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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Escola de Serviço Social
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
JAVIER BLANK
“MANUEL CASTELLS, AS FORÇAS PRODUTIVAS E A
DES-RADICALIZAÇÃO DE UMA GERAÇÃO INTELECTUAL
Rio de Janeiro
2010
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JAVIER BLANK
“MANUEL CASTELLS, AS FORÇAS PRODUTIVAS E A
DES-RADICALIZAÇÃO DE UMA GERAÇÃO INTELECTUAL
Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Serviço Social da Escola de
Serviço Social da Universidade Federal do Rio
de Janeiro.
Orientador: Professor Doutor Marildo Menegat.
RIO DE JANEIRO
2010
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JAVIER BLANK
“MANUEL CASTELLS, AS FORÇAS PRODUTIVAS E A
DES-RADICALIZAÇÃO DE UMA GERAÇÃO INTELECTUAL
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Serviço Social da Escola de
Serviço Social da Universidade Federal do Rio
de Janeiro.
Aprovado em
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________.
Professor Doutor Marildo Menegat (orientador)
Universidade Federal do Rio de Janeiro
___________________________________________________.
Professor Doutor José Paulo Netto
Universidade Federal do Rio de Janeiro
___________________________________________________.
Professor Doutor José Maria Gómez
Universidade Federal do Rio de Janeiro
___________________________________________________.
Professor Doutor Maurílio Lima Botelho
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
___________________________________________________.
Professor Doutor Jorge Grespan
Universidade de São Paulo
Sumário
Introdução: o nosso tempo histórico e os desafios de uma geração de intelectuais de
esquerda.....................................................................................................................................1
I. A atualidade da crítica radical...........................................................................................10
1. A sociedade moderna e suas abstrações reais: valor, trabalho, força produtiva...............10
2. Periodização do capitalismo e crise estrutural.................................................................33
As ilusões persistentes e infundadas de um capitalismo rejuvenescido..........................42
3. Forças produtivas e barbárie.............................................................................................50
4. A abolição do valor e das forças produtivas.....................................................................55
II. Desmontando o castells de cartas: uma trajetória intelectual.......................................65
1. 1942- 60s: entrada em cena..............................................................................................65
2. 1970s: cocktail de interesses e crise estrutural.................................................................68
3. 1980s: As cidades e os movimentos sociais como objetos limite do marxismo e os
germens do informacionalismo............................................................................................78
4. 1990s: A Era da Informação.............................................................................................88
A tradução teórica da perda de peso das estruturas.........................................................95
A explicação (informacional) do colapso da União Soviética.......................................107
Um padrão recorrente de desenvolvimento e a questão da transição.............................110
5. 2000 em diante: desenvolvimentismo informacional......................................................115
Estações no trem da esperança: Silicon Valley, Finlândia..............................................117
Receitas para o desenvolvimento multicultural na periferia..........................................120
Legitimação para o próprio centro.................................................................................128
Estado, identidade de projeto e legitimidade prescritiva ...............................................131
III. A des-radicalização: em direção a uma racionalidade tecnológica............................136
1. A racionalidade tecnológica e o ponto de vista das forças produtivas............................136
2. O marxismo legal............................................................................................................147
A escola de regulação como ponte................................................................................150
3. As ilusões obstinadas: um capitalismo rejuvenescido....................................................155
4. Economia vulgar e pseudo-teoria adaptativa..................................................................165
5. Das forças produtivas enquanto meio à racionalidade tecnológica ...............................169
Conclusão: o pós-marxismo legal e a manutenção regressiva da esperança...................185
Bibliografia............................................................................................................................193
RESUMO
O presente texto procura analisar a trajetória de des-radicalização de uma geração
intelectual desde os anos 70 até hoje, mostrando o lugar de relevo que ocupa nesse percurso as
questões do desenvolvimento das forças produtivas e da crise estrutural do capital. Aborda a
evolução do sociólogo Manuel Castells, desde a sua origem marxista dedicada a questões
urbanas, até sua análise mais recente da sociedade informacional ou em rede, como caso
expressivo desse percurso de des-radicalização intelectual. Contrapõe-se a essa trajetória a
crítica radical do capital que mostra a crise estrutural em curso e evidencia o papel
legitimador dessa teoria des-radicalizada. Propõe-se a noção de “pós-marxismo legal” para
dar conta dessa trajetó ria geral que inclui mas transcende o caso específico analisado.
PALAVRAS-CHAVE: Manuel Castells, sociedade informacional, des-radicalização,
forças produtivas, marxismo, crítica radical.
AGRADECIMENTOS
Aos professores e funcionários da Escola de Serviço Social da Universidade Federal de
Rio de Janeiro, por me acolher.
A CNPq, Capes e Faperj pelas bolsas de estudo que garantiram as condições materiais
para me dedicar a esta pesquisa.
Pelas respeitosas e importantes sugestões nas diversas instâncias de avaliação, a José
María Gómez, Maurílio Lima Botelho, Jorge Grespan e José Paulo Netto.
Este último merece algumas palavras à parte. Foi um encontro casual com Zé Paulo em
Córdoba, em 2003, que acabou definindo o Rio de Janeiro na escolha do meu destino no
Brasil. Aqui, ele me motivou a fazer o mestrado e leu o primeiro projeto que eu redigi para a
seleção. No nosso primeiro encontro nestas terras, numa amostra de internacionalismo
concreto, instou-me a que vivesse como carioca durante a minha estadia no Rio e sugeriu-me
que “a pátria é onde estão os amigos”.
Porque sinto ter aprendido a lição, quero agradecer aos amigos e amigas que fizeram
deste canto a minha pátria. Amigos que me acolheram. Amigos que chegaram, que foram
embora. Amigos da faculdade, da praia, de comidas e música. Afortunadamente são muitos
para nomeá-los. Baste esse agradecimento geral.
Aos meus amigos de Córdoba, da comunicação, aos amigos da vida. Talvez eles não
saibam da interlocução silenciosa que mantive com eles, na feitura desta tese.
Aos meus irmãos, Pablo e Leo, pois nós três, cada um à sua maneira, vai tentando
decifrar o mundo em que vivemos.
Aos meus pais, Daniel e Rosi, que apesar das dores e impasses de sua geração,
souberam me passar a memória de um desejo por “desalambrar” o mundo. A Lito, primo do
meu pai, e Javier Heraud, poeta peruano, assassinados como tantos outros por tentar tornar
real esse desejo, presto uma humilde homenagem.
A André Villar e, em seu nome, aos cariocas do antivalor. As nossas longas conversas
foram um estímulo e um apoio fundamental para esta tese.
A Marildo Menegat, muito especialmente. Uma garrafa com uma mensagem no oceano
tumultuado deste tempo histórico. Com uma mistura de exigência e paciência, foi-me
mostrando a trilha e deixando-me perder no mato. Fez com que meu caminho fosse realmente
meu, e ao mesmo tempo fosse um caminho. Com afeto, soubemos construir uma amizade que
vai além dos textos.
A Mariela, agradeço-lhe com as palavras que o poeta dirigiu a uma outra beleza
enigmática e encantadora:
Tu, Copacabana
Mais que nenhuma outra foste a arena
Onde o poeta lutou contra o invisível
E onde encontrou enfim sua poesia
Talvez pequena, mas suficiente
Para justificar uma existência
Que sem ela seria incompreensível
(Vinícius de Moraes, fragmento de “Copacabana” em: Roteiro Lírico e sentimental da
cidade do Rio de Janeiro, e outros lugares por onde passou e se encantou o poeta. pp.38-9.
São Paulo, Companhia das Letras, 1992)
“Mas, qualquer que seja a profissão da tua
escolha, o meu desejo é que te faças grande e
ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes
acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é
uma enorme loteria: os prêmios são poucos, os
malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma
geração é que se amassam as esperanças de outra.
Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas
aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e
percalços, glórias e desdouros, e ir por diante”.
(Machado de Assis, fragmento de “Teoria do
Medalhão. Diálogo” [1881] em 50 contos. São
Paulo, Companhia das Letras, 2007. p.83)
1
INTRODUÇÃO: O NOSSO TEMPO HISTÓRICO E OS DESAFIOS DE
UMA GERAÇÃO DE INTELECTUAIS DE ESQUERDA
Os anos 60, e os anos 70 do século passado... uma época de esperanças. Eu não sei,
não vi, eu vim depois. Mas me contaram, eu li. Mas não era uma esperança dessas pequenas
que nos oferecem hoje empacotada. Era uma esperança grande. Lutava-se, amava-se e a
revolução parecia na volta da esquina. Eu não vi, me falaram.
E havia esperanças para gostos variados. E a esperança da política traduzia-se na
teoria.
A superação do atraso dos países pobres prometia vir com brinde. Falava-se em
desenvolvimento das forças produtivas, luta de classes, socialismo. Havia os que ainda
encontravam um sentido comunista à experiência da União Soviética. Para outros, as más
noticias de lá, o XX congresso do PCUS, o esmagamento da revolução húngara, os fez buscar
uma saída ao desconcerto existencial. Em luto pelas esperanças perdidas questionaram o que
constituía até então sua grade de análise. O estruturalismo significou um “degelo ideológico”
para alguns. Contra o voluntarismo político e o dogmatismo teórico, buscaram compreender o
que fazia resistir à mudança. A compreensão das estruturas devia orientar a sua
transformação. Para outros, o estruturalismo significou um “regelo após o degelo”, “infusão
do pensamento tecnocrático no campo intelectual”. Encantados com sua cientificidade,
acabavam as vezes ontologizando essas estruturas, demonstrando a impossibilidade da
mudança. Alguns aderiram ao estruturalismo para renovar o marxismo; outros, para
abandoná-lo (Cfr. Dosse, 1993: 122 e 1994: 186-8, 191-3). As polêmicas em torno da
contribuição de Althusser condensam essa ambivalência: se, por um lado, Althusser
apresentou a uma geração militante o desafio de “ressuscitar um marxismo científico
desembaraçado das escórias dos regimes que se valem dele” (Dosse, 1993: 329), por outro,
“nunca la desactivación del discurso revolucionario, nunca la magia que desodoriza el azufre
se han ejercido con tanto fasto como a través y sobre la obra de Althusser a favor de una triple
reducción: del marxismo a la ciencia exacta; del formalismo a la cientificidad; del marxismo
2
al formalismo. Así la dictadura del proletariado se inscribe en un código” (Aron, 1988: 311-2).
Enquanto isso, o poder crescente da classe operária e experiências de luta em diversas
regiões do planeta renovavam as esperanças: Cuba, China, as lutas anti-coloniais, maio de 68.
As lutas em alguns países da América Latina faziam diagnosticar uma situação pré-
revolucionária. Para Schwarz (2005a: 21), o Brasil pré-64 “estava irreconhecivelmente
inteligente”, isto é, tentavam-se mudanças nas dimensões política (formas de governo),
cultural (formas de representação estética) social (formas de vida coletiva).
Conseqüentemente, as formas de poder eram tensionadas. A inteligência era a invenção de
formas novas por sujeitos em ação (daí as experiências do teatro, das ligas camponesas, da
educação popular de Paulo Freire, do cinema novo). Para Mandel (1985: 331-2), a início dos
70 a transição para uma “onda longa com tonalidade de estagnação” intensificava a luta de
classes internacional.
Os acontecimentos de maio de 68 pareciam a princípio diagnosticar a morte do
estruturalismo, pois mobilizavam um tipo de afeto contrário à sua desencarnação teoricista
(Dosse, 1994: 137-42). No entanto, há por um lado um triunfo institucional dos estruturalistas
que se apoderam das universidades
1
, e por outro um retorno a um althusserianismo no qual
ecoa o evento-68, deslocando-se da teoria para a análise, sem que se condene ao empirismo. A
geração de 68 encontra no althusserianismo o meio de reconciliar a sua adesão ao marxismo e
o seu desejo de rigor estrutural. E o althusserianismo encontrou por largo tempo uma terra de
eleição na América Latina, onde a contestação dos PC oficiais foi feita, na grande maioria dos
casos, em seu nome (idem: 193-5).
Mas, a pesar das conjunções, tensões ou distinções entre o campo do marxismo e o do
estruturalismo, o declínio posterior arrasta ambas correntes.
Devemos lembrar o impacto que teve no início do seculo XX para a intelectualidade de
esquerda a passagem de uma perspectiva de crise à estabilização do sistema.
“Segundo Goldmann, Lukács foi um dos primeiros a revelar a crise da sociedade ocidental, a
1 “O movimento de maio permite a jovens professores a realização de uma carreira que queima todas as
etapas. A necessidade de recrutamento de pessoal provoca um rejuvenescimento espetacular do corpo
docente” (Dosse, 1994: 162).
3
perceber suas falhas invisíveis que solapavam um edifício cuja fachada ainda parecia intacta.
Numa palavra, Lukács previu a catástrofe que se preparava. Em nossa opinião, ocorre justamente o
contrário: o que desespera Lukács é exatamente esta estabilidade, esta imutabilidade da
sociedade capitalista que ele odiava, sociedade na qual os valores estético-filosóficos idealistas e
absolutos, aos quais estava ligado, eram irrealizáveis. O conflito entre os valores autênticos e o
mundo (capitalista) inautêntico é trágico porque é indissolúvel, à medida que Lukács não percebe
nenhuma força social capaz de transformar o mundo e realizar seus valores” (Lowy, 1979:
115).
Nem uma coisa, nem a outra, por si só: era a estabilização de uma sociedade em crise,
junto à inexistência de uma força social capaz de transformar o mundo, que devia desesperar a
Lukács, antes da revolução russa.
Nos anos 70, os diagnósticos de crise terminal do capitalismo e do crescente poder das
forças revolucionárias, alimentavam as esperanças da revolução. Uma derrota histórica das
forças progressistas e a reestruturação do capitalismo provocam uma nova estabilização da
sociedade em crise. Isso gerou um novo impacto na intelectualidade de esquerda.
Schwarz (2005a: 49; itálica minha) escreve a início dos anos 70:
“a crise burguesa, depois do banho de marxismo que a intelectualidade tomara, perdeu todo crédito
[...] Cristalizou-se o sentido moral que teria, para a faixa de classe média tocada pelo socialismo, a
reconversão ao horizonte burguês. Entre parênteses, esta crise tem já sua estabilidade, e alberga
uma população considerável de instalados”.
E Anibal Quijano (1991: viii-xix; itálica minha), a inícios dos anos 90:
“el capital renace ahora como un sólido fénix, de la ceniza de la más severa de sus crisis, la de los
años 70. Inclusive, tras el eclipse del 'socialismo realmente existente', ha logrado,
inesperadamente, bruñir de un renovado esplendor sus divisas de prosperidad y de libertades
universales. Y en pos de ese relumbre corren ahora tantos que ayer no más proclamaban su
devoción revolucionaria y socialista, aunque detrás de ese aparente brillo no se puede encontrar
otra cosa que el 'capitalismo realmente existente': esto es, el continuado sometimiento de la vasta
mayoría de la especie a la pauperización y a la opresión, para sostener la prosperidad y la libertad
de la misma (o casi) pequeña minoría de hace 500 años”.
Dosse (1993: 187-8) registra o paradoxo de que, diante do “desmoronamento do
edifício da crença”, o estruturalismo e sua busca de invariantes tinha se oferecido como tábua
de salvação para a agonia do marxismo institucional, no mesmo momento em que “a Europa
conhecia os anos da mais rápida transformação econômica desde o final do século XVIII”.
Agora, num novo impasse histórico, encontramo-nos novamente com um movimento de
tentativa de renovação intelectual, de questionamento da grade de análise anterior pelo
fracasso político, num contexto de transformação econômica.
4
Como manter a esperança numa época regressiva? Esse é o desafio de uma geração
que se depara com o colapso do socialismo real, com o desemprego estrutural e com a própria
crise do marxismo tradicional como sintomas de uma crise estrutural. O marxismo em voga se
revelava infecundo para orientar a práxis nesse novo contexto. Portanto, deviam desenvolver
uma nova teoria que, compreendendo o novo tempo histórico, com suas mudanças tecno-
econômicas, superasse o marxismo tradicional, e propusesse novas saídas.
Há um recuo geral em relação ao qualificativo de estruturalista. Uma tendência é a
desconstrução ou dinamização da estrutura (Deleuze) (Dosse, 1994: 222 e 241). Ou então, o
foco do interesse nas margens do sistema, diante do fracasso da ruptura frontal. Por esse
deslocamento, Foucault é para Dosse o “eco dos ideais e desilusões” da geração de 68,
“receptáculo genial de sua época”, estruturalista nos anos 60, individualista nos anos 80
(idem: 281-5 e 432). Outra corrente de reflexão se desenvolve em torno do paradigma da
dialógica, do agir comunicacional. Habermas “traça as vias possíveis de uma racionalidade
comunicacional como fundamento de uma teoria do social”. A tarefa do filósofo seria
“encontrar os meios de recompor o vínculo social, de evitar a dissociação crescente entre
indivíduo e sistema”. O conceito de dialógica oferece, para Edgar Morin, a vantagem de
favorecer a complementariedade das entidades contraditórias e vem a substituir a palavra
dialética. Permite uma “reflexão sobre a contradição, sem pensar uma necessária
ultrapassagem a partir da fratura da unidade”. “Essa unidade pode surgir da dualidade, da
união de dois princípios logicamente heterogêneos entre si” (idem: 491-9). Paulo Arantes
(1992: 71 e 93) atentava para a a “dialética sem síntese” que articula os 'dois Brasis', que
poderia ser chamada de “dialética negativa”, e propunha pensar a formação brasileira em
termos de “onde há e não há dualidade”. Mas, aqui essa dialética sem síntese implica uma
denúncia de um tipo de estruturação social a ser superada, enquanto na perspectiva dialógica,
implica uma adesão. Por isso para Arantes (2004: 293-4) as “mudanças de paradigma”,
exemplificada com os rizomas de Deleuze, são uma “sintomática desconversa” de um
“esgotamento histórico real”.
Sai-se da consciência crítica quando não se possui mais a ideia de uma ultrapassagem (Marcel
5
Gauchet apud Dosse, 1994: 304).
A conjunção de crise política, econômica e do próprio marxismo leva a uma
reavaliação dos valores sustentados pelas democracias europeias e a imposição de uma nova
lógica binária que opõe democracia e totalitarismo. Assim, por exemplo, toda uma geração
engajada no maoismo rejeita, exorciza seu passado comprometido com 68, descobre o
“discreto charme do liberalismo”, no “sintoma dilacerante da agonia de uma esperança”,
investem contra a própria ideia de revolução e de sua “propensão congênita para o terror”.
Preparam sua reconciliação com os valores de sua sociedade de origem (Dosse, 1994: 303-7).
Nesse processo há um abandono massivo do marxismo desde inícios dos anos 80. Mas
a “superação do marxismo” não resolveu os desafios a enfrentar. Como destaca Dosse, “com o
refluxo do marxismo, desaparece o instrumento de análise global da sociedade e da história
que desmorona”, e a busca pelas “lógicas escondidas, ocultas e globais”, depositando-se agora
a confiança em que “basta ouvir, ler, ver, para compreender”, contrário a “uma certa
especulação conceitual com pretensões científicas que tinha desempenhado o papel de cortina
de fumaça” (idem).
Os movimentos dos anos 60 viveram em torno a uma ilusão da dissolução das estruturas
criada por uma fase de transição para um novo arranjo dentro do mesmo modo de produção
(Menegat, 2003: 227-9). Essa ilusão permanece e se traduzirá em termos teóricos, assim como
se exprimira no momento histórico anterior a esperança na revolução.
Pela sua insegurança na análise da natureza do capitalismo, os pós-modernos
abandonaram a tentativa de compreendê-lo. Assim, a negação do pensamento teleológico,
atribuído ao marxismo num todo, os leva a abandonar a compreensão das “determinações
herdadas” de nossa época, o que “redunda num verdadeiro determinismo que, por não ser
tematizado e apreendido, se torna uma imposição misteriosa e irracional” (Menegat, 2006:
293-4). O estruturalismo “não gerou uma teleologia da decadência que pudesse ter substituído
a crença no progresso do período precedente” (Dosse, 1994: 476). E também não o
pensamento pós-moderno. Agora “o homem é apreendido como abstração, livre das coações
do tempo”, o que para Dosse implica um recuo que nos arrasta para os horizontes de um
século XVIII (Dosse: 1993: 18). Esse pensamento “acentua ainda o caráter monadológico do
6
indivíduo ao considerá-lo simples partícula ligada a redes”, “se inscreve na filiação de um
pensamento do individualismo inteiramente contrário a um pensamento do sujeito” (Dosse,
1994: 402-3). Essa alternância entre estruturas e indivíduo impede apreender exatamente a sua
interação (idem: 455).
A des-radicalização intelectual é um processo de perda de peso das estruturas na
análise, que acompanha a estabilização regressiva do sistema. Diante de um “estado de
emergência” pela cronificação da crise, o pensamento des-radicalizado, deverá naturalizar e
tentar suturar um estado insuperável de fratura. A necessidade de se neutralizar a percepção
de cada catástrofe produzida pela irracionalidade do capital (Menegat, 2003: 236) conduz à
“transmutação da falsa consciência em falsidade de consciência”. Essa tese de Lukács,
retomada por Adorno implica duas premissas: “o domínio asfixiante das relações de produção
sobre as possibilidades de constituição de um campo de relações sociais livres; o papel que as
forças produtivas passam a desempenhar dentro das relações de produção, tornando-se forças
de domínio” (Menegat, 2006: 256).
Para Menegat, incorporar a questão da linguagem a uma leitura dialética da sociedade
permite uma compreensão crítica mais profunda do processo de absorção por parte dos
indivíduos da subjetividade do capital; mas “isoladamente, como um paradigma de
compreensão da realidade social, acaba servindo justamente de legitimadora desta
subjetividade”. Faz parte da falsidade de consciência esse alargamento do território de ação
do conservadorismo, que “tem muito mais a intenção de bloquear a realização de uma
transformação histórica do que de impulsioná-la” (Menegat, 2003: 203).
Menegat nota a gravidade regressiva que impregna esta nova modulação da ideologia
na época da atualidade de barbárie, ideologia que fornece os elementos perceptivos que
conformam a nova sensibilidade que deve tornar suportável o insuportável, que enxerga o
“que é como devendo ser” (idem: 235-7), que, se tornando um “decálogo operacional”
transforma o que é inaceitável em “vantagens relativas” (Menegat, 2006: 97).
Abandonando o marxismo tradicional pelas suas insuficiências teóricas, boa parte
dessa geração acabou encontrando saídas para dentro do próprio sistema. Fazendo da
7
necessidade virtude, traduziram em termos pseudo-teóricos, na verdade prescrições
apologéticas, os impasses regressivos de uma crise estabilizada.
Nesta tese analiso a trajetória de Manuel Castells como caso expressivo do pós-
marxismo legal, uma geração que, abrindo mão do marxismo para enfrentar os desafios
contemporâneos, acabou ressaltando as realizações do capitalismo, abandonando a
perspectiva de derrubá-lo.
Por que Castells? Na sua obra inicial, nos anos 70, ele teve influência e
reconhecimento pela sua proposta de abordagem marxista das questões urbanas. Agora ele é
reconhecido por enfrentar as questões contemporâneas, tal como elas são. Sem marxismo,
sem dogmas, orientando uma ação responsável e ainda trazendo esperança neste mundo
flexível
2
. É lido por aqueles que foram marxistas e se des-radicalizaram, e também por
aqueles que nunca passaram pelo marxismo. Pela sua pretensão de formular uma teoria social
do nosso tempo histórico, sua obra é de caráter enciclopédico e atrai leituras de diversas
disciplinas (antropologia, sociologia, comunicação) que procuram nela aspectos parciais
(tecnologia, movimentos sociais, Estado, economia)
3
.
Devido à importância das tecnologias de informação e comunicação nos processos
produtivos e de sua penetração crescente na vida cotidiana das pessoas, foi ganhando espaço a
noção de Sociedade da Informação e outras semelhantes. Comparece em políticas públicas,
2 Temos uma amostra no blog do Geraldão, candidato a Deputado Federal do Rio Grande do Norte pelo PT
nas eleições de 2010: “Ao final, poucos resistem ao ensejo recomendatório envolvendo A sociedade em rede.
De forma sedutora, Castells renuncia ao niilismo, ao ceticismo e à descrença política do 'fim da história'; ao
contrário, talvez esta nunca tenha caminhado para o futuro com tanto vigor e rapidez. Por querer,
envolvemos-nos sem cautela nas redes e nas possibilidades inéditas de inovar e reconstruir paradigmas
tecnológicos e informacionais. Seduz-nos não viver em um sistema, mas visitar as múltiplas janelas abertas
de um mundo flexível em eterna reconstrução”. Disponível em:
http://geraldaopt.blogspot.com/2010/07/resenha-sociedade-em-rede-manuel.html. Também lemos que uma
das propostas de campanha mais importantes do Geraldão, e “que conta com o apoio de Dilma, é oferecer
conexão em banda larga à internet para todos o lares brasileiros. Mais do que a democratização de um meio
que se torna a cada dia mais vital no mundo contemporâneo, a proposta visa inserir em iguais condições
todas as faixas sociais no acesso à informação, à educação e à formação profissional que hoje não
prescindem da internet”. Disponível em: http://geraldaopt.blogspot.com/
3 O livro Conversations with Manuel Castells, de 2003, faz parte de uma série de entrevistas com “cientistas
sociais destacados” que reúne, entre outros, a Zygmunt Bauman, Anthony Giddens, Ulrich Beck, Terry
Eagleton, Stuart Hall, Richard Sennet, Slavoj Zizek (Cfr. Castells, 2003).
8
fóruns e cúpulas nacionais e internacionais, e em debates e ações de ONGs, movimentos
sociais, partidos políticos, sindicatos de imprensa, associações civis, empresas. A obra recente
de Castells é uma referência nesse campo. É um dos autores mais divulgados e citados que
vem desenvolvendo essa perspectiva de análise
4
. Ainda, parece se erigir como um guia de
ação para ativistas que querem intervir nesta sociedade. Essa noção de Sociedade
Informacional ou em Rede, que pretende dar conta da especificidade das sociedades
contemporâneas, tem consequências teó ricas e políticas regressivas. Ela legitima o
desenvolvimento tecnológico do capitalismo contemporâneo como promessa efetiva de
emancipação.
Os assuntos que Castells trata na sua obra recente fazem parte de um debate que o
transcende e o supera. Não considero que seja a expressão melhor acabada desses debates. Me
interessa fundamentalmente sua trajetória, pois exemplifica e concretiza o percurso geral de
uma geração, desventura de uma legião de intelectuais. Embora a riqueza de itinerários
individuais não se deixa reduzir a uma história massificante, é possível procurar núcleos
coerentes que revelem a matriz dessa trajetória. Dois núcleos fundamentais são a concepção
de crise e o lugar atribuído ao desenvolvimento das forças produtivas.
Em termos mais abrangentes, faz parte de uma matriz de pensamento que alimenta os
debates de uma renovada esquerda desenvolvimentista que pretende ensinar hoje à burguesia
os caminhos de um capitalismo virtuoso
5
.
Aqui analiso as inconsistências e insuficiências dessa ideia de sociedade informacional
para compreender as potencialidades do desenvolvimento tecnológico atual. A sua
inconsistência é percebida numa análise imanente, interna, da própria construção conceitual
4 Como mostra disso, das 156 publicações sugeridas pelo site da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da
Informação, 14 referencias são livros em diferentes edições e traduções do Manuel Castells, sendo o autor
que mais aparece na listagem. Os autores que continuam na ordem tem só 4 referencias.
Disponível em: http://www.itu.int/wsis/documents/bibliography-es.html
5 Lula afirmou num comício em Porto Alegre, no dia 29 de julho de 2010: "a elite capitalista brasileira que
dirigia este país não sabia o que era capitalismo. Precisou entrar na Presidência um metalúrgico socialista
para ensinar a eles como se faz capitalismo neste país". Disponível em:
http://jptportoalegre.blogspot.com/2010/07/lula-direita-tenta-dar-golpe-cada-24.html. Por sua vez, o estouro
da crise na Grécia em maio de 2010 evidenciava para a presidenta Cristina Fernández de Kirchner a
insustentabilidade das receitas que geram exclusão. Aproveitando a ocasião, e como contra-exemplo exitoso,
parabenizou ao presidente de IBM na Argentina, porque "não esperaram a que existisse a demanda para
investir, mas geraram a oferta e assim construíram a demanda”. Devia ser um exemplo: “nossos empresários
teriam que se acostumar com essa ideia: gerar a oferta, investir e não esperar a que exista demanda para
fazê-lo". Trata-se de um “capitalismo verdadeiro”. Disponível em:
http://www.pagina12.com.ar/diario/ultimas/subnotas/145236-46620-2010-05-06.html
9
de Castells. A sua insuficiência é analisada contrastando essa construção conceitual com uma
crítica radical das categorias do capital, iniciada por Marx, que continua seu desenvolvimento
atualmente, e que leva a uma análise da crise estrutural do capital e da impossibilidade de
efetivar as promessas da tecnologia sem superar essa ordem social.
O pensamento des-radicalizado constitui uma parte substantiva do que minha
geração e as posteriores recebemos como herança intelectual. Daí a importância desse
balanço. A sua crítica também pretende mostrar que uma crítica radical ainda é necessária e
está sendo desenvolvida. Diante do cenário de crise estrutural, um verdadeiro realismo exige
uma crítica das categorias de base do capital (valor, trabalho, forças produtivas) que
oriente uma práxis revolucionária.
10
I. A ATUALIDADE DA CRÍTICA RADICAL
1. A sociedade moderna e suas abstrações reais: valor, trabalho,
força produtiva
Marx atribui ao processo de trabalho uma dimensão qualitativa e ao processo de
valorização uma dimensão quantitativa, correspondente à distinção entre valor de uso e valor,
entre trabalho concreto e trabalho abstrato
6
. A máquina enquanto instrumento de trabalho
cumpre com as exigências do processo de trabalho, produzir um valor de uso. A máquina
enquanto momento do capital cumpre com as exigências do processo de valorização, a
valorização do valor, a produção de mais-valia. Encontramos em Marx referências ao ponto de
vista do processo de trabalho e ao ponto de vista do processo de valorização
7
.
Mas essa referencia aos pontos de vista não está aludindo à perspectiva de análise do
observador. O que Marx mostra é que o processo de valorização, qualitativamente diferente do
processo de trabalho, por ter outra finalidade, comanda o processo de trabalho. Essa
subsunção do processo de trabalho numa outra totalidade, o processo de valorização, implica
uma metamorfose, uma mudança de natureza. Transforma-se o modo de produção, o próprio
processo de trabalho. Só num nível extremamente abstrato, enquanto metabolismo entre a
humanidade e a natureza, é que a natureza geral do processo de trabalho fica inalterada, que é
independente das formações sociais especificas (C I, 5, 215 e 223-224).
Há em Marx uma crítica formal da sociedade moderna, cujas formas básicas são
6 “Si parangonamos, además, el proceso en que se forma valor y el proceso de trabajo, veremos que éste
último consiste en el trabajo útil que produce valores de uso. Se analiza aquí el movimiento desde el punto
de vista cualitativo, en su modo y manera particular, según su objetivo y contenido. En el proceso de
formación del valor, el mismo proceso laboral se presenta sólo en su aspecto cuantitativo. Se trata aquí,
únicamente, del tiempo que el trabajo requiere para su ejecución, o del tiempo durante el cual se gasta de
manera útil la fuerza de trabajo” (Marx, C I, 5, 237). Como referência à obra O Capital utilizo a letra C,
seguida do número do livro em número romano, do número do capítulo, e finalmente do número da página.
Os Grundrisse serão referidos com Gr. seguido do número do volume em romano e do número de página.
As citações correspondem as edições em espanhol da editorial Siglo XXI.
7 Por exemplo: “Los mismos componentes del capital que desde el punto de vista del proceso laboral se
distinguían como factores objetivos y subjetivos, como medios de producción y fuerza de trabajo, se
diferencian desde el punto de vista del proceso de valorización como capital constante y capital variable” (C
I, 6, 253).
11
geralmente naturalizadas e ontologizadas (Kurz, 1992: 22)
8
. Marx identificou na mercadoria a
forma elementar da sociedade burguesa, que encerra os traços essenciais do modo de
produção capitalista. A contradição entre o abstrato e o concreto contida na mercadoria
regressa em cada estádio de análise, constituindo a contradição fundamental da formação
social capitalista (Jappe, 2006: 37). A exposição conceitual da lógica da mercadoria é a
descrição mais adequada “dessa dominação da forma sobre o conteúdo” (idem: 173).
Na relação entre a circulação simples de mercadorias e a circulação do capital, Marx se
pergunta como “uma diferença puramente formal haveria de transformar como por arte de
magia a natureza desses processos” (C I, 4, 190). Na transformação em momento de um
processo maior, Marx se inspira “na figura lógica da 'Aufhebung' hegeliana, significando
tanto a negação como a conservação, momentos opostos da elevação ou superação de uma
forma pela outra, em que a mais elevada dá à anterior um novo fundamento, conservando-a
apenas em função deste e não em si mesma” (Grespan, 1999: 111).
Com o conceito de abstração real, é “a subordinação muito real do conteúdo concreto
à forma abstrata que é posta em discussão” (Jappe, 2006: 74).
A potencialidade crítica da análise marxiana está na compreensão da metamorfose que
sofre o processo do trabalho e o processo de reprodução social como um todo, comandado
pelo processo de valorização. Assim, não há oposição entre o processo de trabalho e processo
de valorização, mas transmutação do processo de trabalho pelo processo de valorização.
A ideia do caráter duplo da mercadoria enquanto valor e valor de uso revela-se claramente
como parte de uma análise crítica que vai além de uma recusa romântica do abstrato (valor)
em nome do concreto (valor-de-uso). Essa análise é, melhor dizendo, a de uma 'substância'
que flui sem ser idêntica com as várias formas de manifestação que adquire no decorrer desse
desenvolvimento” (Postone, 2009)
9
.
8 Contrário a isso, “a crítica direta das ciências naturais e da industrialização tem efeito quase afirmativo por
ignorar a condicionalidade histórica das formações sociais reais, interpretando as crises em sentido
ontológico”. Isso leva a uma “ideologia de legitimação negativa” (Kurz, 1992: 19). Durkheim, Mauss,
Polanyi, contribuíram com análises importantes para a crítica do fetichismo e a crítica da economia, mas
sem “o nível de compreensão das formas de base que distingue a obra de Marx” (Jappe, 2006: 15 e 22). O
“capitalismo” é uma maneira conceitualmente mais rigorosa de analisar a “modernidade” (Postone, 2009:
324).
9 Cfr. também Grespan (1999: 65): “Nesta acepção de 'coisa social', o valor não é simplesmente diverso do
valor-de-uso, já que o trabalho abstrato não é mero gênero que abrange os trabalhos concreto-específicos,
distinguindo-se deles só por isso; é também uma 'substância', algo real que se opõe a eles, pois sua realidade
12
Numa perspectiva de crítica do valor a leitura da obra de Marx enfatiza o caráter
histórico das categorias valor e trabalho enquanto categorias específicas do modo de
produção capitalista
10
. Neste sentido, a crítica ao marxismo tradicional diferencia-se do apego
deste a um caráter ontológico e a-histórico destas categorias, isto é, a suposição de que essas
categorias têm uma transcendência a-histórica (Cfr. Postone, 2006 e 2009).
A distinção de Marx entre valor e riqueza material é “entre uma forma de riqueza
determinada pelo dispêndio de tempo e uma baseada na natureza e quantidade de bens
produzidos” (Postone, 2009: 315). O valor é um tipo específico de riqueza que depende do
“tempo de trabalho e da magnitude do trabalho empregado” (Postone, 2006: 69). Na
produção de valor é apenas e exclusivamente o dispêndio de força de trabalho que conta, sem
consideração do valor de uso em que esse dispêndio se realiza. O valor é a cristalização da
geleia de trabalho abstrato, despido de sua forma concreta (Jappe, 2006: 30). Essa distinção é
fundamental e permite compreender que a produção de valor “não enriquece a sociedade”, a
sobreprodução de valor significa “demasiada riqueza sob as respectivas formas capitalistas”,
“o trabalho enquanto concebido como criador de valor, não produz conteúdo algum. Não cria
nem produtos, nem serviços, mas apenas uma forma pura” (idem: 53-4).
O trabalho, essa abstração da atividade reprodutiva”, nasceu apenas com o
moderno sistema produtor de mercadorias. Em muitas culturas não existia um conceito
abstrato de trabalho mas diversos conceitos concretos e contextuais de atividade (Kurz, 1995).
A distinção entre trabalho abstrato e concreto conduz a pôr em discussão “não apenas o
'trabalho abstrato', mas também o trabalho enquanto tal”. É que o trabalho é um fenômeno
histórico que só existe nas circunstancias em que existam o trabalho abstrato e o valor. Ainda,
o conceito de trabalho concreto “é ele mesmo uma abstração, porque nele se separa, no espaço
e no tempo, uma certa forma de atividade do campo conjunto das atividades humanas: o
consumo, o jogo e a diversão, o ritual, a participação nos assuntos coletivos”. O trabalho, é,
é a de um processo que os subordina e controla. Daí Marx afirmar que o trabalho abstrato é o 'contrário
imediato' do trabalho concreto e também que o valor está em oposição ao valor-de-uso, e não em uma
simples diferença”.
10 A crítica do valor mobilizaria autores como Rubin, Rosdolsky, Kurz, Jappe, Postone, entre outros.
13
pois “uma maneira especificamente moderna de organizar as atividades produtivas sob forma
de esfera separada” que se tornou “autônoma e superior às outras”. “Somente no capitalismo o
trabalho enquanto tal se converteu em princípio de síntese da sociedade. Só aqui a
transformação tautológica do trabalho vivo em trabalho morto se torna o princípio
organizador de todas as atividades, de tal maneira que estas não existem senão em função
dela” (Jappe, 2006: 110-1 e 117-9).
A determinação do valor e o trabalho enquanto categorias específicas do capital deve
ser estendida à categoria forças produtivas. O que pretendemos mostrar é que a categoria
forças produtivas só tem validez sob o modo de produção capitalista.
O marxismo tradicional concebe as forças produtivas enquanto dimensão puramente
técnica, extrínseca ao capitalismo e travada pelas relações sociais capitalistas
11
. Isso implica
numa noção das forças produtivas de caráter antropológico que expressaria determinadas
objetivações na relação do homem com a natureza que podemos encontrar em todas as
sociedades. Podemos encontrar essa noção de caráter antropológico, por exemplo, em Manuel
Castells (1978: 74-5). Ele refere-se ao
desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, relação entre o trabalho e a natureza através dos
meios de produção, dentro de uma relação social geral organizada pelo capital. O desenvolvimento
das forças produtivas significa a capacidade do trabalho humano para transformar a natureza (e
para transformar-se a si mesmo) mediante a combinação de energia e informação dentro de um
processo de transformação da matéria” [para a combinação de energia e informação remete a
Jacques Attali, La parole et l'outil].
Podemos trazer dois exemplos dos “Manuscritos de 1861-1863” de Marx para
compreender a sua abordagem da questão técnica: o relógio e a máquina. Marx se pergunta o
“que aconteceria se não existisse o relógio, num período no qual tem uma importância
decisiva o custo das mercadorias e, portanto, também o tempo de trabalho necessário para
sua produção?” (Marx, 1980: 90). A vinculação do relógio com o império do tempo de
trabalho necessário como medida da mercadoria mostra, na análise, uma junção da forma
com a matéria, da necessidade sistêmica com a possibilidade técnica. Essa dialética de
necessidade e possibilidade foge tanto do determinismo tecnológico quanto do
11 Postone já aponta isso no seu texto de 1978, “Necessity, labour and time: a reinterpretation of the marxian
critique of capitalism ”, e o desenvolverá na sua obra posterior (Cfr. 1978).
14
indeterminismo tecnológico, isto é, da assunção de um caráter neutral da técnica.
Por outro lado, para Marx, a determinação da máquina em termos tecnológicos, com as
quais ele se deparava na literatura da época (i.e, a máquina enquanto instrumento complexo, e
o instrumento enquanto máquina simples), não conseguiam “explicar as transformações
sociais” (idem: 115). Na sua análise, com a máquina não se tratava “de uma determinação
tecnológica rígida qualquer, mas de uma revolução no emprego dos instrumentos de trabalho
que prefigura já o modo de produção e, ao mesmo tempo, também as relações de produção”
(idem: 74). Propõe, então, distinguir entre o emprego da máquina de maneira capitalista,
autonomizado como forma do capital em face do trabalhador” e a sua “fase infantil”
enquanto forma simplesmente mais produtiva que o velho instrumento artesanal (idem: 52).
A noção antropológica das forças produtivas perde essa especificidade histórica
fundamental. A própria separação entre forças produtivas e relações de produção não é
ontológica, isto é, transistórica e válida para todo o desenvolvimento da humanidade, mas é
dada por uma condição específica na qual a técnica passa a se desenvolver de maneira
autonomizada como forma do capital. A força produtiva é essa maneira especificamente
capitalista de desenvolver e empregar a técnica, na forma de uma esfera autonomizada
12
.
A extensão que estamos propondo da determinação do valor e do trabalho enquanto
categorias específicas do capital para a categoria forças produtivas, não é uma mera analogia.
Eles são campos autonomizados vinculados entre si. Na sua obediência a princípios
abstratos
13
, a constituição das categorias historicamente específicas de valor, trabalho e força
produtiva fazem parte de um mesmo processo lógico-histórico.
O capitalismo só nasceu com a transformação dos meios de produção e da força de
trabalho humana em capital industrial (Kurz, 1995). Mas não é o desenvolvimento das forças
produtivas o que explica a origem do capitalismo. Ao contrário, a premissa de Marx é que o
que deve ser explicado é exatamente a origem do impulso distintivo do capitalismo a
12 “Os meios de que a sociedade dispõe para alcançar os seus objetivos qualitativos transformaram-se numa
potência independente, e a própria sociedade vê-se reduzida ao estatuto de meio ao serviço de um meio que
se tornou finalidade” (Jappe, 2006: 62).
13 A centralidade do trabalho, como incremento produtivo por excelência, e da ciência, como terreno
privilegiado do desenvolvimento das forças produtivas” são “parte daquelas práticas autônomas interpostas
entre o sujeito e a natureza”, “atividades quantificadoras que obedecem a princípios abstratos” (Menegat,
2003: 35).
15
transformar as forças produtivas. “O impulso a transformar as forças produtivas não foi a
causa mas o resultado de uma transformação nas relações de produção e de classe” (Wood,
2000: 160-1). Ellen Wood chama a atenção para o fato de que nas próprias descrições de Marx
sobre as transições históricas, o desenvolvimento das forças produtivas representa um pequeno
papel como motor primário
14
.
Veremos a análise de Marx desse processo chamado de subsunção real que implica o
nascimento das forças produtivas enquanto categoria do capital. Nesse processo histórico,
“o trabalho abstrato é menos uma pressuposição do que uma consequência do
desenvolvimento capitalista das forças produtivas” (Jappe, 2006: 87). O trabalho, enquanto
labor, estafa e moléstia, ocupava o horizonte da vida da maioria das pessoas, devido ao “grau
de desenvolvimento relativamente baixo das forças produtivas”. Numa inversão dessa lógica,
no sistema produtor de mercadorias, à medida que as forças produtivas rompem a coação e a
prisão da “primeira natureza”, passam a ser presas numa coação social secundária,
inconscientemente produzida. Precisamente “nessa inversão origina-se o caráter do trabalho
moderno, de atividade que traz em si sua própria finalidade” (Kurz, 1992: 23-28).
As forças produtivas são uma abstração real que subordina o conteúdo concreto do
desenvolvimento tecnológico à forma do valor. A técnica é um meio para obter um fim, mas
subsumido pela forma das forças produtivas, vê seu conteúdo ser direcionado em função de
fins não determinados por necessidades humanas, mas pelo capital e sua permanente
valorização.
Postone (2009: 308) adverte que se bem é nos Grundrisse que se encontra mais
explicitado o caráter histórico das categorias, é a partir dessa compreensão que O Capital deve
ser lido, pois a natureza geral da crítica se mantém a mesma nas duas obras. Na exposição de
O Capital podemos apreender a vinculação entre as categorias valor, trabalho e forças
produtivas.
Os primeiros quatro capítulos de O Capital são fundamentais na construção categorial
14 Nesse sentido, cabe ressaltar que Marx sinaliza como princípio econômico do modo de produção escravista
o uso de instrumentos de trabalho que “pela sua tosca rusticidade” são mais difíceis de serem quebrados (C
I, 5, 238, nota 17).
16
do modo de produção capitalista. Neles, a categoria valor vai sendo analisada na sua forma e
conteúdo, vai sendo apresentada, desenvolvida. É de fundamental importância compreender o
sentido do valor nessa forma específica de sociabilidade que é a burguesa, baseada numa
“dualidade fundamental entre o caráter imediatamente privado e aquele só mediadamente
social do trabalho” (Grespan, 1999: 60)
15
. O valor é o nexo social de produtores privados, que
se apresenta como relações entre coisas.
Daí o fetichismo, analisado por Marx não como mera ilusão mas como aparência
necessária dessa forma de sociabilidade. O caráter fetichista do mundo das mercadorias
origina-se “na peculiar índole social do trabalho que produz mercadorias” (C I, 1, 88-9)
16
.
Depois de uma longa pesquisa, na qual dialoga criticamente com a economia política
clássica, Marx chega a um resultado fundamental na sua compreensão do modo de produção
capitalista: a natureza dual da mercadoria enquanto valor de uso e valor, e a correspondente
natureza dual do trabalho inserido na mercadoria, trabalho concreto e abstrato (C I, 1, 51).
Isaak Illich Rubin, no seu estudo clássico de 1928, distingue os diferentes aspectos nos
quais deve ser considerado o valor: a magnitude, a forma e a substância (conteúdo). O
trabalho abstrato é a substancia que se expressa no valor de um produto do trabalho (Rubin,
1980: 90). O trabalho abstrato, trabalho despido do seu caráter útil de produtor de valores de
uso, é uma “objetividade fantasmagórica, uma simples gelatina de trabalho humano
indiferenciado, isto é, do dispêndio de força de trabalho humano, sem consideração pela forma
como foi dispendida”. A magnitude do valor está determinada pelo tempo de trabalho
socialmente necessário para a produção de valor de uso”. Socialmente necessário quer dizer
“nas condições dadas de produção socialmente normais, e com o grau social médio de
habilidade e de intensidade de trabalho” (C I, 1, 47-8). O tempo de trabalho na formação de
15 “La misma división del trabajo que los convierte en productores privados independientes, hace que el
proceso de producción y las relaciones suyas dentro de ese proceso sean independientes de ellos mismos, y
que la independencia recíproca entre las personas se complemente con un sistema de dependencia
multilateral y propio de cosas” (C I, 3, 131).
16 “Os homens põem em relação os seus trabalhos privados, não diretamente, mas somente numa forma
objetiva, sob uma aparência de coisa, a saber, como trabalho humano igual, exprimido, num valor de uso.
Contudo, não o sabem e atribuem os movimentos dos seus produtos a qualidades naturais dos mesmos”. “O
fetichismo não é apenas uma representação invertida da realidade, mas uma inversão da própria realidade”.
Há uma identidade entre a teoria do valor e a teoria do fetichismo; valor e mercadoria são categorias
fetichistas que dão fundamento a uma sociedade fetichista (Jappe, 2006: 33-4).
17
valor “conta unicamente na medida em que o tempo gasto para a produção do valor de uso
seja socialmente necessário”, otempo supérfluo não geraria valor ou dinheiro” (C I, 5, 237).
Ao tratar da transformação do dinheiro em capital, Marx contrapõe a circulação
mercantil simples (simbolizada na fórmula M-D-M) com a circulação do dinheiro enquanto
capital (D-M-D'). Ele mostra como “o dinheiro, obedecendo a uma necessidade social
derivada das circunstâncias do processo de circulação, se converte em fim último da venda
(C I, 3, 166). É de fundamental importância atentar para a diferença qualitativa, essencial,
existente entre os dos circuitos.
“La reiteración o renovación del acto de vender para comprar encuentra su medida y su meta,
como ese proceso mismo, en un objetivo final ubicado fuera de éste: el consumo, la satisfacción de
determinadas necesidades. Por el contrario, en la compra para la venta, el principio y el fin son la
misma cosa, dinero, valor de cambio, y ya por eso mismo el proceso resulta carente de término”.
La circulación del dinero como capital es “un fin en sí, pues la valorización del valor existe
únicamente en el marco de este movimiento renovado sin cesar. El movimiento del capital, por
ende, es carente de medida” (C I, 4, 185-6).
Na transformação do dinheiro em capital ocorre uma mudança fundamental. A
circulação simples de mercadorias, cuja finalidade é a procura de um valor de uso para
satisfazer uma necessidade, é subsumida pela produção capitalista. Nesta, não se vende para
comprar, mas se compra para vender. A finalidade mudou. Da satisfação de uma necessidade
através da obtenção de um valor de uso, passa-se agora à procura infinita de mais valor. Na
infinitude deste movimento, sem referencia externa ao capital, reside uma primeira desmedida
do processo capitalista de acumulação, a medida da autovalorização (Grespan, 1999: 130)
17
.
Nesse processo desmedido, o valor que se auto-valoriza, o capital, torna-se um sujeito
automático: “El valor pasa constantemente de una forma a la otra, sin perderse en ese
movimiento, convirtiéndose así en un sujeto automático”; “el valor se convierte en el sujeto
de un proceso en el cual, cambiando continuamente las formas de dinero y mercancía,
modifica su propia magnitud, en cuanto plusvalor se desprende de sí mismo como valor
originario, se autovaloriza” (C I, 4, 188).
O capital enquanto 'sujeito automático' é o resultado do desenvolvimento da categoria
valor dos primeiros quatro capítulos d'O Capital. E é o ponto de partida para a análise
posterior das transformações que o capital produz comandando o processo de valorização.
17 Marx deduz a desmedida do capital do próprio conceito de capital, da contradição entre o caráter
qualitativamente ilimitado e quantitativamente limitado do dinheiro (Jappe, 2006: 132).
18
Marx mostra no capítulo 5 como, ao processo de trabalho que produz valores de uso,
sobrepõe-se agora a produção de valor que se valoriza pelo processo de valorização.
Correspondente à analise da mercadoria enquanto unidade contraditória de valor de uso e
valor, o processo de produção capitalista é concebido como uma “unidade do processo de
trabalho e do processo de valorização” (C I, 5, 239). Para definir o processo de valorização,
Marx deve compreender o processo de produção de valor, e para isso, resolver o enigma da
fonte do valor. Chega à determinação da força de trabalho enquanto mercadoria, com valor de
uso e valor. O valor de uso da força de trabalho, que o distingue do resto das mercadorias, é a
própria capacidade de produzir valor (C I, 4)
18
. O processo de valorização é o processo de
formação de valor prolongado além do ponto em que se produz um equivalente ao valor da
força de trabalho pago pelo capital, ou seja é um processo de produção de valor que se
valoriza, produção de mais-valia (C I, 5, 236). Nesse percurso, Marx chega à categoria de
capital variável, contraposta à de capital constante, categorias às quais não tinha chegado a
economia política clássica, obturando a compreensão da fonte de criação de valor. Capital
variável é a parte do capital convertida em força de trabalho que cambia seu valor no processo
de produção (C I, 6, 252).
A taxa de mais-valia é determinada como a 'proporção entre a mais-valia e o capital
variável'. Em outros termos, também se expressa como a 'proporção entre o trabalho excedente
e o trabalho necessário' (C I, 7). Deduz-se que a procura desmedida do capital em valorizar-se
leve à necessidade de aumentar a diferença entre estas duas magnitudes. Uma primeira
alternativa é aumentar o trabalho excedente alongando a própria jornada de trabalho, o que
Marx chama de mais-valia absoluta. É uma alternativa que se defronta com barreiras físicas
e morais (C, I, 8, 279). Marx se pregunta, então, “cómo se puede aumentar la producción de
plusvalor, esto es, el plustrabajo, sin ninguna prolongación ulterior o independientemente de
toda prolongación ulteriorda jornada de trabalho (C I, 10, 379). A mais-valia relativa surge
como resposta a esse limite. O valor da força de trabalho mantem-se constante “bajo
determinadas condiciones de producción, en determinado estadio del desarrollo económico de
18 Marx considerava que o 'segredo da concepção crítica' residia no reconhecimento de que o caráter duplo da
mercadoria se desdobrava no caráter duplo do trabalho. Enquanto que “a simples análise do trabalho 'sem
qualificativos'”, dos economistas como Smith e Ricardo, “tropeça forçosamente por toda a parte em
problemas que não consegue explicar” (Marx apud Jappe, 2006: 65).
19
la sociedad”. A superação histórica desse limite abre uma nova possibilidade para o aumento
da mais-valia: que o valor da força de trabalho diminua. Havendo determinado o valor da
força de trabalho como o valor dos meios de sua sobrevivência, e o valor destes como o tempo
socialmente necessário para sua produção, Marx chega à conclusão de que para baixar o valor
da força de trabalho, é preciso reduzir o tempo socialmente necessário para a produção dos
meios de sobrevivência dos trabalhadores. Isso requer um aumento da força produtiva do
trabalho, entendido por Marx, em geral, como uma “modificación en el proceso de trabajo
gracias a la cual se reduzca el tiempo de trabajo socialmente requerido para la producción de
una mercancía, o sea que una cantidad menor de trabajo adquiera la capacidad de producir una
cantidad mayor de valor de uso” (C I, 10, 382).
Vejamos mais aprofundadamente a maneira como o desenvolvimento da força
produtiva do trabalho determina o aumento da mais-valia. O processo começa quando um
capitalista individual acrescenta a força produtiva do trabalho. Quando isso acontece, “el
valor individual de cada una de sus mercancías se halla por debajo de su valor social, esto es,
cuesta menos tiempo de trabajo que la gran masa del mismo artículo producida en las
condiciones sociales medias [...] El valor real de una mercancía, sin embargo, no es su valor
individual, si no su valor social, esto es, no se mide por el tiempo de trabajo que insume
efectivamente al productor en cada caso individual, sino por el tiempo de trabajo
socialmente requerido para su producción”. A força produtiva do trabalho na sua fábrica é
maior do que nas outras, as suas condições de produção estão acima das 'condições sociais
medias' e portanto o tempo de trabalho para a produção das mercadorias é menor ao 'tempo
socialmente necessário'. Isso possibilita essa diferença entre o valor individual e o valor social
das mercadorias e permite ao capitalista individual vender suas mercadorias “por encima de
su valor individual, pues, pero por debajo de su valor social”. Nessa etapa, o capitalista
individual obtém uma mais-valia extraordinária, pelo 'trabalho potenciado' gerado pela
inovação que ele introduziu. A segunda etapa do processo é a da generalização da inovação
antes isolada numa fábrica individual, fazendo desaparecer essa mais-valia extraordinária.
Ainda que o capitalista individual tente prolongar o maior tempo possível essa situação inicial
na qual só ele recolhe os frutos desse trabalho potenciado, a lei coativa da concorrência obriga
20
ao resto dos capitalistas a se adaptar ao novo patamar produtivo. Se não o fizerem, não
conseguirão vender seus produtos no mercado. “La misma ley de la determinación del valor
por el tiempo de trabajo [...] impele a sus rivales, actuando como ley coactiva de la
competencia, a introducir el nuevo modo de producción”. Numa terceira etapa decorrente
da anterior, a generalização desse desenvolvimento da força produtiva atinge os ramos
vinculados com a produção de meios de sobrevivência, diminuindo o valor dos mesmos e
portanto o valor da força de trabalho (C I, 10, 385-7)
19
.
Podemos perceber que vinculado ou não com os ramos de produção de meios de
sobrevivência, para cada capitalista existe el motivo de abaratar la mercancía por medio
de una fuerza productiva del trabajo acrecentada” (C I, 10, 386). E ainda, que a lei coativa
da concorrência impele os capitalistas a introduzir as inovações feitas pelos concorrentes.
Com a mais-valia relativa “no basta que el capital se apodere del proceso de trabajo en su
figura históricamente tradicional o establecida y se limite a prolongar su duración”, “el capital
tiene que revolucionar las condiciones técnicas y sociales del proceso de trabajo, y por tanto
el modo de producción mismo” (C I, 10, 379-382).
Tínhamos encontrado na infinitude do movimento do capital um primeiro significado
da desmedida do processo capitalista de acumulação, a medida da autovalorização. Esse
significado da desmedida transfere-se para o próprio desenvolvimento da força
produtiva, pois ele é guiado pela procura infinita de mais-valia, “sem referencia externa ao
capital”.
A procura constante de condições superiores de produção ou da adaptação às
“condições normais de produção”, ao padrão normal dos fatores objetivos por parte do
capitalista, é a medida nessa motivação desmedida em desenvolver a força produtiva do
19 Também nos “Manuscritos de 1861-1863”: a força produtiva torna o trabalho superior em relação ao
trabalho médio e permite se apropriar na venda da mercadoria dessa mais-valia produzida (Marx, 1980: 39).
Dado que o valor da mercadoria está determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para sua
produção nas condições sociais de produção, o capitalista que introduz uma máquina num ramo da produção
consegue produzir a mercadoria num tempo menor. Pode vender então sua mercadoria a um preço maior que
seu valor individual embora seja um preço inferior a seu valor social. Para este capitalista, nessas
circunstâncias, um número menor de operários produz de fato mais mais-valia que a produzida antes por um
número maior de operários. Mas uma vez que se generaliza o emprego da máquina no ramo de produção
apaga-se a diferencia entre valor social e valor individual. Então a massa da mais-valia diminui pela
diminuição do número de operários. Ela pode crescer então pela extensão da jornada de trabalho ou então
pelo aumento da intensidade do trabalho (idem: 149-51).
21
trabalho. “O capital, tendendo a enriquecer-se sem limites, tende por sua vez a uma
ampliação ilimitada das forças produtivas” (Marx, 1980: 145).
Já observamos que a magnitude do valor estava determinada pelo tempo de trabalho
socialmente necessário para a produção de valor de uso, nas condiciones normais de produção
vigentes. Ora, com o processo de transformação da base material, das condições técnicas dos
fatores objetivos, o tempo de trabalho socialmente necessário vira cada vez mais nesse
processo, além de norma imposta pela concorrência, uma condição técnica. Os fatores
objetivos vão se adaptando ao trabalho abstrato como substancia do valor e ao tempo
socialmente necessário como magnitude do valor.
Com a Grande Indústria coroa-se esse processo com a introdução da máquina. A
subsunção formal torna-se também real e os meios de produção viram forças hostis para o
trabalhador.
Na “Grande Indústria”, capítulo mais longo dos três livros d'O Capital (C I, 13), Marx
mostra o processo histórico de subsunção real, a maneira como o processo de valorização
comandou e imprimiu a sua lógica no processo de trabalho e no processo de reprodução social
como um todo.
Marx mostra como os próprios elementos simples do processo de trabalho sofrem uma
metamorfose: a máquina, de mediação do trabalho transforma o trabalho vivo do operário em
sua própria mediação. No processo de valorização,
“los medios de producción se transforman de inmediato en medios para la absorción de trabajo
ajeno. Ya no es el obrero quien emplea los medios de producción, sino los medios de producción
los que emplean al obrero. En lugar de ser consumidos por él como elementos materiales de su
actividad productiva, aquéllos lo consumen a él como fermento de su propio proceso vital, y el
proceso vital del capital consiste únicamente en su movimiento como valor que se valoriza a sí
mismo” (C I, 9, 376).
Assim, inverte-se a relação sujeito-meio. O sujeito vira meio, o meio vira sujeito e,
ao fazê-lo, de meio de trabalho vira meio de tortura, substituto, assassino, antítese direta,
potência hostil em relação ao sujeito (C I, 13, 515-30). Marx chama a atenção para o
trastrocamiento -peculiar y característico de la producción capitalista- de la relación que
22
media entre el trabajo muerto y el vivo, entre el valor y la fuerza creadora de valor” (C I, 9,
377).
O processo de cisão das potências intelectuais do processo material de produção
como propriedade alheia e poder que domina aos trabalhadores consuma-se na Grande
Industria “que separa o trabalho da ciência, enquanto potencia produtiva autônoma, e a
compele a servir ao capital (C I, 12, 440). Com esta constituição da máquina e da
tecnologia como poderes alheios, pela primeira vez “o operário combate contra o meio de
trabalho mesmo, contra o modo material de existência do capital. Sua revolta se dirige
contra essa forma determinada do meio de produção enquanto fundamento material do
modo de produção capitalista” (C I, 13, 521). É que “a figura autonomizada e alienada que o
modo de produção capitalista de produção confere em geral às condições de trabalho e ao
produto do trabalho, enfrentados ao operário, desenvolve-se com a maquinaria até se
transformar em antítese radical” (C I, 13, 526).
Com a maquinaria transformada em automata essa transmutação entre o trabalho
morto e o vivo “adquire uma realidade tecnicamente tangível” (C I, 13, 515)
20
. Esse trabalho
inanimado adquire vida. O uso por Marx de metáforas biológicas como corpo, membros,
órgãos, dança
21
, não é mera licença poética. Elas atribuem vida ao sistema de máquinas.
Mostram como o sujeito automático do capital, revolucionando as condições técnicas, forjou o
meio de trabalho à sua imagem e semelhança. Deu vida a um sistema automático que
secundariza a mão do homem. O sistema de máquinas, como autômato, é a materialização do
sujeito automático do capital.
Não é por acaso que nos seus “Manuscritos de 1861-1863”, Marx (1980: 159-60)
determine a submissão do trabalho do homem de carne e osso, apontada como essência da
produção capitalista, como um fato tecnológico. E o domínio do trabalho passado sobre o
20 O caráter de autômato também é tratado por Marx nos Manuscritos de 1861-1863 (1980: 139).
21 “La máquina individual es desplazada aquí por un monstruo mecánico cuyo cuerpo llena fábricas enteras y
cuya fuerza demoníaca, oculta al principio por el movimiento casi solemnemente acompasado de sus
miembros gigantescos, estalla ahora en la danza locamente febril y vertiginosa de sus innumerables órganos
de trabajo” (C I, 13, 464).
23
vivo não só enquanto domínio social, exprimido na relação entre capitalista e operário, senão
também enquanto verdade tecnológica.
Ou então que afirme no capítulo 6 inédito do livro I d'O Capital (1978: 55) que com a
produção de mais-valia relativa “surge (inclusive do ponto de vista tecnológico) um modo de
produção especificamente capitalista, sobre cuja base e com o qual se desenvolvem ao mesmo
tempo as relações de produção correspondentes ao processo de produção capitalista”. Em
outros termos, o modo capitalista de produção é “um modo de produção tecnologicamente
específico que metamorfoseia a natureza real do processo de trabalho e suas condições
reais” (idem: 66.).
Ora, as alusões ao caráter monstruoso, demoníaco, louco, febril, vertiginoso desse
corpo advertem sobre a criação de um poder que pode fugir do controle do criador
22
.
Considerando que o capitalista está interessado não no valor absoluto da mercadoria
mas na mais-valia inserida nela e que possa realizar na venda queda resuelto el enigma
consistente en que el capitalista, a quien sólo le interesa la producción del valor de cambio,
pugne constantemente por reducir el valor de cambio de las mercancías” ao compreender que
“un mismo e idéntico proceso”, o desenvolvimento da força produtiva do trabalho, “abarata
las mercancías y acrecienta el plusvalor contenido en ellas”
23
.
A tecnologia tende a substituir trabalho vivo pelo trabalho morto, socavando a própria
fonte de produção de valor
24
. Portanto, o emprego da maquinaria para a produção de mais-
valia, “implica una contradicción inmanente, puesto que de los dos factores del plusvalor
22 Marx e Engels (1997) já tinham anunciado na célebre passagem do Manifesto do Partido Comunista que “a
sociedade burguesa moderna que desencadeou meios tão poderosos de produção e de intercâmbio,
assemelha-se ao feiticeiro que já não consegue dominar as forças subterrâneas que invocara”.
23 “El valor de las mercancías está en razón inversa a la fuerza productiva del trabajo. Igualmente lo está,
porque se halla determinado por valores de las mercancías, el valor de la fuerza de trabajo. Por el contrario,
el plusvalor relativo está en razón directa a la fuerza productiva del trabajo”. “Por tanto, el impulso
inmanente y la tendencia constante del capital son los de aumentar la fuerza productiva del trabajo para
abaratar la mercancía y, mediante el abaratamiento de la mercancía, abaratar al obrero mismo” (C I, 10, 387-
8).
24 Nos Manuscritos de 1861-1863 coloca-o nos seguintes termos: o valor de uso da máquina é a sua
substituição de trabalho humano, mas a mais-valia que o capital produz graças ao emprego da maquinaria
“não se origina na capacidade de trabalho que a máquina substitui, mas nas capacidades de trabalho que a
máquina utiliza” (Marx, 1980: 49). Essa distinção é fundamental para não identificar imediatamente
aumento de produtividade com aumento de produção de valor.
24
suministrado por un capital de magnitud dada, un factor, la tasa del plusvalor, sólo aumenta en
la medida en que el otro factor, el número de obreros, se reduce”. A contradição manifesta-se
no momento em que uma inovação se generaliza e “o valor da mercadoria produzida a
máquina devém valor social regulador de todas as mercadorias da mesma classe (C I, 13,
496).
O desenvolvimento capitalista é a tentativa nunca absolutamente bem-sucedida de
resolver essa contradição. Muitas tendências verificadas no uso e no desuso de tecnologia,
no percurso e no ritmo do desenvolvimento tecnológico, são expressões dessa tentativa, das
determinações e contradições da força produtiva do capital.
Uma tendência analisada por Marx é o alongamento da jornada de trabalho. A
contradição “impele al capital, sin que el mismo sea consciente de ello, a una prolongación
violenta de la jornada laboral para compensar, mediante el aumento no sólo del plustrabajo
relativo sino del absoluto, la disminución del número proporcional de los obreros que explota”
(idem). Percebe-se assim que, na verdade, a mais-valia absoluta não é uma forma
historicamente superada de aumento da mais-valia, mas volta a aparecer pela própria
contradição imanente do uso da máquina para a procura de mais-valia relativa.
Ao mesmo tempo que alonga a jornada de trabalho dos trabalhadores empregados, gera
uma população excedente, desempregada, uma “população operária supérflua, que não pode
se opor a que o capital lhe dite a sua lei” (C I, 13, 497). Parte dessa população excedente vai
ter a função de “exército industrial de reserva”, num movimento de atração e repulsão que
segue os ciclos econômicos (C I, 13, 552 e 583)
25
. Cumpre o importante papel de pressionar
25 Nos Manuscritos de 1861-1863 afirma que “a tendência geral da produção capitalista em todos seus ramos
consiste na substituição do trabalho humano pelas máquinas”. A contradição entre capital e trabalho
assalariado determina-se aqui na desvalorização e na conversão em supérflua da força de trabalho viva pelo
capital. O trabalho necessário transforma-se em “população supérflua”, já que não serve para obter trabalho
excedente. Daqui Marx deriva duas tendências contrárias de atração e repulsão de operários na produção a
máquina: por um lado uma contínua demissão de operários; mas, pela outra, um contínuo recrutamento, pois
desde um certo grau de desenvolvimento das forças produtivas, a mais-valia só pode aumentar através do
número de operários ocupados simultaneamente. Mas antecipa que na agricultura a tendência a tornar
supérflua a população deve prevalecer não só temporariamente mas em termos absolutos. Vemos então que
essa tendência dupla de atração e repulsão não é absolutizada em termos a-históricos, como se fosse uma
condição perene do modo de produção capitalista (Marx, 1980: 153-8). Já estava presente na formulação
categorial de Marx a existência de uma 'massa marginal', isto é, parte da população que já não será
incorporada produtivamente. José Nun (Cfr. 2001) desenvolveu isso nos anos 70, entrando em polêmica com
25
para o rebaixamento do salário e para o alongamento da jornada de trabalho. A população
supérflua é um resultado do uso capitalista da maquina e ao mesmo tempo é base para o
aprofundamento do uso capitalista da maquina, retro-alimenta a possibilidade de alongar a
jornada de trabalho. Daí “o paradoxo econômico de que o meio mais poderoso para reduzir o
tempo de trabalho se converta no meio mais infalível de transformar todo o tempo vital do
operário e de sua família em tempo de trabalho disponível para a valorização do capital” (C I,
13, 497).
É importante observar que além de novas condições, a tecnologia enquanto capital gera
também novos motivos que chicoteiam sua fome raivosa de trabalho alheio” (C I, 13, 491). A
determinação da máquina enquanto capital fixo
26
faz com que ela sofra uma desvalorização
pelo curioso desgaste moral”: “Pierde valor de cambio en la medida en que se puede
reproducir máquinas del mismo modelo a menor precio o aparecen a su lado, máquinas
mejores que compiten con ella. En ambos casos su valor, por flamante y vigorosa que sea
todavía, ya no estará determinado por el tiempo de trabajo efectivamente objetivado en ella,
sino por el necesario para su propia reproducción o para la reproducción de las máquinas
perfeccionadas” (C I, 13, 493). O desgaste moral gera a tendência imanente da produção
capitalista de se apropriar de trabalho alheio as 24 hs do dia (C I, 8, 309), pois “cuanto más
breve sea el período en que se reproduce su valor total, tanto menor será el riesgo de desgaste
moral, y cuanto más prolongada sea la jornada laboral tanto más breve será dicho período(C
I, 13, 493). O “desgaste moral” corresponde à dimensão de valor da tecnologia, o que é uma
determinação dela enquanto capital. A tecnologia enquanto capital incorpora necessidades
próprias do processo de valorização que não tem nada a ver com as necessidades materiais da
própria máquina.
Outra importante tendência que Marx verifica, ao lado desse alongamento da jornada
de trabalho, é a intensificação da produção. Isso opera uma ‘mudança no caráter da mais-
Fernando Henrique Cardoso.
26 É importante perceber o que acontece com o valor do capital constante, isto é, o capital convertido em meios
de produção: “un medio de producción, se incorpora totalmente al proceso laboral, pero sólo en parte al
proceso de valorización” (C I, 6, 247). O capital fixo é determinado como uma parte do capital constante, e
em contraposição ao capital circulante. Sua determinação reside no modo peculiar com que este valor
circula: “En primer lugar, no circula en su forma de uso, sino que sólo circula su valor, y lo hace
paulatinamente, de manera fragmentaria, a medida que pasa de esa parte del capital al producto que circula
como mercancía. A lo largo de todo el tiempo en que estos medios están en funcionamiento, una parte de su
valor queda siempre fijada en ellos, autónoma frente a las mercancías que ayudan a producir” (C II, 8, 191-
2).
26
valia relativa. A intensificação “impone a la vez un mayor gasto de trabajo en el mismo
tiempo, una tensión acrecentada de la fuerza de trabajo [...] una condensación del trabajo en
un grado que es sólo alcanzable dentro de la jornada laboral reducida”. Conta como “una
mayor cantidad de trabajo. Junto a la medida del tiempo de trabajo como 'magnitud de
extensión', aparece ahora la medida del grado alcanzado por su condensación” (C I, 13, 499-
500)
27
.
Essa tendência à intensificação da produção e ao alongamento da jornada de trabalho,
junto com uma maior produtividade do trabalho gera uma produção cada vez maior de
produtos. Não se fazem a mesma quantidade de produtos com menos trabalho, mas uma
maior quantidade de produtos. Por isso o capital defronta-se com o problema da realização
do valor. A realização do valor ocorre na venda efetiva dos produtos no mercado, o que
possibilita o inicio de um novo ciclo de produção.
O que aqui nos interessa é que com essa produção que amplia a sua escala, gera-se a
necessidade de novos mercados e, por conseguinte, de novos meios de comunicação e
transporte. Os meios de comunicação e transporte, enquanto condições gerais do processo
social de produção, também sofrem a pressão capitalista da intensidade (C II, 14, 304-5). Esta
manifesta-se na necessidade de encurtar o tempo de circulação do capital, isto é, do ciclo
em que volta à produção, o ciclo de produção-circulação-consumo.
O primeiro sentido da desmedida, que aludia ao processo infinito de acumulação de
capital sem outra referência que a autovalorização, exprime-se na determinação das forças
produtivas como necessidade autonomizada de crescimento exponencial, visando a
produção de mais-valia relativa através do aumento da produtividade, e adquire um caráter
“economicamente absurdo e ecologicamente desastroso”. Dado que cada produto isolado
contém sempre menos valor, é preciso inundar o mundo com uma maré irresistível de
produtos” que encontra os limites do consumo e limites naturais (Kurz, 1995). Inverte-se a
formulação segundo a qual a necessidade é a mãe das invenções. Ao ser impelido a se adequar
27 As questões aqui assinaladas: das novas condiçõ es (docilidade, despotismo) e novos motivos (necessidade
de transferir o valor global da máquina às mercadorias no processo de valorização) para o prolongamento da
jornada de trabalho; do aumento da intensidade do trabalho; da aceleração do processo de reprodução como
necessidade capitalista, também são trabalhados por Marx (1980: 52-7) nos seus “Manuscritos de 1861-
1863”.
27
ao padrão tecnológico dominante, em permanente transformação, a invenção se torna mãe da
necessidade (Marcuse, 1999: 80-1). A necessidade de crescer permanentemente é uma
necessidade especificamente capitalista.
Aqui, o desenvolvimento da força produtiva é um impulso que não tem mais referência
do que o próprio processo de autovalorização. As necessidades da tecnologia enquanto capital
são expressão material das necessidades do capital, resultado da subsunção da tecnologia pelo
processo de valorização. Isso leva, por um lado, a uma “sobreprodução tecnológica” em
relação às necessidades humanas. E por outro, pelas mesmas determinações e motivações da
força produtiva, limita o uso da tecnologia
28
.
Ora, um segundo sentido da desmedida aparece com a perda de referência do
processo de valorização para o próprio capital. A referência a si que permite a ele sua
automensuração se inverte em perda de referência do processo de valorização no próprio
capital”. É um “limite que não é necessariamente transformado em barreira, que não é posto
como mero obstáculo a superar”. Portanto, é “o inverso da desmedida na primeira acepção, de
progresso infinito e desenfreado da acumulação”. A perda de referência em si mesma da
autovalorização leva à sobreprodução, isto é, à produção em excesso, já não em relação às
necessidades de consumo mas em relação às necessidades do próprio capital” (Grespan,
1999: 144-5). A crise de sobreprodução, como manifestação da desmedida no segundo
sentido, gera um impulso ainda maior para a inovação tecnológica. A crise gera uma
desvalorização do capital fixo que motiva a sua renovação, não determinada por condições
técnicas ou materiais, mas por seu caráter de capital. A crise aprofunda a necessidade da
inovação: “son principalmente las catástrofes, las crisis, las que obligan a tal renovación
prematura de la maquinaria industrial em uma escala social mayor” (C II, 8, 206). Há aqui
28 “Considerada exclusivamente como medio para el abaratamiento del producto, el límite para el uso de la
maquinaria está dado por el hecho de que su propia producción cueste menos trabajo que el trabajo
sustituido por su empleo. Para el capital, no obstante, ese límite es más estrecho. Como aquél no paga el
trabajo empleado, sino el valor de la fuerza de trabajo empleada, para él, el uso de la máquina está limitado
por la diferencia que existe entre el valor de la misma y el valor de la fuerza de trabajo que remplaza”. “En
países desarrollados desde antiguo, el empleo de la máquina en determinados ramos de la industria genera
en otros tal superabundancia de trabajo (redundancy of labour, dice Ricardo), que en éstos la caída del
salario por debajo del valor de la fuerza de trabajo impide el uso de la maquinaria y lo hace superfluo, a
menudo imposible, desde el punto de vista del capital, cuya ganancia, por lo demás, proviene de la
reducción no del trabajo empleado, sino del trabajo pago”. “De ahí que en ninguna otra parte como en
Inglaterra, el país de las máquinas, se vea un derroche tan desvergonzado de fuerza humana para
ocupaciones miserables” (C I, 13, 478-80).
28
outra efetivação do caráter destrutivo do capital, pois o desenvolvimento da força produtiva do
capital perde a sua própria referência. Há uma “sobreprodução tecnológica” em relação às
necessidades do próprio capital. A desvalorização dali resultante é contrária à procura
constante do capital em se auto-valorizar, e implica uma tendência permanente, ainda que
contraditória, à auto-negação do capital.
Daí a distinção entre benefícios da introdução da máquina para a produção capitalista
em conjunto e para o capitalista individual. A introdução da máquina para reprimir qualquer
pretensão de autonomia por parte do trabalho, contra as greves, contra as revindicações de
aumento de salário, é apenas um caso específico no qual a máquina “entra em cena
intencionalmente como forma do capital hostil ao trabalho”. Mas em geral, num processo
tautológico e auto-destrutivo, o capital diminui “prescindindo da sua vontade” a massa de
mais-valia que pode produzir um determinado capital (Marx, 1980: 50, 64 e 156).
Em algumas passagens de Marx encontramos uma identificação entre o processo de
auto-negação e o processo de superação do capital. Tratar-se-ia de um movimento
ascendente no qual o aprofundamento das contradições da ordem do capital gestaria
naturalmente uma forma superior de sociedade. O capital é, para Marx, quem liberta as forças
sociais adormecidas, quem acelera e revoluciona o desenvolvimento das forças produtivas. Por
um lado, desde um ponto de vista quantitativo, a contribuição do capitalismo seria a
intensidade e eficácia desse desenvolvimento, não alcançadas antes por nenhuma outra forma
de organização social
29
.
Mas a missão histórica do modo de produção capitalista não residia para Marx num
desenvolvimento quantitativamente ilimitado das forças produtivas, mas em determinados
resultados qualitativos desse desenvolvimento. Um deles é criar o gérmen de uma forma
social que permita a redução do tempo de trabalho geral
30
. Neste ponto, “a posse e a
preservação da riqueza geral requerem um tempo de trabalho menor da sociedade como um
29 “El capital excede en energía, desenfreno y eficacia a todos los sistemas de producción precedentes basados
en el trabajo directamente compulsivo” (C I, 9, 376).
30 “crea los medios materiales y el germen de las relaciones que en una forma superior de la sociedad
permitirán ligar ese plustrabajo con una mayor reducción del tiempo dedicado al trabajo material en general”
(C III, 8, 1043-4).
29
todo e a sociedade trabalhadora se relaciona de maneira científica com o processo de sua
progressiva reprodução”. Isso acontece “onde tenha cessado o trabalho em que um ser
humano faz o que uma coisa poderia fazer” (Gr. I, 266). Com o conceito de general intellect,
Marx analisa nos Grundrisse, como tendência em curso, a “abolição do tempo de trabalho
como medida da riqueza” e prevê a possibilidade de que os produtores se libertem do trabalho
vivo, substituído pelo trabalho morto
31
. O general intellect indica uma combinação entre
técnica avançada e cooperação, pela qual as forças produtivas se tornariam órgãos imediatos
da prática social” (Menegat, 2003: 191-3).
A diminuição do tempo de trabalho está vinculada com outro resultado qualitativo do
capital, o de um aumento progressivo tanto quantitativa quanto qualitativamente do sistema
de necessidades
32
. O vínculo reside em que uma forma superior de sociedade implica um
desenvolvimento do reino da liberdade, que “sólo comienza allí donde cesa el trabajo
determinado por la necesidad y la adecuación a finalidades exteriores; con arreglo a la
naturaleza de las cosas, por consiguiente, está más allá de la esfera de la producción material
propiamente dicha”. Para além do reino da necessidade “empieza el desarrollo de las fuerzas
humanas, considerado como un fin en sí mismo, el verdadero reino de la libertad, que sin
embargo sólo puede florecer sobre aquel reino de la necesidad como su base” (C III, 8, 1043-
4).
O reino da liberdade traz a possibilidade do desenvolvimento de um individuo social,
pleno e universal: “el cultivo de todas las propiedades del hombre social y la producción del
mismo como un individuo cuyas necesidades se hayan desarrollado lo más posible, por tener
numerosas cualidades y relaciones; su producción como producto social lo más pleno y
universal que sea posible” (Gr. I, 360-2).
Mas, esses resultados qualitativos se opõem à lógica do capital e fazem prever uma
31 “El robo de tiempo de trabajo ajeno, sobre el cual se funda la riqueza actual, aparece como una base
miserable comparado con este fundamento, recién desarrollado, creado por la gran industria misma. Tan
pronto como el trabajo en su forma inmediata ha cesado de ser la gran fuente de la riqueza, el tiempo de
trabajo deja, y tiene que dejar, de ser su medida y por tanto el valor de cambio del valor de uso” (Marx, Gr.
II 228).
32 O capitales constantemente revolucionario, derriba todas las barreras que obstaculizan el desarrollo de las
fuerzas productivas, la ampliación de las necesidades, la diversidad de la producción y la explotación e
intercambio de las fuerzas naturales y espirituales” (Gr. I, 360-2).
30
tendência da abolição do capital por meio de si mesmo
33
.
Apesar de reconhecer que a forma capitalista de produção está em contradição com os
fermentos revolucionários, em momentos específicos Marx deposita a esperança no
desenvolvimento das contradições dessa forma histórica, pois esse é o único caminho que
levaria a sua dissolução e transformação
34
. Assim, por exemplo, o aprofundamento dos
processos de concentração e centralização, tendências fundamentais do modo de produção
capitalista, facilitariam a sua superação
35
. Assim, a grande indústria “aunque en su forma
espontáneamente brutal, capitalista -en la que el obrero existe para el proceso de producción,
y no el proceso de producción para el obrero- constituye una fuente pestífera de
descomposición y esclavitud, bajo las condiciones adecuadas ha de trastocarse, a la inversa,
en fuente de desarrollo humano” (C I, 13, 596).
A questão fundamental é quais seriam essas “condições adequadas” que provocariam
essa metamorfose de uma fonte de escravidão em fonte de desenvolvimento humano? Na
seguinte formulação podemos ver dois elementos vinculados entre si:
“Una fase de este proceso de trastocamiento, desarrollada de manera natural sobre la base de la
gran industria, la constituyen las escuelas politécnicas y agronómicas [...] la inevitable conquista
del poder político por la clase obrera también conquistará el debido lugar para la enseñanza
tecnológica -teórica y práctica- en las escuelas obreras” (C I, 13, 594).
Em primeiro lugar, reconhece-se a importância de um saber tecnológico apropriado
pela classe operária. Sem ele, não poderia haver apropriação reflexiva e revolucionária do
33 “La universalidad a la que tiende sin cesar, encuentra trabas en su propia naturaleza, las que en cierta etapa
del desarrollo del capital harán que se le reconozca a él como la barrera mayor para esa tendencia y, por
consiguiente, propenderán a la abolición del capital por medio de sí mismo. (Gr. I, 362). “Pero la
producción capitalista genera, con la necesidad de un proceso natural, su propia negación. Es la negación de
la negación. Ésta no restaura la propiedad privada, sino la propiedad individual, pero sobre la base de la
conquista alcanzada por la era capitalista: la cooperación y la propiedad común de la tierra y de los medios
de producción producidos por el trabajo mismo” (C I, 23, 954).
34 “La forma capitalista de la producción y las correspondientes condiciones económicas a las que están
sometidos los obreros, se hallan en contradicción diametral con tales fermentos revolucionarios y con la
meta de los mismos, la abolición de la vieja división del trabajo. El desarrollo de las contradicciones de una
forma histórica de producción, no obstante, es el único camino histórico que lleva a la disolución y
transformación de la misma” (C I, 13, 594). Al hacer que maduren las condiciones materiales y la
combinación social del proceso de producción, hace madurar las contradicciones y antagonismos de la
forma capitalista de ese proceso, y por ende, al mismo tiempo los elementos creadores de una nueva
sociedad y los factores que trastuecan la sociedad vieja” (C I, 13, 608-9).
35 “La transformación de la propiedad privada fragmentaria, fundada sobre el trabajo personal de los
individuos, en propiedad privada capitalista es, naturalmente, un proceso incomparablemente más
prolongado, más duro y dificultoso, que la transformación de la propiedad capitalista, de hecho fundada ya
sobre el manejo social de la producción, en propiedad social. En aquel caso se trataba de la expropiación de
la masa del pueblo por unos pocos usurpadores; aquí se trata de la expropiación de unos pocos usurpadores
por la masa del pueblo” (C I, 24, 954).
31
aparato tecnológico forjado pelo capital. E, por outro lado é a inevitável conquista do poder
político pela classe operária que vai garantir esse saber. O passo em falso é que se deduz do
próprio desenvolvimento e da acentuação das contradições do capital a inevitabilidade da
constituição de um sujeito com força crescente que viria a superá-lo
36
.
Mas Marx compreende que a reprodução capitalista é necessariamente a reprodução
das relações capitalistas (C I, 23, 761). Isso significa problematizar a aposta no
desenvolvimento da contradição dessa forma social. Os resultados qualitativos do capital são
postos em questão.
Contrário ao poder crescente da classe operária que garantiria a apropriação do aparato
tecnológico, a reprodução das relações capitalistas implica que “o capital precisa pôr e repor o
trabalho como um termo oposto que se defronta aos meios de produção enquanto condição
objetiva alheia” (Grespan, 1999: 121) e, no processo, observa-se um enfraquecimento
crescente dos trabalhadores por “novas condições para a dominação que o capital exerce sobre
o trabalho” (C I, 12, 444). O operário é dependente do capital enquanto a sua força de trabalho
só se efetiva, só adquire sentido, sob o comando dele, pois essa força é por ele constituída.
Preso do capital e em situação cada vez pior, pela pressão do exército industrial de reserva
37
.
Contrário ao enriquecimento do sistema de necessidades que levaria à possibilidade de
um indivíduo social, Marx mostra que a produção cria não só a necessidade do consumo mas
também o próprio consumidor
38
e, estando o processo de produção e reprodução da vida
social orientado pela procura ilimitada de valor e não da satisfação das necessidades humanas,
se prevê logicamente a criação de “necessidades não-necessárias”
39
. Por outro lado, Marx
36 É a célebre imagem do Manifesto Comunista que é citada pelo próprio Marx n'O Capital: “La burguesía,
por consiguiente, produce ante todo a sus propios enterradores. Su ruina y la victoria del proletariado son
igualmente inevitables” (C I, 23, 954).
37 A medida que se acumula el capital, tiene que empeorar la situación del obrero, sea cual fuere su
remuneración. La ley, finalmente, que mantiene un equilibrio constante entre la sobrepoblación relativa o
ejército industrial de reserva y el volumen e intensidad de la acumulación, encadena el obrero al capital con
grillos más firmes que las cuñas con que Hefesto aseguró a Prometeo en la roca. Esta ley produce una
acumulación de miseria proporcionada a la acumulación de capital. La acumulación de riqueza en un polo
es al propio tiempo, pues, acumulación de miseria, tormentos de trabajo, esclavitud, ignorancia,
embrutecimiento y degradación moral en el polo opuesto, esto es, donde se halla la clase que produce su
propio producto como capital” (C I, 23, 805).
38 “No es únicamente el objeto del consumo, sino también el modo de consumo, lo que la producción produce
no sólo objetiva sino también subjetivamente. La producción crea, pues, el consumidor. La producción no
solamente provee un material a la necesidad sino también una necesidad al material […] no solamente
provee un objeto para el sujeto, sino también un sujeto para el objeto” (Gr I, 13).
39 Essa formulação reflete uma contradição real, pois são necessidades e não o são. Não são necessidades mas
32
registra em diversas passagens a adulteração das mercadorias
40
e avalia essa prática como uma
tendência do próprio “progresso da produção capitalista”. Apoia-se num relatório de uma
comissão parlamentar da Inglaterra para afirmar que a falsificação de substancias
medicamentosas constituía nesse país não a exceção mas a regra. Numa amostra de opio
vendido nas drogarias londinenses, o resultado foi que muitas “não continham nem um átomo
de morfina” (C I, 22, 743). Se a satisfação das necessidades está condicionada pelas
propriedades do corpo do valor de uso
41
, em que medida continua sendo um valor de uso uma
mercadoria que não tem nem um átomo da matéria que deveria satisfazer uma necessidade
específica? Uma mercadoria que não satisfaz necessidade nenhuma leva ao extremo a
submissão do valor de uso pelo valor, apagando o primeiro. O desenvolvimento capitalista, ao
invés do enriquecimento do sistema de necessidades, efetiva tendencialmente a criação de
necessidades não-necessárias e de produtos que não satisfazem nenhuma necessidade.
acabam funcionando como tais. Considerá-las só enquanto necessidades deixaria de atentar para a sua
motivação, sua origem instrumental. Considerá-las só enquanto não-necessidades deixaria de perceber a sua
constituição social enquanto necessidades. Isso parece denunciar Eduardo Galeano: “Los funcionarios no
funcionan / Los políticos hablan pero no dicen / Los votantes votan pero no eligen / Los medios de
Información desinforman / Los centros de enseñanza enseñan a ignorar / Los jueces condenan a las víctimas
/ Los militares están en guerra contra sus compatriotas / Los policías no combaten los crímenes, porque
están ocupados en cometerlos / Las bancarrotas se socializan, las ganancias se privatizan. Es más libre el
dinero que la gente / La gente está al servicio de las cosas” (Galeano, 2004: 117).
40 Cfr. adulteração do pão (C, I, 8, 298 e ss.) do carvão (299, nota 75) e dos alimentos (299, nota 76). Afirma
que “con el progreso de la producción capitalista, la adulteración de mercancías ha vuelto superfluos los
ideales de Thompson”, quem tinha um “libro de cocina con recetas de todo tipo, para reemplazar por
sucedáneos las comidas normales – mas caras – de los obreros” (C I, 22, 743).
41 “La mercancía es, en primer lugar, un objeto exterior, una cosa que merced a sus propiedades satisface
necesidades humanas del tipo que fueran. La naturaleza de esas necesidades, el que se originen, por
ejemplo, en el estómago o en la fantasía, en nada modifica el problema [...] La utilidad de una cosa hace de
ella un valor de uso. Pero esa utilidad no flota por los aires. Está condicionada por las propiedades del
cuerpo de la mercancía, y no existe al margen de ellas” (C I, 1, 43-44).
33
2. Periodização do capitalismo e crise estrutural
A análise categorial do capital leva a compreender que a história do capitalismo não é
uma simples sucessão de estruturas mas um processo histórico de generalização dos próprios
critérios, que deve prosseguir em níveis cada vez mais elevados, sem jamais poder voltar
atrás. Nessa dinâmica autodestrutiva, a sua vitória absoluta deve coincidir historicamente com
o seu limite absoluto (Kurz, 1995).
Levando em conta essa compreensão, é possível construir uma periodização do
capitalismo na qual cada período implica em mudanças qualitativas
42
.
Beinstein concebe um primeiro período de capitalismo jovem no qual as crises de
sobreprodução foram em última instância crises de crescimento e depois de cada grande
turbulência o sistema se expandia, melhorava qualitativa e quantitativamente. Já naquele
período as crises, embora superadas, deixavam sequelas negativas que foram gerando o poder
parasitário financeiro. Concebe um segundo período de capitalismo maduro, no qual a
intervenção estatal, junto aos parasitismo militar e financeiro, conseguiram controlar as
sucessivas crises de sobreprodução das que emergiram sintomas de decadência.
Esse período de capitalismo maduro corresponde ao momento de expansão fordista.
A expansão deveu-se à combinação de novas indústrias e de novas necessidades de massas.
Houve um salto no desenvolvimento social que fez entrar no grande consumo de massas
produtos antes restritos e criou novos produtos massivos desde a origem (como a rádio e a
televisão) (Kurz, 1995).
Corresponde a esse período um papel específico da inovação tecnológica. O
42 Beinstein (2008, 2009a) propõe a periodização entre capitalismo jovem, maduro e senil. O fato de uma
analogia com o mundo biológico servir tão bem de auxílio na compreensão do mundo social é uma
evidência de como este último se tornou uma “segunda natureza”. Aqui reforçamos esta periodização com a
compreensão de Robert Kurz do processo histórico do capitalismo em direção a seu limite absoluto. É
possível estabelecer um diálogo entre esses autores. No entanto, em Kurz a essência da crise é melhor
determinada.
34
economista austríaco Joseph Schumpeter desenvolveu um conceito de 'ondas longas' baseado
na 'atividade inovadora dos empresários'. Ele enfatizava a dinâmica inovadora onde interagiam
diversos progressos técnicos revolucionários produzindo um salto qualitativo.
Na leitura de Mandel, as notáveis personalidades dos empresários de Schumpeter,
predispostos aos aperfeiçoamentos que fazem época, desempenham um papel de deus ex
machina arbitrário. O problema de saber por que motivo as inovações são introduzidas em
escala maciça em determinados períodos não pode ser satisfatoriamente resolvido sem um
tratamento mais minucioso de dois fatores inadequadamente explorados por Schumpeter: o
papel da tecnologia produtiva e as flutuações a longo prazo na taxa de lucros. “Apenas quando
condições específicas permitem uma elevação abrupta na taxa média de lucros e uma
expansão considerável do mercado é que a atividade investidora conseguirá se apoderar dos
descobrimentos técnicos capazes de revolucionar a totalidade da indústria, e dessa forma
ocasionar uma tendência expansionista a longo prazo na acumulação de capital” (Mandel,
1985: 95-101). É que a 'destruição criadora' das inovações, conceito cunhado por
Schumpeter, referia-se à experiência do capitalismo ascendente, quando a aceleração da
demanda incitava o incremento e diversificação da produção e as novas técnicas permitiam ao
mesmo tempo elevar a produtividade e aumentar o emprego, o que por sua vez ampliava a
demanda. Tratar-se-ia de um círculo virtuoso entre inovação e crescimento, no qual a inovação
tecnológica aparece como motor da prosperidade (Beinstein, 1999: 290-2).
Faz parte também desse processo um papel específico das bolhas (monetárias,
imobiliárias, comerciais, etc.) quando estas interatuam 'positivamente' com o resto das
atividades econômicas: “o aumento do preço das ações ou moradias alentavam o consumo e a
produção, e por sua vez estes geravam fundos que em boa medida se dirigiam a negócios
especulativos, produzindo-se assim uma sorte de círculo virtuoso especulativo-consumista-
produtivo de caráter global em última instância perverso, destinado ao desastre a mediano
prazo mas que causava prosperidade no curto prazo” (Beinstein, 2009c).
Foram determinantes da prosperidade do pós-guerra nos países centrais: o incremento
no consumo e investimento pelo aumento do emprego e dos salários reais e pelas taxas de
juros muito baixas; apesar do aumento salarial, lucros altos pelos créditos baratos e matérias
35
primas da periferia com preço baixo; os Estados Unidos como grande comprador e fornecedor
da moeda universal (Beinstein, 1999: 120).
Mas o mecanismo de compensação no qual a produção de mercadorias “suga seu
próprio futuro” funciona enquanto o modo de produção continua a expandir-se. Essa expansão
só funcionou enquanto os investimentos para o desenvolvimento de novos produtos e para a
ampliação superaram em medida suficiente os investimentos destinados ao desenvolvimento
de novos procedimentos e à racionalização. A identificação entre produtividade e acumulação
só é válida quando o aumento da produtividade é menor que a ampliação dos mercados
internos e externos por ele possibilitado. A expansão fordista encobriu por mais de meio
século a crise estrutural nascida da expansão contemporânea do trabalho improdutivo. O
crescimento absoluto da substância real de valor, pela expansão do trabalho produtivo,
compensava o aumento absoluto e relativo dos setores improdutivos. Decisiva para a
reprodução sob a forma-mercadoria é, porém, a expansão da substância real de valor e das
suas formas sociais de mediação, ocultas atrás da “fenomenologia do fordismo”. O fordismo
acelerou a tendência do aumento da 'composição orgânica do capital', que no cálculo
capitalista aparece como aumento da intensidade do capital, isto é, como aumento dos capitais
necessários para cada emprego. A contradição lógica da produção de mais-valia relativa, pela
qual se aumenta a parcela de mais-valia por cada força de trabalho, mas pode-se empregar
cada vez menos força de trabalho para cada soma de capital, só pode ser compensada com
uma extensão permanente do modo de produção como tal que permita um aumento da massa
de trabalho produtiva utilizada, da massa de mais-valia e de lucro. Isso foi conseguido em
certa medida na expansão fordista, mas com a expansão concomitante das condições infra-
estruturais improdutivas e com a hipoteca de massas futuras de valor. A expansão fordista
nada mais podia ser desde o início do que um processo histórico circunscrito, um estágio
irrepetível de transição na história interna do capitalismo (Kurz, 1995).
Beinstein (2009b) concebe um terceiro período de capitalismo senil, iniciado nos anos
70, no qual se desenvolveu uma crise crônica de sobreprodução que acelerou a
financeirização do capitalismo até torná-la hegemônica. Essa crise, associada à super-
36
exploração dos recursos naturais, aponta em direção a uma crise geral de subprodução,
iniciada com as crises energética e alimentar. O sistema tecnológico do capitalismo, que
proclamava ter acabado com as crises de subprodução das civilizações anteriores, acaba
gerando a maior crise de subprodução planetária da história humana. A decadência dos EUA,
um dos indicadores da senilidade, constitui o motor da decadência universal do capitalismo. É
o declínio do “espaço essencial da interpenetração produtiva, comercial e financeira a escala
planetária”.
Em contraposição à separação setorial das visões ideológicas da crise, isto é, tratar de
maneira separada os ciclos de crise energética, financeira, produtiva, alimentar, Beinstein
(2009c) postula a necessidade de uma análise que integre essas crises numa visão geral, num
único ciclo, o da civilização burguesa. A crise crônica de sobreprodução das últimas quatro
décadas foi o período de gestação da crise atual. Nesse processo foi-se acumulando
parasitismo e depredação do eco-sistema. A postergação do desastre, a fuga para frente
impulsionado pelos motores parasitários, foram a expansão financeira-militar (centrada nos
EUA), a integração periférica de mão de obra industrial barata (China, etc.), a depredação
acelerada de recursos naturais (especialmente os energéticos não renováveis) e a pilhagem
financeira de um amplo leque de países subdesenvolvidos. Com crise alimentar, Beinstein
(2008) se refere à perspectiva de uma “subprodução relativa de alimentos em escala global
(paralela à subprodução energética) causada pela dinâmica geral (o chamado progresso) do
capitalismo, seu desenvolvimento tecnológico”.
Há cinco grandes processos apontados por Beinstein (1999: 47-85) na “globalização
real” que se efetiva nesse processo de crise.
O aprofundamento da cisão entre centro e periferia, que implica no agravamento da
brecha do potencial tecnológico. As inovações agravam desigualdades regionais, pois a sua
difusão, posterior ao desmonte e desnacionalização produtiva na periferia, expande o círculo
vicioso do subdesenvolvimento.
A concentração empresarial global, pelos custos cada vez mais altos da inovação em
mercados com concorrência feroz. Fusões e impacto concentrador das recessões.
O agravamento da desigualdade e da exclusão tanto na periferia quanto no centro. O
37
desemprego se torna estrutural e “ocupa o centro de um conjunto de processos que
promovem a concentração de renda e a pobreza”. A concentração de renda desacelera a
demanda e faz as empresas acelerarem a mutação tecnológica para reduzir custos, poupando
força de trabalho, o que gera mais desemprego ainda. Nessa guerra por reduzir custos entram
as deslocalizações gerando desemprego nas regiões abandonadas.
A Crise do Estado moderno. Desmonte de sistemas de proteção social e de culturas
produtivas. Aumento de 'Estados independentes' não enquanto descolonização mas enquanto
desagregação.
A irrupção de fenômenos de entropia: caos urbano, extensão das chamadas 'zonas
cinzas', da corrupção, da criminalidade e das redes mafiosas, catástrofes sanitárias, fome,
exacerbação de enfrentamentos étnicos. O marco analítico dos fenômenos para Beinstein é o
parasitismo. Por exemplo, é impossível entender a expansão mafiosa sem vinculá-la à
financeirização do mundo empresarial, marcada pela obtenção de super-lucros especulativos
que compensam as baixas rentabilidades ou perdas nas atividades produtivas. Não se trata de
um desvio, mas da própria lógica de um sistema que foi compensando suas dificuldades no
mundo da produção com lucros financeiros e depois ilegais (1999: 104-5, 111).
Beinstein (1999: 113 e ss.) articula ainda seis processos para esboçar uma dinâmica
geral da crise: desaceleração do crescimento global; crescimento da dívida pública dos países
ricos; hipertrofia financeira; financeirização das grandes empresas; transformação da periferia
em região de super-lucros rápidos; expansão de negócios ilegais. O consumo teve dificuldades
de seguir o ritmo das empresas. Para compensá-lo, aumentou o endividamento privado mas
esse processo encontrou seu teto. Foi aumentando então a capacidade produtiva ociosa
enquanto diminuíam os lucros. Desde 1973, deu-se um círculo vicioso onde a desaceleração
do crescimento correu paralelo à perda de dinamismo da demanda. A desaceleração
econômica causou dificuldades fiscais nos países centrais. Intervenção pública para apoiar a
atividade industrial de grupos seletos, 'compensar' o declínio da demanda. Rigor monetário,
liberalização financeira e demanda estatal de fundos fizeram subir as taxas de juros.
Excedentes financeiros ficavam disponíveis para cobrir os déficit estatais. “O declínio do
crescimento gerou ao mesmo tempo a demanda e a oferta de títulos públicos”. Completou-se o
círculo vicioso: o encarecimento do crédito freava o crescimento, o que provocava déficits
38
fiscais e endividamento público que finalmente fazia subir as taxas de juros.
A desaceleração da demanda tem então um papel importante na explicação de
Beinstein da dinâmica de crise. Ele considera a discrepância ascendente entre oferta e
demanda global como mãe de todos os parasitismos (Beinstein, 1999: 43, 110). Ainda que a
explicação de Beinstein possa não apontar a isso, é importante a ressalva de Mandel (1985:
192-200, e também 1998) de não unilateralizar esse aspecto da crise. A teoria do puro
subconsumo das massas é uma das variantes da interpretação monocausal da teoria das crises
de Marx, e tem consequências reformistas, isto é, o aumento dos salários e distribuição da
renda nacional como saída da crises. “As crises de sobreprodução são simultaneamente crises
de sobre-acumulação de capital e crises de sobreprodução de mercadorias”. A consequência
importante disso é que “a crise só pode ser superada se há simultaneamente um aumento da
taxa de lucro e uma expansão do mercado”, invalidando as propostas unilaterais.
Afirmar que a sobreprodução ocorre quando a mais-valia produzida não se 'realiza'
suficientemente, por falta de poder de compra, leva à argumentação de que o poder de compra
teria de ser reforçado para impulsionar a economia. No entanto, “a falta de poder de compra
significa, na realidade, que foi produzida muito pouca mais-valia”. Essa é, para Kurz
(2009b), a essência da crise.
Essa crise vai se manifestando de diferentes maneiras em diferentes lugares do sistema
mundial. Há um processo internacional estendido que começa com a crise monetária de 1971
e o primeiro choque petroleiro de 1973, segue com a estagflação, a crise da dívida na periferia
a começos dos anos 80, a crise financeira de 1987, a crise mexicana de fins de 1994, e segue...
(Beinstein, 1999: 25-6) Nesse processo, globalização e crise estão imbricadas. A crise dos
países centrais iniciada nos anos 70 pode ser adiada por um complexo mecanismo de
desenvolvimento mundial de negócios fortemente marcado pelo parasitismo financeiro. A
ruptura de 1997 conclui essa evolução com a crise global. A sobreprodução crônica estava na
base da crise, que podia ser adiada mas não contornada (idem: 158-162). Assim, há uma
verdadeira ''trajetória geográfica da crise”: vai dos anos 70 nos países centrais às evasões de
fundos da periferia para o centro nos 80s e 90s, e em 1997, com o esfriamento periférico, a
39
crise se reinstala no seu lugar de origem. Agora há uma simultaneidade das crises que não é
casual nem se dá por “contágio” (idem: 235-8)
43
. As dívidas periféricas e centrais têm tido
ciclos assimétricos, cumprindo uma função compensatória para os fluxos de fundos em busca
de regiões rentáveis. Desde 1997, com os Estados centrais sobre-endividados e com políticas
orçamentárias restritivas e mercados de valores inflados, a situação é nova, de saturação
financeira (idem: 128-135).
Por trás dessa trajetória geográfica, é fundamental compreender que “a causa da crise
é a mesma para todas as partes do sistema mundial produtor de mercadorias: a diminuição
histórica da substância de 'trabalho abstrato', em consequência da alta produtividade
('força produtiva ciência') alcançada pela mediação da concorrência” (Kurz, 1992: 220).
A determinação da crise leva Kurz (Cfr. 1995) a analisar o processo de
dessubstancialização do dinheiro. Quando o malogro do processo substancial de valorização é
maquiado, se pagam créditos com novos créditos e gera-se uma quantidade crescente de
dinheiro creditício “sem substância”, tratado “como se” passasse por um processo real de
valorização. Então, o “capital que rende juros” se destaca cada vez mais do processo real de
valorização e se torna capital fictício. Um grau mais alto de desvinculação entre trabalho e
dinheiro é quando o dinheiro creditício serve como ponto de partida de um movimento
especulativo, quando a real acumulação de capital atinge seus limites e não é possível investir
na produção real de mercadorias.
Kurz constrói uma série de figuras da dependência estrutural do conjunto da
sociedade em relação ao crédito, ou dessubstancialização estrutural do dinheiro, ou
desvinculação entre trabalho e dinheiro.
Primeiro, crescentes custos creditícios para a produção de mais-valia. O aumento da
intensidade do capital exige um emprego cada vez maior de capital monetário, que todavia
pode mobilizar cada vez menos trabalho por unidade de capital. Têm de ser hipotecadas
antecipadamente quantidades cada vez maiores de futuros ganhos. O capital produtor de
mercadorias “suga seu próprio futuro”. A taxa de juros sobe para atrair o dinheiro, tendência
que se torna estrutural, finalmente travando a produção real através do encarecimento e crise
43 Kurz também analisa a lógica da crise “avançando da periferia para os centros” (1992: 206).
40
do dinheiro.
Segundo, uma crescente parcela de trabalho estruturalmente improdutivo e financiado
através do crédito (trabalho improdutivo em sentido absoluto). Trabalho produtivo é
determinado por Kurz como aquele cujo consumo é recuperado de novo na reprodução
ampliada. Essa determinação do trabalho produtivo, em termos da teoria da circulação,
permite resolver o problema além da 'materialidade' da mercadoria produzida (i.e. mostra que
a produção de carros de combate é improdutiva, embora seja tangível). A distinção decisiva
entre trabalho produtivo e improdutivo é transversal à produção industrial nominal e ao “setor
terciário”. O número crescente de setores improdutivos se torna um ônus crescente e por fim
insuportável para a reprodução do capital. Os custos das condições gerais e da logística da
produção real de mais-valia crescem de tal maneira que esta última começa a sufocar. Ainda,
com custos do crédito crescente, completamente pulverizado num consumo improdutivo
44
.
Terceiro, crescente custo do crédito estatal para subvencionar indústrias com menor
produtividade no mercado mundial (trabalho improdutivo em sentido relativo). Crescente
parcela do sistema industrial global que já depende diretamente da simulação creditícia,
verdadeiras 'indústrias-fantasmas' geradas e mantidas em vida artificialmente. Improdutivo em
sentido relativo significa quando a sua produtividade (a relação entre trabalho gasto e
resultado da produção) cai abaixo do nível social dado, isto é, abaixo da produtividade média
social. No plano das economias nacionais tornadas coesas, uma produtividade social média se
torna um ditame para as empresas. No caso do mercado mundial não há uma média mundial
mas prevalece o nível de produtividade dos países mais desenvolvidos. Na entrada em contato
sem filtros entre sistemas industriais com diversos níveis históricos de desenvolvimento o que
ocorre é a aniquilação e a liquidação da produção não-contemporânea e pouco produtiva. O
isolamento alfandegário comporta custos notáveis. Quando é preciso exportar produtos para
obter divisas, eles só podem ser vendidos a preços do mercado mundial, de acordo com o
nível de produtividade mais desenvolvido; portanto, quantidades sempre maiores do próprio
trabalho devem ser trocadas por quantidades sempre menores de trabalho alheio.
Quarto, com a perda de convertibilidade em ouro, perde-se a função monetária
essencial do dinheiro de meio de conservação de valor. O sistema desativou o seu próprio
44 Mandel também sinalizou oconstante crescimento da mão-de-obra improdutiva na história do capitalismo
tardio” (1998: 190).
41
dispositivo interno de segurança. A consequência lógica é a inflação estrutural. Ela faz surgir
à superfície monetária a massa oculta de trabalho improdutivo. Esse processo foi contido pela
parcial externalização do problema para as regiões perdedoras do mercado mundial.
Quinto, a emissão de papel-moeda como condição duradoura da reprodução social;
aqui o dinheiro dessubstancializado não passa mais nem pelos mercados financeiros regulares;
antes, a reprodução social sob a forma-mercadoria é alimentada diretamente com volumes de
moeda criados do nada, com base na simples decisão estatal. Fenômeno dos ciclos
hiperinflacionários que segue o ritmo da emissão do papel-moeda, numa cadeia ininterrupta
de desvalorização e recomposição da moeda.
Para Kurz, a distância inexoravelmente crescente entre dinheiro creditício e substância
abstrata do trabalho deve conduzir ao colapso.
Para Beinstein (1999: 297), o capitalismo senil não é ainda o colapso mas o “avanço
irresistível da decrepitude”, é um “fenômeno de envelhecimento avançado do sistema que
aplica todo seu complexo instrumental anti-crise acumulado numa longa história bissecular
mas que, a despeito disso, não consegue impedir o agravamento de suas doenças, sua
decadência (é um corpo moribundo que ainda luta por sobreviver...)” (Cfr. 2009).
Em um quarto período, com o estouro simultâneo de todas as crises, Beinstein concebe
a entrada do sistema no colapso. Em 1995, Kurz (1995) analisava que o coração mundial já
tinha parado de bater e que não se fazia mais que simular a acumulação capitalista com
expedientes monetários. De corpo moribundo o capitalismo passa a ser um cadáver
ambulante”, processo que é acompanhado pela constituição de “sociedades pós-catastróficas”
(Kurz, 1992: 167).
Para Kurz (1995), a base da reprodução capitalista já alcançou o seu limite absoluto,
ainda que o seu colapso (no sentido substancial) não se tenha realizado no plano fenomênico
formal. O colapso implica um processo, imprevisível nos seus detalhes operacionais, de
desvalorização da liquidez fictícia criada sem um fundamento na produção de capital.
42
Inflação e deflação são duas formas do mesmo processo de desvalorização. É uma
desvalorização destrutiva. A ampliação potencial já não é dada pois o nível de produtividade
torna-se demasiado elevado e a racionalização cresce mais rapidamente que a expansão dos
mercados. “O trabalho improdutivo global superou um limiar histórico crítico, tanto no seu
sentido absoluto quanto no sentido relativo e a sociedade mundial cientifizada está agora
demasiado crescida para caber nas formas do sistema produtor de mercadorias”.
O colapso manifesta-se então como um processo. O processo que estamos vivendo.
As ilusões persistentes e infundadas de um capitalismo rejuvenescido
Um corolário da determinação da senilidade do capitalismo e da entrada no processo
de colapso, que resulta da compreensão da história do capitalismo como um processo não-
cíclico, é a demostração do caráter infundado de um conjunto de ilusões que constroem ainda
o horizonte de um capitalismo rejuvenescido: a ilusão da manutenção do papel virtuoso das
inovações tecnológicas e das bolhas financeiras; da função de limpeza das crises; da chegada
de um novo ciclo de expansão; do horizonte de desenvolvimento na periferia capitalista; da
volta de algum tipo de keynesianismo-fordismo.
Samir Amin chama de capitalismo senil à fase atual do capitalismo na qual “a sua
dimensão destrutiva ultrapassa a criadora”. Aceitando a formulação de Beinstein, Amin
afirma que a senilidade se exprime pela substituição da 'destruição criadora' (quando no ponto
de partida há aceleração da demanda) pela 'destruição não criadora' (quando no ponto de
partida há abrandamento da demanda) (Amin, 2002: 100). Beinstein mostra como a
desaceleração da demanda desata uma guerra comercial na qual as inovações provocam
desemprego e precarização laboral, que desacelera ainda mais a demanda. Nas últimas
décadas, as atividades científicas e tecnológicas se expandiram de uma maneira inédita
levando a uma onda de inovações também sem precedentes, mas com o crescimento
econômico se esfriando. O investimento em tecnologia acentuado pela concorrência eternizou
a sobreprodução, tornando-a crônica. Sobreprodução implica em excesso de mercadorias,
43
sobre-acumulação de capitais e subconsumo das massas (Beinstein, 1999: 293-6). Trata-se
agora de um processo de 'concentração depredadora de forças produtivas' no qual a destruição
de empresas, empregos e mercados é muito mais amplo que a criação de novas áreas de
produção e consumo (idem: 110).
Numa análise convergente, Kurz mostra que com mercados relativamente saturados,
novos saltos no crescimento da produtividade superam a ampliação dos mercados de trabalho
e das mercadorias por eles proporcionadas. A velocidade de racionalização dos processos é
maior do que a velocidade de inovação dos produtos”. O mecanismo de compensação
colapsou junto com a força de expansão fordista. A expansão externa atingiu seu ponto crítico
pouco depois da Segunda Guerra Mundial. A expansão interna, com a revoluç ão
microeletrônica.
A “crise agravou-se infinitamente por via da revolução informática. Esta revolução já
não instaura um novo modelo de acumulação: desde o início, a informática torna inúteis – 'não
rentáveis' enormes quantidades de trabalho. Diferentemente do que se passou com o
fordismo, a informática provoca essa inutilidade a um ritmo tal que já não há extensão do
mercado que seja capaz de compensar a redução da parte de trabalho contida em cada
mercadoria. A informática corta definitivamente o laço entre a produtividade e o dispêndio de
trabalho abstrato encarnado no valor” (Jappe, 2006: 147).
O desenvolvimento das forças produtivas, na chamada 3a revolução industrial,
racionalizou a força de trabalho criadora de mais-valia, numa escala sem precedentes. A fim
de atingir o mesmo lucro, teria de se produzir uma massa material de carros cada vez maior
(Kurz, 2009b). As inovações não podem mais suscitar avanços significativos no plano da
criação real de valor. Há desemprego estrutural de massas em todos os setores fordistas e o
emprego em indústrias periféricas retardatárias menos produtivas não significa maior criação
real de valor.
As crises atuais, portanto, já não têm essa função de 'limpeza' que denota a noção de
'destruição criativa'. No irreversível processo histórico que restringe as possibilidades de
valorização, “as crises não têm apenas uma 'função de limpeza', mas agravam-se
historicamente e levam até uma barreira interna de valorização” (Kurz, 2009a).
44
Outra maneira de colocar a questão é a demostração de Beinstein (2009a) do esgotamento de
ciclos econômicos que correspondem a fases específicas do capitalismo. Os ciclos decenais
descobertos por Juglar por volta de 1860 tenderam a desaparecer por causa das mudanças
estruturais no capitalismo depois de sua fase juvenil. Mas continuaram as ondas longas
descobertas por Kondratiev, etapas de 50 a 60 anos, com uma primeira metade de ascenso
econômico e uma segunda de declínio. Cada fase ascendente costuma ser associada a
importantes inovações tecnológicas que modificam os sistemas de produção e os estilos de
consumo. No caso do quarto ciclo, cumpriram esse papel a eletrônica, a petroquímica e os
carros. Ora, o declínio do quarto ciclo já estaria durando uns 40 anos. E as inovações em
informática, biotecnologia e novos materiais, que deviam inaugurar uma nova fase ascendente,
não modificam positivamente os acontecimentos, mas acentuam as suas piores características.
Beinstein destaca que no caso da informática, sua principal aplicação se deu na área do
parasitismo financeiro. Isso sustenta a hipótese de que “assim como aconteceu há perto de um
século com os ciclos decenais de Juglar, podemos atualmente afirmar que as ondas longas de
Kondratiev têm perdido validez científica, a fase descendente do quarto Kondratiev tem sido
triturada pela nova realidade, a economia mundial completamente hegemonizada pelo
parasitismo financeiro obedece a uma dinâmica radicalmente diferente da vigente durante a
era do capitalismo industrial”. Diante da crise sistêmica, a espera do quinto ciclo Kondratiev,
de uma nova prosperidade produtiva do capitalismo, é uma espera inútil.
Nesse novo cenário, há também uma mudança no papel das bolhas e do
endividamento: “a bolha de 2009 contrasta com baixos níveis de consumo e de investimentos
produtivos e altos níveis de desemprego. Os excedentes de capitais bloqueados por uma
economia produtiva em declínio conseguem benefícios na especulação financeira,
produzindo, graças aos fabulosos salvatagens financeiros dos governos, um círculo vicioso
baseado na especulação financeira e o crescimento fraco ou negativo” (Beinstein, 2009c). O
endividamento público pode suavizar um tempo a queda da demanda mas depois provoca
efeitos contrários pela necessidade de fundos por parte do Estado: taxa de juro altas que
freiam os investimentos; cargas tributárias que bloqueiam a demanda (Beinstein, 1999: 227).
A esperança de um regresso à acumulação 'regular' do capital é vã: uma grande parte
da reprodução capitalista depende há tempos do 'capital fictício' do consumo estatal. O
45
endividamento estatal se tornou estrutural e agora do 'capital fictício' na forma de crédito
estatal depende não só o aparelho estatal mas a própria vida social organizada segundo a
forma-mercadoria. Agora a sociedade não nutre o Estado mas é o Estado que deve alimentar a
sociedade com 'capital fictício', o que significa uma paradoxal inversão. A reprodução real
tornou-se o apêndice de uma gigantesca bolha de 'capital fictício' em vez de produzir ela essa
bolha como mera emanação do seu interior (Kurz, 1995).
Assim, a chegada milagrosa de um novo keynesianismo que oponha os bons
capitalistas produtivos aos maus especuladores financeiros é uma outra espera inútil.
A montanha financeira não é uma outra realidade, independente da economia
produtiva, foi engendrada pela dinâmica do conjunto do sistema capitalista, expressão
radicalmente irracional de uma civilização em decadência. A 'droga financeira' foi a 'tábua de
salvação' diante da crise crônica de sobreprodução (Beinstein, 2009b).
O Estado, instrumento decisivo do keynesianismo, é agora impotente. Há uma
verdadeira redução de potencial econômico do Estado. Beinstein (1999: 76-85) propõe inserir
o recuo do Estado e a desaceleração econômica num espaço mais geral vinculando entre
outros o parasitismo na economia e no Estado. Depois de uma avalancha estatizante, nos anos
70 os aparatos públicos começaram a perder dinamismo da mesma maneira que o conjunto do
'pacote civilizacional' que integravam.
Em 2009, Beinstein (Cfr. 2009a, 2009b, 2009c) afirmava que a impotência da 'nova-
velha' magia intervencionista se expressava em operações de salvatagem com resultado nulo.
Assinalava o fracasso dos prometidos “golpes de demanda” e o colapso em curso, nos Estados
Unidos, da estrutura na qual o consumo de massas e a indústria bélica se expandiam ao
mesmo tempo. O equivalente ao 20% da população economicamente ativa recebe direta ou
indiretamente rendas do gasto público militar. A magnitude alcançada pelos gastos bélicos
tem-se tornado um fator decisivo do deficit fiscal. Afirmava, assim, o esgotamento da época
do keynesianismo militar como eficaz estratégia anti-crise”. Nos países centrais o Estado
intervencionista não pode 'voltar' pois nunca foi-se embora, ficou ao longo das últimas
décadas mudando suas estratégias e discursos. Na periferia, o estatismo recuou mesmo, sob a
pressão da onda depredadora da desestatização. Mas ali “a volta ao Estado interventor-
desenvolvimentista de outras épocas é uma viagem ao passado fisicamente impossível, as
46
burguesias dominantes locais, seus negócios decisivos, estão completamente
transnacionalizados ou sob a tutela direta de firmas transnacionais”.
Kurz (1995) aponta que a concorrência entre crédito estatal e crédito empresarial eleva
ainda mais a taxa de juros, fazendo com que o Estado perca o controle da política econômica e
financeira. “O programa keynesiano suposto para fazer frente às crises (deficit spending)
transformou-se num forno sempre aceso, para queimar o futuro hipotecado”.
A crítica radical permite compreender que “enquanto existirem o valor, a mercadoria e
o dinheiro, a sociedade é efetivamente governada pelo automovimento das coisas criadas por
ela” (Jappe, 2006: 93). Daí, a impossibilidade de um capitalismo de rosto humano, de um
Estado de justiça social. A mundialização neoliberal é “resultado inevitável da lógica
capitalista e ao mesmo tempo um sinal da sua extrema fraqueza”, é “o estádio que se segue
logicamente” ao Estado de Bem-estar (idem: 244-7)
45
.
Mas fim do keynesianismo não é igual a fim do estatismo. Kurz (1992: 204) previa em 1992,
no movimento pendular entre estatismo e monetarismo que faz parte da dinâmica da
sociedade produtora de mercadorias, um novo salto histórico ao polo estatista, mas não como
novo surto de modernização, senão como “progressiva administração de emergência estatista
do sistema global em colapso”
46
.
Com a esperança de repetir na periferia a prosperidade ocidental da época de pós-
guerra “completa e consolida-se a ilusão estrutural de uma troca de modelo pela ilusão
histórica de uma repetição do milagre econômico”. Mas a história não se repete, num
processo de progressão irreversível no desenvolvimento do mercado mundial e no nível de
produtividade. A despeito das promessas, a decadência real torna-se cada vez mais clara,
como colapso sócio-econômico e político; como impossibilidade de adaptação ao 'modelo'
ocidental (Kurz, 1992: 152 e 163). Há uma distância crescente entre a intensificação da
produtividade, forçada pela economia da concorrência, nos países capitalistas desenvolvidos, e
45 Falta ao Estado um meio autônomo de intervenção. O Estado continua a ser o garantidor indispensável da
valorização capitalista. “A tentativa contraditória de planificar e regular por intermédio do Estado aquilo que
nos seus próprios fundamentos é algo de cego e inconsciente a economia mercantil levou já à
desarticulação do socialismo nos países de Leste” (idem: 248-9).
46 “O deslocamento da primazia da economia para a política não é uma estrutura permanente, mas um modelo
para se atravessar as regressões à barbárie, cada vez mais comuns, e que permitem, no momento seguinte, a
retomada do domínio da economia” (Menegat, 2003: 153).
47
a produtividade possível nas regiões atrasadas. O custo do investimento torna-se impagável
para essas regiões (idem: 172). Para atingir o nível de produtividade exigido é preciso não
políticas reguladoras mas “enormes investimentos de capital”. É a própria 'igualdade' do
parâmetro do valor que faz com que os países capitalistas com pouco capital possam
apropriar-se de uma massa relativamente menor de valor em relação a países com muito
capital; obtêm apenas a parte da produção global de valor que corresponde à sua
produtividade. É o paradoxo segundo o qual com maior produtividade criam menos valor e
podem apropriar-se, na concorrência do mercado, da maior parcela de valor real (válido)
produzido pelo capital conjunto mundial (idem: 161)
47
.
Os fatores endógenos da crise na periferia são “formas concretas de reprodução da
economia mundial” hegemonizada pelo capitalismo desenvolvido (Beinstein, 1999: 273). O
Terceiro Mundo é o verdadeiro modelo da modernização recuperadora. A situação do passado
recente “já foi a modernização, a única historicamente possível dentro do sistema produtor de
mercadorias” (Kurz, 1992: 177 e 196), pois nos países colonizados e depois
subdesenvolvidos [...] a sua ligação ao novo se faz através, estruturalmente através de seu
atraso social, que se reproduz em lugar de se extinguir” (Schwarz, 2005a: 33-34). Portanto, a
incapacidade de adaptação virtuosa aos modelos centrais pelas nações periféricas não é a
causa mas a manifestação da decadência global.
Kurz (1992: 189-194) analisa as experiências históricas de desenvolvimento da Europa,
do socialismo soviético e do Terceiro Mundo, como experiências de “acumulação primitiva”
que se distinguem entre si pelo nível de produtividade do mercado mundial em cada momento
histórico. Isso confere atributos diferentes a cada processo de modernização.
No caso de Europa, o capital teve uma 'fome canina' (Marx) de força de trabalho viva, e
demorou mais de três séculos em absorver as massas desvinculadas violentamente das
produções agrárias e artesanais. Mas o nível de produtividade foi crescendo até, no século
XX, tornar o desemprego em massa um problema permanente. Ainda que conseguiram
'exportar' parcialmente esse problema, a produtividade crescente teve repercussões
catastróficas nos processos recuperadores da acumulação primitiva. Num segundo momento, a
47 No Capitalismo Tardio, Mandel (1985: 45) encontrava no agravamento da troca desigual, resultado da
diferença na produtividade média do trabalho entre as nações, a explicação do real “circulo vicioso do
subdesenvolvimento”.
48
experiência soviética, pelas novas condições mundiais, teve que acelerar o processo,
exagerando o elemento estatista. Num terceiro momento, no Terceiro Mundo realizou-se a
maior parte da acumulação primitiva após a Segunda Guerra, num nível ainda mais elevado
de produtividade. Isso impossibilitou uma reclusão frente à lógica de produtividade e
rentabilidade do mercado mundial. Isso gerou uma “industrialização seletiva”. Desarraigou as
massas mas não conseguiu integrá-las na moderna máquina de exploração em empresas.
Assim, além de impagável, atualmente “uma dose suplementar de abertura para a
expansão do capital na periferia mesmo marginal exige uma amplitude inimaginável de
destruição”, como converter em massa sobrante a metade da humanidade, pela abertura da
agricultura para a expansão do capital. O Terceiro Mundo contemporâneo não tem a
possibilidade, que teve a Europa do século XIX, de fazer emigrar a sua massa sobrante. E “se
ele quiser ser competitivo como lhe ordenam que seja deverá recorrer logo às modernas
tecnologias que exigem pouca mão-de-obra. A polarização produzida pela expansão mundial
do capital proíbe que o Sul reproduza com algum atraso o modelo do Norte”. A única
perspectiva que o capitalismo oferece é a de “um planeta favelizado e de cinco bilhões de
seres humanos 'em excesso'” (Amin, 2002: 93-4).
A inversão nas relações entre a dimensão construtiva e a destrutiva, deveriam marcam,
para Amin, o fim das ilusões nas periferias de alcançar os outros no interior do sistema
global. A determinação do capitalismo senil faz o autor se contrapor às teses que colocam o
capitalismo como um horizonte intransponível. Denuncia o consenso, que “reúne doutrinários
liberais, reformistas moderados e mesmo aqueles reformistas consequentes que abandonaram
progressivamente o seu radicalismo de origem”, em torno à ideia de que a atual crise
estrutural deverá ser superada sem o abandono necessário das regras fundamentais que
comandam a vida econômica e social específica do capitalismo. Isto porque uma nova fase de
expansão capitalista é anunciada, um novo ciclo Kondratiev. Os discursos dominantes
excluem os debates que abordam os limites do capitalismo (idem).
Mas, apesar das evidencias, ora por honesta cegueira, ora por encobrimento deliberado,
as ilusões continuam.
Ao contrário, a compreensão dos limites do capitalismo faz perceber que a crise
49
estrutural agrava o caráter destrutivo das forças produtivas. As revoluções tecnológicas do
capitalismo “acabam degradando o desenvolvimento que tem impulsionado ao estarem
estruturalmente baseadas na depredação ambiental, ao gerar um crescimento exponencial de
massas humanas superexploradas e marginadas”. “O progresso técnico integra assim o
processo de autodestruição geral do capitalismo na rota em direção a um horizonte de
barbárie”. É importante a ressalva de Beinstein de que isso vai além da ideia de bloqueio
tecnológico pois “não se trata da incapacidade do sistema tecnológico da civilização burguesa
para continuar desenvolvendo forças produtivas mas da sua alta capacidade enquanto
instrumento de destruição líquida de forças produtivas” (Beinstein, 2009c).
A hegemonia da ideologia do progresso e do discurso produtivista, que “apanhou
também boa parte do anticapitalismo” instalou a ideia de que “o capitalismo, ao contrário de
civilizações anteriores, não acumulava parasitismo mas forças produtivas que ao se
expandirem criavam problemas de inadaptação superáveis ao interior do sistema mundial,
resolvidos através de processos de 'destruição criadora'”. O parasitismo era considerado uma
forma de atraso ou uma degeneração passageira. A marcha irrefreável do desenvolvimento das
forças produtivas enfrentariam finalmente o bloqueio das relações capitalistas de produção. A
ilusão do progresso indefinido ocultou a perspectiva da decadência e “deixou o pensamento
crítico na metade do caminho, tirou-lhe radicalidade, com consequências culturais negativas
evidentes para os movimentos de emancipação dos oprimidos do centro e da periferia” (idem).
Uma crítica radical que aponte para uma superação radical do capital, deve deter-se
então na questão das forças produtivas.
50
3. Forças produtivas e barbárie
Previu-se que uma vez atingidos os seus resultados qualitativos, o capitalismo teria
cumprido seu papel histórico, e as relações sociais estariam prontas para o socialismo
(Mandel, 1985: 156). Menegat se pergunta o que resultou da não realização da revolução, que
se prognosticava no início do século XX, e que continha o diagnóstico do esgotamento do
caráter civilizatório do capitalismo. A resolução da crise em favor do capital não foi
simplesmente o produto de desenvolvimentos econômicos, prova da alegada vitalidade do
modo de produção capitalista ou uma justificação para sua existência. O fascismo e a Segunda
Guerra Mundial criaram as condições prévias para que a crise fosse temporariamente
resolvida em favor do capital. Essa é a base histórica para a terceira revolução tecnológica,
para a terceira “onda longa com tonalidade expansionista” e para o capitalismo tardio:
“um fracasso a longo prazo em realizar uma revolução socialista em última análise pode conceder
ao modo de produção capitalista um novo prazo de vida, que este último utilizará, então, de acordo
com sua lógica inerente: tão logo se eleve novamente a taxa de lucros, ele intensificará a
acumulação de capital, renovará a tecnologia, retomará a busca incessante de mais-valia, lucros
médios e superlucros e desenvolverá novas forças produtivas. Tal é, com efeito, o significado da
terceira revolução tecnológica. É isso também que determina seus limites históricos. Fruto do
modo de produção capitalista, ela reproduz todas as contradições internas dessa forma econômica
e social” (idem: 155).
Em Mandel (idem: 133), a noção de capitalismo tardio se opõe à de sociedade pós-
industrial. O autor mostra que as leis fundamentais de movimento e as contradições
inerentes do capital não apenas continuam a operar, mas na realidade encontram sua
expressão mais extrema no capitalismo tardio (idem: 4). De fato, o resultado conjunto das
principais características econômicas da terceira revolução tecnológica é uma “tendência à
intensificação de todas as contradições do modo de produção capitalista” (idem: 136-8).
“o capitalismo tardio, não é um declínio nas forças de produção mas um acréscimo no
parasitismo e no desperdício paralelos ou subjacentes a esse crescimento. A incapacidade
inerente ao capitalismo tardio, de generalizar as vastas potencialidades da terceira revolução
tecnológica ou da automação, constitui uma expressão tão forte dessa tendência quanto a sua
dilapidação de forças produtivas, transformadas em forças de destruição”. “Em termos absolutos,
na era do capitalismo tardio vem ocorrendo uma expansão mais rápida nas forças produtivas do
que em qualquer outra época [...] No entanto o resultado é lastimável” (idem: 150).
O resultado lastimável do espetacular avanço das forças produtivas está inscrito no
coração das forças produtivas enquanto potência produtiva humana abstrata e autonomizada.
51
As forças produtivas contém em si o caráter dual de uma promessa impossível de se efetivar.
Com a expansão da economia capitalista ao fim da Segunda Guerra Mundial, o
otimismo em relação ao futuro do socialismo foi “adiado para um tempo indeterminado”, e o
século XXI é para Menegat “o da atualidade da barbárie” (Menegat, 2006: 26). “O
esgotamento civilizatório de fato ocorreu, mas ele não corresponde exatamente ao momento
de esgotamento do desenvolvimento das forças produtivas. Estas possuem ainda um campo
aberto para o seu crescimento, que já não se convertem num elemento de progresso, mas sim,
de aberta regressão”. A ampliação na capacidade de apropriação e destruição da natureza vai
junto com a ampliação da capacidade de domínio sobre os homens. A indústria armamentista
é o monumento à irracionalidade dessa sociedade (Menegat, 2003: 211-4).
Por isso, a questão das forças produtivas tem um lugar fundamental na determinação
de Menegat do conceito de barbárie. Na sua procura em Marx dos contornos gerais de um
conceito de barbárie, encontra um primeiro nível que se refere à dinâmica histórica e nela, a
diversas condições de regressão da sociabilidade devido à decomposição das forças produtivas
e a não superação das relações sociais. Mas, se num sentido aparece como o não
amadurecimento de um modo de produção, que leva ao “anacronismo das relações sociais
diante do impressionante desenvolvimento das forças produtivas”, num outro sentido, aparece
como excesso de civilização, entendida esta como o desenvolvimento das forças produtivas,
que são constantemente revolucionadas, como parte do processo de valorização e acumulação
do capital”. A necessária e cíclica destruição de parte dessas forças produtivas para que o
processo não seja interrompido faz perceber que “é a primeira vez que a destruição das forças
produtivas faz parte do modo de produção” (Menegat, 2006: 28-31).
É preciso compreender que as promessas incumpridas fazem parte da dinâmica
histórica específica do capital
48
. Descobrimos agora que aquela tendência antevista por Marx
da abolição do capital por meio de si mesmo está longe de ser agradável. As considerações
nos Grundrisse, contrário a leituras celebratórias que apontariam a que “nos encontramos já
48 “Que o capital tenha ambas as dimensões de valor e valor de uso é fonte de sua dinâmica histórica única,
uma dinâmica que aponta para um futuro além dela mesma, enquanto constringe a realização desse futuro”.
“Não ter uma compreensão dos constrangimentos do capital condena muitos projetos políticos a um fracasso
imprevisto ou a tornar-se parte de aquilo que eles mesmos queriam superar” (Postone, 2009: 315-7).
52
para lá da sociedade baseada no valor”, a uma “transformação imperceptível do capitalismo
numa outra forma de produção”, antes explicam “um novo potencial de crise”, provocada pela
cisão entre produção material e produção de valor. As forças científicas, o general intellect, só
pertencem à humanidade inteira no plano material, pois no plano da organização social, a
produção permanece sob a influência dominante do valor, e a reprodução de cada um passa
por despender a sua força de trabalho (Jappe, 2006: 115-6). As formas básicas da reprodução
capitalista continuam encaixando forçosamente as potências substancial-materiais que gerou
no seu desenvolvimento cego. “A consequência é a transformação das forças produtivas em
potenciais destrutivos, que provocam catástrofes ecológicas e sócio-econômicas” (Kurz,
1992: 226-7)
49
.
Em termos de Kurz (1992: 228), a humanidade “foi socializada de forma comunista no
nível substancial-material e 'técnico'”. Trata-se de um comunismo das coisas, como
entrelaçamento global do conteúdo da reprodução humana [mas] dirigido pela estrutura cega e
tautológica do automovimento do dinheiro”, na “forma errada e negativa, dentro do invólucro
capitalista do sistema mundial produtor de mercadorias”.
Em outros termos, mas de maneira semelhante, Menegat (2003: 191-3) analisa que
aquela promessa do general intellect deu na formação inconsciente dessa forma de órgãos
imediatos da prática social. Essa especificação é central para compreender a distorção do
caráter civilizatório desse desenvolvimento. Por exemplo, as formas eletrônicas de
comunicação como manifestação da feição autoritária que assume esse órgão
50
.
Um ponto central é que o adensamento do conhecimento social geral não representou
qualquer avanço da autocompreensão da sociedade
51
. Isso leva a problematizar a
pressuposição de uma tendência ao aumento da capacidade crítico-reflexiva dos indivíduos, e
da resistência e organização dos trabalhadores, como resultado do processo lógico de
desenvolvimento das contradições do capital (idem: 195-6). O impasse que daí surge está
49 “Para Marx, o conceito de produção social era uma das tendências que caracterizam o desenvolvimento da
produção capitalista, que, por um lado, foi impulsionada pela propriedade privada e, por outro, vê a sua
ampliação não caber mais na estrutura desta e nas relações sociais daí decorrentes, ao menos sem crises
cada vez mais destrutivas” (Menegat, 2003: 30).
50 A mediação, como uma categoria fundamental da dialética da razão [...] é assumida pelos artefatos da
indústria cultural e desaparece da vida social” (Menegat, 2006: 260).
51 Como parte dessa incompreensão, “num sistema produtor de mercadorias, praticamente não há um
conhecimento social da rede conjunta de reprodução no plano material e sensível”, “do agregado material de
seu próprio contexto de vida” (Kurz, 1997).
53
contido na análise de Marcuse (1981: 36-7) segundo a qual, na concepção marxista, a
racionalidade crítica é pré-requisito para a função libertadora do proletariado
52
.
O conceito de barbárie, desenvolvido por Menegat, “corrige o determinismo que estava
implícito no otimismo do movimento operário” (Menegat, 2006: 27). A automaticidade do
salto ao comunismo é problematizada pela determinação das bases objetivas do domínio do
capital como um poder autônomo, isto é, pela compreensão crítica do capital como sujeito
autônomo da sociedade burguesa. Isso impossibilita “vislumbrar no progresso das forças de
objetivação humana uma revelação de um projeto emancipatório” (idem: 240-3).
A barbárie é um conceito central da crítica à estruturação conservadora da sociedade
burguesa (Menegat, 2003: 92). A barbárie não é inevitável, mas é a consequência lógico-
histórica do livre desenvolvimento do capital (idem: 219), o exato oposto da revolução (idem:
222), a “teleologia” da história em curso (Menegat, 2006: 16).
A crítica à barbárie exige a compreensão dos desdobramentos civilizatórios que os
impasses desta produzem (Menegat, 2003: 180), o que leva Menegat a considerar um
complexo de problemas em torno àregressão antropológica do indivíduo”. Por exemplo, o
“sentido crescentemente impessoal” das heranças entre as gerações com a transformação do
desenvolvimento das forças produtivas num aparato técnico, que faz com que as capacidades
ativas se depositem na objetividade do mundo social (idem: 127-137). Ou a “analítica da vida
danificada” como uma “escavação nas camadas de barbárie que se vão acumulando nos
indivíduos e que impedem a sua livre associação” (idem: 110). Ou a indústria cultural que “se
propõe organizar o tempo livre dos indivíduos, de modo a que estes possam distraidamente
solidificar os laços de adesão com a ordem de produção”. Assim, a diversão é “o elo que
promove este compasso de espera regressivo” (idem: 158-165). A multidão, contrária à
promessa de individuo social, é a “realização pervertida da individualidade”, é uma
associação de indivíduos “reduzidos à expressão padronizada de sua individualidade abstrata,
a saber, a busca do interesse próprio”. A multidão une os indivíduos atomizados da
autopreservação (Marcuse. 1999: 89). Essas análises fazem possível entender o descompasso
entre a maturidade das forças produtivas da sociedade e a menoridade dos indivíduos
(Menegat, 2003: 67).
52 Donde a noção de um período prolongado de barbarismo, em contraste com a alternativa socialista
barbarismo baseado nas realizações técnicas e científicas da civilização” (Marcuse, 1999: 81).
54
O processo em curso consiste, então, numa crescente socialização da produção que não
desenvolve as estruturas de pensamento e as instituições de mediação social requeridas para
sua autocompreensão. Assim, as condições objetivas estão dadas para a superação do trabalho
mas esta é impossível de ser antevista pela consciência reificada” (idem: 199-200). A
necessidade de uma práxis à altura dos problemas a serem resolvidos contrasta com a
“pequena carga reflexiva que ainda circula pelas sociedades contemporâneas” (idem: 208).
No prefácio de “Para a critica da economia política” de 1859, Marx (1987: 30) escreveu
a célebre frase:
“Em uma certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram
em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua
expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham
movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas estas relações se transformam em
seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social”.
A partir da nossa análise vemos que a questão da contradição entre as forças produtivas
e as relações de produção serve na compreensão das revoluções burguesas e da gênese do
capitalismo, exatamente pelo lugar específico que as forças produtivas adquirem nesse modo
de produção
53
. Mas não serve como regra geral a-histórica para pensar hoje uma virtual
superação desse modo de produção. Se, em tese, o aumento quantitativo de um dos momentos
da contradição exigiria uma mudança qualitativa do outro pólo, no entanto “há um nexo, ao
invés de uma fratura, entre o desenvolvimento das forças produtivasquer dizer, da técnica, e
o seu aparato, que produzem aumentos quantitativos de produtos para suprir as necessidades
básicas dos indivíduos no atual estágio do desenvolvimento da humanidade e as relações
sociais isto é, a divisão social do trabalho que aponta para aquém da sua ultrapassagem”
(Menegat, 2003: 36-7; 2006: 76). No pacto que se realiza entre as relações sociais e o
desenvolvimento das forças produtivas, as primeiras entregam a sua forma específica de
racionalidade às segundas (Menegat, 2003: 45). Na espera da crise entre as relações de
produção e o desenvolvimento das forças produtivas, descuida-se essa “continuidade lógica
entre os pólos” (idem: 64), o “poder das forças produtivas como meio de manutenção e
continuidade das atuais relações de produção” (idem: 179).
53 Os implantes capitalistas no Antigo Regime “passaram a desorganizar e a reorganizar os mercados locais – a
interconectá-los -, passaram a financiar a produção [...] a passagem foi irresistível porque desenvolveu de
maneira exponencial as forças produtivas” (Arantes, 2004: 297).
55
4. A abolição do valor e das forças produtivas
Opomos a análise da historicidade das categorias do capital à sua ontologização por
parte do marxismo tradicional. Ontologizar as categorias, isto é, supor que elas tem uma
vigência eterna na história e desenvolvimento da humanidade, leva a tomar como ponto de
vista da crítica aquilo que em Marx era objeto de crítica: o objeto da crítica de Marx (por
exemplo, valor, assim como o trabalho que o constitui, analisados como formas historicamente
específicas), tem sido frequentemente tomado como o ponto de vista dessa crítica” (Postone,
2009: 308). Tomar como ponto de vista essas categorias leva à perspectiva de sua afirmação.
Ao contrário, a crítica que mostra a historicidade dessas categorias leva à perspectiva de sua
abolição. Assim, o valor, o trabalho, o proletariado, como pontos de vista desde o qual se
critica o capitalismo leva à afirmação do valor, do trabalho e do proletariado contra o
comando deles por parte do capital. Ao contrário, o valor, o trabalho, o proletariado enquanto
objeto de crítica, isto é, enquanto categorias historicamente específicas do capital, levam à
perspectiva da sua abolição. Concordo com Postone (idem: 312) em que a crítica do
capitalismo de Marx verdadeiramente apontava para a abolição do proletariado, enquanto
classe e enquanto trabalho que essa classe faz
54
.
Vejamos agora essa questão em relação à categoria forças produtivas. Uma crí tica do
capitalismo que se faça desde o ponto de vista das forças produtivas, isto é, em nome delas,
leva à sua afirmação, à perspectiva muito comum de pretender libertar as forças produtivas
dos grilhões que significam as relações de produção desse modo de produção.
Já analisamos o pacto existente entre esses momentos aparentemente opostos. A
exposição lógico-histórica da categoria forças produtivas, reforçada pela evidência do
esbanjamento e destruição de forças naturais, humanas e sociais em curso no capitalismo
contemporâneo, nos leva a afirmar que o desenvolvimento das forças produtivas tem se
tornado, de tarefa histórica, em condição regressiva para a emancipação. Trata-se de abolir as
54 Na Ideologia Alemã, Marx fala explicitamente na supressão do trabalho e do proletariado: “Em todas as
revoluções anteriores o modo de atividade permanecia intacto, e tratava-se apenas de conseguir uma outra
forma de distribuição dessa atividade, uma nova distribuição do trabalho entre as pessoas, enquanto que a
revolução comunista é dirigida contra o modo anterior de atividade, suprime o trabalho e supera a
dominação de todas as classes ao superar as próprias classes” (Marx e Engels, 1982: 108).
56
forças produtivas, no sentido da sua supressão e superação.
Determinar esse sentido da abolição das forças produtivas é fundamental, pois, numa
perspectiva emancipatória não podemos furtar-nos ao desafio da objetivação das capacidades
humanas e da materialização de uma outra sociedade num sentido não idealista nem
regressivo.
Vejamos algumas contribuições de Kurz (Cfr. 1997) para pensar essa questão. A
necessidade de vincular a emancipação social com a superação do trabalho abstrato, faz o
autor se afastar de uma “crítica reacionária das forças produtivas”, de uma “pura e simples
negação” das forças produtivas, em geral. Para Kurz, a reprodução pós-capitalista não deve
cair abaixo do nível de socialização capitalista, mas, antes, superá-lo. Por isso é impossível
“dissociar a negação e a superação positiva”. Tratar-se-ia de “elaborar definições socio-
econômicas de uma forma embrionária, para além da produção de mercadorias, no nível do
atual grau de sociabilização”. Kurz destaca a possibilidade, nesse sentido, de se apropriar da
microeletrônica em projetos de fuga e superação da sociedade produtora de mercadorias. Mas
adverte que essa apropriação “não pode ser um prolongamento do antigo marxismo e sua
fetichização das forças produtivas prolongamento este irrefletido e dotado de uma simples
crítica superficial ao valor”. Num movimento de “negação da negação”, tratar-se-ia de “tomar
partido das forças produtivas microeletrônicas contra as relações de produção capitalistas,
mas, ao mesmo tempo, de superar o destrutivo valor de uso da estrutura de produção e
consumo capitalistas”. “Essa crítica superadora tem de distinguir entre essência e aparência
da revolução microeletrônica. A essência dessas novas forças produtivas é um potencial, ou
seja, uma possibilidade que o capitalismo não produziu em benefício próprio, mas para seu
abstrato fim em si mesmo da valorização. A realidade aparente desse potencial não pode
deixar de ser afetada por tal fato. De acordo com a sua configuração material, a aparência
concreta das forças produtivas microeletrônicas é também capitalista, e deve ser superada
juntamente com sua forma social”
55
. Um movimento social “terá de direcionar os próprios
55 Para Kurz (1992: 232) “a substância material das potências alcançadas da socialização tem que ser
radicalmente liberada da forma histórica que contaminou essa substância e tornou-a extremamente
destrutiva”. Essa 'forma histórica' são as forças produtivas, já em si uma abstração social, e a substancia
material é o potencial produtivo, as capacidades do homem.
57
potenciais microeletrônicos para fins emancipatórios de reprodução” o que implica em
conhecimentos específicos e a ampliação desse conhecimento. O objetivo da emancipação
deve ser “a pessoa auto-reflexiva, que regula conscientemente seu contexto vital e não é
dominada por coisas mortas”. Aproveitar os potenciais da revolução microeletrônica implica
escolher criticamente os artefatos capitalistas, em vez de submeter-se, sem nenhuma crítica,
à lógica repressiva de seu valor de uso”.
Na proposta que Marx fez à russa Vera Zassulich, de “apropriar-se das conquistas
positivas trazidas pelo sistema capitalista, sem ter que passar pelas respectivas forcas
caudinas” (Jappe, 2006: 199-200) está contido esse movimento de apropriação reflexiva.
Podemos falar, então, em apropriação reflexiva das forças produtivas? Em uso das
forças produtivas para fins determinados conscientemente pelos próprios homens?
56
.
Sintetizemos o até aqui desenvolvido. Dado que o modo de produção capitalista “não
só muda formalmente mas realiza uma revoluç ão em todas as condições sociais e tecnológicas
do processo laboral”, o capital “não se apresenta agora só como condições materiais de
trabalho que não pertencem ao operário a matéria prima e os meios de trabalho senão
como incarnação das forças sociais e das formas de seu trabalho comum contrapostas a cada
um dos operários” (Marx, 1980: 158). Não estão ai as matérias primas, e os meios de trabalho
que pertenciam ao operário, esperando para serem recuperados. As forças sociais se
incarnaram de uma maneira muito específica enquanto força produtiva do capital. Na
constituição da força produtiva, é o processo de valorização, e portanto as necessidades do
capital e não a satisfação das necessidades humanas, que determinam o percurso e ritmo do
desenvolvimento e aplicação tecnológica, e a abrangência do seu uso.
Os fatores objetivos, se adaptando ao trabalho abstrato como substancia do valor, e ao
tempo socialmente necessário como magnitude do valor, adquiriram uma desmedida em dois
sentidos. Em relação às necessidades humanas, posto que o seu fim é o da autovalorização do
valor. E em relação às necessidades do próprio capital, quando a contradição imanente é
efetivada na crise de sobreprodução. A crise intensifica a inovação tecnológica. Ao mesmo
56 Para Michel Lowy, uma determinação da sociedade socialista é “um possível domínio racional das forças de
produção pelos homens”, em “L'humanisme historiciste de Marx ou relire Le Capital” (Lowy apud Dosse,
1994: 217).
58
tempo, a crise aprofunda as determinações capitalistas da tecnologia, isto é, o seu caráter de
força produtiva. Por um lado, um uso intensivo da tecnologia na procura de aumentar a mais-
valia, com o decorrente abuso das fontes da riqueza, força de trabalho e natureza, chegando ao
ponto da sua destruição ou esgotamento antecipado. Por outro, uma restrição do uso da
tecnologia em casos em que, significando uma vantagem do ponto de vista humano, de se
libertar de tarefas pesadas e/ou rotineiras passíveis de serem feitas por uma máquina,
ganhando tempo para atividades mais criativas ou humanizadoras, não traz benefícios no
aumento da mais-valia. Finalmente, o direcionamento do próprio percurso do
desenvolvimento tecnológico segundo as necessidades do capital.
As forças produtivas, uma das abstrações reais do capital, adquirem também sua
dinâmica inerente e específica de incumprimento de suas promessas. As forças produtivas são
essa forma histórica específica em que as capacidades humanas se desdobram numa
potencialidade oculta e reprimida e numa realidade aparente na sua configuração material.
Donde a regressão antropológica do homem; a socialização material com associalização
formal (comunismo das coisas); o desconhecimento do agregado material por parte dos
indivíduos; a mistura de destruição, paralisação, bloqueio e também criação irracional de
recursos naturais e humanos.
Reconhecendo o caráter abstrato, autonomizado, tautológico, das forças produtivas
enquanto forma específica do capital, falar em forças produtivas que respondem a
necessidades sociais é uma contradição nos termos. Não pode haver uso reflexivo e
consciente de uma forma inerentemente irreflexiva. A efetivação da potencialidade oculta e
reprimida das forças produtivas coincide com a sua abolição enquanto forma específica
57
.
57 Além da construção lógica do seu raciocínio, há várias passagens em Menegat que me instigaram a formular
a perspectiva da necessidade da abolição das forças produtivas: “um desafio que supera a determinação das
formas de relações de produção, e muito provavelmente deve vir a intervir na própria concepção de
desenvolvimento das forças produtivas” (2006: 44). A manifestação efetiva de uma rica individualidade só
pode se dar agora na superação dessa produção material, uma vez que esta é determinada por uma forma
social em que o agir instrumental condiciona seu funcionamento [...] O agir instrumental está associado,
enquanto categoria, à produção pela produção” (idem: 53-4). “O atraso em realizar a supressão de uma
produtividade em permanente expansão [exatamente o que aqui determinamos como força produtiva] num
quadro de distribuição imperfeita produziu o acúmulo de outros e graves problemas, sem que isso ampliasse
a capacidade de enfrentá-los” (idem: 350). A soma coletiva das energias produzidas pela liberação do
indivíduo das formas antigas de coerção social, “são cuidadosamente drenadas e canalizadas para a
produção. Elas não podem se desviar da sua determinação de força produtiva, isto é, de ser uma força social
que vê a sua potencia como algo estranho a si mesma” (Menegat, 2003: 139).
59
A crítica da economia política de Marx constitui uma crítica da existência da
'economia' enquanto tal. Lukács apontava que a economia socialista já não teria a “função que
até então haviam tido todas as economias: ela deverá ser serva da sociedade conscientemente
dirigida; deverá perder a sua imanência, a sua autonomia, que dela faziam propriamente uma
economia; deverá ser suprimida enquanto economia”
58
. No caso do trabalho, a crítica do
trabalho enquanto tal, e a perspectiva de sua abolição, não significa eliminar o metabolismo
do homem com a natureza.
Da mesma maneira, abolir as forças produtivas não implica na eliminação da dimensão
técnica, da engenhosidade, no desenvolvimento do homem. Implica quebrar seu caráter
autonomizado e tautológico. Marx imaginava que “numa sociedade comunista a maquinaria
teria um campo de ação muito diferente daquele que tem na sociedade burguesa” (C I, 13, 478,
nota 116bis). A abolição das forças produtivas significaria a possibilidade de utilizar a técnica
com outros parâmetros que a eficiência ditada pela valorização, que a produtividade visando a
competitividade na concorrência por fatias do mercado. A possibilidade de se apropriar da
produtividade como um meio para atender as necessidades humanas
59
.
Mesmo não tratada em termos de abolição das forças produtivas, a necessidade de
outra forma de relação com a técnica está presente em diferentes autores sob termos diversos.
Podemos falar na “contradição entre as capacidades elaboradas pela espécie humana e
a sua forma efetiva alienada” (Jappe, 2006: 156). Na determinação dos conhecimentos e
capacidades produtivas socialmente gerais possíveis de serem efetivados “se a riqueza
58 Lukács apud Jappe, 2006: 213. Ainda, falando da importância da violência na transição de uma ordem de
produção a outra, fato negado pelo marxismo vulgar, Lukács apontava que “la transformación de la fuerza
productiva en palanca de la tranformación social, no es sólo un problema de consciencia de clase, de la
eficacia práctica de la acción consciente, sino también el comienzo de la superación de la pura 'legalidad
natural' del economicismo. Pues quiere decir que la 'fuerza productiva máxima' [la clase revolucionaria
misma] se rebela contra el sistema de producción en que está inserta” (Lukács, 1975: 107-8).
59 Na busca da superação do capitalismo, é preciso para Samir Amin assegurar a segurança alimentar,
desconectando os preços internos dos preços do mercado mundial e permitir, através da progressão da
produtividade na agricultura camponesa, sem dúvida lenta mas contínua, o controle da transferência da
população do campo para as cidades (2002: 95). A preocupação de Oswald [de Andrade] não era a de
tornar o Brasil um gigante dos negócios mundiais, o seu anticapitalismo é muito mais profundo: para ele, a
máquina não era um meio de potencializar a concorrência, mas uma forma sublime de emancipação”; isso
está ligado à concepção de “socialismo como uma forma de sociedade que de fato suprime o trabalho
alienado, e não como mais um entre os modelos de industrialização acelerada”; problema de como
transformar os imensos ganhos de produtividade [...] num bem comum de uma humanidade ainda a ser re-
fundada” (Menegat, 2006: 345-7).
60
social for a forma social da riqueza” (Postone, 2006: 478).
Jacques Ellul (1968: 80), na sua crítica do que ele chamou de “civilização técnica”, não
propunha simplesmente outro tipo de técnica, ou outro tipo de uso da técnica existente, mas
enxergou desesperadamente a necessidade de um mundo social onde a conciliação do
homem e da técnica seja possível”. Isso ajuda na distinção entre a força produtiva, uma
forma específica de tecnicidade determinada pelo capital, e outra forma baseada na interação
da eficácia técnica e da decisão eficaz do homem em face dela”
60
.
Marcuse (1999: 73-4) faz a distinção entre técnica e tecnologia. Para o autor, a técnica
por si, num sentido restrito, pode promover tanto o autoritarismo quanto a liberdade, tanto a
escassez quanto a abundância, tanto o aumento quanto a abolição do trabalho árduo. A
questão é que a técnica propriamente dita, isto é, o aparato técnico da indústria, transportes,
comunicação é apenas um fator parcial da tecnologia, enquanto processo social. Assim, a
tecnologia é “uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais,
uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes, um
instrumento de controle e dominação”. Portanto, as relações sociais existentes não fazem uso
diferenciado da tecnologia como poderiam fazer uso das técnicas. A tecnologia é a forma que
adquire o processo de dominação. Marcuse analisou como o processo tecnológico não cumpre
as promessas que aparentava. A superação da escassez parecia levar à transformação da
competição em cooperação. Mas Marcuse percebe como, no “desfecho lógico de um processo
social que media o desempenho individual em termos de eficiência competitiva”, “as
condições existenciais que formam a individualidade se rendem às condições que tornam a
individualidade desnecessária”. Coexistem abundância potencial com pobreza real. “A técnica
impede o desenvolvimento individual apenas quando está presa a um aparato social que
perpetua a escassez, e este mesmo aparato liberou forças que podem aniquilar a forma
histórica particular em que a técnica é utilizada”. Para Marcuse, uma outra forma de
utilizar a técnica poderia: democratizar as funções; facilitar o desenvolvimento humano;
mudar o centro de gravidade das necessidades da produção material para a arena da livre
realização humana; levar a novas formas de individualização; diminuir o tempo e a energia
60 É ingênuo “pensar [nas condições atuais] a técnica como saber neutro de uso acordado entre os homens”.
No entanto, não deixa de ser um fim desejável que “somente poderia acontecer num movimento contra a
sociedade administrada” (Menegat, 2003: 75).
61
gastos na produção das necessidades da vida, além de uma redução gradual da escassez;
permitir a abolição dos objetivos competitivos.
As forças produtivas são exatamente essa forma específica e histórica em que a técnica
é desenvolvida e utilizada pelo capital. Essa forma contém em si mesma o incumprimento da
promessa técnica donde a dualidade atual entre potencialidade assombrosa e realidade
horrorosa.
Na análise de Marx, a cooperação, em termos mais gerais, é a “criação de uma força
produtiva que em si e para si é forçoso que seja uma força de massas” (C, I, 11, 396). O modo
de produção capitalista, assim, foi se apropriando da cooperação nesse sentido mais geral, da
capacidade de criar essa força produtiva coletiva. E isso acabou se materializando, como
vimos, na alienação do desenvolvimento tecnológico e científico e na sua constituição como
potência produtiva autônoma que serve ao capital. A partir da apropriação objetiva pelo
capital das condições do desenvolvimento das potências produtivas do homem “a força
produtiva aparece como se o capital a possuísse por natureza, como sua força produtiva
imanente” e “a cooperação mesma aparece como forma específica do processo capitalista de
produção” (C I, 11, 405-7). É um obstáculo subjetivo a dificuldade de distinguir entre as
forças produtivas, forma específica do capital, e o potencial desenvolvimento da cooperação e
das capacidades do homem. O fetichismo do capital “consiste não só na ilusão de que o
capital também é uma fonte de produção de valor, mas principalmente em seu poder efetivo de
subordinar o trabalho e as condições de sua autovalorização, crescendo e expandindo sua
dominação às várias esferas da vida econômica” (Grespan, 1999: 125).
A concentração e centralização do capital, longe de facilitar a sua expropriação,
concentra também o poder e o controle sobre as condições da produção social. Concentra as
forças de produção sociais no grande capital. Essa concentração aprofunda a identificação
subjetiva das forças produtivas do capital com as capacidades do homem. Por outro lado, essa
identificação vê-se também fortalecida pela velocidade fantástica nas inovações e aplicações
tecnológicas que o capital produz em alguns ramos da indústria, base para utopias
tecnológicas que substituem em grande medida às utopias sociais. Mas, estando as
62
necessidades humanas subsumidas hoje pelas necessidades do capital, as necessidades
tecnológicas hoje produzidas devem ser avaliadas enquanto necessidades do capital e não
como um simples desenvolvimento natural do homem, da humanidade no seu avanço
civilizatório.
Embora fique claro que uma apropriação reflexiva leve a desenvolvimentos técnicos
diferentes ao atual
61
, esse é o desdobramento de uma mudança fundamental. A abolição das
forças produtivas não é uma nova técnica, mas uma nova forma de sociabilidade que lide
reflexivamente com a técnica. Trata-se, para isso, da superação dessa forma específica de
mediação social que é o capital
62
. Como deve ter ficado claro, isso não significa superar os
constrangimentos que o capital impõe às forças produtivas, pois as forças produtivas fazem
parte dos constrangimentos do capital
63
. É preciso abolir as forças produtivas para poder se
apropriar da potência produtiva, para poder efetivar a sua promessa.
Já observamos que o 'tempo socialmente necessário' na produção de mercadorias
articula o valor, o trabalho abstrato, e a força produtiva. O tempo socialmente necessário é a
magnitude do valor, é a substância do trabalho abstrato, é o que dá o impulso frenético ao
desenvolvimento das forças produtivas. A abolição do valor, do trabalho e das forças
produtivas, implicam numa re-apropriação do tempo social.
A identidade entre produtores e consumidores é analisada por Kurz (1997) como
“condição sine qua non para uma superação da forma valor”. De fato, a desproporção entre
produção e consumo é inerente ao capitalismo (Mandel, 1998: 196). Na ausência de um modo
de produção diretamente socializado, as unidades de produção separadas estão condenadas a
seguir as leis fetichistas da rentabilidade. Ao contrário, a unidade entre produção e consumo
significa que a produção está orientada para necessidades antecipadamente conhecidas (Jappe,
2006: 161 e 166).
61 Kurz propõe, por exemplo, “certa indiferença para com inovações sempre novas e independentizadas no
plano das coisas, cujo dispêndio não guarda mais relação alguma com sua utilidade” (Kurz, 1997).
62 Também a questão da suprassunção do trabalho alienado, na medida em que é um dos pólos da
contradição, implica na abolição do capital” (Menegat, 2006: 227).
63 A questão não é “se uma estrutura estática pode ou não ser transformada, mas se uma estrutura dinâmica,
que supõe uma transformação permanente, pode, ela mesma, ser superada” (García López, 2006: 31).
63
Dada essa unidade entre produção e consumo “a questão do dispêndio de tempo pode
ser manejada flexivelmente”, ou seja, a comparação entre uma hora de trabalho abstrato e
duas horas de atividade num contexto social satisfatório não é quantitativa. A superação da
forma do valor significa superar a separação entre 'trabalho' e 'tempo livre', e, portanto, o
'trabalho' como tal” (Kurz, 1997). O tempo livre “abre a perspectiva de se pensar a inscrição
do indivíduo na coletividade enquanto singularidade como 'individualidade rica'” (Menegat,
2003: 196; 2006: 215).
Para Postone (2009: 319), um resultado da abolição do valor seria que “a riqueza da
sociedade não dependesse de que uma massa de pessoas realize um trabalho que hoje
consideramos vazio, fragmentado, opressivo, explorador. O socialismo exigiria a abolição real
de muito desse trabalho sem criar uma enorme população excedente”. José Nun (2001: 42-3)
aponta que para Marx, e esse seria o núcleo da sua crítica à concepção abstrata e a-histórica
de Malthus, o excedente de população é sempre relativo, mas não aos meios de subsistência
em geral mas ao modo vigente para sua produção; é um excedente para esse nível de
desenvolvimento. Para Nun, o socialismo implica na “eliminação definitiva de qualquer forma
de superpopulação”.
Vimos que a força produtiva, enquanto forma específica do capital, abstrata,
autonomizada, tautológica e irracional, exige a população excedente. Acabar com o
trabalho opressor e ao mesmo tempo com a população excedente é já abolir as forças
produtivas.
Com o novo prazo de validade do capital pela derrota das forças de esquerda, adia-se a
possibilidade de abolição das forças produtivas, que deve quebrar a sua autonomização em
face das necessidades humanas, apropriando-se da potência produtiva do homem. Com isso,
as forças produtivas, incarnação material do valor, mostram seu verdadeiro caráter, uma
mistura de destruição, parasitismo, e hiper-produtivismo irracional.
Um consciente movimento social de supressão” deve acabar com a mera
administração da crise e com a situação atual na qual tiram-se dos homens inclusive “as
condições capitalistas da satisfação de suas necessidades” (Kurz, 1992: 224-6).
64
Dissemos antes que a abolição das forças produtivas deixava em pé o desafio da
objetivação das capacidades humanas, da materialização de uma outra sociedade num
sentido não idealista nem regressivo. Podemos afirmar agora que a abolição das forças
produtivas, que é num mesmo movimento a abolição do valor, é uma condição para
enfrentar esse desafio.
Enquanto isso, a miragem do neo-desenvolvimentismo alimenta a esperança de
resolver os problemas sociais sem a superação do capital. A senilidade do sistema, com a sua
retomada da violência na tentativa de se perpetuar, requer que os reformistas e radicais sejam
muito mais radicais do que jamais (Amin, 2002: 81). É por realismo que é preciso encarar
agora saídas radicalmente anticapitalistas (Jappe, 2006: 243). É preciso uma recusa
combatente de todas as tentativas de estabilização do sistema (Beinstein, 2009c). É preciso
denunciar o mundo existente como impossível de ser suportado, e exigir das forças que
mantém o real que se expliquem
64
.
64 Isso é o que faz, segundo Menegat (2006: 319), o poema medieval Fabliau de Cocagne.
65
II. DESMONTANDO O CASTELLS DE CARTAS: UMA TRAJETÓRIA
INTELECTUAL
(Apelo à paciência do leitor para enfrentar este capítulo que se propõe acompanhar
com seriedade e dedicação uma trajetória intelectual. A pesada carga de citações procura
mostrar a base textual para as afirmações que aqui são feitas em relação à vida, morte e
ressurreição de conceitos e assuntos. O ponto de referência do percurso confunde-se às vezes,
no início, com as próprias lembranças auto-biográficas de Castells. Mas a distância crítica e
irônica do narrador, e provavelmente do leitor, vai sendo mais e mais exigida na medida em
que avançamos na trajetória. Se o paciente leitor estiver desistindo, console-se pensando na
paciência que foi necessária para reconstruir este caminho de pedras. E alimente a ilusão de
que o capítulo seguinte recuperará essa trajetória em outros termos, na tentativa de sua
explicação teórica e histórica)
65
.
1. 1942- 60s: entrada em cena
II Guerra Mundial. Guerra Civil Espanhola. PCF. Althusser, Maio de 68. Crise do
comunismo-marxismo.
*
Manuel Castells nasceu em 1942 na Espanha, na província de Albacete. Na infância
foi-se deslocando entre Madri, Cartagena, Valência e finalmente Barcelona, onde passou sua
adolescência, seguindo o percurso da carreira burocrática do pai. O pai e a mãe eram
servidores públicos do Ministério de Finanças espanhol. O pai lutou pelas forças franquistas
durante a guerra civil.
Entrou na resistência clandestina na Espanha em 1960, aos 18 anos. Fazia parte do
65 A maior parte dos dados e das lembranças auto-biográficas são do livro das entrevistas que Castells dá a
Martin Ince (Cfr. 2003). Para facilitar o acompanhamento da trajetória de Castells, fazemos a referência a
suas obras apontando o ano do livro na sua edição original, com exceção da trilogia A Era da Informação
para a qual utilizamos a seguinte convenção: para o Vol I, A Sociedade em Rede: SR; para o Vol II, O Poder
da Identidade: PI; para o Vol. III, O Fim do Milênio: FM.
66
Frente Obrero de Catalunia (FOC). Ele lembrará depois que naquela época odiava os
comunistas por autoritários, e por pensar que tinham traído a revolução na Guerra Civil
Espanhola. Também que se considerava um 'anarquista, embora usando teoria marxista'. Ele
lia o que considera agora leituras bastante típicas da esquerda dos '60: história, política, teoria
marxista e anarquista, assuntos do Terceiro Mundo, economia política.
Em 1962 vai pra França, e em 1964, desiludido com a política na Espanha, Castells
decidiu que o seu futuro seria uma carreira acadêmica. Passa por duas instituições ícones da
época na briga entre “os antigos e os modernos”: a Sorbonne e Nanterre
66
. Na Sorbonne,
bastião dos antigos, forma-se em Direito Público e Economia Política. Então, segundo ele
mesmo, procurou “quem estava fazendo sociologia da classe trabalhadora” e foi encaminhado
a Alain Touraine, a “estrela crescente da sociologia francesa”. Entrou sob a orientação dele no
doutorado na Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales. Segundo Castells, Touraine lhe
ensinou tudo o que ele sabe. Descreve-o como extremamente cultivado, grande pesquisador
empírico, teórico sofisticado. Considera-o até hoje seu “pai intelectual”.
Touraine já em meados dos 60, contrario à onda estruturalista, dava importância ao
ator social e definia o objeto da sociologia em termos de 'ação social' e 'movimentos sociais'.
Analisava as mutações para a sociedade pós-industrial, que implicava uma “transição de um
paradigma de ordem essencialmente econômica para um paradigma sociocultural que
integra o sentido que os atores sociais conferem às suas práticas”. A resistência essencial à
dominação tecnocrática se exerceria no plano cultural, “dique de resistência contra o avanço
das diversas formas de desapropriação” (Dosse, 1994: 398-9).
Touraine propôs para ele como tese uma análise estatística dos padrões de localização
industrial na área metropolitana de Paris. Era uma pesquisa sob demanda e precisavam de
dinheiro. Ele recusou-se e Touraine ameaçou-o com largar a sua orientação. Ele acabou
aceitando e, na tese, descobriu “o padrão específico da localização das empresas de alta
tecnologia, então entendendo pela primeira vez a lógica dessas companhias”
67
.
66 O estruturalismo teve uma dupla função de contestação e contracultura, na luta dos 'modernos contra os
antigos', institucionalmente, contra a velha Sorbonne (Dosse, 1993: 221).
67 Castells ironizará décadas depois aquela recusa inicial: “Parecia-me uma conspiração deixar-me atrair [a
67
Castells vira professor assistente no campus de Nanterre da Universidade de Paris
68
.
Compartilha o departamento com Touraine, Lefebvre, Michel Crozier, Fernando Henrique
Cardoso. Orgulha-se de lembrar que entre seus primeiros estudantes estava Daniel Cohn-
Bendit, lider estudantil da revolta de maio de 68. Trabalhava na sociologia urbana e ensinava
metodologia. Reconhece que seu ponto forte era a metodologia e a pesquisa empírica.
Enquanto isso, discutia teoria marxista no seminário de Althusser na Ecole Normale
Superieure. Nesse período entrou “completamente no movimento semi-anarquista de maio de
68”.
plot to lure me into] pela tecnocracia capitalista e por esse campo burguês da sociologia urbana” (Castells,
2003: 12-3). Na verdade, inscreve-se no contexto mais amplo do momento, analisado por Dosse (1993: 425),
de “revolta antiacadêmica” como único meio de conseguir um lugar na instituição.
68 Em 1964 quebra-se o domínio monolítico da Sorbonne. Cria-se a Universidade de Nanterre, e um bom
número de inovadores ocupa uma posição universitária às portas de Paris (Dosse, 1993: 233).
68
2. 1970s: cocktail de interesses e crise estrutural
Crise do petróleo, crise de sobreprodução. Vietnã. Movimentos de Libertação.
Salvador Allende no Chile. Percepção generalizada de uma crise profunda
69
. Acirramento da
luta de classes.
* *
Em 1968, Castells é expulso da França. Touraine consegue via Unesco que ele desse
aulas de metodologia no Chile. Em 1970 pode voltar, também pela intermediação de
Touraine, e entra como professor associado na Ecole de Hautes Etudes em Sciences Sociales
em Paris.
De 1972 é seu primeiro livro importante: A Questão Urbana. Foi um sucesso
instantâneo na França e no mundo, e junto a Lefebvre, “tornou-se a pedra fundacional da
chamada New School of Urban Sociology”. Na década seguinte “ocupou o mundo acadêmico
dos estudos urbanos”. Esse livro exprimia, nas palavras de Castells, uma tentativa de juntar a
teoria marxista, a sociologia urbana, um touch tourainiano sobre movimentos sociais e sua
enfase pessoal na pesquisa empírica
70
.
Entre 1970 e 1973 vai e volta entre a França e o Chile. Dessa época são os textos
69 A percepção da crise aparece claramente na ficção científica. Só para mencionar um exemplo, vejamos o
livro Frankenstein Unbound, do ano 1973, de Brian W. Aldiss. Apesar de ser considerada uma das obras
mais fracas do autor, vale como percepção da crise. Afirma-se: “Los hombres de ciencia occidentales
concuerdan en general, aunque no enteramente pues hasta en el dominio de la ciencia las opiniones rara
vez son unánimes-, en que la humanidad enfrenta hoy la crisis más grave de su existencia, una crisis que no
tendrá salida, pues es la crisis de la no-salida” (Aldiss, 1976: 15). A afirmação está ambientada no ano 2020,
mas a ficção científica trabalha literariamente com a ficcionalização de tendências sociais em curso.
Portanto, suas imagens valem como percepção estetizada do presente. “La brocha gorda con que bosqueja el
futuro el autor de esas ficciones [sirve, segun Isaac Asimov] en anticipar las cosas en otro orden que el
tecnológico, en el social. Debería servir para que los estadistas previeran consecuencias sociales de las
innovaciones” (Ciapuscio, 1999: 81).
70 Os anos 60 são “um período particularmente fecundo, intenso, em que homens e conceitos se transformam
em objetos num contínuo vaivém, transgredindo fronteiras, escapando aos postos aduaneiros. São esses os
sinais anunciadores de um estruturalismo mais ideológico do que científico. Essa plasticidade pôde servir
para a conquista de posições de poder, para abalar a velha Sorbonne” (Dosse, 1993: 270). Há um “contexto
mais amplo de revolta antiacadêmica [...] único meio de conseguir um lugar na instituição” (idem: 425).
69
“Chile: Movimiento de pobladores y lucha de clases” (1972) e A Teoria Marxista das Classes
Sociais e a Luta de Classes na América Latina/Comentário ao Texto de Nicos Poulantzas"
(1973). É pela via de Poulantzas, segundo Castells (2003: 8-20) “o mais sofisticado e mais
político do grupo althusseriano de filósofos em Paris”, que ele reconhece ter entrado
“seriamente na teoria marxista” nos anos 70. Neste segundo texto, Castells (1973: 43) se opõe
ao paradigma do marxismo-leninismo, noção que julga anti-marxista por excelência. Trata-
se para ele de examinar a própria fecundidade de seus conceitos, as consequências teóricas e
políticas derivadas de suas proposições com relação à análise de situações concretas, mas sem
considerar o debate teórico como um meio diretamente operativo para a investigação
empírica. Deve-se “ter constantemente presente um referente histórico concreto”.
O marxismo tal como ele o encontra, está em tensão, descompassado da prática social.
Percebe por exemplo que a fluidez e ambiguidade dos 'movimentos de pobladores' no Chile
“desafiam ao mesmo tempo a análise marxista e as estratégias políticas tradicionais” (1972:
1). Assim,“sob o ponto de vista estrutural, só há duas classes”, mas “basta uma olhada à
prática social” para verificar que há agentes que não se encontram em nenhum dos dois
grupos e são cada vez mais importantes; há diferenciação social interna muito forte; há setores
não explicáveis em termos do modo de produção dominante (1973: 48). Ele tenta harmonizar
essa separação entre teoria e realidade, tenta uma mediação entre o estrutural e o aparente.
Assim, afirma que o movimento de 'pobladores', que conteria mais pessoas que os
sindicalizados urbano e rurais, é “definido por uma contradição estruturalmente secundária [e]
aparece no entanto ocupando o centro da cena política em algumas conjunturas”. E ao mesmo
tempo, formula a proposição segundo a qual “se a política determina o conteúdo de um
processo, as características estruturais e conjunturais dele fixam os limites e designam os
mecanismos da política possível” (1972: 80).
A questão a enfrentar é para Castells a solução das antinomias, isto é “superar o
dilema ideológico entre estrutura e processo, entre mecanicismo e voluntarismo” (1973: 44).
Na determinação do conteúdo de classe das práticas, exprimia-se como o dilema entre os
estruturalistas, “incapazes de explicar a transformação qualitativa”, e os subjetivistas, “sem
uma trama de determinação de seus critérios 'político-ideológicos' mutantes em cada
conjuntura” (idem: 53). Na procura da solução dessa antinomia entre processo e estrutura,
entre subjetivo e objetivo, a mediação era “os aparatos organizativos, e em particular, sua
70
expressão concentrada, os aparatos políticos”. A teoria do partido, que Castells julgava como
sendo a “grande ausência das teses de Poulantzas”, era para o autor “a única forma de
estabelecer essa ponte entre a determinação estrutural e a capacidade de mudança que
distingue uma teoria científica da sociedade” (idem: 54-7), “a única forma de conciliar as duas
afirmações fundamentais do materialismo histórico: a determinação em última instância pela
estrutura econômica e a luta de classes como motor da história” (idem: 61-2).
Há na obra inicial de Castells uma clara consciência do limite do empirismo, e da
necessidade de uma teoria que permita totalizar os fatos observados
71
. A contribuição do
trabalho teórico é a de entender “os mecanismos não visíveis e as contradições subjacentes”
para “ajudar a esclarecer o que aparece opaco na prática diária”, para que a prática não seja
“cega” (1977: 15-7). Dessa maneira, opunha-se às ilusões abstratas. A teoria devia orientar o
'lirismo revolucionário', para evitar o destino das 'esperanças frustradas'. A teoria devia
ajudar a concretizar a esperança. Para isso era preciso a 'correta compreensão dos problemas e
das tarefas em cada frente de luta e em cada sociedade concreta' (idem: 39). A necessidade de
uma teoria que superasse o dogmatismo justificava-se pela percepção de que formulações
discutíveis “custaram vidas humanas” (1978: 16).
Entre 1977 e 1979 fica entre Paris e Madri. Franco morre, Espanha convertia-se numa
democracia, seus amigos socialistas estavam no poder e movimentos urbanos liam seus textos.
Ele “contribuía ao desenvolvimento dos movimentos sociais urbanos”, enquanto os
pesquisava. Expressão desse momento é o livro de 1977, Cidade, democracia e socialismo. A
experiência das associações de vizinhos de Madri. Nesse livro analisava o capital monopolista
e suas tendências à crise “expressadas numa crise urbana cada vez mais profunda” (1977: 19).
E esta crise urbana era avaliada como “consequência necessária da lógica do desenvolvimento
capitalista” (idem: 20). A procura do subjacente implicava ligar as observações concretas com
fenômenos mais globais, em particular com as contradições estruturais do capitalismo,
com suas expressões de nível urbano e com o processo político geral” (idem: 15-7).
71 Já em 1972 afirma que os dados são “carentes de sentido em si mesmos e que exigem, para sua análise, a sua
inserção no processo da luta de classes” (Castells, 1972: 21).
71
Nesse percurso, em 1978 Castells publica A teoria marxista das crises econômicas e as
transformações do capitalismo. É importante destacar a fonte do interesse manifestado por
Castells no assunto. Por um lado, um aspecto objetivo: a intuição, no decorrer de 1974, de um
'corte histórico', donde a decisão de se deslocar para os EUA, onde é professor visitante entre
1975 e 1977, e se concentrar na análise dos 'mecanismos econômicos e políticos que estão na
base da crise'. Por outro lado, um aspecto subjetivo. Para Castells, a crise “revelou também
uma crise do pensamento sobre as crises. De um lado, há descrições empíricas e
pragmáticas incapazes de definir os fatores históricos que causam a crise e, portanto, de
prever suas tendências e suas consequências. De outro lado, há a repetição dogmática de
velhas fórmulas inadaptadas à realidade” (1978: 13-4). Nessa formulação está contido o
projeto de Castells daquele momento e também os alvos aos quais atirava: empirismo e
pragmatismo por um lado, e dogmatismo pelo outro.
Uma fonte de empirismo exprimia-se na informação estatística da pesquisa econômica.
Nenhum estudo sobre os Estados Unidos, Grã-Bretanha ou França podia oferecer para Castells
a resposta que estava buscando, pois tratava-se de estudar “em termos de valor, o processo de
acumulação em escala mundial” (idem: 64). Ali residia a falta de adequação entre a
informação estatística existente e os conceitos marxistas, pois a teoria marxista “trata com
valores, enquanto que as estatísticas apresentam a evolução dos preços e/ou das quantidades
físicas”. Assim, adverte que a pesquisa econômica “reproduz certas condições sociais que
tendem a mostrar a suposta superioridade das teorias neoclássica ou keynesiana” (idem: 45-6).
Para Castells, o específico do pensamento marxista das crises, comparado por exemplo com o
keynesianismo, é 'a relação entre o descenso da taxa de lucro e a dinâmica de acumulação
capitalista' pelo aumento da composição orgânica do capital “definida em termos de valor”
(idem: 27).
Mas, do outro lado, estava o dogmatismo. Castells julgava necessária a “eliminação
dos elementos naturalistas e mecanicistas incorporados à teoria” (idem: 66.)
72
. Castells se
opõe ao que ele julgava uma “interpretação pseudomarxista da história da humanidade,
72 Na orelha da edição em português, Ruth Cardoso apresenta-o como um “esforço de reflexão que procura
desvencilhar-se do academicismo para utilizar o pensamento marxista de modo criador”.
72
segundo a qual esta está sujeita a um determinismo tecnológico ou a uma evolução natural”;
apontava às formulações 'simples e mecanicistas' de alguns 'teóricos' da III Internacional dos
anos 30, segundo as quais as “tendências contrárias eram simples fatores de demora dentro do
necessário e inexorável processo de destruição catastrófica da economia capitalista”, o que
abonava a perspectiva de preparar um 'assalto revolucionário'. Para Castells, posição
dogmáticas comuns eram a 'redução da sociedade à expressão mais restrita do seu pólo
dominante, o capital' e a interpretação da tendência da queda da taxa de lucro no marco de
uma 'crença religiosa na inevitabilidade da derrubada geral e repentina do capitalismo'. Em
alguns casos, empirismo e dogmatismo eram um alvo só, pois segundo Castells o dogmatismo
tinha que ser complementado com 'interpretações ad hoc de situações concretas' na explicação
das crises, pragmatismo que provocava a desvalorização da teoria (idem: 17-20). Atribuía essa
leitura à maioria esmagadora dos economistas marxistas na França, desde Paul Boccara, um
dos ideólogos do PCF, e o grupo da revista Economie et Politique até o grupo pró-IV
Internacional de Critiques de l'Economie Politique. Assim, a posição de Castells inscreve-se
no quadro mais geral das polêmicas intelectuais dessa França dos anos 70. Castells se
contrapunha por um lado ao uso mecanicista e por outro ao menosprezo da teoria da tendência
decrescente da taxa de lucro, que ele encontrava muito especialmente nos Estados Unidos e na
Inglaterra. A proposta de Castells era considerar “a pertinência da teoria em si, abstraindo-se
as conotações provocadas pelo seu uso histórico” (idem: 32).
Castells vai construir, então, um argumento que se opõe à inevitabilidade da derrubada
e que pretende evitar a redução da sociedade ao pólo do capital. E ele encontra essa
possibilidade na própria teoria marxiana. Esta era “a única que une a teoria das crises a uma
explicação das causas da acumulação do capital” (idem: 66), e que tenta sintetizar o
movimento do capital e o processo de mudança social” (idem: 19).
Opondo-se à inexorabilidade da derrubada, Castells afirma que o processo de
acumulação é contraditório “não só porque tende à crise, como também porque,
simultaneamente, tende a impedi-la, provocando novas contradições que geram novas
formas de crise em um processo sem limites econômicos, socialmente perturbador e
politicamente limitado dentro de uma perspectiva histórica” (idem: 94-5).
73
É importante destacar que a não inexorabilidade do colapso vai junto com uma
percepção de Castells naqueles anos da possibilidade de se juntarem dinamismo do sistema
com graves consequências para a vida social. Assim: na resposta à primeira crise urbana em
Madri “o conjunto do processo tornou-se, assim, ao mesmo tempo, mais dinâmico e mais
contraditório. Mas nessa dinâmica vai-se acentuar, mais ainda, a predominância dos interesses
do capital monopolista” (1977: 53). O desenvolvimentismo da urbanização gera um centro
progressivamente adensado e saturado, dificuldades de transporte, poluição, formação de
cidades-dormitório, aumento dos deslocamentos citadinos, poder ilimitado das construtoras,
fraudes (idem: 53-6); “o caráter extremo dessa exploração do conjunto da sociedade através do
desenvolvimento urbano de feição monopolista conduz a uma série de contradições que
agravam extraordinariamente a crise urbana”, inadequação, colapso, falta, deterioração (idem:
57). Nos 70s em Madri a crise urbana não é a 'herança de um passado de miséria', mas o
resultado 'de um processo de crescimento urbano especulativo' (idem: 42). Encontramos aqui
uma percepção interessante da relação entre progresso e decadência. A crise e deterioração
das condições de vida é resultado do crescimento, dinâmica que ainda reforça a
predominância dos interesses dominantes.
Tal como para Marx, para Castells as necessidades sociais não são um dado biológico
fixo “mas se definem historicamente, aumentando e transformando-se, na medida em que se
desenvolvem as forças produtivas e a partir da correlação de forças entre as classes sociais”
(idem: 22). É importante destacar nessa formulação a inclusão da correlação de forças entre
as classes como determinação, junto às forças produtivas, na definição histórica das
necessidades sociais. Isso permite uma crítica das necessidades sociais produzidas sob o
modo de produção capitalista e que têm como base material o desenvolvimento das forças
produtivas: carros, televisão, estradas
73
.
Nessa crítica, aponta-se contra a mercadoria, ainda que sem uma apurada análise
73 Crítica de relações sociais que o capitalismo e o franquismo tinham tornado impessoais e agressivas
(Castells, 1977: 14). Da necessidade de dois carros para sair ao mundo, e tranca de segurança para que o
mundo não penetre (idem: 22). “O automobilista-rei transformou-se num sujeito nervoso que avança a 10
por hora em filas intermináveis”; “os imigrantes numa rotina invariável de casa-e-trabalho, tratando de
uniformizar as vidas através da televisão e de individualizar o tempo livre em migrações de automóveis
concebidos como unidades de concorrência hostil na selva das estradas saturadas de um domingo à tarde”
(idem: 45-6). A expansão do uso da publicidade, que influi nos valores e comportamento, é analisado
enquanto necessidade de ampliação de mercados como contra-tendência à queda da taxa de lucro (Castells,
1978: 106).
74
categorial. Só uma alusão à existência de uma oposição entre valor de uso e valor de troca,
como definindo ou obstruindo relações sociais: “uma cidade também é uma maneira de vida,
e, por conseguinte, uma rede de relações que está de antemão, excluída na concepção vigente
de moradia-mercadoria” (idem: 59). A crítica das necessidades sociais produzidas e do modo
de vida, vinculado ao lugar social da mercadoria e das relações impessoais, leva à percepção
de que isso só pode ser modificado por uma transformação radical que implica uma
'descapitalização da sociedade capitalista' (idem: 37). É assim que avalia os movimentos
urbanos e o movimento citadino em geral como movimentos inter-classistas com um
horizonte político e potencialmente anticapitalista, com uma perspectiva histórica de
superação das relações capitalistas (1977: 32-3)
74
. Nesse processo, “o valor de uso começa a
substituir o valor de troca como norma básica”. Há então nesse momento em Castells um
traço anticapitalista, menos por uma apurada compreensão e crítica das categorias de base do
capital e mais como recusa romântica do valor e defesa do valor de uso.
Mas, a despeito do anterior, e em resposta ao determinismo do marxismo vulgar, à
inexorabilidade da derrubada capitalista, Castells constrói uma teleologia politicista: o
fortalecimento do movimento operário e a deterioração do poder do capital sobre o trabalho
como tendência inexorável do desenvolvimento capitalista.
A crise dos anos setenta não é para Castells somente uma “inflexão do ciclo do
capital”, é uma “verdadeira crise estrutural (1978: 12). A especificidade de uma crise
estrutural reside para o autor em que o processo de acumulação não pode ser retomado
até que sejam eliminados ou contrabalançados os obstáculos. Geralmente esta solução
significa que se produzirá uma transformação básica nas relações entre as classes, entre as
frações do capital e entre o capital e as forças produtivas”. E para Castells, o principal
obstáculo estrutural que existe na produção e circulação capitalista é “a resistência dos
trabalhadores à exploração”. Ainda, as tendências do aumento da resistência do
trabalhador e de que “os expropriadores sejam expropriados”, são para Castells, “a
74 “Da capacidade do movimento citadino em exprimir o conjunto dos interesses do povo de Madri depende
que algum dia as árvores cubram os estacionamentos, os centros culturais desloquem os bancos, e o rumor
das conversas nos terraços dos cafés se sobreponha ao barulho dos motores. Para que se possa viver em
Madri (1977: 140). Transformando a cidade, o automóvel não seria obrigatório, e muitos serviços
domésticos seriam coletivos (idem: 185).
75
proposição decisiva da teoria marxista das crises e o elemento dominante da experiência
histórica a longo prazo e em escala mundial desde a origem do capitalismo” (idem: 78-80).
Em resposta à redução da sociedade à expressão mais restrita do seu pólo
dominante, o capital, ele contrapõe a dupla consideração dos processos de acumulação de
capital e a luta de classes. Mas o faz de uma maneira dual. Como se fossem processos
distinguíveis, propõe considerar a teoria da luta de classes e a do descenso da taxa de lucro
como 'complementares' posto que “a primeira explica a influência da sociedade sobre o
capital, enquanto que a segunda explica a influência do capital sobre a sociedade”. Postula
que uma teoria das crises econômicas deve estabelecer “a relação concreta entre o processo de
exploração (que define a luta de classes) e o processo de acumulação do capital, que define a
lógica do polo dominante em uma sociedade capitalista” (idem: 40-1). Afirma que “a
principal contradição de uma sociedade capitalista e, portanto, do processo de acumulação do
capital, é a contradição entre o capital e o trabalho” (idem: 72).
É possível afirmar que a avaliação das contradições do capitalismo avançado e da
correlação de forças do momento traduziu-se, no plano teórico, nessa formulação politicista.
O elemento central para o aumento da composição orgânica, segundo Castells, é a
predisposição do capitalista a economizar capital variável, devido fundamentalmente “ao
desenvolvimento do movimento operário, à importância da luta de classes e à deterioração do
poder do capital sobre o trabalho” (idem: 28). Na análise de Castells, o capital vê-se obrigado
a incrementar a produtividade do trabalho para ampliar a taxa de mais-valia relativa, o que
significa desenvolver as forças produtivas. Mas, se o raciocínio leva a perceber que os
aumentos da produtividade estão ligados à formação de setores monopolistas, Castells adverte
que isso “não significa que o capital monopolista estimule a produtividade”; a contradição
está em que “pode ser um obstáculo estrutural à mesma”. Insiste ainda que a causa que origina
os aumentos de produtividade é a oposição do trabalho à exploração capitalista e, portanto,
aquele será um 'processo de acumulação desigual, determinado basicamente pela luta de
classes' (idem: 80-1). Na base da 'proposição marxista sobre a tendência do capitalismo a
eliminar o trabalho vivo, provocando assim a sua própria destruição', Castells encontra a
“contradição fundamental num sistema que não pode substituir os trabalhadores por máquinas
76
e que, simultaneamente, tende a substituí-los como resposta a sua crescente pressão” (idem:
83).
Ele analisa “o desenvolvimento contraditório de dois eixos fundamentais do
capitalismo avançado: a tendência ao descenso da taxa de lucro, que origina estancamento, e o
conjunto das tendências contrárias, de sinal contrário, que provocam a inflação estrutural”
(idem: 96). A tendência contrária mais importante para superar a crise é a “intervenção
sistemática do Estado na economia”. A pesquisa e desenvolvimento científico é essencial
para o progresso tecnológico, e compreende a educação e formação da força de trabalho. Estes
gastos são decisivos para o crescimento da produtividade social do trabalho mas são
demasiado elevados para o capital” (idem: 109). Analisa a crise fiscal do Estado pelo limite de
arrecadação tributária (idem: 113).
Ora, enquanto análise de conjuntura, em 1977, Castells diagnosticava que estava
potencialmente em curso a superação de um impasse. Diagnosticava-se, até então, um 'duplo
beco sem saída na estratégia da esquerda': “de um lado, a corrente socialista se encaminhava
para a socialdemocracia, isto é, a 'gestão leal' das relações sociais capitalistas em troca de uma
melhoria das condições de vida das classes populares. Por outro lado, a corrente comunista
fechava-se no gueto ideológico”. Nas correntes esquerdistas, “a afirmação de princípios unia-
se à impotência política”. Mas, desde 1968 tinham mudado profundamente a correlação de
forças, a situação da luta de classes, e a estratégia e tática das forças socialistas. Agora
tratava-se de uma crise estrutural do capitalismo, não só econômica mas também ideológica e
política. O reformismo social democrata carecia de recursos para seus projetos integradores. A
“via democrática para o socialismo” consolidava-se como a nova estratégia. Era possível
para as forças socialistas apoiar-se nos elementos progressistas do Estado democrático no
capitalismo avançado. No entanto, advertia para o perigo de “um enfoque quase liberal do
Estado, como instituição neutra utilizável por umas e outras classes” e definia a “transição
para o socialismo através de um duplo movimento da socialização da produção e da
dissolução do Estado” (1977: 26-31)
75
.
Há aqui uma defesa das forças de esquerda em nome do desenvolvimento das
75 Apoia-se teoricamente para isso em Santiago Carrillo (Eurocomunismo y Estado), Lucien Seve, Fernando
Claudín, Göran Thernborn, Poulantzas.
77
forças produtivas, que o capitalismo monopolista aparentemente bloqueava.
Antecipando isto em termos teóricos, em 1973 Castells formulava uma definição das
classes “em termos da relação antagônica entre dois polos e sua vinculação indissolúvel à
evolução das forças produtivas” e chamava de 'classe ascendente' “aquela cujos interesses
específicos coincidem, na fase concreta do desenvolvimento histórico em que se situa, com os
interesses do resto da sociedade, isto é, com o desenvolvimento das forças produtivas,
globalmente e a longo prazo” (1973: 50).
Livros do período:
1972: “Chile: Movimiento de pobladores y lucha de clases”
1972: A Questão Urbana
1973:A Teoria Marxista das Classes Sociais e a Luta de Classes na América Latina/Comentário ao
Texto de Nicos Poulantzas”
1976: A crise econômica e a sociedade americana
1977: Cidade, democracia e socialismo. A experiência das associações de vizinhos de Madri
1978: A teoria marxista das crises econômicas e as transformações do capitalismo
78
3. 1980s: As cidades e os movimentos sociais como objetos limite
do marxismo e os germens do informacionalismo
Derrota das forças de esquerda. Fim do ciclo de ditaduras na América Latina.
Reconciliação com valores democráticos. Crise da dívida na periferia.
* * *
Nos anos 70 Castells sentiu uma atração crescente pelas universidades americanas. Ele
explicará depois: “Eu era mais 'americano' que 'francês' no meu estilo de pesquisa, sempre
interessado em empirical inquiry, inserindo depois um touch teórico francês, e uma
perspectiva política espanhola” (2003: 16).
Entre 1975 e 1977 tinha sido professor visitante nos Estados Unidos, mas em 1979,
torna-se professor de Berkeley onde se instala definitivamente.
Em 1983 publica o livro The City and the grassroots. A Cross-Cultural Theory of
Urban Social Movements
76
. Nele, ele afirma ter reunido 12 anos de trabalho sobre movimentos
sociais urbanos no mundo. Apresenta seu estudo dos movimentos sociais urbanos em San
Francisco, o movimento latino, e a sua descoberta da 'comunidade gay e sua capacidade de
transformar cidades, políticas e culturas'. Esse livro recebeu o C.Wright Mills Award. Ainda
em 2003 continua sendo para Castells seu melhor livro urbano e sua melhor peça de pesquisa
empírica.
1983 constitui um marco na virada de Castells em relação ao papel da teoria e ao
lugar do marxismo.
Castells já tinha feito em 1975, naAdvertência final” acrescentada a uma nova edição
de A Questão Urbana, uma autocrítica do formalismo de seus primeiros trabalhos.
Preocupado pelo processo de fetichização na recepção do livro que vinha cristalizando em
princípios teóricos o que eram balbucios, reconhecia limitações muito importantes e erros
76 Traduzido ao espanhol como La ciudad y las masas: Sociología de los movimientos sociales urbanos. Não
há tradução em português.
79
teóricos no livro, que podiam, só então, ser retificados pelos progressos da pesquisa urbana
marxista. A dificuldade mais grave do livro residia num salto demasiado rápido de uma
crítica teórica a um sistema teórico extremamente formalizado. “Particularmente, a construção
teórica em termos de sistema urbano, com elementos e subelementos não tem superado o fato
de ser uma grade de classificação, e não um instrumento de produção de conhecimentos'”.
Afirma que o livro tinha sido influenciado “por certa interpretação de Althusser (mais que
pelos trabalhos do próprio Althusser) tendente a construir um conjunto teórico codificado e
formalizado antes da pesquisa concreta, o que conduz necessariamente a uma justaposição de
formalismo e de empirismo, e dá num beco sem saída”. Mas isso não punha em questão a
teoria em si, mas o processo de trabalho teórico. Ainda defendia um “trabalho teórico que
produz conceitos e suas relações históricas no interior de um processo de descoberta das leis
de sociedades determinadas em seus modos específicos de existência”. E considerava que a
ruptura epistemológica entre a percepção quotidiana e os conceitos teóricos era mais
necessária que nunca na esfera urbana tão fortemente organizada pela ideologia (1975: 480-2).
Recusava a denuncia das análises do livro como sendo estruturalistas, posto que “lembram
sem cessar que as estruturas não existem senão nas práticas”, mas admitia que podiam levar a
desvios subjetivistas em relação aos movimentos sociais urbanos pois o código de
classificação para sua análise levava em conta só “as características internas do movimento e
seu impacto sobre a estrutura social” (idem: 496). Entre os avanços do campo intelectual
desde a redação do livro, situava as análises das políticas urbanas de Lojkine e a teoria geral
do espaço de Lefebvre. E, para o caso dos Estados Unidos, avaliava que trabalhos marxistas
exemplares sobre os problemas urbanos, tais como os de David Harvey, eram ainda uma
exceção mas começavam a “quebrar o jugo empirista” (idem: 510-7).
Cabe notar aqui que Althusser iniciara um processo de autocritica em 1967
77
, no
prefácio para a edição italiana de Lire le Capital, e depois em 1968 para uma nova edição em
francês. Critica uma 'indubitável tendência teoricista' no seu relacionamento com a filosofia.
Em 1974 aprofunda esse processo com a publicação do livro Éléments d'autocritique, onde já
77 Portanto, é uma autocrítica anterior às críticas de FHC em 1973 e à de Castells em 1975. Por outro lado, é
uma autocrítica insuficiente para Ranciere, outro dos autores de Ler O Capital que publica em 1974 uma
obra na qual se opõe a Althusser. Há nos anos 70 um “bombardeio concentrado que se desencadeia contra a
retomada dos althusserianos”. Por exemplo, em 1970 Mandel atribui a Althusser uma análise errônea das
intenções e conceitos de Marx; no mesmo ano, Lowy defende contra Althusser o humanismo de Marx
(Dosse, 1994: 212-7).
80
se distancia mais claramente do estruturalismo: afirma que seu flerte com a terminologia
estruturalista passou certamente da medida permitida. Diferencia o estruturalismo,
denunciado como formalista, do marxismo, “cujos conceitos, ainda que se definindo como
abstrações, visam elucidar a realidade social em seus lances mais concretos” (Dosse, 1994:
209-10). Ainda nessa época, Althusser era visto como uma mediação para a epistemologia
francesa como Bachelard e Canguilhem e inspirava essa “dimensão do desvio necessário em
relação ao objeto, essa necessidade de construí-lo de maneira rigorosa” (idem: 357).
Já em 1983, Castells rejeita as “descrições românticas com ideologia populista” nos
estudos urbanos. Destaca uma falha intelectual pela “separação entre a análise da crise e a
análise da mudança social”. Portanto, julga preciso integrar a “análise da estrutura e dos
processos, da crise e da mudança”. Mas, para isso, desconfia agora da “construção inútil de
teorias globais abstratas [abstract grand theories]”. Julga preciso “retificar o excesso do
formalismo teórico” que prejudicou as ciências sociais em geral e parte do seu próprio
trabalho anterior. Avalia que a “saudável reação contra o empiricismo de visão estreita” nesses
anos, deu no entanto em modelos teóricos “tão inúteis quanto sofisticados”, o marxismo
incluído. Por isso, propõe uma “aproximação muito mais paciente de ir juntando informação e
construindo teorias” (1983: xvii). Rejeita a construção de uma teoria formal, isto é que visa a
“abrangência trans-histórica e consistência lógica”. Propõe como prova crucial de uma teoria,
mais que sua coerência, sua adequação. Reconhece a contribuição de Gaston Bachelard ao
afirmar que “os conceitos mais úteis são aqueles flexíveis o suficiente para serem deformados
e retificados no processo de sua utilização como instrumentos de conhecimento”. Assim opõe
agora às teorias trans-históricas da sociedade a proposta de “histórias teorizadas dos
fenômenos sociais” (idem: xvi-xx).
Esse movimento de Castells é acompanhado por um abandono explícito da teoria
marxista que, para Castells, não da conta dos desafios do momento, a saber, pensar a cidade
e os movimentos sociais como agentes de transformação social.
Limites do marxismo são para Castells: o foco na acumulação do capital e na dominação do
Estado; o dogmatismo de muitos trabalhos que teria levado a “não prestar suficiente atenção
81
às regras metodológicas mais elementares da pesquisa empírica”. Recusa nesse sentido a
aproximação do que ele considera o autor mais representativo da escola marxista ortodoxa,
Jean Lojkine, na qual o Estado é simplesmente um aparelho que satisfaz os interesses
exclusivos da classe dominante, isto é, a maximização do lucro para o capital monopolista. E
recusa também a “pseudo-teoria inventada pelo Partido Comunista Francês” do capitalismo
monopolista de Estado e a prática de “construir teorias de acordo com a linha do partido”.
Destaca a dificuldade de fazer uso da teoria marxista como codificada pela Terceira
Internacional ou pelo Partido Comunista Frances para “compreender a cidade ou os
movimentos sociais urbanos, ou ainda mais simplesmente, para propor o conceito de
movimentos sociais”. Ainda, faz a ressalva de que isso não constitui uma mudança de rota,
pois ele sempre foi considerado pelos comunistas franceses “ideologicamente idealista e
politicamente um esquerdista independente” e ele sempre teria sido abertamente crítico da
“aproximação economicista ao urbanismo” (idem: 417, nota 50)
78
.
Castells registra o esforço de Lefebvre de reconstruir as contribuições principais dos
pais fundadores do marxismo na análise da cidade. Lefebvre teria constatado duas reduções
do pensamento marxista: uma primeira, pelos próprios Marx e Engels, pressionados pela
tarefa urgente de fornecer ferramentas teóricas ao movimento operário, e pela qual o foco teria
mudado para os locais do trabalho e da produção; e uma segunda redução ex-post do
pensamento marxista no século XX.
No entanto, apesar dessas distinções, e ao contrário de Lefebvre, Castells acaba
abrindo mão da tradição marxista num todo. É que, no seu entendimento, no final das contas
“essa redução afetou qualquer esforço por renovar o pensamento marxista nos problemas
urbanos”; ainda que a reintrodução dos fatores econômicos sob as condições do capitalismo
na análise da urbanização tenha sido um 'útil lembrete', “o marxismo num todo foi incapaz de
enfrentar completamente o desafio' ao acabar 'reduzindo a cidade e o espaço à lógica do
capital'”. Daí a seguinte frase contundente: “nossa matriz intelectual, a tradição Marxista, foi
de pouca ajuda desde o momento em que ingressamos no terreno incerto dos movimentos
78 No entanto, a Advertência de 1975” de A Questão Urbana ainda está em parte no quadro que ele em 1983
critica, pois faz uso analítico das “tendências estruturais fundamentais do capitalismo monopolista de
Estado” (1975: 495) e reconhece em Lojkine um dos autores importantes na pesquisa marxista urbana em
desenvolvimento.
82
sociais urbanos” (1983: 297-8). 20 anos depois ele explicará a menor influencia desse livro
em relação a A Questão Urbana exatamente pelo seu afastamento do marxismo
79
.
Para Castells, então, os movimentos sociais urbanos e os problemas urbanos se
apresentam como objetos limite para o que ele entende como marxismo
80
. O que está por trás
desse limite continua sendo o dilema entre estrutura e processo. Castells reconhece que na
sua pesquisa da década anterior tinha mantido a tensão entre os polos da estrutura de classe e
da luta de classe “sem ter conseguido integrar completamente ambos processos”. De fato,
considera Crise du Logement et Mouvements Sociaux Urbains: Enquête sur la Región
Parisienne (escrito em 1974 e publicado em 1978) como seu único grande fiasco em pesquisa
empírica. Tratava-se justamente de um trabalho no qual tentou reunir 'a lógica do capital, a
ação do Estado, e a formação de movimentos sociais urbanos, de uma maneira empírica
sistemática e altamente formalizada'.
Se antes a teoria marxista constituía para Castells senão a garantia pelo menos a
possibilidade de sucesso na integração da estrutura e do processo, agora são as razões do
fracasso que se encontram 'arraigadas no núcleo da teoria marxista da mudança social'.
Por um lado, um exagerado formalismo metodológico, “herança da anormal fertilização
cruzada entre nosso paradigma althusseriano inicial e os procedimentos padrão da sociologia
empírica”. Na ruptura dos últimos vínculos com sua obsessão pelo formalismo, reconhece a
importância da leitura de Theory of Collective Behavior, de Neil Smelser, que contribuiu para
evitar uma aproximação com o funcionalismo na procura de uma perspectiva intelectual
renovada que julgava ausente no círculo althusseriano (1983: 300).
Mas, o problema teórico fundamental reside, para Castells em que “o marxismo tem
sido, ao mesmo tempo, a teoria do capital e do desenvolvimento da história através do
desenvolvimento das forças produtivas, e também a teoria da luta de classes entre atores
79 The City and the Grassroots “não foi tão influente quanto A Questão Urbana porque eu claramente me
afastei [departed] do marxismo, pelo qual meus seguidores ideológicos ficaram desiludidos, ainda quando
fiz explícito que eu não era anti-marxista, só não podia continuar usando o marxismo como ferramenta para
explicar o que eu tinha observado e pesquisado” (Castells, 2003: 17).
80 Dosse (1993: 299-301) se refere ao distanciamento do paradigma estrutural por aqueles que optaram pelo
campo de investigação africano, sugerindo a hipótese da África como um “continente limite do
estruturalismo”. Georges Balandier diante de um campo em plena mutação afirma que não podia aderir a
uma ideia segundo a qual nessas sociedades o mito dá forma a tudo e a história não estaria presente. Ao
contrário de uma sociedade imobilizada no tempo descobre o movimento, a fecundidade do caos, o caráter
indissociável da diacronia e da sincronia.
83
sociais lutando pela apropriação do produto e decidindo a organização da sociedade”. Como
em 1973, o autor atenta para o fato de que só a teoria do partido pode estabelecer uma ponte
entre estruturas e práticas na construção marxista. Mas, agora com a percepção crítica que
nessa ponte “o desenvolvimento das forças produtivas e a luta de classes se juntam na ação de
uma classe explorada transformada num partido que fala tanto pelos trabalhadores quanto pelo
desenvolvimento ilimitado das forças produtivas”. O que era potencialidade agora se torna
limite: esse lugar exclusivo do partido agora revelava que por definição o conceito de
movimento social enquanto agente de transformação social é estritamente impensável na
teoria marxista”. Castells avalia que há uma ambiguidade no marxismo: por um lado, a ideia
de que a emancipação dos trabalhadores será realizada pelos próprios trabalhadores, e por
outro o seu “darwinismo social e sua confiança no movimento natural da história em direção
ao progresso guiado pelos trilhos do desenvolvimento das forças produtivas, a bordo de um
trem acelerado pelo capital cuja locomotiva estava a ponto de ser dirigida pelo proletariado”.
Por um lado, os movimentos como prova viva da luta de classes e da resistência à exploração
capitalista; por outro lado, a incapacidade deles produzirem a história pela sua
instrumentalização na “implementação do estágio seguinte de um desenvolvimento histórico
programado”. O problema é que “nunca aceitaram que a classe trabalhadora pudesse decidir
seu próprio destino em termos diferentes aos marcados pelo desenvolvimento histórico das
forças produtivas”. Os movimentos sociais foram degradados e a classe trabalhadora “foi (as
vezes relutantemente) institucionalizada”. Mas, como, a despeito da teoria marxista que estava
errada, os movimentos sociais persistem, “a tradição intelectual no estudo da transformação
social deve ser remodelada” (idem: 297-9).
Se A Questão Urbana exprimia para Castells a tentativa de juntar a teoria marxista, a
sociologia urbana, um touch tourainiano sobre movimentos sociais e sua enfase pessoal na
pesquisa empírica, nessa remodelação do estudo da transformação social o autor mantém o
touch tourainiano e uma forte carga de pesquisa empírica. O marxismo se torna uma “ruína
gloriosa”
81
.
81 Refere-se a sua leitura da história, das cidades e da sociedade à qual chegou “através das ruínas gloriosas da
tradição marxista, os métodos da sociologia americana, e um diálogo contínuo com urbanistas e projetistas,
assim como da vontade pela história que Touraine nos imprimiu permanentemente na nossa alma” (Castells,
1983: 301).
84
A ruptura de Castells nesse momento com a crença na dialética progressiva do
desenvolvimento das forças produtivas, crença que ele atribui ao marxismo num todo, está
vinculada em termos mais amplos com a ruptura com qualquer tipo de teleologia na história
e com a recusa da dimensão normativa da teoria
82
.
Em 2003 Castells lembra que, naquele momento, depois de uma década de estudos
sobre movimentos sociais urbanos que se exprimia no The City and the Grassroots, e
procurando um caminho para sua pesquisa, percebeu que “Silicon Valley, na porta ao lado,
estava explodindo com inventividade [ingenuity] tecnológica, inovação empresarial, e
mudança cultural”, e decidiu trabalhar na “relação entre tecnologia, economia e sociedade”.
Reconhece o livro The Informational City, de 1989 como seu teste inicial, onde chamou a
atenção para a “tecnologia da informação e suas consequências espaciais” (2003: 8-20).
No entanto, já no mesmo The City and the Grasroots, Castells começa a tocar em
assuntos que o acompanharão posteriormente e que fazem e farão parte da sua remodelação
do estudo da transformação social. Um deles é a transformação do tempo e o espaço pela
tecnologia, assunto que fazia parte dos debates de época. Castells analisa o espaço e a
distância dissolvidos pela tecnologia de transporte, a mobilidade do capital e a permeabilidade
das fronteiras. A elite corporativa que vira “deslocalizada” [placeless]. E as pessoas
desarraigadas pela “tendência destrutiva do crescimento econômico desigual e lançada à
urbanização incontrolada como consequência da nova industrialização periférica e da
integração econômica no sistema mundial”, que buscam a “construção e preservação de
comunidades locais definidas espacialmente” (1983: 210).
Analisa as formas espaciais como exprimindo e realizando os interesses das classes
dominantes, assim como marcadas pela resistência dos explorados e oprimidos. Castells
82 A questão crucial aqui é rejeitar qualquer sugestão no sentido que há uma direção predeterminada para a
transformação urbana. A história não tem direção, só tem vida e morte. É um composto de drama, vitórias,
derrotas, amor e dor, alegria e tristeza, criação e destruição [...] Se portanto concordamos em que a
ideologia obsoleta do progresso humano natural deve ser abandonada, devemos proceder de maneira
semelhante com a mudança social urbana”. “Nossa teoria não é normativa, mas histórica” (Castells, 1983:
304).
85
percebe que as crises estruturais tem uma dupla resposta dos interesses dominantes: política,
com integração e repressão; e tecnológica, com novos sistemas de gestão e produção. Analisa
o principal impacto espacial da nova tecnologia como sendo “a transformação de lugares
espaciais em fluxos e canais o que equivale a produção e consumo sem uma forma
localizada” (idem: 312).
Aparecem aqui pela primeira vez na obra de Castells conceitos que serão fundamentais
no seu percurso posterior. Começa a falar da dualidade lugares x fluxos, ainda que não o
construa com as noções de “espaço de fluxos” e “espaço de lugares”, que aparecerão dessa
maneira só em 1989.
Também das “relações de produção, experiência e poder” que parecem determinar
todos os processos humanos (idem: 306). E insere aqui, pela primeira vez, a distinção crucial,
que toma de Touraine
83
, entre modo de produção e modo de desenvolvimento. As relações
de classe, que organizam a produção, definiriam o modo de produção. Modos de produção
diferenciados são o capitalismo e o estatismo. A necessidade da determinação do modo de
desenvolvimento justifica-se para Castells “pois parece ser outro nível de relações sociais. Se
refere à forma particular em que o trabalho, a matéria e a energia são combinadas para obter o
produto”. Se o modo de produção define a maneira “como a mais-valia é apropriada”, o modo
de desenvolvimento permite compreender “como a mais-valia é incrementada”. A partir daí,
define os modos de desenvolvimento industrial e informacional, cada um com características
específicas em relação a: fontes de produtividade (incremento em um ou mais elementos de
produção, trabalho, matéria, e energia; o conhecimento aplicado à organização desses
elementos de produção), uma nova categoria social dominante (managers; tecnocratas);
princípios de desempenho (incremento da produção; desenvolvimento tecnológico) (idem:
307).
Não há aqui uma autonomização do processo tecnológico que gere ilusões com as
possibilidades tecnológicas em si. O modo de desenvolvimento informacional é colocado na
sua dependência em relação ao modo de produção, ao capital. Assim, o modo de
desenvolvimento informacional parece ser a materialização da forma capitalista da cidade: “a
cidade como valor de uso contradiz a forma capitalista da cidade como valor de troca. A
83 Castells (1983: 418, nota 92) remete a Touraine, La Voix et le Regard.
86
cidade como uma rede de comunicação se opõe ao fluxo de informação unilateral
característico do modo de desenvolvimento informacional”
84
.
Mas começa também a se preocupar com a “confrontação potencialmente decisiva”
entre a economia mundial desenraizada e a experiência das comunidades locais. O monopólio
faz com que as comunidades não se apropriem das potencialidades dos “sistemas de
comunicação interativos e a disseminação informatizada de conhecimento”. Adverte uma
potencial “brecha dramática na legitimidade da nossa sociedade informacional” (idem: 315).
O desenvolvimento informacional aparece também, nesse sentido, como uma potencial
“base tecnológica para a satisfação dos objetivos culturais dos novos atores históricos que
estão orientados ao valor de uso e à autogestão”, ou ainda para uma “sociedade sem classes”
que possa vir a existir algum dia. Mas, a realização da sociedade sem classes derivaria de
“uma luta histórica, um possível (embora improvável) resultado de uma batalha terrível na
qual as corporações multinacionais e os Estados-império estarão prontos a fazer qualquer
coisa para parar o processo” (idem: 308).
Castells (2003: 8) lembrará que começava a querer evitar, naquele momento, uma
abordagem etnocêntrica” que julgava “característica da teoria do pós-industrialismo de
Daniel Bell, a teoria principal do assunto naquele momento”.
Isso já se manifestava em 1983, na sua articulação entre o o modo de produção
capitalista e os modos de desenvolvimento na percepção de que “as matérias primas da
mudança social (e assim da mudança urbana) são onipresentes, enquanto os processos sociais
que reúnem essas matérias primas são histórica e também nacional e culturalmente
específicos” (1983: 324).
Pretendia, então, começar a medir e analisar “a transformação tecno-social”
simultaneamente em diferentes regiões do planeta. A chegada dos seus amigos socialistas ao
governo da Espanha, em 1983, permitiu-lhe assessorar e pesquisar desde a universidade na
Espanha, o que se materializou na publicação em 1986 de uma pesquisa patrocinada e
prefaciada por Felipe González
85
. Também começou a se interessar pelo Pacifico Asiático,
84 Cabe notar que abrir mão do marxismo não impede Castells de manter uma distinção, pouco rigorosa, entre
valor de uso e valor de troca.
85 O Frente Obrero de Catalunia, do qual ele fazia parte antes de sair da Espanha, acabou sendo um dos
componentes do Partido Socialista Catalão, e este fez parte do Partido Socialista Espanhol, que governou
Espanha entre 1983-1996, com a presidência de Felipe González. Castells diz apoiar o Partido Socialista
87
“berço do novo desenvolvimento”, e manteve contato com a América Latina, particularmente
com o México e o Brasil.
Livros do período:
1983: The City and the Grassroots: A Cross-Cultural Theory of Urban Social Movements.
1989: The Informational City: Information Technology, Economic Restructuring and the Urban-
Regional Process.
Catalão nas eleições (Cfr. Castells, 2003: 8).
88
4. 1990s: A Era da Informação
Colapsa a União Soviética. Em 1991 Robert Kurz publica O colapso da modernização.
Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Como já antecipa no
título, o livro é uma explicação dos fatos na contracorrente. Num mesmo movimento
problematiza o caráter socialista da experiência soviética, e percebe por trás do seu fracasso o
fracasso do seu pretenso vencedor. Para Kurz (1992: 30), a crise global que ameaça a
sociedade produtora de mercadorias indica a existência de traços fundamentais em comum
entre os sistemas em conflito. Uma consideração superficial identificava o caráter não
capitalista do socialismo real na sua estrutura de comando estatista pela qual as funções da
produção de mercadorias são submetidas a decisões prévias políticas. Mas Kurz percebe que o
conflito básico da modernidade entre “o conteúdo social e a forma não social, inconsciente,
do próprio trabalho” leva a um “movimento histórico ondulatório em que domina ora o
estatismo, ora o monetarismo” (idem: 43-5). Nesse sentido, a especificidade do socialismo
real reside na fixação do estatismo e o “congelamento da ação recíproca com o elemento
monetarista”, elemento que se manifesta no dinheiro vinculado ao mecanismo funcional da
concorrência (idem: 70). Um ponto central do argumento é que esse congelamento não foi
uma simples escolha de um modelo. Foi o nível crescente de desenvolvimento e de
concorrência no sistema produtor de mercadorias que obrigou no “desenvolvimento
recuperador” das regiões pouco desenvolvidas a apresentar o estatismo dos inícios da época
moderna de uma forma cada vez mais pura, consequente e rigorosa (idem: 39)
86
. Em outros
termos, “o paradoxo lógico de um sistema produtor de mercadorias sem concorrência teve sua
origem no paradoxo histórico de que, nos inícios do século XX, uma nova economia nacional
independente somente podia ser desenvolvida pela aplicação absoluta do elemento estatista”.
A concorrência tinha que ser abolida por causa da concorrência; para se poder subsistir na
concorrência externa a concorrência interna tinha que permanecer eliminada por comandos
estatais” (idem: 83).
Das contradições e potenciais de crise imanentes ao “dilema estrutural dos mercados
86 É possível perceber que “todas as características decisivas e formas básicas supostamente não capitalistas do
socialismo estatal soviético (e de todos os regimes semelhantes), do século XX, já foram pré-formuladas
pelo próprio capitalismo e por seus ideólogos progressistas à beira da industrialização” (idem: 42).
89
planejados”, em outros termos, da simultânea eliminação da concorrência e manutenção do
valor, Kurz deriva uma série de fenômenos catastróficos da experiência soviética que levaram
à crise e ao colapso. Esse dilema levou não à supressão mas a uma potenciação das tendências
da produção de mercadorias contra o valor de uso e contra as necessidades; a uma
“competição em preguiça”, a uma “capacidade absurda de desperdiço”; a uma “desatenção
nos investimentos de reposição”; a projetos disfuncionais e megalomaníacos muitas vezes
inacabados. Isso tudo foi levando não só ao colapso das finanças mas também ao da produção
material, cada vez mais 'mórbida' (idem: 91-117). O resultado lógico é uma 'extensa economia
de escassez' que se manifesta numa 'concorrência negativa' entre empresas e no 'subconsumo
progressivo das massas'. Foi eliminada “apenas a função da concorrência de aumentar a força
produtiva, mas não a rivalidade abstrata entre as instâncias sociais e os indivíduos” (idem: 119
e 125).
Com a inevitabilidade da mudança para uma 'reprodução intensiva', depois da Segunda
Guerra Mundial, sentiram-se em maior escala as deficiências do sistema. Com o surto de
desenvolvimento das forças produtivas, de dinamização social mundial do capitalismo de pós-
guerra, “os sistemas petrificados de economia de guerra da produção de mercadorias real-
socialista não conseguiram mais acompanhar o Ocidente”; seu dispêndio de força de trabalho
estava ficando abaixo do padrão global de produtividade (idem: 85-6). O que se impõe no
mercado mundial é 'o padrão da produtividade mais alta', e o socialismo real não conseguiu
acompanhar os “surtos ocidentais de racionalização e produtividade, nos anos 70 e 80,
acelerados pela microeletrônica”. A latente crise interna agravou-se pela pressão externa do
mercado mundial. Desde a segunda metade dos anos 80, a 'depravação social' manifestou-se
na superfície no 'colapso do abastecimento dos consumidores' (idem: 130-6).
“Quanto mais a moderna sociedade do trabalho abstrato se aproxima de seus limites
econômicos e ecológicos, tanto mais rápida e desesperadamente tem que se realizar o
revezamento, tanto mais curtas ficam as ondas de estatismo e monetarismo”. É essa
“flexibilidade saltitante nas formas sociais de reação” que prolonga a vida do capital. E é essa
capacidade que foi eliminada no socialismo real e que provoca a sua fragilidade: A crise das
sociedades do dispêndio de força de trabalho abstrato recai de forma inclemente em primeiro
lugar e mais sensivelmente sobre as partes mais imóveis, congeladas no estatismo, do sistema
produtor de mercadorias” (idem: 64-5).
90
O que Kurz já mostrava nesse livro de 1991 e que continuará desenvolvendo em livros
e artigos era a inviabilidade da sociedade produtora de mercadorias num todo, como vimos no
capítulo anterior.
Em 1999, Beinstein publica La larga crisis de la economia global (1999)
87
, livro no
qual analisa a crise de sobreprodução do capital desde os anos 70s, o parasitismo crescente, a
tentativa de fuga para frente do sistema. Tenta compreender a conjunção de crise e mutação
tecnológica. Mostra a concreção da 'globalização real' por baixo da propaganda da
globalização virtual: o aumento da marginalidade, da miséria, da polarização; o levantamento
zapatista, os refugiados; as redes mafiosas, as crises urbanas, sanitárias, alimentárias, ...
(idem: 37).
Beinstein aponta que a tendência de desaceleração é mostrada por dados
macroeconômicos e relatórios de organismos internacionais. No entanto, ela só é denunciada
pelos que serão chamados de 'catastrofistas'. Contrário a essa denúncia, vai se construindo o
que Beinstein chama de 'cronologia oficial da crise' (idem: 15-22). Ela situaria a origem da
crise em julho de 1997 com a desvalorização da moeda na Tailândia. Antes disso, os tigres
asiáticos eram vistos como herdeiros do milagre japonês. Mercado e mão dura eram a fórmula
do milagre. As duras condições eram sacrifícios necessários para o desenvolvimento genuíno
e competitivo. Chama a atenção de Beinstein a 'insensibilidade do FMI' em 1996, diante das
turbulências periféricas cada vez mais evidentes e dos sinais de esquentamento financeiro e da
desaceleração do dinamismo exportador dos tigres. Para o FMI a situação econômica e
financeira mundial continuava em geral 'muito alentadora'. Com o reconhecimento da crise,
nos anos seguintes passou-se quase sem transição da euforia a uma “curiosa mistura de
surpresa e temor, que logo se tornou preocupação e até pânico”.
Nessa cronologia oficial, Beinstein identifica diferentes fases na tentativa de
explicação da crise. A crise foi primeiramente atribuída a 'fatores monetários' e foi culpada a
especulação irresponsável. Jargões como 'volatilidade financeira' pintavam uma realidade
confusa, quase mágica. Em geral tratava-se de descrever sem explicar a fundo a dinâmica do
capitalismo globalizado. Uma segunda etapa estendeu a crítica a Estados irresponsáveis,
corruptos, a tecnocratas oportunistas. Limitava-se ainda a uns poucos aspectos monetários e
87 Traduzido ao português com o título Capitalismo Senil. A grande crise da economia global.
91
institucionais. Mas depois começaram a aparecer fatores econômicos estruturais, estratégias
de desenvolvimento equivocadas. Começou a se falar em fragilidade de modelos. No caso da
análise da debilidade do modelo coreano, tratava-se de uma 'má administração' da abertura, de
uma 'errônea inserção' no mercado livre internacional. A globalização considerada como
beneficiosa e/ou inevitável ficava fora da crítica.
Mas, a despeito da crise asiática “aparecia o super-gigante norte-americano
transbordando prosperidade, mostrando ser o 'modelo' universal imbatível” (idem: 27). Em
1999 o Dow Jones superava a barreira dos 10 mil pontos em meio aos bombardeios da OTAN
contra a Iugoslávia, “a euforia especulativa coincidia com a exaltação belicista”. Para
Beinstein, o ano 1999 marcava um momento de ruptura político-militar, o “prolongamento de
um fenômeno entrópico complexo com centro em formas parasitárias (financeiras, militares,
mafiosas, etc.) que vão devorando aparatos produtivos, instituições políticas, espaços sociais”,
resultado do período de decadência de um processo secular. O ano de 1999 marcava o fim de
três ilusões: os milagres do renascimento econômico latino-americano; a transição ao
capitalismo de Europa Oriental; a emergência dos ex-tigres asiáticos. Com a crise brasileira
em 1999, completava-se “o círculo da crise perifé rica”, nenhuma região subdesenvolvida
podia ser considerada próspera. E o fim do mito do capitalismo asiático significava, para
Beinstein, a perda de uma legitimação decisiva para “a sempre renascente (e frustrada)
utopia da superação capitalista do subdesenvolvimento” (idem: 32-6).
* * * *
Depois da queda do muro, entre 1989 e 1993 Castells (Cfr. 2003: 18) dirigiu uma série
de pesquisas sobre a transição russa, em cooperação com colegas russos, em Moscou e na
Sibéria. Publica La Nueva Revolución Rusa, em 1992, e The Collapse of Soviet Communism:
a View from the Information Society, em 1995, junto com sua mulher russa, Emma Kiselyova.
Essas formulações, retomadas no terceiro volume de A Era da Informação, já anunciam a
explicação informacional do colapso soviético.
Em 1993 Castells decide focar na redação do “livro que tinha tido na cabeça durante 10
92
anos”, projeto virou a trilogia A Era da Informação, de 1997. Teve um impacto muito
importante, com publicações em muitos idiomas, várias reimpressões, e uma edição revisada
do ano 2000.
Apresenta seu projeto de trilogia como uma revisão e integração das ideias e análises
que desenvolveu durante 25 anos de estudos sobre movimentos sociais e processos políticos
ocorridos em várias regiões do mundo, numa “teoria mais abrangente que trata da Era da
Informação” (PI: 15)
88
. Com o sentido temporal de uma nova era, ele pretende explicar um
período da história social contemporânea. É exatamente essa pretensão que é reconhecida por
muitos como a contribuição de sua obra recente. Castells seria um dos autores que não se
furtaram ao desafio de descifrar as transformações em curso. O autor sintetiza um panorama
geral das transformações analisadas:
“Um novo mundo está tomando forma neste fim de milênio. Originou-se mais ou menos no fim
dos anos 60 e meados da década de 70 na coincidência histórica de três processos independentes:
revolução da tecnologia da informação; crise econômica do capitalismo e do estatismo e a
consequente reestruturação de ambos; e apogeu de movimentos sociais e culturais, tais como
libertarismo, direitos humanos, feminismo e ambientalismo. A interação entre esses processo e as
reações por eles desencadeadas fizeram surgir uma nova estrutura social dominante, a
sociedade em rede; uma nova economia, a economia informacional/global; e uma nova
cultura, a cultura da virtualidade real(FM: 412).A revolução da tecnologia, a reestruturação
da economia e a crítica da cultura convergiram para uma redefinição histórica das relações de
produção, poder e experiência em que se baseia a sociedade”, transformações que “conduzem a
uma modificação também substancial das formas sociais de espaço e tempo e ao aparecimento de
uma nova cultura” (FM: 416).
De caráter multidimensional, é uma análise que pretende integrar questões econômicas,
tecnológicas, culturais, sociais. Assim, a trilogia A Era da Informação compõe-se de três
volumes bastante diferenciados.
No volume I, A Sociedade em Rede, o primeiro capítulo trata sobre a revolução das
tecnologias da informação. Depois, capítulo a capítulo vai mostrando os efeitos dessa
revolução tecnológica em diversos campos: economia, organização empresarial, trabalho e
emprego, cultura, tempo e espaço.
No volume II, O Poder da Identidade, analisa identidade e significado, movimentos
sociais, patriarcalismo, o Estado-nação, a democracia, na Era da Informação.
88 Castells afirmará ter pensado esses livros como um legado antes de morrer, pois lutava naquele momento
contra um câncer que depois conseguiu superar. Isso explica, em parte, o caráter enciclopédico da trilogia
(Castells, 2003: 19).
93
No volume III, O Fim do Milênio, analisa a crise do estatismo industrial e o colapso da
União Soviética, a exclusão social no surgimento do Quarto Mundo, o crime global, o
desenvolvimento e crise na região do Pacifico Asiático, a unificação da Europa.
Tratar-se-ia de uma teoria da Era da Informação “de cunho sociológico, intercultural e
fundada em bases empíricas” (FM: 16). Ele pretende 'disciplinar' seu discurso teórico por
meio da 'análise empírica', isto é “dificultar, se não inviabilizar, a afirmação de algo que a
ação coletiva submetida à observação rejeitaria na prática” (PI: 19). Contudo, a sua análise
empírica muitas vezes não disciplina mas contradiz a sua elaboração teórica. Daí que chegue a
ver a necessidade da teoria como uma digressão inevitável
89
. No prólogo ele 'resolve' muitas
das questões teóricas e de método. Apesar da sua própria autocrítica anterior de formalismo e
a recusa de grandes teorias abstratas, essa dimensão teórica da Sociedade em Rede fica
descolada da empírica. Na verdade, tentará fazer entrar a empiria na camisa-de-forças da
teoria da Sociedade em Rede.
A sociedade em rede realmente existente que aparece sobretudo no volume III da
trilogia, e em alguns livros posteriores, é horrorosa: ele percebe o funcionamento desigual da
rede, numa lógica simultânea de conexão/desconexão, por exemplo na Rússia atual
90
, na
África
91
, na lógica das megacidades como nova forma social
92
; a deterioração econômica,
social e física que resulta dessa desconexão e os terríveis desdobramentos dessa desigualdade,
por exemplo, na migração forçada
93
; o potencial engolimento cultural, invasão cultural e
89 Apesar de todos meus esforços para ancorar a nova lógica espacial no registro empírico, receio que seja
inevitável, no final do capítulo, apresentar ao leitor alguns fundamentos de uma teoria social de espaço”
(SR: 468) “inevitável digressão pelas pistas incertas da teoria do espaço” (idem: 499).
90 No que Castells caracteriza como 'desenvolvimento predatório do novo capitalismo russo' (FM: 223), “em
sua vasta maioria, a sociedade russa está excluída da Era da Informação neste fim de milênio. Contudo, seu
capitalismo infestado pelo crime encontra-se totalmente imerso nos fluxos globais de riqueza e poder aos
quais vem tendo acesso ao perverter as esperanças da democracia russa” (idem: 227).
91 Essa economias “estão conectadas no que elas podem fornecer à rede global (baixo valor-agregado) e
desconectadas em todo o resto. As redes são tanto conexão quanto desconexão, e essa é a realidade atual da
África” (2003: 125).
92 As megacidades “articulam a economia global, ligam as redes informacionais e concentram o poder
mundial. Mas também são depositárias de todos esses segmentos da população que lutam para sobreviver”,
“concentram o melhor e o pior”, “internamente desconectadas das populações locais responsáveis por
funções desnecessárias ou pela ruptura social [...] É esta característica distinta de estarem física e
socialmente conectadas com o globo e desconectadas do local que torna as megacidades uma nova forma
urbana” (SR: 492-5).
93 SR: 502. Também: “a mistura resultante da miséria existente em todo o mundo, desterro de populações
inteiras de suas origens e dinamismo das maiores economias do planeta leva milhões de pessoas à
emigração” (FM: 213). Na China, êxodo rural maciço provocado pela modernização e privatização da
94
concentração das possibilidades de imaginar e construir o futuro do mundo
94
; a falta de
privacidade
95
; a barganha generalizada
96
, a concorrência acirrada, que enfraquece a
estabilidade do emprego e das relações industriais
97
; as condições de trabalho do mundo
flexível
98
; o crime global como caso de empresa em rede
99
; a novidade da guerra em rede
100
; a
sociedade em rede enquanto estrutura social dominante, à qual se opõem alternativas
construídas pelos movimentos sociais
101
; a incontrolabilidade dessa estrutura social, pela
interdependência que provocaram suas inovações, que conduzem a novos tipos de crise
102
; o
peso objetivo da estrutura que limita a ação, pelas característica que define a Sociedade em
Rede: o poder dos fluxos
103
; os processos de modernização conservadora que geram exclusão
agricultura” (FM: 367).
94 “Finlândia, como Japão, está obcecada com o futuro. Eu acho que é a cultura da sobrevivência, a cultura de
nações e pessoas que experimentaram a possibilidade real de serem engolidas por outras culturas e nações, e
reagiram ou sobre-reagiram, como o imperialismo japonês”. Ao contrário, na Califórnia “a noção é que o
futuro está sendo construído na Califórnia” (2003: 46).
95 “desaparecimento da privacidade através de um mundo em que vivemos conectados à rede [...] O fato de
estar em uma rede global significa que não existe privacidade [...] A batalha pelo criptografado é, neste
momento, a batalha pela privacidade” (2000: 282-4).
96 Mas uma comunidade pode também “tornar-se um grupo de interesse, e aderir à lógica da barganha
generalizada, predominante na sociedade em rede” (PI: 420).
97 A África do Sul deve “evitar ser excluída da acirrada concorrência existente na economia global, uma vez
promovida a abertura de sua economia” (FM: 153). Diante da concorrência global, enfraquecem-se o
sistema de emprego estável e as relações industriais estáveis (FM: 281).
98 Vidas miseráveis da maioria dos engenheiros de Silicon Valley com um alto índice de isolamento,
depressão, abuso de drogas e álcool e uma alta taxa de suicídio”, e 65 horas por semana como tempo médio
de trabalho. E o “maior individualismo e atitudes mais egoístas em Silicon Valley que no resto dos EUA
(2003: 37). Se a internet socializa, parece que ao mesmo tempo isola e inferniza a quem produz as suas
condições de possibilidade.
99 Cfr. SR: 503; FM: 204-5, 217, 232-3; e 2003: 93.
100 “está havendo um processo de globalização de uma nova forma de guerra, a guerra em rede [netwar], na
terminologia dos especialistas da Rand Corporation” (2003: 99).
101 A cultura verde, na forma proposta por um movimento ambientalista multifacetado, é o antídoto à cultura
da virtualidade real que caracteriza os processos dominantes de nossas sociedades. Assim, temos a ciência
da vida contra a vida dominada pela ciência; o controle local sobre o espaço contra um espaço de fluxos
incontrolável; a realização do tempo glacial contra a destruição do conceito de tempo e a escravidão ao
tempo cronológico; a cultura verde contra a virtualidade real. São esses os principais desafios do movimento
ambientalista às estruturas dominantes da sociedade em rede” (PI: 160).
102 Estamos numa “era de instabilidade econômica estrutural [...] A invalidação do conceito de tempo e a
manipulação do tempo por mercados de capitais globais gerenciados eletronicamente são um componente da
fonte de novas formas de devastadoras crises econômicas que adentram o século XXI” (SR: 592) “Os
mercados financeiros globais são interdependentes, e as turbulências em qualquer nó dessas redes
financeiras difundem-se para outros mercados” (FM: 278). “Não há maneira de controlar os mercados
financeiros globais, e sendo que os mercados financeiros globais condicionam as políticas monetárias e as
taxas de juros [interest rates], temos perdido o controle da política econômica nacional. Sempre é possível
intervir, mas dentro dos parâmetros ditados pelos movimentos de fluxos financeiros globais” (2003: 34).
103 “O poder dos fluxos é mais importante que os fluxos do poder. A presença na rede ou a ausência dela e a
dinâmica de cada rede em relação às outras são fontes cruciais de dominação e transformação de nossa
sociedade: uma sociedade que, portanto, podemos apropriadamente chamar de sociedade em rede,
caracterizada pela primazia da morfologia social sobre a ação social” (SR: 565).
95
em massa
104
.
Mas, enquanto Beinstein mostrava a concreção da “globalização real” por baixo da
propaganda da globalização virtual, a teoria da Sociedade em Rede tem o papel de manter a
globalização virtual como promessa eterna para os globalizados reais. Uma narrativa
semelhante ao estereotipo dos filmes de Hollywood em que o herói precisa dos obstáculos
para “nos salvar” ao fim, permite admitir a contradição, e realizar logo a seguir verdadeiros
“saltos mortais” até as potencialidades virtuosas e universalizantes das transformações em
curso.
A tradução teórica da perda de peso das estruturas
A des-radicalização traduz-se numa perda progressiva na análise do peso da
objetividade das estruturas. O percurso dos conceitos de modo de “desenvolvimento
informacional” e de “espaço de fluxos
105
mostram esse evolução.
Em 1983 tanto a implícita noção de “espaço de fluxoscomo a explícita de “modo de
desenvolvimento informacional” tinham ainda uma certa carga crítica. Ao analisá-los como
um processo desencadeado da resposta à crise estrutural por parte das classes dominantes, e
enxergando os limites para essas classes do processo de deslocalização da produção e do
consumo, permitia ver a hierarquização e especialização do espaço como necessidade lógica
104 “a oposição dos zapatistas à nova ordem global tem duas faces: eles lutam contra as consequências
excludentes da modernização econômica, e também opõem-se à ideia de inevitabilidade de uma nova ordem
geopolítica sob a qual o capitalismo torna-se universalmente aceito” (PI: 102). “Excluídos dos atuais
processos de modernização da América Latina, os camponeses indígenas (cerca de 10% da população do
país) repentinamente 'passaram a existir'” (PI: 108). “o desemprego em massa dos jovens, aliado à retração
do Estado do bem-estar social, tornaram-se questões mais graves do que a revolução cultural para os
eleitores verdes 'de tons políticos indefinidos'” (PI: 153). “Diante das políticas de ajuste econômico e
integração à economia global, [o compadre Palenque, na Bolívia] expôs o sofrimento diário de trabalhadores
desempregados e dos miseráveis vivendo na região metropolitana das cidades bem como os abusos a eles
impostos sob o pretexto da racionalidade econômica”, programa para “auxiliar a recolocação de operários da
indústria desempregados em decorrência da reestruturação econômica e das privatizações” (PI: 389). Um
dos problemas na China no fim do milênio é “como seguir rumo à economia de mercado e, ao mesmo
tempo, evitar o desemprego em massa e o desmantelamento da rede de segurança” (FM: 369).
105 Castells considera esse conceito central na sua obra por ser a “expressão mais direta da transformação
tecnológica da nossa existência” e, ao mesmo tempo, o mais difícil de compreender, por ser contra-intuitivo
(Castells, 2003: 56).
96
do sistema. Expressão dessa hierarquização era a concentração espacial da produção e
armazenamento de conhecimentos e informação (1983: 313). A persistência de certa carga
crítica estava vinculada com a impossibilidade de universalização do sucesso nos padrões do
sistema: “O modo de produção capitalista e os modos de desenvolvimento industrial e
informacional estão diferenciados territorialmente e integrados no nível mundial de uma
maneira assimétrica” (idem: 310)
106
. Assim, a urbanização em assentamentos ilegais em países
em desenvolvimento é gerada “pelo desenvolvimento desigual e a nova divisão internacional
do trabalho na economia mundial [que] obriga a milhões e milhões de pessoas a viver em
condições físicas e sociais que estão atingindo o ponto de desastre ecológico” (idem: 176). O
diagnóstico da assimetria estrutural implicava a impossibilidade de todos ganharem no jogo
107
.
Em termos teóricos, exprimia-se como uma crítica das suposições metafísicas do paradigma
pluralista e da consideração do processo político como um jogo aberto sem limites
estruturais
108
.
O próprio Castells (2003: 58) reconhece uma trajetória desse conceito na sua obra.
Segundo o autor, seu “erro teórico foi assimilar a prática do espaço de fluxos com as elites
globais e suas atividades instrumentais, opondo isso ao espaço de lugares onde a maioria das
pessoas constroem sentido e vivem suas vidas”. No entanto, ele percebe que “enquanto no
início dos anos 90 o espaço de fluxos era principalmente o espaço das atividades dominantes,
a finais dos anos 90 o espaço de fluxos se tornou tão disputado [contested] quanto o espaço de
lugares”. O uso da Internet na “revolta argentina contra a globalização” no início de 2002, é
106 Trata-se da “reprodução institucionalizada de uma sociedade dominada por corporações capitalistas com a
ideologia da concorrência sem fim […] uma concorrência começa entre os diferentes grupos e, obviamente,
é mais aguda quando os grupos estão necessitados” (Castells, 1983: 171).
107 Na concorrência capitalista “ganham os melhores, enquanto que o resto vai à falência ou é absorvido. O
processo de acumulação de capital é também um processo de concentração e centralização do capital. Sob o
capitalismo monopolista, a concorrência também é uma lei estrutural básica do sistema. O que varia é a
forma da concorrência. Basicamente, esta se dá através da apropriação da tecnologia e da informação [...]
luta de gigantes [...] estruturalmente, é impensável um capital social unificado [...] A concorrência é a
capacidade para melhorar a posição de cada um em relação aos demais [...] criar condições mais favoráveis
para os investimentos do capital [...] exige a dedicação de uma parte crescente do valor produzido à criação
de uma situação vantajosa em relação aos concorrentes” (Castells, 1979: 85-6).
108 “Nós mesmos temos desenvolvido em nosso trabalho anterior uma crítica das suposições metafísicas do
paradigma pluralista (especialmente: o indivíduo racional orientado ao lucro [rational profit-orientated
individual] como base da organização social num todo), assim como a falácia histórica de considerar o
processo político como um jogo aberto onde os atores podem jogar, e ganhar ou perder, sem considerar
(exceto de uma maneira muito remota) a conexão das regras do jogo com as regras estruturais e com as
instituições da sociedade” [faz referência à Questão Urbana, capítulo 11; e a “Vers une Théorie Sociologique
de la Planification Urbaine' em Sociologie du Travail, 4] de 1969] (Castells, 1983: 293).
97
para Castells um exemplo disso. Ele deduz disso que como ”o espaço de fluxos está
materialmente baseado nas novas tecnologias de comunicação”, “pessoas de todos os tipos,
querendo fazer todo tipo de coisas, podem ocupar esse espaço de fluxos e usá-lo para seus
próprios propósitos”. Numa palestra de 1999 que depois virou o artigo “Grassrooting the
space of flows” ele teria “corrigido” a análise do assunto.
Aquele erro teórico de 1989 mantinha ainda uma análise mais crítica do sistema como
um todo. A 'correção', na verdade suaviza a crítica da assimetria estrutural do sistema e
enfatiza a necessidade e bondade da sua universalização.
Podemos ver esse conceito aparecer na Era da informação. Ali define o espaço de
fluxos como “a organização material das práticas sociais de tempo compartilhado que
funcionam por meio de fluxos (SR: 501). Assim, “as pessoas ainda vivem nos lugares” e “a
função e o poder em nossas sociedade estão organizados no espaço de fluxos”, donde uma
esquizofrenia estrutural entre duas lógicas espaciais que ameaça romper os canais de
comunicação da sociedade” (SR: 518). Ainda, isso tem desdobramentos no tempo. Segundo
Castells, o “tempo intemporal é apenas a forma dominante emergente do tempo social na
sociedade em rede” (SR: 527), mas não é exclusivo. Para Castells, o espaço modela o tempo
em nossa sociedade: “O tempo intemporal pertence ao espaço de fluxos, ao passo que a
disciplina tempo, o tempo biológico e a sequência socialmente determinada caracterizam os
lugares”. Assim, “se podem ouvir os lamentos de criaturas” acorrentadas ao tempo. A
flexibilidade da jornada de trabalho, a produção em rede e o autogerenciamento do tempo ao
norte da Itália ou no Vale do Silício têm muito pouco significado para os milhões de
trabalhadores das linhas de montagem cronometradas, na China e no Sudeste asiático” (SR:
556-9). Essa 'esquizofrenia estrutural' entre as lógicas espaciais se repõe na análise de Castells
numa polarização entre capital e trabalho que “tendem cada vez mais a existir em diferentes
espaços e tempos” que “vivem lado a lado sem se relacionarem, à medida que a existência do
capital global depende cada vez menos do trabalho especifico e cada vez mais do trabalho
genérico acumulado, operado por um pequeno grupo de cérebros que habita os palácios
virtuais das redes globais [...] as relações sociais de produção foram desligadas de sua
existência real” (SR: 571).
98
Essa análise de uma 'esquizofrenia estrutural' não permite ver a contradição em curso
que implica esse processo de capital e trabalho 'existirem lado a lado'. A produção em rede do
centro do sistema tem significado sim para os trabalhadores da montagem, pois, como o
próprio Castells reconhece, a estrutura ocupacional bipolar não poderia estar no mesmo
espaço. Na nova lógica industrial caracterizada pela capacidade de separar o processo
produtivo em diferentes localizações, Castells encontra uma estrutura bipolar em torno de dois
grupos: uma força de trabalho altamente qualificada com base científica e tecnológica, por um
lado; e uma massa de trabalhadores não-qualificados dedicados à montagem de rotina e às
operações auxiliares, por outro. E aponta que “devido à singularidade da força de trabalho
necessária para cada estágio e às diferentes características sociais e ambientais próprias das
condições de vida de segmentos profundamente distintos dessa força de trabalho, recomenda-
se especificidade geográfica para cada fase do processo produtivo”. “A localização dessa mão-
de-obra na mesma área que os cientistas e engenheiros não é economicamente viável nem
socialmente adequada no contexto social geral” (SR: 476-7). Se a lógica é de divisão espacial
internacional do trabalho numa estrutura ocupacional bipolar, é impossível a generalização
universal da virtuosidade do sistema
109
. A necessidade sistêmica de um momento que
desmente essa expansão virtuosa e universal é arranhada no nível das aparências com a
constatação de que a co-existência geográfica dos dois polos da estrutura ocupacional “não é
economicamente viável nem socialmente adequada no contexto social geral”. Fluxos e
lugares, capital e trabalho, não são duas camadas separadas sem diálogo. Elas tem pontes que
uma análise dialética deve saber enxergar. Esquecendo esse outro necessário, Castells supõe a
possibilidade real e universal desse tempo intemporal determinado pelo espaço de fluxos e de
um capital que passa ao lado do trabalho.
Do diagnóstico da esquizofrenia estrutural, se segue a proposta de que para evitar a
separação entre universos paralelos, devem construir-se pontes culturais, políticas e físicas
entre essas duas formas de espaço” (SR: 518). A legitimação da Sociedade em Rede vem a
cumprir esse papel de ponte.
Paulo Arantes (2004: 39-40) critica em Castells, por um lado, um dualismo
109 Algunas posturas del paradigma de la modernización vuelven a aparecer cuando se tiende a visualizar la
coexistencia de tiempos y espacios diversos, sin ver las profundas articulaciones que los 'envuelven' y
permiten reproducir y ampliar las asimetrías globales” (Falero, 2006: 272).
99
funcionalista, e por outro uma 'hesitação' em face da dualização da sociedade, uma
'desconstrução' da hipótese da sociedade polarizada
110
. Como compreender ambas críticas
como sendo parte do mesmo equívoco?
111
O dualismo funcionalista e a hesitação em face da
dualização são resultado de uma falsa representação do processo de dualização real
112
. O
dualismo funcionalista acaba desarticulando na análise a estruturação da dualidade real e leva
a propor saídas ilusórias para a sua superação. O que aparece como ameaça irresolúvel no
diagnóstico de fratura se torna, num passe de mágica, prescrição integradora. A apologia se
arremata com o dinamismo da estrutura em rede, que torna sempre mutáveis as fronteiras do
processo de exclusão social. Para Castells (FM: 98), “a exclusão social é um processo, não
uma condição. Desse modo, seus limites mantêm-se sempre móveis, dependendo do grau de
escolaridade, características demográficas, preconceitos sociais, práticas empresariais e
políticas governamentais”. Perde-se a dimensão estrutural da exclusão. Os que estão excluídos
podem deixar de está-lo. Em ultima instância, qualquer um pode ganhar a qualquer momento.
Esse raciocínio repete-se na questão dos “nós”, elemento chave no funcionamento das
redes. Para Castells, o fato de uma estrutura ser flexível e descentralizada em seu
funcionamento não implica que não haja nós. Ao contrário, “uma rede é baseada em nós e
suas interconexões”. Isso implica o reconhecimento de um padrão desigual, pois se trata de
um processo de “concentração e descentralização ao mesmo tempo”. Mas, “a questão chave é
que esses nós podem se reconfigurar a si mesmos de acordo a novas tarefas e objetivos, e que
podem crescer ou diminuir em importância dependendo do conhecimento e da informação que
eles ganham ou perdem” (2003: 24-5). Assim, embora a sociedade em rede é feita de conexão
e desconexão ao mesmo tempo, “isso não impede que quem queira se conectar segundo seus
110 John Friedmann, um dos formuladores pioneiros do paradigma das cidades mundiais, registrou a “curva
apologética descrita pelo teórico/consultor-fluxo Manuel Castells”: a partir da obra coletiva sobre a
aparente dualização de Nova York [de 1991], nosso autor teria inaugurado uma espé cie de 'desconstrução'
(sic) da hipótese da sociedade polarizada, atribuindo à clivagem ocupacional, de gênero, raça e etnicidade,
a principal fonte da subordinação dos subalternos, celebrando-lhes emfim a 'diferença'”. Arantes faz
referência ao texto de John Friedmann, “Where we stand: a decade of world city research” em Knox e Taylor
(orgs.) World Cities in a World-System (Arantes, 2004: 42-3).
111 Lucien Goldmann fez do fragmento 684 das Obras Completas de Pascal um princípio metodológico para
seu trabalho de interpretação: “para entender o sentido de um autor é preciso conciliar todas as passagens
contraditórias [...] Todo autor tem sentido, ao qual todas as passagens contrárias se coadunam, ou não tem
sentido algum” (Lowy, 1979: 59).
112 Tudo se passa, em suma, como se um processo de dualização real engendrasse uma falsa representação de
uma ordem social dual consolidada: assim, num registro, percepção dramática de uma sociedade cada vez
mais estilhaçada; noutro, a visão dual-funcionalista de uma economia avançando em marcha forçada bem à
frente de uma sociedade de retardatários (Arantes, 2004: 53).
100
próprios critérios, também possa fazê-lo” (2007: 21).
A cidade global também é concebida enquanto “processo”. As “panacéias
antidualistas” como a do “patriotismo da cidade”, constituem para Arantes um “exorcismo da
dualização”
113
. Para Castells, a hierarquia está “subordinada à geometria variável do dinheiro e
dos fluxos da informação. Afinal, quem poderia prever no início da década de 1980 que
Taipei, Madri ou Buenos Aires poderiam emergir como importantes centros financeiros e de
negócios internacionais?”. Portanto, “sob a perspectiva da lógica espacial do novo sistema, o
que importa é a versatilidade de suas redes” (SR: 475-6). Também: “a direção e a arquitetura
dessas redes estão sujeitas às constantes mudanças dos movimentos de cooperação e
concorrência entre empresas e locais” (SR: 483).
A versatilidade da base tecnológica e financeira, eufemismo de incontrolabilidade,
acaba hipostasiando a versatilidade das redes do mundo global. Já que não há hierarquias
garantidas, não perca a esperança de chegar no topo de uma hora para outra.
Nesse sentido, as cidades são um ator que vai se tornando estratégico na proposta de
Castells. As cidades e regiões participam ativamente de negociações diretas com empresas
multinacionais, transformando-se nos agentes mais importantes das políticas de
desenvolvimento econômico” (PI: 318). As cidades tornaram-se atores decisivos para o
estabelecimento de estratégias de desenvolvimento econômico, negociando essa interações
com empresas internacionalizadas” (FM: 404)
114
.
Arantes (2004: 44) adverte que a ameaça dualizada pode muito bem lastrear
113 A “intervenção estratégica na gestão da cidade - no caso, uma gestão de tipo empresarial, destinada a
substituir a imagem problema de uma cidade dualizada pela imagem competitiva de uma cidade reunificada
em torno dos negócios da máquina urbana de crescimento” marca o momento em que Castells “se converte
em expert-consultor” (Arantes, 2004: 45). Arantes remete a Jordi Borda e Manuel Castells, Local y Global.
La gestion de las ciudades en la era de la información, 1997. Um capítulo desse livro foi publicado em
Novos Estudos Cebrap, n.45, 1996, As cidades como atores políticos”. Para uma análise crítica desse
Castells consultor, Cfr. Lima Junior, Pedro de Novais. Uma estratégia chamada 'planejamento estratégico':
deslocamentos espaciais e atribuições de sentido na teoria do planejamento urbano. Rio de Janeiro: UFRJ,
2003. Tese de doutorado. Cfr. também Otília Arantes, Carlos Vainer e Erminia Maricato, A Cidade do
Pensamento Único, 2000.
114 Castells remete a seu livro, de 1997, Local e Global, analisado por Arantes (Cfr. 2004) e por Pedro de
Novais Lima Junior (Cfr. 2003), como mostra da passagem de Castells a gerenciador global. É interessante
notar que na convocatória do “Forum Social Urbano”, que aconteceu nos dias 22 a 26 de março de 2010 no
Rio de Janeiro, os movimentos organizadores denunciaram os “discursos sobre cidades globais com os quais
muitos governos justificam investimentos bilionários em grandes eventos de marketing urbano” e
propuseram debater a questão dos 'Megaeventos e a Globalização das Cidades'. Disponível em:
http://forumsocialurbano.wordpress.com/convocatoria/
101
providências pró-sistemáticas
115
podendo derivar no fortalecimento de “providências de
gestão que nem sempre se distingue de um Estado de sítio”.
Castells (mais humanista) propõe a inclusão informacional dos excluídos. Arantes
destaca que “as políticas de 'inserção' na França têm a mesma idade ideológica dos primeiros
tempos de consagração da iniciativa empresarial enquanto fonte perene de inovação e
riqueza”. A “ideia edificante” de inserção surge ao concentrar o foco da fratura unicamente na
exclusão. A perspectiva da emancipação vira perspectiva de integração ao perceber que o
núcleo dos incluídos representa o pacote “moderno” da sociedade que funciona muito bem e
de costas para a massa sobrante de inadaptados. “O que resta de antagonismo numa sociedade
de atores individuais a um tempo fraturada, e por assim dizer, interacionista, é uma luta por
reconhecimento”. A retórica da exclusão, do discurso da fratura social, apaga, por trás da
“imagem do país repartido entre incluídos e excluídos a expressão muito evidente de uma
política de produção sistemática de desigualdades” (Arantes, 2004: 51-3). Para Arantes, a
“febre ética de hoje é um pobre sucedâneo do empenho político bloqueado” (idem: 290)
116
.
No caso do Brasil, são “veteranos da teoria crítica brasileira” que atacaram as ideias
dualistas nos 60, que reinventam o mito do Brasil em duas metades, uma errada e uma certa
(idem: 35). E é o mesmo movimento de Castells:
“Castells se alinhava com os adversários da teoria que identificava na massa marginal produzida
pela modernização em curso na América Latina um exército industrial de reserva de tal modo
excessivo que já se tornara, a rigor, inintegrável, constituindo-se num imenso reservatório de
anomia e apatia política: por mais que pudessem ameaçar a ordem estabelecida, eram
economicamente irrelevantes. Pelo contrário, como tantos outros, era dos que sustentavam a
funcionalidade da 'margem', para além, é claro, do mero rebaixamento do custo da força de
trabalho. Mais especificamente, também era da opinião ainda no final dos anos 1980 que a
dualização que importava era a distinção entre os setores formal e informal da economia” (Arantes,
2004: 41-2).
Em 1969, José Nun (2001: 87), discutindo exatamente com posteriores “veteranos da
teoria crítica brasileira” propunha chamar 'massa marginal' a “essa parte a-funcional ou
115 Estamos tratando do que José Nun (2001: 285) chamou “mecanismos de a-funcionalização dos excedentes”;
a “necessidade de neutralizar os excedentes de população que, caso contrário, corria-se o risco de que se
tornassem disfuncionais sendo não incorporáveis nas formas produtivas hegemônicas”. Trata-se de uma
“verdadeira gestão política desses excedentes” (idem: 28).
116 Isso comparece em FHC, quem afirma: “E essas transformações, inclusive no que diz respeito ao resultado
econômico, da acumulação de recursos, ao bem-estar dos que estão envolvidos nisso, independem dos
outros num certo sentido. Em outro sentido não, porque os outros são muitos. De alguma maneira, se nós
não resolvermos os problemas morais e de solidariedade em formas políticas de atuação, esses muitos num
dado ponto podem criar embaraços sérios para esses poucos, que não são tão poucos assim mas que estão
embarcados numa sociedade mais dinâmica” (Cardoso, 2004).
102
disfuncional da superpopulação relativa”. Essa proposta suscitou uma crítica por parte de
Fernando Henrique Cardoso, que Nun por sua vez criticou também
117
. A categoria de massa
marginal implicava para Nun (2001: 87) “uma dupla referência ao sistema que, por um lado,
gera esse excedente e, pelo outro, não precisa dele para continuar funcionando”. Para superar
o dilema entre hiperfuncionalismo e exclusão, é preciso compreender que “o mercado é uma
formação social que não admite nenhum 'exterior'”, o desempregado não encontra mais quem
lhe compre a força de trabalho, o pobre é um consumidor insolvável (Arantes, 2004: 52), os
descartados são “descartados porque estão absolutamente incluídos” (idem: 295). É o que
Robert Kurz (1992: 195) formulou com a expressão “sujeitos monetários sem dinheiro”. Nem
mera exclusão, nem mera inclusão, trata-se de uma “exclusão imantada”
118
.
A proposta da integração dos excluídos legitima indiretamente a punição dos atrasados
pelo seu atraso. Em Castells o atraso, longe de objetar a ordem universal, paradoxalmente a
justifica. A percepção de dualidade, passa de denúncia a apologia.
Podemos ver isso, além de no “espaço de fluxos” enquanto espaço quase neutral de
luta pela valorização dos nós onde qualquer um pode ganhar, na trajetória do modo de
desenvolvimento informacional”.
Em 1973 Castells reconhecia a importância das leis estruturais capitalistas
determinando o desenvolvimento tecnológico, donde uma crítica às interpretações tecnicistas
das teses marxistas
119
117 Todos os textos da polêmica, inclusive um de 1999 atualizando os termos do debate, podem ser encontrados
em Nun (2001).
118 Até onde eu sei, essa formulação de “exclusão imantada”, nutrida por leituras prévias e conversas mais
amplas, foi cunhada entre Felipe Brito e André Villar Gomez. Apareceu no meu caminho no projeto de tese
de André. Além de sua pertinência teórica ao re-colocar em outros termos e numa formulação sintética o
debate da exclusão/inclusão e da funcionalidade/não-funcionalidade dos excluídos, sendo de fabricação local
evita custos e burocracias de importação.
119 “Poderia sustentar-se a emergência de um novo estágio do capitalismo que, sem deixar de ser capitalista
(com todas as conseqüências em que isto implica em termos de leis estruturais) se caracteriza por uma maior
importância do papel econômico do Estado e por um desenvolvimento do componente científico-
tecnológico no interior do processo de produção” identificar a disposição direta do produto de uma
unidade de trabalho com a propriedade social do produto, prescindindo do sistema econômico em que
funcionam, abre caminho a todas as interpretações tecnicistas das teses marxistas”, revolução dos
'managers', criação de capitalistas coletivos (i.e. De Gaulle). “Somente se pode sustentar seriamente a tese
fundamental marxista da separação entre a fonte de criação de valor e a apropriação privada da mais-valia
situando-a no seu verdadeiro nível, ou seja, o da capacidade estrutural de decidir as leis do funcionamento
econômico e social. Toda simplificação tecnicista ou politicista da relação entre produção e dominação de
103
Em 1983 vimos aparecer a distinção entre modo de produção e modo de
desenvolvimento. Na Era da Informação essa distinção se consolida, sendo central na sua
formulação teórica. Agora remete aos trabalhos de Touraine e Daniel Bell como trabalhos
clássicos que começaram a abrir esse caminho (SR: 51). Julga “essencial para o entendimento
da dinâmica social, manter a distância analítica e a inter-relação empírica entre os modos de
produção (capitalismo, estatismo) e os modos de desenvolvimento (industrialismo,
informacionalismo)” (idem). Os modos de produção são definidos pelas regras para a
apropriação, distribuição e uso do excedente, pelo princípio estrutural de apropriação e
controle do excedente (SR: 52). Mas, na definição específica do modo de produção capitalista,
Castells acrescenta uma determinação que é a procura do aumento do excedente apropriado
pelo capital
120
. O autor é inconsistente nessa determinação, pois afirma que enquanto as
relações sociais de produção e, portanto, o modo de produção determinam a apropriação e os
usos do excedente, uma questão à parte, embora fundamental, é o nível desse excedente
determinado pela produtividade de um processo produtivo especifico, ou seja, pelo índice do
valor de cada unidade de produção em relação ao valor de cada unidade de insumos” (idem;
itálica minha). A determinação do modo de produção deixa fora, como uma questão à parte, o
nível, a magnitude do excedente. O nível do excedente, vinculado à produtividade, passa a
depender exclusivamente das relações técnicas de produção e do modo de desenvolvimento
definido como “os procedimentos mediante os quais os trabalhadores atuam sobre a matéria
para gerar o produto”
121
. É o modo de desenvolvimento quem determina o nível e qualidade do
excedente. O que distingue um modo de desenvolvimento do outro é para Castells o “elemento
fundamental à promoção da produtividade no processo produtivo. O novo modo de
desenvolvimento informacional se define pela “ação de conhecimentos sobre os próprios
classe conduz diretamente ao relativismo, ao empirismo, a decidir 'segundo os casos'” (Castells, 1973: 47-9).
120 “No capitalismo, a separação entre os produtores e seus meios de produção, a transformação do trabalho em
commodity e a posse privada dos meios de produção, com base no controle do capital (excedente
transformado em commodity), determinaram o princípio básico da apropriação e distribuição do excedente
pelos capitalistas [...] O capitalismo visa a maximização de lucros, ou seja, o aumento do excedente
apropriado pelo capital com base no controle privado sobre os meios de produção e circulação” (SR: 53;
itálica minha).
121 “Os próprios níveis de produtividade dependem da relação entre a mão-de-obra e a matéria, como uma
função do uso dos meios de produção pela aplicação de energia e conhecimentos. Esse processo é
caracterizado pelas relações técnicas de produção, que definem modos de desenvolvimento. Dessa forma, os
modos de desenvolvimento são os procedimentos mediante os quais os trabalhadores atuam sobre a matéria
para gerar o produto, em ultima análise, determinando o nível e a qualidade do excedente” (idem).
104
conhecimentos como principal fonte de produtividade”
122
.
A dimensão técnica da maneira pela qual aumenta a produtividade apaga a inserção
dessas relações técnicas nas relações de produção, acaba dando um estatuto privilegiado às
relações técnicas. Assim, distinguindo-o do industrialismo, que visaria a maximização da
produção, “embora graus mais altos de conhecimentos geralmente possam resultar em
melhores níveis de produção por unidades de insumos, é a busca por conhecimentos e
informação que caracteriza a função da produção tecnológica no informacionalismo (SR:
54; itálica minha).
Essa análise não é falsa, mas é abstrata. Ao se inserir no processo de valorização, a
tecnologia, enquanto capital, adquire uma nova natureza. As necessidades e finalidades da
tecnologia enquanto capital são as necessidades e finalidades do capital no processo de
valorização. Castells não enxerga que o modo de produção não só determina a apropriação e o
uso do excedente, determina também o próprio nível procurado desse excedente
123
. No modo
de produção capitalista, a procura do excedente não se limita à satisfação de necessidades,
mas à procura infinita de mais-valor. Essa procura está determinada pelo processo de
valorização. O 'aumento do excedente' na procura da valorização do capital é uma
determinação essencial na compreensão marxiana do modo de produção capitalista. Aliás, a
necessidade ilimitada de trabalho excedente distingue o modo de produção capitalista das
formas anteriores de organização da produção social
124
. É claro que o nível do excedente
122 “No novo modo informacional de desenvolvimento, a fonte de produtividade acha-se na tecnologia de
geração de conhecimentos, de processamento da informação e de comunicação de símbolos. Na verdade,
conhecimento e informação são elementos cruciais em todos os modos de desenvolvimento, visto que o
processo produtivo sempre se baseia em algum grau de conhecimento e no processamento de informação.
Contudo, o que é especifico ao modo informacional de desenvolvimento é a ação de conhecimentos sobre os
próprios conhecimentos como principal fonte de produtividade” (idem).
123 A superprodução é condicionada de modo específico pela lei geral de produção do capital: produzir na
medida das forças produtivas, isto é, da possibilidade de explorar, com uma quantidade dada de capital, a
maior quantidade de trabalho possível, sem levar em conta as barreiras do mercado existente ou as
necessidades respaldadas pela capacidade de pagamento, e isso por constante ampliação da reprodução e da
acumulação” (Marx apud Rosdolsky, 2004: 535).
124 “El capital no ha inventado el plustrabajo [...] Es evidente, con todo, que cuando en una formación
económico-social no prepondera el valor de cambio sino el valor de uso del producto, el plustrabajo está
limitado por un círculo de necesidades más estrecho o más amplio, pero no surge del carácter mismo de la
producción una necesidad ilimitada de plustrabajo [...] Pero no bien los pueblos cuya producción aún se
mueve bajo las formas inferiores del trabajo esclavo y de la prestación personal servil son arrastrados a un
mercado mundial en el que impera el modo de producción capitalista [...] ya no se trataba de arrancarle
cierta masa de productos útiles. De lo que se trataba era de la producción del plusvalor mismo” (C I, 8, 283).
105
“efetivamente atingido” depende das relações técnicas de produção. E é exatamente por isso
que o modo de produção capitalista “revoluciona as condições de produção”, o próprio
processo produtivo e as condições gerais da produção, para viabilizar tecnicamente a
efetivação desse excedente procurado. Essa análise leva a relacionar o aumento da força
produtiva no capitalismo com o objetivo capitalista de aumento da mais-valia. Só a partir
dessa análise é possível compreender o impulso inerente do capitalismo ao desenvolvimento
das forças produtivas.
A inconsistência que apresenta Castells na sua determinação do modo de produção
acaba se tornando uma insuficiência para compreender o sentido do desenvolvimento
tecnológico no modo de produção capitalista.
Ao fazer depender o nível do excedente exclusivamente do modo de desenvolvimento,
reservando para o modo de produção só a apropriação e os usos do excedente, Castells apaga
da sua análise o impulso inerente do modo de produção capitalista ao desenvolvimento das
forças produtivas para o aumento da mais-valia.
De fato, ele não considera a produção da mais-valia na sua análise da tecnologia, mas
só a questão da produtividade. Isto porque identifica a produtividade com a própria produção
de valor, as fontes da produtividade com as fontes do valor: A produtividade é a fonte de
riqueza das nações [...] a lucratividade e a competitividade são verdadeiros determinantes da
inovação tecnológica e do crescimento da produtividade” (SR: 136). O apagamento da
questão do valor e o foco na produtividade faz com que a tecnologia seja analisada em
abstrato, como instrumento de trabalho com o processo de trabalho enquanto totalidade.
Assim, a finalidade da tecnologia é analisada sob um ponto de vista estritamente tecnológico.
A “inter-relação empírica” que o autor pretende estabelecer entre modo de produção e
modo de desenvolvimento não é suficiente para compreender a pressão que o modo de
produção exerce sobre o modo de desenvolvimento, a metamorfose que as relações técnicas de
produção sofrem na sua inserção em determinadas relações sociais de produção. A
determinação de sociedade informacional significa para Castells que estando ainda no modo
de produção capitalista, tem-se atingido um novo modo de desenvolvimento, o modo
informacional. A despeito do reconhecimento dessa vigência do capitalismo, a distinção entre
106
modo de produção e modo de desenvolvimento apaga, na análise de Castells, a articulação
entre o desenvolvimento tecnológico e as leis e contradições do modo de produção capitalista.
A noção de capitalismo informacional fica muito presente no terceiro volume da
trilogia. Talvez como tentativa de essa “inter-relação empírica” entre modo de produção e
modo de desenvolvimento
125
. Atribuem-se ao capitalismo informacional processos de
exclusão. Castells afirma que o surgimento do Quarto Mundo, constituído de inúmeros
buracos negros de exclusão social em todo o planeta “não pode ser dissociado do avanço do
capitalismo informacional global” (FM: 195). A exclusão materializa-se em que áreas
consideradas sem valor na perspectiva do capitalismo informacional “são ignoradas pelos
fluxos de riqueza e de informação e, em última análise, privadas da infra-estrutura tecnológica
básica que nos permite comunicar, inovar, produzir, consumir e, até mesmo, viver no mundo
de hoje” (FM: 99).
Mas a insistência numa relação sistêmica entre o capitalismo informacional e os
processos de exclusão acaba sendo uma declaração de princípio que se dilui no seu momento
mais apologético, onde apaga esse vínculo. Por um lado, “o processo de reestruturação do
capitalismo, com sua lógica mais rigorosa de competitividade econômica, é responsável por
boa parte” das novas faces do sofrimento humano. Contudo, as novas condições tecnológicas
e organizacionais da Era da Informação “provocam uma grande reviravolta no velho modelo
da busca do lucro como substituto da busca da alma” (FM: 95). Assim, a Era da Informação
se sobrepõe ao modo de produção capitalista, inclusive disputando sua lógica mais essencial
de procura do lucro. Ela coloca a “ciência e tecnologia como os principais meios e fins da
economia e da sociedade [em rede]” (PI: 154). Desta maneira, com o eufemismo de
Sociedade em Rede apaga a análise do valor que tem não a ciência e a tecnologia mas a sua
valorização como único fim.
A denúncia de processos de exclusão inerentes ao capitalismo informacional global se
dissolve na prescrição de uma adaptação virtuosa na Era Informacional.
A distinção 'analítica' entre o modo de produção e o modo de desenvolvimento presta
um serviço importantíssimo, dando um estatuto exagerado às relações técnicas de produção.
125 Castells afirma que “o significado concreto da articulação entre o modo capitalista de produção e o modo
informacional de desenvolvimento” é que “para sua operação e concorrência, o capital financeiro depende
do conhecimento e da informação gerados e aperfeiçoados pela tecnologia da informação” (SR: 567).
107
Daí decorre uma compreensão tecnologista
126
, abstrata, do papel da tecnologia, do sentido da
inovação tecnológica, e das suas promessas e potencialidades no mundo atual, que se
desdobra numa fase abertamente desenvolvimentista e apologética na obra recente de Manuel
Castells.
A explicação (informacional) do colapso da União Soviética
A noção de modo de desenvolvimento informacional vira uma plataforma de
observação na obra de Castells. É a partir dela que analisa o colapso da União Soviética. No
terceiro volume da trilogia há um capítulo específico para tratar do assunto, que, como
dissemos, abordara já em The Collapse of Soviet Communism: a View from the Information
Society (1995).
O crescimento do PNB soviético na década de 50 e 60, mais acelerado que na maioria
dos países do mundo (PI: 28), mostra para Castells a falsidade da “mitologia sobre a
incapacidade de o comunismo desenvolver uma economia industrial avançada” (FM: 34). Mas
o processo nas décadas seguintes mostra o “esgotamento do modelo extensivo de crescimento
econômico” (FM: 45). Alguns pontos fundamentais desse esgotamento referem-se ao
descompasso do que estava acontecendo em Ocidente e que Castells analisa como
característico do modelo informacional e da Sociedade em rede. O sistema soviético
“desestimulou a busca pela inovação em uma época de mudanças tecnológicas fundamentais”,
em um “momento em que inovações tecnológicas absolutamente fora de planejamento abriam
terreno nas economias capitalistas avançadas”. O desestimulo à inovação se deu de diversas
maneiras: pelo sistema de contabilidade adotado pela economia planejada; pela organização
verticalizada da produção, inclusive a produção científica, que impôs enormes dificuldades
para o estabelecimento de “relações de sinergia entre produção e pesquisa” (FM: 39). A queda
na taxa de crescimento desde 1971 não seria uma explicação suficiente do colapso pois essa
queda, para Castells, também se deu naquela época nas economias no ocidente “sem terem
126 “El cientificismo o tecnologismo abstracto (de muchos 'materialismos dialécticos' u 'ontologías materialistas
ortodoxas' y dogmáticas, pero aún más de los positivistas anglosajones) es aquel que pretende real el nivel
de lo abstracto como abstracto. Lo abstracto es real como momento de lo concreto, pero si se lo intenta
hacer pasar por real en su abstracción, se cae en esas aventuras de las 'representaciones abstractas e
ideológicas'” (Dussel, 1984: 42).
108
sofrido consequências catastróficas” (FM: 24). Para Castells, o que explica o colapso
soviético “não ocorreu na União Soviética, mas nos países capitalistas avançados”, é a nova
revolução tecnológica (FM: 47). “O que salvou as indústrias eletrônicas norte-americanas
que trabalhavam para o Ministério de Defesa da rápida obsolescência foi sua relativa
abertura à concorrência” (FM: 48). No caso da URSS, a ausência de concorrência interna ou
externa aliviava qualquer tipo de pressão sobre as empresas soviéticas para buscar inovações
em um ritmo mais acelerado (FM: 51). O isolamento internacional protegeu a produção, mas
ao mesmo tempo impossibilitou a concorrência na economia mundial, logo no momento
histórico da formação de um sistema global e interdependente (FM: 40. Para Castells, o
estatismo soviético impossibilitou “o processo de inovação espontânea pelo uso e interação
em rede que caracterizam o paradigma da tecnologia da informação”. No âmago da crise
tecnológica da União Soviética residiria a lógica fundamental do sistema estatista: prioridade
do poderio militar, controle de informações, planejamento central, isolamento, incapacidade
de modernização de segmentos parciais (FM: 56). Na visão de Castells, “paradoxalmente, um
sistema construído sob a égide do desenvolvimento das forças produtivas não foi capaz de
ingressar na mais importante revolução tecnológica da história da humanidade” (FM: 86). A
sua resposta para o enigma da crise soviética é que ela éexpressão da incapacidade estrutural
do estatismo e da versão soviética do industrialismo de assegurar a transição para a
sociedade da informação”. “O último quarto do século XX tem sido marcado pela transição
do industrialismo para o informacionalismo e da sociedade industrial para a sociedade em
rede, tanto para o capitalismo como para o estatismo, concomitantemente à revolução
promovida pela tecnologia da informação” (FM: 27).
Vimos que tanto Kurz quanto Castells apontam para a questão da produtividade como
fator central do colapso da experiência soviética. No entanto, a semelhança da análise fica só
no nível fenomênico. O exame isolado da crise final do socialismo real deixa de reconhecer a
lógica de crise do próprio princípio da concorrência (Kurz, 1992: 89-90). Ao não transcender
o sistema produtor de mercadorias, “aqueles que realmente se despediram das velhas ilusões
[do socialismo real] trocaram-nas por ilusões novas”, e não percebem que se trata de “duas
ruínas da modernidade decaídas em graus diferentes”. Por trás dessa ilusão “oculta-se uma
109
concepção de formações sociais que procura a origem destas em 'modelos' certos ou errados”
(idem: 141-3).
Estatismo e capitalismo são os dois modos de produção que Castells diferencia. No
estatismo “o controle do excedente é externo à esfera econômica: fica nas mãos dos detentores
do poder estatal”, e visa “a maximização do poder, ou seja, o aumento da capacidade militar e
ideológica do aparato político para impor seus objetivos sobre um número maior de sujeitos e
nos níveis mais profundos de seu inconsciente” (SR: 53). Ao atribuir as debilidades soviéticas
ao modo de produção estatista, Castells não percebe que os déficits do socialismo real “já são
um resultado histórico das contradições capitalistas”. Aquele “paradoxo histórico” da
necessidade de eliminar a concorrência interna para subsistir na concorrência externa mostra
que eliminar ou não a concorrência não se deveu a simples decisões de política institucional.
Como não foi um simples erro, não pode ser simplesmente corrigido.
Vincent Descombes denunciava que o modelo de análise althusseriano permitia, em
nome da autonomia relativa das instâncias do modo de produção, preservar na análise a base
socialista da URSS, e assim, salvar o modelo econômico soviético, dissociado de uma
realidade política autonomizada e contestável. Essa era a utilidade que podia representar o
estruturalismo para um marxismo a renovar mas que pudesse continuar considerando a União
Soviética um pais socialista (Dosse, 1993: 331). Numa análise contrária, Bettelheim analisava
o restabelecimento do modo de produção capitalista na URSS, pois deduzia a dominância
capitalista da formação social pela invariante da separação entre produtores e detentores dos
meios de produção. Junto a Robert Linhart, quem mostrava a oposição entre a construção de
uma realidade socialista e a aplicação do taylorismo, questionavam a neutralidade das forças
produtivas (idem: 349-50).
A autonomia relativa funciona agora na concepção de formações sociais do ex-
althusseriano Castells na distinção entre modo de produção e modo de desenvolvimento.
Permite renovar-se do marxismo e legitimar o caráter progressista do modelo econômico do
capitalismo informacional, dissociado de uma realidade política autonomizada e contestável.
110
Um padrão recorrente de desenvolvimento e a questão da transição
Castells procura compreender o 'padrão recorrente de desenvolvimento' operante no
mundo, e para isso lança um olhar na Ásia, nos seus sucessos e fracassos. Para concorrer no
âmbito global, “uma forte base tecnológica se torna um elemento fundamental”. O paradigma
informacional “requer uma rede aberta e não censurada de interação e feedback (FM: 371).
Em relação às semelhanças entre os tigres asiáticos, que permitem pensar em um 'padrão
recorrente' para compreender os novos processos históricos de desenvolvimento, Castells não
encontra nenhuma estrutura industrial específica. As características comuns são:
adaptabilidade e flexibilidade das empresas e das políticas para encaminhamento da demanda
dos mercados mundiais. Destaca-se a capacidade de adaptação dessas economias ao
paradigma informacional e ao padrão da economia global em constante mudança. O papel
decisivo de P&D e dos setores de alta tecnologia. A “incorporação periférica para a economia
global em um posicionamento mais dinâmico e competitivo, em atividades geradoras de maior
valor”. O mais significativo de todos os elementos em comum é para Castells “o papel do
Estado no processo de desenvolvimento”
127
.
O lema geral parece ser para Castells que a “competitividade não resulta da 'escolha
dos vencedores', mas da aprendizagem de como vencer” (FM: 318-21).
(Esse lema resume bem sua busca tautológica e infecunda por receitas em experiências
que nem deram certo. Mas a cruel realidade às vezes se impõe até para aqueles que levantam
contra tudo e todos a bandeira da esperança, e Castells deve abordar os processos de colapso,
recessão, falência que sofreu essa região a finais dos anos 90).
Para Castells “na base da crise asiática encontrava-se a perda da confiança dos
investidores e a repentina falta de credibilidade das moedas e valores mobiliários nos
mercados financeiros globais” e “o que desencadeou a crise foi a brutal inversão do sentido
127 “Quando o projeto societal respeita os parâmetros mais abrangentes da ordem social (por exemplo,
capitalismo global), mas visa a transformações fundamentais da ordem econômica (independentemente dos
interesses ou desejos da sociedade civil), proponho a hipótese de que estamos diante do Estado
desenvolvimentista. A expressão histórica de tal projeto societal em geral toma a forma [...] de construção
ou reconstrução da identidade nacional” (FM: 323).
111
dos fluxos de capital”. O caráter repentino da base da explicação da crise denuncia que o que
Castells apresenta como explicação das crises não passa de uma mera descrição fenomênica e
parcial de sua manifestação. Daí que essa crise estrutural não implicasse para Castells “a
interrupção do desenvolvimento capitalista na Bacia do Pacífico” e levasse a prognosticar
“nova rodada de crescimento econômico” (FM: 252). Para Castells o mesmo fator explicava o
sucesso e o fracasso da região: a falta de regulamentação legal e a interferência governamental
tinham sido, no início, as causas determinantes do investimento do capital sem precedentes na
Ásia. Mas agora “o sistema institucional que era a fonte do milagre asiático, o Estado
desenvolvimentista, tornou-se o obstáculo para o novo estágio de integração global e de
desenvolvimento capitalista na economia asiática” (FM: 256-7). Assim, analisando a
experiência japonesa, ele encontra uma incompatibilidade entre o Estado desenvolvimentista e
“a Sociedade da Informação que esse Estado decisivamente ajudou a criar” (FM: 286). Mas
isso não o leva a recusar a própria intervenção do Estado. Constata-se que “a diversidade
econômica e a especificidade institucional levaram a resultados muito diferentes no impacto
da crise e de suas consequências” (FM: 254). Tratar-se-ia de ver quais políticas se mostrariam
“efetivas para a superação da crise financeira asiática” e que poderiam “refletir nas políticas
econômicas do resto do mundo, levando, talvez, a uma modificação do próprio modelo
capitalista” (FM: 252). Assim, percebe-se que “fragilidades institucionais são fatores
decisivos na resistência diferencial de economias nacionais aos efeitos destrutivos do sistema
financeiro global” (FM: 339-40), e que “o que parece ter sido básico para o sucesso inicial da
China na superação da crise financeira foi o keynesianismo em grande escala, protegido
contra fluxos financeiros destrutivos e conduzido pelo governo mediante controles monetários
e administração de políticas comerciais” (FM: 364).
Kurz (Cfr. 1995) analisou o nascimento, pela superacumulação estrutural, inclusive nas
economias à beira do colapso, do 'capitalismo de cassino', privado de uma solidez real
baseada nas respectivas economias nacionais. A partir dos anos 80 esse capitalismo de cassino
se internacionalizou não só como globalização dos mercados financeiros especulativos, mas
também como criação de 'circuitos deficitários internacionais'. Os dois mais importantes: o
capital financeiro da Alemanha em relação com a União Europeia e o do Leste asiático em
relação aos EUA. Através do duplo déficit do endividamento externo e da balança comercial
112
negativa, os Estados Unidos tornaram-se a esponja de dupla face da economia mundial: por
um lado, eles sugam o capital monetário estrangeiro e, por outro, pagam com este dinheiro
emprestado os seus gigantescos excedentes nas importações, sugando uma massa enorme de
produtos industriais externos. A industrialização asiática é uma expansão fordista simulada
por meio do megacircuito deficitário do Pacífico. Nos super-investimentos financiados com o
pseudo-boom do capitalismo de cassino é que se esconde o “pequeno segredinho sujo do
grande sucesso japonês”, e não primordialmente numa “inovação tecnológica ou
organizacional específica”.
Desconhecer essas causas do pseudo-sucesso e do fracasso desses desenvolvimentos
periféricos leva Castells a uma noção de crise estrutural que se refere ao modelo de
desenvolvimento e não ao modo de produção. Assim, Castells adverte que “o Japão estava
passando por uma crise estrutural de seu modelo de desenvolvimento desde o início dos anos
90”
128
. O autor faz explícito que sua interpretação da crise asiática é feita “de acordo com a
teoria do capitalismo informacional global” (FM: 255-6).
A noção de modo de desenvolvimento presta seu serviço aqui na “cronologia oficial da
crise” de Castells para restringir a explicação da crise e as suas possíveis saídas num nível
institucional. Daí, as contradições, catástrofes, colapsos passam a ser atribuídos ao processo
de transição não só no caso da União Soviética, mas para todas as regiões do mundo
129
. A
transição para a Era da Informação é incorporada na série dos “momentos de transição
histórica, frequentemente articulados no cerne de instituições decadentes e modelos políticos
desgastados (PI: 426). Mas a sociedade informacional não aparece comprometida com as
instituições decadentes e os modelos políticos desgastados. Estes são o passado, ela é o futuro
que começa a se efetivar. Trata-se de superar a fase traumática da transição
130
.
128 E na África “nos anos 70, com a crise e a reestruturação do capitalismo, o modelo de desenvolvimento do
continente entrou em colapso, sendo necessária, no final da década, uma saída alternativa para a crise por
parte dos credores externos e instituições internacionais” (FM: 138)
129 “O destino da Europa, em última análise, dependerá (como nas demais regiões do mundo) da resolução dos
enigmas históricos decorrentes da transição ao informacionalismo e da mudanç a do Estado-nação para uma
nova interação entre as nações e o Estado, sob a forma do Estado em rede” (FM: 21).
130 Beinstein (1999: 275-8) chamou “conceito de crise neoliberal” à explicação da crise enquanto adaptação à
globalização e seu pacote tecnológico, enquanto crise de crescimento, enquanto inadaptações às mudanças
de estruturas econômicas e sociais. Kurz (1992: 160) também notou que os novos profetas da economia de
mercado atribuem todos os fenômenos de crise atuais à carga hereditária lamentavelmente pesada das
estruturas 'pré-revolucionárias'”, a processos de adaptação dolorosos na transição ao modelo certo.
113
A deterioração das condições de trabalho e de vida, a queda dos salários e aumento da
desigualdade, o desemprego, o subemprego e segmentação, a desvalorização, a
marginalização, que acompanham essa transição, “não se originam da lógica estrutural do
paradigma informacional mas são resultado da reestruturação atual das relações capital-
trabalho, com a ajuda das poderosas ferramentas oferecidas pelas novas tecnologias da
informação e facilitadas por uma nova forma organizacional, a empresa em rede”. O potencial
das tecnologias da informação podem propiciar “simultaneamente maior produtividade,
melhor qualidade de vida e maior nível de emprego”. Mas “as trajetórias tecnológicas estão
'travadas', e a sociedade informacional pode se tornar ao mesmo tempo (sem necessidade
tecnológica ou histórica para tanto) uma sociedade dual” (SR: 345).
Para Castells não há necessidade tecnológica nem histórica para a não efetivação
das promessas da tecnologia. Não-necessidade tecnológica, podemos supor, pela
versatilidade analisada das próprias tecnologias que trazem em si uma promessa de
flexibilidade. Não-necessidade histórica, pela recusa a qualquer tipo de teleologia no processo
social. A dualidade estrutural transforma-se em dualidade conjuntural, não-necessária. Por
isso, Castells encontra, por exemplo, uma relação sistêmica entre a destruição de vidas em um
grande segmento da população infantil do mundo e as 'características atuais' do capitalismo
informacional. Isso permite não endossar a causa dos fenômenos de exclusão à estrutura do
sistema em si, mas à lógica de mercado irrestrito e desregulamentado inserida em uma
economia global e conectada em rede, capacitada pelas tecnologias de informação avançada”
(FM: 188-191). O problema da lógica excludente do capitalismo é para Castells que “milhões
de pessoas e grandes regiões do planeta estão sendo excluídas dos benefícios do
informacionalismo” (FM: 20). As tendências parecem ser tenebrosas...a menos que ocorra
uma mudança nas leis que regem o universo informacional do capitalismo, pois, ao contrário
das forças cósmicas, a ação deliberada do homem pode efetivamente mudar as regras da
estrutura social, inclusive as que levam à exclusão social” (FM: 192).
114
Livros do período:
1995: The Collapse of Soviet Communism: a View from the Information Society
1997: Local y Global
1996: A Era da Informação: economia, sociedade e cultura. I: A sociedade em rede.
1997: A Era da Informação: economia, sociedade e cultura. II: O poder da identidade.
1998: A Era da Informação: economia, sociedade e cultura. III: O fim do milênio.
115
5. 2000 em diante: desenvolvimentismo informacional
A crise aprofunda-se. Em 2008, estoura no centro. Beinstein (2008), que previra uma
década atrás a morte terminal da ilusão do desenvolvimento periférico, atenta novamente para
as tentativas ideológicas de descrever a crise. Ela apareceu primeiro sob a forma de uma
turbulência financeira empurrada pelo estouro da bolha imobiliária norte-americana e com
previsão de curta duraç ão. Surge então uma primeira “teoria da separação geográfica
segundo a qual certas regiões centrais ou emergentes estariam resguardadas da tormenta. A
recessão generalizada acabou com essa teoria de vida efêmera. Mas segundo Beinstein fica
em pé a ideia da “separação setorial”, isto é, a dissociação e explicação superficial (ou
mesmo desconsideração) das crises financeira, energética, ambiental, alimentar, econômica,
tecnológica, em curso. Contra a irrupção de “teorias financeiras da crise”, Beinstein (1999:
277) tinha mostrado o vínculo entre a hipertrofia financeira e a desaceleração a longo prazo
do crescimento global. A perda de vitalidade do capitalismo tinha impulsado o endividamento
e a financeirização. O câncer financeiro fazia parte de uma patologia econômica.
Vale ainda para esta década o que Beinstein (idem: 42-3 e 110) analisara no final dos
anos 90: enquanto a crise se estende, aumenta a dissociação entre o discurso liberal e a
realidade”. e tudo o que acontece, qualquer que seja o conteúdo, é apresentado como a
confirmação do inexorável cumprimento do destino. As crises são descritas como passageiras
e as vítimas são culpadas de suas desgraças pelo “delito de obsolescência, de resistência
conservadora à mudança”. “Os discursos neoliberais cumpriram a missão de bloquear com
seu barulho qualquer indagação racional e isso porque o que tinha que ocultar era grande
demais”.
* * * * *
Resultado de dois anos e meio de trabalho, e sob convite da Oxford University Press,
Castells (Cfr. 2003: 20) publica em 2001 The Internet Galaxy. Ali afirma que dada a
integração econômica e tecnológica global, é tarde demais para pensar em “modelos
116
alternativos de desenvolvimento, que exigissem menos tecnologia e gerassem provavelmente
menores ganhos de produtividade e melhora material mais lenta”. A economia e o sistema de
informação baseados na Internet “limitaram as trajetórias de desenvolvimento num âmbito
estreito”. Assim, analisa que “uma vez feita a opção de participar das redes globais, a lógica
da produção, competição e administração baseada na Internet é um pré-requisito para a
prosperidade, a liberdade e a autonomia” (2001: 220). Mas, no inicio da Era da Informação,
percebe por todo o mundo uma “extraordinária sensação de desconforto com os processos
atuais de mudança conduzida pela tecnologia, que ameaçam gerar um efeito bumerangue
generalizado”. Assim, “a menos que enfrentemos essa sensação, sua exacerbação pode de fato
destruir as promessas dessa nova economia e dessa nova sociedade nascidas da
engenhosidade tecnológica e da criatividade cultural” (idem: 225). Ali parece estar formulado
implicitamente seu plano de ação para a década.
O percurso de Castells no século XXI é fundamentalmente um desdobramento de sua
trilogia, um aprofundamento de suas formulações e a sua aplicação a casos concretos. O
objetivo: salvar as promessas da nova economia e da nova sociedade, enfrentando as
sensações de desconforto
131
.
Levando em consideração a oscilação apontada por Beinstein (1999: 39) na
“cronologia oficial da crise” entre admiração e desprezo das experiências modelo, ora
idealizadas, ora consideradas “ineficazes, preguiçosas, irracionais”, podemos perceber em
Castells um esforço por encontrar na experiência histórica concreta o seu modelo de inovação.
A União Soviética conseguiu se desenvolver até os anos 60 mas não conseguiu de adequar
depois ao informacionalismo. Os sucessos e fracassos do desenvolvimento asiático mostravam
para Castells as tentativas dessa adaptação.
O autor embarcará numa busca permanente pelo modelo ideal para o
desenvolvimento das forças produtivas. Sendo que a concorrência “não se dá mais entre
nações, mas entre empresas e entre indivíduos” para Castells agora “a questão real é: quais são
os territórios onde nós valiosos de redes globais de riqueza e conhecimento tendem a
131 Uma olhada rápida e cronológica nos títulos dos livros de Castells, já permite perceber o sentido do
percurso. Os termos crise e classe dos anos 70 dão lugar a termos como globalização, democracia,
desenvolvimento. Os livros recentes em que participa como organizador são já uma aplicação
desenvolvimentista de suas pesquisas teóricas e empíricas.
117
construir seus ambientes propícios [conducive environments]”. i.e. Londres, Estocolmo,
Helsinque, Copenhague, Paris (Castells, 2003: 33).
Nessa procura ganha destaque a noção de meio de inovação”, que já vinha sendo
elaborada na sua obra. Na Sociedade em Rede caracterizava o “meio de inovação” pela
“capacidade de gerar sinergia, isto é, o valor agregado resultante não do efeito cumulativo dos
elementos presentes no meio, mas de sua interação. Os meios de inovação são as fontes
fundamentais de inovação e geração de valor agregado no processo de produção industrial da
era da informação” (SR: 478).
Em 2003, ao se perguntar pela causa da concentração territorial da inovação, remete
também à estrutura dos 'meios de inovação': “Há uma interação social, e uma série de valores,
e de instituições e organizações que criam as condições para a sinergia a fonte de inovação,
de criatividade, e de produtividade. Porque esse conhecimento e criatividade produzem
riqueza [wealth], essa riqueza está concentrada espacialmente, e oferece maiores
possibilidades de avanço pessoal e bem-estar social” (2003: 27).
Nessa preocupação, aparentemente só analítica, Castells trata de compreender a
medida da riqueza para torná-la receita.
Estações no trem da esperança: Silicon Valley, Finlândia
O primeiro caso exemplar de inovação é Silicon Valley. Lembremos que essa região
tinha chamado a atenção de Castells nos anos 80, “explodindo com inventividade [ingenuity]
tecnológica, inovação empresarial, e mudança cultural”, e que o tinha levado a trabalhar na
“relação entre tecnologia, economia e sociedade” (2003: 8-20).
Na procura da receita da inovação, busca ingredientes na habilidade diferencial dos
EUA de “prosperar no novo paradigma tecno-econômico”: a abertura à imigração
132
; o sistema
universitário, “fonte de conhecimento e educação, e portanto de riqueza e poder, na era da
informação”
133
; a junção dos hackers, fonte de inovação, e dos empreendedores, conversão da
132 É um sistema de inovação dependente da imigração (foreign-born innovation). Os EUA absorvem mais de
200.000 novos imigrantes altamente qualificados por ano (2003: 32).
133 Trata-se de universidades “muito produtivas e muito úteis” e de uma “relação sinergística entre universidade
– negócios – e programas financiados pelo governo” (2003: 39).
118
inovação em negócio; a existência de redes de capital de risco, o coração do sistema de
inovação na nova economia”
134
.
Mas, numa oscilação entre admiração e desprezo, na entrada do século XXI, o modelo
Silicon Valley já não convence a Castells. Agora, é uma “cultura do risco – com custos sociais
consideráveis, grande desigualdade social e deterioração do capital humano gerado
localmente na infra-estrutura econômica” (2002: 242). Ainda, a América tem problemas
sociais assombrosos e atraso na educação em geral” (2003: 115). Nos EUA, falta um “Estado
de bem-estar moderno”, “base da produtividade na economia do conhecimento, e também a
base da estabilidade social” (idem: 116).
Ora, Castells reconhecia na trilogia a dificuldade de preservar o Estado do bem-estar
social pela instabilidade fiscal do Estado
135
. Como justificar agora a factibilidade do Estado de
bem-estar como modelo?
Em 2002 Castells e Pekka Himanen publicam The information society and the welfare
state: the Finnish model. Apontando para o declínio do Estado de Bem-estar como causa da
crescente injustiça social no mundo, pretendem demostrar a possibilidade de um Estado de
Bem-estar informacional, cujo núcleo seria um círculo virtuoso no qual a economia
informacional e o Estado de Bem-estar se alimentam reciprocamente. O modelo finlandês é
um exemplo de como poderia ser na prática o modelo de Estado de Bem-Estar
informacional, e explica os “baixos níveis de injustiça e exclusão social da Finlândia” (2002:
115-7)
136
. Castells aponta para uma contradição entre os objetivos da era da informação e as
estruturas da era industrial do Estado de bem-estar. O Estado de Bem-Estar informacional
134 Trata-se de “uma organização flexível que reage às tendências da tecnologia e do mercado enquanto vão
aparecendo, e constroem projetos de negócio de alto risco/alto retorno [reward]. É obvio que muitos
fracassam (ao redor do 40 por cento em Silicon Valley), mas ainda os fracassos estão cheios de lições, e o
resultado geral é uma explosão contínua de inovação. Essa é a fonte real da superioridade da Silicon Valley e
da nova economia americana em geral” (2003: 37-41). Lembremos que o lema é “aprender a vencer”.
135 Assinalava a “dificuldade de preservar o Estado do bem-estar social europeu em sua forma atual [pois] a
busca por flexibilidade nos mercados de trabalho e o processo de desinvestimento na Europa reduzem a base
de emprego de que a estabilidade fiscal do Estado do bem-estar social depende” (FM: 399).
136 Curiosamente, na edição em português se traduziu virtuous circle como círculo vicioso, um erro que não
deixa de ser sintomático (no original em inglês pode ser conferido o uso da expressão virtuous circle. Cfr.
Castells, Himanen. The information society and the welfare state: the Finnish model. Oxford, p.80.
Disponível em: http://books.google.com.br/books?
id=pi_gUWYecb8C&printsec=frontcover&source=gbs_v2_summary_r&cad=0).
119
vem a ser superação dessa contradição, uma renovação através de uma organização em rede
mais dinâmica (idem: 147). Trata-se de uma “relação dinâmica entre a economia e a
sociedade, mediada pelo Estado” (idem: 204) na qual “a economia informacional e a
Sociedade da Informação alimentam-se mutuamente, numa espiral ascendente de criatividade
cultural e de criação de riqueza” (idem: 211). Em contraposição ao modelo de Silicon Valley,
o modelo da Finlândia é construído como sendo a “opção das pessoas” (idem: 217).
Castells pretende demostrar a virtuosidade do vínculo pela necessidade mutua entre a
Sociedade informacional e o Estado de bem-estar: a sociedade informacional cria as bases
financeiras para o Estado de Bem-Estar
137
e o Estado de Bem-estar legitima a globalização e
fornece força de trabalho informacional
138
.
O que confere para Castells uma importante vantagem competitiva nacional e que
sustenta essa espiral ascendente de criatividade cultural e criação de riqueza são as inovações
do próprio sistema de inovação (idem: 65). O modelo de inovação finlandês inclui: um sistema
universitário, gratuito e com bolsa de estudos (idem: 103); investimento em investigação e
desenvolvimento
139
direcionado para empreendimentos empresariais
140
; um papel ativo do
Estado finlandês “na liberalização, desregulamentação e privatização embora não levado ao
extremo” (idem: 75)
141
. Assim, “o sector público cria “as condições para os outros atores
fundamentais do sistema de inovação: as empresas” (idem: 81)
142
. Outro ator importante para
137 A sociedade informacional cria as bases financeiras para o Estado-Providência. Sem as receitas fiscais, a
sociedade não poderia financiá-lo. E sem uma maior produtividade, os impostos demasiado elevados não
seriam suportáveis. A sociedade da informação precisa desta forma de crescimento mais rápido do que os
custos do Estado-Providência” “uma economia-informacional bem-sucedida é um requisito para um Estado-
Providência generoso” (2002: 125).
138 “Dada a actual forte oposição à globalização, poderia ocorrer que sem uma dimensão de bem-estar social
mais forte, a economia informacional tivesse que enfrentar uma oposição tão dura que o seu
desenvolvimento tornar-se-ia extremamente volátil ou insustentável. Desta forma, a economia informacional
global poderia ter como requisito um tipo determinado de Estado-Providência” que “garanta um número
suficiente de pessoas altamente qualificadas e em boa forma para trabalhar na economia informacional”
(2002: 126-7).
139 Seria líder mundial na percentagem do PIB (3,2%) (idem: 68).
140 O “Fundo Nacional Finlandês para a Investigação e o Desenvolvimento” (Sitra) um “capitalista público”,
“deixou de financiar a investigação e desenvolvimento tecnológico per se, convertendo-se numa instituição
de capital de risco que financia as fases iniciais e de expansão das empresas tecnológicas recentemente
criadas” (idem: 73).
141 “Favoreceu os standards abertos de modo a conferir uma vantagem competitiva às empresas de
telecomunicações finlandesas”, “standard para telemóveis”, “tornou o seu desenvolvimento altamente
competitivo: a Nokia e a Ericsson viram-se obrigadas a competir entre si e com outras grandes empresas”
(idem: 76-8).
142 A empresa Nokia aparece nesse sentido como “expressão colectiva do conhecimento especializado finlandês
em tecnologia de telecomunicações”, “cariz de um verdadeiro projeto nacional”, “exemplo de como as
empresas privadas, dispondo da base financeira necessária, transformaram o know-how finlandês (criado
120
Castells é a sociedade civil que teve um papel crucial na transformação da rede num medium
social e no desenvolvimento de um “novo sistema de inovação: o modelo de open-source
(idem: 92)
143
. Esse novo modelo de inovação pode vir a ser para Castells “uma das inovações
mais radicais da revolução de inovação em Tecnologias de Informação” (idem: 102-3). Isso
tem a ver com sua percepção de que “na economia informacional, as inovações nos processos
e na organização são tão importantes como a inovação dos produtos” (idem: 42).
Receitas para o desenvolvimento multicultural na periferia
Beinstein (1999: 55) aponta que a semiperiferia cumpre funções econômicas
extremamente úteis à reprodução do sistema internacional, mas também um papel ideológico
de legitimação cultural da economia de mercado, como exemplos de aproximação ao
desenvolvimento. A Finlândia serve em Castells como verdadeira isca na promessa da
aplicação do paradigma informacional em países estagnados ou em desenvolvimento. Não é
casual que o interesse excepcional da Finlândia resida, para Castells (2003: 41-3), no fato de
que passou em 50 anos de “periferia pobre da Europa” a “sociedade da informação número
um” segundo a ONU, e a “economia mais competitiva do mundo”, segundo o ranking do
World Economic Forum. Tornou-se um país líder em 'electronic manufacturing services', e um
“grande centro de inovação tecnológica, empenhado numa pesquisa constante por novos
produtos e novos serviços”.
No modelo da Finlândia o autor quer esconder a dimensão normativa por trás de uma
dimensão analítica. Simplesmente afirma mostrar a existência de uma pluralidade de modelos
possíveis
144
.
pelas universidades e difundido pelas empresas públicas) em produtos” (idem: 86). A Nokia “considera que
se deve centrar na investigação orientada para o desenvolvimento e que a investigação básica compete às
universidades. A sua tarefa é dispor de uma rede de ligação àquelas para partilhar diferentes tipos de
conhecimento, “oportunidade de atrair os melhores talentos” (idem: 47-8).
143 Castells assinala também a transformação pelos hackers universitários da rede num medium social, ou a
“vibrante cultura de mensagens escritas criada pelos finlandeses” e que surpreendeu à Nokia (idem: 88-92).
“o mais célebre dos hackers finlandeses é, sem dúvida, Linus Torvald, criador do sistema operativo de
código aberto, Linux”; “a mais importante inovação do Linux não é técnica mas sim social [...] projeto que
levou mais longe o modelo de código aberto” (idem: 99-101).
144 “O objectivo do nosso livro é analítico e não normativo [...] para o que na verdade serve o exemplo real do
modelo finlandês é, precisamente, desmistificar a ideia de que pode existir um único modelo [...] Dentro do
121
Trata-se de uma neutralidade axiológica que está ao serviço da ilusão de uma
expansão universalmente virtuosa desse paradigma
145
. No fundo, o modelo único que está se
mistificando é o próprio paradigma tecno-econômico informacional.
Assim, ainda reconhecendo que conta com “circunstâncias históricas que não são
reproduzíveis”, para Castells (2002: 245-6) o modelo finlandês “oferece alguma esperança a
países atualmente estagnados em níveis de desenvolvimento muito inferiores, em todo o
mundo [pois] a capacidade de dar um salto, em meio século, desde as profundezas do atraso
econômico até à vanguarda do desenvolvimento informacional, mostra que não é o destino
histórico mais o esforço humano que conta nas formas como as sociedades e as pessoas
melhoram as suas vidas e projetos”
146
.
Para Castells, o caminho do desenvolvimento tecnológico já foi traçado, estamos diante
de uma necessidade inexorável de nos adaptarmos ao novo modelo de desenvolvimento, o
modelo de desenvolvimento informacional. No entanto, a diferenciação das sociedades ainda
é possível na dimensão cultural ou institucional
147
. É a essa dimensão que afinal Castells
restringe sua “deliberada obsessão pelo multiculturalismo”, sua tentativa de “romper com a
abordagem etnocêntrica” na análise do processo de globalização (PI: 19). The Network
Society: a Cross-Cultural Perspective, de 2004, consiste exatamente em uma “série de estudos
mesmo paradigma tecno-económico (informacionalismo), existe uma margem considerável para opções
políticas baseadas em valores” (Castells, 2002: 13).
145 A sociedade em rede é a estrutura social dominante do planeta, que vai absorvendo aos poucos outras
formas de ser e de existir. Isso, em si mesmo, não é bom nem ruim: é” (Castells, 2007: 17).
146 Enfatizando o poder da ação deliberada do homem, Castells apaga o peso objetivo das leis tendenciais. Kurz
(1992: 55 e 171-172) denuncia essa concepção abstrata “autonomia da ação”: é inútil e absurdo querer
discutir e argumentar com as leis estruturais da produção de mercadorias, como se se tratasse de um sujeito
consciente”; isso responde à projeção iluminista do sujeito, de ser capaz apenas de criticar como sujeitos os
'capitalistas' e não o capital enquanto 'sujeito automático'. A atuação das leis do sistema produtor de
mercadorias pode ser suprimida “somente junto com os fundamentos da forma-mercadoria da própria
reprodução social”.
147 Todas as sociedades da Era da Informação são, sem dúvida, penetradas com diferente intensidade pela
lógica difusa da sociedade em rede, cuja expansão dinâmica aos poucos absorve e supera as formas sociais
preexistentes” (FM: 427). A exclusividade japonesa ou as diferenças da Espanha não vão desaparecer em
um processo de não-diferenciação cultural, nessa nova trajetória para a modernização universal, desta vez
medida por índices de difusão de computadores”(2003a: 57). A experiência de desenvolvimento do Japão
seria uma “poderosa demonstração de viabilidade histórica de modernização sem ocidentalização”(FM:
259). E a “entrada da China na economia global capitalista e no paradigma informacional” (FM: 352), faz
com que ela compartilhe “os riscos e riquezas do capitalismo global”, mas que ainda ostente “características
socialistas marcantes” (FM: 373). “a sociedade em rede se desenvolve em cada país segundo a história, a
cultura, a identidade e o modo de vida desse país” (2007: 26).
122
sobre a variação institucional e cultural do modelo informacional em distintas áreas do
mundo” (2005: 160).
O multiculturalismo é aqui uma “sofisticação de fachada”
148
. Em Race et Histoire de
1952, Lévi-Strauss atacou os fundamentos do eurocentrismo criticando a teleologia baseada
na reprodução do mesmo e opõe-lhe a ideia da diversidade das culturas, a irredutibilidade da
diferença”. Roger Caillois, criticou essa abordagem ao perceber que é no momento em que “a
história torna-se efetivamente planetária, que a pesquisa erudita e a sensibilidade coletiva
valorizam a pluralidade, a irredutibilidade das diferenças, no próprio instante em que essa
pluralidade se dissipa”. O aparecimento de certas filosofias não consistia para ele num
simples reflexo da época que as viu nascer mas vem a cumprir “o preenchimento de uma
carência” (Cfr. Dosse, 1993: 155-6). Rosdolsky (2004: 519) aponta que “as teorias econômicas
e sociológicas não existem no éter do conhecimento puro, mas quase sempre respondem
também a certas exigências sociais”.
O discurso do culturalismo e o “elogio das diversidades herdadas” é simbolo da
senilidade do sistema que não tem nada mais a propor para 80% da população do planeta
(Amin, 2002: 89-96). De fato, a questão crucial não é a afirmação da inexorabilidade de
adaptação a um modelo tecno-econômico, mas a afirmação ilusória da factibilidade dessa
adaptação. Para Castells (2002: 4), o nível de desenvolvimento dos países não põe em
questão essa possibilidade, só incide no ritmo e o grau da conversão: “países em todo o
mundo convertem-se em informacionais a ritmos diferentes, e em graus fortemente
divergentes, de acordo com o seu nível de desenvolvimento”. A diversidade de condições
específicas é a maneira eufemística em que aparece a estrutura sistemática da desigualdade
149
.
Considerar o desenvolvimento e subdesenvolvimento como inter-relação de dois
aspectos específicos da dinâmica global que reproduz uma e outra vez essa heterogeneidade
decisiva” desmente para Beinstein (1999: 56) as “tentativas conformistas por fazer da história
contemporânea uma sorte de marcha heterogênea do progresso”, na qual, desde diferentes
148 Ao brutalismo da realidade simplificada até o osso, veio dar cobertura uma espécie de sofisticação de
fachada” (Arantes, 2004: 161).
149 Para a Sociedade da Informação, existe uma “pluralidade de modelos sociais e culturais, do mesmo modo
que a sociedade industrial se desenvolveu seguindo diferentes modelos de modernidade, e até mesmo
modelos antagônicos, por exemplo nos Estados Unidos e na União Soviética”; tem “traços estruturais
comuns”. “O significado da Era da Informação é, precisamente, que se trata de uma realidade global,
diversa e multicultural” (Castells, 2002: 3-4).
123
pontos, todos avançam. Vimos com Kurz (1995), a partir da questão do trabalho improdutivo
em sentido relativo, que na entrada em contato sem filtros entre sistemas industriais com
diversos níveis históricos de desenvolvimento o que ocorre é a aniquilação e a liquidação da
produção não-contemporânea e pouco produtiva. Analisamos a insustentabilidade da ilusão
do desenvolvimento periférico.
Castells deu uma palestra no BNDES no Brasil em 2002, que leva por título “O novo
paradigma do desenvolvimento e suas instituições: conhecimento, tecnologia da informação e
recursos humanos. Perspectiva comparada com referencia à América Latina”. Ali podemos
ver a tradução dessa peculiar dialética de universal-particular para o desenvolvimento da
América Latina. O ponto central do seu argumento é o seguinte:
“para poder redistribuir, primeiro os países precisam gerar riqueza
150
. Isso significa que a ênfase
precisa voltar, como nos bons tempos da economia desenvolvimentista, para o crescimento
econômico fundamentado na produtividade e para a geração das condições dessa produtividade: o
desenvolvimento das forças produtivas. O problema é que, hoje em dia, as forças produtivas não
se medem em toneladas de aço nem em quilowatts, como diriam Henry Ford ou Lênin, mas na
capacidade inovadora de gerar valor agregado através do conhecimento e da informação. Esse
modelo de crescimento econômico baseado no conhecimento é o mesmo em toda parte, como foi a
industrialização no paradigma de desenvolvimento anterior [mas] a dinâmica do desenvolvimento
tem que ser adaptada às condições específicas de cada sociedade e cada nível de desenvolvimento”
(Castells, 2002b: 398).
Reconstruindo o encadeamento lógico: o desenvolvimento das forças produtivas é a
base do aumento da produtividade que é a base do crescimento econômico que é a base da
geração da riqueza que é a base da possibilidade de redistribuir. Ainda, remete-se aos “bons
tempos da economia desenvolvimentista” como antecedente reconhecido e assumido dessa
matriz de pensamento. Destacando a novidade do desenvolvimento atual das forças
produtivas, onde ganham um lugar privilegiado o conhecimento e a informação, aplica o
esquema de unidade do modelo e especificidade das condições de cada sociedade, dentre as
quais o nível de desenvolvimento. Ciente do “padrão muito desigual” no qual a nova economia
está criando prosperidade, Castells tenta responder à questão fundamental de como “difundir
o dinamismo” ao planeta num todo. Defende um “novo paradigma desenvolvimentista”.
Desenvolvimento significa aqui a capacidade de aumentar o valor produzido em cada nó,
150 No Fim do Milênio tinha certa percepção do caráter repressor desse princípio, na Coreia do Sul: “o Estado
também organizou a incorporação submissa da mão-de-obra na nova economia industrial, sob o princípio de
primeiro produzir, depois redistribuir”. Foi um 'fator decisivo' e 'muito mais repressor' que os outros países
do Pacífico asiático (FM: 302; itálica minha).
124
aumentando a competitividade com base numa produtividade maior”. A competitividade
baseada na produtividade não é para Castells o simples esforço de vender mais barato que os
concorrentes, o que acaba gerando um círculo vicioso. Ele acredita que através do
“desenvolvimento informacional”, “há um circulo virtuoso de expansão da demanda e da
produtividade para todos”. Quais são os alicerces desse desenvolvimento? Os traços centrais
desse paradigma repõem o modelo finlandês: inovação (tecnológica e organizacional como
fonte da produtividade e da competitividade; financiamento flexível e apoio institucional
como bases da inovação empresarial; importância do sistema universitário; sólida base
tecnológica; uso da Internet na produção, venda e administração; destaca do modelo finlandês,
seu “duplo papel, desenvolvimentista e social” baseado no papel fundamental do Estado.
Acrescenta a dimensão chave da confiança: nos “países vulneráveis às inversões repentinas
dos fluxos financeiros” é preciso ir “gerando confiança, juntamente com as expectativas
151
.
A despeito de reconhecer a facilidade de refutar a aplicabilidade desses modelos,
Castells insiste na diversidade dos modelos e o caráter comum dos traços centrais e argumenta
que a “diversidade num desempenho tecno-econômico igualmente dinâmico entre os países
desenvolvidos” justifica a ideia de que “uma via diferencial similar pode e deve ser encontrada
em níveis mais baixos de desenvolvimento”. Evidentemente, é um argumento insustentável,
pois o problema reside exatamente na diferença de níveis de desenvolvimento. Assim, mesmo
recusando uma resposta voluntarista, a possibilidade de desenvolvimento periférico segundo
os padrões do sistema se sustenta só pela necessidade de que isso aconteça. Para Castells
(2002b: 410) afirmar que esse desenvolvimento não é aplicável à América Latina “condenaria
151 Segundo Fiori, os países que tentam uma adesão periférica à globalização, têm governos com uma margem
estreita de ação (1997: 115), ditada pela “prioridade dos países apelidados de 'mercados emergentes' de
manter uma boa imagem internacional, com regras econômicas fixas e ausência de incerteza política”. Isso
porque a única obra desses governos são os 'planos de estabilização', e esses planos dependem do capital
externo (idem: 118). A confiança para os mercados é justamente uma das palavras-de-ordem do governo
Lula: A restauração do fluxo de crédito, a revitalização do comércio internacional e da confiança nos
mercados são os maiores desafios que a economia mundial enfrenta, disse o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva”, em: “Economia vive 'crise de confiança' nas áreas de crédito e comércio, diz Lula”
(http://g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios/0,,MUL1044756-9356,00-
ECONOMIA+VIVE+CRISE+DE+CONFIANCA+NAS+AREAS+DE+CREDITO+E+COMERCIO+DIZ+L
ULA.html, 16/03/2009)
“O presidente reconheceu a situação difícil, mas pediu aos empresários manterem a confiança e passarem
esse sentimento para o mercado em “Lula pediu para empresas manterem a confiança”
(http://www.parana-online.com.br/editoria/economia/news/341785/?
noticia=LULA+PEDIU+PARA+EMPRESAS+MANTEREM+A+CONFIANCA, 11/12/2008)
125
a maior parte da região a ficar marginalizada no processo atual de geração e apropriação de
valor. Seria o equivalente a renunciar ao desenvolvimento industrial no início do século XX”.
Paulo Arantes (2004: 25-7 e 39-40) reconstrói a fonte de frustrações recorrentes do mito
fundador no Brasil, e dos países periféricos em geral, do encontro marcado com o futuro. O
“temor de faltar ao nosso encontro marcado com a história” e de ficar fora dos “benefícios da
Segunda Revolução Industrial”, na visão por exemplo de Joaquim Nabuco, reaparece em
Castells. O encontro da hora é a economia informacional. Daí que a globalização segundo
Castells respire “o mesmo ar de família das finadas teorias da modernização à cata de
patologias superáveis nas sociedades periféricas”, “expressão de uma defasagem, como nos
bons tempos do progressismo funcionalista”.
De fato, os “obstáculos a superar” são analisados por Castells em termos de atraso, de
desfasagem, típicos conceitos da perspectiva do sub-desenvolvimento: falta de modernização
do sistema produtivo, que gera uma desfasagem de produtividade com as economias
avançadas dificultando a concorrência; falta substancial de ligação entre o sistema de P&D e o
mundo empresarial; atraso na educação apesar das reformas e esforços das últimas décadas
152
;
a “desfasagem tradicional entre os países industrializados e os países produtores de produtos
primários” que vem sendo predominantemente reproduzida (Castells, 2002b: 411-2). E os
desafios são exatamente propostos em termos de preencher essas faltas: desenvolver um
sistema de P&D, capacitação de recursos humanos, educação a distância, infra-estrutura de
comunicações.
Mas, para isso: “os governos e as instituições financeiras precisam estimular o
crescimento dos mercados profissionais de capital de risco e ajudar a financiar a criação de
projetos empresariais, rompendo, ao mesmo tempo, com a postura conservadora e as
estratégias especulativas das instituições financeiras latino-americanas, práticas conservadoras
estas em que se inclui a maioria dos bancos estrangeiros que operam na América Latina”
153
.
A proposição é altamente ética e igualmente ingênua
154
. Confunde a causa com o efeito
152 Em muitos países da América Latina, o declínio da educação tem como uma de suas causas as reformas e
esforços das últimas décadas.
153 Marx já disse que “para la economía burguesa era decididamente importante anunciar la acumulación de
capital como el primer deber cívico e predicar infatigablemente que no es posible acumular si uno se devora
todo su rédito, en vez de gastar una buena parte del mismo en la contratación de trabajadores productivos
suplementarios, que producen más de lo que cuestan” (C I, 22, 726).
154 Com essa frase se referiu Chico de Oliveira (2003: 31) em 1972, em “Crítica à razão dualista”, à denuncia de
Prebisch sobre os mecanismos do comércio internacional que levam à deterioriação dos termos de
126
pois “foi a própria falta de financiamento e rentabilidade produtiva à escala global que induziu
o capital monetário a lançar-se na estratosfera especulativa” (Kurz, 1995). Como vimos, a
incapacidade de adaptação virtuosa aos “modelos” centrais pelas nações periféricas não é a
causa mas a manifestação da decadência global.
Castells se pergunta como lidar com as questões mais prementes na América Latina, a
pobreza, o subemprego e as necessidades básicas. A resposta sempre acaba sendo um novo
modelo de geração da riqueza, o modelo que chamo de desenvolvimento informacional”
(2002b: 413). As respostas a perguntas realmente cruciais não fazem mais que re-pôr o
modelo de desenvolvimento informacional mas tão só como resposta genérica que mostra a
necessidade mas não a factibilidade de se adequar a esse modelo. Essa visão do sub-
desenvolvimento revela-se incapaz de dar conta dos desafios propostos, pois o que se analisa
como condição específica dos países atrasados desde a qual deve atingir-se o novo paradigma
de desenvolvimento, é na verdade resultado do processo de desenvolvimento global. Como
afirma Kurz (1992: 160), na atribuição das crises atuais a processos de adaptação dolorosos na
transição ao modelo certo, as condições e estruturas da suposta transição permanecem uma
“caixa preta”.
Esses giros no vazio, buscas inconsequêntes de alocar uma esperança ilusória, repõem-
se num livro de 2005 dedicado ao desenvolvimento no Chile: Globalización, desarrollo y
democracia: Chile en el contexto mundial. A questão fundamental é saber “em que medida o
Chile pode superar e gerir as crises recorrentes e destrutivas que têm caracterizado a
globalização do continente na última década” (2005: 13). Felizmente nos encontramos com o
reconhecimento de uma “contradição entre os requisitos de funcionamento do novo sistema de
produção e organização social estruturado globalmente e as condições concretas da América
Latina no início do século XXI” (idem: 48). Também com a advertência de que “funcionar
como a Califórnia ou como a França sem sê-lo, leva à economia ficção”. A crise argentina de
2001 seria uma “expressão da insustentabilidade de uma economia globalizada sem bases
reais para manter uma convertibilidade paritária com o dólar” (idem: 49 e 51).
intercâmbio em desfavor dos países latino-americanos. Prebisch estaria esperando que os países
industrializados “reformem” seu comportamento.
127
(Por uns instantes nos deixamos levar... talvez devamos abrir um novo capítulo na
tese... alguma coisa assim como “a re-radicalização de intelectuais des-radicalizados”?...
especulamos que a evidência cada vez mais espantosa da crise estrutural em curso pode
provocar novas inflexões nas trajetórias intelectuais... e continuamos lendo)
Qual é o problema dessas condições concretas? Altos custos sociais e econômicos na
transição; débil capacidade produtiva e competitiva que não permite integrar à maioria; falta
de flexibilidade organizativa das empresas e baixa capacidade tecnológica (idem: 32-4). A
contradição entre os requisitos do sistema e as condições concretas da América Latina,
potencial momento de uma crítica radical, vira mera constatação da debilidade das condições
locais, que podem ser melhoradas a través de mudanças no modelo. Não é casual, então, que
Castells (2005: 13), recuperando a formulação de Fernando Fajnzylber, economista chileno
autor de A industrialização truncada da América Latina, de 1983, conceba o processo como
uma “globalização truncada. Contrário à compreensão da “completude” das modernizações
retardatárias, com suas industrializações seletivas que deixam massas sem explorar, essa
noção de globalização truncada implica a perspectiva de uma formação incompleta, de um
processo em curso que ainda deve e pode ser completado. Completar o processo significa para
Castells dar bases reais à nossa inserção na globalização. Fazia parte da “cronologia oficial”
da crise reconstruída por Beinstein a ideia de uma “inserção errônea” no mercado livre
internacional. Para Castells a ideia de uma má inserção se resume na “globalização sem
informacionalização”. A base real para Castells é o informacionalismo. A receita se resume
então em globalização com informacionalismo
155
.
Castells registra algumas condições concretas do Chile que vêm apontando em direção
ao informacionalismo (2005: 74-6), e baseia a sustentabilidade social, ecológica e econômica
155 “La integración en la globalización sin informacionalismo conduce a una estructura socioeconómica
excluyente”, el antídoto a la exclusión social selectiva es el salto al informacionalismo y la progresión de
una globalización por etapas, mediante integración comercial regional y mediante la regulación de los flujos
de capitales”, “La integración autónoma en la globalización exige una profunda reforma tecno-económica en
el conjunto del continente” (Castells, 2005: 48-9). Informacionalismo e mais alguns detalhes: “sin
informacionalismo, sin regulación gradual de la globalización, sin Estado reformado, sin legitimidad
política, sin control de la economía criminal, sin principios de identidad compartida y sin formas de debate
y participación política de los grandes sectores excluidos, la globalización truncada de América Latina no
parece social y políticamente sostenible” (idem: 52).
128
do modelo de desenvolvimento chileno no aprofundamento do seu caráter informacional (Cfr.
idem: 72-95). E aqui, de novo, apesar da advertência do risco da extrapolação, enfatiza as
lições do modelo finlandês (Cfr. idem: 95-110).
Mas vale também para a África o lema de globalização com informacionalização. Na
trilogia referia-se ao “custo social, econômico e político dessa tentativa fracassada de
globalizar as economias africanas sem informacionalizar suas sociedades” (FM: 141). Mas
constata em outro lugar que pela sua chegada tarde à independência a África “não pôde tirar
vantagem do processo de globalização, pois era muito fraco para concorrer” (2003: 121)
156
.
Mas isso não leva Castells a problematizar a lei da selva do processo de globalização, mas
simplesmente constata o fato de alguns serem fracos para lutar.
E Castells não encontra explicação satisfatória para a insuficiência das boas ações do
mundo desenvolvido para superar essa situação. Segundo o autor, sabemos o suficiente para
atuar rapidamente na construção de um “novo modelo de desenvolvimento global,
compartilhado [shared]”. Mas, “o problema não é tanto o que fazer mas quem o faz, para
quem, como fazê-lo e com quais recursos” (idem: 47-8).
Legitimação para o próprio centro
Mas, o próprio Castells mostrou, sem querer, que a globalização com
informacionalização é uma combinação explosiva, inclusive para o próprio centro: A
informacionalização promove o aumento na oferta de emprego nos Estados Unidos nos setores
que exigem maior qualificação, enquanto a globalização exporta os empregos do setor
industrial de menor qualificação para os países recém-industrializados”. Assim, há um
descompasso cada vez maior entre o perfil exigido por muitos dos novos empregos e aquele
156 “O neocolonialismo destruiu as condições institucionais enquanto abriu as economias de sobrevivência ao
mercado mundial. Agora, uma proporção abrumadora de africanos têm insuficiente instrução para serem
explorados como produtores, na ausência de infra-estrutura produtiva, e são pobres demais para serem
interessantes enquanto consumidores. Então, os únicos bens comercializáveis são matérias primas
(incluindo recursos energéticos), algumas mercadorias básicas, e pedras e metais preciosos e raros”
(Castells, 2003: 122). Nas palavras sentidas de FHC: Todo o socialismo nasceu da crítica da exploração,
etc. Pois bem, a situação atual é mais complicada, porque há imensas porções da humanidade que não são
nem exploradas, nem exploráveis, são postas à margem pelo setor dinâmico, porque elas não servem para os
fins do setor dinâmico” (Cardoso, 2004).
129
apresentado pelos negros de baixa renda que moram nas áreas centrais das cidades”. “O
emprego formal em geral desaparece, principalmente para os homens e, em escala ainda
maior, para os jovens do sexo masculino, nas áreas ocupadas pelos guetos negros” (FM: 167-
9).
As análises de Beinstein sobre os Estados Unidos chamam a atenção para a “aparente
contradição entre mutação tecnológica e declínio econômico”, observam a dualidade do
centro global, “sua fortaleza hegemônica associada à sua debilidade estratégica”, seu
abrumador predomínio tecnológico e a posição dominante de suas demandas internas,
vinculados aos fenômenos de desaceleração das últimas, e super-endividamento público,
desemprego e precarização laboral, dependência da super-exploração periférica. A inovação
tecnológica, a redução do protecionismo comercial com a expansão desmedida do comércio
internacional e a deslocalização das empresas incrementaram a margem de autonomia das
grandes empresas em relação aos mercados nacionais. Esses aspectos, pilares da ideologia da
vitória da economia global de mercado, foram na verdade efeito e causa da crise (Beinstein,
1999: 122-5). A inovação agrava as desigualdades (idem: 47)
157
. E mostrava para os anos 90
nos Estados Unidos indicadores negativos como pano de fundo de um aparente “bom
comportamento macroeconômico” (idem: 203-10).
Por não haver nenhuma saída “precisa-se continuar sem cessar na construção de um
castelo ideológico no ar”, e, para isso, “todo aspecto parcial insignificante é abalofado,
tornando-se notícia de sucesso” (Kurz, 1992: 159). Há, então, um duplo papel ideológico de
Castells: permanência de prosperidade, para o centro; promessa de prosperidade, para a
periferia. Podemos afirmar que nesse duplo papel reside uma especificidade histórica das
atuais ideologias desenvolvimentistas, produto da crise global do sistema produtor de
mercadorias. Antes, a prosperidade do centro, ainda que dependente parasitariamente de um
sistema global, era real. Portanto, o papel ideológico estava focado na periferia. Pela chegada
da crise no centro do sistema, tem que ser iludida também a própria consciência do pretenso
vencedor
158
.
157 Em 1999, dados assustadores sobre o aumento da participação de um número limitado de empresas no
Produto Bruto Mundial (as 200 maiores passaram de 17% em 1965 a 33% em 1997; faturações de grandes
empresas maiores que a soma de vários países). “Esse sistema de empresas globais tem capturado a quase
totalidade da estrutura produtiva avançada” (Beinstein, 1999: 59-66).
158 Em relação ao status quo ocidental de prosperidade, “tanto os ideólogos quanto as massas do Leste, Oeste e
130
Assim, onde Beinstein mostra indicadores negativos como pano de fundo de um
aparente bom comportamento macroeconômico, Castells encontra bom desempenho
econômico com desigualdade social. Onde Beinstein aponta o vínculo entre a fortaleza
hegemônica e a debilidade estratégica, Castells desvincula fortalezas e debilidades.
No caso da Finlândia, seu modelo preferido:
A financeirização da economia é apontada como fonte de vulnerabilidade,
instabilidade do sistema
159
, à qual tem que se contrapor um Estado de bem-estar e uma
economia de crescimento. Mas a base ideal do financiamento da inovação, motor desse
crescimento, é exatamente a financeirização da economia
160
. Ele propõe a flexibilidade como
caminho universal. E atenta para os efeitos regressivos dessa flexibilidade. A integração na
economia global torna o modelo finlandês vulnerável
161
mas ao mesmo tempo é a fonte do
financiamento da Nokia, fundamental no seu novo modelo de negócio
162
. A elevada pressão
fiscal, apontada como problema na construção multicultural da Finlândia e na adquisição de
trabalho qualificado
163
, é a base do financiamento desse Estado de bem-estar
164
. A
flexibilidade demandada pela nova economia da sociedade em rede, se contrapõe diretamente
com o Estado de bem-estar
165
.
Sul estão se enganando uns aos outros e a si mesmos, fingindo uns que ainda se encontram nesse estado, e
os outros, que somente aguardam o momento de alcançá-lo” (Kurz, 1992: 151).
159 A plena integração na economia global torna o modelo finlandês vulnerável à volatilidade sistêmica dos
mercados financeiros e às súbitas e agudas recessões características da nova economia” (2002: 211-2).
160 O Estado de bem-estar “é crucial no modo finlandês, desde que Finlândia não tem os recursos de programas
militares nem de grandes corporações, como foi o caso dos EUA. Sitra foi crucial no fornecimento de
capital de risco e na orientação de várias iniciativas e várias empresas (incluindo Nokia) em momentos
críticos” (2003: 44).
161 O maior desafio da Finlândia deriva “da tendência, globalmente dominante, de promover a economia à custa
do Estado-Providência. A profundidade da integração na União Europeia, baseada nos modelos sociais de
sociedades mais desiguais, ameaça a capacidade da Finlândia de conservar o seu modelo de Estado generoso
de bem-estar social” (2002: 227).
162 “Só a partir de finais dos anos 80, com a liberalização do controle sobre as movimentações de capitais
incluindo acções e outros produtos financeiros- é que a Nokia teve a possibilidade de obter capital suficiente
sem se ver obrigada a transferir o controlo para os bancos”; “abriu-se para investidores de todo o mundo [...]
Como a cotação dos mercados financeiros é a prova irrefutável do rendimento de uma empresa na economia
informacional, a transformação da estrutura de propriedade da Nokia pode ser considerada como a base de
um novo modelo de negócio” (2002: 41-2).
163 A “elevada pressão fiscal” faz impossível concorrer por trabalho altamente qualificado; com os impostos
nesse nível, o modelo de Finlândia atrai capitais mas não pessoas (2002: 236-9).
164 “Não é possível ter um Estado de bem-estar com baixos impostos. Mas o financiamento do Estado baseado
em impostos é redistributivo da riqueza”; impostos altos “são a base da produtividade e competitividade das
companhias finlandesas na economia global” (2003: 85).
165 A “contabilidade eclética dos lados 'bons' e 'ruins' de um sistema social” provoca o lamento diante da perda
da 'função protetora' de sistemas desregulamentados, “como se a convertibilização forçosa dessas moedas e
os fenômenos de crise correspondentes (paralisação de empresas, desemprego em massa) não fossem um
131
O que Castells não explica é que as debilidades apontadas fazem parte constitutiva do
processo. Portanto, o modelo não é sustentável nem de acordo com o próprio parâmetro de
sustentabilidade de Castells: as suas bases não são extrapoláveis linearmente
166
.
Afinal, a constatação empírica da persistência do modelo finlandês, apesar das
pressões, reforça a validade do modelo: Até agora, as evidências sustentam que, apesar das
pressões da economia da informação global, a Finlândia continua a ser um tipo diferente de
sociedade de informação, combinada com um generoso Estado de Bem-estar” (2002: 121).
Reconheçamos que uma generosidade bastante limitada, pois a experiência finlandesa
representa a “emergência de uma sociedade em rede socialmente sustentável”, a despeito do
desemprego que, segundo dados do próprio Castells, em 2002 ainda não tinha descido “abaixo
dos 10% da força de trabalho” (idem: 18).
Estado, identidade de projeto e legitimidade prescritiva
Faz parte desse trabalho de legitimação dupla a prescrição de construir identidades de
projeto associadas à sociedade informacional.
Aparentemente contrário à 'propaganda tecnocrática', trata-se de uma tentativa de
convencer as pessoas a assumirem o projeto do desenvolvimento informacional; tratar-se-ia de
construir uma identidade de projeto que integre elementos “muito mais de acordo com a
estrutura econômica, social e política da sociedade da informação” (Castells, 2007: 179).
Em 2007, publica La transición a la Sociedad Red, uma obra coletiva sobre a Espanha.
Ali, detecta-se uma rejeição da Internet por uma parte significativa da população. Para
Castells, é uma 'população ancorada em práticas, ideias e tecnologias de um mundo que,
atualmente, só existe em sua mente” (idem: 214). Mas, “a incorporação majoritária da
produto específico desses próprios sistemas monetários” (Kurz, 1995: 152).
166 No livro sobre o Chile, Castells (2005: 82) formula o critério de sustentabilidade que aqui uso contra ele
mesmo: A sustentabilidade de um modelo de desenvolvimento define-se pela capacidade de preservar as
bases sobre as quais se assenta o modelo a partir da extrapolação linear de suas características”.
132
sociedade catalã à rede não pode provir da ideologia da modernidade tecnológica, senão da
transformação cultural de uma sociedade que encontre na Internet usos e aplicações adaptados
à sua vida tal e como ela é” (idem: 99).
Castells vai fortalecendo a proposta de uma compatibilização da sociedade em rede
com o Estado de bem-estar. No caso do Chile, na proposta de Castells (2005: 150-1) era o
próprio Estado o ator central na construção de uma identidade de projeto em direção à
adequação do país ao modelo de desenvolvimento informacional. Castells reconhece aqui que
'não há projeto sem sujeito', e pelo baixo grau de articulação autônoma da sociedade chilena, é
o Estado quem deve assumir a condução do processo de desenvolvimento. Mas, “naturalmente
se baseando na empresa privada e no mercado como agentes de criação de riqueza. Mas
facilitando as condiciones infra-estruturais, institucionais e culturais, para que essa riqueza
possa gerar-se no marco de uma economia globalizada do conhecimento”. Tratar-se-ia de um
“acordo estratégico orientado em direção a essa modernização competitiva”. Um “projeto
coletivo modernizador, com um interesse comum por cima das ideologias”.
Para afrontar esse desafio, Castells (idem: 141-3) considera essencial a existência de
uma identidade coletiva como principio de coesão. Uma identidade-projeto, isto é, uma
identidade a partir de uma prática comum em direção a um objetivo compartilhado. Caso
contrário, “a sociedade da informação aparece simplesmente como propaganda tecnocrática
de modernidade”.
O Estado de Bem-estar vem então para resolver a tensão entre a sociedade em
rede e a identidade, legitimando a primeira
167
. É recorrente em toda a obra de Castells a
preocupação com a legitimidade do Estado
168
. A preocupação da legitimidade em termos
167 Diante da pergunta de se “poderá existir uma relação legitima entre a identidade e a Sociedade da
Informação”, Castells (2000: 184) responde que a “integração da Sociedade da Informação com o Estado-
Providência [...] tem sido o principal motivo para não haver uma forte resistência contra a Sociedade da
Informação na Finlândia”.
168 “Como em todos os processos de mobilização social, é importantíssimo identificar as fontes de legitimidade
que permitem que o agente principal do processo (neste caso, o Estado japonês) tenha o respaldo da
sociedade e os negócios sob sua coordenação” (FM: 262).A incapacidade cada vez mais acentuada de o
Estado-Nação atender simultaneamente a essa ampla gama de exigências leva ao que Habermas denomina
'crise de legitimação', ou, segundo a análise de Richard Sennet, à 'decadência do homem público', a figura
que representa a base da cidadania democrática. Para superar tal crise de legitimação, os Estados
descentralizam parte de seu poder em favor de instituições políticas locais e regionais”, “faz com que
concorram diretamente com seus próprios Estados centrais” (PI: 317). “parece confirmar o dito popular
133
descritivo-analíticos torna-se prescritiva.
Já em 1983, Castells (1983: 327-9) advertia que “se as avenidas políticas permanecem
fechadas” as utopias podem voltar “como sombras urbanas, ávidas por destruir os muros
fechados de sua cidade cativa”. Essa advertência era de alguma maneira um apelo de Castells
à sociedade burguesa para ouvir a demanda dos movimentos urbanos e aceitar o desafio da
transformação.
Mais recentemente: “Não há tecnologia que possa parar centenas de milhões de
pessoas empobrecidas, fanáticas, que podem reagir tanto em termos de sua fé religiosa como
em termos de sua insurgência contra a exclusão social. É por isso que a política de um
desenvolvimento comum numa escala gigantesca é a única maneira de desativar essa bomba
de tempo (2003: 99). Essa parece ser outra advertência do assessor Castells endossada aos
poderosos, para os quais o estouro dessa bomba de tempo pode ser um problema. O que não é
dito aqui claramente é que, para esses empobrecidos, a bomba de tempo já estourou
169
.
E depois do diagnóstico de que em regiões da Finlândia não há uma verdadeira
estratégia de desenvolvimento regional, pois “a difusão do uso da Internet, por si só, não
aumenta o emprego”, e que o desenvolvimento regional requer exatamente a “criação de
postos de trabalho”, legitima-se a difusão da Internet pois “constrói e reforça a comunidade”,
e “num momento em que a Finlândia está plenamente comprometida com a construção de
uma Sociedade da Informação através e em torno da Internet a população sente que também
faz parte desse projeto. Não são marginalizados pelo novo paradigma tecnológico” (2002:
176-7; itálica minha)
170
. A aparente crítica do limite da inclusão tecnológica se desfaz em
conciliação. O importante é que as pessoas sintam que fazem parte do novo paradigma
tecnológico, ainda quando este tenha mostrado que não pode oferecer lugar para todos. Com
segundo o qual os governos nacionais na Era da Informação são muito pequenos para lidar com as forças
globais, no entanto muito grandes para administrar as vidas das pessoas” (PI: 319).
169 “Quando certos gurus ocidentais mostram sua preocupação diante do possível desenvolvimento do que
qualificam como despolarização caótica estão exprimindo um grande medo universal, consciente ou
inconsciente, em face da perspectiva da reaparição do odiado fantasma anticapitalista, várias vezes
declarado morto e exorcizado, mas sempre ameaçante” (Beinstein, 2009c). Também Raymond Aron tinha,
para Jean-Paul Aron, “horror da desordem”, era “um burguês idealista do século XIX” que pensa na “vitória
da sabedoria em uma humanidade conhecedora” (Aron, 1988: 322). “O grande desafio normalizador desta
ordem serão os pontos de intersecção e de isolamento entre estes dois momentos funcionais a presença da
barbárie e a acumulação do capital [...] A base que permite o surgimento de uma tal ordem é a persistência
da ilusão com respeito às leis fetichistas que regem a acumulação do capital” (Menegat, 2003: 218).
170 Numa direção semelhante, Bourdieu propunha que é preciso voltar a dar sentido à política: para tanto é
necessário propor projetos para o futuro capazes de dar sentido a um mundo econômico e social que ao
longo das últimas décadas conheceu transformações enormes” (Bourdieu apud Jappe, 2006: 252).
134
essa expectativa alocada no desenvolvimento informacional, percebe-se o inimigo na obra
recente de Castells. O que deve ser combatido, mais do que o sentido das transformações em
curso, é a sensação de recusa que ela provoca.
Elemento-chave na des-radicalização essa procura pela legitimação faz assumir como
inexoráveis e alcançáveis os parâmetros da sociedade informacional que se reconhecem ao
mesmo tempo como inalcançáveis. Na tentativa de legitimação, a Sociedade da Informação
torna-se ela mesma um “projeto de construção da identidade” (2000: 190), donde a clara
positivação do desenvolvimento informacional em si mesmo
171
.
A crise global estourou em 2008, 5 anos depois de que Castells afirmasse sua
“improbabilidade” (2003: 91). A ideia da improbabilidade da quebra financeira global é um
indicador de sua concepção mais profunda de crise. José Nun (2001: 292) propunha pensar as
crises, seguindo a fórmula de Heilbroner, como “imprevisíveis embora não improváveis”.
Hoje as crises se tornam previsíveis e inevitáveis. Só “não se podem prever os detalhes
operacionais” do processo de desvalorização (Kurz, 1995).
Em 2009 afirma tratar-se de uma “crise financeira, resultante da volatilidade estrutural
dos mercados financeiros globais, como consequência de seu caráter global, interdependente e
desregulado”. Castells (2009) aponta para a “tecnologia de modelos financeiros baseados na
criação de capital virtual, tais como derivativos, opções e futuros, assim como a titularização
de qualquer bem e serviço e a co-lateralização de ativos financeiros e imobiliários [que] têm
levado à destruição de mais da metade do valor financeiro criado no mundo desde 2003”. E
em 2010, num novo prefácio de O Poder da Identidade: “a ideologia do laissez faire, suposta
alavanca das riquezas no novo mundo achatado, levou à irresponsabilidade financeira e
negligência política na administração do capitalismo Ocidental, induzindo, no final das
contas, a crise estrutural de 2008” (Castells, 2010: xxxv).
171 i.e., “o desenvolvimento informacional é social por definição pois é desenvolvimento das mentes, das
relações sociais e das instituições de aprendizagem, criação e inovação”. Ou “o projeto informacional
consiste em adaptar a tecnologia para os usos, interesses e valores da sociedade e de cada um de sus
indivíduos” (Castells, 2005: 143-4). Ou, “no fundo, o modelo informacional é a capacidade social e pessoal
de transformar a criatividade em força produtiva que permita por sua vez o desenvolvimento dessa
criatividade, num círculo virtuoso entre a arte de viver e a eficiência de produzir” (idem: 112).
135
Mas a curva apologética acompanha a evidência da crise. Castells aferra-se ainda mais
à ordem. Cego, repete a mesma receita: para Castells a “crise estrutural” “liquida, na prática, o
modelo de capitalismo global desregulado que tinha triunfado nas dois últimas décadas”.
Assim, o mais importante para sair da crise é “a intervenção sistemática do Estado sobre os
mercados financeiros, procedendo a um novo ciclo de regulação e controle da economia”
172
.
Mas, atentando para a injeção de uma enorme massa de capital público para substituir o fluxo
de crédito e deter a queda da produção e do emprego, e para a insustentabilidade desse “nível
de estímulo fiscal”, afirma que “as causas da crise não têm sido resolvidas e o que se coloca é
a reforma do modelo de crescimento da economia de mercado, algo que ninguém sabe
realmente como fazer. E dado que a crise é global e não há regulador global, os desequilíbrios
continuarão se acentuando”. Mas é já uma receita sem força nem convicção, pois assume-se
que ninguém sabe realmente como agir. Ora, recomenda para os indivíduos, nas condições de
flexibilização do mercado de trabalho, “contar com uma boa formação de base que permita re-
programar a própria atividade em função dos interesses próprios e da demanda do mercado”
(Castells, 2009; itálica minha).
Livros do período:
2000: “Internet e Sociedade em Rede”
2001: A Galáxia da Internet: Reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade.
2002: “O novo paradigma do desenvolvimento e suas instituições: conhecimento, tecnologia da
informação e recursos humanos. Perspectiva comparada com referencia à América Latina”
2002: e HIMANEN, Pekka. A sociedade da informação e o Estado-Providência. O modelo finlandês.
2003: e INCE, Martin. Conversations with Manuel Castells.
2004: (ed.) The Network Society: a Cross-Cultural Perspective.
2005: Globalización, desarrollo y democracia: Chile em el contexto mundial.
2006: “Inovação, liberdade e poder na Era da Informação”
2007: La transición a la sociedad red.
172 No movimento ondulatório de elementos estatistas e elementos monetaristas, “Estado e mercado
condicionam-se mutuamente, não como complementação idealmente equilibrável de elementos sociais
civilizatórios, mas sim como institucionalização de um antagonismo violento”. É característica da
consciência burguesa, e também da esquerda, a compreensão da época precedente através da ótica do lado a
cada vez dominante da contradição” (Kurz, 1992: 43-5).
136
III. A DES-RADICALIZAÇÃO: EM DIREÇÃO A UMA RACIONALIDADE
TECNOLÓGICA
1. A racionalidade tecnológica e o ponto de vista das forças
produtivas
Em 1968 Adorno (Cfr. 1986) abriu o “XVI Congresso Alemão de Sociologia” com a
palestra “Capitalismo tardio ou sociedade industrial?”. Começavam a estar em voga
proposições em relação à superação em curso da sociedade industrial e no mesmo processo, as
vezes explicitado e a maioria das vezes implícito, a superação também em andamento e sem
dor do próprio capitalismo. Adorno propõe inicialmente que, nas categorias da teoria crítica
dialética, a sociedade contemporânea é sobretudo uma sociedade industrial no nível das suas
forças produtivas e é capitalismo em termos de suas relações de produção. Nesses termos,
parece semelhante à distinção de Castells entre modo de produção e modo de
desenvolvimento. No entanto, na maneira como Adorno desenvolve o assunto temos
indicações muito importantes para repensar a maneira como se determinaram frequentemente
as relações de produção e as forças produtivas. Segundo Adorno, Marx tinha previsto
otimisticamente que a primazia das forças produtivas fariam explodir as relações de produção.
Poderia se pensar, então, como de fato se pensa frequentemente, que as forças produtivas
devem ainda ser soltas dos grilhões que significam para elas as relações de produção. Ou
então, que a primazia das relações de produção indicam o desenvolvimento ainda insuficiente
das forças produtivas como para pôr em cheque as primeiras. Ou que chegamos no momento
em que outras relações de produção devem surgir para utilizar de outra maneira as forças
produtivas existentes.
Todas essas respostas têm em comum a polaridade que estabelecem na relação entre as
forças produtivas e as relações de produção. Esse modo de situar o problema não permite uma
solução satisfatória.
Na leitura de Adorno, a marca de nossa época é a predominância das relações de
produção sobre as forças produtivas. Desse impasse Adorno deduz que é inaceitável sobretudo
137
para a teoria dialética estabelecer as forças produtivas e as relações de produção simplesmente
como pólos opostos. Essas categorias são delimitadas uma pela outra, cada uma contem a
outra nela mesma. Portanto, se por um lado essas categorias devem ser diferenciadas, devemos
usar constantemente uma como meio para compreender a outra. Historicizando o
desenvolvimento dessas categorias, afirma que as forças produtivas estão, mais do que
nunca, mediadas pelas relações de produção. Assim, percebendo que a exigência de
crescimento acelerado da produção em regiões subdesenvolvidas requereu uma administração
ditatorial, Adorno mostra que do desbloqueio das forças produtivas surgiram grilhões
renovados, aqueles das relações de produção.
A polarização entre as categorias forças produtivas e relações de produção constitui já
em si um equívoco na compreensão categorial do modo de produção capitalista. No entanto,
esse equívoco se torna mais flagrante, a teoria que nele se sustenta cada vez menos
explicativa, e a prática que nele se informa cada vez mais infecunda, na medida em que as
forças produtivas são cada vez mais mediadas pelas relações de produção.
Quando as forças produtivas se tornam tão completamente mediadas pelas relações de
produção, estas últimas aparecem como sua essência, tornam-se completamente uma segunda
natureza. E ao mesmo tempo, a dominação das relações de produção sobre os seres humanos
exige sobretudo o estado completamente maduro de desenvolvimento das forças produtivas.
Essa condição em que as relações de produção se tornam uma segunda natureza, explica a
questão das promessas incumpridas do progresso: por um lado, a impossibilidade de efetivar
essas promessas; por outro lado, a permanência da ilusão. As relações de produção, enquanto
essência invisível das forças produtivas, comandam de maneira oculta o processo do seu
desenvolvimento.
Para Adorno, que as forças de produção e as relações de produção atualmente sejam
uma, e que se possa construir imediatamente a sociedade desde o ponto de vista das
forças produtivas, assinala que a sociedade atual é aparência socialmente necessária. Essa
aparência socialmente necessária é a base real para as análises que hipostasiam a dimensão
técnica na análise da realidade, e para as ilusões que se ancoram exclusivamente nessa
dimensão. O “triunfo da produtividade técnica mantém a ilusão de que a utopia, incompatível
138
com as relações de produção, tem sido já realizada em seu reino”
173
. Mas “as contradições
tornam aquilo que é possível ao mesmo tempo impossível”.
Fazendo alusão à passagem naquele momento do processo econômico para as mãos do
poder político, ao mesmo tempo desdobramento da dinâmica lógica do sistema e
irracionalidade objetiva, Adorno afirmava que a irracionalidade da estrutura social
contemporânea bloqueia o seu desenvolvimento racional na teoria. O autor atrela a esse
processo, e não simplesmente ao dogmatismo estéril, a explicação da não-emergência por um
longo tempo de uma teoria objetiva da realidade realmente convincente. Desta maneira, a
regressão da sociedade corre paralela à do seu pensamento”. O abandono da tentativa de
uma teoria objetiva é para Adorno a expressão de uma resignação compulsória.
Por sua vez, no textoAlgumas implicações sociais da tecnologia moderna”, de 1942,
Marcuse (Cfr. Marcuse, 1999) analisou a transformação da racionalidade e dos padrões de
individualidade no decorrer do processo tecnológico. Para o autor, o processo de produção de
mercadorias, tendente à concentração do poder tecnológico e econômico, minou a base
econômica sobre a qual a racionalidade individualista se construiu. Nesse percurso, “a
racionalidade individualista se viu transformada em racionalidade tecnológica”. Isso implica
numa mudança profunda nos próprios valores de indivíduo e liberdade. O indivíduo eficiente
é aquele que reage adequadamente às demandas objetivas do aparato, e a liberdade do
indivíduo “está confinada à seleção dos meios mais adequados para alcançar uma meta que
ele não determinou”. Marcuse destaca que o distintivo dessa situação é que a submissão à
factualidade é altamente racional. Os fatos do processo da máquina aparecem como a
personificação da racionalidade e da eficiência. É um aparato racional combinando máxima
eficiência com máxima conveniência. É bem-sucedido quem segue as instruções, quem se
adapta ao aparato. Pela racionalidade da submissão, qualquer protesto é insensato. Nessa
eficiente submissão à sequência predeterminada de meios e fins, a razão serve à manutenção
incondicional do aparato. A renúncia à liberdade, sob os ditames da própria razão, faz perder a
173 Daí que, segundo Menegat, o desenvolvimento das forças produtivas seja “uma das questões determinantes
da legitimação do capitalismo tardio” (Menegat, 2003: 204).
139
habilidade de abstrair a forma específica em que a racionalidade é efetivada. É uma
factualidade que se opõe a qualquer valor que transcenda os fatos de observação, que descarta
as potencialidades não realizadas. A submissão se esconde por trás de uma atitude tecnológica
de desenvolver as energias experimentais sem inibições. Esse experimentalismo, que
acrescenta a eficiência do controle hierárquico entre os homens, e a eficiência lucrativa,
apresenta-se como a “realização final do individualismo, terminando por exigir o
'desenvolvimento da individualidade dos trabalhadores'”. Nesse percurso, a racionalidade
transforma-se de uma força crítica em uma força de ajuste e submissão. Ainda que a
racionalidade crítica e racionalidade tecnológica têm valores de verdade e padrões de
comportamento diferente, pode acontecer que valores de verdade críticos, às vezes
arrancados de contexto, se tornem valores tecnológicos. Marcuse põe como exemplo a crítica
da economia política, que se tornando uma economia política, funciona na luta entre grupos
comerciais conflitantes. Isto porque “as categorias do pensamento crítico preservam seu valor
de verdade somente quando levam à completa realização das potencialidades sociais que
vislumbram, e perdem seu vigor se determinam uma atitude de submissão fatalista ou
assimilação competitiva”. ideias outrora críticas, como liberdade, são “fundidas com os
interesses de controle e competição” e o “sucesso organizacional palpável” suplanta as
exigências da racionalidade crítica. A “familiaridade com a verdade” que se exprime nessa
apropriação e modificação de valores de verdade pela racionalidade tecnológica, mostra para
Marcuse “a que grau a sociedade se tornou indiferente ao impacto do pensamento crítico”.
Essa indiferença é um traço objetivo, filho da derrota que deu novo prazo de validade ao
capital. Entre as causas dessa impotência do pensamento crítico Marcuse destaca o
crescimento do aparato industrial e seu controle abrangendo todas as esferas da vida, e a
incorporação de setores importantes da oposição ao próprio aparato, sem perder o título de
oposição.
Na sua crítica formal da sociedade burguesa, Marx, partindo do valor e da mercadoria
como começo necessário
174
, fazia a crítica da grande indústria e das relações sociais que se
174 Karel Kosik frisa que a mercadoria, forma elementar do modo de produção capitalista, é um “começo
necessário, a partir do qual se desenvolvem necessariamente o resto das determinações”. Ao contrário, “sem
140
construíam em torno dela. A especificidade da análise de Marx do modo de produção
capitalista, em relação à análise em termos de sociedade industrial, é que superava o nível de
análise material para atingir a forma de vida social que conduz esse desenvolvimento e no
qual adquire sentido. Ali, a determinação da força produtiva enquanto categoria específica do
capital permite abordar a diferença das 'promessas' da tecnologia em abstrato, e da
'efetividade' da tecnologia enquanto capital, a lógica desmedida e contraditória do impulso
capitalista do desenvolvimento tecnológico. Marx denunciava a apologética capitalista nestes
termos:
“Es un hecho indudable que la maquinaria no es responsable en sí de que a los obreros se los
'libere' de los medios de subsistencia [...] ¡Y es aquí donde estriba la gracia de la apologética
capitalista! ¡Las contradicciones y antagonismos inseparables del empleo capitalista de la
maquinaria no existen, ya que no provienen de la maquinaria misma, sino de su utilización
capitalista! Por tanto, como considerada en sí la maquinaria abrevia el tiempo de trabajo, mientras
que utilizada por los capitalistas lo prolonga; como en sí facilita el trabajo pero empleada por los
capitalistas aumenta su intensidad; como en sí es una victoria del hombre sobre las fuerzas de la
naturaleza, pero empleada por los capitalistas impone al hombre el yugo de las fuerzas de la
naturaleza; como en sí aumenta la riqueza del productor, pero cuando la emplean los capitalistas lo
pauperiza, etc. el economista burgués declara simplemente que el examen en sí de la maquinaria
demuestra, de manera concluyente, que todas esas contradicciones ostensibles son mera apariencia
de la realidad ordinaria, pero que en sí, y por tanto también en la teoría, no existen" (C I, 13, 538).
Em Castells, o tecnologismo decorrente da distinção entre modo de produção e modo
de desenvolvimento faz com que a análise das relações técnicas de produção não seja
devidamente totalizada na compreensão das leis e contradições do modo de produção
capitalista. Isso tem desdobramentos numa análise em abstrato das promessas do modo de
desenvolvimento informacional, desconsiderando a sua subsunção no modo de produção
capitalista.
A perspectiva geral do Castells recente é que a tecnologia não define o rumo social,
mas a sociedade se apropria das tecnologias, adaptando-as ao que a própria sociedade faz”
(2000: 265 e 273)
175
que “a tecnologia per se não faz mal ou bem às sociedades” mas só
um começo necessário, a exposição deixa de ser um desenvolvimento, uma explicação, para se transformar
numa combinação eclética, ou um contínuo saltar de um assunto para outro ou, por último, o que se opera
não é o desenvolvimento interno e necessário da coisa em si, mas o desenvolvimento do reflexo da coisa, da
meditação sobre a coisa, o que é – em relação à coisa, algo externo e arbitrário” (Kosik, 1967: 52).
175 Castells propõe diferenciar a lógica embutida num paradigma tecnológico com o impacto social que tem que
ser pesquisado empiricamente (SR: 109). Assim, se pergunta se propriedades da Internet como a
penetrabilidade, a descentralização multifacetada a flexibilidade, a interatividade e a individualização
tecnológica culturalmente embutidas, se transformam em padrões de comunicação (SR: 442). Atenta para a
“grande elasticidade social de qualquer tecnologia” (SR: 449).
141
“acentua tendências existentes ou potenciais” (2003: 59). A neutralidade axiológica em
relação à tecnologia faz parte daquela recusa de qualquer tipo de teleologia na análise. Essa
recusa de um sentido na história faz Castells afirmar que devemos ser agnósticos em relação à
bondade da sociedade, dos movimentos sociais, da tecnologia
176
.
A despeito da recusa de determinismo tecnológico, a estrutura da trilogia convida à
percepção do contrário, pois o começo da análise são as mudanças tecnológicas. Já no livro
sobre a Espanha, o 'começo necessário' explícito é a Internet. Ela constitui o “ponto de entrada
fecundo para a observação do conjunto de mudanças organizativas, sociais e culturais das
quais é um vetor fundamental” (2007: 13). Essa proposição se sustenta por uma equivalência
entre o papel da Internet no desenvolvimento da sociedade em rede e o papel do motor elétrico
na expansão da sociedade industrial
177
. Encontramos na obra recente de Castells muitos
exemplos de construção da base de análise empírico de maneira a provar a sua própria base
teórica
178
. Castells constrói sua informação na medida da teorização da Sociedade em Rede,
eufemismo do capitalismo com uma base tecnológica específica, já incompatível com a
análise da acumulação do capital. “Temos gerado nossos próprios dados para construir as
categorias de análise que requeria nosso marco teó rico” (idem: 223). Assim, por exemplo a
elaboração de indicadores de níveis comparativos e de desenvolvimento da
“informacionalização” (FM: 288). Ou a construção de uma “base empírica da análise sobre a
flexibilidade no trabalho e a distribuição espacial da Internet na Finlândia” (2002: vii).
Constrói-se o uso da Internet como indicador mais direto da sociedade em rede (2007: 25),
indicador de “mudança cultural, mental e organizativa, mais que como um elemento de
difusão tecnológica” (idem: 210). Difusão de internet medida pelo número de usuários e o
176 Os movimentos sociais “não são necessariamente progressistas. Também depende de como definimos
progressista. É uma questão de gosto pessoal. Muita gente na América Latina, e algumas na França, ainda
consideram o comunismo como progressista – uma opinião da qual eu discordo firmemente”. “A chave aqui
é ser agnóstico em relação à bondade da sociedade. Bom para quem, para que, sob quais circunstâncias?
Não há movimentos sociais bons e maus. Há movimentos sociais, cujos objetivos, crenças e lutas são fonte
de mudança social num processo que não está predeterminado. A história não tem direção. A história não
tem mais sentido do que o sentido que nós fazemos da história [History has no other sense than the history
we sense]; não está fora de nós, como foi representado pela ideologia liberal do progresso ou pela concepção
marxista do desenvolvimento das forças produtivas enquanto o motor de um desenvolvimento humano
linear” (Castells, 2003: 62-3).
177 “para estudar o processo de criação da sociedade industrial utilizou-se a observação das novas formas de
trabalho na fábrica permitidas pelo motor elétrico, as novas formas de urbanização baseadas no transporte
elétrico ou no carro e os novos meios de comunicação que surgiram a partir do rádio e da televisão” (2007:
27).
178 Agora, “a única forma de saber que é exatamente a sociedade em rede, em que consiste a mudança histórica
na era da informação, é pesquisar a partir dos métodos estabelecidos da pesquisa científica” (2007: 12).
142
número de conexões como “indicador aproximado do desenvolvimento da sociedade em rede,
tal como o era e continua sendo- o número de quilowatts produzidos e consumidos em
relação com o crescimento da sociedade industrial desde o final do século XIX” (idem: 32).
Se uma ideia de “democracia baseada no consumo energético” fazia parte da expansão
fordista (Kurz, 1995), agora Castells parece acrescentar uma ideia de “democracia baseada no
uso da internet”: “a tecnologia da informação e a capacidade de utilizá-la e adaptá-la
representam, em nossos tempos, o fator crítico para a geração de riqueza, poder e
conhecimento, bem como para o acesso a esses atributos”. A África, “região menos
informatizada do mundo [e] privado da infra-estrutura mínima necessária ao uso de
computadores”. 288 kW per capita de utilização comercial de energia em 1993 (536 kW para
países em desenvolvimento e 4589 kW para países industrializados) (FM: 116-7).
Uma definição indefinida do que seria essa sociedade que se apropria da tecnologia
179
apaga a análise das tendências em curso que comandam o desenvolvimento e uso das
tecnologias. Assim, a despeito da afirmação de que a tecnologia só potenciaria tendências
sociais, Castells acaba hipostasiando a lógica libertária embutida na Internet.A Internet
tem sim algumas características específicas, como maior liberdade de comunicação e
interatividade global, que a faz ideal para construir redes” (2003: 59). A Internet é a infra-
estrutura tecnológica e o meio organizativo que permitem o desenvolvimento de uma série de
novas formas de relação social que não têm sua origem na Internet, que são fruto de uma série
de mudanças históricas, mas que não poderiam desenvolver-se sem a Internet”. A Internet
“não é simplesmente uma tecnologia; é o meio de comunicação que constitui a forma
organizativa de nossas sociedades” (2000: 286-7). A sociedade em rede caracteriza-se, em
todas as culturas, por um incremento substancial do nível de autonomia das personas e da
sociedade civil em relação às instituições do Estado e das grandes empresas. Esse traço
cultural não depende da tecnologia mas da evolução social” mas “a plataforma tecnológica
idônea para essas redes construídas pelos projetos espontâneos que surgem da sociedade é a
Internet”
180
. Afinal, a Internet “incrementa a sociabilidade” e “ativa as pessoas”, é um
179 A sociedade é um sistema complexo [complicated], cheio de interações causais, que dão forma e torcem a
tecnologia para usos imprevistos” (Castells, 2003: 24). “esse novo sistema socioeconômico (baseado na
globalização e na empresa em rede) pôde se expandir e florescer pela possibilidade do uso da Internet, uma
tecnologia que esteve dormente por um quarto de século antes de ser completamente apropriada pelos
negócios e pela sociedade” (idem: 30).
180 Castells, 2007: 181. Nessa formulação sobre a autonomia crescente dos indivíduos, remete a Anthony
Giddens.
143
instrumento de liberdade, mas só para aqueles que a valoram e a praticam”
181
.
A Internet é no fim das contas, equivalente imediato de liberdade, ela potencia o traço
libertário das novas relações sociais e estas efetivam a essência libertária da Internet.
Já analisamos a autonomização excessiva do papel do conhecimento em relação ao
capital na distinção fundamental na obra recente de Castells entre modo de produção e modo
de desenvolvimento. Vimos que as novas condições tecnológicas e organizacionais da Era da
Informação provocavam uma grande reviravolta no velho modelo da busca do lucro como
substituto da busca da alma (FM: 95). Chegará então ao ponto a se autonomizar o
informacionalismo em relação ao processo destrutivo pelo qual a abstração real do valor
comanda e da forma à reprodução material:
“o modelo de desenvolvimento intensivo em informação, deveria permitir uma utilização não
destrutiva dos recursos naturais, em contraposição ao modelo extensivo em que se cresce por
quantidade de recursos extraídos, mais do que pela adequação em qualidade e gestão às condições
do mercado mundial. Por exemplo, a agricultura orgânica tem cada vez mais valor e mais demanda
no mercado internacional. E nesse tipo de agricultura, a informação e o marketing são
fundamentais” (Castells, 2005: 86-7).
Como se a “adequação em qualidade e gestão às condições do mercado mundial” não
tivesse vínculo com nenhum processo destrutivo da natureza ou dos homens, (a produção de
armas ou de soja em escala industrial hoje precisa se adequar a esses padrões!), o
informacionalismo ganha um ar asséptico.
Há em Castells uma percepção do descompasso entre a potencialidade contida no
desenvolvimento tecnológico e sua efetivação concreta
182
. Mas o contudo, o entretanto, o
181 Na comparação entre usuários e não-usuários de Internet, revela-se que esta gera um “novo tipo de relações
sociais”; a atividade principal, enviar e receber mensagens, é uma “atividade socialmente integradora”; “são
os que não utilizam a Internet os que se sentem mais isolados”; tende a “aumentar as conversas com
parentes e amigos, apoia a atividade com os filhos”; quanto mais horas de conexão, mais amigos fora do
país; gera um “sentimento de pertencimento e identidade”; os usuários “têm redes sociais maiores que os
não usuários”. A Internet diminui especialmente o “não fazer nada, divagar”, ativa as pessoas e reduz os
tempos mortos”. O ócio virtual é avaliado positivamente. A atividade da navegar na Internet sem um
objetivo concreto, feita majoritariamente por jovens,é uma atividade de exploração que corresponde a uma
cultura de busca no início da vida” (Castells, 2007: 28, 105, 111, 124-138, 199).
182 Por exemplo, “a globalização e a informacionalização, determinadas pelas redes de riqueza, tecnologia e
poder, estão transformando nosso mundo, possibilitando a melhoria de nossa capacidade produtiva,
criatividade cultural e potencial de comunicação. Ao mesmo tempo, estão privando as sociedades de direitos
políticos e privilégios [...] desintegrando os mecanismos atuais de controle social e de representação
política” (PI: 93). “quanto mais adquirimos conhecimento, tanto mais percebemos as potencialidades de
nossa tecnologia, bem como o abismo gigantesco e perigoso entre nossa capacidade de produção cada vez
maior e nossa organização social primitiva, inconsciente e, em última análise, destrutiva” (PI: 166).
144
porém
183
expõem as contradições e não resolvem nada. A contradição fica descrita mas sem
explicação. A “atrocidade é grande demais para racionalizar”
184
. Sem levar em conta a
subsunção do desenvolvimento tecnológico no modo de produção capitalista com as suas leis
e contradições, carece de capacidade para explicar as causas do incumprimento das
promessas da revolução tecnológica. Com a autonomização do modo de desenvolvimento, a
crítica às interpretações tecnicistas das teses marxistas feitas pelo jovem marxista Castells,
valerão para o Castells recente. A “capacidade estrutural de decidir as leis do funcionamento
econômico e social” (1973: 47-8), não é mais posta em questão, pois elas estão invisibilizadas,
como uma segunda natureza, por trás das forças produtivas.
Amin (2002: 101) aponta que a “sociedade em rede” só existe sob aspectos deformados
impostos pela dominação do capital. Ainda, a transformação do poder enquanto “rede de
poderes” que ele encontra em Negri e Hardt e em Castells, é expressão de uma aná lise
ingênua que isola o poder da tecnologia do contexto das relações sociais, atribuindo essa
transformação meramente ao desenvolvimento das forças produtivas (idem: 98). A ilusão
tecnologista faz “como se o capitalismo já nem existisse mais ou que, pelo menos, as
exigências objetivas da nova tecnologia transformaria sua realidade até a dissolução de seu
caráter fundamental, o de ser baseado sobre uma hierarquia vertical incontornável”. Em
Castells, a ideia de que a busca pelo conhecimento se impõe em ultima instância à busca
capitalista pelo lucro.
Postone (2009: 320-5) contrapõe a afirmação de teóricos como Daniel Bell e Jürgen
Habermas, que consideram que a teoria do valor trabalho foi válida no passado, mas que hoje
o valor está baseado na ciência e na tecnologia, com as aproximações do marxismo ortodoxo,
183 Por exemplo, nos EUA, “Lenta, porém seguramente, a tecnologia está promovendo o crescimento da
produtividade. Atualmente a maioria das mulheres tem sua própria fonte de renda. A criação de empregos
atingiu níveis recorde (10 milhões de novos empregos durante o governo Clinton). Contudo, a insatisfação e
a insegurança profundamente arraigadas são reflexo da estagnação ou da queda no padrão de vida da
maioria da população, juntamente com a instabilidade estrutural introduzida no mercado de trabalho” (PI:
338). “Há uma nova economia em expansão por todo o mundo, impulsionando a produtividade e criando
prosperidade, porém num padrão muito desigual” (Castells, 2002b: 399).
184 “Penso que há progresso social no mundo. A trilogia descreve muitas coisas maravilhosas; mas essas
mudanças geralmente valiosas têm também muitas conseqüências horríveis. Uma das mais dramáticas para
mim é que por todos lados vemos crianças em condições sub-humanas, centenas de milhões. A sua condição
é uma das mais dramáticas contradições da era moderna e uma atrocidade grande demais para racionalizar
[an outrage too big to rationalize]” (Castells, 2003: 76). (Sim, é o mesmo autor que percebia que teorias
dogmáticas levavam a práticas políticas infecundas e custavam vidas humanas... bom o mesmo autor depois
de um penoso processo de des-radicalização. A questão é... penoso para quem?).
145
que tentam reduzir tudo, incluindo o poder de cálculo de um supercomputador, à quantidade
de tempo de trabalho, incluindo o tempo de engenharia que se inseriu nele. Estas posições
diametralmente opostas, compartilham um entendimento comum do valor. Em nenhum dos
casos é compreendido enquanto uma forma historicamente específica de riqueza. Na leitura de
Postone, a teoria da sociedade pós-industrial nos chama a atenção para o tremendo potencial
que tem sido gerado sob o capitalismo, e que poderia melhorar a vida das massas. No entanto,
“abstraindo dos constrangimentos do capital”, “chega a modelos lineares cujo fracasso não
pode explicar”.
Desta maneira, na sociologia pós-moderna o conceito de sociedade pós-industrial não
incorporou uma estratégia de democratização da sociedade, mas o afirmou como a própria
democratização desta (Menegat, 2006: 263).
Em 1978, Castells (1978: 45-6) afirmava que era preciso estudar em termos de valor o
processo de acumulação em escala mundial. Mas, a despeito dessa consideração, e do seu
anticapitalismo dos anos 70, Castells nunca desenvolveu uma crítica apurada da foma-valor.
O abandono do marxismo, em 1983, anunciado no livro The City and the Grassroots,
não lhe impede continuar usando a distinção entre valor de uso e valor de troca, de maneira
leviana.
Já nos anos 90, a própria teoria do valor é menosprezada, uma mera questão de
crença
185
. Agora a análise de Castells fica decididamente no nível material. A Internet
apresenta-se como o equivalente do motor elétrico e como base material de novas relações
sociais, resultado de mudanças históricas. A análise da sociedade em rede re-põe os limites da
análise da sociedade industrial. A consideração da promessa da tecnologia no nível
material, em abstrato leva a afirmar a factibilidade do desenvolvimento informacional gerar
um circulo virtuoso de expansão da demanda e produtividade para todos (Cfr. Castells,
2002b), sob as condições de um “capitalismo que não bloqueie a inovação”
186
. Mas Castells
185 “O termo 'superexploração' é utilizado para se estabelecer uma distinção em relação ao conceito de
exploração na tradição marxista, que, no sentido estrito da economia marxista, seria aplicado a todo tipo de
trabalho assalariado. Uma vez que tal categorização implicaria aceitar a teoria da valia no trabalho, uma
questão de crença, e não de pesquisa, preferi não me embrenhar nesse debate” (FM: 195, nota 5). Mas, “a
mais-valia não é uma categoria científica, pois sob as condições de troca ela é um ganho legítimo do capital.
Ela somente tem sentido como categoria fundante de uma crítica a essas relações” (Menegat, 2006: 67).
186 O mito tecnológico, que abstraído do contexto histórico torna-se superador de todos os problemas, está
vinculado ao da globalização irreversível, expressão do progresso indefinido, em direção ao capitalismo
146
não consegue explicar (pois é inexplicável), as condições nas quais, sob o modo de produção
capitalista, todas as regiões, países, pessoas simultaneamente poderiam se desenvolver
igualitariamente aderindo ao desenvolvimento informacional.
O problema com a desconsideração do valor é que a “medida da riqueza” que
Castells acredita ter encontrado, não funciona.
Vimos que a questão da produtividade está no nó da compreensão da crise estrutural
do capital. Isso permite ver os processos de modernização em diferentes tempos históricos
enquanto processos de acumulação primitiva que se distinguem pelos diferentes níveis de
produtividade; o abismo crescente nos respectivos níveis de produtividade que “tanto expressa
quanto perpetua o real subdesenvolvimento” (Mandel, 1985: 40); o processo histórico do
capitalismo como generalização dos seus próprios critérios que gera produtividade crescente
até atingir seu limite absoluto.
Vimos também que a questão da produtividade é central na análise e no modelo
apologético de Castells. Ora, o autor afirma que “o debate sobre as fontes da produtividade
tem sido o ponto fundamental da economia política clássica” na qual inclui os fisiocratas,
Marx, e Ricardo (SR: 120). Na equiparação de Marx e Ricardo “suprime-se o fato de que no
fundo a teoria de Marx compreende uma crítica radical do fetichismo do valor” (Kurz, 1992:
42)
187
. Não reconhecer os progressos substantivos de Marx em relação a Ricardo é, ao mesmo
tempo, não reconhecer a distinção entre produtividade e produção de valor, pois Marx
criticava em Ricardo justamente essa identificação
188
:
“Ricardo nunca se interesa por el origen del plusvalor. Lo trata como cosa inherente al modo
capitalista de producción, el cual es a sus ojos la forma natural de la producción social. Cuando se
refiere a la productividad del trabajo, no busca en ella la causa de que exista el plusvalor, sino
únicamente la causa que determina la magnitud de este” (C I, 14, 625).
próspero cheio de oportunidades para todos (Beinstein, 1999: 41).
187 “Os marxistas contemporâneos tem o dever de sustentar todos os progressos decisivos conseguidos por
Marx frente a Ricardo, e que os teóricos neo-ricardianos estão agora procurando anular” (Mandel, 1985: 6).
188 Também: “He sido el primero en emplear las categorías de capital variable y capital constante. Desde Adam
Smith, la economia política entremezcla confusamente las determinaciones contenidas en ellas con las
diferencias formales, resultantes del proceso de circulación, entre el capital fijo y el circulante” (C I, 22,
757).
147
2. O marxismo legal
Essa identificação entre produtividade e produção de valor também aparece em
Fernando Henrique Cardoso, quem recebeu por isso a imputação de “marxista legal
189
Os marxistas legais foram economistas acadêmicos, decididamente anti-radicais, que
no entanto aceitavam tanto a terminologia como o método da análise econômica marxista
(R.Pipes apud Hobsbawm, 1982: 84.). “Como ideologia, encarada em si mesma, o marxismo
se afirmou na Rússia com a tese de que o progresso do capitalismo naquele país era
historicamente irreversível”, que o capitalismo só poderia ser vencido “por forças criadas por
ele mesmo e destinadas a sepultá-lo”. Portanto, na Rússia, o marxismo “proporcionou certa
justificação à missão histórica do capitalismo”. Os marxistas legais ressaltaram as
realizações históricas positivas do capitalismo, abandonando a perspectiva de derrubá-
lo” (Hobsbawm, 1982: 84).
O debate da intelectualidade progressista na Rússia, no momento da aparição do livro
II d'O Capital dava-se em torno “da possibilidade ou da necessidade do desenvolvimento
capitalista da Rússia”. Os marxistas legais afirmavam a sua possibilidade, e para isso se
apossaram das análises dos esquemas da reprodução do livro II no intuito de demostrá-lo
(Rosdolsky, 2004: 506). Mandel (1985: 18) atribui o fracasso da integração entre teoria e
história justamente ao fato de se tentar “investigar os problemas das leis de desenvolvimento
do capitalismo, isto é, os problemas decorrentes da ruptura de equilíbrio, com instrumentos
projetados para a análise do equilíbrio”, notadamente, os esquemas de reprodução utilizados
por Marx no volume 2 de O Capital. Ao contrário, Marx analisava a inerente tendência do
capital às crises, pela discrepância entre o desenvolvimento das forças de produção e o
189 No verbete Marxismo legal I, do Diccionario de bolso do Almanaque Philosophico Zero à Esquerda, de
Paulo Arantes: “Franco [Gustavo, Diretor da Área Externa do Banco Central] argumenta que o motor do
crescimento (e distribuição da renda) é o aumento da produtividade da economia. O presidente Fernando
Henrique Cardoso vê no enfoque de Franco uma ‘revolução copernicana’ (sic, v. Revolução copernicana), ao
mudar inteiramente a perspectiva de entender o desenvolvimento, mas lhe atribui um parentesco
surpreendente. ‘O que é a produtividade, senão o velho conceito de mais-valia relativa de Marx?’, pergunta-
se o presidente. ‘Marx entendeu como ninguém a essência da dinâmica do capitalismo!’ (Celso Pinto. FSP,
15/9/96)” (Arantes, 1997).
148
desenvolvimento do consumo de massa, pela desproporcionalidade entre a valorização do
capital e o consumo.
O sentido conferido por Bulgákov, um dos marxistas legais, aos esquemas de Marx não
se diferenciava essencialmente das concepções harmonicistas de Ricardo, McCulloch e Say.
Bulgákov “nega que as crises tenham alguma coisa a ver com o problema da realização” e as
atribui ao “desenvolvimento díspar dos diversos ramos da produção, pelo que se deve
considerá-las como meras crises de desproporcionalidade”. E presagiava ao capitalismo russo
um futuro grande e brilhante, sustentava a esperança de que “logo estaria em condições de
derrotar seus concorrentes no mercado mundial”. Como aponta Rosdolsky (2004: 512-5),
um “curioso ideal para um partidário da doutrina marxista”.
Tugán-Baranovski (apud Rosdolsky, 2004: 516-7), outro dos personagens, postulava
que “a produção capitalista cria um mercado para si mesma. Se é possível ampliar a produção
social, se as forças produtivas são suficientes para isto, então na distribuição proporcional da
produção também a demanda deve experimentar uma ampliação proporcional”. Assim, “não
há para a extensão do mercado outra barreira que as forças produtivas das que dispõe a
sociedade”. Isso significa “separar por completo a produção do consumo social” (Rosdolsky,
2004: 518), o que dá na sua fantástica ideia a respeito da “produção de máquinas pelas
próprias máquinas” numa sociedade capitalista na qual isso não levaria a uma discrepância
entre a produção e o consumo social. Rosa Luxemburgo referia-se a essa ideia com a
expressão do “carrossel do senhor Tugan-Baranovski” (idem: 524).
Ora, no desdobramento destes debates na Europa ocidental, a especificidade das
situações históricas da Alemanha e da Áustria em relação à da Rússia, resultam em outras
exigências à teoria. Se a análise do processo de reprodução social de Marx tinha servido para
“demostrar a possibilidade e inevitabilidade do desenvolvimento capitalista da Rússia,
contra o 'ceticismo' dos narodniki”, na Alemanha e na Áustria serviu aos teóricos oficiais da
socialdemocracia no sentido de que “o capitalismo poderia estender-se ilimitadamente e que
nenhum colapso condicionado por suas leis internas o ameaçava”. Com a sua consideração
'em si' dos esquemas de reprodução, Hilferding aponta a “demonstrar que, no processo da
reprodução social, o que importa é só, em última instância, a relação de proporcionalidade dos
149
diversos ramos da produção. Do que surge logo, consequentemente, sua teoria da
desproporcionalidade, assim como sua rejeição a qualquer teoria do colapso” (idem: 530-1)
190
.
Rosdolsky destaca nesse ponto a semelhança dos pontos de vista da escola de Ricardo
criticados por Marx com a teoria das crises de Hilferding
191
.
Posteriormente, a tentativa de Otto Bauer será a de “demostrar a possibilidade de um
curso imperturbado da acumulação inclusive no caso de uma composição orgânica
constantemente crescente do capital” (idem: 545). Ao contrário, o que as perturbações do
equilíbrio da reprodução provocadas pelo progresso técnico demonstram, para Rosdolsky, é
que “as contradições do modo de produção capitalista que se manifestam exatamente nestas
perturbações e na queda tendencial da taxa de lucro que as mesmas estimulam, se reproduzem
num plano cada vez mais elevado, até que finalmente a 'espiral' do desenvolvimento
capitalista alcança seu fim” (idem: 554).
Para Rosdolsky, só é possível compreender a A acumulação do capital de Rosa
Luxemburg como reação à interpretação neo-harmonicista das doutrinas econômicas
de Marx” . Ela destacava, ao contrário, “a ideia do colapso e, com isto, o núcleo
revolucionário do marxismo”. Não entraremos aqui na análise dos erros e acertos da teoria da
acumulação de Rosa Luxemburg. Interessa-nos destacar as condições históricas específicas
que determinavam as exigências para aquela esquerda marxista alemã. Enquanto os marxistas
russos deviam demostrar a capacidade vital do capitalismo russo, na Alemanha a situação era
bem diferente:
“Rosa Luxemburg vivia e atuava num país cujo capitalismo se encontrava não só no auge de seu
poderio, mas que já exibia claros sinais de sua futura decadência; e, por outra parte, tinha como
adversários não os partidários de um utópico socialismo camponês, mas uma poderosa burocracia
operária, fortemente arraigada nas massas, que apesar de seu credo 'marxista', tinha ambos os pés
fincados no terreno da ordem social imperante e que só confiava poder alcançar dentro deste
marco todos os progressos sociais e políticos” (idem: 538).
190 Castells ainda equaciona a Hilferding com Schumpeter: “o capital financeiro e a alta tecnologia, o capital
industrial, estão cada vez mais interdependentes, mesmo quando seus modos operacionais são específicos a
cada setor. Hilferding e Schumpeter estavam certos, mas sua ligação histórica teve que esperar até que fosse
sonhada em Palo Alto e consumada em Ginza” (SR: 568).
191 Marx criticou em Ricardo: “esta explicação da superprodução por um lado mediante a subprodução por
outro não significa nada mais que o seguinte: se tivesse lugar uma produção proporcional, não se daria uma
superprodução. [Também] se todos os países que comerciam entre si possuíssem a mesma capacidade de
produção (e mais exatamente de uma produção diferente e complementar). Portanto, a superprodução tem
lugar porque não se dão estes bons augúrios” (Marx apud Rosdolsky, 2004: 533).
150
Decorrente dessa situação era a tarefa da esquerda marxista alemã, em ressaltar a ideia
do necessário colapso econômico e político da ordem social capitalista (idem: 539). A crítica
feita por Rosa Luxemburgo aos marxistas legais é que a demostração da possibilidade de
desenvolvimento capitalista na Rússia foi tão exagerada que acabaram demostrando
“inclusive teoricamente a possibilidade da duração eterna do capitalismo (apud
Rosdolsky, 2004 : 510).
A escola de regulação como ponte
“O repúdio instintivo de um limite 'objetivo' e absoluto do capitalismo varrido pela crise levou o
marxismo a reconhecer tal limite interno, apenas num sentido puramente lógico e não num sentido
historicamente determinável. Nos epígonos e nos restos do marxismo, esta relação inverte-se com
uma ironia sem igual: na medida em que o 'limite interno' se torna de fato historicamente tangível,
é considerado como inexistente também no seu sentido lógico. A restante esquerda e ex-esquerda
participa com afinco cada vez maior na simulação a todos os níveis do sistema produtor de
mercadorias” (Kurz, 1995).
É central perceber a perspectiva de solubilidade da noção de Castells de crise
estrutural a fins dos anos 70: “o específico de uma crise estrutural é que o processo de
acumulação não pode ser retomado até que sejam eliminados ou contrabalançados os
obstáculos”. A crise social obriga a retificações, ao mesmo tempo no modelo de
acumulação e na forma de dominação” (Castells, 1978: 50). “O sistema capitalista mundial
entrou num período de crise estrutural que se prolongará enquanto os centros de decisão se
mantenham incapazes de organizar um novo modelo de acumulação adequado às
circunstâncias atuais” (1983: 176).
A crise era uma necessidade lógica mas não histórica, pois podia ser contraposta pelos
efeitos da luta de classes. Era uma consequência necessária “a menos que essa lógica seja
contraditada historicamente pelos efeitos produzidos na luta de classes” (1977: 20).
Nos anos 70 Castells analisava a “contradição crescente entre o desenvolvimento das
forças produtivas e das relações sociais de produção constitutivas do capitalismo” (idem: 36-
7), em termos de um “sistema que só continua funcionando na base da repressão ao
desenvolvimento de novas relações sociais e de novas forças produtivas” (idem: 183). O
151
desenvolvimento das forças produtivas exigia a “transformação do processo de trabalho e do
trabalho humano, que exige, por sua vez, condições técnicas e sociais, incompatíveis com a
lógica capitalista”. A saber: pesquisa científica; a informação como força produtiva no
processo de trabalho implica uma grande dose de autonomia, contraditória com a disciplina
que o capital impõe aos trabalhadores; a automatização total do processo produtivo, em óbvia
contradição com a existência do capital (1978: 82). O fato do Estado assumir funções
necessárias ao desenvolvimento das forças produtivas reforça para Castells a ideia da
contradição entre esse desenvolvimento e a lógica do capital. “Para poder expandir-se e
superar os obstáculos que existem no processo de acumulação, o capital cresce, gerando, em
grau crescente, um setor cujas atividades, normas e organismos negam sua própria lógica. O
capital continua a acumulação, aumentando sua dependência em relação ao Estado.
Entretanto, essa tendência estabelece os limites históricos do sistema”. Essa
incompatibilidade, finalmente, leva a uma 'contradição a longo prazo': “o processo de
inovação tecnológica somente pode ser efetivo quando as condições de produção estão
separadas da lógica capitalista”. Isto implica “uma sociedade onde a criatividade humana é
favorecida pelo tipo de organização e características sociais do processo de trabalho”, um
sistema educacional muito desenvolvido”, uma “grande dose de iniciativa no processo de
produção, o que contradiz fundamentalmente o modelo autoritário de organização da empresa
capitalista” (idem: 92).
A despeito de sua crítica da teleologia do colapso inexorável do capital, encontrava-se
no argumento de Castells uma outra teleologia: a tendência do fortalecimento do poder dos
explorados por meio de uma teleologia progressiva do desenvolvimento das forças
produtivas. A formulação marxiana clássica segundo a qual “as condições sociais necessárias
para o desenvolvimento das forças [produtivas] entram cada vez mais em contradição com as
relações sociais capitalistas”, desdobrava-se em Castells na ideia de que “o capital tende a
criar as condições sociais que conduzem ao que constitui seu limite histórico: a transformação
progressiva da força de trabalho no poder dos trabalhadores”. E ainda, “as desesperadas
tentativas do capital para escapar de suas contradições terminam por ampliar a luta contra sua
lógica” (idem: 92-4). Ainda, em 1973 Castells chamava de “classe ascendente àquela que se
152
identifica com o desenvolvimento das forças produtivas
192
.
O politicismo na conceitualização da crise estrutural do capital era abonado por um
momento histórico específico de ascenso da luta de classes: o poder político do centro sobre a
periferia parecia a Castells (1978: 175-6) mais fraco do que nunca e previa o incremento do
controle do economia pelo Estado e do Estado pelos trabalhadores (1980: 263).
Em função da derrota das forças da esquerda, a tendência ao aumento da resistência
dos trabalhadores não se verificou historicamente. O caráter não antagônico da relação
efetivada historicamente entre capital e trabalho, deixou essa teoria com pouco a dizer.
Essa perspectiva não permitirá ver o funcionamento dos limites internos do capital na
sua tentativa de reprodução ampliada, e a regressão social decorrente da crise estrutural
estabilizada e perenizada. Essas dificuldades provocarão mudanças teóricas importantes.
Castells manterá e consolidará a crítica à ideia de uma teleologia da história. E, por outro
lado, apagará a relação, que julgava específica e meritória do marxismo, entre a dinâmica da
acumulação e da crise, por meio do descenso da taxa de lucro, vinculada à distinção entre a
dimensão de valor e a dimensão técnica do capital. Tanto essa continuidade quanto essa
ruptura tiveram um desdobramento negativo na radicalidade de Castells.
A noção de modelo de acumulação remete à Escola da Regulação. Na sua História do
estruturalismo, François Dosse (1994: 321-330) mostra como a crise de 1973 produz uma
viravolta nos economistas, pois abala tanto os esquemas althusserianos baseados na
reprodução, quanto os neoclássicos, forçados a questionar sua concepção de mercados
perfeitos. A corrente estruturalista em economia vai desviar suas orientações e passar
progressivamente “da reprodução para a regulação”. A chamada Escola da Regulação é
fruto dessa corrente de pensamento estrutural-marxista e, simultaneamente, de um
distanciamento crítico das teses althusserianas”. Para um dos seus membros, Alain Lipietz,
192 A classe ascendente é aquela cujos interesses específicos coincidem, na fase concreta do desenvolvimento
histórico em que se situa, com os interesses do resto da sociedade, isto é, com o desenvolvimento das forças
produtivas, globalmente e a longo prazo [...] definição das classes em termos da relação antagônica entre
dois polos e sua vinculação indissolúvel à evolução das forças produtivas” (Castells, 1973: 50). E ainda
“aqueles grupos cuja posição de classe não é dada pela contradição fundamental no processo de produção”
estão determinados pela sua “incapacidade de ligar seus interesses ao desenvolvimento das forças
produtivas” (idem: 57-8).
153
são 'filhos rebeldes de Althusser'. Se apresenta como a ultrapassagem necessária do
althusserianismo para pensar a crise. Para Robert Boyer, um dos seus fundadores, esta se
encontrava na encruzilhada de três heterodoxias: herdeira de um marxismo 'althusserizado', da
filiação keynesiana e do institucionalismo.
No início dos anos 70, Michel Aglietta, outro dos fundadores, vai para os Estados
Unidos para compreender “o que fundamenta a eficácia do crescimento em curso”. O seu
objeto de estudo se transforma com a crise de 1973 e, no livro Régulation et crises du
capitalisme. L'experience des États-Unis, já leva em conta “a dupla realidade do
crescimento e da crise”.
A obra de Aglietta entra em cena exatamente no momento de sufoco do estrutural-
marxismo althusseriano, ganhando influencia. Castells, como Aglietta, foi nos Estados Unidos
para compreender a dupla realidade do crescimento e da crise. Em 1978 apontava o livro de
Aglietta como a “melhor análise marxista do processo de acumulação do capital nos Estados
Unidos” (1978: 58).
Segundo Dosse, essa teoria só marginalmente afeta a universidade na França, mas está
representada de maneira maciça no próprio âmago da alta administraç ão do Estado,
sucedendo aos desenvolvimentistas de pós-guerra. Foi em torno das necessidades do plano, da
projeção, sob o impulso do Estado, que as reflexões sobre os modos de regulação ganharam
raízes, no próprio seio da administração francesa.
Kurz (1995) aponta que “o preceito original de Aglietta, embora argumentasse ainda
em termos da teoria do valor e da acumulação, convertia o específico regime fordista da
acumulação em possibilidade geral e supra-histórica de expandir quase à vontade os limites
internos da acumulação, através de intervenções reguladoras de cariz político”. Supõe-se que
“por intermédio de um regime de acumulação, fosse possível gerar um novo modelo de
acumulação do capital (sendo que, na verdade, o caso do fordismo era justamente o oposto)”.
Para compreender que o fordismo não é um 'modelo' mas um fenômeno histórico único, falta
“uma análise crítica da forma-valor e das suas transformações históricas”. Em última
instância, a teoria da regulação “já não é uma teoria marxista da crise baseada na crítica da
economia política, mas uma teoria positivista que quer conter as crises fundada na
economia política burguesa”.
154
De fato, uma das preocupações de Aglietta é “qual pode ser o modo de ação do Estado
para abafar os fatores de crise”. A originalidade da escola regulacionista residiria na
pesquisa das “formas de relações intermediárias, institucionais
193
. Visava “compreender
como podia funcionar a diversidade num mesmo quadro estrutural, como os processos de
regulação podem ser diferentes, complexos e, no entanto, inscrever-se no interior de um
mesmo sistema capitalista, o que permitia situar o problema das diferentes vias nacionais”,
donde a importância da ideia de formação social. Retinha do althusserianismo a consideração
das estruturas como totalidades articuladas e a ideia da sobredeterminação
194
. Procuravam
captar o que era comum a essas sociedades, numa “dialetização do singular e do universal”.
Permitia a “compreensão desse modo de crescimento sem choques nem conflitos, repousando
num sistema de conciliação”. Daí a sua tentativa de mostrar a “compatibilidade da progressão
do salário real e do emprego com a progressão da taxa de lucro, no nível global da
macroeconomia”. “Os modos de regulação combinam-se em regimes de acumulação e
definem igualmente modos específicos de desenvolvimento” (Dosse, 1994: 321-330).
Voluntarismo na expansão dos limites da acumulação pela ausência da crítica da
forma-valor; contenção institucional das crises; dialetização do singular e do universal através
de regimes de acumulação e modos de desenvolvimento. Temos ali muitos dos elementos que
Castells desenvolveu a partir dos 80s. Por isso é possível ver a influencia da Escola da
Regulação desde fins dos 70 como uma verdadeira ponte na obra de Castells
195
.
193 Seduzia também a Aglietta “a atenção de Foucault aos micropoderes, seu deslocamento do centro para as
periferias, sua pluralização de um poder multiforme que corresponde perfeitamente à vontade de atingir os
corpos institucionais intermediários dos regulacionistas” (Dosse, 1994: 321-330).
194 Segundo o próprio Aglietta, Althusser e Balibar se reconheceram nessa abordagem do livro (Cfr. Dosse,
1994: 323).
195 Também, uma particular leitura da dependência: em 1983, remetendo a Wallerstein e Gunder Frank, Castells
(1983: 176) aponta para a importância das variações históricas, 'contrário às formulações dogmáticas da
teoria centro-periferia'. E, a partir de 'Desarrollo y dependencia em América Latina' de FHC e Faletto,
considera crucial “a interação entre as tendências gerais que formam a sua evolução e os processos sociais
que são arraigados histórica e espacialmente em sociedades particulares”.
155
3. As ilusões obstinadas: um capitalismo rejuvenescido
Vimos que Castells (1978: 13-14) diagnosticava no ano 1978 um corte histórico,
verdadeira crise estrutural, e uma crise do pensamento sobre as crises, que pela do
dogmatismo ou do pragmatismo, não conseguia analisar as tendências em curso.
A esperança de uma geração no desaparecimento do capitalismo nas mãos de um
proletariado cada vez mais poderoso e concentrado esvaiu-se, sem o fim do capitalismo. A
reestruturação capitalista fez entrar em crise o próprio pensamento de Castells sobre a
acumulação e as crises. Dois aspectos centrais de suas formulações anteriores exigiram uma
revisão: a teleologia politicista e o bloqueio capitalista das forças produtivas. Quando não é a
resistência dos trabalhadores a causa principal do desenvolvimento das forças produtivas, mas
a concorrência inter-capitalista na sua contradição imanente, o desenvolvimento das forças
produtivas não é incompatível com a lógica de desenvolvimento capitalista.
A noção de modelo de acumulação que trazia, a princípio, uma promessa de superação
das contradições capitalistas, abriu o caminho para aceitar como possibilidade uma resolução
da crise para-o-capital. Na medida em que nos anos 80 vai-se tornando cada vez mais evidente
que a crise era estrutural por não possuir saídas, o diagnóstico da crise estrutural irá perdendo
lugar e densidade na obra de Castells. Movimento paralelo ao desenvolvimento acelerado das
forças produtivas... sob condições capitalistas.
Uma questão é central na inflexão de Castells nos anos 80: as mudanças estruturais
demonstram o equívoco da impossibilidade de o capitalismo desenvolver as forças produtivas.
O capital parece ter resolvido a maneira de inovar virtuosamente: A reestruturação do
capitalismo nos anos 70 e 80 demonstrou a versatilidade de suas regras operacionais e sua
capacidade de utilizar a lógica dos sistemas de redes da Era da Informação com eficiência
para promover um enorme avanço nas forças produtivas e no crescimento econô mico” (FM:
20). A empresa em rede do capitalismo informacional parece incorporar muitas daquelas
condições que Castells postulava como incompatíveis com a lógica do capital: pesquisa,
informação, autonomia e iniciativa no processo de trabalho, gerando processos dinâmicos de
156
inovação tecnológica. Contra a “visão esquerdista”, também parece ter demonstrado a
possibilidade de desenvolvimento da periferia capitalista
196
. Trata-se, para Castells de um
capitalismo “flexível e rejuvenescido” facilitado pelas novas tecnologias da informação
197
.
Para Castells, o capitalismo “está muito vivo apesar de suas contradições sociais” (2001:
254).
Surge a distinção entre um capitalismo financista e um capitalismo inovador.
Aquela incompatibilidade entre o desenvolvimento das forças produtivas e a lógica capitalista,
que Castells diagnosticava nos anos 70 e que caiu por terra na reestruturação capitalista dos
anos 80, agora é atribuída a um certo tipo de capitalismo, ou a um certo tipo de capitalistas.
“Muitas corporações restringem a inovação para usufruir de receitas de monopólio”. No
entanto,
nem todos os capitalistas são iguais ou nem todos os capitalismos são iguais: há os que, além
de subjugarem a sociedade ao mercado, mais que capitalistas são financistas, ou seja, bloqueiam a
inovação. E há os que entendem que todo mundo, inclusive eles, ganha mais, se houver mais
inovação tecnológica e, em último caso, mais distribuição da riqueza. Em suma, a história do
software livre, e, mais amplamente, a do movimento de código aberto demonstram que pode haver
mais inovação tecnológica e mais produtividade econômica em um contexto de trabalho
cooperativo e motivado, característico do mundo da criação” (Castells, 2006)
198
.
196 “Contra a visão esquerdista predominante, de acordo com a qual o desenvolvimento econômico não poderia
ocorrer em sociedades dependentes sob o regime capitalista, os quatro tigres asiáticos mantiveram a maior
taxa de crescimento de PNB do mundo por aproximadamente três décadas”. Embora com exploração e
opressão, levou à “melhoria substancial das condições de vida” (FM: 295).
197 As novas tecnologias da informação desempenharam papel decisivo ao facilitarem o surgimento desse
capitalismo flexível e rejuvenescido, proporcionando ferramentas para a formação de redes, comunicação a
distância, armazenamento/processamento de informação, individualização coordenada do trabalho e
concentração e descentralização simultâneas do processo decisório”. “O capitalismo prospera no mundo e
aumenta sua penetração nos países, culturas e domínios da vida”, É uma forma de capitalismo com
objetivos mais firmes, porém com meios incomparavelmente mais flexíveis que qualquer um de seus
predecessores. É o capitalismo informacional, que conta com a produtividade promovida pela inovação e a
competitividade voltada para a globalização a fim de gerar riqueza e apropriá-la de forma seletiva. Está,
mais que nunca, inserido na cultura e é equipado pela tecnologia” (FM: 412-4). No romance As
intermitências da morte, de Saramago, a morte decide renovar seus métodos, torná-los mais humanizados.
Ela reconhece que “o injusto e cruel procedimento que vinha seguindo, que era tirar a vida às pessoas à
falsa-fé, sem aviso prévio, sem dizer água-vai, se tratava de uma indecente brutalidade”. Avisa, então, que
“a partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá um prazo de uma semana” (Saramago,
2005: 100). E ainda explica para a gadanha, sua eterna companheira: “com esse teu gosto pelos métodos
expeditivos, a questão já estaria resolvida, mas os tempos mudaram muito ultimamente, há que actualizar os
meios e os sistemas, pôr-se a par das novas tecnologias, por exemplo, utilizar o correio electrónico, tenho
ouvido dizer que é o que há de mais higiénico” (idem: 137).
198 Também: “muitas empresas têm visão de mundo ampla o suficiente para entender sua responsabilidade
social e a necessidade de preservar a estabilidade social” (FM: 400). Castells aceitou fazer parte de um
conselho assessor na África do Sul, “junto a líderes das maiores empresas de tecnologias de informação e
157
É possível, então, pôr em questão as formas restritivas de propriedade intelectual “não
eliminando o capitalismo, mas sim ampliando a gama de valores de uso possíveis sem
conotação comercial. E mantendo formas de lucros e de negócio, mediante novos modelos
negociais baseados no incremento da produtividade e da ampliação de mercado, mais que no
controle monopolístico de um mercado excludente, limitador da atividade não mercantilizada”
(idem)
199
.
Vimos que a identificação entre produtividade e acumulação só é válida quando o
aumento da produtividade é menor que a ampliação dos mercados internos e externos por ele
possibilitado. A identificação imediata da produtividade com a produção de valor leva a
desconhecer a natureza da crise estrutural em curso, a compreender o capitalismo como uma
simples sucessão de estruturas, e a sustentar todas as ilusões que a compreensão da crise
estrutural se encarrega de desfazer: a manutenção do papel virtuoso das inovações
tecnológicas e das bolhas financeiras; a função de limpeza das crises; a chegada de um novo
ciclo de expansão; o horizonte de desenvolvimento na periferia capitalista; a volta de algum
tipo de keynesianismo regulador. A sua desconsideração real do valor permite compreender
como a curva apologética de Castells se traduz, teoricamente, em formulações, aporias e
contradições, e apologeticamente, em promessas vãs
200
.
Marx denunciava que
“Los intereses conservadores a cuyo servicio se hallaba Malthus incondicionalmente, le impedían
ver que a la desmesurada prolongación de la jornada laboral, junto al extraordinario desarrollo de
la maquinaria y la explotación del trabajo femenino e infantil, tenía necesariamente que convertir
en 'supernumeraria' a gran parte de la clase obrera, en particular tan pronto como cesaran la
demanda de guerra y el monopolio ingles sobre el mercado mundial. Era mucho más cómodo,
naturalmente, y más conforme a los intereses de las clases dominantes, a las que Malthus
idolatraba de manera auténticamente clerical, explicar esa 'sobrepoblación' a partir de las leyes
eternas de la naturaleza, que hacerlo fundándose en las leyes naturales de la producción capitalista,
puramente históricas” (C I, 15, 642).
comunicação do mundo (com a afortunada exceção de Microsoft)” (2003: 47). No marco da distinção entre
maus e bons capitalistas, a corporação Microsoft funciona como o bode expiatório do mau. Ficam dentro do
bem as maiores empresas de tecnologia do mundo.
199 É sugestivo que Castells finalize o artigo propondo para o desenvolvimento tecnológico do Brasil “evoluir
do positivismo de Auguste Comte à teoria da complexidade e escrever uma nova máxima em sua bandeira:
caos e progresso” (ideia que também defendeu no Fórum Social Mundial de Porto Alegre do ano 2005).
Bem entendido, caos e progresso é exatamente o 'lema' do capitalismo no seu inerente desenvolvimento
tecnológico, inerentemente contraditório.
200 Dosse (1994: 29) chama a atenção para casos em que se “traduz para o plano teórico uma situação
institucional.
158
Castells rejeita a “visão simplista” de que as novas tecnologias causem desemprego,
dado o crescimento sem precedentes da mão-de-obra, especialmente das mulheres (FM: 166)
e da mão-de-obra infantil
201
.
Marx (1980: 157-60) denunciava também a “ridícula” pretensão dos economistas de
mostrar que a grande indústria “absorve constantemente o excedente de população”. Primeiro
queriam demostrar que “a máquina é boa porque poupa trabalho” e depois que “também é boa
porque não o poupa, mas o trabalho manual que substitui em um lugar é necessário de novo
em outro”. Assim, o economista burguês consola os operários com os trabalhos auxiliares
necessários pela aplicação das máquinas. O consolo é que a máquina “só em aparência
elimina o trabalho pesado”, pois cria novos tipos de trabalho pesado, ou seja, aumenta o
número de condenados ao trabalho pesado.
Castells incorre no ridículo do economista burguês: por um lado, o modelo WebCor
baseado na Internet é uma maravilha, poupa trabalho para fazer as mesmas tarefas
202
. Por
outro lado, de maneira alguma a tendência geral pela aplicação das tecnologias de
comunicação é o desemprego em massa pois novos tipos de emprego são criados
203
. O
verdadeiro problema seriam as condições de trabalho e não a perda do trabalho
204
.
Os interesses conservadores a cujo serviço se presta Castells o fazem desconhecer o
desemprego estrutural.
201 “Se ainda restavam dúvidas quanto ao fato de a principal questão trabalhista na Era da Informação não ser o
fim do trabalho, mas sim as condições dos trabalhadores, elas foram definitivamente dirimidas com a
explosão, durante a última década, do crescimento da mão-de-obra infantil mal remunerada” (FM: 177-8).
202 A “maior empresa de construção civil de San Francisco, a WebCor, cujo centro é um website [...] Com essa
tecnologia ela foi capaz de reduzir pela metade o tempo de produção de um edificio, com um terço do
pessoal de gestão, limitando os custos em 50%”. A Internet transforma o modelo de empresa (SR: 268-69).
203 Ironiza os “profetas do desemprego maciço” (o Clube de Roma, Adam Schaff) (SR: 319-20), e afirma que
“não há relação estrutural sistemática entre a difusão das tecnologias da informação e a evolução dos níveis
de emprego na economia como um todo. Empregos estão sendo extintos e novos empregos estão sendo
criados, mas a relação quantitativa entre as perdas e os ganhos varia entre empresas, indústrias e setores,
regiões e países em função da competitividade, estratégias empresariais, políticas governamentais,
ambientes institucionais e posição relativa na economia global” (SR: 328). A difusão da tecnologia da
informação na economia não causa desemprego de forma direta. Pelo contrário, dadas as condições
institucionais e organizacionais certas, parece que, a longo prazo, gera mais empregos” (idem: 345).
“contrariamente às declarações falsas ou errôneas publicadas pelos meios de comunicação, o que temos
observado nas últimas três décadas é a criação sustentada de novos empregos, com exceção da Europa [...]
Mas, mesmo na Europa, a participação feminina no mercado de trabalho aumentou, enquanto a masculina
caiu” (PI: 203).
204 “Um número considerável, provavelmente em crescimento, de seres humanos não é mais pertinente nem
como produtor, nem como consumidor. Devo enfatizar mais uma vez: isso não equivale a dizer que há (ou
haverá) desemprego em massa [...] A questão é: que especie de trabalho, por qual tipo de salário, sob quais
condições?” (FM: 421).
159
Por um lado, ignora o fato de que manobras estatísticas, como mecanismos de
exclusão, servem para melhorar a imagem macroeconômica (Cfr. Beinstein, 1999: 211-4)
205
.
Kurz (2004b: 17) também chama a atenção para as medidas amortecedoras aposentadorias
prévias, políticas sociais - e a “maquiagem do desemprego em massa” através de truques
estatísticos. Por exemplo, o encarceramento massivo apaga a massa encarcerada das
estatísticas laborais
206
. Também, trabalhadores precários considerados 'ocupados'. De fato,
para Castells (FM: 142) o mercado informal é o “refúgio para o excedente de mão-de-obra”.
Por outro lado, seu conceito assumidamente não-marxista de superexploração,
restringe a questão da exploração à injustiça dos casos extremos, por baixo dos parâmetros
“normais” do sistema
207
, apagando a exploração enquanto pretendida normalidade
capitalista
208
.
A não distinção entre trabalho produtivo e improdutivo impede-o de enxergar que
empregos “sem substância” não dizem nada sobre a verdadeira capacidade de acumulação do
capital. Assim, acredita “poder refutar a prognose de uma grande crise, 'demonstrando' que ao
capitalismo não falta trabalho e que globalmente a produção de mais-valia encontra-se em
ascensão” com empregos simulados por meio do crédito estatal ou, pela abertura ao mercado
mundial, que implicam uma liquidação colossal de empregos antes 'protegidos' (simulados).
Isso gera um balanço em última instância negativo, tanto no emprego quanto na mais-valia. A
enumeração do crescimento do emprego nada diz “sobre o desenvolvimento da real substância
do valor, já que não se criam mediações teóricas e empíricas no plano do valor”. Comparar a
diminuição do emprego na Europa com o aumento na China, por exemplo, “desconhece que o
205 i.e. entre 1979 e 1997 os conservadores na Inglaterra modificaram 32 vezes a forma de calcular o
desemprego visando reduzir a cifra por meio de sucessivas exclusões (Beinstein, 1999: 229).
206 Beinstein (1999: 214) calcula que levando a taxa de encarceramento ao nível anterior ao boom carcerário e
colocando a diferença na massa de desempregados, o desemprego nos EUA em outubro de 1998 passava de
4,6% a 5,6%.
207 Superexploração significa “relações trabalhistas que permitem que o capital retenha sistematicamente os
pagamentos/alocação de recursos ou imponha condições mais rigorosas de trabalho a determinados tipos de
trabalhadores, piores do que seja considerado norma/regra em um dado mercado de trabalho [...]
discriminação contra imigrantes, minorias [...] mão-de-obra remunerada infantil” (FM: 97).
208 Arantes destaca, nesse sentido, a importância de Luc Boltanski e Ève Chiapello [Le Nouvel Esprit du
Capitalisme, 1999] terem reintroduzido “na linguagem mesmo da sociedade em rede, para a qual só a
exclusão faz sentido e justamente como 'desconexão', a noção crítica de exploração para além do vínculo
clássico de assalariamento”. Mundo conexionista “em que a realização do lucro passa pela conexão em rede
das atividades”, onde existem “mecanismos de extração de mais-valia 'em rede'” (Arantes, 2004: 54). Para o
mesmo autor, estudos atuais como os de Harvey sobre a chamada acumulação flexível, demostram que é da
extração de mais-valia que ainda se trata (idem: 65, nota). Arantes lembra que Richard Sennet mostrou a
compulsão autodestrutiva dos trabalhadores no regime flexí vel, o agravamento da espoliação e desamparo
dos indivíduos flexibilizados (idem: 62-5).
160
'valor' é um conceito histórico relativo e não se presta a cálculos com base em cifras absolutas
sobre o emprego, se os níveis forem não-simultâneos”. Dados sociológicos, uma
'fenomenologia da exploração', o fato de predominarem condições miseráveis de trabalho, não
diz nada sobre a verdadeira capacidade de acumulação do capital (Cfr Kurz, 1995).
Assim, a recusa do desemprego estrutural vai junto com a ilusão de uma nova fase de
expansão capitalista. A indistinção entre trabalho produtivo e improdutivo, faz desconsiderar
o papel diferenciado da inovação de produtos, de organizações, de sistemas de inovação, na
produção real de valor
209
. Ou de chips, nanotecnologia, software para mísseis, salmão,
software livre educativo!
210
. Mas, “as necessidades sensíveis e os desejos humanos não fazem
surgir nenhuma capacidade aquisitiva produtiva” (Kurz, 1992: 166)
211
.
A identificação imediata entre inovação e crescimento aparece claramente na
desvinculação entre a produtividade e o ciclo comercial. Em 2002 Castells justificava o
diagnóstico da emergência de uma nova economia pela aceleração do aumento da
produtividade nos EUA no período 1996-2002. “Quando a taxa de crescimento da
produtividade continua a aumentar durante períodos de crescimento lento, ou até de declínio,
isso quer dizer que ela não resulta do ciclo comercial, mas de uma transformação da função de
produção”, ou seja, da “combinação específica de fatores de produção”. A questão crucial
para Castells (2002b: 403-5) é que a despeito da crise da nova economia no início do século
XXI, “a inovação não se deteve por completo e, nos Estados Unidos, a produtividade
continuou a aumentar, numa demonstração da resistência das fontes de crescimento da nova
economia”. Mas produtividade com crise é a própria contradição do capital, não a
demonstração da resistência das fontes de crescimento. No entanto, Castells não se preocupa
“pela discrepância ascendente entre oferta e demanda global” (Beinstein)
212
, a “economia está
209 “Na economia informacional, as inovações nos processos e na organização são tão importantes como a
inovação dos produtos” (Castells, 2002: 42)
210 “Os mecanismos identificados nas experiencias mais avançadas de desenvolvimento informacional não
dependem do nível econômico ou da especificidade cultural [...] são transportáveis a outros contextos, por
exemplo ao do Chile, sob condição de traduzir chips por salmão ou congrio, nanotecnologia por agro-
genética ou software para mísseis em software livre para educação de crianças” (Castells, 2005: 104).
211 A capacidade aquisitiva produtiva “pode apenas nascer da exploração em empresas de força de trabalho
humana, realizada no nível mundial de produtividade. Mas essas condições prévias do próprio sistema são
sistematicamente ignoradas nos condescendentes sermões dominicais dos especialistas e ideólogos
ocidentais” (idem). O mercado mundial “pode gerar cada vez menos capacidade aquisitiva produtiva, em
virtude do nível de produtividade 'demasiadamente alto'” (idem: 174).
212 Ou talvez pensa, como Cristina Fernández de Kirchner, que num capitalismo verdadeiro a oferta deve gerar a
161
se lixando para as circunstâncias contrárias, está embriagada”
213
.
Marx (Gr. I, 363) já criticara a Ricardo que focando no desenvolvimento das forças
produtivas e no crescimento da população industrial, isto é, na oferta, omitindo a demanda,
identificava produção com autovalorização do capital e o impossibilitava de compreender as
crises modernas.
Castells percebe uma nova onda expansiva do capital, que se sustenta pela equivalencia
anacrônica do atual momento com momentos históricos precedentes
214
: da nova economia com
períodos de expansão anteriores
215
; da internet com a eletricidade ou o motor elétrico
216
.
A confiança eterna nos ciclos econômicos faz sustentar também a persistência do caráter
progressivo da “destruição criativa” na competitividade das empresas
217
e do financiamento da
inovação tecnológica baseado na expectativa, isto é em bolhas financeiras. É essa uma
verdadeira matriz ideológico-conceitual muito espalhada, um verdadeiro legado de
Schumpeter
218
.
demanda.
213 A la economía le importan un bledo las circunstancias contrarias, está embriagada. Nacidos del desarrollo
de las empresas, los ejecutivos (cadres), nuevo grupo social, tienen la sartén por el mango. Nacen bajo el
Frente popular de una ideología del trabajo. Entre la izquierda obrera y la plutocracia capitalista, algunos
ingenieros, generalmente llegados del catolicismo social, se proveen de una especificidad fundada en el
rendimiento más que en la renta [Nota: Cf. Luc Boltanski, Les cadres, París, Éditions de Minuit, 1982]”
(Aron, 1984: 181).
214 Dosse (1994: 262-3) mostrava que a “utilização da história arrefecida como antídoto para a filosofia do
iluminismo” era obra daqueles que utilizaram o marxismo como “máquina de guerra militante e deviam
“exorcizar os demônios do passado”. Nesse caso, “a estruturalização da história e do movimento torna-se a
alavanca capaz de impulsionar a saída do marxismo, da dialética, e sua substituição pela cientificidade”.
Aqui, Castells constrói uma história de ciclos eternos, exorcizando sua própria teleologia politicista
militante.
215 “Empresas de todo o mundo posicionavam-se para entrar em um mercado que, no inicio do século XXI,
poderia se equiparar àquilo que o complexo industrial voltado para o automóvel, petróleo, borracha e
estradas representou na primeira metade do século XX” (SR: 451). “em um sentido, a nova economia é nova
em relação à economia madura, não tanto em comparação aos períodos de frenética inovação tecnológica e
empresarial” (2003: 30).
216 A Internet é o equivalente ao que foi a fábrica ou a grande corporação na era industrial [...] base material
de nossas vidas” (2000: 287). “a tecnologia da informação é a eletricidade da Era da Informação e a Internet
é o equivalente da maquina a motor” (2002b: 401-2).
217 A recessão supôs uma 'destruição criativa', fazendo com que empresas como a Nokia se reestruturassem
ainda mais radicalmente do que em outras circunstâncias” (2002: 106).
218 Não é de se estranhar que também para Schumpeter Marx apareç a como “mero epígono de Ricardo” (Kurz,
1992: 42). Outro exemplo, além de Castells: Carlota Perez, economista de Cambridge atribui uma missão
histórica às bolhas, ao capital financeiro. É a 'destruição criativa' levada ao paroxismo, mais um capítulo
ideológico da “astúcia da razão”: “as bolhas têm o mérito de construir infraestruturas que ampliam os
mercados a custo muito baixo e estabelecem novos paradigmas tecnológicos [...] Quando chega o colapso,
muita gente perde grandes somas de dinheiro, mas a infraestrutura fica para todos. Portanto, em essência, a
grande bolha e seu colapso são uma forma brutal de conseguir o investimento necessário para instalar o
162
Castells recusa o que ele chama de crença “pontocom” num crescimento contínuo e
percebe uma alternância rápida de “períodos de crescimento e de recessão”, que faz ganhar
“os investidores que entendem o novo papel das expectativas” (2002: 26). O “extraordinário
aumento de riqueza e de produtividade” faz afirmar que a “tendência é ascendente” e que “os
ciclos econômicos vão continuar”. Confia na “capacidade de criação de valor com base em
um novo modelo de antecipação de expectativas” que saiu da economia Internet (2000: 272).
Mas vimos que o mecanismo de compensação no qual a produção de mercadorias “suga seu
próprio futuro” funciona só enquanto o modo de produção continua a expandir-se. Ali a bolha
podia ter um papel transitoriamente virtuoso.
Castells, numa pérola do pensamento tautológico, constrói uma ideia a-histórica de
bolha: “a bolha estourou porque todas as bolhas acabam estourando. Esse fenômeno é
chamado de ciclo de negócios” (FM: 275). Até problematiza a ideia de bolha, pois, “algumas
das 'bolhas' financeiras mais famosas na história (tantas vezes mencionadas por mentes
econômicas conservadoras em nossos dias) não parecem, em retrospecto, ter sido tão
especulativas quanto geralmente se pensa” (2001: 75). É que o endividamento “em si não
representa obstáculo ao desenvolvimento: é o uso adequado dos empréstimos tomados que
determina o resultado econômico” (FM: 302). Ainda, há uma constatação das bolhas como
parte do modo de ser do capitalismo informacional, fato ao qual temos que nos adaptar: “em
vez de esperar em vão que a bolha estoure, para podermos retornar a um estado de equilíbrio
do mercado, temos que aprender a viver em águas efervescentes” (2002b: 401).
O modelo prescritivo de Castells é um verdadeiro manual para viver nessas águas
efervescentes. O manual inclui o capital de risco, modelo virtuoso da inovação que permite
financiar ideias antes que se produzam
219
. E o trabalho improdutivo da sociedade
novo e destruir o velho” (em entrevista à revista Veja, 23 de maio de 2009,
http://veja.abril.com.br/270509/entrevista.shtml). Cabe notar que Castells faz referência a Carlota Perez pela
noção de “paradigma tecnológico”, na sua construção do paradigma informacional na Sociedade em Rede.
219 Quando o mercado “não o valoriza, a empresa desaparece e volta-se a tentar; quando o faz, com esta
valorização de mercado que não se produz em torno de ganhos, mas de uma promessa, é que surgem os
recursos para passar da promessa de inovação à inovação material, a uma produção material que volta a sair
no mercado, a gerar valor. Quer dizer, cria-se valor a partir da inovação com base na valorização de mercado
das iniciativas que se desenvolvem em termos de empresa. Passamos de uma economia na qual a expectativa
de geração de benefícios através da empresa é substituída pela expectativa de geração de novo valor no
mercado financeiro” (2000: 271). “Os fracassos estão cheios de lições, e o resultado geral é uma explosão
contínua de inovação. Essa é a fonte real da superioridade da Silicon Valley e da nova economia americana
em geral” (2003: 37-41).
163
informacional financiando o Estado, no modelo do Estado de Bem-estar Informacional
220
.
Castells acompanha a inflexão de Chesnais na hipóstase da separação entre capital
produtivo e financeiro
221
. Em Chesnais, por um lado a finança “representa uma arena onde se
joga um jogo de soma zero: o que alguém ganha dentro do circuito fechado do sistema
financeiro, outro perde” (Chesnais, 1996: 241). Mas por outro, vêm ocorrendo “dentro do
circuito fechado da esfera financeira, vários processos de valorização, em boa parte fictícios”,
e tem se constituído como “ninho de acumulação de lucros financeiros” (idem: 246). Para
Castells, nesse cassino global eletrônico, “o resultado na rede é zero”, e os ganhadores e os
perdedores vão mudando a cada segundo. Por um lado, a “realização de valor é cada vez mais
gerada nos mercados financeiros globais”. Castells é tentado a chamar de economia irreal
aquilo que se chama de economia real, pois “na era do capitalismo em rede, a realidade
fundamental em que o dinheiro é ganho e perdido, investido ou poupado, está na esfera
financeira”. Percebe que “o dinheiro tornou-se quase totalmente independente da produção”
(SR: 567-70). Alguns anos depois já afirma que “os mercados financeiros são o cerne da
realização de valor”, e “o aumento do valor das ações substitui os lucros como determinante
da nova economia” (2002b: 399-400). De fato, já na Sociedade em Rede aponta que pelo
“desacoplamento cada vez maior entre a produção material, no antigo sentido da era
industrial, e a geração de valor”, “a geração do valor, no capitalismo informático, é, em
essência, produto do mercado financeiro” (SR: 201). No fim desse percurso não só a
realização mas a própria geração de valor é para Castells produto do mercado financeiro.
Trata-se simplesmente da maneira peculiar de funcionamento do capitalismo contemporâneo.
E portanto, “jogando-se segundo as regras, não há nada de errado com esse cassino global.
Afinal de contas, se uma gestão cautelosa e tecnologia apropriada evitam crises drásticas de
220 “Os motivos para que muitos ex-extremistas queiram a todo custo nutrir o capital 'à base de títulos',
celebrando-lhe a potência e a glória, não podem ser identificados no âmbito teórico ou analítico. A renitente
evocação da seriedade da acumulação mundial do capital demostra à evidência que a consciência do
marxismo do movimento operário sente ela própria a necessidade de afirmar essa seriedade, para poder
manter a imagem que faz de si mesma” (Kurz, 1995).
221 Montenegro (2008: 100-1) analisa uma inflexão na obra de Chesnais, evidente na afirmação de que é da
esfera financeira que devem partir todos os que desejam analisar e compreender o movimento do capital e as
configurações do capitalismo em curso”. O problema reside em apreender a financeirização “como causa
principal e não o efeito das transformações em curso no capitalismo”, donde uma análise fetichizada do
processo. Castells segue as próprias contradições de Chesnais. Não é casual que se apoie nesse autor na sua
análise da globalização (SR: 205, nota 39).
164
mercado, as perdas de algumas frações de capital representam os ganhos de outras, de forma
que no longo prazo o mercado faz um balanço e mantém um equilíbrio dinâmico” (FM: 418).
Mas, como o mercado é torcido, manipulado e transformado por uma combinação de
manobras estratégicas” (FM: 420) a história do desenvolvimento do capitalismo demonstra
para Castells que “os mercados necessitam de instituições e regulamentações”, que
“mercados totalmente desprovidos de regulamentação equiparam-se a sociedades selvagens”
(FM: 247, nota 39).
Com o abandono da crítica do valor, que leva à desconsideração da existência de uma
substância objetiva do valor, o “nexo intrínseco do trabalho e do dinheiro escapa à
consciência”. A necessidade econômica de uma coincidência dessas duas esferas fenomênicas
do processo de valorização não é considerada plausível e nasce a ilusão de que o dinheiro
pode desenvolver-se independentemente de sua substância abstrata. A ilusão nasce da natureza
particular do capital monetário no sistema bancário: o capital que rende juros, gera mais
dinheiro aparentemente sem intervenção da produção real. Neste ponto estamos diante de uma
ilusão subjetiva inconsciente do efetivo movimento substancial. Isso leva a desconsiderar o
lugar do capital fictício, isto é, dinheiro creditício “sem substância”, tratado “como se”
passasse por um processo real de valorização. Kurz mostrava com isso a gravidade da situação
atual: a reprodução real tornou-se o apêndice de uma gigantesca bolha de “capital fictício” em
vez de produzir ela essa bolha como mera emanação do seu interior. A concepção segundo a
qual o capital se queima periodicamente a si mesmo para depois ressurgir qual Fénix das
cinzas, passando assim da eterna destruição à eterna autorenovação, faz parte para Kurz
(1995) do pensamento mitológico. Com a noção de “capital fictício” e a análise do processo
de dessubstancialização do dinheiro, Kurz analisa o desdobramento enlouquecido do
capitalismo em sua fase terminal, na sua tentativa de resolver seus problemas insolúveis de
acumulação.
165
4. Economia vulgar e pseudo-teoria adaptativa
Considerando a existência de elaborações teóricas que demonstram a senilidade do
capitalismo, a suposição de um “capitalismo rejuvenescido” não pode ser debitada ao simples
desconhecimento
222
. Ficar no nível da economia política clássica implica agora esconder
deliberadamente o que a crítica da economia política já conseguiu enxergar. Castells aparece
então como um novo capítulo dos economistas vulgares que, podendo ver as determinações
do capital, as escondiam.
A identificação entre produtividade e produção de valor se corresponde com a
identificação imediata do conceito de capital com o limitado ponto de vista empresarial. Esse
ponto de vista é incompatível com uma teoria crítica radical. E não por uma declaração de
princípios. É que o plano do capital conjunto não aparece imediatamente no cálculo dos
chamados sujeitos econômicos mas deve ser reconstruído teórica e analiticamente. Chega-se a
esse plano depois de eliminar a distorção típica do capital singular (Kurz, 1995).
A economia vulgar não revestia para Marx o caráter pleno de teoria, pois “o
economista vulgar não faz outra coisa que traduzir as curiosas ideias dos capitalistas
imersos na concorrência a uma linguagem aparentemente mais teórica e generalizadora, se
esforçando por construir especulativamente a correção de tais ideias” (C III 13 294). Ao
contrário, a compreensão da concorrência e das leis capitalistas exigiam mediações teóricas:
“el análisis científico de la competencia sólo es posible cuando se ha comprendido la naturaleza
intrínseca del capital, así como el movimiento aparente de los cuerpos celestes sólo es
comprensible a quien conoce su movimiento real, pero no perceptible por los sentidos” (C I, 10,
385). “Esta ley contradice abiertamente toda la experiencia fundada en las apariencias [...] Para
resolver esta contradicción aparente se requieren aún muchos eslabones intermedios” (C I, 9, 372).
É o plano do capital em conjunto que Castells perde ao assumir o ponto de vista das
222 Para Beinstein (1999: 221), se era possível em 1929 alegar inexperiência ou falta de antecedentes históricos,
ao pronosticar uma prosperidade indefinida, a atual sobre-abundância de dados objetivos sobre a magnitude
e direção da crise, faz com que a 'cegueira intelectual' deva ser interpretada como expressão ideológica da
própria crise, uma combinação de desonestidade científico-profissional e degradação das ciências sociais.
Economistas prestigiosos ignoram dados macroeconômicos elementares que mostram a decadência dos
EUA (desaceleração, etc.). Em termos semelhantes, Menegat (2003: 74) vê na compreensão da crise de 1997
como um 'ataque de nervos do mercado', proferido pelas autoridades econômicas do Brasil, “tanto um
encobrimento ideológico, como uma incapacidade de delimitar o sentido dos fenômenos mediante
categorias minimamente precisas das ciências sociais, às quais a economia pertence”.
166
empresas
223
. Não é casual, então, a apropriação por parte das empresas das formulações dos
economistas vulgares
224
. A economia política das redes leva à prescrição de se tornar um nó
valorizado para salvar o país, a região, a cidade, a empresa. O ponto de vista do indivíduo ou
da empresa corresponde com o abandono da teoria. Schwarz ironiza: “alguém imagina Marx
escrevendo O Capital para salvar a Alemanha?” (1999).
É preciso notar que essa mudança de nível de análise faz parte de uma inflexão
intelectual de época. Dosse (1994: 391-3) aponta que os indivíduos, os agentes, os atores
retêm a atenção “no momento em que as estruturas se apagam do horizonte teórico”. O
individualismo metodológico baseia-se numa crítica radical ao marxismo e ao
estruturalismo. Opõe-se às leis gerais, aos determinismos que pesam sobre o indivíduo,
partindo dos comportamentos individuais para explicar todo fenômeno social. Esse método
floresceu sobretudo nos Estados Unidos nas décadas de 70 e 80, em torno do paradigma do
Homo economicus. O sucesso desse paradigma “tem muito a ver com a evolução da própria
sociedade, que atravessa uma crise sem precedentes das referências identitárias holísticas” e
com a “recuperação do interesse pelas teses liberais”. Mas esse foco no nível individual exige
a construção de “tipos ideais” a partir de uma modelização das agregações possíveis e
realizadas entre indivíduos. Permite “que o sociólogo se identifique com o economista,
formalizando como ele a partir de tipos ideais a ação racional dos agentes sociais”
225
.
Weber afirmou que os tipos não são ideais no sentido normativo, do que seria
desejável, mas num sentido lógico. Estes pretendem acentuar características especificas
servindo como parâmetro para descrever os fenômenos. Ao se distanciar da realidade indicam
o grau de aproximação de um fenômeno histórico aos conceitos (Weber, 1994: 12-13). No
entanto, o limite dos tipos ideais reside na sua incapacidade para explicar as causas dos
fenômenos
226
. Por outro lado, o sentido normativo se introduz à revelia na aplicação e na
223 “Os valores de nossas empresas, de todas as empresas, tendencialmente, estão sendo negociados e serão
negociados cada vez mais em termos de interações eletrônicas, puramente eletrônicas, não físicas” (Castells,
2000: 270; itálica minha).
224 Por exemplo, a participação de Carlota Perez na campanha Shaping Ideas da empresa Ericsson, campanha
que vem mostrar a era de ouro que estaria nos esperando aqui na frente. Disponível em:
http://www.ericsson.com/campaign/20about2020/. Ou a referência a Castells num documento da mesma
empresa para sustentar a informação de que a África é hoje o mercado de celulares em expansão mais rápida
no mundo. (Economic Impact of Mobile Communications in Sudan, pp. 8, Disponível em:
http://www.ericsson.com/res/thecompany/docs/sudan_economic_report.pdf.
225 Gabriel Cohn também destacou esse vínculo necessário entre o individualismo metodológico e a construção
de tipos ideais (Cfr. Cohn, 1979: 71 e 136).
226 Se Weber foi muito eficiente “na descrição dos tipos de legitimidade, que ele chamou de carismática,
167
própria construção dos tipos ideais.
Num recuo em relação à sua própria crítica às suposições metafísicas do individuo
racional, agora em Castells, a perda de peso da objetividade e a mudança de nível de análise o
leva a construir as noções de “meio de inovação” e “modo de desenvolvimento informacional”
que funcionam como tipos ideais. Se nos anos 70 Castells atentava para a necessária lógica de
concentração do processo de acumulação capitalista, a suposta explicação das condições da
sinergia pelo tipo ideal “meio de inovação”, em termos cada vez mais culturalistas, perde de
vista a acumulação e concentração de capital como condição essencial por trás dos fenômenos
apontados. Os meios de inovação são causa e efeito da apropriação desigual de valor em
escala mundial.
Esses tipos acentuam-se características específicas para descrever os fenômenos. Não
deixa de ser interessante notar que isso mantém traços de sua herança de Althusser e
Poulantzas. Para Balibar, parceiro de Althusser em Ler o Capital, “os conceitos marxistas são
reconstituídos a partir de determinações puramente formais, evoluem segundo um sistema de
diferenças pertinentes puramente espaciais que excluem a natureza material, a substância
concreta dos objetos considerados”. “O abandono do referencial confere, portanto, à
abordagem um caráter essencialmente formal que permite aspirar à maior amplitude de
aplicação”. Isso torna possível uma ciência dos modos de produção (Dosse, 1993: 342-3). Por
sua vez, Poulantzas (apud Dosse, 1994: 202) afirmava em Pouvoir Politique et Classes
Sociales, de 1968, que “o modo de produção constitui um objeto abstrato-formal que, na
realidade, não existe num sentido pleno”.
Agora, a despeito de toda ressalva sobre sua não aplicabilidade, o tipo ideal “meio de
inovação” acaba sendo normativo, pois denuncia a realidade que não se corresponde com o
conceito. Herdeiro de Kant, trata-se de um formalismo que violenta a realidade
227
e de uma
tradicional e legal-formal”, a “razão estrutural pela qual determinadas sociedades carecem de um teor maior
ou menor de legitimidade, ou de certo tipo especifico de legitimidade, aparece de modo bem mais preciso
na obra de Gramsci” (Coutinho, 1994: 117).
227 “O formalismo acaba sendo não apenas o argumento de defesa da razão como esfera ordenadora do mundo,
mas também pela própria fragilidade desse argumento, uma intenção com tendência autoritária”. O recurso
por parte de Kant ao formalismo “se apresenta como o próprio limite da razão pura e a insuficiência da
razão prática. Em outros termos, ele pretende acomodar a relação entre razão e experiência, mantendo-as
formalmente antepostas” (Menegat, 2006: 155).
168
ética de um voluntarismo sem alternativas
228
. A distância entre o modelo e a realidade não
demonstra para Castells a inaplicabilidade do modelo, mas a impertinência da própria
realidade
229
. O tipo ideal “meio de inovação” serve à prescrição de se adequar ao modo de
desenvolvimento informacional. Não é mais que o reforço subjetivo pseudo-teórico de um
impelimento objetivo impossível de ser efetivado.
Há uma fratura entre uma denúncia da desigualdade e uma pseudo-teoria adaptativa.
Os alarmes em relação à pobreza, miséria, ficam sem resultado quando “a pretensão abstrata e
destrutiva de rentabilidade” não é objeto de crítica radical mas, ao contrário, “conjura-se essa
pretensão, adotando-a como padrão” (Kurz, 1992: 204).
O apontamento da ausência da crítica do valor não é externo à obra de Castells. É a
explicação do fracasso de seu próprio projeto empiricista. Postular a necessidade da teoria não
implica no desprezo da empiria mas, ao contrário, na possibilidade de sua explicação. Sua
falta de atenção para a abstração real do valor faz com que “sua percepção não esteja à altura
da empiria”
230
. Pois uma série de problemas de percepção se originam na restrição da visão às
categorias da mercadoria, dentro das quais se pretendem resolver os problemas. Um olhar
ofuscado pelo brilho aparente dos vencedores ocidentais no mercado mundial que evita
propositadamente os fenômenos de crise do Ocidente; uma percepção seletiva que esconde
que o sistema produtor de mercadorias, em seu atual nível de desenvolvimento, tem que
produzir perdedores em massa; a visão distorcida da contabilidade eclética dos lados bons e
ruins de um sistema social (Kurz, 1995: 143-52).
228 A ética kantiana consiste em uma concepção da transição para a sociedade da era do capital, com toda a sua
grandeza e miséria. E como em todas as épocas de transição, o voluntarismo da escolha é um tema central.
Todavia, a escolha de Kant é bastante rígida, não comportando alternativas” (Menegat, 2006: 170).
229 O resultado da deficiência do Japão “na adaptação à sociedade em rede e à nova economia foi estagnação
econômica permanente [...] a questão não é se o Japão pode se manter igual no meio de um mundo
globalizado não pode. A questão é o custo, e as convulsões internas através das quais esse processo de
adaptação e mudança terá lugar (Castells, 2003: 106-7; itálica minha). “Elementos estruturantes da
produção material da vida social, como a divisão do trabalho, são subsumidos nestes conceitos em que a
sociedade administrada se reflete [i.e. ação social], em nome de um realismo metodológico que apenas
compreende o processo social com base em fatos tomados isoladamente”. Arquivar o saber da sociedade em
forma de dados “lhe permite tratar as disfunções não como uma manifestação do todo, mas como uma
incongruência da parte” (Menegat, 2003: 59-60).
230 “Necessitamos mobilizar a imaginação precisamente para seguir estando à altura da empiria, por muito
paradoxal que soe” (Günther Anders apud Gomez, 2010).
169
5. Das forças produtivas enquanto meio à racionalidade tecnológica
“O esquema de Marx sobre o papel das forças produtivas foi mobilizado pelo marxismo histórico
somente em relação à história interna do sistema produtor de mercadorias, mas não no que se
refere à superação desse próprio sistema. De fato, a contradição entre forças produtivas e relações
de produção só conduz à crise absoluta no final da história sistêmica de desenvolvimento e no
limiar da superação. Mas desde o início ela foi também o motor interno do desenvolvimento
capitalista que levou a crises relativas ('crises de afirmação') e superou as formações históricas
obsoletas do sistema produtor de mercadorias”. A questão é que coube involuntariamente ao
marxismo/socialismo [...] a tarefa de representar as forças produtivas (fordistas) mais
progressivas do momento para um novo surto de desenvolvimento do sistema produtor de
mercadorias” (Kurz, 1997).
Schwarz (1999: 3) exemplifica com o Seminário de Marx dos anos '60 em São Paulo,
um caso periférico desse marxismo, restrito aqui à agenda local de superação do atraso por
meio da industrialização. A infecundidade dessa leitura já “abstrata e acanhada em relação ao
curso efetivo do mundo” naquele momento, tornava-se ainda mais evidente em 1995. Aquele
marxismo brasileiro convertido numa ideologia da industrialização retardatária”, tinha o
objetivo de “convergir com o mesmo nível de riqueza e poder dos Estados do núcleo orgânico
da economia capitalista mundial”. Arantes (2004: 148-150) chama a atenção para o ambiente
construtivo da intelectualidade como um imperativo próprio da periferia, condenada a
superar o subdesenvolvimento para não ser rebaixada à condição de nação pária”. Esse
imperativo explica em parte o fato de que essa intelectualidade se tornara paradoxalmente
impermeável à negatividade característica da Teoria Crítica. Ficou pendente naquela re-
leitura do marxismo enfrentar as “relações de definição e implicação recíproca entre atraso,
progresso e produção de mercadorias”, o que implicava a referência a outras fontes do
marxismo e da obra do próprio Marx: a crítica do fetichismo da mercadoria, a lógica da
mercadoria na própria produção e normalização da barbárie (Schwarz, 1999: 17-9).
Castells é um exemplo de manutenção dessa versão 'fraca' de transformação apontada
por Kurz, restrita, já no tempo de desconto, a mais um desenvolvimento das forças produtivas
na história interna do sistema produtor de mercadorias. A pertinência da formulação de Kurz
(1997) é absoluta: Castells exprime “uma crítica restrita à história interna dos estágios de
170
desenvolvimento tornados obsoletos do sistema produtor de mercadorias ainda inesgotado e
uma afirmação cega da última e mais nova figura técnico-material do capital”.
Em 1973, Castells denunciava que “no nível econômico quase todos os reformismos
esbarram com o mesmo obstáculo incontornável: tentam reajustar a distribuição do produto
sem alterar as bases mesmas da estrutura produtiva, e baseiam nessa política de dádivas sua
capacidade de integração social” (1973: 27). Deduzia-se do diagnóstico da incompatibilidade
entre a lógica capitalista e o desenvolvimento das forças produtivas que a classe trabalhadora
seria a única capaz de alterar essa base produtiva. Se o capital revolucionariamente
transformou por si mesmo a estrutura produtiva, não fica mais lugar que para aquele
reformismo: adequar-se à mais nova base produtiva para gerar recursos e distribuir
231
.
Produtividade, desenvolvimento de forças produtivas, inovação, continuam em pé no sistema
teórico de Castells, depois dessa viagem toda. Mas agora perdendo qualquer tipo de
radicalidade.
A des-radicalização intelectual é uma transformação da racionalidade, de força
crítica em força de ajuste e submissão. No último Castells indivíduo, autonomia, liberdade,
ficam submetidos racionalmente aos ditames do aparato. As categorias do pensamento crítico
viram força de submissão pós derrota das forças da esquerda e reestruturação capitalista.
Várias passagens nas primeiras obras de Castells tematizam a necessidade da
coexistência de ideias radicais junto ao processo de luta social, e o beco sem saída com que se
topam as ideias sem revolução
232
. Em 1983, Castells (1983: 276 e 285) percebe a necessidade
de um sujeito que articule demandas em dimensões múltiplas como condição da mudança
social. Consciente do dilema das ideias sem revolução, atenta para o descompasso entre as
ideias e a sua força
233
. A impotência da transformação objetiva é analisada como um limite,
231 Tratar-se-ia da “reconstrução de novas formas de controle social sobre novas formas de capitalismo” (PI:
137).
232 Em 1972, há nos 'acampamentos' no Chile um processo de mobilização e construção de gérmens de novos
modos de vida, mas faltam as ideias (1972: 54, 64). Em 1983, por exemplo, tematizando a perda de
radicalidade da Mission Coalition Organization de San Francisco, a finais dos anos 60, tenta encontrar uma
explicação para o processo segundo o qual “as mesmas pessoas com as mesmas ideias, que tinham
conseguido impor um firme controle das pessoas sobre o conteúdo e a administração de programas públicos
para o bairro, se deixaram perder numa selva burocrática e portanto isolaram-se da sua comunidade” (1983:
123).
233 “Os movimentos sociais urbanos apontam à transformação do sentido da cidade sem serem capazes de
171
como uma fragilidade: os atores históricos que deviam enfrentar os desafios globais
fracassaram. Para Castells, a internacionalização da produção fez com que o movimento
operário perdesse a capacidade de controle da economia. E então, “quando as pessoas se
encontram incapazes de controlar o mundo, simplesmente reduzem o mundo ao tamanho da
sua comunidade. Portanto, os movimentos urbanos tratam sim das questões reais do nosso
tempo, embora nem na escala nem nos termos adequados à tarefa” (1983: 329-31).
Percebemos a consciência de uma derrota e uma regressão histórica. Ainda, a ideia de que “a
história não se repete, mas quando as contradições se mantém não resolvidas, tornam-se mais
agudas” (idem: 121).
Décadas depois, após repressões e derrotas das esquerdas, segundo o renovado juízo do
autor as ideias libertárias continuam mas, agora, aquele encontro das ideias radicais com o
processo de luta não é mais exigido
234
.
Castells (2003: 13) lembra maio de 68 como uma das experiências mais belas de sua
vida, onde a revolução era possível enquanto “mudança da vida, do ser, do sentir, sem
intermediação política”. Décadas depois, ele considera que a despeito da derrota política
daquele movimento, persistiram suas ideias e ideais, “mudando nossa maneira de pensar, e
consequentemente, através de muitas mediações, nossas sociedades”. As mudanças das
últimas décadas seriam, então, para Castells, uma revolução sub-repticia dos ideais de
maio de 68
235
.
Quem são os sujeitos desse processo sub-reptício de revolução? Mudanças na estrutura
de classes
236
e no poder
237
na sociedade em rede definem para Castells novos processos de
transformar a sociedade”. Não podem ser uma 'alternativa social', só o 'sintoma de um limite social' (1983:
327). “Incapazes de gerar mudança social, as revoltas dos bairros urbanos tenderam à violência
interpessoal” (idem: 67). Ou dos movimentos urbanos políticos “como os de Monterrey ou Ixtacalco [que]
só são capazes de se estabilizar se as relações de poder entre as classes sociais mudam em favor das classes
populares” (idem: 199).
234 Há um gérmen, em 1983, da celebração da força das ideias, desprovidas de força material: La Vaguada,
bairro de Madri, “nunca se tornou uma terra liberada de vizinhos livres, mas seu mito despertou novas
possibilidades na maneira de projetar a cidade” (Castells, 1983: 251).
235 Cabe notar que, de maneira semelhante, para Touraine, a institucionalização do estruturalismo esvaziou 68
do seu conteúdo, de sua vivência. A vivência-68, expulsa da universidade, reencontra-se nas mulheres, nos
trabalhadores imigrados, nos homossexuais, que mudam a sociedade” (Touraine apud Dosse, 1994: 168).
236 “a segmentação dos trabalhadores, a individualização do trabalho e a difusão do capital nos circuitos das
finanças globais, em conjunto, provocaram o desaparecimento gradativo da estrutura de classes na sociedade
industrial” (FM: 423-5; PI: 423-4).
237 “o poder na Era da Informação é a um só tempo identificável e difuso [...] é uma função de uma batalha
172
dominação e o protagonismo decorrente de novos atores sociais como agentes de mudança. Os
atores sociais e políticos agora são os produtores de símbolos e os meios da luta são
exatamente os códigos culturais. A batalha é eminentemente cultural. “Os agentes que dão voz
a projetos de identidades que visam à transformação de códigos culturais precisam ser
mobilizadores de símbolos” (PI: 425). Outro agente é “uma forma de organização e
intervenção descentralizada e integrada em rede, característica dos novos movimentos sociais,
refletindo a lógica de dominação da formação de redes na sociedade informacional e reagindo
a ela” (PI: 426) Destaca o movimento anti-globalização que ele analisa como um movimento
por outra globalização
238
.
Perdeu-se no caminho a consciência do descompasso entre as tarefas exigidas e a
escala da ação dos sujeitos. Agora são imbuídas tarefas exageradas, a mudança libertária do
mundo, para atores pequenos, os hackers
239
: “o sistema de inovação precisa desta forma ágil
de espírito empresarial: pessoas que têm uma ideia, acreditam nela e conseguem que ela
transforme o mundo” (2002: 229). Inovando “pelo fim de inovar, por seu prazer, por seu valor
de uso”, “fornecem as aberturas imprevistas que o sistema (econômico, institucional) não
pode gerar por ele mesmo”. Hacker é usado por Castells no sentido dado pelo seu colega
Himanen de “paixão para criar, sem se importar pelos usos da criação” da “ideologia
individualista libertária de fazer eu mesmo para mim mesmo” (idem: 40). Ainda que se
enfatize a capacidade de inovação social dos hackers, pode se perceber claramente o âmbito
de ação e transformação dos hackers: a economia informacional, o âmbito empresarial
240
.
ininterrupta pelos códigos culturais da sociedade” (PI: 423).
238 “Eu considero o movimento anti-globalização, em toda a sua extraordinária e ainda contraditória
diversidade, como o equivalente histórico do indisciplinado movimento da classe trabalhadora que emergiu
no estágio inicial do capitalismo até que se conformou no movimento de trabalhadores, e iniciou o processo
de debate, negociação e institucionalização do conflito que deu nascimento à moderna sociedade industrial”
(2003: 65).
239 Na análise de Roberto Schwarz dos romances de Joaquim Manuel Macedo, o realismo miúdo, de um lado,
e a trama extremada do enredo romântico, do outro, implicavam uma combinaç ão inverossímil de duas
convenções literárias incompatíveis. O resultado não convencia pois pessoas tão acanhadas não podiam se
envolver nas intrigas romanescas (Cfr. Arantes, 1992: 75). Pessoas tão acanhadas como os “bons
capitalistas” (contrapostos aos capitalistas maus que só visam o lucro), hackers, empresários inovadores, não
podem se envolver nas intrigas romanescas que Castells lhes prepara, como a tarefa, talvez até mais épica
que romanesca, de efetivar as promessas da sociedade informacional. São tarefas exageradas para
personagens rasteiros.
240 A cultura libertaria é um ingrediente essencial do sistema de inovação em Silicon Valley” (Castells, 2003:
36). “Na concorrência global, a ideia de colaboração em rede inserida na ética hacker é crucial [...] Na
concorrência global, não se necessita de uma revolução mas sim de uma rede de rebeldes” (Castells, 2002:
63).
173
O capitalismo informacional seria contestado pelos sujeitos que ele próprio criou, em
direção a uma sociedade aberta, em rede e solidária
241
. Novos coveiros substituem o
proletariado, mantendo a teleologia positiva.
Num sentido mais abrangente, essa leitura faz parte da matriz de pensamento dos
autores de Imperio. Em Hardt e Negri, a cooperação seria imanente ao trabalho imaterial que
é portanto potencialmente uma “espécie de comunismo espontâneo e elementar”. Há neles a
esperança de alterar as relações de propriedade, de que o trabalho possa emancipar-se do
capital continuando a existir enquanto trabalho, e uma percepção da vitalidade da acumulação
capitalista. Os movimentos de protesto depois de 1968 teriam contribuído para a difusão do
trabalho intelectual, afetivo e imaterial, valorizando “a mobilidade, a flexibilidade, o
conhecimento, a comunicação, a cooperação, a afetividade”. Ainda, compartilhariam parte do
público ao qual se dirigem: Império sugere às novas camadas médias da população, que
ganham o pão de cada dia no setor 'criativo' informática, publicidade, indústria cultural
que são elas o novo sujeito da transformação social. O comunismo será realizado por um
exército de micro-empresários da informática” (Cfr. Jappe, 2006: 259). Podemos pensar na
redefinição do público da produção intelectual como uma das marcas do processo de des-
radicalização.
Em 1970, Schwarz vinculava ao corte que significou a repressão e a derrota das forças
de esquerda nos anos '60, a mudança de sentido das soluções formais estéticas e das formas
políticas que estavam sendo criadas no momento anterior: “O processo cultural, que vinha
extravasando as fronteiras de classe e o critério mercantil, foi represado em 1964. As soluções
formais, frustrado o contato com os explorados, para o qual se orientavam, foram usadas
em situação e para um público a que não se destinavam, mudando de sentido. De
revolucionárias passaram a símbolo vendável da revolução (Schwarz, 2005a: 37). Essa
“espécie de floração tardia” do movimento cultural, é analisada em termos de uma
“hegemonia ideológica sem força física” (idem: 53). Em 1978, Schwarz atualiza a análise do
percurso das formas estéticas, ao notar que “dia a dia está mais evidente o parentesco, e não o
241 “o processo de corrosão da família patriarcal, induzido acidentalmente pelo capitalismo informacional e
perseguido intencionalmente pelos movimentos sociais culturais” (PI: 278). A fuga em direção a uma
sociedade aberta e em rede levara à ansiedade individual e à violência social, até que novas formas de
coexistência e responsabilidade compartilhada sejam encontradas” (PI: 277).
174
antagonismo, entre a inovação pela inovação [na arte] e o movimento geral da sociedade.
Basta pensar na produção pela produção, na revolução tecnológica e científica, e na vocação
modernista da publicidade. Noutras palavras, quando se confina à dimensão técnica, o
radicalismo experimental é hoje uma atitude benquista e alienada como outras. À semelhança
do que se passa no campo das forças produtivas, o progresso técnico em estética chegou a um
impasse” (2005b: 155-6).
Atentando, então, para a “metamorfose liberal dos libertários daquela revolução
cultural que acabou alimentando a teoria e prática de 'flexibilidade' do novo capitalismo em
rede” (Arantes, 2004: 142), talvez possamos concordar com Castells e sua ideia de que os
ideais de 68 se apossaram do mundo, mas de um maio de 68 na chave de leitura de Raymond
Aron (1988: 92-3) que aponta para as “contradições de uma época que legitima os valores
que recusa”. As cobiças de maio de 68 “não têm conteúdo, voltadas nelas próprias em lugar
de estar voltadas ao mundo” (idem: 325-6). O autor refere-se aos “mitos de maio de 68 -o
direito ao desejo, a palavra festiva, o múltiplo, - e suas contradições a estrutura que dirige o
informal, o código que ordena o diverso, o culto dos gurus na denuncia da mestria” (idem:
338).
Desta maneira, os ideais de liberdade são engolidos pelo existente
242
. No beco sem
saída das ideias sem revolução, a cultura libertária vira individualismo e a revolução vira
inovação pela inovação. A utopia social, utopia tecnológica. O valor da inovação se torna
abstrato. Para Castells (2003: 2), as ideias libertárias são em si mesmas a libertação, a
verdade em si mesma é revolucionária, pois empodera as pessoas com uma compreensão de
suas vidas e seu mundo'”. Castells confia nos valores e na verdade dum mundo no qual
eles têm perdido força, pelas próprias mudanças que o autor tematiza
243
. É uma vitória na
242 Nas palavras do próprio Castells: “Seu espírito libertário exerceu influência considerável no movimento
para os usos individualizados e descentralizados da tecnologia. Sua profunda separação da política
trabalhista tradicional contribuiu para o enfraquecimento da mão-de-obra sindicalizada e, com isso, facilitou
a reestruturação capitalista. Sua abertura cultural estimulou a experimentação tecnológica com manipulação
de símbolos, constituindo um novo mundo de representações imaginárias que evoluiriam para a cultura da
virtualidade real” (FM: 416). O próprio Castells refere-se ao “maior individualismo e atitudes mais egoístas
em Silicon Valley que no resto dos EUA (Castells, 2003: 37).
243 A experiência histórica parece indicar, ao contrário, que “a verdade consegue impor-se apenas na medida em
que nós a impomos; a vitória da razão só pode ser a vitória daqueles que a possuem” (Bertold Brecht, “Vida
de Galileu”, em: http://entreaspas.org/temas/vitoria)
175
derrota, pois é uma vitória das ideias sem força objetiva.
A des-radicalização consiste neste ponto em fazer da necessidade virtude
244
. É o que
Arantes (2004: 16-22) chama de fome de imanência na transformação da tradição crítica da
inteligência em estupidez, que leva à resignação, a seguir as regras do jogo, ao predomínio do
cálculo dos experts em sobrevivência, faz com que o saber herdado que antes esclarecia e
prometia libertação, se converta no seu exato oposto conformista.
Essa transformação do saber herdado de libertário a conformista, pode ser analisado
em Castells justamente no lugar das forças produtivas no seu percurso.
Aquela promessa dos resultados qualitativos que devia gerar o desenvolvimento
capitalista, como base para a emancipação, pode ser avaliada como um valor de verdade
crítico. A racionalidade crí tica interpretava ali o processo social em termos das
potencialidades que continha. A racionalidade tecnológica mantém a estima pelo
desenvolvimento das forças produtivas, mas eliminando qualquer objetivo ou valor
transcendente.
A mediação crescente entre as forças produtivas e as relações de produção implicou
um desafio para a teoria, que levou a um conjunto de intelectuais ao abandono do que
entendiam como campo de referência da teoria marxista, pela perda de seu caráter explicativo.
Mas, longe de superá-la, acabaram re-pondo aquela polaridade entre forças produtivas e
relações de produção, revestindo-a com outros nomes, hipostasiando a análise das forças
produtivas, e apagando a análise das relações de produção, sem percebê-las ocultas como
segunda natureza.
Se, para Castells as mudanças atuais são uma revolução sub-repticia dos ideais de maio
de 68 também podemos interpretar que a própria estratégia política endossada por ele em
1977, do duplo movimento da socialização da produção e da dissolução do Estado, está
acontecendo agora, já sem a referência do socialismo. Não são esses processos analisados
pelo autor na sociedade em rede, a despeito da derrota das forças de esquerda? Socialização
da produção, agora em termos de interconexão global em rede da produção, e dissolução do
244 Em 1918 Rosa Luxemburg avaliou nestes termos a revolução russa: “eles realmente fizeram aquilo que se
poderia fazer em condições difíceis. O perigo começa no ponto onde, fazendo da necessidade virtude,
cristalizam em uma teoria acabada a tática que adotaram sob aquelas condições fatais” (Luxemburg apud
Lowy, 1979: 145).
176
Estado-Nação, com o movimento duplo de fortalecimento dos poderes locais e a criação do
Estado em Rede a nível global.
“O processo técnico é concebido como natural, ou mesmo como sendo já socialista,
uma vez que já está socializado no plano material”; o proudhonismo, existente também no
interior do marxismo tradicional, é uma tentativa de conservar a produção capitalista,
identificada somente com a técnica, e de alterar apenas o que diz respeito à distribuição e à
circulação”, consequência da identificação entre a crítica do valor marxiana com a teoria
ricardiana do valor trabalho (Jappe, 2006: 99). “O capitalismo tardio bem que coloca na
ordem do dia a necessidade objetiva e a possibilidade de enfraquecimento da lei do valor. A
revolução tecnológica torna possível, nesse contexto, um desdobramento de uma sociedade
em rede e o aprofundamento da mundialização bem que desfaz as Nações. Mas o capitalismo
senil se ocupa, pela violência que o acompanha, em anular todas essas potencialidades de
emancipação” (Amin, 2002: 100).
A socialização da produção que Castells celebra é aquele “comunismo das coisas”
analisado por Kurz como “emancipação negativa e errada”. Não atenta para a inerente falta de
capacidade crítico-reflexiva nesse processo de socialização.
Lá pelo ano 1997 o psicanalista Joel Birman (1997) tecia comentários sobre a nova
forma de cultura e a maneira de ser das individualidades, quando novos contatos mediatos de
terceiro grau, mediados pelas técnicas de comunicação à distância, passavam a substituir os
contatos imediatos entre as pessoas. Atentava, então, para a perda da memória, a mudança dos
humores, a perda de parcelas significativas da sensorialidade direta e das paixões provocadas
pelo impacto dos outros. Fundamentalmente, analisava as individualidades se transformando
em seres estranhos, em verdadeiros autômatos, pela perda dos traços de pulsação, pela
desafecção total se instituindo como habitus da existência. Avaliava que estávamos individual
e socialmente diante de uma escolha no enfrentamento entre a lógica pulsional e a lógica
maquínica
245
. Mas não encontramos em Birman uma demonização em abstrato da tecnologia:
245 As relações entre os homens são cada vez mais mediadas pelo processo da máquina. Os equipamentos que
facilitam o contato entre os indivíduos interceptam e absorvem sua libido (Marcuse, 1999: 81).
177
se os automatismos tecnológicos passam a regular as individualidades e as suas relações, a
tecnologia pode também “possibilitar o imprevisível”. A questão é que a efetivação dessa
possibilidade depende de uma condição muito específica: apenas quando a tecnologia é
“utilizada por um sujeito que não suporta mais conviver com esse vazio existencial e com a
monotonia entediante desse universo mediocrizado”, somente quando “alguém ainda pulsa e
deseja ser afetado, a tecnologia pode se inscrever num outro registro” (idem: 221).
A adequação é um imperativo realizado plenamente, é o direcionamento das pulsões
para o trabalho estranhado e para as necessidades fictícias. Esta lógica segue a trajetória
desenhada por Birman, na qual o ego ideal se realiza no fetichismo do dinheiro e da
mercadoria” (Menegat, 2003: 99). O narcisismo é uma 'saída lógica', no “direcionamento
sobre si mesmo de parte desta força pulsional inutilizada pelas formas da objetividade da
relação com o outro” (idem: 105). Birman (1997: 228) aponta a correlação entre a
construção da cultura do narcisismo e a terceirização da economia, onde para sobreviver
as individualidades precisam trabalhar sem parar, de maneira ininterrupta, onde se trata de
maximizar pragmaticamente a produtividade do trabalho. E a cultura do narcisismo
justamente está na base da perda de substância das ideias ligadas aos laços sociais e inter-
humanos pois a dita cultura “estica as premissas do individualismo ao seu extremo, rompendo
com valores e com noções que ainda imperavam no modelo individualista originário”,
deixando de lado as problemáticas da alteridade e da intersubjetividade.
Em Castells a ausência de uma crítica do trabalho estranhado e das necessidades
fictícias faz com que a tecnologia informacional se ponha ao serviço dos impelimentos das
novas condições do mundo do trabalho. Na afirmação imediata do desenvolvimento das forças
produtivas tudo deverá ser posto ao serviço da inovação que gera produtividade e
competitividade
246
.
Marcuse (1999: 91) assinalava que a padronização, exigida pelas demandas
profissionais e efetivadas pelo treinamento vocacional, faz da 'personalidade' um “meio para
246 Essa matriz faz parte do que Paulo Arantes chama uma esquerda de resultados, que ainda sonha com uma
regulação civilizatória do capital, do tipo redução da jornada de trabalho sem (?) perda salarial e na louvável
intenção de estancar a crise da sociedade do trabalho e contribuir (por que não) para incrementar a
competitividade das respectivas economias nacionais ou regionais, conforme o voto não menos piedoso do
par de vasos Bourdieu/Touraine” (Arantes, 2004: 245; itálica minha).
178
atingir fins que perpetuam a existência do homem como instrumentalidade”. A
individualidade recompensada é só “a forma especial em que o homem percebe e
desempenha, dentro do padrão geral, certas tarefas a ele atribuídas”. De unidade de resistência
e autonomia o indivíduo passa a unidade de maleabilidade e adaptação. Isso tem ainda
consequências sobre o conjunto, pois “as massas coordenadas não anseiam por uma nova
ordem, mas por uma fatia maior da ordem dominante”. Expressão da racionalidade
tecnológica, na prescrição de Castells de se tornar força de trabalho auto-programável o
indivíduo passa de unidade de resistência e autonomia a “unidade de maleabilidade e
adaptação” Para Castells (2002: 2), as pessoas devem servir à inovação enquanto “força de
trabalho autoprogramável e de alto nível”, “principal fator de produção para gerar vantagem
competitiva na economia informacional”.
O Estado é então um fornecedor de seres humanos bem cuidados... para a inovação! O
desenvolvimento dos seres humanos é um meio para inovar e se tornar competitivo. Para
Castells (idem: 43-4) a lição principal da Finlândia é que “o Estado de bem-estar não só não é
um obstáculo, mas pode ser um fornecedor crucial de seres humanos bem-cuidados, que são,
afinal, a fonte principal de inovação”. Pouco depois do estouro da crise mundial de 2008,
Castells (2009) recomenda, nas condições de flexibilização do mercado de trabalho, “contar
com uma boa formação de base que permita reprogramar a própria atividade em função dos
interesses próprios e da demanda do mercado”. A liberdade deve servir à inovação. Nos
EUA, “a obsessão com a segurança nacional pode pôr em perigo a liberdade, e sem liberdade
não há inovação”. A preocupação com a segurança, fechando de certa forma as fronteiras,
pode pôr em perigo a estratégia dos recursos humanos como fonte da produtividade” (2003:
115-16).
As férias, inclusive, devem servir à produtividade. Propõe isso, aliás, fazendo um uso
aberrante do “direito ao ócio” de Paul Lafargue. Em 2009, escreve:
“os estudos internacionais sobre os orçamentos familiares mostram que, ainda em situações de
crises, as férias não se criam nem se destroem, mas se transformam [...] Temos pressão demais na
nossa vida cotidiana para renunciar a esse espaço de liberdade no uso do tempo, conquistado faz
anos através de uma dura luta social que conseguiu impor o que Paul Lafargue chamou
provocadoramente faz mais de um século 'o direito ao ócio'. Que não é preguiça, senão distração,
que não é gandaia, senão descompressão, no fundo para continuar na carreira cotidiana durante
mais tempo e com mais intensidade. As férias bem entendidas são produtivas para a economia,
tanto na oferta (pôr em forma o trabalhador) quanto na demanda (setor decisivo como mercado de
179
serviços)” (Castells, 2009b)
247
.
Muito pelo contrário, Paul Lafargue denunciava a “estranha loucura” que tinha se
apoderado das classes operárias das nações onde dominava a civilização capitalista, a loucura
do “amor ao trabalho”. Achava vergonhosa a atitude do proletariado francês que, depois de
1848, aceitava como uma conquista revolucionária a lei que limitava a doze horas o trabalho
nas fábricas; que proclamava como um princípio revolucionário o direito ao trabalho; que
prestava ouvidos aos economistas que continuavam repetindo “trabalhem para aumentar a
riqueza social”. E “em lugar de aproveitar os momentos de crise para uma distribuição geral
dos produtos e uma folga e regozijo universais, os operários, mortos de fome, vão a bater a
cabeça contra as portas da fábrica”
248
.
Assim, enquanto Paul Lafargue fazia uma crítica feroz e radical à sociedade burguesa,
Castells fazendo uso de seu nome, incorpora as férias, o descanso, a distração, como parte
fundamental da engrenagem dessa sociedade. As férias são produtivas para a economia, então,
aproveite-as! Uma amostra aberrante da sua adoção da sociedade burguesa e do modo de
produção capitalista como horizonte social.
Vimos que, nos anos 70, além do desenvolvimento das forças produtivas, Castells
inseria como elemento fundamental da construção histórica das necessidades sociais a
correlação de forças das classes. E ainda criticava certos costumes e modos de vida resultado
de necessidades criadas pelos desenvolvimento das forças produtivas, como o uso extensivo e
individual do carro nas cidades. Agora funciona como pano de fundo não explicitado uma
dialética positiva das forças produtivas, isto é, a celebração imediata de novos produtos que
geram novas necessidades.
Castells analisava nos 70 a expansão do uso da publicidade para gerar mercados como
contra-tendência da queda tendencial da taxa de lucros. Agora, é simplesmente legitimado
como uma fonte genuína de valor. O modelo da Nokia é um exemplo a seguir, por ter
percebido “antes dos seus concorrentes, que o telemóvel não é apenas uma ferramenta técnica
destinada a um número limitado de utilizadores do mundo dos negócios, mas antes um
247 “El obrero... es un consumidor productivo para la persona que lo emplea y para el Estado, pero,
estrictamente hablando, no lo es para sí mismo” (Malthus apud Marx, C II, 22, 705).
248 Paul Lafargue. “Derecho a la pereza”.
Disponível em: http://www.marxists.org/espanol/lafargue/1880s/1883.htm.
180
instrumento ao serviço do conjunto dos cidadãos”, que tenha entendido muito cedo “a
importância da experiência simbólica como fonte de valor”' (2002: 40)
249
. Celebra-se a
produtividade nos setores financeiros, uma das flagrantes manifestações contemporâneas das
desmedidas do capital: “os serviços financeiros são o melhor exemplo de como a
informacionalização está a contribuir para aumentar a produtividade noutros setores que não
pertencem à área de produção de Tecnologias de Informação” (idem: 34).
O conceito de indústria cultural inseria o problema da revolução na análise do
problema estrutural da cultura produzida pela sociedade burguesa. Era uma das
materializações criadas pelo desdobramento do excesso de poder social atingido pelas forças
produtivas que se seguiu à derrota da revolução. E permitia compreender os impasses das
forças produtivas sem revolução, do poder social sem revolução, da abundancia sem
revolução. Permitia criticar a natureza da produção de bens, e ainda sua dimensão simbólica,
no duplo papel econômico e ideológico que solidifica os laços de adesão com a ordem de
produção.
Enquanto isso, no momento em que a economia da concorrência se afastou das
necessidades das massas como jamais antes em sua ascensão histórica (Kurz, 1992: 150),
Castells passa de uma difusa teoria crítica das necessidades a uma empiria acrítica das
necessidades. A distinção entre valor de troca e de uso e a necessidade de des-capitalização
das cidades e das relações sociais, ainda presente em 1983, contrasta com a naturalização atual
do modo de produção capitalista enquanto horizonte.
Para Fiori (1997: 143-4), quando "desaparece aparentemente a possibilidade de um
'horizonte socialista', não foi difícil para estes intelectuais marxistas readequarem aos novos
249 A nova-antropologia, curiosamente, dedica uma parte considerável do seu esforço para estudar o que tem
chamado de neo-fetichismo, que consistiria nas relações particulares do consumidor com a mercadoria”, o
“ato cultural que transcende o valor de uso das mercadorias (!!), que é a própria cultura do consumo, na qual
se realizam formas de identidade não concebidas no uso dado a elas pela indústria [...] A formulação
conceitual de boa parte da auto-proclamada cultura pós-moderna procura elaborar essas novas condições da
experiência. Contudo, o seu pressuposto é a aceitação dessas condições” (Menegat, 2006: 270). “Essa
dimensão prática do uso do estruturalismo explica igualmente a importância das saídas oferecidas hoje à
linguística pelo desenvolvimento das 'indústrias da língua', da informática”. Dá-se uma ruptura de geração.
A nova “pode reiniciar a pesquisa sobre objetivos simultaneamente novos e, desta vez, integrados no interior
das modernas tecnologias”, por exemplo, a 'escolha de estruturas de palavras' para um dicionário com
controle ortográfico. É a passagem das humanidades literárias aos engenheiros (Dosse, 1994: 457).
181
tempos as mesmas teses, as mesmas deduções e o mesmo dogmatismo”. Essa readequação
faz com que o desenvolvimento das forças produtivas seja revestido de outros nomes, seja
procurado com outras estratégias, e tenha outro horizonte de referência: em vez de ser em
nome do socialismo futuro, será em nome apenas de uma modernidade abstrata. Neste
sentido, aliás, pode-se dizer com toda a certeza que aqueles que um dia foram intelectuais
críticos e que hoje estão aliados à direita continuam tão ou mais utópicos do que antes”
250
.
Mas, a despeito do reconhecimento de continuidades nessa trajetória intelectual, a
aparência imediata é a de uma mudança ciclópica de orientação ideológica onde nada fica
em pé. Por isso, é preciso para esses intelectuais elaborar algum tipo de auto-justificação.
Vimos que na Galaxia Internet Castells justificava o realismo adaptativo pela limitação
das trajetórias de desenvolvimento tecnológico. Essa noção de realismo também aparece na
camaradagem entre FHC e Castells na trilogia. No prefácio à edição brasileira, FHC
considera que pela análise abrangente e multissetorial de Castells é justa a sua comparação
com Economia e Sociedade de Weber. E que, pelo mesmo motivo “se torna especialmente
relevante para os que devem tomar decisões práticas na condução de assuntos de governo”,
pois devemos conhecer essa sociedade na qual vivemos, globalizada e centrada no uso e
aplicação da informação, “se quisermos que nossa ação seja ao mesmo tempo relevante e
responsável” (SR: 35-7)
251
.
Castells considera injustificada a afirmação segundo a qual os anos 90 sejam uma
década perdida na América Latina em termos de desenvolvimento. Segundo ele, “as reformas
macroeconômicas destinadas a controlar a inflação, racionalizar os gastos públicos e
fortalecer o sistema financeiro foram absolutamente necessárias para ligar a América Latina à
economia global informatizada que caracteriza nosso mundo”. A partir daquelas reformas,
que Castells caracteriza como uma opção para “tirar proveito dos benefícios potenciais de
250 Também Bourdieu percebeu que talvez não seja por acaso que tanta gente de sua geração “passou sem
problemas de um fatalismo marxista para um fatalismo neoliberal: nos dois casos o economismo
desresponsabiliza e desmobiliza anulando a política e impondo toda uma série de fins não discutidos,
crescimento máximo, competitividade, produtividade” (Bourdieu apud Jappe, 267, nota 8). François
Maspero afirmava em 1976: “Eis a nova direita. Há dez anos, eram os filhinhos de Marx e da Coca-Cola.
Hoje, tudo o que sobrou foi a Coca-Cola” (Dosse, 1994: 308). Neste caso, das forças produtivas e o
socialismo, só sobraram as forças produtivas.
251 Castells (2003: 119) lembra que em 1968 passou um mês morando na casa de FHC e ficaram amigos desde
então. Castells falou na conferência na qual FHC tomou posse como presidente (idem: 92).
182
articular a região com o novo sistema global”, “as políticas de ajuste tornaram-se um
imperativo”. Essas políticas de ajuste teriam sido “tecnicamente bem-sucedidas, embora com
um elevado custo social” (2002b: 397). Castells julga como excepcional o trabalho de FHC
como presidente, modernizando o país, acabando com a hiperinflação, e trazendo o Brasil
competitivamente na economia global, e contribuindo para melhoras em saúde e educação. A
despeito disso, o Brasil teima em se manter “uma sociedade injusta”. O Brasil seria um
“gigante econômico e um desastre social”. Então tratar-se-ia de expandir os benefícios desse
gigante, se apoiando nas “bases sólidas criadas por Cardoso no nível econômico” (2003: 119-
20).
Na Sociedade em Rede, Castells justifica a guinada das esquerdas que implantaram a
globalização, exatamente pelo seu realismo. É, ao mesmo tempo, uma auto-justificação do
seu próprio percurso intelectual:
A guinada irônica da história politica é que os reformadores que implantaram a globalização,
no mundo inteiro, provinham da esquerda em sua maioria, rompendo com o passado de defensores
do controle governamental da economia. Seria um erro considerar isso uma prova de oportunismo
político. Pelo contrario, foi realismo acerca dos novos acontecimentos econômicos e tecnológicos,
e a percepção da maneira mais rápida de tirar as economias de sua estagnação relativa” (SR: 186).
Fiori (1997: 121) avalia também a FHC como um realista que “percebeu e aceitou que
a onda liberal chegou ao Brasil como imposição, e não como opção”. Mas, trata-se do que
podemos chamar de um realismo mágico
252
, criticado aqui por Fiori em termos de um
raciocínio circular:
“se, por um lado, em nome da globalização – que tudo explica e exige – defendem ou promovem o
fim da proteção social, a 'flexibilização' dos mercados e dos contratos de trabalho, o fim da
estabilidade no emprego, etc., etc., por outro, oferecem como prêmio aos perdedores a promessa
de um futuro que agora responde pelo mesmo nome de globalização, ou novo renascimento.
Talvez, em algum tempo mais, para resolver o problema lógico desta circularidade, alguns destes
'cristãos novos' ainda nos presenteie com uma obra sobre 'A Igualdade e a Fraternidade como Fase
Superior da Globalização' (idem: 145).
No mesmo parágrafo citado da Galaxia Internet, Castells (2001: 220) acrescentava o
seguinte:é improvável que as sociedades no mundo todo se envolvam livremente em formas
não-tecnológicas de desenvolvimento -entre outras razões, porque os interesses e a ideologia
252 A estreiteza de conteúdo das revoluções burguesas faz necessária a fraseologia (a magia, utopia abstrata,
excesso de imaginação)” (Arantes, 2004: 141). Constitui com novas roupagens a clássica “confiança numa
espécie de milagre dialético de que uma relação capitalista levada ao extremo se inverte” (idem: 147).
183
de suas elites estão profundamente enraizados no modelo atual de desenvolvimento”.
Cremos ter mostrado o quanto a obra recente de Castells serve à legitimação ideológica desse
modelo de desenvolvimento. A percepção dramática da estreiteza objetiva das trajetórias de
desenvolvimento, converte-se em realismo adaptativo, a necessidade em virtude, com a
legitimação do horizonte virtuoso do capitalismo informacional
253
. Castells traduz em
pseudo-teoria e prescrição as condições da regressão. Na palavra de ordem submissão ou
estagnação, não há proposta de conciliação dialética com a tecnologia, mas uma submissão
como aparência de liberdade
254
.
A justificação teó rica que Castells faz da abertura e integração dos países em
desenvolvimento à economia globalizada, pelo seu 'realismo', é ao mesmo tempo uma auto-
justificação do seu próprio realismo de se integrar como intelectual no mercado de
intelectuais globalizados
255
. Essa integração lhe deu frutos. Cabe recuperar aqui que em 1983
Castells (1983: 322) lembrou com orgulho que seu aluno Daniel Cohn-Bendit, líder estudantil
em Nanterre em 1968, disse uma vez a seus professores liberais: “Para que vocês sejam
reformistas bem-sucedidos, nós temos que ser revolucionários fracassados”. Pois bem, Martin
Ince (Castells e Ince, 2003: 1-2) destaca a boa posição de Castells no ranking do Social
Science Citation Index, mas também a sua influência ultrapassando a arena acadêmica,
atingindo “políticos, executivos, líderes sindicais, ativistas de ONGs, jornalistas e formadores
de opinião”. Em outubro de 2000 o jornal Observer identificou-o como a 139a pessoa mais
influente na Grã Bretanha. Em 1999 recebeu o Prêmio 1° de maio para o Pensamento Social
da Fundação dos Trabalhadores Catalães da União Geral de Trabalhadores (UGT) e o
prêmio Cambrescat para Estudos da Internet da Associação Catalã de Câmaras de
Comércio. Isso serve a Ince para demonstrar o “status especial” do trabalho de Castells. É em
253 A ideia de que o capitalismo poderia ajustar-se a transformações libertadoras – quer dizer produzir, mesmo
sem querer,... tão bem quanto o socialismo está no coração da ideologia liberal americana. A sua função é
de adormecer e de provocar a perda de medida dos verdadeiros desafios e das lutas necessárias para lhe
fazer face” (Amin, 2002: 100).
254 Trata-se de um realismo rasteiro legitimar esse modelo de desenvolvimento pela percepção leviana de que
sem a Internet um país atrasado não come: em 2003 Castells felicitava ao então presidente da África do Sul,
Mbeki, que ele estivesse “convencido que enquanto não se pode comer a Internet, os países não podem
comer sem a Internet, numa economia da informação, em rede, global” (Castells, 2003: 46).
255 Lembremos da sua ironia em relação a sua recusa inicial de se inserir na tecnocracia burguesa da sociologia
urbana.
184
efeito um emblema de sua contribuição, não ao capital por um lado e aos trabalhadores pelo
outro, mas exatamente ao pacto social entre capital e trabalho.
Não casualmente Castells (2002: 18) celebra que, diante da ameaça da crise econômica
de 1990-1993 na Finlândia, “com a ajuda das políticas públicas, da reestruturação empresarial
e inovações individuais e o apoio do Estado de Bem-estar (incluído o contrato social entre
capital e trabalho) e da identidade legitimadora – a economia conseguiu refazer-se”.
Afirmo que a verdadeira auto-justificação não-oficial de Castells de sua trajetória intelectual
reside na sua identificação com a experiência da Finlândia, onde “o comunismo foi evitado
canalizando o pensamento socialista para a construção do Estado de Bem-Estar, e houve uma
aproximação ideologicamente neutra à Europa Ocidental juntando-se ao seu desenvolvimento
tecnológico” (idem: 200).
185
CONCLUSÃO: O PÓS-MARXISMO LEGAL E A MANUTENÇÃO REGRESSIVA DA
ESPERANÇA
“Meu amigo, a imaginação e o espírito têm limites; a não
ser a famosa botelha dos saltimbancos e a credulidade dos
homens, nada conheço inesgotável debaixo do sol”
Machado de Assis (2007: 131)
¿De donde sacó el Personero la idea de que la profesión
de un juez es ejercer la justicia? ¡Rebúsquenlo! Los
Notables de Rancas decidieron quejarse. Era un día de sol
y quizás el áureo despilfarro festoneó los ánimos de una
esperanza. Nada debilita más al ser humano que las
mentiras de la esperanza”
Manuel Scorza (2007: 171)
A esperança é um urubu pintado de verde”
Mario Quintana
A geração intelectual da qual tentamos aqui captar a trajetória, com o caso expressivo
de Manuel Castells, defrontou-se com o seguinte enigma: como se manter progressista num
tempo regressivo? Como sustentar a esperança?.
Hobsbawm (1982: 84) aponta que, se os marxistas legais russos “tivessem vivido na
Europa central ou ocidental em lugar da Rússia, certamente se sentiriam muito mais à vontade
declarando-se liberais e não marxistas”. E Rosdolsky (2004: 519) atenta de fato para o
posterior abandono, por parte desses intelectuais, do movimento socialista, e a sua conversão
em ideólogos da burguesia liberal russa. O otimismo procurou roupas mais adequadas
para o novo momento histórico.
Apesar do seu combate inicial contra o dogmatismo do marxismo vulgar e a tentativa
de mediação entre a teoria e a prática, a assunção do proletariado e das forças produtivas
como pontos de vista da crítica inserem o jovem Castells no quadro do marxismo legal. Nos
anos 70 o marxista Castells recusava a teleologia progressiva do desenvolvimento das forças
186
produtivas e percebia a incompatibilidade desse desenvolvimento com o capitalismo. A
esperança, então, residia numa outra teleologia, politicista, de acirramento inexorável na luta
de classes e mudança da relação de força entre capital e trabalho. Esse marxismo, já infecundo
naquele momento para uma crítica radical do sistema, era uma usina de esperança com os
nomes possíveis naquele momento. Prometendo a transcendência, na verdade não podia mais
que oferecer, na melhor das hipóteses, uma adequação em melhores termos aos parâmetros do
sistema.
As mudanças na reestruturação do capitalismo jogaram por terra o seu sistema
teórico e as suas esperanças. A classe trabalhadora era, ora esmagada, ora institucionalizada.
E ainda, o capitalismo conseguia, contra as previsões, desenvolver as forças produtivas.
Castells percebe corretamente que aquela dialética positiva não funcionava, e, pela
exclusividade na luta de classes, pela transhistoricidade, pela sua incapacidade por integrar na
análise as estruturas e os processos de mudança, abandona o marxismo num todo
256
.
Com a perda de sustentabilidade histórica do ponto de vista do proletariado para a
crítica da sociedade, resta no entanto o das forças produtivas. Ali radica a passagem do
marxismo legal para o pós-marxismo legal. O ponto de vista das forças produtivas, como
plataforma de observação e crítica da sociedade é o que sobrevive daquele marxismo
legal, agora sob a roupa nova da mera inovação, sem proletariado, sem fins transcendentes.
O percurso de Castells acaba sendo uma eterna busca pelas melhores condições do
desenvolvimento das forças produtivas. Antes dos anos 60, a URSS rompia o mito da
impossibilidade do estatismo de desenvolver uma estrutura industrial. Nos 70, a classe
ascendente se ligava às forças produtivas e o capitalismo monopolista travava esse
desenvolvimento. Nos anos 80 e 90 aparece um capitalismo rejuvenescido que resolve o
desenvolvimento tecnológico. Serve como modelo Silicon Valley, explosão de inovação.
Enquanto isso, o estatismo soviético é agora incapaz de se adequar ao novo paradigma
257
. No
256 O pós-estruturalismo é para Postone (2009: 309) um pós do estruturalismo assim como, mais
implicitamente, do reducionismo de classe.
257 Segundo Castells, a hipótese da incapacidade do estatismo soviético para assegurar a transição para a
sociedade da informação “trata-se apenas da aplicação de um velho ideal marxista, segundo o qual sistemas
sociais específicos podem emperrar o desenvolvimento das forças produtivas, admitidamente apresentadas
aqui em uma inversão histórica que chega a ser irônica” (FM: 28).
187
século XXI, o modelo americano revela custos sociais insuperados. Finlândia é agora o
modelo de relação virtuosa entre Estado de bem-estar e desenvolvimento informacional.
Castells encontrou apoio para a esperança no modo de desenvolvimento
informacional. Evitou assim o politicismo em ruínas. Mas conciliou, sem assumi-lo, com
aquela teleologia progressiva do desenvolvimento das forças produtivas sustentada por
parte da tradição marxista que recusara.
A noção de “pós-marxismo legal” condensa a trajetória de uma geração que
abandonou o marxismo legal, pela insuficiência de sua expressão teórica, e pela
inconsequência de seus desdobramentos práticos (e por isso é um pós marxismo-legal), mas
cujo fim de linha nessa virada é a adesão renovada à forma social burguesa (e por isso é um
pós-marxismo legal).
Nessa adesão renovada, repõem-se limitações daquele marxismo legal: sem avaliar os
limites da acumulação constrói a esperança de um futuro grande e brilhante para qualquer país
informacionalizado, atingindo condições de ganhar um lugar no mercado mundial. Agora, até,
sem necessidade aparente de derrotar ninguém. Todos podem ter o seu lugar. Castells não
analisa mais barreira para a reprodução do capital e o decorrente desenvolvimento econômico
e social que as forças produtivas das quais dispõe cada sociedade. Se vimos diferentes
expressões do marxismo legal, na Rússia e na Alemanha e Áustria, respondendo a diferentes
exigências históricas, agora uma única teoria “multicultural”, via uma peculiar dialética de
universal/particular, serve para diferentes exigências sociais em diferentes regiões do planeta.
Nos países considerados atrasados ou em desenvolvimento, para convencê-los da
inevitabilidade e factibilidade de sua adaptação ao informacionalismo. Nos países já
informacionais para garantir o caráter virtuoso desse modo de desenvolvimento. Como
aqueles russos, Castells pretende demostrar não só a necessidade mas a possibilidade de se
adequar ao modo informacional de desenvolvimento para os países atrasados. E, como aqueles
europeus, acaba aparentemente mostrando o seu virtuosismo geral e a sua durabilidade
eterna.
188
O movimento de Castells é aquele apontado por Aron: o de uma geração que legitima
o que recusa. Da crítica do formalismo “da observação simplista ou direta de uma realidade
que se ajusta mecanicamente às relações formais definidas pela teoria” (Castells, 1978: 64-5),
chega ao formalismo de uma modelização abstrata de receitas de desenvolvimento que
denunciam a realidade pela sua impertinencia. Formalismo que perde a consciência da
necessidade das mediações e da abstração para compreender o opaco mundo social criado
pelo capital. Tendo criticado os polos do dogmatismo e do pragmatismo, Castells vai se
orientando à descrição pragmática sem mediações.
Da crítica do idealismo e a necessidade de resolver a antinomia entre estrutura e
mudança, passa não à resolução mas à dissolução da antinomia na perda do peso das
estruturas
258
. O novo motor do progresso social é a inovação, ora impessoal, ora com agentes
ao serviço dela. Dessa maneira, estabelece-se uma dissolução da antinomia entre estrutura
e processo de mudança. A identidade entre estrutura e processo é a inovação, ela mesma
mudança e estrutura. Mas é um processo de mudança que não pode superar o horizonte da
estrutura. Em direção a uma teoria da ação social, como saída supostamente superadora do
estruturalismo-marxismo incapaz de integrar estruturas e processos, as estruturas vão saindo
do horizonte teórico.
O fato de existir esperança na obra de Castells poderia ser louvável. Bloch nos ensinou
que a esperança se contrapõe ao medo. Mas também fez uma distinção substancial:
“Corruptio optimi pessima: a esperança fraudulenta é uma das maiores malfeitoras, até
mesmo um dos maiores tormentos do gênero humano, e a esperança concretamente autêntica,
a sua mais séria benfeitora”. Esta última é uma '”esperança sabedora e concreta”,
“compreendida em termos dialético-materialistas”. Para Bloch (2005: 15-20), “desde Marx
não existe mais investigação da verdade nem juízo realista que possam esquivar-se dos
conteúdos subjetivos e objetivos da esperança do mundo a não ser sob pena de trivialidade
ou de beco sem saída”.
Ao contrário da utopia concreta, a utopia abstrata força a realidade para encontrar uma
258 “Para Marx, a causa objetiva das antinomias se encontrava na própria lógica da estrutura e do
desenvolvimento da sociedade burguesa” (Menegat, 2006: 252-3).
189
carga emancipatória ali onde não existe. Esse realismo mágico não deixa de exprimir um certo
desconforto com o existente, que é necessário transcender. Mas procura esperanças ali onde
não poderia tê-las. A esperança abstrata em Castells constrói-se em base à positivação da
sociedade em rede, à modelização do desenvolvimento informacional impossível de ser
universalizado, à compreensão abstrata da tecnologia. Na obra de Castells sonho e realidade
são uma dualidade. Realismo empiricista por um lado. Utopia abstrata pelo outro
259
. A
esperança acrescentada é uma esperança abstrata, e portanto malfeitora. Alivia a sensação
de insustentabilidade dessa forma social
260
.
A consciência do dano que podem provocar as esperanças vazias, presente na obra
inicial de Castells, apaga-se na obra recente. A necessidade da esperança foi mais poderosa
que a consciência do dano das falsas promessas.
Castells acredita se contrapor ao idealismo pelo empiricismo sociológico e a
neutralidade axiológica. Mas “o idealismo da sociedade capitalista só pode ser suprimido por
meio de uma profunda transformação na forma como os humanos produzem sua vida”
(Gomez, 2010: 11).
A perda do peso da objetividade das leis sociais leva a que as propostas de saídas em
relação ao diagnóstico dos males do mundo fiquem numa dimensão moral, sobreposta à
análise teórica
261
. É uma apresentação moral e genérica da causa dos problemas
262
, que abre a
chama da esperança e permite tranquilizar ao leitor: “No entanto, nada disso é inevitável. É o
lado escuro do livre mercado, e precisa regulação ética. Senão, temos um mundo no qual tudo
pode ser vendido em qualquer parte” (Castells, 2003: 78). Por isso Castells chama as vezes às
“vozes da razão” e apela a uma “ação consciente”
263
. Como já apontamos em outro lugar, a
259 Ruth Cardoso afirmava no prefácio à edição brasileira do Poder da Identidade que o livro pode contribuir
para que os leitores “olhem o mundo globalizado com olhos críticos mas também esperançosos” (PI: iii).
260 Já que “a esperança é fácil e barata”, “seria incômodo pensar que centenas de milhares de pessoas, e seus
numerosos descendentes, estão sentenciados a vidas atroces e mortes prematuras para sempre”. Assim
justifica a sua “esperança de que a África do Sul possa melhorar” (Castells, 2003: 124; itálica minha).
261 Agora temos a possibilidade de desfrutar as experiências humanas mais profundas assim como a chance de
nos explodirmos a nós mesmos num holocausto nuclear. Podemos fazer a revolução com as pessoas ou geras
as forças do terror revolucionário contra as mesmas pessoas” (Castells, 1983: 304).
262 A situação das crianças no mundo é um sintoma dos custos da maneira como fazemos as coisas na nossa
sociedade” (Castells, 2003: 77; itálica minha). “Temos dentro de nós, a um só tempo, os anjos e os
demônios da humanidade, sempre que nosso lado mau assume o controle da situação, desencadeia um poder
destruidor sem precedentes” (FM: 191).
263 “a desigualdade e a polarização são predefinidas na dinâmica do capitalismo informacional e prevalecerão a
190
proposta é altamente ética, e igualmente ingênua. Assim acaba moralizando a questão da
(im)possibilidade de efetivação das promessas tecnológicas.
Fiel a sua suposta neutralidade axiológica, a tendência geral, então, não é nem otimista
nem pessimista, mas de perplexidade: “O século XXI não será uma era de trevas. E, para a
maioria das pessoas, também não trará as recompensas prometidas pela revolução tecnológica
mais extraordinária da história. Ao contrário, é provável que seja caracterizada por
perplexidade consciente” (FM: 436). Mas, abrindo novamente a esperança, a despeito da
“enorme defasagem entre nosso excesso de desenvolvimento tecnológico e
subdesenvolvimento social”:
“Esta situação não é definitiva. Não há mal eterno na natureza humana. Não existe nada que não
possa ser mudado por ação social consciente e intencional, munida de informação e apoiada em
legitimidade. Se as pessoas forem esclarecidas, atuantes e se comunicarem em todo o mundo; se as
empresas assumirem sua responsabilidade social; se os meios de comunicação se tornarem os
mensageiros, e não a mensagem; se os atores políticos reagirem contra a descrença e restaurarem a
fé na democracia; se a cultura for reconstruída a partir da experiência; se a humanidade sentir a
solidariedade da espécie em todo o globo; se consolidarmos a solidariedade intergeracional,
vivendo em harmonia com a natureza; se partirmos para a exploração de nosso ser interior, tendo
feito as pazes com nós mesmos. Se tudo isso for possibilitado por nossa decisão bem informada,
consciente e compartilhada enquanto ainda há tempo, então, talvez, finalmente possamos ser
capazes de viver, amar e ser amados” (FM: 437-8)
264
.
A falta de peso da sua teoria faz Castells ficar no nível fenomênico e perder a
percepção da crise estrutural em curso. Ernst Bloch (2005: 15) denunciava em 1950 o fato da
crise ser um “fenômeno suportado, mas não compreendido”. Na contracorrente do
pensamento des-radicalizado, os fenômenos contemporâneos ganham fôlego explicativo na
sua inserção na dinâmica da crise do capital. Mas, se nesta altura dos acontecimentos é já
impossível omitir algum tipo de abordagem sobre a crise, inclusive para os legitimadores do
sistema, a polêmica se desloca para a determinação da sua natureza
265
. Por isso a determinação
menos que seja tomada alguma ação consciente para contrapor-se a elas” (FM: 420). “O Governo
[finlandês] poderia ser mais activo, dentro da União Europeia, para que se pressionasse mais a favor de uma
regulação financeira, impondo-se à resistência dos Estados Unidos. Isto não será possível a curto prazo, mas
depois de uns episódios de perigos financeiros talvez se oiçam as vozes da razão” (Castells, 2002: 234).
264 A revista argentina de humor político, Barcelona, colocou na capa: “Solução final: descobrem que sem uma
classe média oligofrênica e conservadora, sem um governo hipócrita e néscio, sem uma oposição vigarista e
delinquente e sem uma mídia corrupta e pouco séria, os problemas do país se resolveriam 'num piscar de
olhos'” (edição N° 137 de 20 de junho de 2008). O raciocínio é o mesmo, só que num caso como ironia
ácida do pauperizado debate político argentino e em outro como seríssima análise sociológica.
265 Tal confusão e necessidade de determinação também se deu no momento em que a morte deixou de atuar,
no romance As intermitências da morte de Saramago (2005: 15): talvez “a palavra crise não seja certamente
a mais apropriada para caracterizar os singularíssimos sucessos que temos vindo a narrar, porquanto seria
191
da sua estruturalidade não é um mero adjetivo. A ausência da crítica do valor leva a
desconhecer que a história do capitalismo não é uma simples sucessão de estruturas mas um
processo histórico de generalização dos próprios critérios, que deve prosseguir em níveis cada
vez mais elevados até seu limite absoluto. Por isso Castells sustenta todas as ilusões que a
compreensão da fase atual do capitalismo, num prolongado processo de colapso, se encarrega
de desfazer: o horizonte de um capitalismo rejuvenescido que mantém a ilusão da manutenção
do papel virtuoso das inovações tecnológicas e das bolhas financeiras; da função de limpeza
das crises; da chegada de um novo ciclo de expansão; do horizonte de desenvolvimento na
periferia capitalista; da volta de algum tipo de keynesianismo regulador.
A sua recusa da teleologia da história apaga a compreensão dessas tendências. A
pretendida neutralidade axiológica de Castells bloqueia a visão de uma sociedade em
dissolução. E provoca a ausência da análise da efetiva teleologia estrutural do modo de
produção capitalista, a barbárie, conseqüência lógico-histórica do desenvolvimento do capital
(Menegat, 2003: 219). Essa ausência tem como desdobramento necessário a perda da
criticidade. Com a neutralidade axiológica perde a referência da emancipação ao cair num
relativismo que não está à altura da urgência e do desafio de superar a ordem do capital
266
.
Por outro lado, reintroduz uma outra teleologia de viés progressista. As ideias
libertárias tomaram conta do mundo e modelam-no. Com um detalhe: sem revolução. A
trajetória para o realismo mágico vai paralela à substituição da utopia político-social, que
tinha na técnica uma mediação necessária, por uma utopia exclusivamente técnica que não
imagina nas outras dimensões mas do que a reprodução ampliada do presente. O abandono de
referências de luta, organização e pensamento (marxismo, comunismo) se preenche com a
promoção de novas formas de agregação resultado da derrota política, da agonia da forma
social e do império da técnica. Identidades que têm a técnica como mediação e objeto
essencial.
Um tempo histórico de necessidade imperiosa e ausência da revolução é para Castells
absurdo, incongruente e atentatório da lógica mais ordinária falar-se de crise numa situação existencial
justamente privilegiada pela ausência da morte”.
266 “Si quisermos cultivar alguma esperança na aurora, devemos chamar as coisas pelo seu nome. A única
definição que cabe às deformações da sociedade atual é a de barbárie” (Menegat, 2003: 250).
192
um tempo de revoluções sub-reptícias que não precisa da revolução. Castells faz parte de
uma geração que denunciando a teleologia na história, adere a esse progresso específico de
nossa sociedade, um eterno presente em decomposição
267
.
É preciso denunciar as ideologias de estabilização, combater as ilusões abstratas, que
vêm mais uma vez a justificar a missão civilizatória do capital com suas promessas
incumpríveis.
267 “Para toda uma geração, a esperança revolucionária, exposta às investidas das forças da opressão, é
devolvida ao status de mitologia, reduzida à fantasia e confinada, reprimida como mito do século XIX”. “Ao
descrédito que afeta o engajamento e o voluntarismo político, corresponde, no plano teórico, um mesmo
descrédito que afeta, desta vez, tudo o que procede da história”. “O estruturalismo terá contribuído
fortemente para provocar a crise da ideia de progresso” (Dosse, 1993: 391-2). Mas, um traço importante do
paradigma estruturalista é “a prevalência conferida à presença, mas uma presença estacionária onde se
dissolvem passado e futuro numa temporalidade presa ao solo, estática, pensamento que tanto refuta a
teleologia histórica quanto a ideia de fuga do tempo, num presente reconciliado” (idem: 296). Para Castells,
“a lição mais importante a ser aprendida com o colapso do comunismo é a percepção de que o único sentido
da história é a história que nos faz sentido” (FM: 85). O progresso se torna uma verdade inamovível,
compatível com um “tempo estático que faz do eterno movimento a sua forma de repouso. Essa é,
justamente, a sensação da estruturação da decadência. Ela se produz com base na ilusão de um permanente
movimento de mudança, que em geral vem acompanhado pelas mais intensas qualificações como atesta a
banalização do uso de termos como revolução, modernidade, novo... etc. -, cujo fim é encobrir a
decomposição” (Menegat, 2003: 170-6).
193
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