuais de
modelos de feminilidade possíveis: como versões incorporadas de subjetividade
de gênero dotadas de satisfação e insatisfação física e emocional, e modos
específicos de lidar com conflitos e dilemas”.
74
Elas funcionam, portanto, como
realizações simbólicas de posições femininas com as quais os espectadores podem
se identificar no contexto da fantasia. Em linha com a teoria psicanalítica, o prazer
da fantasia está em oferecer ao sujeito uma oportunidade de ter posições que não
seriam assumidas na vida real:
...através da fantasia, a mulher pode ir além das limitações estruturais da vida
cotidiana e explorar outras situações, identidades, vidas mais desejáveis. Não é
importante se esses cenários são „realistas‟ ou não: o apelo da fantasia está
precisamente em criar mundos imaginários que nos levem além do que é possível
ou aceitável no mundo „real‟
75
.
73
Ibid., p. 134.
74
Ibid., p 91-92.
75
ANG, I., Living Room Wars: Rethinking Media Audiences for Postmodern World, p. 93.
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60
Ao identificar o ato de fantasiar como uma prática privada à qual cada um
pode se dedicar a qualquer momento e cujo conteúdo é mantido no âmbito
individual, Ang ressalta que a ficção, por sua vez, pode ser pensada como
“fantasias públicas e coletivas”, elaborações textuais em forma narrativa que
oferecem “faz de contas” para o público. O prazer de consumir ficções seria
equivalente ao prazer de fantasiar: ocupar no nível imaginário posições que estão
fora do escopo de nossas identidades culturais e sociais na vida cotidiana.
Christine Geraghty
76
, pesquisadora britânica com fortes influências dos
Estudos Culturais da escola de Birminghan, analisa as soap operas britânicas,
consideradas por muitos estudiosos como mais realistas e naturalistas (em
oposição às americanas, vistas como mais melodramáticas), e observa que essas
produções que atravessam décadas sendo assistidas por gerações se mostram mais
entrelaçadas às questões sociais, particularmente às de classe e de região. As
histórias exibidas em Coronation Street estão, provavelmente, mais focadas nas
tensões e prazeres da comunidade retratada do que na elaboração de dramas no lar
familiar. Não é que a vida familiar não represente um elemento importante na teia
de relacionamentos em Coronation Street, mas no centro está a comunidade que
sustenta seus membros individuais, quer eles façam parte de uma família ou não.
Além de estar focada na comunidade, as storylines tendem a enfatizar o drama das
relações humanas em vez da exemplificação de questões sociais.
Na década de 1980, quando são lançadas as séries Brookside (1982) e
EastEnders (1985), assim como as questões individuais dos personagens, os temas
sociais são assumidos mais abertamente e passa-se a lidar com problemas
relativos à sociedade de um modo mais direto, dando à esfera pública um peso
semelhante à pessoal. Ao fazê-lo, esses programas se tornam atraentes não para
o tradicional público feminino “voltado para dramas pessoais”, mas também para
jovens e homens, em tese interessados por política e questões sociais. Brookside e
EastEnders não quebraram o modelo de Coronation Street de contar histórias
enraizadas em uma região e classe particulares. Ambos os programas usam a
classe como um meio de desenvolver personagens e ganhar audiências. A maioria
dos personagens é formada por trabalhadores e a audiência é convidada a entender
76
Cf. GERAGHTY, C., Women and Soap Operas: A Study of Prime Time Soaps, passim.
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61
as histórias a partir da perspectiva desse segmento social. Mas as questões
tradicionais de classe e comunidade são aliadas a temas como raça e sexualidade,
a problemas como Aids, assédio sexual e estupro. Realismo é um conceito-chave
para essas séries britânicas. Os produtores de Brookside e EastEnders chegaram a
receber pressões das agências políticas e sociais que desejavam que um ou outro
assunto fosse tratado nos programas. Porém, o argumento dos produtores é que se
buscava abordar esses assuntos naturalmente, em vez de adotar um tratamento
pesadamente didático ou documental.
Se em Coronation Street a comunidade está no centro da narrativa, dando
apoio a seus membros individuais, em Brookside e EastEnders a família está na
base das histórias. A perda da comunidade como uma força prática e um ideal de
sustentação levou os personagens dessas novas séries de volta aos
relacionamentos familiares em momentos-chaves da narrativa. Eles aspiram a uma
noção de unidade familiar e harmônica, mesmo que essa unidade seja raramente
conseguida e o apoio da família nem sempre encontrado. Momentos de felicidade
ou tristeza são marcados pela reunião da família, pelo retorno dos que haviam se
desviado e pela suspensão momentânea da rivalidade e da tensão. A noção de
família no centro dessas novas ficções implicou na presença de “desviantesque
se dividem em dois grupos: aqueles que poderiam fazer parte da família e
escolheram não fazê-lo; e aqueles que nunca poderão fazê-lo. E os gays e os
negros tornaram-se problemas para essas produções dos anos 1980 preocupadas
em serem ao mesmo tempo realistas, representativas e “positivas”. Uma audiência
composta essencialmente por famílias brancas de classe trabalhadora teve
dificuldade em aceitar tais personagens centrais mostrados nas ficções seriadas.
Só a partir dos anos 1990 a incorporação de questões sociais e personagens
considerados “desviantes” se tornam mais explícitos.
77
77
No “mundo pós-realista” de Chances, soap opera australiana dos anos 1990, a ordem moral
baseada nos valores familiares e o consenso da comunidade tradicional que caracterizavam as
ficções anteriores são quebrados. Em contraste com o realismo cuja ordem e racionalidade
marcaram tais produções, esta nova narrativa articula uma “não ordem” e uma contingência. Não é
que se tenha abandonado o realismo, mas agora se trata de um realismo ambíguo e ambivalente: de
um lado não depende mais da representação de uma ordem social e moral naturalizada; de outro,
permanece ligado ao projeto realista de representar o “mundo real”, embora não se esteja mais
certo de qual mundo se está falando. Isto é, as séries “pós-realistas” são reconhecidas por não
terem um ponto de vista privilegiado de onde o “mundo real” pode ser representado. Chances foi
construída como uma soap adulta, ou como alguns chamam, uma porno soap”, pois nega o elo
convencional entre soap opera e audiência feminina. A atividade sexual nunca ocorreu entre um
casal e raramente entre pessoas com uma relação estabelecida. Às vezes toma a forma de casos
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62
O foco dessas ficções britânicas na comunidade familiar, com sua
pluralidade de personagens, inclusive desviantes, não significa dizer que as
novelas britânicas também não tenham como público-alvo central a consumidora
feminina. Charlotte Brunsdon
78
, ao estudar a série britânica Crosswords, observa
que se trata de uma produção pensada fundamentalmente para a mulher e a
questão central da história é a vida pessoal das personagens na sua realização
cotidiana por meio de relacionamentos pessoais. É na esfera do doméstico, do
pessoal, do privado, que a competência feminina é valorizada. Os destaques
nessas ficções são as habilidades femininas construídas através da cultura como
sensibilidade, percepção, intuição e as preocupações com a vida pessoal. Os
relacionamentos heterossexuais afetivos são também enfatizados, porém apoiados
por redes sociais femininas entre amigas, mãe e filha etc.. E, ao oferecerem uma
compreensão do ponto de vista feminino, essas narrativas criam a sensação de
“estar entre as mulheres”, crucial para o prazer de reconhecimento que produz nas
telespectadoras. Em Crosswords, como até mesmo o papel de suporte material da
família é dado às mulheres, os homens, sem seu papel “natural” de chefe dos
negócios, são apresentados como ineficazes nas suas vidas pessoais e
incompetentes nas suas relações de trabalho. Em Crosswords não possuem nem
autoridade moral e nem poder real. Essa representação das mulheres como
membros dominantes da família não é única entre as séries britânicas. Em seus
modelos de família, constantemente são mostradas como seu suporte central,
moral e material em momentos de crise. E é notável observar que, diferentemente
das séries americanas como Dallas em que elas aparecem desafiando a unidade
familiar, as heroínas britânicas são a base da estrutura familiar e trabalham o
tempo inteiro para mantê-la íntegra.
Nas séries televisivas britânicas e americanas, o deslocamento da mulher
como figura restrita ao universo privado e sua entrada na esfera pública se deu,
primeiramente, através de séries de detetives e de crimes, gêneros considerados
extra-conjugais, mas sempre enfatiza as relações sexuais como sendo uma função totalmente
pragmática do desejo sexual. De certa forma, em Chances desaparece a família como fundadora da
comunidade e a própria ideia de comunidade. ANG, I.; STRATTON, J., The End of Civilization as
We Knew It: Chances and the Postrealist Soap Opera, passim.
78
Cf. BRUNSDON, C., The Feminist, the Housewife and the Soap Opera, passim; THORNHAM,
S., Women, Feminism and Media, passim.
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essencialmente masculinos. Nas primeiras séries de detetives dos anos 1980,
como Charlie‟s Angels (As Panteras) ou Cagney and Lacey, as mulheres eram
ainda construídas como objetos de fantasia masculina, movendo-se em um mundo
em que elas precisavam tanto negociar com os homens, quanto se opor a eles. Em
produções mais recentes, como Silent Witness (a eficiência da investigadora é
reforçada por sua posição como patologista forense experiente), a mulher é
apresentada a partir de um ponto de vista feminino, não tão subordinado à lógica
patriarcal.
A série americana Sex and the City, que trata da vida de quatro amigas na
faixa dos 30/40 anos, moradoras de uma Nova York rica, centro dos estilos “pós-
modernos” e das celebridades, também pode ser exemplar para tratar das questões
acerca do feminino nas séries de televisão nos anos 2000.
79
Em Sex and the City
as amigas adotam um estilo de vida pautado pelas escolhas, pelo consumo, pelo
sucesso e pela liberdade individual: escolhem onde moram, optam se querem
morar sozinhas ou não, se querem ter um relacionamento duradouro ou apenas
“fazer sexo”, se querem mastubar-se, fazer sexo anal, oral ou grupal, se querem
dormir com homens e/ou com mulheres, se querem ter filhos ou abortar. Elas
ocupam o espaço público com confiança e os utilizam (assim como dos privados)
para as discussões femininas. São mulheres que controlam seus corpos (às vezes
lembrando um pouco as feministas da década de 1970), porém de uma forma que
realça mais a performance da feminilidade e da identidade sexual. É comum nos
episódios a referência a mulheres reais para fazer a oposição e desconstruir o
modelo tradicional. A personagem Carrie, em particular, pode representar em um
episódio a feminilidade idealizada para, em seguida, destruí-la revelando o mito;
desempenhar o papel de objeto sexual de fetiche, mas também brincar com o
parceiro como ele sendo o fetiche. A série joga com a noção da mulher
contemporânea tanto desejando como desejável. Mas o faz com ironia e
ambiguidade. Esse jogo visual irônico é uma característica nesse estilo de série, o
qual frequentemente faz referência às técnicas do cinema feminista, mas de um
jeito jocoso e ambíguo. Nas cenas de sexo é comum os homens serem
ridicularizados e o espectador convidado a partilhar de uma troca de olhares com
as mulheres. Os corpos das mulheres, erotizados e fragmentados pela câmera,
79
Cf. THORHAM, S.; PURVIS, T., Television Drama: Theories and Identities, passim.
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podem, aparentemente, estar sendo oferecidos apenas para mostrar a câmera
recuando e expondo a imagem como construída e controlada pelas mulheres e,
assim, convidar o espectador a uma cumplicidade com elas (seja pelo olhar direto
para a câmera, seja pela voz de Carrie). Ou mesmo para expor o absurdo da
situação e a inadequação dos fotógrafos/espectadores masculinos.
As produções melodramáticas que caracterizaram a ficção televisiva na
América Latina, particularmente no Brasil; as ficções seriadas realistas, quase
naturalistas, que se tornaram marca da televisão pós-1968; as picas soap operas
americanas das décadas de 1970/1980 voltadas essencialmente para as donas de
casa; as séries britânicas e americanas que passaram a lidar tanto com o mundo
privado das relações familiares quanto com a esfera pública do trabalho, das
diferenças sociais, raciais e de gênero; ou as séries contemporâneas caracterizadas
pela contingência, pela fragmentação, pela diversidade e pelo caráter
multifacetado dos papéis sociais, continuam a ser analisadas pelos estudos
acadêmicos a partir da lógica do realismo/melodrama. Seja pela cobrança de que
elas precisam refletir a realidade social, seja porque elas devem se constituir como
objeto de fantasia ou fonte de prazer para mulheres submetidas ainda à lógica
patriarcal, ou porque elas permitem, através do reconhecimento ou do contraste, a
percepção de uma identidade feminina, o que dá suporte a essas análises é a
discussão sobre o papel da ficção televisiva na formação cultural das sociedades
contemporâneas. E aqui é preciso pensar na sua trajetória.
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4. Melodrama, Realismo, Naturalismo: Narrativa Mestiça
A modernização da teledramaturgia brasileira se deu no final da década de
1960 e início dos anos 70. Até então, predominavam as telenovelas denominadas
de “capa e espada”, um universo ficcional de castelos, masmorras e calabouços,
em que príncipes e princesas, duques e duquesas, marqueses e marquesas viviam
dramas românticos recheados de aventuras, relacionamentos misteriosos,
identidades dissimuladas, envenenamentos e sociedades secretas. Ou então eram
os teleteatros com tramas baseadas em clássicos da literatura nacional e
estrangeira, como O Inspetor Geral, de Gogol, A Megera Domada, de
Shakespeare e Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, apresentados na TV Globo
entre 1965 e 1967 e que tinham feito sucesso na década de 50 na TV Tupi com
o Grande Teatro Tupi. Contudo, a linguagem ficcional que predominava era a do
melodrama em que os conflitos entre o Bem e o Mal eram retratados de modo
intenso e hiperbólico, uma representação com gestos e expressões extravagantes,
um estilo excessivo e lacrimoso, que sublinhava o desejo de demonstrar os
sentimentos mais profundos dos personagens, tudo marcado por um moralismo
extremamente conservador.
É a partir de 1968, com a novela Beto Rockefeller, de Bráulio Pedroso,
exibida pela TV Tupi, que a teledramaturgia que se conhece e predomina na
televisão brasileira se impõe: um enredo mais colado à vida cotidiana brasileira,
com personagens ambíguos, apresentando visões de mundo e comportamentos
típicos da realidade contemporânea, e com um estilo de representação mais
realista, quase naturalista, próximo da crônica. Porém, ao criar um gênero
próprio, uma teledramaturgia genuinamente brasileira, voltada para temas da
realidade, com personagens tipicamente “modernos” indivíduos absolutamente
singulares, dotados de uma subjetividade explícita, que se movem pelas ruas,
apartamentos, bares e praias das grandes cidades , são incorporados elementos de
gêneros populares do século XIX, como o próprio melodrama que, como vimos,
dava os contornos da dramaturgia até então, o romance-folhetim e a crônica de
costumes; e até mesmo características do romance realista inglês do século XVIII.
Assim, para investigar a ficção seriada televisiva brasileira e como ela constrói
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representações do gênero feminino, é preciso compreender os fios que tecem esta
narrativa.
É nos romancistas ingleses do início do século XVIII que se busca a
primeira influência na dramaturgia que modela a ficção da televisão brasileira.
Inspirados pelo realismo filosófico, que se afastou da herança clássica e medieval
que pretendia explicar a “verdade” da experiência humana a partir de universais,
escritores ingleses, como Samuel Richardson, encontraram no indivíduo singular,
situado num tempo e espaço particulares, a fonte de inspiração para seus enredos.
Ao contrário de escritores clássicos e medievais que, a partir da premissa de que a
Natureza era completa e imutável, se baseavam na mitologia, na História e nas
lendas para criarem suas histórias atemporais e personagens como tipos humanos
genéricos que traduziam verdades morais imutáveis, esses romancistas ingleses
voltam-se para os indivíduos particulares, que vivem acontecimentos
contextualizados num tempo e espaço específicos e que precisam ser
minuciosamente detalhados
80
.
Essa percepção é muito intensa em Richardson, que em romances como
Clarissa e Pamela situava os fatos e os personagens de sua narrativa com uma
riqueza de detalhes sem precedentes: seus personagens tinham nome e sobrenome,
nasciam e morriam em locais, datas e horários precisos, moviam-se em cenários
detalhadamente descritos. Até a semântica tentava se adequar ao mundo particular
vivido pelos sujeitos: o raro uso da linguagem figurativa denotava a tentativa de
fazer com que as palavras fossem fiéis às coisas numa apresentação exaustiva
(mesmo que isso significasse repetições, parênteses e verborragia). Esta busca
pela verossimilhança, por uma narrativa completa e autêntica, com ênfase na vida
privada e na afirmação da identidade individual, caracterizou o romance do início
do século XVIII na Inglaterra, sendo um dos fatores que levaram à maior
aproximação e identificação do público leitor. O romance torna-se, nesta época,
80
Cf. WATT, I., A Ascensão do Romance: Estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding, p. 11-33.
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um gênero da classe média ascendente
81
, com uma forte participação do público
feminino
82
.
Os romances de Richardson, embora profundamente influenciados pelo
puritanismo que tomava conta da sociedade inglesa, retratavam os problemas do
universo feminino, em especial os voltados ao recato, à virgindade e ao
casamento. Suas heroínas deveriam ser muito jovens, inexperientes, de
constituição física e mental delicada desmaiavam diante de qualquer investida
sexual , passivas e sem nenhum sentimento por seu admirador até o casamento.
Diferentemente dos dramas de amor cortês onde a dama medieval, venerada e
cortejada pelo trovador, vivia o amor proibido à distância por estar submetida aos
interesses de pais e maridos, as mulheres dos romances do século XVIII podem
escolher com quem casar
83
. Este é o objetivo perseguido por todas as heroínas e,
de acordo com a gica puritana, é menos o lugar do amor e sim da “amizade
perfeita”. A maior virtude das “mocinhas” de Richardson era manter-se “pura”,
sem nenhuma atitude ou pensamento que levasse à transgressão das regras de
conduta moral. A visão da donzela permanentemente perseguida por homens
cruéis e devassos é uma constante nesses romances. O maniqueísmo do
desenvolvimento do enredo e dos personagens, pune, invariavelmente, aqueles
que se serviram do Mal e premia aqueles que se mantiveram na trilha do Bem.
81
Diferente do que ocorria na época com o teatro elizabetano onde o público formado
predominantemente por trabalhadores pagava um penny para frequentá-lo, o livro era bem caro e
apenas uma pequena população alfabetizada tinha condições salariais para incluir no seu
orçamento familiar a compra de livros e jornais. Calcula-se que, em 1790, apenas 80 mil
indivíduos, de uma população de seis milhões, era alfabetizada na Inglaterra. Ibid., p. 34-54.
82
As mulheres das camadas médias e da elite participavam muito pouco das atividades tidas como
masculinas, tanto no que se refere aos negócios quanto ao divertimento. Raramente envolviam-se
na política ou na administração de suas propriedades. Também não tinham acesso a formas de
lazer como caçar ou beber. Ou seja, tinham tempo livre de sobra para se dedicarem aos livros.
Mesmo nas classes trabalhadoras, era raro os maridos admitirem que suas mulheres trabalhassem.
O “ócio feminino” é, segundo Watt, fruto de uma importante transformação econômica: a
crescente industrialização e a maior disponibilidade de produtos manufaturados no mercado
liberaram as mulheres de muitas das tradicionais atividades da dona de casa, como fiar, tecer, fazer
pão e cerveja, fabricar velas e sabão, entre outros. As mulheres, portanto, formavam um público
potencial significativo para os romances no século XVIII. Ibid., p. 42.
83
Watt chama a atenção para o fato de romances como Pamela e Clarissa revelarem uma
diferença fundamental entre o código sexual puritano e o do amor cortês. Este separava os papéis
sexuais de modo semelhante o homem carnal adorava a pureza divina da mulher e a contradição
entre os dois papéis era absoluta. Caso a dama atendesse aos apelos do seu enamorado, a
convenção caía por terra. Já o puritanismo atribuía ao casamento um amplo sentido espiritual e
social, oferecendo, assim, uma ponte entre o espírito e a carne, entre a convenção e a realidade
social. Ibid., p. 146.
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68
Contudo, esses romances representaram uma mudança fundamental na narrativa
literária: da orientação objetiva, social e pública para a subjetiva, individual e
privada. Isso se traduziu na base de sua narrativa: a carta. A narrativa epistolar
permitia uma expressão de sentimentos “mais sincera”, maior exposição da vida
subjetiva do que o diálogo. Não foi à toa que o culto a esse tipo de
correspondência, que permite ao autor expressar seus sentimentos de forma mais
direta, se expandiu na Inglaterra nessa época.
84
O sucesso dos romances de Richardson se deveu, principalmente, a essa
capacidade de revelar a vida interior dos personagens de seus romances com toda
a complexidade, inclusive nas relações sexuais, em uma sociedade cujo
comportamento público era regido pelos tabus da moral puritana. Isso
possibilitou, segundo Watt, que o leitor se colocasse “atrás de um buraco de
fechadura através do qual também ele poderia espionar sem ser visto...”
85
promovendo não necessariamente uma identificação com os atos e as situações,
mas com os personagens. Diferentemente da tragédia grega em que os limites da
identificação são mais evidentes a nobreza do herói e o seu terrível destino
lembravam à plateia, o tempo inteiro, que assistiam à arte, e não à vida cotidiana
, o romance não continha os elementos que restringiam a identificação do leitor.
Ao contrário, o público, especialmente o feminino, satisfazia suas aspirações
românticas estabelecendo um contato direto com os sentimentos e a consciência
dos personagens.
Essa transformação na orientação da narrativa de pública para privada, de
social para individual, de objetiva para subjetiva ocorrida na Inglaterra a partir
dos anos 1700, terá efeitos semelhantes na França, no final do mesmo século. O
romance epistolar de Rousseau, La Novelle Héloïse
86
, teve impacto semelhante à
84
As casas georgianas na Inglaterra do século XVIII tinham sempre um aposento contíguo ao
quarto, com livros, penas e tinteiros para escrever. Uma saleta íntima, espécie de “estufa da
sensibilidade feminina”, evidenciava a oposição entre o relacionamento epistolar do aposento
recluso e a tagarelice feminina das conversas sociais. Ibid., p. 164.
85
Ibid., p. 173.
86
La Nouvelle Héloïse foi, talvez, o maior best seller do século. A procura de exemplares
ultrapassou tanto o fornecimento que os livreiros alugavam o livro por dia e até por hora, cobrando
doze sous por sessenta minutos com um volume...Pelo menos setenta edições foram publicadas
antes de 1800 provavelmente mais do que qualquer outro romance na história editorial anterior.
É verdade que os homens de letras mais sofisticados, defensores obstinados da correção, como
Voltaire e Grimm, achavam o estilo sobrecarregado e o assunto desagradável. Mas os leitores
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69
Pamela e Clarissa, de Richardson. Segundo Darnton, a retórica de Rousseau abriu
um novo canal de comunicação entre o leitor e o autor, reformulando seus papéis.
As cartas envolvendo dois amantes no sopé dos Alpes não eram para agradar ao
público “refinado” dos salões e teatros de Paris, mas para dar vazão aos
sentimentos dos leitores. A relação direta leitor-autor, “de coração para coração”,
implícita na literatura epistolar, levou a discussões sobre a autenticidade das
cartas: a correspondência é real ou é ficção?
87
Rousseau encara o paradoxo como
sendo inerente ao gênero epistolar e convida o leitor a “deixar em suspenso” sua
descrença, pôr de lado a antiga forma de leitura e deixar-se penetrar pelos
sentimentos e emoções das cartas. O autor, então, “em La Nouvelle Héloïse, em
vez de se esconder por trás do pano, avançou para a frente do palco”.
88
A
inundação de lágrimas provocada por La Nouvelle Héloïse, em 1761, não era
apenas uma onda de sentimentalismo pré-romântico, mas uma novasituação
retórica” em que leitor e escritor passaram a se comunicar por meio da página
impressa, de acordo com o que cada um imaginava ser o ideal do texto. Darnton,
ao mostrar como um leitor francês, comerciante de uma pequena cidade do
interior, lia os romances de Rousseau, chama atenção para o fato de como o
rousseauísmo penetrou no mundo cotidiano de um burguês nada excepcional e
como o ajudou a entender as coisas que mais importavam na existência: amor,
casamento, paternidade os grandes eventos de uma pequena vida e o material de
que a vida era feita em toda parte, na França.
89
A origem do melodrama pode ser localizada nesse contexto que antecede a
Revolução Francesa e nos tempos que se seguiram. É o momento epistemológico,
comuns de todos os escalões da sociedade perderam a cabeça. Choravam, sufocavam,
vociferavam, examinavam em profundidade as suas vidas e decidiam viver melhor, depois
aliviavam seus corações com mais lágrimas e em cartas a Rousseau, que colecionava seus
testemunhos num imenso maço; e este foi preservado, para o exame da posteridade.DARNTON,
R., Os Leitores Respondem a Rousseau: A Fabricação de Sensibilidade Romântica, p. 310.
87
“Rousseau insistia na autenticidade das cartas dos amorosos, mas escreveu-as ele mesmo,
usando todos os artifícios de uma retórica que ele podia manejar. Apresentou seu texto como a
comunicação, sem mediações, de duas almas „É assim que o coração fala com o coração‟ mas
a verdadeira comunicação ocorria entre o leitor e o próprio Rousseau. Esta ambiguidade ameaçava
minar a nova relação entre escritor e leitor, que ele desejava estabelecer. Por um lado, tendia a
falsificar a posição de Rousseau, fazendo-o aparecer como mero editor. Por outro, deixava o leitor
espiando de um canto, praticamente como um espectador. Claro que essas ambiguidades, e uma
forte dose de voyeurismo existem em todos os romances epistolares. O gênero fora criado há muito
na França e passava por um renascimento graças à popularidade de Richardson.” Ibid., p. 299.
88
Ibid., p. 300.
89
Ibid., p. 309.
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70
tanto no campo simbólico como no real, em que se dá a liquidação final do
sagrado como suporte para as ações humanas e de suas instituições representativas
(a Igreja e a Monarquia), a dissolução da sociedade feudal, coesa e hierárquica, e a
perda da visão trágica (que tinha na tragédia sua principal forma de representação)
que depende do compartilhamento do corpo sagrado pela comunidade.
90
Desde o
Iluminismo, a sede do sagrado se fazia presente e se expressou no movimento
romântico. Porém, o processo de mitificação poderia agora ser individual e os
valores éticos dependeriam da autoconsciência de cada homem. A entidade que
passaria a definir o status do sagrado tenderia a ser cada vez mais o indivíduo,
cuja unicidade e singularidade o tornariam centro e principal valor de todas as
coisas. Esse ser, mais ancorado ao espaço privado, vai buscar formas de se
expressar na totalidade. O modo melodramático de manifestar ideias, sentimentos
e experiências pode ser compreendido a partir daí. Representa tanto a necessidade
de ressacralização quanto a impossibilidade de conceber a sacralização que não
seja em termos pessoais; é capaz de canalizar e encenar as necessidades de
moralização da vida privada e coletiva diante de um cotidiano que deixou de ser
amparado pelo sagrado.
O melodrama é tido como a expressão de uma “imaginação moderna” ou de
uma “moderna sensibilidade” em que o medo de um novo mundo, onde não a
ordem moral tradicional provendo a necessária cola social, produz um universo
moral que joga com as forças éticas, com o aparente triunfo da vilania e sua
dissipação com a vitória da virtude. Trata-se de um drama da “moral oculta” que
busca articular a subjetividade do indivíduo com o universo moral da sociedade.
Para Brooks, a “moral oculta” é tanto um repositório de fragmentos quanto
remanescentes dessacralizados de mitos sagrados. Pode-se fazer uma associação
com o conceito freudiano de inconsciente, esfera do ser onde se localizam os
desejos e as interdições mais fundamentais do ser humano, que na vida diária
parece inacessível, mas no qual se pode chegar por ser um reino de significados e
valores.
90
Cf. BROOKS, P., The Melodramatic Imagination: Balzac, Henry James, Melodrama and the
Mode of Excess, p. 1-23.
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71
Singer
91
analisa o melodrama como o tipo de ficção próprio ao mundo
sensacionalista e urbano da modernidade. Um sensacionalismo menos associado
às ideias de mau gosto e grotesco e mais à noção de excesso de emoção. A nova
sensibilidade trazida pelo estilo de vida moderno teria estimulado uma narrativa
baseada na estética da excitação superficial e da estimulação sensorial. Para ele, a
expansão da racionalidade, a ascensão do método empírico-científico, do
ceticismo filosófico e da teoria política liberal teriam contribuído para o
“desencantamento do mundo”, nos termos de Weber. As crenças, costumes,
hábitos e valores cultuados pelas sociedades tradicionais perderam sentido diante
das novas descobertas e protocolos intelectuais da ciência e da razão.
92
A retórica
melodramática cumpriria a função de dar suporte a uma nova sensibilidade no
interior de um mundo ancorado na razão por intermédio de cinco aspectos: um
forte pathos, o estímulo à compaixão; o excesso emocional; a polarização moral
entre o Bem e o Mal; o sensacionalismo enquanto ênfase na ação e no espetáculo;
e uma estrutura narrativa não clássica”, porque quebra a gica clássica de causa
e efeito para dar preferência ao fatalismo, à implausibilidade, ao destino, à
coincidência, às resoluções deus ex machina.
93
A pantomima, gênero nascido na Itália, floresceu na França, nos tempos
perturbados da Revolução, e se popularizou nos espetáculos de feira. Os textos
explicativos escritos para clarear as histórias desses espetáculos foram logo
abandonados, talvez em função do analfabetismo de seus espectadores, e
substituídos por diálogos entre os atores. Surge o Melodrame à grand spetacle.
Diderot, leitor de Richardson, percebeu a mudança na forma de traduzir a vida e
as experiências humanas. Ao escrever suas peças e formular a teoria renovadora
do teatro, definindo o drama sério burguês do culo XVIII, critica os gêneros
clássicos teatrais especialmente a tragédia como sendo um teatro
excessivamente baseado na palavra, dependendo quase exclusivamente da força
poética do texto e ignorando o aspecto visual da encenação no palco. Ele defende
um teatro voltado para a sensibilidade por meio da reprodução integral das
91
Cf. SINGER, B., Melodrama and Modernity: Early Sensational Cinema and its Contexts, p. 37-
50.
92
Ibid., p. 24.
93
Ibid., p. 44-47.
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72
aparências do mundo, um método que expresse os sentimentos e as emoções
através de um jogo cênico em que os gestos e as fisionomias criem a ilusão de
realidade. Os atores devem tornar palpável para o espectador as situações vividas
pelos personagens, “a reprodução da vida em todas as suas dimensões,
especialmente aquelas que se dão para o olhar.
94
Aspectos do drama burguês ganharam força com a Revolução e
influenciaram o desenvolvimento do teatro popular, dando espaço às cenas
dialogadas, aos enredos de ação e com forte sentimentalismo, à representação dos
atores com gestos largos, à eloquência na expressão das emoções em que tudo é
falado e nada é “não dito”, no desenvolvimento de um aparato para manipulação
de cenários, em figurinos muito elaborados que ajudassem na composição dos
personagens e no uso e abuso da música pontuando o clima emocional.
95
-se, portanto que, além da polarização maniqueísta entre o Bem e o Mal e
a ênfase no sentimentalismo e no mundo subjetivo, a eloquência repetitiva com
que os personagens expressam seus julgamentos morais tornou-se uma das
características marcantes do estilo melodramático. Essa ênfase na retórica
representa a forma com que o gênero sublinha suas afirmações e imprime um tom
94
XAVIER, I., O Olhar e a Cena: Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues, p.
91. O autor, baseando-se nas análises de Peter Brooks sobre o melodrama destaca: “...o melodrama
substitui, digamos assim, o gênero clássico porque a nova sociedade demanda outro tipo de ficção
para cumprir um papel regulador, exercido agora por essa espécie de ritual cotidiano de funções
múltiplas. Se a moral do gênero supõe conflitos, sem nuances, entre bem e mal, se oferece a
imagem simples demais para os valores partilhados, isso se deve a que sua vocação é oferecer
matrizes aparentemente sólidas de avaliação da experiência num mundo tremendamente instável,
porque capitalista na ordem econômica, pós-sagrado no terreno da luta política (sem a antiga
autoridade do rei ou da Igreja) e sem o mesmo rigor normativo no terreno da estética. Flexível,
capaz de rápidas adaptações, o melodrama formaliza um imaginário que busca dar corpo à moral,
torná-la visível, quando ela parece ter perdido seus alicerces. Provê a sociedade de uma pedagogia
do certo e do errado, que não existe uma explicação racional do mundo, confiando na intuição e
nos sentimentos “naturais” do indivíduo na lida com dramas que envolvem, quase sempre, laços de
família.”
95
Xavier observa que na Itália, por exemplo, o termo melodrama é utilizado na linguagem corrente
para se referir à ópera. Ele identifica afinidades entre o gênero teatral melodramático, que se
desenvolveu depois da Revolução Francesa, e a tradição da ópera, que vinha do Renascimento.
Porém, ressalta que a recepção do espetáculo e a incorporação da música não ocorrem nos mesmos
termos nos dois tipos de espetáculo: o teatro melodramático tem uma origem fortemente popular e
é um espetáculo que envolve diálogos em prosa, cuja elocução segue o ritmo da fala dramática,
não o de uma partitura musical como na ópera. Embora use „fundo musical‟, números de canto e
melodias temperando as emoções, não se trata de ópera. Esta teria tido sua incidência na evolução
do espetáculo cinematográfico, em torno de 1913, como um modelo de “grande espetáculo,
caracterizado pela monumentalidade na composição dos espaços nicos, exploração do luxo e
riqueza, excesso que ia ao encontro do gosto do público burguês, alvo do interesse dos produtores
cinematográficos”. Ibid., p. 64-65.
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grandioso aos conflitos. Por meio de uma dramaturgia de surpresas excessivas e
excitantes em que a hipérbole é a forma de expressão predominante, o banal e o
corriqueiro são convertidos em um drama em que tudo é exageradamente
afirmado e reafirmado. A retórica do melodrama é menos a “arte do bem dizer”
aristotélica que a vê como técnica de argumentação e arte do estilo, “como
embalagem do raciocínio”, e mais uma linguagem sedutora e persuasiva, “de
encantamento e ilusionismo”.
96
Ao analisar as ficções melodramáticas brasileiras,
seja o folhetim, a radionovela ou a telenovela, é possível perceber que essa
retórica repetitiva, eloquente e sedutora
97
, que busca encantar o público,
constituirá uma das principais críticas depreciativas ao gênero.
98
96
Cf. SOUZA, R. A. de, O Império da Eloquência: Retórica e Poética no Brasil Oitocentista, p. 9.
97
A associação entre retórica, superficialidade e sedução será tratada adiante quando discutirei a
construção da noção de feminino na cultura ocidental, baseada nas considerações de Jacqueline
Lichtenstein (LICHTENSTEIN, J., Making Up Representation: The Risks of Feminity) sobre a
associação da oratória na Europa clássica com o uso das cores na pintura pelo fato de ambas terem
cultivado a sedução e o transitório. Da mesma forma, a acusação era feita à maquiagem e à
feminilidade, também fontes de excesso e artificialidade.
98
Souza observa que já no século XVI a retórica tem seu campo reduzido, perdendo para a
dialética duas de suas atribuições a inventio (a invenção; achar o que dizer) e a dispositio
(disposição; pôr em certa ordem o que dizer). Restaram-lhe apenas a elocutio (elocução; colocar os
ornamentos do discurso), a pronuntiatio (pronunciação; proferir o discurso, tendo em vista a
dicção e a gesticulação adequadas) e a memoria (confiar o discurso à memória). O autor, baseado
nos estudos de Peter Dixon, identifica que o sentido depreciativo dado à retórica já aparece desde o
século XVII, quando sucumbiu a um ataque simultaneamente moral e estético, remontando ao
Górgias, de Platão, como referência fundamental para a hostilidade à arte de bem dizer. Em
seguida, baseando-se no mesmo autor, enumera outros momentos e fatores que contribuíram para
o descrédito da retórica: “o contraste entre o „pensamento real‟ e o „ornamento insubstancial‟...; a
crítica rejeicionista de Montaigne e Bacon, defendendo a precedência de res sobre verba; a
disseminação do espírito científico, valorizando a pesquisa e a descoberta, contra a autoridade e a
imitação, e erigindo a clareza, entendida como eliminação de ornamentos, em novo padrão do
estilo da prosa, especialmente adequado aos relatórios científicos e discussões, segundo proposta
da Royal Society of London, no século XVII; o empenho de Locke em defender o caráter
essencialmente comunicativo da linguagem, cuja clareza se veria prejudicada pela obscuridade das
figuras; a combinação de neros que a retórica pretendia puros promovida pela tragédia
burguesa e a comédia sentimental; a mudança do conceito de poesia operada pelo romantismo,
segundo a qual esta deixa de ser uma arte pública sujeita ao julgamento por critérios externos de
ordem moral para tornar-se privada, sem nenhum fim ulterior e moralmente autônoma; a oposição
proposta por Mill entre retórica e poesia; o pensamento de Croce, condenando a classificação por
gêneros e exaltando a indivisibilidade da arte e a intuição; os „esquemas de caráter‟ impostos pelo
treinamento retórico, que teriam conduzido a uma visão dos seres humanos segundo estereótipos,
refratários portanto a qualquer complexidade psicológica e ética; a impugnação das formas
retóricas por sua inadaptabilidade ao debate e à controvérsia, já que reduziriam os argumentos a
oposições polares, donde a decidida opção contemporânea por expressões como diálogo e diálogo
contínuo, que nomeiam práticas mais aptas para a acomodação dos pontos de vista conflitantes do
que as disputas retóricas; a perda de confiança na eficácia do próprio ensinamento flagrante nos
manuais de retórica do século XIX, que se tornam por isso prudentes e repetitivos”. SOUZA, R. A.
de, op.cit., p. 9-10.
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74
O melodrama chega à literatura sob duas formas. A primeira, o “melodrama
de costumes”, teria inspirado escritores que investiram na representação da vida
social do homem, no seu cotidiano e no drama moral de sua existência, como
Balzac e Henry James. Segundo Brooks
99
, tanto Balzac como James precisaram
do melodrama em função da “moral oculta” de seus temas: aquelas forças
subjetivas, que não são visíveis na realidade, mas eles acreditavam que
precisavam ser descobertas, registradas e articuladas. Na ausência de um
“sagrado” que amparasse esta “moral oculta”, o melodrama, baseado no conflito
entre o Bem e o Mal, funcionaria como suporte aos dramas éticos do homem.
Balzac, para Brooks, usa figuras hiperbólicas, eventos grandiosos,
relacionamentos de parentesco misteriosos, sociedades secretas, identidades
dissimuladas e outros elementos do repertório melodramático, tudo subordinado e
sublinhado pelo maniqueísmo, para construir uma representação da vida em
sociedade. Henry James, de forma mais sutil e refinada, cria um alto grau de
excitação nos seus dilemas morais dramatizados. Brooks observa que James usa o
maniqueísmo moral como a base de uma visão do mundo social que põe em jogo
uma escolha dramática entre alternativas morais um conflito entre o “claro” e o
“escuro”, a “salvação” e a “condenação” – onde o destino e as escolhas das
pessoas têm menos a ver com a superfície da situação real e mais com o drama da
consciência do “ser” dividido entre as forças do Bem e do Mal.
100
Mas é a segunda forma de influência do melodrama na literatura que te
papel fundamental na ficção seriada televisiva: o feuilleton ou romance-folhetim,
isto é, histórias de aventura, amores proibidos, investidas „rocambolescas‟, relatos
romanceados do cotidiano publicados em série, em geral nos rodapés dos grandes
jornais, e que, eventualmente, eram reunidos em volume. Quase sempre eram
relatos “abertos”, construídos de acordo com a receptividade do público-leitor
(muito semelhante ao que assistimos na telenovela), e, por estarem
permanentemente sujeitos ao prolongamento no tempo, tendem à redundância.
Meyer
101
identifica três fases do romance-folhetim. A primeira data da pós-
99
Cf. BROOKS, P., The Melodramatic Imagination: Balzac, Henry James, Melodrama, and the
Mode of Excess, p. 1-23.
100
Ibid., passim.
101
Cf. MEYER, M., Folhetim: Uma História, p. 55 passim.
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revolução burguesa de 1830 e se confunde com o “romantismo social”, com
enredos repletos de raptos, perseguições, tempestades, uso de narcóticos para
“abusar” das mulheres, vinganças, vitória da virtude, condenação daqueles que
oprimem e reabilitação social dos oprimidos. Eugène Sue, com Os Mistérios de
Paris e O Judeu Errante e Alexandre Dumas, com Os Três Mosqueteiros e O
Conde de Monte Cristo, são os legítimos representantes desta tradição, que utiliza
com habilidade os recursos do melodrama e da narrativa em série, fragmentada,
em que o corte exacerba o incessante “desejo de saber o prometido, mas sempre
adiado”. As histórias criadas por Sue e Dumas acabam se tornando um novo modo
de publicação do romance, e quase toda a ficção em prosa da época passa a ser
publicada em folhetim para, então, de acordo com o sucesso obtido, sair em
volume. Balzac, por exemplo, publicou primeiro em folhetim Esplendores e
Misérias das Cortesãs, continuação de Ilusões Perdidas, para depois publicar
em livro.
A matéria-prima desses romances-folhetins é a vingança. Ela permite (e
mesmo pressupõe) uma multiplicidade de incidentes, o que vai ao encontro das
necessidades da estrutura seriada que prevê o alongamento da história como forma
de agradar o leitor, pela emoção, o autor, pela remuneração, e o editor, pela venda.
Essa forma de contar histórias aos pedaços cria também um novo tipo de
relacionamento com o leitor: o autor vai tecendo suas histórias em diálogo com o
público, muitas vezes seguindo suas sugestões que chegam por cartas ou fazendo
mudanças radicais no rumo da trama, sumindo ou reaparecendo com personagens
em função da reação dos leitores. Qualquer semelhança com o que ocorre com
certas telenovelas não é mera coincidência. O caso mais célebre é o da novela O
Dono do Mundo, de Gilberto Braga, em que a perda precoce da virgindade da
heroína com o vilão provocou forte rejeição do público implicando em mudanças
no rumo da trama.
Os folhetins dessa primeira fase também se caracterizam pela presença na
narrativa de temas sociais, especialmente os de Sue, autor assumidamente
socialista. É comum, a partir de um certo ponto da história, a perda da força
romanesca e o surgimento de reflexões e sugestões do autor sobre mudanças na
sociedade (nas prisões, no sistema judiciário, na organização do trabalho no
campo etc.). Nem sempre os leitores reagiam bem à inclusão dos personagens
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“explorados” e às denúncias sociais em detrimento do romance. Embora
pudessem se identificar com personagens e situações abordados, não queriam
deixar de se entreter e se divertir.
Meyer
102
ressalta que, após o golpe 18 Brumário de Napoleão Bonaparte, o
folhetim enfrenta um período de proibição até que, em 1851, retorna às páginas
dos jornais com enredos mais conservadores, esvaziados de qualquer conteúdo
social, trazendo heróis espertos, crápulas capazes de trapacear e conspirar contra a
própria sombra, com aventuras extraordinárias e inverossímeis, escondendo-se e
aplicando seus golpes pelos subterrâneos de Paris. O visconde de Rocambole, de
Ponson Du Terrail, mestre em disfarces e conhecedor de todos os artifícios da
vilania, torna-se um ícone desta segunda fase, um arquétipo do “gangsterismo”
que toma conta da sociedade francesa durante o período de Luís Bonaparte. As
proezas e dissimulações de Rocambole criando situações em que tudo vale, onde
ausência de escrúpulos e o mundo se move sob o signo do embuste, das
tramoias e das falsas pistas, em que o delírio e a confusão fazem com que o
personagem principal morra e nasça diversas vezes ao longo de toda a série
folhetinesca, lembram o que Bakhitin chamaria de carnavalização
103
. Uma
carnavalização que existe tanto no personagem quanto no autor. Ponson Du
Terrail quebrava as distinções hierárquicas de gênero, de autor, misturando “alta
literatura” com “literatura vulgar”, aproveitando-se de tudo e todos para criar seu
próprio universo ficcional. Brincava e ria de seu público e dos críticos ao fazer seu
protagonista morrer e ressuscitar diversas vezes. Ao mesmo tempo, seu
personagem Rocambole era a própria celebração do grotesco, do vulgar e do
excessivo, a defesa da ideia das inversões sociais e da subversão simbólica via “o
mundo às avessas”, o habitante do reino da ambiguidade, o porta-voz do “riso
festivo” que se opõe a todo fim definitivo. Assim como o carnaval é um
recomeçar constante, Rocambole também é com o seu ressuscitar permanente. Até
hoje a ideia de “trama rocambolesca” serve para identificar, de forma pejorativa,
aquelas histórias consideradas banais, confusas, anárquicas, sem nenhuma ponte
com a realidade.
102
Ibid., p. 167-168.
103
Cf. BAKHTIN, M., A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: Contexto de
François Rabelais, passim.
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77
A terceira fase, pós-governo napoleônico, se caracteriza por maior adesão ao
real, ao verossímil, acompanhando o naturalismo vigente. O herói, positivo ou
negativo, é diluído na figura da vítima. Uma vítima que respeita todas as
convenções sociais e que sofre o tempo inteiro nas mãos de um vilão que se
transformou num sedutor, amante e criminoso barato. São os “romances dos
crimes de amor”, folhetins sentimentais que têm a mulher como personagem
principal, onde reencontramos o tema da “vítima” e do “sedutor” dos romances de
Richardson, num embate que se estenderá ao longo de toda a narrativa para, no
epílogo, tudo se organizar no happy end. É essa terceira fase dos romances-
folhetins que interessa para pensar na teledramaturgia.
Todo o desprezo das elites letradas contra o folhetim se baseia nessa última
fase. A acusação mais forte é a de que este estilo de “romance popular”, em que as
tramas sentimentais se desenrolam ao longo de meses, é fragmentado (assim como
o trabalho fabril) para manter a expectativa do leitor, sem permitir uma visão de
conjunto a um receptor que não exige nenhuma coerência narrativa. Os enredos,
para esses críticos, são apoiados em “velhos clichês” melodramáticos: a virtude
conspurcada, o vil sedutor, a defesa da honra até a morte ou a reparação do ultraje
pelo casamento, a exaltação da vida e das virtudes domésticas. Novos
personagens, acusados de serem estereotipados, surgem nessas narrativas: o bom e
o mau operário, o bom e o mau patrão, a boa mãe e esposa, a prostituta decaída, a
mulher adúltera; o engenheiro inteligente e honesto que ascende com o suor de
seu trabalho; a criança que inicia seu aprendizado. Esses personagens se movem
também em novos cenários: a manufatura e a usina; a habitação popular, a casa do
burguês, estabelecimentos comerciais e bancos, a escola, as ruas das grandes
cidades.
Gênero herdeiro do melodrama, o romance-folhetim desta terceira fase não
consegue controlar a exteriorização dos grandes sentimentos, das paixões
avassaladoras que podem levar até ao crime. É a incorporação dos dramas do
cotidiano aos enredos em que amor, casamento, ódio, desejo, ciúme, ganância,
fome, morte, crime, luxúria, loucura são mostrados com a mesma intimidade dos
fatos do dia a dia retratados nos jornais. Os enredos, em geral, se originam a partir
de dois eixos, muitas vezes um penetrando no outro: sedução e erro judiciário. À
sedução estão conectados temas como o estupro, a maternidade, o casamento, a
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loucura. A mulher (de marquesas a mulheres do povo) é seduzida e violentada; o
filho é o resultado que transforma a vítima da violência em vítima-heroína, ou
seja, mãe. A criança também é tematizada: crianças abandonadas, perdidas,
trocadas, raptadas, seviciadas, bastardas fruto da violência consolidam uma
representação da infância muito próxima da realidade.
Ainda que essas situações sejam criadas com base em estereótipos e em
peripécias muitas vezes inverossímeis, elas servem, através do realismo do
cenário e das situações, para espelhar o cotidiano da mulher e da criança do povo.
Ao erro judiciário estão ligados enredos voltados para segredos de família ou
mistérios do passado, falsas identidades que decorrem de raptos, extravios, troca
de filhos, brigas e crimes por heranças. Não importa o tema: no centro desses
folhetins está sempre a figura feminina. Em geral, uma figura delicada, recatada,
paciente e tolerante, sempre à espera do casamento para construir um lar. Porém,
também a mulher adúltera. Nesses folhetins, o adultério é invariavelmente do
gênero feminino. O homem comete leviandades, mas a mulher a traição. O que
leva sempre à perseguição e ao castigo da adúltera.
Esse folhetim da terceira fase incorpora elementos naturalistas em que as
histórias são trabalhadas de acordo com uma estética que busca imitar a vida.
Emile Zola, colaborador assíduo de jornais franceses onde escrevia folhetins, foi
um dos representantes dessa tendência de expressar “dramas da vida”. Seus
romances, embora mantivessem as características melodramáticas de retratar as
situações com intensidade e paixão, procuravam “imitar a vida”, trazendo para o
leitor acontecimentos do cotidiano apresentados “em carne e osso”. E aqui eles
vão se aproximar de um estilo que passará a disputar com os romances-folhetins
os rodapés dos jornais: a crônica. Próxima à conversa, voltada para as coisas de
todo dia, a crônica é despretensiosa na forma e no conteúdo. Trata das coisas
miúdas, cotidianas, corriqueiras, casuais, efêmeras, tão transitórias quanto o
veículo em que são publicadas; sua linguagem é marcada pela simplicidade, às
vezes irônica, às vezes rica, que busca estabelecer com o seu leitor uma
intimidade de quem fala de igual para igual, ou seja, “sua perspectiva não é dos
que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés do chão.”
104
Por estar
104
CANDIDO, A., A Vida ao Rés-do-Chão, p. 13-14.
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79
ligada ao dia a dia, a crônica age como quebra do monumental e da ênfase, típicos
do melodrama.
105
Talvez aqui se tenha uma boa pista para pensar na penetração da ficção
folhetinesca na formação cultural brasileira. A mistura entre o monumental e as
coisas miúdas tem uma aderência forte numa sociedade em que o gosto pela
oratória e pela eloquência se mescla ao fuxico, ao “jogar conversa fora”, ao
comentário sem compromisso aparente. Essa “mestiçagem entre dois estilos
narrativos aparentemente antagônicos é constitutiva da teleficção.
É o romance-folhetim “popular”, colado ao cotidiano e ao mesmo tempo
apresentando enredos com fortes marcas melodramáticas, que chega ao Brasil na
segunda metade do século XIX e se estende ao século XX, fazendo-se presente
tanto nas páginas dos jornais e revistas quanto nas coleções populares consumidas
pela classe média, e mesmo pelas elites letradas. Essa rápida e fácil penetração
desse gênero na sociedade brasileira pode ser explicada sob vários aspectos. A
primeira, a mais óbvia, se refere ao desejo de copiar tudo que vinha da Europa, em
especial de Paris. Ser elegante e moderno significava consumir o que viesse da
“cidade das luzes”, mesmo que significasse consumir um “gênero maldito”. Em
segundo lugar, como observa Antonio Candido, o gosto pela oratória é uma
característica de nossa sociedade que se manifestou sempre nos oradores das
comemorações, nos conferencistas da Academia, nos recitadores, nos discursos
dos políticos e bacharéis, que falavam para uma sociedade de iletrados e
analfabetos, mas se tornavam cada vez mais ouvintes treinados. Criou-se, assim,
um público-leitor que requeria do escritor a ênfase e o ritmo oratório: A grande
maioria de nossos escritores, em prosa e verso, fala de pena em punho e prefigura
um leitor que ouve o som da sua voz brotar a cada passo por entre as linhas”
106
.
105
Antonio Candido, ao analisar os cronistas modernos, observa que “há um traço comum:
deixando de ser comentário mais ou menos argumentativo e expositivo para virar conversa
aparentemente fiada, foi como se a crônica pusesse de lado qualquer seriedade nos problemas... É
curioso como elas mantêm o ar despreocupado, de quem está falando coisas sem a maior
consequência; e, no entanto, não apenas entram fundo no significado dos atos e sentimentos do
homem, mas podem levar longe a crítica social.” E prossegue adiante: “Quero dizer que por serem
leves e acessíveis talvez elas comuniquem mais do que um estudo intencional a visão humana do
homem na sua vida de todo dia.” Ibid., p. 17-19.
106
CANDIDO, A., O Escritor e o Público, p. 81.
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80
Une-se a isto o culto à ópera e ao bel canto de influência italiana com fortes
traços melodramáticos. O gosto do homem comum italiano pelo melodrama se
traduz pelo culto à oratória, pelo sentimentalismo solene e teatral que se revela
nos comícios, nas conferências públicas, nos sermões religiosos e fúnebres, no
teatro popular de arena e até nos diálogos do cinema falado e nas legendas do
cinema mudo. Meyer, apoiando-se em Gramsci, busca explicar as causas desse
gosto melodramático no fato de que as camadas populares italianas, assim como
no Brasil, não se formaram através da leitura e da reflexão, íntima e individual,
promovida pela poesia; mas sim por intermédio das manifestações coletivas,
oratórias e teatrais.
107
A ópera (modalidade de melodrama na acepção literal do
termo, ou seja, drama acoplado à música) encontrou nas terras italianas solo fértil
para uma sensibilidade romântica apoiada no sentimentalismo, na oratória, na
expressão solene. Esse melodrama à italiana chega às terras brasileiras na segunda
metade do século XVIII e se expressa no amor pela ópera na Minas barroca.
No século XIX, o melodrama do teatro popular francês, pautado pelos
gestos largos e exagerados, pela exacerbação dos sentimentos, do excesso
retórico, tudo sublinhado pela música, também atravessa o Atlântico e aporta em
terras brasileiras. João Caetano é um dos nomes que se destacam nas encenações
de peças melodramáticas nesse período. A encenação de óperas e libretos também
se tornará sucesso no Brasil, tanto na corte quanto nas províncias. Dando
continuidade à recepção da ópera barroca, ouvir ópera tornou-se um hábito, bem
retratado nos folhetins de Martins Pena publicados em jornais da época.
108
O culto
à ópera e ao bel canto atravessa o século XIX e chega ao culo XX mobilizando
as elites e as camadas populares, misturando ritmos, harmonias e gêneros
musicais (árias de ópera se transformavam em modinhas) com formas diversas de
encenação (do teatro lírico ao circo-teatro). O tenor italiano Enrico Caruso e sua
companhia faziam sucesso estrondoso em suas apresentações no Teatro Municipal
no início do século passado
109
; e não foi à toa que surgiu em terras brasileiras o
107
Cf. MEYER, M., Folhetim: Uma História, p. 327.
108
Ibid., p. 329-332.
109
É curioso notar que o cubano Félix Caignet, autor de numerosos melodramas radiofônicos e
televisivos como O Direito de Nascer, sucesso no rádio e na televisão brasileira, era um fã
ardoroso de Caruso e assumiu sua influência ao longo da vida. Durante uma turnê de Caruso em
Cuba, Caignet, jovem e pobre que morava em Santiago de Cuba, envia uma carta ao tenor italiano
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“rei do bel canto popular”, o ítalo-brasileiro, admirador de Caruso, Vicente
Celestino. Cantor de operetas, não deixou de transitar por canções populares e até
por músicas de carnaval. Por sua voz de tenor, seu estilo arrebatador e
sentimental, ficou conhecido como “a voz orgulho do Brasil”.
Porém, o fascínio pela leitura fragmentada do folhetim, além de entreter, vai
ao encontro de um desejo que, tanto aqui quanto na Europa, se revelou irresistível:
o de protelar o desvendamento do desconhecido, de adiar a saída do mundo da
fantasia. Meyer
110
observa que a interrupção da leitura provocada pela publicação
em série cria “vazios” que favorecem a “atividade imaginativa do leitor”. Este,
por sua vez, ativa um processo de rememoração que o leva a identificar-se com
uma “realidade ilusória”. Sarlo
111
, tentando explicar a espantosa recepção dos
folhetins semanais nas províncias argentinas, recorre aos elementos que
caracterizam o estilo melodramático dessas narrativas. Para a autora, elas
proporcionam um modelo de felicidade baseado na hipótese de uma conciliação
possível entre a ordem dos desejos e a ordem moral. A transgressão ameaçaria
esse ideal conciliado, porque proporia um modelo de relações indivíduo-família-
sociedade fortemente desequilibrado. Esse ideal de felicidade aparece
promovendo um ideal de pares legítimo, núcleo da família, que inclui a
perspectiva da descendência.
Trata-se de um tipo de narrativa sentimental que postula um mundo submetido ao
império dos sentimentos, acima de outras paixões, como a ambição, a luta pelo
poder ou a fama....O desejo de felicidade exige um caminho livre de outras paixões
públicas que possam competir com o amor. Os homens nesse império muitas vezes
exibem sua passagem pelo mundo das outras paixões e podem chegar a
experimentar desejos frios, intelectuais. As mulheres, quando são representantes
ajustadas de seu sexo, são presas, quase exclusivamente, por paixões lidas,
físicas ou sentimentais, paixões de realização privada.
112
manifestando sua admiração e desejo de vê-lo pessoalmente. Caruso lhe envia uma passagem
aérea e o rapaz não vai assisti-lo como o acompanha durante toda a estadia no país.
GONZÁLES, R., El Más Humano de los Autores, p. 14.
110
Cf. MEYER, M., Folhetim: Uma História, p. 343.
111
Cf. SARLO, B., El Imperio de los Sentimientos, passim.
112
Ibid., p. 160.
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82
Em uma sociedade fortemente patriarcal como a brasileira do final do século
XIX e início do XX, em que à mulher cabia o papel de esposa e progenitora,
administradora do lar e zeladora da honra da família, o “império dos sentimentos”
era o que lhe restava. Os romances-folhetins atenderão completamente aos anseios
deste público feminino submetido às regras da sociedade patriarcal. Gilberto
Freyre chama a atenção para as diferenças entre as donas de casa típicas da
sociedade patriarcal agrária e as “senhoras afrancesadas” dos sobrados (e mesmo
de algumas casas-grandes de engenho) do início do século XIX. As primeiras se
submetiam ao padrão duplo de moralidade
dando ao homem todas as liberdades do gozo físico do amor e limitando o da
mulher a ir para a cama com o marido, toda a santa noite que ele estiver disposto a
procriar. Gozo acompanhado da obrigação, para a mulher, de conceber, parir, ter
filho, criar menino.
113
Os relatos de esposas de senhores de engenho confirmam essa sexualidade
voltada exclusivamente para a procriação. Era comum ver sinhás parindo
anualmente. Muitas delas morriam de parto ainda jovens, deixando uma prole
numerosa. E Freyre continua mostrando que esse duplo padrão de moralidade no
sistema patriarcal
também ao homem todas as oportunidades de iniciativa, de ação social, de
contatos diversos, limitando as oportunidades da mulher ao serviço e às artes
domésticas, ao contato com os filhos, a parentela, as amas, as velhas, os escravos.
E, uma vez por outra, em um tipo de sociedade católica como a brasileira, ao
contato com o confessor.
114
Freyre, utilizando-se dos escritos literários, “caricaturais”, do Padre Lopes
Gama, crítico dos costumes das elites dos sobrados, mostra as mudanças que
ocorrem no universo feminino nessa época:
...um tipo de mulher menos servil e mais mundano; acordando tarde por ter ido ao
teatro ou a algum baile; lendo romance; olhando a rua da janela ou da varanda;
levando duas horas no toucador „a preparar a charola da cabeça‟; outras tantas
horas no piano, estudando a lição de música; e ainda outras na lição de francês ou
na dança. Muito menos devoção religiosa do que antigamente. Menos
confessionário. Menos conversa com as mucamas. Menos história da carochinha
contada pela negra velha. E mais romance. O médico de família mais poderoso que
113
FREYRE, G., Sobrados e Mucambos: Decadência do Patriarcado e Desenvolvimento do
Urbano, p. 207-208.
114
Ibid., 208.
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83
o confessor. O teatro seduzindo a mulher elegante mais que a igreja. O próprio
„baile mascarado‟ atraindo senhoras de sobrado.
115
É importante observar que estamos falando de uma abertura maior das
mulheres do sobrado em relação às do engenho no que se refere aos padrões
femininos preconizados pelas “modernas sociedades ocidentais”. Não significa
que no Brasil imperial tenham sido alteradas as estruturas hierárquicas e altamente
pessoalizadas da sociedade brasileira. Araújo
116
, analisando a obra de Gilberto
Freyre na década de 1930, ressalta que a sociedade colonial brasileira, fortemente
patriarcal e agrária, era regida por uma hibris, isto é, um excesso de natureza
sexual que fazia da casa-grande um ambiente de exageros, principalmente sexuais.
Esta atmosfera orgiástica, “que se aproxima aparentemente da mais pura
animalidade”, era caracterizada por um alto grau de transgressão e promiscuidade,
que tinham como objeto as mucamas (que teriam papel decisivo na mestiçagem
brasileira). Isso sem falar de animais, plantas e frutas.
117
O “processo civilizador”
dos sobrados imperiais, baseado no gosto pela sofisticação europeia e também
pelo culto à humildade, singeleza, naturalidade, solidariedade fraternidade
postulada pela ordem franciscana) teria sido tão excessivo quanto a hybris da
casa-grande. O excesso de virtude e ordem teriam imposto regras que acabaram
por revelar uma espécie de continuidade entre a sociabilidade da casa-grande e
dos sobrados.
118
115
Ibid., p. 226.
116
Cf. ARAÚJO, R. B. de, Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala e a Obra de Gilberto Freyre nos
Anos 30, passim.
117
Essa hybris teria trazido consequências danosas, tais como doenças (a sífilis, por exemplo) e até
mesmo a morte. No entanto, esse desregramento teria sido bastante positivo no domínio de terras
tropicais tão difíceis de serem ocupadas e exploradas. E acrescenta: “Nesse sentido, a degradação
embutida na convivência com aquelas desmedidas entidades está longe de ter um significado
apenas negativo, envolvendo também familiaridade, festividade e abundância. Ora, o relativo
elogio que Gilberto faz à loucura em Casa Grande & Senzala garante que a hybris também esteja
presente tanto no que rebaixa quanto no que redime a vida social, na violência e no despotismo, do
mesmo modo que na intimidade e na confraternização. Assim, ainda que imprimisse uma marca
extremamente prejudicial na natureza tropical, coalhando-a de vermes, no regime alimentar da
colônia, tornando-o vítima do maior desequilíbrio que se possa imaginar, e na própria atividade
sexual, transformando-a, através da filis que ela propagava e do sadismo com que era exercida,
em um veículo de sofrimento, deformação e morte, o domínio do excesso também vai permitir que
a afirmação daqueles antagonismos seja perfeitamente compatível com um grau quase inusitado de
proximidade, recobrindo de um colorido, de um ethos particular, a senhorial experiência da casa-
grande.” Ibid., p. 70.
118
Ibid., p. 154-155; 166.
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84
Assim, o romance-folhetim se encaixa como uma luva na sensibilidade de
uma nova mulher desejosa das modernidades parisienses, mas excessivamente
submetida a uma moral baseada no comedimento e disciplina que dão suporte ao
“processo civilizador” que se instaura na sociedade imperial brasileira. Foram
muitas as mulheres que nessa época tentaram ocupar um lugar ao sol aspirando às
“belas letras”, traduzindo folhetins, fundando jornais femininos em que, por meio
de crônicas ou mesmo folhetins, pregavam a emancipação da “tirania marital”,
reivindicavam a valorização de seu trabalho, o voto feminino e a abolição da
escravatura. Mas nunca se esquecendo de seu papel de “rainha do lar”. Portanto, o
romance-folhetim, ao mesmo tempo melodramático e voltado para a intimidade
da vida cotidiana, atingia tanto as leitoras submetidas ao “império dos
sentimentos” quanto àquelas que procuravam expressar e legitimar suas
expectativas subjetivas e objetivas. Acabou por encontrar solo fértil no país e
deixou sua marca em muitos meios de difusão cultural como o cinema, o teatro, o
rádio e a televisão.
Não foram poucos os jornais e revistas “sérios” ou “populares” da
primeira metade do século XX que publicaram folhetins ou crônicas em série em
suas páginas. Garantiram, assim, aumento de tiragem e remuneração para
numerosos escritores que encontravam um meio de dar visibilidade a seus
romances antes de publicá-los em volume, ou que garantiam o sustento com a
tradução para o português dos folhetins estrangeiros. Alexandre Dumas, Ponson
Du Terrail, Eugène Sue e Xavier de Montépin se revezavam nas páginas com
escritores brasileiros como José de Alencar, Aluísio Azevedo, Joaquim Manoel de
Macedo, Raul Pompéia, Machado de Assis (em sua fase romântica), entre outros.
Mas é na década de 1940 que surge o grande representante brasileiro do
melodrama que se manifestará em folhetins, crônicas e peças de teatro: o escritor,
jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues.
Ao longo do século XX, a modernização da sociedade brasileira implicou
em aceleradas mudanças sociais, numa crescente urbanização, no fortalecimento
do indivíduo enquanto ser singular, dotado de uma subjetividade própria, com um
imaginário muito marcado pela psicologia e por um hedonismo pragmático. O
lazer e, portanto, o prazer, vincularam-se a uma vida saudável. Ao mesmo tempo,
os valores mais conservadores, mais ancorados numa moral rígida em que a
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defesa da tradicional família patriarcal era uma questão de honra, ainda norteavam
o ethos de determinados segmentos que resistiam às transformações da sociedade.
Essa polarização entre o moderno e o arcaico, entre valores baseados na noção do
indivíduo e outros na importância da família como referência maior, entre o
universo da paixão e do desejo e um mundo submetido “às normas e aos bons
costumes”, construía um cenário bem receptivo às narrativas melodramáticas e ao
gênero folhetinesco. Nos jornais, no teatro e no cinema, o dramaturgo Nelson
Rodrigues, admirador de Gilberto Freyre, foi quem mais manifestou esta
influência.
Em 1944, Nelson Rodrigues, que havia iniciado sua carreira de
dramaturgo com Mulher sem Pecado (1941) e Vestido de Noiva (1943) esta
última revolucionando o teatro brasileiro , se oferece para escrever um folhetim
para a direção de O Jornal, dos Diários Associados, que estava preocupada com a
baixa circulação do matutino. Assim nasceu Suzana Flag, pseudônimo com que
assinou os 39 capítulos de Meu Destino é Pecar. O folhetim levantou a circulação
de O Jornal de 3.000 a quase 30.000 exemplares. A popularidade foi tanta que o
autor publicou o folhetim em livro assim que deu um ponto final na história no
jornal impresso, vendendo mais de 50.000 exemplares (número altíssimo no
Brasil, especialmente considerando a população brasileira alfabetizada na década
de 1940). Meu Destino é Pecar também foi adaptado para rádio como radionovela
nas Emissoras Associadas e arrebatou o coração dos ouvintes (especialmente das
ouvintes). Suzana Flag fazia tanto sucesso que três meses depois de terminar Meu
Destino é Pecar, em setembro de 1944, estreou um novo folhetim: Escravas do
Amor e, em 1946, Minha Vida, ambas publicadas em O Jornal. Suzana Flag
ganha vida própria pelas mãos de Nelson Rodrigues e ele decide escrever uma
“autobiografia” para humanizar ainda mais a “autora”. Em 1948, Suzana Flag
publica um novo folhetim, Núpcias de Fogo, que voltou a encantar suas leitoras.
Mas o criador se cansava da criatura e, em 1949, no jornal Diário da Noite,
Nelson Rodrigues resolve produzir outro romance-folhetim, A Mulher que Amou
Demais, com novo pseudônimo, Myrna. A nova autora não despertou tanto
entusiasmo quanto sua antecessora, o que não impediu que respondesse a centenas
de cartas de leitoras na seção Correio Sentimental Myrna escreve”. Nos anos
1950, Nelson Rodrigues passou a publicar sua crônica diária A Vida como Ela
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É..., no jornal carioca Última Hora. Nela, sem abandonar o tom melodramático,
mas assumindo plenamente a linguagem intimista e realista da crônica, ele escreve
diariamente histórias de sedução e adultério que expressavam as tensões vividas
pela família tradicional diante dos valores trazidos pela modernidade.
Paralelamente, Suzana Flag reaparece em 1951, na Última Hora, escrevendo o
folhetim O Homem Proibido. Em 1956, assinando como Nelson Rodrigues, lança
o folhetim Asfalto Selvagem. Em 1966, fecha o círculo dos romances
folhetinescos lançando diretamente em livro O Casamento, que acabou sendo
proibido de circular pela Censura Federal devido à quantidade de incestos e
perversões retratados na história.
Nelson Rodrigues, enquanto escrevia seus folhetins à brasileira, misturando
o estilo excessivo e maniqueísta do melodrama com “a vida como ela é” do
realismo e a intimidade do dia a dia da crônica, continuava a criar peças para o
teatro levando ao extremo os embates entre indivíduo e sociedade, em um
contexto de decadência da sociedade patriarcal. Com Vestido de Noiva tornou-se
efetivamente um dramaturgo consagrado. Suas peças levavam aos teatros os mais
diferenciados públicos desde intelectuais intrigados com os aspectos
psicológicos de seus dramas familiares, passando por espectadores que
comungavam com os ideais moralistas retratados em muitas de suas peças até
críticos e artistas atraídos pela originalidade com que ele abordava o universo
familiar, unindo às vezes o trágico ao cômico, num estilo profundamente
melodramático ao retratar contradições insolúveis e valores irreconciliáveis.
Foram mais de 17 peças; muitas se transformaram em livro, filmes, novelas
radiofônicas e de televisão. Por ter desenvolvido, simultaneamente, textos de
diferentes modalidades (teatro, romance-folhetim, crônica), Nelson Rodrigues
criou tipos e enredos que transitavam de um gênero ao outro, seja carregando a
imediatez do real nas situações limites e passionais de suas peças teatrais e
crônicas para os folhetins, seja levando o excesso e o maniqueísmo do melodrama
para suas peças, crônicas e contos.
No cinema, o melodrama teve grande adesão em Hollywood no pós-guerra
com os filmes de Douglas Sirk e Vicente Minelli, entre outros. Mesmo em países
europeus, como Itália e França, as marcas do melodrama já se faziam presentes
em produções cinematográficas na época da I Guerra Mundial. Nos anos 1940, o
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melodrama continuou forte em filmes de cineastas como Louis Delluc e Raymond
Bernard, e vários estudos identificam sua importância no desenvolvimento do
cinema francês. Até mesmo o cineasta italiano Luccino Visconti teria se
apropriado de convenções do melodrama em seu filme Obsessão.
119
Na América
Latina, o melodrama também penetrou nas produções cinematográficas do pós-
guerra, especialmente no México, em Cuba, no Chile, na Venezuela, na Argentina
e no Brasil. Filmes como La Cumparsita, um típico melodrama argentino, Las
Abandonadas, com a diva do melodrama mexicano Dolores Del Rio, ou Floradas
da Serra, melodrama brasileiro produzido nos estúdios Vera Cruz, com Cacilda
Becker e Jardel Filho, arrebataram os corações de milhares de espectadores
ansiosos por assistir a histórias de vítimas injustiçadas por vilões inescrupulosos e
que no final tinham seu momento de redenção.
120
As histórias melodramáticas de Nelson Rodrigues também foram adaptadas
para o cinema e, curiosamente, por aqueles que, no início da década de 1960, no
Cinema Novo, criticavam os padrões do cinema industrial, mais voltado para a
reprodução das aparências, em que o naturalismo era a linguagem utilizada para
retratar uma vida social maniqueísta, sem nenhuma preocupação com o contexto
social e histórico. Rejeitavam o cinema que se baseava em dramas domésticos,
habitados por encarnações do Mal a atormentar as figuras do Bem, com sua
pedagogia feita de excessos sentimentais e lances de suspense, buscando às vezes a
simpatia para o “lado certo” das forças em conflito, mas reduzindo o social ao
confronto de vilões mal encarados, vítimas inocentes e heróis redentores. O novo
cinema queria ir além da compaixão, das estruturas dramáticas de consolação;
queria produzir conhecimento
121
.
São exatamente cineastas deste Cinema Novo que adaptarão os dramas
rodrigueanos: Boca de Ouro, por Nelson Pereira dos Santos, A Falecida, por Leon
Hirszman, e Toda Nudez será Castigada, por Arnaldo Jabor, são apenas alguns
exemplos. Seja utilizando uma linguagem mais ou menos expressionista, seja
119
Para melhor compreensão sobre a penetração do melodrama nos cinemas americano e europeu,
ver LANDY, M., Imitations of Life: A Reader on Film and Television Melodrama.
120
Um panorama sobre o melodrama no cinema latino-americano pode ser encontrado em OROZ,
S., Melodrama: O Cinema de Lágrimas da América Latina.
121
XAVIER, I., O Olhar e a Cena: Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues, p.
130.
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abusando dos recursos melodramáticos, esses cineastas buscavam com essas obras
retratar os dilemas vividos por uma sociedade que se modernizava rapidamente,
mas ainda ancorava sua vida subjetiva em padrões e comportamentos arcaicos.
Paralelamente ao cinema e ao teatro, outro gênero melodramático começa a
se propagar nos meios populares e na classe média brasileira: a fotonovela.
Espécie de novela em quadrinhos que utiliza a fotografia no lugar do desenho de
forma a contar, linearmente, uma história, a fotonovela originou-se na Itália , em
1947, dois anos após o fim da II Guerra e do fascismo italiano. Embora as
primeiras fotonovelas tenham sido baseadas em romances consagrados como O
Conde de Monte Cristo, de Dumas, ou Ana Karennina, de Tolstoi, sua
popularização se dá com o crescimento do cinema neorrealista italiano e o sucesso
de seus atores. Vitório Gassman, Sofia Loren, Laura Antonelli, Gina Lolobrigida,
Silvana Mangano são alguns que se consagraram em fotonovelas italianas. No
Brasil, as fotonovelas surgem no mesmo ano que na Itália e, rapidamente,
conseguem a adesão de leitoras das mais diversas camadas sociais. Revistas como
Capricho, Grande Hotel, Ilusão, Sétimo Séu, Carícia e Contigo tinham amplas
tiragens e só eram superadas pelas histórias em quadrinhos infantis.
122
As fotonovelas vão pouco a pouco aderindo ao melodrama dos folhetins e se
concentram em intrigas sentimentais em que a heroína quase sempre é uma moça
pobre que sonha com um amor repleto de obstáculos, mas no final consegue
atingir seu objetivo. Os personagens obedecem à lógica maniqueísta os bons são
sempre bons e terminam felizes; os maus são sempre maus e no final são punidos
ou se arrependem. As histórias das fotonovelas, em geral, versam sobre temas que
reforcem os princípios éticos, morais e sociais de uma sociedade urbana que cada
vez mais integra a mulher como aquela que zela pelo funcionamento da vida
122
Nos anos 1970, havia mais de 20 revistas de fotonovelas em circulação no Brasil, publicadas
pelas principais editoras do mercado. Em pesquisa do Instituto Verificador de Circulação (IVC)
realizada em 1975, a revista Capricho vendia quinzenalmente 273.050 exemplares e possuía, em
todo o país, apenas três assinaturas. Em Portugal e nos países africanos de colonização portuguesa,
com fotonovelas italianas, Capricho vendia 11.186 exemplares e tinha apenas um assinante,
anônimo. Super Novelas Capricho, com circulação quinzenal, vendia 104.903 exemplares, com
apenas dois assinantes no Brasil; Ilusão vendia quinzenalmente 108.319 exemplares e Noturno
tinha uma venda mensal de 72.007 exemplares. MILLARCH, A., As Fotonovelas. Jornal Estado
do Paraná, Curitiba, 10/02/1974; 15/03/1975.
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doméstica e cuida das relações afetivas da família.
123
A estrutura narrativa da
fotonovela é muito semelhante às histórias em quadrinho: fotografia e texto verbal
formam um plano de ação; o texto pode reproduzir o discurso dos personagens
e/ou funcionar como legenda ou resumo da ação; cada quadro-sequência é lógico
e cronológico e, muitas vezes, utiliza o recurso da elipse. Em muitos casos a
história se desenrola por vários números da revista, o que aproxima a fotonovela
do folhetim do século XIX, do folhetim radiofônico e, posteriormente, da
telenovela. O narrador desempenha papel importante na fotonovela porque, além
de ajudar a esclarecer o leitor sobre a ação, também tem a função de emitir juízos
de valor, considerações morais, justificativas sobre o comportamento dos
personagens e, fundamental, controla o ritmo da história, alongando-a ou
retardando-a. No rádio e na televisão, esse papel será desempenhado pelo autor de
radionovelas e telenovelas.
O rádio brasileiro naturalmente também foi seduzido pelo melodrama e o
folhetim. Nas décadas de 1940 e 1950, dios como a Mayrink Veiga e a Rádio
Nacional ficaram célebres pelas transmissões de radioteatros, a primeira
denominação dos folhetins radiofônicos. Na Mayrink Veiga, o famoso programa
de Ademar Casé abriu espaço para a encenação de textos clássicos e folhetins
românticos como Os Miseráveis e O Corcunda de Notre-Dame, de Victor Hugo,
O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Bronté, O Conde de Monte Cristo, de
Alexandre Dumas, e as aventuras de Rocambole, de Ponson Du Terrail, como
também textos de escritores brasileiros a exemplo de A moreninha, de Joaquim
Manoel de Macedo. Sem falar nas histórias da série Teatro Policial, escrita por
Aníbal Costa, com aventuras e mistério envolvendo um detetive brasileiro, que
fizera um sucesso estrondoso. Mas foi na Rádio Nacional que o radioteatro, ou a
radionovela, como passou a se chamar, atingiu o auge da popularidade.
Em 1941 estreou a novela Em Busca da Felicidade, do cubano Leandro
Blanco e editada por Gilberto Martins. Transmitida três vezes na semana, o
123
É curioso observar que a fotonovela surgiu na Itália e se espalhou por países latinos como
França, Espanha, Portugal, América Latina, África do Norte, mas não teve penetração no mundo
anglo-saxão. Talvez a relação entre melodrama e os códigos e regras baseados em honra e
prestígio que regem as sociedades mediterrâneas possam servir de pista para compreender esse
fenômeno. Não desenvolverei essa questão aqui por ir além dos objetivos principais desse
trabalho.
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melodrama fez tanto sucesso que ficou no ar até maio de 1943. A partir desse
lançamento, as radionovelas (pedaços de histórias transmitidos em capítulos, que
são interrompidos através de um “gancho” no momento de tensão ou suspense)
ocuparam cada vez mais espaço na programação da Rádio Nacional. Cuba era o
principal centro difusor do gênero. Além de ser, na época, o quarto país do mundo
em números de receptores de rádio (atrás apenas de Estados Unidos, União
Soviética e Canadá), tinha uma tradição (na literatura e no cinema) de contar
histórias melodramáticas, lacrimosas e arrebatadoras
124
. O incipiente rádio
brasileiro encontrou, assim, um polo de produção de melodramas radiofônicos que
se adaptava bem à sensibilidade do público. Outros folhetins cubanos foram
traduzidos e adaptados, até que o locutor e radioator Amaral Gurgel, que desde
jovem escrevia peças teatrais, foi contratado pela Nacional também como
novelista para escrever histórias “autenticamente brasileiras”. Assinou Penumbra,
inaugurando o horário nobre (20 horas) de transmissão de novelas radiofônicas.
Em seguida vieram Oduvaldo Viana, que escreveu Renúncia, sucesso retumbante,
Giuseppe Ghiaroni, que assinou, entre outras, a novela Mãe, e José Mauro, diretor
artístico da Rádio Nacional, que passou a escrever melodramas como Abismo,
Encontrei-me com o Demônio e A Sombra com Berenice. O ponto alto das
radionovelas foi a transmissão de O Direito de Nascer, do autor cubano Félix
Caignet, com tradução e adaptação de Eurico Silva, e tendo Paulo Gracindo como
Albertinho Limonta, que estreou em 1951 e ficou quase três anos no ar.
A indústria de novelas radiofônicas crescia, acompanhada pelos anunciantes
e agências de publicidade. Assim como ocorrera nos Estados Unidos e em Cuba,
empresas de limpeza e higiene passaram a patrocinar as radionovelas dirigidas a
um público majoritariamente feminino. A Standard Propaganda, que tinha como
cliente a Colgate-Palmolive, criou um departamento de radioteatro com o objetivo
de garantir a exclusividade das novelas da Rádio Nacional. Heroínas vítimas das
artimanhas de um vilão sedutor; gêmeos separados pelo acaso; amores proibidos
por códigos sociais como o da moça pobre que se apaixona pelo moço rico ou
vice-versa; segredos de família envolvendo a maternidade ou a paternidade;
124
Martín-Barbero ressalta a tradição popular de leitura coletiva oral de histórias, principalmente
nas fábricas de tabaco cubanas. MARTÍN-BARBERO, J., Dos Meios às Mediações:
Comunicação, Culturas e Hegemonia, p. 114.
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escândalos financeiros, crimes e assassinatos misteriosos; honras ultrajadas e
projetos de vingança: tudo era tema para o Bem e o Mal se enfrentarem nas
radionovelas. A participação dos ouvintes emitindo opiniões sobre o rumo da
trama ou dos personagens, via cartas, também era comum e foi a partir daí que as
pesquisas de audiência deram seus primeiros passos. Um mercado se abriu para
atores: o radioteatro passou a contar com elenco cada vez mais numeroso e muitos
profissionais, que posteriormente se consagrariam na televisão, tiveram seus
primeiros sucessos como radioatores. É o caso de Paulo Gracindo, Henriqueta
Brieba, Mário Lago, Sadi Cabral, e até Marília Pera, jovem atriz que surgia na
época.
O uso do som ambiente era essencial para reforçar o tom dramático
desejado situações de suspense, encontros amorosos, momentos de medo e
desenvolveu-se toda uma indústria que se fez acompanhar por profissionais
voltados para a sonoplastia em radionovelas. A “cozinha sonora” da Nacional
exibia detalhes de requinte para dar maior realismo às histórias. Ao fundo do
estúdio de radioteatro havia uma pequena casa com portão, jardim de cascalho,
tanque, porta, janela que reproduziam os sons originais. Houve também um
grande estímulo ao desenvolvimento de trilhas musicais compostas especialmente
para essas radionovelas. A canção-tema da novela Ternura, de Amaral Gurgel,
composta pelo próprio e por Lírio Panicali, se tornou um sucesso na voz do cantor
Francisco Alves, conhecido como “o Rei da Voz”. Muitos jovens músicos e
letristas se especializaram em compor canções para radionovelas. O maior sucesso
de todos foi o samba-canção Fracasso, composto por Mário Lago na voz de
Francisco Alves, para a novela de mesmo nome. Escritores e dramaturgos
encontraram um promissor mercado de trabalho e tornaram-se “especialistas” em
folhetins radiofônicos.
125
Entre 1941 e 1959, foram transmitidas 807 radionovelas
escritas por cerca de 118 autores, entre eles Amaral Gurgel, Oduvaldo Viana,
Ivani Ribeiro, Dias Gomes e Janete Clair. São esses mesmos autores,
reconhecidos por suas radionovelas, que vão para a recém-criada televisão para
escrever suas histórias com um novo ingrediente, a imagem, e inaugurar a ficção
125
Para uma análise mais detalhada sobre a radionovela na Rádio Nacional, ver SAROLDI, L. C.;
MOREIRA, S. V., Rádio Nacional: O Brasil em Sintonia.
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seriada moderna, a teledramaturgia, ou a teleficção como alguns passaram a
chamar, gênero que reúne elementos do melodrama, do romance-folhetim realista
e da crônica.
Em novembro de 1950, dois meses após a inauguração da TV Tupi em São
Paulo, primeira emissora de televisão brasileira, estreava o teleteatro A Vida por
um Fio, adaptação do filme americano Sorry, Wrong Number, um drama policial
dirigido por Demerval Costa Lima e Lima Duarte, estrelado pelo próprio Lima
Duarte, Lia de Aguiar, Walter Forster, Dionísio Azevedo e Yara Lins. Contava a
história de uma mulher que era assassinada pelo marido com um fio de telefone.
Mais melodrama, impossível. No final de 1951, o teleteatro se fixa na
programação com o Grande Teatro das Segundas-Feiras trazendo no elenco
Cacilda Becker, Bibi Ferreira, Maria Della Costa e Procópio Ferreira.
No mesmo ano, vai ao ar, duas vezes por semana, Sua Vida me Pertence,
considerada a primeira novela brasileira (ainda o nos moldes que iria ser criada
em 1959 e que conhecemos hoje), com Vida Alves e Walter Forster, produzida
pela agência de publicidade norte-americana J. W. Thompson, e que se tornou
célebre por ter mostrado, ao vivo, o primeiro beijo da televisão brasileira.
A televisão nessa época era feita “ao vivo”, pois não havia videoteipe.
Assim, os gêneros teleteatro e telenovela se confundiam nesse início da televisão
( acontecera no rádio) e o que acaba se destacando para o espectador é mais a
história em si do que a performance dos atores. Para aqueles que vinham do rádio,
acostumados a usar apenas a voz em seu trabalho, as dificuldades se apresentavam
na expressão corporal. A entonação era perfeita, mas os gestos e a postura do
corpo não sintonizavam corretamente com as necessidades da cena. Além disso,
havia a dificuldade para memorizar os scripts. Para os que vinham do teatro,
acostumados aos gestos largos e à entonação empostada da encenação no palco, o
difícil era adotar uma representação mais intimista para a câmera de televisão.
Isso tudo agravado pela falta de estrutura das emissoras nesse início: não havia
departamento de figurinos e os próprios atores levavam suas roupas de casa; os
cenários eram completamente improvisados e como as filmagens eram feitas em
um único pequeno estúdio, a movimentação da câmera era limitada e praticamente
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se deslocava em planos médios.
126
Em função dos custos e dos limites de
equipamentos, praticamente não havia gravações externas e a sonoplastia
continuava a ser feita como no rádio, exclusivamente pelo talento do contrarregra.
Ao longo da década de 1950, o teleteatro vai se firmando com programas
como TV de Vanguarda, em 1952, na TV Tupi, que encenou clássicos como
Otelo, Macbeth e Hamlet, de Shakespeare, e Henrique IV, de Pirandello, e
adaptou filmes como, por exemplo, A Herdeira, de Henry James. Outro espaço de
fortalecimento do teleteatro na televisão foi o Grande Teatro Tupi, onde Procópio
Ferreira, Fernanda Montenegro, Cacilda Becker, Maria Della Costa, Ítalo Rossi,
Sérgio Britto, Cleide Yáconis, Nathália Timberg, Francisco Cuoco, entre outros,
encenavam desde A Morte do Caixeiro Viajante, de Arthur Miller, até Vestido de
Noiva, de Nelson Rodrigues.
Também a telenovela ocupa cada vez mais espaço nas programações das
emissoras, próxima do formato dramatúrgico que, posteriormente, passou a ser
reconhecida, porém desprestigiada em função do seu caráter claramente
comercial. Certamente aqui uma série de preconceitos em relação à herança de
formatos e textos radiofônicos comparados aos textos literários e teatrais. Entre
1951 e 1963 foram encenados 1.890 teleteatros contra 164 telenovelas. A
televisão, nesse momento, ainda não era um veículo popular. Menos de 5% da
população dispunha de um receptor de televisão em casa. Em 1959 foi criada a
TV Excelsior, a primeira emissora de televisão administrada com uma visão
empresarial mais moderna, tanto do ponto de vista da estrutura de sua
programação quanto sob o aspecto mercadológico. E é com uma estratégia de
conquista de mercado que a Excelsior, apoiada pelas agências de publicidade que
procuravam atrair seus clientes para um produto que já tivera êxito nas soap
operas americanas e nas radionovelas brasileiras, decide lançar o melodrama
diário, que agora na televisão. Assim vai ao ar a primeira telenovela diária
brasileira, 2-5499 Ocupado, um texto do autor argentino Miguel Migre, estrelando
Tarcísio Meira e Glória Menezes nos papéis principais, patrocinada pela Colgate-
126
Sobre a história da televisão brasileira, ver ORTIZ, R., BORELLI, S. e RAMOS, J. M. O.,
Telenovela: História e Produção.
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Palmolive. A história de um homem que se apaixona por uma presidiária que
trabalha como telefonista no presídio a quem conhece pela voz (e, portanto,
desconhece sua real condição) encantou um público acostumado aos dramas
amorosos das novelas radiofônicas.
No final da década de 1950 e início da década de 60, uma série de
transformações sociais, políticas e econômicas ocorre na sociedade, e acaba tendo
forte repercussão na televisão brasileira. O governo de Juscelino Kubitschek
estimula a produção nacional, a substituição de importações e a construção de
Brasília; os movimentos políticos e culturais do governo João Goulart de
valorização do nacional fazem com que prevaleça um sentimento de que tudo que
vem de fora deve ser rechaçado por estar “alienado” da realidade brasileira. É
nesse momento em que uma maciça entrada de “enlatados” americanos nas
televisões brasileiras a essas alturas enfrentando as dificuldades de produção,
atualização tecnológica e gestão mais profissional que a produção de telenovela
demonstra um pequeno declínio. Mas não deve ser atribuído apenas à presença de
seriados americanos; a telenovela continuava sendo considerada um “gênero
menor”. As emissoras e a classe artística preferiam uma dramaturgia “mais culta”.
Assim, mesmo com a presença das séries americanas, o teleteatro se mantém em
crescimento. Porém, a partir de 1963, quando a televisão brasileira começa a
crescer (seja como indústria de entretenimento, seja pelo número de domicílios
que passam a contar com aparelhos de televisão), assiste-se a uma mudança na
preferência e no gosto do público. As novelas brasileiras começam a fazer parte
da formação cultural da população.
Em 1964, estreou na TV Tupi a telenovela O Direito de Nascer, texto
original do autor cubano Félix Caignet, sucesso no rádio brasileiro e em outros
países latino-americanos. Os ingredientes do folhetim melodramático estavam
todos ali: a mocinha, mãe solteira, tem um filho que é ameaçado pelo pai tirano; a
empregada foge com a criança e o cria até a vida adulta; o avô vilão é salvo pelo
neto bastardo que acaba se casando com a prima. Os brasileiros que tinham acesso
aos aparelhos de TV, pouco mais de 10% da população, paravam para
acompanhar a história de Albertinho Limonta, Mamãe Dolores e Maria Helena.
No encerramento da novela, numa época em que não existia transmissão via
satélite, o público lotou o ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, para assistir à
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transmissão do desfecho da história. No dia seguinte, o mesmo aconteceu no
Maracanãzinho, no Rio de Janeiro.
No ano seguinte é inaugurada a TV Globo no Rio de Janeiro. Na nova
emissora, a primeira fase da ficção seriada se expressou nas tramas assinadas pela
cubana exilada Glória Magadan. O estilo folhetinesco de “capa e espada” se
traduzia em tramas como Eu compro esta mulher, baseada em O Conde de Monte
Cristo, e A rainha louca, inspirada em Memórias de um médico, ambos folhetins
de Alexandre Dumas. Ou mesmo tramas rocambolescas como O homem proibido,
uma história de amor que se passava em Canchibur, na Índia, em que o
protagonista, uma mistura de Rocambole com Zorro, impedido de viver sua
paixão, torna-se uma espécie de justiceiro, vingando-se de todos os seus
antagonistas e deixando, após a vingança, a marca “Demian esteve aqui.” Os
atores, em figurinos pomposos com babados, bordados e rendas, casacas e
cartolas , adotavam o estilo melodramático do excesso gestos largos, fala
empostada, modo de representação intenso e lágrimas, muitas lágrimas. O
pequeno público de uma televisão ainda jovem, majoritariamente feminino, se
encantava com esses folhetins que saíam das coleções populares e passavam a ser
encenados. Cenários exóticos compostos por castelos, masmorras, desertos e
navios, filtrados pelas lentes das câmeras de TV, transportavam o espectador para
Paris do século XVIII ou para as dunas do deserto do Saara. Esses folhetins
ativavam a imaginação romântica de uma espectadora que ainda tinha como
principal meta encontrar seu príncipe encantado e casar. Mas é no final desses
mesmos anos 1960 que assistimos a grandes mudanças sociais acerca do
indivíduo, do casamento, do amor e das relações familiares: época da pílula
anticoncepcional, da entrada da mulher no mercado de trabalho, do movimento
hippie e da ideologia de paz e amor, de manifestações estudantis, de movimentos
feministas, de maior liberdade sexual. A população, cada vez mais concentrada
nos grandes centros urbanos, mudava seus estilos de vida e hábitos de consumo.
Movimentos e meios de difusão culturais passaram a expressar essas
transformações justamente num momento político avesso a qualquer liberdade: o
Brasil estava em plena ditadura militar e tudo o que se desejava era “manter as
coisas no seu devido lugar”.
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A televisão comercial, que cresceu no Brasil na esteira do projeto de
integração nacional dos militares através de uma ampla rede de telecomunicações
da Embratel
127
, logo se veria obrigada a acompanhar essas mudanças. Afinal, sua
existência dependia de um mercado publicitário que começava a vender novas
facilidades para a família brasileira, especialmente para um público feminino de
classe média que saía da cozinha para o mercado de trabalho.
Em 1968, a TV Tupi, das Emissoras Associadas, líder no mercado de
televisão nos anos 60, é a precursora da adaptação dos folhetins televisivos para a
realidade brasileira: com a novela Beto Rockfeller o público espectador descobre-
se nas telas de televisão. No ano seguinte, a Rede Globo (já em rede) segue o
caminho de sua concorrente e exibe Véu de Noiva, da autora Janete Clair,
inspirada numa notícia de jornal: “Vende-se um véu de noiva”. A novela retratava
o universo da Zona Sul carioca, com bares da moda, praias e boates. Protagonistas
femininas vestidas de minissaia e olhos bem delineados por forte maquiagem,
vivem tramas envolvendo fins de noivados e casamentos, adoção de crianças,
cirurgia plástica e automobilismo. Personagens da vida real se misturam a fictícios
como, por exemplo, o poeta Vinícius de Moraes e o cronista Carlinhos de
Oliveira, que participavam de cenas sobre a boemia de Ipanema, o piloto Jackie
Stewart em cenas sobre automobilismo e um juiz que decretou seu veredicto sobre
quem ficaria com a criança adotada a mãe verdadeira ou a adotiva. A sensação
de realidade e ficção misturando-se era ainda reforçada por cenas em que
personagens de Véu de Noiva têm uma consulta com um médico da novela Verão
Vermelho, de Dias Gomes, exibida num horário mais tarde. Essa intertextualidade
reforçava a impressão provocada no espectador de que o folhetim retratava a
realidade. Embora houvesse uma vigorosa tentativa em aproximar as telenovelas
do cotidiano do espectador, a linguagem melodramática e os temas que
127
A rede de telecomunicações criada pelos militares rapidamente expandiu o mercado de
televisão no país. Em 1960, existiam apenas 200 mil aparelhos receptores de televisão e apenas 4,6
% da população tinham acesso a programas de televisão. Dez anos depois, cerca de 4 milhões de
lares (cerca de 31% do total) contavam com aparelhos de televisão, com aproximadamente 25
milhões de telespectadores (TV Ano 25: 10 Anos de Sucessos. Mercado Global, outubro de 1975).
Em 1980, 26,4 milhões de residências estavam equipadas com aparelhos de TV (55% do total) e,
no final da década, mais de 64% das residências dispunham de pelo menos uma televisão
(MATTOS, S., O Desenvolvimento dos Meios de Comunicação). No final da década seguinte, 54
milhões de aparelhos de televisão estavam distribuídos por 38 milhões de domicílios. Os dados
mais recentes indicam que, em 2006, 93% dos lares brasileiros contavam com pelo menos um
aparelho de televisão. (PESQUISA NACIONAL POR AMOSTRA DE DOMICÍLIOS. Rio de
Janeiro: IBGE, 14/09/2007).
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caracterizavam os romances-folhetins ainda se mantinham. Foi a primeira novela
a ter músicas compostas especialmente para a trilha sonora Irene, de Caetano
Veloso, e Gente Humilde, de Chico Buarque, são exemplos. O uso da música, a
melo do melodrama, pontuando momentos dramáticos ou servindo para compor o
perfil psicológico dos personagens, tornou-se um elemento fundamental da
estrutura do folhetim eletrônico.
Histórias voltadas para os dramas familiares “à la Nelson Rodrigues”
começaram a povoar as narrativas ficcionais: a protagonista vítima de vilões ou
vilãs; projetos de vingança da honra ultrajada; a jovem rica que se apaixona pelo
rapaz pobre e vice-versa; maridos enciumados e esposas dissimuladas; mistérios e
assassinatos. Histórias que denotam um universo maniqueísta em que estão em
jogo o Bem e o Mal, o moderno e o tradicional, o progressista e o conservador,
tudo sem nuances e meios tons. Porém, uma clara diferença entre os dramas
novelescos dos primeiros tempos e os de agora: trata-se de mostrar “a vida como
ela é”.
A distância entre a ficção e a realidade do espectador diminui
consideravelmente por meio de “histórias do dia a dia” (os faits divers dos
jornais), de cenários familiares, personagens comuns, figurinos contemporâneos.
Mas o elemento que mais reforça o tom de “modernidade” é uma linguagem
coloquial, leve, tipo “conversa ao pé do ouvido”, com diálogos ágeis, e o emprego
de termos e expressões usuais, gírias, com poucas figuras de linguagem a o
ser que componham a personalidade do personagem e o uso de bordões, tudo
muito próximo ao estilo da crônica. Todos esses elementos ajudam a criar
intimidade com o espectador e a sensação de que a “realidade” mostrada na tela
espelha uma realidade cotidiana compartilhada por individualidades e
coletividades. Não se trata do “eu” se projetando como uma representação cega do
outro. Como Costa Lima sugere, é uma “mimese artística”
128
, a partir da intenção
do autor e de todos os produtores envolvidos de provocá-la. O “prazer da
mimese” despertado no público vai além do mero entretenimento ou da
identificação de um retrato de sua experiência cotidiana; é um espaço de
128
Cf. LIMA, L. C., História. Ficção. Literatura, p. 206.
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representação das experiências sociais, dos valores e costumes, e no qual o
receptor vive um momento de imersão, onde ele reelabora a imagem e se libera da
mera semelhança. Ou seja, ele “seleciona” aquilo que lhe traz um significado
mimético daquilo que é simples divertimento ou indica semelhança com sua vida
pragmática. E, embora o espelhamento se concretize, um limite (mesmo que
tênue) entre a “realidade representada” (a ficção) e a “realidade vivida”.
E aí, suponho que o elemento melodramático seja essencial: por mais que o
maniqueísmo seja reconfortante para mentes que buscam o entretenimento, o
processo de “leitura” e compreensão de um conteúdo, mesmo visual como a
televisão, em que a imagem fornece os enunciados sem muito esforço de reflexão,
é um processo mais complexo, onde nem tudo é preto e branco. A ficção é
percebida e revelada exatamente pelo excesso, gestos largos, diálogos
arrebatadores, personagens que se enquadram no Bem ou no Mal, mas que se
mesclam a todo instante com o naturalismo da vida cotidiana. Na verdade, o
melodrama pontua essas narrativas como se fosse ele que delimitasse as fronteiras
entre ficção e realidade.
Aqui penso haver outra pista para refletir sobre as acusações de
superficialidade dos enredos e no uso de clichês na construção de personagens nas
ficções seriadas. A ideia do uso de clichês ou estereótipos remete às noções de
artificialidade, vulgaridade, banalidade nas representações, que levam à inibição
da reflexão e estimulam a passividade. É como se eles reduzissem e mascarassem
a “verdadeira” representação do objeto ou pessoa. Nesse sentido, usar um clichê
significa abrir mão da originalidade, da surpresa, para adotar o “lugar-comum”, o
trivial, a repetição (e, portanto, enfrentar a ansiedade por dizer e fazer coisas que
outras pessoas já disseram e fizeram)
129
. Nessa concepção, adotar um clichê revela
129
A definição da palavra clichê talvez nos ajude a pensar na associação entre seu uso e a ideia de
repetição, de não originalidade. Clichê é uma placa de metal, geralmente zinco, gravada
fotomecanicamente em relevo, obtida por meio de estereotipia (de onde vem também a palavra
estereótipo, usada como sinônimo de clichês quando queremos dar o sentido de lugar-comum,
chavão), galvanotipia ou fotogravura, destinada à impressão de imagens e textos em prensas
tipográficas. Talvez não seja gratuita a relação entre as acusações feitas ao clichê ou ao estereótipo
e as que eram feitas aos jornais e livros populares, impressos usando a estereotipia (ou os clichês)
nos séculos XVIII e XIX. Clichê também é usado pelo jargão jornalístico para indicar as diversas
impressões dos jornais (pelo menos até o uso das modernas impressoras e do surgimento da
internet). O primeiro clichê do jornal é o mais “antigo”, o que traz as primeiras informações sobre
determinado fato. Os segundos, terceiros (e até mesmo quartos) clichês trazem notícias mais
recentes e/ou com mais detalhes, eventualmente.
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uma preguiça linguística, recorrer a metáforas banais como forma de expressão
oral, escrita ou visual.
A relação entre a retórica e o clichê merece ser assinalada. Na Antiguidade e
mesmo na Idade Média repetir palavras era um elemento unificador de uma
comunidade. Os topoi tinham grande prestígio, sobretudo na Antiguidade, porque
serviam aos propósitos da retórica aristotélica: funcionavam como uma espécie de
catálogo de tópicos ou instruções à disposição do orador para ajudá-los a
persuadir a audiência permitindo, por meio do compartilhamento das convenções
pela comunidade, um número reduzido de manobras interpretativas. Quando a
retórica começou a perder a sua importância na vida pública e passou a ficar
restrita ao campo literário, os topoi assumem outra função: transformam-se em
padrões, tipificações repetidas indiscriminadamente, ou seja, clichês. Nas
sociedades modernas, onde a ideia de indivíduo se impõe, em que a aspiração pela
originalidade e inovação é fundamental para conferir singularidade a esse
indivíduo, a reprodução, a imitação e a tipificação deixam de ser elementos
unificadores da comunidade e se transformam em clichês.
Flaubert, em seu Dictionnaire des Idées Reçus, uma sátira ao uso excessivo
de clichês durante o segundo império francês, afirma que o homem é feito de
citações, mesmo que resista a esse fato. O lexicógrafo de origem neozelandesa,
Eric Partridge, em seu A Dictionary of Clichés, de 1940, defende que à medida
que os padrões de vida da sociedade se elevam, aumenta a preguiça em relação à
qualidade dos discursos oral e escrito. O uso indiscriminado de clichês seria a
prova da permissividade e da falta de vigilância em relação aos discursos dos
meios de comunicação, dos políticos e dos publicitários que empobreceriam a
língua inglesa. Julia Cresswell, em The Penguin Dictionay of Clichés, reafirma a
ideia de Eric Partridge de que os clichês poupam ao homem o trabalho de
reflexão, e observa que “essas expressões que pensam por nós” têm um lado
perigoso, mas também sedutor. Os clichês facilitam a comunicabilidade, a
interatividade entre as pessoas.
Gonçalves
130
, em interessante trabalho sobre o uso do “lugar-comum” nas
interações sociais, analisa o conto Um Jogo, de Alberto Morávia. A protagonista e
130
Cf. GONÇALVES, M. T., Linguagem Comum: Um Ensaio sobre Clichês, passim.
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o noivo, por sugestão dela, decidem falar evitando o uso do lugar-comum e as
frases-feitas. A jovem propõe também uma segunda regra: não falar nada que não
seja absolutamente original. O rapaz decide cumprir estritamente o combinado e
começa a exprimir-se também utilizando “frases funcionais. Logo ela reage
rapidamente diante da monotonia, da incomunicabilidade e da distância que se
instala na relação, usando um clichê para insinuar que ele tem outra mulher. O
namorado denuncia o “lugar-comum” e a partir daí começa a vencer o jogo
chamando a atenção para cada frase da jovem como “frase feita”. A jovem vai
percebendo que ela também tende para o lugar-comum. A diferença seria que
enquanto no namorado isso se reportava à vida pública (política, sociedade,
cultura, trabalho), nela reportava-se à vida particular, às “coisas do coração”. A
moça se desespera, entra silenciosamente na casa do namorado e percebe o quanto
a situação era “clichê”, reproduzida em centenas de novelas. Chora e decide
demonstrar seu verdadeiro amor num “ato sincero”. Quando o namorado chega,
ela se tranca no banheiro e encena um suicídio ameaçando jogar-se da janela até o
solo, numa altura segura, mas não chega a concretizá-lo (mais um clichê). No
exato momento, vê no peitoril da janela uma fotonovela em que a mocinha encena
um suicídio também. Desiste de seu ato e pensa que até a ação mais sentida e mais
autêntica não era mais que uma paródia, que mesmo o desejo de morte mais
sincero estava despojado de autenticidade.
131
Conclui que “os nossos sentimentos
mais genuínos são frequentemente expressos através de comportamentos banais,
que duplicam os que observáramos em outras pessoas ou encontráramos em
livros, filmes ou outros objetos artísticos.
132
O jogo e o conto terminam logo em
seguida quando a jovem reconhece que não é possível fugir aos lugares-comuns e
sugere que o casal se resigne a usá-los. O clichê, portanto, funcionaria como
facilitador da sociabilidade entre os membros de uma sociedade na medida em
que ele possibilita o reconhecimento. Comportar-se e repetir expressões parecidas
com aquelas que outras pessoas do grupo social dizem, ajudam na integração do
sujeito nessa sociedade.
131
Cf. MORÁVIA, A., O Paraíso, passim.
132
GONÇALVES, M. T., op. cit., p. 12.
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101
Os clichês seriam, assim, referências comuns que contribuem para a
compreensão de um texto literário, um filme ou uma telenovela. Pode haver,
inclusive, situações em que a supressão de um clichê leve ao não reconhecimento
ou ao não entendimento de uma obra. Um exemplo disso são os filmes ou
romances policiais em que excluir alguns ingredientes considerados clichês pode
comprometer a trama.
133
Antonio Candido, ao analisar a personagem de um
romance, observa que sua forma fragmentada reproduz, no plano da técnica de
caracterização, “a maneira fragmentária, insatisfatória, incompleta com que
elaboramos o conhecimento de nossos semelhantes”. Ele ressalva que na vida a
fragmentação é imanente à experiência, é uma condição que não está sob nosso
controle, mas à qual nos submetemos. No caso do romance,
ela é criada, estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor, que delimita e
encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é a vida, o
conhecimento do outro, que pode consistir numa escolha de gestos, frases, de
objetos significativos, marcando a personagem para a identificação do leitor, sem
com isso diminuir a impressão de complexidade e riqueza.
134
Antonio Candido reforça sua percepção sobre as diferenças entre os
personagens reais e os da ficção:
Nesse mundo fictício, diferente, as personagens obedecem a uma lei própria. São
mais nítidas, mais conscientes, têm contorno definido, ao contrário do caos da
vida pois há nelas uma lógica preestabelecida pelo autor, que as torna paradigmas
e eficazes.
135
Considerando as especificidades do romance literário e da ficção televisiva,
é possível afirmar que a simplificação dos personagens em uma criação ficcional
na televisão pode ser um recurso utilizado pelo autor para torná-los reconhecíveis
e não, necessariamente, para empobrecê-los ou retirar-lhes a densidade. Ao
tipificar personagens e situações, a ficção não está necessariamente reduzindo-os a
133
“Para um leitor fiel de Raymond Chandler, um romance em que Philip Marlowe não tenha uma
ressaca, não se envolva com uma mulher fatal, continuando evidentemente sozinho no final, não
tenha alguns problemas com a polícia ou não se refira várias vezes ao modo como estava vestido e
bem barbeado em determinadas ocasiões, talvez seja um livro decepcionante. Para o leitor que
espera ver repetido um padrão familiar de funcionamento a supressão, ou a substituição, de
algumas peças poderia ser desconcertante na medida em que parte do prazer da leitura deriva da
antecipação e da confirmação da presença dessas peças.” Ibid., p. 37.
134
CANDIDO, A., A Personagem do Romance, p. 58.
135
Ibid., p. 67.
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102
relatos únicos; o modelo pode produzir aproximações sem eliminar as
singularidades.
Essa discussão leva a pensar que as análises críticas sobre clichês e
estereótipos têm como pano de fundo a adequação mimética em relação à
realidade, à plausibilidade das situações, à verossimilhança dos comportamentos
apresentados. Como mostra Shoat e Stam, uma obsessão pelo “realismo”
emoldura as análises de uma obra artística apresentada nos meios de
comunicação, fazendo com que tudo se resuma numa questão de identificar erros
e distorções, “como se a realidade de uma comunidade fosse simples, transparente
e facilmente acessível, e mentiras fossem facilmente desmascaradas”.
136
Observam, usando o conceito de discurso polifônico de Bakhtin, que as
consciências humanas e as práticas artísticas não entram em contato direto com a
realidade, mas são mediadas por discursos e linguagens tanto dos que produzem
quantos dos que fruem a obra artística. Esta, por sua vez, é essencialmente social,
não porque represente o real, mas porque se trata de
uma enunciação situada historicamente uma rede de signos endereçados por um
sujeito ou sujeitos constituídos historicamente para outros sujeitos constituídos
socialmente, todos imersos nas circunstâncias históricas e nas contingências
sociais.
137
Assim, se por um lado um determinado filme desperta no espectador uma
relação mimética com a realidade, por outro realiza um ato de interlocução entre
produtores e receptores contextualizados socialmente. Para os autores, mais
importante que a veracidade das representações é a percepção dos discursos que
estão em diálogo naquela produção artística. Os espectadores, quando vão assistir
a um filme, chegam à sala de cinema equipados com uma percepção do real
baseada nas suas experiências, permitindo-lhes aceitar, questionar ou mesmo
subverter as representações de um filme. Esses espectadores podem assistir ao O
Ladrão de Bagdá como uma versão fantasiosa ocidental de um conto de As Mil e
Uma Noites (também fantástico), sem achar que ali está uma representação da
Bagdá real.
136
SHOAT, E.; STAM, R., Estereótipo, Realismo e Luta por Representação, p. 261.
137
Ibid., p. 265.
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103
Ao analisar as representações racistas no cinema hollywoodiano, Shohat e
Stam verificam que qualquer comportamento negativo em relação aos negros é
imediatamente generalizado e se torna uma alegoria homogeneizadora, ao passo
que as representações dos brancos são vistas como “naturalmente” diversas,
exemplos de uma multiplicidade que não pode sofrer generalizações. Portanto, a
questão do uso de estereótipos (ou clichês) estaria menos relacionada à
representação ou não do “real” e muito mais ao fato de que grupos marginalizados
ou em situação de subordinação social não têm controle sobre suas
representações.
Pode-se, então, pensar que o uso dos clichês (ou dos estereótipos) na ficção
seriada televisiva funcionaria como meios para a construção de “molduras” de
reconhecimento, formas de representação construídas pelos produtores, em
diálogo com os receptores, para delimitar identidades individuais e coletivas.
Recorre-se aqui ao conceito de frame (ou moldura), desenvolvido por Erving
Goffman, para tentar aprofundar essa hipótese. Na trilha da fenomenologia social
de Alfred Schutz
138
, com suas noções de províncias de significado e múltiplas
realidades,
139
Goffman busca compreender os princípios que governam a
experiência social do indivíduo e seu envolvimento subjetivo nessa experiência.
Levanta o problema da dificuldade em delimitar a noção de realidade em vez de
perguntar „o que é a realidade‟, ele indaga: em que circunstâncias pensamos que
as coisas são reais? , mesmo considerando que as realidades são socialmente
construídas. Observa também as dificuldades em estabelecer fronteiras entre essas
“múltiplas realidades” e discute as “passagens” de uma a outra.
140
Sua reflexão parte da constatação de que os indivíduos em interação correm
permanente risco de desencontros e conflitos. Assim, as interações e expressões
de vontades, desejos e objetivos estão sempre vulneráveis a interpretações
divergentes entre os atores sociais. Para que a comunicação entre sujeitos ocorra,
138
Para uma melhor compreensão do diálogo entre Goffman e Schutz (assim como com William
James, William Thomas, Gustav Ichheiser e Georg Simmel) na definição do conceito de frame, ver
VELHO, G., Goffman, Mal-Entendidos e Riscos Interacionais, p. 145-147.
139
Cf. SCHUTZ, A., Fenomenologia e Relações Sociais: Textos Escolhidos de Alfred Schutz,
passim.
140
Cf. GOFFMAN, E., Frame Analysis: An Essay on the Organization of Experience, passim.
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104
é preciso que existam compreensões básicas que deem suporte à sociabilidade e
ao compartilhamento de projetos coletivos. Goffman adota o conceito de frame,
moldura, como forma de interpretar e compreender as situações compartilhadas
pelos sujeitos na construção da realidade. Uma espécie de cosmologia do grupo
social. É na busca de respostas, durante a interação social, para perguntas como “o
que está acontecendo aqui?” que os indivíduos “emolduram” experiências.
141
Goffman reserva atenção especial à moldura do teatro, construída a partir
de uma performance: um arranjo que converte um ou mais indivíduos em
performers e outros em espectadores. Cria-se uma linha divisória separando palco
e plateia. O que acontece no palco pode ser visto por todos, porém a audiência não
tem nem o direito nem a obrigação de participar diretamente da ação dramática
que ocorre no palco, embora deva expressar sua apreciação ou não por meio de
aplausos. A moldura do espetáculo teatral, assim como de uma palestra, de uma
apresentação musical ou de um show de humor, exige a plateia. Sem público não
performance, diferente de rituais ou certas competições esportivas em que a
presença de espectadores é dispensável. A moldura organiza tanto a cognição
como o envolvimento dos participantes performers e plateia.
142
A quebra dessa
moldura pela interrupção do espetáculo ou quando o performer interrompe a
performance para falar de si mesmo ou se fazer passar pelo diretor ou dramaturgo,
por exemplo, produz o que Goffman chama de “experiência negativa”, isto é, a
elaboração que se faz diante da ruptura, da desorganização, na busca da
compreensão para a perda de referências produzida pelo ataque aos limites da
moldura.
Ao trazer essa questão para a teleficção brasileira, pode-se pensar que seu
estilo dramático, caracterizado pela “mestiçagem” entre o melodrama e o
realismo/naturalismo, assentado em enredos, tipos e linguagens familiares ao
141
molduras primárias, cotidianas, usadas em situações mais comuns, que são rapidamente
aplicadas e naturalizadas; existem molduras secundárias, muito ligadas à ideia de jogo, em que
uma “re-transcrição” de uma situação já convencionada, uma transformação de molduras primárias
em secundárias. No interior da moldura do jogo o envolvimento é fundamental. Por exemplo, para
quem assiste a um jogo de xadrez, o que se passa é apenas um jogo. Porém, para os participantes, o
que está acontecendo é outra realidade, que implica em envolvimento dentro de uma
temporalidade própria e algum tipo de suspense em relação aos desdobramentos dos eventos do
jogo. Ibid., p. 21-39.
142
Ibid., p. 124-127.
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105
público, configura uma espécie de frame que emoldura a sociabilidade do
espectador e suporte à interação. Nesse sentido, o clic é constitutivo dessa
moldura ao fornecer referências comuns para todos os envolvidos na performance
(autor, ator, diretor e público), possibilitar o reconhecimento da trama e dos
personagens e, assim, facilitar a sociabilidade. A quebra do clichê pode até
produzir a ruptura do frame e criar mal-entendidos, falsas percepções, e mesmo o
rompimento da interação (isso significa, ao falarmos de televisão, em mudar o
canal ou desligar o aparelho).
A estrutura básica da narrativa da ficção seriada que se inaugura em 1968 e
que, com poucas variações, se estende até os dias de hoje, em quase nada difere da
estrutura dos tradicionais folhetins melodramáticos: apresentação das tramas e
personagens; desenvolvimento dos dilemas e conflitos entre protagonistas (sempre
as mocinhas e os mocinhos) e antagonistas (sempre as vilãs e vilões); resolução de
todos os problemas com a vitória dos protagonistas e punição dos antagonistas; e
um epílogo, o happy end, quase sempre um casamento. Porém, na medida em que
as telenovelas, minisséries e seriados ganham prestígio (e, portanto, mais
investimentos), que a tecnologia se desenvolve e a sociedade incorpora novos
grupos e tipos sociais para inspirar os autores, são criados enredos cada vez mais
complexos, com mais personagens e muitas tramas paralelas entrecruzando a
trama principal. Muitos dos ingredientes tradicionais do melodrama são
subvertidos. Novelas como Pecado Capital alteraram radicalmente um dos
pressupostos do melodrama: em vez do herói ter um final feliz, ele morre. A
recente A Favorita, brincou com os estereótipos da vilã e da mocinha fazendo
com que o público ficasse sem saber se Donatela era a mocinha e Flora a vilã, ou
vice-versa.
A linearidade, que caracteriza a simplicidade da estrutura folhetinesca, em
que passado, presente e futuro são claramente identificados, com a narrativa
sempre buscando uma estrutura evolutiva, se mantém na maior parte das ficções
da televisão. Porém, eventualmente, essa linearidade é rompida. Surgem novelas
como O Casarão, de Lauro César Muniz, em que dois tempos diferentes, com
intervalo de 40 anos, se mesclam ao longo de todos os capítulos dando a
impressão de que tudo é presente. Ou em O Rebu, de Bráulio Pedroso, em que os
132 capítulos da história acontecem numa única noite com avanços, retrocessos,
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106
novos avanços sem cortes temporais evidentes, como se “ontem” fosse “hoje”. O
passado invade o presente sem o recurso do flashback, lembrando o estilo
homérico, analisado por Auerbach
143
, em que a cicatriz de Ulisses e a caçada que
a causou emergem do passado no decorrer da ação; trazem a juventude do herói
para o primeiro plano da narração, para adiante voltar com a ação anterior sem
criar uma perspectiva temporal e espacial. existe um plano na narrativa: o
presente. Contudo, a subjetividade dos personagens, a apresentação da
“multiplicidade de camadas dentro de cada homem”, a presença de sujeitos
individualizados, com conflitos e paixões, mostram que esses folhetins eletrônicos
estão distantes da univocidade do estilo homérico
144
. Mas, sem dúvida, enfrenta-
se um fenômeno particular: as ficções seriadas na televisão, ajudadas pela imagem
e sua edição fragmentada e, provavelmente, também pela serialização, produzem
no espectador uma sensação de presente contínuo, em que passado, presente e
futuro se misturam e mesmo se superpõem.
Alguns autores têm criticado a ficção seriada exatamente por essas
características. Eco
145
, por exemplo, ao definir a obra aberta, refere-se a uma
modalidade de discurso das obras de arte, “da arte de vanguarda em particular”.
Para ele, a obra aberta
acima de tudo é ambígua: não tende a nos definir a realidade de um modo unívoco,
definitivo, já confeccionado. Como diziam os formalistas da década de 20, o
discurso artístico nos coloca numa condição de estranhamento‟, de
„despaisamento‟; apresenta-nos as coisas de um modo novo, para além dos hábitos
conquistados, infringindo as normas da linguagem, às quais haviam sido
habituados.
146
Segundo Eco, Ulisses, de James Joyce é um paradigma desse tipo de obra de
arte que se contrapõe ao “discurso persuasivo” da cultura de massa, como o das
histórias em quadrinhos, das fotonovelas ou de folhetins como Os Mistérios de
Paris, de Eugène Sue, que oferecem “conclusões definitivas e efeitos
143
Cf. AUERBACH, E., A Cicatriz de Ulisses, p. 5.
144
Ibid., p. 20.
145
Cf. ECO, U., Obra Abierta, p. 279-280.
146
Ibid., p. 279-280.
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107
consoladores”.
147
Esse debate se coloca tanto na argumentação de autores e
produtores diante das acusações de que o folhetim televisivo é um gênero
“menor”, monolítico, com poucas possibilidades de criação, aberto às
intervenções do público e que impõe valores superficiais, quanto nas análises de
estudiosos da mídia que buscam pensar a ficção seriada como narrativa que
produz uma leitura da realidade.
Robert Allen, por exemplo, analisando a soap opera americana, identifica-a
como um texto que, se por um lado se afasta dos parâmetros da “obra aberta”
conforme definidos por Eco, por outro apresenta uma multiplicidade de situações
e personagens que fazem com que o gênero revele alguns de seus traços.
148
Ele
observa que a narrativa em série não é meramente uma narrativa segmentada, mas
uma “forma de contar” cuja segmentação produz uma interrupção no processo de
leitura, audição e observação. Além disso, a interrupção é controlada pelo
produtor ou distribuidor da narrativa, não pelo leitor ou observador. Em outras
palavras, o produtor da narrativa determina não somente como e quando a
narração da história para e começa, mas também quando o envolvimento do leitor
com o texto para e recomeça. A organização da narrativa e da narração ao redor
da suspensão forçada e regular, tanto do texto quanto da leitura, produz um
envolvimento e prazer no leitor diferente das narrativas não seriais.
Com base nas considerações do teórico literário Wofgang Iser, Allen
149
ressalta que o ato de ler qualquer narrativa envolve atravessar o terreno textual no
tempo, conforme o leitor vai de uma palavra, frase, parágrafo, capítulo a outro. No
caso das narrativas do cinema ou da televisão, de uma tomada, cena, sequência ou
147
Para maior compreensão sobre a discussão acerca da expressão “obra aberta”, cunhada por Eco,
ver ORTIZ, R.; RAMOS, J. M. O., A Produção Industrial da Telenovela.
148
Cf. ALLEN, R., To be Continued...: Soap Operas Around the World, p.1-24. O autor faz uma
defesa da narrativa em série ao afirmar que as críticas partem do pressuposto de que devem ser um
reflexo direto da realidade social objetiva, levando pouco em consideração como funcionam
enquanto textos que geram significados e prazeres aos espectadores. Aponta ainda os “benefícios”
trazidos pela ficção em série: os folhetins do século XIX ajudaram a construir a demanda de
consumo de jornais e revistas; o público leitor aumentou (e o consequente desenvolvimento das
prensas de alta velocidade); as tiras em quadrinhos facilitaram o desenvolvimento da prensa
colorida de alta velocidade; os filmes em série ajudaram a construir uma audiência regular para o
cinema de 1910 em diante; e a narrativa seriada na televisão foi crucial para o desenvolvimento da
transmissão de TV em vários países.
149
Ibid., p. 17.
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108
episódio a outro. Como leitores ou espectadores, adotamos um “ponto de vista
ambulante” dentro do texto conforme nos movemos nele, olhando para trás, para o
“terreno textual já coberto” (o que Iser chama de retenção) e antecipando, assim, o
que repousa na “próxima esquina textual” (a protenção). Ambos os processos
ocorrem nos intervalos, entre palavras, frases, capítulos (ou tomadas, cenas,
sequências), aqueles necessários silêncios textuais onde nós, como
leitores/espectadores, somos chamados a conectar palavras, sons e/ou imagens do
texto para formar um mundo narrativo coerente. A série, portanto, é uma narrativa
organizada ao redor de intervalos impostos ao texto, sendo que a natureza e a
duração desses intervalos são tão importantes para o processo de “leitura” quanto
o “material” textual que eles interrompem. Cada episódio termina com algum grau
de indeterminação narrativa: uma pergunta que não será respondida até o próximo
capítulo. Esses intervalos deixam tempo suficiente para os espectadores
discutirem uns com os outros os significados possíveis tanto do que aconteceu
quanto do que acontecerá em seguida.
150
Buonanno
151
, em seu artigo sobre a estrutura temporal das narrativas
seriadas na televisão italiana, levanta a hipótese de que a serialização narrativa
produz uma regularidade temporal que a torna altamente previsível e, portanto,
confiável e reguladora. Os intervalos dados pela narrativa em capítulos, em que o
final de um capítulo o “gancho” para o seguinte, produzem uma dilatação
temporal ao retardar a satisfação do desejo. Essa expulsão do fim para o futuro
seria altamente reconfortante para o indivíduo moderno, que perdeu o suporte do
sagrado para ampará-lo diante da finitude da vida. A narrativa seriada permitiria,
então, suspender ou retardar o tempo e, assim, se distanciar do fim. Realizaria no
homem o eterno desejo de domínio sobre o tempo.
150
Quem fez algum tipo de observação etnográfica em um salão de cabeleireiro ou mesmo
frequentou um, sabe o que significam esses intervalos entre capítulos de uma novela ou série.
Diariamente, as conversas são pautadas por opiniões ou especulações sobre as tramas e rumos dos
personagens. Nessas ocasiões, as referências subjetivas e a imaginação de cada um são trazidas à
tona.
151
Cf. BUONANNO, M., „Estratégias de Vida‟ e Exorcização do Fim nas Fórmulas Seriadas da
Ficção Televisiva, p. 312-321.
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109
Uma comparação entre a narrativa da teledramaturgia com a dos contos de
As Mil e Uma Noites pode ser muito elucidativa.
152
Se o sucesso do processo
narrativo seriado está na domesticação do tempo, expressando anseios primordiais
do homem como permanência, durabilidade, constância, infinitude e
previsibilidade, o gancho” adquire especial relevância. Elemento temporal da
narrativa, que a interrompe no seu ponto culminante ou de maior interesse para
projetá-lo ao futuro, o “gancho” ativa a curiosidade e o desejo do
leitor/ouvinte/espectador, exigindo a continuidade da história, empurrando-a para
frente, unindo partes e desaparecendo com a fragmentação:
isso faz com que a narrativa seja essencialmente sedutora e mobilizadora do
imaginário do ouvinte. Interrompida a ação, o público projeta sua continuidade na
fantasia, alimentando o seu desejo e, ao mesmo tempo, exercitando-o como coautor
da obra.
153
Conforme nos lembra Benjamim
154
, a relação entre narrador e ouvinte é
marcada pelo interesse ingênuo do último em reter a coisa narrada garantindo a
sua reprodução por meio da memória. Portanto, as narrativas seriadas exigem uma
cumplicidade entre narrador e ouvinte/espectador para suspender a ação esperada
152
Em As Mil e Uma Noites, o sultão Shariar, vítima e testemunha de infidelidades femininas,
decide dormir a cada noite com uma donzela virgem do reino que é morta na manhã seguinte.
Sheherazade, filha de um vizir, moça culta e de grande memória, convence o pai a deixá-la
oferecer-se ao rei com o seguinte estratagema: entreter Shariar com histórias noturnas que seriam
interrompidas na parte mais interessante. O rei, com sua curiosidade incontrolável, a mantém viva
até a noite seguinte, quando Sheherazade vem com outra história. E assim se passam mil e uma
noites com a jovem contando suas histórias de aventura e emoção, em que uma leva à outra,
interrompidas no ápice da trama. No final, ela se casa com o rei, que se cura da desconfiança em
relação às mulheres. Ver COSTA, M. C. C., A Milésima Segunda Noite: Da Narrativa Mítica à
Telenovela Análise Estética e Sociológica.
153
Ibid., p. 58.
154
“A memória é a capacidade épica por excelência. graças a uma memória abrangente pode a
épica, por um lado, apropriar-se do curso das coisas e, por outro, fazer as pazes com o
desaparecimento delas com o poder da morte”. E continua adiante: “A lembrança instituiu a
corrente da tradição que transmite o acontecido de geração a geração. Ela é a musa da épica em
sentido lato. Abarca o conjunto das formas singulares do épico inspiradas por ela. Entre estas
figuras, em primeiro lugar, a que o narrador encarna. Ela funda a rede que todas as histórias
interligadas formam no final. Uma história emenda na outra, como os grandes narradores,
sobretudo os orientais, tinham gosto em mostrar. Em cada um deles vive uma Sheherazade, a
quem em qualquer ponto de suas histórias ocorre uma nova. Esta memória é épica o elemento de
musa que impele a narrativa.” Benjamin ressalta, porém, que um outro princípio que se
contrapõe a essa memória épica: “aquele que nos primórdios do romance, isto é, na epopeia,
permanece oculto, vale dizer: ainda amarrado à musa da narrativa. De qualquer modo, ele pode ser
ocasionalmente pressentido nas epopeias. É o que se dá sobretudo em partes solenes das epopeias
homéricas, tais como as invocações às musas no seu início. O que se anuncia nestes trechos é a
memória perenizante do romancista em oposição à memória de entretenimento do narrador”.
BENJAMIN, W., O Narrador: Observações sobre a Obra de Nikolai Leskow, p. 211
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e previsível no seu ápice. Ele interrompe a narrativa quando todos os elementos da
ação estão dados e o desfecho pode ser previsto. O gancho, ao captar a atenção
do ouvinte/espectador e adiar a satisfação de sua expectativa, move o fluxo
narrativo para frente, costura os diversos fragmentos da história e lhe uma
unidade. Assim, sobrepõe o tempo narrativo ao tempo social.
155
Poderia-se pensar
que o gancho, assim como o clichê, ajuda na construção da moldura ficcional,
atuando como elemento de reconhecimento das tramas e dos personagens, e
facilitando a interação entre narrador e espectador e entre os próprios
espectadores.
Até agora falou-se em ficção seriada televisiva sem fazer distinções quanto
aos seus gêneros internos, ou subgêneros como alguns denominam: o teleteatro, a
telenovela, o seriado, a minissérie. As distinções entre os diversos formatos e as
arquiteturas narrativas pouco interferem nas questões que aqui estamos
abordando. De qualquer maneira, vale a pena discutir alguns pontos.
Como foi visto, a teledramaturgia incorporou elementos de diversos
outros tipos de narrativa: a literatura de folhetim, a dramaturgia do teatro, a
radionovela, o drama cinematográfico, a fotonovela. Construiu um gênero
marcado pela mistura de estilos ficcionais aparentemente antagônicos: o
melodrama, o realismo e a crônica. Consolidou uma narrativa própria ancorada na
serialização e em uma linguagem que ativa a imaginação do espectador e estimula
sua interação com personagens e situações. Porém, quando se faz referência à
ficção seriada na televisão brasileira o que nos vem imediatamente à mente é a
telenovela, por ter se tornado o formato “nobre” (vai ao ar no “horário mais
nobre”, às 21 horas) tanto do ponto de vista dos produtores quanto dos
espectadores e anunciantes. Mas outros formatos que têm se firmado e
recebido destaque na própria indústria e nas análises acadêmicas
156
.
O teleteatro, uma clara referência às suas origens e da qual já se falou
extensamente, pode ser resumido como “teatro na TV”, assume as regras do jogo
155
Cf. COSTA, M. C. C., A Milésima Segunda Noite: Da Narrativa Mítica à Telenovela Análise
Estética e Sociológica, p. 63. Certamente o sultão Shariar terá tido a impressão de estar ouvindo
em vez de mil e uma, apenas uma única narrativa interminável, razão pela qual sequer se dá conta,
absorto no tempo ficcional, da gravidez de Sheherazade.
156
Cf. PALLOTINI, R., Dramaturgia de Televisão, p. 22 passim.
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teatral dentro de um estúdio de televisão. Trata-se de um formato que desde a
década de 1970 não tem sido mais produzido. A minissérie pode ser pensada
como uma telenovela mais curta. É referida como uma obra fechada, ao contrário
da telenovela que seria aberta. Não no sentido que Umberto Eco à obra aberta
sobre o qual foi falado, mas a partir do conceito de que a minissérie é uma
história integralmente criada sem interferência do espectador. Isso porque, na
década de 1970, quando ela foi criada, com cerca de 20 capítulos no máximo, era
totalmente escrita antes de ser exibida. Hoje, as exigências da indústria fazem com
que esse traço se mantenha em alguns casos e em outros, em minisséries mais
longas, a história ao ar antes de ser totalmente escrita pelo autor. Ainda assim,
as interferências tanto do espectador quanto dos produtores são bem menores se
comparadas com a telenovela. A minissérie tem uma unidade claramente definida
quando inicia e, em geral, é constituída por uma trama central, desenvolvida ao
longo dos capítulos, e não a multiplicidade de tramas que caracteriza a telenovela.
Normalmente ela permanece contida em um plot, um conflito central, e não na
multiplicidade de linhas de ação de uma telenovela. Pode ser baseada em uma
biografia ou em um fato histórico, e aí são ficções inspiradas em uma história real;
uma adaptação literária, e nesse caso a ficção literária é o fundamento (mas não se
trata de uma mera reprodução do texto literário em imagens); ou pode ser uma
ficção “original”, estimulada pelas experiências e subjetividade do autor. Do
ponto de vista de estrutura temporal, a minissérie se assemelha a uma telenovela
pequena: a trama evolui como uma flecha disparada em busca do alvo. Quando há
flashbacks, eles se encaixam na narrativa presente e ajudam a empurrar a trama
para frente. Cada capítulo puxa o seguinte através do “gancho de Sheherazade”,
costurando todos os fragmentos e construindo a totalidade da narrativa.
Com o seriado ocorre um fenômeno diferente. Pode ser estruturado em
episódios independentes que têm uma unidade narrativa um personagem ou um
grupo de personagens, uma situação específica, um tema específico, um ambiente
permanente mas prescindir da sequência obrigatória e indispensável na
minissérie e na novela. Cada episódio do seriado deve contar a sua história tendo
em vista o conjunto da narrativa e seus personagens. Assim, os episódios
usufruem de certa independência, embora precisem fazer sentido no arco
narrativo. O seriado, nesses moldes, se move no tempo de forma espiralada, isto é,
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cada história começa e se encerra no episódio e empurra o conjunto da narrativa
lentamente para frente. Há seriados, porém, que obedecem a estrutura de capítulos
tal como acontece nas novelas e minisséries e, nesses casos, desenvolvem-se
no tempo também de forma linear, usando o gancho para prender a atenção do
espectador para o capítulo seguinte
157
.
A telenovela, ou novela, é uma “narrativa enovelada, trançada”.
158
Trata-
se de uma história contada em capítulos, com diálogo e ação. uma rede de
personagens que se movimentam por um conjunto de tramas entrelaçadas entre si.
conflitos provisórios, que vão sendo solucionados ao longo da narrativa, e
outros definitivos, que se definem no final. diversos grupos de personagens
e ambientes que se relacionam entre si. protagonistas, antagonistas,
personagens secundários, figurantes, participações especiais. Em geral, uma
novela começa a ser exibida quando tem poucos capítulos escritos (não mais de
20 num total de cerca de 200), o que significa que ela está mais sujeita ao
julgamento do público e da crítica. Logo, a interferência do público é constitutiva
do formato e, para alguns autores, é essencial. Para outros, é um sério limitador ao
aspecto autoral do gênero. O gancho tem uma função fundamental na estrutura
da telenovela: é ele que de fato mantém o desejo do espectador em continuar
acompanhando uma longa história. A extensão da telenovela, exibida durante
quase nove meses é muito criticada por dois motivos: a redundância e a
elasticidade. A repetição é uma característica dos folhetins em série (desde
quando publicados em jornais). É uma espécie de garantia ao público de que
poderá continuar assistindo mesmo que perca um ou dois capítulos. Em algum
momento as histórias perdidas reaparecerão. Além disso, como muitos estudiosos
lembram, a telenovela é assistida em casa, onde o descompromisso é total, sem
157
Os seriados americanos se sofisticaram e se organizam em temporadas. A Família Soprano,
por exemplo, cujas histórias se encerravam em cada episódio, teve sete temporadas. A trama
principal é compreendida mesmo que o espectador assista aos episódios fora da sequência em que
são apresentados. E, embora possa perder alguns detalhes, o entendimento da história não fica
comprometido. Outros seriados americanos, como Lost, já também com sete temporadas, foram
estruturados em capítulos, o que exige o acompanhamento linear da história.
158
Renata Pallotini lembra que a palavra “novela” vem do italiano novella que, por sua vez, vem
do latim novellus, novella, novellum, adjetivo, diminutivo, originário de novus. Do sentido de
novo, a palavra derivou para o de enredado e, na Idade Média, acabou assumindo o sentido de
enredo, entrecho. Daí surge a noção de narrativa enovelada, trançada. PALLOTINI, R.,
Dramaturgia de Televisão, p. 33.
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113
exigir a atenção completa de quem vai ao teatro ou ao cinema. A elasticidade é
outro aspecto da telenovela: em função das reações e aceitação do público, de
imprevistos com atores ou mesmo porque um personagem não responde às
expectativas iniciais, o autor pode fermentar certas tramas ou esvaziar outras. Por
vezes isso chega ao exagero e a novela sofre a acusação de ter “embarrigado”. Sua
relação com o tempo é linear e evolutiva, o passado iluminando o presente e este
apontando na direção de um futuro a ser atingido. E, embora esteja suscetível a
muitos flashbacks em que o passado penetra no presente para ajudar a explicar a
história, o passado continua sendo passado e o presente se mantém presente. A
narrativa caminha inexoravelmente para o fim, para uma conclusão, e, mesmo que
ao longo do percurso possa haver desvios, eles devem estar amparados pelo
enredo.
159
A ideia da flecha lançada em busca do alvo é muito clara na construção
narrativa da telenovela, só que o alvo está bem distante, a uma distância de
“duzentas noites”.
159
Ricardo Benzaquen de Araújo, em seu texto sobre Capistrano de Abreu, faz interessantes
considerações sobre a ligação entre tempo linear e enredo na narrativa construída a partir da
concepção „moderna de história. Algumas delas são úteis para pensar nas narrativas que são
tratadas aqui. Segundo o autor, essa relação entre tempo linear e enredo leva a consequências que
afetam a própria natureza da narrativa. A primeira é “o caráter fechado do discurso narrativo, isto
é, ao fato de que esse discurso, possuindo verdadeiro horror à incompletude, ao vazio, pretende
reunir todos os fios soltos do texto para criar uma imagem absolutamente regulada e
compreensível, uma imagem onde tudo, até o acaso (...) pode e deve fazer sentido”. A segunda
consequência é que esse discurso “que se move para frente de maneira absolutamente consistente e
ordenada culmina com uma „disciplinarização‟ do real, direcionando todos os episódios,
sequências e configurações da narrativa, no rumo do seu final”. Isso levaria ao predomínio
absoluto da conclusão na narrativa, fazendo com que o final esteja „colado‟ em todo o seu
percurso: “o tempo que avança incessantemente como se fosse uma flecha” finalmente para na
conclusão. Uma conclusão que mesmo que incorpore o imprevisível, acaba disciplinando-o e
torna-o aceitável no conjunto da narrativa, aparecendo como uma „consequência natural‟.
ARAÚJO, R. B. de, Ronda Noturna: Narrativa, Crítica e Verdade em Capistrano de Abreu,
passim.
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5. Representações do Feminino: Imagens se sobrepõem
Antes de entrar na análise dos seriados Malu Mulher e Mulher, e das
minisséries Hilda Furacão e Anos Dourados, para discutir as representações
femininas nesses folhetins, se faz necessário refletir como a ideia de feminino foi
se formando nas sociedades ocidentais; e como no Brasil, sociedade marcada por
uma forte tradição patriarcal, as imagens associadas à mulher foram se
configurando e aderindo às mais diversas formas de expressão cultural.
As representações do feminino na cultura ocidental podem ser analisadas
sob três prismas: o antifeminismo, a sacralização do feminino e a identificação de
uma cultura feminina. Desde os primórdios do cristianismo, a censura à mulher é
recorrente nos discursos, nas representações artísticas, na literatura. Manifesta-se
como uma restrição à linguagem verbal por meio da ideia das “mulheres
queixosas, faladeiras, tagarelas, que expressam sua ansiedade e insatisfação por
meio da palavra”, em contraste com o homem que teria uma predisposição à
escrita.
160
Essa associação do feminino com as seduções e ardis da fala surge tanto
nas narrativas épicas da Antiguidade como no Cristianismo, em que a mulher
aparece semeando a discórdia entre o homem e Deus. Ao topos da mulher
„faladeira‟ se une outro topos, o da mulher como confusão. Ela, devido à sua
“natureza disruptiva e incontrolável”, é enganadora e trapaceira, estando em
“permanente pecado corpóreo”.
161
Portanto, a sedução feminina pela palavra e
pela carne está na base do antifeminismo que predominou na cultura medieval do
Ocidente e se estendeu pelos séculos subsequentes.
A narrativa bíblica da Criação que predominou foi a da mulher como
derivação do homem Eva surge da costela de Adão. Ou seja, a mulher é vista
como „uma parte‟, secundária, um complemento, “ser dividido cujo corpo não
reflete a realidade da alma sendo, assim, parcialmente humana.
162
Essa
160
Cf. BLOCH, R. H., Misoginia Medieval e a Invenção do Amor Romântico Ocidental, p. 24-25.
161
Ibid., p. 27-31.
162
Ibid., p. 31.
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115
concepção vai ao encontro do modelo da identidade estrutural dos órgãos
reprodutivos do homem e da mulher desenvolvido por Galeno, que demonstrava
que as mulheres eram essencialmente homens que, em função da falta de calor
vital (ou seja, de perfeição), resultara na retenção interna das estruturas que no
homem são visíveis na parte externa: “mulheres são homens virados para
dentro”.
163
A essa ideia da mulher como „imperfeita‟, „particular‟, se junta a da mulher
associada ao corpo, à matéria, ao pecado da carne. Ela simboliza a condição
decaída da humanidade. Em oposição ao homem, associado ao espírito, à alma.
Formado diretamente de Deus, partilhando sua divindade, ele é um ser visto como
inteiramente humano e, portanto, associado ao universal
164
. A relação
masculino/feminino se constrói, então, como uma relação hierárquica: em um
primeiro nível trata-se de relação de oposição em que o homem aparece ligado ao
mundo da mente, da inteligência, e a mulher ao mundo dos sentidos (e, assim
sendo, é incontrolável e não confiável), levando a outras oposições como
163
LAQUEUR, T., Inventando o Sexo: Corpo e Gênero dos Gregos a Freud, p. 16; 194-196. O
autor observa que a concepção galênica de “sexo único no qual homens e mulheres eram
classificados de acordo com o grau de perfeição metafísica (o calor vital, cuja causa final era
masculina) predominou durante todo o período pré-Iluminismo. A concepção de sexo/carne única
para o modelo dois sexos/duas carnes só ocorrerá no final do século XVII e início do século XVIII
quando a ciência passa a aceitar as categorias “masculina” e “feminina” como sexos opostos e
incomensuráveis. É no final do século XVII que os anatomistas produzem pela primeira vez
ilustrações de um esqueleto explicitamente feminino para documentar a diferença sexual entre
homens e mulheres. Os órgãos masculinos testículos -, até então comuns aos dois sexos (o
homem tinha “testículos masculinos” enquanto a mulher tinha “testículos femininos”) passaram a
definir a gônada do homem e a mulher passou a ser identificada com ovários. A partir daí, várias
correntes intelectuais destroem a concepção galênica de compreender o corpo em relação ao
cosmo. Teóricos políticos como Hobbes argumentavam que não havia base na natureza, na lei
divina ou na natureza cósmica transcendental, para justificar qualquer tipo de autoridade (do rei
sobre o súdito, do escravizador sobre o escravo, do homem sobre a mulher). Porém, para Hobbes
(assim como para Locke), eram os homens que se tornavam chefes de famílias e de nações; eram
eles que faziam o contrato social. Mas a subordinação da mulher ao homem não se baseava na
superioridade do espírito sobre a matéria ou na “mera natureza”; era função de embates históricos
que acabaram por colocar a mulher em posição de inferioridade. A maternidade, em termos
hobbesianos, deixaria a mulher em posição vulnerável e permitiria ao homem conquistar a ela e ao
filho criando direitos paternos por contrato. Rousseau, mesmo argumentando contra Hobbes,
também seguia uma linha biológica enfatizando a diferença entre sexos a partir da fisiologia
reprodutiva e a natureza do ciclo menstrual, que torna as mulheres mais vulneráveis. Rousseau,
através da ênfase na ligação entre feminilidade e maternidade, conclamava as mulheres a
assumirem as funções ligadas aos cuidados com as crianças e com o lar familiar, reforçando a
relação feminino/privado e masculino/público. Tocqueville argumentou que nos Estados Unidos a
democracia havia destruído a velha base da autoridade patriarcal, fundamental para delinear com
precisão “duas linhas bem distintas de ação para os dois sexos”.
164
Cf. BLOCH, R. H., Misoginia Medieval e a Invenção do Amor Romântico Ocidental, p. 35-37.
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intelecto/corpo; racional/irracional; autocontrole/concupiscência; razão/emoção;
ordem/desordem; cultura/natureza. Porém, em um segundo nível, o homem
engloba a mulher seja fisicamente, seja intelectualmente, ela é „parte‟. O
casamento e a maternidade surgem, assim, como meios de controlar a tendência
“disruptiva” da mulher, restituindo-lhe a integridade pela associação com o
homem.
A relação do feminino com o particular e com o secundário conduz à noção
de que a mulher tem uma predisposição natural para os detalhes, para o acessório,
o ornamental e o estilo, em comparação ao homem, que tem uma predisposição ao
abstrato, ao pensamento, à filosofia. Essa ligação da mulher ao ornamento, à
decoração, ao artifício, à maquiagem, ao acessório e ao enfeite sintetiza uma
teologia cosmética que revela a estetização do feminino; a ideia de estética como
„adulteração‟, disfarce, artificialidade que engana, que esconde a essência, que
implica um excesso prazeroso que não é essencial. À noção da beleza como um
“dom divino” ou uma obra da natureza impossível de se conquistar por
mecanismos humanos, se opõe o uso do cosmético, visto como mentira,
falsidade que revela a não aceitação do que se recebe naturalmente.
Lichtenstein,
165
em seu estudo sobre a relação entre a cosmética e o feminino,
observa que a discussão sobre os usos da maquiagem e de artifícios pela mulher
está vinculada à visão da mulher que “busca enganar os olhos, o desejo de
aparecer externamente como sendo aquilo que ela não é”. O artifício como desejo
de iludir revela a distinção entre o ornamento e a maquiagem: enquanto o
primeiro é necessário à „beleza natural‟ e destaca a „substância‟, o seu uso
excessivo levaria à maquiagem, que esconde mais do que elucida a „verdade‟. A
partir do debate entre pintores „desenhistas‟ e „coloristas‟ na França e na Itália, no
século XVII, a autora verifica que a cor era associada ao efêmero, à instabilidade,
ao contingente. Permitiria apenas um prazer circunstancial, com vistas a seduzir o
espectador, provocando-lhe somente satisfações momentâneas. A relação entre o
uso excessivo da cor, da maquiagem, um artifício usado para despertar desejos
ocasionais com o feminino e, particularmente, com a coquete e a prostituta, é
165
Cf. LICHTENSTEIN, J., Making up Representation: The Risks of Feminity, p. 77-78.
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117
evidente. O ornamento deveria ser sutil, para valorizar a estrutura do rosto de
forma discreta: “ele não deve ser visto, mas fazer ver; ele deve mostrar sem se
mostrar”.
166
O exagero no uso do ornamento seria uma espécie de máscara que
desvia o olhar para a irrealidade.
167
Efêmera, artificial, momentânea, a maquiagem
se associa à „devassidão‟, designa aquilo que „ultrapassa a medida‟, o „excesso
moral‟, „à desordem‟, à „fonte de um prazer ilegítimo‟ que é capaz de enfeitiçar,
166
LICHTENSTEIN, J., A Cor Eloquente, p. 162-168. Remetendo à discussão ocorrida entre
pintores italianos no século XVI e franceses no século XVII, que se dividiam entre „desenhistas‟ e
„coloristas‟, Lichtenstein identifica um debate sobre aqueles que defendiam o caráter
representativo do desenho como o signo mimético capaz de produzir, através da forma, a
semelhança do real e ser, assim, o único capaz de se submeter a regras, exercer um duplo controle
sobre a representação pedagógico e estético; e aqueles que defendiam ser a cor a única capaz de
traduzir o „invisível‟, “o lugar privilegiado para os encontros da estética com o prazer”, com a
finalidade “não de instruir, mas sim de transformar”. Toda a retórica pictórica desenvolvida pelos
„coloristas‟ nessa discussão apoia-se na eloquência do colorido, uma vez que este seria sempre a
base da emoção do espectador diante do quadro: “A pintura colorista pede ao público outras
disposições, diferentes das que são necessárias para que ele goste do desenho. Antecipando a
estética das Luzes, [os coloristas] invocam um novo tipo de espectador: não mais o „conhecedor‟
que se compraz no infinito jogo de deciframentos, e sim o amador que tem prazer em olhar um
quadro” (...). Ao relacionar o desenho à ordem tátil e, assim, à escultura, os pintores coloristas
afirmam que o desenho é feito para se olhar de perto. Já a cor permite o “prazer do olho” e,
somente através dele, “o prazer do desejo de tocar a carne”. Por isso, o espectador fica à distância
para se deixar melhor seduzir: “Diante dos quadros dos grandes coloristas o espectador tem a
impressão de que seus olhos são dedos” (...). Essa percepção do prazer associada à cor lembra a
concepção de Benjamin do novo sensorium que estaria em jogo na obra de arte na época da
reprodutibilidade técnica. Um debate mais atual sobre o uso da cor ou o foi travado na imprensa
brasileira, no final da década de 1970. Quando os primeiros jornais americanos com uso de cor nas
fotos, gráficos, tabelas e títulos chegaram ao Brasil, houve uma discussão acalorada entre os que
achavam que a introdução da cor deturpava a informação, fazendo com que o prazer estético
conduzisse muito mais o leitor do que o conteúdo da notícia ou artigo; e os que acreditavam que a
cor também informava, acrescentava conteúdo à leitura e, portanto, não despertava o prazer da
beleza, mas também o da melhor compreensão. Parece que os últimos convenceram mais, porque
hoje são raros os jornais (da grande imprensa ou mesmo tablóides) que não utilizam cor na
impressão.
167
A noção da maquiagem „camuflando‟ a sinceridade, remete ao trabalho de Lionel Trilling,
Sincerity and Authenticity, no qual o autor observa que esses dois conceitos sinceridade e
autenticidade adquirem conotações diversas em sociedades e épocas diferentes. A sinceridade,
entendida inicialmente como a congruência entre a declaração franca e o sentimento real, o
impedimento do homem de ser falso por meio da verdade do seu próprio self, foi perdendo o seu
status no mundo contemporâneo, individualista, onde „ser sincero‟ significa a exibição do self para
reconhecimento público. A sociedade exige a sinceridade do indivíduo, mesmo que não seja
autêntica. Agimos sinceramente de forma que sejamos reconhecidos por nossa sinceridade, mas
não autenticidade. Esta seria uma experiência moral mais árdua, “a sentiment of being”, uma
concepção do self mais exigente em que ser verdadeiro vai além da percepção do outro. O autor
lembra ainda que a palavra sinceridade vem do latim “sincerus”, que significa puro, limpo. Era
usado inicialmente para coisas e não para pessoas: um “vinho sincerodenota qualidade, pureza,
sofisticação, ou seja, não foi adulterado nem falsificado. o conceito de autenticidade foi usado
originalmente nos museus, para se atestar um objeto de arte. Passou a ser aplicado na vida moral
diante de nossa perda de credibilidade no mundo contemporâneo. Pode-se, assim, aproximar a
ideia de que a maquiagem, vista como adulteração, é algo que não permite a sinceridade do self.
TRILLING, L., Sincerity and Authenticity: The Charles Eliot Norton Lectures, passim.
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118
isto é, à mulher demasiadamente feminina. Não é à toa que termos como
dissimulada, artificial, disfarçada, depravada, sedutora, impudica, prostituída,
cortesã têm servido, a despeito dos graus de acusação, para se referir à mulher que
exerce a sua feminilidade em excesso.
168
O nexo entre a representação da mulher como ornamento, e mesmo artifício,
é amparado por um paradigma mais amplo: o de que
sua imaginada posição secundária é equiparada àquela da atividade simbólica. A
profunda desconfiança do corpo e da materialidade, definidos por sua
acessibilidade aos sentidos, constitui de fato um lugar- comum do que conhecemos
sobre a Idade Média algo que poderia ser considerado uma constante cultural
junto, e na verdade aliada, à da estetização dos sexos.
169
Essa imagem ameaçadora da mulher perdura durante todo o período
medieval e tem seu apogeu no Renascimento quando a figura da feiticeira (ou
bruxa) se torna o estereótipo da maldade, do desregramento e da irracionalidade.
Desde os anos 1400, passando por todo o período da Inquisição até o final do
século XVII, mulheres, em função de sua origem “torta” e “incompleta”, são
consideradas perversas, incontroláveis, supersticiosas, e, portanto, passíveis de
serem acusadas do crime de feitiçaria (que, em geral, era punido com a morte).
Bloch mostra que muitas concepções fundadoras do antifeminismo
medieval reaparecem na “misoginia reteologizada” do século XIX. Citando
Baudelaire, ele chama a atenção para a representação da mulher como uma força
antinatural:
...A mulher, como o dândi masculino, é naturalmente atraída para a ornamentação e
as artes, e encarna o artificial, uma vez que seu corpo, pela maquiagem „pede
168
Observa-se que os termos utilizados pelos críticos da cultura de massa (em particular a
televisão), do melodrama (e de seus herdeiros, o folhetim impresso, radiofônico e televisivo) e do
feminino (especialmente os que o associam à artificialidade da cosmética) são os mesmos. A
acusação de que a televisão, por sua velocidade, efemeridade e fragmentação, produz conteúdos
artificiais, em que a essência é mascarada pela aparência, lembra as acusações feitas ao uso da
maquiagem em que o excesso e a contingência do artifício mascaram a „verdade‟. Da mesma
forma, os críticos do melodrama o condenam por utilizar os artifícios dos gestos largos, da
eloquência, do excesso e do maniqueísmo como formas de encobrir a ideia pura”, o discurso
verdadeiro”. Coincidência ou não, os ts televisão, melodrama e cosmética são associados ao
universo feminino, ou como vulgarmente se diz “são coisas de mulher”.
169
BLOCH, R. H., Misoginia Medieval e a Invenção do Amor Romântico Ocidental, p. 63.
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119
emprestado de todas as artes para se erguer acima da natureza‟. Para Baudelaire, o
corpo feminino é uma obra de arte, e a mulher uma invenção artística.
170
Se, por um lado, ele reforça a ideia de que a mulher é aliada à
superficialidade, por outro reabilita a arte dos artifícios. Em seu Éloge du
maquillage, Baudelaire chega a defender o uso da maquiagem pela mulher para
ser mais apreciada: “A mulher deve dourar-se para ser adorada (...), a maquiagem
não tem de ser escondida (...), pode, ao contrário, ser exibida, se não com
afetação, pelo menos com uma espécie de candura”.
171
Escritores como Mallarmé e Paul Valéry também reconheciam o
entrelaçamento entre o feminino, o decorativo e as artes. O primeiro se refere à
literatura como atividade que “ornamenta as preocupações sérias da vida..., a
literatura como cosmético da alma...numa analogia às atividades rotuladas como
femininas de enfeitar-se e ler”. A estetização do feminino em Valéry aparece ao se
referir à raridade e à inferioridade de mulheres artistas:
As mulheres não estiveram ausentes nem do campo da pintura nem das letras, mas,
na ordem das artes mais abstratas elas não se sobressaíram. Digo que uma arte é
mais abstrata do que outra quando requer mais imperativamente do que aquela
outra a intervenção de formas completamente ideais, ou seja, formas que não são
emprestadas do mundo do sentido (...). Quanto mais abstrata é uma arte, menos
mulheres haverá que tenham criado renome naquela arte.
172
Assim, se o Cristianismo medieval lançava a mulher ao domínio da estética
e condenava-a ao artificial, baseando-se em um medo metafísico da carne, o
romantismo e o simbolismo do século XIX, ao associar o feminino ao detalhe
decorativo, ao efêmero, ao contingente, ao campo dos sentidos, ao particular, à
parte, à pequena escala, não o faz em função da ameaça dela atrair o homem para
a “perdição eterna”, mas sim dele perder “a medida do aqui e agora”, de se perder
no caos e na desordem.
Outra forma de lidar com a representação do feminino é a partir da sua
sacralização. O ascetismo cristão, ao construir o ideal da castidade feminina, abria
a possibilidade de as mulheres escaparem do patriarcado do mundo antigo. Para
170
Ibid., p. 75.
171
BAUDELAIRE, C., Éloge du Maquillage, p. 905-906.
172
BLOCH, R. H., Misoginia Medieval e a Invenção do Amor Romântico Ocidental, p. 76.
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120
tirá-las da tutela de pais e maridos, o Cristianismo atraía as mulheres oferecendo-
lhes a possibilidade de estudar, dispor de suas propriedades e exercer poder nas
instituições religiosas em troca da “renúncia da carne”. A proliferação dos
conventos na Europa medieval simboliza a força da ideologia da virgindade: para
uma mulher participar de uma instituição exigia-se a negação do feminino
autoabnegação, autonegação e mesmo a autodestruição.
O mito da virgindade se sustenta não na „carne‟, mas também no
„espírito‟: a mulher deve ser virgem não no ato (a castidade do corpo), mas
também na mente (não pode existir desejo)
173
. Uma virgem é aquela que é casta,
que não pode desejar, nem ser desejada; o ato de olhar uma virgem desejando-a
significa deflorá-la.
Não é necessário que a castidade enquanto ideia seja capturada pelo registro da
escrita ou pela fala, ou mesma que seja vista (menos ainda tocada) por meio das
faculdades da percepção. É suficiente para a questão que penetre na consciência
sob a forma de um pensamento, ou mesmo de uma insinuação, para que a
virgindade seja impugnada. A virgem está acima de qualquer suspeita; a virgem é
aquela que não é imaginada como não o sendo na mente de outrem.
174
Bloch destaca a proximidade do paradoxo da virgindade com o ethos da
discrição cortês, a concepção de que “o amor revelado não pode durar” e a
consequente dramatização da fala e do silêncio que está no centro das obras
literárias corteses. O amor cortês, base do amor romântico ocidental, é
dramatizado como o amor ilícito, socialmente impossível. A noção da „dama
inatingível‟, por quem o amor não pode ser revelado (e muito menos consumado)
senão acaba, é recorrente nas narrativas corteses.
175
Essa ambiguidade da
173
Vale lembrar a peça A mulher sem pecado, do dramaturgo Nelson Rodrigues, um especialista
em retratar o comportamento misógino no interior do universo familiar. O protagonista tem um
ciúme incontrolável de sua mulher e não admite nem mesmo que ela se olhe nua no espelho, o que
significaria um estupro.
174
BLOCH, R. H., Misoginia Medieval e a Invenção do Amor Romântico Ocidental, p. 149.
175
Denis de Rougemont, analisando o mito de Tristão e Isolda (romance-símbolo do amor cortês),
observa que o amor cortês, baseado na adoração, na fidelidade e no desejo não realizado, se
contrapõe ao casamento. Ao opor-se à concepção moderna do “direito à paixão” (ou ao “amor
paixão” de Stendhall), o amor de Tristão por Isolda não permite que ele rapte sua amada após ter
bebido o filtro; ao contrário, entrega-a ao rei Marco, porque “a regra do amor cortês opõe-se a que
uma tal paixão „tenda para a realidade‟, quer dizer, conduza à „inteira posse de sua dama‟. Nesse
caso, Tristão escolherá, portanto, a obediência à fidelidade feudal, máscara e cúmplice enigmática
da fidelidade cortês.” ROUGEMONT, D. de, O Amor e o Ocidente, p. 30. Por outro lado, a poesia
cortês, como especula Lasch, glorificou o „adultério‟ ao propagar a ideia de que o amor erótico não
pode existir no casamento. A sátira cômica (antítese estilística do romance cortês, imortalizada por
Rabelais e Boccacio, por exemplo) “ou bem lamentava ou comemorava sarcasticamente a recusa
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cortesania, do desejo e da discrição que serão violados pela fala é análoga à
ambiguidade da virgindade, que pode acabar com o olhar e o desejo.
A visão paradoxal atribuída à mulher, sendo posta simultaneamente na
posição de “Esposa de Cristo” e “Portão do Diabo” (termos usados por Howard
Bloch), como redentora e sedutora, torna o feminino tão abstrato que ela pode
ser concebida como uma ideia e não como ser humano: “aprisionada pela lógica
de um ideal cultural que, internalizado, coloca-a sempre num estado de
fraqueza, falta, culpa, inadequação, vulnerabilidade”.
176
As mulheres são, assim,
empurradas para as margens, afastadas da história. É através de outro mito o da
esposa-mãe que a mulher adquire um papel social. Mas que ainda assim a
coloca como uma abstração. Os estudos sobre sociedades mediterrâneas mostram
como a mulher é referência do grupo familiar a partir de uma virtude sexual, que é
símbolo da honra da família: “As mulheres devem ter vergonha para que a
honradez de seus homens não seja desonrada”.
177
A figura da mãe, foco material e
simbólico da solidariedade do grupo familiar, aparece como ser desinteressado,
devoto, recatado, resignado, autossacrificado e doador de cuidados protetores.
Uma referência clara ao modelo divino da Virgem Maria.
Esse modelo da “santa-mulher” passa a ocupar cada vez mais espaço no
cenário de instabilidade sociopolítica e religiosa dos séculos XVI e XVII até o
Iluminismo. Começa-se a questionar a ligação entre feminilidade e irracionalidade
e surgem as primeiras discussões sobre a necessidade da educação feminina
(entendida como ler, escrever e contar). Reformistas como Lutero advogam a
necessidade de educar tanto homens quanto mulheres para que possam interpretar
e propagar os ensinamentos da Bíblia. Porém, a educação masculina e feminina,
segundo a concepção luterana, deveria ser diferenciada na medida em que homens
das esposas em aceitar de bom grado o estado de subordinação. Em vez de se submeterem
recatadamente a seu destino, as esposas repreendem os maridos, vestem-se com roupas caras para
se exibir e têm casos amorosos com homens mais jovens. A esposa insubordinada faz do marido
um objeto de ridículo, coroando-o com chifres a acusação máxima do casamento, à qual fazia
menção de forma obsessiva a sátira medieval e moderna dos primeiros tempos”. LASCH, C., A
Mulher e a Vida Cotidiana: Amor, Casamento e Feminismo, p. 35.
176
BLOCH, R. H., Misoginia Medieval e a Invenção do Amor Romântico, p. 113.
177
PITT-RIVERS, J., Honor y Categoria Social, p. 42.
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122
e mulheres tinham vocações diversas em função do desenvolvimento histórico e
da vontade divina. Os reformadores católicos também identificam na mulher um
papel chave no processo de reconquista moral e religiosa da sociedade: como
educadoras, poderiam difundir cada vez mais sua doutrina. Assim, a instrução
feminina passa a ser estimulada, provocando polêmicas nos mais diversos meios.
Molière, em suas comédias, satirizou as “senhoras ilustradas” e em As sabichonas
ridiculariza as mulheres que ambicionam serem filósofas ou cientistas, revelando
sua convicção de que mulher e saber são incompatíveis.
178
O debate sobre a igualdade ou não da razão entre homens e mulheres
atravessa todo o século XVII e somente na virada para o século seguinte, a partir
da necessidade política e social de situar a mulher como guardiã da infância,
uma mudança significativa na representação do sexo feminino. Como delegar a
um ser incapaz e desqualificado a responsabilidade de educar as crianças e zelar
pela integridade da família? Os atributos da fragilidade, sensibilidade,
comedimento, indulgência, sensatez se tornam atributos positivos. A imagem de
Eva dá lugar a da Virgem Maria. Mas não desaparece do cenário.
A construção de um novo perfil feminino, não mais ancorado nas
concepções galênicas da mulher como “um homem imperfeito”,
179
nem na visão
do Cristianismo, especialmente na versão do Gênesis que via a mulher como um
subproduto do sexo masculino, se dá no bojo das transformações políticas e
sociais inauguradas pela Revolução Francesa. A mulher começa a ser vista de
forma diferenciada, surge uma “questão feminina” a ser pensada por médicos,
filósofos e escritores. A distinção entre gêneros masculino e feminino se sustenta
em uma nova interpretação sobre os corpos, especialmente o corpo feminino.
Rousseau e os filósofos iluministas se basearam nessa diferenciação para criar
uma nova hierarquia entre homens e mulheres que os ideais liberais de
igualdade e liberdade e a emergência de uma sociedade cada vez mais apoiada na
noção de indivíduo singular e autônomo, questionava a superioridade de um sexo
sobre outro. Ao ancorar a diferença social e cultural dos sexos em uma diferença
178
Cf. NUNES, S. A., O Corpo do Diabo entre a Cruz e a Calderinha: Um Estudo sobre a
Mulher, o Masoquismo e a Feminilidade, p. 24-27.
179
Cf. nota 142.
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biológica “natural”, foi possível estabelecer uma divisão de gêneros e papéis
específicos para cada um. O projeto romântico de Rousseau pressupunha uma
divisão de papéis diferentes e complementares para homens e mulheres: as
últimas, enquanto “rainhas do lar”, deveriam atuar na esfera doméstica, cuidando
dos filhos, abrindo mão de qualquer projeto pessoal e mantendo suas vidas
vinculadas às de seus maridos. Aos homens caberia a esfera pública enquanto
provedores do lar, aptos ao trabalho e à vida intelectual. Ao encerrar a mulher
definitivamente no âmbito do lar e da maternidade a partir da visão de
complementaridade dos papéis sexuais, Rousseau e pensadores iluministas como
Diderot e Voltaire defenderam e justificaram suas premissas de desigualdade
social entre os sexos. A ciência médica dará todas as ferramentas para respaldar
essa visão. Os discursos médicos reavaliaram os órgãos reprodutores femininos
que deixaram de ser imperfeitos e pouco evoluídos, e se transformaram em
perfeitos e adequados à maternidade.
Surge uma teoria “racional” do feminino, preconizada por filósofos,
médicos e moralistas, que se apoia na essência maternal das mulheres. De novo
Rousseau será a voz que mais sintetiza esse pensamento: para ele, a
desigualdade entre homens e mulheres seria resultado de um destino natural. A
natureza delegou à mulher a função de fazer filhos e, portanto, seu papel social é
cuidar dos filhos. E, assim como as necessidades “naturais” de um sexo não são
iguais às do outro, as características morais também são diferentes e
complementares. Fragilidade, timidez, doçura, afetividade, doação e passividade
seriam traços fundamentais da mulher. Esta deveria ser educada com toda a
disciplina possível para obedecer a seu marido, seu protetor e guia, e cuidar dos
filhos e do lar. Porém, ao preconizar a necessidade de disciplinar os sentimentos e
desejos femininos para o melhor desempenho dos papéis de mãe e esposa,
Rousseau e seus seguidores têm como base de seus pressupostos a velha noção do
feminino como desregrado, agente do pecado e perigoso.
180
Esse perfil feminino,
cuja essência está ancorada nas ideias de doçura, maternidade, passividade e
subserviência, leva a uma imagem feminina realmente muito próxima ao ideal da
Virgem: uma mulher capaz de suportar sofrimentos e injustiças, com uma imensa
180
Cf. NUNES, S. A, O Corpo do Diabo entre a Cruz e a Calderinha: Um Estudo sobre a Mulher,
o Masoquismo e a Feminilidade, p. 43-47.
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capacidade de doação e perdão, encontrando satisfação e prazer nas tarefas que
lhe são destinadas.
Vê-se, então, que o antifeminismo e a sacralização são imagens especulares
do feminino. São duas formas de pôr a mulher fora da vida pública: seja
transformando-a em sedutora, incontrolável, superficial, secundária; seja em
redentora, sublimando-a, tornando-a inatingível, colocando-a em um pedestal,
acima do mundo humano. O dito balzaquiano, citado por Bloch, sintetiza essa
afirmação: “A mulher, estritamente falando, não é mais do que um anexo do
homem... Ela é um escravo que é preciso saber colocar num trono.
181
O século XIX surge marcado por essa concepção paradoxal da mulher-
redentora, posta em um pedestal, e a permanente preocupação com seus desvios
buscando instrumentos para coibir suas transgressões. Essa dupla imagem
feminina por um lado, um ser frágil, sensível e dependente, assexuada e passiva;
por outro, uma representação feminina dotada de excesso sexual que deve ser
permanentemente controlado vai ganhar novos contornos ao longo dos anos
1800.
182
A visão da mulher como um ser frágil é reforçada por correntes
evolucionistas que propõem que a mulher é menos evoluída que o homem,
estando mais próxima das crianças e dos povos ditos “primitivos”. Essa noção
servirá tanto para justificar a adequação natural da mulher à maternidade quanto
os seus eventuais desvios de comportamento. Os discursos médicos também irão
ressaltar a importância dos sentimentos nobres femininos: a doçura, a indulgência,
os bons sentimentos, a polidez e o tato têm a importante função de conter a
impulsividade masculina, manter o equilíbrio da família e fortalecer os laços
conjugais. Essa nova mulher, educadora dos filhos e mantenedora do equilíbrio
matrimonial, ganha um valor que até então o sexo feminino não tinha. Os
pensadores do século XIX, seguindo seus precursores, vão procurar circunscrever
a mulher nos papéis de mãe e esposa por meio da educação e das regras de
higiene. Para isso, desde cedo, as meninas são educadas para despertar o instinto
181
BLOCH, R. H., Misoginia Medieval e a Invenção do Amor Romântico Ocidental, p. 238.
182
Duas figuras representam esses ideais: a bailarina e a prostituta, ambas amplamente retratadas
pelos artistas da época. A primeira, símbolo da fragilidade, leveza, disciplina e candura feminina
presente em inúmeros quadros de Degas; a segunda, sensual, voluptosa, maquiada e exuberante foi
pintada principalmente por Toulouse-Lautrec.
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maternal, casar e reprimir o desejo sexual. O incentivo às inocentes brincadeiras
com bonecas e a proibição de romances ou peças teatrais “imorais” que pudessem
incitar a sexualidade feminina nas mocinhas são comportamentos amplamente
absorvidos pelas mais diferentes camadas das sociedades. A ciência médica
também exalta a capacidade feminina para o sacrifício.
A mulher que pare com dor, que aleita com sacrifício, que conduz a criança em seu
frágil colo, é o ideal máximo de feminilidade que o século XIX preconizou. Mártir
da modernidade, a nova mãe ganha um status privilegiado no processo de redenção
da humanidade.
183
A noção de que existe um masoquismo ligado à feminilidade tem seus
primeiros fundamentos nessa concepção do prazer feminino ligado ao sacrifício e
à dor.
Paralelamente a esse processo de transformação da mulher em santa do
lar, observa-se uma preocupação cada vez mais forte com as mulheres que
transgridem o modelo de esposa e mãe. Nesse momento, muitas acusações feitas à
mulher nos primórdios do Cristianismo reaparecem: a mulher desprovida de
racionalidade, a mulher como criadora de confusão, a mulher como superficial, a
mulher como maléfica.
184
À “misoginia reteologizada” do culo XIX se juntam
não só escritores como Balzac, Valery e Mallarmé, mas também intelectuais como
Schopenhauer, um grande crítico das mulheres e do comportamento que se
desviasse da subordinação ao homem e do seu lugar no espaço doméstico, àquelas
que não correspondessem aos ideais de mãe e esposa.
185
183
NUNES, S. A., O Corpo do Diabo entre a Cruz e a Calderinha: Um Estudo Sobre a Mulher, o
Masoquismo e a Feminilidade, p. 80.
184
Nunes lembra que o século XVIII, aurora da família burguesa, reprime e “esmaga” as mulheres
que transgridem o modelo da esposa, mãe e filha. Baseando-se no estudo de Catherine Clément
sobre as figuras femininas nas grandes óperas dos séculos XVIII e XIX, ela observa que por detrás
das sublimes melodias estão mulheres sofredoras, perdedoras, vencidas, “castigadas por sua
transgressão transgressão das regras familiares, das regras políticas, dos jogos do poder sexual. A
saber: Carmem, uma cigana que ama a quem desejar e anda com contrabandistas; Desdêmona, que
se casa com um mouro estrangeiro; Tosca, cantora que mata o chefe de polícia romana (...)
Culpadas, devem ser punidas”. Ibid., p. 50-51. Mas, como se verá adiante, essas transgressoras
“excessivas”, como Carmem, por exemplo, podem vir a resgatar uma positividade feminina.
185
“Em seu ensaio acerca das mulheres, Schopenhauer sentencia que as mulheres são pueris,
fúteis, de razão limitada e débil, perdulárias, injustas, velhacas, inclinadas à mentira, dissimuladas,
traidoras, ingratas, perjuras numa descrição que no conjunto torna as mulheres figuras
aterradoras. Schopenhauer foi um grande crítico das mulheres cujo comportamento extravasasse o
espaço doméstico, daquelas que de alguma forma se rebelassem contra a supremacia do homem,
das que se diziam infiéis ao homem por uma fidelidade à sua própria pessoa, das que se recusavam
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O discurso médico teve um papel fundamental nessa nova onda
antifeminista dando subsídios, por meio da racionalidade científica, às críticas
dirigidas à mulher. Como conter a tendência transgressora feminina? Durante a
Idade Média coube aos padres e inquisidores conter qualquer desregramento do
sexo feminino; ao longo do século XIX são os médicos que gerenciam essa
“malignidade feminina”. Mas se antes as mulheres eram associadas à carne e ao
pecado, agora é o excesso ou a ausência sexual feminina que ameaça o homem e o
destino feminino de ser mãe e esposa. Cabe ao homem, em nome da harmonia
social, a tarefa de controlar a sexualidade feminina. A ideia de que a mulher possa
prescindir do homem é completamente intolerável, o que torna a solteirona e a
lésbica figuras altamente perigosas uma vez que nenhum homem regula o desejo
delas. Já a prostituta é vista de forma ambígua. Como no espaço doméstico deve
predominar a “assepsia sexual”, a prostituição aparece como um mal necessário
para possibilitar ao homem dar vazão à sua potência sexual. Mas a prostituta é
vista como agente de doenças, ligada à ideia de morte e esterilidade. Essa
representação simbólica faz com que ela se torne objeto de uma estratégia de
higiene pública que procura isolar e vigiar essas mulheres. O corpo impuro da
prostituta é a antítese do corpo puro da mãe. Constrói-se, assim, um modelo de
visão masculina sobre o sexo feminino em que é difícil a mulher ser,
simultaneamente, objeto de amor e erotismo. As práticas sexuais femininas que
escapavam ao casamento e à maternidade eram focos de acusações a prostituta,
a lésbica, as mulheres que praticavam aborto, as mulheres sedutoras que
conquistam os homens mantendo com eles uma relação de liberdade eram
acusadas de desviantes. Logo o discurso psiquiátrico começa a regular esses
comportamentos através da patologização. A histérica e a ninfomaníaca são
figuras emblemáticas dos desregramentos femininos.
A crescente medicalização do corpo feminino no século XIX se
paralelamente ao aprofundamento do estudo da diferença entre os sexos. Segundo
algumas correntes, a fisiologia feminina se torna um dos principais fatores para
justificar o “adoecimento” das mulheres. As diferentes manifestações das funções
a estabelecer uma relação de causa e efeito entre a união dos sexos e a fecundidade. Nada lhe
parecia mais mico que as europeias emancipadas que, em nome de seus pretensos direitos, não
se submetiam a uma lei que era também seu destino.” Ibid., p. 82.
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sexuais se traduziriam em alterações emocionais: a menstruação, a gestação, a
lactação e a menopausa seriam elementos fisiológicos que provocariam mudanças
no estado emocional da mulher e revelariam sua fragilidade. Outra vertente
presente na segunda metade do século é a relação entre a teoria da
degenerescência e o feminino. Ou seja, o degenerado (aquele que apresenta
condutas transgressoras em relação à ordem e à família), em termos psíquicos, é
um sujeito degradado, próximo da irracionalidade. Surge, então, uma nova
representação médica do feminino: dotadas de uma sexualidade em estado bruto,
com maior facilidade para apresentar perturbações emocionais, com menor
capacidade de entendimento e discernimento, enfim, menos civilizadas, as
mulheres vão sendo pensadas como seres potencialmente degenerados e, mais
uma vez, colocadas ao lado das crianças, dos “povos primitivos” e dos loucos. A
histérica é a figura que mais simboliza essa concepção. Sejam os que advogam
que a histeria é uma doença vinculada ao aparelho fisiológico feminino, ao útero;
sejam os que a consideram uma doença neurológica, os médicos dos anos 1800 e
1900 descrevem a mulher como um ser potencialmente histérico.
186
A histeria se
torna, então, uma questão de mulheres. Para alguns, um sintoma de ser mulher,
uma doença da opressão da mulher. Outros vão mais longe e interpretam a
histérica como uma figura emblemática da mulher que tentava reagir a essa
opressão
187
. Se os discursos médicos apontam para a existência de uma
feminilidade rebelde e, portanto perigosa, a histérica seria a demonstração mais
186
Foucault observa que a “histerização do corpo da mulher” foi, a partir do século XVIII, “um
dos quatro grandes conjuntos estratégicos [a pedagogização do sexo da criança, a socialização das
condutas de procriação e a psiquiatrização do prazer perverso], que desenvolvem dispositivos
específicos de saber e poder a respeito do sexo”. Ele compreende como histerização do corpo
feminino um “tríplice processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado qualificado e
desqualificado como corpo integralmente saturado de sexualidade; pelo qual, este corpo foi
integrado, sob o efeito de uma patologia que lhe seria intrínseca ao campo das práticas médicas;
pelo qual, enfim, foi posto em comunicação orgânica com o corpo social (cuja fecundidade
regulada deve assegurar), com o espaço familiar (do qual deve ser elemento substancial e
funcional) e com a vida das crianças (que produz e deve garantir, através de uma responsabilidade
biológico-moral que dura todo o período da educação): a Mãe, com sua imagem em negativo que é
a “mulher nervosa”, constitui a forma mais visível desta histerização.” FOUCAULT, M., História
da Sexualidade I : A Vontade de Saber, p. 99.
187
O papel de Freud, ao analisar as histéricas como manifestações psíquicas da insatisfação
feminina diante da opressão a que eram submetidas, teve importância crucial no sentido de trazer
para o campo psíquico um tema que estava colado à biologia.
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128
viva do quanto a sexualidade feminina, com seus excessos e descontroles, poderia
significar um entrave ao projeto de ordenação política da sociedade burguesa.
188
A vida moderna traz novas questões sobre as representações do gênero
feminino. A acentuação da divisão social do trabalho e a intensificação da
economia monetária, que caracterizaram o capitalismo do final do século XIX e
início do século XX, produziram efeitos também intensos na vida cultural e
fizeram com que a modernidade se abrisse como crise. O entrelaçamento
supostamente equilibrado entre culturas subjetiva e objetiva, que caracterizava as
sociedades até então, é quebrado por uma fragmentação do mundo em que o
sujeito passa a se movimentar de forma “nervosa e febril”. Se até o final do século
XVIII e início do século XIX, a subjetividade, a vida interior do sujeito
adquiria sentido quando entrava em contato com o mundo objetivo, a partir de
então a vida social, marcada por movimentos acelerados de mudança e pelo
excesso de estímulos, cresce e se ordena sem a conexão com o mundo interior do
indivíduo. Esse “homem da multidão”
189
, para poder se singularizar nesse mundo
da objetividade, da fragmentação e da aceleração, em que a cultura subjetiva não
está mais amparada pela cultura objetiva, busca paleativos, receitas que
permitam que ele restitua a articulação entre interioridade e exterioridade. Essa é a
moldura do pensamento de Georg Simmel ao afirmar:
Toda divisão do trabalho bastante avançada significa que o sujeito se separa de seu
trabalho, o qual se integra então num contexto objetivo, em que se dobra às
exigências de uma totalidade impessoal, enquanto os interesses subjetivos e os
movimentos interiores do ser humano constituem, por sua vez, um mundo próprio
e prosseguem de certa forma uma existência privada.
190
188
“O ataque histérico, que dramatiza de forma espetacular o desvario que pode alcançar a
sexualidade feminina, expõe de forma caricata esse perigo. A histérica é a mulher que renega uma
posição passiva de renúncia e submissão, procurando preservar sua potência, que se exprime como
um protesto contra essa dominação. (...) Ao contrário da figura masoquista, que assumiria de
forma dócil e passiva o papel da mãe abnegada e sofredora, a histérica seria a mulher que não se
adapta a esse modelo, rebelando-se de forma ativa, expondo de forma teatral a falência do ideal
burguês de feminilidade que lhe fora demandado.” NUNES, S. A., O Corpo do Diabo entre a Cruz
e a Caldeirinha: Um Estudo sobre a Mulher, o Masoquismo e a Feminilidade, p. 109; 118.
189
Cf. BENJAMIN, W., Charles Baudelaire: Um Lírico no Auge do Capitalismo, passim.
190
SIMMEL, G., Cultura Feminina, p. 72.
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Simmel identifica a cultura objetiva que domina o mundo monetarizado e
especializado do trabalho com a cultura masculina. Para ele, os homens se
adaptaram perfeitamente a uma cultura que neutraliza a „vida interior‟, a dimensão
subjetiva, para abrir espaço a uma dimensão absolutamente objetivada, voltada à
„vida exterior‟. Contrapondo-se a este “homem multicindido que se dissolve no
seio da objetividade do mundo do trabalho”, está a cultura feminina que, a seu
ver, não teria sido inteiramente atingida pela fragmentação. A forte ligação com o
universo doméstico (penso que em especial com a maternidade) teria levado a
mulher a uma tendência a manter a unidade entre mundo objetivo e mundo
subjetivo, à “indivisibilidade do eu”, a uma integração entre interioridade e
exterioridade:
...parece que a diferença mais marcante entre o espírito masculino e o espírito
feminino reside nisso, e que este último não pode existir (...) com semelhante
dissociação entre o desempenho singular e o eu dotado de seus centros afetivos e
sensíveis. Toda a profunda beleza da essência feminina, que lhe preeminência
sobre o espírito masculino, cuja libertação e reconciliação ela simboliza, baseia-se
nessa unidade, nessa solidariedade imediata, orgânica, entre a pessoa e cada uma
de suas manifestações; em suma, na indivisibilidade do eu, que só conhece um „ou
tudo, ou nada‟.
191
.
Daí vem a ideia da sensibilidade feminina que tanto tem marcado a
literatura e as artes em geral. Também não é gratuita a identificação da moda com
o universo feminino na medida em que promove uma articulação entre a dimensão
individual, subjetiva, e a dimensão social, objetiva. Ela satisfaz a necessidade de
suporte social através da imitação em que o comportamento de cada um é um
exemplo do comportamento do grupo e, ao mesmo tempo, a de distinção, de
marca individual, de acentuação da personalidade. Para Simmel, a moda, assim
como a moldura de uma obra de arte, dota o indivíduo de uma unidade e delimita-
o em relação àquilo que lhe é externo; por outro lado, ela permite (re)ligar, pelo
reconhecimento, o indivíduo ao grupo, promovendo a coesão. Ele observa ainda
que a mulher, comparada ao homem, é mais fiel”, no sentido de ser mais estável.
E é justamente essa fidelidade que exprime o conformismo e a unidade dos
sentimentos femininos. Isso a levaria a uma necessidade de maior distinção
externa. A moda possibilitaria mudanças permanentes em um “domínio
191
Ibid., p. 72-73.
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secundário”. Inversamente, o homem, “de natureza mais infiel”, mais instável, de
maneira geral não se esforça por conservar sua unidade de sentimentos e, assim,
seria mais indiferente a manifestações exteriores de mudança. Sem perder de vista
o contexto sociocultural no qual estava inserido, Simmel tenta compreender a
moda como uma forma de integração dos aspectos subjetivos e objetivos da
identidade feminina.
A coqueterie, também estudada por Simmel como meio de lidar com a
fragmentação da vida moderna, é pensada como uma forma de sociabilidade,
essencialmente feminina. Atua neutralizando a subjetividade e a objetividade.
Trata-se de uma espécie de interação que mais se parece um „jogo‟: desperta o
prazer e o desejo por meio de uma alternância ou da concomitância de atenções ou
ausência de atenções, sugerindo, simultaneamente, „dizer sim‟ e „dizer o‟, „dar‟
e „recusar‟. A coquete, com suas atitudes furtivas (o olhar terno, a cabeça
esquivada, o andar balanceado, alternado com a distância ou a atitude de se
afastar), representa uma forma pela qual a mulher, pela neutralização, lida com a
vida exterior e interior, sem que a primeira se sobreponha à segunda, ou a elimine.
Simmel ressalta ainda uma qualidade específica da cultura feminina que
poderia alterar a tradição (que seria a cultura masculina). Na verdade, ele não está
preocupado em como a mulher pode ter ganhos à medida que, com o aumento dos
seus direitos, se fortalece individualmente do ponto de vista da cultura objetiva. O
que interessa é saber como a mulher, ao ir adquirindo seus direitos, pode
contribuir para alterar a cultura objetiva, promovendo nova integração com a
cultura subjetiva. Ele vislumbra outra divisão do trabalho, baseada na
complementaridade entre culturas masculina e feminina, em que se resgata a
relação entre interioridade e exterioridade, como a melhoria da cultura médica.
Esgotados os exames clínicos (tidos como objetivos), eles poderiam ser
complementados por um conhecimento subjetivo (isto é, feminino) do estado do
paciente em que seus sentimentos fossem considerados. De certa forma, Simmel,
assim como Freud, sugere uma “feminização” da humanidade ao propor restituir a
integração entre as dimensões social e individual a partir da penetração e
disseminação da cultura feminina na cultura tradicional (isto é, masculina).
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Freud, por sua vez, apresenta concepções bem tradicionais em relação à
mulher, com forte influência das ideias iluministas, especialmente nos seus
primeiros trabalhos. Entretanto, diferente de boa parte dos discursos psiquiátricos
da época, ele tem uma perspectiva positiva da diferença entre homem e mulher.
Para o psicanalista, a mulher possui qualidades inerentes à maternidade
bondade, afeto, beleza e, assim, é dotada de menor agressividade, maior
passividade e docilidade, enquanto o homem seria mais ativo e agressivo.
Analisando suas pacientes, começa a elaborar sua teoria sobre a histeria e, ao
contrário das visões que a atribuíam a causas orgânicas, Freud vai identificar a
histérica como sendo o resultado do conflito psíquico entre a sexualidade e as
exigências morais de uma determinada cultura. Para ele, a civilização e a
educação entrariam em choque com as pulsões da sexualidade. É no embate entre
indivíduo e cultura que Freud situa as raízes das neuroses modernas, no caso, da
histeria. Para ele, trata-se de um sintoma de uma “moral civilizada” que impede
que a mulher exerça plenamente sua sexualidade.
192
Ele percebe a dificuldade
feminina em se constituir como indivíduo autônomo e singular em uma sociedade
que a desqualifica no confronto com o homem e na qual seu desejo deve ser
recalcado, permanecendo subordinado ao desejo masculino. À medida que avança
em seus estudos, Freud começa a delinear um novo perfil feminino em que a
mulher não é mais considerada apenas vítima da cultura, mas também uma
ameaça ao homem e à própria cultura. Em sua teoria da sexualidade feminina,
Freud ora situa a mulher como castrada e invejosa, ora como fálica e poderosa,
reeditando, assim, dois estereótipos do século XIX: tanto o da mulher insatisfeita
com seu lugar passivo, que inveja o homem e sua liberdade, quanto o da mulher
fatal, a anti-Madona, aquela que se torna uma ameaça para a família e a sociedade.
Mas nas duas vertentes a mulher deixa de ser o sexo frágil, passando a ser
representada como um sexo forte, dotada de um imenso poder sobre a fantasia e a
economia libidinal masculina.
193
194
192
Nunes ressalta que a primazia que confere à sexualidade na construção da subjetividade e o fato
de adotar preconceitos burgueses em relação à condição feminina, impedem-no de perceber e
aceitar que a histeria é também uma forma feminina possível de questionar o lugar reservado à
mulher e ao seu desejo. NUNES, S. A., O Corpo do Diabo entre A Cruz e a Caldeirinha: Um
Estudo sobre a Mulher, o Masoquismo e a Feminilidade, p. 142-143.
193
Ibid., p. 151.
194
Birman afirma que o discurso freudiano, ao propor a superação da crença do poder do falo,
enunciou o conceito de feminilidade como algo que se diferencia da sexualidade masculina e da
feminina (estas estariam marcadas pelo “monismo sexual” já que seriam perpassadas pelo falo, o
que determinaria uma pressuposta superioridade masculina). Como ele ressalta, pela primeira vez
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Talvez o maior mérito das análises de Freud sobre a mulher seja o resgate
que faz, no campo da psicanálise, da subjetividade feminina. Assim como
Simmel, Freud percebe a dificuldade do indivíduo em se constituir enquanto
sujeito singular e autônomo, dotado de uma interioridade particular, no confronto
com uma sociedade que tende a solapar desejos e emoções que não estejam
integrados ao “pacto civilizatório” que caracteriza a modernidade da segunda
metade do século XIX em diante. A tensão entre individualizar-se ou ser
englobado pela sociedade seria, a seu ver, uma das principais causas das neuroses
modernas.
A literatura foi um veículo importantíssimo para expressar a situação
feminina que se impõe, a partir da segunda metade do século XIX, quando as
mulheres começam a ter outros projetos que não apenas os de esposa e mãe. O
romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert, publicado em 1857, tornou-se um
dos retratos mais realistas das aspirações femininas que começam a emergir nessa
época. A história de Emma, uma esposa provinciana que renega os deveres do
casamento e da maternidade para seguir suas ilusões românticas na busca da
paixão, revela com toda força a hipocrisia que reinava na sociedade burguesa da
época. Leitora voraz de romances desde a juventude, Emma Bovary transgride
todos os preceitos para viver suas paixões avassaladoras. Ao perceber sua vida
provinciana, adoece. Quando nota que o casamento não satisfaz seus desejos
sexuais e intelectuais, envolve-se em um romance adúltero com Rodolphe, que a
subjuga e faz dela “um joguete”. Abandonada, adoece novamente e, como
consolo, busca a religião e, como sempre, os romances. Acaba seduzida por um
comerciante que não mede esforços para lhe vender toda espécie de mercadorias,
o que a leva à falência. Seu final é o suicídio. Pode-se identificar em Emma um
comportamento histérico, ou mesmo revelar traços masoquistas, porém o que
Flaubert nos mostra com essa personagem é que a mulher que surge com a
na história da sexualidade no Ocidente confere-se à feminilidade a centralidade da experiência
erótica, a origem e o fundamento do sexual. A mulher deixa de ser vista como um ser incompleto e
imperfeito, a quem, conforme a tradição galênica, falta calor para se transformar em um homem,
ou alguém que é definido pelo pecado da carne, de acordo com a tradição cristã. A feminilidade se
torna a partir de então a origem do sexual, de onde passam a advir o “ser homem” e o “ser
mulher”. BIRMAN, J., Cartografias do Feminino, p. 104-105.
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modernidade começa a se sentir desconfortável com seus papéis de santa e
rainha do lar, e passa a se rebelar por meio dos mais diferentes caminhos.
195
No Brasil, a trajetória das visões sobre o feminino e o lugar destinado à
mulher não foi muito diferente das sociedades europeias. A diferença é que a
sociedade patriarcal brasileira foi bem mais vigorosa em suas regras em relação à
mulher e à família, e também mais duradoura, do que boa parte dos países
europeus. Encontra-se, sim, muitas semelhanças com as sociedades mediterrâneas,
que mantiveram a família sustentada nas noções de honra da qual a mulher é a fiel
depositária e o homem, seu guardião.
A sociedade colonial brasileira foi marcada fortemente pelo antifeminismo
cristão. O controle da sexualidade feminina era uma tarefa que pertencia não à
Igreja, mas também ao Estado, aos pais, esposos, irmãos, tios e tutores. Adestrar a
tendência explosiva e impura do sexo feminino era fundamental para o equilíbrio
doméstico, a segurança do grupo social, a ordem das instituições civis e
eclesiásticas. Coube ao catolicismo fornecer as bases da misoginia que
predominou na sociedade colonial: a mulher, condenada a pagar eternamente pelo
erro de Eva, a primeira fêmea, que levou Adão ao pecado e condenou a
humanidade a não usufruir da inocência paradisíaca, devia estar sob eterna
vigilância, desprovida de qualquer ornamento, silenciosa, submissa aos desejos e
decisões do homem. A maternidade, e a consequente adoção de uma “vida
santificada”, seria o meio pelo qual ela adquiriria a salvação. A decorrência foi
uma educação dirigida exclusivamente para os afazeres domésticos coser, fiar,
talhar; escrever, apenas cartas e receitas. Sem tempo para enfeitar-se ou ler
novelas, as jovens deveriam viver em ambiente de clausura, preparando-se para a
195
Andreas Huyssen, em seu estudo sobre as relações entre cultura de massa e a construção do
feminino, observa que um dos textos fundadores do modernismo é Madame Bovary, de Flaubert.
Segundo o autor, a personagem Emma, que nas palavras do narrador amava ler romances, tinha
um temperamento “mais sentimental que artístico”, era uma leitora dividida entre as narrativas de
“romances triviais” e a realidade da vida provinciana francesa durante o Segundo Império de
Napoleão III. Uma mulher que tentou viver as ilusões românticas de seus romances e “naufragou
na banalidade do cotidiano burguês”. Acusado pela Corte francesa de atentado aos costumes e
valores morais, Flaubert declara “Madame Bovary, c‟est moi”. A despeito das neuroses do escritor
e da posição marginal que a arte e a literatura ocupavam numa sociedade em que a masculinidade
era identificada com ação, empreendimento e progresso, Huyssen chama a atenção para o fato de a
mulher, Madame Bovary, ser apresentada como “uma leitora de literatura inferior – subjetiva,
emocional e passiva enquanto o homem (Flaubert) emerge como um escritor da genuína e
autêntica literatura objetivo, irônico e com o controle de suas formas estéticas”. HUYSSEN, A.,
Mass Culture as Woman: Modernism‟s Other, p. 46.
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vida conjugal. Aos 12 anos podiam se casar (de preferência com homens muito
mais velhos) e as que atingiam 14, 15 anos sem contrair matrimônio eram alvo de
preocupação dos pais. Ou seja, ainda na puberdade a mulher tinha seus desejos
contidos e domesticados por meio do laço matrimonial. A Igreja, através do
confessionário, se encarregou de ajudar a vigiar de perto gestos, atos, sentimentos
e sonhos.
196
O marido, agora seu senhor senhor de terras, senhor de escravos,
senhor da casa-grande deveria manter sua esposa permanentemente voltada para
as “coisas do lar”.
A maternidade era o ápice da vida feminina no sistema patriarcal,
monocultor, latifundiário e escravocrata, e procriar era sua principal atividade.
Cabia à Igreja Católica regrar as atividades sexuais nessa sociedade: o erotismo
era assunto para amantes. Para a esposa, o ato sexual se destinava à procriação. Se
o esforço colonizador português nos trópicos, desde o primeiro momento, foi
caracterizado pela miscigenação com as “mulheres de cor”, multiplicando-se em
filhos mestiços
197
, o senhor da casa-grande institucionaliza a poligamia com suas
escravas, mulheres que podiam ser ardentes e viver intensamente o prazer sexual.
As desviantes feiticeiras, adúlteras, homossexuais eram punidas com castigos
severos, penitências espirituais, reclusão em conventos e mesmo com a morte.
Trata-se do padrão duplo de moralidade de que fala Gilberto Freyre
198
, que ao
homem todas as oportunidades (de gozo físico, de ação social, de vida pública) e
restringe a mulher à procriação, aos serviços e às artes domésticas, transformando-
a na imagem do “belo sexo” ou do “sexo frágil”. Isso não impediu que surgissem
senhoras de terras extremamente autoritárias, agressivas e vingativas
(especialmente em relação às escravas que dormiam com seus maridos).
199
196
Cf. ARAÚJO, E., A Arte da Sedução: Sexualidade Feminina na Colônia, p. 51.
197
Cf. FREYRE, G., Casa-Grande & Senzala: Formação da Família Brasileira sob o Regime da
Economia Patriarcal, p. 9-10.
198
Cf. FREYRE, G., Sobrados e Mucambos: Decadência do Patriarcado e Desenvolvimento do
Urbano, p. 207-208.
199
Freyre, analisando o tipo físico da mulher da sociedade patriarcal, observa que “...a
especialização do tipo físico e moral da mulher, em criatura franzina, neurótica, sensual, religiosa,
romântica, ou então gorda, prática e caseira, nas sociedades patriarcais e escravocráticas, resulta,
em grande parte dos fatores econômicos, ou antes, sociais e culturais, que a comprimem,
amolecem, alargam-lhe as ancas, estreitam-lhe a cintura, acentuam-lhe o arredondado das formas,
para melhor ajustamento de sua figura aos interesses do sexo dominante e da sociedade organizada
sob o domínio exclusivo de uma classe, de uma raça, de um sexo”. Ibid., p. 210.
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Com a crescente urbanização, a grande lavoura vai deixando de ser,
paulatinamente, o centro da vida econômica, social e política do Império. Os
homens do comércio, os ligados a um crescente funcionalismo público, os
bacharéis e os doutores ganham cada vez mais expressão na incipiente sociedade
burguesa. Uma sociedade que mantém as regras básicas da família patriarcal
brasileira. As “senhoras do sobrado”, exageradamente enfeitadas e “mais
delicadas e frágeis”, manterão seu lugar de zeladoras e estabilizadoras do espaço
doméstico.
A mulher do sobrado, embora em casa se mantivesse vestida com
“cabeções” e chinelos, frequentava igrejas e festas onde esmerava-se nos
ornamentos para ser admirada pelos homens. Com cinturas finas contidas por
espartilhos; cabelos grandes, penteados elaboradíssimos, com tranças e cocós
ornamentados com pentes; roupas feitas de fazendas finas ou veludos, com
babados, rendas, plumas e fitas, e usando muitas joias de ouro fino, essas
mulheres, por meio desses exageros ornamentais se distinguiam “da mulher de
mucambo ou de casa térrea”.
200
Aliás, a tendência a se ornamentar com exagero
não foi uma prerrogativa das senhoras do sobrado; o homem, de barba, bigode e
cavanhaque, também aparecia nas ruas e festas superornamentado, com fardas
ostentando condecorações e insígnias, bengalas, espadas e esporas revestidas de
ouro, relógios de bolso presos com corrente de ouro, anéis e outros adereços.
Ainda que menos reclusa e mais enfeitada, seu papel de esposa e mãe, depositária
da estabilidade e da honra da família, se matinha. Porém, essa “mulher
semipatriarcal do sobrado”, submissa ao pai e marido, não era a maior vítima de
um patriarcalismo que apresentava sinais de declínio. Como Freyre destaca, a
maior vítima do patriarcado dos sobrados era a solteirona. Os “senhores urbanos”
já não se dispunham a gastar tanto com as filhas solteiras enviando-as para
recolhimentos e conventos mediante vultuosos dotes. Assim, as mulheres que não
se casavam ficavam na completa dependência dos donos da casa: o senhor, a
senhora, as meninas. Ficavam mesmo constrangidas em dar ordens às mucamas.
200
Ibid., p. 213-216.
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136
Na economia dos sobrados, a solteirona, do ponto de vista social, econômico e
jurídico, era pouco mais que uma escrava.
201
Entretanto, a submissão feminina na sociedade patriarcal por vezes era
abalada. Não foram poucos os casos de envolvimento de mulheres brancas das
casas-grandes e dos sobrados com mulatos ou com bacharéis e militares pobres
comparados com a aristocracia rural e urbana. Esses relacionamentos, além de
escandalizar, rompiam com a endogamia que caracterizava a sociedade patriarcal:
“As filhas,...as iaiás dos sobrados, as sinhás das próprias casas-grandes de
engenho, deixando-se raptar por donjuans plebeus e de cor, perturbaram
consideravelmente, desde os começos do século XIX, o critério endogâmico de
casamento”.
202
Esses raptos, assim como acontecia com as mocinhas dos
romances e novelas devorados por iaiás e sinhás, revelavam um romantismo em
que o direito ao amor e à escolha do parceiro passara a ser considerado fator
decisivo para a união entre homens e mulheres, pondo em segundo plano as
considerações de raça, classe, família e sangue. A ascensão do romantismo em
meados do século XIX marcou o início do declínio da família patriarcal na
sociedade brasileira.
Uma visão do feminino com a valorização da intimidade e da maternidade
vai se impondo ao longo do século XIX. A vida burguesa delega à mulher o papel
de manter um sólido e acolhedor ambiente familiar, educar os filhos, dedicar-se ao
marido e acompanhá-lo na vida social. A passagem das relações senhoriais às
relações sociais burguesas foi marcada pela dissolução das formas tradicionais de
solidariedade representadas pela vizinhança, pela família extensa, pelo compadrio,
pela tutelagem, e o fortalecimento dos laços entre os membros da família nuclear.
Porém, a maior interiorização da vida doméstica deu-se paralelamente à maior
sujeição, especialmente das mulheres, à avaliação e à opinião pública. As
mulheres de elite começaram a frequentar cafés, bailes, teatros, saraus não apenas
sob o olhar vigilante de pais e maridos, mas também da sociedade. O sucesso de
um homem dependia decisivamente do comportamento de sua mulher. Se por um
lado o homem se mantinha como autoridade familiar, a mulher se tornava cada
201
Ibid., p. 243-244.
202
Ibid., p. 246.
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vez mais um capital simbólico para garantir seu reconhecimento público e sua
posição social.
O mundo das emoções e dos sentimentos também vive transformações. As
regras do amor romântico agora delineariam as relações entre os sexos. Uma nova
sensibilidade, ancorada na escolha dos cônjuges, é proposta como condição de
felicidade. Porém, essa escolha é feita dentro de um campo de possibilidades que
segue os padrões e comportamentos da época: escolha à distância, sem
aproximação de corpos, sem qualquer intimidade que significasse ameaça à
“integridade” da moça. A virgindade feminina era um requisito fundamental para
manter o dispositivo de aliança da época. Ela era a garantia de status da noiva e do
futuro da vida conjugal.
203
A literatura romântica cumpre um papel fundamental nessas famílias
burguesas: seja em saraus ou reuniões para leituras, seja na leitura individual nas
alcovas (muitas vezes em voz alta para compartilhar com suas criadas), a mulher
encontrou nos romances uma gramática de sentimentos. É certo que as heroínas
românticas, lacrimosas e sofredoras incentivavam a idealização das relações
amorosas e do casamento. Contudo, essa literatura devorada pelo público
feminino possibilitou o exercício da subjetividade e da individualidade feminina,
até então completamente ignorados pela sociedade patriarcal.
A passagem do século XIX para o século XX é marcada por profundas
mudanças científicas e tecnológicas decorrentes da expansão do capitalismo, que
cada vez mais integra nações. Avanços na medicina e nas medidas de higiene
possibilitaram maior controle da mortalidade. Automóveis, aviões, telefones,
utensílios eletrodomésticos, cinema, tudo isso contribuiu, definitivamente, para
transformar os estilos de vida e as visões de mundo das sociedades. O impacto
dessas mudanças alterou de forma significativa o relacionamento entre sexos. A
principal foi a crescente participação da mulher na vida pública. Nas primeiras
203
Essa imagem da mulher voltada para o espaço doméstico, para o marido e os filhos, base da
vida moral familiar foi endossada “por parte dos meios médicos, educativos e da imprensa na
formulação de uma série de propostas que visavam educar a mulher para o seu papel de guardiã
do lar e da família a medicina, por exemplo, combatia severamente o ócio e sugeria que as
mulheres se ocupassem ao máximo dos afazeres domésticos. Considerada base moral da
sociedade, a mulher de elite, a esposa e mãe da família burguesa deveria adotar regras castas no
encontro sexual com o marido, vigiar a castidade das filhas, constituir uma descendência saudável
e cuidar do comportamento da prole”. D‟ INCAO, M. Â. Mulher e Família Burguesa, p. 230.
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décadas do novo século, essa maior participação se dava, especialmente, nos
espaços de entretenimento: teatros, cinemas, circos, cafés literários, footing pelas
avenidas que se abriam. As músicas e danças aproximavam os corpos femininos e
masculinos. O maxixe, por exemplo, surgido no século anterior, mas que ainda
ocupava os salões burgueses e a rua, “colava os corpos, a perna do dançarino entre
as coxas da dançarina, juntando um sexo ao outro. O miudinho era um passo
infernal que punha as cadeiras da mulher entre as coxas do homem”.
204
Um novo padrão de beleza feminina começa a surgir: os espartilhos e
anquinhas, que comprimiam o ventre e as costas e produziam cinturas finíssimas,
começam a ser abandonados; a coquetterie, que caracterizava o comportamento
feminino, o jogo de esconde-esconde para despertar o desejo de mostrar, que se
traduzia no uso de luvas, véus e roupas compostas por várias camadas de anáguas
que cobriam as formas femininas, é posta de lado. O corpo começa a se soltar e a
aparecer em nome de uma mulher que traduz sua beleza pela saúde e pelo vigor,
agora sinônimos de elegância feminina. Multiplicam-se ginásios que estimulam
exercícios físicos para mulheres; médicos e higienistas passam a defender os
exercícios para controlar a histeria e a melancolia, duas vilãs que atingiam a
mulher dessa época.
As mudanças trazidas pela vida moderna que marcaram as primeiras
décadas do século trouxeram reações e questionamentos por parte daqueles ou
daquelas que viam nos novos comportamentos indícios de corrosão da ordem
social, de quebra dos costumes, de alterações na rotina feminina e, principalmente,
modificações destrutivas nas relações entre homem e mulher. Juristas, médicos,
representantes da opinião pública reuniram esforços para disciplinar qualquer
iniciativa que pudesse ameaçar as instituições básicas da sociedade, sobretudo a
família e o casamento, os grandes pilares da sociedade e do Estado. O projeto
possível para a mulher e o homem era casar e ter filhos. Casamento e procriação
deveriam continuar sendo as principais metas femininas. A virgindade se
mantinha um tabu e as noivas deveriam conter os “excessos masculinos” até as
núpcias. Contudo, o casamento era mais o lugar da amizade do que do amor.
“Sexo com respeito” era ensinado pelas mães às jovens prestes a contrair
204
DEL PRIORE, M., História do Amor no Brasil, p. 239.
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matrimônio. Era preciso continuar bela, afetuosa, saudável e agradar o marido
para manter os laços da “amizade amorosa” e garantir o “casamento para toda a
vida”.
Prazer sexual e casamento permaneciam incompatíveis, não muito diferente
da tradicional sociedade patriarcal. A repressão sexual feminina era profunda. A
palavra sexo não era pronunciada, as mulheres mal conheciam seus corpos, os
órgãos sexuais femininos eram considerados palavrões, a mulher não tirava a
roupa na frente de seu marido e o ato sexual era de luz apagada. O recato feminino
era seu passaporte para a distinção e o respeito social. O Código Civil de 1916
mantinha o compromisso com o Direito Canônico e com a indissolubilidade do
casamento. Vários de seus preceitos sacramentavam a submissão da mulher a seu
marido. O homem, chefe da sociedade conjugal, era o representante legal da
família, administrava os bens do casal e mesmo os particulares de sua esposa,
tinha o direito de fixar ou mudar a família de domicílio. Uma ordem jurídica que
legalizava a subordinação e a dependência da mulher ao homem. Considerada
incapaz para exercer determinados atos civis, a mulher continuava a ser
comparada aos menores de idade e aos povos ditos “primitivos” (aqui a
comparação era obviamente com os índios). Para trabalhar fora do espaço
doméstico, precisava pedir autorização ao marido ou ao juiz. A aplicação do
Código no cotidiano familiar acabou por extrapolar as cláusulas previstas. Os
maridos dispunham dos bens materiais e simbólicos da família como bem
queriam, praticavam a violência considerada “legítima” diante de comportamentos
da mulher que, para ele, eram “excessivos” (o digo Civil previa a nulidade do
casamento quando o marido constatava que a esposa não era mais virgem), e
decidiam a formação educacional e profissional dos filhos. A legislação vigente
interpretou e legitimou os papéis sociais dos cônjuges para assegurar a ordem
familiar: ao marido cabia prover a manutenção da família e protegê-la contra
perigos externos; à mulher, desempenhar o papel de administradora do lar, esposa
e mãe dedicada. A ele, a identidade pública; a ela, a identidade doméstica.
205
E
mais ainda: na mulher era depositada a honra familiar. Assim como nas
205
Cf. MOTT, M. L.; MALUF, M., Recônditos do Mundo Feminino, p. 375-382.
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sociedades mediterrâneas analisadas por Pitt-Rivers e outros, a família brasileira
também seguia um código de honra em que a esposa, em troca do sustento
garantido pelo marido, deveria ser reconhecida como distinta pela sociedade,
respeitando os ditames da moral e dos bons costumes. Ou seja, o reconhecimento
social do marido dependia diretamente do comportamento feminino.
O fim da Primeira Guerra Mundial representa uma série de desafios para os
países ocidentais que precisam recuperar suas economias, suas sociedades, seus
valores. Os anos 1920 se anunciam como os “Anos Loucos”. A Europa e os
Estados Unidos vivem um grande desenvolvimento industrial e urbano e um
fervilhamento intelectual sem precedentes. As mulheres vão tendo acesso a uma
melhor escolaridade, conquistam maior participação no espaço público com o
surgimento de novas profissões para elas. Embora boa parte dessas profissões
fosse muito próxima do mundo doméstico (professora, enfermeira, secretária,
telefonista, taquigrafas, operárias da indústria têxtil e alimentícia), surgem
mulheres escritoras, pintoras, escultoras e mesmo médicas. A garçonne, de saia
mais curta com as pernas cobertas por meias de seda, chapéu cloché, saltos baixos
e cigarreira, dançando charleston ou fox-trot, foi um dos símbolos desse período.
As sufragettes, que lutavam pelo direito ao voto feminino, também representavam
uma mulher que buscava assumir um novo perfil atuando no domínio público
masculino.
No Brasil, o projeto de modernização e sua inserção a qualquer custo entre
as nações “civilizadas” levou a uma série de ações que buscavam adequar a
realidade aos modelos europeus e norte-americanos. Copiar os estilos de vida dos
países europeus (em especial o de Paris) e dos Estados Unidos significava ser
moderno, estar na moda. Com o esgarçamento das famílias extensivas,
características do sistema patriarcal, e a diluição das redes de sociabilidade, as
relações entre gêneros também sofreram grandes transformações. A crescente
entrada da mulher na esfera do trabalho (fábricas, comércio, escritórios) provocou
mudanças na vida familiar. A maior presença em atividades ligadas ao
entretenimento teatros, cinemas, saraus e o footing pelas avenidas, ocasiões
propícias para o flerte começaram a alterar as regras de aproximação entre o
homem e a mulher, assim como as regras do casamento.
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Não foram poucas as críticas a essas novas mulheres. Modernistas, como
Menotti Del Pichia, não escondiam suas desconfianças de “doidivanas” e “fúteis”,
“irriquietas” e “sirigaitas” que usavam todos os artifícios para seduzir: trajes da
moda, cosméticos, poses e gestos estudados, hábitos considerados masculinos
como fumar. Oswald de Andrade não poupou ataques às sufragettes, mesmo
tendo um relacionamento de sete anos com a pintora Tarsila do Amaral, ícone da
mulher libertária dos anos 20.
As reações ao surgimento de uma nova mulher foram muitas e contaram
com toda a ajuda do aparato da Justiça e mesmo da medicina. A “desvirginada”
era uma vergonha e tornava-se incapaz de fazer um bom casamento”. A mulher
separada (ou abandonada) era tratada como incompetente para exercer seu papel
de mantenedora do equilíbrio do lar e acabava por ser considerada uma ameaça
social. A mulher acusada de adultério era passível de punição e, em muitos casos,
com violência. O crime passional, em geral, era cometido em reação ao adultério
feminino. Apoiados na tradição patriarcal, os homens alegavam que “honra
manchada se lava com sangue”, ao passo que o adultério masculino deveria ser
tolerado pelas esposas, que acabavam se acomodando à situação de ser “a matriz”
e fingiam não saber das “filiais”. O Código Penal brasileiro de 1890, que até então
vigorava, penalizava apenas o adultério feminino com prisão de um a três anos. O
homem era considerado adúltero no caso de se constatar que mantinha uma
concubina e, mesmo assim, o assunto era tratado como sendo de foro íntimo. A
fidelidade deveria ser obrigatória para as mulheres; os homens tinham o álibi
fornecido por discursos médicos de que seu organismo “necessitava” extravasar
sua sexualidade.
Os anos 1930 e 1940, especialmente com o fim da II Guerra Mundial,
assistem ao aceleramento do processo de modernização urbana, ajudando a
consolidar uma classe média ávida por usufruir de todas as novidades voltadas
para o consumo, a informação e o lazer. A crescente instrução da população, em
especial das mulheres, possibilitou o consumo de publicações femininas que as
mostravam manifestando sua vida amorosa publicamente. É bem verdade que a
literatura mais difundida era a chamada “cor-de-rosa”, publicada em romances de
bolso e em revistas e jornais femininos: histórias “água com açúcar”, com forte
marca romântica, mostravam heroínas com caráter nobre, belas, delicadas,
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virtuosas e puras, à espera do príncipe encantado. Este, por sua vez, era forte,
elegante, viril, bom caráter, sedutor (porém, respeitador). Havia ainda as histórias
dirigidas às esposas com heroínas que eram o exemplo do recato, da boa
educação, da devoção à família e ao marido. Mas eram mulheres “amantíssimas”,
apaixonadas.
Os filmes de Hollywood incentivavam cada vez mais a expressão dos
sentimentos amorosos. Não foram poucos os amantes que aprenderam a beijar
assistindo a Humphrey Bogart e Lauren Bacall nas telas de cinema. O beijo, até
então um tabu nos namoros, passa a ser sinônimo de final feliz.
206
A maioria das
heroínas nesses filmes era apresentada em situação de triângulos amorosos e as
mulheres de todo o mundo se identificavam com diversos tipos femininos
exibidos pelo cinema hollywoodiano: Clara Bow, Alice White, Collen Moore
simbolizavam as “garotas modernas”, transpirando alegria e mocidade; Greta
Garbo era a “mulher-mistério”, a femme fatale que despertava paixões
avassaladoras; Marlene Dietrich era uma espécie de vamp, “a diva fatal envolta na
fumaça da cigarrilha”
207
; Lana Turner era vista como sex symbol, nem sempre
pelos papéis que representava nas películas, mas também pela sua vida pessoal
tumultuada por vários casamentos. Mulheres fascinantes, dotadas do it (um certo
“quê” sedutor) e sex appeal (que se traduz pelo olhar sedutor, um corpo atraente e
atitudes provocantes). os homens se projetavam nos tipos canastrões como
Clark Gable e Gregory Peck, ou mesmo sedutores como Humprey Bogart, que
demonstravam virilidade com o olhar malicioso ou em atitudes arrebatadoras
tais como o beijo hollywoodiano”.
206
Azevedo, em seu estudo sobre o namoro tradicional, observa que qualquer contato corporal
entre os enamorados colocava em questão a integridade e a honra da moça. Portanto, um
comportamento recatado e cauteloso era requisito fundamental para as namoradas e noivas que
pretendiam que a relação se transformasse em casamento: “Num começo de namoro, a moça
observa certas cautelas, aconselhadas pelo recato, pelo pudor e pela necessidade de avaliar as
intenções e os atributos do candidato. Assim, não imediatas franquias ou mesmo esperanças de
persistência nos encontros e colóquios, até que se assegure da confiança do parceiro. Atingindo
esse limiar, a interação assume certa permanência, a depender das personalidades postas à prova.
Começa, então, uma aventura de certo risco em seus períodos iniciais, isto é, durante meses,
porque as “moças de família” devem ser resguardadas por toda a sua parentela, especialmente
pelos irmãos e pais, contra as sempre temidas agressões eróticas ou, pelo menos, contra
comprometimentos imprudentes e precipitados com pessoas ainda não identificadas em seus
propósitos ou em suas qualificações para a união projetada”. AZEVEDO, T. de, Namoro à Antiga:
Tradição e Mudança, p. 232.
207
DEL PRIORE, M., História do Amor no Brasil, p. 276.
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O rádio foi outro elemento que catalisou sentimentos e desejos femininos.
Na década de 1940, famílias inteiras se colocavam diante do rádio para ouvir
músicas, novela e noticiário. Como Del Priore
208
ressalta, nas músicas as imagens
femininas se alternavam entre a doméstica, que “não tinha a menor vaidade” e que
sabia “lavar e cozinhar”, como as cantadas em Amélia, de Ataulfo Alves e Mário
Lago, e Emília, de Wilson Barboza e Haroldo Lobo; a onírica, a mulher
idealizada, inatingível, como a que está “lá no céu tão pensativa”, de Noite Cheia
de Estrelas, que fez sucesso na voz de Vicente Celestino; e a piranha, fonte de
desejo e prazer, que permanentemente ameaça o homem de abandono, cantada por
sambistas e seresteiros, como a mulher que “quer viver na orgia” de Oh! Seu
Oscar, de Ataulfo Alves e Wilson Batista, ou a que estava “nos braços de um
outro qualquer”, de Nervos de Aço, sucesso de Lupicínio Rodrigues.
Às vezes, histórias reais eram dramatizadas em músicas e em programas de
entrevistas. Foi o caso da separação de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, que
virou um duelo musical de acusações. São músicas que falam de sagas amorosas
assim como as radionovelas, tratadas anteriormente, que contavam histórias de
heroínas melodramáticas que sofriam muito para no final encontrar a felicidade ao
lado do amado. O que se assiste nesse momento são as imagens femininas da
santa-mulher, e e esposa dedicada aos filhos e ao marido, e da prostituta, a
transgressora, a artificial, a que tem uma sexualidade descontrolada, sendo
retratadas nos veículos de massa das décadas de 30 e 40. Mas não faltaram
representações de mulheres que rompiam com esses modelos. A figura da
desquitada (ainda que chamada de “abandonada”), embora sofrendo julgamentos
morais acusatórios e considerada por muitos como “mulher de reputação”, vai
se tornando cada vez mais comum nos romances, revistas, filmes, músicas,
radionovelas e fotonovelas.
Os anos 1950 foram marcados por muito otimismo e euforia. Enquanto a
Europa estava em plena reconstrução após a Segunda Guerra Mundial, e os
Estados Unidos em grande fase de prosperidade econômica, o Brasil viveu um
período de intensa industrialização e de crescimento urbano com ascensão de uma
forte classe média. As possibilidades de educação se estenderam para parcelas da
208
Ibid., p. 269-274.
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população até então ignoradas. As mulheres passaram a ter educação formal e
ampliaram-se as possibilidades profissionais. O acesso à informação, lazer e
consumo também se alargou e a vida familiar sofreu transformações
significativas, principalmente nas relações entre os sexos. Mas se na década
anterior houve uma tendência mundial à modernização e à ampliação dos direitos
femininos impulsionadas pela participação da mulher no “esforço de guerra” e
pela crescente industrialização , com o fim do conflito houve intensa campanha
para a volta das mulheres ao lar e a manutenção dos valores tradicionais da
sociedade. No Brasil, onde as ações de emancipação feminina ainda eram muito
embrionárias, as distinções entre papéis femininos e masculinos permaneciam
predominantemente amparadas pelas noções patriarcais: cabia aos homens a
autoridade e o poder na família (esposa e filhos) assim como o seu sustento; às
mulheres, a função de administradora do lar, mãe e esposa, sublinhada pelas
características próprias da feminilidade: pureza, resignação, instinto materno. A
moral patriarcal também continuava dando sentido à relação entre os sexos: a
mulher deveria exercer sua sexualidade apenas no interior do casamento
convencional e o homem tinha total liberdade para exercer suas experiências
sexuais. Vigorava um ideal de família conjugal que considerava a esposa um
complemento do marido e a afinidade sexual entre os cônjuges parecia ser menos
importante do que as habilidades domésticas da esposa e a capacidade de prover a
família por parte do marido.
Nos chamados “Anos Dourados”, ser mãe, esposa e dona de casa era o
destino natural das mulheres. As meninas, desde criança, eram educadas para
serem boas mães e esposas exemplares, ao passo que os meninos deveriam ser
preparados para o mercado de trabalho e para situações que requisitassem a força,
o espírito de aventura e a virilidade. As “moças de família” deveriam ter como
principal objetivo o casamento:
As moças de família eram as que se portavam corretamente, de modo a não ficarem
mal faladas. Tinham gestos contidos, respeitavam os pais, preparavam-se
adequadamente para o casamento, conservavam sua inocência sexual e não se
deixavam levar por intimidades físicas com os rapazes. Eram aconselhadas a
comportarem-se de acordo com os princípios morais aceitos pela sociedade,
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mantendo-se virgens até o matrimônio, enquanto aos rapazes era permitido ter
experiências sexuais.
209
A educação dessas moças era objeto de atenção privilegiada e eram
essenciais os cuidados com as vestimentas (não usar roupas ousadas e sensuais),
com discrição no uso de maquiagem e com o comportamento público: não sair
com muitos rapazes diferentes ou ser vista em lugares escuros que sugerissem
intimidades com o namorado. Para preservar a moral dessas moças, elas eram
vigiadas pela família, vizinhos, amigos, educadores etc.. As levianas, ou as
“garotas fáceis”, eram aquelas com quem “os rapazes namoravam, mas não
casavam”. Deveriam, inclusive, ser evitadas pelas “boas moças” para preservarem
a imagem. A moral sexual dos anos 1950 ainda era assentada na ideia de
contenção sexual e na virgindade, garantia da pureza e da honra feminina. A
grande virtude de uma moça era manter-se virgem até o casamento. para os
homens, pairava um acordo silencioso de que poderiam ter relações com várias
mulheres diferentes prostitutas ou “garotas fáceis”.
Uma onda de romantismo invade os lares. A ideia de que o amor e a
sensibilidade são sentimentos inerentes à condição feminina era recorrente nas
conversas, nas relações entre gêneros, no interior das famílias, na literatura e nos
veículos de massa. Sempre um amor controlado, desprovido da paixão que
subverte a ordem e a moral. Mesmo o casamento deveria ser algo controlado pelo
amor entre os cônjuges. Nada de paixão avassaladora ou amor impossível. O
grande pânico das moças continuava sendo ficar solteira, ou como se
convencionou chamar, “ficar pra titia” ou “ficar encalhada”. A “solteirona”
representava não a solidão na vida, mas também um peso financeiro para a
família. Assim, aos 20 anos as jovens deveriam estar com um “casamento à
vista”; aos 25 poderiam ser consideradas em vias de se tornar solteironas. A
sexualidade continuava sendo tabu para as “moças de família” e qualquer
informação sobre o tema era objeto de censura, silêncio ou preconceito. A falta de
diálogo sobre sexo era tanta que não era raro a jovem desconhecer as partes mais
íntimas de seu corpo ou chegar ao casamento sem informação sobre o ato
209
BASSANEZI, C., Mulheres dos Anos Dourados, p. 610.
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146
sexual.
210
O medo de uma gravidez indesejada também ajudava a frear o desejo
feminino de ter experiências sexuais fora do casamento. na década seguinte,
com o surgimento da pílula anticoncepcional e sua popularização, sexo e gravidez
passam a ser dissociados.
A mudança de padrões culturais, embora lenta, começa a se fazer mais
presente nas classes médias urbanas. A popularização dos automóveis, o aumento
das diversões diurnas idas a praias e piscinas e noturnas bailes, cinema,
festas em casas de amigos embaladas pelo rock‟n‟ roll, bailes de carnaval , a
maior proximidade entre pais e filhos, tudo ajudava a diminuir a vigilância dos
pais sobre os filhos e a aumentar as chances de proximidade entre rapazes e
moças. O beijo, um ícone de maior relacionamento entre os sexos incentivado
pelos filmes de Hollywood, se torna uma verdadeira febre. Ir ao cinema era
sinônimo de beijar o namorado. Não faltavam críticas moralistas à maior
liberdade dada à juventude, e artigos de revistas e de jornais “voltados para a
família” acusavam os filmes “moderninhos”, as danças que aproximavam
excessivamente os corpos como o rock‟n‟ roll, a falta de vigilância permanente de
pais de estarem fazendo com que a “brotolândia se perdesse”. Paralelamente,
algumas moças optaram pela transgressão, mesmo não sendo pública. Fumar, usar
roupas sensuais, investir no futuro profissional, consumir literatura considerada
“proibida para boas moças”, discordar dos pais e até abrir mão da virgindade e do
casamento foram algumas atitudes adotadas por jovens da década de 1950.
Algumas conseguiram escapar do estigma de levianas e acabaram casando e sendo
felizes; outras, foram acusadas de desviantes, discriminadas e afastadas da
convivência do grupo de amigos (e até mesmo da família). Certamente essas
mulheres rebeldes tiveram papel importante no alargamento dos limites do
feminino e de suas representações simbólicas.
211
210
Bassanezi observa que “os manuais instrutivos mais popularizados e os artigos de revistas
femininas que tratavam do tema não falavam em prazer, mesmo para as mulheres casadas, e sim
em realidade a ser enfrentada, missão a ser cumprida a maternidade, necessidades do
casamento, obrigações conjugais. As palavras “sexo”, “relações sexuais”, “virgindade” e
“educação sexual” praticamente não apareciam nas revistas para mulheres. Querida, a revista
feminina mais ousada da época, chegou a falar em “relações físicas”, enquanto as outras se
exprimiam por subterfúgios, tais como familiaridades, intimidades, liberdades, aventuras. Ibid.,
p. 620.
211
Ibid., p. 622.
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147
Além do cinema e das revistas femininas, os romances populares e as
fotonovelas foram outros grandes catalisadores dos modelos femininos que se
põem em conflito na década de 1950. Consumidas essencialmente por mulheres,
os romances populares (muitos eram de bolso, vendidos em bancas de jornais)
eram literatura obrigatória para todas as moças. Algumas histórias, mais picantes,
eram disputadas pelas jovens “mais moderninhas”; a maioria delas, seguindo o
estilo romântico do século XIX, era leitura obrigatória das “moças de família”. Os
romances de M. Delly (“Madame Delly”, pseudônimo dos irmãos Frédéric Henri
Joseph e Jeanne Marie Henriette Petitjean de La Rosière), que faziam parte da
Coleção Verde ou da Coleção das Moças, obtiveram grande sucesso entre as
classes médias brasileiras.
212
Uma boa parte desses romances remete à história de
Cinderela, mulheres encantadoras que estavam escondidas e um dia são
descobertas, revelando toda a sua beleza interior e exterior. Heróis e heroínas
seguem os estereótipos masculino e feminino predominantes: o herói é um
homem forte, orgulhoso, bonito e dominador; a heroína é bela, doce, frágil, séria,
de formação católica. Os anti-heróis e as anti-heroínas são os opostos: ele, com
caráter duvidoso, vulgar e frio; ela, frívola, vaidosa, artificial, dissimulada. As
relações entre os personagens seguem os papéis sociais que veem a mulher como
“sexo frágil”, subordinada ao homem, dependente dele e voltada para a esfera
privada; e o homem como dominador, protetor, provedor e orientado para a esfera
pública. A pureza e o recato (entendidos como manutenção da virgindade até o
casamento) o os princípios que regem a moralidade que prevalece nesses
romances. A heroína conquista o herói se mantém esses princípios. uma
total camuflagem do sexo nesses romances cujas histórias entre os protagonistas
se resumem ao amor e ao casamento.
as fotonovelas, que tendiam a reforçar os papéis femininos mais
tradicionais, passaram gradativamente a sugerir cenas de sexo, especialmente
através de fotos mais insinuantes, e tornaram-se uma febre entre as moças
“moderninhas” (e mesmo as “boas moças” que acabaram conseguindo ler
escondido da família). Cenas de beijos inflamados, casais no quarto deitados na
cama, casais começando a se despir ficaram mais frequentes nessas histórias. O
212
Cf. PRADO, R. M., Um Ideal de Mulher: Estudos dos Romances de M. Delly, p. 75.
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sexo estava lentamente começando a fazer parte das histórias românticas.
Mulheres inicialmente mostradas como moças voltadas para o casamento e a
maternidade são apresentadas com uma profissão (ainda essencialmente femininas
como professoras, enfermeiras, aeromoças, assistentes sociais, vendedoras). Os
diálogos também se tornam mais arrefecidos com a heroína começando a discutir
com o mocinho, muitas vezes discordando de seus pontos de vista. As fotonovelas
estavam, claramente, se adaptando a uma mulher que surgia.
Essa nova mulher realmente se faz presente nos centros urbanos por meio
da entrada no mercado de trabalho, especialmente no setor de serviços. Com a
crescente escolarização do público feminino, a década de 1950 assiste à presença
cada vez maior de mulheres em repartições públicas, nas instituições de ensino,
nos hospitais, no comércio e nas indústrias. Entretanto, os preconceitos não
deixaram de existir de uma hora para outra. Como ainda eram vistas
prioritariamente como donas de casa e mães, as mulheres que trabalhavam eram
tachadas como não ideais para o casamento e a maternidade. A noção de que ao
desempenhar atividades públicas ela deixaria de exercer com competência suas
atividades domésticas e as “atenções com o marido e com os filhos” ainda
prevalecia nas camadas médias. Não faltavam também discursos que alegavam
incompatibilidade entre o trabalho e a feminilidade que deixariam de ter tempo
de cuidar da aparência.
213
Outro discurso que se levantou contra a inserção da
213
Gilda Mello e Souza, analisando a moda no século XIX, se pergunta sobre o porquê de os
homens terem abandonado gradativamente os elementos decorativos e os adornos de seu vestuário,
substituindo-os por uniformes rígidos, de linhas retas, cores sóbrias. Ela observa que o homem
se desinteressou pela vestimenta quando ela deixou de ter importância na excessiva competição
social, o que teria acontecido após a Revolução Francesa, que consagrou a passagem de uma
sociedade estamental para uma sociedade de classes e estabeleceu a igualdade política entre os
homens. A partir daí, as distinções deixaram de se expressar pelos sinais exteriores da roupa e
mais através das qualidades pessoais de cada um, o talento. O que é importante não é desaparecer
nas roupas, mas se destacar dela, reduzindo-a a um cenário discreto. O dandy seria uma
sobrevivência de tempos passados que a beleza passava a ser uma prerrogativa feminina, com
suas sedas, rendas e brocados. Quando, a partir da segunda metade do século XIX, a mulher
começa a se interessar por profissões, surgiu um impasse: a carreira, até então exclusiva ao
homem, era compreendida como sinônimo de austeridade e discrição no traje. Isso obrigava as
mulheres que começavam a trabalhar a renunciar ao adorno e aos enfeites (como o fizeram as
sufragettes). E a autora acrescenta: “Mas não se desiste impunemente de velhos hábitos que anos
de vida bloqueada desenvolveram como uma segunda natureza. E lançando-se no áspero mundo
dos homens, a mulher viu-se dilacerada entre dois polos, vivendo simultaneamente em dois
mundos, com duas ordens diversas de valores. Para viver dentro da profissão, adaptou-se à
mentalidade masculina da eficiência e do despojamento, copiando os hábitos do grupo dominante,
a sua maneira de vestir, desgostando-se com tudo aquilo que, por ser característico de seu sexo,
surgia como mbolo de inferioridade: o brilho dos vestidos, a graça dos movimentos, o ondulado
do corpo. E se na profissão era sempre olhada um pouco como um amador, dentro do seu grupo,
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mulher no mercado, foi o de que ao passar a fazer parte do mundo competitivo
masculino a mulher perdia os “privilégios do sexo feminino” de ser protegida e
sustentada. Essa visão não predominou apenas entre homens, mas também em boa
parcela do público feminino.
Entre os anos 1960 e 1970 eclode a chamada “revolução sexual”. O
surgimento da pílula anticoncepcional no primeiro ano da década altera
radicalmente um dos pressupostos da identidade feminina, a maternidade. A partir
daquele momento, as mulheres passavam a contar com um novo dispositivo,
moderno e eficaz, para decidir ser ou não ser e e ter relações sexuais sem risco
de gravidez. Anos do rock‟n‟roll, do movimento hippie, dos cabelos compridos,
da popularização das calças jeans e das roupas despojadas, da minissaia com
pernas femininas aparentes, do consumo de drogas, das manifestações estudantis.
O lema “sexo, drogas e rock‟n‟rollfoi adotado por boa parte da juventude das
camadas médias urbanas. A linguagem também mudava: o uso frequente de gírias
implicava em laços de identidade entre os grupos jovens e passou-se a evitar a
adoção de eufemismos para falar do corpo e do sexo. “Dar beijo de língua”, “ir
pra cama com o namorado”, “ter orgasmo” se tornaram expressões usadas entre
jovens.
A relação de autoridade entre pais e filhos é questionada, assim como a
ideia de submissão da mulher ao homem. Hordas de mulheres ingressam no
mercado de trabalho, escolhendo profissões até então restritas aos homens:
jornalismo, advocacia, medicina, engenharia, economia e muitas outras. O
desquite se tornou mais comum e a “abandonada” dos anos 1940 e 1950 assumia
seu estado civil de desquitada. As mulheres começavam de fato a transgredir
normas sociais e familiares. O discurso psicanalítico se populariza nos setores
médios urbanos. A ênfase no indivíduo enquanto sujeito moral, com seus valores
e percepções singulares, passa a ser valorizada por um discurso que visa ampliar
as possibilidades de escolha, de autonomia e de independência em busca da
realização de projetos individuais.
onde os valores ainda se relacionavam com a arte de seduzir, representava um verdadeiro fracasso.
Não é de se espantar que esse dilaceramento tenha levado a mulher ao estado de insegurança e
dúvida que perdura até hoje. Pois perdeu o seu elemento mais poderoso de afirmação e ainda não
adquiriu aquela confiança em si que séculos de trabalho implantaram no homem.” SOUZA, G. de
M. e, O Espírito das Roupas: A Moda no Século XIX, p. 106-107.
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O movimento feminista atinge os Estados Unidos, a Europa e mesmo países
então considerados periféricos como o Brasil.
214
Com slogans do tipo “o pessoal é
político” e “nosso corpo nos pertence”, o movimento de liberação das mulheres,
como ficou conhecido, questiona os papéis tradicionais de mãe e esposa como
destinos inexoráveis para a mulher.
Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, espécie de Bíblia das feministas
nas décadas de 1960/1970, concede à determinação biológica um papel essencial
na maneira como se a “opressão feminina”, na medida em que é no fato de a
mulher reproduzir que reside a raiz da sua submissão. Porém, essa explicação
biológica faz sentido se inserida no quadro de referência do existencialismo,
isto é, uma consciência humana e um sujeito universal inerentes às categorias
do Eu e do Outro, assim como uma série de tendências à transcedência, à
alienação, à dominação do Outro. A subordinação feminina seria uma das
consequências dessa última pretensão ontológica.
215
Adiante Beauvoir ressalta:
“não se nasce mulher, torna-se mulher”, contestando uma série de atributos
considerados “naturalmente femininos”,
216
como passividade, dependência,
aptidão doméstica, centro da emoção, lugar do artifício; e é essa percepção de que
ser mulher é uma construção social que permite questionar o caráter absoluto da
opressão. Ou seja, a submissão feminina existente durante tantos séculos é uma
construção social e, portanto, passível de transformação. Seguindo esse raciocínio,
não existiria uma essência feminina; sendo a mulher uma construção social que se
214
Segundo as pensadoras feministas Maggie Humm e Rebecca Walker, a história do feminismo
se divide em três “ondas”. A primeira teria ocorrido no século XIX e princípio do século XX,
iniciada no Reino Unido e nos Estados Unidos, com o foco na promoção da igualdade de direitos
contratuais e de propriedade, na oposição aos casamentos arranjados e na luta pelo voto feminino
simbolizada pelas suffragettes. A segunda, da primeira metade da década de 1960 até o fim da
década de 1980, teria sido pautada pelo questionamento da desigualdade social, cultural e política
da mulher e a reivindicação de uma identidade individual livre das subordinações familiares. A
terceira “onda”, iniciada em 1990 e que se estenderia até os dias atuais, questionaria, segundo as
autoras, as definições da feminilidade elaboradas pelas feministas da segunda “onda”, que
colocaram ênfase excessiva nas experiências das mulheres brancas de classe média alta. As
feministas da terceira “onda” destacam a “micropolítica” e desafiam as ideias do que é bom ou não
para as mulheres. Com grande adesão de mulheres negras, elas destacam as subjetividades
relacionadas à raça. NEW WORLD ENCYCLOPEDIA, Feminism, passim.
215
Cf. FRANCHETTO, B.; CAVALCANTI, M. L. V. C.; HEILBORN, M. L., Antropologia e
Feminismo, p. 22.
216
Cf. BEAUVOIR, S., O Segundo Sexo, p. 13.
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dentro de cada cultura, “não uma determinação natural ou ontológica dos
papéis, não existe igualmente uma Mulher, enquanto gênero universal, mas uma
pluralidade de mulheres.”
217
O feminismo seria, portanto, um desdobramento do
individualismo, uma construção do individualismo moderno, uma expressão da
destotalização da sexualidade em relação à família. Ao reivindicarem para as
mulheres uma autonomia da sexualidade feminina semelhante à autonomia
masculina, as feministas estariam propondo uma lógica de igualdade que faz parte
de um sistema de representações típico do individualismo, onde a prevalência
do indivíduo sobre a sociedade, o que não acontece em sociedades hierárquicas,
por exemplo.
218
Essa destotalização produzida pelo movimento feminista da década de
1960 até meados dos anos 80 implicou o surgimento de uma nova concepção de
ser mulher nas camadas médias urbanas, em especial as intelectualizadas e
psicologizadas. Exercer a sexualidade com liberdade; controlar a maternidade por
meio de métodos anticoncepcionais ou defendendo a liberação do aborto;
desenvolver uma carreira profissional; divorciar-se ou viver relações conjugais em
casas separadas; ser mãe solteira, viver uma relação homossexual são alguns
projetos femininos que passaram a se tornar viáveis. E se o movimento feminista
trouxe uma nova concepção de mulher, permitiu também que a identidade
masculina fosse problematizada.
Bourdieu, analisando as estruturas simbólicas que regem a relação entre
gêneros na sociedade cabila, depositária da visão de mundo mediterrânea (com
muitos pontos de contato com a visão predominante na sociedade brasileira),
observa que o reconhecimento da honra masculina, no sentido de um conjunto de
aptidões consideradas nobres, está amparado no dever de afirmar a todo momento
sua virilidade. Entendida como capacidade reprodutiva, sexual e social, mas
também como aptidão ao combate e ao exercício da violência, a virilidade
217
FRANCHETTO, B., CAVALCANTI, M. L.V. C., HEILBORN, M. L., Antropologia e
Feminismo, 33.
218
Para um aprofundamento dessa questão, ver DUMONT, L., Homo Hierarchicus: Les Système
dês Castes et ses Aplications; DUMONT, L., Homo Aequalis: Génèse et Épanouissement de l‟
Idéologie Économique. Franchetto, Cavalcanti e Heilborn lembram que outra forma dessa
autonomia estaria presente nos movimentos homossexuais. A liberação feminina e a liberação
homossexual expressam transformações nas relações entre indivíduo e família, o rompimento da
subordinação da sexualidade do indivíduo à família. Ibid., 37-43.
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representa para o homem uma carga e uma situação de permanente
vulnerabilidade. Diferente da mulher, cuja honra é mantida ou perdida em função
da defesa da virgindade e da fidelidade, o homem “verdadeiramente homem” deve
estar permanentemente à altura da possibilidade de aumentar sua honra buscando
a glória e a distinção na esfera pública (daí o investimento em esportes violentos).
Assim sendo, é fundamental que seu desempenho honrado seja reconhecido e
validado por outros homens. Como a masculinidade está associada a uma espécie
de nobreza, eles não podem se rebaixar e exercer tarefas designadas como
inferiores. Para executar tarefas reputadas como femininas, eles precisam realizá-
la fora do âmbito privado, para que seja enobrecida e transfigurada.
219
Com os movimentos feministas de liberação sexual, social e cultural, a
percepção do “ser homem” também começa a ser afetada. Atividades antes
consideradas proibitivas ao “homem que é homem” como cuidar da casa, dos
filhos, demonstrar afeto ou emoção, enfeitar-se e cuidar da beleza, seguir carreiras
consideradas femininas (como ser bailarino) tornam-se aceitáveis e mesmo
estimuladas. As relações entre homem e mulher também são alteradas e surgem os
casais que fogem dos modelos mais ortodoxos de relacionamento (mulheres mais
velhas com homens mais jovens, e não apenas o contrário; casais inter-raciais;
casais homossexuais; casais vivendo em casas separadas ou mantendo relação
aberta, ou seja, cada membro tem, assumidamente, outro parceiro). Obviamente
que essas novas formas de identidade feminina e masculina não se impuseram
totalmente. Em vários segmentos sociais os códigos de valores e os
comportamentos mais tradicionais quanto aos gêneros se mantiveram. Mesmo no
interior dos grupos mais permeáveis à mudança e à assimilação de novos padrões,
eventualmente surgem comportamentos e visões conservadoras que se instalam
como se dali não fossem mais sair.
Os tradicionais signos de diferenciação entre o homem e a mulher
efetivamente se embaralham e os anos 1990 inauguram uma nova maneira de
perceber o feminino. A tradicional subordinação do feminino ao masculino é
219
BOURDIEU observa que tarefas tradicionalmente femininas, como cozinhar ou costurar,
desempenhadas por elas na esfera privada, quando realizadas por homens são levadas para a esfera
pública e recebem um reconhecimento público como atividade nobre. BOURDIEU, P., A
Dominação Masculina, p. 20; 75.
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efetivamente questionada pela autonomia com que elas constroem seus papéis
sociais e individuais: desconstrução do ideal da “mulher do lar” e divisão dos
trabalhos domésticos, maior incentivo e legitimidade dos estudos e dos trabalhos
femininos, entrada efetiva da mulher na vida pública (não com direito ao voto,
ou sendo aceita em profissões antes restritas ao homem, mas também ocupando
cargos de mais prestígio), direito ao divórcio, compartilhamento com os homens
na educação dos filhos, liberdade sexual, controle da maternidade. A ascensão
feminina a esferas que estavam interditadas e a maior divisão de
responsabilidades entre o homem e a mulher, não significaram o abandono
completo de papéis tradicionais como cuidar da casa e dos filhos, ou ocupar
posições no trabalho ainda subalternas se comparadas às ocupadas pelos homens.
Contudo, assiste-se a uma verdadeira mudança nas regras e condutas que regiam
as famílias e as relações entre gêneros.
No Brasil, ocorre um movimento semelhante ao que acontece nas
democracias ocidentais, mas com algumas particularidades. Se as mudanças nas
dimensões socioculturais e políticas são visíveis a partir da segunda metade dos
anos 1980 e início da década de 90, no campo da subjetividade são bem mais
complexas e obedecem a ritmos nem sempre contínuos. A título de análise, serão
trabalhados dois tipos ideais
220
de família. Até a década de 1950, predominava
um tipo de família “hierárquica”
221
, unidade relativamente organizada,
“mapeada”, em que as diferenças de gênero e idade são percebidas como
intrinsecamente diferentes: existem comportamentos próprios para a mulher e
outros para o homem; a mulher deve se dedicar ao lar (marido e filhos) e o
homem ao trabalho fora de casa para prover a família; espera-se da mulher um
comportamento monogâmico e desprovido de prazer, enquanto o homem é
estimulado a satisfazer sua potência viril em relações extra-conjugais; os pais têm
ascendência total sobre os filhos, demonstrada através da disciplina e da definição
do futuro deles. Na família hierárquica a identidade de seus membros é posicional,
ou seja, é definida de acordo com sexo e idade, uma série de mecanismos
avaliando o “permitido” e o “proibido”; e mecanismos para controlar ou reprimir
220
Cf. nota 1.
221
Cf. FIGUEIRA, S., O Moderno e o Arcaico na Nova Família Brasileira: Notas sobre a
Dimensão Invisível da Mudança Social, p. 11-29.
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comportamentos considerados “desviantes”. Como se tratam de modelos
construídos, as famílias concretas, como foi visto anteriormente (a dramaturgia
de Nélson Rodrigues traz exemplos riquíssimos), nem sempre seguem essas
regras, embora persigam este ideal.
O processo de nuclearização e individualização da família trouxe o ideal
igualitário como regulador das relações entre gêneros e idade. Na família
igualitária, a identidade é idiossincrática; em outras palavras, homens e mulheres
são iguais como indivíduos, mas diferentes pessoal e idiossincraticamente. As
diferenças pessoais são mais percebidas (e consideradas mais relevantes) que as
sexuais, etárias e posicionais. As diferenças de gosto e desejo pessoal tendem a se
sobrepor àquelas visíveis entre homem/mulher e entre pais/filhos. As fronteiras
entre “permitido” e “proibido” se diluem, assim como os comportamentos antes
considerados desviantes perdem substância e respaldo social, instaurando-se,
aparentemente, “o reino da pluralidade de escolhas, que são limitadas pelo
respeito à individualidade do outro”.
222
Mas, como já foi observado anteriormente, trata-se de tipos ideais. A
família modernizada, onde predomina os princípios igualitários, quando
confrontada com a realidade, revela-se ambígua, hesitante e, às vezes, resistente.
Nesse sentido, é possível identificar no processo de aquisição de novas
identidades respaldadas pelo ideal igualitário, impondo-se às identidades
posicionais, a manutenção de princípios hierárquicos. Não é raro encontrar
pessoas consideradas modernas e liberadas assumindo repentinamente
comportamentos e posições relacionados à visão anterior. Se a ideologia
igualitarista provoca uma erosão nas fronteiras das categorias sociais, essas
transformações são mais visíveis em indicadores como a roupa, o corpo, a
linguagem, em que a escolha individual se torna mais determinante que os
critérios de idade e sexo (por exemplo: a filha e a mãe muitas vezes usam roupas
semelhantes; homem e mulher falam gírias e palavrões). Quando falamos em
questões mais subjetivas como emoções, preconceitos, desejos, isto é, sistemas
simbólicos internalizados ao longo da biografia de um indivíduo, os indícios de
predomínio de uma visão igualitarista, modernizante, não são tão evidentes.
222
Ibid., p. 17.
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Como Figueira enfatiza,
em termos estruturais, a velocidade com que nos modernizamos leva à
coexistência, em planos dissociados dos antigos e dos novos ideais e
identidades.(...) O arcaico apenas aparentemente desaparece dando lugar ao
moderno: o arcaico continua presente, de modo invisível, mais ou menos
inconsciente, mas certamente eficaz na sua oposição estrutural ao „moderno‟, que é
o mais recente e é o núcleo daquilo que desejaríamos ser.
223
Essa coexistência de percepções, ideais, valores, identidades, mapas
contraditórios e diferentes inscritos no sujeito é denominada pelo autor de
“desmapeamento”. A existência desse “eu multifacetado”, que possui múltiplas
identidades, é uma característica das sociedades contemporâneas. A psicanálise
teria a função de atender à demanda por “mapas” que orientem o sujeito diante de
uma sociedade que a todo instante põe em cheque essas identidades múltiplas. O
outro caminho seria a “modernização reativa”, aquela que acontece apenas nos
conteúdos de regras, o conteúdo “moderno” apenas como reação ao conteúdo
“arcaico”, bloqueando-o, mas não o eliminando. Esse se mantém ativo no
inconsciente, manifestando-se e sempre exigindo maior reatividade.
224
223
Ibid. p. 22.
224
Figueira identifica dois tipos de regras que regem os comportamentos humanos: a de “primeiro
grau”, que define “o conteúdo do comportamento do sujeito (pare, ande), e este conteúdo tende a
ser relativamente fixo. Entre a regra, o sinal e o comportamento tende a haver uma correlação, e a
regra, com suas autoridades e dispositivos disciplinares, se realiza naquilo que é mais visível, em
geral o comportamento. As regras de primeiro grau, que dão ênfase aos “códigos”, são
fundamentais para o ideal de família hierárquica. Regras deste tipo engendram um imaginário
moral dicotômico e maniqueísta, com noções claras de certo e errado associadas a definições
razoavelmente nítidas de “desvio”.” A regra de segundo grau “emana do exterior do sujeito, não
define o que ele deve fazer, mas determina que um certo procedimento ou mecanismo de que o
sujeito é capaz (pensar) entre em campo para decidir qual o melhor caminho a seguir (...) A regra
de segundo grau não define, então, um comportamento com conteúdo fixo e visível, mas incide no
sujeito, no que é mais invisível, deixando a ele o direito de opção, que pode levar a
comportamentos com conteúdos bastante variáveis. As regras de segundo grau, ao darem ênfase ao
“sujeito” e não ao “código” (Foucault, 1984), são fundamentais para o ideal da família igualitária”.
Porém, Figueira observa ainda a possibilidade de surgir um terceiro tipo de regra, intermediário,
essencial para compreender a modernização reativa: a regra de primeiro grau com conteúdo
modernizado. Se o conteúdo do enunciado mudou, se modernizou, o mecanismo se mantém
arcaico, impedindo o sujeito de optar, pois o que ele vai ser ou fazer já está externamente
determinado. O autor exemplifica os três tipos de regra usando o exemplo da virgindade feminina.
A regra de primeiro grau determinaria que “mulher tem que ser virgem até o casamento”; a de
segundo grau seria a mulher decide sobre a sua virgindade; e a terceira seria “mulher tem que ser
não virgem antes do casamento”. Para Figueira, tanto o modelo “arcaico” (virgem) quanto o
“moderno” (não virgem) representam duas faces da mesma moeda. Em “não virgem”, o conteúdo
se modernizou, mas o mecanismo se mantém dicotômico e maniqueísta. “Ser virgem” é tratado
como comportamento desviante. Para ele, a “verdadeira modernização” estaria na instauração do
domínio da regra de segundo grau. FIGUEIRA, S. A., O Moderno e o Arcaico na Nova Família
Brasileira: Notas sobre a Dimensão Invisível da Mudança Social, p. 24-27.
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Ao trazer essa questão para a construção da identidade feminina, ou melhor,
identidades femininas
225
, pode-se afirmar que o final do século XX e o início do
século XXI assistem a uma espécie de afirmação do “eu multifacetado”. Nas
décadas de 1960, 1970 e 1980 o que se vê, por meio do movimento feminista, é a
busca pelo rompimento da imagem tradicional da mulher como mãe e esposa,
zeladora do lar e da honra da família e, no seu lugar, entra a mulher libertária, que
se opõe à dominação masculina. A partir da década de 1990, surge uma mulher
mais voltada para as suas aflições, emoções e desejos. A pergunta que se coloca
para muitas mulheres das classes médias urbanas é menos como ocupar os
domínios masculinos e mais como lidar com a sua subjetividade e conquistar seu
espaço na sociedade. E “ser mulher” significa assumir integralmente sua
feminilidade. Cuidar da beleza, incentivar a sensibilidade, viver plenamente a
maternidade, estabelecer relações (heterossexuais ou homossexuais) baseadas na
cumplicidade e no jogo amoroso, exercer a sensualidade e a sedução como
atributo positivo, sem a intenção de aprisionar o outro, são alguns
comportamentos que revelam o desejo de construir uma identidade menos
ancorada na visão dicotômica homem x mulher e mais apoiada na integração das
múltiplas facetas da mulher contemporânea.
Essa “nova mulher” desponta em uma análise muito original feita pelo
psicanalista e filósofo Joel Birman da personagem Carmem, da ópera de Bizet,
baseada na releitura feita por cineastas da década de 1980 como Carlos Saura,
Jean-Luc Godard e Francesco Rossi. Ele observa que Carmem, ainda que
atravessada pelo atributo da sedução (e, portanto, se apresentando como mulher
excessiva em toda a sua volúpia), recupera a positividade dos atributos femininos.
A figura da mulher fatal que povoou o imaginário social sobre a feminilidade
durante tantos séculos representa aquela mulher que, desprovida de qualquer
poder social, apela para “os atributos graciosos do seu corpo e a promessa das
delícias que insinuava para capturar o homem embevecido pelo seu charme”.
226
A
intenção da mulher fatal, por meio de seus gestos de sedução, era transformar o
225
É bom lembrar novamente que se fala de identidade(s) feminina(s) tendo como foco as
mulheres das camadas médias urbanas das sociedades ocidentais. Estou ciente de que em outros
grupos sociais nas sociedades contemporâneas, ou em sociedades não ocidentais, como aquelas
onde predominam a religião islâmica, esse tema teria que ser tratado de forma bem diferente.
226
BIRMAN, J., Cartografias do Feminino, p. 80.
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homem em uma “presa capturada”, uma espécie de vingança diante de sua
subordinação social. Na “arte da conquista”, a femme fatale buscava, não a relação
amorosa e sexual, mas uma confirmação de seu poder de envolver completamente
o “macho superior”.
Essa figura feminina, na realidade, está se valendo das tradicionais armas
masculinas do poder e da arrogância (e, seguindo o raciocínio freudiano, do ideal
fálico) para se fazer valer. O que Birman chama a atenção é que a Carmem
apresentada nas telas recupera positivamente certos traços do feminino que
conferem à sedução e à sensualidade outra perspectiva: o homem deixa de ser seu
rival, inimigo, a quem a mulher deseja aniquilar para se vingar do seu poder e
arrogância. Para Carmem, “a figura do homem passa a ser, sobretudo, a de um
companheiro de brincadeiras e não apenas de responsabilidades matrimoniais,
alguém com quem trocar a gratuidade do afeto e do desejo sem qualquer
drama”.
227
Carmem resgata o lugar da sedução feminina retirando dela a
negatividade moral que marcou a história da mulher desde os primórdios do
Cristianismo. Sua sedução revela o desejo feminino, a ascensão da mulher pela
sua feminilidade.
228
Serão analisados agora como esses modelos femininos, enquanto “tipos
ideais”, se revelam e adquirem hegemonia na ficção seriada da televisão
brasileira.
227
Ibid., p. 83-84.
228
Segundo Birman, “a sedução não se identifica mais com a condição masculina, com o ser do
macho pavoneado de penas, isto é, com a falsa virilidade, com a falácia da falicidade. Com isso, a
assunção positiva da sedução não implica doravante para a mulher o ideal fálico, na sua dureza e
na sua pseudobeleza, na medida mesmo em que a sedução não é mais um atributo para ser exibido
na cena da conquista fácil, mas para ser exercida como uma marca insofismável da feminilidade.
(...) É preciso admitir que a assunção plena e tranquila desse poder de sedução implica também
que a concepção da sedução foi decantada de seu resíduo malévolo, maléfico e mortífero. A
sedução perde a sua acidez corrosiva, de tal forma que, como um jogo encantado, passa a ser
marcada pelos traços da doçura e graça.”. Ibid., p. 91.
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6. As Identidades Femininas na Televisão
O feminino e a televisão brasileira são indissociáveis. Ao surgir, em 1950, a
televisão era um entretenimento essencialmente feminino: um móvel do espaço
doméstico, historicamente gerido pela mulher. Ela cumpre a função de conectar a
vida privada tradicional domínio da mulher que, naquela década, ainda estava
dando os primeiros passos no mercado de trabalho à vida pública, tradicional
domínio masculino. A televisão comercial, que vigora na maior parte dos países
capitalistas, é mantida (na época e durante um bom tempo) por uma indústria de
bens de consumo predominantemente femininos eletrodomésticos, produtos de
casa (de limpeza e higiene, principalmente), alimentação, beleza. As pesquisas de
audiência que aferem e definem os telespectadores por região, faixa etária, nível
sociocultural e gênero, e que são decisivas para a destinação de verbas
publicitárias, mostram que o público da televisão é composto em sua maioria por
mulheres. E elas assistem, principalmente, aos gêneros ligados à ficção seriada
novelas, seriados e minisséries.
No período compreendido entre 1965 e 1969, um predomínio, na TV
Globo, de folhetins ainda bem melodramáticos que apresentam visões da mulher
como “Esposa de Cristo” e “Portão do Diabo”. Em geral, são retratadas no espaço
privado (a casa, ou o castelo, no caso dos folhetins de „capa e espada‟),
encarregadas de afazeres domésticos (cozinhar, costurar, passar roupas ou dar
ordens às empregadas para desempenhar essas funções) e dos cuidados dos filhos,
em contraposição aos homens, que ocupam o espaço público do trabalho (ou da
guerra), para sustentar e defender a família. As cenas da casa ficam restritas à
cozinha, à sala de estar e à sala de jantar, locais de convivência da família, não
havendo lugar para nada que possa indicar a intimidade feminina. A representação
da relação homem/mulher é baseada no amor romântico: a timidez na relação
amorosa é muito clara e a dimensão erótica se esgota no beijo, que aparece como
principal signo iconográfico do amor. No início, com o predomínio dos
melodramas cubanos e mexicanos, as duplas românticas denotam uma moralidade
marcada pelo recato e pelo pudor. Os relacionamentos afetivos se dão por gestos
contidos olhares, sorrisos, mãos que se tocam e muitas grimas. A partir de
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159
1969, quando as temáticas se aproximam da realidade brasileira, os casais
românticos passam a ter atitudes e gestos mais ousados e o beijo caloroso é
considerado o ápice da cena.
A meta do casamento estável é uma constante nas narrativas e a mulher que
rompe com esse padrão é considerada vilã. É bom lembrar que a lei do divórcio
ainda não havia sido aprovada no Brasil, e era muito comum mulheres separadas
ou desquitadas sofrerem preconceito social. Verão Vermelho, novela de Dias
Gomes, exibida em 1969, mostrava um casal em crise, que a separação como
possibilidade. Porém, ela se concretiza quando surge outro homem na vida da
mulher. Embora tenha sofrido pressões da censura e o próprio público feminino
tenha tido dificuldades em aceitar a trama, o fato de a protagonista se separar para
entrar em um novo casamento amenizou a situação. O sexo antes do casamento
é sugerido, mas sempre vinculado à reprodução (mesmo sabendo que a pílula
anticoncepcional tinha surgido no início da década e começado a se
popularizar). Irmãos Coragem, de Janete Clair, que foi ao ar em 1970 e alcançou
grande popularidade (inclusive entre o público masculino), narra a história de uma
mulher com tripla personalidade a primeira, tímida e recatada; a segunda,
extravagante e sedutora; e a terceira, equilibrada e sensata , que se apaixona por
um garimpeiro, inimigo de seu pai, importante fazendeiro no interior de Goiás. A
novela se desenvolve em torno do amor proibido e do drama psíquico da
protagonista. O pai é obrigado a aceitar o casamento da filha com o garimpeiro
porque ela surge grávida. A filha, por sua vez, resolve seu dilema e a
personalidade equilibrada e sensata acaba predominando.
A mulher aparece na teledramaturgia associada ao ornamento, ao cosmético,
ao acessório, ao enfeite e à moda. Isso fica evidente na crescente preocupação
com figurinos femininos mais elaborados, guarda-roupas que buscam cada vez
mais refletir e lançar, ao mesmo tempo, a moda das ruas. O primeiro caso de uma
novela criando moda e estilo foi Pigmaleão 70, uma adaptação de Vicente Sesso
da peça homônima de Bernard Shaw. O corte de cabelo da personagem principal
passou a ser copiado por mulheres de diferentes camadas sociais e acabou sendo
denominado pelos salões de cabeleireiro de “corte pigmaleão”. Os cuidados com a
beleza e a etiqueta também são destacados nas tramas e na caracterização dos
personagens femininos. Na verdade, mantinham-se os padrões da mulher
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“bonequinha de luxo”, que se impuseram na Hollywood dos anos 1950 e após
1968 começam a se transformar. A ambiguidade do modelo da personagem de
Audrey Hepburn, frágil, sensível e elegante por um lado, e leviana e dissimulada
por outro, inspirava jovens que desejavam se manter “bonitinhas”, mas
transgrediam as regras tradicionais. Como Lichtenstein observa, a cosmética e o
ornamento exagerado podem ser vistos como formas de ocultar o natural,
artifícios ou disfarces utilizados para produzir a “ilusão da aparência” e seduzir o
espectador
229
. As personagens interpretadas por Regina Duarte, a “namoradinha
do Brasil”, uma espécie de Audrey Hepburn dos trópicos, representaram em
diversas novelas dessa época o modelo inspirado na “bonequinha de luxo”,
embora nunca radicalizasse na ambiguidade como a personagem do cinema.
A partir do final da década de 1970 e início dos anos 80, aceleram-se as
transformações na maneira como a televisão representa os tipos femininos, as
relações amorosas e a estrutura familiar. É um momento em que a sociedade passa
por grandes mudanças socioculturais e políticas, com maior liberdade de
expressão, sexual e política. A velocidade da entrada da mulher no mercado de
trabalho aumenta e a relação entre gêneros, com maior questionamento dos
padrões tradicionais, ocupa a tela da televisão. Mulheres divorciadas, mantendo
relacionamentos com homens mais jovens, que privilegiam a vida profissional em
detrimento da vida matrimonial e da maternidade, mães solteiras, cada vez mais
ocupam o lugar das heroínas dos folhetins. Em Sol de Verão, de Manoel Carlos,
exibida em 1982, a heroína abandona um casamento estável com um empresário
para viver um grande amor com um mecânico. Em Louco Amor, de Gilberto
Braga, que foi ao ar em 1983, uma das tramas importantes da novela envolve o
relacionamento de uma mulher mais velha com um homem mais jovem.
A discussão sobre a igualdade entre os sexos ganha cada vez mais destaque
nas novelas, minisséries e seriados. Algumas aproveitam não para discutir os
direitos iguais entre homens e mulheres, mas também a igualdade racial. Em
1984, Gilberto Braga, em Corpo a Corpo, desenvolveu uma trama sobre uma
jovem negra, arquiteta, de família de classe média, e um jovem branco, filho de
um rico empresário. O relacionamento do casal, sempre ameaçado pela família do
229
Cf. LICHTENSTEIN, J., A Cor Eloquente, p. 191-193.
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rapaz, levantou questões interessantes sobre os direitos da mulher nos campos do
trabalho, afetivo e sexual. Além disso, a necessidade de o pai vilão receber uma
transfusão quando está à beira da morte e de ter a mocinha negra como única
doadora compatível fizeram com que o público espectador discutisse a
discriminação racial no Brasil.
O tema da igualdade entre os sexos tivera um tratamento especial na
minissérie Quem Ama não Mata, exibida em 1982, inspirada nos crimes
passionais que mobilizaram a opinião pública da época (qualquer semelhança com
os folhetins inspirados nos fatos do cotidiano não é mera coincidência). A história
aborda o drama vivido por um casal de classe média em crise conjugal que chega
ao assassinato. O crime ocorre no início da história, mas o público ignora quem
matou ou quem morreu até o final da minissérie. A briga do casal evolui de forma
que o espectador tem elementos para considerar tanto a mulher quanto o homem
como vítima ou assassino. Dois finais foram gravados e, em cada um, mulher e
homem se revezaram nos papéis de assassino e vítima. Acabou sendo exibida a
opção da mulher assassinada pelo homem. Na mesma semana, no programa
jornalístico Fantástico, a outra versão foi mostrada para os telespectadores.
A subjetividade feminina é trazida para discussão e surgem ficções como a
minissérie Parabéns pra Você, que gira em torno de uma jornalista de meia idade
que trabalha em um programa de entrevistas na televisão sobre a crise enfrentada
por mulheres aos 40 anos. Dilemas profissionais e pessoais foram tratados em 13
capítulos com diferentes personagens femininas abordando seus dilemas e mesmo
entrevistas com personagens reais como a escritora Marina Colassanti, o cantor
Gilberto Gil, o cineasta Cacá Diegues e o cartunista Henfil. A intertextualidade
entre o mundo da ficção e o mundo real mais uma vez se manifesta nas ficções
televisivas.
A mulher continua relacionada ao cosmético e ao enfeite, e o vínculo com a
moda reforça mais ainda a marca de distinção do universo feminino. Os figurinos
das novelas e a caracterização dos personagens buscam a identificação com a
„mulher moderna‟, mais livre, mais independente e mais sensual. A sensação de
que a tela da televisão emoldura o cotidiano das ruas aumenta não nas roupas,
adereços, penteados e maquiagem utilizados pelos personagens, mas também nos
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gestos, linguagem, modos de andar, falar e dançar. O melhor exemplo é a novela
Dancin‟Days, de Gilberto Braga, exibida em 1978. A história, uma crônica de
costumes que discutia os valores das classes médias e das elites urbanas, lançou a
moda da discoteca a música, o jeito de dançar, as roupas, acessórios e
maquiagem característicos. As meias de lurex coloridas, usadas com sandálias de
salto alto fino pela personagem principal, tornaram-se febre nacional e mulheres
de todas as idades e camadas sociais aderiram ao estilo.
O privilégio do beijo nas cenas de novela é substituído por gestos mais
ousados que indiquem a sexualidade feminina e a relação entre sexos. Os
aposentos íntimos quarto do casal, cama, banheiro aparecem em cena. A
mulher se aproxima do universo do prazer, do sexo antes do casamento (mas
ainda vinculado à perspectiva da união conjugal), da separação para casamentos
infelizes. A vida profissional e a independência financeira passam a ser
valorizadas positivamente, mas essa nova mulher ainda é retratada de forma
inferiorizada comparada àquela que é dependente, fiel, obediente e restrita ao
universo doméstico, considerada pelo marido „a mulher perfeita‟. Os finais das
novelas, em geral, apresentam um discurso moralista em defesa da família
convencional. Há, porém, maior visibilidade pública para a discussão sobre temas
ligados ao mundo feminino, antes reservados ao âmbito privado, e a associação
entre feminilidade e comportamento incontrolável (representado pelas
personagens transgressoras) é amenizada. Um exemplo da maior tolerância no
tratamento de temas relacionados à sexualidade feminina é o seriado Armação
Ilimitada. Exibido durante três anos, de 1985 a 1988, mostra o triângulo amoroso
formado por dois amigos que moram juntos e uma jovem estagiária de jornalismo
por quem os dois se apaixonam. O triângulo jamais é resolvido porque a moça não
problema algum em se relacionar com os dois ao mesmo tempo. Em 2009, o
seriado Aline, com colorações “pós-modernas”, traria novamente a história de
uma mulher que se envolve com dois rapazes que dividem o apartamento com ela.
Do final dos anos 1980 até os dias de hoje, temas do universo feminino
ganharam destaque nos mais diversos programas de televisão, em especial na
teledramaturgia. O sexo antes do casamento e a virgindade como tabu são
assuntos abordados com naturalidade (quando não são com espanto diante do fato
de serem ainda discutidos). A gravidez e a maternidade fora do casamento, o
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surgimento de famílias formadas pela interseção de uniões passadas, romances
entre mulheres mais velhas e homens mais jovens e o homossexualismo são
tratados como “novos emblemas do feminino”. A violência contra a mulher ganha
espaço nos mais diversos formatos televisivos e surge a discussão sobre a
histórica subordinação da mulher ao homem. Em Mulheres Apaixonadas, de
Manoel Carlos, exibida em 2003, o tema é discutido abertamente ao retratar a
relação de uma professora de educação física com seu ex-marido, um professor de
tênis. Rejeitado pela ex-mulher, ele começa a persegui-la e as discussões
terminam com violentas surras em que usa a raquete de tênis como arma. A
denúncia à delegacia de mulheres e a punição do agressor foram amplamente
discutidos na trama e entre os espectadores, que se manifestaram nas pesquisas e
nos noticiários dos jornais.
230
A noção que a mulher é sensível, perceptiva, capaz de relacionar “o mundo
da razão” (da objetividade) com o “mundo da emoção” (da subjetividade),
permeia as narrativas das ficções seriadas nessa fase. Protagonistas femininas que
são mães atenciosas, esposas compreensivas, amigas solidárias e, ao mesmo
tempo independentes, trabalhadoras e práticas se multiplicam. Apesar de
continuar responsável pelo domínio doméstico cuida da casa e dos filhos , ela
ocupa também o espaço público. A mulher no mercado de trabalho ganha
conotações positivas em oposição àquela que se mantém apenas no âmbito
doméstico. Surge em cena a mulher que se sustenta e compete profissionalmente
com os homens. Porém, as atividades profissionais femininas são apresentadas,
com raras exceções, em posição inferior às ocupadas pelo sexo masculino e ainda
vinculadas ao âmbito doméstico. Além das tradicionais donas de casa, costureiras,
empregadas domésticas, professoras, freiras (e prostitutas, é claro), aparecem
heroínas que são advogadas, artistas plásticas, sociólogas, arquitetas, estilistas,
psicanalistas, jornalistas, fotógrafas, empresárias e médicas. Mas quando se
verifica as especialidades dentro de cada profissão, observam-se personagens
femininos que são empresárias em clínicas de estética (associada ao cosmético),
em cadeias de restaurantes (isto é, a cozinha industrial), pousadas, pensões e
230
Três anos depois, em 7/8/2006, foi decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo
presidente da República, a lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha que, dentre as várias
mudanças, determina o aumento no rigor das punições das agressões contra a mulher quando
ocorridas no âmbito doméstico ou familiar.
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albergues (a ideia de local familiar) e em lojas de moda (ou seja, associadas ao
ornamento), ao passo que os homens são grandes empresários de aviação, cadeias
de hotéis, empresas de comunicação e de construção. Quando são médicas, as
especialidades são ginecologia, obstetrícia e pediatria (a analogia à maternidade é
direta), enquanto os homens são cardiologistas, neurocirurgiões, médicos
infectologistas e cirurgiões plásticos. Quando são jornalistas, em geral aparecem
ligadas às seções de moda, celebridades ou colunas sociais, ao passo que os
homens, normalmente, pertencem às editorias de polícia e política. E, quando se
tem numa mesma trama homem e mulher exercendo a mesma profissão, como em
Páginas da Vida, de Manoel Carlos, onde há um casal de fotógrafos, ele é
especialista em “fotos do cotidiano marginal”, estilo Sebastião Salgado, e ela é em
fotos artísticas de noivas.
Entretanto, uma nítida percepção da mulher como sendo capaz de
unir esse mundo exterior do trabalho e das relações sociais com o mundo interior,
das relações subjetivas e familiares, numa espécie de equilíbrio harmônico. Em
Vale Tudo, novela de Gilberto Braga exibida em 1988, a protagonista, interpretada
por Regina Duarte, rompe com a filha a vilã da história, personagem da atriz
Glória Pires ao perceber seu mau caráter. Ao longo de oito meses, ela ora age
com objetividade, senso de justiça, usando a razão para tomar suas decisões, ora
como uma mulher sensível, abnegada, capaz de grandes sacrifícios movidos pela
emoção. A transição entre um comportamento e outro é tão sutil que se torna
quase imperceptível para o espectador, passando a impressão de um perfeito
equilíbrio entre razão e emoção, objetividade e subjetividade. O mesmo acontece
com a protagonista de Laços de Família, de Manoel Carlos, apresentada em 2000.
Helena, interpretada pela atriz Vera Fischer (ícone da mulher fatal e sedutora nos
anos 1970 e 1980), decide abrir mão de seu jovem namorado por quem está
sinceramente envolvida quando percebe que ele e a filha se apaixonaram. Ao
mesmo tempo, é capaz de agir no mundo do trabalho, sua empresa de estética,
com rigor e objetividade para que seus negócios prosperem.
maior exposição do corpo feminino nas cenas de novela. O erotismo é
tratado com a conotação de reforço da identidade feminina, mas a noção de que a
sexualidade da mulher é incontrolável, transgressora, se mantém com nuances
diversas. Mulheres que traem seus maridos em nome do amor, apaixonadas por
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homens mais jovens que lhes proporcionam prazer sexual, que são felizes em
relações homossexuais, que são prostitutas e se apaixonam por um cliente, enfim,
são formas de retratar a sexualidade feminina usando, simultaneamente, as
imagens de redentora e transgressora.
Minisséries como Engraçadinha...seus Amores e seus Pecados, uma
adaptação de Leopoldo Serran da obra homônima de Nelson Rodrigues, mostra
com todos os detalhes os conflitos entre a moral tradicional, patriarcal, e a moral
modernizante, mais igualitária. Adultério, triângulos amorosos, incesto,
lesbianismo são apresentados abertamente tanto visualmente quanto nos
diálogos e retratam essa dupla imagem feminina: a santa e a prostituta. Em
Presença de Anita, minissérie de Manoel Carlos adaptada do romance homônimo
de Mário Donato, o triângulo amoroso formado por uma jovem, um homem mais
velho casado e um rapaz do interior é pautada pela sexualidade descontrolada da
protagonista. A ideia da mulher associada ao pecado norteia o desenrolar da trama
em que os três são punidos com a morte.
A ligação do feminino com o ornamento, a cosmética e a moda não se
mantém como é reforçada por personagens e tramas ligados às passarelas,
butiques e centros de beleza. O tom que predomina nessas narrativas é a busca do
belo, do sensual e do luxo por intermédio de personagens que são modelos, donas
de lojas e confecções, clínicas de estética e academias de ginástica. A cultura da
celebridade, em que a fama e o reconhecimento público tornam-se símbolos de
status, se faz presente nas novelas, noticiários, programas de entretenimento em
geral. Este culto à fama tem uma relação muito forte com o glamour e a
superficialidade que tradicionalmente serviram para identificar o universo
feminino. Uma dia dedicada ao “mundo das celebridades” se desenvolve:
programas de entrevistas com famosos, revistas especializadas em divulgar
notícias sobre personalidades, colunas de jornais sobre curiosidades vividas por
pessoas que são manchetes etc.. Todos consumidos, principalmente, por mulheres.
Na novela Celebridade, de Gilberto Braga, exibida em 2003, esse mundo é a base
da narrativa. O tom naturalista das cenas, entremeado por momentos de forte ação
dramática em que o melodrama aparece com todas as suas características, retrata a
disputa pela fama, poder e dinheiro misturados a intrigas amorosas e familiares. A
trama, povoada por personagens femininos, levantou questionamentos sobre os
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limites da “cultura da celebridadeao mostrar que a exterioridade do mundo da
fama e do poder atrofia o mundo interior, subjetivo. A personagem vilã, que luta
com todas as armas para se tornar rica, poderosa e célebre, no final da história
perde o amor, a família, os amigos, a alegria, o equilíbrio e, finalmente, a vida.
A partir de 1990 assiste-se ao significativo aumento de produções voltadas
para o universo feminino, tanto na TV aberta quanto nas televisões fechadas (por
assinatura). Às ficções analisadas se juntam os seriados Delegacia de Mulheres,
Retrato de Mulher, Aline, Sexo Frágil e as minisséries Sex Appeal e Afinal, o que
querem as mulheres?; além de seriados como Mothern (Mother + Modern),
veiculado no canal fechado GNT dedicado inteiramente a temas ligados à mulher.
A trajetória de “liberalização” das representações do universo feminino na
televisão não se de maneira linear e unidirecional. Percebe-se a convivência
entre modelos mais tradicionais a imagem da virgem pura e santa, da mãe e
esposa dedicadas, da mulher incontrolável, fútil e sedutora com visões mais
atualizadas da que ocupa o espaço público, exerce a sexualidade sem o estigma da
culpa e mantém uma relação mais igualitária com o gênero masculino. A televisão
se apropria dessas “imagens do feminino” como “tipos ideais”. Porém, como o
próprio conceito indica, são aproximações dos modelos em que as nuances não
são enfatizadas: é possível identificar comportamentos tradicionais em
personagens com valores e trajetórias liberais e heroínas que seguem padrões mais
conservadores e, eventualmente, adotam atitudes transgressoras.
A análise dos seriados Malu Mulher e Mulher, e das minisséries Anos
Dourados e Hilda Furacão ajudam a compreender como as identidades femininas
são construídas, mostradas e consumidas na narrativa seriada da televisão
brasileira e, assim, perceber o diálogo estabelecido entre a ficção e a realidade
social.
6.1. Malu Mulher
Em maio de 1979, dois anos após a aprovação da lei do divórcio e poucos
meses antes da promulgação da lei de anistia, que permitiu a volta dos exilados
políticos pelo golpe militar de 1964, estreava na Rede Globo o seriado Malu
Mulher. Uma das quatro narrativas ficcionais que compuseram a faixa de
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programação da emissora chamada Séries Brasileiras (as outras foram Plantão de
Polícia, Carga Pesada e Aplauso), Malu Mulher foi exibida semanalmente, às 22
horas (horário que, teoricamente, tinha menos intervenção da Censura Federal),
durante dois anos, até dezembro de 1980, completando um total de 43 episódios.
Foi concebida seguindo a “onda liberalizante” que tomou conta das
atividades culturais no país durante o projeto de abertura dos governos Geisel e
Figueiredo. Um ano antes de Malu Mulher, a TV Globo havia exibido o seriado
Ciranda e Cirandinha, com sete episódios, escrito por Lenita Plonczynski,
Domingos de Oliveira, Euclydes Marinho, Antonio Carlos da Fontoura e Luiz
Carlos Maciel. Tratava dos dramas, conflitos, sonhos e dificuldades de
relacionamento vividos por quatro jovens que dividiam um apartamento na Zona
Sul do Rio de Janeiro. Mesmo com intervenções da Censura, o seriado foi
precursor ao problematizar temas voltados para as sexualidades feminina e
masculina. Estava plantado o terreno para criar um programa voltado para as
idiossincrasias femininas diante das mudanças socioculturais que vivia a
sociedade brasileira.
Inspirada no filme An Unmarried Woman (Uma Mulher Descasada),
comédia de Paul Mazursky lançada no ano anterior, Malu Mulher foi escrita para
retratar uma heroína antenada com as mudanças sociais que ocorriam na
sociedade, especificamente no que se refere à relação entre gêneros.
231
O seriado
231
A concepção e desenvolvimento da série demonstraram um estreito diálogo entre ficção e
realidade social. Segundo depoimento do diretor geral do seriado, Daniel Filho, Malu Mulher foi
concebido a partir da constatação de que a abertura política preconizada pelo governo Geisel
criava condições para se tratar de temas até então tabus como a emancipação feminina. A série
contou com a participação dos autores Euclydes Marinho e Armando Costa, sensíveis à liberação
feminina, e a colaboração de roteiristas feministas como Lenita Plonczynski e Renata Pallotini. A
série teve também o apoio da antropóloga Ruth Cardoso que sugeriu, entre outras coisas, que a
equipe de pesquisadores do seriado entrevistasse estudantes de sociologia da Unicamp, para que
ajudassem a construir o perfil de Malu. A relação entre ficção e realidade se deu na própria escolha
da atriz para representar a protagonista: Regina Duarte, até então a “namoradinha do Brasil”,
identificada com os padrões tradicionais de comportamento, acabara de se separar na vida real e
enfrentava, tanto na vida pessoal quanto na pública, o desafio de reconstruir sua imagem. Por
último, cabe ressaltar a aderência que a ficção teve com a realidade vivida por parcela do público
feminino da época, que dava passos decisivos no caminho da emancipação feminina (lei do
divórcio, início das denúncias de violência doméstica, maior reconhecimento profissional,
aumento do número de creches, entre outras conquistas). Malu Mulher tornou-se emblema dos
movimentos feministas do final da década de 1970/início da década de 1980, que citavam frases e
situações vividas pela personagem principal em artigos, entrevistas e manifestações. Nestas, a
música Começar de Novo, de Ivan Lins, interpretada pela cantora Simone, virou hino. MEMÓRIA
GLOBO, Dicionário TV Globo: Programas de Dramaturgia & Entretenimento, p. 386-388;
MEMÓRIA GLOBO, www.memoriaglobo.com.br.
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relata a vida e os dilemas de uma socióloga, desquitada, com uma filha
adolescente, pertencente às camadas médias intelectualizadas da cidade de São
Paulo.
Seriado de inspiração feminista, traz à cena essa nova mulher, mais livre e
independente que prefere separar-se do marido ao constatar a falência do
casamento e encarar de frente a dura realidade de viver e criar sozinha uma
adolescente. Ao fazer um retrato das dificuldades que essa “mulher moderna”
enfrenta no cotidiano, aborda temas femininos considerados tabus na época
virgindade, aborto, orgasmo, menopausa, homossexualismo, uso de métodos
anticoncepcionais , assim como a relação entre gêneros, as dificuldades do
casamento, a educação dos filhos e o conflito de gerações, além dos problemas
enfrentados pela mulher no mercado de trabalho. O fato de a personagem central
ser uma socióloga possibilitou a discussão exaustiva de temas da “pauta
feminista”, havendo mesmo um excesso verbal em detrimento da encenação. Não
faltaram acusações de que o seriado era discursivo e didático demais e que Malu
simbolizava a “mulher chata” (insinuação feita por seu ex-marido em vários
episódios).
Ao abordar as mudanças vividas pela mulher naquele final de década, Malu
Mulher também tratou dos dilemas e conflitos que se colocavam para o homem
frente às mudanças na configuração dos gêneros. A incompreensão com as
transformações femininas e as dificuldades em lidar com elas chegaram a ser tema
de Amizade Colorida, escrito por Bráulio Pedroso, Domingos de Oliveira,
Armando Costa e Lenita Plonczynski, os dois últimos também autores de Malu
Mulher. Amizade Colorida (que a princípio se chamaria Edu, Homem, uma
brincadeira com o seriado anterior) abordava a perplexidade masculina diante da
independência feminina. Edu, o protagonista, era um contraponto à Malu:
inseguro, fragilizado, totalmente dominado pelas mulheres, sem voz ativa e
afetivamente indefinido. Sofreu críticas de feministas que consideravam a série
uma resposta “machista” às reivindicações femininas expressas no seriado anterior
e uma perda de espaço para a discussão dos problemas de gênero. Também sofreu
muitas intervenções da Censura Federal, que fazia tantos cortes que tornavam
incompreensíveis as histórias. Amizade Colorida saiu do ar após dois meses de
exibição.
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Sem perder de vista o contexto histórico em que o seriado está inserido,
após um longo período de censura implacável e com as criações dramatúrgicas
tendendo a mostrar modelos femininos baseados nos estereótipos da “santa
mulher” ou da prostituta, verifica-se ainda o forte conteúdo melodramático na
abordagem das tramas. Estes se revelam nos títulos dos episódios (como Até
Sangrar e Com Unhas e Dentes), no uso e abuso de melodias pontuando as cenas,
nas posições radicais da heroína e de seus antagonistas, sem muitas nuances e
meios tons, e nas atitudes dramáticas em situações de briga ou de prazer, como o
crispar das mãos de Malu quando tinha orgasmos, motivo de vários artigos na
imprensa.
232
O gesto tornou-se um padrão de comportamento feminino nas
telenovelas brasileiras. A interpretação e os diálogos dos personagens reforçam a
mistura entre um realismo beirando o naturalismo e uma dramaticidade repleta de
excessos e lágrimas nas situações-limites vividas pela personagem principal. Já no
primeiro episódio Acabou-se o que era Doce, título altamente sugestivo
considerando que gira em torno do fim do casamento de Malu e o início de sua
condição de desquitada , a cena da separação é repleta de gritos, xingamentos e
mesmo agressões físicas. A diferença é que a mulher não é esbofeteada, mas
também esbofeteia.
Segue-se a análise dos scripts (ou roteiros, na linguagem de televisão) dos
episódios iniciais do seriado apresentados à Censura Federal para obter a liberação
de exibição,
233
dos scripts e vídeos de dez episódios usados pelos diretores e
232
Cf. ALMEIDA, H. B. de, Malu Mulher e o Feminismo dos Anos 1970 na TV Globo, passim.
233
Embora estes episódios tenham sido gravados em vídeo, não foram encontrados no Arquivo de
Imagens da emissora. Por essa razão, foram analisados apenas com os scripts, acompanhados de
uma carta do gerente de programação da Rede Globo em Brasília, Guy Cunha de Oliveira, dirigida
ao “Ilmo. Sr. Dr. Rogério Nunes, DD. Diretor do DCDP/DPF”, com data de 19 de fevereiro de
1979: Prezado Senhor, A Rede Globo de Televisão, com sede à Rua Von Martius 22 Rio de
Janeiro, através de seu representante nesta capital, Sr. Guy Cunha de Oliveira, nos termos das
Portarias nºs 13 e 15/SCDP/70, vem solicitar a V. As. que determine a Censura Prévia no script do
episódio ACABOU-SE O QUE ERA DOCE, da série MALÚ (Título Provisório), uma autoria de
EUCLYDES MARINHO, direção de P. A. GRISOLLI, que se aprovado será apresentado por esta
emissora no horário das 22 horas. Antecipando nossos agradecimentos pela atenção dispensada,
aproveitamos o ensejo para renovar nossos protestos de estima e consideração. À frente do script
há uma folha com o resumo contendo informações técnicas do programa (título, nome do episódio,
horário, autores, diretor, supervisor) e dois avisos dirigidos aos produtores, diretores e atores: “Os
cortes assinalados neste „script‟ pela Divisão de Censura de Diversões Públicas do D.P.F. devem
ser rigorosamente obedecidos” e “É proibido fumar nos estúdios”. Segue-se uma segunda folha
com o título, lista de personagens e figurantes e uma observação sugerindo utilizar em algum
momento do prólogo da série um trecho da música “Trocando em Miúdos”, de Chico Buarque e
Francis Hime, grande sucesso na época e que fala de um casal que se separa.
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atores para veiculação na televisão. Cabe ressaltar que foram confrontados não
os scripts com as imagens exibidas, mas também com o que foi censurado em
cada episódio, na medida em que se teve acesso à documentação com as
anotações dos censores. Uma surpresa ocorreu durante o levantamento e estudo
desse material. O script com a história do episódio inicial, que dava o tom da
proposta da série e que recebera a aprovação da Censura para exibição, não foi
usado para gravação nem tem a ver com a história exibida. Isto é: a direção da
emissora mudou a história inicial (que tinha um viés bem conservador) após a
aprovação da Censura e tornou Malu Mulher efetivamente uma série com
abordagem feminista.
234
Vale lembrar os critérios de seleção dos dez episódios analisados. Embora
os scripts de todos os 43 programas exibidos tenham sido lidos, optou-se pelos
dez selecionados para edição de um DVD que foi vendido no mercado (e,
portanto, pode ser visto por qualquer pessoa). A opção se deve também ao fato de
considerá-los representativos do conjunto da série tanto pelos temas abordados
quanto pela autoria. Tratam de pelo menos um dos temas sobre mulher
considerados relevantes sexualidade, maternidade, casamento, separação,
aborto, trabalho feminino, criação dos filhos, homossexualismo, assédio sexual,
violência doméstica, menstruação, menopausa, sedução, beleza, novos
relacionamentos amorosos, entre outros. Além disso, existe ao menos um
episódio de quase todos os principais autores que compuseram o conjunto de
roteiristas responsável pelas histórias de Malu Mulher. um predomínio das
histórias de Manoel Carlos, Euclydes Marinho e Armando Costa (os que mais
234
Os depoimentos do autor Euclydes Marinho e do diretor Daniel Filho ao Memória Globo
possibilitaram a descoberta do que ocorreu. A ideia de produzir um seriado voltado para as
questões femininas foi desenvolvida como um sitcom nos moldes da série americana Mary Tyler
Moore. Com os scripts e os vídeos dos primeiros capítulos aprovados pela Censura Federal, Daniel
Filho mostrou-os para a direção da emissora. José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, na
época vice-presidente de operações da Rede Globo, reprovou o seriado por considerar que a
conjuntura pró-abertura do governo Geisel era favorável à ousadia e permitia explorar melhor
temas polêmicos na teledramaturgia. Em uma semana o seriado foi redefinido e os capítulos
iniciais regravados para uma nova submissão à Censura, que liberou, mas fez ressalvas sobre a
presença de “cenas de violência brigas conjugais, bem como brigas sutis”. Talvez isso explique
em parte por que os episódios sofreram periódicas ações da censura ao longo dos dois anos de
exibição. Na verdade, a Censura Federal aprovara os primeiros scripts de uma história que depois
foi radicalmente transformada. Ao analisar esta segunda versão, os censores não se deram conta ou
preferiram não intervir naquele momento na nova Malu, que era o oposto da primeira. O seriado
foi ao ar com essa nova versão, mas ao longo de sua exibição os censores decidiram atuar cortando
ou exigindo reformulações nas cenas. MEMÓRIA GLOBO, Autores: Histórias da
Teledramaturgia, passim. Ver também o site MEMÓRIA GLOBO, www.memoriaglobo.com.br.
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assinaram roteiros). Os diretores foram Daniel Filho, Paulo Afonso Grisolli e
Dennis Carvalho. Estou ciente de que há um recorte feito a priori pelos produtores
ao selecionar esses episódios para serem comercializados em DVD. Porém,
considero esse fato mais um elemento para análise.
Malu Mulher foi pensada para ser um sitcom sobre as dificuldades de uma
mulher brasileira de classe média que se separa do marido. O título inicial era
apenas Malu, denotando tratar-se de uma história individual, de apenas uma
mulher, e não de um coletivo. No script do episódio Acabou-se o que era Doce, de
Euclydes Marinho, e que obteve aprovação da Censura Federal, um “prólogo”
com a cena da separação entre Malu e Pedro Henrique. Ela chora e suplica para
que ele não vá embora; ele, irritado diante do choro e da atitude frágil dela, afirma
que a relação acabou. Ela, desconsolada, pede mais uma chance, questiona a razão
de acabar com um casamento de treze anos com uma filha e, chorosa, pergunta se
ele não a ama mais. Ele, mais realista e pragmático, embora também sofrendo,
confirma que quer se separar, que será melhor para os dois e que a filha
sobreviverá. Malu se desespera, agarra o braço dele e, suplicante, diz: “Isso é
mentira, Pedro, você não pode fazer isso comigo. Você tem que me dar uma
chance. Me diz no que foi que eu errei, eu mudo, eu juro! Conversa comigo! A
gente começa tudo de novo!” Pedro Henrique continua decidido a se separar e
Malu pergunta em tom afirmativo se ele tem outra mulher. Pedro Henrique se
veste rapidamente e responde: “Isso não tem importância! Não é causa, é
consequência!” Na rubrica do autor: “Para Malu é a punhalada de misericórdia.
Ela grita „Não!‟ e morde a mão para não gritar. Pedro Henrique vai embora.
Câmera fecha nos olhos de Malu. A perplexidade é total. Escurece.A próxima
cena já mostra os dois na 4ª Vara de Família para a separação judicial.
235
A descrição resumida da primeira cena da série revela uma mulher
abandonada pelo marido, que, a despeito da crise no casamento, acha que deve
235
Embora a lei do divórcio tenha sido aprovada em 26 de junho de 1977, podia ser aplicada
depois de três anos de separação judicial ou cinco de separação comprovada. Com a Constituição
de 1988, o direito ao divórcio mudou para um ano após a separação judicial ou depois de dois anos
de separação comprovada. Apenas em 8 de julho de 2010, 33 anos após a promulgação da Lei do
Divórcio no Brasil, o Senado aprovou a emenda à Constituição concedendo imediatamente o
divórcio a casais separados amigavelmente. Como se trata de mudança na Constituição, não foi
necessário o projeto ser submetido à sanção presidencial. A lei do “divórcio imediato” foi
promulgada em sessão do Congresso realizada em 14 de julho de 2010.
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mantê-lo acima de tudo. Apela para a duração do pacto, a instabilidade que
causarão para a filha, a possibilidade de ela mudar e se adequar aos desejos dele e,
por fim, para a causa da separação ter sido um caso extraconjugal. A Malu
apresentada em nada se aproxima da perspectiva feminista que acabou sendo
adotada pelos autores e produtores na série que foi ao ar. A figura da “mulher
abandonada” e da “mulher que defende o casamento a despeito de tudo” vai muito
mais na direção de um modelo feminino tradicional, profundamente marcado
pelos valores patriarcais da subordinação de papéis (ela, responsável por zelar
pelo bom funcionamento do lar e da família e ele por prover financeiramente a
unidade familiar), do que na direção de um modelo liberalizante, de valorização
da independência feminina e da construção de sua individualidade.
Essa percepção é clara na resposta que Malu dá ao advogado diante da
observação de que a pensão acordada para ela e a filha receberem de Pedro
Henrique é muito superior ao que 80% da população do país ganha para viver:
“Eu não sou a população deste país! Eu sou uma mulher de 32 anos, largada pelo
marido, com uma filha de onze anos para criar, vestir e alimentar!”. Após o
desquite, os dois chegam a ter uma recaída e passam uma noite juntos indicando a
possibilidade de reconciliação. Mas o fim do casamento se confirma pela manhã
e, após muito choro, Pedro Henrique vai embora.
Malu se diante da necessidade de trabalhar. Não tem formação
profissional alguma (no script apresentado à Censura ela é dona de casa e não
socióloga) e vasculha os classificados em busca de trabalho. Tenta vários
empregos, sofre assédio sexual, é humilhada nas entrevistas porque não tem
nenhuma qualificação, vai parar num estúdio de fotos eróticas e fica indignada
com a proposta de posar nua. Candidata-se a uma vaga de auxiliar de escritório
em uma fábrica de papel na periferia de São Paulo. Devido ao seu despreparo e de
seu desespero por trabalho, acaba sendo contratada pela metade do salário
proposto. No processo de contratação, surge uma Malu completamente alienada
do mundo: não tem nenhum documento (carteira de trabalho, CPF, Imposto de
Renda), o que revela sua total dependência do marido. Ao dizer que tem título de
eleitor, conta que votou no filho de uma amiga mas não se lembra do nome do
candidato.
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A protagonista beira o patético diante de tantos estereótipos da mulher
submissa, alienada, ignorante e dependente. Mas a personagem aproxima-se de
um modelo de mulher ainda predominante na época nas classes médias dos
centros urbanos: dona de casa, completamente dedicada ao lar, que vive um
casamento permeado pelas constantes relações extraconjugais do marido ou que é
abandonada com filhos e sofre todos os tipos de percalços para sobreviver.
236
O script de Malu Mulher (a que foi exibida) apresenta uma narrativa muito
marcada pelos discursos feministas em vigor no final da década de 1970 e início
dos anos 80. O título da série demonstra uma mudança: incorpora o substantivo
mulher, fazendo de Malu não apenas o indivíduo, mas também uma
representante do gênero feminino. Agora, a personagem que se revela no episódio
Acabou-se o que era Doce, também de autoria de Euclydes Marinho, reescrito e
gravado, é uma mulher com formação superior socióloga e, em alguns
episódios, sugere-se que ela pretende fazer pós-graduação), trabalha como
pesquisadora, é completamente antenada com as transformações culturais e
políticas por que passa a sociedade brasileira, é reflexiva, crítica e tem um
discurso marcado pela psicologia e pela psicanálise. Seu relacionamento com a
filha adolescente é muito franco e aberto, sugerindo certo igualitarismo nas
relações entre pais e filhos. O episódio inicial continua girando em torno do
desquite de Malu e Pedro Henrique, porém, agora, a situação se inverte: é Malu
quem toma a decisão de separar-se e Pedro Henrique tenta evitar que a separação
se consume. No entanto, não faltam situações e emblemas que denotam a presença
de padrões tradicionais de comportamento.
236
Os pareceres dos censores são bem representativos do comportamento e da moral dominantes.
Um primeiro parecer sobre o episódio, datado de 23/02/1979, diz o seguinte: “...O programa
enfoca o drama da separação de casais com os problemas inerentes à situação, como o conflito dos
filhos e a situação financeira da mãe, que se sobrecarrega com as responsabilidades da subsistência
e educação dos mesmos”. No segundo parecer, de 01/03/1979, Malu é ainda mais infantilizada:
“Episódio da Série “Malu” focalizando a vida de uma mulher que depois de vários anos de casada
é abandonada pelo marido, que pede o desquite. A princípio, ela se desespera, pois não sente
forças para enfrentar a vida só, além de ainda gostar do marido. Depois de uma fase bastante
difícil, ela consegue aos poucos reintegrar-se no meio em que vive, conseguindo superar seu
desequilíbrio emocional, chegando a trabalhar, coisa que nunca conseguiu fazer antes. Sua vida
muda de tal forma que seu ex-marido começa a notar a diferença e passa a-la com outros olhos,
deixando Malu bastante feliz. O texto examinado não apresenta implicações para o horário
pretendido, podendo desta forma ser liberado aos maiores de 16 anos, condicionado ao exame do
tape.”
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Logo no início do episódio, a protagonista demonstra sua insatisfação com o
casamento quando para de bater a máquina de escrever onde datilografa um
trabalho de pesquisa cercada de livros de ciências sociais, pega a agenda e risca a
lista de tarefas realizadas, menos uma: “Falar com Pedro Henrique”. Recolhe seus
escritos e guarda numa pasta dizendo para si mesma: “Até amanhã, Malu...hora de
esperar marido.” A cena seguinte mostra o casal brigando e enquanto ele pede
que ela pare de querer “discutir o casamento”, justificando que “casamento é tudo
igual”, ela fica indignada com a indiferença dele diante da situação. Ela continua
bebendo uísque e ele a acusa de “neurótica, que tudo quer questionar, analisar,
discutir...”. A conversa fica cada vez mais agressiva e os dois quase chegam à
violência física. Ele ameaça esbofeteá-la e ela afirma que não aceitará mais
receber tapas no rosto como acontecera anteriormente. A briga é interrompida
pela chegada da filha Elisa.
uma passagem de tempo e começa nova cena de discussão entre o casal.
Malu lhe entrega um maço de papéis que escrevera sobre o relacionamento dos
dois e ele ignora. Ela reage aos berros, acusa-o de indiferença e de ter ciúmes do
trabalho dela. Ele a agride, respondendo que não pode sentir ciúmes de
“sociologia barata, literatura de quinta categoria”. Pedro Henrique joga os papéis
pela janela, mas logo se arrepende e vai ajudá-la a pegar os escritos no jardim. Ali
Malu anuncia que vai se separar. Ele pede desculpas, porém ela mostra estar
decidida. A discussão continua no apartamento, enveredando pelo campo da
sexualidade. É nesse momento que as cenas de violência se intensificam. Malu
acusa Pedro Henrique de manter relações extraconjugais e insinua que também
as “escapadelas” dela. No diálogo abaixo se tem uma pista para pensar como a
identidade feminina é construída na série.
Pedro Henrique: Você? (Sorri com desdém. Em seguida fica sério) Você não teria
coragem.
De repente Malu descobre onde feri-lo. Ri insinuante.
Malu: Tem certeza?
Pedro Henrique fica desconcertado, mordeu a isca.
Pedro Henrique: Você, a moça de família? (arremedando) Isso eu não faço...Ah!
Hoje não...Não quero sair. Tô cansada...Ai minha enxaqueca...Pedro Henrique, não
bebe tanto...(num crescendo) Não, não, tudo é não pra você! Será que você não
entende, Malu, que eu não tenho mais mulher???
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Malu: E por acaso você se considera um exemplo de virilidade? Ou acha que me
satisfaz? Não é na rua, com qualquer uma, que você tem que ser homem! É aqui,
na sua casa, comigo, que sou sua esposa, que sou sua amiga, com sua
filha...(continua direto).
Corta para Elisa, em seu quarto, escutando o bate-boca apavorada.
Malu (off) (continuação): Mas não! É mais fácil transar com as secretárias, é claro.
Pedro Henrique (off): E daí? É natural do homem! É natural, biológico, não tem
nada a ver com amor! Todo homem é assim!
Malu (off): Eu não me casei com todos os homens, casei com você! Eu achava que
você era diferente, especial...Por isso me casei com você...Eu acreditava em
você...Mas era mentira...Você é medíocre como todos, vulgar.... Normal!
Pedro Henrique (off) (gritando): Malu, cala a boca! Cala!
Malu (off): Não me empurra, Pedro Henrique, não faz isto!
Elisa ouve os barulhos de uma briga violenta. Esconde o rosto.
Corte para a sala.
Malu (encarando): É só assim que você sabe ser homem?
Pedro Henrique se descontrola e uma surra em Malu, que se defende como
pode. Montagem rápida, ritmo tenso.
Malu: É melhor me matar logo de uma vez, porque essa é a última vez que você me
bate....
Ele espanca-a até a exaustão. De repente para. Malu está jogada num canto. Chora
baixinho. Ele deixa-se cair de joelhos, chorando convulsivamente.
Corta para Elisa. Em seu quarto, chora com o rosto enterrado no travesseiro.
Silêncio.
Na cena seguinte, Malu está com a porta da casa aberta e Pedro Henrique
indo embora com uma malinha. Ele tenta amenizar a situação, dizendo que no dia
seguinte irão conversar, que esquecerão tudo. Ela está decidida. Ele sai, ela bate a
porta, vai para o seu quarto e cai na cama aos prantos.
A descrição se baseia no script do autor. Ao assistir o DVD, percebe-se que
nas cenas da rie o conteúdo e as rubricas correspondem praticamente ao que foi
exibido. A única diferença é que no vídeo a violência é amenizada, com tapas no
rosto e a insinuação de que ele teria ido longe nas agressões físicas. O diálogo
explicita quais são os eixos que constroem as sexualidades feminina e masculina
questionados. A imagem da esposa que zela pela família, cuja sexualidade está
pautada no bem servir ao marido, onde a maternidade é acionada para definir a
identidade feminina, fica evidente na fala de Malu denunciando as relações
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extraconjugais de Pedro Henrique. Ele, por sua vez, ressalta a oposição boa
moça/sexualidade reprimida x prostituta/sexualidade livre ao duvidar da
afirmação de que Malu também tem relações fora do casamento. Outro aspecto
salientado nas falas dos dois se refere à sexualidade masculina calcada na noção
de virilidade. Malu pressiona Pedro Henrique sobre seus constantes adultérios
como sendo a forma que ele encontra de “ser homem”, enquanto em casa não a
satisfaz. A resposta dele, relacionando as aventuras extraconjugais com
“necessidades naturais, biológicas, de todo homem”, confirma a noção de que o
homem, ao exercer uma posição de dominação e ocupar por excelência o espaço
público, tem seus comportamentos sexuais naturalizados e legitimados
publicamente. A poligamia masculina e a “vida santificada” da mulher, voltada
para a esfera doméstica e os cuidados com filhos, demonstram que Malu e Pedro
Henrique ainda lidam com o padrão duplo de moralidade, para o qual chama
atenção Gilberto Freyre ao analisar a sociedade patriarcal que vigorou no período
colonial brasileiro. Em vários outros episódios de Malu Mulher essa dupla
moralidade reaparece, seja questionando os papéis tradicionais, seja apresentando
situações que revelam a dificuldade em romper com esses modelos.
Em Até Sangrar, escrito por Manoel Carlos, Malu, atendendo a um pedido
dos pais, viaja com a filha ao interior de Minas, para representar a família no
casamento da prima. Ela concorda, a contragosto, em não dizer que é desquitada
aos familiares cujo patriarca, um conservador e moralista, não admite separação
na família. Em Minas reencontra um primo com quem tivera um flerte na
adolescência e chega a sonhar com um relacionamento amoroso até perceber que
ele é um solteirão convicto. uma insinuação de que seja homossexual quando
Malu observa suas mãos finas com unhas bem tratadas e lembra uma cena na
adolescência em que um beijo rápido no primo e ele, instintivamente, limpa o
rosto. A prima que vai casar é virgem aos 30 anos e, angustiada com a
proximidade da “primeira noite”, conversa com Malu.
Na sinopse original, apresentada à Censura Federal, um diálogo em que
Malu se surpreende com a virgindade da prima e esta, por sua vez, pergunta
detalhes sobre o ato sexual. Esse diálogo foi cortado pela Censura e não foi ao
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ar.
237
Para um telespectador desatento, o diálogo é completamente non sense, pois
os cortes da Censura foram substituídos por metáforas nem sempre muito óbvias.
Na mesma cena, Malu revela que se separou de Pedro Henrique, mas diz ter
preferido manter o sigilo com os tios e primos. Isso se confirma na viagem de
volta, quando a filha pergunta o motivo de não ter assumido seu estado de
desquitada, e ela afirma: “Às vezes, eu tenho um pouco de vergonha de não ter
sido feliz com o mesmo marido a vida inteira”. Paralelamente, Pedro Henrique
encontra uma mulher em um bar, vai para o motel e ao levar a moça depois ao
emprego sofre um acidente de carro. Manda avisar a Malu, que imediatamente
abandona seus compromissos na fazenda e retorna com a filha para cuidar de
Pedro Henrique que, por sua vez, quase não se machucou. Todos os ícones da
moralidade tradicional imposta à mulher virgindade, manutenção do casamento,
cuidados com o lar e com o marido, vergonha de romper com o pacto conjugal
são acionados nesse episódio.
O tema da homossexualidade, tabu na época e pouquíssimo abordado pela
indústria cultural, é a questão central do episódio A Amiga, de Euclydes Marinho.
Nele, Malu trabalha em uma multinacional voltada para a pesquisa demográfica e
tem um relacionamento amoroso com o chefe de seu grupo, Paulo Ribeiro. Após
uma noite de amor, Malu resolve “discutir a relação” e Paulo se assusta diante do
excesso de expectativa dela. No dia seguinte, mostra-se mais distante e frio.
Quando Maria, uma de suas colegas de trabalho é demitida injustamente por
recusar o assédio sexual do chefe do setor de recursos humanos, Malu pede
demissão em solidariedade e escreve uma carta a ser enviada aos jornais. O
namorado se recusa a assinar a carta, Malu rompe com ele. Ela e Maria tornam-se
amigas. Esta, por sua vez, separada havia sete anos de um marido que a fizera
237
No parecer da Censura Federal, de 29/6/1979, assinado por Raymundo E. de Mesquita, a
justificativa para o corte é de que: “...a jovem noiva, confessando sua vergonha e medo com
referência à lua de mel, é interrogada por Malu sobre sua virgindade. A maneira com que foram
colocadas referidas insinuações debocham com o estado casto, numa evidente apologia às
experiências sexuais antes do casamento. Tais mensagens são perniciosas e negativas para o
público telespectador, que existe a grande possibilidade de serem captadas por jovens imaturos
e, deste modo, sugerimos os cortes assinalados nas páginas 03 e 11 (Cenas 06 e 17).” O parecer
ainda faz dois alertas a respeito de temas voltados para a sexualidade: “Por outro lado,
recomendamos especial atenção para o tratamento dado aos enfoques das páginas 13 e 17, quando
do exame do Tape, nos quais, respectivamente, Malu desconfia sutilmente que o primo Nelson é
efeminado, e quando Pedro Henrique e Marlene estão num quarto de motel em suposto
relacionamento amoroso”.
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sentir-se infeliz, demonstra que é lésbica e se declara para Malu, que reage com
espanto e se afasta. O tempo passa e as duas se encontram. Conversam sobre a
homossexualidade e decidem se tornar boas amigas respeitando as opções sexuais
de cada uma.
O homossexualismo é abordado com total transparência. Durante uma noite
em que as duas bebem juntas e conversam, estão deitadas no sofá e diversas
cenas em que se tocam afetivamente. mesmo uma cena de Maria levando
Malu, completamente embriagada, para a cama. No dia seguinte, Malu, coberta
pelo lençol com os ombros de fora, acorda e lê uma carta afetiva da amiga
marcando um almoço. A dúvida sobre se as duas tinham tido ou não uma relação
homossexual pautou jornais e revistas durante as semanas seguintes à veiculação
do episódio. Percebe-se nos diálogos com Malu que Maria sofre muito
preconceito, mas assumir sua opção sexual foi uma decisão em busca de sua
identidade. um discurso em defesa da psicanálise, que teria sido fundamental
para ajudar Maria a lidar com sua homossexualidade: “Curar o meu „problema‟,
ela não curou. Mas em compensação, eu não acho mais que é um problema”. Em
outro momento, afirma:
Se eu não me assumir, melhor me suicidar. E mesmo me assumindo, não é fácil,
não. Porque ninguém me aceita. Você não sabe o que é ser considerado „diferente‟,
„pervertido‟. As pessoas te olham com desprezo, com nojo...Você mesma se sente
doente, como se tivesse uma ferida, uma coisa pra esconder...Nossa, que inferno
era!
A ideia do comportamento desviante sendo encarado como patologia,
algo que extrapola os limites dos comportamentos socioculturais legitimados, que
não se enquadra no comportamento „médio‟ ou ideal‟ existente na sociedade,
que infringe as regras estabelecidas pelos grupos sociais, está presente na fala de
Maria. Por outro lado, ao apontar a psicanálise como meio de enfrentar essa
situação de desvio, Maria considera o homossexualismo uma opção, uma
decisão de um indivíduo que, em determinadas áreas, faz uma leitura divergente
daquela que predomina em sua cultura.
238
238
Cf. VELHO, G., O Estudo do Comportamento Desviante: A Contribuição da Antropologia
Social, p. 27-28
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Em Duas Vezes Mulher, também da autoria de Manoel Carlos, a sexualidade
feminina está novamente em pauta por meio de dois temas ligados a aspectos
biológicos da mulher: a menstruação e a menopausa. Ambos são tratados com um
tom naturalista, buscando dissociá-los da ideia de “problema feminino”,
elementos que reforcem uma posição de inferioridade, de proximidade da natureza
(e não da cultura), de desregramento feminino. Por causa de atritos com a mãe,
Elisa vai passar um fim de semana não programado na nova casa de Pedro
Henrique. A inesperada situação de ter que hospedar a filha provoca uma série de
discussões com Malu, que denota o despreparo masculino para a tarefa de “cuidar
dos filhos”, até então essencialmente feminina. Pedro Henrique tenta se
desvencilhar da obrigação dizendo não ter estrutura para receber a filha, de ter
planejado um pôquer com amigos, de não saber que programas fará com uma filha
mulher. A menina está irredutível no desejo de ir para a casa do pai e Malu de
ficar sozinha durante dois dias. Em meio a cenas recheadas de humor, pai e filha
têm a experiência de conviverem sozinhos em casa.
Durante a estadia, Elisa fica menstruada pela primeira vez. Pedro Henrique
e Elisa vivem momentos de estupefação e emoção diante do rito de passagem da
menina para a adolescência. Enquanto isso, a mãe de Malu, Elza, aparece na casa
da filha após uma briga com o pai de Malu. Ela relata as dificuldades no
relacionamento com o marido, especialmente na sua falta de desejo sexual. As
conversas entre mãe e filha mostram que Elza, embora ignore os sintomas, está
entrando na menopausa. Aquilo que mais se destaca no episódio é o
desconhecimento da sexualidade feminina. Pedro Henrique fica em pânico quando
a filha comunica que ficou menstruada pela primeira vez. Elisa, calma, demonstra
estar bem informada e consciente da mudança em seu corpo. no dia seguinte,
ele tem uma atitude paternal e solidária. Acorda a filha com um café da manhã na
cama e um pacote de absorvente na bandeja. Confessa a Elisa: “Hoje é o dia mais
feliz da minha vida. Você me deu a consciência de que eu sou pai. Pela primeira
vez eu me senti pai”.
Elza revela total ignorância do corpo feminino e de sintomas da menopausa
relativos a calor e frio, cheiros enjoativos, dores de cabeça, falta de desejo sexual
etc. e se diz envergonhada (a ponto de temer ir ao ginecologista). É Malu que
conclui que a mãe está na menopausa. É curioso que primeiro ela psicologiza a
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situação e acha que Elza está com dificuldades de dissociar o prazer da
procriação, mas, diante da descrição dos sintomas, utiliza-se do discurso médico:
Você não fica menstruada dois meses, três meses, não vai ao médico...Pois
olha...É físico mesmo! Ele provavelmente vai te receitar hormônios que vão te
equilibrar...Você vai ver que maravilha! Já me falaram que com essas pilulinhas
modernas o aspecto sexual fica fantástico.
O tom pedagógico desse episódio fica claro com as “aulas de sexualidade
feminina” que Malu à mãe. A reação de Pedro Henrique em comemorar a
menstruação da filha com flores e champanhe também um tom “politicamente
correto” àquele momento.
Ao final, a fala de Malu sintetiza o didatismo ao enfatizar os movimentos de
“abertura sexual” da filha e “restrição sexual” da mãe: “Bonito isso que aconteceu
entre você e sua avó: vocês se encontram no meio do caminho.” Essa relação mais
igualitária entre pais e filhos perpassa todo o seriado. Elisa, tratada pela mãe e
pelo pai com afeto e sinceridade, participa das conversas e discussões sérias,
como nos episódios que tratam da separação dos pais, da primeira menstruação,
da gravidez precoce da filha do porteiro e da violência que sofre a vizinha (estes
últimos tratados adiante).
A crise da idade, com a perda da vitalidade da juventude e da beleza, e a
solidão da mulher que se separa são os temas que predominam nos episódios
Antes dos 40, Depois dos 30 e Com Unhas e Dentes, ambos escritos por Manoel
Carlos. O primeiro aborda a crise existencial de Malu no dia do seu aniversário
de 33 anos, quando enfrenta uma súbita recaída por Pedro Henrique. Às vésperas
do aniversário, relembra com uma amiga os tempos em que comemorava a data
em um motel, questiona a decisão de separar-se e decide reconquistá-lo. Passa o
dia esperando as flores do ex-marido com um cartão romântico. As flores chegam,
mas o cartão é apenas amistoso. Na festa à noite em sua casa, Pedro Henrique
demonstra afeto por Malu, porém reafirma que ela é a “melhor ex-esposa do
mundo”. Ele não perde a oportunidade de seduzir uma colega de trabalho dela. Sai
acompanhado pela moça e vai para um motel. Malu não percebe muito bem a
situação retratada como uma mulher que mesmo separando-se permanece com
um ar ingênuo, de boa moça) e liga para ele convidando-o para jantar no dia
seguinte. Enquanto ela se esforça para seduzi-lo, ele se prepara para negar
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qualquer pedido de aumento de pensão. Ao notar a indiferença de Pedro Henrique,
que culmina com uma proposta de divórcio, desiste da reconciliação.
Em Com Unhas e Dentes, Elisa encontra o pai com uma namorada mais
jovem que ele e se encanta com a moça. Convence a mãe a convidar o pai com a
namorada para jantar em sua casa. Malu, a princípio, sente-se insegura e com
ciúmes diante de uma jovem bonita, independente, livre, bem sucedida
profissionalmente. Ao longo do jantar, as duas simpatizam uma com a outra,
embora possuam visões de mundo contrastantes em alguns pontos: Malu investe
na formação intelectual, Sandra, a jovem, prefere as atividades ligadas ao esporte
e ao corpo; para Malu, o casamento é um passo fundamental na trajetória de uma
mulher, Sandra acha que o casamento é a última coisa a ser considerada em uma
relação amorosa. Essas diferenças ficam evidentes quando Sandra responde a
Malu que conheceu Pedro Henrique em uma competição de ginástica:
...Depois que fiquei conhecendo ele melhor, me espantei de que ele tivesse ido ver
demonstração de ginástica! E ele me disse que tinha sido de propósito. Que ele
estava procurando uma moça completamente diferente...de você...entende? Uma
moça bem saudável, de cabeça boa, sem grilos existenciais...que pensasse na saúde
mais do que em cultura! Uma mulher inteligente, claro, mas não
uma...assim...como é que ele disse mesmo...assim...metida a intelectual.
Contudo, na visão sobre a maternidade, Malu e Sandra se aproximam: Malu
não vislumbra a hipótese de ser feminina sem ser mãe; Sandra revela, com
tristeza, que é estéril e, portanto, é “imperfeita”. A oposição intelecto x corpo
manifesta-se claramente aqui sugerindo uma associação entre corpo/feminilidade
(Sandra) e intelecto/masculinidade, ou melhor, ausência de atitudes femininas
(Malu). As roupas usadas por Malu nem sempre destacam sua feminilidade
camisas masculinas soltas, ressaltando pouco o desenho do corpo, vestidos largos,
sem corte, tipo camisolão, calças compridas sem nenhum detalhe e blusas
abotoadas na frente (tipo camisa social). Sandra usa vestidos floridos e roupas
esportivas, ressaltando seu corpo bem feito e enfatizando aspectos considerados
femininos como delicadeza, leveza, sedução.
239
Entretanto, essa oposição se altera
239
Marshall Sahlins observa que a assimetria de gênero pode ser identificada em quase todos os
objetos, inclusive os do vestiário: “Pode-se facilmente apresentar uma quantidade de
características elementares que diferenciam o gênero das roupas. As mangas dos homens, por
exemplo, são característicamente mais talhadas que as das mulheres e cobrem todo o braço em
comparação com os comprimentos três-quartos (ou menos) que mostram a extremidade inferior
contraste que é exatamente repetido nos membros inferiores com as calças e saias. A fazenda
masculina é relativamente grosseira e dura, normalmente mais pesada, a feminina é macia e fina;
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quando se trata da maternidade: as duas, em função do corpo, dos aspectos
biológicos, trocam de sinais: Malu, mãe de Elisa, é feminina; Sandra, em função
da esterilidade, é incompleta, menos feminina. A noção que predomina na
conversa é a de que a maternidade é a essência da feminilidade.
No episódio Infidelidade, de Armando Costa, o tema central é o adultério.
Malu se envolve com Celso, um arquiteto casado com uma mulher rica, Alba,
dono da empresa para a qual está trabalhando. Os dois vivem um intenso caso de
amor sem se preocupar em esconder a relação. Celso fala da falência do seu
casamento e da vontade de recomeçar a vida, ativando a imaginação romântica de
Malu. Apesar da hostilidade dos funcionários do escritório, incomodados com o
romance do chefe, Malu continua o relacionamento, acreditando que a separação
de Celso é uma questão de tempo. Quando Alba se apresenta a Malu durante uma
vernissagem, insinua que ela seduziu seu marido e afirma que jamais dará o
divórcio, a relação chega a um impasse. Celso não consegue dar o passo adiante e
abrir mão da vida estável que leva para ficar com Malu. Ao ser questionado,
acusa-a de ter sido sempre sustentada pelo marido e agora estar posando de
independente. Chega a chamá-la de “pequena burguesa se enganando de liberal;
egocêntrica, sempre pontificando do alto das suas sandalinhas da moda”, e afirma
que embora a ame não irá se separar. Malu decide deixá-lo, afirma que acredita na
felicidade e que irá em busca dela. Esse episódio é emblemático para pensar como
Malu Mulher, de fato, trouxe à baila temas considerados tabus não só na televisão,
mas na sociedade brasileira em geral.
O script de Infidelidade foi vetado várias vezes pela Censura e os pareceres
nos dão pistas para compreender a moralidade dominante ainda no final dos anos
1970 e início dos anos 80. Em um primeiro parecer, o censor se manifesta pela
“não liberação” e diz:
Através da aventura de Malu com um homem casado, o episódio põe em debate,
entre outros temas, a questão da infidelidade conjugal, questionando os
pressupostos em que se assenta o relacionamento marido-mulher no casamento. O
com exceção do branco, que é neutro, as cores masculinas são mais escuras, as femininas mais
claras ou pastel. A linha nas roupas masculinas é quadrada, com ângulos e cantos; as femininas
enfatizam as curvas, os arredondados, o harmonioso, a fluidez. Tais elementos da linha, textura e
outros são os componentes mínimos, os contrastes objetivos que demonstram significado social.”
SAHLINS, M. D., La Pensée Bourgeoise: A Sociedade Ocidental Enquanto Cultura, p. 190.
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que vale nessa relação é o comportamento autêntico, fundado na sinceridade e não
em aparências falsas.
240
Nessa linha de pensamento, os personagens envolvidos numa infidelidade
concreta racionalizam a própria conduta numa curiosa distinção entre infidelidade
e deslealdade que o censor tenta apreender em sua análise: A infidelidade
aparece então como uma simples troca do parceiro de cama sem uma significação
maior para os cônjuges. a deslealdade é a falsa aparência, a hipocrisia do
cônjuge que dorme com seu consorte pensando no amante.
Com esse malabarismo mental, o censor compreende que o texto propõe
uma revisão da posição da sociedade em relação ao adultério pois, na verdade,
trata-se de uma conduta perfeitamente tolerada quando, escamoteada sob disfarces
adequados, não agride a conveniência social e os padrões de moralidade. O censor
quase entendeu o que Malu e Celso discutem: eles questionam se é possível ser
infiel sem ser desleal, ou seja, ter uma relação extraconjugal sem mentir para o
parceiro, sendo sincero, leal. Observam que pior que trair com uma ou um amante
é trair no próprio “leito conjugal”, na hora do amor, pensando na outra ou no
outro. Recorrem a James Baldwin para se perguntarem se o ato sexual se faz com
a mente ou com o corpo.
Malu: ...Ele acha que o ideal seria fazer com o corpo. Sem usar a mente, sem
imaginário, sem fantasias, usar o corpo plenamente.
Celso: Difícil. E lembra que Baldwin é homossexual, o que provavelmente já é
uma fantasia. E ele deve ter usado a mente e não o corpo pra se fazer essa pergunta
durante um ato de amor, não é?
Malu: Fiel, desleal. Usar o corpo ou a mente. Sabe que meu ex-marido ficava com
muito mais ciúme se eu me interessasse pela mente e pela conversa de um amigo
dele do que se por acaso eu tivesse ido pra cama com o amigo? Ele disse e
demonstrou várias vezes isso. Morria de ciúmes se eu ficasse a noite toda
conversando com um sujeito só, numa festa, essas bobagens.
Celso: Claro. Eu também. Qualquer pessoa inteligente sente assim. Trogloditas é
que ainda se preocupam com negócio de botar chifres, traição na cama, e tal...
Malu: Hoje ainda existem civilizações organizadíssimas em que a mulher tem
direito a vários maridos. A tal de poliandria...Pode ser uma boa...(Riem). Mas isso
é sempre ditado pelas necessidades sociais e econômicas. Aqueles troços. Aqui a
gente vive num limbo, um troço indeterminado, porque as pessoas fazem uma coisa
e dizem outra.
240
Aqui também se faz a associação entre autenticidade e sinceridade já tratada anteriormente. Cf.
nota 166.
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A passagem acima explicita vários aspectos de um discurso da chamada
“esquerda liberal” dos anos 1970/início dos 1980, que questionava a ideia de
fidelidade conjugal. Relações abertas, amizades coloridas, troca de parceiros
foram algumas práticas defendidas quando ainda não se tinha notícia da Aids. Por
outro lado, a dicotomia entre mente e corpo, entre intelecto e sexo, é enfatizada
numa alusão ao fato de o prazer estar mais associado ao espírito, à mente, do que
ao ato sexual. Ao fazerem referência a James Baldwin, manifestam também um
preconceito contra o homossexualismo transformando-o em uma ideia, uma
fantasia, algo que não está no plano do real. Esse discurso contraditório,
atravessado por um ethos intelectualizado e psicologizado típico das camadas
médias urbanas, marcou profundamente o movimento feminista e o
comportamento dos casais ditos de esquerda de então.
Porém, como nos mostra Gilberto Velho ao pesquisar um grupo de homens
e mulheres das camadas médias da Zona Sul do Rio de Janeiro, intelectualizado e
fortemente influenciado pelo discurso psicanalítico,
241
a visão de mundo e os
comportamentos preconizados nem sempre eram coerentes em momentos de crise
ou situações-limites. Nas festas, por exemplo, algum clima de liberalidade
conjugal era permitido e até incentivado. Mas quando uma aventura extraconjugal
se concretizava, especialmente se fosse iniciativa da mulher, poderia surgir uma
forte reação moralista, acionando visões mais tradicionais, com acusações de
„machismo‟ ou „leviandade‟. E quando a aventura levava à separação do casal, o
pivô da crise era tratado com hostilidade pelo grupo. Se fosse a mulher a
abandonar o casamento, ela era estigmatizada, especialmente pelos homens. O
autor ressalta que
em situações de rotina era constantemente enfatizada a igualdade de direitos de
homens e mulheres e enaltecida a „independência‟ dos membros dos casais. Em
momentos de crise, o discurso poderia mudar radicalmente, enfatizando toda uma
outra ordem de valores em que as diferenças entre homem e mulher eram
sublinhadas.
242
Outro aspecto a ser destacado em Infidelidade é o fato de a mulher de Celso,
Alba, ficar sabendo do caso entre o marido e Malu através de uma funcionária do
241
Cf. VELHO, G., Nobres & Anjos: Um Estudo de Tóxicos e Hierarquia, p. 57-58.
242
Ibid., p. 58.
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escritório, amiga do casal. A reação dos amigos diante de uma possível separação
revela a ameaça que ela significa para a rede de relações que se forma em torno da
aliança matrimonial. Como nesses grupos sociais mais permeáveis à ideologia
individualista a construção da identidade passa muito mais pela rede de amigos do
que pela família de origem ou da vizinhança, o rompimento de um casal pode
provocar a desestruturação das relações de sociabilidade do grupo.
O episódio Legítima Defesa da Honra e outras Histórias, de autoria de
Armando Costa, trata da violência contra a mulher. Malu e sua filha Elisa são
constantemente importunadas pelos gritos e barulhos do apartamento vizinho
onde um casal protagoniza cenas de violência doméstica. Clarice, a vítima, foge
para o apartamento de Malu (sua amiga desde os tempos de Pedro Henrique) em
busca de refúgio e proteção contra a brutalidade do marido, Duca.
243
Ele vai
buscá-la na casa de Malu e alega que Clarice se acidentou. Ela volta para casa.
Semanas depois, nova cena de violência e Clarice mais uma vez foge e pede ajuda
a Malu, assumindo que é vítima do marido, e diz que vai para a casa do pai. Duca
a procura na casa da vizinha e diante do questionamento ao seu comportamento,
revela-se um marido extremamente conservador e opressor:
Ela quer uma liberdade que não existe. Ela não sabe nem querer direito...Ela quer
sair por aí, sem ser comigo, comprar carro, fumar na rua, usar certas roupas que em
mulher minha eu não posso admitir, ver certos programas de televisão, metidos a
ousados e pra frente, eu queria ela diferente do que é.
O episódio destaca a histórica subordinação da mulher ao homem, em que
ela é infantilizada (não sabe nem querer) e desprovida de qualquer capacidade
de discernimento e de desejo próprio, ocupando o espaço público com
comportamentos considerados dissonantes para uma “mulher honrada”, como
fumar, enfeitar-se, dirigir. Malu critica a posição conservadora de um homem que
diz ter ideais de esquerda, anarquista, socialista, mas no cotidiano é de direita,
conservador. O ódio de Duca se volta para Malu e sua fala mais uma vez denota a
proximidade com a visão predominante no discurso antifeminista típico do
patriarcalismo brasileiro em que o homem, na função de provedor e protetor do
243
Uma clara alusão a Doca Street, marido e assassino da socialite Angela Diniz, morta em 1976,
em Búzios, Rio de Janeiro. O assassino Doca Street alegou nos tribunais “legítima defesa da
honra”.
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lar, decide o permitido e o proibido para sua esposa que, por sua vez, é posta à
margem da civilização, como as crianças e os povos primitivos:
Eu não devia deixar você falar assim. Você, sua liberadazinha, não entende nada da
vida. Nós, homens, é que nos matamos, deixamos nossa pele, nossa saúde, fora,
na rua, pra sustentar vocês. É assim que deve ser. Por isso, nós temos direito de
mandar em nossa própria casa. Clarice discute comigo em relação a isso, às
tentativas canhestras, ridículas dela, de se liberar, de ser dona do nariz dela, uma
fêmea que mal sabe assinar um cheque, tomar uma iniciativa, uma coisa a ser
protegida, meio bichinho mesmo.
A cena é interrompida com mais um retorno de Clarice para o marido. Um
tempo passa e ela vai visitar Malu contente porque ele parara com as cenas de
violência. Convida Malu e Elisa para jantar e comemorar a nova fase do
casamento. Após alguns uísques, Duca se torna novamente agressivo e parte para
cima de Clarice. Malu tenta interceder e também apanha. A briga se generaliza e
os vizinhos chamam a polícia. Termina o episódio com Clarice largando o marido
e Malu dizendo que vai processá-lo por agressão.
Filhos, Melhor não Tê-los, de Marta es e Walther Negrão, e Ainda não é
Hora, de Euclydes Marinho, abordam a maternidade. O primeiro episódio
problematiza a situação da mãe solteira e pobre que não consegue trabalhar para
criar o filho. Eunice, empregada doméstica de uma vizinha de Malu, é despedida
pelos patrões que não a aceitam com o filho de quatro meses. Malu e Elisa
acolhem mãe e filho por uma noite, para que ela possa ir para a casa da irmã e
procurar novo emprego. Na manhã seguinte, Eunice desaparece e deixa a criança.
Ao longo de todo o episódio, enquanto tenta descobrir o paradeiro da empregada,
Malu tem que lidar com as dificuldades de cuidar de um bebê, os ciúmes de Elisa,
a implicância de seus pais, que insistem que ela entregue a criança ao Juizado de
Menores, e a má vontade de Pedro Henrique, que avisa que não poderá aumentar a
pensão em função do menino. Quando vai à delegacia dar queixa, Malu atrai a
atenção do delegado que, ao saber que é desquitada, passa a assediá-la com visitas
ao seu apartamento. Ele diz a Malu que ela caiu no “conto da criança” e que a mãe
provavelmente não aparecerá mais. Eunice surge no final da história, quando
Malu horrorizada com a hipótese de entregar o bebê a uma instituição de
caridade com poucos recursos tinha decidido adotá-lo. A empregada conta
que passou fome, dormiu na rua e foi presa. Para ser solta, teve que se submeter
ao abuso sexual do delegado. Eunice parte com o bebê para morar com a irmã.
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Trata-se de um dos poucos episódios de Malu Mulher onde há menos ênfase
na subjetividade da protagonista diante das situações cotidianas e mais nos
problemas produzidos pela desigualdade social. Ainda que em toda a série haja
algum tipo de reflexão sobre os problemas da sociedade brasileira - e para isso os
autores usam o trabalho de Malu como socióloga -, nesse episódio a pobreza, o
abandono, a falta de assistência do poder público, a maternidade solitária, a
criança abandonada, a violência nas instituições carcerárias são os elementos
centrais da narrativa.
o episódio Ainda não é Hora, de Euclydes Marinho, tem como chave
narrativa o aborto. Jô, filha de Seu Moacir, porteiro do prédio de Malu, está
grávida de um filho de Jorginho, de família abastada moradora do prédio. A
diferença de nível social entre o rapaz e a moça desagrada às duas famílias. Além
disso, Seu Moacir é um homem muito conservador, obcecado pela ideia da
virgindade até o casamento. quer fazer o aborto porque acha prematuro ela ser
mãe e Jorginho pai, e por temer a reação de Seu Moacir. Malu tenta dissuadi-la,
mas ela se mantém firme. A socióloga leva a jovem a seu ginecologista, que além
de negar-se a fazer o aborto por questões éticas e religiosas, alerta a moça para os
possíveis perigos. Disposta a correr o risco, Jô, acompanhada de Malu, vai até
uma clínica clandestina. O médico tem que aplicar uma dose extra de anestésico e
fica mais tempo inconsciente do que o esperado. Malu questiona o médico
quanto aos procedimentos e o acusa de estar cometendo um erro e uma
ilegalidade. Este, por sua vez, acusa-a de conivente e hipócrita. Malu leva Jô para
casa, mas a moça continua sentindo-se mal. É cuidada por Elisa e por ela, que
chama seu médico, o namorado (que fica sabendo do aborto após a
consumação) e Seu Moacir. Ao saber que a filha perdera a virgindade e fizera um
aborto, pai e filha têm uma briga violenta. acaba se recuperando e decide
procurá-lo para tentar a reconciliação.
O tema do aborto é tratado de forma extremamente objetiva. A oposição
entre perda da virgindade/aborto x gravidez precoce é tratada com clareza e põe a
discussão num eixo social e médico em contraposição ao moralista e/ou religioso.
A posição moralista é assumida por Seu Moacir, pai de Jô; a religiosa, pelo
ginecologista de Malu, Dr. Pompeu. É claro que esse episódio sofreu muitos
vetos da Censura Federal com a acusação de fazer apologia ao aborto”, de que
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“se propõe a eliminar o tabu da virgindade”, de “patentear que os valores morais
estão ultrapassados, porém, curiosamente, o material que foi ao ar é muito
semelhante ao script original. Talvez tenha sido a única vez na televisão brasileira
que o aborto foi tratado sob os mais diversos ângulos e o problema explicitado sob
diferentes abordagens. Mostra, inclusive, uma clínica de aborto com detalhes
sobre o funcionamento e os procedimentos da cirurgia.
244
Malu Mulher pode ser considerada uma estrutura narrativa semelhante aos
seriados norte-americanos, onde cada episódio conta uma história completa, que
se encerra, mas constrói, gradativamente, sem linearidade, um arco narrativo que
termina ao final de dois anos. O uso de flashbacks, a existência de um cleo fixo
de personagens (além de Malu, Pedro Henrique e Elisa, há os pais da protagonista,
Elza e Gabriel) que aparecem várias vezes na trama, o apartamento de Malu e
Elisa, cenário presente em todos os episódios, ajudam a construir o conjunto da
história. A narrativa, em geral, gira em torno da protagonista principal, com seus
dramas femininos: casamento, separação, relacionamento com a filha adolescente
e com os pais, solidão, novos casos amorosos, homossexualismo, envelhecimento,
menopausa, dificuldades no mercado de trabalho, assédio sexual. Porém,
episódios em que Malu assume um papel de comentadora do drama de outras
mulheres (essa posição de „narradora‟ é favorecida pela sua profissão de
socióloga), como os três últimos que tratam de violência doméstica, maternidade
solitária nas camadas menos favorecidas, gravidez precoce e aborto. Alguns temas
se repetem ao longo de todo o seriado, como a autonomia feminina, o prazer
sexual, a independência econômica, o preconceito em relação à mulher
independente do marido e os direitos da mulher.
o predomínio de uma representação realista, bem naturalista, com falas
que adquirem um tom improvisado e momentos de silêncio que se revezam com
outros de humor. Essa representação naturalista às vezes se torna excessiva e a
protagonista passa a dar “lições de vida e comportamento” aos demais
personagens. Essa postura pedagógica ganha o primeiro plano da narrativa e Malu
244
Heloisa Buarque de Almeida observa que o seriado Mulher, exibido quase 20 anos depois de
Malu Mulher e que tratou de vários casos de aborto, abordou o tema com menos ênfase na questão
da liberação. Em Páginas da Vida, recente novela do autor Manoel Carlos (um dos principais
autores de Malu Mulher), a posição é oposta: as vilãs fizeram abortos e as mocinhas jamais.
ALMEIDA, H. B. de., Malu Mulher e o Feminismo dos Anos 1970 na TV Globo, passim.
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se torna uma feminista estereotipada. Após o desquite, ela conversa sobre sua
situação com todo mundo que cruza seu caminho e chega ao limite de sair de casa,
parar na banca de jornal e falar sobre o assunto com o jornaleiro.
Apesar de haver um predomínio do realismo e naturalismo, tanto na
abordagem das temáticas, quanto na encenação, o melodrama pontua fortemente
as histórias. A moral melodramática de que fala Peter Brooks, em que o Bem
enfrenta o Mal, a virtude da heroína derrotando a maldade do vilão, está presente
em vários momentos: quando é espancada por Pedro Henrique e decide separar-se
diante de um marido perplexo; ou quando termina a relação com o
namorado/chefe que se recusa a defender a amiga que sofreu assédio sexual; ou
quando enfrenta o marido da vizinha que sofre agressões e afirma que vai
denunciá-lo à Justiça. O excesso melodramático também se manifesta em gestos
arrebatadores (os tapas na cara, espancamentos e gritos, as mãos crispadas de
Malu quando atinge orgasmo em uma relação sexual) e em muitas lágrimas. Malu
chora ao se separar do marido, ao constatar sua solidão quando termina o namoro,
ao se emocionar com a filha que ficou menstruada, quando se conta de que o
bebê deixado pela empregada teque ser entregue ao Juizado de Menores. Esse
tom lacrimoso é reforçado pela característica romântica, sonhadora e idealista de
Malu (acredito que a imagem de Regina Duarte como “namoradinha do Brasil”
tenha influenciado nessa representação), em contraposição ao ex-marido Pedro
Henrique, por ela acusado de materialista e insensível.
Essa oscilação entre realismo/naturalismo e melodrama coincide com as
representações femininas que se revelam no seriado: quando Malu adota uma
postura mais feminista, com ideias progressistas sobre a mulher, seu tom é mais
realista; quando se vê envolvida afetivamente com alguém, vive situações de
perda e abandono, quando se depara com sentimentos contraditórios e
inseguranças, assume um tom melodramático. De certa forma, Malu, nesses dois
momentos (a princípio antagônicos) lida com dois tipos ideais de mulher: a
dependente, frágil, sonhadora, romântica e sedutora; e a independente, consciente
dos seus direitos, autossuficiente, pragmática e libertária.
Na própria abertura do seriado esses dois tipos se enfrentam: com a melodia
instrumental da música Começar de Novo, aparecem diversos takes de Malu que
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revezam essas duas imagens ela batendo à máquina numa escrivaninha; depois,
sentada, maquiada e passando batom vermelho nos lábios; em seguida ao telefone
como se estivesse trabalhando, ou roendo as unhas preocupada e ansiosa; consulta
a agenda e caminha com a bolsa procurando algo, enfim, a Malu “frágil” e a Malu
“transgressora”. Ou seja: a protagonista assume posturas feministas e libertárias,
mas mantém também visões de mundo pautadas por princípios mais tradicionais,
como o de associar o prazer sexual ao amor ou a feminilidade à maternidade.
O happy end, uma característica das narrativas melodramáticas, em Malu
Mulher nem sempre traduz a ideia de felicidade que o nome indica. No primeiro
episódio, Acabou-se o que era Doce, a separação é o final feliz; em Infidelidade,
termina com Malu deixando o namorado por quem está apaixonada porque ele
não tem coragem de se separar da mulher; em Antes dos 30, Depois dos 40, o final
é marcado pela constatação de que ela não tem como retomar o casamento com
Pedro Henrique; e Legítima Defesa da Honra e outras Loucuras encerra-se com
Malu afirmando que vai denunciar à Justiça o marido violento. Entretanto, se não
há uma relação direta com a ideia de “final feliz” há uma clara insinuação otimista
de que „no fim, tudo acaba bem‟.
6.2. Mulher
O seriado Mulher, apresentado em 1998 e 1999, aborda o cotidiano de duas
médicas ginecologistas e obstetras, Martha Corrêa Lopes e Cristina Brandão, que,
apesar de pertencerem a gerações diferentes, são profissionais extremamente
éticas e abnegadas. As duas movem-se pelo mesmo ideário hipocrático, baseado
nas noções de vocação e sacrifício (típicos de carreiras que exigem doação e
cuidados com o ser humano tais como a medicina, o magistério, o sacerdócio), e
se dedicam com paixão ao trabalho na clínica particular Machado de Alencar, de
classe média alta, especializada no atendimento a mulheres. Por decisão das duas
médicas e contrariando o desejo do dono da clínica, Afraninho, também é mantido
um ambulatório dedicado a mulheres de baixa renda. As duas médicas, com a
missão de salvar e proteger vidas, muitas vezes privilegiam o trabalho em
detrimento da vida pessoal. Esse será um conflito permanente nos episódios de
Mulher: conciliar vida profissional e pessoal, dilema particularmente dramático
para o gênero feminino em geral.
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Através dos dramas pessoais e profissionais das duas médicas e dos
pacientes da clínica e do ambulatório, Mulher trata de questões éticas e médicas
que envolvem o universo feminino, como contracepção e reprodução assistida,
gravidez (e tudo que a envolve como exames pré-natais, formas de parto,
amamentação), aborto, frigidez, câncer de mama, masturbação, esterilidade,
estupro, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, entre outros. Em geral,
cada episódio lida com mais de um desses temas e, muitas vezes, surgem questões
que extrapolam os universos feminino e médico como, por exemplo, relações
entre pais e filhos, violência urbana, adultério, desigualdade social, desemprego,
direitos trabalhistas.
O seriado foi exibido, semanalmente, de abril de 1998 a dezembro de 1999,
na faixa de horário das 22 horas, quando são permitidos programas com temáticas
mais ousadas. Composto por tramas que se encerram em um episódio, Mulher
apresentou no seu segundo ano algumas histórias que se desenvolveram em dois,
sendo que o primeiro terminava num clímax e construía um gancho para que a
narrativa fosse retomada no seguinte. um núcleo fixo, formado pelos
profissionais da clínica, que inclui, além de Martha, Cris e Afraninho, os
enfermeiros Telma e Amauri e os médicos Anair, Samuel e João Pedro (este
também namorado da Dra. Cris). Também fazem parte do núcleo fixo
personagens ligados à vida privada das protagonistas: Otávio, marido de Martha;
Shirley, colega de apartamento de Cris; André, seu namorado; Claudinha, filha de
João Pedro; e Carlos, filho de Martha e Otávio, técnico de informática da clínica,
e que aparece até a metade do seriado. A clínica Machado de Alencar nasceu de
uma experiência revolucionária na época, feita pelo pai de Afraninho, médico
renomado e professor de Martha. A proposta era fazer um hospital para mulheres,
que funcionasse não só como maternidade, mas destinado também ao atendimento
de problemas ligados à saúde feminina. Afraninho não herdou o talento do pai e,
embora seja uma figura querida pelos funcionários, suas ações são norteadas pelo
interesse de ganhar dinheiro e promover a clínica.
Em cada episódio personagens específicos, tanto ligados às rotinas da
clínica quanto ao dia a dia da vida pessoal dos personagens fixos. Observa-se,
ainda, a existência de uma estrutura narrativa complexa, envolvendo duas
temporalidades que se revezam ao longo dos 60 programas. Uma linear, formada
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pelas tramas que se desenvolvem com os personagens centrais e os seus
agregados, e evoluem durante os quase dois anos do seriado. Outra, uma estrutura
narrativa cíclica, contada a partir dos conflitos das pacientes que aparecem na
clínica e no ambulatório, e que chegam ao fim no mesmo episódio (ou, no
máximo, no seguinte como aconteceu em alguns casos no segundo ano de
exibição). A história, em geral, é formada por uma trama central envolvendo
personagens específicos e que lhe o título. E duas secundárias: uma ligada a
esses personagens, mas não tão fortes quanto os da trama principal; a segunda
refere-se ao núcleo fixo do programa, especialmente às duas protagonistas.
Existem ainda uma ou várias histórias periféricas que unem os personagens fixos
e ajudam a evoluir suas trajetórias pessoais. Todas essas narrativas se entrelaçam
mesmo que receba maior destaque a que tulo ao episódio. As demais se
revezam nos 45 minutos do programa, de forma que ao final as tramas específicas
se resolvam e as que tratam do núcleo central evoluam.
O seriado Mulher foi concebido a partir de uma ideia do Boni (então vice-
presidente de operações da TV Globo), inspirado nos seriados médicos
americanos como, ER (Emmergency-Room Doctors, no Brasil chamado de
Plantão Médico) ou Chicago Hope, ambos produções modernas inspiradas em Dr.
Kildare, sucesso da década de 1960, protagonizado por Richard Chamberlain.
Pode-se dizer que ele antecede uma nova onda de seriados médicos na televisão,
nos anos 2000, como os atuais House e Gray‟s Anatomy. Desenvolvido por
Daniel Filho, Antonio Calmon e Elizabeth Jhin, o seriado contou com a assessoria
da roteirista americana Lynn Mammet e a consultoria de médicos de diversas
especialidades, psicólogos e psicanalistas, e teve como fonte para os roteiros os
livros Mulher, o Negro do Mundo, de Malcolm Montgomery, Menstruação, a
Sangria Inútil, de Eusimar Coutinho, e para Mulheres, de Sonia Hirch.
Diversos autores produziram roteiros para Mulher e dos 60 episódios exibidos
foram analisados 15 escritos por Álvaro Ramos, Euclydes Marinho, Maria Helena
Nascimento, Flávia Lins e Silva, Doc Comparato (que também é médico), Glória
Perez, Antonio Calmon, Rosane Lima e a própria Lynn Mammet; com direção de
Daniel Filho, José Alvarenga Jr. (diretor da maior parte dos episódios), Mário
Márcio Bandarra, Cininha de Paula, César Rodrigues, José Carlos Pieri e Ricardo
Favilla.
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Esses episódios foram escolhidos por estarem disponíveis em DVD no
mercado (e, portanto, acessíveis ao público) e, principalmente, por serem
representativos do ponto de vista da temática e do conjunto de autores de todo o
seriado. Também analisei os scripts de 10 episódios relativos ao segundo ano de
exibição e que constam do DVD. Os outros, exibidos no primeiro ano da série,
não foram arquivados pela emissora.
O primeiro ano foi todo gravado usando a linguagem cinematográfica,
adotando a película e, consequentemente, usando câmeras de cinema e processo
de filmagem diferente do utilizado na televisão. A adoção de iluminação apurada
para uma fotografia preocupada com os detalhes, o uso e abuso de primeiros
planos e uma edição menos picotada, com cenas mais longas, impuseram um
ritmo e definiram um padrão estético diferenciados para o seriado Mulher. Os
episódios do segundo ano, em função dos altos custos do uso da tecnologia de
cinema, foram gravados com câmeras de vídeo digitais e o último episódio, com
câmeras de TV em alta definição (HDTV). A mudança de tecnologia não alterou a
linguagem estética do programa, que continuou assemelhando-se ao cinema no
que se refere ao uso de iluminação cuidadosa, à utilização de primeiros planos e
ao ritmo de edição menos fragmentado.
A preocupação com a tecnologia não foi apenas no aspecto estético. Na
própria conceituação do seriado Mulher uma nítida valorização do saber
médico associado ao desenvolvimento tecnológico. A clínica Machado de Alencar
dispõe dos mais modernos aparelhos médicos e permanente referência à
necessidade de adquirir novos equipamentos para o ambulatório. À ideia de
modernidade soma-se a busca por padrões humanistas no tratamento médico.
Martha e Cris enfrentam diversas situações em que a “missão social” da profissão
é enfatizada exigindo que, mais do que a tecnologia, usem a sensibilidade e a
psicologia. Isso se traduz em uma nítida defesa do parto natural em um momento
em que pesquisas e a própria mídia constatavam o crescimento de partos cesáreos
no país.
245
ainda várias práticas consideradas naturais ou alternativas que
são incentivadas pelo seriado: “respiração cachorrinho durante o trabalho de
245
Cf. ALMEIDA, H. B. de, Educação do Corpo: O Seriado Mulher e a Promoção de Mensagens
Médico-Preventivas na Tela da Globo, passim.
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parto, presença do pai no ato cirúrgico ao lado da mãe, entrega do bebê a ela logo
após o nascimento, prática de fisioterapia em pacientes em estado de coma,
acompanhamento psiquiátrico de pessoas em depressão, enfim, procedimentos
não incorporados a priori às condutas médicas naqueles anos.
O episódio de estreia da série, O Princípio de Tudo, escrito por Álvaro
Ramos, Euclydes Marinho e Lynn Mammet, relata o encontro entre a renomada
médica Martha (interpretada pela atriz Eva Wilma) e a jovem médica Cris
(interpretada por Patrícia Pillar) durante um voo para o Rio de Janeiro. No avião,
uma jovem grávida de oito meses sente-se mal e as duas médicas improvisam um
parto de emergência. Impressionada com a atuação de Cris no atendimento,
Martha a convida para trabalhar na Clínica. Cris aceita e as duas passam a
compartilhar os dramas e dificuldades do tratamento de seus pacientes e também
de suas vidas pessoais.
nessa primeira história fica clara a diferença entre dois modelos de
médicas: Martha é a figura da mulher bem sucedida na vida profissional, dedicada
ao trabalho e respeitada por sua competência. Pelo sucesso, paga um preço: vive a
maior parte do tempo distante do marido Otávio e do filho Carlos, e quase não
tem a alegria de ver os netos crescerem. Ela representa a sensatez típica da mulher
madura, médica sábia e experiente que construiu sua reputação baseada em um
comportamento ético sólido. Cris é uma jovem impetuosa, entusiasmada,
questionadora dos métodos tradicionais e sempre propondo práticas inovadoras
nos tratamentos. Embora também tenha a ética como norte para o exercício da
profissão, tem pontos de vista que às vezes entram em conflito com os da Dra.
Martha. É como se as duas viessem de escolas diferentes da prática médica, o que
faz com que a relação entre elas seja ao mesmo tempo de contraste e de
complementação: a mentora ajudando a relativizar a impulsividade da pupila, e a
pupila estimulando-a a questionar suas convicções.
Além do parto no avião, as médicas participam do conflito familiar que
envolve a jovem e, o pai da criança e a avó paterna, socialite que questiona a
paternidade do filho. O rapaz acaba enfrentando a mãe, assume a criança e decide
construir sua família. Também se desenvolve a história de uma das recepcionistas
da clínica, que sofre um estupro ao entrar no carro. Martha ajuda a jovem a lidar
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com o trauma do abuso e com a gravidez resultante da violência. Nesse momento,
Martha e Cris têm uma discussão ética sobre a possibilidade de a moça fazer um
aborto. Martha é contra, por princípios. Cris defende o direito de uma vítima de
abuso sexual se recusar a ter o filho. No final, a moça tem um aborto espontâneo.
Diferentemente do episódio sobre aborto tratado em Malu Mulher, em que
uma jovem engravida do namorado, não se sente preparada para a maternidade e
faz um aborto com a ajuda da protagonista, em Mulher a saída encontrada pelos
roteiristas para enfrentar o tema foi o aborto espontâneo. É curioso pensar que
Malu Mulher deu um tratamento diferenciado ao tema ainda em plena ditadura,
quando a Censura e parcelas significativas da sociedade obrigavam a adoção de
comportamentos mais conservadores. Já Mulher foi ao ar vinte anos depois, com a
democracia consolidada e uma sociedade aparentemente mais aberta a discussões
sobre tabus e preconceitos.
Ainda em O Princípio de Tudo a relação conflituosa de Martha com o
marido e o filho é tratada. Ela e Otávio são apaixonados um pelo outro, mas ele,
mesmo com afeto e paciência, se ressente da ausência da mulher durante os 40
anos de casamento e da relutância dela em abandonar sua posição na clínica e a
carreira, para se dedicar mais à vida conjugal. Ao longo de todo o seriado, esse
conflito vai causando danos cada vez maiores à relação. Com o filho, o problema
é parecido. Carlos não esconde a mágoa de ter sido criado praticamente pelo pai.
Viveu um casamento frustrado com uma mulher também médica com quem teve
dois filhos (que praticamente não aparecem). O relacionamento terminou porque
ela também se dedicava excessivamente à carreira e Carlos voltou a morar com os
pais. Os dilemas vida pública x vida privada, trabalho x maternidade e casamento,
mundo objetivo x mundo subjetivo são temas centrais vividos pelas protagonistas
(Cris vivenciará situações semelhantes) o que faz pensar em Simmel quando
vislumbra a possibilidade de a cultura feminina integrar esses dois planos. Talvez
a integração por ele sugerida seja possível na medida em que os próprios lugares
sociais do feminino e do masculino sejam repensados, isto é, as associações
clássicas do feminino com o mundo doméstico e da família, e do masculino com o
mundo público e do trabalho sejam redefinidas. Não para trocar os papéis como
a médica Martha e seu marido Otávio , mas para que sejam repensadas as formas
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pelas quais mulher e homem se movem nos ltiplos mundos sociais em que
vivem.
O segundo episódio analisado, Escolhas, escrito por Maria Helena
Nascimento, tem como narrativa central a história de uma mulher, casada com um
jornalista renomado, que tem uma filha com Síndrome de Down. A criança é
rejeitada pelo marido e adorada pelo professor de natação, com quem sua mãe tem
um relacionamento extraconjugal. Quando o marido descobre que a mulher espera
um filho de outro homem, exige que ela faça um aborto, preocupado
principalmente com a possibilidade de um escândalo atrapalhar seus planos de
uma carreira na política. Por fim, a mulher decide abandonar o marido, viver com
o professor de natação junto com a filha e ter um segundo filho. Os temores em
relação ao eventual nascimento de uma outra criança deficiente também são tema
de discussão com a Dra. Martha, ginecologista e obstetra da moça. Paralelamente,
Cris acompanha o caso de uma senhora, viúva, que alega não ter vida sexual ativa,
embora tenha contraído doença venérea. Após a paciente negar diversas vezes ter
tido relações sexuais recentemente, Dra. Cris a convence a levar seu parceiro à
clínica e instrui o casal sobre cuidados para evitar doenças sexualmente
transmissíveis. A médica ainda vive um drama pessoal: inicia um caso amoroso
com um colega do ambulatório, começa a se entusiasmar com o relacionamento,
mas termina quando ele revela que é casado.
As temáticas abordadas aborto, maternidade, deficiência física e mental,
adultério recebem tratamento tanto médico quanto humanista. A jovem decide
manter a gravidez a despeito da insegurança sobre a saúde do bebê que vai nascer,
após constatar que a filha com Síndrome de Down, uma criança inteligente,
solidária e feliz significava muito mais um prêmio do que um peso. As conversas
com Martha têm um tom pedagógico, porque não esclarecem sobre a própria
doença como também sobre as probabilidades de ocorrer em outros filhos. Da
mesma forma, a Dra. Cris, ao explicar ao casal idoso as causas e o tratamento de
doenças sexualmente transmissíveis, assume também um ar educativo. E, ainda
que o vocabulário técnico característico do saber médico seja utilizado, a ênfase é
na valorização do ser humano, na compreensão dos conflitos e dilemas e na busca
de equilíbrio emocional. A noção de que os conhecimentos objetivos da medicina
devem estar associados à percepção subjetiva dos aspectos psicológicos, sugerida
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por Simmel no final do século XIX e início do século XX, marca a atitude das
médicas em Mulher.
Em Desejos Incontroláveis, de Euclydes Marinho, o tema homossexualismo
ocupa o primeiro plano do episódio. A trama envolve duas lésbicas uma
arquiteta, na casa dos 30 anos, e uma jovem de 22 - que procuram a clínica para
ter um filho. Na verdade, a mulher mais jovem deseja ser mãe e a outra aceita a
decisão para manter a relação. O doador do sêmen é amigo das duas, colega de
trabalho da arquiteta, da mesma faixa etária que a mais jovem e que se assume
como gay. A Dra. Martha tem dúvidas quanto a aceitar ou não o tratamento e
encaminha-as para a Dra. Cris que, coincidentemente, é vizinha das duas jovens.
Durante o processo de discussão para a fertilização, o casal de lésbicas entra em
crise e o relacionamento entre o amigo e a mulher mais jovem vai se estreitando.
Os dois se descobrem apaixonados e decidem ter o filho juntos. A relação entre as
duas homossexuais se rompe. Paralelamente, Shirley, amiga com quem Cris
divide o apartamento, tem uma relação sexual com o namorado André e não usa
preservativo. Quando ele, em pânico, conta que teria contraído Aids da ex-mulher,
ela se apavora com medo de estar contaminada. Com a ajuda de Cris, consegue
convencer o parceiro a fazer o teste de HIV e descobre-se que nenhum dos dois
era portador do vírus.
A história lida com temas ainda considerados polêmicos na sociedade
brasileira, como homossexualismo e Aids. O caso das lésbicas recebeu um
tratamento convencional no desenlace da história e houve uma série de discussões
entre as personagens (as lésbicas, as médicas, a mãe de uma delas, o amigo gay,
funcionários da clínica) sobre a opção homossexual. Curiosamente, a tônica que
predominou não foi o preconceito contra os homossexuais, abordagem tradicional
sobre o tema nas ficções seriadas, mas sim a relação carinhosa e de cumplicidade
da díade, o ciúme de uma delas revelando a relação possessiva entre pares, o
desejo da maternidade entre casais homossexuais e a possibilidade de mudança da
opção homossexual para a heterossexual. A conversa entre as duas, diferente do
que aconteceu no episódio que tratou do tema em Malu Mulher, explicitou o
homossexualismo feminino na fala das personagens: “Vo precisa de uma
mulher madura, que saiba o que quer da vida...”, fala a arquiteta para a mais
jovem. Ou na separação, quando ela diz: “O nosso casamento acabou. Você não
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me ama mais!” o tema da Aids é tratado de forma bem tradicional, abusa do
didatismo e dos clichês, e usa a noção de desvio para tratar de comportamentos
que não se enquadram com as normas sociais predominantes. Tanto a Dra. Martha
quanto a Dra Cris cobram de Shirley, em tom professoral e acusatório, o fato dela
ter tido relações sexuais sem preservativo; André e Shirley discutem por não
terem usado a camisinha e ele afirma “não sou gay nem drogado”, uma concepção
difundida pela dia e pelo discurso médico nos primeiros anos de descoberta da
doença. Tanto Shirley quanto André, mesmo considerando que podem estar
contaminados, resistem a submeter-se ao exame de HIV e só se convencem
quando Cris decide também fazê-lo e esclarece em que situações quaisquer
pessoas estão vulneráveis ao vírus.
O episódio Casa de Ferreiro, escrito por Daniel Filho, Álvaro Ramos e
Lynn Mammet, gira em torno do drama vivido pela Dra. Martha que descobre
estar com câncer de mama. Cris assume o tratamento da chefe que, por sua vez,
tem que aprender a lidar com a doença e com as reações de todos ao redor,
inclusive de uma paciente da clínica, vítima do mesmo mal, em estado terminal.
Após a cirurgia em que tem parte do seio mutilado e, em seguida, reconstituído
por cirurgia plástica, Martha se afasta temporariamente da clínica e recomenda
que Cris a substitua. Nesse episódio, o filho de Martha, Carlos, que estava
viajando para escapar da ameaça de um bandido que invadira a clínica e que ele
enfrentara em episódio anterior, reaparece para rever sua mãe. A principal
discussão que se coloca aqui é sobre a centralidade do corpo para a identidade
feminina. A repentina descoberta da doença especialmente numa parte do corpo,
os seios, considerada ícone de feminilidade faz Martha pensar como, ao entrar
de cabeça no mundo do trabalho, abandonou sua vida privada, sua família, seus
atributos femininos, seu corpo e sua saúde. Mais uma vez o que está em jogo é a
dificuldade de conciliar o mundo público com o privado, o mundo objetivo do
trabalho com suas exigências de performance, reconhecimento e prestígio, e o
mundo subjetivo do indivíduo com suas fragilidades e percalços. O duplo papel
assumido pelas mulheres pós-década de 1960, em que às atribuições de esposa,
mãe e mulher foi acrescentada a de profissional, trouxe para o universo feminino
o desafio de se mover em mundos muitas vezes antagônicos. À impessoalidade e
ao pragmatismo da vida profissional se opõe a sensibilidade, o prazer, o afeto. A
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atitude de cumplicidade e apoio de Otávio em relação à doença da esposa, e o
retorno do filho para estar ao lado da mãe na operação, revelam o lugar da família
como suporte da vida do sujeito.
Em A Hora da Verdade, de autoria de Álvaro Ramos e Lynn Mammet, três
histórias se cruzam. Na primeira, a central, um casal aparece na clínica com
dificuldades para engravidar. Após uma cirurgia na jovem para tentar recuperar a
fecundidade, Dra. Martha constata que ela teve uma infecção nas trompas e no
ovário decorrente de violência sexual na infância. Conversando com a médica, a
jovem confessa que repetidas vezes sofreu abuso sexual do padrasto quando era
criança, o que terminou com a morte dele, supostamente assassinado pela mãe. Na
realidade, a própria jovem matou o padrasto, mas sua mãe assumiu e acabou
falecendo na cadeia sem nunca mais ver a filha. Ao saber que não poderá
engravidar, ela tenta suicídio. O marido, sensibilizado pelo drama da esposa, lhe
dá apoio e lhe propõe adotar uma criança.
Em paralelo, duas histórias se desenvolvem: a primeira é relativa à própria
Dra. Martha, que enfrenta os efeitos colaterais da quimioterapia e da radioterapia.
A médica continua sua vida profissional, mas tem momentos de profundo mal-
estar e depressão, o que se reflete na sua conduta profissional e familiar: Martha é
questionada pela direção do hospital por ter encaminhado a paciente diretamente
para uma cirurgia e não para o setor de psiquiatria, e seu relacionamento com
Otávio fica extremamente abalado pelo seu forte sentimento de rejeição, suas
discussões e choros compulsivos. A terceira história que compõe o episódio se
refere aos transtornos emocionais de Shirley decorrentes de tensão pré-menstrual.
Depois de várias crises de raiva inclusive durante uma audiência em que atuava
como advogada da clínica contra uma companhia de seguros ela se deixa
convencer por Cris a levar a Tensão Pré-Menstrual (TPM) a sério e fazer a
reposição hormonal.
O episódio trata de alguns temas sensíveis à mulher: a ideia da maternidade
como essência do feminino fica evidente no desespero da jovem ao constatar a
impossibilidade de ser mãe; as implicações emocionais de uma cirurgia de mama
que leva à mutilação; e as dificuldades enfrentadas por mulheres que são vítimas
de tensão pré-menstrual. Por trás do verniz cômico das trapalhadas de Shirley sob
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domínio da TPM, seu drama esclarece a posição da mulher contemporânea frente
a uma doença considerada moderna. O tom realista e pedagógico é completamente
suplantado pelo drama e humor vividos pelos personagens, o que não significa
que as mensagens não sejam claras e plenamente assimiláveis.
Em Menino ou Menina, escrito por Glória Perez, o tema central é um caso
de intersexo que envolve uma modelo de fama internacional, bonita e sensual. A
jovem procura a Dra. Martha porque nunca menstruou e deseja se casar com o
namorado e engravidar. Após uma série de exames e a reunião de uma equipe
médica formada por diversos especialistas, fica constatada a má-formação: em vez
de útero a jovem possui testículos atrofiados. O procedimento padrão é a retirada
dos testículos para evitar que se transformem em tumor maligno. Ao se
prepararem para dar a notícia para a jovem, Dra. Martha decide não contar a
verdade, sensibilizada pelo trauma que isso poderia representar. A decisão
provoca discussões éticas entre ela e a Dra. Cris, que defende que o paciente
sempre conheça toda a verdade sobre o caso. Mas a experiência de Martha fala
mais alto e comunica à jovem que precisará retirar o útero. Meses depois, a jovem
e o namorado adotam uma criança e formam um casal feliz.
Outro caso médico, secundário em relação ao primeiro, mobiliza a Dra.
Cris: uma paciente de meia-idade que entra na menopausa tem dificuldades de
enfrentar sua nova condição feminina. Ao mesmo tempo, Martha se vê tomada
por ciúmes do relacionamento de Otávio com uma jovem que ele conhecera em
um passeio de barco. Pela primeira vez no seriado, a médica demonstra receio de
que sua vida amorosa possa estar sendo abalada pela profissão.
A narrativa tem um tom realista e educativo, mas o drama prevalece na
encenação. O culto ao corpo e à beleza é posto em evidência nas cenas e clipes da
modelo, que aparece em posições sensuais, e nos comentários de todos os
personagens da série sobre a beleza a da modelo e a perda da beleza pela
paciente que está na menopausa. Curiosamente, aqui a sensualidade da jovem vem
associada ao desejo de ser mãe. A oposição clássica entre maternidade e
sensualidade nesse caso é tratada com nuances: apesar de não ser completamente
desfeita na medida em que um impedimento biológico para a modelo tornar-se
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mãe, a oposição é abrandada, e mesmo eliminada, com a decisão dela e do
namorado de adotarem uma criança.
ainda momentos de reflexão sobre a representação da sexualidade no
mundo ocidental. Em conversa com Otávio durante o café da manhã sobre o caso
de intersexo ele observa que, de acordo com o saber institucionalizado, o sexo da
criança é definido na fecundação, ao que Martha retruca, usando não
argumentos médicos, mas também antropológicos. Vale à pena reproduzir o
diálogo:
Otávio: Tem que ser homem ou mulher. Não pode haver meio-termo.
Marta: É que você é um cidadão do mundo ocidental, meu querido. Para nós,
ocidentais, não existem essas situações intermediárias nessas questões de sexo.
Para nós, macho e fêmea são elementos opostos, como dia e noite, preto e branco,
norte e sul...Só que a natureza não é bem assim, meu amor.
Otávio: Mas como não é? Quando o embrião surge, o sexo está definido. É XX
ou XY, mulher ou homem. A gente aprende isso na escola, nas aulas de biologia.
Martha: O que não quer dizer que o embrião XX vai se tornar uma perfeita mulher,
nem que o embrião XY vai se tornar um perfeito homem.
Otávio: “Sim, mas quando a criança nasce já se pode saber se o sexo é perfeito....”
Martha: Ah! Se é aparentemente perfeito! Porque o que acontece é que não é o
órgão genital o único critério que define o sexo de uma pessoa. Existem pelo
menos cinco ou seis critérios que definem a que sexo essa pessoa pertence.
Otávio: Cinco ou seis, Martha?! Você está brincando!
Martha: Não, falando sério. Existe o sexo genético, o sexo psicossomático, o
sexo genital...existem os caracteres sexuais secundários como mama, barba...e por
aí vai. Não é tão simples como parece.
A despeito da hegemonia do conhecimento médico sobre o senso comum,
fica evidente no diálogo a preocupação dos autores em esclarecer o tema de forma
didática. Porém, a dramaturgia logo recupera o primeiro plano da narrativa,
quando Otávio comenta a conversa que teve com a jovem que conheceu no barco
e desperta o ciúme em Martha. No diálogo entre Cris e Shirley sobre o caso,
enquanto preparam o jantar, a explicação pedagógica fica em segundo plano para
dar vez ao humor:
Cris: A Martha está reunindo uma equipe multidisciplinar para cuidar dos casos de
intersexo, um geneticista, um endocrinologista...Vai todo mundo lá. É a primeira
vez que eu participo.
Shirley: O que é intersexo? Hermafrodita, é isso?
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Cris: Hermafrodita é um tipo de intersexo. Mas têm outros.
Shirley: Pera aí! Você quer dizer que um homem, com tudo certinho em cima, pode
não ser um homem??? E uma mulher que eu vejo nua, igual a mim, pode não ser
uma mulher???
Cris: Pode não ser completamente um homem ou completamente uma mulher,
entendeu?
Shirley sai da cozinha e deixa o bife fritando na frigideira.
Shirley: Você quer dizer que a Dra. Martha tem uma paciente que...
Cris: Não é completamente mulher! Shirley!!!!
Cris corre para a cozinha e constata que o bife que Shirley fritava queimou.
Shirley: Também, como é que você fala assim de uma coisa dessas! sendo
médica pra ouvir isso com a maior tranqüilidade!
Cris: Ninguém fala isso com a maior tranquilidade não. Nem na clínica. Você
pode ver aquele medo, a cara de insegurança das pessoas. Fica aquele quarto na
penumbra, todo mundo falando baixinho, ninguém examina....É assim mesmo.
No último episódio do primeiro ano da série, Decisão Final, escrito por
Álvaro Ramos, Otávio combina com Martha de saírem de viagem no veleiro, mas
a médica não pode acompanhá-lo devido a um caso complicado que surge na
clínica: uma grávida de sétuplos. O marido viaja sozinho. Martha sofre com a
partida de Otávio, mas seu filho Carlos reaparece para fazer companhia à mãe e
inicia um romance com a Dra. Cris. Para assegurar a vida da paciente e de pelo
menos alguns de seus bebês, as doutoras Martha e Cris concluem que precisam
remover alguns embriões que apresentam poucas chances de sobreviver. O casal,
muito religioso, resiste à decisão médica. Após muita discussão, eles decidem pela
remoção dos fetos. A mulher à luz duas crianças. Simultâneo a essa trama,
Afraninho sonda Martha sobre a competência da Dra. Cris para substituí-la na sua
ausência. A médica demonstra indecisão e Cris acusa-a de não querer seu
crescimento profissional por medo de ser esquecida pela equipe.
Cris também vive uma decepção amorosa: após uma noite de amor com
Carlos, ele decide acabar a relação por temer novo envolvimento com uma médica
que o levará a sofrer com as constantes ausências que a profissão exige. Alega que
tanto como homem quanto como filho já pagou alto preço por isso. Com a
resolução do caso da paciente grávida de sétuplos, Dra. Martha decide se afastar
da clínica por seis meses, deixa a direção aos cuidados da Dra. Cris e vai
encontrar Otávio na Itália. O episódio termina com o reencontro de Otávio e
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Martha, quando o casal repete o diálogo da novela Casarão: Martha pergunta
Demorei muito? e Otávio responde Quase nada. quarenta e uns poucos
anos, o que revela mais uma vez o diálogo intertextual entre diferentes ficções.
A história lida com o tema da maternidade a partir da inseminação artificial
e os cuidados necessários para evitar problemas que compliquem a gestação. O
excessivo número de embriões teria sido decorrência do erro da paciente em não
seguir estritamente os procedimentos médicos. O saber médico é novamente posto
em destaque diante da ignorância do senso comum. Sem dúvida, o seriado
Mulher legitima o conhecimento da medicina e seus avanços científicos, e
desqualifica as crenças populares e religiosas, a desinformação e o senso comum.
Observa-se que a conduta das médicas e enfermeiras, ainda que com ironia, é de
buscar conciliar o conhecimento médico com a subjetividade das emoções:
esclarecem os riscos para a saúde, mas têm cuidado em relação aos aspectos
idiossincráticos das pacientes. Isso fica claro na forma como Martha e Cris tentam
convencer o casal a permitir a retirada de parte dos embriões. Mesmo convictas
quanto ao melhor procedimento a ser adotado, elas assumem uma atitude de
respeito às convicções religiosas do casal.
O seriado retoma a dificuldade da mulher que trabalha em conciliar vida
privada e profissional. A viagem de Otávio sem Martha por ela ter que cuidar de
uma situação de emergência, a tristeza da médica com a ausência do marido
deixando-a sozinha, e a decisão de Carlos de não se envolver com a Dra. Cris por
temer repetir a sensação de abandono que viveu com a ex-mulher e a mãe, ambas
médicas, expressa a oposição entre mundo público, representado pelo trabalho, e
mundo privado, representado pela família. A fala de Otávio e Carlos ao longo de
vários episódios corrobora a visão tradicional de que a mulher que trabalha
abandona a família. É bem verdade que nem todas as profissões exigem a mesma
dedicação que a médica. Pode-se afirmar, contudo, que, hoje, boa parte das
carreiras seguidas por mulheres requerem dedicação se não igual, semelhante, tais
como as jornalísticas, executivas, policiais e motoristas.
O episódio que inaugura a segunda temporada de Mulher, A Cerimônia do
Adeus, de autoria de Maria Adelaide Amaral, tem como tema central mais uma
vez a maternidade pensada a partir de dois eixos: o nascimento e a morte de um
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filho. A trama principal desta vez envolve o núcleo central: Martha e Otávio
voltam da viagem de seis meses de barco e o dia da chegada coincide com o
acidente de carro em que Carlos morre. O desastre ocorre logo após ele decidir
pedir Cris em casamento e comunicar por telefone sua decisão aos pais. O corpo
de Carlos é encontrado pelo médico Dr. João Pedro, junto a uma carta e uma
aliança de noivado a serem entregues à jovem médica. Todos estão arrasados com
a morte do rapaz. Na clínica, um casal cuja mulher perdera um filho durante a
gestação devido a um erro médico inferniza a vida da Dra. Cris com a nova
gravidez de gêmeos. Ela consegue vencer a resistência do marido da paciente, que
tenta por diversas vezes obrigá-la a fazer uma cesariana ainda que os fetos não
estejam totalmente desenvolvidos. Mesmo com o desafio de fazer uma cirurgia
muito complicada, as duas crianças nascem de parto normal. No ambulatório, uma
paciente grávida sofre com dores fortes na barriga e é atendida pelo estagiário
recém-contratado por Afraninho. O rapaz ignora procedimentos básicos da
medicina e parte do pressuposto de que a mulher está parindo. Segue todas as
etapas que aprendeu na faculdade de atendimento a uma mulher em trabalho de
parto, mas quando o médico chega constata que ela está com gastrite, no quarto
mês de gravidez. Por último, a morte de Carlos deflagra uma crise entre Martha e
Otávio. Ela, desesperada com a perda do filho, se pune por ter sido uma mãe
ausente, sentimento reforçado pelos comentários do marido que ao se lembrar do
filho só faz referência aos momentos em que os dois estavam juntos sem a
presença dela. Martha decide se separar de Otávio e ele vai morar no barco.
A Cerimônia do Adeus aborda, com forte carga dramática, alguns temas
levantados nos episódios anteriores, mas com um tratamento diferenciado. No
primeiro ano, a relação das duas médicas Martha e Cris é de subordinação:
Martha é a „mestre‟ e Cris a pupila (isso mesmo quando Cris cuida do câncer de
mama de Martha). No segundo ano, as duas, especialmente em função da
fragilidade de Martha com a perda do filho e seu afastamento da direção da
clínica, são postas no mesmo nível. Além disso, os modelos ético-profissionais
das duas que antes variavam, tornam-se homogêneos: Martha, que era
conservadora e Cris mais questionadora quanto aos critérios médicos, assumem
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agora uma fala única. Contudo, ambas mantêm um atendimento associado ao
aspecto humano.
246
O segundo ponto a destacar é a defesa do parto natural. A ideia que
prevalece no seriado é a de que o parto normal deve ser sempre tentado e a
cesariana o último recurso. Almeida
247
observa que Mulher foi exibida em um
contexto de ampliação do debate público em torno do excesso de cesarianas no
país. Desde meados dos anos 1990, o Ministério da Saúde, com o apoio da
Organização Mundial da Saúde, Banco Mundial, ONGs, grupos feministas e
associações profissionais médicas, fazia uma campanha em defesa do parto
natural, estimulando inclusive a chamada “humanização” do parto
248
. Essa ênfase
fica clara no diálogo entre a Dra. Cris e o marido que insiste na cesariana, durante
a ultrassonografia da mulher:
Cris: Olha aí os dois bonitinhos....
Camila: Estão vivos, doutora?
Cris: Muito vivos...está tudo bem...
Gustavo: Então faça uma cesariana agora!
Cris (atônita): O quê?
Gustavo: A senhora me ouviu perfeitamente. Cesariana.
Cris: O senhor acha que eu sou uma louca? A cesariana agora, no caso da sua
mulher, é totalmente contraindicada!
Gustavo: Nem eu nem ela aguentamos mais tanta tensão!
Cris: Eu entendo a sua ansiedade, mas os bebês são muito pequenos!
Gustavo: Mas ainda estão vivos, doutora!
Cris olha-o irredutível.
246
Cf. NATANSOHN, G., Medicina, Gênero e Mídia: O Programa Mulher da TV Globo, p. 54.
247
Cf. ALMEIDA, H. B. de, Educação do Corpo: O Seriado Mulher e a Promoção de Mensagens
Médico-Preventivas na Tela da Globo, passim.
248
Almeida destaca: “Em 1996, o governo federal iniciou uma série de iniciativas: uma campanha
promovida pelo Conselho Federal de Medicina com o apoio do Ministério da Saúde, chamada
“Normal é natural”; medidas visando melhorar a assistência ao parto no SUS, inclusive o
pagamento de anestesia para parto normal no sistema; incentivo e regulamentação para criação de
Centros de Parto Normal; e o incentivo à capacitação de enfermeiras, obstetras e parteiras
tradicionais. Em 1996, a OMS havia lançado uma publicação de assistência ao parto natural em
vários países do mundo”. Ibid., p. 7.
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Gustavo: (nervoso) Nós vamos procurar outra clínica...
Cris: (firme e calma) Isso eu não posso impedir. Mas essa gravidez pode chegar a
termo e a cesariana seria um crime! Nenhum profissional faria o que o senhor quer.
Ao considerar os aspectos simbólicos implícitos na noção de natural,
aproximado-a à de normal, autêntico (em oposição a artificial, não verdadeiro), e a
possível associação feminina aos aspectos ligados à natureza (em oposição à
cultura), pode-se afirmar que em Mulher predomina uma visão essencialista na
defesa dos partos normais: a mulher, devido à sua natureza biológica, “nasceu
para parir”, tem um organismo “naturalmente preparado para dar à luz uma
criança sem intervenções externas. Embora haja essa defesa explícita do parto
natural e um claro predomínio de cenas de parto normal no conjunto dos
episódios, o seriado tende a apresentar uma posição intermediária e busca
conciliar práticas médico-hospitalares baseadas na tecnologia e no conhecimento
científico, com uma visão mais humanista do nascimento e da maternidade.
Outro ponto a destacar é a ênfase na oposição mulher/mundo doméstico x
homem/mundo público. A dificuldade de a mulher incorporar signos
tradicionalmente masculinos à sua identidade, como dedicar-se ao trabalho em
detrimento da família, é ressaltada na discussão entre Martha e Otavio quando ela
decide separar-se.
Martha: E agora, Otávio? Como é que vai ser? Daqui pra frente...a nossa vida sem
nosso filho?
Otávio: Eu sei como você está se sentindo...
Martha: Não sabe não...essa é a maior dor que uma mãe pode sentir, não nada
pior que perder um filho! Nada! E nada que alivie essa ferida aberta...aqui...(põe a
mão no plexo solar).
Otávio: (Olhando o álbum) Olha nós dois em Ouro Preto...Você tinha ido para um
congresso em Curitiba e eu resolvi mostrar pra ele as cidades históricas...
Martha: Você foi um ótimo pai...
Otávio: Acho que sim...
Martha: (olha para Otávio magoada) Você foi impecável e eu fui relapsa, mas a
minha dor não é menor por causa disso.
Na cena seguinte:
Otávio: (olha para Martha e para o prato dela) Come alguma coisa, Martha...não
adianta nada se punir. O que está feito...
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Martha: (magoada) Como é que você pode continuar vivendo? Como pode acordar,
tomar banho, comer? Como pode querer continuar vivendo?
Otávio: Talvez porque não havia nenhuma conta a acertar entre mim e o
Carlos...Estou em paz...
Martha: (sente fundo) Eu quero me separar de você.
Otávio: (atônito) O quê?
Martha: (levanta) Eu não quero mais ser magoada por você, não quero ter raiva de
você, Otávio! Já é doloroso demais viver o luto do meu filho pra viver o luto de um
casamento de 40 anos que foi tão feliz!
Otávio: A morte do Carlos deixou você perturbada!
Martha: Mas não me tirou a lucidez! Eu quero me separar antes que a gente se
torne um desses casais que ficam se acusando e cobrando a todo momento! E é isso
que a gente está se tornando! Um casal ressentido e infeliz!
Otávio: Martha, nós acabamos de sofrer uma fatalidade!
Martha: Isso devia nos aproximar, mas está nos afastando, Otávio! Eu não suporto
mais as suas recriminações, não suporto a mágoa que sinto toda vez que você
insinua que foi formidável e eu, omissa! Você está mobilizando o que eu tenho de
pior e isso não é justo, nem com você, nem comigo! E nem com o nosso
casamento, com o nosso amor!
Independentemente doslugares comuns” usados no diálogo, evidencia-se a
concepção de que o comportamento que transgride as tradicionais regras que
associam a mulher ao mundo doméstico é castigado. No caso de Martha, sua
punição é tripla: teve um câncer de mama, perdeu o filho e, nos episódios
seguintes, terá um enfarte.
Família e Pai de família, escritas por Antonio Calmon, Flávia Lins e Silva e
Rosane Lima, são histórias consecutivas separadas pelo gancho narrativo. As
duas têm como trama central a vida de Soninha e sua família (mãe, irmão e pai),
de classe média-alta. A jovem é alcoólatra e tem um comportamento sexual
promíscuo trocando de parceiros constantemente. Mora com a mãe, com quem
tem permanentes conflitos, e com o irmão, um jovem responsável, oposto da irmã.
O pai, também alcoólatra, abandonou a família quando as crianças eram pequenas
e nunca mais apareceu. Soninha se ressente da ausência dele e culpa a mãe pelo
seu afastamento da família. Preocupada com a filha, a mãe tenta fazer com que
Soninha se consulte com a Dra. Martha, mas a jovem rejeita a proposta. Quando é
espancada e estuprada por três homens que conhece em um bar, Soninha vai parar
na clínica muito machucada e é cuidada por Martha. A médica aconselha a mãe a
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pedir a ajuda ao ex-marido. Este reaparece, curado do vício, e com um trabalho
próspero no Nordeste do país. O pai leva a filha para morar com ele. Simultâneo a
essa história, desenvolve-se o romance entre a Dra. Cris e o Dr. João Pedro. Ele,
abandonado pela ex-mulher, cria uma filha de 12 anos sozinho. Cris acaba se
apegando à menina que, por sua vez, transfere sua carência de mãe para a médica.
Na clínica, desenvolve-se uma trama paralela à história familiar. Uma promoter
de sucesso leva a empregada doméstica que cuidou dela a vida inteira para ser
tratada. Afraninho manifesta seu preconceito social e racial ao confundir a
senhora com uma paciente do ambulatório. Quando a jovem se apresenta, desperta
seu interesse. Apesar de todo seu esforço, inclusive arcando com as despesas da
internação da empregada, Afraninho não consegue conquistá-la. Cabe a ele as
principais cenas de humor do seriado, imprimindo leveza a histórias dramáticas e
nem sempre com finais felizes.
O tratamento dado ao estupro é de denúncia à violência contra a mulher,
manifestada na fala da Dra. Martha em conversa com Soninha, deprimida, e sua
mãe, abalada: “Você não foi a única. A cada três minutos a polícia registra um
caso de agressão física contra mulheres. Horrível!” O tom pedagógico aparece no
encaminhamento dado pelo irmão da jovem e por Shirley, advogada e testemunha
de Soninha por ter visto os rapazes que estavam no bar com ela. Os dois tomam
todas as providências para pôr os rapazes na cadeia: exame de corpo de delito,
registro na polícia, abertura de processo contra os rapazes etc.. Nesse caso, é o
tratamento dramatúrgico que é didático e não tanto os diálogos.
Cabe ressaltar a nova família que entra em cena com o romance de Cris e
João Pedro. Ela, mulher moderna e independente, com um homem descasado e
pai de uma adolescente que mora com ele. As dificuldades enfrentadas pelo pai
solitário e o desafio de conviver com a filha do namorado são delineados. Os
conflitos são abrandados pela relação amorosa que se estabelece entre Cris e a
menina, mas a médica põe em questão o afastamento da mãe e os obstáculos a
uma aproximação entre elas. Outro exemplo que ilustra os relacionamentos
afetivos da contemporaneidade são os novos casos amorosos de casais separados.
Martha e Otávio jantam juntos, conversam sobre seus ex-namorados e revelam
ainda serem apaixonados um pelo outro. O diálogo é respeitoso e repleto de
ironias, lembrando o típico comportamento blasé de que fala Simmel ao fazer
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referência ao caráter sofisticado da vida psíquica do homem das grandes cidades,
que se move, permanentemente, de modo febril e nervoso por mundos
diferenciados: uma atitude de aparente indiferença e insensibilidade, de “recusa
dos nervos a reagir a seus estímulos como última forma de acomodar-se ao
conteúdo e à forma da vida metropolitana.”
249
Maternidade e Mães de família, ambas escritas por Antonio Calmon e
Geraldo Carneiro, também são episódios consecutivos, separados pelo gancho
narrativo que prosseguimento às tramas. Três acontecimentos se entrecruzam
nesse episódio: a mobilização da clínica com uma paciente em risco que à luz
prematuramente; a depressão em que Martha mergulha com a morte do filho
Carlos; e a crise provocada pelo reaparecimento da ex-mulher de João Pedro, mãe
de Claudinha. O primeiro gira em torno de um casal de classe média, pais de dois
filhos, ela grávida de um terceiro, que compartilham a angústia dele perder o
emprego com uma família numerosa. A mulher tem eclampsia, é internada pela
patroa na Clínica Machado Alencar e faz uma cesariana de emergência. O bebê,
prematuro, é levado para a UTI. O pai fica apavorado sem saber como pagará as
despesas da clínica; a mãe se desespera diante do quadro grave. As preocupações
conflitantes provocam uma crise entre eles. Os médicos pressionam Afraninho a
reduzir os valores cobrados e decidem, eles próprios, custear o tratamento da
criança. O bebê precisa ser operado de emergência e os médicos conseguem um
cirurgião pediatra que opere de graça. O pai é demitido, começa a vender seus
bens para pagar a conta. É contratado para trabalhar em Petrópolis, mas o filho
tem de ser mantido em uma UTI. Com a ajuda de um médico conhecido da Dra.
Martha, o recém-nascido é transferido para um hospital público em Petrópolis e a
família volta a viver em harmonia.
A segunda história que compõe esses dois episódios se refere à depressão de
Martha. Ela se entrega completamente à dor pela morte do filho, passa a tomar
doses exageradas de calmante para dormir e só sai para ir ao cemitério. Seu estado
preocupa todos: Otávio, colegas da clínica, Cris. Ninguém consegue tirá-la de seu
estado de ânimo. Ela decide procurar um padre amigo para desabafar e admite
carregar a culpa por ter sido omissa como mãe. Depois da conversa, Martha, mais
249
SIMMEL, G., A Metrópole e a Vida Mental, p. 17.
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conformada e aceitando melhor sua realidade, decide voltar a trabalhar e reatar
seu casamento com Otávio. A última história se refere ao reaparecimento de
Leonora, ex-esposa de João Pedro e mãe de Claudinha, que no passado abandonou
os dois para fugir com um amante, com quem se casou. João Pedro, após a
separação, decidiu desaparecer com a filha sem deixar nenhuma pista para a ex-
mulher. Ao ser visitada pela mãe, a menina se assusta e foge para o apartamento
de Cris. A médica ajuda João Pedro a aceitar o direito de Leonora de conviver
com Claudinha. Mãe e filha se reaproximam.
O dilema vivido pelo casal de classe média baixa com o bebê em um
hospital particular e em relevo a questão da saúde pública brasileira. O tom de
denúncia está presente tanto nas falas sobre a falta de vagas nos hospitais públicos
quanto nas cenas de desespero vividas pelos pais diante do conflito entre preservar
a saúde da criança mantendo-a na clínica ou garantir o sustento da família. A
oposição entre a mãe (decidida a garantir a sobrevivência do filho a qualquer
preço) e do pai (preocupado com os gastos inesperados no orçamento doméstico
já reduzido) segue o modelo típico das sociedades mediterrâneas e que vigorou na
sociedade patriarcal brasileira: a e enquanto lugar do afeto da família e o pai,
responsável por sua manutenção e guarda.
o drama da Dra. Martha evidencia a importância dada à religião como
meio de resgate do equilíbrio. É curioso porque ela entra em depressão profunda e
em nenhum momento os médicos e o marido, todos sensíveis à ação da
psicanálise e da psiquiatria (a clínica tem um setor psiquiátrico para atendimento
às mulheres), pensam em chamar um especialista para atendê-la. É por meio da
lógica da religião que ela supera a dor da morte do filho. Quanto à história do
aparecimento da ex-mulher de João Pedro, chama atenção a reação dele ao
adultério feminino. A princípio seu discurso revela um forte machismo, a ponto
de achar natural afastar Claudinha de sua mãe porque ela decidiu viver com outro
homem. A intervenção de Cris leva-o a aceitar a situação e permitir a
aproximação das duas. A atitude de João Pedro é coerente com a visão
hegemônica na sociedade brasileira, que pune a mulher considerada adúltera e que
abandona o lar.
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Grávidas, escrito por Álvaro Ramos, e Mãe, de autoria de Antonio Calmon,
episódios consecutivos e conectados pelo gancho narrativo, encerram o seriado.
Em Grávidas, várias histórias se desenrolam em paralelo, algumas envolvendo
personagens específicos; outras ligadas aos personagens centrais as médicas
Martha e Cris e Afraninho ; e ainda outras com personagens periféricos os
enfermeiros Amaury e Telma, a médica Anair e a amiga Shirley. Essas tramas vão
se cruzando e verifica-se aqui uma narrativa mais fragmentada e enovelada,
típica da telenovela.
Cris está grávida de meos para alegria de João Pedro e de Claudinha.
Shirley, poucos dias depois, descobre que está esperando uma menina, filha de
André. A Dra. Martha sugere a Afraninho que comece a procurar uma substituta
para a licença-maternidade da Dra. Cris e diz não ter planos para voltar a ocupar o
cargo. Meses depois ele apresenta Dra. Fernanda, médica com doutorado na
Alemanha, para substituir Cris na direção da clínica. Desde o primeiro momento,
ela e Martha não se entendem: Fernanda confia na tecnologia como a principal
ferramenta para exercer a medicina e Martha ressalta a importância de se prestar
atenção às relações humanas. Pouco depois, Cris fica profundamente abalada por
não ter salvado um bebê durante um parto e Fernanda a confronta, alegando que
ela poderia ter detectado que o feto estava morto se tivesse usado adequadamente
o equipamento disponível na clínica. Paralelamente, Dra. Martha e Dra. Anair
começam a desconfiar de que um bebê levado frequentemente ao ambulatório pela
mãe está sofrendo maus-tratos. Elas interrogam a mãe, que insiste em afirmar que
além dela ninguém se aproxima do garoto e que ele sofre seguidos acidentes
domésticos porque é inquieto. Martha suspeita que a mãe usa a criança para
chamar atenção sobre si, mas deixa que ela se vá com o filho. O espectador assiste
à mãe maltratando fisicamente a criança em casa. O garoto retorna à clínica com a
perna quebrada e a Dra. Martha avisa ao pai. O marido confronta a mulher, que
confessa que maltrata o filho. A criança é posta sob a guarda do Juizado de
Menores, enquanto o pai afirma que vai cuidar sozinho do bebê.
Afraninho é personagem de uma das tramas paralelas. Seu relacionamento
com a psicóloga Letícia, a quem ele ama mas acha excessivamente carinhosa e
sufocante, entra em crise. Certa noite ele recusa o convite dela para sair, é
flagrado em um restaurante com outra mulher e os dois rompem. Ao longo de
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todo o episódio, Afraninho se esforça para reconquistar a namorada, mas ela se
recusa a atender seus telefonemas. Enquanto isso, a Dra. Anair recebe a visita do
ex-marido, que vive nos Estados Unidos. Embora ela tenha a expectativa de uma
reconciliação, ele comunica que se casou de novo e que gostaria de levar o filho
para morar com ele. O garoto ama o pai e Anair que o filho pode ter uma boa
educação ao lado do ex-marido e a nova esposa. Mesmo sofrendo, aceita dei-lo
ir para viver essa experiência. Já o enfermeiro Amaury, que se casou com uma
mulher mais jovem, é abandonado por ela, que além de deixá-lo leva embora seu
filho. Ele entra em desespero. Paralelamente, ao longo de todo esse episódio
assistimos a Dra. Martha tendo sintomas de problemas cardíacos. Um
cardiologista diagnostica uma artéria entupida. Ela não revela o problema a
ninguém e começa a tomar remédios, mas não sinais de melhora e acaba tendo
um enfarte.
A última história, Mãe, fecha todas as tramas abertas em Grávidas. Martha é
operada e recebe uma prótese de stent no coração. Inconsolável, sente-se castigada
pela vida e é obrigada a afastar-se da clínica médica. Afrânio e a namorada se
reconciliam após ele se comprometer a ser-lhe fiel; Amaury, deprimido por ter
sido abandonado, passa a beber e a faltar o trabalho. Prestes a ser demitido, é
salvo por Telma que, ao tentar ajudá-lo, sente-se atraída por ele. Os dois iniciam
uma relação amorosa.
Cris e João Pedro, junto com Claudinha, preparam-se felizes para a chegada
dos gêmeos. Sua vida só não é plenamente feliz porque está em permanente
conflito com a Dra. Fernanda. Mesmo ainda não tendo assumido a direção da
clínica, Fernanda toma atitudes que a médica desaprova. Cris também fica
abalada por pesadelos frequentes. Ela e Shirley entram em trabalho de parto
prematuramente e na mesma hora. Cris vai de ambulância para o hospital, porque
tudo indica que seu estado requer cuidados. Shirley tem um parto normal, sem
grandes complicações. Atendida por Fernanda, Cris tem um parto difícil. O
primeiro bebê nasce sem problemas. O segundo está atravessado e Fernanda tenta
fazer uma inversão, sem sucesso. A situação se agrava e Martha fica sabendo do
problema. Ainda convalescente, decide ir para a clínica, contrariando os apelos de
Otávio e correndo o risco de ter outro ataque cardíaco. Enquanto Martha está a
caminho do hospital, Cris, na mesa de parto, tem alucinações em que seu pesadelo
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reaparece como se fosse uma analogia à realidade. Cris está na praia, uma criança
desaparece, ela se submersa na água, afoga-se numa água avermelhada de
sangue até que a Dra. Martha aparece ao lado das crianças e sua mão a retira do
fundo das águas. Durante a alucinação de Cris, Martha chega e assume a cirurgia.
A criança nasce, mas a médica, com hemorragia, fica entre a vida e a morte. Duas
opções são possíveis para salvá-la: remover o útero, fazendo uma histerectomia,
ou injetar um medicamento em altas doses para, com massagens, promover a
contração do útero. Martha opta pela segunda alternativa, a mais arriscada, para
preservar o corpo de Cris. A médica é salva por Martha, que deixa o final da
cirurgia sob a responsabilidade da Dra. Fernanda. fora da sala, Martha tem uma
crise de choro, percorre diversos setores da clínica e chega à recepção, onde está
Otávio, aflito com a situação. Martha se despede do lugar com expressão do dever
cumprido.
A última cena do seriado reúne todos os personagens fixos no batizado dos
filhos de Cris e da filha de Shirley. Martha, afastada definitivamente da atividade
médica, diz que aposta no trabalho conjunto de Cris e Fernanda. A nova médica
pede desculpas a Cris por não ter podido ajudá-la no parto e as duas, apesar das
diferenças, fazem um acordo de amizade. Na cena final, Cris agradece a Martha
por ter salvado sua vida e a de seus filhos, ao que a ex-chefe responde: “Vocês é
que salvaram a minha. Foi muito bom ter essa última vitória”.
Os episódios finais põem em destaque a oposição entre a utilização da
tecnologia e de métodos científicos considerados modernos nas condutas médicas
e a adoção de métodos que deem atenção às relações humanas e menos
intervencionistas no corpo do paciente. Tanto os diálogos entre Fernanda e a
dupla Martha e Cris quanto as discussões e os procedimentos adotados durante o
parto confirmam essas visões antagônicas. Quando Cris está com hemorragia,
quase entrando em choque e correndo risco de vida, é ilustrativa a discussão entre
Dra. Fernanda e Dra. Martha sobre recorrer a uma solução mais radical de retirada
do útero a uma menos agressiva, porém mais arriscada, de injetar na jovem mãe
medicamentos para, com massagens, produzir naturalmente a contração do útero.
O contraponto entre natural x artificial, intervenção x preservação,
tecnologia x relações humanas pauta os discursos do seriado Mulher e reflete a
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presença de múltiplos ethos nas camadas médias urbanas. Mulher é uma série
médica, passada em uma clínica de elite com os mais modernos equipamentos da
medicina, que permitem realizar exames altamente sofisticados e precisos. Mesmo
o ambulatório, vinculado ao SUS e que atende às classes menos favorecidas,
dispõe de recursos considerados de qualidade para um bom atendimento. Isso é
permanentemente valorizado na condução dos casos pacientes em salas muito
bem equipadas para exames sofisticados, salas de cirurgia com aparelhos de
última geração, berçários e UTIS moderníssimas e menos enfatizado nas falas
dos personagens. Apenas Dra. Fernanda menciona claramente essa infraestrutura
tecnológica da clínica. A constatação fica por conta da dramaturgia e do olho do
telespectador. Em contrapartida, a conduta do corpo médico, especialmente da
Dra. Martha e da Dra. Cris, tende à valorização dos métodos naturais (já foi citada
a preferência pelos partos normais em detrimento das cesarianas), menos
agressivos e invasivos, com pouco uso de aparelhos. Este procedimento fica claro
na opção da Dra. Martha durante o parto de Cris. Com o apoio de João Pedro, ela
decide adotar o método mais conservador, porém arriscado. Vale a pena ilustrar
com o diálogo entre Martha e Fernanda durante a luta das duas, do restante do
corpo médico e do marido, Dr. João Pedro, para salvar a jovem:
Martha: (fria) Duas escolhas. A primeira é retirar o útero...
Fernanda: (alarmada) Eu voto pela retirada do útero. Ela perde o útero ou morre.
Martha: (continua) Podemos também aplicar a oxitocina em altas doses e fazer
massagem manual. Não vou mentir, João Pedro. É uma aposta. E não podemos
perder tempo.
João Pedro: (olha o médico Samuel) O que você acha?
Samuel: É uma decisão difícil.
Martha: Vou fazer o que a Cris faria. Não vou optar pela histerectomia. (e
dirigindo-se a Telma) Tratamento conservador. Prepara a medicação, Telma.
Fernanda: “Mas, Martha...”
Martha: (gesto) Agora não, Fernanda. Depois, se quiser, pode me culpar pela
escolha errada. Só estou querendo poupar a Cris de um grande sofrimento.
Telma a injeção para o anestesista, que aplica no soro. Martha aproxima-se da
barriga descoberta de Cris. Fecha os olhos numa prece muda.
É importante chamar a atenção para o fato de que o seriado Mulher legitima
e reforça a representação de certos discursos médicos sobre o corpo feminino,
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considerado desordenado e que precisa ser disciplinado. O saber médico é
legitimado, havendo mesmo uma desqualificação de outras práticas terapêuticas
(tratamentos homeopáticos, ações decorrentes de crenças populares e religiosas,
métodos alternativos de parto natural etc.). Porém, as atitudes das personagens
Martha e Cris, buscando conciliar suas condutas com relações médico-paciente
mais humanistas, relativizam essa hegemonia da representação médica em relação
à mulher.
Ao centrar sua abordagem na sexualidade feminina, em especial na
maternidade (praticamente todos os 60 episódios têm, pelo menos, um caso), o
seriado Mulher propõe um discurso social na televisão. Através dos recursos
dramatúrgicos, trata de temas como gravidez precoce, masturbação,
homossexualismo feminino, doenças sexualmente transmissíveis e mostra
situações até então tratadas de forma maniqueísta e pouco reflexiva. Entretanto, é
indiscutível a manutenção da centralidade do aparelho reprodutivo na construção
da identidade feminina. Esta capacidade como atributo universal da mulher
continua ancorando as relações de gênero em uma perspectiva essencialista em
que a condição de mãe é definida historicamente.
250
Seria interessante comparar
com novelas e seriados atuais, como o americano Sex and the City ou o brasileiro
Aline que, embora ainda mantenham essa centralidade, abrem espaço para outros
projetos femininos, inclusive o de não ser mãe ou de ser fora dos padrões
historicamente aceitos.
um predomínio da linguagem realista no tratamento dramatúrgico, mas
os recursos do melodrama são acionados permanentemente no seriado. O drama
da moral oculta que traz à superfície os dilemas da vida privada e cotidiana, em
que as classificações entre Bem e Mal fornecem mapas para as experiências
sociais está muito presente em Mulher. Além disso, a mensagem final ou o happy
end organiza os comportamentos humanos, com a vitória dos heróis e a punição
dos vilões. Mas longe de transformar a série em um conjunto de clichês
organizados de forma pedagógica, Mulher se utiliza desses elementos do
melodrama exatamente para demarcar as fronteiras entre realidade e ficção.
250
Cf. NATANSOHN, G., Medicina, Gênero e Mídia: O Programa Mulher da TV Globo, p. 59-60
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E aqui é fundamental chamar a atenção para o uso do humor na narrativa.
Por meio de personagens como Afraninho, Shirley ou a enfermeira Telma
(algumas vezes representados de forma caricaturada), o riso como elemento
dramatúrgico é introduzido. Provoca uma espécie de alívio cômico às situações
dramáticas do dia a dia da clínica e dos dilemas pessoais dos personagens, mas
também expressa uma concepção de mundo e traduz valores sobre as realidades
vividas.
Bakhtin, ao comparar as diferentes atitudes do Renascimento e dos séculos
seguintes inaugurados com o Iluminismo e prosseguindo com a modernidade
observa que, no primeiro, o riso tinha um
profundo valor de concepção de mundo, é uma das formas capitais pelas quais se
exprime a verdade sobre o mundo na sua totalidade, sobre a história, sobre o
homem; é um ponto de vista particular e universal sobre o mundo, que percebe de
forma diferente, embora não menos importante (talvez mais) do que o sério.
a atitude em relação ao riso que passou a predominar após o século XVII
é a de que
não pode ser uma forma universal de concepção do mundo; ele pode referir-se
apenas a certos fenômenos parciais e parcialmente típicos da vida social, a
fenômenos de caráter negativo; o que é essencial e importante não pode ser
cômico; a história e os homens que a encarnam (reis, chefes de exército, heróis)
não podem ser cômicos; o domínio do cômico é restrito e específico (vícios dos
indivíduos e da sociedade); não se pode exprimir na linguagem do riso a verdade
primordial sobre o mundo e o homem, apenas o tom sério é adequado; é por isso
que na literatura se atribui ao riso um lugar entre os gêneros menores, que
descrevem a vida de indivíduos isolados ou dos estratos mais baixos da sociedade;
o riso é um divertimento ligeiro, ou uma espécie de castigo útil que a sociedade usa
para os seres inferiores e corrompidos.
251
Eu diria que em Mulher, o humor e, consequentemente, o riso, é elemento
constitutivo para se tratar do universo feminino com seus desejos, dilemas e
conflitos. Ao mesmo tempo, é usado também para expressar vícios,
comportamentos bizarros ou realidades consideradas inferiores. Por um lado, o
riso aparece nas situações de embaraço vividas na clínica modelo famosa com
problema de intersexo ou a jovem muçulmana cujos pais desejam que se submeta
a uma operação para restaurar a virgindade ou nos dramas privados dos
personagens centrais, como as trapalhadas vividas por Shirley no seu desejo de
251
BAKHTIN, M., A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O Contexto de
François Rabelais, p. 57-58.
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emagrecer e Afraninho nas suas conquistas amorosas desastrosas. Por outro, as
discussões entre os médicos sobre diagnósticos, as avaliações sobre conflitos
pessoais, os embates filosóficos (assuntos considerados “sérios”) têm um toque de
humor, como os comentários de Telma em relação à sua solidão, o medo de
Shirley ao fazer exame de HIV e as conversas sobre casamento e separação entre
quase todos os personagens femininos e masculinos. Essas manifestações do
humor mostram sua utilização nos dois sentidos apontados por Bakhtin. Ao
mesmo tempo em que expressa dramaturgicamente valores e visões de mundo que
constituem possibilidades de construção da identidade de gênero, serve para
indicar um “castigo ligeiro” para aqueles que não seguem os padrões de
comportamento hegemônicos.
Por último, observa-se aqui o quanto a mídia, no caso a televisão, ao
dialogar com parcelas significativas da sociedade, elabora um discurso familiar,
reconhecível, compartilhável pelos receptores. O privilégio dado aos partos
naturais (demanda existente na própria sociedade dos anos 1990) confirma isso.
Essa capacidade de construir representações a partir de imaginários sociais sobre o
papel da mulher e dos médicos na sociedade, associada às regras do melodrama,
criam condições para produzir a verossimilhança de uma criação dramatúrgica
televisiva.
6.3. Anos Dourados
Minissérie em 20 capítulos, exibida em maio de 1986, Anos Dourados, de
autoria de Gilberto Braga e direção de Roberto Talma, retrata o universo das
camadas médias do Rio de Janeiro na segunda metade dos anos 1950, mais
especificamente de habitantes da Tijuca, bairro reconhecido pelo imaginário
social como de tradição conservadora. No contexto nacional de otimismo que
marcou o governo de Juscelino Kubitschek, em que tanto a política quanto a
cultura traziam ares de desenvolvimento e progresso, os setores mais tradicionais
se manifestavam para manter seus valores como dominantes. Movimentos
políticos contra o governo (tentativas de impedir a posse do presidente eleito),
atitudes de controle dos jovens nas esferas afetiva, sexual e profissional, regras
para regular suas amizades e o comportamento blico das mulheres, condenação
daquelas que se desviavam dos seus papéis tradicionais (desquitadas, as que
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trabalhavam fora etc.), revelavam o desejo de setores que resistiam às mudanças
que chegavam à sociedade.
Muitas transformações ocorreram na vida social do país, especialmente no
Rio de Janeiro, ainda capital e centro de difusão cultural. As crescentes
industrialização e urbanização possibilitaram a aquisição de bens que, até então,
eram apenas um sonho para a classe média: eletrodomésticos facilitaram o
trabalho de casa e automóveis mais baratos possibilitaram expandir a ocupação e
circulação na cidade. O maior acesso a bens culturais externos, como o cinema
hollywoodiano e o rock‟n‟roll, o desenvolvimento de uma indústria cultural
nacional rádio, televisão, cinema, teatro , a ampla divulgação de ritmos como a
bossa-nova antes restritos a círculos fechados , a proliferação da imprensa
escrita jornais e revistas voltados para o grande público e para públicos
específicos eram alguns sinais de que a sociedade se modificara. Mudar seus
valores ou mantê-los era o dilema enfrentado pelas camadas médias urbanas nos
Anos Dourados.
Ainda que a minissérie não tivesse a intenção de focar especificamente nas
questões voltadas para o universo feminino, trata-se de uma obra que busca
retratar os comportamentos de uma época da sociedade brasileira em que os
papéis e valores morais referentes aos gêneros foram postos em xeque, implicando
mudanças profundas na cada seguinte. Por essa razão, optou-se por analisar
Anos Dourados a partir da sinopse (resumo apresentado pelo autor à direção da
emissora meses antes de ir ao ar), os scripts dos 20 capítulos e o DVD, de 7h10m,
uma versão compactada da minissérie editada com o auxílio do próprio autor.
Anos Dourados é uma trama romântica e tem como eixo central a história de
amor entre os jovens Maria de Lourdes (chamada de Lourdinha pela família e
amigos), interpretada por Malu Mader, e Marcos, papel do ator Felipe Camargo.
Ela, normalista do Instituto de Educação, colégio que, tradicionalmente, formava
jovens (naquela época estritamente feminino) para exercerem o magistério. Ele,
estudante do Colégio Militar, voltado para rapazes (hoje é acessível também a
mulheres) que pretendiam seguir a carreira militar, profissão considerada
promissora nos anos 1950. Ela, filha de típicos pais de classe média ascendente
o pai, pediatra e a mãe, dona de casa religiosos, moralistas e preocupados com
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219
as aparências; ele, filho de pais separados, de classe média baixa a mãe é caixa
de uma boate em Copacabana e o pai, músico e boêmio , avessos à hipocrisia e
ao moralismo predominante nos meios tijucanos. Com essas características
biográficas contrastantes, os dois jovens se apaixonam e passam a viver todos os
percalços do mundo para ficarem juntos.
Os pais de Lourdinha não aceitam a relação por ser ele filho de pais
separados e “sem situação”, como diz a mãe da moça. Além disso, como se pode
imaginar, os valores éticos e morais transmitidos pelas respectivas famílias são
muito diferentes. Lourdinha, educada dentro dos rígidos princípios religiosos e
patriarcais, considera o corpo feminino como tendo exclusivamente a função
reprodutiva. Prazer e desejo nunca fizeram parte do seu repertório já que, segundo
os ensinamentos da mãe, essas são emoções ligadas ao „pecado‟, típicas de
“meninas soltas”. Na família de Lourdinha, filhos seguem as decisões dos pais,
especialmente a mulher, que deve ficar sob tutela familiar até casar. Já Marcos foi
criado com sinceridade e transparência. O diálogo sempre pautou sua convivência
familiar, seja em situações voltadas para a sexualidade, seja às relacionadas ao
estudo.
O que se assiste é a diferença entre duas possibilidades de realização da
família nas camadas médias: uma mais próxima do modelo de família hierárquica,
baseada nas noções de autoridade e respeito, cujo cosmos é organizado a partir de
uma precedência lógica e existencial do todo sobre as partes, isto é, da família
sobre o indivíduo sujeito-moral; e outra que se aproxima do modelo da família
igualitária em que as noções de igualdade, confiança, franqueza e respeito mútuo
prevalecem e a ideia de indivíduo como valor primordial se sobrepõe à de
família.
252
Essas diferenças vão se manifestando à medida que o romance entre os dois
avança e surge a atração sexual. A princípio, os pais da moça proíbem o namoro,
especialmente por ele ser filho de uma mulher desquitada, e criam todo tipo de
empecilho para afastá-los. Os jovens continuam se encontrando às escondidas e
Lourdinha passa a ter problemas de saúde diante da pressão a que está submetida.
252
Cf. DUMONT, L., Homo Hierarchicus: Le Système des Castes et ses Implications, passim.
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220
Com a intervenção de uma professora os pais decidem aceitar o namoro
acreditando que “o fruto proibido” é que está motivando a filha a insistir no
romance. Porém, a proximidade aumenta a intimidade e a atração sexual. Os dois
vivem esse sentimento com conflito, pois nos anos 1950, anterior à revolução
sexual que marcou a década seguinte, sexo antes do casamento era tabu.
Lourdinha se sente culpada e conversa com a mãe:
Lourdinha (sem jeito): Mamãe...a mulher deseja feito o homem?
Celeste: Que assunto, Lourdinha!
Lourdinha: Porque eu aprendi sempre que é pecado e...
Celeste (corta): Não é pecado por causa dos filhos. Quando a sua hora chegar você
vai saber direitinho o que precisa fazer...(com um certo nojo). A mulher casada se
acostuma, o homem precisa....
Lourdinha (envergonhada e com pudor): Então a mulher não deseja...
Celeste: Mas que conversa, Maria de Lourdes! Você nem sequer está noiva...tão
menina!
Lourdinha: Mas eu queria saber...se a mulher também pensa em certas coisas que...
Celeste (corta): Maus pensamentos, às vezes, ninguém está livre. (Meiga) Mas não
se esqueça nunca, Maria de Lourdes...
Lourdinha: Mas a mulher pode cair em tentação?
Celeste: Sim, pode cair em tentação...mas sabe se controlar. Quem faz patifaria é
vagabunda. Você falou a verdade, não falou? O Marcos te respeita?
Lourdinha: Respeita sim. Eu falei a verdade....
No dia seguinte, Lourdinha vai se confessar com o padre e diz chorando que
“pecou contra a castidade porque teve pensamentos horríveis”. Marcos conversa
com o pai, que o aconselha a buscar uma prostituta: “Existem três tipos de mulher.
A direita, com quem você vai se casar, a galinha, pra tirar um sarro, e a
profissional para ir quebrando um galho...”. Ainda que seu discurso também seja
conservador quanto às sexualidades feminina e masculina, diante do desejo de
Marcos em ter relações sexuais com a namorada e do questionamento que o rapaz
faz às regras sociais, vê-se que no relacionamento entre o rapaz e os pais mais
flexibilidade e abertura para tratar de assuntos considerados proibidos na época.
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A atração entre Marcos e Lourdinha intensifica a que, em um fim de
semana na casa de amigos, ele faz um carinho mais ousado e ela se sente
desrespeitada. Os dois brigam. O rapaz, desesperado diante do desejo pela
namorada, decide ir com o amigo Urubu a um bordel, mas fica impotente na hora
de ter relações sexuais com a prostituta. Atingido na sua virilidade, Marcos
procura Rosemary, jovem do grupo considerada “mais avançada” e que sempre
tentara seduzi-lo. Lourdinha acaba flagrando-os em um beijo caloroso. O casal se
separa e ela começa a sair com Lauro, um rapaz mais velho, neto de um brigadeiro
conceituado, já formado em engenharia. Marcos e Rosemary começam a namorar,
mas não vão adiante porque ele continua apaixonado pela ex-namorada e percebe
que Rosemary está se envolvendo na relação. Lourdinha também não segue com
seu relacionamento, apesar da insistência de sua mãe em querer vê-la casada com
um rapaz adequado aos seus padrões. Urubu resolve contar a Lourdinha a razão
pela qual o amigo estava com Rosemary quando ela o flagrou e a moça decide
reatar com o namorado. Os dois ficam juntos e têm a primeira relação sexual.
Marcos quer casar com Lourdinha, principalmente quando descobre que a
moça está grávida. Os pais da jovem, diante da constatação de que a filha não é
mais virgem e espera um filho, decidem levá-la a um suposto ginecologista, na
verdade uma clínica de aborto. Marcos e sua mãe conseguem interromper a
cirurgia, mas a jovem tem um aborto espontâneo. Quando Marcos é acusado de
assassinato do dono da boate onde a mãe trabalha, Lourdinha vai a público e
assume ter passado a noite com ele, o que acaba inocentando-o. O namoro
continua e no epílogo da história, após uma passagem de tempo, eles aparecem
casados e com filhos.
Muitas histórias paralelas se desenvolvem entrecruzadas à trama central.
Uma das principais é o romance entre Glória, mãe de Marcos, e o major Dorneles,
um oficial da Aeronáutica com posições políticas independentes e progressistas,
casado com Beatriz, filha de um conceituado brigadeiro que só pensa em ascensão
e prestígio social. Os dois têm três filhos (duas moças e Lauro, o mais velho) e
moram na casa do sogro de Dorneles. O envolvimento dele com Glória, mulher
independente, desquitada, com ideias modernizantes sobre o relacionamento entre
homem e mulher, põe em destaque o adultério masculino e o dilema entre manter-
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se no interior da família submetido às regras do casamento e da paternidade, ou
individualizar-se para viver uma paixão. Trata também do conflito enfrentado na
época pela mulher desquitada: submeter-se ao preconceito que a julga desviante e
aceitar o destino de ocupar apenas o lugar da outra, ou arriscar-se em uma
relação afetiva e iniciar nova vida conjugal.
Outra trama que ajuda no desenvolvimento da história central envolve os
pais de Lourdinha. A mãe, D. Celeste, como vimos, é a típica mulher
conservadora, preconceituosa, submetida a rígidas regras religiosas,
completamente desprovida de atributos que indiquem feminilidade. O pai, Dr.
Carneiro, renomado pediatra, também pode ser considerado um exemplo do
conservadorismo daqueles anos. Lacerdista ferrenho, tem atitudes excessivamente
convencionais no que se refere à educação dos filhos e ao relacionamento com a
mulher, como fica evidente em sua fala ao se referir a Glória, mãe de Marcos:
“Aqui em casa não entra mulher desquitada, getulista e nem ateu.” Porém, no final
da minissérie ele se revela: tem uma amante, cantora da boate onde Glória
trabalha e, ao ser chantageado pelo dono que tem provas de suas relações
extraconjugais, mata-o. Ao ser descoberto, suicida-se.
A turma de amigos de Lourdinha e Marcos forma a rede de jovens através
da qual são mostrados os conflitos entre visões de mundo e ethos mais
comprometidos com os valores tradicionais e outros mais próximos de princípios
igualitários. São jovens cuja sociabilidade é ancorada, basicamente, nas escolas
(Instituto de Educação e Colégio Militar), na vizinhança (todos moram muito
perto), nas festas e nas idas ao cinema.
Alguns personagens se destacam. Urubu, maior amigo de Marcos, é o típico
jovem galanteador, extrovertido, boa praça. Faz o estilo do ator James Dean, com
calças justas, jaquetas com a gola levantada, óculos escuros de aro preto, cabelo
curto com topete moldado com brilhantina, cigarro na boca quando não masca
chiclete. Louco por sexo, não perde a oportunidade de sair com as mais diferentes
garotas. Amigo fiel, Urubu é peça chave na reaproximação de Marcos e
Lourdinha. Ele tem um romance com Rosemary, jovem mais liberal que as outras
e que não tem vergonha de assumir sua sexualidade. É extremamente coquete e
não perde a oportunidade de seduzir os rapazes fazendo strip teases no seu quarto,
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enquanto eles olham de binóculo pela janela, ou sendo mais permissiva nos
carinhos com namorados. Acaba se apaixonando por Marcos, com quem chega a
namorar (o que provoca ciúmes em Lourdinha), mas não é correspondida. Ela
também ajuda na reaproximação do casal de protagonistas. Há ainda Marly,
melhor amiga e confidente de Lourdinha, filha de pais de classe média alta, mais
progressistas, antenados com as mudanças culturais. Com a mãe de Marly
Lourdinha consegue conversar sobre suas inseguranças sexuais. Outro jovem que
merece destaque é Claudionor, que forma o trio de amigos com Marcos e Urubu,
todos alunos do Colégio Militar. É gordo, desajeitado e ingênuo, uma espécie de
bobo da turma, vítima de constantes brincadeiras de Urubu, especialmente
voltadas para questões sexuais.
Curiosamente, por se tratar de uma criação dramatúrgica que busca espelhar
uma época, esperava-se uma produção realista, quase naturalista, de forma que
trouxesse o máximo de verossimilhança sobre um tempo passado. Foi encontrada
uma narrativa mista, onde elementos do melodrama se mesclam com aspectos
realistas no tratamento dos conflitos e dos personagens. As temáticas exploradas
na minissérie são típicas do melodrama clássico: dois casos de “amor impossível”.
O primeiro, entre o rapaz íntegro e a mocinha doce e submissa que sofrem a
repressão dos pais da moça, vilões hipócritas e retrógrados; o segundo, entre a
mulher madura que sofre preconceito social por ser desquitada e um oficial da
Aeronáutica desiludido no casamento, mas sem coragem de abandonar a
estabilidade da família. Os dramas morais também recebem tratamento
melodramático, especialmente nas cenas que envolvem os pais de Lourdinha e as
cenas de briga entre os casais principais, em que o excesso degrimas e os gritos
dão o tom da encenação. O uso de trilha sonora (um dos pontos altos da
minissérie) para pontuar os tormentos sentimentais por que passam os
personagens e provocar a intensidade das emoções é outro recurso típico do
melodrama.
Todos esses elementos são aliados a diálogos e encenação realistas para
traduzir os conflitos vivenciados pelos personagens. Os dramas familiares,
especialmente, são delineados a partir da psicologia e dos valores que norteiam a
realidade social de cada personagem. Os conservadores e hipócritas, como os pais
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de Lourdinha, têm um comportamento reconhecidamente norteado por
preconceitos e valores morais arcaicos. Glória, mãe de Marcos (a voz do autor na
minissérie, segundo especulações dos jornais), a mais transgressora mulher
desquitada que cria sozinha o filho, trabalha em uma boate, tem namorados e os
assume socialmente, fuma e bebe em público tem suas atitudes pautadas por
coerência e ética.
Outros aspectos ajudam a dar realismo à narrativa como o uso de referências
a pessoas e fatos históricos. Beatriz, a mulher de Dorneles, por exemplo, fútil e
superficial nos relacionamentos, vivencia o conflito com o marido que se nega a
partilhar de seu projeto de ascensão, fazendo alusão a personalidades reais
ilustres. Urubu, para explicitar seus tipos femininos preferidos e seus desejos
sexuais, cita as atrizes hollywoodianas. Episódios como a rebelião de
Jacareacanga, contra o presidente da República recém-eleito, estão muito
presentes nas conversas entre Dorneles, pró-Juscelino, e seu sogro, um brigadeiro
do alto comando da Aeronáutica.
Os figurinos o elemento chave para produzir uma atmosfera realista na
minissérie. A caracterização de Urubu, copiando James Dean no filme Juventude
Transviada, de Nicholas Ray, as jovens usando os vestidos rodados, de tule, estilo
tomara que caia para os bailes, as saias plissadas e as blusas de mangas bufantes,
os laços de fita nos cabelos, os sapatos “boneca” são alguns exemplos de como a
roupa e os acessórios ajudam a criar a representação de uma época além de,
segundo Simmel, tonificar duas tendências opostas igualdade e individuação ,
“o prazer de imitar e aquele de se distinguir”.
253
O jeito de andar e sentar constitui outro fator de identificação com a
realidade
254
: os jovens tendem a se comportar de acordo com os padrões
253
SIMMEL, G., La Mode, p. 183.
254
Mauss, em seu estudo sobre as técnicas corporais verifica que uma “educação do andar e do
sentar-se”. Observando o caminhar de moças americanas e francesas, ele conclui que “a posição
dos braços e das mãos enquanto se anda é uma idiossincrasia social, e não simplesmente um
produto de não sei que arranjos e mecanismos puramente individuais, quase inteiramente
psíquicos. Por exemplo: creio poder reconhecer assim uma jovem que foi educada no convento.
Ela anda, geralmente, com as mãos fechadas. E lembro-me ainda do meu professor do ginásio
interpelando-me: „Seu animal! Andas o tempo todo com as manoplas abertas‟. Portanto, existe
igualmente uma educação do andar.” O autor observa ainda que adultos e crianças imitam atitudes
bem-sucedidas de pessoas em quem confiam e que têm autoridade sobre eles. É a partir dessa
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considerados masculinos e femininos para a época: elas sentam-se, geralmente,
com as pernas cruzadas ou joelhos unidos, as mãos abraçando os joelhos ou
ajeitando a roupa. O andar é gracioso e leve, realçado pelas saias rodadas; eles, em
geral, apresentam uma postura ereta e atlética, peito estufado, barriga para dentro
e cabeça erguida, andam como se chutassem alguma coisa possível que o fato
de estudarem em escola militar influencie na postura).
255
Nos bailes, bebem cuba
libre (bebida adotada pela juventude dos anos 1950) e dançam de rosto colado;
nas festas, seguem todos os passos e coreografias do rock‟n‟ roll.
Os cenários e objetos de arte também ajudam a compor o clima realista da
trama: os personagens circulam em cadillacs e automóveis rabo de peixe; as casas
possuem objetos como licoreira em forma de boneca, canetas-tinteiro, rádios,
louças de porcelana, móveis picos daquela década. O uso de gírias e expressões
como “ganhar um broto”, “dar bola para o menino”, “penetrar no baile que vai ser
um estouro” ou “levar o bolo” por parte dos jovens; e “fazer gosto”, “menina
fácil, solta”, “mulher que tem um it”, “brotolândia” e “fazer par constante”, por
parte dos pais, ajudam a contextualizar a história e a dar realismo à narrativa.
Mas se é possível perceber traços realistas em Anos Dourados, as
convenções do melodrama também se manifestam no desenrolar dos conflitos, na
construção psicossocial dos personagens e na sua movimentação ao longo das
situações de impasse. O confronto entre o Bem e o Mal está representado no
embate entre o lado liberal, progressista e sincero versus o lado repressivo,
conservador e hipócrita.
256
Os primeiros encarnam os ideais da boa índole, da
autenticidade, da busca por valores considerados “verdadeiros”, voltados para o
“aperfeiçoamento humano”; os segundos representam os valores perversos,
noção de prestígio que o ato é ordenado, autorizado e aprovado para o indivíduo que imita.
Posteriormente, no ato imitador, se encontrariam os elementos psicológico e biológico. As técnicas
corporais seriam, portanto, condicionadas por três elementos indissoluvelmente misturados: o
biológico, o psicológico e o social. MAUSS, M., As Técnicas do Corpo, p. 404-405.
255
É interessante comparar a similaridade entre o ethos e estilo de vida desses jovens com os
“jovens do clube”, filhos de militares, trabalhados em minha dissertação de mestrado. FIUZA, S.
R. de A., Moralidade e Sociabilidade: Contribuição para uma Antropologia da Juventude.
256
Ver Monica Kornis que desenvolve em sua tese de doutorado a relação entre a história do
Brasil e as ficções seriadas televisivas e analisa a presença da estrutura melodramática em
minisséries da Rede Globo, dentre elas Anos Dourados. KORNIS, M., Uma História do Brasil
Recente nas Minisséries da Rede Globo.
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226
retrógrados, considerados cruéis, falsos e injustos, que conduzem ao
“aprisionamento humano”. O que se vê mais uma vez é a oposição entre as
categorias verdade, autenticidade, transparência x falsidade, adulteração,
artificialidade desenvolvida por Lichtenstein e Trilling.
257
Praticamente todos os personagens da minissérie poderiam ser alocados em
cada um desses ethos. Entretanto, por ser o objeto dessa pesquisa o universo
feminino, serão analisados dois pares opostos: Glória, mãe de Marcos x Celeste,
mãe de Lourdinha; e Lourdinha x Rosemary. O primeiro se opõe ao longo de toda
a história, em um confronto entre os modelos da heroína e da vilã, da boa mãe x a
mãe má
258
; o segundo, não. A oposição se desfaz ao longo da narrativa. A
princípio, Lourdinha se identifica com os valores familiares tradicionais e
hierárquicos. Uma heroína “à moda antiga”. Rosemary é a jovem mais
identificada com valores modernos, liberais e igualitários. Porém, à medida que o
namoro de Lourdinha e Marcos vai vencendo a oposição dos pais, assiste-se à
transformação da heroína, que assume atitudes e valores considerados
modernizantes e se aproxima do modelo de Rosemary.
Glória é uma mulher em torno dos 40 anos, desquitada de um marido
boêmio e irresponsável, mas com o qual mantém boas relações. Assumiu sozinha
a educação do filho único, trabalha em Copacabana (na época visto como símbolo
de modernidade), usa calças compridas, fuma em público e corta o cabelo no
estilo “taradinha” (curto, mas com movimento, feito com „pega-rapazes‟ na
franja). Sua conduta é pautada pelo diálogo franco, pela transparência nas atitudes
e pela crença em valores humanistas. É avessa a preconceitos e defende relações
mais autênticas. Decidiu separar-se do marido quando constatou que o casamento
tinha chegado ao fim a despeito das acusações que viria a sofrer. Cria o filho
buscando permanente diálogo, sem perder a autoridade materna. Revolta-se
quando Marcos fica “preso” um fim de semana no Colégio Militar porque foi
pego lendo O Amante de Lady Chatterley, livro que ela aprecia e no qual não
nada censurável para um adolescente. O romance com o major Dorneles, casado,
257
Cf. notas 150 e 151.
258
Cf. XAVIER, I., Da Moral Religiosa ao Senso-Comum Pós-Freudiano: Imagens da História
Nacional na Teleficção Brasileira, 146-157.
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227
leva-a a questionar seus princípios e valores. Tenta afastar-se por diversas vezes,
alegando querer “manter a dignidade, a integridade”, continuar se olhando no
espelho”. Ao retomarem a relação, porque estão efetivamente apaixonados, Glória
não aceita rceber dinheiro dele e quando é procurada pelo filho do oficial que lhe
pede para afastar-se para não provocar a separação e a dissolução da família,
responde:
Eu nunca dei força para separação nenhuma, nem podia dar, não é a minha vida!
Duas pessoas podem se separar se chegarem à conclusão de que não têm mais
saída, que terminou! Ninguém pode separar porque se apaixonou por outro! Porque
a paixão acaba, entra no dia a dia, e eu não vou querer carregar nem por uma
semana o peso de ser responsável pela dissolução dum casamento tão longo....Se
algum dia seu pai se separar da sua mãe, tem que ser porque os dois reconheceram
que o amor acabou, ou nunca existiu, e não porque ele arrumou uma bengala pra
ficar se apoiando.
Por suas atitudes liberais para os padrões aceitos como normais pela
comunidade onde vive, Glória é estigmatizada pelas mulheres da vizinhança.
Acusações do tipo “mulher largada”, “mulher falada”, “vagabunda” são feitas por
Celeste, mãe de Lourdinha, e suas amigas, para denunciar o comportamento
desviante de Glória. Ao mesmo tempo, seu relacionamento com o filho, pautado
na confiança, e com o ex-marido, baseado no respeito mútuo, transforma-a no
símbolo de mãe progressista. No caso da gravidez de Lourdinha, sua atitude é de
amparar a moça e dar suporte ao casal. Quando Marcos decide estudar veterinária
e não ser militar, carreira para a qual estava sendo preparado, ela lhe apoio.
Mas Glória não tem prestígio social por ser desquitada. Isso se agrava mais por
trabalhar em Copacabana, bairro que na década de 1950 estava em pleno processo
de modernização e simbolizava, por um lado, ascensão social e, por outro, lugar
onde os ícones da modernidade e do comportamento liberal estavam instalados. O
fato de Glória ser caixa em uma boate é sempre associado à ideia de “inferninho”,
prostituição. Uma das vizinhas, ao criticar a amizade de Urubu e Marcos, explicita
o preconceito em relação ao bairro da Zona Sul
259
: O garoto da Abigail andando
259
Sobre o uso da categoria Zona Sul em contraposição à Zona Norte e ao subúrbio como
forma de representação espacial e simbólica da cidade do Rio de Janeiro, remeto aos trabalhos de
Velho (VELHO, G., A Utopia Urbana) e de Heilborn (HEILBORN, M. L., Conversa de Portão.
Juventude e Sociabilidade em um Subúrbio Carioca). Os autores ressaltam que a polaridade Zona
Sul/Zona Norte subúrbio não só reflete uma configuração socioespacial da cidade na Zona Sul,
próxima ao litoral, se concentram as camadas sociais de nível sociocultural mais elevado e na
Zona Norte-subúrbio as menos favorecidas , mas também implica a representação do estilo de
vida e da visão de mundo dos respectivos moradores a partir dos modelos „moderno‟ /
„tradicional‟. A Zona Sul com a imagem de centro de difusão da modernidade, dispõe de
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de novo com o filho da separada...Deviam morar era em Copacabana, que é lugar
pra essa gente...Que perigo pras meninas do bairro...Graças a Deus que eu não
tenho filha mulher.”
Celeste é a imagem oposta à de Glória. Mulher criada dentro dos mais
rígidos princípios morais e religiosos, ela é o que se pode chamar de caricatura da
“megera”. Preconceituosa, ambiciosa, egoísta, autoritária, materialista e hipócrita,
Celeste controla a vida dos filhos (Lourdinha e seu irmão, Pedrinho) nos estudos,
nos namoros, nas relações de amizade e nas atividades sociais e, de acordo com
seu discurso, “vive para os filhos”. As ideias de devoção e sacrifício pautam suas
atitudes com eles. Ela aparece ao longo de toda a história cuidando das lições
escolares do caçula e controlando Lourdinha, para garantir-lhe um “bom
casamento”. É através do papel de mãe que mulheres como Celeste se definem
socialmente.
Sua visão de mundo é pautada pelas noções de pecado e virtude (diante de
situações em que ela condena aciona imediatamente os ensinamentos blicos de
acordo com a visão tradicional da Igreja Católica), de correção e transgressão, de
normalidade e anormalidade. Sua visão da mulher pode ser reconhecida como
conservadora e alinhada com os valores patriarcais: voltada para o lar e para o
marido, cabendo ao homem o mundo da rua e do trabalho. Chega a admitir que a
mulher trabalhe, mas sempre como atividade complementar à do marido (“Hoje
em dia é bom a mulher trabalhar, caso o marido precise, ou mesmo pra comprar
seus alfinetes...). Sua sexualidade é regulada pelas noções de vergonha, pudor e
procriação. A conversa com Lourdinha sobre se a mulher tem desejo sexual ou
não ilustra bem essa questão. Na cena em que comemora com o marido o
aniversário de casamento, no quarto, após irem ao teatro e beberem champanhe,
Celeste aparece na cama tímida, totalmente coberta. Carneiro tira o robe de
chambre, copo de champanhe na mão, olha a esposa. Bebe um grande gole. Deita-
se na cama, quase por cima dela, que levanta a coberta com um certo pudor.
Celeste faz sinal que o abajur está aceso. O marido desliga a luz do abajur,
conforme descrição do autor.
comércio e serviços considerados mais sofisticados e inovadores, com mais opções culturais e de
lazer. A Zona Norte e o subúrbio são vistos como atrasados, retrógrados, carente de serviços
blicos e de opções de lazer.
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Leitora de romances “cor-de-rosa” como os de M. Delly, de livros da
Biblioteca das Moças e das fotonovelas fantasiosas da revista Grande Hotel,
Celeste não admite que a filha leia romances best sellers como Peyton Place (A
Caldeira do Diabo), de Grace Metalius, sucesso na década de 1950: “Não é
romance pra você não, Lourdinha, imagina! Eu até parei no meio, tem cenas
muito chocantes, uma pouca-vergonha, nem sei por que o seu pai guardou...”.
Celeste sugere que a filha leia apenas livros que incentivem a imaginação de quem
sonha com o príncipe encantado. Assim como as leitoras das publicações
argentinas analisadas por Sarlo
260
, esses “romances água com açúcar” apresentam
heroínas virtuosas, delicadas e de moral católica rígida. Suas expectativas são
casar com um homem honrado, de caráter nobre, elegante, forte e distinto. Afinal,
para mulheres como Celeste, o destino natural é ser mãe, esposa e dona de casa.
Segundo elas, essas são as marcas de feminilidade. Sexo, como Celeste disse
anteriormente, para satisfazer o marido e procriar. Quando a filha diz que sabe
muito mais de sexo do que ela imagina, retruca:
No dia em que você encontrar um bom rapaz e ficar noiva, quando estiver próximo
ao casamento, nós vamos conversar muito...A mãe tem obrigação de orientar. Por
enquanto, o importante é você saber que a mulher tem que chegar pura ao
casamento. Nenhum homem decente se casaria com uma moça que...(interrompe).
O tabu da virgindade norteia a conduta feminina. Para Celeste e suas
amigas, a virgindade funciona quase como um ornamento da feminilidade. Assim
como nas sociedades mediterrâneas, as regras que definem o relacionamento
feminino-masculino estão profundamente marcadas pela divisão de papéis em que
“homem” e “mulher” são concebidos como distintos e complementares. A mulher,
símbolo da pureza e castidade e depositária da “honra familiar”, deve possuir os
atributos da fragilidade, recato e doçura. Seu lugar é a casa o domínio privado ,
ao passo que ao homem está reservado o domínio público, a rua. As mulheres são
avaliadas em função de sua conduta moral basicamente a manutenção da
virgindade e da fidelidade ; os homens são a partir do seu desempenho
profissional.
261
Por essa razão, Celeste fez tanto gosto no relacionamento entre
260
Cf. SARLO, B., El Imperio de los Sentimientos, passim.
261
Cf. PITT-RIVERS, J., Honor y Categoria Social, passim; CAMPBELL, J. K., El Honor y El
Diablo, passim; PERISTIANY, J. G., Honor Y Vergüenza en una Aldea Chipriota de Montaña,
passim.
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Lourdinha e Lauro, “engenheiro formado e trabalhando em uma empreiteira, neto
de brigadeiro do Alto Comando, uma das melhores famílias da Tijuca”, durante o
período em que a moça esteve separada de Marcos.
A noção de família se baseia, para Celeste, nas aparências. A aprovação da
vizinhança
262
regula as relações sociais, especialmente as atitudes quanto aos
filhos (sobretudo as filhas) e as mulheres. A ideia de que não importa a realidade
dos fatos, mas sim como eles são avaliados por outros norteia as atitudes da mãe
de Lourdinha e de suas amigas:
A filha de Alaíde ficou noiva, estão comprando um enxoval maravilhoso, todas as
toalhas de rosto e de banho com monogramas...Mas Alaíde tem se aborrecido um
pouco, sabe? Imagina que outro dia a Rosa Lúcia queria ir a uma boate com o
noivo. Alaíde não deixa nem ir ao cinema sessão das dez! Sessão das oito pode; eu
acho que ela tem razão, afinal de contas noivo, um rapaz de toda confiança...mas
boate e sessão das dez, pera lá, sempre é bom confiar desconfiando! Eles sabem a
filha que têm, mas e os vizinhos? Você acha que não vão comentar?
A aprovação pública é garantida pela manutenção do nome da família que,
por sua vez, está amparado na noção de honra. É através da “conduta honrada”
das mulheres que o nome da família (representada pelo homem) é preservado. Se
o nome é atributo masculino, que cabe a ele transmiti-lo no casamento e na
descendência, a moralidade familiar, que sustenta o nome, cabe à mulher. A mãe
deve ser “honrada” para que os filhos possam ser considerados honrados
(especialmente a filha, vista como uma duplicação moral da mãe).
263
Assim,
Marcos, filho de “mulher separada”, é considerado rapaz de “família desajustada”
e, portanto, sem chances de obter a aprovação social dos moradores conservadores
da Tijuca.
Essa visão de “preservar as aparências” também se faz presente nas
considerações de Celeste sobre o adultério masculino, tolerado pela dupla
moralidade que caracteriza essas famílias. Nos anos 1950, o “temperamento
poligâmico” justificava a infidelidade masculina. Parcelas mais conservadoras da
262
Uso o termo vizinhança conforme definido por Park, isto é, “uma localidade com sentimentos,
tradições e uma história sua. Dentro dessa vizinhança a continuidade dos processos históricos é de
alguma forma mantida. O passado se impõe ao presente, e a vida de qualquer localidade se
movimenta com um certo momento próprio, mais ou menos independente do círculo da vida e
interesses mais amplos a seu redor.” PARK, R. E., A Cidade: Sugestões para a Investigação do
Comportamento Humano no Meio Urbano, p. 30.
263
Cf. ARAGÃO, L. T. de, Em Nome da Mãe, p. 115-125.
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sociedade, com valores patriarcais mais arraigados, tratavam o adultério praticado
por homens como “um fator natural que, mesmo quando considerado uma
fraqueza, merecia a condescendência social e a compreensão das mulheres.
Paciência e sacrifícios, integridade e determinação para manter a integridade da
família.
264
Ao comentar a separação de uma prima, Celeste confirma esse
pensamento:
Perdeu a cabeça por uma bilheteira de cinema...Mas Violeta podia ter feito vista
grossa...O papel da mulher é perdoar...Pegou em flagrante num desse antros, da
Barra da Tijuca, levou os dois pra delegacia...Vai pedir desquite. Três filhos, meu
Deus do céu, o que vai ser dessas crianças? Aqui em casa não botam mais os pés.
A valorização das aparências e da opinião pública (vista em oposição à
essência, às relações verdadeiras) é constantemente acionada por Celeste, Beatriz
(esposa do major Dorneles) e outras personagens femininas. O comentário de
Beatriz com o marido é um exemplo:
Ah, eu não te contei, conversei muito com um casal alinhadíssimo, naquela hora
em que você estava falando de política...Ele é dono de uma indústria de tecidos
maravilhosa e ela uma mulher de um it! Têm um filho de vinte anos, estudando
Direito! Eu estava pensando em chamar os três uma noite dessas pra jantar...Vinte
anos, não podia ser um ótimo partido pra Marina?
A aprovação da rede de vizinhança é regulada pelo mecanismo da fofoca a
troca permanente de comentários sobre as vidas uns dos outros, condenando os
comportamentos desviantes e louvando aqueles considerados de acordo com os
padrões legitimados que mantém a estabilidade das relações sociais. A fala final
de Celeste é ilustrativa diante de seu destino: a filha assume o namoro com
Marcos (perde a virgindade, engravida, sofre aborto espontâneo) e o marido se
suicida após se tornar público seu caso amoroso com uma cantora da boate. Ela
fala com Lourdinha e Marcos sobre o desejo de mudar de bairro, porque os
vizinhos têm conhecimento da sua “tragédia”:
Marcos: Não pode orientar a sua vida preocupada com opinião de vizinho, D.
Celeste...
Celeste: Não é isso, eu aprendi muito...essa época passou...E felizmente, a maior
parte nem sabe direito o que aconteceu... O deputado foi tão amigo, tão leal,
conseguiu abafar o caso, não saiu praticamente nada nos jornais... que algumas
pessoas realmente souberam... por isso eu queria fazer pra vocês um pedido muito
264
BASSANEZI, C., Mulheres dos Anos Dourados, p. 635.
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importante.... (dirigindo-se à Lourdinha, frágil) O seu pai errou, mas era um
homem bom, errar é humano, Cristo fez justiça.... Não comentem nunca essa
história triste com ninguém, que necessidade tem de estarem sabendo? Pra todos os
efeitos, Carneiro morreu num acidente, uma fatalidade.... Eu penso no futuro do
seu irmão, coitado, 10 anos de idade, se Deus quiser vai passar no admissão pro
Colégio Militar... Já vamos ter que mudar de bairro, eu não queria mudar de
cidade...
Lourdinha: (seca): Eu tenho muita pena da senhora.
Lourdinha e Rosemary são a outra dupla que sintetiza os modelos femininos
expostos na minissérie. Como já foi observado, no início da história a protagonista
é criada dentro dos mais rígidos padrões de comportamento. Vai à missa aos
domingos com a família e confessa, tem horários controlados, não pode ler nada
que não seja “literatura cor-de-rosa”, desconhece seu corpo e sua sexualidade;
suas amizades (e depois seus namoros) são permanentemente avaliadas, ou seja,
apesar de ter 17 anos ela é infantilizada pelos pais. É uma heroína de conto de
fadas ou de novelas “água com açúcar” em que são ressaltados os atributos da
pureza, doçura, virtude, languidez, fragilidade e ingenuidade. Muito religiosa,
aprendeu desde cedo que a moça deve ter autocontrole sobre seu corpo para “dar-
se ao respeito”. Educada para ser boa mãe e esposa, Lourdinha sempre acreditou
que a virgindade era o selo de garantia da honra e pureza feminina. O casamento é
seu principal objetivo e, no início, não é vista fazendo nenhum comentário sobre a
profissão para a qual se prepara, professora, ou qualquer outra. Na verdade, era
comum nos chamados Anos Dourados as moças procurarem o magistério, mais
próximo da função de mãe (uma espécie de maternidade do conhecimento).
Muitas faziam o curso normal para ter o prestígio do diploma e a chamada
cultura geral, o que não significava que seguissem a carreira.
265
O ideal do amor romântico norteava seus projetos e códigos de aproximação
do sexo oposto, numa espécie de “pedagogia do namoro”: “[Dançar de] rosto
colado com pelo menos uma semana de namoro. Pegar na mão, na terceira
semana e beijo só com um mês. Agora, beijar de boca aberta acho que com uns
três meses de namoro...”. Na verdade, o namoro era quase um compromisso, uma
etapa que precedia o noivado. O que existia antes era considerado “namorico”,
pouco mais que o antigo flerte. A sexualidade, para ela, sempre foi tema sob
265
Ibid., p. 625.
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censura, reserva, silêncio e preconceito. A falta de informações a faz entrar em
conflito com o namorado, quando os dois se sentem atraídos. Sua reação frente ao
desejo é de total pânico e a jovem briga com ele. Qualquer ameaça à perda da
virgindade significa leviandade, tornar-se mal falada, perder o crédito no
mercado matrimonial. Após flagrar Marcos beijando Rosemary, Lourdinha e a
rival discutem no pátio do colégio e a relação que ela faz entre recato sexual e
casamento fica evidente:
Rosemary: Acho tão antiquado festa de noivado!
Lourdinha (agressiva): Tem que achar porque não vai casar nunca!
Rosemary: Tá falando comigo, é?
As outras amigas apartam o início da briga.
Lourdinha (para um lado, insolente): Não me segura não, Marly, eu quero falar
umas verdades na cara!
Rosemary (de longe): Não tem competência pra prender um namorado!
Lourdinha: Não me passo pra bate-boca com mulher da sua laia não, viu?
Rosemary (de longe, muito irritada): Quem sabe da tua vida é a árvore da Quinta
da Boa Vista, santinha do pau oco!
Lourdinha começa a namorar Lauro, neto do brigadeiro, rapaz com atitudes
respeitosas, bem de acordo com os desejos de D. Celeste. Mas a jovem, além de
não esquecer o ex-namorado, considera Lauro excessivamente formal no
relacionamento. Até que descobre que ele a deixara em casa para, em seguida, ir a
um bordel. Ela se decepciona com o comportamento do rapaz, que repete o padrão
de seus pais com afirmações do tipo “Sexo não tem nada a ver com amor! ou
“Tem muita coisa nessa vida que uma moça de família não precisa nem saber que
existe”, e rompe o namoro.
Decide conversar com a professora Laís, que a ajudara a conseguir
permissão dos pais para o namoro com Marcos. É o momento da transformação da
heroína. Daqui em diante, Lourdinha passa a ser chamada de Lourdes por quase
todos os personagens (à exceção de sua mãe e de seu pai, que continuam tratando-
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a pelo diminutivo ou pelo nome composto, Maria de Lourdes, em situações que
envolvem seriedade).
266
Lourdes: Porque tudo que tem a ver com sexo tem que ser envolvido em tanto
mistério desde que a gente é criança? esperando neném é barriga d‟água... A
mulher tem que chegar pura ao casamento porque...porque é assim, ou então o
homem não respeita; será que não respeita mesmo? Eu não tenho tanta certeza
assim que o Marcos ia deixar de me respeitar se...(corta-se). Eu acho que o que
deixou o Marcos maluco foi essa ideia de que não pode, eu tenho certeza que ele
queria saber mais, assim como eu tô querendo saber mais! Não pode por quê?
Imoral por quê? Será que é mais decente frequentar prostíbulo até poder se casar
comigo quando se formar? Se alguém conseguir me provar que é mais decente, eu
acho que eu aceito, eu era capaz até de me prender pelo resto da minha vida. Mas
eu queria entender por que e eu tenho certeza de que o Marcos também! Mas não
feito a minha mãe...que fala que...se tomar banho depois do almoço morre, se
chupar manga e beber leite morre, porque a mãe dela dizia isso, a avó dela, a
bisavó, todo o mundo sempre falou isso e ninguém parou um segundo pra...pra
pensar: será que morre mesmo?
Na cena seguinte Lourdes procura Marcos em casa e os dois têm a primeira
relação sexual. A associação entre sexo e amor romântico se mantém, mesmo que
temporariamente fora do matrimônio. Mas o projeto de casamento fica mais forte
ainda e os dois passam a falar como casal, discutindo número de filhos, como
pretendem educá-los e outros desejos familiares, evidenciando a subordinação do
amor romântico à gica da aliança. Ter relações sexuais para Marcos e Lourdes
significa assumir um compromisso cujo objetivo final é o casamento, a fusão de
individualidades e a constituição de um indivíduo dual”.
267
Rosemary, que
assume posturas diferentes, também faz as mesmas associações entre sexo e amor
e entre amor e casamento.
266
Vários autores têm chamado a atenção sobre o uso do nome no diminutivo na sociedade
brasileira, na qual as relações pessoais têm um papel fundamental. Além de expressar afetividade e
intimidade (especialmente quando dirigidas às crianças), o diminutivo ameniza relações
hierárquicas e revela uma aparente cordialidade.
267
Eduardo Viveiros de Castro e Ricardo Benzaquen de Araújo analisam a peça Romeu e Julieta,
de Shakeaspeare, como mito de origem do amor. Eles observam que o modelo Romeu/Julieta
constitui um tipo ideal de “relação interindividual”, que produz uma espécie de
“desindividualização” gerando uma ambiguidade. “Põe em jogo duas noções distintas de
indivíduo: a primeira, em que o „indivíduo‟ é pensado como “singularidade idiossincrática
expressa na noção ocidental de „personalidade‟ e o indivíduo como membro da espécie. O amor
de Romeu e Julieta aciona essas duas noções: é como seres singulares que eles se aproximam, se
apaixonam e se unem pelo destino; mas o amor transforma essa relação em uma relação genérica
entre homem e mulher, ou mesmo numa relação interna ao amor como força impessoal”.
ARAÚJO, R. B. de; VIVEIROS DE CASTRO, E. B., Romeu e Julieta e a Origem do Estado, p.
155.
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Rosemary é uma jovem bonita, sensual, coquete, colega de classe de
Lourdinha. É considerada a mais “avançada” pelas outras normalistas. Por seu
comportamento liberal e sua postura desafiadora é tida pelas mães das amigas
como “moça falada”. Apenas os pais desconhecem sua reputação. Embora seja,
aparentemente, o clichê da garota rebelde que questiona os valores da sociedade,
Rosemary é a personagem do grupo jovem que inspira mais autenticidade. Não
tem “papas na língua”, fala tudo o que pensa; tem prazer em seduzir (como na
cena em que tira a roupa próxima à janela enquanto é admirada por rapazes que,
em outro edifício, a vêem de binóculo); veste roupas mais ousadas (calça
comprida, blusas coladas e mesmo a saia do colégio é mais curta, com pregas
mais abertas e justas que as de suas colegas); namora homem desquitado;
frequenta boates; anda de carro com namorado; aceita carinhos mais audaciosos; e
adora beijar e ser beijada.
Waizbort observa que o beijo (“mecanismo simbiótico do meio de
comunicação simbolicamente generalizado como amor”) pode ser visto como
forma de aproximação que promove uma espécie de igualdade simbólica entre os
participantes do ato:
À diferença do ato sexual (hetero e homossexual), em que fatalmente um penetra e
outro é penetrado, o que, portanto, impede a penetração mútua e simultânea dos
amantes, o beijo rompe com a lógica dessa penetração parcial: nele, penetrar e ser
penetrado são uma única e mesma coisa, unidade de dar e receber. Realiza a utopia
da liberdade da não hierarquia e da não dominação.
268
Para uma personalidade como a de Rosemary, com reivindicações femininas
mais liberais, beijar está plenamente de acordo com seus valores igualitários.
Além disso, o beijo, no final dos anos 1950, era o principal ícone da paixão.
Incentivados pelos astros hollywoodianos, jovens namorados escolhiam “o
escurinho do cinema”, especialmente a última fila, para sessões prolongadas de
beijos.
Esse comportamento mais permissivo e tido como desviante pelas
vizinhas e pelas colegas, fazia de Rosemary uma jovem “falada”, “garota fácil”,
namoradeira, leviana; ou nomes mais bizarros como vassourinha ou maçaneta
(que passa de mão em mão). Isso, conforme Lourdinha profetiza durante a briga, a
268
WAIZBORT, L., O Beijo dos Amantes, p. 252.
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descredencia no mercado do matrimônio. Revistas femininas enfatizavam que
essas moças poderiam ter muitos admiradores, mas acabariam solteiras, não
casariam. O argumento era de que os rapazes namoravam as garotas fáceis”, mas
não as desejavam para esposas. E as próprias “moças de família” deveriam evitar
a companhia das levianas, para que não fossem afetadas pela “má fama” delas.
269
A rivalidade entre “moças de família” e “garotas fáceis” era comum nos grupos de
jovens e as acusações mútuas indicavam que o que se colocava em questão era a
escolha dos rapazes. Isso porque ainda eram os homens que escolhiam a candidata
para casar. Como disse Lourdinha em uma discussão com Rosemary: “Não quero
conversa não, sabe Rosemary. Por causa de garotas feito você, que não se dão o
respeito, é que nós sofremos....”
Entretanto, se por um lado Rosemary não se sente presa aos valores morais
tradicionais, por outro também vincula a atividade sexual ao amor romântico. Isso
fica claro na cena em que ela e Marcos estão sozinhos na casa dela, os dois
deitados no chão, ele sem camisa, ela de saia e de sutiã indicando que quase
chegaram a fazer sexo. Ele, surpreso, percebe que ela é virgem e ela questiona se
alguém havia dito que não era mais:
Rosemary: Porque eu não tenho vergonha de gostar (faz carinho nele com
assumida atração física). Gosto sim, Marcos, sempre gostei...Desde muito garota,
sentia atração, vontade... Nunca fui atrás de conversa mole que era imoralidade,
pecado... Porque que havia de ser imoral uma coisa que dentro da gente, que
Deus criou, imoral por quê?...Eu tenho um medo muito grande de engravidar. Uma
colega minha, ano passado, teve que se casar por causa disso. Não tenho nem
certeza se ela gostava do rapaz. Largou o colégio, casou... Isso eu não quero nunca,
entende, me casar por um motivo assim, acho que não certo, casamento é uma
coisa importante demais, passar o resto da vida junto, criar filhos... (faz carinho)
mas eu gosto, não tenho vergonha nenhuma. E se um dia eu tiver... muito
apaixonada... por um cara que vá se casar comigo...vou me entregar na mesma hora
sim, porque eu tenho tanta vontade quanto você, quanto todo homem... Porque que
pra vocês não é proibido, todo o mundo aceita? Eu acho que a mulher também
gosta e precisa... Não o ato físico, mas o carinho...duas pessoas juntas...a ideia
de duas pessoas serem uma só...
Marcos: De qualquer maneira a virgindade pra você é...tão tabu quanto pra
qualquer colega sua...
Rosemary (agressiva): Tabu nenhum...Acho mais um peso...Mas se eu me entrego
a um homem, na maior paixão...e um dia a gente briga...Mais tarde eu não posso
269
Cf. BASSANEZI, C., Mulheres dos Anos Dourados, p. 612.
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me apaixonar por um outro que faça questão de uma virgem? Vocês todos fazem.
Tabu pra vocês.
Como se pode observar, os critérios de Rosemary para ter relações sexuais
não são muito diferentes dos de Lourdes. Ambas subordinam a quebra do tabu da
virgindade ao amor romântico e ao código de aliança. No final, é a possibilidade
de casamento que está em jogo, realização maior da mulher nessa época. Vale
destacar que no final dos anos 1950 a pílula anticoncepcional ainda não havia sido
inventada (coisa que vai ocorrer em 1960). Portanto, o risco de gravidez é um
dado concreto para se pensar no exercício da sexualidade feminina nesse contexto.
No epílogo, Rosemary, após um divórcio, se torna escritora, socióloga e feminista.
Por último, é importante ressaltar um elemento usado na construção da
sexualidade dos jovens e que ajuda a compreender que modelos femininos e
masculinos estão presentes na minissérie: o humor. É através de situações cômicas
(que põem o drama entre parênteses), especialmente envolvendo o personagem
Urubu, que a sexualidade masculina é também retratada e, consequentemente, o
lugar da mulher no universo moral masculino. Urubu é o típico gaiato, estilo bon
vivant e obcecado por sexo. Suas artimanhas para ter uma aventura sexual não têm
limites. E não se ocupa apenas em garantir a sua satisfação; ele é o der dos
rapazes na busca de prazeres sexuais. Desde incentivar Marcos a ter relações com
a empregada doméstica de sua casa (prática comum entre os rapazes de classe
média na época, o que revela também hierarquias sociais), convencer os amigos a
frequentarem o bordel da Georgete, no Catete; até mostrar fotografias de Brigitte
Bardot em E Deus Criou a Mulher e descrever todos os detalhes do filme, ou
pegar o baralho de mulheres nuas no armário do pai para mostrar aos amigos.
Também estimula o seu imaginário e o dos companheiros inventando brincadeiras
do tipo sugerir a Claudionor, que é gordo, “trepar” na alemã Berkel, da farmácia,
como se fosse uma mulher quando se trata de uma balança; ou simular visitas
semanais à casa da viúva mais atraente da vizinhança como se tivesse encontros
amorosos com ela quando, na verdade, lhe faz companhia assistindo a um seriado
famoso na televisão.
Seu discurso para Lourdinha, quando explica à moça por que Marcos
procurou Rosemary, após ter fracassado com a prostituta no bordel, retrata bem
como era construída a sexualidade masculina: “A gente fica namorando... Muito
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beijo... Carinho... Fica... muito excitado... O homem tem que descarregar de
alguma forma, até médico manda... Vosabe que homem é diferente, não pode
culpar o Marcos por causa disso...”. Urubu reflete, em sua fala, os valores morais
predominantes no que se refere ao desempenho sexual masculino e que também
estão presentes nos discursos de seu pai e do pai de Marcos, de Lauro quando é
flagrado por Lourdinha saindo do prostíbulo e mesmo no do major Dorneles,
falando de adultério masculino: “Pulo a cerca uma vez ou outra. Mas qual o
homem que não pula?A concepção que vigora é a de que, assim como para as
mulheres a virgindade é o passaporte para o casamento, caminho para a
feminilidade plena, o exercício da virilidade (dentro ou fora do casamento) é o
passaporte para a masculinidade. Afinal, como “precisava descarregar”, o
adultério masculino era estimulado, e cabia à esposa tolerar o “temperamento
poligâmico masculino”.
6.4. Hilda Furacão
Adaptação do romance homônimo do escritor mineiro Roberto Drummond,
a minissérie Hilda Furacão, exibida em 1998, foi escrita por Glória Perez e
dirigida por Wolf Maya, Maurício Farias e Luciano Sabino. A história se passa no
final da década de 1950 e primeira metade dos anos 1960, quando a sociedade
brasileira assiste às transformações sociais, econômicas, políticas e culturais,
iniciadas nos Anos Dourados e aceleradas na passagem da década. O conflito
entre valores tradicionais e modernizantes também pauta a narrativa de Hilda
Furacão, que se desenrola em regiões cujas visões de mundo e estilos de vida
eram reconhecidamente conservadores: certos bairros de classe média e de elite de
Belo Horizonte e da pequena cidade de Santana dos Ferros, próxima à capital,
onde predominava o que se convencionou chamar de “a tradicional família
mineira”.
A história é centrada na trajetória de Hilda Gualtieri Müller, interpretada
pela atriz Ana Paula Arósio. Moça de classe média alta de Belo Horizonte, Hilda,
por opção, abandona o futuro marido no altar e a vida na alta sociedade e se torna
uma das meretrizes mais famosas de Minas Gerais. A narrativa é, em parte,
memorialista, que muitos acontecimentos fazem parte das lembranças do
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escritor, e outra parcela é pura ficção. A personagem principal Hilda Furacão é
uma construção fictícia, embora o escritor e a autora tenham decidido dizer que se
tratava de um personagem verdadeiro e, após a exibição da minissérie, assumido
que ela fora uma criação a partir de uma síntese de várias mulheres da zona de
meretrício que o escritor conhecera no passado. Mesmo assim não faltaram
candidatas a Hilda quando a minissérie estava sendo exibida.
270
Essa relação com
a realidade é reforçada pelo próprio texto original: Roberto Drummond estabelece
ao longo da história um permanente diálogo com o leitor, produzindo uma
intertextualidade através de referências a situações plausíveis no contexto, a locais
reais e a personagens verdadeiros como, por exemplo, na sua descrição da
protagonista:
Ela era uma bela mulher, inesquecível moça; ficava na beira da piscina olímpica do
Minas Tênis Clube, onde o futuro escritor Fernando Sabino bateu recordes como
campeão de natação; onde mergulhou um jovem que seria o famoso cirurgião
plástico Ivo Pitanguy. Dizem que na época ganhou uma ode feita pelo poeta Paulo
Mendes Campos e inspirou um conto (ainda que ele negue) de Otto Lara
Resende.
271
Real ou imaginária, o que importa aqui é que Hilda Furacão foi lida e vista
com todas as características de um mito: narrativa fora do tempo, reconhecida por
leitores e telespectadores como uma construção coletiva (embora seja uma criação
fictícia de um escritor e, posteriormente, recriada por uma autora de
teledramaturgia), fornecendo sistemas de classificação que tornam inteligíveis
270
A especulação sobre a existência real de Hilda Furacão, e mesmo de outros personagens, como
seu grande amor, frei Malthus, foi estimulada pelo noticiário durante a exibição da minissérie. A
suposta existência de um documento assinado por Roberto Drummond, guardado nos Estados
Unidos, selando o compromisso de não revelar nomes ao escrever o romance, ajudou na difusão
das especulações sobre a personagem. Da mesma forma, o personagem frei Malthus, inspirado em
frades dominicanos que o escritor conhecera na juventude, foi associado ao dominicano Frei Betto.
(O Globo, 4/6/1998, Jornal do Brasil, 5/7/1998, Estado de S. Paulo, 18/7/1998). A autora Glória
Perez, em entrevista publicada no livro Autores: Histórias da Teledramaturgia (MEMÓRIA
GLOBO. Livro 1, p. 460) conta que apareceram centenas de mulheres que podiam provar ser a
verdadeira Hilda. Homens diziam ter conhecido Hilda e até um famoso diretor declarou que teria
sido a primeira mulher de sua vida e relatava, com orgulho, sua iniciação com ela. A pesquisadora
Mônica Kornis, em sua tese de doutorado Uma História do Brasil Recente nas Minisséries da
Rede Globo observa que a discussão provocada na minissérie expressava os códigos
predominantes referentes à moralidade e à sexualidade presentes na sociedade e tratados pela
imprensa em relação às ficções televisivas. Ela chama a atenção para o fato de o Jornal do Brasil
ter noticiado, em 06/06/1998, que uma forte gripe que atingiu a população do Rio de Janeiro
quando a minissérie era exibida ganhou o apelido de Hilda Furacão porque levava para a cama as
pessoas contaminadas pelo vírus. KORNIS, M., Uma História do Brasil Recente nas Minisséries
da Rede Globo, p. 51.
271
DRUMMOND, R., Hilda Furacão, p. 40.
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valores e modelos presentes na vida social que, de outra forma, seriam percebidos
de modo fragmentado.
272
Nesse sentido, ela se aproxima de outros mitos
brasileiros envolvendo mulheres transgressoras como D. Beja (ou D. Beija, como
acabou sendo conhecida) e Chica da Silva. É certo que Hilda Furacão simboliza
no imaginário social um dos modelos femininos dominantes na tradição cristã
ocidental tratado no capítulo anterior: o da mulher associada às tentações da carne,
aquela que se rende à sexualidade e sucumbe às tentações do demônio, cujo
símbolo é a prostituta. Essa mulher associada ao sexo, à carne, à natureza (e,
portanto, incontrolável) é inferior ao homem (que, por sua vez, está associado ao
espírito, à cultura), que deve dominá-la e controlá-la. Essa relação entre os sexos,
predominante nas sociedades mediterrâneas e na sociedade patriarcal brasileira,
está inscrita na narrativa de Hilda Furacão.
A análise da minissérie é baseada na sinopse apresentada pela autora com a
descrição do argumento e dos personagens, os scripts dos 32 capítulos e o DVD
com uma edição compactada dos capítulos com 12 horas de duração e que contou
com o acompanhamento da autora. Ao confrontar o texto dos scripts com a edição
em DVD, verificou-se que ela foi fiel ao texto, cortando apenas cenas
dispensáveis ao desenvolvimento da trama. uma congruência entre a história
do livro e a da obra exibida na televisão, mas foram feitas alterações significativas
na ficção televisiva com a diminuição de personagens e a introdução de novos, a
adaptação para a linguagem visual e a mudança no final de modo a seguir as
convenções do melodrama: o happy end.
273
272
Cf. LÉVI-STRAUSS, C., Mitologia e Ritual, p. 121 passim.
273
A autora Glória Perez, em depoimento publicado no livro Autores: Histórias da
Teledramaturgia (MEMÓRIA GLOBO. Livro 1, p. 459-460), explica: “No começo, o Roberto teve
medo de que eu distorcesse a obra dele. Saíamos para jantar, e eu explicava que a história teria que
ser transformada para o formato de minissérie, mas o importante era que o sabor de sua escrita
permanecesse, que as pessoas reconhecessem o seu estilo. Ele participou com um entusiasmo
incrível da produção de Hilda Furacão...Nós, autores, sabemos o que é a agonia de ter criado uma
história e o medo de que ela não chegue ao público tal como imaginamos. O escritor do romance
chega diretamente ao leitor. Na televisão, tudo passa pela concepção do diretor, dos atores, da
direção de arte, da cenografia, da edição. Enfim, pode resultar igual ao que você imaginou, mas
também pode resultar muito diferente. Eu entendia a angústia do Roberto. não concordei que
ele lesse os capítulos, queria que visse o resultado final, mas eu contava a ele como estava fazendo
a adaptação. No fim do primeiro capítulo, escrevi uma cena em que a Hilda entrava na zona, no
Maravilhoso Hotel, vestida de noiva, ao som de Ave Maria, de Gounod. Quando contei ao
Roberto, ele ficou dois minutos em silêncio do outro lado da linha, e confessou que estava
apavorado. Meia hora depois, ligou entusiasmado: „Imaginei a cena! É a minha Hilda!‟. Uma das
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Hilda Furacão tem início em de abril de 1959 e se encerra em de abril
de 1964, um dia após o golpe militar, e conta com um breve epílogo no ano de
1968. Ao longo de toda a história há um narrador: é a voz do personagem
Roberto, o próprio escritor Roberto Drummond, que ora narra usando a encenação
dramatúrgica (seu personagem em cena), ora assume o papel de apresentador e
comentador das situações e demais personagens. Às vezes, o narrador assume o
lugar de protagonista, mas logo devolve o posto para a personagem principal.
Jovem jornalista, idealista, ligado ao Partido Comunista, é elo de ligação entre a
história de Hilda, os demais personagens e os acontecimentos sociais e políticos
do período. De certa forma, assume um duplo papel: é o narrador propriamente
dito, aquele que “retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou
a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência de seus
ouvintes”, nas palavras de Benjamin.
274
Assim, deixa vestígios na narrativa
enquanto alguém que vive as situações descritas ou de quem as relata. Mas
também é personagem da história na voz do cronista solitário, o indivíduo isolado,
“que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais
importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los”.
275
Roberto atravessa a
história de Hilda Furacão como narrador onisciente e personagem onipresente aos
acontecimentos. Essa posição é facilitada pelo fato de seu personagem ser um
jornalista que trabalha em um dos principais jornais de Belo Horizonte e tem livre
acesso aos estúdios da rádio da cidade.
É nessa condição de narrador/personagem que Roberto conta a história de
três amigos de infância desde os tempos do colégio católico em Santana dos
Ferros que, no início da vida adulta, partem para a capital em busca da realização
de seus projetos. Além de Roberto, que vai tentar um emprego em um jornal,
Malthus, conhecido como o Santo, que deseja ser frade dominicano; e Aramel, o
Belo, um rapaz bonito que pretende aprender inglês para um dia ser ator em
maiores alegrias que a minissérie me deu foi o fato de o Roberto ter se reconhecido nela, de eu ter
conseguido manter o estilo dele, apesar de todas as mudanças que fiz.”
274
Cf. BENJAMIN, W., O Narrador: Observações sobre a Obra de Nikolai Leskow, p. 201.
275
Ibid.idem, p. 201.
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242
Hollywood. Chegam à cidade e logo se entusiasmam com as descobertas
proporcionadas pela vida na metrópole. Enquanto Malthus se adapta à vida no
convento, Roberto e Aramel vão à missa dançante no Minas Tênis Clube,
tradicional clube de Belo Horizonte. Roberto se impressiona com a nova Miss
Verão, a “garota do maiô dourado”, Hilda.
Filha de tradicional família mineira de classe média alta, a moça é de uma
beleza estonteante que, segundo as fofocas, já teria levado um ex-noivo ao
suicídio após recusar-se a casar com ele. No mesmo dia do concurso, a jovem
conhece um rapaz de família rica com quem acaba namorando e depois noivando.
Às vésperas do casamento, indecisa com o importante passo que daria, decide
consultar-se com uma famosa vidente da cidade, Madame Janete, que lhe assegura
que aquele com quem ela está comprometida não é o homem de sua vida. E que
seu verdadeiro amor aparecerá após muito sofrimento, quando ela perder um
sapato. Aquele que o encontrar e o devolver é o homem ideal.
276
A princípio Hilda
ignora o prognóstico, mas, no dia do casamento, recusa-se a ir à igreja e explica
ao noivo que não se sente segura para casar. Ele, desesperado com a vergonha
pública de ser abandonado no dia do casamento, e certo de que ela tem um amante
lhe propõe que realizem a cerimônia e o levem para a lua de mel (mantendo as
aparências, é claro). Os dois brigam. A mãe também tenta convencê-la a casar a
qualquer custo, mesmo sem amar o noivo, preocupada com a opinião pública e
com os presentes que recebera da alta sociedade de Belo Horizonte. Revoltada
com a hipocrisia da família e do meio em que vive, Hilda arruma suas malas e
deixa a casa de táxi, sem rumo.
Decide parar no Maravilhoso Hotel, na zona boêmia, conhecida como área
de prostituição da cidade. Vestida de noiva, é acolhida pelas prostitutas e travestis
do local e passa a ocupar o quarto 304. Faz do seu véu de noiva as cortinas do
quarto e se transforma na mais disputada meretriz de Belo Horizonte. Desafia os
preceitos morais e os “bons costumes” da época e provoca escândalo nas
conservadoras famílias mineiras. Com seu jeito compreensivo de „boa moça‟,
torna-se amiga e líder das prostitutas da região, especialmente de Cintura Fina, um
276
A referência ao mito de Cinderela (ou da Gata Borralheira) é óbvia, reforçando o traço
intertextual da narrativa.
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243
travesti conhecido por sua “navalha que voa durante uma briga”, e Maria Tomba
Homem, estivadora durante o dia e prostituta de rua à noite. Apenas Hilda
consegue separar a briga entre os dois personagens. Frequentadora assídua do
Montanhês Dancing Club, onde apresentação de orquestras e shows de strip
tease, Hilda Furacão se transforma na sensação entre os homens do local, que
enfrentam longas filas de espera até o triunfal encontro com a ex-menina da alta
sociedade. Jornalistas se aglomeram em frente ao hotel para ver a nova prostituta,
mas apenas Roberto consegue se aproximar dela para fazer uma reportagem sobre
os motivos que a levaram a optar pela prostituição. Ela lhe promete um dia contar
a verdade. Tornam-se amigos e confidentes.
Paralelamente, frei Malthus, interpretado pelo ator Rodrigo Santoro, o
amigo de Roberto que desde criança foi preparado pela mãe e pelo conservador
padre Nelson para se tornar um “santo”, começa a sentir sintomas de angústia no
convento. Cooptado pelos setores tradicionais da sociedade, frei Malthus integra-
se à luta para expulsar as prostitutas da zona boêmia, localizada no centro de Belo
Horizonte, e transferi-las para a Cidade das Camélias, na periferia da cidade. Com
a chegada de Hilda Furacão, a região ganhara notoriedade na mídia. O discurso
das beatas e do padre Cyr, der do projeto, anticomunista e defensor aguerrido
dos valores morais religiosos, é revelador: para evitar a “poluição” provocada pela
prostituição, constrói-se um bairro novo para segregá-las. Como afirma o padre:
Sou justo, a Madalena o que é de Madalena! Que as Madalenas exerçam o seu
ofício, está muito certo! Mas não no centro de uma metrópole como Belo
Horizonte! Não no coração de uma cidade que cresce, se desenvolve e ganha foros
de capital do mundo! Vamos transportá-las para a periferia, vamos construir pra
elas a Cidade das Camélias, onde poderão viver em paz e deixar a família mineira!
Malthus, com sua fama de “santo, passa a liderar o movimento pela Cidade
das Camélias; Hilda, à frente dos frequentadores e moradores da zona boêmia,
convence-os a lutarem para permanecerem no local. Decidido a “exorcizar” o
demônio simbolizado por Hilda Furacão, de quem tem apenas notícias através das
beatas e dos programas de rádio, o frade encabeça uma passeata até a Zona. Como
diz uma das beatas: “Será o embate entre o pecado e a virtude! O santo Malthus
contra a força maligna de Hilda Furacão!”. O confronto entre os dois grupos acaba
em uma grande confusão com brigas e gritos durante um forte temporal. A polícia
intervém e a multidão se dissolve. Mas Hilda perde seu sapato de estimação, que é
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encontrado por Malthus. O frade, envergonhado, pega o sapato sem que o vejam e
leva para o convento. A previsão da vidente começa a se concretizar.
Daí em diante uma série de acontecimentos aproximam e afastam os dois
personagens. Aos poucos ambos revelam cada vez mais sua fragilidade diante do
outro. Hilda assume seu amor por ele, certa de que se trata do homem da sua vida
previsto pelas cartas. Ele foge da atração que sente pela prostituta: vai para
Santana dos Ferros, onde desabafa com padre Nelson, seu mentor, para reforçar a
decisão de dedicar-se ao sacerdócio. Sua mãe, fervorosa beata, lhe prepara potes
de geleia de jabuticaba, que ele come compulsivamente nos momentos de
ansiedade. Diante de qualquer pensamento considerado por ele “pecaminoso”,
submete-se a sessões intermináveis de autopunição e autoflagelação. Santana dos
Ferros é um microcosmo, onde o conservadorismo religioso, através das atitudes
repressoras de padre Nelson, impede qualquer tentativa de penetração de valores
liberais: controla as prostitutas locais, proibindo que atravessem a ponte que
poderia levá-las à cidade; pesadas penitências aos fiéis como forma de
controlar qualquer comportamento transgressor; proíbe desfile de carnaval,
tocando insistentemente os sinos da igreja, a gargalhada alta da mulher do
delegado, as mulheres de ficarem sozinhas com os homens e o sacristão de
demonstrar suas atitudes homossexuais. O padre é o principal baluarte da
moralidade conservadora da cidade e quem mantém frei Malthus fiel aos
princípios da Igreja. É com ele que o rapaz se confessa atraído por Hilda e é ele
que tentará evitar que os dois voltem a se ver.
Mas a atração entre Hilda e Malthus é mais forte e eles, com a mediação de
Roberto, acabam tendo um caso amoroso. Após muito conflito entre manter a vida
celibatária dedicando-se ao sacerdócio ou entregar-se ao amor de Hilda Furacão,
ele decide ir embora com ela para o Rio de Janeiro e marca um encontro numa
praça do centro de Belo Horizonte, no dia de abril de 1964. Mas os
acontecimentos políticos que desembocam no golpe militar impedem a realização
do sonho do casal: ele é preso por atividades subversivas e submetido a
interrogatório; ela, no meio das manifestações públicas da “Marcha da Família
com Deus pela Liberdade” contra estudantes e comunistas que ocorre na cidade,
sente-se abandonada e vai embora sozinha para o Rio de Janeiro. No livro de
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Roberto Drummond, a história de Hilda Furacão e frei Malthus acaba aqui. Na
minissérie, um epílogo que se passa em 1968 com Malthus, integrante da
Igreja progressista, numa passeata no centro do Rio de Janeiro. A manifestação é
reprimida pela polícia e no meio do tumulto ele deixa cair seu terço no chão que,
coincidentemente, fica sobre um pé de sapato de mulher. Ao olhar, vê Hilda, que é
uma das manifestantes, a dona do sapato perdido. Cenas de flashback em preto e
branco dos vários encontros do casal se alternam até que os dois se aproximam ao
som da música tema e da fala da vidente dizendo para Hilda quando jogou cartas
pela primeira vez: O que Deus risca, ninguém rabisca.” O “final feliz” do
melodrama se confirma.
Tramas paralelas à história central ajudam a compor o quadro de embate
entre valores arcaicos e conservadores x valores modernos e liberais. Roberto, o
narrador, entra para o Partido Comunista e todos os encontros e discussões dos
membros do partido pautam diversos momentos da narrativa ajudando a construir
o contexto histórico-político. Ele se apaixona por Bela Bê, de família tradicional e
anticomunista. Após muita oposição da família ao relacionamento, os dois se
casam. Aramel, o Belo, depois de um período em que ganha dinheiro como
cafetão, apaixona-se por uma jovem que o abandona e se torna mulher do
empresário para quem trabalhava, consegue ir para Hollywood. Termina fazendo
o papel de motorista em um filme de Marilyn Monroe. A cidade de Santana dos
Ferros também sofre uma reviravolta: com a saída do padre Nelson da cidade para
ficar um tempo em Belo Horizonte e depois ir fazer um curso em Roma, e a
chegada do novo padre, progressista e identificado com a Teologia da Libertação,
os fiéis passam a se confrontar com o conservadorismo que pautou seus
comportamentos até então. Os personagens da zona boêmia aparecem no final
vivendo harmonicamente. Com a ajuda de Hilda, conseguiram, em votação na
Câmara dos Vereadores, permanecer no mesmo local e manter suas atividades.
Assim como em Anos Dourados, o pano de fundo dos dilemas apresentados em
Hilda Furacão também pode ser resumido em “mudar ou permanecer”.
Hilda Furacão põe em jogo dois tipos ideais de modelos femininos
presentes desde os primórdios do Cristianismo: o da Virgem Maria, mulher
virtuosa, santa e pura, mbolo do recato e do sacrifício; e o da prostituta, mulher
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desregrada e sedutora, símbolo da carne e do sexo, em permanente estado de
pecado. Como foi visto anteriormente, essas duas visões antagônicas da mulher,
“Esposa de Cristo” e “Portão do Diabo”, nos termos de Bloch
277
, estão na base do
antifeminismo. Ao colocá-la como redentora e, portanto, inatingível; ou sedutora,
alguém que deve ser segregada, afastada do convívio social, o feminino é
concebido como algo abstrato, fora da vida pública. O sermão de padre Nelson é
bem revelador desse ponto:
Ai da mulher escandalosa, que usa roupas decotadas, unhas compridas e
vermelhas! Ai da mulher que sai na rua com a cara cheia de pintura e o corpo cheio
de perfume, induzindo os homens a pecarem através de palavras, obras ou
pensamentos! Ai do homem que blasfema! Que joga, bebe e chafurda na lama dos
bordéis e sacrifica sua vida e a vida de sua família no altar dos vícios e das orgias!
Ai das crianças de boca suja, que dizem nome feio, desobedecem os pais, fazem
má-criação e ficam olhando escondido fotografias indecentes! Todos esses vão
arder, vão torrar no fogo do inferno!
Não é à toa que o movimento de retirar a zona boêmia do centro da cidade
ganha força entre as famílias mais tradicionais, especialmente entre as esposas e
mães, e entre representantes conservadores da Igreja. A ideia de limpeza moral da
cidade, transferindo para a periferia uma região
278
ocupada pela prostituição e pela
boemia, é impregnada pelas noções de contaminação, poluição e sujeira
279
,
acionadas para qualificar um local que é fonte de perigo.
280
A acusação de zona de
contaminação e fonte de contágio é reforçada pela imagem de impureza da
sexualidade feminina. A prostituta é aquela que provoca a desordem e mesmo a
subversão da relação hierárquica, que caracteriza a ordem familiar tradicional. Isto
277
Cf. BLOCH, R. H., Misoginia Medieval e a Invenção do Amor Romântico Ocidental, passim.
278
Vale pensar no conceito de “região moral” desenvolvido por Park (PARK, R. E., A Cidade:
Sugestões para a Investigação do Comportamento Humano no Meio Urbano, p. 64), que busca dar
conta do movimento que ocorre na vida e na organização das cidades em que parcelas da
população segregam outras não em função dos seus interesses, mas também de seus gostos e
comportamentos.
279
Maria Dulce Gaspar chama a atenção para a associação feita entre prostituição, sujeira,
poluição e contaminação. no imaginário social a percepção de que a prostituta, por ter relações
sexuais com diversos homens, é fonte de transmissão de doenças venéreas. Pesquisas realizadas no
Brasil e no exterior têm mostrado que os índices de doenças venéreas em prostitutas são bem
inferiores aos existentes em outros grupos sociais. A necessidade de cuidar do corpo para preservar
sua fonte de renda e a maior consciência em relação a hábitos de higiene e cuidados médicos são
algumas explicações. Porém, quase que um “consenso” em representar as regiões de
prostituição como locais poluídos. GASPAR, M. D., Garotas de Programa. Prostituição em
Copacabana e Identidade Social, passim.
280
Cf. DOUGLAS, M., Pureza e Perigo: Uma Análise dos Conceitos de Poluição e Tabu, passim.
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247
é, aquela que prevê o englobamento do gênero masculino pelo feminino. A
prostituta se constitui em indivíduo pelo exercício excessivo de sua sexualidade;
pela total desvinculação da atividade sexual da reprodução e da gica da aliança;
pela transformação do corpo e do sexo em mercadoria, ou seja, a troca do sexo por
dinheiro; e por tornar possível o feminino “incorporar” o masculino. Usando seu
poder de mulher ligada à natureza, sem vínculos sociais que a definam como
pessoa que a prostituição contamina os demais papéis sociais, Hilda, por meio
de sua beleza, sexo e capacidade de sedução, captura o homem. Ao fazê-lo,
estabelece a supremacia sobre o gênero masculino. E aqui as semelhanças com o
mito D. Beija são significativas:
O mito [D. Beija] coloca (...) a possibilidade de a mulher ser indivíduo fora da
cultura, na natureza. Enquanto ser definido apenas por forças naturais, ela pode
subverter a cultura (...) e tornar-se poderosa. Mas estará sempre fora da
humanidade, em estado de pecado e infelicidade, isto é, em estado de carência
interna. O mito correlaciona essa carência com uma inscrição social precária e com
a distância de Deus.
281
No caso de Hilda, a transgressão é agravada por ter optado pela prostituição
não por razões financeiras que vem de família de classe média alta , mas
ligadas à subjetividade (desejo de romper com a hipocrisia da família e da
sociedade que a cercava e a busca do amor verdadeiro). Hilda mantém relações
sexuais com vários homens em troca de dinheiro sem a justificativa
socioeconomica, em geral atribuída ao exercício da prostituição. Isso é
suficiente para ser estigmatizada.
282
Ao ficar rica e estabelecer uma rede de
influências a partir da prostituição, ela adquire também prestígio e poder em
certos círculos: contribui financeiramente com o coral de meninos organizado por
frei Malthus; ajuda Aramel a comprar a passagem para os Estados Unidos e lhe dá
dinheiro para começar a vida em Hollywood; dá aulas de etiqueta a Leonor, jovem
prostituta que foi pedida em casamento por rapaz da alta sociedade; ganha joias e
presentes de seus admiradores e candidatos a marido; e impede que a Câmara dos
Vereadores (onde tem vários fregueses) vote pela transferência da zona boêmia
para a periferia .
281
ABREU FILHO, O. de, Dona Beija: Análise de um Mito, p. 93.
282
Simmel, em estudo sobre o sistema de trocas simbólicas que envolvem a prostituição, observa
que ela significa uma modalidade de relação em que ocorre a transferência da impessoalidade do
dinheiro para o corpo feminino. SIMMEL, G., Prostitution, p. 122.
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248
O contraponto à imagem feminina transgressora e incontrolável de Hilda,
mulher que vive do sexo e da carne, fonte do pecado, é a figura recatada, virgem e
pura encarnada não em uma mulher, mas em frei Malthus. É ele que corresponde
ao ideal da Virgem Maria; fonte de virtude, vive para o espírito, para a doação e o
sacrifício; é ele que tem sua sexualidade vigiada para não sucumbir ao pecado.
Isso fica claro no diálogo entre os dois em um encontro na capela do convento,
quando percebem que estão se apaixonando:
Malthus (angustiado): Por que você tá lá... naquele lugar?
Hilda: É a minha penitência! Cada um tem a sua! Minha penitência termina no
começo do ano de 1964. Quando chegar o momento eu vou sair da Zona Boêmia,
vou sair de Belo Horizonte e ninguém nunca mais vai me ver nessa cidade!
Malthus (pasmo): Mas quem lhe deu essa penitência?
Hilda: Deus!
Malthus (raiva): Deus nunca mandaria uma pessoa levar a vida que você
levando! Nunca!
Hilda: Você é um santo...O que é que você sabe das pessoas que são carne e
osso?
Malthus: Também sou carne e sou osso!
Hilda: Mas foi escolhido por Deus para entrar no reino dele pela porta da frente...
Eu faço parte daqueles que podem até chegar lá, mas pela porta dos fundos!
Malthus (enfurecido): E você vem aqui tentar um homem que está travando uma
luta contra a carne, contra a matéria, para entregar-se inteiramente a Deus! Vem
dizer que ama...ama e vai continuar levando a vida que leva por mais três anos?
Hilda: (assustada) Santo...
Malthus: E se eu amasse você? E se eu amasse, hein? E se eu amasse?
Hilda: Se amasse, entendia...
Malthus (atropelando): Nem que eu precisasse amarrar você, trancar a cadeado e
guardar a chave comigo! Ninguém pode entender uma atrocidade dessa! Ainda
mais amando aquela pessoa! Ninguém! Quem foi que lhe enfiou essa barbaridade
na cabeça? Fale! De onde é que você tirou a ideia de se impor essa penitência
absurda...?
A prostituta, enquanto mulher que perdeu a honra a virgindade, através
do exercício da sexualidade com múltiplos homens , é uma categoria desviante,
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249
nos termos de Becker
283
, alguém que tem um comportamento que infringe as
regras estabelecidas pela sociedade maior da qual faz parte. É na interação com os
outros membros dessa sociedade que a acusação de desvio é atribuída e o
indivíduo passa a ser estigmatizado. No caso das prostitutas, é possível afirmar
que se trata de desviantes sociais, conforme Goffman define, ou seja, aquelas que
se agrupam em uma subcomunidade ou meio, e são consideradas pela sociedade
mais ampla “engajadas numa espécie de negação da ordem social.
284
A acusação
implícita na fala de Malthus para Hilda é a de que, ao optar pela prostituição, ela
prefere o estigma de ser promíscua, impura e profana e, assim, deixar de ocupar o
papel feminino que tradicionalmente lhe era reservado: mulher recatada, virgem,
pura, dedicada ao lar. E não “mulher da rua”.
285
As oposições pureza x impureza, recato x descontrole, virgindade x
prostituição, identificadas nas figuras de Malthus e Hilda, também remetem a
outro ponto. A prostituta é aquela que tem o estigma de perigosa porque, através
da sua capacidade de sedução, do jogo de atração e repulsão, exerce domínio
sobre os clientes. Nesse caso, é a própria imagem, muito presente na narrativa
bíblica, da mulher semeando a discórdia entre Deus e o homem pelo poder do
encantamento. É a mulher enganadora, mentirosa, artificial (ornamentada e
enfeitada, conforme as associações feitas pela teologia cosmética tratada
anteriormente) que usa seus atributos femininos para criar confusão.
283
Becker, em uma perspectiva interacionista, define o desvio como a infração que alguém comete
de alguma regra em relação à qual há uma concordância coletiva. Observa ainda que “o desvio não
é uma qualidade simples, presente em alguns tipos de comportamento e ausente em outros. Mais
do que isso, ele é o produto de um processo que envolve respostas de outras pessoas ao
comportamento”. Portanto, “o desvio não é uma qualidade que exista no próprio comportamento,
mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aqueles que respondem a ela.” E conclui:
“Além de reconhecer que o desvio é criado pelas respostas de pessoas a tipos particulares de
comportamento, pela rotulação daquele comportamento como desviante, devemos também ter em
mente que as regras criadas e mantidas por tal rotulação não são universalmente aceitas. Em vez
disso, elas são objeto de conflito e discordância, parte do processo político da sociedade.”
BECKER, H. S., Marginais e Desviantes, p. 55-67.
284
Cf. GOFFMAN, E., Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada, p. 153-
155.
285
Sobre as representações simbólicas associadas à casa e à rua, ver MATTA, R. da, A Casa e a
Rua.
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250
Gaspar
286
, em seu estudo sobre prostituição no bairro de Copacabana, no
Rio de Janeiro, observa que o principal fator de sucesso das “garotas de
programa” é o atrativo físico. A beleza (mais ligada ao corpo do que ao rosto),
enquanto manifestação de sensualidade e juventude, é essencial para o exercício
da sedução e a „captura‟ do cliente. A autora observa que em nossa cultura
ocidental o poder da atração feminina pode ser dividido em dois tipos: “o primeiro
diretamente referido ao casamento, e nele a mulher tem seu poder de sedução
restrito às regras do modelo mediterrâneo de conduta, que visam à preservação da
pureza sexual (...). Com base nas considerações de Thales de Azevedo, ao
analisar as regras que regem o “namoro à antiga”
287
, a antropóloga destaca que
nesse caso é preciso haver um equilíbrio entre recato e exibição que permita à
mulher uma propaganda de si mesma, mas uma propaganda dissimulada que, no
mercado do casamento, não provoque uma oferta maior que a procura.” O
segundo tipo é o exercido por mulheres que não participam dos “códigos de
honra”, como as prostitutas:
É a sedução exercida por aquelas que estão livres para explorar plenamente seus
encantos sexuais e despertar emoções eróticas. A sedução é, nesse caso, uma
pequena amostra dos prazeres que elas estão dispostas a oferecer. As prostitutas
enquadram-se em tal maneira de se relacionar com o “outro”, levando-a, porém ao
extremo.(...) A sedução, enquanto ritual de interação e técnica de ofício, é fator
fundamental de poder sobre o cliente. Ela é um jogo onde o homem é conquistado,
mas no qual ele se supõe conquistador.
288
Como foi visto no capítulo anterior, uma terceira forma seria possível: uma
sedução “acolhedora”, aquela que busca “um companheiro de brincadeiras com
quem trocar a gratuidade do afeto e do desejo”
289
, em vez de capturar o outro
como um inimigo de quem se quer vingar e exercer poder, ou de quem se espera
apenas responsabilidades matrimoniais.
Outro ponto que cabe ressaltar é que a opção de Hilda pela prostituição se
subordina à noção de amor romântico e ao código de aliança. É a busca pelo
286
Cf. GASPAR, M. D., Garotas de Programa. Prostituição em Copacabana e Identidade Social,
p. 100-102.
287
Cf. AZEVEDO, T. de, Namoro à antiga: Tradição e Mudança, passim.
288
GASPAR, M. D., op. cit., p. 100-102.
289
BIRMAN, J., Cartografias do Feminino, p. 94-95.
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251
“verdadeiro amor”, pelo “amor de sua vida”, previsto nas cartas da vidente, que a
faz romper com a família e a sociedade e se tornar uma meretriz. Ao longo de toda
a história, tende-se a achar que ela tomou essa decisão como penitência por ter
causado tantas desgraças (suicídio do primeiro noivo, abandono na porta da Igreja
do segundo, tristeza e decepção aos pais), revelado no diálogo anterior com
Malthus, ou revolta contra a hipocrisia predominante na sociedade em que vivia.
Em contrapartida, ela condiciona a saída da prostituição ao encontro do “homem
de sua vida”, profetizado pela vidente para o início do ano de 1964. Pode-se
especular, então, que a ida para a zona boêmia representa a busca de um espaço
onde terá contato com o maior número de homens “capazes de encontrar o seu
sapato perdido”. Mais uma vez o mito de Cinderela aparece. que o baile é
substituído pela zona de prostituição. Nos diálogos com a cartomante, ela sempre
manifesta a dúvida: “Será que vou encontrar o homem da minha vida e casar? e
com a colega Leonor esse desejo fica evidente:
Hilda (cochicha): Eu vou casar!
Leonor: Com quem?
Hilda: Ainda não sei, mas tem um homem vindo pra mim! E eu sinto que tem
mesmo, Leonor...Só não consigo enxergar a cara dele, saber quem ele é, mas ele tá
aqui, na minha pele, no meu coração...Gozado isso, o sentimento chegar antes da
pessoa!
Ou quando ela se declara a Malthus no confessionário:
Hilda: Viver para evitar uma pessoa é a mesma coisa que viver pra ela...só
dedicado a ela.
Malthus: Eu sei, eu sei...
Hilda: Pois é assim que eu vivo! Vejo você em toda parte. Todas as coisas que eu
olho me lembram você: uma flor, uma sineta, uma cortina branca... Tudo o traz pra
mim, por mais que meu coração queira o afastar! Tudo! Tudo o que eu faço, tudo o
que eu penso, tudo o que eu vivo... é uma maneira de estar com você! ...Por isso eu
sei que é amor!
Malthus: Vá embora...
Hilda: Santo...
Malthus: Vá embora! Não me tente mais! Não posso viver como os outros homens
vivem. Eu nunca poderia chegar perto daquela Zona Boêmia! O que é que você
quer de mim?
Hilda (emocionada): Quero casar com você!
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252
Nesse universo social, o da prostituição, são comuns expectativas e
projetos
290
de encontro do amor e do casamento, que visam desde a obtenção da
segurança, estabilidade, ascensão social até a saída da prostituição e a
transformação de identidade através do casamento. A mulher deixa, assim, de ser
fonte de perigo por não depender do controle masculino e passa à condição de
esposa e mãe, cuja disrupção é neutralizada pelo controle do sexo oposto (controle
esse que define a identidade masculina).
291
Pautados pela ideia de amor
romântico, os projetos de prostitutas como Hilda Furacão estão, em última
instância, subordinados à lógica da aliança. está o paradoxo de sua identidade:
ao mesmo tempo em que é uma mulher “sem controle”, indivíduo insubordinável
pelo exercício da sexualidade com múltiplos homens, seus projetos de vida (e,
portanto, suas ações) são pautados pelo desejo de constituir família, tornar-se
esposa e mãe. Portanto, subordinar-se à lógica da aliança, formando uma família
que siga o modelo mediterrâneo. A fala de Leonor, prostituta e amiga de Hilda,
resume a questão:
Leonor: Hilda! Não fica embarcando em conversa de cartomante não, hein? Tem
vezes que elas acertam, mas erram à beça também! Se eu fosse me guiar por
baralho já estava casada com um milionário e morando até no estrangeiro! Mais de
uma cartomante me falou isso!
Hilda: Mas essa é diferente, Leonor!
Leonor: É tudo a mesma coisa. Tem dias que elas estão intuídas, tem dia que não
tão. E como você tá pagando elas vão falar qualquer coisa do mesmo jeito!
Hilda: Mas você vive indo na cartomante! Vai mais do que qualquer uma aqui!
Leonor: Claro! Repara a vida que eu levo: sozinha. Sem arranjar ninguém pra ficar
comigo... Pelo menos no baralho eu vivo cada romance de cinema, minha filha!
Tem sempre um homem apaixonado por mim, um homem que vindo na minha
direção, que vai ser o amor da minha vida... Ih, desde que eu me entendo que é
isso. Não chega ninguém, mas pelo menos a gente fica mais alegre!
A própria representação das prostitutas é romântica, enfatizando o aspecto
de mulheres carentes, que tentam levar a vida sem se deixar abater pelos revezes
290
Utiliza-se a noção de projeto inspirada na abordagem de Alfred Schutz e elaborada por Gilberto
Velho: “ação [consciente de um sujeito] com algum objetivo predeterminado”. Os projetos são
“elaborados e construídos em função de experiências socioculturais, de um digo, de vivências e
interações interpretadas”. VELHO, G., Projeto, Emoção e Orientação em Sociedades Complexas,
p. 26-27
291
Cf. PITT-RIVERS, J., Honor y Categoria Social, passim.
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253
de seu ofício e não se assumem como prostitutas nem entre si: Leonor é a jovem
sonhadora e ingênua, muito impressionável e solitária, e recusa o rótulo de
prostituta sem maiores explicações; Divinéia, vaidosa e amargurada com a
perspectiva de que a maturidade esteja minando seus encantos e que mulheres
mais jovens tomem seu lugar, se qualifica como dançarina e diz que não tem
culpa se os homens com quem dorme sentem prazer em mimá-la com presentes;
Maria Tomba Homem tem trejeitos masculinos, trabalha como estivadora, mas se
prostitui com homens e se ofende com insinuações de que é lésbica. Para ela,
prostituta é quem se oferece aos homens. Alega que fica parada no seu “ponto”,
em frente ao dancing, e são os homens que a assediam.
Por último, cabe observar que as convenções do melodrama predominam na
narrativa de Hilda Furacão. O primeiro elemento é a construção da história a
partir das oposições entre a virtude e o vício, representados por Malthus, as
famílias tradicionais de Belo Horizonte e Santana dos Ferros, as beatas
anticomunistas, os padres conservadores Nelson e Cy x Hilda Furacão, as
prostitutas e os frequentadores da zona boêmia, o padre progressista Geraldo, o
jornalista Roberto, os estudantes comunistas, o vereador anarquista. Os
personagens, alguns bem estereotipados nas suas encarnações do Bem ou do Mal,
se transformam e alteram os sinais ao longo da história. Porém, a tendência é não
criar nuances, não relativizar suas características: quem é bom é bom; quem é mau
é mau.
Outro indício de construção melodramática é o tratamento dado aos dramas
morais: é por meio dos comportamentos cotidianos dos personagens que os
dilemas mais profundos dos indivíduos veem à tona expressando os valores
existentes na sociedade. Como Brooks assinalou, o drama da “moral oculta”
articula a subjetividade do indivíduo com o universo moral da sociedade.
292
A
encenação das situações também utiliza recursos do melodrama: os gestos
hiperbólicos (quando Malthus se aproxima de Hilda com a cruz para exorcizar o
demônio de seu corpo), o uso de metáforas e metonímias na linguagem e na
encenação (a relação metonímica de Mathus com o sapato de Hilda em que o
292
Cf. BROOKS, P., The Melodramatic Imagination: Balzac, Henry James, Melodrama, and the
Mode of Excess, passim.
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254
objeto evoca sentimentos em relação à amada) e mesmo o excesso de lágrimas
para aumentar o sentimentalismo, os exageros nos jogos cênicos para dar ênfase
às situações vividas e o uso da música e de efeitos sonoros para pontuar os
momentos de emoção, são recursos acionados ao longo de toda a narrativa. Os
temas amor proibido, desejos de vingança, honra conspurcada confirmam a
marca melodramática.
Mas não é possível dizer que Hilda Furacão é puro melodrama. Os traços
realistas se fazem presentes pela figura de Roberto, narrador onisciente e
personagem “real”, que relata, comenta e vive os acontecimentos; pelas
referências históricas como a renúncia de Jânio Quadros, a eleição de João
Goulart, a oposição de Carlos Lacerda, o comício da Central do Brasil, a Marcha
da Família com Deus pela Liberdade, os movimentos de guerrilha comunista, as
manifestações estudantis, o golpe militar e a disputa entre a igreja conservadora e
os partidários da Teologia da Libertação. Além de uma reconstituição de época
cuidadosa com figurinos, cenários e objetos de arte que buscam dar realismo às
situações. Esses fatos contextualizam a minissérie e ajudam a estabelecer o
vínculo com a realidade. Elementos que produzem no espectador uma sensação de
proximidade e de verossimilhança em relação às situações apresentadas, sem
eliminar as fortes marcas melodramáticas.
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7. Conclusão
Por tudo que foi tratado até agora, é possível associar as características da
televisão fragmentação, simultaneidade, fluxo ininterrupto de imagens e sons,
transitoriedade com as características da ficção seriada televisiva melodrama
misturado com realismo e naturalismo e com as identidades femininas presentes
nessas narrativas “virgem-santa”, mãe e esposa, mulheres transgressoras,
prostitutas. O ponto para o qual desejo chamar a atenção é que o tipo de discurso
veiculado pela televisão e a relação que estabelece com os espectadores, criando a
polifonia de que fala Bakhtin, o “pacto de recepção” de Iser e a sociabilidade de
Simmel, são perfeitamente adequados a uma narrativa que se caracteriza pela
diferenciação, mistura de convenções, “mestiçagem” entre estilos textuais. E
mais: a televisão e especialmente a teleficção são terrenos férteis para a
convivência de uma multiplicidade de representações sociais, no caso, femininas.
A análise feita sobre os seriados Malu Mulher e Mulher e as minisséries
Anos Dourados e Hilda Furacão permite identificar aspectos que corroboram essa
afirmação. O estilo ficcional que se sedimentou na televisão brasileira nos últimos
40 anos e teve na TV Globo seu principal veículo, é uma construção híbrida,
composta de elementos tradicionalmente considerados opostos, como o
melodrama e o realismo/naturalismo. Os enredos baseiam-se no conflito entre o
Bem e o Mal em que as forças éticas da virtude e da vilania são tratadas de forma
hiperbólica e lacrimosa, na eloquência, nos gestos e nas expressões extravagantes.
Estes elementos sublinham os sentimentos mais profundos dos personagens, numa
moral que pune os vilões/vilãs e premia os heróis/heroínas com o “final feliz”. Ao
mesmo tempo, o empenho em retratar os indivíduos e a realidade social tal
como são, uma estética que procura “imitar a vida”, uma linguagem próxima à
conversa, marcada pela simplicidade e pela busca da intimidade. A mistura dessas
duas convenções origem a uma narrativa „mestiça‟ que constitui uma espécie
de moldura (frame) para a vida social. Cria condições para a interação entre uma
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diversidade de indivíduos que compartilham conteúdos e os reelabora de acordo
com suas especificidades culturais, biografias e subjetividades.
293
Essa “moldura de reconhecimento” é composta por elementos que garantem
seu funcionamento: a retórica, o clichê, a serialização e o gancho. A retórica,
não a arte aristotélica de argumentação através da oratória, mas o que ela tem de
repetição visando ao convencimento, à sedução, à persuasão, ajuda na manutenção
da unidade da narrativa. O clichê, ao tipificar pessoas e situações, fornecer
referências comuns e reproduzir expressões não originais, facilita a compreensão e
a comunicabilidade (mesmo correndo o risco de reduzir as múltiplas histórias e
tipos em uma história e tipo único); a serialização, ao produzir a regularidade e a
dilatação temporal (estender o “presente”), a suspensão no fluxo da história (“põe
o texto entre parênteses dando tempo para a atividade imaginativa) implica o
retardamento do “fim” e, consequentemente, o controle do tempo; o gancho,
constitutivo da serialização, ao interromper a narrativa no seu ponto culminante e
projetá-la para o futuro, exige sua continuidade, constrói elos entre as partes e
desaparece com a fragmentação. Todos esses elementos associados em uma
narrativa que mistura o monumental com a simplicidade das coisas mais
corriqueiras criam uma forma de expressão cultural com forte aderência aos
múltiplos ethos que caracterizam as sociedades moderno-contemporâneas,
complexas e heterogêneas.
Isso se evidencia na construção das identidades femininas nos seriados e
minisséries analisados. Se as imagens femininas apresentadas forem avaliadas
293
várias pistas para identificar o diálogo entre o a obra ficcional e a sociedade. Nos textos
analisados, viu-se que a sintonia de Malu Mulher com os movimentos feministas da época foi um
dado fundamental para o sucesso do seriado. Da mesma forma que o incentivo aos partos naturais
em Mulher estava alinhado à campanha nacional do Ministério da Saúde e de organizações não
governamentais. Pode-se dizer também que referências históricas e culturais em Anos Dourados e
Hilda Furacão são essenciais na comunicação entre autores/produtores e público. A apropriação
feita pelos espectadores da figura de Hilda Furacão, não considerando-a um personagem real,
como apelidando a gripe que assolou a população na época de sua veiculação na televisão,
expressa visões acerca da sexualidade e dos papéis de gênero. ainda exemplos mais
contundentes e mensuráveis sobre essa troca dialógica, como a recente pesquisa realizada pelo
Center for the Ethnography of Everyday Life, University of Michigan, sobre a relação entre a
televisão e o declínio da fertilidade em uma cidade do nordeste brasileiro. Outros exemplos como
o aumento de doadores de medula óssea ou de órgãos em função de algum tema abordado em
telenovela têm mostrado o quanto os espectadores interagem com os conteúdos veiculados, tanto
“ouvindo” quanto “contando” histórias. Com a internet e o desenvolvimento de projetos transmídia
acoplados à exibição na TV, a possibilidade de diálogo aumenta significativamente.
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257
enquanto “tipos ideais”, é possível alinhá-las da seguinte forma: Glória e
Rosemary de Anos Dourados e Hilda Furacão são as representantes da mulher que
causa confusão, dissemina a discórdia, é fútil, volúvel e artificial, adultera a
realidade e engana os olhos. São mulheres excessivas, transbordantes. Estão
próximas ao mito de Eva, aquela que é fonte de pecado em função de uma
sexualidade sem controle. Devem, portanto, ser evitadas porque são inadequadas
ao código de aliança. Celeste e suas amigas, Lourdinha (antes da mudança), de
Anos Dourados, e frei Malthus (embora homem, representa a figura casta, virgem;
seu recato espelha a atitude de todas as beatas e “boas moças” da história), de
Hilda Furacão, simbolizam a sacralização do feminino ligada ao ideal da
castidade. Mulher redentora, modelo da Virgem Maria, seu papel social é definido
pelas figuras de esposa e mãe, mulheres que devem zelar pelo espaço doméstico e
garantir a honra da família através da virgindade e da fidelidade. Suas atitudes são
de recato, simplicidade, contenção. Malu, de Malu Mulher, e as doutoras Martha e
Cris, de Mulher (além da amiga Shirley e das outras médicas e enfermeiras da
clínica), podem ser pensadas como voltadas para a realização de uma cultura
feminina, mulheres que buscam integrar aspectos ligados à subjetividade com a
objetividade historicamente pertencente à cultura masculina. São mulheres que
trabalham no espaço público, têm relações mais igualitárias com os homens e com
os filhos e têm consciência de sua sexualidade. Porém, como são tipos ideais,
consequentemente abstratos, aproximativos, elementos que são singulares e
contraditórios a cada uma dessas mulheres e que, em determinados contextos,
embaralham os modelos.
A noção da mulher como secundária, complemento, desprovida de razão,
isto é, uma abstração, próxima às crianças e aos povos ditos primitivos, é acionada
nas falas do personagem Doca em relação à sua mulher e à Malu, no último
episódio de Malu Mulher. Após a cena de agressão, ele tenta justificar, referindo-
se à esposa como “uma fêmea que mal sabe assinar um cheque, tomar uma
iniciativa, uma coisa a ser protegida, meio bichinho mesmo”. Em Anos
Dourados, o personagem Lauro, ao ser descoberto por Lourdinha saindo de um
bordel, retruca: “Tem muita coisa nessa vida que uma moça de família não precisa
nem saber que existe!” Mas como foi dito, a visão da mulher como parte,
secundária, também leva à ideia de ornamento, de enfeite, de maquiagem, para
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258
que a aparência camufle a essência. E aqui as personagens Hilda Furacão e
Rosemary surgem como mulheres dissimuladas, que usam artifícios para enganar
os olhos masculinos e capturá-los.
Em relação à inserção no mercado, percebe-se claramente uma divisão entre
as que trabalham em atividades ligadas ao espaço doméstico ou em atividades
próximas aos cuidados maternais, como Celeste, Beatriz, mulher de Dorneles, as
normalistas e professoras em Anos Dourados, a mãe de Malthus, em Hilda
Furacão; e as mulheres que trabalham “na rua”, espaço público tradicionalmente
ligado ao gênero masculino, como a socióloga Malu, a prostituta Hilda, a
desquitada Glória e as médicas Martha e Cris. Aquelas que se entregam
excessivamente à vida pública são punidas: Hilda, que vende seu corpo, passa por
todas as dificuldades possíveis; e a Dra. Martha, que dedicou a vida à medicina
(motivo de acusações do marido e do filho), é castigada com a morte do filho, um
câncer de mama e um enfarte.
O mito da esposa-mãe que legitima um papel social para a mulher está
presente em todas as narrativas. A essência maternal da mulher e a noção de que
deve garantir a harmonia do lar, cuidando dos filhos e do marido, norteia as
representações femininas. Lourdinha faz projetos com Marcos sobre os filhos que
terão, Malu conversa com a namorada do ex-marido e lamenta o fato de ela ser
estéril (e, assim, uma “mulher imperfeita”), a romântica prostituta Leonor acaba a
minissérie casada e repleta de filhos, o final feliz” de Mulher, uma festa de
batizado dos filhos de Cris e Shirley são exemplos da importância dada à
maternidade na constituição da identidade feminina. Essa visão essencialista
também se revela ao se constatar que todos os episódios de Mulher apresentam,
pelo menos, uma história voltada para gravidez, parto ou maternidade. É bem
verdade que o cenário principal é uma clínica feminina e as duas protagonistas são
ginecologistas e obstetras. De qualquer forma, a própria opção por construir um
seriado voltado para a mulher com essas características indica essa centralidade
do papel materno.
A essa representação essencialista da maternidade se acrescenta a noção de
sacrifício, de devoção aos filhos, mais um reforço ao mito da Virgem Maria.
Praticamente todas as mulheres nos dois seriados e nas duas minisséries se
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sacrificam pelos filhos. Celeste dedica-se inteiramente a cuidar dos estudos do
filho Pedrinho, zelar pela virgindade e conseguir um “bom casamento” para a
filha Lourdinha; Glória, mulher que se separou do marido com o filho ainda
pequeno, trabalha em uma boate para sustentá-lo e garantir seus estudos; Malu faz
todos os sacrifícios para conciliar o trabalho com a educação da filha adolescente;
a mãe de Malthus, Dona Neném (nome sugestivo), não mede esforços para
convencê-lo a seguir o sacerdócio e faz centenas de potes de geléia de jabuticaba
para aliviá-lo diante da “tentação” provocada por Hilda; Cris sonha com os filhos
gêmeos e se desespera diante da possibilidade de perder um deles durante o parto.
A única que não se sacrifica pelo filho é Martha e, por isso, além de ser punida
com a morte dele, sofre com a culpa de ter sido relapsa como mãe e não ter
participado de sua criação por ter priorizado a profissão.
A ideia de que a mulher na sociedade moderna não foi completamente
atingida pela separação entre mundo objetivo e mundo subjetivo está presente nas
quatro narrativas. Malu tenta articular as duas dimensões no trabalho de
socióloga, na educação de sua filha e na maneira de lidar com os conflitos que
surgem em sua vida; Glória, de Anos Dourados, une a objetividade de seus
princípios, gestos e atitudes com aspectos subjetivos (emoção, afetividade,
sensibilidade) ao se relacionar com o filho, o ex-marido, o namorado, a amiga
crooner e o dono da boate em que trabalha. Hilda concilia a objetividade de seu
trabalho como prostituta em que vende sexo a vários homens com os cuidados e a
delicadeza com que os trata; vive seu amor romântico por frei Malthus, mas age
de forma objetiva para conquistá-lo. As médicas Martha e Cris buscam em todos
os episódios unir a objetividade dos conhecimentos da medicina com os aspectos
subjetivos dos pacientes, enfatizando a importância das relações humanas nos
tratamentos clínicos. Porém, a dificuldade das duas médicas em lidar
simultaneamente com a vida privada e a vida pública (em especial a Dra. Martha),
mostra a existência de uma tensão na articulação dessas duas dimensões.
A concepção da mulher virgem, pura, passiva, que desconhece seu corpo,
descrita de forma caricatural em Anos Dourados através da personagem Celeste e
de Lourdinha em sua primeira fase, se opõe à imagem da mulher dotada de
excesso de desejo sexual, maléfica, superficial, como a prostituta Hilda e as
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personagens Glória e Rosemary. O corpo impuro e fonte de prazer é a antítese do
recato, do corpo voltado para a procriação e, assim, fonte de distinção e respeito
social. Essas oposições entre casamento x sexo, amor x erotismo, típicas de
sociedades hierarquizadas, indicam a presença da dupla moralidade apontada por
Gilberto Freyre ao analisar a sociedade patriarcal brasileira. Não é à toa que os
homens e rapazes em Anos Dourados e Hilda Furacão justificam o hábito de
frequentar bordéis ou terem casos extraconjugais como “natural” ou
“necessidade” do sexo masculino.
O homem aparece ora como o mais legítimo representante da sociedade
patriarcal, ora como aquele que assume novos papéis em uma sociedade que
incorpora a igualdade de gêneros. Há representantes convictos de cada uma dessas
tendências, o que o quer dizer que, eventualmente, não apresentem
comportamentos que correspondem ao modelo a que se opõem. Homens que
seguem as noções de honra, apostam na dupla moralidade, consideram que o lugar
masculino é no mundo público do trabalho por terem a função de sustentar e
representar a família no âmbito social são exemplificados por Carneiro, pai de
Lourdinha, referindo-se a Glória; Dorneles falando sobre adultério; Lauro e Urubu
explicando por que os homens “precisam” procurar prostitutas; e os sermões do
padre Nelson, explicando quais são os direitos masculinos e as obrigações
femininas. homens como João Pedro, namorado da Dra. Cris, Marcos,
namorado de Lourdinha, e Roberto, narrador e jovem idealista de Hilda Furacão,
tendem a ter comportamentos mais igualitários na relação homem/mulher. João
Pedro cria sozinho uma filha e tem atitudes que demonstram afeto, sensibilidade,
solidariedade em relação à mulher e a todos que o rodeiam. Marcos questiona a
diferença de direitos entre rapazes e moças no que se refere ao exercício da
sexualidade e fracassa quando é levado a um prostíbulo como compensação por
não poder ter relações sexuais com Lourdinha. Roberto questiona Malthus sobre
sua decisão de não seguir seus sentimentos por Hilda e considera que a namorada,
Bela , tem os mesmos direitos que ele no relacionamento. Porém, os
personagens nem sempre seguem os modelos hierárquicos ou igualitários com os
quais se identificam. Isso fica claro em Pedro Henrique, ex-marido de Malu, e em
Otávio, marido de Martha. Na briga com Malu e posterior separação, Pedro
Henrique é violento e tem um discurso que enfatiza as diferenças de papéis de
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gênero de acordo com o modelo mediterrâneo. no relacionamento com a filha
tende a respeitar e até admirar a condição feminina, emocionando-se quando ela
fica menstruada pela primeira vez numa posição de fragilidade. Da mesma forma,
Otávio é o típico marido companheiro, aquele que compartilha todos os momentos
junto à mulher, que participa ativamente dos dilemas profissionais da esposa, mas
reclama toda vez que um programa do casal é preterido em nome de um caso na
clínica, cobra de Martha sua excessiva dedicação ao trabalho, o abandono da
família, do filho e dos afazeres domésticos.
Praticamente todos os personagens femininos se subordinam à noção de
amor romântico. Mesmo as personagens disruptivas como Hilda e Rosemary que
assumem o prazer sexual, colocam-no associado à ideia de encontro do
“verdadeiro amor”. E não é isso: o sexo e o amor são englobados pelo código
de aliança, o desejo de contrair matrimônio e de constituir família. Lourdinha tem
relações sexuais com Marcos porque considera “o homem de sua vida” e faz
planos de casarem assim que se formarem; Malu busca uma nova relação afetiva e
no momento em que descobre que o namorado é casado (ou seja, fora do mercado
matrimonial) rompe a relação; Cris e João Pedro namoram e vivem em casas
separadas. Quando o sentimento de um pelo outro se intensifica, Cris engravida e
eles vão viver juntos como casal; a Dra. Martha se separa de Otávio, vive outras
experiências amorosas, mas retoma o casamento porque percebe o amor que sente
pelo marido. Mesmo Hilda, que a princípio seria governada por um dispositivo da
sexualidade em que o que importa são “as sensações do corpo, a qualidade dos
prazeres, a natureza das impressões”
294
, se prostitui à espera do “verdadeiro
amor”, o homem que aparecerá e a levará embora da zona boêmia. Aliás, esse é o
sonho de quase todas as prostitutas de Hilda Furacão. Glória vive um
“relacionamento proibido” com Dorneles, casado há vários anos com Beatriz e pai
de três filhos. Mesmo o amando ela se sente incomodada por ir contra seus
valores. Afinal, terminou um casamento quando viu que a relação conjugal tinha
chegado ao fim. Rompe várias vezes com Dorneles e retoma o relacionamento
quando ele decide separar-se e ir morar com ela. Mas Glória, diferente das outras
mulheres, é uma personagem que se aproxima de Carmem, protagonista da ópera
294
FOUCAULT, M., História da Sexualidade I: A Vontade de Saber, p. 101.
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de Georges Bizet retratada por cineastas nos anos 80, que confere uma
positividade à sedução e à sensualidade feminina. Ainda que se mova seguindo o
ideal do amor romântico, o homem para ela não está no lugar de um rival, o
“macho superior” a quem ela deseja capturar. Seu relacionamento com o major
Dorneles é pautado pela dignidade com que assume seu desejo; sua sedução e
sensualidade são marcadas pelo lúdico, “não [é] mais a femme fatale, mas as
dimensões da festa, da alegria e da brincadeira que se incorporam na experiência
feminina do desejo”.
295
Ao longo dessa análise, é possível identificar nessas criações dramatúrgicas
a presença de dois universos sociais regidos por princípios antagônicos um
hierárquico e outro igualitário. No primeiro uma precedência do todo sobre as
partes, encontra-se uma família “mapeada”, em que a identidade é posicional,
construída a partir das diferenças de gênero e idade. Nessas famílias, a mulher
deve se dedicar ao lar (marido e filhos) e o homem ao trabalho fora de casa para
prover a família; espera-se dela um comportamento monogâmico, desprovido de
prazer, enquanto ele, ao contrário, é estimulado a satisfazer sua potência viril em
encontros extraconjugais. As relações entre pais e filhos são pautadas pelas
noções de autoridade e respeito e uma série de mecanismos que avaliam o
“permitido” e o proibido” para controlar e reprimir comportamentos
considerados “desviantes”.
no modelo de família igualitária a identidade é idiossincrática. Nelas,
homens e mulheres, pais e filhos, são iguais como indivíduos, mas diferentes do
ponto de vista pessoal. As diferenças subjetivas são mais percebidas (e
consideradas mais relevantes) que aquelas entre sexo e idade. Nessas famílias
mais igualitárias, as noções de “permitido” e “proibido” perdem suas fronteiras,
assim como os comportamentos considerados “desviantes” perdem respaldo
social, abrindo espaço para a multiplicidade e pluralidade de visões de mundo e
estilos de vida. Mas essas duas formas de realização da família também devem ser
vistas como “tipos ideais”, construções abstratas que permitem a análise da vida
social. Quando confrontadas com a realidade, onde estão em jogo questões mais
subjetivas como emoções, preconceitos, desejos, sistemas simbólicos
295
BIRMAN, J., Cartografias do Feminino, p. 94-95.
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internalizados ao longo da biografia do sujeito, elas se revelam ambíguas,
hesitantes e, muitas vezes, resistentes. Se uma imagem que se adequa a esse
movimento é a de um jogo de encaixe composto por peças similares e diferentes.
A combinação delas pode gerar múltiplos desenhos, alguns mais próximos, outros
mais distantes, mas as chances de haver peças comuns e diferentes são infinitas. E
mais: é sempre possível mover ou trocar uma peça e alterar o desenho. Um novo
desenho se forma, mas algumas peças do desenho original estarão, mesmo que
em posições diferentes.
Esse “desmapeamento” provocado pela presença de mapas contraditórios
inscritos nas famílias e nos sujeitos leva ao “eu multifacetado” típico da sociedade
contemporânea. Vários caminhos podem ser pensados no sentido de fornecer
“mapas” para esse “homem da multidão”: a psicanálise, a religião, experiências de
vida alternativas como as comunidades hippies nas décadas de 1960/70, adesão a
movimentos políticos e sociais. A ficção seriada televisiva brasileira, com sua
mestiçagem de linguagens e estilos, pode, a meu ver, ser pensada como
narrativa que fornece “mapas” para a vida objetiva e subjetiva desses sujeitos
multicindidos, característicos da vida urbana moderno-contemporânea. Ela une as
dimensões interna e externa do indivíduo, permitindo que se mova com mais
facilidade em um mundo “desencantado”. Constrói, assim, uma articulação entre
o indivíduo sujeito moral, dotado de um self particular, e a sociedade mais ampla,
onde os valores e códigos coletivos imperam.
Do ponto de vista da linguagem e do estilo dramatúrgico adotados para cada
uma dessas produções, é possível verificar que as associações também são
múltiplas e não obedecem a um padrão. Ao fazer um recorte cronológico, verifica-
se que Malu Mulher, exibida em 1979 e 1980, e Anos Dourados, em 1986, estão
próximos de um período em que o melodrama era a principal marca dos trabalhos
dramatúrgicos na televisão. O realismo já prevalecia nas telenovelas, minisséries e
seriados, mas convenções do melodrama havia pouco tempo tinham deixado de
dar o tom aos enredos, à encenação e à ambientação. Por outro lado, Mulher e
Hilda Furacão, foram ao ar em 1998 e 1999, período em que o realismo e mesmo
o naturalismo são legitimados como principais características das teleficções da
TV Globo. Entretanto, se for avaliada a linguagem dramatúrgica efetivamente
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adotada na construção das narrativas, em Malu Mulher e Mulher identifica-se o
predomínio de uma linguagem realista, próxima ao naturalismo da crônica. Os
personagens circulam pelas histórias como se estivessem no dia a dia do
espectador, com referências objetivas e subjetivas comuns e contemporâneas. A
impressão é de que a qualquer momento é possível cruzar com as situações e
personagens no cotidiano.
em Hilda Furacão a linguagem melodramática é constitutiva da
narrativa. É através do confronto entre Bem x Mal, da expressão dos sentimentos
pelo excesso, do monumental, da eloquência e das lágrimas que a história entre
Hilda e Malthus se desenvolve. Em Anos Dourados há uma mistura dos elementos
realistas (e mesmo naturalistas) com os do melodrama. Eu diria mesmo que das
quatro ficções analisadas, Anos Dourados é a que mais se aproxima do que se
convencionou chamar a típica ficção seriada televisiva brasileira: uma narrativa
que fala de igual para igual, buscando mostrar a vida tal como ela é, e,
simultaneamente, utiliza-se do embate entre a virtude das heroínas e heróis contra
a vilania dos representantes do Mal, do excesso na encenação e da expressão das
emoções. E não se trata de uma alternância de estilos. de fato uma mistura de
elementos na construção da história.
Quanto à configuração do feminino em cada uma dessas produções, é
possível afirmar que Malu Mulher e Hilda Furacão constroem personagens mais
próximos do modelo melodramático: Malu e Hilda são heroínas que primam pelo
bom caráter e coerência, capazes dos mais nobres sentimentos, belas e doces,
prontas a ajudar o próximo e sempre à espera do seu “príncipe encantado”. Em
Anos Dourados e Mulher, estão presentes tanto modelos femininos construídos a
partir de critérios realistas/naturalistas quanto melodramáticos. Celeste é a única
personagem definida exclusivamente a partir de critérios maniqueístas em que
tudo é definido “no preto e no branco”. Celeste não tem nenhuma reação que
indique ambivalência. Lourdinha, Rosemary, Glória, Cris e Martha são
personagens femininas mais complexos, que tendem a seguir os traços realistas,
agem como pessoas comuns com dúvidas, ambiguidades e dilemas que põem em
jogo padrões e valores contraditórios. Mas em situações-limites se comportam de
acordo com a típica personagem melodramática: têm atitudes arrebatadoras,
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expressam seus sentimentos de forma hiperbólica (gritos, choros, desmaios) e
classificam a realidade em torno da oposição Bem x Mal.
Pode-se também fazer outras aproximações. Quanto à estrutura narrativa, o
seriado Mulher e a minissérie Anos Dourados se constroem a partir de uma
pluralidade de personagens, em especial as femininas. Malu Mulher e Hilda
Furacão centram as histórias em torno da personagem central. São as aventuras e
desventuras de Malu e Hilda que desencadeiam as demais tramas. Além disso, as
duas têm um narrador: em Hilda Furacão, é Roberto, o autor do livro homônimo
e um dos personagens centrais, que assume a função de apresentador e
comentador; em Malu Mulher é a própria Malu, protagonista e narradora
onipresente, que tece comentários sobre as situações.
-se, portanto, que não em relação ao conteúdo, mas também do ponto
de vista da estrutura narrativa, os modelos se misturam, se fragmentam e se
reconstroem na convivência entre oposições. A televisão, ao se apropriar desses
tipos femininos, está construindo realizações simbólicas de “ser mulher”. Ao fazê-
lo, não elimina as singularidades e nem as contradições. Até porque o próprio
caráter fragmentado, veloz e simultâneo do veículo facilita a existência de
narrativas fragmentadas onde convivem códigos diferenciados (e mesmo opostos).
Essas construções múltiplas são lidas, filtradas e interpretadas por um público
também diversificado sob o aspecto sociocultural, econômico, de gênero e de
faixa etária. Nas camadas médias urbanas, onde maiores opções de realização
do indivíduo e maior abertura para a convivência de visões de mundo, estilos de
vida e biografias heterogêneas, essas narrativas ficcionais têm muitas
possibilidades de penetração. Isso se aplica particularmente na sociedade
brasileira, onde um espaço para a intimidade, a mistura, a convivência com as
diferenças, apesar das perversidades (contra escravos, contra pobres, contra
mulheres, contra “desviantes”). Assim como o futebol e o carnaval
296
, a ficção
seriada possibilita que o público e o privado se encontrem na sociedade brasileira,
296
Roberto da Matta (MATTA, R. da, Carnavais, Malandros e Heróis: Para uma Sociologia do
Dilema Brasileiro.), ao analisar o carnaval como ritual de dramatização das relações sociais que
vigoram na sociedade brasileira, observa que se trata de um momento em que acontecem
inversões, como o congraçamento da exposição em oposição ao recato, da prostituta em oposição à
virgem, do riso e a brincadeira em oposição à seriedade, da igualdade em oposição à hierarquia.
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as hierarquias sejam invertidas ou eliminadas e os papéis sociais, embaralhados.
De certa forma, realiza no campo do imaginário a utopia da igualdade.
É possível especular, a partir do que foi visto, que a ficção seriada da
televisão brasileira é um gênero cultural que expressa os estilos de vida e as visões
de mundo das camadas médias urbanas. Ainda que tenha recebido influências de
matrizes culturais populares como o romance-folhetim, o circo, a fotonovela e a
radionovela, a característica predominante nessas narrativas teleficcionais é a
existência de uma multiplicidade de ethos e uma elasticidade nas representações
morais típicas dos setores médios das sociedades urbanas. É a convivência de
discursos e visões heterogêneas, e até mesmo antagônicas, que cria as condições
para a emergência de uma narrativa “mestiça”, com elementos melodramáticos
entrelaçados a outros realistas e naturalistas, capaz de “contar histórias” múltiplas.
Talvez exatamente por se tratar de um discurso médio e mediador é que a
teledramaturgia seja capaz de pôr em contato indivíduos separados dos pontos de
vista objetivo e subjetivo. Esse transbordamento do self para a coletividade, cria
uma sociabilidade impossível no mundo “real” e permite diálogos entre universos
morais e comportamentais a princípio opostos. Produz em cada participante desse
“discurso polifônico” a sensação de identidade com as situações próximas à sua
realidade individual e coletiva e a de estranhamento/aspiração quanto àquelas que
lhes são distantes. Essa sensação de reconhecimento e contraste simultâneos
possibilita, em uma sociedade onde os territórios e as relações são mais voláteis, a
demarcação de fronteiras sociais e individuais. Fronteiras que também serão mais
fluidas, menos gidas, do que em sociedades organizadas de forma mais
tradicional.
Ao longo desse trabalho, chamei a atenção para a semelhança entre as
acusações feitas ao feminino, à cultura de massas (em particular à televisão) e ao
melodrama (e a todos os seus herdeiros, dentre eles a teleficção). A televisão, pela
sua efemeridade e fragmentação, criticada por produzir e reproduzir conteúdos
artificiais em que a essência é mascarada pela aparência para promover satisfações
momentâneas. O melodrama, pelo seu excesso, eloquência e maniqueísmo que
encobre o “verdadeiro discurso”, os “reais sentimentos” e as “ideias puras”. O
feminino pela estetização, a partir de uma teologia cosmética que o vê como
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ornamento, maquiagem, iludindo, disfarçando, enganando os olhos. Assim como a
televisão, a mulher é efêmera, contingente, aquela que busca produzir um prazer
circunstancial.
Essa associação entre cultura de massa e construção do feminino foi
trabalhada por Huyssen
297
ao observar sua presença no discurso de modernistas a
partir da segunda metade do século XIX. Desde o debate provocado em torno da
publicação de Madame Bovary, em que a personagem feminina é apresentada
como leitora de literatura inferior e o homem (no caso, Flaubert), o escritor da
verdadeira e autêntica literatura, até a presença de estereótipos de gênero na crítica
feita por Adorno e Horkheimer, quando argumentam que “a cultura de massa, em
seu espelho, é sempre a mais bonita do mundo” (uma clara alusão à “rainha má”
de Branca de Neve), a desqualificação do feminino e da cultura de massa caminha
de mãos dadas. Em oposição à insistência modernista na pureza e autonomia da
obra de arte, a defesa de que ela é autossuficiente e autorreferente, expressão de
uma consciência individual (e não de uma percepção coletiva), está a cultura de
massa, sedutora e promotora de prazer visando agradar a um público amplo
através do estimulo à identificação por meio de ilusões e sonhos.
298
As referências ao feminino são evidentes, mas no fundo volta-se novamente
para a questão da autenticidade abordada por Trilling e sobre o fim da aura
identificado por Benjamin. A “aura” da obra de arte é associada à sua
originalidade e à sua permanência em oposição à reprodutibilidade e à
transitoriedade da obra que perdeu a “aura”. A primeira teria uma relação orgânica
com o passado, o que lhe conferiria uma espécie de autenticidade genuína; a
segunda, por não ter esse vínculo orgânico, a recriação seria mais forte que a
herança e, portanto, disporia de uma “autenticidade reproduzida, reconstruída”.
299
297
Cf. HUYSSEN, A., Mass Culture as Woman: Modernism‟s Other, p. 44-62.
298
Huyssen observa que uma das questões postas no debate sobre o “pós-modernismo” é a “sua
preocupação em negociar formas de „alta arte‟ com certas formas e gêneros da cultura de massa e
com a cultura da vida diária”. O autor suspeita que “não seja coincidência que o surgimento de tais
tentativas de uma espécie de fusão tenha ocorrido mais ou menos simultaneamente à emergência
do feminismo e das mulheres como grandes forças na arte; e com a concomitante reavaliação de
formas e neros de expressão cultural tradicionalmente desvalorizados (como, por exemplo, as
artes decorativas, os textos autobiográficos, as cartas etc.)”. Ibid., p. 59-60.
299
Cf. GONÇALVES, J. R., Autenticidade, Memória e Ideologias Nacionais: O Problema dos
Patrimônios Culturais, p. 264-275.
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Trata-se mesmo de um novo sensorium onde lugar para a repetição, o
envolvimento e a participação.
A televisão, por meio da ficção seriada, se apropria de “tipos ideais”
femininos e elabora representações (coletivas e singulares) em um diálogo
polifônico que envolve autor, personagens, diretor, produtores, público. Esse
dialogismo é possível exatamente porque o texto cultural construído é “uma
forma não-aurática de autenticidade”
300
, isto é, está fundado na possibilidade de
reprodução da realidade. Através da liberdade ficcional, é possível fazer com que
todos os participantes acreditem que é verdadeiro. Essa crença é produzida por
dois movimentos simultâneos: a identificação, a sensação de pertencimento e
proximidade; e a aspiração, o desejo de atingir aquilo que é reconhecível, mas é
inatingível porque está distante. Não se trata de uma projeção cega do “eu”. Mas
sim, a partir da intenção criativa do autor (ou dos autores, produtores e diretores),
de despertar o prazer do reconhecimento ou do desejo pelas experiências sociais,
valores e costumes retratados. Dessa forma, cria condições para que o espectador
“mergulhe” na ficção reelaborando as imagens e se libertando da simples
semelhança. Ao fazer esse movimento, ele “seleciona” os elementos que lhe
trazem significados miméticos (seja pela igualdade, seja pelo contraste) e os
separa daquilo que é mero entretenimento ou que se parece com sua vida
pragmática. Essa dupla faceta da ficção na televisão articula as dimensões
objetivas e subjetivas do indivíduo moderno, sujeito singular, fragmentado, que se
move por mundos múltiplos, diferenciados e voláteis.
A ficção seriada, como toda obra de ficção, implica a existência de um
“acordo ficcional”, o “pôr o mundo entre parênteses”, em que todos os critérios
naturais do mundo representado devem ser suspensos.
301
O espectador deve saber
que se trata de uma obra de ficção, mas aceitar o acordo ficcional e “fingir” que o
que é narrado de fato aconteceu. Para isso, o narrado não pode parecer uma
extravagância, um ruído na narrativa, e sim aproximar-se das regras que
conduzem a relação do espectador com a realidade. Ou seja, parecer verossímil
302
.
300
Ibid., p.273.
301
Cf. ISER, W., O Fictício e o Imaginário: Perspectivas de uma Antropologia Literária., p. 24.
302
Cf. LIMA, L. C., História. Ficção. Literatura, p. 284.
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assim a ficção possibilitará ao indivíduo articular o “tempo vivido” e o “tempo
do mundo”, exercitando a capacidade de estruturar sua experiência passada e
presente. Em outras palavras, assim a ficção poderá se tornar uma ponte para a
memória.
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Boletim Informativo de Programação da Rede Globo, n
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Farias e Luciano Sabino. Direção geral: Wolf Maya. Intérpretes: Ana Paula
Arósio; Danton Mello; Rodrigo Santoro e outros. Som Livre. 2002. 3 DVDs
(12h), full screen, color.
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Palottini, Doc Comparato, Manoel Carlos e Euclydes Marinho
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Carvalho. Intérpretes: Regina Duarte; Narjara Turetta; Antônio Petrin; Sônia
Guedes e outros. Som Livre. 2006. 2 DVDs (8h), full screen, color.
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Carlos Pieri e Cininha de Paula. Intérpretes: Eva Wilma; Patrícia Pillar; Natália
Lage; Cássio Gabus Mendes e entre outros. Som Livre. 2007. 4 DVDs (13h
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Rede Globo de Televisão. Central Globo de Criação. Mulher 2. Ep. 14. “Pai de
família”. Definitivo. Escrito por Antonio Calmon, Flávia Lins e Silva e Rosane
Lima. Direção geral José Alvarenga Jr.
Rede Globo de Televisão. Central Globo de Criação. Mulher 2. Ep. 20.
“Maternidade”. Quarto tratamento. Texto final. Escrito por Antonio Calmon,
Geraldo Carneiro, Flávia Lins e Silva e Rosane Lima. Direção geral José
Alvarenga Jr.
Rede Globo de Televisão. Central Globo de Criação. Mulher 2. Ep. 21. Mães de
família”. Quarto tratamento. Texto final. Escrito por Antonio Calmon, Flávia Lins
e Silva e Rosane Lima. Coordenação de Textos Antonio Calmon e Alvaro Ramos.
Direção geral José Alvarenga Jr.
Rede Globo de Televisão. Central Globo de Criação. Mulher 2. Ep. 23. “A bela
adormecida”. Terceiro tratamento. Escrito por Doc Comparato. Coordenação de
Texto Antonio Calmon e Alvaro Ramos. Direção geral José Alvarenga.
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Rede Globo de Televisão. Central Globo de Criação. Mulher 2. Ep. 25. “O
acidente”. Definitivo. Escrito por Jorge Durán. Direção geral José Alvarenga Jr.
Rede Globo de Televisão. Central Globo de Criação. Mulher 2. Ep. 34.
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Texto Antonio Calmon e Alvaro Ramos. Direção geral José Alvarenga Jr.
Rede Globo de Televisão. Central Globo de Criação. Mulher 2. Ep. 35. “Mãe”.
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Direção Denis Carvalho. Rede Globo de Televisão. 11/10/1979. CEDOC.
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Supervisão Daniel Filho. Rede Globo de Televisão. 24/05/1979. CEDOC.
Script do Programa Malu Mulher. Episódio: Acabou-se o que era doce (Piloto).
Número 1. Autor Euclydes Marinho. Direção P. A. Grisolli. Supervisão Daniel
Filho. Caixa 34, registro no. 44.240. Arquivo Nacional.
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Marinho. Direção Daniel Filho. Rede Globo de Televisão. 14/06/1979. CEDOC.
Script do Programa Malu Mulher. Episódio: Ainda não é hora. Autor Euclydes
Marinho. Direção Daniel Filho. Registro n. 44.348, caixa 034-c. Arquivo
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Script do Programa Malu Mulher. Episódio: Até Sangrar. Autor Manoel Carlos.
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Carlos. Rede Globo de Televisão. 30/08/1979. CEDOC.
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Carlos. Direção P. A. Grisolli. Rede Globo de Televisão. 21/04/1980. CEDOC.
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As armadilhas do apuro técnico. Folha de São Paulo, São Paulo, 10 mai.1986.
Autocensura pode transformar Malu numa mulher sem problemas. Jornal do
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