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Norma Maria Mobilon
Cor e imagem impressas:
desdobramentos de um estudo em azul
São Paulo
2010
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Norma Maria Mobilon
Cor e imagem impressas:
desdobramentos de um estudo em azul
São Paulo
2010
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Norma Maria Mobilon
Cor e imagem impressas:
desdobramentos de um estudo em azul
Dissertação apresentada ao Departamento de Artes Plásticas
da Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Artes
Visuais, Área de Concentração Poéticas Visuais como
exigência parcial para obtenção do Título de Mestre em
Artes, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Cláudio Mubarac.
São Paulo
2010
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fi ns de estudo ou pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação da Publicação
Banca Examinadora
------------------------------------------------------------------------------
Prof. Dr. Luiz Cláudio Mubarac
------------------------------------------------------------------------------
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Resumo
Esta dissertação é parte inseparável da caixa-portfólio na qual
encontra-se anexada, cujo conteúdo, constituído de quinze
estampas originais em pequenas dimensões, apresenta-se como
uma síntese da produção visual (em torno de oitenta estampas)
realizada no período de 2006 a 2010. Tendo como suporte a gravura
em metal, a produção desdobrou-se a partir do embate entre a
cor e a imagem impressa. Ao utilizar a cor impressa ― a partir dos
azuis com foco em sua luminosidade e opacidade, produziu-se
um local singular para a imagem, que se encontra imersa na vibração
da cor. Ao transitar pelas luminosidades limítrofes dos azuis e de
suas intensifi cações, passando pelas penumbras violáceas até
os negros; ao imprimir imagens e planos sobre a semiescuridão,
encontramos vestígios de luz, vestígios de imagens. uma
proposição perceptiva em andamento que conduz o olhar a uma
experiência temporal. Nesses locais luminosos onde a imagem se
oculta, quase desaparece e às vezes se ausenta podemos refl etir
sobre o papel da imagem nos campos de cor.
Palavras–chave: cor, imagem, gravura, azul, metal, duração.
Abstract
This dissertation is an inseparable part of the portfolio box in
which it is attached, whose contents consist of fteen original
prints in small sizes which presents itself as a synthesis of visual
production (around eighty prints) conducted from 2006 to 2010.
Having the engraving as a support, the production unfolded as
a result from the clash between the color and the print image.
By using the color printed from the blue with a focus on
its luminosity and opacity, there has been a natural place for
the image, which can be found immersed in the vibration of
color. While transiting the luminosities of the blue border and
its enhancements, passing through the violet shadows to blacks,
and plans to print pictures on the demi-darkness, we fi nd traces
of light and traces of images. There is a perceptual proposition
in progress that leads the eye to a temporal experience. In such
places where the bright image is hidden, almost disappears and
sometimes is absent, we can refl ect about the role of image in
the fi elds of color.
Keywords: color, image, engraving, blue, metal, time.
Sumário
1 Introdução ..................................................................................................................7
2 Da transição dos negros para a cor ..................................................................9
2.1 O azul como primeira derivação dos espaços noturnos e o
embate entre cor e imagem ................................................................................9
3 Dos procedimentos e outras considerações ...............................................10
4 Do embate entre cor e imagem desdobram-se 5 grupos de gravuras:
4.1 SORRISO ..................................................................................................................12
4.2 AZULEJOS ................................................................................................................13
4.3 JANELAS E PAISAGENS .......................................................................................15
4.4 IMAGENS EVANESCENTES ................................................................................17
4.5 ESCURIDÃO
1/3 de como representar uma noite .............................................................18
2/3 furta-cor ...........................................................................................................19
3/3 a presença fantasmática da imagem ....................................................20
5 NEGRO ......................................................................................................................21
Posfácio
Considerações sobre a imagem .....................................................................21
Apêndice .................................................................................................................22
Bibliografi a ..............................................................................................................26
Gravuras ...................................................................................................................27
Exposição ................................................................................................................38
Agradecimentos ....................................................................................................40
7
C
or e imagem impressas: desdobramentos de um estudo em azul
Os efeitos de uma obra nunca são uma consequência simples
das condições de sua produção. Ao contrário, pode-se dizer
que uma obra tem como objetivo secreto levar a imaginar uma
produção dela mesma, tão pouco verdadeira quanto possível.
Paul Valéry
1
Introdução
O primeiro contato com a arte foi através da pintura. Os inúmeros
autorretratos realizados entre 1983 e 1996 são testemunhos
desse envolvimento. Munch, Matisse e os expressionistas
alemães eram minhas referências. Havia um constante embate
entre a imagem e o espaço, entre a gura e a paisagem. O
contato com a natureza no antigo estúdio na chácara de meus
pais favorecia o mergulho na luz cambiante e inapreensível, nos
azuis mais raros. Era satisfatório apenas contemplá-los. Em 1987,
houve um breve contato com a gravura em metal no ateliê do
Museu Lasar Segall. No período, produzi algumas pontas-secas.
1 Paul Valéry, Variedades.
8
Em 1999, quando participei do Projeto Arte e Movimento, fui
orientada por Marcello Grassmann. Durante quinze intensos
dias, retomei o contato com a gravura. As gravuras desse
período apresentam uma guração imersa em grandes áreas
de planos negros e manchas luminosas obtidas através dos
procedimentos da água-tinta. A atração pelos planos de água-
tinta indicou, posteriormente, uma possível mudança de rumo.
A aproximação com a cor se deu primeiramente com a utilização
de papéis coloridos, depois com a impressão utilizando outros
pigmentos além dos pretos até a resolução de imprimir os
planos com cores francamente luminosas. A presente pesquisa
representa uma retomada não da pintura da experiência
que só a cor pode proporcionar. É justamente ao operar através
dos meios gráfi cos que a cor parece se afi rmar em sua plenitude.
Isto explica, em considerável medida, a preferência de Albers
2
pela utilização de papéis impressos e pela serigrafi a para os seus
2 [...] Em nossos estudos prefere-se o papel colorido à pintura por várias
razões de ordem prática. O papel proporciona inumeráveis cores, dentro
de uma extensa gama de matizes e tintas, dispostas para seu uso
imediato [...] Quais são as vantagens de trabalhar com papel colorido?
Primeiro, o papel colorido evita a mescla desnecessária das pinturas,
que frequentemente resulta difícil, lenta e fatigante, não somente para
os principiantes. Segundo, ao expor os estudantes aos fracassos
desalentadores da mescla e da coordenação imperfeita de pinturas e
papéis danifi cados, não somente perdemos tempo e material como
também, o que é mais importante, ganhamos em interesse ativo e
continuado. Terceiro, o papel colorido possibilita o emprego repetido de
exatamente a mesma cor sem a menor variação de tom, luminosidade
e qualidade de superfície. Josef Albers, La Interacción del Color, p. 18,
tradução nossa.
experimentos cromáticos. O jogo entre cor e imagem gerou um
embate. De tal confl ito desdobrou-se uma produção e questões
que se insinuavam na produção anterior. Essa experiência com
a cor saturada parece atingir os limites de suas possibilidades
gráfi cas. A cor determinou outra guração e outra localidade para
ela. Este “lugar” não poderia ser apenas cenário para acomodar
a imagem. Deveria ser um local continuamente descoberto,
entrevisto, percebido vagamente, iluminado ou transmutado
em penumbra e escuridão. Um local no qual refl etiríamos sobre
o papel da imagem nos planos de cor intensa, não isentos de
carga simbólica.
A cor segundo uma afi rmação de Josef Albers é o mais
relativo dos meios empregados pela arte. A imagem nesta
pesquisa procura espelhar a mesma relatividade num mesmo
estado quase inapreensível.
9
Da transição dos negros para a cor
De 1999 a 2006, os negros, as manchas luminosas e a linha
incisiva da ponta-seca foram constantes em minha produção
gráfi ca. As cores apareceram na sequência de uma expansão das
áreas negras com uma consequente redução da mobilidade da
imagem e de sua presença. As imagens reduziram-se a pontos de
luz na trama escura. “Enquanto um campo escuro se alonga em
direção a alguma profundeza, pequenos brilhos nos lembram os
vestígios da luz, mas vestígios ali, no escuro...
3
Os negros, cuja
opacidade remeteu à ideia de uma espacialidade, constituíram o
principal estímulo para as experiências com a cor impressa.
3 Milton José de Almeida em fragmento do texto de apresentação do
catálogo da exposição de Norma Mobilon na Galeria de Arte do Espaço
CEMIG, Belo Horizonte, 2005.
O azul como primeira derivação dos espaços noturnos e o
embate entre cor e imagem
Ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, considero
que a cor tem uma força muito mais misteriosa e talvez mais
dominadora: ela atua, por assim dizer, à nossa revelia...
Eugène Delacroix
4
No início das experiências com a cor impressa, em meados de
2006, o trabalho centrou-se sobre a cor azul e suas relações e
aproximações com os pretos. Durante as primeiras impressões
de imagens sobre papéis azuis e, em seguida, sobre os planos
impressos em cor azul, foram observados alguns efeitos
instigantes que serão abordados ao longo da exposição deste
trabalho. Efeitos ou eventos que constituíram o início de uma
pesquisa gráfi ca em cor.
Logo nas primeiras impressões em preto sobre azuis intensos como,
por exemplo, o azul-ultramar e o azul-da-Prússia ― fi cou claro que o
4 Eugène Delacroix, Diário (extractos).
10
trabalho operava ainda na dimensão de certa escuridão luminosa.
5
Naturalmente, houve um retorno aos negros. A trilha percorrida foi
a dos vestígios da luz na aparente escuridão. A busca dos limites
dessa luminosidade na obra impressa direcionou o trabalho.
Surgiu uma questão durante a transição de um trabalho gurativo
voltado para os contrastes de preto e branco para um
trabalho que se constrói a partir de planos de cor: a persistência
da imagem... e qual papel a imagem desempenharia a partir daí?
Essa questão tornou-se mais enigmática a cada nova experiência, e
em alguns momentos levou a um verdadeiro impasse. Iniciou-se um
embate entre a presença física da cor, sua volumetria e a imagem.
5 “Assim como o amarelo sempre implica uma luz, pode-se dizer que o azul
sempre implica algo escuro [...] se sabe como é deduzido do preto.”
Johann Wolfgang von Goethe, Doutrina das cores.
Dos procedimentos e outras considerações
Nesta pesquisa as cores não foram obtidas através de impressão
tri ou policrômica,
6
o jogo restringiu-se às sobreposições de
tonalidades próximas.
Os procedimentos calcográfi cos possibilitaram a obtenção da
desejada densidade cromática; é com essa linguagem que o
trabalho se desenvolve.
7
A água-tinta proporcionou a solução para os planos de cor. No
entanto, como algumas cores são mais transparentes que outras,
houve necessidade de aliar a água-tinta a um entintamento e
uma limpeza adequados da respectiva matriz. As transparências
foram desejadas nos planos de sobreposições apenas nas
matrizes que contêm barras e imagens.
6 A invenção da gravura à cores por Jakob Christoph Le Blon, no culo
XVIII [...] preparou o caminho para a teoria das cores primárias e
complementares que ainda não estava defi nitivamente formulada.
Utilizando três chapas com as três cores primárias; vermelho, azul
e amarelo, superpondo-as, foi possível reproduzir todas as cores do
espectro. Michel Pastoureau, Blue: The History of a Color, p.120 -121,
tradução nossa
7 A gravura em metal opera por profundidades, seja as da incisão da
linha gravada a buril ou ponta-seca, ou as obtidas através de mordentes
como na água-forte e na água-tinta, ou de qualquer intervenção sobre a
superfície do cobre
11
Na experiência com os pretos foi possível observar que, através
das interações de diferentes tonalidades — diferentes azuis
acrescidos de preto —, constituíam-se as profundidades, o
que se mostrou bastante desafi ador. Foram utilizadas tintas
apropriadas para talhe doce: azul-ultramar, azul-da-Prússia,
azul-cobalto, azul-cerúleo e azul-ocean; assim como pretos,
branco-de-zinco, vermelho e magenta.
Uma das questões iniciais suscitadas pelas experiências diz
respeito a um fenômeno observável quando se imprime uma
imagem em preto sobre um plano azul-ultramar
8
saturado. A
imagem perde defi nição, é envolvida pela luminosidade da cor,
quase desaparece ou torna a sua percepção difícil. Esse efeito
gerou outra questão de interesse para a pesquisa: os limites da
visibilidade da imagem (o seu quase desaparecimento). Essa
presença furtiva da imagem ocorria nas gravuras anteriores
através de veladuras, tramas e da transição das áreas luminosas
às áreas negras. Ao abandonar a esfera das relações abstratas,
a imagem parece situar-se nas dimensões fenomenológicas da
cor. Instaurou-se outro dinamismo. Nesse processo, o interesse
por algumas teorias e tratados sobre cor foi natural e, muitas
vezes, inevitável.
8 “El azul oferece, en cambio, buena memória para las formas y escassa
visibilidad para el color, aunque suas radiaciones posean el maximo
campo de visibilidad en la retina.” S. Fabris e R. Germani, Proyecto y
Estética en las Artes Gráfi cas, p. 100.
Do embate entre cor e imagem desdobram-se cinco grupos
de gravuras:
SORRISO
AZULEJOS
JANELAS E PAISAGENS
IMAGENS EVANESCENTES
ESCURIDÃO
Os respectivos grupos (ou sequências) constituíram-se ao longo
da produção como os afl uentes de um rio. No início, o trabalho
era produzido ao sabor da experimentação; a paleta apresentava-
se tão surpreendente quanto os efeitos das imagens impressas.
As imagens eram dispostas no chão em diferentes combinações.
Apresentavam-se como uma Babel de azuis, pretos e imagens
de vibrações diversas e luminosidades variáveis. Antevia-se um
grande painel, mas que necessitaria de uma orquestração. Ao
eleger uma ou outra imagem, intervir nas matrizes, construir
com imagem e plano, retirar a imagem, intensifi car os azuis, um
pensamento imagem/cor se delineou. Aos poucos, aquele painel
indeterminado encontrou o seu uxo. As imagens/cor foram
12
separadas por grupos e, como tais, adquiriram signifi cados
próprios, inseridas em seus específi cos habitats luminosos. Uma
vez sequenciadas, foi possível estabelecer uma certa previsão,
tal qual uma vista aérea que permite delimitar os terrenos ainda
não explorados e os limites das investidas.
Toda a produção de imagens nesta pesquisa é consequência de
uma demanda do grupo ou sequência. Basta variar os elementos
e um mundo se instala. Quando a imagem desaparece (ou quase),
ou ainda quando interage com planos e cores, um evento se inicia.
SORRISO
variações de azul sobre um mesmo tema
...tous ses dents étaient des idées. Des idées!
Edgar Allan Poe
9
As primeiras experiências com a cor e a imagem impressas
compõem a sequência denominada SORRISO. Trata-se de
uma matriz trabalhada a água-forte, água-tinta e ponta-seca,
anteriormente impressa apenas em preto, produzida durante o
período das gravuras negras (de 1999 a 2006). É possível afi rmar
que quase todas as tonalidades de azul encontradas nas outras
sequências estão presentes neste conjunto. Esta é uma gravura
que contém uma única área que se reserva da trama fechada.
A primeira e instigante impressão da matriz em preto sobre
um plano impresso em azul-ultramar fez oscilarem as linhas da
imagem. Essa (aparente) fuga da imagem do campo visual foi o
estímulo para a pesquisa com a cor azul subsequente. SORRISO
(variações de azul sobre um mesmo tema) apresenta-se como
uma pequena janela ou abertura que permite a passagem da
luz. Esta luz vem e invade não por entre os dentes, mas através
de toda a arcada.
9
Edgar Allan Poe, Contos de terror, de mistério e de morte, “Berenice”, p. 19.
13
É um acender e apagar de luzes. É penumbra. É incerto situar este
sorriso. Está no plano... está além... e aquém.
10
Esta constatação
conduziu a Albers, inicialmente através de duas de suas
serigrafi as, Nº VII e X do portfólio Variants
11
, com interações
de vermelhos e azuis respectivamente e posteriormente à sua
“Interação da Cor. O desejo era compreender alguns fenômenos,
como o das luminosidades iguais ou quase-iguais.
12
10 Segundo Josef Albers, há duas condições para se obter uma volumetria
cromática total, uma das quais afi rma que “o plano do quadro pode ser
interpretado tanto como profundidade ou rebaixamento além quanto
como emergência e progressão aquém do próprio plano”. Citado por
Giulio Carlo Argan, Arte Moderna, p. 615
11 Fritz Eichenberg, Masterpieces of Lithography & Silkscreen
12 No capítulo intitulado “Intensidade luminosa igual, limites desvanecidos”,
Josef Albers afi rma que “esse surpreendente fenômeno, o mais
apaixonante de todos os efeitos cromáticos, depende, como todos os
demais, de certas condições […] Está restrito às cores vizinhas, adjacentes,
e depende decisivamente da igualdade de intensidade luminosa.
Somente uma verdadeira igualdade de claridade ou uma igualdade de
escuridão produz o efeito buscado”. Albers nos adverte que “poucas
pessoas, inclusive muitos coloristas e pintores, viram alguma vez duas
cores adjacentes de valor luminoso verdadeiramente igual”, e mesmo
nas experiências realizadas por seus alunos não foi possível afi rmar com
certeza sobre o resultado obtido. Portanto, nos casos de difícil decisão,
Albers e seus alunos denominaram os efeitos aproximados intensidades
luminosas quase-iguais. La Interacción del Color, p. 84, tradução nossa
AZULEJOS
imagem suspensa no plano/cor
Um exemplo de elemento espacial é o de uma mancha difusa,
como uma nuvem, feita com o pincel cheio de tinta variando
a intensidade.
Paul Klee
13
A nuvem aqui não é feita apenas com o pincel, nem paira isenta
sobre a imensidão azul. A nuvem é um sopro. São grãos de breu
tocados pelo pincel embebido em percloreto de ferro (lavis).
O controle das intensidades se lentamente, olhando-se o
relógio, verifi cando as áreas que escurecem. A nuvem, neste
caso, é um hálito. O hálito é uma cor. Escapa de uma arcada, seca
em suas linhas mínimas. E só. Nada mais paira no azul. Abre-se
uma arcada e dali escapa uma nuvem de breu, convertido em
cor sobre cor, que também é grão.
Um crânio de perfi l composto de pontos apresenta-se estático na
lateral direita do plano azul. Quase se dissolve para, em seguida,
mimetizar algo como um espanto; a arcada inferior quase
desaparece. Numa suposta queda, parece se deixar absorver
pela cor. A imagem opera como um vestígio, e esta confi guração
foi determinada pela cor. A cor, em sua volumetria, produz outro
pensar gurativo. A cor não se aplicaria aqui como volume de um
13 Paul Klee, Sobre a arte moderna e outros ensaios
14
objeto justaposto ao volume de um plano. Tal construção não
corresponderia ao pensamento gráfi co que se desenvolve.
Certa
utuação da imagem e aparência de imaterialidade tão próprias
das artes gráfi cas parecem atuar de forma quase independente.
Os azuis desta sequência foram obtidos com a adição de branco;
apresentam a aparência de esmalte.
Os azuis acrescidos de branco remetem às superfícies dos
azulejos, tornam-se opacos. A imagem impressa sobre essas
superfícies de cor uniforme e luminosa parece não se agregar
ao plano. A imagem permanece suspensa, solta, pairando na
superfície. A repetição de determinada imagem justifi ca-se pela
busca de diferentes graus de equalização com a cor do plano.
São variações luminosas. Não se cogita aqui alguma narração;
mais adequado será apontar para uma duração. Paul Valéry
nos lembra que “duraçãoprovém de “duro.
14
“O que volta, por
outro lado, a dar valores duplos a certas imagens visuais, táteis,
motrizes, ou às suas combinações.
15
O sopro da arcada indica sua localização espacial, indica sua
suspensão. Suspensão e contenção estão, no caso, estreitamente
relacionados. Não se procurou um desfecho. Esses azuis, por
sua vez, nos dão uma sensação de afastamento. A sua tepidez
nos lança no silêncio de um local sem gravidade.
16
14
Do latim duraturus, “que há de durar” (particípio do futuro ativo de “durar”).
15 Paul Valéry, Variedades, p.135.
16 “Do mesmo modo que o céu e as montanhas distantes parecem azuis,
uma superfície azul também parece recuar diante de nós.” Johann
Wolfgang von Goethe, Doutrina das cores, p. 143.
15
JANELAS E PAISAGENS
dos limites e umbrais
A construção aparecia nos autorretratos. Nós nos detemos
nos limites verticais; o ar torna-se denso além, ultramar. Uma
parada, um olhar. A barra vertical, o azul. Confi na-se o espaço
para torná-lo visível. A imagem está submersa nesse espaço. As
barras verticais e horizontais impressas em preto sobre azuis
intensos vibram nos limites dos planos que se encontram... e
podem esconder imagens.
As matrizes contendo as barras, em número reduzido, foram
impressas sempre numa tonalidade mais escura. As tramas da
ponta-seca e o grão da água-tinta imprimem-se como faixas
translúcidas, somam-se às escuridões. Vestígios de azul escapam
através da na grade. O relevo seco obtido da impressão de áreas
não entintadas constitui outra dimensão do plano/cor, sutil,
perceptível com o movimento exploratório do olho.
16
Em JANELAS E PAISAGENS os azuis o intensos. Tal efeito é
potencializado por planos horizontais e verticais impressos
sobre esses azuis em tonalidades mais escuras. Os planos vibram
em seus limites, fazem ver a cor. Os azuis se aprofundam, como
o céu visto do parapeito ou das bordas de alguma janela.
17
18
A imagem observada se volta para o observador
Em “O Olho e o Espírito, Merleau-Ponty sugere que “poder-se-
ia buscar nos próprios quadros uma losofi a fi gurada da visão e
como que sua iconografi a”. Na sequência JANELAS E PAISAGENS,
algumas imagens parecem ora espiar e mirar o espaço, ora espiar
e mirar através do espaço no qual se inserem. Os olhos vazios da
imagem fi tam através das bordas, através da luz colorida, estão
inundados de cor.
A concepção da imagem, aos poucos, comprometeu-se com o
espíritoda cor. Da cor, de seu clima, de sua temperatura, de
sua claridade ou escuridão corresponderia uma determinada
17 “Se a escuridão do espaço infi nito é vista através de vapores atmosféricos
iluminados pela luz do dia, surge a cor azul.” Johann Wolfgang Von
Goethe, Doutrina das cores, p.89.
18 “Digo que o azul com que o ar se apresenta não é a sua cor natural, e
sim causado pelo vapor de água ao dispersar-se em diminutíssimos e
imperceptíveis átomos que impedem a confl uência dos raios solares e
se enchem de luz sob as infi nitas e escuras trevas da esfera de fogo que
desde o alto os compreende” Leonardo da Vinci, Códice Hammeri, citado
por John Gage em Color y Cultura, p. 133, tradução nossa.
imagem que poderia se desdobrar numa sequência de sutis
alterações em seu aspecto. A imagem talvez permaneça, não
para ser simplesmente observada. Ao se deixar envolver pela cor
e quase se equalizar à atmosfera luminosa do plano, parece se
apagar a fronteira entre o ver e o ser visto.
17
IMAGENS EVANESCENTES
A teoria da arte chinesa discute o poder de expressar pela
ausência de pincel e tinta. “Figuras, embora pintadas sem
olhos, devem dar a impressão de olhar; sem ouvidos, devem
parecer que escutam... coisas que dez mil pinceladas não
podem representar, mas que se capturam com uns poucos
traços singelos, desde que acertados. É a isso que se chama dar
expressão ao invisível.
19
A arcada, em suas linhas mínimas, sopra, agora semioculta por
uma faixa vertical. não está no plano/cor. uma barreira
que sugere um umbral. Janela? O azul se intensifi cou (ganhou mais
luz), converteu-se em violetas, púrpuras. Seu estímulo “inquieta
mais do que anima” assim Goethe descreve os efeitos do azul-
avermelhado. Afi rma que esse azul, próximo ao vermelho, “mesmo
encontrando-se do lado passivo, conserva algo ativo.
20
A imagem
encontra-se na ambivalência dos violetas e púrpuras. Estas cores
situam-se entre a luz e a escuridão no espectro, são penumbra; a
imagem impressa sobre elas quase se dissolve.
19 Trecho de Mustard Seed Garden Manual of Painting, 1679-1701, citado
por E. H. Gombrich em Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da
representação pictórica.
20 Johann Wolfgang von Goethe. “Sexta Seção, Efeito Sensível-Moral da
Cor”, em Doutrina das cores, p.143.
18
Nesta sequência prevalecem as barras verticais que ocultam
parte da imagem. Parece haver uma misteriosa relação entre
esse caráter inquietante dos violetas e púrpuras com um certo
verticalismo. As barras verticais, em determinado momento,
encontram-se paralelas, confi nando a imagem. Na medida em
que a cor esquenta, o espaço se con na. A impressão das barras
verticais era, no momento de sua realização, como a direção
principal a ser seguida. As barras estabeleceram um ritmo, um
caminho. Elas aparecem em outras sequências, mas em IMAGENS
EVANESCENTES elas protagonizam o jogo cor/imagem.
ESCURIDÃO
1/3 de como representar uma noite
Ao pintar, por exemplo, um pano negro, deve-se eleger uma cor
próxima à do mar profundo e tenebroso.
Leon Battista Alberti
21
As faixas horizontais cintilam, negras sobre a superfície negra.
O olho procura outro ângulo. As faixas impressas sobre o negro-
azulado permitem distinguir, vez ou outra, os limites. Noite sem
lua. As superfícies apresentam-se opacas, vistas de frente, atraem
o olhar para dentro. O olhar percorre a cambiante presença dos
planos ou se detém na tênue luminosidade azul. Os planos
impressos em azul-ultramar e azul-da-Prússia, acrescidos de
preto, aparentam superfícies intransponíveis. Imprimindo-se a
matriz com as barras horizontais ou verticais, em negro, sobre
21 Leon Battista Alberti, Da pintura, citado por John Gage em Color y Cultura:
La práctica y el signifi cado del color de la Antiguedad a la abstracción, p.
118, tradução nossa.
19
estas superfícies, os vestígios de azul se fazem visíveis. Estamos
diante de uma janela que dá para o azul da noite mais profunda.
Neste movimento de ir e voltar além e aquém da superfície,
o tempo se prolonga, ou melhor, não se conta. O pêndulo, o
negro. As bordas, a escuridão.
22
22 Sobre as experiências com os negros é interessante citar uma passagem
no texto do catálogo de Ad Reinhardt (1913-1967), The Limit of Almost,
escrito por Yve-Alain Bois e que chamou a atenção no transcorrer da
pesquisa: “Para o espectador de uma tela negra, existem duas opções:
ou, por pressa, não se nada ou gasta-se alguns minutos (1958), um
quarto de hora (1960), meia hora (1967) na frente de cada tela [...] E o que
se vê? Primeiramente, não nada, mas gradualmente, naturalmente,
se discerne um quase nada, entidades evanescentes, fantasmas de
cores e formas; nunca poderá ser uma certeza absoluta ter visto. Alguns
comentadores (Colt, Ashton, Lippard) têm rigorosamente descrito suas
experiências hipnóticas em frente a um preto de Reinhardt. Todos têm
insistido sobre a temporalidade que está implícita: esta é, penso eu,
uma das mais extraordinárias características dos últimos trabalhos de
Reinhardt. A única forma de sua arte conseguir excluir o tempo, isto é, a
ilusão do tempo (dinamismo, narração), foi a de incorporá-lo ao modo de
recepção de seu trabalho.” Ad Reinhardt, p. 28, tradução nossa.
ESCURIDÃO
2/3 furta-cor
Os fenômenos da persistência da imagem ou das ilusões
produzidas pela cor são chamados por Josef Albers eventos
efetivos. Albers esclarece que essa classe de eventos parece
paralela à expressão comum “o que sucedeu efetivamente, isto
é, o que sucedeu no tempo, o que passou, o que se moveu, o
que se desenrolou”. Ele descreve como exemplo que, “quando
vemos transparente uma cor opaca, ou quando percebemos
a opacidade como translucidez, é que o que o olho recebeu
inicialmente se transformou em nossa consciência em algo
distinto. O mesmo sucede “quando vemos os limites precisos
de um contorno duplicados ou desvanecidos”.
Do cambiante jogo de superfícies espreita-se a sombra. O
olhar percorre as barras horizontais, desloca-se para dentro do
mais escuro, compraz-se nos limites vagamente percebidos.
O olhar desliza sobre as barras ou a imagem quando a luz é
refl etida, mergulha no silêncio quando a luz é absorvida. Brilho
e opacidade se alternam, barreiras e aberturas. Na aparente
fuga do campo visual, barras e imagens operam como furta-cor.
20
ESCURIDÃO
3/3 a presença fantasmática da imagem
O que aqui conta, desde o princípio até o m, não é um suposto
conhecimento de uns supostos eventos, e sim a visão, ver. Ver
implica aqui Schauen (como em Weltanschauung),
23
e segue
associado à fantasia, à imaginação.
Josef Albers
A imagem aparece, por assim dizer, à medida que o olhar
persiste. Deixa-se insinuar na superfície; seu relevo apresenta-se
variável, sujeito à incidência da luz. Na escuridão azul, a imagem
é o elemento perturbante, aparece e desaparece, insinua-se na
penumbra. O olhar, ao buscar a imagem, inicia um silencioso
encontro. Um vestígio de luz sinaliza alguma espacialidade,
alguma presença.
A imagem na luz escura, ao espelhar-se na impassividade da
cor, suspende todo o pathos e galga uma crescente aparência
de imaterialidade.
23 Josef Albers utiliza o conceito weltanschauung em sua “Interação da cor”.
O termo alemão, de amplos signifi cados, pode ser interpretado como a
capacidade humana de perceber a realidade sensível, ou cosmovisão, e
foi utilizado pela primeira vez por Wilhelm von Humboldt (1767-1835).
21
NEGRO
D
o negro para a escuridão, a experiência seguiu a trilha das
luminosidades, buscou a espessura da cor. A cor foi abrindo
áreas de luz, elementos construtivos surgiram gerando soluções
ao propor “locais” para a imagem. O azul não negou em
momento algum a força dos negros pelo contrário, apresentou
as suas temperaturas, as suas densidades em tempos diversos.
A experiência aponta para possibilidades infi nitas de transições
luminosas. profundidades a explorar, locais mais recuados
para situar a imagem.
Posfácio
Considerações sobre a imagem
A imagem parece ter se distanciado. Aquele crânio que, nas
gravuras anteriores, em preto e branco, projetava-se em direção
à luz, revelava-se em volume e se envolvia em uma ação agora se
afasta, é envolvido pela cor. Ao ocupar esse local intermediário,
prevalece o silêncio. Na penumbra antevê-se um maxilar. Mostra-
se a arcada em sorriso inerte. Negro sobre negro. Azul sobre
azul. Tripulante estrangeiro a ocultar-se nas fendas, a espiar
entre mastros e pilastras. Alça-se a imagem para além de uma
visão clara. Há um estrito limite permitido de aparição. Constitui
exercício rigoroso localizá-la nesses estreitos. Quase exaustivo.
Exercício de contenção. O crânio destitui-se, desprega-se,
abandona-se. A cor o mantém à distância.
22
Apêndice
ANOTAÇÕES ESPARSAS SOBRE OS AZUIS
As anotações que se seguem não pretendem conduzir a nenhuma conclusão.
Não é intenção deste trabalho um estudo rigoroso e histórico sobre a cor
azul. Tal estudo seria algo vasto, considerando a variedade das questões e
referências encontradas. Essas informações foram recolhidas, em sua maioria,
do estudo sobre a cor azul de Michel Pastoureau, dos estudos sobre cor e
cultura de John Gage, da Doutrina das cores de Goethe e do curioso tratado
sobre o simbolismo das cores do autor do século XIX, barão Frédéric Portal.
A seleção das informações seguiu somente um critério: aquele que aproxima
os conteúdos estudados do viés poético da pesquisa luz, luminosidade,
transição de tonalidades, penumbra, escuridão ―, portanto, de certa forma,
um tanto arbitrário. Ao eleger determinadas informações em detrimento
de outras, revelou-se uma tendência a agrupar, como numa escala, brilhos,
qualidades e tonalidades cromáticas. Desde as primeiras experiências com
o azul, o que mais chamou a atenção foi a difi culdade em xar qualquer
imagem em sua luminosidade. Algo sempre se apresentava deslocado,
recuado, turvo, fugidio, vibrante como a própria trajetória da percepção da
cor, de sua fabricação, nomeação, utilização e simbologia.
Um arco-íris sem azul
As opiniões antigas propuseram de três a cinco cores para o espectro,
com exceção de Ammianus Marcellinus, que elevou este número para seis.
Curiosamente, nenhum autor antigo, seja grego ou romano, mencionou a
cor azul no arco-íris. Xenophanes, Anaximenes e, posteriormente, Lucrécio
mencionaram somente vermelho, amarelo e violeta. Epicurus descreveu o
vermelho, o verde, o amarelo e o violeta. Sêneca, por sua vez, descreveu
púrpura, violeta, verde, laranja e vermelho, e Ammianus Marcellinus, púrpura,
violeta, verde, laranja, amarelo e vermelho. Nem mesmo os grandes pensadores
do século XIII, como Robert Grosseteste, John Pecham, Roger Bacon, Thierry
de Freiberg, Witelo embora tenham avançado no entendimento do arco-
íris ―, em comentários sobre a obra Metereologica, de Aristóteles, e sobre o
tratado de óptica Alhazén, como os antigos, descreveram o azul no espectro
como nós o percebemos.
Termos cambiantes para uma cor distante
O termo tekhélet, na Bíblia hebraica, refere-se provavelmente a um denso e
profundo tom de azul. O termo pode denotar, por outo lado, algum tipo de
corante derivado de um animal marinho, talvez o múrice (murex). Os estudos
parecem apontar para o fato de que nenhum dos crustáceos (incluindo
o múrice) utilizados para corantes no Mediterrâneo Oriental durante o
período bíblico, produziu claramente um corante estável e defi nido. Pelo
contrário, esses moluscos forneceram uma ampla gama de tons, entre os
quais vermelho, preto, azul e inúmeras tonalidades de violeta, às vezes até o
verde e o amarelo. Os termos gregos glaukos e kyaneos, são as expressões
mais utilizadas para o azul. Durante o período homérico, o termo kyaneos
provavelmente referia-se originalmente a um mineral ou um metal, evocando
mais a sensaçãoda cor do que a sua tonalidade real denotava tanto o
azul brilhante da íris quanto os vestuários negros do funeral. Nunca o azul
do céu ou do mar. Dos sessenta adjetivos que descrevem os elementos e as
paisagens na Ilíada e na Odisseia, apenas três apresentam-se como termos
23
para a cor. São mais numerosos os termos que evocam os efeitos de luz ou
luminosidade. Na Grécia, durante os séculos V e IV a.C., kyaneos signifi cava
uma cor escura: azul profundo, violeta, marrom e preto. O termo glaukos, que
existia no período anterior, foi muito utilizado por Homero, e pode referir-se
ao cinza. Ao invés de denotar uma determinada cor, glaukos exprime a ideia
de uma debilidade da cor ou fraca concentração. Prestava-se a descrever a
cor da água, dos olhos, das folhas ou do mel.
Se o azul é uma cor que parece recuar, a cor também comportou-se caprichosa-
mente ao oferecer inúmeras difi culdades quanto a uma nomeação defi nitiva.
ISATIS, ÍNDIGO, MUREX, LÁPIS-LAZÚLI, AZURITE
As difi culdades em nomear a cor parecem seguir pari passu as difi culdades
em extraí-la e produzi-la. O azul ultramar, por exemplo, durante séculos foi
o mais valioso dos pigmentos tradicionais. A preciosidade do ultramar não
resultou apenas da qualidade e durabilidade do pigmento, mas também dos
esforços para extraí-lo e produzi-lo. Verdadeiras jornadas eram empreendidas
além-mar em busca de suas fontes, como a do vale Kokcha, no Afeganistão.
Acredita-se que essa mina fornecia a maior parte do lápis-lazúli usado na
Europa durante a Idade Média e o início da Idade Moderna. O pigmento
produz uma ampla gama de azuis de impressionante intensidade, e foi
utilizado em pequenas áreas, como nas pinturas de muitos manuscritos
dos séculos XII e XIII. O azurite é um nome moderno para um azul mineral.
Também foi chamado lapis armenus pelos gregos e romanos pelo fato de
importarem o mineral da Armênia. A base do azurite é o carbonato de cobre
associado com malaquita; o pigmento produz um azul profundo similar ao
lápis-lazúli. Suas fontes situavam-se na Hungria e na Alemanha, e registros
de fontes na América Central, provavelmente no Novo México.
Woad foi um pigmento obtido das folhas do isatis tinctoria, e possui uma longa
história de uso. Durante séculos esta planta foi cultivada (e a cor, preparada) na
Inglaterra. Os celtas e os alemães utilizavam isatis como fonte de seus corantes
azuis para tecidos. Os romanos (como os gregos) raramente utilizavam o azul
para tingir tecidos; consideravam o azul uma cor escura e associavam-na ao
Oriente e aos bárbaros. As plantas do gênero indigofera contêm um glicosídeo
incolor que, quando extraído, precipita-se sob a forma de um pigmento azul-
escuro. O índigo têm sido utilizado desde o Neolítico em regiões onde se
cultiva a planta, e o índigo indiano chegava à Europa via terrestre. Acreditou-
se, durante um longo período (até o século XVI), que o índigo era uma pedra
lapis indicus por chegar à Europa em forma de grandes blocos compactos.
Plínio, no entanto, em sua História Natural, sabia que o pigmento não
era oriundo de uma pedra. Ao referir-se ao indicus, proveniente da Índia,
descreveu-o como uma espécie de espuma ou depósito que se solidifi cou,
negro em aparência, mas quando diluído, convertia-se em púrpura e cerúleo:
Ex-India venit indicus, arundinum spumae adhaerescente limo; cum teritur,
nigrum; at in diluendo mixturam purpurae caeruleique mirabilem reddit.
1
O azul parece sempre ocupar esse vasto horizonte; atravessa-se o mar para
alcançá-lo sem, no entanto, apreendê-lo.
1 Plínio, História Natural, vol. 35, cap. 27, parte I, citado por Michel
Pastoureau em Blue: The History of a Color, p. 183 (tradução nossa).
24
CAERULEUS, CAESIUS, GLAUCUS, LIVIDUS, VENETUS, AERIUS, FERREUS
A imprecisão terminológica é observada no latim antigo e, mais tarde, em
sua forma medieval. Desta forma, os termos atribuídos à cor azul, ligados às
suas qualidades materiais, à sua luminosidade e às sensações que produzem,
conduzem-nos a um universo de visões. As imagens se sucedem suntuosas:
a visão aérea, o ar, a atmosfera; as silhuetas negras que obscurecem e fazem
a atmosfera pesar; a lividez hibernal que turva e torna a visão imprecisa.
BLAVUS e AZUREUS
A lacuna no vocabulário latino da cor foi preenchida por duas palavras
estrangeiras para o azul: a germânica blavus e a árabe azureus. Estas palavras
substituíram as suas antecessoras latinas em todas as línguas românicas.
Assim, no idioma inglês, como no francês, italiano e espanhol, as palavras
mais comuns que denotaram a cor azul não foram herdadas do latim, mas do
alemão, azul (blau), e do árabe, azure (lazaward).
2
ALGUMAS SIMBOLOGIAS
AZUL
No que concerne ao simbolismo da cor, John Gage nos adverte que este
tem permanecido inevitavelmente local e contextual. Os egípcios produziam
esplêndidos tons de azul e azul-esverdeado com silicato de cobre, cores
encontradas em pequenos objetos funerários. Frédéric Portal faz referência
aos deuses egípcios Knef, o criador do universo, e Amon cujo nome
signifi ca “oculto” e pode ter sido originariamente um deus invisível, deus do ar.
2 Id., p.26.
Ambos podem aparecer pintados de azul. Na iconografi a hindu, é azul o
carneiro que conduz o deus Agne e azul é o corpo de Vishnu. As roupas
de Cristo, em algumas pinturas do início da Era Cristã, são azuis. Segundo
Pastoureau, tanto para os egípcios quanto para os outros povos da Ásia
Central e do Oriente Médio, ao azul eram atribuídos poderes benéfi cos, os
quais acreditavam dissipar o mal e trazer prosperidade. Segundo os estudos
de Frédéric Portal, o azul na China é a cor atribuída aos mortos.
Em uma Bíblia latina do século X, o Jesus na tumba é descrito rodeado de tas
azuis e seu rosto é azul; também o Breviário de Salisbury contém várias miniaturas
nas quais pode-se ver retros cobertos com um pano fúnebre azul, vermelho ou
violeta. Portal afi rma ainda que o violeta, composto de vermelho e azul, também
foi uma cor fúnebre.
3
O que se constata nos respectivos autores é que a cor azul,
em diversas culturas, esteve sempre associada ao ar, ao céu, ao mundo imaterial
e ao transcendental, à imortalidade e à verdade divina. Pastoureau, no entanto,
nos adverte sobre alguns prováveis erros contidos nas traduções medievais
latinas da Bíblia: nessas traduções foi introduzido um grande número de termos
designando cores em substituição às palavras que nos idiomas hebraico, aramaico
e grego referiam-se somente à matéria, luz, luminosidade, densidade e qualidade.
Quando um termo hebraico signifi cava “brilhante”, no latim era convertido muitas
vezes para candidus (branco) ou mesmo ruber (vermelho). Quando, no hebraico,
aparece o termo sujo” ou escuro”, no latim foi traduzido como niger ou viridis,
que nos vernáculos tornou-se preto e verde.
3 De acordo com o estrito protocolo veneziano sobre a vestimenta no Alto
Renascimento, tanto o escarlate quanto o púrpura intenso (pavonazzo)
podiam ser cores de luto.
John Gage em Color y Cultura, p.130, tradução nossa.
25
PÚRPURA
Através de um vidro púrpura, uma paisagem bem iluminada se apresenta com
uma luz terrível. É bem possível que, no dia do Juízo Final, essa tonalidade se
espalhe pelo céu e pela terra.
4
O púrpura na visão de Goethe possuía esse
caráter de catástrofe iminente, uma luz que parece prestes a se precipitar,
seja na escuridão, seja em alguma claridade cegante. Situa-se na posição
intermediária, cambiante entre treva e luz. A cor púrpura, em contrapartida,
foi associada à nobreza, e era a cor mais valorizada na Antiguidade.
Mais tarde, foi a cor adotada pelo alto clero. Plínio refere-se ao púrpura
como uma cor preciosa, de alto custo, utilizada pelos romanos em emblemas
associados à nobreza, ao poder e à autoridade.
5
4 Goethe, em sua Doutrina das cores, chamou “púrpura” um vermelho
brilhante extraído do molusco múrice, em homenagem ao púrpura
antigo (púrpura de Tiro, antiga cidade fenícia no Líbano, na costa do mar
Mediterrâneo (John Gage, em Colour in Art, p.148). Plínio, ao mencionar
o púrpura de Tiro, caracterizou várias de suas nuances, chamando-o um
franco vermelho (rubeus). História Natural, XI, xxxviii, citado por John
Gage em Color and Culture, p. 25, tradução nossa.
5 John Gage chama a atenção para a qualidade mais notada no púrpura
tanto por Plínio quanto por outros autores: o seu brilho, visto como algo
milagroso, capaz de incorporar as trevas e a luz, ou seja, todo o universo
da cor. John Gage em Color and Culture, p. 25, tradução nossa. Goethe,
na Sexta Seção de Doutrina das cores “Efeito sensível-moral da cor”,
refere-se à origem prismática do púrpura e afi rma “que essa cor contém,
em parte actu, em parte potentia, todas as outras cores”. Doutrina das
Cores, p.144.
John Gage afi rma que o simbolismo religioso da cor no Renascimento estava
subordinado à semiologia mais secular do valor material. No século XII, Hugo
de São Victor afi rmava que o papel de Maria como Rainha Celestial fazia com
que o púrpura fosse uma cor especialmente apropriada a ela. Na tradição
bizantina, Maria é representada muitas vezes vestida de púrpura. Durante
o século XV, na Holanda, o escarlate era a tinta têxtil mais valiosa; Maria
era frequentemente representada vestida dessa cor. Ao considerar as amplas
conotações do termo em latim purpureus, o autor interpreta o escarlate como
púrpura. Nos contratos italianos, com frequência, estipulava-se que o manto
da Virgem deveria ser do mais caro azul ultramar. Para John Gage, parece que
os pintores ocidentais encontraram no ultramar um pigmento equivalente ao
púrpura imperial, com seus refl exos purpúreos. Este aspecto do azul ultramar
também foi observado na cor de origem sintética utilizada na pesquisa ― o
ultramar francês é produzido à base de soda, sílica, alumínio e enxofre ―,
sendo que os refl exos avermelhados indicam a presença de maior proporção
de enxofre que de alumínio. Cennino Cennini chamava o ultramar “si bello
violante”, além de enfatizar o fato de ser um pigmento muito caro.
26
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VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 2007.
gravuras
27
28
sorrisosorriso
29
azulejos
30
janelas e paisagensjanelas e paisagens
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imagens evanescentes
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escuridão
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sorrisosorriso
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azulejos
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janelas e paisagensjanelas e paisagens
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imagens evanescentes
37
escuridão
exposição Cor sobre Imagem
realizada de 7 de agosto a 2 de setembro de 2010
na Graphias Casa da Gravura, São Paulo
• 42 gravuras em metal
• impressas em cores sobre papel Hahnemühle
• dimensões: 30 x 40 cms cada gravura
• referentes aos cinco grupos da presente pesquisa
38
39
40
agradecimentos
à
Marcello Grassmann pelas longas conversas desde 1999;
Omar de Souza pela revisão do texto;
João Bosco Rangel pelas fotografi as da exposição;
Whal Chacon pela diagramação e composição gráfi ca.
aos amigos
Paulo Penna, Carolina Lopes, Gláucia Nagem
e a todos que apoiaram a minha produção
ao meu pai
à minha mãe (in memoriam)
ao orientador
Prof. Dr. Luiz Cláudio Mubarac
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