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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE ARTES E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS
AMBIÊNCIAS NA PAREDE:
CONCEPÇÕES ESPACIAIS EM PINTURA E DESENHO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Michele Martins Nunes
Santa Maria, RS, Brasil
2010
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2
AMBIÊNCIAS NA PAREDE:
CONCEPÇÕES ESPACIAIS EM PINTURA E DESENHO
por
Michele Martins Nunes
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Artes Visuais, do
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/PPGART, da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito
parcial para obtenção do grau de
Mestre em Artes Visuais
Orientador: Prof. Dr. Edemur Casanova
Santa Maria, RS, Brasil
2010
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3
Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Artes e Letras
Mestrado em Artes Visuais
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Dissertação de Mestrado
AMBIÊNCIAS NA PAREDE:
CONCEPÇÕES ESPACIAIS EM PINTURA E DESENHO
elaborada por
Michele Martins Nunes
como requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Artes Visuais
COMISSÃO EXAMINADORA:
_____________________________
Edemur Casanova, Dr. (UFSM)
(Presidente/Orientador)
__________________________________
Flávio Gonçalves, Dr. (UFRGS)
__________________________________
Paulo César Ribeiro Gomes, Dr. (UFSM)
Santa Maria, 26 de abril de 2010.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço especialmente ao Deco, pelo apoio, carinho e pelas conversas,
principalmente com relação ao trabalho poético.
Ao Marco, pelas reflexões relativas a esta pesquisa e pelo incentivo dado
desde o início de minha atividade artística.
À minha avó Olívia e ao meu pai Lauro pelo aulio financeiro. Sei que
deixaram de fazer outras coisas para me ajudarem e sem esta ajuda eu não teria
prosseguido, portanto sou muito grata.
Agradeço a minha mãe Carla pelo orgulho com que sempre tratou minha
produção artística.
Ao Air e à Emir, e à minha família em geral, pelo carinho.
Aos colegas, todos, mas em especial: Rogério, Milene, Claúdia, Karine e
Renata. E aos companheiros de casa, que tornaram minha estada na cidade de
Santa Maria menos solitária: Sandra, Laíse e Duda, outra vez Milene e Rogério.
À Marcia pelas correções no texto.
Ao Prof. Dr. Flávio Gonçalves e ao Prof. Dr. Paulo Gomes por aceitarem
participar desta banca. E ao Prof. Dr. Edemur Casanova, meu orientador.
5
Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!
Mario Quintana
6
RESUMO
Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
Universidade Federal de Santa Maria
AMBIÊNCIAS NA PAREDE:
CONCEPÇÕES ESPACIAIS EM PINTURA E DESENHO
Autora: Michele Martins Nunes
Orientador: Prof. Dr. Edemur Casanova
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 26 de abril de 2010.
Esta dissertação busca estabelecer uma reflexão referente à produção
plástica individual intitulada: Ambiências na Parede, composta por oito trabalhos que
foram produzidos durante o curso de mestrado. A proposta plástica parte de
percepções de um universo particular (casa-intimidade), buscando sua re-
elaboração através do processo criativo, trazendo ao mesmo plano as relações entre
pintura e desenho, cor e acromático, perene e efêmero, memória e presente, real e
fantástico. Nestas obras, os cômodos da casa são representados através da pintura
em nuances de cinza e por linhas pretas instaladas sobre paredes brancas.
Contrapondo-se a estes cenários, são sobrepostas figuras coloridas, compostas por
elementos apropriados do cubismo. A investigação poética visual se a partir da
instauração destes trabalhos, centrando-se nas diferentes concepções espaciais que
estas obras sugerem: os espaços representados, a relação com o espaço comum e
a percepção dos ambientes da casa. Primeiramente é apresentada a proposta, que
busca combinar pintura a óleo sobre tela e desenho com adesivo sobre a parede.
São abordados os sistemas representacionais escolhidos para tal combinação, bem
como o contraponto entre cromático x acromático que as obras apresentam.
Posteriormente são refletidos aspectos referentes à obra e sua relação com o
espaço que a circunda. E por fim o texto discorre sobre as motivações temáticas
referentes aos espaços representados e as figuras que neles habitam.
Palavras-chave: ambiências na parede; pintura; desenho; espaços.
7
ABSTRACT
Master’s Degree Dissertation
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
Universidade Federal de Santa Maria
AMBIENCES ON THE WALL
SPATIAL CONCEPTIONS IN PAINTING AND DRAWING
Authoress: Michele Martins Nunes
Advisor: Prof. Dr. Edemur Casanova
Date and Place of Defense: Santa Maria, April, 26, 2010.
This master degree dissertation consider the individual plastic production
entitled Ambiences on the Wall, composed of eight works that were produced during
the masters course. The plastic proposal starts in perceptions of a particular universe
(home-intimacy), seeking its re-development through the creative process, bringing
to the same level the relations between painting and drawing, color and achromatic,
perennial and ephemeral, memory and present, real and fantastic. In these works,
the house's rooms are represented by painting with nuances of gray and by black
lines installed on white walls. Opposed to these scenarios are superimposed colored
pictures, composed of appropriated elements of cubism. The visual poetic
investigation starts on the establishment of these works, focusing on different
conceptions of space that they suggest: the represented spaces, the relationship with
the common space and the perceptions of the house’s environments. First is
presented the proposal, which seeks to combine oil painting on canvas and drawing
on the wall with adhesive. The text deals with the representational systems that are
chosen for such combination, and with the counterpoint chromatic x achromatic that
the works present. Later, aspects of the works are considered, and also its
relationship with the space around it. Finally, the text discusses the thematic issues
related to the represented spaces and the figures that inhabit them.
Keywords: ambiences on the wall; painting; drawing; spaces
8
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES
1. Michele Martines, Meu duplo assistindo vendo TV, 140 x 230cm, 2005. (óleo s/
tela) ...........................................................................................................................16
2. Michele Martines, Acordada Cansa, 140 x230cm, 2005. (óleo s/ tela) ................16
3. Michele Martines, Recorte 1, 100 x 120cm, 2007. (óleo s/ eucatex e adesivo s/
parede)......................................................................................................................17
4. Michele Martines, Como você tem olhos grandes!, 2008 ..................................18
5. Michele Martines, Como você tem olhos grandes!, 1,4 x 1,7cm, 2009. (óleo s/
tela recortada e adesivo s/ parede)...........................................................................19
6. Robert Rauschenberg, Cama (combine), 191,1 x 80 x 20,3 cm, 1955. (óleo e lápis
sobre travesseiro, cobertor e lençol em suporte de madeira) Nova York, Galeria Leo
Casteli .......................................................................................................................22
7. Sigmar Polke, Paganini, 223 x 504 m, 1981-3. (técnica mista sobre tela) Coleção
Privada, Alemanha ...................................................................................................27
8. David Salle, Mr. Luck, 244 x 335 cm, 1998. (óleo e acrílico sobre tela) London
Contemporary Art Galley...........................................................................................28
9. Rafael, A escola de Atenas, 1510. (afresco) Vaticano, Stanza della Senatura ...31
10 Regina Silveira, In Absendia M.D. 10m x 20m, 1983. (látex s/ piso de cimento e
painéis de madeira) ..................................................................................................34
11. Daniel Senise, Contemporary Art Museum, Santiago de Compostela, 200 x
300 cm, 2000. (acrílica em colagem sobre madeira) ................................................35
12. Michele Martines, Hoje, a solidão, 2,4 x 4 m (aproximada), 2009. (óleo s/ tela
recortada e adesivo s/ parede)..................................................................................37
13. Paul Cézanne, Montagne Sainte-Victoire, 78 x 99 cm, 1900. leo s/ tela)
Hermitage, St. Petersburg ........................................................................................38
14. Pablo Picasso, Portrait de femme, 64 x 51 cm, 1938. (óleo s/ tela) MOMA, Nova
York...........................................................................................................................41
15. Michele Martines, Não esquecer o ursinho cego (detalhe - óleo s/ tela)..........42
16. Esboço e figura pintada da obra Silêncio, 2009.................................................43
17. Esboço e figura pintada da obra Eu observando minha figura, 2009 ..............43
9
18. Regina Silveira, A Lição, 80 m²,2002.(madeira, tinta automotiva, adesivo vinil) 44
19. Fotografia do ambiente da casa para a obra Como você tem olhos grandes! ....46
20. Pintura (óleo s/ tela) que compõe a obra Como você tem olhos grandes! ..........46
21. Iran do Espírito Santo, Sem Título, 2009. (tinta látex s/ parede) 7 Bienal do
Mercosul, Mostra Desenho das Ideias. MARGS, Porto alegre .................................51
22. Marta Penter, Sou espelho sou reflexo de mim mesma, 120 x 180 cm, 2008.
(óleo s/ tela) ..............................................................................................................52
23. Michele Martines, Lanche Feliz, 80 x 100 cm, 2003. (óleo s/ tela).....................53
24. Michele Martines, Eu observando minha figura, 2009. (óleo s/ tela recortada e
adesivo s/ parede).....................................................................................................55
25. Robert Rauschenberg, Pilgrim, 79 x 54 x 19 pol., 1950. (meios mistos com uma
cadeira de madeira) Hambuger Kunsthalle ...............................................................58
26. Jasper Johns, Fool’s House, 183 x 91 cm, 1962. (óleo sobre tela com objetos)
Col. Particular............................................................................................................58
27. Esquema representando e junção de alguns trabalhos da série.........................60
28. Montagem do trabalho para a qualificação Sala de Exposições Claudio
Carriconde, CAL/UFSM, março 2009........................................................................61
29. Michele Martines,Um suspiro, 2009...................................................................62
30. Michele Martines, Silêncio, 2009........................................................................62
31. Michele Martines, Um suspiro e Silêncio, 2,4 x 4 m (aproximada), 2009. (óleo s/
tela recortada e adesivo s/ parede)...........................................................................63
32. Carmela Gross, Sem título, série Pintura-desenho, 55 x 140, 1987. (acrílica s/
tela) ...........................................................................................................................64
33. Carmela Gross, Expansivo, série Pintura-objeto, medida variável a partir de
estrutura constante, 1988. (latão cromado) Col. Particular ......................................65
34. Adriana Varejão, Linda do Rosário, 195 x 800 x 25 cm, 2004. (alumínio,
poliuretano e tinta óleo).............................................................................................66
35. Adriana Varejão, Língua compadrão sinuoso, 200, 170, 57 cm, 1998. (óleo s/
tela e poliuretano em suporte de madeira e alumínio) ..............................................67
36. Daniel Buren, D’une Impression L’Autre, 35 x 52 cm, 1983. (fotografia –
intervenção executada em 1968) .............................................................................70
37. Instalação das obras – Sala Claudio Carriconde/2010........................................73
10
38. Regina Silveira, Desaparências, 44 m², 1999. (vinil adesivo - instalação) Galeria
Gabriela Mistral, Santiago, Chile...............................................................................74
39. Exposição das obras – Sala Claudio Carriconde/ 2010 ......................................76
40. Michele Martines, Não esquecer o ursinho cego, 260 x 310 cm (aproximada),
2009. (óleo s/ tela recortada e adesivo s/ parede) ...................................................77
41. Lucía, stop-motion 2007 ....................................................................................81
42. Luis, stop-motion 2008 ......................................................................................81
43. Rochelle Costi, Quartos São Paulo, 177 x 230 cm, 1998. (fotografía) .............82
44. Michele Martines, Eu queria o teu fundo, 140 x 140 cm (aproximada), 2009.
(óleo s/ tela recortada e adesivo s/ parede) .............................................................85
45. Cindy Sherman, Untitled Film Still #3, 1977. (fotografia) .................................88
46. René Magritte, A condição humana, 100 x 81 cm, 1933. (óleo s/ tela) National
Gallery of Art, Washinton...........................................................................................92
47. Michele Martines, Pintura de cavalete, 160 x 120 cm (aproximada) 2009. (óleo
s/ tela recortada e adesivo s/ parede) .......................................................................93
48. Willen van Haecht, Galeria de Cornelis van der Geest, 100 x 130cm, 1628.
(óleo sobre Painel) Rubenshuis, Antwerp ................................................................94
49. Fabiano Gonper, Gonper Museum, 2003-8 obra em processo (instalação com
fitas adesivas, desenhos e gravuras) .......................................................................95
11
SUMÁRIO
Resumo/ Abstract .................................................................................................... vi
Índice de ilustrações...............................................................................................viii
Introdução................................................................................................................12
1. UMA POÉTICA DE COMBINAÇÃO ......................................................................15
2. A REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO.....................................................................30
2.1 Da Perspectiva Renascentista ao Cubismo .......................................................30
2.2 A Referência Fotográfica.....................................................................................45
2.2.1 Realidade em Preto e Branco ........................................................................50
3. DO QUADRO À PAREDE .....................................................................................56
3.1 O Quadro Expandido no Real .............................................................................56
3.2 Obra e Espaço Expositivo ...................................................................................68
4. A CASA ou RECANTOS DE ILUSÃO ..................................................................78
4.1 A Casa Habitada .................................................................................................78
4.2 Corpos Fantasiados ............................................................................................83
4.3 Pinturas na Parede e Paredes da Pintura ...........................................................90
Considerações Finais ............................................................................................97
Referências..............................................................................................................99
12
INTRODUÇÃO
A pesquisa Ambiências na Parede Concepções Espaciais em Pintura e
Desenho” foi desenvolvida no Mestrado em Artes Visuais, com ênfase em Poéticas
Visuais, da Universidade Federal de Santa Maria. A presente dissertação
corresponde à abordagem de alguns trabalhos produzidos por mim, tendo como
finalidade estabelecer uma reflexão teórica que os corresponda.
Durante o período desta pesquisa foram realizadas oito obras, que
integram a série Ambiências na Parede. São trabalhos compostos por pintura a óleo
sobre tela recortada (sem chassi) e desenho, realizado com recortes de adesivo
sobre parede. Na pintura é interpretada uma cena cotidiana em um ambiente
doméstico. O ambiente é representado em nuances de cinza, e também por linhas
pretas instaladas sobre parede, em perspectiva, dando continuidade ao cenário da
pintura. “Habitando” este espaço, sobreponho uma figura “estilizada”
1
, com cores
fortes e contrastantes entre si, composta por elementos apropriados do cubismo,
contrapondo-se ao cenário resolvido de maneira realista.
Esta proposta parte de percepções de um universo particular (casa-
intimidade), buscando sua re-elaboração através do processo criativo, trazendo ao
mesmo plano as relações entre memória e presente, real e fantástico, pintura e
desenho, cor e acromático, perene e efêmero.
A palavra “Ambiência” designa a qualidade do que é ambiente, do que
rodeia os seres vivos; um conjunto de condições sociais, culturais, morais etc. que
cercam uma pessoa e nela podem influir. Trata-se da atmosfera que envolve uma
pessoa ou coisa
2
. A ambiência é revelada no processo de apropriação de um
determinado espaço, tornando-o adequado para os fins desejados.
E Parede” é a obra comumente destinada a separar o interior do exterior,
ou os cômodos internos entre si. Na rie de trabalhos aqui apresentada, figura nas
1
Neste texto o uso do termo “estilizada” faz referencia ao aspecto não naturalista da figura humana.
Não tendo, portanto, nenhuma relação com estilos de época.
2
Dicionário Houaiss, p.183.
13
imagens expostas os cômodos de uma casa, e também, de forma não
representada e sim apropriada, passa a fazer parte da obra, é suporte e anteparo.
Meu intuito ao desenvolver a série Ambiências na Parede é o de instaurar
uma estratégia de representação que combine pintura sobre tela e desenho sobre
parede, buscando contrapor diferentes sistemas de representação. Assim, o
pensamento sobre arte apresentado nesta dissertação foi desenvolvido a partir da
observação dos resultados ao concluir cada trabalho, definitivos para discernir os
rumos que a pesquisa deveria tomar.
No capítulo inicial, efetuo um resgate dos meus antecedentes artísticos,
recuperando acontecimentos que me conduziram ao desenvolvimento da série de
trabalhos iniciada durante o Mestrado. Identifico meu trabalho como “Uma Poética
de Combinações”, tratando o conceito de “combinação” como a prática resultante do
cruzamento entre diferentes meios de representação. Aponto, também, minha
identificação inicial com algumas manifestações artísticas da década de 1980, pelos
experimentos mesclando materiais e “estilos” distintos empreendidos por artistas
nessa década, como Sigmar Polke e David Salle.
No segundo capítulo trato da Representação do Espaço”. Destaco, no
primeiro subcapítulo, o desenvolvimento da perspectiva no Renascimento e a
superação desta pela Arte Moderna. Especialmente através do espaço multifacetado
proposto pelo Cubismo, visto que minha práxis suscita estes dois sistemas de
representação espacial, abrangendo os meios da pintura e do desenho. A
elaboração deste tópico seguiu uma sequência cronológica baseada em
acontecimentos da História da Arte, tentando efetuar relações com meu trabalho e
com a Arte Contemporânea. Para este estudo utilizei autores como Jaqueline
Lichtenstein e Alberto Tassinari.
Ainda nesse capítulo é realizada uma consideração sobre a referência
fotográfica, utilizada para obter o “recorte” da casa a ser transposto na pintura. O
texto traz apontamentos dos autores Philippe Dubois e Jaques Aumont. Também é
enfatizada a escolha por reproduzir em tons de cinza o cenário, representado de
maneira realista.
No terceiro capítulo, intitulado Do Quadro à Parede”, abordo a questão
do rompimento com o formato retangular do suporte tela e os desdobramentos do
14
quadro no espaço “comum”. São consideradas algumas obras das artistas Carmela
Gross e Adriana Varejão, abordando a maneira como cada artista propõe estratégias
ruptura com o suporte tradicional. No subcapítulo Obra e Espaço Expositivo”, busco
refletir sobre a obra relacionada ao local em que é exposta, considerei, para isso,
apontamentos dos artistas Daniel Buren, Brian O’Doherty e Regina Silveira.
E, por fim, no quarto capítulo apresento reflexões sobre aspectos que
surgem como pano de fundo das questões subjetivas, questões que me afetam
dentro do meio sócio-histórico-cultural em que estou inserida. Assim, o espaço da
Casa é apresentado como motivo desencadeador da proposta. De que forma nos
vemos e ao espaço que habitamos? A eleição da “casa” como motivo temático
provém da vontade de representar o espaço cotidiano no qual convivemos frente as
nossas ilusões.
Em Corpos fantasiados é considerada a figura cubista, abordando a
questão da auto-referencia, que a figura habita um cenário da casa, que trata-se
de um espaço íntimo meu. E encerrando a parte textual desta pesquisa, no sub-
capítulo intitulado Pinturas na parede e Paredes da pintura, busco desenvolver uma
reflexão sobre as obras que citam outras obras. Um quadro dentro de um quadro diz
respeito a um espaço dentro de outro espaço referido pelo suporte. Este assunto
é abordado a partir da história narrada na obra literária: “A coleção particular”, de
Georges Perec.
15
1. UMA POÉTICA DE COMBINAÇÃO
A pintura e o desenho oferecem infinitas possibilidades de representação
artística, mesclando, combinando e contrastando elementos de origens diversas.
Esta variedade de possibilidades representa a principal motivação do meu fazer
artístico. Inicialmente, algumas questões que permeiam essa pesquisa artística
fizeram-se presentes em meu trabalho na série de pinturas que desenvolvi entre os
anos 2005 e 2007, intitulada Fantasias do Cotidiano
3
.
Nestas pinturas interpretei espaços domésticos do meu cotidiano partindo
de um referencial fotográfico; também incorporei nesses espaços imagens de nus
femininos retirados do universo das obras pictóricas da História da Arte e de
princesas dos clássicos contos de fadas [Fig.1 e Fig.2]. As figuras femininas
aparecem nestes trabalhos desempenhando atividades cotidianas, como se fossem
registros de momentos do meu dia a dia. Acredito tratar-se, porém, de uma realidade
falsa, mascarada, por ocultar a minha imagem nesses corpos apropriados. Todas as
imagens desta série possuem uma frase, apropriada dos mass media”, inserida na
composição do espaço da casa representado. Assim, esses trabalhos foram
compostos por três elementos distintos: um espaço da casa, uma figura feminina e
uma frase.
A temática explorada nos trabalhos atuais continua a mesma da série
anterior: um cômodo da casa é reproduzido na intenção de representar uma cena do
meu cotidiano, mas minha imagem é substituída por outra. Porém, o elemento
textual não é mais presente, e a figura inserida no cenário não se refere mais à
reprodução de um ícone conhecido da História da Arte ou dos clássicos contos de
fada. As figuras dos trabalhos atuais são desenhos por mim feitos, buscando
referência em representações Cubistas.
3
Essa série de pinturas teve início durante o desenvolvimento de minha pesquisa de graduação em
Artes Visuais, UERGS/ FUNDARTE. Monografia: A Ilusão de Ser - Apropriação e Manipulação na
Pintura (Dezembro de 2005).
16
Figura 1. Meu duplo assistindo TV, Michele Martines, 2005.
Figura 2. Acordada Cansa, Michele Martines, 2005.
17
Além das alterações supracitadas, referentes aos elementos que
compõem a imagem pintada, existia a vontade de sair da superfície pictórica
tradicional, pois apesar de trabalhar justapondo estilos pictóricos, minha produção
era toda constituída através da pintura a óleo sobre tela.
Frequentemente, ao observar as pinturas dispostas nas paredes de minha
casa, percebia a possibilidade de completar a imagem representada na tela. Por
serem imagens que apresentam cantos de interiores arquitetônicos, sempre um
corte que me sugeria continuações. Sem perceber claramente o que estava fazendo,
rabisquei a borda branca de um de meus portfólios (em folha de desenho A4). Meu
“rascunho” era uma continuação da pintura contida na fotografia do portfólio, para
além dos limites do que seria a tela. Foi assim que surgiu a ideia de agregar o
desenho à pintura, como uma continuação na parede. O primeiro experimento que
fiz neste sentido foi o trabalho Recorte 1 [Fig.3].
Figura 3. Recorte 1, Michele Martines, 2007.
Neste primeiro experimento, o desenho apresenta a continuação de
alguns objetos representados na pintura. O que indicou uma mudança bastante
significativa com relação a minha produção anterior, e foi decisivo para a elaboração
da série Ambiências na Parede. Mais do que dar continuidade à imagem pictórica,
18
agora meu trabalho passou a ser constituído por dois processos distintos: a pintura a
óleo sobre tela e o desenho resolvido linearmente através de recortes adesivados
sobre a parede.
A primeira obra que produzi durante a pesquisa de Mestrado foi Como
você tem olhos grandes! [Fig.4]. Primeiramente, realizei a pintura para depois
pensar na continuação com o desenho. Portanto o processo foi idêntico ao que
narrei anteriormente, quando fiz o desenho em torno de uma fotografia.
Figura 4. Como você tem olhos grandes!, Michele Martines, 2008.
Observando este trabalho, e outros que são apresentados ao longo da
dissertação, senti que a proposta me parecia interessante, mas faltava maior
integração entre a pintura e o desenho. O distanciamento provocado pelo chassi,
entre tela e parede, era algo que separava as duas linguagens, dando certa
19
independência à pintura. Na intenção de integrar efetivamente a pintura sobre tela
com o desenho na parede, passei a fixar a tela direto na parede, sem chassi. Ao
realizar a montagem dos primeiros trabalhos, outra ideia que ocorreu foi recortar
alguns pedaços da pintura, contornando alguns objetos [Fig.5]. Inicialmente, a
proposta era que o desenho com adesivo expandisse os limites da tela. Tendo a tela
recortada e fixada diretamente na parede será que ainda é possível falar em limites?
O limite agora é a parede/suporte? Também pode expandir-se por outros planos:
chão, teto, rua.
Figura 5. Como você tem olhos grandes!, Michele Martines, 2009.
Grande parte da produção contemporânea em artes visuais caracteriza-se
pela mistura de elementos, cnicas e materiais. Diante deste panorama não por
que definir se a obra é pintura ou desenho. Ela é resultado da combinação destas
20
linguagens. “Combinarpode ser entendido como agrupar, reunir, ajustar, misturar,
organizar. Ao tratar de “poética de combinação” refiro-me as obras artísticas
compostas pela mescla de diferentes procedimentos, linguagens e materiais. Em
meus trabalhos, combino os elementos dispares tendo como objetivo a
representação de um momento cotidiano, ou seja, os elementos são organizados
para compor uma única cena.
Ao trabalhar com elementos diferentes e contrastantes entre si para
compor as obras, busco certa harmonia na composição. Meu critério parte,
obviamente, de minha própria experiência, visto que cada pessoa (espectador)
possui um gosto (olhar) muito particular. O que parece harmônico para mim, pode
não o ser para outros.
Quando mantinha o chassi separando os materiais, demarcava o limite
entre os procedimentos. Ao quase nivelar a pintura com a parede, acredito suavizar
esta demarcação, assim como ao recortar partes da tela permito que a parede entre
nos espaços que eram ocupados pela pintura. Portanto as ações de fixar a tela
diretamente na parede e alterar seus limites (geralmente retangulares), colaboram
para maior homogeneização dos materiais e procedimentos distintos.
O artista Daniel Senise utiliza recortes de tela colados sobre a própria tela
[Fig.11, p.35], o que produz uma ilusão gigantesca de homogeneidade entre as
partes, ao ponto de esquecermos ou nem percebermos tratar-se de colagens. Em
meu trabalho a tela é fixada em outra superfície de textura, cor e tratamento
diferentes, o que apesar de minhas tentativas de homogeneização, mantém um
distanciamento entre as partes.
O conceito de “combinação” como característica de meu processo poético
surgiu, para mim, a partir do contato com a série de pinturas do artista norte-
americano Robert Rauschenberg (1925-2008), denominada Combines
(Combinações). Este artista, no contexto de transição do Expressionismo Abstrato
para a Arte Pop norte-americana, nos anos 50, introduziu no meio artístico uma
forma de expressão pictórica na qual ele usa objetos banais em diversas
justaposições.
Sua série de Combine-Paintings mescla pintura e escultura, colagem e
assemblage. Suas pinturas eram “combinadas” com coisas reais como pneus de
21
carro, fotografias de jornais, animais empalhados, reproduções de obras de arte, etc.
Segundo Giulio Carlo Argan, as coisas que entram no trabalho de Rauschenberg
não são achadas e sim guardadas, são:
[...] retiradas do estúdio do pintor, aspectos fragmentários de sua paisagem
habitual. O verdadeiro ponto de partida é a pintura-ação; todavia, o gesto
não se limita a traçar signos na superfície da tela, e sim, movendo-se em
todas as direções, apropria-se do que toca e insere-o no quadro.
4
Argan comenta ainda que estes trabalhos de Rauschenberg “não tem
duas nem três dimensões, atravessam a realidade em todas as direções”
5
. O artista
se inspirou nos ready-mades
6
de Duchamp e no surrealismo, mas manteve em sua
obra algumas características do expressionismo abstrato, como a pintura gestual e
com grande quantidade de tinta. Rauschenberg também manteve os
questionamentos referentes à formalidade da pintura ao sair da tela e começar a
pintar em objetos como cobertores, cadeiras, estantes, etc. Cama [Fig.6] é
provavelmente a obra mais famosa da série Combine-Painting, sobre este trabalho
Argan escreveu:
[...] é uma cama de verdade, desarrumada e suja, emporcalhada de tintas
que aumentam a desagradável evidência da coisa apresentada como um
quadro. Na verdade, é algo intermediário entre um quadro e uma cama: a
pintura se transforma à vista na coisa evocada, porém sem que se note a
transição. É ainda o tema, tão freqüente entre os americanos, da pintura
que não se estende além, mas prolonga-se aquém do plano do quadro,
invade o espaço da existência, torna-se ambiente.
7
O que me interessa na poética de Rauschenberg, e de alguns artistas da
Arte Pop, é o rompimento com a especificidade dos meios, possibilitando a mistura
de procedimentos. Na obra Cama Rauschenberg mescla apropriação com pintura,
mas não se pode distinguir um limite entre uma coisa e outra. Na série Ambiências
na Parede misturo cnicas de desenho e pintura e aproprio-me do espaço real da
parede. Da mesma forma como não é possível separar a apropriação de
4
Giulio Carlo Argan, Arte Moderna, p.642.
5
Ibid, p.642.
6
Em 1917 Marcel Duchamp retirou um urinol da sua função e o deslocou para uma possível
apreciação estética.“Duchamp inventara o termo ready-made para descrever os objetos fabricados
em série que ele escolhia, comprava e, a seguir, designava como obras de arte.” Michael Archer, Arte
Contemporânea, Uma história concisa, p. 3.
7
Giulio Carlo Argan, Op. Cit., p.575.
22
Rauschenberg de sua pintura, não é possível separar o desenho de minha
apropriação do espaço real (a parede). Entretanto, na relação da pintura sobre tela
com o desenho sobre parede existe uma separação visual mais evidente provocada
pela mudança de suporte e de tratamento.
Figura 6.
Cama,
Robert Rauschenberg,
1955.
Também, por mim um interesse na poética desse artista na relação
que sua obra expressa entre as coisas que o cercam e sua própria existência. O
artista não cria no vazio, portanto é natural que grande parte da arte contemporânea
reflita as relações do indivíduo com o mundo multicultural em que está inserido. Na
atualidade cada vez mais o artista tem fácil acesso as mais diversas manifestações
culturais, seja através da internet, livros, revistas e vídeos, o que possibilita e a
impulsiona a produção de uma arte híbrida ou mestiça.
Neste sentido minha prática artística se constitui “impura”, pois assim
como boa parcela da produção contemporânea, é resultado da mescla de diferentes
23
procedimentos, técnicas e materiais. Em minhas obras, realizo experimentos quanto
à visualidade buscando compor uma única cena com técnicas diferentes. Conforme
Lourdes Cirlot:
Com o olhar direcionado a etapas e estilos anteriores, os artistas pós-
modernos combinam, em suas realizações, linguagens do passado com
outras que estiveram vivas em correntes do século XX. Estabeleceu-se um
ecletismo que tem afetado todos os territórios, incluindo o do design. É cada
vez mais complexo, e as vezes mais arriscado, tentar uma classificação por
modalidades dentro desta grande etapa que corresponde a pós-
modernidade.
8
Icleia Cattani observa vínculos e rupturas da contemporaneidade com a
modernidade na arte, destacando que a partir de 1975 houve:
[...] o surgimento progressivo de linguagens e formas abandonadas na
modernidade, acompanhadas de misturas de elementos que abrem a
mestiçagens ou hibridações. Trata-se de obras múltiplas, “impuras”, que
recorrem ao passado, em ruptura com os princípios de pureza, de unicidade
e de originalidade modernos.
9
O modernismo manifestava a necessidade de inventar constantemente
novas linguagens pictóricas. Conforme Arthur Danto, a “pureza” da pintura seguindo
as definições do crítico Clement Greenberg, consistia em espalhar pigmentos sobre
superfícies planas, mantendo a pintura como tema dela mesma. Porém, a geração
de artistas que se seguiu ao Expressionismo Abstrato, foram os artistas Pop, que
buscaram trazer de volta a arte para o contato com a realidade.
10
Segundo Cattani, a
produção artística contemporânea “aceita as contaminações provocadas pelas
coexistências de elementos diferentes e opostos entre si”, opondo-se à pureza,
vinculada à certos movimentos modernos, propugnados sobretudo por Greenberg.
8
Livre tradução de: En su mirada hacia etapas y estilos anteriores, los artistas postmodernos han
combinado, em sus realizaciones, lenguages del pasado com otros que estuvieron vivos em
corrientes del siglo XX. Se impuesto um eclecticismo que afectado todos los terrenos, incluído
el del diseño. Cada vez resulta más complejo, y a la vez mas arriesgado, intentar uma classificación
por modalidades dentro de esta gran etapa que corresponde a la postmodernidad. Lourdes Cirlot,
Ultimas Tendências, p. 15.
9
Icléia Cattani, Mestiçagens na Arte Contemporânea, p. 22.
10
Arthur Danto, Após o Fim da Arte, p.112-114.
24
A ideia de impureza, no sentido amplo da palavra, está relacionada à falta
de limpidez; qualidade, estado ou condição de impuro; poluição; caráter daquilo que
é alterado pela presença de corpos, elementos estranhos; aquilo que altera.
11
A antropóloga norte-americana Mary Douglas, no livro "Pureza e Perigo",
ao fazer uma reflexão sobre os sentidos e conexões entre pureza, poluição e perigo
em "sociedades primitivas", argumenta que a impureza nunca é um fenômeno único,
isolado, e sim “o subproduto de uma organização e de uma classificação da matéria,
na medida em que ordenar pressupõe repelir os elementos não apropriados”
12
.
Neste sentido, a autora observa ainda que a impureza é uma ideia relativa. Douglas
exemplifica esta observação dizendo que “Estes sapatos não são impuros em si
mesmos, mas é impuro pô-los sobre a mesa de jantar”
13
. Assim, a impureza provoca
tensão, pois impuro seria o que não está no seu “devido lugar”.
Portanto, o conceito de “impureza” aplicado à arte contemporânea tem
sentido quando relacionado ao ideal de “pureza” das especificidades de cada
categoria artística, defendido por Greenberg na Modernidade. No momento em que
a teoria de Greenberg é ultrapassada, os artistas passam a desenvolver trabalhos de
combinação, ou seja, trabalhos que promovam o cruzamento de diferentes meios de
representação. Os artistas de hoje, conforme Danto, “não vêem os museus como
repletos de arte morta, mas como opções artísticas vivas.”
14
Não há direção de estilo
dominante ou movimento, os artistas desenvolvem modos muito pessoais de
trabalho, criando estratégias particulares para utilização dos recursos disponíveis.
Neste panorama, a década de 1980 caracterizou um novo interesse pela
manipulação gestual e pictórica, assinalando o retorno da pintura a cena artística
que havia sido posta em segundo plano durante os anos 60 e 70, período que
corresponde aos movimentos de desmaterialização do objeto artístico. A
Transvanguarda italiana, a “Bad Painting” americana e o Neo-expressionismo
alemão, são os três grandes movimentos internacionais que propõe a retomada da
materialidade tradicional.
11
Elaborado a partir do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, p.1587.
12
Mary Douglas, Pureza e Perigo, p. 50.
13
Ibid.
14
Arthur Danto, Após o Fim da Arte, p. 7.
25
Os artistas deste período experimentaram possibilidades de combinações
de materiais e estilos que caracterizaram assim a produção artística da década de
80. Tais procedimentos podem ser observados nas pinturas do artista Julian
Schnabel, que no início da década referida, produzia obras que apresentam
diferentes códigos de representação, tais como: arte renascentista, objetos reais,
desenho figurativo e pintura abstrata. Segundo Charles Harrisson e Paul Wood a
“visão do artista inundado por um manancial iconográfico e técnico preexistente, a
partir do qual é preciso conquistar uma nova coerência, é característica de certa
consciência “pós-moderna””
15
.
Também foi no final dos anos 80 que ocorreu a primeira edição da feira
ARCO, em Madrid. Nesta edição foram expostas as pinturas/objetos do artista
espanhol Federico Guzmán. A proposta deste artista era que os objetos
representados em telas se espalhassem da superfície plana para a sala que os
continha, jogando assim com a relação não resolvida entre representação e espaço
ocupado
16
.
No Brasil o “citacionismo”, conforme Tadeu Chiarelli, inicia-se mais
claramente através da chamada “Geração 80”. Esta geração de artistas surge
encontrando na pintura de grandes dimensões um de seus principais meios de
expressão e usufruindo de um amplo repertório de imagens e procedimentos
linguísticos preexistentes em suas obras. Grande parte dos artistas, “além de
recuperar sobretudo a pintura e a escultura, empreende uma viagem pelo universo
de imagens produzido pela humanidade através da história, disponíveis a todos os
meios de comunicação de massa”
17
.
A primeira exposição pela qual esta geração de artistas ficou conhecida,
foi “Pintura como meio”, realizada em 1983 no MAC-USP. Em 1984 ocorreu a
exposição “Como vai você, geração 80” realizada na Escola de Artes Visuais do
Parque Lage RJ. Esta foi outra exposição importante para o conhecimento público
desta geração que conforme observa Chiarelli:
15
Paul Wood...[et alii]. Modernismo em Disputa, p. 233.
16
Michael Archer, Arte Contemporânea: uma história concisa, p. 166.
17
Tadeu Chiarelli. Arte Internacional Brasileira, p. 100.
26
Nesse território redefinido menos preso a preconceitos modernos, mais
confiante na própria tradição visual do país e, portanto, tendente a ser
menos colonizado alguns artistas mais jovens vêm engendrando suas
poéticas na procura de uma síntese entre os diversos repertórios visuais
das culturas de massa e/ou popular (brasileira ou o), da própria tradição
moderna brasileira e certas atitudes estéticas e artísticas eruditas.
18
É neste contexto de diálogo com a arte do passado, seja ela brasileira ou
não, que ocorre minha identificação com artistas dessa geração. Porém, em meus
trabalhos atuais o que Chiarelli coloca da prática dos artistas da geração 80 como
“imagens de segunda geração”, em minha obra pode ser caracterizado como
imagens de “terceira ou quarta geração”, pois não se tratam de citações
propriamente ditas, e sim apropriações de características “estilísticas” de
movimentos artísticos anteriores.
No percurso de desenvolvimento de minha investigação artística destaco
a poética de dois artistas que considero referências importantes para minha
produção, são eles: Sigmar Polke e David Salle. Ambos os artistas exploram as
possibilidades de combinação entre a pintura e o desenho, manipulando elementos
heterogêneos sobre um mesmo plano.
Polke trabalhou com vários meios em sua trajetória artística, não tendo se
dedicado ao desenvolvimento harmonioso de um único meio ou estilo ao longo do
tempo. Ele cria uma nova base de montagem estética de diferentes meios, muitas
vezes contraditórios, e antecedentes históricos. Utiliza a interpenetração dos
diferentes meios e técnicas de representação: o figurativo e o abstrato, a pintura e o
desenho, o mecânico e o manual, o intencional e o acidental, o impresso e o
fotográfico. O artista engendra com estes elementos espécies de camadas
sobrepostas.
Segundo Bernice Rose, o interesse inicial de Polke em imagens
fotográficas estava na facilidade com que seleciona, transpõe e isola um segmento
da realidade a partir de um fazer contínuo de imagens no mundo, e pelas
possibilidades de manipulação e montagem das imagens através da fotografia.
19
18
Ibid., p.36 e 37.
19
Bernice Rose, Alegories of Modernism: Contemporary Drawing, p.24.
27
Figura
7. Paganini, Sigmar Polke, 1981-3.
A pintura intitulada Paganini [Fig.7] exibe na cena central uma releitura
de uma gravura de David Bailly (1584-1657), representando a figura de um diabo
tocando violino, talvez com o próprio Paganini (violinista italiano, 1782-1840). À
esquerda, a pintura de um palhaço que faz malabarismo com caveiras e símbolos da
energia nuclear. Abaixo um grupo de donas de casa, típicas da publicidade dos anos
50. Entre o homem e o diabo uma porta, talvez para o vazio. Estes e outros
elementos lineares figuram sobre pinceladas gestuais. A obra faz referência a
Alemanha do passado e a futura ameaça nuclear.
Assim como Polke, o artista David Salle trabalha com projeções. Suas
pinturas são compostas por imagens desconexas, imagens justapostas e
sobrepostas, extraídas da mídia, da pornografia, dos interiores em “estilo moderno”,
da história da arte e do kitsch. Bernice Rose conta que para o artista “as imagens
são materiais para serem utilizados como uma paleta sem limites”
20
. O resultado
deste emaranhado de temas, segmentos de imagens diferentes, com diferentes
tratamentos pictóricos é uma enigmática narrativa pictórica, com múltiplas
atmosferas. A obra Mr. Luck, de 1998 [Fig.8], é um exemplo disso.
20
Tradução livre de: “images are materials, to be used as one limits one’s palette”. Bernice Rose,
Alegories of Modernism: Contemporary Drawing, p. 66.
28
Figura 8. Mr. Luck, David Salle, 1998.
As pinturas de David Salle apresentam um jogo de concepções espaciais.
Na pintura Mr. Luck temos a sensação de profundidade que o espaço perspectivo
proporciona, enquanto o jogo de luz e sombra no tratamento dado as figuras
“escultóricas” faz com que estas pareçam saltar para fora do quadro. Ao mesmo
tempo estas figuras são novamente recuadas pela justaposição de imagens que
ocultam a parte inferior das figuras. Esta tensão ocorre também na relação das
figuras sobrepostas ao ambiente perspectivo.
Assim como Polke e Salle, também trabalho com a linearidade,
característica do desenho, na pintura. Enquanto Polke harmoniza os diferentes
cenários inserindo-os em um mesmo “fundo” (uma superfície de mesmo contexto
colorístico), Salle enfatiza a diferença de espaços através de divisões rígidas entre
eles, divide áreas da tela cada uma com sua própria característica cromática e
espaço. Em meu trabalho insiro os elementos compondo um único cenário, que
contém diferentes contextos cromáticos e lógica construtiva.
A imagem pode ter diversas formas de materialização. Compartilho a
opinião de Marilice Corona, quando ela diz que:
[...] o que me parece importante discutir no campo da pintura não é a luta
para comprovar sua pertinência ou perda de soberania, mas a sua
capacidade e especificidade na formação de imagens. O estudo de suas
estruturas e relações de significação. Um meio, entre tantos outros, de
produzir imagens e gerar novas significações. O fato de hoje podermos
contar com os mais variados meios de reprodução de imagem não legitima
29
a desvalorização da pintura. Ao contrário, incita-nos a investigar a
possibilidade de inter-relação desta com esses vários meios.
21
Assim como Corona, considero fundamental perceber a pintura neste
novo contexto, onde é possível inserir além de novas materialidades, novos métodos
de criação de imagem, como a fotografia e as manipulações digitais. Tais meios não
substituíram a pintura, e sim trouxeram novos recursos além dos explorados.
Torna-se possível coexistir diferentes concepções espaciais na mesma obra,
intercalando diferentes materialidades e lógicas construtivas.
21
Marilice Corona, Auto-referencialidade e Meta-pintura, In. Anais Anpap, p.128.
30
2. CONCEPÇÕES ESPACIAIS EM PINTURA E DESENHO
Entendo a relação de diferentes concepções espaciais como um aspecto
importante em minha atual produção artística, sendo significativo para a
compreensão desta proposta que esta reflexão teórica aborde duas importantes
mudanças operadas na forma de representação do espaço ao longo da história: a
descoberta da perspectiva no Renascimento e a ruptura desta pelo Cubismo. Outro
aspecto importante a ser considerado neste capítulo é a utilização do recurso
fotográfico como referencial para a realização das obras.
Assim, os subcapítulos que seguem abaixo, abordam aspectos essenciais
para essa pesquisa referentes a essas concepções espaciais, e suas respectivas
imbricações históricas e conceituais, lembrando que o mesmo se origina a partir de
minha prática e não tem a intenção de constituir uma pesquisa histórica exaustiva
sobre a totalidade dos movimentos artísticos e aspectos aqui mencionados.
2.1 Da Perspectiva Renascentista ao Cubismo
A perspectiva linear foi desenvolvida no século XV, durante o
Renascimento, através da aplicação de conhecimentos matemáticos e da pesquisa
científica da visão. Jaques Aumont, em seu estudo sobre a imagem, traz a seguinte
definição:
A perspectiva é uma transformação geométrica, que consiste em projetar o
espaço tridimensional sobre um espaço bidimensional (uma superfície
plana) segundo certas regras, e de modo a transmitir, na projeção, uma boa
informação sobre o espaço projetado; de maneira ideal, uma projeção
perspectiva deve permitir que se reconstituam mentalmente os volumes
projetados e sua disposição no espaço.
22
22
Jaques Aumont, A imagem, p. 213.
31
Deste modo, a perspectiva veio para resolver o problema de como
representar em duas dimensões os objetos e espaços tridimensionais. A aplicação
do novo método de representação possibilitou aos artistas uma visão globalizante do
espaço. Na idade média o espaço era dividido em duas partes: céu e terra, o céu
geralmente era representado por um fundo de uma única cor: dourado ou azul
escuro. Também os objetos obedeciam a uma ordem hierárquica (por exemplo, a
imagem de Cristo era sempre maior que as demais, não interessando em que ponto
da composição do quadro ele estivesse), este modo de representação cedeu lugar
ao espaço homogêneo e absoluto da Renascença.
A perspectiva a idéia de infinito. Observando a pintura A Escola de
Atenas [Fig.9], de Rafael Sanzio (1483-1520), a sensação que se tem é de ser
possível permear o espaço representado, subir as escadas, atravessar os
corredores.
Figura 9. A escola de Atenas, Rafael, 1510.
As descobertas da Geometria e da ótica permitem a projeção de objetos
em profundidade pela convergência de linhas aparentemente paralelas em um único
ponto de fuga. Possibilitando a reflexão dos objetos no espaço, e a medição dos
vazios. “Era impossível medi-los anteriormente e provavelmente muito difícil de
entendê-los para um indivíduo anterior ao Renascimento, ainda baseado e
32
influenciado pelas percepções e medos da Antiguidade.
23
no Renascimento, os
indivíduos estavam ávidos por novos conhecimentos e aprofundamentos das ideias
dominantes.
As necessidades figurativas ocidentais, durante quase cinco séculos,
foram atendidas por esse sistema de representação plástica do espaço. O “véu
quadriculado” foi um todo de obtenção das imagens inventado pelo arquiteto e
teórico Leon Battista Alberti (1404-1472), este método foi aderido por muitos artistas
da época. O artista alemão Albert Dürer (1475-1528) utilizou e também construiu
diversos aparelhos destinados a obter de forma prática imagens em perspectiva.
Conforme Bernard Paquet o processo de concepção das imagens em perspectiva
era concebido pelo artista da seguinte maneira:
Sob um ponto de vista de perspectiva central, ele colocava sobre uma
mesa, entre ele e seu tema, uma vidraça cuja quadriculação regular era
proporcional àquela que ele traçava no papel colocado à sua frente. Com
isso, ele reproduzia escrupulosamente o que via através da vidraça, dando
com a maior exatidão, os efeitos de profundidades e as reduções de
tamanho próprias da ilusão do distanciamento. Uma vez terminado o
desenho, Dürer devia, evidentemente, fazer desaparecer de sua obra as
linhas de quadrados.
24
No livro O conhecimento secreto, David Hockney
25
levanta a hipótese de
que alguns dos grandes mestres da pintura, a partir do culo XV, utilizavam
ferramentas ópticas (uso de espelhos e lentes ou uma combinação dos dois) como
recursos de projeção de imagens para reproduzir o modelo sobre a tela, obtendo
assim a precisão na representação naturalista das coisas. O autor chama a atenção
para fidelidade com que os tecidos, as armaduras e outros detalhes são
extremamente bem elaborados em algumas pinturas.
Hockney comenta que fez experimentos com a câmara lúcida, e que para
ele foi muito difícil reproduzir a partir desse pequeno dispositivo óptico, mas que, há
seiscentos anos atrás, para os artistas “a óptica conferiu uma nova ferramenta com
23
Michal Kirschbaum, Sistemas técnicos de representação espacial na arte contemporânea, In.
Mestiçagens na Arte Contemporânea, p.193.
24
Bernard Paquet, A heterogeneidade e a instauração da pintura, In. Revista PortoArte, p.71.
25
Artista britânico, nascido em 1937. Sua obra destacou-se no contexto da pop art, nos anos 1960.
Desde então Hockney possui intensa atividade artística com pesquisas no campo da pintura e da
fotografia.
33
que fazer imagens mais imediatas, mais poderosas.”
26
O autor observa a grande
mudança na qualidade naturalista das representações pictóricas ocorrida em um
curto período de tempo. Ele comenta:
Sei por experiência que os métodos usados pelos artistas (materiais,
ferramentas, técnicas, insights) têm uma profunda, direta e instantânea
influência na natureza da obra que produzem. A súbita mudança que eu
podia ver sugeriu-me uma inovação técnica, e não um novo modo de olhar,
que conduziu então a um progressivo desenvolvimento das habilidades
pictóricas. Sabemos de uma dessas inovações do início do século XV a
invenção da perspectiva analítica linear. Isso forneceu aos artistas uma
técnica para reproduzir o recuo do espaço, com objetos e pessoas em
escala, tal como apareciam ao olho a partir de um único ponto. Mas a
perspectiva linear não nos permite pintar motivos acompanhando dobras,
nem o brilho da armadura. Expediente óptico sim, mas em geral supõe-se
que a tecnologia e o conhecimento não tenham surgido senão muito mais
tarde.
27
Hockney compara algumas imagens feitas em perspectivas, mas que
parecem artificiais se comparadas com outras, com aspecto quase fotográfico, de
artistas que supostamente utilizaram o dispositivo óptico. A “câmera obscura” torna
muito mais simples a obtenção da perspectiva, seu mecanismo de refração faz os
raios luminosos convergirem para um ponto único, dispondo a imagem em
perspectiva. Conforme Arlindo Machado, nasce aí todo mecanismo óptico da câmera
fotográfica, reclamado exatamente para resolver o problema da obtenção automática
de perspectiva artificialis, razão pela qual a fotografia é indissociável da ideologia
dessa técnica projetiva
28
.
A Geometria Euclidiana
29
estabeleceu estreitas relações com o fazer
pictórico europeu por volta de 1500. Conforme Ton Marar, os conhecimentos
propostos por Euclides também:
[...] permitiram, ou, quem sabe, sugeriram a criação de outras geometrias e,
portanto, a concepção de novas percepções espaciais. Mais ainda, as
geometrias distintas da euclidiana abriram caminho para não só se pensar o
26
David Hockney, O conhecimento secreto, p.14.
27
Ibid., p.51.
28
Arlindo Machado, A Ilusão Especular, p. 312-3.
29
O grego Euclides desenvolveu em cerca de 300 a.C. o tratado “Os Elementos”, dividido em treze
livros ou capítulos que falam de geometria, aritmética e álgebra geométrica. Euclides reuniu, nesse
trabalho, toda a geometria desenvolvida até então no mundo antigo. Seus postulados vigoraram até o
século 19, quando o rigor de suas provas passou a ser contestado, dando lugar a outras geometrias,
conhecidas como não-euclidianas.
34
espaço sem coisas como tamm as coisas sem o espaço, isto é, coisas
intrinsecamente definidas como espaços em si.
30
Na Arte Contemporânea os conhecimentos geométricos, como a
perspectiva, são utilizados em proposições diversas, seja para reproduzir uma
paisagem do mundo real, ou para criar novos espaços e objetos. Experimentos com
projeções perspectivas permeiam a poética de Regina Silveira. A artista cria
perspectivas ilusionistas comprimindo, invertendo, deturpando e deformando
sentidos. Suas obras criam uma percepção diferenciada dos objetos ou situações da
realidade. A obra In Absendia M.D. [Fig.10] é um exemplo disso, nela vemos as
sombras projetadas de obras conhecidas de Marcel Duchamp (Porta garrafas, 1914,
e Roda de bicicleta, 1913) saindo de um pedestal nu. A sombra é usada com uma
distorção artificial para criar enigmas visuais. A artista apóia-se nas qualidades
indiciais das sombras projetadas em coneo aos elementos que as originam que,
no caso de In Absentia M.D., estão ausentes
31
.
10. In Absentia M.D, Regina Silveira,1983.
Outro exemplo da perspectiva aplicada na contemporaneidade, no âmbito
artes visuais, é encontrado em parte da produção do artista carioca Daniel Senise
[Fig.11]. Desde o final dos anos 80 o artista produz pinturas a partir de impressões
que retira do piso (chão) para a tela. Senise deita a superfície da tela tratada com
pigmento e cola sobre o piso. O tecido absorve as imperfeições, a poeira e outros
elementos do piso em um processo análogo ao da monotipia. Posteriormente o
30
Ton Marar, Do Conceito ao espaço, p. 20.
31
Walter Zanini, A aliança da ordem com a magia, In: Cartografias da Sombra, p. 163.
35
artista recorta estes tecidos e cola formando planos diferenciados e perspectivos.
Através da variação cromática coletada nos tecidos (com predominância da cor
ocre), Senise trabalha as relações de luz e sombra e com a ajuda de diagonais e
pontos de fuga, consegue a profundidade espacial. Agnaldo Farias escreve sobre a
obra do artista e as sensações que ela pode evocar no espectador:
As perspectivas imponentes e de construção complexa como que o obrigam
a buscar o centro de cada um desses cenários, convidam-no a passear por
eles, a varrê-lo de cima a baixo com o olhar, a espreitar o que vai através
desta ou daquela porta, imaginar o que acontece na outra sala, sempre
esperando que algum outro protagonista irrompa para desfazer a atmosfera
de solidão.
32
Temos consciência de que as imagens (pintura, desenho, gravura, etc.)
são planas e, portanto, fisicamente impenetráveis. Mas a percepção de uma
realidade tridimensional nas imagens, propositada pela aplicação da técnica da
perspectiva, ocasiona, de certo modo, esta proximidade do espectador com o
ambiente representado.
Figura 11. Contemporary Art Museum, Santiago de Compostela,
Daniel Senise, 2000.
32
Agnaldo Farias, The Piano Factory, p. 137.
36
A obra Contemporary Art Museum pertence à rie Piano Factory
33
,
iniciada em 1999. Nesta série, os espaços representados por Senise são, em sua
maioria, lugares por ele vividos, ou então, espaços colhidos em obras referenciais à
História da Arte. As referencias aos espaços vividos estão presentes tanto na
mimese da construção perspectiva, como também carregam indícios da
materialidade desses espaços, obtidos através do processo de decalque dos planos
do ambiente real.
Em meus trabalhos faço uso da perspectiva na representação dos
ambientes domésticos, que assim como em algumas obras de Senise, tratam-se de
espaços por mim vividos. Obtenho o desenho perspectivo através da fotografia,
usada como referencial para a elaboração das obras (como veremos no tópico
seguinte deste capítulo). É o desenho em perspectiva que a ordem do trabalho,
porém as linhas que dão segmento na parede à imagem pictórica abandonam a
rigidez matemática em razão de um arranjo informal.
Jaqueline Lichtenstein comenta que a partir do Renascimento o desenho
é compreendido como fundamento para as outras artes. A autora coloca que durante
o Renascimento, na Itália, surgiu uma discussão entre os teóricos que buscava
identificar o que era mais importante: a cor ou o desenho. Teóricos como Vasari e
Aristóteles defendiam que, ao contrário da cor que era associada ao prazer, “o
desenho remete sempre à ordem de um projeto que pressupõe uma antecipação do
espírito que concebe abstratamente e representa mentalmente a forma que quer
realizar, o objetivo que busca atingir”
34
.
Portanto, o desenho (da perspectiva, da anatomia, etc.) era visto como
uma espécie de esqueleto, pois esboçava e indicava a estrutura da futura pintura.
Assim a pintura era entendida como a carne que viria a cobrir o esqueleto. Deste
modo, podemos dizer que nos trabalhos da série Ambiências na Parede o desenho
formado pelas linhas pretas seria o esqueleto, a estrutura de todo o trabalho, e
apenas uma parte deste esqueleto é coberta pela carne/pintura.
33
O espaço em que Daniel Senise instalou seu atelier em Nova Iorque destinava-se, anteriormente, a
uma fábrica de pianos. O título dado a série: Piano Factory, evidência uma relação entre espaço
representado e espaço vivido.
34
Jaqueline Lichtenstein, A Pintura – Vol. 9: O desenho e a cor, p.12.
37
Figura 12. Hoje, a solidão, Michele Martines, 2009.
Além da perspectiva linear, outra cnica que passou a ser utilizada durante
o Renascimento foi a perspectiva aérea ou atmosférica. Leonardo da Vinci concluiu
através de pesquisas que a atmosfera detinha um papel fundamental na percepção
dos objetos. No Tratado da Pintura (1490-1517), da Vinci define a perspectiva aérea:
“Há uma perspectiva que se denomina aérea e que, por degradação dos matizes no
ar, torna sensível a distância dos objetos”
35
. Isso ocorre pela ação das partículas de
água suspensas na atmosfera. Assim, tal procedimento consistia em esmaecer,
tornar quase monocromático em tons de azul os objetos e lugares distantes. Quanto
maior fosse a distância, maior era a atenuação das cores, os objetos mais
próximos permaneciam com uma maior variação e intensidade cromática.
35
Livre tradução de: “Il y a une perspective qu’on nomme aérienne qui, par la dégradation des teintes
de l’air, rend sensible la distance des objets entre eux” Leonardo da Vinci ,Traité de la Peinture, p.96.
38
Em meu trabalho também misturo o cromático com o monocromático, e
torna-se possível traçar uma relação com a perspectiva aérea. Acredito ser inevitável
percebermos a intensidade com que a variação cromática das figuras “estilizadas”
destaca-se, salientando as figuras à frente do ambiente monocromático pintado.
Enquanto na perspectiva aérea existe uma ordenação gradual do cromático ao
monocromático (geralmente próximo ao horizonte), em minhas pinturas jogo com
estas duas possibilidades de forma mais livre e intuitiva, o monocromático pode
inclusive sobrepor-se às figuras estilizadas, porém sem roubá-las o lugar de
destaque que a cor lhes confere.
Entre as primeiras manifestações da Arte Moderna, o artista Paul
Cézanne
36
(1839-1906) preocupa-se em representar o “continente ar”, ou seja, as
massas de ar presentes na perspectiva aérea de Da Vinci. Porém, para Cézanne
estas massas deveriam ser representadas mesmo frente aos objetos mais próximos.
“Cézanne faz com que as cores permaneçam com igual intensidade por toda a tela,
ao mesmo tempo que, com um tom azulado, como um véu, a recobre numa
sugestão do continente ar que contém esta paisagem”
37
.
Figura 13.
Montagne Sainte-Victoire
Paul Cézanne, 1900.
As “hachuras” da representação cézanniana fizeram com que subdividisse
alguns objetos em uma pequena quantidade de cores, formas e pinceladas. O
interesse do artista pelas massas de ar une-se a uma intencional desconsideração
36
Cézanne estava inserido no grupo dos artistas impressionistas. O Impressionismo abandonou o
desenho como estrutura básica para a pintura. A variação cromática definida por pequenas
pinceladas passou ser responsável pela composição da pintura.
37
Denise Leon e L. Monty, Cézanne e o Olhar, Arte em São Paulo.
39
da perspectiva linear, de forma que um objeto distante poderia ter um tamanho maior
ou igual ao de um semelhante mais próximo. Mas Cézanne nunca renunciou
completamente o uso da perspectiva tradicional, e sempre pintou a partir da
natureza. Tinha como princípio que tudo na natureza podia ser traduzido (abstraído)
pelas formas geométricas básicas, como o cilindro, a esfera e o cone. Conforme
Merleau-Ponty:
A perspectiva vivida, a de nossa percepção, não é a perspectiva geométrica
ou fotográfica: na percepção, os objetos próximos parecem menores, os
distantes maiores, o que não sucede numa fotografia, como no cinema
quando um trem se aproxima e cresce muito mais depressa que um trem
real nas mesmas condições. Dizer que um círculo visto obliquamente torna-
se uma elipse é substituir a percepção efetiva pelo esquema do que
deveríamos ver se fossemos aparelhos fotográficos: de fato vemos uma
forma que oscila em torno da elipse sem ser uma elipse.
38
Em sua trajetória artística Cézanne ocupou-se em dar extrema atenção às
formas da natureza, buscando transpô-las para a tela a partir de sua percepção
pessoal. Efetuou as subdivisões criadas pelo continente ar e a simplificação das
formas da natureza. Cézanne não observava os objetos sempre da mesma posição,
por vezes contornava seus modelos observando-os, o que causava uma distorção
da forma naturalista em suas figuras.
Os ideais de Cézanne foram somados e redefinidos no Cubismo, onde as
subdivisões da imagem salientaram-se e formaram peças que foram reagrupadas de
forma a também mostrar os vários ângulos dos objetos retratados. A perspectiva
linear desaparece como consequência da quebra e reagrupamento do espaço.
Assim surgiu a Arte Moderna, na seqüência da Arte Naturalista, mas
opondo-se a ela. Os movimentos da arte moderna eram antiperspectivos. No livro “O
espaço moderno”, o teórico Alberto Tassinari comenta que “depois de
revolucionar o naturalismo por inteiro, a arte moderna pode ser pensada como
formadora de uma espacialidade nova, mais do que como destruição de uma
antiga.”
39
Entre as concepções espaciais desenvolvidas na arte moderna, a que me
interessa é a criada pelo Cubismo, que contraponho em meu trabalho a perspectiva
linear.
38
Maurice Merleau-Ponty, A Dúvida de Cézanne, p.117.
39
Alberto Tassinari, O Espaço Moderno, p. 28.
40
O Cubismo é apontado por muitos autores como o momento mais
importante da Arte Moderna, seu caráter revolucionário encontra-se na recusa da
ideia de arte como imitação da natureza, afastando as noções clássicas de
representação como perspectiva e relevo. O teórico Hershel Chipp escreve sobre a
dimensão desta mudança representacional:
O movimento cubista foi, nas artes visuais, uma revolução tão completa que
os meios pelos quais as imagens podiam ser formalizadas na pintura
modificaram-se mais durante os anos 1907 a 1914 do que se haviam
modificado desde o Renascimento.
40
Resumidamente, a proposta cubista constitui-se na multiplicação dos
pontos de vista, ou seja, em mostrar as várias facetas de um mesmo objeto ao
mesmo tempo, propondo uma fusão das coisas com o espaço.
Tassinari comenta que a Arte Medieval, assim como a Arte Moderna,
possui uma grande variedade de estilos e que é muito difícil formular um esquema
espacial genérico desta arte. Porém, o autor pontua que diferentemente da arte
medieval “a arte moderna foi antinaturalista por princípio, e não pelas
circunstâncias”.
41
Conforme o autor, o Cubismo de 1911 foi o momento mais importante da
Arte Moderna, salientando sua enorme importância na concepção do espaço.
Tassinari cita a obra Telhados em Ceret, de Georges Braque, para demonstrar a
nova compreensão da espacialidade proposta neste momento, pois o que “a pintura
deixa ver é uma fusão das coisas e do espaço. O contorno fechado, nas pinturas
naturalistas, sempre respondeu pela separação entre os seres e seus espaços
circundantes”
42
, tamanha fusão proporciona um aspecto quase abstrato a pintura.
No final de 1912 foi realizada a primeira colagem cubista, inaugurando
outra importante contribuição do Cubismo para a Arte Moderna, pois deu início ao
processo de inserção de matérias do mundo real no espaço da tela, procedimento
que contrapõe o aspecto ilusório da imagem. Assim, os objetos reais passam a
40
H. B. Chipp, Teorias da arte moderna, p.197.
41
Alberto Tassinari, O espaço moderno, p. 27.
42
Idem, p. 36.
41
integrar o espaço pictórico: recortes de jornal, areia, papel de parede e rótulos de
garrafas etc.
A rie Ambiências na Parede traz em suas obras a apreensão da
perspectiva linear e do espaço multifacetado proposto pelo Cubismo, pondo em
contato métodos de resoluções espaciais distintos dentro da História da Arte,
possibilidade de combinação que foi aberta pela arte Pós-Moderna.
A referência cubista em meu trabalho é claramente identificada na
construção da figura. Na intenção de contrastar com o ambiente representado,
busquei esboçar figuras multicoloridas e que apresentassem uma “estilização” que a
diferenciasse do aspecto realista. As figuras em meus trabalhos trazem
características presentes na construção da figura humana realizada em muitas obras
de Pablo Picasso [Fig.14]. Como, por exemplo, um círculo representando um seio.
Argan reconhece em Picasso uma informal adesão ao Surrealismo. O
autor cita uma declaração de Andre Breton que diz que Picasso é “surrealista no
cubismo”. O Surrealismo é a poética do inconsciente, e por isso estaria oposto ao
Cubismo que trata-se de um processo analítico aplicado ao espaço “objetivo”.
Conforme Argan, a grandeza da obra de Picasso residia em não partir “da idéia de
uma realidade resolvida numa natureza ordenada, e sim da realidade enfrentada e
compreendida na violência de suas contradições”
43
Figura 14.
Portrait de femme
Pablo Picasso, 1938.
.
43
Giulio Carlo Argan, Arte Moderna, p.366.
42
Picasso compreendeu em seu trabalho cada vez mais a figura humana
partindo do volume plástico, onde ele reduz e limita progressivamente a alguns
blocos. O artista chega a acentuar a deformação da proporção e da construção
formal naturalista do corpo humano. Na arte de Picasso, os contornos, as linhas e as
superfícies coloridas estão justapostas de maneira crua.
44
Foi esta descaracterização da forma naturalista na representação do corpo
humano, em que fragmentos do corpo são transformados, geometrizados, hora
mostrados e noutra hora escondidos que me interessou nas pinturas de Picasso.
Num primeiro momento minha escolha se deu pela relação formal de contraste com
o fundo realista.
Mas também reconheço outro motivo: Picasso declara ter no desenho
infantil uma de suas maiores buscas como artista. A figura em meu trabalho é
multicolorida, e credito grande parte do aspecto lúdico do trabalho à figura. Opondo-
se a ela está o espaço em tons de cinza. Neste encontro impossível desta figura
onírica com o espaço cotidiano, existe uma relação poética com a memória perdida
da infância.
Figura 15.
Não esquecer
do ursinho cego
(Detalhe)
Michele Martines, 2009.
Dentre os movimentos modernistas, acredito que minhas figuras também
podem ser associadas ao Fauvismo, pela simplificação das formas e pela utilização
das cores. O Fauvismo tornou-se independente do real por subverter a concordância
das cores com o objeto representado.
44
Carsten-Peter Warncke. Picasso, p. 65.
43
Figura 16. Esboço e figura pintada da obra Silêncio.
Figura 17. Esboço e figura pintada da obra
Eu observando minha figura.
44
A composição das figuras é a etapa mais lenta na criação desses
trabalhos. Primeiro realizo um desenho em papel, que posteriormente é transposto
para a tela, para então aplicar as cores. As Figuras 16 e 17 mostram o desenho
inicial ao lado da figura finalizada na pintura. A figura passa por alterações quando
inserida na pintura. Geralmente experimento uma grande quantidade de
combinações de cores até adquirir um resultado que considero satisfatório.
Uma releitura interessante do Cubismo é presente na obra A Lição
[Fig.18], de Regina Silveira. Este trabalho propõe a desmontagem dos códigos
tradicionais e dos modos de transmissão das linguagens da arte. Fazendo uma
referência aos modelos sicos copiados nas aulas de desenho, como uma clássica
natureza morta.
Figura 18.
Regina Silveira
A Lição, 2002.
A obra faz uma leitura 'lúdica' da geometrização, que é um dos
pressupostos cubistas. Conforme a artista, os pressupostos cubistas e a lição de
Cézanne são referências importantes para a obra "A Lição",
[...] pois ensinam a "saber ver", no sentido de como o artista deveria
apreender as estruturas do mundo visível, em função de uma representação
que fosse essencial e não apenas naturalista. Aqui o dado irônico é
45
justamente a espetacularização de um objeto que é, em si, a incorporação
desses pressupostos.
45
Assim trabalha o artista contemporâneo, diante de uma espacialidade
formada por sua estrutura básica, “num campo pleno de possibilidades, contudo não
mais sujeito a mudanças radicais como as que a arte moderna teve de realizar para
formar-se.”
46
Em meus trabalhos, partindo da vontade de combinar diferentes
sistemas de representação, escolhi resolver o cenário de maneira realista, através
da perspectiva “renascentista”, e contrapondo-se a ele, insiro a figura resolvida de
acordo com o espaço multifacetado “cubista”. No entanto, é importante deixar claro
que ambos os tratamentos são realizados por mim de maneira informal e pessoal,
sem me ater a rigidez matemática da perspectiva ou seguir a rigor os pressupostos
da espacialidade cubista.
2.2 A referência fotográfica
As representações podem lidar de formas variadas com o espaço e com o
tempo: tempo de produção, tempo representado, tempo de fruição. A fotografia fixa
em um único instante a imagem do que comumente entendemos por real. Em minha
práxis artística a fotografia é utilizada como ferramenta de trabalho no princípio do
processo de instauração.
No instante do registro fotográfico, tempo e espaço são fixados de uma só
vez, sem novas intervenções. Philippe Dubois lembra que se são possíveis
manipulações, elas serão feitas depois do instante do corte e justamente tratando a
foto da mesma maneira que o pintor trata sua pintura. Dubois lembra que o traço de
sincronismo distingue radicalmente a fotografia da pintura. Pois, “onde o fotógrafo
corta, o pintor compõe”. De modo que, conforme o autor:
[...] a película fotossensível recebe a imagem de uma vez por toda a
superfície e sem que o operador nada possa mudar durante o processo, a
45
Regina Silveira em entrevista feita por Rafael Vogt Maia Rosa para o catalogo da mostra “A Lição”
(agosto - setembro 2002). [on-line] Disponível em: http://reginasilveira.uol.com.br/alicao.php#
46
Alberto Tassinari, O espaço Moderno, p. 12.
46
tela a ser pintada pode receber progressivamente a imagem que vem
lentamente nela se construir, toque por toque e linha por linha, com
paradas, movimentos de recuo e aproximação, no controle centímetro por
centímetro da superfície, com esboços, rascunhos, correções, retomadas,
retoques, em suma, com a possibilidade de o pintor intervir e modificar a
cada instante o processo de inscrição da imagem.
47
A representação de um acontecimento em pintura, conforme Jacques
Aumont, é sempre da ordem da síntese temporal. A pintura representa o tempo, e
não o contém. Para tal, ela deve inventar seus signos. Conforme o autor é narrativa
toda pintura que se choca com a ambição impossível de figurar o tempo. Aumont
lembra que “um acontecimento real existe no tempo, sem que seja possível dizer,
salvo conjunção raríssima e puramente acidental, que este ou aquele de seus
“momentos” o representa e o significa melhor que os outros”.
48
Daí a dificuldade de
eleger um momento preciso para a representação.
Figura 19. Fotografia Figura 20. Pintura
Em minha práxis artística, como podemos ver nas imagens acima,
primeiro efetuo um aparente recorte através da fotografia de um espaço da casa
[Fig.19] para depois realizar a pintura [Fig.20].
Utilizo o referencial fotográfico, porém a imagem reproduzida em minha
pintura vai sofrendo alterações conforme estas me parecem necessárias. Por
exemplo, observando as imagens das figuras 19 e 20 percebemos que houve um
deslocamento da mesa e da cadeira, que na pintura acaba sendo posicionada em
47
Philippe Dubois, O ato fotográfico, p.167.
48
Jacques Aumont, O olho interminável, p.81.
47
frente ao fogão. Este deslocamento foi provocado com a intenção de inserir a figura
da direita na composição da cena.
Também o espaço é representado em preto e branco
49
. Faço esta
alteração na cor com a intenção de remeter a ideia de flashback, de lembrança, a
mesma maneira como geralmente é representada no cinema e na televisão. O “real”
a que me refiro nestas obras seria o espaço da minha casa. Mas quando pinto não é
o próprio espaço que observo (a cozinha, por exemplo), e sim a imagem congelada
deste espaço, ou seja, a fotografia.
Pintando interiores da minha casa, interpreto coisas que existem, pois as
vejo diariamente, mas na tela o que existe é a representação. Como defendia
Magritte em suas obras: não existe real na pintura, existe a pintura na pintura. Um
cachimbo não é um cachimbo se não posso usá-lo como cachimbo. É uma ideia, um
conceito de cachimbo. A mesma relação se também na imagem fotográfica. A
fotografia pode apresentar um cachimbo, mas o fará como imagem, e nunca como o
próprio objeto: real, físico, palpável. Sendo assim, é fato que tanto a pintura quanto a
fotografia, apesar de serem capazes de sugerir a ilusão da terceira dimensão no
espaço plano, sempre serão planas.
Portanto, a fotografia proporciona instantaneamente a estrutura
perspectiva da pintura. Assim, trabalho com o auxilio de lâminas do retroprojetor,
desenhando na tela o que pretendo pintar, prática que me auxilia na reprodução do
espaço projetado.
Conforme Dubois, o espaço da pintura corresponde de fato a um
determinado quadro, que é uma superfície mais ou menos virgem onde o pintor irá
introduzir uma quantidade maior ou menor de signos. Nesse espaço, o pintor
compõe em função dos limites que lhe são dados, esboça a organização das
formas, distribui a superfície, dispõe suas camadas coloridas, etc. Ou seja, a obra
pictural é um universo fechado, que basta a si mesmo, é um espaço fechado,
autônomo, onde o pintor pode progredir aos poucos, onde pode construir conforme
sua vontade, fabricar progressivamente sua imagem no enclausuramento do
campo.
50
49
Este assunto será tratado no tópico seguinte.
50
Philippe Dubois, O ato fotográfico, p.177-178.
48
Aumont lembra que And Bazin, em sua famosa comparação entre
pintura e cinema de 1951, constata que “o cineasta, por suas diversas intervenções,
“abriu” o espaço das telas pintadas, dotou-o de um fora imaginável, de um fora-de-
campo”. Bazin caracterizou o limite pictórico de “centrípeto”, pois fecha o quadro
sobre o espaço de sua própria matéria e de sua composição e obriga o olhar do
espectador a voltar incessantemente ao interior. Nosso olhar tende a ficar contido
dentro dos limites do quadro, a ver menos uma cena ficcional do que uma pintura,
uma tela pintada. Enquanto o limite fílmico é para ele “centrifugo”, pois conduz o
espectador a olhar longe do centro, encaminha o olhar para além das bordas do
limite da tela, pede inegavelmente o fora-de-campo, ficcionalização do não visto.
51
“Campo” é a porção de espaço apresentada na tela limite do espaço
físico da imagem), “fora-de-campo” é o que o é mostrado, mas que acaba sendo
concluído e imaginado pelos espectadores. Ou seja, é o que não vemos, mas que
imaginamos estar ocorrendo.
Assim, suponho que o princípio de minha proposição artística está
diretamente ligado a ideia de fora-de-campo, pois quando fiz o desenho em torno da
fotografia, completei o que a imagem me sugeria. O que me levou a pensar nessas
imagens com relação à fotografia que, por tratar-se de um “recorte do real”, sempre
deixa indícios do resto, do que ficou de fora. Em meu trabalho, imagino a
continuação dos ambientes, comuns a nós, pois sabemos como é uma sala ou um
quarto, temos idéia dos objetos que podemos encontrar nestes ambientes.
Aumont nos coloca que Nöel Burch, em sua Práxis do cinema, define dois
tipos de fora-de-campo: um “concreto”, que compreende elementos que foram
anteriormente mostrados no campo, e um “imaginário”, que compreende elementos
ainda nunca mostrados. Aumont aponta que a pintura conhece apenas um fora-de-
campo, e que ele não é concreto.
52
O cinema traz imagens em movimento, portanto no cinema é possível ver
o acontecimento e quando, por exemplo, um personagem entra e saí de cena,
podemos ter idéia do que está acontecendo na sua ausência, sabemos que ele
continua existindo fora da tela.
51
Jacques Aumont, O olho interminável, p.111.
52
Ibid., p.134.
49
na pintura, por tratar-se de imagens fixas, o ximo que podemos
obter são indicações, sugestões de acontecimentos. Aumont coloca que na pintura
não temos dificuldade de completar imaginariamente o que está representado no
recorte da imagem, como por exemplo, o rosto de uma personagem que ficou
cortado na borda do quadro. De acordo com o autor, o fora-de-campo pictórico deixa
a imaginação divagar, “e acaba sempre levando-a, inevitavelmente, ao mundo
fingido, à sua produção, ao pintor, em suma, ao que é fora-de-quadro em pintura”.
53
Em fotografia o corte fotográfico seleciona parte da realidade. Espaço e
tempo são configurados em imagem. A realidade que foi enclausurada, isolada na
imagem, com relação ao infinito do espaço real, pertence ao “campo”. O resto, o que
ficou de fora da seleção efetuada pelo fotógrafo, o que o é visível no campo da
imagem, designa o fora-de-campo, que Dubois também denomina de espaço “off”.
Segundo Dubois, o que uma fotografia não mostra é tão importante quanto
o que ela revela. O espaço off, o que ficou de fora desta seleção e que, portanto,
está ausente no campo da representação,
[...] nem por isso deixa de estar sempre marcado originariamente por sua
relação de contigüidade com o espaço inscrito no quadro: sabe-se que
esse ausente está presente, mas fora-de-campo, sabe-se que esteve ali no
momento da tomada, mas ao lado. A lógica do índice trabalha, portanto,
também a relação do campo com o fora-de-quadro. É ele que faz com que
diante de qualquer foto experimentemos esse sentimento de um além da
imagem perfeitamente existencial.
54
2.2.1 Realidade em preto e branco
A realidade tem cores, e as nossas lembranças também. Mas nossas
lembranças mudam constantemente, de forma, de nitidez, de cor, de acordo com o
momento. Cada pessoa cria seu próprio universo de imagens e assim como os
arquivos, a memória também funciona seguindo uma lógica de seleção e
organização: quando pensamos, recordamos, imaginamos, estamos reconstruindo
ou recriando a memória, adicionando ou suprimindo informações, em uma visão
53
Ibid., p.134.
54
Philippe Dubois, O ato fotográfico, p.179-180.
50
interior e subjetiva, recortada do real. Deste modo, tanto a fotografia quanto a
recordação, nos remete ao passado
55
.
A fotografia atua como um registro de fatos, acontecimentos, lugares. É
uma imagem fixa e “congelada”, mas está intimamente relacionada à memória por
ter a função social de registrar a realidade. Quando a visualizamos, ela pertence
ao passado. Por isso, possivelmente a forma usual de representar as lembranças -
em preto e branco, ou em tons de sépia - esteja relacionada à invenção da
fotografia, que no princípio, apenas por uma limitação técnica, era em preto e
branco. Ou seja, o fato passado geralmente é representado pelo passado da
fotografia.
Sabemos que a memória remete à visão interior de cada pessoa, a
memória é uma “coleção de acontecimentos”, e, segundo Jean Baudrillard, o
conceito de coleção é diferente do conceito de acumulação. A coleção se no ato
de escolher e reunir
56
. Só que nesta seleção de fatos que compõem a memória
acabamos esquecendo, misturando e por conseqüência transformando. Quando as
lembranças se mesclam na imaginação geram imagens ilusórias.
A observação é o princípio de minha prática pictórica. Olhando para a
imagem que está servindo-me de guia, busco selecionar os elementos que quero
salientar na pintura. Ao transpor a imagem fotográfica para tela, alguns objetos,
formas, luzes e sombras podem ser salientados ou removidos da composição.
Mesmo o aspecto hiper-realista
57
não sendo um objetivo em minha
pintura (e os resultados estão longe de o ser), existe a preocupação em respeitar
proporções e formas. Através dos contrastes entre o branco, o preto e os vários tons
de cinza, busco dar a ideia dos volumes e texturas das imagens que reproduzo.
Assim, minha pintura tem uma relação próxima com a fotografia. Busco atingir a
imagem em sua clareza objetiva.
Tradicionalmente, através dos conceitos formadores da teoria da cor,
principalmente em relação aos aspectos físicos, o branco, o preto e os tons de cinza
55
Leila Martorano, Recordatórios: notas sobre memória e fotografia, [on-line] disponível em:
http://interartive.org/index.php/2009/12/recordatorios/
56
Jean Baudrillard, O sistema dos objetos,111.
57
Este conceito de hiper-realismo é a corrente artística que teve início na década de 60, sobretudo
em Nova York e na Califórnia, nos Estados Unidos. Esta vertente artística, também conhecida como
foto-realismo, tem a ambição de reproduzir detalhadamente uma imagem a partir de um diálogo
cerrado com a fotografia.
51
não são considerados cores como as outras do espectro. Leon Alberti (1404-1472),
teórico da Renascença, escreveu em seu tratado Da Pintura, que a mistura:
[...] do branco não muda o gênero das cores, forma espécies. Igualmente a
cor preta tem força igual para criar com sua mistura infinitas espécies de
cores. Vê-se que em razão da sombra se alteram as cores. Aumentando a
sombra, obscurecem-se as cores e, aumentando a luz, as cores se tornam
mais abertas e mais claras. Por isso pode-se convencer bem os pintores de
que o branco e o preto não são verdadeiras cores, mas alterações de outras
cores.
58
O artista Iran do Espírito Santo produziu uma obra composta por faixas
em 54 tons de cinza, criando um hipnotizante jogo de claro e escuro. A obra possui a
forma de um retângulo [Fig.21]. Os vários tons de cinza foram pintados sobre a
parede criando uma espécie de janela, um portal que não nos leva para outro lugar
se não ao próprio trabalho. A primeira impressão que tive ao olhar esta
pintura/desenho foi a de que uma projeção de luzes estivesse agindo sobre a
parede, mas ao aproximar-me percebi a presença das linhas que formam a
gradação dos tons de cinzas. O que me remeteu aos exercícios de escalas
cromáticas e de cinzas realizados no início do curso de graduação.
Figura 21.
Sem título
Iran do Espírito Santo
7 Bienal do Mercosul.
2009.
A obra de Iran é formada por linhas, é o olho do espectador que mistura
os diversos tons de cinza. Em meus trabalhos a gradação dos tons de cinza é
adquirida de forma diferente. Aproxima-se, de certo modo, ao processo utilizado pela
artista plástica Marta Penter, que trabalha com pintura a óleo sobre tela, transferindo
58
Leon Alberti, Da Pintura, p.85.
52
imagens de fotografia para a pintura. Penter busca definir os efeitos de profundidade
e a ilusão dos volumes sem usar cores, apenas o preto e branco [Fig.22]. Uma
inegável nostalgia permeia sua obra. Sobre a ausência de cores na obra da pintora,
Paula Ramos pontua:
O uso dessa paleta aparentemente reduzida tem razão de ser, primeiro
porque, para Marta, a memória é em preto-e-branco e, depois, porque deste
modo ela instaura uma analogia imediata e proposital com o seu referente:
vetustas fotografias pinçadas de álbuns alheios.
59
22. Sou espelho sou reflexo
de mim mesma
Marta Penter, 2008.
A artista tem como objetivo provocar no espectador uma sensação de
atualidade, como se fosse possível retornar para o presente aquele momento do
passado registrado na fotografia. Nas pinturas de Penter não há narrativa, nenhuma
história está sendo contada. O que a pintora apresenta para nosso deleite é o
registro de um prazeroso momento fugidio.
Talvez o preto-e-branco, aqui, instigue e potencialize esse devaneio, ao nos
proporcionar não o sentimento de um passado que nos encara, mas de um
tempo suspenso, de regozijo e de deleite, quem sabe à nossa espera e,
também por isso, enigmaticamente nostálgico.
60
Em minha produção pictórica os tons de cinza estão presentes desde
2003, quando iniciei uma série de pinturas intitulada (Re)vendo-nos. Estes trabalhos
consistiam em reproduções de imagens de cunho social e jornalístico, contrapostas
59
Paula Ramos, A intimidade Compartilhada. [on line]
60
Ibid.
53
a frases publicitárias [Fig.23]. Num primeiro momento a opção por trabalhar as
imagens desta série em nuances de cinza esteve ligada à seriedade do valor
documental e de denúncia, que deveria contrastar com o colorido da publicidade.
Mas o próprio título dado a rie - “(Re)vendo-nos”- remete a idéia de memória, de
olhar para trás, resgatando imagens passadas.
Figura 23.
Lanche feliz,
Michele Martines,
2003.
Nos trabalhos atuais existe a seleção de um ambiente da minha realidade
particular. Baudrillard ao falar sobre o valor das cores na ambiência dos espaços
criados pelo homem para viver, diz que as cores o carregadas de alusões
psicológicas e morais. Segundo o autor os interiores burgueses privilegiam cores
sóbrias como cinzento e bege, o que seria uma recusa moral da cor como espaço,
pois:
[...] espetacular demais, ela constitui uma ameaça à interioridade. O mundo
das cores opõe-se ao dos valores e o elegante é ainda o esmaecimento das
aparências em benefício do ser: negro, branco, cinzento, grau zero da cor
é também o paradigma da dignidade, recalque e do standing moral.
61
Este comentário é interessante, pois vem de encontro com o outro
sentido, além da questão da memória, que a paleta de cores de minhas pinturas
pode proporcionar: que é o sentido de um ambiente cético, tão real que se torna
61
Jean Baudrillard, O sistema dos objetos, p.38.
54
hiper-real
62
em contraste com a figura lúdica e extremamente colorida. Este
contraponto entre o colorido e o preto e branco pode representar a soma das
laminas memórias que produz a auto-imagem distorcida da figura.
O filme O Mágico de Oz (filmagem de 1939) também traz uma relação
com as cores significativa para minha proposta. A transição das cenas
monocromáticas para as cenas coloridas faz-se quando a personagem “Dorothy” sai
de sua casa indo em direção a um universo novo e desconhecido, somente pela
abertura de uma porta. Esta passagem faz uma alusão dos contrapontos:
monocromático x colorido e “mundo real” x “mundo fantástico”
63
.
Nos trabalhos da série Ambiências na Parede o fundo monocromático
possui também a função de equilibrar a composição, tornando mais sutil a passagem
da pintura para o desenho. É como se a imagem fosse sofrendo perdas de
informação: primeiro vão-se as cores, depois os volumes. Podemos ver a pintura
como um “recorte”, no sentido de dar destaque a um determinado canto da cena
representada.
62
Conforme Paul Wood, a ‘hiper-realidade’ no sentido que Baudrillard emprega, traduz uma
sensação de não estar vivendo em um mundo de trabalho, produção e coisas reais, mas
representações, consumo, imagens dos meios de comunicação, superfícies e estilos mutáveis, um
mundo em que o real se dissolvera em um simulacro.” Paul Wood. Modernismo em Disputa, p.241.
63
Link para a cena do filme onde esta transição ocorre:
http://www.youtube.com/watch?v=MhPu5AHDMHM&feature=related
55
Figura 24. Eu observando minha figura, Michele Martines, 2009.
56
3. DO QUADRO À PAREDE
3.1 O Quadro Expandido no Real
Os primeiros registros gráficos de que temos conhecimento foram
encontrados em paredes de cavernas. Em alguns casos, acredita-se que o desenho
na Pré-história exercia a função da comunicação, já que não havia sistema de
escrita. Tais grafismos nunca se encontram perto da entrada das cavernas onde
ficariam à vista e sujeitos à destruição mas nos recantos mais profundos, fora do
alcance de eventuais intrusos. O que leva a crer que obedeciam a um propósito
muito mais sério que o simples gosto de decorar. Entre outras coisas, serviam ao rito
mágico para assegurar o êxito na caça.
64
no Egito antigo, cenas da vida quotidiana eram representadas em
câmaras de oferendas dos sepulcros particulares. Para a fruição do espírito, o
sepulcro era preparado como uma espécie de vaga reprodução do seu meio
quotidiano. Percebe-se um curioso apagamento da fronteira entre a vida e a morte e,
talvez por isso, se imitassem os ambientes familiares.
65
E no que concerne à Idade Média, a pintura ocidental desenvolveu-se nos
murais, através da técnica do afresco. Como a leitura era um saber de poucos, a
Igreja recorria à arte para manifestar a doutrina religiosa e narrar as histórias
bíblicas.
Esta breve retrospectiva nos indica que o plano da parede é aproveitado,
atendendo a diferentes propósitos, como suporte para a prática do desenho e da
pintura em diversos períodos da História. No contexto contemporâneo o plano da
parede é afirmado como um lugar/suporte e assim como o quadro, torna-se um lugar
aberto para as experimentações artísticas. Deste modo, não é o ato de interferir,
desenhando ou pintando, no plano da parede que representa uma atitude artística
64
H. W. Janson, História da Arte, p. 27.
65
Ibid, p.55.
57
contemporânea. Tanto desenho quanto pintura vão muito além da forma e do
suporte quando expressam conceitos e idéias.
No início do século XX, com o advento da fotografia, a pintura deixou de
ser o principal meio de reprodução (documentação) da realidade. Assim, os pintores
passaram a preocupar-se com outras questões como, por exemplo, uma nova
maneira de representar o espaço, diferente da perspectiva Euclidiana como fez o
Cubismo.
Dentre as primeiras manifestações da Arte Moderna, a incorporação da
colagem na superfície pictórica cubista impulsionou a ruptura com a uniformidade do
material e o aspecto ilusório da imagem. Os papiés collés introduziram fragmentos
do mundo real no espaço representacional: papéis, tecidos, jornais, prego, madeira,
e outros materiais heterogêneos deram origem a relevos e “impurezas”.
Desde então, a pintura passou por diversas transformações, na medida
em que é afirmada como superfície, passa a admitir as mais diversas formas de
suportes como próprios a sua feitura (papel, tela, parede, corpo, etc.). Assim como a
incorporação de materiais e procedimentos não propriamente pictóricos em sua
prática. Um dos caminhos possíveis a ser seguido pela pintura é a “explosão” dos
limites do quadro. Isto se em meu trabalho através da ruptura do formato
retangular tradicional, da remoção do bastidor e no ato de colar a tela na parede.
Os artistas Jasper Johns e Robert Rauschenberg, através das suas
práticas, no início da década 1950, exploraram o espaço do plano pictórico, de modo
que não compreendesse mais apenas um espaço visual ilusório estabelecido como
uma janela. O quadro passou a englobar seus arredores, o espaço circundante,
aproximando arte e espaço comum. Tassinari comenta que a obra Fool’s House
[Fig.26], de Jasper Johns, “é uma pintura porque pede um olhar frontal, porque
possui partes pintadas, porque possui uma tela”
66
. Conforme o autor, são
determinadas características que permitem chamar Fool’s House de pintura, e não
um conceito geral para as pinturas contemporâneas. O mesmo podemos dizer sobre
as obras da série Combines
67
de Rauschenberg, como Pilgrim [Fig. 25].
66
Alberto Tassinari, O Espaço Aberto, p119.
67
Porém, algumas Combines exigem que o espectador ande em torno da obra para apreciação.
58
Figura 25. Robert Rauschenberg, Figura 26. Jasper Johns,
Pilgrim, 1950 Fool’s House, 1962.
No final da década de 1960 e início da década de 1970, as novas
vanguardas empreenderam inúmeras alternativas de exploração da percepção do
espaço, levando em consideração a relação do corpo do espectador com a obra.
Esta relação é manifestada em movimentos específicos como o Minimalismo, a Land
Art, a Arte Conceitual, os Happenings e as Instalações. Embora na prática ainda
houvesse pintores, este período foi marcado pela ruptura com as formas tradicionais
de práxis artística.
Portanto é na década de 1960 que a Arte sai do contexto das galerias e se
expande para outros ambientes. Mas, apesar de todas investidas em sair dos
espaços expositivos consagrados da Arte, foram justamente estes que acabaram
legitimando tais manifestações artísticas ao exibir seus registros. Assim, a tentativa
de enfraquecer estes espaços e tornar o artista independente dos museus e
galerias, tornou tais espaços ainda mais fortes e legitimadores.
59
As relações do objeto artístico com seu meio ambiente, o local onde é
instalado, apontam importantes raízes no Minimalismo, que promoveu o rompimento
com a especificidade das linguagens e destacou o fato de que o espaço afeta a
experiência de apreciação, propondo diálogos com a Arquitetura.
As estratégias dos artistas que trabalham com o “lugar” foram (e são) diversas e
multidisciplinares. A Instalação é um exemplo de categoria artística surgido nesta
época e que efetivamente explora nossa percepção do espaço. Inicialmente
conhecidas por “ambientes”, as Instalações tratam-se de um tipo de obra que
pressupõe um tipo de fruição que envolve o corpo do espectador, geralmente não se
dirigindo apenas ao sentido visual. Nas instalações a “relação espacial indissolúvel –
obra e espaço torna-se um “todo” constituinte, que inclui o sujeito que ali possa
estar.”
68
Nos trabalhos da série Ambiências na Parede a relação do espectador
com as obras é de contemplação. Porém, acredito que estas obras podem
configurar-se como “instalações bidimensionais” pela maneira como são expostas,
pois eu não mais penduro quadros, e sim os instalo, “enraizando-os” ao ambiente,
passando estes a fazer parte das obras. E também porque ao ampliar as dimensões
dos trabalhos, a intenção é de que o espectador seja induzido, mesmo que de
maneira muito sutil, a imergir no espaço representado.
Nestes trabalhos a apropriação do espaço da parede pode estar pautada,
primeiramente, na relação do efêmero com a memória. Embora as linhas sejam
pretas e rígidas, definindo traços firmes, o desenho não fornece tantas informações
quando a pintura do cenário (que como vimos anteriormente, já nos priva das cores),
e, por ser na parede, sabemos que seu tempo de duração é curto. Acredito que, ao
olhar a obra, o espectador perceba esta relação entre o perene e o efêmero.
Também proponho uma analogia do quadro com a parede: Um quadro
convencional possui quatro lados (que formam um retangulo ou quadrado), são
paredes fechadas. Através dos recortes da tela e das linhas do desenho, crio
“portas” de saída, conexões com o espaço real. Estas “portas” propiciam uma fusão
do ambiente expositivo com o espaço criado pela obra.
68
Fernanda Junqueira, Sobre o conceito de instalação, Revista Gávea, p. 552.
60
Brian O’Doherty comenta a relação entre um mural (pintado diretamente
na parede) e a pintura de cavalete (um quadro pendurado na parede), conforme o
autor, o quadro pendurado pode ser visto como uma espécie de “janela portátil”. O
quadro emoldurado possui uma ilusão que o mural não possui.
A relação entre a superfície pictórica e a parede por trás é muito relevante
para a estética da superfície. Os poucos centímetros de largura do chassi
resultam num abismo formal. A pintura de cavalete não pode ser transposta
para a parede, e por que será? O que se perde na transposição? As
margens, a superfície, a trama da tela, o distanciamento da parede.”
69
Em meu trabalho, a intenção é justamente juntar, unir, combinar. Talvez
um meio termo entre o mural e a pintura de cavalete. também a potencialidade
de expor alguns trabalhos interligados, formando uma única obra. No esquema
abaixo [Fig.27] aproximei imagens das obras: Como você tem olhos grandes!”,
Pintura de cavalete” e Eu queria o teu fundo”. O traço grifado, que sobrepõem
as imagens, representa o desenho perspectivo do espaço arquitetônico de cada
trabalho, ligando-os. A perspectiva presente em meus trabalhos é adquirida de
maneira informal, a partir da sequência que a imagem fotográfica sugere. Deste
modo, ao conectar os trabalhos, não é uma preocupação dominante que o ponto de
fuga da primeira imagem esteja de acordo com o da segunda.
Figura 27. Esquema representando a junção de alguns trabalhos da série.
69
Brian O’Doherty, No interior do cubo branco, p. 18.
61
Unir estes trabalhos é uma possibilidade de montagem e não uma regra.
Este entendimento proporciona aos trabalhos maior flexibilidade, podendo adequá-
los a diferentes espaços e, dependendo do caso, até propor algum tipo de diálogo
mais efetivo considerando as características físicas do local em que as obras forem
instaladas. O desenho possui um projeto pré-definido, mas pela efemeridade do
material, por ter que ser destruído ao final de cada exposição e refeito numa próxima
exibição, ele é mutável. Característica que me permite fazer alterações a cada
mostra, como, por exemplo, as dimensões dos trabalhos que podem ser redefinidas.
Um suspiro e Silêncio são dois trabalhos [Fig. 29 e 30], na Figura 28
vemos a montagem destes trabalhos para a banca de qualificação (março de 2009).
Naquele momento, as obras ainda apresentavam a pintura sobre a tela retangular,
com chassi. A Figura 31 representa os mesmo trabalhos, já com os recortes e a tela
fixada diretamente no plano da parede e unidos. Nessa proposta de montagem
[Fig.31] a linha que divide as duas obras representa o encontro da parede dos dois
ambientes, no entanto, uma das obras é instalada um pouco acima com relação à
outra, o que impossibilita esse encontro, provocando uma quebra com a
identificação formal da perspectiva. Assim, a junção dos trabalhos implica uma nova
situação, pois ao unir duas obras é apresentada uma terceira obra que traz consigo
outras leituras possíveis.
Figura 28. Montagem do trabalho para a qualificação
Sala de Exposições Claudio Carriconde- CAL/UFSM, março 2009.
62
29. Um suspiro, Michele Martines, 2009.
30. Silêncio, Michele Martines, 2009.
63
Figura 31. Um suspiro e Silêncio, Michele Martines.
A questão da expansão do quadro no espaço real foi tratada pela artista
Carmela Gross, em trabalhos que realizou no final dos anos 80 e início dos anos 90
as séries Pintura-Desenho e Pintura-Objeto. Carmela experimentou os elementos
estruturais da tela, lugar comum da pintura de cavalete, buscando a superação
deste suporte como privilegiado deste fazer artístico.
As obras da série Pintura-Desenho são compostas por partes moduladas
presas à superfície mural. Estes trabalhos apresentam formas geométricas variadas:
círculo, losango, quadrado, etc. A superfície é coberta por uma camada pictórica que
evidencia a marca de pinceladas expressivas, o desenho forma-se na geometria dos
módulos que se encaixam. Em alguns trabalhos desta série, a artista realiza
grafismos na parede que seguem o ritmo e a direção das pinceladas contidas no
campo pictórico [Fig.32]. As pinceladas são retidas nos limites do suporte. São
detidas nas circunstâncias do quadro, não ultrapassando suas bordas.
64
Figura 32.
Sem título
Carmela Gross
1987
A dedicação da artista na elaboração de suportes com formatos variados e
inesperados põe em discussão a intermediação do suporte visual e promove a
reflexão sobre as possíveis relações entre a obra e seu entorno. Ana Maria Beluzzo
observa que estas obras “guardam a tensão entre o que é contínuo e o que é
descontínuo, entre o que tende a se expandir e o que é contido em módulos ou
suportes”
70
.
Dando prosseguimento à experiência de unificar pintura e suporte, os
trabalhos da série Pintura-Objeto são lançados diretamente no espaço. Como
podemos observar na obra Expansivo [Fig.33], o trabalho é composto por
fragmentos montados e fixados diretamente no plano da parede. Expansivo possui
uma estrutura pré-determinada, portanto suas partes são inseparáveis de um
“desenho interior”. Mas a partir deste esquema estrutural é possível aproximá-las,
assim como tencionar os limites de conexão ou divisão da imagem. Assim, a obra
pode adquirir medidas variáveis. Sobre esta obra, Beluzzo comenta que:
Carmela volatiza o corpo da obra, deixando o observador adivinhar sua
magnitude pelas partículas liberadas na superfície mural. As pequenas
partes feitas de latão cromado estão diretamente presas à parede,
aparecem livres de seu peso, gravitando sob teia invisível. Sua superfície
espelhada resplende e remete ao espaço circundante. Tanto o brilho dos
corpos quanto a continuidade mural colaboram para a expansão da
superfície do quadro.
71
70
Ana Maria Beluzzo, Carmela Gross, p.42.
71
Ibid., p. 42 e 47.
65
33. Expansivo
série Pintura-Objeto
Carmela Gross, 1988.
Nesta série Carmela refere-se a questões da pintura, mas sua obra não é
constituída de elementos específicos da construção pictórica, como manchas de
tinta. Este fato participa da situação contemporânea da Arte, em que as categorias
artísticas muitas vezes se mesclam e é possível tratar de pintura sem usar tintas e
pinceis. Algumas pinturas de Nuno Ramos, estruturadas tridimensionalmente, são
outro exemplo disso. O artista realiza colagens de elementos muito diversos: feltro,
espelho, plástico, algodão, papel, etc. A aglomeração destes elementos sobre um
painel de madeira produz uma mistura densa e visceral.
Ainda sobre a obra de Carmela, a propósito de uma exposição em que a
artista apresentou a série Pintura-Objeto, Tadeu Chiarelli escreveu:
O que a artista apresentou foram fragmentos de telas que, através de seus
estilhaços soltos porém ainda obedecendo a uma certa concentração -
avançam pela parede reivindicando, numa sublevação sutil e inexorável,
que a mente do espectador compreendam-nos agora como aparelhos
inquietantes da percepção.
72
Carmela rompe com o quadro, objeto que tradicionalmente é destinado a
separar o espaço pictórico do espaço ambiental. É possível uma aproximação da
produção de Carmela Gross, acima mencionada, com algumas obras da artista
Adriana Varejão. No sentido de que ambas as propostas apresentam preocupações
relacionadas às questões de rompimento com o suporte pictórico convencional e a
convivência da obra com o espaço que a comporta. De maneira distinta, a obra de
72
Tadeu Chiarelli, Arte Internacional Brasileira, p.198.
66
Varejão promove o cruzamento entre pintura, escultura e arquitetura. É preciso
destacar a forte presença de referencias históricas e culturais na produção de
Varejão, e que são ausentes na proposta de Carmela. Conforme o crítico Paulo
Herkenhoff, a obra de Varejão:
[...] é também uma operação iconológica em que imagens extraídas da
história da arte - onde eram escultura, monumentos, louça, gravuras,
mapas, ex-votos impressos em livros - passam à condição de pintura, seu
filtro e denominador. Insistentemente, o método é operar uma migração de
imagens. A artista não pinta um anjo, mas o azulejo onde se imprime o
anjo.
73
Varejão apropria-se de elementos estilísticos e retóricos do Barroco,
compreendendo que articular historicamente o passado visual significa apropriar-se
de uma lembrança, de uma evidência visual. Segundo o autor, é assim que sua obra
alcança um processo de condensação e troca.
Figura 34.
Adriana Varejão,
Linda do Rosário,
2004.
As obras tridimensionais de Varejão são rupturas com a tela, apresentam
um interior visceral sangrento, formado de elementos escultóricos ou arquitetônicos.
Herkenhoff salienta que “compreender o corpo da pintura é também compreender a
possível dor da pintura e não abdicar de sua sensualidade e de seus fantasmas”
74
. A
73
Paulo Herkenhoff, Pintura/ Sutura, In: Adriana Varejão, São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1996.
[on-line]
74
Ibid.
67
espessura do trabalho da artista compreende “amplamente, não apenas a
materialidade, mas também a densidade simbólica do discurso pictórico”
75
.
35. Língua com
padrão sinuoso
Adriana Varejão,1998.
.
Na obra Língua com padrão sinuoso, da série Línguas e Cortes, a tela é
apresentada com um rasgão como espaço violentamente agredido revelando sua
carnalidade pictórica. Parte da pintura reproduz azulejos cuidadosamente delineados
que, arrebentados, contrastam com a visceralidade que salta do interior da pintura
para o espaço ambiente. Trata-se de uma obra visual e tátil. Herkenhoff argumenta
que:
Janela para o mundo no Renascimento, o quadro e-se aqui como corpo
do mundo. O Quadro Ferido – a vitimação física conecta a pintura de
Varejão ao sentido edificante da vida dos mártires, indo do barroco ao mito
fundamental da cultura brasileira do século XX, a Antropofagia.
76
O autor pontua ainda que nestas obras da artista “tudo se contamina para
problematizar a pintura. Misturando representação, mimese e presença matérica
75
Paulo Herkenhoff, Pintura/ Sutura, In: Adriana Varejão, São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1996.
[on-line]
76
Ibid.
68
excessiva, a pintura de Varejão é um ponto de fusão do tempo social, condensando
uma atualizada história do oprimido”
77
.
O que me levou a buscar referencia nas obras de Carmela Gross e
Adriana Varejão foi, além do rompimento com o suporte convencional da pintura e
do desenho, a relação entre obra e espaço. A visualidade diversificada nessa
relação obra-espaço. É interessante perceber algumas preocupações semelhantes
em propostas visualmente tão diferentes.
Gross propõe a transformação do suporte, que, mesmo quando totalmente
fragmentado, a artista organiza de forma que ainda remeta a ideia do quadro
convencional. Em meus trabalhos mesclo suportes diferenciados, mas apesar dos
recortes da tela e da combinação com o desenho sobre a parede, a pintura é
presente em seu método tradicional.
o rompimento com a tela realizado por Adriana Varejão traz para o
espaço da Arte releituras (ou recortes) de “espaços comuns”, através das
referências históricas, culturais e sociais que marcam sua proposta. Acredito que
uma relação semelhante se dá em meu trabalho ao representar imagens de espaços
cotidianos.
3.2 Obra e Espaço Expositivo
Richard Wollheim destaca que, em pintura, há dois tipos de espectadores.
São eles o “espectador do quadro” e o “espectador no quadro”, ou seja, um
espectador interno na pintura. Conforme o autor “o espectador externo está situado
dentro do espaço real que a pintura ocupa numa sala de museu ou numa galeria”
78
.
E o espectador interno estaria dentro do espaço virtual que a pintura representa.
Wolheim aponta que o espectador externo pode ter consciência da superfície
marcada, “movimenta-se dentro do espaço real para certificar-se disso. Para o
77
Paulo Herkenhoff, Pintura/ Sutura, In: Adriana Varejão, São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1996.
[on-line].
78
Richard Wolheim, A pintura como arte, p.102.
69
espectador interno a superfície marcada não existe: ela não é visível a partir do
espaço virtual”
79
.
Assim, quando observarmos uma pintura de Picasso, por exemplo, a obra
pode funcionar da moldura para dentro. O espaço da pintura é autônomo. Podemos
centrar nossa atenção apenas naquele espaço representado, e se quisermos, até
imaginarmo-nos ali, integrando o ambiente pictórico.
O’Doherty coloca que a moldura funciona como uma grade onde, no caso
de uma imagem em perspectiva, tudo é colocado para dentro do quadro, refletindo
os cortes internos do primeiro plano, segundo plano e distância. Conforme o autor:
O clássico conjunto de perspectiva encerrado pela moldura Beaux-Arts
permite pendurar os quadros como sardinhas. Não existe nenhuma
indicação de que o espaço interno do quadro tenha continuidade no espaço
de qualquer um dos lados.
80
Neste sentido podemos dizer que a moldura fecha o trabalho, tornando-o
possível de ser fixado em qualquer ponto da parede, de modo que a obra não possui
conexão com seu entorno. Em Ambiências na Parede o desenho vale-se da própria
parede como suporte, não moldura, provocando uma relação diferente do quadro
emoldurado. No momento em que o trabalho apropria-se do espaço da parede ele
começa a tecer relações com o espaço real à sua volta. As linhas do desenho, que
avançam pela parede, sugerem continuidade. Elas também convidam o espectador
a entrar no espaço representado, porém não ocultam o entorno. Não separação
definida entre o ambiente criado pela composição artística e o lugar onde a obra é
instalada - o espaço comum.
Tassinari aborda a comunicação entre o espaço da obra e o espaço em
comum. O autor comenta que na Arte Contemporânea é através dos “sinais do fazer
que a obra está conectada com o espaço do mundo em comum” e sendo assim a
obra não precisa individuar-se por meios ainda comprometidos com o Naturalismo.
Tassinari salienta ainda que “uma obra contemporânea não transforma o mundo em
arte, mas, ao contrário, solicita o espaço do mundo em comum para nele se
79
Richard Wolheim, A pintura como arte, p.102.
80
Brian O’Doherty, No interior do cubo branco, p.9.
70
instaurar como arte”
81
. Conforme o autor, a obra não modifica o espaço em sua
estrutura básica, pois ela está no espaço do mundo em comum como qualquer outra
coisa.
o local onde se a obra, segundo o artista conceitual Daniel Buren
(1938-), interfere na recepção e no entendimento da mesma. Portanto, a concepção
do espaço expositivo não pode ser considerada neutra. Buren, através da sua
prática, pensou nas relações entre a obra e o seu contexto. Este artista é conhecido
mundialmente por usar faixas verticais de 8,7 cm, alternadas entre branco e outra
cor [Fig.36], motivo que usa como marca pessoal desde 1967.
Buren diz que não pesquisa ou evolução formal em sua proposta. O
artista apresenta sempre a mesma imagem: as listras, repetidas num trabalho após
o outro. Sua proposta leva ao extremo a ausência de composição. Não gesto de
pinceladas. Tais listras não simbolizam nada. Assim, Buren assume uma postura
similar à dos Minimalistas que, por meio da simplicidade e da síntese de informações
procuravam uma ponte com o espaço comum.
Figura 36.
D’une Impression L’Autre
Daniel Buren
intervenção executada
em 1968;
.
Deste modo, seu trabalho desloca o foco principal do objeto artístico para
todo contexto, exigindo que o espectador olhe para entorno da obra. “Ele sabe que o
olhar não é neutro, que depende da cultura, dos hábitos, do meio social de cada um.
81
Alberto Tassinari, O espaço moderno, p.75.
71
Assim, ele conduz seu espectador a prestar atenção nem tanto ao que olha, mas a
maneira como olha para o museu ou a cidade.”
82
Diferente da proposta de Buren, meu trabalho é figurativo, uma
preocupação concernente à disposição dos elementos que compõem uma cena.
Assim, é importante colocar que o diálogo com as propostas deste artista
obviamente não pretende uma aproximação referente às características formais e de
composição com os trabalhos que desenvolvo e aqui apresento. Esta proximidade é
direcionada às questões investigativas suscitadas por Buren através de sua práxis,
sobre a relação da obra com o lugar onde se inscreve.
Buren diz que a obra integrando um lugar, não se trata de torná-lo feio ou
belo, mas de indicar a pertinência deste trabalho ao determinado lugar, e vice-versa.
Conforme o artista, o “trabalho que leva em consideração o lugar no qual se mostra/
expõe-se, não poderá ser transportado para outro lugar e deverá desaparecer após
a exposição.”
83
Neste sentido podemos recordar a ocasião em que Richard Serra, a
propósito da retirada de sua obra Tilted Arc de uma praça em Manhattan, fez a
seguinte declaração: “A remoção do trabalho é a destruição do trabalho”
84
. Tal obra
fora concebida para atuar criticamente naquele determinado espaço público.
Portanto retirá-la e colocá-la num outro contexto era anular seu sentido e sua
“situação”.
Os trabalhos que compõem, até o momento, a série Ambiências na
Parede, ao contrário, não foram concebidos para atuarem criticamente num lugar
específico. Assim, acredito que sua apresentação em diferentes ambientes não
altera de forma radical o seu significado.
Sobre as instalações, Ana Albani de Carvalho diz que elas colocaram em
evidência a percepção de que uma obra de artes visuais é uma obra em exposição,
pois só podem ser vistas quando montadas e expostas, conforme a autora:
82
Livre tradução de: Il sait que le regard n’est pas neutre, qu’il est fonction de la culture, des
habitudes, du milieu social de chacun. Aussi conduit-il son spectateur à prêter attention non tant à ce
qu’il regarde, mas à la manière don’t il regard, au musée ou dans la ville”. Christophe Domino, L’art
Contemporain, p. 63.
83
Daniel Buren, In. Paulo Sergio Duarte (org). Daniel Buren, p.90.
84
SERRA, Richard. In “Redifining site specificity”, op cit. Fernanda Junqueira, Sobre o conceito de
instalação, Revista Gávea, p.560.
72
[...] as obras de arte são perpassadas pelos sentidos que constituem o
espaço expositivo, por mais que as paredes sejam pintadas de um branco
imaculado, a luz neutralizada e o som dos passos abafado por carpetes.
Cientes da carga simbólica, social e fenomenológica do recinto de
exposição, os artistas que investem na instalação optaram por produzir uma
obra contextual, relacional, a qual só poderia ser objeto de uma percepção
plena quando disposta em seu lugar.
85
Os espaços expositivos tradicionais (museu/galeria) geralmente dispõem
de paredes brancas para a exibição das obras, objetivando a maior neutralidade
possível. Em trabalhos como os que vimos da artista Carmela Gross, as séries
Pintura-Desenho e Pintura-Objeto, outro lugar que não seja uma parede branca
desfavoreceria a apresentação da proposta, que foi projetado para este tipo de
ambiente. Assim como em meus trabalhos, às linhas pretas do desenho, projetadas
para serem inseridas em paredes brancas, teriam sua apresentação prejudicada em
paredes de outra cor, pois não proporcionariam o mesmo efeito de contraste. A
mesma relação acontece em muitas propostas da artista Regina Silveira. Isso ocorre
porque nas propostas citadas, a parede preenche espaços vazios da obra,
integrando-se a ela. A parede é parte constituinte da obra.
Os trabalhos da série Ambiências na Parede começam a ser elaborados
no próprio ambiente da casa, onde realizo as fotografias para as pinturas e onde,
geralmente, é composto o projeto dos trabalhos. No entanto, é no processo de
deslocamento, na retirada dessas pinturas de seu ambiente de origem, que a obra é
apresentada por inteiro. A parede branca serve como elemento visual na
representação de um cômodo da casa, porém, o local expositivo continua sendo
percebido como um ambiente de exposição.
É possível estabelecer uma relação de oposição: espaço privado versus
espaço público, entre meu trabalho e o lugar em que é exposto, mesmo sendo uma
sala de exposições convencional, pois o espaço expositivo é também um espaço
público. Esta relação pode parecer um tanto óbvia, mas é pertinente se pensarmos
que a parede da casa é representada atras da parede do museu. À medida que os
olhos afastam-se da obra, a parede particular volta gradualmente a ser pública.
A escala dos trabalhos é um fator importante nesta relação. Aumentei
consideravelmente a escala dos últimos trabalhos realizados durante o Mestrado,
85
Ana Albani de Carvalho, in: Icleia Catani (org). Mestiçagens na Arte Contemporânea, p.104.
73
com a intenção de que incluam o espaço da parede desde o teto até o chão. A
escala física da obra trabalha em relação ao corpo do espectador e ao espaço
circundante a arquitetura. A forma ampliada gera uma partição do espaço,
tornando-o mais sensível.
Figura 37. Instalação das obras – Sala Claudio Carriconde/2010.
Reconheço na obra da artista Regina Silveira alguns pontos em comum
com minha proposta atual no que concerne à forma de apropriação do espaço em
que a obra é instalada e às características relativas à técnica que emprego em parte
dos trabalhos. No entanto, diferente da poética de Regina Silveira, meu trabalho não
apresenta distorções perspectivas, como as anamorfoses. O trabalho da artista
geralmente é impresso em plotter ou resolvido através de recortes manuais. Regina
realiza o projeto de seus desenhos no computador, podendo assim reproduzi-lo
74
quantas vezes for necessário. Recurso que, por vezes, também utilizo para a
confecção dos desenhos sobre a parede.
Figura 38. Desaparências, Regina Silveira, 1999.
Em Desaparências [Fig.38] imagens de objetos geralmente utilizados em
estúdios de pintura e desenho (cavalete de pintura, banquinho, palheta, mesa de
desenho) são produzidas a partir da perspectiva de um ponto de fuga. As imagens
recobrem parte do piso e das paredes num desenho tracejado. Desaparências é
uma obra projetada para um determinado espaço. Outras versões da obra são
projetadas para outros espaços, adequando à obra as características físicas do local
75
que a recebe. A necessidade de adaptação da obra ao espaço expositivo é muitas
vezes uma imposição, e não uma escolha. Nem sempre dispomos de um espaço
ideal, por isso torna-se importante a elaboração de estratégias de montagens
diferentes para diferentes ambientes.
Regina Silveira diz que seu trabalho existe para o olho, o lugar, e também
para o deslocamento do espectador. Para ver adequadamente a maioria de suas
peças é preciso andar em torno delas, nas palavras da artista:
O deslocamento do olhar é algo importantíssimo no meu trabalho. Conto
com ele o tempo todo para a transformação e desmantelamento das
imagens. Esses espaços que crio nas instalações são fortemente
construídos, muito diferentes do espaço real percebido. Quando o
espectador entra e se conecta com um desses espaços que enxerto no
espaço real, a relação é de armadilha e presa.
No momento em que alguém se situa nesse campo visual do espaço (que é
um espaço que cria conflito com o espaço percebido porque está cheio de
coordenadas que não combinam com as coordenadas da percepção), fica
com todos aqueles parâmetros grudados no olho. O espaço se deforma e se
distorce de acordo com esse deslocamento do observador.
86
as cenas representadas em Ambiências na Parede, por serem
realizadas em um plano bidimensional, exigem que o observador posicione-se a sua
frente. A relação do espectador com o trabalho é de contemplação. O desenho com
adesivo é apreendido à distância, pois é definido por linhas pretas, apenas
contornos. a pintura pede uma aproximação física do espectador, pois apresenta
maior quantidade de detalhes e maior variedade cromática. Dados que caracterizam
uma relação centro-periferia presente nesses trabalhos. Cattani, versando sobre a
obra da artista Maria Tomaseli, fala dessa relação centro-periferia e lembra também
que a bidimensionalidade é “acentuada pela presença de zonas não pintadas: o
branco da tela, do papel”, acrescento ainda o branco da parede, “”reserva” de não-
cor, lembra continuamente a realidade do suporte.”
87
86
Regina Silveira em entrevista para Angelica de Morais. In. Cartografias da Sombra, p.102-103.
87
Icleia Cattani, Espaços do Corpo, 171.
76
Figura 39. Exposição das obras – Sala Claudio Carriconde/ 2010
Meu interesse inicial ao elaborar a série Ambiências na Parede estava nas
possibilidades de combinação de diferentes sistemas de representação sobre um
plano bidimensional. No entanto, ao romper com o suporte da tela e realizar parte do
trabalho diretamente no plano da parede, outras questões tornaram-se relevantes
em meu fazer artístico. A necessidade de refletir sobre o espaço que circunda a obra
e também como o corpo percebe esta obra.
Neste capítulo busquei abordar a relação da obra com o ambiente que a
circunda. Cabe salientar que estas questões, novas para mim, entrelaçam-se ao
meu interesse inicial, e não o substituem. Se a proposta original de minha pesquisa
consistia em interligar dois “níveis de realidade” - o Mimético e o Cubista - apenas
foi acrescentado a esta mistura um terceiro: o real.
77
Figura 40. Não esquecer o ursinho cego, Michele Martines, 2009.
78
4. A CASA ou RECANTOS DE ILUSÃO
Essa concha muda que o meu sonho habita
Vitor Ramil
88
4.1 A casa habitada
Dia após dia as paredes, os objetos, o chão, o ar da casa. Num mundo de
tantas idas e vindas, lugares de passagem, não-lugares, a casa propõem-se a ser
um lugar impregnado de personalidade. É o lugar onde muitas coisas acontecem
sem acontecer. Atmosfera daquele que o habita, recanto das nossas ilusões. A casa
corresponde a um lugar íntimo e seguro onde o habitante situa sua vida. Um espaço
individualizado e complexo que integra memórias, imagens, desejos e medos, e, ao
mesmo tempo, comporta os rituais e ritmos da rotina diária.
Gaston Bachelard, no livro, “A Poética do Espaço”, diz que “todo canto de
uma casa, todo ângulo de um quarto, todo espaço reduzido onde gostamos de
encolher-nos, de recolher-nos em nós mesmos, é, para a imaginação, uma
solidão.”
89
E todos os habitantes de cantos virão dar vida à imagem, multiplicar todas
as nuanças de ser do habitante dos cantos. Para os grandes sonhadores
de cantos, de ângulos, de buracos, nada é vazio, a dialética do cheio e do
vazio corresponde apenas a duas realidades geométricas. A função de
habitar faz a ligação entre o cheio e o vazio. Um ser vivo preenche um
refúgio vazio. E as imagens habitam. Todos os cantos são freqüentados, se
não habitados.
90
Bachelard fala das formas e símbolos que aproveitamos junto com nossa
imaginação e com nosso devaneio a serviço de uma fantasia íntima. Em minhas
pinturas, tento registrar esses momentos de solidão e devaneio de que fala o autor.
88
Frase da musica “Livro Aberto”, de Vitor Ramil (CD Satolep Sambatown, 2007).
89
Gaston Bachelard, A Poética do Espaço, p.145.
90
Idem, p.149.
79
Nas palavras dos pensadores Gilles Deleuze e Felix Guattari encontrei a
compreensão do valor afetivo presente em meu fazer e de como ele é absorvido
pela obra, tornando-se os “perceptos e afectos” da obra. Conforme os autores,
perceptos e afectos são as sensações em uma obra, ou seja, a obra de arte “é
independente do criador, pela auto-posição do criado, que se conserva em si. O que
conserva, a coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações”
91
.
Como vimos anteriormente, minhas imagens, assim como a memória que
é formada por tempos descontínuos, compõem-se da conjunção de fragmentos do
passado e projeções de um tempo formado em sensações de frações de segundos.
A relação com a intimidade existente no trabalho é visível, pois represento como
cenário para as figuras o espaço doméstico, ou seja, insiro estas figuras na
intimidade do espaço do meu próprio cotidiano.
É neste cotidiano que encontro minhas motivações e vivências, tão
importantes para o processo de criação, mas que são percebidas de forma diferente
no produto final, que é a obra. O percurso de instauração da obra plástica revela que
o resultado da obra pronta é, muitas vezes, distinto do intencionado pelo artista.
Icléia Cattani, ao distinguir poética de poiética, conta que a poética trata-se da obra
em sua fisicalidade própria e também de “seus múltiplos sentidos e significados, os
quais escapam, em parte, ao desejo, à intenção e até mesmo ao controle do seu
criador”
92
. A autora finaliza dizendo que a poética “é a obra em sua trajetória própria
que leva, através do tempo e do espaço, a acumular sentidos novos e plurais”
93
.
a poiética seria o que pressupõe o estudo das motivações do artista, anteriores à
instauração da obra.
Conforme Deleuze e Guattari “o artista cria blocos de perceptos e de
afectos, mas a única lei da criação é que o composto deve ficar de sozinho” e
manter-se de sozinho, é “somente o ato pelo qual o composto de sensações
criado se conserva em si mesmo”
94
. Assim sendo, os perceptos e afectos são a
experiência do artista desligada de si para serem a obra e a experiência na obra.
A ambiência, ou seja, a organização do espaço em que se vive, coloca
em evidencia o indivíduo, sua convivência familiar, sua relação com a vida privada.
91
Gilles Deleuze e Felix Guattari. O que é filosofia, p.213.
92
Icléia Cattani, Mestiçagens na arte contemporânea, p.13.
93
Ibid.
94
Gilles Deleuze e Felix Guattari. op. cit., p.214.
80
Engessa e também modifica o espaço. Jean Baudrillard, no livro “O sistema dos
objetos” define o objeto como um figurante humilde e receptivo, uma espécie de
escravo psicológico e de confidente. Assim, além de sua função prática, os objetos
possuem a “função primordial de vaso, que pertence ao imaginário e a que
corresponde sua receptividade psicológica”
95
, sendo portanto o reflexo de toda uma
visão de mundo onde cada ser é concebido como um receptáculo de interioridade.
Baudrillard fala da casa como o equivalente simbólico do corpo humano, cujo
“poderoso esquema orgânico se generaliza em seguida em um esquema ideal de
interação das estruturas”
96
.
A relação dos habitantes da casa com os objetos é interpretada de forma
bastante interessante em duas vídeo-animações em Stop-Motion
97
que compunham
a mostra Absurdo da 7ª Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre no ano 2009.
Estes trabalhos me chamaram particularmente a atenção pela qualidade e pela
afinidade temática com a minha proposta artística. Intituladas Lucía e Luis
98
, de 2007
e de 2008 respectivamente, as vídeo-animações foram realizadas pelos artistas
chilenos Nilles Attalah, Cristóbal León e Joaquin Cociña. As personagens Lucía e
Luis são pré-adolescentes, vivem um momento de transição em que começam a
entender o mundo adulto e sua inocência está por um fio. O cenário são os quartos
de cada personagem. Em suas falas expõem as lembranças do verão em que se
conheceram e se apaixonaram, ao que as narrativas nos o a entender, o conflito
ocorre quando Luis resolve se vestir de lobo para dar um susto na namorada. Lucía,
ainda em sua ingenuidade infantil, passa a crer que o namorado possa ser um
lobisomem.
95
Jean Baudrillard, O sistema dos objetos, p.34.
96
Idem.
97
T
écnica de animação na qual o animador trabalha fotografando objetos, fotograma por fotograma,
ou seja, quadro a quadro. Entre um fotograma e outro, o animador muda um pouco a posição dos
objetos. Quando o filme é projetado a 24 fotogramas por segundo, temos a ilusão de que os objetos
estão se movimentando. Site:
http://www.eba.ufmg.br/midiaarte/quadroaquadro/stop/princip1.htm
98
As animações também podem ser vistas na internet, pelos endereços virtuais:
Lucía - http://www.youtube.com/watch?v=4mElcqHLlVo&feature=related
Luis - http://www.youtube.com/watch?v=4mElcqHLlVo&feature=related
81
41. Lucía, stop-motion, 2007. 42. Luis, stop-motion, 2008.
A faixa etária a que as personagens pertencem, é uma fase de afirmação
da identidade que se coloca na percepção da existência do “eu” e do “outro”, ou
seja, reside na diferença. Os vídeos retratam angústias comuns. As estórias foram
particularmente criadas pelo imaginário de três artistas, mas uma casa é um
ambiente conhecido, por isso reconhecemo-nos também nos objetos do ambiente.
Nas animações percebemos ainda que lembranças de acontecimentos
vividos no exterior figuram nas paredes do interior. Os desenhos das personagens
feitos em carvão ou nanquim preto aparecem e desaparecem nos planos do
ambiente (paredes, chão, portas). São representações visuais que se confrontam em
dimensões impossíveis, como figuras de sonho que surgem em traços isolados. Didi-
huberman comenta a relação do ambiente quarto com o inconsciente:
Quarto “psíquico” por excelência, na simples medida em que sua
visualidade parece destinada a suscitar o ato de fechar os olhos, modo de
abrir ao obscuro. Lugar para o sono, o esquecimento ou o sonho. Ou lugar
para a insônia de quem sem ver nada. Lugar para gravar, em seu ritmo,
o próprio esquecimento dos sonhos.
99
No início do vídeo Lua, um relógio é focado, nos permitindo ler o horário.
São 5h e 35min. Então fica a duvida se a personagem realmente está acordada ou
se seu delírio é inconsciente. A casa-psiquíca vai se emergindo em direção à
superfície da consciência, identificada finalmente com o exterior da casa. Talvez,
99
Livre tradução de: Chambre <psychique> par excellence, dans la simple mesure as visualité
semble conçue pour susciter ou rejouer l’acte de fermer de les ouvrir à l’Obscur. Lieu pour le
sommeil, l’oubli ou le revê. Ou lieu pour l’insomnie de celui qui regarde sans rien voir. Lieu pour
graver, dans son rythme insu, l’oubli même des rêves. Georges Didi-Huberman, La Demeure, La
Souche, p. 87.
82
imaginando o tempo todo o que poderia haver por lá: o lobo. São quartos de
suspiros pesados. Suspiros de quem é consumido por seus sonhos, que às vezes
parecem pesadelos. Os objetos e móveis que compõem os quartos parecem ter vida
própria, se movem transformando o cenário em um ambiente de destruição e
bagunça. A transformação deste ambiente representa o conflito interno vivido pelos
personagens. As coisas vão se destruindo e construindo, seus quartos se
transformam conforme as oscilações de suas tensões e angústias.
Com uma proposta distinta a casa também figura na obra da artista
Rochelle Costi
100
, que na década de 1990 produziu uma série de fotografias de
espaços domésticos [Fig.43] em que demonstra um interesse pelos lugares e
hábitos íntimos das pessoas, e também pela criação de ambientes. Sobre o trabalho
de Costi, Solana Guangiroli comenta que o interesse da artista está nos espaços
criados pelo homem para viver, sendo que em alguns de seus trabalhos ela toma
imagens de objetos e materiais banais coletados no ambiente em que vive. Estes
objetos estão na borda “entre o íntimo e o comum, que integram um imaginário
coletivo, e ao reconhecer-nos neles, podemos sentir-nos parte de uma mesma
sociedade”
101
.
Figura 43.
Rochelle Costi,
Quartos São
Paulo, 1998.
100
Natural de Caxias do Sul - RS, 1961; vive em São Paulo. Catálogo geral da II Bienal Mercosul, p.
240-241.
101
Solana Guangiroli, Memórias da Mesa, dissertação de mestrado, p.69.
83
A obra de Costi busca uma integração com o público, não apenas pela
identificação com as imagens, mas também pela forma como elas são expostas. A
artista conta que em alguns trabalhos utiliza aparatos ópticos, lentes, espelhos e
outros truques para tornar o espectador mais ativo. Nesta busca, uma das propostas
da artista foi ampliar as imagens fotográficas em escala real. Assim, a artista nos
apresenta, com seu trabalho, o entorno cotidiano, o espaço de uma casa como se
fosse a sua, quase no mesmo sentido de convidar-nos a entrar.
Por fim, o universo doméstico, como comenta Gustau Galfeti, integra um
“conjunto de rituais, ritmos pessoais e rotinas cotidianas; constitui o reflexo do
habitante, de seus sonhos, suas esperanças, suas tragédias e suas memórias. O
cenário onde transcorrem nossos dias é nosso auto-retrato em três dimensões”.
102
4.2 Corpos Fantasiados
Tal como a linha, o homem tem direito ao sonho.
Edith Derdyk
103
Ao realizar uma análise sobre o grafismo infantil, Edith Derdyk comenta
que para a criança de 18 meses é muito natural, ao desenhar, expandir seus traços
para fora dos limites do papel. Segundo a autora:
Aos poucos, a criança vai percebendo as bordas, as pontas, a existência do
campo do papel. Esse processo coincide, de certa forma, com sua própria
socialização. A criança passa a diferenciar o que existe fora e o que existe
dentro do papel e, similarmente, percebe o eu e o outro, o que é “meu” e o
que é do “outro”. O campo do papel se torna o campo do possível, do
devaneio, da invenção e também o campo da concretização de suas
carências e de seus desejos.
104
102
Livre tradução de: comporta un conjunto de rituales, ritmos personales y rutinas cotidianas;
constituye el reflejo del habitante, de sus sueños, sus esperanzas, sus tragédias y su memoria. El
escenario donde transcurrem nuestros dias es nuestro autorretrato em tres dimenciones.” Gustau
Galfeti, Mi casa Mi paraíso, p.13.
103
Edith Derdyk, Formas de Pensar o Desenho: Desenvolvimento do Grafismo Infantil, p.25.
104
Ibid., p.23.
84
Crescemos e encontramo-nos inseridos em uma sociedade marcada por
mudanças e misturas: culturais, de valores e paradigmas. Constantes alterações
implicam necessariamente na reabilitação do indivíduo ao seu meio. É ante esta falta
de identidade contemporânea que o ambiente doméstico, o interior do habitat
familiar, parece ser o lugar de reencontro do ser com as suas origens, com o seu
universo próprio e particular. Mas é também, ao mesmo tempo, um ponto de fuga
onde o indivíduo sente-se à vontade para suprir uma necessidade de alienação (ou
liberação) de toda esta angústia provocada pelo convívio social externo.
A identidade é formada nesta resposta de adaptação do ser ao mundo
que o cerca, num processo de dialogo e contraste. Buscamos reconhecer nossa
identidade na diferença. Cattani comenta a ambiguidade entre estranhamento e
identificação que nos provocam as obras que abrangem o corpo:
[...]
quando a obra coloca o corpo em questão, qualquer corpo, ela nos
interpela de modo específico. Trata-se de jogos especulares, nos quais nos
vemos no corpo figurado ou sugerido; corpos que se transformam, que se
desdobram em nossos corpos. Trata-se, ainda, de ambigüidades de
sentidos, no vai e vem entre o EU e o outro, que estabelecem múltiplas e
variáveis relações
105
.
Diante de uma figura de um corpo consideravelmente diferente do nosso,
pode-se perguntar: até que ponto somos semelhantes a estes corpos? Mas também,
quando este corpo é contraposto a um cenário naturalista, uma dúvida é pertinente:
afinal, porque esta substituição de corpos?
Substituído ou não, o corpo permanece, é presente. Mas encontra-se
modificado, transformado, fantasiado. É a idéia de um corpo, que não é um ideal de
um corpo. A figura destaca-se no espaço, o confronta, opõem-se a ele.
Se você me faz pensar em coisas profundas sobre mim, então eu também
sou você. Estamos sempre buscando algo de nós mesmos, algo de conhecido nas
coisas com as quais entramos em contato. Estar em contato com alguma coisa,
pessoa, ou objeto, é olhar para si mesmo, como se o outro fosse nosso espelho. Os
objetos nos transformam da mesma forma que o nosso olhar transforma os objetos.
Conforme Baudrillard, o objeto é aquilo que melhor se deixa personalizar
e “é no seu sentido estrito, realmente um espelho: as imagens que devolve podem
105
Icleia Cattani, Mestiçagens na arte contemporânea, p.30.
85
apenas se suceder sem se contradizer. É um espelho perfeito que não emite
imagens reais, mas aquelas desejadas.”
106
O autor nos propõe ainda que:
Admitamos que nossos objetos cotidianos sejam com efeito os objetos de
uma paixão, a da propriedade privada, cujo investimento afetivo não fica
atrás em nada àquele das paixões humanas, paixão cotidiana que
frequentemente prevalece sobre todas as outras, que por vezes reina
sozinha na ausência das outras.
107
Neste sentido é possível fazer uma relação da geometrização das figuras
em meu trabalho com os objetos que a cercam.
Figura 44. Eu só queria o teu fundo, Michele Martines, 2009.
106
Jean Baudrillard, O sistema dos objetos, p. 98.
107
Ibid, p. 98.
86
O conteúdo narcisista do trabalho evidencia-se no momento em que
fotografo imagens do meu habitat, que são espaços de referencia particular e
argumento que as figuras representadas estão substituindo a minha própria imagem,
em situações cotidianas. A priori não há nenhuma intenção de que estas figuras
pareçam-se comigo. No entanto, conforme meus desenhos vão sendo desenvolvidos
e à medida que busco desprender-me da referencia “picassiana”, percebo que
intuitivamente meus traços reais refletem-se nas figuras. Um exemplo disso está nos
olhares das figuras que compõem as ultimas obras realizadas: Não esquecer o
ursinho cego [Fig.40, p.77] e Eu observando minha figura [Fig.24, p.55].
No trabalho Eu queria o teu fundo [Fig.44, p.85], a figura “estilizada”
desenha um retrato naturalista, o que pode despertar a idéia de que as demais
pessoas que habitam o universo destes trabalhos não são figuras estilizadas. Talvez
porque a figura eu não seja ciente da própria imagem, ou por considerar-se
diferente imersa em um universo próprio, distante do mundo comum.
Ainda versando sobre a questão de espelharmo-nos, seja em figuras ou
em objetos e coisas com as quais em algum momento nos identificamos,
confundindo os limites de nossa própria identidade, uma personagem de minha
vivência cotidiana que sempre me intrigou é a minha avó materna. Dizem que ela foi
uma mulher muito bonita e vaidosa quando jovem. No entanto ao envelhecer
desenvolveu uma espécie de síndrome do pânico. É como se ela tivesse optado por
conservar na memória das pessoas que a conheceram na juventude sua imagem
daquele tempo.
Só por uma razão muito urgente ela sai de casa. Geralmente fica no
quarto. Lembro-me de ir visitá-la e ela me contar histórias como se estivesse falando
de uma vizinha, ou amiga próxima, mas que na verdade era a personagem de uma
novela. E quando ela me contava um sonho que havia tido naquela noite,
certamente este sonho tinha relação com a novela que ela estava acompanhando
pela Televisão.
Para mim ela personifica o mito de entrar para o aparelho televisor e
vivenciar as experiências das personagens como se fossem suas próprias
experiências reais. Fato que pode ser relacionado à idéia de simulacro difundida por
Baudrillard em meados dos anos 80: “já não imperativo de submissão ao modelo
87
ou ao olhar. <VOCÊS são o modelo!> <VOCÊS são a maioria!> Esta é a vertente de
uma sociedade hiper-realista, em que o real se confunde com o modelo”.
108
Conforme o autor nós não assistimos a um espetáculo, porque o
espetáculo é a própria realidade. A representação de experiências cotidianas nos
familiariza de tal forma com a obra assistida, que é como se estivéssemos revivendo
nossas próprias experiências reais, mesmo que estas sejam apresentadas de forma
idealizada.
Veio-me em mente a estória de Dom Quixote de La Mancha, do escritor
espanhol Miguel Cervantes. Dom Quixote era um homem em idade avançada
quando começara a ler romances sobre cavaleiros e dragões e apaixonou-se de tal
forma pelas estórias que passou a acreditar que era um cavaleiro e que poderia
realmente viver aquelas aventuras. O livro foi publicado pela primeira vez em 1605.
Qual é a diferença entre a “era do simulacro e da simulação” que vivenciamos e os
delírios quixotescos? Agora convivemos com aparelhos tecnológicos como a
televisão e o computador. Quixote tinha os livros. Transformar a própria realidade
em ficção, como forma de suprir desejos internos, é próprio da natureza humana.
Além da relação com os modelos presentes na mídia, também da minha
própria imagem só tenho acesso de forma ilusionista, e na maioria das vezes
espelhada o ver-se, vendo-se, é impossível. Quando olho um espelho de frente,
acredito estar me vendo, mesmo tendo consciência de que a mim apenas é possível
ver a minha imagem. E assim, poso em frente ao espelho, analisando minha própria
imagem, talvez até querendo parecer-me com os modelos que carrego em meu
imaginário.
Kátia Canton comenta que o artista, ao se auto-retratar, se expressa numa
tentativa de leitura e transmissão de suas características físicas e de sua
interioridade emocional. “O auto-retrato é o espelho do artista. Ali se reflete a própria
imagem assim como a imagem da arte e de um determinado contexto em que a obra
se inscreve”.
109
Desde meus primeiros trabalhos que tem a casa como temática, as
figuras femininas aparecem em minhas pinturas desempenhando atividades
cotidianas em um espaço que é íntimo meu. Ao elaborar esta proposta, parti do
princípio de que eu me projeto nas coisas com as quais me relaciono, seja a
108
Jean Baudrillard. Simulacros e Simulação, p. 42
109
Kátia Canton, Novíssima Arte Brasileira, p.68.
88
personagem de um filme, uma música, uma imagem estática ou uma série de outras
coisas que a mim são apresentadas. Sendo esta figura uma projeção minha, é como
eu me vejo.
Canton comenta ainda que a auto-imagem contemporânea não se
constroi como mera representação narcísica, ao invés disso,
[...] se ela se mantém como uma forma de reivindicar identidade, seu foco
está na produção de um estranhamento, uma sensação de incômodo
aquela reminiscente sensação de se olhar no espelho e não se reconhecer.
Essas emoções estão ligadas à situação do ser humano contemporâneo,
inserido numa sociedade de informação eletrônica e virtual, pressionado
pela mídia, sufocado pelas imposições velozes de tempo e espaço que se
configuram na realidade cotidiana das cidades.
110
Segundo Canton, o corpo na contemporaneidade “orquestra um jogo
multifacetado de conteúdos, manipula materialidades e emoções e, finalmente,
escapa de suas conexões mais imediatas com a realidade, assumindo contornos
rarefeitos, estéreos, artificiais e, muitas vezes, irônicos.”
111
Assim o corpo passa a
expressar comentários sobre sexo, morte, religião, decadência, espiritualidade,
situações e anseios que permeiam a vida contemporânea.
Figura 45.
Cindy Sherman
Untitled Film Still #3,
1977
Refletindo algumas destas questões, a artista norte-americana Cindy
Sherman produz obras fotográficas onde ela mesma aparece incorporando
personagens clichês de estereótipos femininos [Fig.44]. A artista literalmente veste
110
Kátia Canton. Novíssima Arte Brasileira, p. 68.
111
Idem, p.52.
89
as fantasias criadas pela mídia, revelando, segundo Klaus Honnef, “o poder das
imagens tecnológicas sobre a consciência e o comportamento humano; as suas
obras constituem um reflexo exemplar do onipresente mundo dos media
comerciais,”
112
O mesmo autor diz, sobre a obra de Sherman, que:
Contudo, as suas obras não traduzem auto-admiração ou vaidade. A atriz
interpreta sempre novos papéis, papéis esses que são arquétipos
femininos veiculados por filmes e revistas ilustradas e determinados pela
sociedade, que impõe determinados modelos de comportamento
principalmente à mulher e que, na sua maioria, se tornaram rígidos
chavões.
113
Sherman faz uso da própria imagem, porém vestindo a fantasia de
modelos conhecidos do público. Simula uma pintura clássica ou a cena de um filme,
posando no papel da figura principal da imagem reproduzida. Em meu trabalho
ocorre o contrário. As figuras representadas é que aparecem como se estivessem
simulando cenas do meu dia-a-dia. Oculto a imagem realista do meu corpo,
substituindo-a por outra, representada, inventada.
Mas nesse mostrar-se e esconder-se, de maneira artificial, caracterizada
pela manipulação evidente das imagens, são expostas preocupações e desejos
muito íntimos. Conforme salienta Canton, a memória corporal torna-se, na arte
contemporânea, um bem incomensurável de riquezas afetivas, que o artista desnuda
e oferece ao espectador com a cumplicidade e a intimidade de quem abre um diário.
112
Klaus Honnef, Arte Contemporânea, p. 83.
113
Ibid.
90
4.3 Pintura na Parede e Paredes da Pintura
Um quadro dentro de um quadro diz respeito a um espaço dentro de outro
espaço. A série Ambiências na Parede traz imagens de interiores que
eventualmente apresentam outras imagens (pinturas) compondo o cenário. Por
vezes uma obra que compõem a própria série aparece como alegoria de um
trabalho realizado posteriormente. Assim as obras vão tendo desdobramentos à
medida que uma faz referencia a outras. Este assunto é abordado de forma bastante
interessante no livro do escritor francês Georges Perec, intitulado “A coleção
particular”.
Esta obra literária conta a estória de um quadro que representa outros
quadros. Uma pintura que foi encomendada por um colecionador de arte: Hermman
Raffke, a um pintor: Heinrich Kurz. Nela o pintor retratou um ambiente onde estavam
expostas as cem pinturas favoritas do colecionador. O trabalho, em perspectiva,
representa uma vasta peça retangular, sem portas nem janelas aparentes, cujas três
paredes visíveis são totalmente cobertas de quadros. Apresentando assim um amplo
panorama da coleção de Raffke, que também é retratado no quadro.
A pintura cita também, entre as muitas obras, ela mesma. Ou seja, a
pintura de Kurz também é reproduzida entre as obras expostas no ambiente. E
nessa reprodução uma outra reprodução. Assim seguem sucessivas e infinitas
reproduções até o limite permitido pelo olho e pelo pincel. Nas palavras de Perec, “a
obra oscila num universo propriamente onírico, no qual seu poder de sedução se
amplia até o infinito e no qual a precisão exacerbada da matéria pictórica, longe de
ser seu próprio fim, deságua subitamente na Espiritualidade do Eterno Retorno.”
114
Neste ponto Perec coloca um questionamento interessante para se pensar
na arte contemporânea,
[...] a obra era uma imagem da morte da arte, uma reflexão especular desse
mundo condenado a repetição infinita de seus próprios modelos. E essas
variações minúsculas, de cópia a cópia, que tanto haviam exacerbado os
visitantes, eram talvez a expressão última da melancolia do artista: como se,
pintando a própria história de suas obras através da história das obras
114
Georges Perec, A coleção particular, p.18.
91
alheias, tivesse conseguido, por um instante, contrariar a “ordem
estabelecida” da arte e reencontrar a invenção além de enumeração, a
manifestação espontânea além da citação, a liberdade mais além da
memória.
115
Esta passagem do texto pode ser relacionada à ideia defendida por Arthur
Danto sobre o fim da História da Arte, quando ele discute as profundas
transformações ocorridas na arte a partir da década de 60, mais especificamente
com o surgimento da Arte Pop e Andy Warhol. Para o autor “sempre é possível aos
artistas uma apropriação das formas da arte passada e o uso, para seus próprios
fins expressivos”
116
. O autor justifica que prefere chamar a Arte Contemporânea de
Pós-histórica, por ela ser “menos um estilo de fazer arte do que um estilo de usar
estilos”
117
e mesclar ainda mais os limites entre arte e vida (questão que havia
sido abordada pela Arte Moderna), tendo, também, objetos comuns transfigurados
em arte.
Perec faz outro apontamento em que podemos refletir sobre a questão da
apropriação na arte, quando diz que a Coleção Particular, quando exposta, provocou
fascínio sobre o blico que a apreciava. Mas sobre este fascínio o autor questiona
se o que o público tanto admira no quadro seria o gênio dos pintores citados ou a
vigorosa transposição que Kürz logrou.
118
Questões semelhantes surgiram
durante minha práxis, principalmente com relação aos trabalhos da série Fantasias
do Cotidiano, que traziam imagens de nus femininos retiradas de obras pictóricas da
História da Arte. Este apontamento é pouco relevante no panorama da Arte
Contemporânea, em que o encantamento da técnica (como alguém conseguiu fazer
isso?) perdeu lugar para as “grandes sacadas” (como ele conseguiu elaborar isso?).
Ainda assim, ficam questionamentos como o exemplo bastante citado por Danto: Por
que a Brillo Box de Andy Warhol é arte e as Brillo Boxes vendidas no mercado não
são?
Apropriar-me é eleger algo: uma figura, uma frase, um espaço. Segundo
Icléia Cattani, “por trás desse princípio de apropriação, estão presentes o artista, sua
história pessoal, a história maior, na qual ele se encontra inserido, e sua
115
Georges Perec, A coleção particular, p.25.
116
Arthur Danto, Após o fim da Arte, p. 220.
117
Ibid, p. 12.
118
Georges Perec, Op. Cit., p.17.
92
circunstância”.
119
Em meu trabalho, para definir a composição, minhas decisões são
tomadas com base em aspectos do que observo na busca de um ângulo que julgo
interessante do ambiente natural da casa. Portanto, um direcionamento prévio,
dentro de um certo âmbito de intenções. Depois de observar e de selecionar os
elementos observados no contexto cotidiano, aproprio-me desses elementos
associando-os e articulando-os no plano pictórico.
A imagem da minha casa, dentro de uma pintura, poderia ser qualquer
casa. Mas quando aparecem minhas pinturas compondo o cenário, isso é algo que
diferencia a minha casa de outras casas. Ressurgem, nestas obras, pinturas
anteriores; porque ali elas estavam no momento da fotografia, mas também porque
assim eu queria que fosse.
Uma tela dentro de uma tela é algo presente também na poética do pintor
belga René Magritte. Em A Condição Humana [Fig.46], Magritte pintou a imagem de
uma janela, à sua frente está um cavalete que contém uma pintura exatamente igual
à paisagem por de trás (na janela). A pintura e a paisagem se encaixam, dificultando
a nossa percepção quanto ao que seria quadro ou “realidade”.
Ambas são ilusões perfeitas, cópias fiéis de paisagem. Mas ao mesmo
tempo, ambas são pinturas. Tinta sobre tela. Aqui a semelhança é usada
para expulsar a própria semelhança. Tela e realidade confundem-se. Mas
reforçam a idéia de que, de fato, elas se confundem porque ambas são
uma pintura.
120
Figura 46.
René Magritte,
A condição humana,
1935.
119
Icleia Cattani, Imagens Mestiças, p.92.
120
Paulo Menezes, A Trama das Imagens, p.234.
93
Magritte representa um quadro dentro de outro quadro com a intenção de
mais uma vez trazer a tona a sua maior inquietação como artista: a capacidade de
trair a realidade, e relembrar que numa pintura tudo é pintura.
No trabalho Pintura de cavalete [Fig.47] um cavalete é representado sobre
a parede através do desenho com as fitas de adesivo preto, sobreposto a ele uma
pintura “real” é representada seguindo a ilusão perspectiva das linhas do desenho. O
cavalete está, a meu ver, representado de modo a fundir-se ao espaço comum da
parede. Assim como na obra de Magritte, aqui a pintura está representando uma
pintura. Porém Magritte contrasta a pintura representada com a própria pintura,
causando intencionalmente certa confusão ao observador. Aqui faço o contrário,
saliento, diferencio a natureza dos dois espaços através da distinção entre os
procedimentos.
Figura 47.
Pintura de Cavalete,
Michele Martines,
2009.
94
No livro A coleção particular, Perec comenta que o tipo de pintura
comumente chamado de “coleção particular” foi uma tradição nascida na Antuérpia
em fins do século XVI, e que perpetuou-se ininterruptamente através das principais
escolas europeias até meados do século XIX.
Na História da Arte encontramos registros de algumas pinturas que
exemplificam bem a tradição que inspirou Perec a escrever sua trama. É o que
podemos observar na obra Galeria de Cornelis van der Geest [Fig.48], do pintor
holandês Willen van Haecht. Em 1628 van Haecht foi contratado por Cornelis van
der Geest, um rico comerciante da Antuérpia, e também colecionador de arte. Van
Haech retratou a galeria de arte de Cornelis enquanto era visitada por pessoas
importantes da sociedade. No retrato da extensa coleção podemos reconhecer
desde cópias de famosas esculturas antigas até pinturas de Rubens,
contemporâneas de quando a obra foi executada
121
.
Figura 48. Willen van Haecht, Galeria de Cornelis van der Geest, 1628.
Acredito que estas obras que fazem referência a tantos outros quadros
possuam um caráter enigmático dado pela associação dos muitos significados, e
pela curiosidade despertada por cada imagem. Colocando o espectador na mesma
situação de Édipo diante da esfinge, com seu enigma: “Decifra-me ou devoro-te”. E
121
http://www.wga.hu/frames-e.html?/html/h/haecht/gallery.html - consultado em 16/02/2009.
95
neste “decifrar” entram os conteúdos diversos, significados que estão presentes
históricamente, ou outros, pessoais do espectador e, muitas vezes alheios a
intenção do artista, pois existem imagens que sugerem ideias. O que está dado traz
em si também conteúdos e significados dados, pré-existentes à instauração da obra.
Segundo Perec, “A par da própria noção de museu e, com certeza, de quadro como
valor venal, o princípio inicial da “coleção particular” fundava o ato de pintar numa
“dinâmica reflexiva” que hauria suas forças na pintura alheia.”
122
Quando se fala em um lugar onde estão expostas obras de arte,
geralmente associamos este lugar a um museu. Pesquisando artistas referenciais
para meu trabalho, deparei-me com a obra “Gonper Museum” [Fig.49], do artista
brasileiro Fabiano Gonper. Trata-se de uma espécie de museu particular em
processo. O artista vem desenvolvendo esta obra, em construção, desde 1998 e aos
poucos vem se utilizando de vários meios para existir. “A obra de Fabiano Gonper
prescinde de um espaço para ser exposta. Ela é seu próprio espaço. Trata-se de um
museu ocasionalmente instalado em uma instituição "hospedeira"”
123
. O artista
instala no local de exposição linhas sobre as paredes, em perspectiva, que recriam
uma espécie de museu dentro dos próprios museus e instituições culturais que
ocupa.
Figura 49. Fabiano Gonper, Gonper Museum, 2003-8.
122
Georges Perec, A coleção particular, p.22.
123
Texto de Juliana Monachesi, no folder da exposição individual de Fabiano Gonper na Temporada
de Projetos do Paço das Artes em março de 2004.
96
O desenho perspectivo na parede, traçado com linhas firmes e duras é
análogo ao que realizo em minha proposta. Entretanto, ao contrário da obra de
Gonper, em meu trabalho o desenho na parede é a continuação da imagem
representada na tela, que é recortada, não há separação entre tela e desenho. Já os
quadros que compõem a obra de Gonper são instalados como se estivessem
expostos nas paredes ilusórias desenhadas no espaço real.
Dentro deste “museu” inventado, Gonper coloca seus desenhos e
trabalhos, assim como de artistas convidados por ele, como se fizessem parte da
coleção de seu próprio museu imaginário.
O museu não é o lugar de origem da obra, a obra de arte não nasceu para
estar num museu. Este é um fenômeno do século XIX, gradativamente a obra é feita
para estar no museu. A proposta do Gonper Museum, assim como A coleção
particular, pode ser relacionada à idéia de museu particular é o espetáculo de
imagens que cada um pode agrupar, organizar, formar. Cada um é seu próprio
curador. A ideia de um museu particular de imagens, de um museu imaginário que é
formado pelo que conhecemos mesmo sem ir a um museu, ou seja, conhecemos
pela reprodução, pela biblioteca, pela internet, etc. Assim, temos o privilégio de
conhecer obras distantes no espaço e no tempo. Não podemos comprar a obra, mas
podemos ter a imagem. A reprodução não rivaliza com a obra, mas a evoca.
124
124
André Malraux, O Museu Imaginário.
97
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No primeiro momento desta pesquisa, trabalhei com a ideia de dar
sequência à imagem representada na pintura, instalando parte da obra na parede.
Mas apenas com a ideia, sem executá-la. Ao realizar a montagem do primeiro
trabalho percebi que, numa pesquisa poética, grande parte das perguntas e
respostas surge nesses momentos de contato com a obra. Foi após esta montagem
que decidi fixar a tela diretamente na parede, sem chassi, e recortar partes da
pintura, contornando alguns objetos, com o objetivo de obter maior integração entre
as partes do trabalho.
Embora existam tempos distintos no processo de instauração das “partes”
destes trabalhos, percebi que eles devem ser pensados em sua totalidade desde o
princípio do fazer. Desde a escolha do “canto” da casa a ser fotografado,
pensando nos recortes da tela, nas linhas da parede.
Em outro momento de observação da obra instalada, surgiu à vontade de
elaborar trabalhos maiores, ocupando a parede do teto ao chão, com o intuito de
tornar mais sensível à percepção da obra no espaço em que é instalada. As
alterações que o trabalho sugere quando observado demonstram o quanto o
processo de criação em artes visuais realmente resulta de um diálogo constante e
reflexivo entre o artista e a obra.
Em minha práxis, a contraposição de elementos distintos é presente
desde início de minha atividade artística. Com o tempo, os trabalhos plásticos vão
exigindo renovações. Assim, a série Ambiências na Parede foi elaborada a partir da
vontade de combinar diferentes sistemas de representação sobre um plano
bidimensional, e ao recortar partes da pintura e realizar parte do trabalho
diretamente no plano da parede outros aspectos somaram-se ao interesse inicial de
meu fazer artístico.
É natural que os trabalhos plásticos sugiram novas possibilidades de
formação. Neste sentido, Ambiências na Parede é, sem duvidas, um desdobramento
da série Fantasias do Cotidiano (2005-2007). No entanto, recordo-me que ao
finalizar cada pintura da rie Fantasias do Cotidiano, tinha a sensação de ter um
98
trabalho bem resolvido, finalizado. As obras da série atual não me causam esta
sensação pois suscitam-me muitas alternativas de composição. De modo que, neste
momento de conclusão do curso de Mestrado, percebo o resultado final desta
pesquisa – os oito trabalhos plásticos que apresento – como o início de um percurso,
ou uma série.
No texto, a ênfase de minha poética centrou-se nas diferentes concepções
espaciais que as obras apresentam e/ou sugerem: os espaços representados, a
relação da obra com o espaço comum e a reflexão sobre os ambientes do próprio
habitat. A aproximação com trabalhos de outros artistas foi realizada buscando
semelhanças e contrapontos com minha proposta. Seja por aspectos formais, ou
pela proximidade das questões investigativas, um dos intuitos desse tipo de diálogo
é o de encontrar, na complexidade das propostas de outros artistas, a complexidade
de minha própria produção revelada.
Minhas buscas e questionamentos sobre os entendimentos do meu
trabalho foram fomentadas por novas especulações e possibilidades. Nas palavras
de Edith Derdyk, a “imagem final é, sem dúvida, o reflexo de todo o processo de
pesquisa da transformação continua da imagem. A obra não é algo totalmente
definitivo, é sempre um passo adiante. Sempre existe um além.”
125
Entendo este
além como as inúmeras variantes que podem nascer a partir da série iniciada e
também como a atuação do espectador ao interpretar a obra.
Algumas dúvidas, que permanecem em aberto, encontrarão respostas
no enfrentamento dos conflitos, incertezas e subjetividades que permeiam o
processo poético de criação artística, ou seja, na continuação deste fazer. Na
experimentação das possibilidades de desdobramentos que os trabalhos sugerem:
“E se o desenho na parede for gradualmente desconstruindo a ideia de perspectiva,
ao invés de dar continuidade?”; “E se eu incluir papel de parede e colagens na
composição das obras?”; “E se eu buscar mais a marca do pincel, a gestualidade?”;
“E se a pintura fosse fragmentada, ao invés concentrar-se em uma área do
trabalho?”...
125
Edith Derdyk, Formas de pensar o desenho, p.184.
99
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história através dos objetos cotidianos. Dissertação (Mestrado) – Instituto de
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