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MESTRADO PROFISSIONAL EM PODER JUDICIÁRIO
FVG DIREITO RIO
EMY KARLA YAMAMOTO ROQUE
A JUSTIÇA FRENTE AO ABUSO SEXUAL INFANTIL
Análise Crítica ao Depoimento Sem Dano e Métodos Alternativos Correlatos,
com Reflexões sobre a Intersecção entre Direito e Psicologia
Rio de Janeiro
2010
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EMY KARLA YAMAMOTO ROQUE
A JUSTIÇA FRENTE AO ABUSO SEXUAL INFANTIL
Análise Crítica ao Depoimento Sem Dano e Métodos Alternativos Correlatos,
com Reflexões sobre a Intersecção entre Direito e Psicologia
Dissertação para cumprimento de
requisito à obtenção de título no
Mestrado Profissional em Poder
Judiciário da FGV Direito Rio. Área de
Concentração: Poder Judiciário.
Orientador: Prof. Dr. José Ricardo Cunha
Rio de Janeiro
2010
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ROQUE, Emy Karla Yamamoto. Orientador: Prof. Dr. José Ricardo Cunha.
A Justiça Frente ao Abuso Sexual Infantil - Análise Crítica ao Depoimento Sem
Dano e Métodos Alternativos Correlatos, com Reflexões sobre a Intersecção entre
Direito e Psicologia, v.1, 151 pg. Rio de Janeiro, 2010.
A todas as crianças e adolescentes vítimas da
ausência de amor.
4
Agradeço a Jesus, meu Salvador e Senhor,
a meu esposo Marcelo, prova do amor de Deus por mim,
a Tamy e Yuki, filhos amados, pelo tempo subtraído,
a minha mãe Tereza, pela primorosa revisão,
a meu irmão Jun Alex, pelo instruído auxílio.
5
RESUMO
Agressão de nefastos efeitos, o abuso sexual infantil – ASI - tem acompanhado a humanidade,
independentemente do poderio econômico, cultura, raça ou credo, sendo que a aparente
evolução da civilização não tem apresentado como corolário sua diminuição. A missão de
enfrentar esta complexa realidade foi incumbida ao Poder Judiciário e órgãos afins. Apesar
dos avanços das normas concernentes à tutela dos direitos das crianças e adolescentes, na
prática pouco se tem feito para sua efetivação, focando-se apenas na punição do agressor, em
razão da ausência de normas instrumentais específicas e de clareza na definição e
compreensão do que constitui delito de natureza sexual, ensejando a chamada violência
institucional. Evidência disso são os métodos alternativos implementados aleatoriamente pelo
país, elaborados pelos atores envolvidos no atendimento institucional de vítimas de ASI e
seus familiares, notadamente o Depoimento Sem Dano, formatado para a inquirição de
crianças e adolescentes em Juízo, com intermédio de profissional habilitado, e previsão de
gravação, para posterior análise no processo. Dentre as experiências, o Depoimento Sem
Dano tem se destacado, suscitando reconhecimento e questionamentos, atualmente incluso em
projeto de lei no Senado. Não é de hoje a tentativa de normatização dessa prática instituída no
Rio Grande do Sul e objeto de projetos pilotos em alguns outros Estados, esbarrando em
questões controversas, fazendo-se essencial uma análise crítica do método. Por envolver tal
método, como a grande maioria das experiências alternativas realizadas no atendimento dos
casos de ASI, a interdisciplinaridade, principalmente entre Direito e Psicologia, de relevo um
estudo de como deve ocorrer este imbricamento no âmbito forense. Por fim, a par do
Depoimento Sem Dano, dentre vários projetos, pinçaram-se três para breve estudo, quais
sejam, o projeto Mãos que Acolhem transposição do método Depoimento sem Dano para a
Delegacia de Polícia, os Centros de Defesa da Criança CACs, locais em que se centralizam
todo tipo de atendimento às crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, e a Unificação
das Competências das Varas da Infância e Juventude e Crimes contra Crianças e
Adolescentes, para que os casos sejam decididos de forma coesa e eficaz. Tais projetos
refletem o esforço dos atores envolvidos na humanização da Justiça, especialmente em
relação àqueles que mais dela necessitam, as crianças e adolescentes.
6
ABSTRACT
Aggression of hideous effects, child sexual abuse - CSA - has accompanied mankind,
regardless of economic power, culture, race or creed, and the apparent evolution of
civilization has not presented decreasing as corollary. The mission of dealing with this
complex reality has been entrusted to the Judiciary and related agencies. Despite the advances
of the rules concerning the protection of the rights of children and adolescents, in practice
little has been done for its implementation, focusing only on punishing the offender, because
of the absence of specific instrumental norms and clarity in the definition and understanding
of what constitutes the crime of sexual nature, occasionig the so-called secondary
victimization. Evidence about that are the alternative methods implemented randomly across
the country, drawn by the actors involved in institutional care for victims of CSA and their
relatives, notably the Testimony Without Damage, formatted for the hearing of children and
adolescents in court, with the intermediation of a qualified professional, and states the
recording for later analysis in the process. Among the experiments, the Testimony Without
Damage has been outstanding, engendering recognition and controversy, currently included in
the bill in the Senate. It is not new the attempt to become law the practice established in Rio
Grande do Sul and the subject of pilot projects in some other states, bumping into
controversial issues, becoming essentially a critical analysis of the method. By involving such
method, as the vast majority of alternative experiments of treatment in cases of CSA,
interdisciplinarity, especially between law and psychology, a study of how this imbrication
should occur at the forensics is relevant. Finally, apart from Testimony Without Harm, among
several projects, three were chosen to brief study, which are: the project Hands Hosting -
transposition of the method Testimony Without Damage to the police station; the Child
Advocacy Centers - CACs, place where all types of care to children and adolescent victims of
sexual abuse are centralized; and the jurisdiction unification of Juvenile Court and of court
specialized on Crimes against Children and Adolescents, in order that all cases are decided in
a cohesive and effective way. These projects reflect the efforts of the actors involved in the
humanization of Justice, especially for those who need it most, children and adolescents.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................08
1. ABUSO SEXUAL INFANTIL...........................................................................................11
1.1. Conceito e Diferenciação com Termos Correlatos.........................................................11
1.2. A Família e seu Papel Fundamental no Abuso Sexual Infantil.......................................16
1.3. Síndrome da Adição – o que leva o abusador a cometer tal ato?....................................19
1.4. Síndrome do Segredo –Causas e Efeitos.........................................................................21
1.5. Síndrome da Alienação Parental e as falsas denúncias...................................................23
1.6. Dados Epidemiológicos .................................................................................................29
1.7. Sequelas e a perpetuação do abuso.................................................................................36
2. A JUSTIÇA FRENTE AO ABUSO SEXUAL INFANTIL.............................................40
2.1. Tipos Penais relacionados ao Abuso Sexual Infantil......................................................40
2.2. Necessidade de oitiva da vítima nos casos de ASI.........................................................55
2.3. Método tradicional de oitiva de menores em Juízo –– ineficiência e efeitos colaterais.68
2.3.1. Regras do Código de Processo Penal.....................................................................68
2.3.2. Peculiaridades das Crianças e Adolescentes e o Backlash....................................71
2.3.3. Violência Institucional e Vitimização Secundária.................................................76
3. DEPOIMENTO SEM DANO – ANÁLISE
CRÍTICA.....................................................83
3.1. Definição......................................................................................................................85
3.2. Vantagens Preconizadas...............................................................................................87
3.3. Objeções Levantadas....................................................................................................97
3.3.1. Na Ciência do Direito.............................................................................97
3.3.2. Na Gestão Judiciária.............................................................................102
3.3.3. Na Ciência da Psicologia......................................................................104
3.3.3.1. Desvirtuamento da função do psicólogo................................104
3.3.3.2. O Calar da vítima como forma de sua Defesa.......................107
3.3.3.3. Sessão única e impossibilidade de aferição...........................109
3.3.3.4. E o tratamento da vítima e sua família?.................................110
3.3.3.5. Oitiva Tardia – apenas em Juízo............................................112
4. A INTERFACE ENTRE PSICOLOGIA E DIREITO E OUTRAS EXPERIÊNCIAS
RELEVANTES......................................................................................................................116
4.1. A Interface entre a Psicologia e o Direito...................................................................116
4.1.1. Evolução histórica das Ciências......................................................................118
4.1.2. Atuação do Psicólogo no Processo Judicial....................................................122
4.2. Outras Experiências Relevantes..................................................................................129
4.2.1.Projeto Mãos que Acolhem..............................................................................130
4.2.2. Child Advocacy Center – CACs.....................................................................133
4.2.3. Competência Unificada dos JIJs e Crimes contra Crianças e Adolescentes...135
CONCLUSÃO.......................................................................................................................141
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................147
8
INTRODUÇÃO
O abuso sexual infantil consiste em realidade que tem acompanhado a
humanidade desde seu nascedouro, independente da raça, cultura ou classe social. Como
baluarte da paz social, para manutenção e coesão da sociedade, a Justiça, por meio de todos os
seus atores, tem a missão de solucionar os problemas e questões decorrentes dessa espécie de
agressão, considerada crime da mais alta gravidade, ao qual se imputa elevadíssima pena,
sendo legalmente prevista rigorosa reprimenda. Assim, a Justiça é chamada a enfrentar o
abuso sexual infantil em todas as suas facetas, abrangendo não a repressão ao crime - para
punição do abusador e evitar novos delitos, desestimulando outros possíveis agressores - mas
também a proteção integral dos direitos da criança e adolescente, englobando para tanto o
acolhimento da criança em instituições, se necessário, bem como o tratamento e orientação da
vítima em si e seus familiares, proporcionando condições para a superação dos traumas
decorrentes.
O enfrentamento do abuso sexual infantil, contudo, pelo sistema jurisdicional
vigente, tem-se limitado, quase que invariavelmente, apenas à repressão criminal, focando a
responsabilização do agressor. Negligencia-se, destarte, o aspecto tão ou mais relevante, ao
esquecer-se de olhar para o fato sob a ótica da vítima criança ou adolescente que sofreu,
muitas vezes de forma continuada e por aqueles que deveriam protegê-la, leia-se pai, mãe,
avô, tio, padrasto, dentre outros - que, ao revelar o abuso busca proteção, segurança, carinho
e conforto. Mais ainda, impinge-se à criança ou adolescente nova violência, desta vez pela
própria instituição que tem por escopo protegê-la, exemplificativamente, pela Delegacia de
Polícia, I. M. L., Judiciário, sendo tal fenômeno de incidência tão sistemática ao ponto de ser
denominada “violência institucional”.
Destarte, o modo como a Justiça pátria vem enfrentando o abuso sexual infantil
tem se mostrado, em geral, incompleto e ineficaz na tutela dos direitos das crianças e
adolescentes, eis que, na ânsia de punir criminalmente o autor do delito, acaba-se por
negligenciar a vítima, infligindo à mesma novo sofrimento. As leis pertinentes ao assunto tais
como o Código Penal e Código Processual Penal, o Estatuto da Criança e Adolescente e a
própria Constituição Federal, não tratam especificamente do tema, qual seja, tratamento
diferenciado às crianças e adolescentes enquanto partes ou testemunhas em processo judicial,
notadamente no criminal, permitindo situações práticas como as acima descritas. Na tentativa
9
de humanizar o tratamento dispensado pela Justiça às vítimas, seus familiares ou testemunhas,
por todo o país têm surgido projetos de autoria individual ou de grupos, muitas vezes
embasados em experiências estrangeiras, com fundamento legal no Direito Comparado,
sempre de forma isolada, limitada a um Tribunal - Estado, Comarca Município ou mesmo
uma única Vara – de titularidade de um magistrado.
Tal circunstância não pode mais persistir. Imprescindível se faz a normatização e
padronização dos procedimentos a serem seguidos por quem tem obrigação de atuar nos casos
relativos ao abuso sexual infantil. É que o pronto, adequado, eficaz e humano atendimento
não pode ser fruto apenas da boa vontade ou vocação de um ou outro profissional que atua na
área, mas deve ser produto de treinamento e capacitação, na adoção de procedimentos em
aplicação da norma legal. Ademais, urge que sejam definidos quais os procedimentos
realizados na prática serão acolhidos pelo sistema normativo jurídico eis que os projetos
aplicados de forma aleatória têm originado discussões e questionamentos acerca de sua
validade e eficácia, a exemplo do método Depoimento Sem Dano, de autoria do Dr. José
Antônio Daltoé Cezar, magistrado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Formatado
para a oitiva de crianças e adolescentes em Juízo, por prever a intermediação de profissionais
da área da psicologia e serviço social para a formulação das perguntas dos infantes, bem como
acesso audiovisual simultâneo e em tempo real pelos atores do processo, quais sejam, juiz,
promotor, advogado de defesa e parte ré, tem sido este método alternativo alvo de apreciação
e aplausos, mas também de críticas e censura, notadamente em razão da forma como aplica a
interdisciplinaridade, havendo acaloradas insurgências em razão de suposto desvirtuamento
das funções dos profissionais das áreas afins.
Diante do impacto causado no cenário nacional pelo Depoimento Sem Dano,
uma análise crítica de seus propagados benefícios e pontos desfavoráveis se justifica, com
particular enfoque no modo como deve ser procedida à interdisciplinaridade, em especial no
que concerne à atuação do psicólogo no processo judicial, buscando-se também analisar o
aspecto legal dessa atividade, tanto pelo prisma do Direito, quanto pelo flanco da Psicologia
como ciência.
Uma vez que a interdisciplinaridade, também referida pelo termo “trabalho em
rede”, tem se erigido, tanto pela experiência empírica quanto pelos estudos teóricos, à solução
possível para o implemento do atendimento eficaz e adequado das vítimas de abuso sexual
10
infantil e, não obstante, sua concretização tem se mostrado de difícil e complexa equação, a
par do exame do método Depoimento Sem Dano, relevante é o estudo de outros projetos que
refletem, em parte, como vem a Justiça pátria e estrangeira enfrentando o abuso sexual
infantil, sem pretensão de agasalhar todos os bons e inovadores projetos, diante do extenso
número dos mesmos, fruto da riqueza em criatividade e em vontade de acertar dos
profissionais que atuam nessa área.
Destacou-se, por isso, algumas dessas experiências, seja pela demonstração da
importância da simplicidade e da visão global dos acontecimentos, por meio dos projetos
Mãos que Acolhem, em aplicação no Estado de Rondônia transposição do método
Depoimento Sem Dano do processo judicial para a Delegacia de Polícia - e CACs, Child
Advocacy Centers, implementado em diversos países como Estados Unidos e Cuba,
consistindo em locais em que são centralizados os atendimentos médico, psicológico, jurídico,
dentre outros pertinentes aos casos de abuso sexual infantil, seja pela revelação da
necessidade da interação ou, ao menos, intercâmbio de informações dentro do próprio
Judiciário, pelas experiências de unificação das competências do Juizado da Infância e
Juventude e Crimes contra Menores, implantados, dentre outros, na capital gaúcha, paulista e
do Mato Grosso do Sul.
Para obtenção do resultado foram realizadas pesquisas bibliográficas atinentes ao
tema, tanto na área jurídica, quanto nas áreas afins, notadamente na Psicologia, Psiquiatria e
Serviço Social, envolvendo matérias elaboradas por leigos, publicadas em revistas de alta
propagação nacional, diante da relevância do tema, bem como artigos encontrados na internet,
além de projetos cujas cópias foram cedidas pelos próprios autores, participação em simpósio
internacional relativo ao assunto, e colheita de dados oficiais nos setores competentes das
instituições pesquisadas, como o Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. Espera-se, dessa
forma, contribuir para a evolução e consolidação da humanização e eficiência no atendimento
das vítimas de abuso sexual infantil pela Justiça brasileira e órgãos correlatos.
11
1. ABUSO SEXUAL INFANTIL
1.1. Conceito e Diferenciação em relação aos Termos Correlatos
Como passo inicial, impõe-se conceituar abuso sexual infantil, uma vez que a
ausência de discernimento na sua conceituação enseja equívocos provocadores de imensos
danos. Muitos profissionais ligados à área de proteção e tutela dos direitos das crianças e
adolescentes realizam pré-julgamento da conduta supostamente perpetrada pelo abusador,
considerando-a não prejudicial ao menor e, portanto, não configurado o abuso sexual.
Exemplificativamente, o médico ao realizar o exame de corpo de delito em criança em razão
de suspeita de abuso sexual, após analisar minuciosamente a região vaginal e anal da mesma,
conclui que não vestígios de relação sexual. Contudo, se verificasse a boca e garganta da
infante, notaria múltiplas lesões em tais órgãos, uma vez que o abuso se perpetrou por meio
de sexo oral, com penetração do órgão viril masculino em sua boca. Ora, o ato sexual não se
caracteriza apenas pela penetração, seja vaginal, anal ou oral, mas também por qualquer ato
libidinoso realizado pelo agressor no corpo da vítima, ou impingido a esta realizar no
agressor. Engloba, assim, a masturbação, os beijos, as lambidas, o passar a mão, a
esfregadela, entre outros. Como bem elucida LUCIMARA MARTINS PEREIRA
1
, “dentro
deste vasto espectro incluem-se carícias íntimas, relações orais, anais, vaginais com
penetração ou não, além do voyerismo e exibicionismo, entre outros”.
Definido o termo “sexual” inserto na expressão que se pretende conceituar,
necessário fixar o que se entende por “infantil”. A palavra infantil” refere-se à vítima do
abuso sexual, que é a pessoa menor de dezoito anos de idade. A utilização usual do termo
“infantil” concerne às crianças sendo estas consideradas por nosso ordenamento jurídico
como a pessoa física de zero a doze anos incompletos. Acima de tal idade, até os dezoito anos
incompletos, erige-se o sujeito de direitos à categoria de adolescente
2
. Contudo, embora haja
classificações diversas, quando inserto na expressão “abuso sexual infantil”, o último termo
denota que a vítima do abuso em questão constitui-se em pessoa física entre zero e dezoito
anos de idade, incompletos.
1
PEREIRA, Lucimara Martins, in CRAMI (org.), Abuso Sexual Doméstico Atendimento às Vítimas e
Responsabilização do Agressor, 2ª edição, São Paulo: Ed. Cortez, 2005, p. 18.
2
Vide lei n. 8069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 2º.
12
Definido o que se entende por ato sexual realizado com crianças e adolescentes,
cabe analisar quando tal ato configura abuso. Abusivo é todo ato que ultrapassa a linha de
direitos da outra pessoa, que desrespeita a vontade do outro. O abuso sexual, portanto, é o ato
sexual realizado contra a vontade do outro. Para o direito penal, a idade limite em relação ao
ato sexual é de quatorze anos. O artigo 217-A do Código Penal Brasileiro, com alterações
operadas pela Lei n. 12015/09, assim dispõe, ao tratar dos crimes contra a liberdade sexual
3
:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com
menor de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
Quando se tem por vítima criança de tenra idade, até os doze, notória é a existência
do abuso, diante da presunção de ausência de compreensão e de discernimento da vítima com
relação aos atos sexuais, a fim de que seu consentimento seja válido. A partir dessa idade,
contudo, uma zona nebulosa acerca da existência do consentimento da vítima, bem como
da validade do mesmo. Na realidade, não é de hoje que muitos juristas, psicólogos, médicos, e
pessoas em geral, questionam o consentimento e, por consequência, a configuração do abuso
quando a vítima possui onze, doze anos de idade
4
.
3
Antes da vigência de tal lei era necessário conjugar os artigos 213 ou 214 com o artigo 224 do Código Penal,
para configurar-se o crime de estupro ou atentado violento ao pudor em face detimas com menos de 14 anos,
quando não comprovada a violência real, utilizando-se a figura da violência presumida, como se do antigo
artigo 224 do Código Penal:
Art. 224 - Presume-se a violência, se a vítima:
a) não é maior de 14 (catorze) anos;
b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância;
c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.
4
Confira os julgados: PENAL E PROCESSUAL PENAL - ESTUPRO - MENOR DE 14 ANOS - RELAÇÃO
SEXUAL VOLUNTÁRIA, CONSENTIDA E DESEJADA PELA VÍTIMA - PARTICULARIDADE DO CASO
CONCRETO QUE AFASTA A PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA - ABSOLVIÇÃO MANTIDA - RECURSO
DESPROVIDO.
Embora no caso de crianças ou de pré-adolescentes, torna-se muito difícil, senão impossível, não se arredar a
presunção de que não consentiram e nem podem consentir com a manutenção de relações sexuais; a questão não
de ser resolvida simplesmente com a incriminação da conduta, mas primordialmente com a análise criteriosa
das circunstâncias que envolveram os acontecimentos, em busca da verdadeira Justiça. A realidade social e os
costumes dos Estados da Região Norte do Brasil, notadamente nas cidades e lugarejos do interior, propiciam que
meninos e meninas de 14 anos incompletos conheçam e comecem a vida sexual precocemente, o que pode ser
demonstrado pela enorme quantidade de adolescentes grávidas em tenra idade. Exsurgindo da prova dos autos
que a vítima, menor de 14 anos, desejou e consentiu a prática da relação sexual, demonstrando, inclusive,
esperança de manter relacionamento mais duradouro com o acusado, não se estaria fazendo a almejada Justiça ao
condená-lo pelo delito de estupro com violência presumida. Absolvição mantida. Recurso desprovido.
(Apelação Criminal 2110/05 (8516), Câmara Única do TJAP, Amapá, Rel. Mello Castro. j. 14.09.2005,
unânime, DOE 19.10.2005); APELAÇÃO. ESTUPRO. MENOR DE 14 ANOS. VIOLÊNCIA PRESUMIDA.
A aquiescência da ofendida para a realização da relação sexual e a ausência de inocência absoluta e ingenuidade,
afastam a figura descrita no artigo 224, alínea 'a', do Código Penal. No crime de estupro a presunção de
violência, descrita no artigo 224, alínea 'a', do Código Penal, é relativa, quando a ofendida consente ou adere
para a realização da relação sexual, constituindo um verdadeiro contra-senso entender que a mesma sofreu
violência. Para a caracterização do crime de estupro com presunção de violência, não basta que a ofendida seja
menor de 14 anos de idade, é necessário que ela se mostre ingênua, inocente, recatada e, absolutamente
13
Se a compleição física for mais desenvolvida, ou seja, se a menina apresentar
contornos de mulher, com seios proeminentes e porte avantajado, e for relativamente
extrovertida, fatalmente será deslocada da condição de vítima para a de co-ré, de sedutora.
Embora não se possa conceituar todo e qualquer ato sexual realizado com criança e
adolescente como abusivo, principalmente quando se trata de dois adolescentes, em idades de
dezesseis e dezoito anos, por exemplo, namorados, ressalvando, nesse ponto, EUDALD
MAIDEU PUIG que el abuso, también se puede cometer por uma persona menor de 18
años de edade, cuando es netamente mayor que la víctima (5 años de diferencia)
5
,
situações que configuram, sim, abuso, mesmo em se tratando de vítimas de quinze a dezoito
anos de idade, sejam do sexo masculino ou feminino. Para DUARTE e ARBOLEDA (1997),
referidos por DALKA C. A. FERRARI, violência sexual na infância e adolescência significa
“os contatos entre crianças/adolescentes e um adulto (familiar ou não) nos quais se utiliza a
criança e o adolescente como objeto gratificante para as necessidades ou desejos sexuais do
adulto causando danos àqueles”
6
. CAMINHA et al, destaca que “é importante acrescentar que
é uma relação bilateral, na qual a satisfação é unilateral, já que apenas o abusador se satisfaz
sexualmente, e a criança não possui sequer capacidade de compreender integralmente tal ato”
7
.
Neste contexto, revela-se impressionante a incidência de casos de abuso sexual
infantil perpetrado por familiares das vítimas especialmente por pais, padrastos, e também
por tios, e irmãos. Tamanha é a ocorrência de tais casos, que receberam denominação
desinformada a respeito de sexo, a ponto de não poder autodeterminar-se diante do fato. Ausentes tais requisitos,
atipicidade. Apelação provida. (Apelação Criminal 26022-2/213 (200401320213), Câmara Criminal do
TJGO, São Simão, Rel. Des. Byron Seabra Guimarães. j. 01.03.2005, unânime, DJ 23.03.2005); PENAL.
PROCESSUAL. APELAÇÃO. ESTUPRO. MENOR DE 14 (QUATORZE) ANOS. ANUÊNCIA. AUSÊNCIA
DE VIOLÊNCIA. DISCERNIMENTO ACERCA DO FATO. PRESENÇA. PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA.
RELATIVIDADE. ABSOLVIÇÃO. POSSIBILIDADE. I. Denotando o acervo, que consumada a conjunção
carnal, com plena anuência e consciência da vítima, e, portanto, à inconfiguração de qualquer ato de violência,
inaceitável o tipificar do crime de estupro, haja vista relativa a presunção de violência em delitos dessa natureza,
perpetrado contra menor de 14 anos, ante a veemente proximidade dessa idade ao limite legal, sobretudo quando
dotada a ofendida, de discernimento acerca de atos dessa natureza. II. Recurso provido. Unanimidade.
(Apelação Criminal nº 227212006 (0682652007), TJMA, Rel. Antônio Fernando Bayma Araújo. j. 03.12.2007).
5
PUIG, Eudald Maideu. Abuso sexual em El niño y em El adolescente << sex offender>>, in TOMÀS, Josep
(ed.), Trastornos por Abuso Sexual em La Infância y a Adolescencia valor educativo Del juego y Del
deporte, Unitat de psiquiatria Infanto-juvenil de l’Hosptial Val d’Hebron, edição, Barcelona: Ed. Laertes,
1999, p. 224.
6
DUARTE e ARBOLEDA apud FERRARI, Dalka C. A.. Definição de Abuso na Infância e Adolescência, in
FERRARI, Dalka C. A. e VECINA, Tereza C. C. (orgs), O Fim do Silêncio na Violência Familiar: teoria e
prática, São Paulo: Ágora, 2002, p. 83/84.
7
CAMINHA, Renata M. et al. O Abusador Sexual e o Processo Judiciário Brasileiro, in DIAS, Maria
Berenice (coord.), Incesto e Alienação Parental – realidades que a Justiça insiste em não ver, São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 2007, p. 149.
14
específica pelos estudiosos do tema abuso sexual intrafamiliar, assim definido por
PATRÍCIA CALMON RANGEL
8
:
Consideramos abuso sexual intrafamiliar ou incesto abusivo as relações com
conotação sexual entre pais e filhos, crianças ou adolescentes, no interior da
família, sejam os laços que os unem consangüíneos, afins ou civis.
Designamos “pai” o indivíduo que assume a autoridade paterna, dentro da
família (pai biológico, adotivo, padrasto etc).
LUÍSA FERNANDA HABIGZANG e RENATO MAIATO CAMINHA
constatam que “a violência intrafamiliar é um sério problema social, que, devido ao impacto
negativo que acarreta ao desenvolvimento infantil, tem sido considerado um grave problema
de saúde pública”
9
. Cumpre destacar que o termo “abuso sexual infantil” difere do “incesto”,
eis que embora possuam pontos em comum, também retratam situações diversas, uma vez que
nem toda relação incestuosa configura abuso. SAFFIOTTI, citado por PATRÍCIA CALMON
RANGEL
10
esclarece com precisão:
...é necessário separar abuso sexual de incesto. O incesto é qualquer tipo de
contato sexual entre parentes do mesmo sangue e afins, desde que sejam
adultos e a relação não seja atravessada pelo poder. Nesse caso, eles apenas
infringem uma norma social. Já o sexo com crianças é um abuso, porque ela
não tem capacidade de consentir.
LUCIA ALVES MEES
11
, referindo-se sobre os conceitos de incesto e abuso
sexual, escreveu:
Apesar da aparente diferença entre os dois conceitos, um terceiro o
conceito de abuso sexual intrafamiliar (Farinatti, 1993) permite a reunião
entre eles. Esta noção retém os aspectos do abuso relativos ao apelo sexual
feito à criança, bem como destaca tal ocorrência no interior da família.
Reúnem-se, assim, o abuso sexual e o incesto...
Os doutrinadores são uníssonos ao entenderem por abuso sexual a relação
incestuosa em que haja coação física ou psicológica
12
, sendo que LUCIMARA MARTINS
8
RANGEL, Patrícia Calmon, Abuso Sexual Intrafamiliar Recorrente, 8ª edição, Curitiba: Ed. Juruá, 2008, p.
19.
9
HABIGZANG, Luísa Fernanda e CAMINHA, Renato Maiato, Abuso Sexual contra Crianças e Adolescentes
– conceituação e intervenção clínica, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2004, p. 20.
10
SAFFIOTTI (Folha de São Paulo, 11.01.98, p. 07) apud RANGEL, Patrícia Calmon, Abuso Sexual
Intrafamiliar Recorrente, 8ª edição, Curitiba: Ed. Juruá, 2008, p. 19, nota de rodapé n. 2.
11
MEES, Lucia Alves, Abuso Sexual trauma infantil e fantasias femininas, Porto Alegre: Ed. Artes e
Ofícios, 2001 p. 18.
12
BANCHS (1994); BUTLER (1979), SAFFIOTI (1997) e GABEL (1997), referidos por RANGEL, Patrícia
Calmon, Abuso Sexual Intrafamiliar Recorrente, 8ª edição, Curitiba: Ed. Juruá, 2008, p. 20.
15
PEREIRA refere à denominação “violência sexual incestogênica”
13
. Outra terminologia
utilizada é assalto incestusoso”, usada por BUTLER (1979, p. 15), citado por PATRÍCIA
CALMON RANGEL
14
, conceituando-o como:
...qualquer contato sexual manual, oral ou genital, ou qualquer outro tipo de
comportamento sexual explícito que um membro adulto da família impõe a
uma criança, incapaz de modificar ou compreender tal comportamento,
devido à sua impotência dentro da família e sua fase ainda inicial de
desenvolvimento psicológico.
A autora
15
afirma que as pesquisas investigativas acerca do abuso sexual
intrafamiliar classificam o incesto pai-filha como ordinário, em razão do alto número de sua
ocorrência. Salienta, ainda, que a relação pai-filha, engloba não a relação biológica, mas
também a civil, em caso de adoção e a por afinidade, quando a criança é enteada. quem
denomine tal situação de “violência sexual doméstica”, como FORWARD e BUCK (1989)
16
,
que o definem como:
...qualquer contato abertamente sexual entre pessoas que tenham um grau de
parentesco ou acreditem tê-lo. Esta definição incluiria padrasto, madrasta,
meio-irmãs, avós por afinidade e até mesmo amantes que morem junto com
o pai ou a mãe caso eles assumam o papel de pais. Se a confiança especial
que existe entre a criança e um parente ou uma figura de pai e mãe for
violada por qualquer ato de exploração sexual, trata-se de incesto.
Por fim, relevante diferenciar o termo abuso sexual infantil da pedofilia. Esta é
um conceito mais abrangente que aquele, sendo inserta na categoria de parafilia, como espécie
desta. MATILDE CARONE SLAIBI CONTI esclarece que o termo “parafilia” substitui a
“perversão”, que designava práticas sexuais tidas por desvio em relação a uma norma social
ou sexual. Afirma que a psiquiatria arrola a parafilia na mesma categoria da neurose e psicose,
elucidando que as parafilias são caracterizadas como anseios, fantasias ou comportamentos
sexuais recorrentes, intensos, que envolvem objetos, atividades ou prejuízos no
funcionamento social ou ocupacional ou ainda em outras áreas importantes da vida do
13
PEREIRA, Lucimara Martins, in CRAMI (org.), Abuso Sexual Doméstico Atendimento às Vítimas e
Responsabilização do Agressor, 2ª edição, São Paulo: Ed. Cortez, 2005, p. 18.
14
BUTLER apud RANGEL, Patrícia Calmon, Abuso Sexual Intrafamiliar Recorrente, edição, Curitiba:
Ed. Juruá, 2008, p. 20
15
RANGEL, Patrícia Calmon, Abuso Sexual Intrafamiliar Recorrente, 8ª edição, Curitiba: Ed. Juruá, 2008, p.
20.
16
FORWARD e BUCK, apud PEREIRA, Lucimara Martins, in CRAMI (org.), Abuso Sexual Doméstico
Atendimento às Vítimas e Responsabilização do Agressor, 2ª edição, São Paulo: Ed. Cortez, 2005, p. 17.
16
indivíduo”
17
. A autora
18
cita o conceito de pedofilia formulado pelo psicanalista José Roberto
Paiva, como sendo:
distúrbio de conduta sexual, onde o indivíduo adulto sente desejo
compulsivo, de caráter homossexual ou heterossexual, por crianças ou pré-
adolescentes. Este distúrbio ocorre na maioria dos casos em homens de
personalidade tímida, que se sentem impotentes e incapazes de obter
satisfação sexual com mulheres adultas. Muitos casos são de homens
casados, insatisfeitos sexualmente. Geralmente são portadores de distúrbios
emocionais que dificultam um relacionamento saudável com suas esposas. O
portador de pedofilia se sente seguro na ação sexual e no controle da
situação diante da criança.
Assim, infere-se que a pedofilia constitui-se numa parafilia consistente em
intenso e reincidente desejo por práticas sexuais com crianças e adolescentes. Difere, destarte,
do abuso sexual infantil, que se com a efetiva prática de atos sexuais com crianças e/ou
adolescentes. Obviamente, não é raro que o agressor no abuso sexual infantil seja pedófilo, ou
seja, portador de tal parafilia.
Definida a expressão abuso sexual infantil, apontando os pontos divergentes com
outros termos afins, para coibir eventuais equívocos, cabe analisar as características que o
tornam tão peculiar e complexo.
1.2. A Família e seu Papel Fundamental no Abuso Sexual Infantil
O abuso sexual infantil é classificado como fenômeno multideterminado, isto é,
que possui diversas motivações e fontes originárias. Nesse sentido, esclarecedoras as palavras
de DALKA C. A. FERRARI e TEREZA C. C. VECINA quando afirmam que o abuso
sexual de crianças não é um acontecimento individual, mas familiar, podendo ser, em si
mesmo, a consequência de um distúrbio nas relações familiares”
19
. No mesmo sentido, as
considerações de DUARTE e ARBOLEDA
20
:
17
CONTI, Matilde Carone Slaibi, Da Pedofilia Aspectos Psicanalíticos, Jurídicos e Sociais do Perverso
Sexual, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2008, p. 27.
18
CONTI, Matilde Carone Slaibi, Da Pedofilia Aspectos Psicanalíticos, Jurídicos e Sociais do Perverso
Sexual, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2008, p. 37.
19
FERRARI, Dalka C. A. e VECINA, Tereza C. C., O Fim do Silêncio na Violência Familiar teoria e
prática, 3ª edição, São Paulo: Ed. Ágora, 2002, p. 183.
20
DUARTE, José Cantón e ARBOLEDA, Maria del Rosário Cortès, Guia para la Evaluacíon del Abuso
Sexual Infantil, 2ª edição, Madrid: Ed. Pirâmide, 2008, p. 21.
17
Las familias de las víctimas de abusos sexuales parecen presentar ciertas
características. Los estudios empíricos han encontrado que las famílias de
las vítimas de abusos incestuosos y no incestuosos presentan uma menor
cohesión, mayor desorganización y, generalmente, son más disfucionales
que las los niños nos abusados.
Acerca da família incestuosa, escreveu MATILDE CARONE SLAIBI CONTI
21
:
É normalmente disfuncional, apresentando uma estrutura rígida, patriarcal,
onde o pai domina através da força e coerção. (...) Essas famílias se fecham
em si mesmas e os de fora são vistos com suspeita e conseqüentemente
rechaçados, dificultando mais ainda a identificação da problemática. São
comuns os conflitos dos papéis que cada um deve assumir. A mãe delega
muitas vezes as tarefas domésticas e matrimoniais à filha devido à sua
própria depravação. Às vezes, a mãe consciente ou inconscientemente
encoraja o relacionamento sexual entre o marido e a filha, delegando o papel
maternal e afetuoso ao pai, que acaba transformando isto em um contexto
sexual.
MARIA REGINA FAY AZAMBUJA
22
descreve o pai que mantém relação
incestuosa com sua filha como introvertido, com tendência ao isolamento, centrando suas
atenções na família. A mãe, por sua vez, exerce função de facilitadora do abuso,
impulsionadas pela ansiedade de manutenção do marido, que é reforçada pelo suporte
financeiro provido por ele. Com maestria, a autora descreve as consequências desse enredo:
Na maioria dos casos de incesto, os protagonistas se encontram presos a um
estilo de vida difícil de desvencilhar-se, fazendo de tudo para evitar a
revelação. Buscando preservar a família, os seus integrantes,
freqüentemente, negam o incesto, mesmo depois de ter sido posto em
evidência, tendendo a acusar a vítima, caso seja ela a responsável pela
revelação. A criança se privada de qualquer apoio, restando-lhe poucas
saídas. É comum que o incesto não seja descoberto logo, mas somente após
transcorrido longo tempo, quando a tensão emocional da vítima a faz
confessar seu difícil passado.
PIERRE SABOURIN conceitua os aspectos psíquicos do pai e da mãe da vítima
do abuso sexual, afirmando que “nesses casos de abuso sexual intrafamiliar, toque ou
penetração do corpo da criança, com todo o seu cortejo de intimidações até ameaças de morte,
isto é, de hipnose paterna, a atitude da mãe surge como determinante e vai tornar o
21
CONTI, Matilde Carone Slaibi, Da Pedofilia Aspectos Psicanalíticos, Jurídicos e Sociais do Perverso
Sexual, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2008, p. 76.
22
AZAMBUJA, Maria Regina Fay de Azambuja, Violência Sexual Intrafamiliar: É possível proteger a
criança?, Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2004, p. 130/131.
18
traumatismo patogênico”
23
. Sobre a hipnose paterna e materna, asseverou o doutrinador que
“certo número de conceitos saídos dos desenvolvimentos teóricos de Ferenczi é indispensável
a uma apreciação correta dessas patologias. Os principais são a hipnose paterna e materna, o
desmentido materno e o auto-sacrifício da integridade de pensamento da criança”
24
.
O desmentido materno e o auto-sacrifício da criança vítima do abuso são
descritos de forma perturbadora, mas realista por FERENCZI, citado por PIERRE
SABOURIN: “Sua mãe não acredita nela. Ninguém “pode” acreditar nela. Em geral, ela será
rejeitada, insultada, punida; quando crescer, será eliminada da família, afastada de sua casa”
25
.
Embora alguns defendam que os relatos de abuso sexual tem como ensejadores
os fenômenos psicológicos denominados de desejo, pulsão ou desejo incestuoso, como o
complexo de Édipo, a maior parte dos doutrinadores entendem que os abusos realmente
existem, e tem como fundamento não um distúrbio psicológico infantil e sim características
dos pais, seja da mãe ou do pai. LÚCIA ALVES MEES
26
, mencionando estudos de FREUD,
escreveu que:
a menina fantasia que foi seduzida pelo pai, em resposta ao seu desejo de ser
amada por ele. A ambigüidade do genitivo “desejo do pai” produz um
equívoco entre “desejo por ele” e desejo dele. Estava fundada uma teoria
geral que explicava o Complexo de Édipo como estruturante de cada sujeito
e como produtor de neurose. Portanto, com o final da teoria traumática,
Freud alicerça as grandes formulações psicanalíticas: a sexualidade infantil,
o Complexo de Édipo, o recalcamento ou repressão, a realidade psíquica etc.
Continua a autora afirmando que “o risco de associar a violência sexual a uma
reivindicação pelos direitos das mulheres e crianças pode ser o de desconsiderar o feminino
de cada mulher e o infantil de cada criança”
27
. A contrapor tal entendimento, sem deixar de
considerar que, em alguns casos, em sua minoria, o abuso sexual tem como nascedouro
23
SABOURIN, Pierre, Por que a Terapia Familiar em Face do Incesto?, in GABEL, Marceline (org.),
Crianças Vítimas de Abuso Sexual, 2ª edição, São Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 167.
24
SABOURIN, Pierre, Por que a Terapia Familiar em Face do Incesto?, in GABEL, Marceline (org.),
Crianças Vítimas de Abuso Sexual, 2ª edição, São Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 167.
25
Segundo PIERRE SABOURIN, “Isso foi descrito por Ferenczi (1933) num texto conhecido por todos,
chamado “Confusion des langues entre eles adultes et l’enfant” [“A confusão de línguas entre adultos e as
crianças”]”. SABOURIN, Pierre, Por que a Terapia Familiar em Face do Incesto?, in GABEL, Marceline
(org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, 2ª edição, São Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 166.
26
MEES, Lucia Alves, Abuso Sexual trauma infantil e fantasias femininas, Porto Alegre: Ed. Artes e
Ofícios, 2001, p. 10.
27
MEES, Lucia Alves, Abuso Sexual trauma infantil e fantasias femininas, Porto Alegre: Ed. Artes e
Ofícios, 2001, p. 16.
19
questões psíquicas da criança em relação ao pai ou àquele que figura como tal, assim
expressou-se PIERRE SABOURIN
28
:
Primeira evidência, o incesto ativo entre pais e filhos muito jovens não tem
nada a ver com o sonho ou fantasma incestuoso da criança nem com seu
delírio incestuoso, com seu desejo ou pulsão, nem com qualquer literatura;
mais freqüentemente, está ligado a maus-tratos parentais, a uma carência
afetiva materna e a intimidações sedutoras do adulto.
Isso não significa que não haja elementos psicológicos de influência na
ocorrência do abuso sexual infantil. Na realidade, em regra, o abuso sexual infantil, em
especial o intrafamiliar, é todo impregnado de questões psicológicas, mas não atuam
originariamente na criança, e sim no adulto abusador ou no omisso, que prefere não enxergar
o fenônemo, negando sua ocorrência e consequências. Os estudiosos têm denominado tais
fenômenos, todos na área psicológica, de “síndrome”. Dentre as mais relevantes temos a
síndrome da adição, a do segredo e, mais recentemente, a da alienação parental. Entre tais
elementos, uma das principais é a chamada síndrome da adição, objeto de estudo do próximo
item.
Como veremos, as características da família aqui revisadas contribuem em muito
para ocorrência da denominada “síndrome do segredo”, sendo que esta sim atinge a criança e
demais membros da família, e dificultando em muito a revelação do abuso e, por
consequência, estimula sua perpetuação. Já a síndrome da alienação parental revela uma nova
faceta do abuso sexual: a utilização da criança para atingir o ex-cônjuge em caso de
separação, levando os filhos a sentirem ódio do(a) ex-parceiro(a), o que inclui até mesmo
levar o filho a realizar e manter falso relato de abuso sexual. Veja-se breve revisão de tais
síndromes, para melhor compreensão.
1.3. Síndrome da Adição – o que leva o Abusador a cometer tal ato?
Na busca de respostas ao motivo ensejador do abuso sexual infantil, na maioria
das vezes incompreendido pela sociedade em geral, causadora de reações de choque e
repugnância, os estudiosos se depararam com um fenômeno psíquico que convencionou-se
28
SABOURIN, Dr. Pierre, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, 2ª edição, São
Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 165/166.
20
denominar de síndrome da adição. LUÍSA FERNANDA HABIGZANG e RENATO
MAIATO CAMINHA
29
descreveram tal síndrome como a:
caracterizada pelo comportamento compulsivo do descontrole de impulso
diante do estímulo gerado pela criança, ou seja, o abusador, por não se
controlar, usa a criança para obter excitação sexual e alívio de tensão,
gerando dependência psicológica e negação da dependência.
A respeito do tema, escreveu JOSÉ ANTÔNIO DALTOÉ CEZAR
30
:
Uma das principais características da maior parte dos abusadores é que, para
eles, tal prática funciona como adição, isto é, o constitui inicialmente uma
experiência de prazer, mas uma necessidade para alívio para suas tensões, tal
como o álcool funciona para o alcoolista, a droga para o drogadito.
Conforme esclarece FURNISS, referido por CATARINA MARIA
SCHMICKLER, em relação ao abusador, a síndrome da adição complementa a do segredo,
sendo demasiadamente parecida com outras formas de adição. Em suas palavras, a “droga”,
neste caso, é uma criança estruturalmente dependente que não é vista como pessoa mas como
um instrumento de excitação”
31
.
O relato encontrado na obra da autora CATARINA MARIA SCHMICKLER
32
por autor de abuso sexual infantil e intrafamiliar revela de forma contundente como funciona
a síndrome da adição no abusador:
...O relacionamento de João com a enteada chegou ao ponto de fazerem sexo
na cama de casal. Quando terminavam, ele se sentia envergonhado, dava-se
conta do que acontecera e “pensava assim: ‘O que é que eu fui fazer de
novo!’ Eu me arrependia!” Depois de tudo terminar, sua vida voltava ao
normal. A alegada vergonha atestava que novamente não fora capaz de
seguir sua razão, tendo se deixado levar, como ele disse muitas vezes, pela
“falta de capricho”. João relatou que ele não conseguia resistir: “Não dava!
Não dava!”
29
HABIGZANG, Luísa Fernanda e CAMINHA, Renato Maiato, Abuso Sexual contra Crianças e
Adolescentes – conceituação e intervenção clínica, 2ª edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2004, p. 31.
30
CEZAR, José Antônio Daltoé, Depoimento Sem Dano Uma Alternativa para Inquirir Crianças e
Adolescentes nos Processos Judiciais, Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2007, p. 50.
31
FURNISS, T. Abuso Sexual da Criança: uma abordagem multidisciplinar, manejo, terapia e
intervenção legal integrados. Tradução Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas,
1993, p. 37-38, apud SCHMICKLER, Catarina Maria, O Protagonista do Abuso Sexual sua lógica e
estratégias, Chapecó: Ed. Argos, 2006, p. 134.
32
SCHMICKLER, Catarina Maria, O Protagonista do Abuso Sexual – sua lógica e estratégias, Chapecó: Ed.
Argos, 2006, p. 143.
21
Fica evidente, assim, como observou mencionada autora, que as pessoas que
perpetram o abuso sexual infantil também sofrem, e precisam de ajuda
33
. Tal ajuda se
consubstanciaria em tratamento, e não apenas em punição, com alta possibilidade de
reincidência quando de sua soltura após o simples e mero cárcere. Tal qual a síndrome da
adição, que funciona como mecanismo de negação da realidade para o agressor, assim age a
síndrome do segredo, em relação à vítima, como veremos a seguir.
1.4. Síndrome do Segredo – Causas e Efeitos
O segredo que circunda o abuso sexual infantil, especialmente o intrafamiliar ou
incestogênico, é de tal forma presente e relevante na sua caracterização, que foi erigido à
denominação de “síndrome do segredo”, constituindo-se em peculiaridade nos casos de ASI.
FURNISS (1993), referido por LUISA FERNANDA HABIGZANG e RENATO MAIATO
CAMINHA o define como uma das síndromes intimamente relacionadas com o abuso sexual
infantil, ao lado da síndrome de adição, conceituando-o como sendo “diretamente relacionada
com a psicopatologia do agressor (pedofilia) que, por gerar intenso repúdio social, tende a se
proteger em uma teia de segredo, mantido às custas de ameaças e barganhas com a vítima”
34
.
Segundo MARIA HELENA MARIANTE FERREIRA, “as famílias em situação
de incesto são famílias que vivem histórias de violência e abandono através de gerações”
35
.
Citando BARUDY, escreveu a autora que o ciclo transgeracional da violência favorece o
segredo familiar do incesto possibilitando que o segredo do abuso não se rompa durante
anos”
36
.
Os fatores que ensejam a ocorrência da síndrome do segredo são classificados
por VELEDA DOBKE
37
como externos e psicológicos. Dentre os externos arrola a autora a
33
SCHMICKLER, Catarina Maria, O Protagonista do Abuso Sexual – sua lógica e estratégias, Chapecó: Ed.
Argos, 2006, p. 135.
34
HABIGZANG, Luísa Fernanda e CAMINHA, Renato Maiato, Abuso Sexual contra Crianças e
Adolescentes – conceituação e intervenção clínica, 2ª edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2004, p. 31.
35
FERREIRA, Maria Helena Mariante, Memórias Falsas ou Apuração Inadequada?, in DIAS, Maria
Berenice (coord.), Incesto e Alienação Parental – realidades que a Justiça insiste em não ver, São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 2007, p. 141.
36
BARUDY, J. Maltrato Infantil (ecologia social: prevención y reparación), Santiago: Gadoc, 1999, apud
FERREIRA, Maria Helena Mariante, Memórias Falsas ou Apuração Inadequada?, in DIAS, Maria Berenice
(coord.), Incesto e Alienação Parental realidades que a Justiça insiste em não ver, São Paulo: Ed. Revista
dos Tribunais, 2007, p. 141.
37
DOBKE, Veleda, Abuso Sexual A Inquirição das Crianças - Uma Abordagem Interdisciplinar, Porto
Alegre: Ed. Ricardo Lenz, 2001, p. 34.
22
inexistência de evidência médica, ameaças e subornos impingidos à criança, ausência de
credibilidade da criança, e o temor acerca das consequências da revelação. Os fatores
psicológicos enumerados são a culpa, não no sentido legal, mas no sentido psicológico, a
negação e a dissociação. Estes últimos consubstanciam-se em mecanismos de defesa, sendo a
negação a não aceitação da ocorrência da experiência que “impede a vítima de ver o abuso
como abuso”
38
e a dissociação, processo pelo qual “a vítima separa o abuso sexual, fato real,
dos sentimentos por ele gerados, garantindo que as emoções causadas pela situação traumática
não interfiram em sua vida”
39
. Ambos os mecanismos são usados pelo abusador na interação
sexual abusiva e na manutenção do abuso em segredo, o que enseja sua continuidade.
A estruturação familiar, ou a falta dela, contribui em muito para a ocorrência da
síndrome do segredo, como bem descreve PIERRE SAUBORIN
40
:
Nessas famílias, não é o incesto que é proibido. Em geral, ele é
perfeitamente tolerado e conhecido pela mãe da criança, cúmplice ou ela
mesma mergulhada numa conivência inconsciente com o pai “sedutor”. Não,
é a palavra sobre o ato que é tabu: “Isso não deve sair da família” (...) essa
criança, primeiramente, corre o perigo de que não acreditemos nela. Afinal,
apresenta sintomas novos muito violentos e distúrbios de temperamento
incomuns e regressivos; seu discurso mudou tornando-se escatológico e
hiperssexuado; ela multiplica condutas compulsivas de masturbação que
nada têm de banal.
Para se compreender porque muitos que deveriam proteger a criança, já que por
ela nutrem real amor, como mãe, avó, tios e tias, irmãos, preferem negar o acontecimento,
inclusive para si, chegando a usar manobras para não trazer à tona o acontecimento,
esclarecedor o trecho escrito pelo mencionado autor
41
:
No incesto ativo, é uma menina de quatro anos ou um menino de seis que
ousa enfrentar a imposição paterna para que se cale, manifestando com sua
palavra um pedido de socorro que promove escândalo na família até ali sem
grandes problemas aparentemente: “Papai me machuca quando coloca o
dedo entre minhas pernas...” . Ou então, um garoto fala do padrasto: “Ele
mexeu de novo no meu pipi...”
38
DOBKE, Veleda, Abuso Sexual A Inquirição das Crianças - Uma Abordagem Interdisciplinar, Porto
Alegre: Ed. Ricardo Lenz, 2001, p. 35.
39
DOBKE, Veleda, Abuso Sexual A Inquirição das Crianças - Uma Abordagem Interdisciplinar, Porto
Alegre: Ed. Ricardo Lenz, 2001, p. 35.
40
SABOURIN, Pierre, Por que a Terapia Familiar em Face do Incesto?, in GABEL, Marceline (org.),
Crianças Vítimas de Abuso Sexual, 2ª edição, São Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 166.
41
SABOURIN, Pierre, Por que a Terapia Familiar em Face do Incesto?, in GABEL, Marceline (org.),
Crianças Vítimas de Abuso Sexual, 2ª edição, São Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 166.
23
Destarte, a síndrome da adição unida à do segredo formam dupla de fenômenos
quase que imbatível para a concretização do abuso sexual infantil.
1.5. Síndrome da Alienação Parental e as falsas denúncias de Abuso
Tradicionalmente, os fenômenos psicológicos das síndromes da adição e do
segredo são relacionadas ao abuso sexual, como originadores e fomentadores do mesmo.
Acrescenta-se a elas, atualmente, a chamada síndrome da alienação parental, considerada
fruto da sociedade contemporânea originada no crescente número de separações e divórcios
que acometem o casamento, a união estável e a instituição denominada família.
Hoje, o próprio conceito de família tem se flexibilizado, para abarcar situações
outras que não a constituída por pai, mãe (casados tanto civilmente quanto sob a chancela
religiosa), e filhos. A família abrange também mãe e filhos, pai e filhos, homem e mulher sem
filhos, companheiros do mesmo sexo com e sem filhos. LUIZ EDSON FACHIN
42
explica que
a família era sujeito de direito, predominando sobre seus membros, sendo que atualmente
prevalece os interesses dos membros em si, segundo a concepção eudemonista da família. Nas
suas palavras
43
:
no sistema originário de família, o Código vertia uma família
matrimonializada, hierarquizada e patriarcal, e a família da legislação
fundamental do Direito de Família hoje não é mais hierarquizada, patriarcal
e matrimonializada. Desse modo, as três características fundamentais do
modelo estão superadas.
Diante dessa realidade, também surgem novos fenômenos psíquicos, muitas
vezes não salutar, como é o caso da síndrome da alienação parental. Na definição de JORGE
TRINDADE
44
, a síndrome da alienação parental é
42
FACHIN, Luiz Edson, Teoria Crítica do direito civil, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 192 e 206, apud
GUAZZELLI, Mônica, A Falsa Denúncia de Abuso Sexual, in DIAS, Maria Berenice (coord.), Incesto e
Alienação Parental realidades que a Justiça insiste em não ver, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2007, p. 114.
43
FACHIN, Luiz Edson, Teoria Crítica do direito civil, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 192 e 206, apud
GUAZZELLI, Môncia, A Falsa Denúncia de Abuso Sexual, in DIAS, Maria Berenice (coord.), Incesto e
Alienação Parental realidades que a Justiça insiste em não ver, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2007, p. 114.
44
TRINDADE, Jorge, Síndrome de Alienação Parental (SAP), in DIAS, Maria Berenice (coord.), Incesto e
Alienação Parental realidades que a Justiça insiste em não ver, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2007, p. 102.
24
um transtorno psicológico que se caracteriza por um conjunto de sintomas
pelos quais um genitor, demoninado cônjunge alienador, transforma a
consciência de seus filhos, mediante diferentes formas e estratégias de
atuação, com o objetivo de impedir, obstaculizar ou destruir seus vínculos
com o outro genitor, denominado cônjuge alienado, sem que existam
motivos reais que justifiquem essa condição.
Continua o autor, esclarecendo
45
:
Em outras palavras, consiste num processo de programar uma criança para
que odeie um de seus genitores sem justificativa, de modo que a própria
criança ingressa na trajetória de desmoralização desse mesmo genitor. Dessa
maneira, podemos dizer que o alienador “educa” os filhos no ódio contra o
outro genitor, seu pai ou sua mãe, até conseguir que eles, de modo próprio,
levem a cabo esse rechaço.
A Síndrome da Alienação Parental, ou simplesmente SAP, também é
considerada um tipo de abuso. Segundo MÔNICA GUAZZELLI, “trata-se de um abuso
psicológico grave e extremamente perverso, que sem dúvida danificará o desenvolvimento da
criança, não mutilando a relação desta com o outro genitor, mas criando uma confusão
psíquica irreversível”
46
. Acompanhando tal entendimento, considera JORGE TRINDADE que
a síndrome em comento é “um tipo sofisticado de maltrato e abuso”
47
.
Embora este fenômeno possa ocorrer em qualquer época ou circunstância, seu
habitat mais propício é o da separação, de fato ou judicial, comumente esta precedida por
aquela. Acerca disso, escreveu MONICA GUAZZELLI que um dos momentos em que mais
aparecem as patologias e desvios, tanto na dinâmica familiar como de seus membros, ocorre
quando os vínculos de um casal se rompem pela separação, pela dissolução da união ou pelo
divórcio”
48
. Elucida a doutrinadora, citando SEKIN, que a separação ou o divórcio não
implicam obrigatoriamente na ocorrência de uma patologia no campo psicológico, mas que
45
TRINDADE, Jorge, Síndrome de Alienação Parental (SAP), in DIAS, Maria Berenice (coord.), Incesto e
Alienação Parental realidades que a Justiça insiste em não ver, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2007, p. 102.
46
GUAZZELLI, Mônica, A Falsa Denúncia de Abuso Sexual, in DIAS, Maria Berenice (coord.), Incesto e
Alienação Parental realidades que a Justiça insiste em não ver, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2007, p. 127.
47
TRINDADE, Jorge, Síndrome de Alienação Parental (SAP), in DIAS, Maria Berenice (coord.), Incesto e
Alienação Parental realidades que a Justiça insiste em não ver, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2007, p. 110.
48
GUAZZELLI, Mônica, A Falsa Denúncia de Abuso Sexual, in DIAS, Maria Berenice (coord.), Incesto e
Alienação Parental realidades que a Justiça insiste em não ver, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2007, p. 115.
25
“os investigadores coincidem em assinalar que significa uma quebra emocional importante
como acontecimento potencialmente psicopatogênico, que pode derivar em manifestações
patológicas, sendo sua direção cada vez mais desajustada ou inadequada”
49
.
Embora o assunto seja relativamente novo no Brasil, ainda desconhecido por
muitos, nos Estados Unidos tem sido alvo de estudos desde a década de 80, como
demonstrado no trecho a seguir, transcrito da obra de KATHLEEN COULBORN FALLER
50
:
Children whose parents are involved in divorce with custody or visitation
disputes have been described by a number of author as making false
accusations (Benedek & Schetky, 1987 a&b; Gardner, 1989; Green, 1986;
Jones & MacGraw, 1987; Jones & Seig, 1988; Levanthal et al., 1987;
Renshaw, 1987). In Conte et al.’s (1991) survey of sexual abuse
professionals, 90% of respondents thought that being involved in a custody
battle “occasionally” resulted in distortions of the child’s report.
JORGE TRINDADE
51
enumera diversas condutas perpetradas pelo alienador, na
busca do afastamento do ex-cônjuge. Dentre elas pode-se citar como mais relevantes a
interceptação de cartas, e-mails, telefonemas, recados e pacotes destinados aos filhos; a
desvalorização do outro cônjuge perante terceiros; recusa de informações em relação aos
filhos; impedimento do exercício do direito de visitas; sair de férias e deixar os filhos com
outras pessoas; ameaçar punir os filhos caso eles tentem se aproximar do outro cônjuge;
implantar falsas memórias de abuso sexual e realizar falsas denúncias de abuso físico,
emocional ou sexual.
As duas últimas condutas arroladas interessam ao estudo, que muitas vezes
eclodem na ‘revelação’ do abuso sexual supostamente perpetrado pelo genitor em face de seu
filho, criança ou adolescente. A denúncia origina inquérito policial e consequente processo
judicial que, se fulcrado tão somente na análise fria do relato coerente e firme do genitor
denunciante e da criança vítima, pode ensejar a suma injustiça de punir, da forma mais severa
49
SEKIN, 1997, BIBLARZ ET AL, 1997 apud Nelson Zicavo Martinez. Tese sobre padrectomia (exclusão do
pai): o papel da paternidade e a padrectomia pós-divórcio, apud GUAZZELLI, Mônica, A Falsa Denúncia
de Abuso Sexual, in DIAS, Maria Berenice (coord.), Incesto e Alienação Parental – realidades que a Justiça
insiste em não ver, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007, p. 115, nota de rodapé.
50
FALLER, Kathleen Coulborn, Inteviewing Children About Sexual Abuse Controversies and Best
Practice, New York: Oxford University Press, 2007, p. 203.
51
TRINDADE, Jorge, Síndrome de Alienação Parental (SAP), in DIAS, Maria Berenice (coord.), Incesto e
Alienação Parental realidades que a Justiça insiste em não ver, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2007, p. 106 e 107.
26
possível, o genitor alienado, fazendo incidir pena legal e moral, impondo a pecha de
‘abusador’ e subtraindo-o do papel de pai.
Para evitar tamanho revés de justiça, deve-se levar em conta também os outros
sinais do abuso, no âmbito psíquico da vítima, revelado por comportamentos e atitudes
notáveis e cuja interpretação apenas os profissionais da psiquiatria e psicologia estão
preparados a realizar. Aclarando o modus operandi do genitor alienador, JORGE TRINDADE
cita AGUILAR CUENCA
52
, cujo trecho transcreve-se aqui, diante da relevância de seu
esclarecimento:
Em algumas ocasiões podem surgir falsas denúncias de abuso sexual ou de
maus tratos, que buscam interromper por via judicial os contatos do
progenitor com as crianças. Durante esse tempo, o progenitor alienador leva
a cabo sua campanha de injúrias e desacreditação para que, seja como seja a
forma em que conclua o processo penal, os menores expressem seu
rechaço contra o progenitor alienado.
A síndrome da alienação parental é alimentada pelo ódio patológico do
alienador, segundo descreve JORGE TRINDADE
53
:
cuja excessiva preocupação com o filho e a necessidade premente de afastá-
lo do alienado é apenas a máscara da denegação do outro, um instrumento
para manipular a justiça em detrimento do alienado, objeto de seu próprio
ataque e fracasso, mesmo que à custa do desenvolvimento emocional dos
filhos, as maiores vítimas.
Acerca da falsa denúncia e suas conseqüências, bem observou MÔNICA
GUAZZELLI
54
:
O mais grave é que, diante de uma falsa denúncia, além do prejuízo estar
feito (para toda a família e, principalmente, para a própria criança), a certeza
sobre o que realmente ocorreu dificilmente será alcançada. Aliás, os relatos
que existem é que essas pessoas adultas, doentes o suficiente para expor seus
filhos a tal situação, inclusive a ponto de os submeterem a exames, testes,
52
AGUILAR CUENCA, José Manuel. Síndrome de Alienação Parental. El Síndrome Parental (SAP),
Infocop, n. 30, Nov-dez, 2006, p. 29-30, apud TRINDADE, Jorge, Síndrome de Alienação Parental (SAP), in
DIAS, Maria Berenice (coord.), Incesto e Alienação Parental realidades que a Justiça insiste em não ver,
São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007, p. 107 e 108
53
TRINDADE, Jorge, Síndrome de Alienação Parental (SAP), in DIAS, Maria Berenice (coord.), Incesto e
Alienação Parental realidades que a Justiça insiste em não ver, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2007, p. 110.
54
GUAZZELLI, Mônica, A Falsa Denúncia de Abuso Sexual, in DIAS, Maria Berenice (coord.), Incesto e
Alienação Parental – realidades que a Justiça insiste em não ver, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2007, p. 127.
27
entrevistas etc., e privá-los de conviver, normalmente, com o outro genitor,
são tão psicologicamente comprometidas que, com o tempo, elas mesmas
acabam acreditando na sua versão.
Extrai-se de tais contundentes estudos que a solução judicial para o conflito não
se limita ao âmbito jurídico. Ao contrário, foge muito a ele. De nada adianta impor decisões,
emanando ordens judiciais que serão prontamente desobedecidas, como demonstra a prática
nas Varas de Família do Poder Judiciário em todo o país. Mais que recomendável e relevante,
configura pressuposto para a resolução do conflito, a realização de tratamento
psicoterapêutico de todos os envolvidos, que pode e deve ser feito por encaminhamento
judicial.
Importante salientar que nem sempre a denúncia operada pelo genitor alienador é
falsa. A síndrome da alienação parental, originada no rompimento do vínculo conjugal pode
servir apenas de estopim para a revelação do abuso real, que antes era acobertado pela
síndrome do segredo. Nesse sentido, alertou JORGE TRINDADE que “a Síndrome de
Alienação Parental pode estar favorecendo a denúncia do outro de abuso, que poderá ser
verdadeiro por parte de qualquer um dos cônjuges, ou falso”
55
.
Em razão disso, todos os profissionais envolvidos, de um modo ou de outro, na
investigação e apuração da denúncia do abuso sexual infantil, em especial os operadores do
Direito, devem analisar tais denúncias com extremo cuidado, averiguando a situação como
um todo, não deixando de considerar como fator relevante a separação concomitante ou
recente em relação à denúncia. Sobre a atuação dos psicólogos em caso de suspeita de falsa
alegação de abuso sexual, em virtude da síndrome da alienação parental, afirmou
CALÇADA
56
:
Os profissionais que atendem esse tipo de caso devem estar atentos à
possibilidade de as informações serem verossímeis ou não. O diagnóstico
deve ser aprofundado, inclusive inquirindo-se o genitor acusador, a fim de
detectarem-se eventuais traços de vingança e de revanchismo na disputa de
poder entre as partes envolvidas, e que transforma a criança em cúmplice de
um sinistro pacto de lealdade desse genitor acusador, enquanto aquele que
55
TRINDADE, Jorge, Síndrome de Alienação Parental (SAP), in DIAS, Maria Berenice (coord.), Incesto e
Alienação Parental realidades que a Justiça insiste em não ver, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2007, p. 107.
56
CALÇADA, 2003, apud SILVA, Denise Maria Perissini da, Psicologia Jurídica no Processo Civil
Brasileiro. A interface da Psicologia com Direito nas questões de família e infância, edição, São Paulo:
Ed. Casa do Psicólogo, 2007, p. 146
28
acusa se colocado em uma situação devastadora, sentindo-se oprimido e
impotente diante de seu próprio mundo. Uma boa forma de se alcançar uma
postura mais isenta e segura é o trabalho em equipe.
Como se vê, os relacionamentos pessoais, cujo arcabouço maior é a família, seja
ela na sua estrutura tradicional ou na contemporânea, que abarca diversas formas, é
impregnado de questões psicológicas, cujo conhecimento escapa ao operador do Direito. No
seio da família ocorrem fatos que interessam ao Direito, o que enseja a transmudação de
questões íntimas, afetivas, familiares, internas, psicológicas e emocionais, em jurídicas,
jurisdicionais, legais entre elas o rompimento do vínculo conjugal, que para o Direito
revela-se na separação judicial litigiosa ou consensual, divórcio litigioso ou consensual,
declaração de união estável e seu rompimento. Agrega-se a estas os processos judiciais de
guarda, alimentos e regulamentação de direito de visitas. No que respeita ao tema, os
processos criminais em que se imputa cometimento de crime de abuso sexual infantil e
intrafamiliar, com consequente procedimento de pedido de providências, com acolhimento da
vítima em instituições, ou afastamento do lar do abusador, encaminhamento a
acompanhamento psicoterápico, dentre tantos outros.
Ao fim dessa breve análise, infere-se que o conhecimento técnico a respeito da
psicologia faz-se necessário para a tomada de decisões no âmbito judicial, devendo não
haver o preparo dos operadores do Direito, para se ter o mínimo de conhecimento e
sensibilidade, mas principalmente o reconhecimento humilde de que a interdisciplinariedade é
visceral, e única forma capaz de tentar eficazmente solucionar os conflitos entre as partes que,
no caso, são membros constitutivos da família. Para tanto, JORGE TRINDADE
57
propõe a
concepção de uma:
magistratura de amparo, instituída de forma ampla por juízes, promotores de
justiça, defensores públicos e técnicos especializados em matéria da família
e infância e juventude, e com treinamento para lidar com vítimas de abuso,
poderia ser, à semelhança do Defensor do Povo, um instrumento judicial
com competência para acudir, com prontidão e eficácia, crianças submetidas
à alienação parental.
1.6. Dados Epidemiológicos
57
TRINDADE, Jorge, Síndrome de Alienação Parental (SAP), in DIAS, Maria Berenice (coord.), Incesto e
Alienação Parental – realidades que a Justiça insiste em não ver, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2007, p. 110.
29
Muito mais comum do que se imagina, o abuso sexual infantil, cuja gravidade é
notória por conjugar a natureza do ato sexual, com a peculiaridade e hipossuficiência da
vítima criança ou adolescente, não faz distinção de classes ou cultura. Nesse sentido,
escreveram DUARTE e ARBOLEDA que los estúdios epidemiológicos no han encontrado
diferencias en las tasas de prevalência em función de la clase social o del nível educativo de
las famílias de la víctima
58
.
Com propriedade, os mesmos autores
59
observaram que as pesquisas vêm
demonstrando o aumento no número de ocorrências de abuso sexual infantil no mundo,
questionando, contudo, se tal reflete autêntico crescimento na prática de tal agressão ou se
decorre da maior vontade e liberdade na revelação do delito:
Durante las dos últimas décadas se venido produciendo em los países
industrializados um incremento muy importante em el número de denuncias
de abuso sexual infantil (Lamb, 1994). No obstante, no está claro si este
incremento em el número de casos denunciados refleja um aumento real de
la incidência Del abuso sexual infantil, um mejor conocimiento del
problema, una mayor voluntad de denunciar ante uma sospecha fundada o
uma combinación de todos estos factores. Por ejemplo, La cifra de
incidencia de abuso sexual infantil en Estados Unidos pasó de 325.000
denuncias em 1985 (0,46%) a médio millón (0,7%) em 1992. Las cifras de
incidencia son inferiores em los demás países industrializados, aunque
conservando esta tendencia al alza. Por ejemplo, em Gran Bretãna se
produjo um incremento enre 1991 y 1992, pasando de 3700 (0,034%) a
4200 nuevos casos denunciados (0,037%). La tasa de incidencia de 1992 em
Noruega fue del 0,22%, mientras que em Israel los casos denunciados
fueron 1.438, una cifra superior a los 1260 casos Del año anterior.
LUCIA ALVES MEES
60
relata que, no que concerne ao incesto, ou abuso sexual
infantil e intrafamiliar, houve duas etapas, a da negação e a da redescoberta de sua existência.
A da negação se deu desde a época freudiana até o fim dos anos 70, sendo que a da
redescoberta ocorreu com a eclosão do movimento feminista, e a consequente instalação de
centros de atenção às vítimas de abuso doméstico. Conclui a autora que a consciência cada
vez mais latente do abuso sexual de crianças entre profissionais que atuam em áreas correlatas
à infância e adolescência deve-se ao crescente movimento dos direitos das crianças, corolário
58
DUARTE, José Cantón e ARBOLEDA, Maria del Rosário Cortès, Guia para la Evaluacíon del Abuso
Sexual Infantil, 2ª edição, Madrid: Ed. Pirâmide, 2008, p. 22.
59
DUARTE, José Cantón e ARBOLEDA, Maria del Rosário Cortès, Guia para la Evaluacíon del Abuso
Sexual Infantil, 2ª edição, Madrid: Ed. Pirâmide, 2008, p. 14.
60
MEES, Lucia Alves, Abuso Sexual trauma infantil e fantasias femininas, Porto Alegre: Ed. Artes e
Ofícios, 2001, p. 46.
30
do movimento feminista. Assim, o setor público, por meio do sistema médico, de serviços de
proteção à criança, da escola e do sistema legal, tem respondido a essa crescente
conscientização do abuso sexual e do incesto
61
.
Destarte, os números cada vez mais elevados da incidência de abuso sexual não
espelham, necessariamente, uma crescente deturpação e degradação da família e da
civilização, mas podem refletir justamente o contrário na maior revelação do que sempre
ocorreu às escondidas, com rasgamento do véu que impedia a libertação das vítimas do
emaranhado criado pelos adultos e pela estrutura familiar. Esta, ao revés de sua função
precípua de proteger as crianças e adolescentes -, por muitas vezes consubstanciavam
verdadeiro cárcere para a criança.
Na França, BERNARD BOUHET, DOMINIQUE PÉRARD e MICHEL
ZORMAN realizaram estudo na região de Rhône-Alpes, chegando às seguintes conclusões:
mais de 6% das pessoas entrevistadas e quase 8% das mulheres entrevistadas relataram ter
sido vítimas de um ou vários abusos antes dos dezoito anos; 42% das mulheres e 18% dos
homens declararam ter sofrido abusos várias vezes. Afirmam, também, que metade dos
abusos ocorre antes dos doze anos das vítimas
62
.
Quanto à natureza do ato abusivo, 48,5% dos entrevistados alegaram ter sofrido
abuso sexual de natureza sensorial, ou seja, com conversas, imagens pornográficas e
exibicionismo, enquanto 51,5% foram vítimas de abuso envolvendo carícias, participação
pornográfica e penetrações
63
. Em relação aos autores do abuso, referida pesquisa averiguou
que são quase que exclusivamente homens, sendo que 63% são pessoas conhecidas das
vítimas, incluindo o círculo familiar
64
.
61
MEES, Lucia Alves, Abuso Sexual trauma infantil e fantasias femininas, Porto Alegre: Ed. Artes e
Ofícios, 2001, p. 46.
62
BOUHET, Bernard, PÉRAD, Dominique e ZORMAN, Michel, Da Importância dos Abusos Sexuais na
França, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São Paulo: Ed. Summus,
1997 (traduzido do original em francês – LES ENFANTS VICTIMES D’ABUS SEXUELS, Paris, 1992), p. 33.
63
BOUHET, Bernard, PÉRAD, Dominique e ZORMAN, Michel, Da Importância dos Abusos Sexuais na
França, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São Paulo: Ed. Summus,
1997 (traduzido do original em francês – LES ENFANTS VICTIMES D’ABUS SEXUELS, Paris, 1992), p. 31 a
37.
64
BOUHET, Bernard, PÉRAD, Dominique e ZORMAN, Michel, Da Importância dos Abusos Sexuais na
França, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São Paulo: Ed. Summus,
1997 (traduzido do original em francês – LES ENFANTS VICTIMES D’ABUS SEXUELS, Paris, 1992), p. 31 e
39.
31
Nos Estados Unidos, encontra-se estudo acerca de adultos que iniciaram a
perpetração de abuso sexual infantil ainda na sua adolescência, de MICHAEL O’BRIEN e
WALTER BERA, referido na obra de LYNN HEITRITTER e JEANETTE VOUGHT
65
:
After securing a federal guarantte of immunity from prosecution for
respondents, researches interviewed over 350 sex offender, many of whom
had never been prosecuted. Over half had committed their first sexual
crimes before they were 18. Child molesters who were attracted primarily to
young boys had the earliest onset: 53% reported deviant arousal patterns by
age 15, and 74% by age 19. Sex offenders who were adolescents when they
began victimizing children had committed an average of 380 sexual crimes
by the time they were interviewed as adults.
Acerca das falsas denúncias de abuso, que existem por inúmeras razões,
conforme foi visto quando do estudo da síndrome da alienação parental
66
, pesquisas norte
americanas referidas por KATHLEEN COULBORN FALLER
67
apontaram número elevado
de ocorrências, em proporção ao de denúncias legítimas:
In the more recent Kempe Center study (Oates ET AL., 2000), results were
somewhat different. In the “not abuse” category are cases determined
unlikely but no malicious intent was found (n=114; 21%), situations in
which a parent or relative overacted to signs and symptoms (n=32; 6%),
and cases where a community professional made a report that was
unfounded (e.g., a teacher reported a child who was masturbating in class)
(n=30; 5%). There were 20 (3.6%) cases judged to be malicious false
reports. These break down into nine (1.6%) cases made by adults, three
(0.5%) cases of adult-child collusion, and eight (1.5%) false allegations by
children.
Quanto aos dados estatísticos referentes ao nosso país, encontramos um quadro
lacônico, diante da ausência de dados abrangentes, profundos e precisos. Acerca disso,
escreveu GISELA OLIVEIRA DE MATTOS
68
:
No Brasil, os números oficiais acerca do abuso sexual contra crianças e
adolescentes não são mais confiáveis que os de outros países. Tampouco o
abuso sexual foi considerado, até muito recentemente, um problema de
65
O’BRIEN, Michael e BERA, Walter, Adolescent Sexual Offenders: A Descriptive Typology, Preventing
Sexual Abuse, vol. 1, n. 3 (Fall 1986), 2, apud HEITRITTER, Lynn e VOUGHT, Jeanette, Helping Victims of
Sexual Abuse, Minneapolis, Minnesota: Ed. Bethany House, 2006, p. 95.
66
Vide subitem 1.5 deste capítulo.
67
FALLER, Kathleen Coulborn, Inteviewing Children About Sexual Abuse Controversies and Best
Practice, New York: Oxford University Press, 2007, p. 201.
68
MATTOS, Gisela Oliveira de, Abuso Sexual em crianças pequenas: peculiaridades e dilemas no
diagnóstico e no tratamento, in FERRARI, Dalka C. A. e VECINA, Tereza C. C., O Fim do Silêncio na
Violência Familiar – teoria e prática, 3ª edição, São Paulo: Ed. Ágora, 2002, p. 176.
32
saúde pública. Assim, com raras exceções originadas no ambiente
acadêmico, não ainda suficientes incentivos a pesquisas quantitativas e
estudos qualitativos neste campo, onde, também, pouco tempo foram
criados grupos de estudo e serviços especializados.
Em reportagem especial publicada na Revista Veja, de circulação nacional,
constou-se que “estima-se que, no Brasil, a cada dia, 165 crianças ou adolescentes seja
vítimas de abuso sexual. A esmagadora maioria deles, dentro de seus lares”
69
. LOPES et al,
referidos por CAMINHA et al
70
citam alguns dados nacionais acerca do abuso sexual em
geral, isto é, independentemente das características da vítima quanto ao gênero ou idade:
Segundo Lopes et al, estima-se que cerca de 12 milhões de pessoas no
mundo sofrem violência sexual e, no Brasil, esse tipo de abuso ocorreria em
cerca de 7% da população em geral. No entanto, essa estimativa não se
mostra fidedigna, uma vez que nos dados do Instituto Médico-Legal (IML)
de São Paulo os índices são mais elevados, assim como no Programa
Ambulatorial de Atenção à Saúde de Unisinos, na cidade de São Leopoldo
(PAAS). Neste, dos 233 processos encaminhados para avaliação psicológica,
61 apresentam em seu conteúdo questões de abuso sexual.
Quanto ao abuso sexual infantil, DIÉGOLI et al apontam pesquisa realizada nos
Institutos Médicos Legais de São Paulo e Curitiba, corroborando o entendimento de que sua
ocorrência é subestimada, afirmando que “nos dados do IML de São Paulo, 70% das vítimas
de abuso sexual são meninas menores de 18 anos; já no IML de Curitiba, 77% das vítimas de
abuso sexual são menores de 18 anos, não havendo especificação do sexo”
71
.
Os estudos revelam ainda que os algozes em tais delitos são,
preponderantemente, pessoas de confiança da vítima, muitas das vezes, parentes próximos das
mesmas, circunstância que caracteriza o abuso sexual intrafamiliar - ASI. Pesquisas referidas
por PATRÍCIA CALMON RANGEL
72
indicam que tal espécie de agressão é muito mais
comum do que se imagina. A autora ainda cita estimativa americana e européia constante da
69
DINIZ, Laura e COUTINHO, Leonardo, Violadas e Feridas. Dentro de casa, Revista Veja, São Paulo, v.
2105, p. 82, 25 mar. 2009. – íntegra da reportagem disponível em <www.veja.com.br/acervodigital>. Acesso em
03 jul. 2009.
70
LOPES et al, apud CAMINHA et al, O Abusador Sexual e o Processo Judiciário Brasileiro, in DIAS,
Maria Berenice (coord.), Incesto e Alienação Parental realidades que a Justiça insiste em não ver, São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007, p. 153.
71
DIÉGOLI et al, apud CAMINHA et al, O Abusador Sexual e o Processo Judiciário Brasileiro, in DIAS,
Maria Berenice (coord.), Incesto e Alienação Parental realidades que a Justiça insiste em não ver, São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007, P. 153.
72
SAFFIOTI, 1197; BOUET et al., 1997, BANCHS, 1994; AZEVEDO et al., 1993; MILLER, 1994; COHEN,
1992; BUTLER, 1979; todos referidos por RANGEL, Patrícia Calmon, Abuso Sexual Intrafamiliar
Recorrente, 8ª edição, Curitiba: Ed. Juruá, 2008, p. 17.
33
Folha de São Paulo de 11.01.98, segundo a qual “entre 9% e 10% das crianças sofrem algum
tipo de abuso sexual por parentes próximos ou conhecidos”
73
.
Embora o abuso sexual infantil atinja tanto meninos quanto meninas, os
trabalhos exploratórios apontam que a maioria esmagadora tem por vítima crianças do sexo
feminino. Tal ocorre nas investigações citadas por ANTONIO CEZAR LIMA DA
FONSECA
74
, que também trazem indicadores acerca do agressor chocantemente, em mais
de 50%, pai ou padrasto da vítima:
As pesquisas sobre violência sexual contra crianças e adolescentes
demonstram que os agredidos tanto são meninos quanto meninas. Pesquisas
realizadas pelo antigo Serviço de Advocacia da Criança de São Paulo, nos
anos de 1993/4, dão conta de que a família aparece como a principal
violentadora sexual contra crianças e adolescentes (62% dos casos
analisados) através de atos cometidos principalmente contra meninas (83%).
O pai é a figura principal (59%), violentando meninos e meninas, seguido
pelo padrasto (25%). Nos demais casos, outros adolescentes e adultos,
identificados ou não, são os responsáveis por 38% das violências sexuais.
Geograficamente, a reportagem da revista Veja, mencionada, informa que o
número de abusos sexuais infantis e intrafamiliares tem seu maior número na região norte.
Dispõe a reportagem que “em relação ao total de nascimento registrados no país entre 2003 e
2006, a porcentagem de crianças nascidas de mães com idade até 14 anos é de 1,47% no
Norte”. Elucidando como este tipo de abuso parece arraigado aos costumes locais na região
Norte, a reportagem narra que “...a prática de incesto com meninas é vista como uma
‘tradição’...” em que “os pais se julgam donos do corpo das filhas, e até quem não concorda
com isso não fala nada nem reage”
75
. Ainda segundo a reportagem, citando dissertação de
mestrado de MAÍRA DE PAULA BARRETO, até a lenda regional do boto tem suas origens
no incesto, que o boto “em noites de lua cheia, se transforma em homem e engravida as
virgens incautas”. Assim, a lenda serviria para explicar as gravidezes advindas das relações de
abuso sexual perpetradas pelos próprios pais, ao “iniciar sexualmente suas filhas”
76
.
73
RANGEL, Patrícia Calmon, Abuso Sexual Intrafamiliar Recorrente, 8ª edição, Curitiba: Ed. Juruá, 2008, p.
17.
74
FONSECA, Antonio Cezar Lima da, Crimes contra a Criança e o Adolescente, Porto Alegre: Ed. Livraria
do Advogado, 2001, p. 143/144.
75
DINIZ, Laura e COUTINHO, Leonardo, Violadas e Feridas. Dentro de casa, Revista Veja, São Paulo, v.
2105, p. 82, 25 mar. 2009. – íntegra da reportagem disponível em <www.veja.com.br/acervodigital>. Acesso em
03 jul. 2009.
76
BARRETO, Maíra de Paula, apud DINIZ, Laura e COUTINHO, Leonardo, Violadas e Feridas. Dentro de
casa, Revista Veja, São Paulo, v. 2105, p. 82, 25 mar. 2009. íntegra da reportagem disponível em
<www.veja.com.br/acervodigital>. Acesso em 03 jul. 2009.
34
Quanto ao perfil do agressor, a corroborar a prevalência do abuso sexual
intrafamiliar, afirma PATRÍCIA CALMON RANGEL que “80% e 90% das ocorrências do
abuso sexual são praticadas por pessoas conhecidas ou aparentadas da criança”
77
.
Para finalizar a sucessão de elementos que tornam o abuso sexual infantil de
extrema e insondável gravidade, os dados colhidos demonstram que o abuso sexual
intrafamiliar é caracterizado pela recorrência, ou continuidade, como consta nos comentários
da acima referida autora
78
:
...quando se fala do abuso sexual intrafamiliar, é grande o percentual de
recorrência da prática abusiva. BARRY apud COHEN (1992) estima, com
base nas pesquisas e dados sobre o tema, que 70% das relações incestuosas
perduram por mais de um ano. A recorrência do abuso, muitas vezes por ano
a fio, é tão comum que se definiu como “síndrome de adaptação da
criança ao abuso sexual intrafamiliar”
Os investigadores do tema costumam pontuar que os números estatísticos são
pálidos por não representar a realidade acerca do abuso sexual infantil e intrafamiliar. Tal se
deve em parte pela subnotificação, e em parte pela lei do silêncio, denominada
cientificamente como síndrome do segredo
79
. Na Espanha tal síndrome recebe o nome de
“síndrome de acomodación”, sendo assim descrita por EUDALD MAIDEU PUIG
80
:
El abuso ocasiona um síndrome en el que existe secretismo, sensación de
impotência y desamparo, entrampamiento, revelación o descubrimiento
diferido y retardado con acomodo y posterior retractación si es descubierto.
Hecho que debe tenerse em cuenta porque dificulta la indagación sobre el
abuso.
Tal efeito psíquico na vítima, oriundo do próprio abuso, faz com que elas se
retraiam, retardando ou mesmo anulando a revelação do crime, impedindo que o mesmo seja
cessado, e tendo como corolário a não responsabilização do criminoso, bem como a
desvirtuação dos números referentes aos casos.
77
RANGEL, Patrícia Calmon, Abuso Sexual Intrafamiliar Recorrente, 8ª edição, Curitiba: Ed. Juruá, 2008, p.
17.
78
RANGEL, Patrícia Calmon, Abuso Sexual Intrafamiliar Recorrente, 8ª edição, Curitiba: Ed. Juruá, 2008, p.
17.
79
Para maiores informações acerca do assunto, vide subitem 1.4. deste capítulo, denominado Síndrome do
Segredo – Origens e Conseqüências / Causas e Efeitos, p. 12 e seguintes
80
PUIG, EUDALD MAIDEU, Abuso sexual en el niño y en el adolescente <<sex offender>>, in TOMÀS, Josep
(ed.), Trastornos por Abuso Sexual em La Infância y a Adolescencia valor educativo Del juego y Del deporte,
Unitat de psiquiatria Infanto-juvenil de l’Hosptial Val d’Hebron, 1ª edição, Barcelona: Ed. Laertes, 1999, p. 233.
35
Como se não bastasse tamanho obstáculo, quando a criança finalmente consegue
romper a barreira do silêncio, fomentado pelos seus medos e pelas ameaças perpetradas pelo
seu algoz, não encontra respaldo e proteção. Ao contrário, muitas vezes a pessoa a quem
confiou seu segredo não lhe credibilidade ou entende que o melhor é manter tudo como
está a fim de não gerar transtornos e findar o delicado equilíbrio aparentemente existente na
família.
Numa corrente que parece não ter fim, quando algum familiar, amigo próximo
ou conhecido realiza a denúncia a algum detentor de responsabilidade para notificar o fato às
autoridades públicas, depara-se, não raras vezes, com a omissão destas. Não se deve imputar
tal conduta a uma suposta insensibilidade de tais profissionais. Analisando as causas da
subnotificação, LUISA F. HABGZANG & RENATO M. CAMINHA
81
, referem a estudo
realizado por GONÇALVEZ e FERREIRA, enumerando-as em quatro:
Gonçalvez e Ferreira (2002) realizaram um estudo com o objetivo de discutir
as principais dificuldades enfrentadas pelos profissionais. A análise concluiu
que necessidade de: a) esclarecimento da noção legal de maus-tratos e da
concepção de suspeita; b) preparação de manuais técnicos de orientação; c)
melhoria da infra-estrutura de serviços; d) realização de outros estudos sobre
as consequências do ato de notificar, especialmente sobre a concepção de
justiça que a notificação transmite à família brasileira.
Todas as causas arroladas refletem uma triste realidade, que precisa
urgentemente ser mudada: a de que os profissionais vinculados a esta área tão delicada e de
profunda gravidade, são quase que completamente despreparados técnica e psicologicamente
para lidar com o assunto. Trata-se de professores, pedagogos, diretores e monitores de
escolas, médicos, enfermeiros, psicólogos, conselheiros tutelares, policiais civis e militares e
delegados
82
. CATARINA MARIA SCHIMICKER aduz que, “em relação à visibilidade dos
fatos, a Organização Mundial da Saúde estima que somente 2% dos casos de abuso sexual
dentro de casa sejam denunciados”
83
. Não obstante, os elementos produzidos pelos trabalhos
de pesquisas se prestam a demonstrar, sim, o tamanho e a gravidade do problema, revelando
81
HABIGZANG, Luísa Fernanda e CAMINHA, Renato Maiato, Abuso Sexual contra Crianças e
Adolescentes – conceituação e intervenção clínica, 2ª edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2004, p. 62.
82
Para visão mais aguçada acerca da importância e conseqüências da atuação de tais profissionais em casos de
abuso sexual, vide capítulo 3 e 4.
83
SCHMICKLER, Catarina Maria, O Protagonista do Abuso Sexual – sua lógica e estratégias, Chapecó: Ed.
Argos, 2006, p. 33.
36
que até sua denúncia constitui questão complexa. Esclarece, nesse sentido, CATARINA
MARIA SCHMICKER
84
:
Como a violência intrafamiliar sempre foi escondida e camuflada, muito
recentemente centros de atendimento e pesquisa foram criados para a escuta
de vítima e têm apresentado estatísticas mostrando a expressão do fenômeno.
A subnotificação costuma ser mencionada por especialistas brasileiros e
estrangeiros, e os tamanhos de amostras muito diferentes, assim como
metodologias diversificadas de pesquisa, também podem ser responsáveis
pelas diferenças de alguns meros. Tudo faz crer, todavia, que a face
visível deste fenômeno é apenas a ponta de um imenso iceberg (Azevedo;
Guerra, 1988), sobre o que concordam todos os estudiosos da área, não
restando dúvidas de que é um fenomeno extremamente expressivo, nacional
e internacionalmente.
1.7. Sequelas
As consequências do abuso sexual infantil não se limitam às lesões físicas
porventura ocasionadas à criança e/ou adolescente vítima. Tão ou mais profundos e graves
são os danos psíquicos causados, que muitas vezes se protraem no tempo, alcançando a vida
adulta da vítima, chegando a transformá-la em novo agressor, perpetuando o ciclo de terror e
sofrimento. LUÍSA FERNANDA HABIGZANG e RENATO MAIATO CAMINHA
85
citam
estudo que classificou as consequências do abuso sexual infantil como orgânicas e
psicológicas. Dentre as orgânicas encontram-se a gravidez, doenças sexualmente
transmissíveis e lesões físicas. As psicológicas englobam dificuldades com adaptação
interpessoal e sexual, processo de ensino-aprendizagem e adaptação afetiva. Vale transcrever
trecho acerca da dificuldade de adaptação afetiva, por espelhar muito bem quão complexo e
intenso é o efeito causado pelo delito:
As dificuldades de adaptação afetiva estão freqüentemente associadas ao
sentimento de culpa, a idealizações e/ou tentativas de suicídio e fixação em
idéias de morte. O sentimento de culpa é uma reação típica em vítimas de
abuso sexual na infância e adolescência. Segundo Azevedo, Guerra e
Vaiciunas (1997), são três as possíveis explicações para esse sentimento: 1)
medo das pressões oriundas do “complô de silêncio” que cerca a criança-
vítima; 2) auto-condenação por ter experimentado algum prazer físico; 3)
vergonha por ter se deixado abusar durante um longo tempo.
84
SCHMICKLER, Catarina Maria, O Protagonista do Abuso Sexual sua lógica e estratégias, Chapecó: Ed.
Argos, 2006, p. 32.
85
HABIGZANG, Luísa Fernanda e CAMINHA, Renato Maiato, Abuso Sexual contra Crianças e
Adolescentes conceituação e intervenção clínica, edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2004, p.
51/53.
37
LUCIA ALVES MEES
86
cita quatro fatores traumatogênicos definidores da
experiência do abuso sexual: sexualização traumática, traição, impotência e estigmatização. A
sexualização traumática “pode ocorrer quando a criança é repetidamente premiada pelo
ofensor devido a algum comportamento sexual inapropriado para o seu nível de
desenvolvimento...”
87
. A traição, por sua vez, “se refere à dinâmica na qual cada criança
descobre que alguém de quem era vitalmente dependente lhe causou um dano, um mal”
88
.
A impotência “ocorre quando o território da criança e seu espaço corporal são
repetidamente invadidos”
89
. Esclarece a autora que “força e ameaças não são necessárias:
qualquer tipo de situação na qual a criança se sinta presa em uma armadilha pode criar uma
sensação de impotência. Obviamente, uma situação em que a criança conta e não é acreditada
criará também um maior grau de impotência”
90
. Por fim, a estigmatização é proveniente de
conotações negativas, como maldade, vergonha e culpa, que, muitas vezes são passadas à
vítima criança ou adolescente, como relacionadas à experiência sofrida, mas que ela
incorpora à sua própria imagem. Tal fator é intensificado se, após a revelação, as pessoas
reagem chocadamente ou com histeria, ou culpam a criança pelo que aconteceu”
91
.
Analisando os efeitos do abuso sexual nas vítimas crianças, verificou GISELA OLIVEIRA
DE MATTOS
92
que:
No que se refere aos efeitos da violência sexual, muitos apontam para o fato
de que o conjunto da sintomatologia apresentada por crianças abusadas
sexualmente não difere de maneira significativa daquela apresentada por
crianças que o levadas a serviços de saúde mental sem essa queixa
específica. Já McLeer ET AL. (1998), pp. 1326-33) apontam que a síndrome
do estresse pós-traumático, distúrbios do comportamento sexual e depressão
com risco de suicídio ocorrem com maior frequência entre crianças e
adolescentes abusados sexualmente...
86
MEES, Lucia Alves, Abuso Sexual trauma infantil e fantasias femininas, Porto Alegre: Ed. Artes e
Ofícios, 2001, p. 44.
87
MEES, Lucia Alves, Abuso Sexual trauma infantil e fantasias femininas, Porto Alegre: Ed. Artes e
Ofícios, 2001, p. 44.
88
MEES, Lucia Alves, Abuso Sexual trauma infantil e fantasias femininas, Porto Alegre: Ed. Artes e
Ofícios, 2001, p. 44.
89
MEES, Lucia Alves, Abuso Sexual trauma infantil e fantasias femininas, Porto Alegre: Ed. Artes e
Ofícios, 2001, p. 45.
90
MEES, Lucia Alves, Abuso Sexual trauma infantil e fantasias femininas, Porto Alegre: Ed. Artes e
Ofícios, 2001, p. 45.
91
MEES, Lucia Alves, Abuso Sexual trauma infantil e fantasias femininas, Porto Alegre: Ed. Artes e
Ofícios, 2001, p. 45.
92
MATTOS, Gisela Oliveira de, Abuso Sexual em crianças pequenas: peculiaridades e dilemas no
diagnóstico e no tratamento, in FERRARI, Dalka C. A. e VECINA, Tereza C. C., O Fim do Silêncio na
Violência Familiar – teoria e prática, 3ª edição, São Paulo: Ed. Ágora, 2002, p. 176.
38
Quando os danos psíquicos permanecem, alcançando a vida adulta o que
ocorre na maioria dos casos - externam-se de diversas formas, inclusive por meio de
distúrbios sexuais, como descreve MATILDE CARONE SLAIBI CONTI
93
:
Os distúrbios sexuais são constantes em adultos que sofreram abuso sexual
na infância ou na adolescência, esses problemas consistem em inibição,
desprazer ou aversão ao ato sexual, incapacidade de atingir o orgasmo e de
ter uma vida sexual normal com pessoas adultas e até comportamentos que
podem se transformar também em pedofilia, entre outros.
MATILDE CARONE SLAIBI CONTI relata também acerca das sequelas
advindas do abuso sexual intrafamiliar, especificamente
94
:
fatores que agravam ainda mais os efeitos da pedofilia. No caso do
pedófilo ter alguma relação de parentesco com a vítima, pois configura uma
traição, um roubo de confiança, como também os abusos sexuais duradouros
e freqüentes; os utilizados como ameaça ou força; os abusos sexuais com
penetração e ainda se a família da vítima for desestruturada não dando o
apoio necessário, maior será o trauma, levando a criança, assim maltratada,
até mesmo à depressão, sendo sua origem biopsicossocial.
Dentre os efeitos mais graves, que configuram mazelas sociais, referida autora
aduz que “essa dinâmica poderá levar muitas meninas à prostituição. Nesta venda do corpo
através do sexo, o interesse principal não é o dinheiro, mas sim a busca do afeto, que acaba
sendo em alguns casos oferecido pelo gigolô”
95
.
Pesquisas diversas realizadas nos Estados Unidos, referidas por CATARINA
MARIA SCHIMICKLER corroboram a ocorrência das sequelas acima descritas, na medida
em que relatam que de 44 a 70% de pessoas viciadas em drogas foram vítimas de incesto na
infância, e que 70% de estupradores em Nova Jersey haviam sido submetidos a abusos
sexuais na sua infância. Ainda, em Seattle, uma em cada quatro prostitutas havia sido vítima
de incesto
96
. Acerca da complexidade dos efeitos psíquicos do abuso sexual na vítima,
escreveu LUCIA ALVES MEES
97
:
93
CONTI, Matilde Carone Slaibi, Da Pedofilia Aspectos Psicanalíticos, Jurídicos e Sociais do Perverso
Sexual, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2008, p. 85.
94
CONTI, Matilde Carone Slaibi, Da Pedofilia Aspectos Psicanalíticos, Jurídicos e Sociais do Perverso
Sexual, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2008, p. 85.
95
CONTI, Matilde Carone Slaibi, Da Pedofilia Aspectos Psicanalíticos, Jurídicos e Sociais do Perverso
Sexual, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2008, p. 76.
96
SCHMICKLER, Catarina Maria, O Protagonista do Abuso Sexual sua lógica e estratégias, Chapecó: Ed.
Argos, 2006, p. 41.
39
...no caso de ocorrer o traumatismo, ele se dará com manifestações variadas,
embora guardando sempre a característica de desestruturação psíquica e
ausência de elaboração. O tipo de sintomatologia que se desenvolverá a
partir do trauma só se sabe a posteriori, não sendo pertinente o
estabelecimento de um feixe de sintomas designativo do quadro. O que a
clínica psicanalítica demonstra é que os efeitos de um trauma são variados e
a desestruturação é a tônica de todos eles.
O discorrido acerca das possíveis sequelas do abuso sexual infantil demonstra
não a patente gravidade do delito, por suas perniciosas consequências, mas também a
complexidade no trabalho do profissional que atuará no tratamento e na entrevista com a
vítima, na medida em que sua palavra, na maioria das vezes, é imprescindível para a
responsabilização do agressor.
2. A JUSTIÇA FRENTE AO ABUSO SEXUAL INFANTIL
2.1. Tipos Penais relacionados ao Abuso Sexual Infantil
A legislação brasileira acerca do assunto punição dos perpetradores de abuso
sexual infantil tanto na seara penal quanto na processual penal, tem histórico de
precariedade e de confusão, tendo como triste corolário a impunidade e perpetuação da
violência, como bem descreve ANTONIO CEZAR LIMA DA FONSECA
98
:
No Brasil, o Código Penal dispôs a respeito da violência sexual contra
crianças e adolescentes. A matéria era regulada ora diretamente (lei n.
2252/54, crime de corrupção de menores artigo 218 do Código Penal), ora
indiretamente (agravante no crime praticado contra criança, art. 61, II, h,
Código Penal ou na presunção de violência em crimes contra os costumes,
art. 224 do Código Penal). A efetiva punição dos agressores quase se perdia
no atropelo das normas.
97
MEES, Lucia Alves, Abuso Sexual trauma infantil e fantasias femininas, Porto Alegre: Ed. Artes e
Ofícios, 2001, p. 104 .
98
FONSECA, Antonio Cezar Lima da, Crimes contra a Criança e o Adolescente, Porto Alegre: Ed. Livraria
do Advogado, 2001, p. 144.
40
Com a promulgação da Constituição Federal cidadã, em 1988 e, logo em
seguida, com a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, adotou-se a teoria
da proteção integral da criança, ensejando grandes avanços legislativos nessa seara. Acerca
dessa mudança de prisma dos legisladores em relação à criança e o adolescente, descreveu
PATRÍCIA CALMON RANGEL
99
:
O novo ordenamento jurídico não visa mais, primordialmente, à ordem
social e ao controle das classes menos favorecidas e das patologias sociais,
num enfoque higienista, mas sim “ao interesse superior da criança”, ou ao
“melhor interesse da criança”, considerada pessoa em peculiar estado de
desenvolvimento e sujeitos de direitos. Suas regras abrangem não só as
crianças pobres ou abandonadas, como fazia a doutrina anterior, mas todas
as crianças e adolescentes.
Atualmente, o abuso sexual infantil, conceituado
100
, pode configurar não
apenas um, mas diversos crimes, tipificados no Código Penal e no Estatuto da Criança e do
Adolescente, além de outras leis esparsas. Embora pareça simples e claro, muitas são as
confusões operadas quando se trata de abuso sexual infantil, perpetradas tanto por
profissionais do Direito quanto por outros envolvidos, de um modo ou de outro, com o fato. A
exemplificar, o médico que atende a criança ou o adolescente, para realizar o exame de corpo
de delito, ao receber a informação de que se trata de suspeita de abuso sexual, concentra-se na
análise da área dos órgãos genitais das supostas vítimas, esquecendo-se de verificar a boca e
garganta, por exemplo. Não raras vezes, o abuso se perpetra ao constranger a vítima a realizar
sexo oral no criminoso, deixando vestígios nessa região, chegando a machucá-lo.
O assunto também causa confusão no âmbito jurídico, inclusive nos Tribunais
Pátrios e nas altas cortes brasileiras. É o que se extrai da nota de esclarecimento veiculada no
sítio do Superior Tribunal de Justiça em 30 de junho de 2009, explicando a notícia cujo título
99
RANGEL, Patrícia Calmon. Abuso Sexual Intrafamiliar Recorrente, tiragem, Curitiba: Juruá, 2008, p.
39
100
Vide capítulo 1, subitem 1.1, deste trabalho.
41
fora “Cliente ocasional não viola Artigo 244-A do Estatuto da Criança”
101
, também veiculada
no sítio daquela corte. Transcreve-se a íntegra da nota
102
, para melhor entendimento:
COMUNICADO
Nota de esclarecimento sobre decisão envolvendo exploração sexual de
adolescentes
Em razão de notícia veiculada neste site, no dia 17 último, sob o título
“Cliente ocasional não viola Artigo 244-A do Estatuto da Criança”,
tratando de tema de forte repercussão junto à opinião pública, a
Coordenadoria de Editoria e Imprensa do Superior Tribunal de Justiça
presta alguns esclarecimentos para que não pairem dúvidas quanto ao firme
posicionamento do Tribunal na proteção dos direitos e garantias das
crianças e dos adolescentes. O STJ mantém o entendimento, firmado em
diversos precedentes e na doutrina especializada, de que é crime pagar por
sexo com menores que se prostituem, ao contrário de interpretações
apressadas em torno de recente julgamento da Corte sobre o tema. O
Tribunal da Cidadania tem-se destacado não na defesa dos direitos dos
menores, como também no das mulheres, das minorias e de todos aqueles
segmentos sociais vítimas das várias formas de violência e preconceitos.
1. Ao decidir que o cliente ocasional de prostituta adolescente não viola o
artigo 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Superior
Tribunal Justiça, em momento algum, afirmou que pagar para manter
relação sexual com menores de idade não é crime. Importante frisar que a
proibição de tal conduta é prevista em dispositivos da legislação penal
brasileira.
101
Confira a notícia a que se refere a nota de esclarecimento:
Cliente ocasional de prostituta não viola artigo 244-A do Estatuto da Criança
O Superior Tribunal de Justiça manteve a decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul que rejeitou
acusação de exploração sexual de menores por entender que cliente ou usuário de serviço oferecido por
prostituta não se enquadra no crime previsto no artigo 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Segundo os autos, os dois réus contrataram os serviços sexuais de três garotas de programa que estavam em um
ponto de ônibus, mediante o pagamento de R$ 80,00 para duas adolescentes e R$ 60,00 para uma outra. O
programa foi realizado em um motel.
O Tribunal de origem absolveu os réus do crime de exploração sexual de menores por considerar que as
adolescentes eram prostitutas reconhecidas, mas ressaltou que a responsabilidade penal dos apelantes seria
grave caso fossem eles quem tivesse iniciado as atividades de prostituição das vítimas. O Ministério Público
recorreu ao STJ, alegando que o fato de as vítimas menores de idade serem prostitutas não exclui a ilicitude do
crime de exploração sexual.
Acompanhado o voto do relator, ministro Arnaldo Esteves Lima, a Quinta Turma do STJ entendeu que o crime
previsto no referido artigo submeter criança ou adolescente à prostituição ou à exploração sexual não
abrange a figura do cliente ocasional diante da ausência de "exploração sexual" nos termos da definição legal.
Citando precedente da Turma, o relator sustentou que a hipótese em que o réu contrata adolescente entregue à
prostituição para a prática de conjunção carnal não encontra enquadramento na definição legal do artigo 244-A
do ECA, pois exige-se a submissão do menor à prostituição ou à exploração sexual, o que não ocorreu no caso
em questão.
O STJ manteve a condenação dos réus pelo crime do artigo 241-B do ECA – adquirir, possuir ou armazenar, por
qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica
envolvendo criança ou adolescente – por eles terem fotografado as menores desnudas em poses pornográficas.
Coordenadoria de Editoria e Imprensa
Disponível em <http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=92477>.
Acesso em: 10 nov. 2009.
102
Disponível em <http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=92714>.
Acesso em: 10 nov. 2009.
42
2. Quem pratica relação sexual com criança ou adolescente menor de 14
anos pode ser enquadrado no crime de estupro mediante a combinação de
dois artigos do Código Penal e condenado à pena de reclusão de seis a dez
anos. São eles o artigo 213, segundo o qual é crime “constranger mulher à
conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”, e o 224, pelo qual
se presume a violência se a vítima não é maior de 14 anos.
3. o artigo 244-A do ECA (“submeter criança ou adolescente, como tais
definidos no caput do artigo desta Lei, à prostituição ou à exploração
sexual”) foi criado pelo legislador para punir, com pena de reclusão de
quatro a dez anos, segundo boa parte da doutrina e precedentes desta Corte,
o chamado “cafetão” ou “rufião” que explora e submete crianças e
adolescentes à prostituição. Portanto, o chamado cliente eventual pode,
sim, ser punido, mas com base em outros dispositivos da legislação penal,
e não no artigo 244-A do ECA. Este foi o entendimento do STJ. Em
nenhuma hipótese se pode concluir, a partir disso, que o Tribunal o
considera criminosa a prática de sexo com menores que se prostituem.
4. Desde a sua instalação, em 1988, o Superior Tribunal de Justiça tem sido
firme em sua atuação jurisdicional nos casos que envolvem a proteção aos
direitos das crianças e dos adolescentes. O Tribunal, em inúmeras ocasiões,
aplicou os diversos dispositivos da legislação referente aos menores, além
de ter atuado no sentido de resguardar os princípios constitucionais que
garantem a dignidade, a integridade física e mental das crianças e dos
adolescentes.
Entenda o caso
Segundo os autos do processo julgado pelo STJ (Resp 820.018-MS), os
réus foram inicialmente denunciados como incursos nos artigos 213
(estupro ficto) do Código Penal, além dos artigos 241-B e 244-A do ECA.
Em primeiro grau, eles foram absolvidos do crime de estupro e
condenados pelos demais crimes. O Ministério Público estadual não
recorreu de tal decisão, que transitou em julgado sem qualquer
questionamento.
A defesa apelou ao Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul contra a
decisão que condenou os réus com base no ECA. O TJMS os absolveu do
crime previsto no artigo 244-A e manteve a condenação em relação ao
artigo 241-B. O Ministério Público estadual recorreu então ao STJ.
No recurso interposto ao STJ, o MP sustentou que o fato de as vítimas
menores de idade 13, 15 e 17 anos serem corrompidas não exclui a
ilicitude do crime de exploração previsto no artigo 244-A. Ou seja, o MP
recorreu ao STJ única e exclusivamente contra a absolvição dos réus
quanto ao crime previsto no artigo 244-A do ECA, o qual, como afirma
parte da doutrina e precedente judicial, não é praticado pelo cliente
eventual, mas sim pelo chamado “cafetão” que explora crianças e
adolescentes.
No caso decidido, o Ministério Público o recorreu da decisão que julgou
improcedente a acusação pelo crime de estupro, a qual transitou em
julgado no juízo de primeiro grau. Como era seu papel, o STJ julgou
rigorosamente o pedido formulado pelo Ministério Público e manteve seu
entendimento, com base na legislação, precedentes e doutrina, no sentido
de que o crime previsto pelo artigo 244-A não abrange a figura do cliente
ocasional, que a legislação exige a submissão do infante à prostituição
ou à exploração sexual, o que não ocorreu no caso apreciado.
O STJ não julgou, e nem poderia porque não foi provocado e porque a
questão não foi prequestionada (ou seja, não foi apreciada pelas instâncias
ordinárias da Justiça), o enquadramento dos réus no crime de estupro ficto
previsto no Código Penal. Se assim o fizesse, tal procedimento
43
implicaria análise de crime distinto do veiculado no recurso especial, o
que caracterizaria uma afronta ao direito constitucional dos us à ampla
defesa e ao contraditório.
Coordenadoria de Editoria e Imprensa
Reforçando o panorama suficientemente complexo da incriminação de
condutas que podem ser denominadas abuso sexual infantil, recentemente foi promulgada a
lei 12.015/09, alterando dispositivos legais acerca dos crimes contra os costumes em geral, e
de crimes sexuais contra crianças e adolescentes. Assim, conveniente a elucidação e correta
tipificação de cada conduta. A vasta gama de crimes englobando o que se denomina abuso
sexual infantil é corolário não do repúdio social que essa espécie de delito causa, mas
deriva também de preceito constitucional. De fato, a Constituição Federal, em seu artigo 227,
par. 4º, dispõe que “a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da
criança e do adolescente”. Vejamos, então, as capitulações legais que podem ser relativas ao
abuso sexual infantil.
De início, encontramos no Código Penal, dentre os chamados delitos contra os
costumes, o estupro, tipificado no artigo 213. Com a vigência da lei n. 12.015/09, passou este
tipo a englobar o antes denominado atentado violento ao pudor, até então descrito no artigo
214. Atualmente, o estupro abarca tanto a conjunção carnal contra a vontade da vítima, isto é,
o ato sexual em que penetração do órgão genital masculino no órgão genital feminino,
quanto todo e qualquer ato libidinoso diverso da conjunção carnal, realizado pelo criminoso
no corpo da vítima, ou realizado pela vítima, no corpo do criminoso, em razão de
constrangimento deste, mediante violência ou grave ameaça. Assim, um único dispositivo
abrange o coito vaginal, o sexo anal, a esfregadela, chupões, passadas de mão, lambidas,
beijos, enfim, todo ato que tenha conotação libidinosa feita para satisfazer a lascívia, o
desejo sexual do criminoso. Em termos práticos, não houve alteração significativa, que os
antigos artigos 213 e 214 do Código Penal, embora definissem crimes diversos, impunham a
mesma pena mínima e máxima, qual seja, de 06 a 10 anos, sendo que o atual artigo 213 prevê
a mesma pena.
o parágrafo primeiro do novo artigo 213 trouxe importante mudança ao
englobar, como motivo de aumento de pena não lesão grave, como consequência do abuso
sexual, mas também o fato de ser perpetrado em face de vítima entre 14 e 18 anos de idade.
Nesses casos, a pena varia entre 08 e 12 anos de reclusão. Antes, apenas a lesão grave possuía
44
o condão de aumentar a pena para este patamar. A crítica que se faz em relação a esse
dispositivo, especificamente quanto ao parágrafo primeiro, refere-se à sua redação. In verbis,
reza o artigo 213, § 1
o
: “Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima
é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze)
anos”. Percebe-se claramente que o legislador intencionou punir com mais veemência o delito
praticado contra vítima adolescente, com idade entre 14 e 18 anos. Assim, a redação deveria
ser “se a vítima é menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos, substituindo-se a
partícula “ou” por e”. Importa ainda destacar que configuram crimes hediondos, ou seja,
incidem nas restrições impostas pela Lei 8078/90 que, não muito, significava a
impossibilidade de progressão de regime de cumprimento de pena e atualmente gera a
exigência de maior lapso temporal de cumprimento da pena no regime mais severo, para então
estar apto a requerer a progressão.
O artigo 215, também do Código Penal posse sexual mediante fraude, foi
modificado tanto em seu preceito primário quanto secundário. A descrição do delito
preceito primário, que antes era restrito à conjunção carnal, passou a abarcar todo e qualquer
ato libidinoso, englobando a conduta antes tipificada no artigo 216, revogado. Além disso,
antes o meio empregado referia-se apenas à fraude, e hoje prevê também qualquer meio que
impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”. A pena preceito secundário
foi majorada para 02 a 06 anos de reclusão, com previsão de incidência de multa se o
objetivo do delito tiver conotação econômica, ao passo que antes da alteração a pena base era
de 01 a 03 anos de reclusão, aumentada para 02 a 06 anos de reclusão caso a vítima tivesse
idade entre 14 e 18 anos, sendo virgem. Em relação às crianças e adolescentes, convém
observar que o delito tipificado no artigo em comento se aplica em se tratando de vítimas
maiores de 14 anos. É que, tratando-se de posse sexual mediante fraude, em vítimas menores
de 14 anos, o tipo a que se enquadra a conduta é a do artigo 217-A do atual Código Penal, tal
qual ocorria antes da alteração, em que se aplicava os artigos 213 e 214 do Código Penal,
que neles a violência é presumida em razão da idade da vítima.
A maior inovação operada pela reforma do Código Penal reside na inserção do
artigo 217-A, que tipifica os crimes de natureza sexual quando se trata de vítimas vulneráveis,
dentre elas, as crianças e adolescentes até 14 anos de idade. Estruturalmente, a forma como
eram dispostas as normas acerca do abuso sexual obrigava a integração dos artigos para a
correta tipificação e mensuração da pena a depender das características peculiares da vítima e
45
da relação desta com o agressor era necessário conjugar-se o artigo 213 ou o extinto artigo
214 com o artigo 224, que tratava da presunção da inocência. Com a entrada em vigor da lei
12.015/09, essa integração não se faz mais necessária, que centralizou-se tudo num
dispositivo, abaixo transcrito:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com
menor de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1
o
Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com
alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário
discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não
pode oferecer resistência.
§ 2
o
(VETADO)
§ 3
o
Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4
o
Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
Sem deixar de conferir a devida relevância à centralização dos elementos
compositores do delito, cristalinamente a mais significativa mudança consiste no erigir-se o
abuso sexual infantil a um delito específico, com regras especiais, e pena consideravelmente
elevada em relação aos demais delitos da mesma natureza. A edição desta lei, inserindo este
artigo no Código Penal Brasileiro, revela a intenção do legislador de proteger com maior
contundência as crianças do abuso sexual. No âmbito jurídico, a vigência deste artigo, ao que
tudo indica, irá por fim à longa e acirrada discussão acerca da presunção de violência e seu
critério objetivo de idade. Até então, com relação a menores de 14 anos, a violência era
presumida, por força do constante no artigo 224, alínea “a”, do Código Penal. A presunção de
violência insculpida no artigo 224 do Código Penal
103
-, e aplicada aos crimes contra a
liberdade sexual
104
, não se aplicava apenas em razão da idade da vítima, mas para aqueles
casos em que presente a indenidade sexual quando a vítima não goza de liberdade sexual,
seja momentânea, seja permanentemente. Exemplifica EMILIANO BORJA JIMÉNEZ
105
,
referido por ROGÉRIO GRECO:
103
Consta em tal dispositivo, in verbis:
Art. 224 - Presume-se a violência, se a vítima:
a) não é maior de 14 (catorze) anos;
b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância;
c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.
104
São os delitos descritos no Código Penal, em seu Título VI – Dos Crimes contra os Costumes, Capítulo I –
Dos Crimes contra a Liberdade Sexual – artigos 213 e seguintes.
105
JIMENÉZ, Emiliano Borja, Curso de Política Criminal, p. 156, in GRECO, Rogério, Curso de Direito
Penal, parte especial, vol. III, 5ª edição, Niterói: Ed. Impetus, 2008, p. 550.
46
A pessoa adulta que, por qualquer causa, se haja privada de sentido, uma
criança de nove anos ou um sujeito que sofre qualquer tipo de transtorno
psíquico, nenhum deles pode em um momento determinado dispor sobre sua
liberdade sexual. E, se alguém mantivesse relações desta índole com a
pessoa que se encontra nessa situação, atacaria sua indenidade sexual. E se
entende por tal o direito que todo ser humano tem a manter incólume sua
dignidade humana frente a consideração de seu corpo como mero objeto de
desejo sexual.
Sobre a presunção de violência em razão da idade da vítima não ser maior que
14 anos, até a edição da lei, haviam duas correntes. Os que consideram tal norma insculpida
no artigo 224, alínea “a” inconstitucional, entendendo que nada pode ser presumido em
matéria penal, respaldam-se na responsabilidade penal subjetiva
106
e no princípio da
presunção de inocência
107
, que restariam feridos ao se presumir que houve violência no ato
sexual ou libidinoso pelo tão fato da vítima não ser maior de 14 anos. Tal corrente é
minoritária no Brasil. A maioria dos doutrinadores e julgadores tem por constitucional a
norma que retrata a presunção de violência. Dentre eles encontra-se GHILHERME DE
SOUZA NUCCI
108
, que, ao comentar tal dispositivo, afirmou:
O legislador, ao elaborar uma norma penal, baseado em fatos da vida social e
em elementos colhidos pela experiência do cotidiano, pode eleger
determinados parâmetros para a aplicação da lei penal, exatamente como fez
no caso da inimputabilidade penal dos menores de 18 anos. (...) É o que
ocorre no contexto do artigo 224. A pessoa menor de 14 anos, diante da
flagrante imaturidade, não tem condições de discernir a respeito do caminho
ideal a seguir, quando decide manter uma relação sexual. Ainda que consinta
no ato, portanto, presume a lei que o fez sem aquiescência válida. Ora, se
não podia consentir, logo, o ato foi violento.
Considerando-se constitucional a presunção, deve a mesma ser observada.
Segundo a norma, deveria a presunção ser absoluta, ou seja, bastaria a vítima não ter mais de
106
Segundo FERNANDO CAPEZ, este princípio significa que “nenhum resultado objetivamente típico pode ser
atribuído a quem não o tenha produzido por dolo ou culpa, afastando-se a responsabilidade objetiva. Do mesmo
modo, ninguém pode ser responsabilizado sem que reúna todos os requisitos da culpabilidade”. (CAPEZ,
Fernando, Curso de Direito Penal, parte geral, vol. 1, São Paulo: Editora Saraiva, 2005, p. 25.). Assim, de
acordo com este princípio, insculpido no artigo 19 do Código Penal, é que muitos julgam que, se demonstrado
que o acusado de estupro ou atentado violento ao pudor com violência presumida, não tinha ciência e nem tinha
como saber que a vítima era menor de 14 anos, não pode responder pelo crime.
107
Insculpido no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal que dispõe: “ninguém será considerado culpado
até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Conforme esclarece FERNANDO DA COSTA
TOURINHO FILHO, a “expressão ‘presunção de inocência’ não deve ter seu conteúdo semântico interpretado
literalmente caso contrário ninguém poderia ser processado -, mas no sentido em que foi concebido na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: nenhuma pena pode ser imposta ao réu
antecipadamente.” (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, Processo Penal, vol. 1, 27ª edição, São Paulo:
Editora Saraiva, 2005, p. 62)
108
NUCCI, Guilherme de Souza, Código Penal Comentado, 5ª edição, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2005, p. 803.
47
quatorze anos para fazer incidir as penas dos artigos 213 ou 214 do Código Penal àquele que
com ela praticar conjunção carnal ou ato libidinoso diverso, segundo descrevem as normas
primárias dos dispositivos. Contudo, o que se via até a edição da lei 12.015/09, nos
entendimentos dos julgadores, tanto de grau quanto dos Tribunais, e dos doutrinadores, é
que, como dito no capítulo anterior, a presunção vinha cedendo, transmudando-se em
relativa, isto é, a depender das características da vítima leia-se, de sua compleição física e
desenvolvimento psicológico, incluindo o conhecimento acerca de assuntos sexuais, a
presunção cai
109
. Como bem observou ROGÉRIO GRECO
110
, na própria Exposição de
Motivos da Parte Especial do Código penal, em seu item 70, consta:
O fundamento da ficção legal de violência, no caso dos adolescentes , é a
inocentia consilii do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em
relação aos fatos sexuais de modo que não se pode dar valor algum ao seu
consentimento. Ora, na época atual, seria abstrair hipocritamente a realidade
o negar-se que uma pessoa de 14 (quatorze) anos completos tem uma
noção teórica, bastante exata, dos segredos da visa sexual e dos riscos que
corre se se presta à lascívia de outrem.
Na mesma linha, escreveu LUIZ REGIS PRADO
111
:
Assinale-se, ainda, que o legislador de 1940 reduziu a idade da presunção de
violência de dezesseis para quatorze anos, por pressupor que os adolescentes
naquela idade dominavam, na época, muito do conhecimento da vida
sexual. Decorridos mais de cinqüenta anos, é mister que se faça um novo
questionamento. (...) logo, em face do conhecimento do adolescente nessa
faixa etária sobre sexo, que se relativizar a presunção legal quanto à
violência.
Nesse sentido também já julgou o Supremo Tribunal Federal:
HC 73662 / MG - MINAS GERAIS
HABEAS CORPUS
Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO
Julgamento: 21/05/1996 Órgão Julgador: Segunda Turma
Publicação
DJ 20-09-1996 PP-34535 EMENT VOL-01842-02 PP-00310
RTJ VOL-00163-03 PP-01028
Parte(s)
PACTE. : MARCIO LUIZ DE CARVALHO
IMPTE. : PAULO ADHEMAR PRINCE XAVIER E OUTRO
109
Vide capítulo 1, item 1.1. Conceito e Diferenciação em relação aos Termos Correlatos, nota de rodapé n. 3.
110
GRECO, Rogério, Curso de Direito Penal, parte especial, vol. III,5ª edição, Niterói: Ed. Impetus, 2008, p.
551.
111
PRADO, Luiz Regis, Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 3 parte especial, edição, São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 2002, p. 270.
48
COATOR : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS
GERAIS
Ementa
COMPETÊNCIA - HABEAS-CORPUS - ATO DE TRIBUNAL DE
JUSTIÇA. Na dicção da ilustrada maioria (seis votos a favor e cinco contra),
em relação à qual guardo reservas, compete ao Supremo Tribunal Federal
julgar todo e qualquer habeas-corpus impetrado contra ato de tribunal, tenha
esse, ou não, qualificação de superior. ESTUPRO - PROVA -
DEPOIMENTO DA VÍTIMA. Nos crimes contra os costumes, o depoimento
da vítima reveste-se de valia maior, considerado o fato de serem praticados
sem a presença de terceiros. ESTUPRO - CONFIGURAÇÃO -
VIOLÊNCIA PRESUMIDA - IDADE DA VÍTIMA - NATUREZA. O
estupro pressupõe o constrangimento de mulher à conjunção carnal,
mediante violência ou grave ameaça - artigo 213 do Código Penal. A
presunção desta última, por ser a vítima menor de 14 anos, é relativa.
Confessada ou demonstrada a aquiescência da mulher e exsurgindo da prova
dos autos a aparência, física e mental, de tratar-se de pessoa com idade
superior aos 14 anos, impõe-se a conclusão sobre a ausência de configuração
do tipo penal. Alcance dos artigos 213 e 224, alínea "a", do Código Penal.
No entanto, tal decisão não espelha o entendimento consolidado da Corte, eis
que a maioria dos seus julgados reputa absoluta a presunção de violência, como se no
julgado abaixo transcrito, dentre outros
112
:
HC 93263 / RS - RIO GRANDE DO SUL
HABEAS CORPUS
Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA
Julgamento: 19/02/2008 Órgão Julgador: Primeira Turma
Publicação
DJe-065 DIVULG 10-04-2008 PUBLIC 11-04-2008
EMENT VOL-02314-05 PP-00950
Parte(s)
PACTE.(S): CLAUDIOMIRO DO AMARAL RAYMUNDO OU
CLAUDIOMIRO DO AMARAL RAIMUNDO
IMPTE.(S): DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO
COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Ementa
EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL E
PROCESSUAL PENAL. ALEGAÇÃO DE QUE A PRESUNÇÃO DE
VIOLÊNCIA NO ESTUPRO DE MENOR DE QUATORZE ANOS SERIA
RELATIVA EM RAZÃO DO CONSENTIMENTO DA OFENDIDA:
IRRELEVÂNCIA PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO QUANDO A
VÍTIMA É MENOR DE QUATORZE ANOS. PRECEDENTES. HABEAS
CORPUS INDEFERIDO. 1. É firme a jurisprudência deste Supremo
Tribunal no sentido de que o eventual consentimento da ofendida, menor de
112
Confira outros julgados no mesmo sentido: HC 94818 / MG, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE,
Julgamento: 24/06/2008, Órgão Julgador: Segunda Turma, Publicação DJe-152 DIVULG 14-08-2008
PUBLIC 15-08-2008, EMENT VOL-02328-04 PP-00719; HC 81268 / DF, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA
PERTENCE, Julgamento: 16/10/2001, Órgão Julgador: Primeira Turma, Publicação DJ 16-11-2002 PP-00008,
EMENT VOL-02052-02 PP-00274; RHC 80613 / SP, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Julgamento:
06/03/2001, Órgão Julgador: Primeira Turma, Publicação DJ 18-05-2001 PP-00091, EMENT VOL-02030-03
PP-00512.
49
14 anos, para a conjunção carnal e mesmo sua experiência anterior não
elidem a presunção de violência, para a caracterização do estupro.
Precedentes. 2. Habeas Corpus indeferido.
Decisão
Por maioria de votos, a Turma indeferiu o pedido
de habeas corpus; vencido parcialmente o Ministro Marco Aurélio,
Presidente. 1ª Turma, 19.02.2008.
Na doutrina, GUILHERME DE SOUZA NUCCI
113
defende a relativização da
presunção de violência, de modo diferenciado:
Como regra geral, não devem os juízes imergir na produção de provas acerca
de honestidade da tima e sua capacidade de consentimento, caso sejam
menores de 14 anos, pois a presunção é, via de regra, absoluta, não aceitando
prova em contrário. (...) Defendemos, pois: presunção absoluta para a
maioria dos casos, especialmente para as pessoas menores de 12 anos;
relativa para as situações excepcionais voltadas aos adolescentes, pessoas
maiores de 12 anos.
O que se extrai tanto do primeiro julgado citado, proferido pela mais alta corte
do país, bem como do comentário do renomado doutrinador acima referido, cujos
entendimentos são adotados por muitos julgadores no país, é que, em razão da ‘evolução’ da
sociedade, com novos usos e costumes, houve o deslocamento da idade limite, de 14 anos
para 12 anos. Tem-se, assim, grosso modo, que a pessoa com 12 anos ou mais, em razão das
informações disponíveis – seja pela mídia, seja pela ‘educação’, seja pela liberdade concedida
pelos pais - e do ‘desenvolvimento precoce’ decorrente, pode discernir e manifestar
legítima vontade de realizar ou não o ato de natureza sexual. Embora seja razoável e
consistente o fundamento invocado por aqueles que defendem tal entendimento, não se pode
deixar de salientar o perigo que tal atitude representa. Até que ponto se chegará, qual seria a
idade limite, a fim de que o Direito acompanhe as modificações operadas em sociedade?
CELSO DELMANTO ET AL
114
, nesse trilhar, ao comentar o artigo 224 e incisos do Código
Penal, afirmou que:
... a maior parte da jurisprudência tem entendido como relativa a presunção
de violência (...). Todavia, esta orientação jurisprudencial, que diante da
sistemática do nosso Código Penal parece ser a mais equilibrada, também
não satisfaz. Com efeito, ao levar à absolvição do acusado, deixará este livre,
inclusive, para reincidir na prática até com a mesma menor, “legitimando” a
prostituição infantil. Igualmente, tratamento desigual à criança que “por
113
NUCCI, Guilherme de Souza, Código Penal Comentado, 5ª edição, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2005, p. 805 e 806.
114
DELMANTO, Celso et al, Código Penal Comentado, 7ª edição, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2007, p. 603 e
604.
50
imposição de seu destino...foi obrigada a vivenciar um contexto não
condizente com sua faixa etária” e àquela que por sorte “encontra-se inserida
no seio familiar, que frequenta regularmente a escola, que recebe e assimila
regras de conta moral” (IVETE M. RIBEIRO FAVARETTO, “Violência
presumida”, in Bol. IBCCr n. 50, janeiro de 1997, caderno Jurisprudência, p.
175). A nosso ver, embora inadmissível a presunção de inocência, não pode
o Direito Penal deixar de proteger os menores de 14 anos. É por isso que o
legislador deveria, com a máxima urgência, reformular não este art. 224,
mas todos os crimes sexuais previsto no Código Penal, para adequar a Parte
Especial ao moderno Direito Penal, que o comporta responsabilidade
objetiva.
Por todo o exposto, recebe-se como alento a esclarecedora nova norma
insculpida no artigo 217-A do Código Penal, introduzida pela lei 12.015/09. Claro e veemente
foi o legislador ao erigir o abuso sexual infantil a um crime específico, de penas
expressivamente mais elevadas, com regras procedimentais peculiares e aspecto que
especialmente importa ao tema ora debatido estabeleceu a idade limite em 14 anos.
Quartorze, e não treze, doze ou onze anos, como vinham defendendo os expositores da
corrente alhures referida. O fato da criança ou adolescente aparentemente consentir com o ato
sexual, e não raras vezes nutrir sentimentos de afeto e carinho pelo agressor não pode ser
considerado para minimizar a conduta por este praticada. Em suma, a vítima é apenas vítima,
sem se cogitar em ‘culpa concorrente’ ou provocação por sua parte. A esse respeito,
esclarecedores os comentários de LYNN HEITRITTER e JEANETTE VOUGHT
115
:
Children are referred to as “victims” because children are always
victimized by sexual abuse, even in situations where they appear to be
“willing” participants in sexual behavior. Offenders sometimes try to
rationalize sexual acts by claiming that a child was being “provocative”,
when, in fact, children might be displaying age-appropriate adult or
someone significantly older than they are. Children are victims because
they are exploited by abusive power and control dynamics between offender
and victim. Power in interpersonal relationships can be simply defined as
the capacity of the person to influence another. Control, on the other hand,
is the flip side of power; that is, control can be defined as the capacity to
resist or restrain influence from someone else. In healthy relationships,
there is a balance between power and control, so that persons in
relationship with each other have a sense of reciprocity or mutual give-and-
take. Sexual abuse is a destructive distortions of power and control because
offenders exert power over child victims, who have little control or capacity
to resist them. Offenders exert powerful influence over child victims in many
ways, such as through force or threats of physical harm, intimidation, or
manipulation through seduction or enticement. Imbalances in power may be
reflected in an offender’s larger physical size, position in family or church,
115
HEITRITTER, Lynn e VOUGHT, Jeanette, Helping Victims of Sexual Abuse, Minneapolis, Minnesota: Ed.
Bethany House, 2006, p. 25.
51
life experience, or position of authority. Offenders exert power over child
victims by the knowledge that their behaviors are sexual in intent, while
children are victimized by the lack of that knowledge. Child victims have no
control over power abuses by sex offenders. That is why children are always
victims.
Ainda no Código Penal encontramos o delito tipificado no artigo 218, iniciando
o capítulo II intitulado “Dos Crimes Sexuais Contra Vulnerável”. Substituiu em parte o antigo
artigo 218 do Código Penal, então denominado corrupção de menores. Em parte porque, ao
comparar-se o antigo artigo 218 ao instituído pela lei 12015/09, verifica-se que, agora, o
artigo 218 anterior à lei foi desmembrado nos artigos 218 e 218-A. A corrupção de menores a
que se referia o artigo 218 do Código Penal antes da entrada em vigor da lei 12015/09 tratava
da conduta de corromper o adolescente, entre 14 e 18 anos, fazendo com que o mesmo tenha
contato com atos sexuais, passando a conhecê-los, seja pela prática ou apenas presenciando os
mesmos. Atualmente, o artigo 218 do Código Penal descreve a conduta de induzir pessoa
menor de 14 anos a satisfazer a lascívia de alguém, impondo pena de 02 a 05 anos – o anterior
artigo 218 impunha pena de 01 a 04 anos de reclusão. o artigo 218-A tipifica a conduta de
induzir menor de 14 anos a presenciar prática de ato libidinoso, bem como a prática do ato,
com pena de 02 a 04 anos. Percebe-se, assim, que o legislador quis imprimir pena mais grave
ao antigo crime de corrupção de menores, mas segmentando as condutas, sendo a do atual
artigo 218 mais grave que a do artigo 218-A. Outra mudança reside na alteração da idade da
vítima, que antes era de 14 a 18 anos, e hoje refere-se a pessoa menor de 14 anos. Tal qual o
antigo artigo 218, os atuais artigos 218 e 218-A não hão de ser confundidos com o delito que
também leva o nome de “corrupção de menores”, descrito no artigo da lei 2252/54. Este
crime se refere à corrupção da criança e adolescente para a prática de atos análogos a delitos,
ao estimulá-la ou levá-la a praticar atos equivalentes a furto, roubo, entre outros. Aliás, a
conduta descrita na lei 2252/54 foi também descrita como crime introduzido no Estatuto da
Criança e do Adolescente pela lei 12015/09, por meio do artigo 244-B. Observe-se, ainda, que
o artigo 218 hoje se intitula “corrupção de menores” e o artigo 218-A leva o nome de
“satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente”.
A lei 12.015/09 inovou, também, por tipificar diversas condutas que antes não
eram previstas como crime pela legislação brasileira, por meio dos artigos 218-B, 228 e 229
que tratam do “favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de
vulnerável”, sendo que o artigo 218-B cuida especificamente de submissão à prostituição ou
qualquer forma de exploração sexual de vítimas menores de 18 anos; o parágrafo ao artigo
52
230 que trata do “rufianismo”, como forma qualificada deste delito, considerando mais grave
a conduta de tirar proveito da prostituição de adolescentes entre 14 e 18 anos; e, por fim, os
artigos 231 e 231-A, que cuidam do tráfico de pessoa para fim de exploração sexual, sendo o
231 do tráfico internacional e o 231-A do interno, com aumento de pena na sua metade, caso a
vítima seja menor de 18 anos, segundo o parágrafo 2º, inciso I, de ambos os artigos. Dessa
forma, a lei 12.015/09, contemplou algumas das situações descritas por JOÃO BAPTISTA
GALHARDO JÚNIOR
116
, em crítica ao nosso ordenamento jurídico, por não incriminar
condutas reputadas reprováveis:
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) elenca 17 tipos penais cujo
sujeito passivo é a criança e o adolescente. Porém, não fala nada sobre o
cliente deste comércio. Também não trata do tráfico internacional para
exploração sexual, e não diz nada sobre exploração da pornografia infantil
pela internet. E o que é pior: alguns julgados, não maioria, ainda, mas
também, não são poucos, sustentam que aquela presunção de violência,
dos catorze anos, para os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, é
relativa, ou seja, se o(a) adolescente tinha se iniciado na vida sexual, ela
não vale.
Afora os delitos tipificados no Código Penal, o Estatuto da Criança e do
Adolescente, em seus artigos 240, 241 e 244-A, descrevem delitos relacionados ao abuso
sexual infantil. O artigo 240 descreve a conduta de utilizar criança ou adolescente em cena
pornográfica, tipificando as condutas de produzir e dirigir representação teatral, televisiva ou
cinematográfica em que haja criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou
pornográfica, fazendo o parágrafo único incorrer nas mesmas penas aquele que contracenar
com a criança ou adolescente. Como bem observou ANTONIO CEZAR LIMA DA
FONSECA
117
, não é necessário que terceiros assistam à filmagem ou apresentação para que o
crime se configure, da mesma forma que não é exigida existência de lucro. A consumação
ocorre no exato momento em que ocorrem a filmagem ou a representação teatral. Acerca da
incidência concomitante das sanções aplicadas pelos artigos 213 e 214 do Código Penal e pelo
116
GALHARDO JÚNIOR, João Baptista. O Papel do Sistema Judiciário na Prevenção do abuso sexual
infantil, in WILLIAMS, Lúcia Cavalcanti de Albuquerque e ARAÚJO, Eliane Aparecida Campanha,
Prevenção do Abuso Sexual Infantil – Um Enfoque Interdisciplinar, Curitiba:Juruá, 2009, p. 70.
117
FONSECA, Antonio Cezar Lima da, Crimes contra a Criança e o Adolescente, Porto Alegre: Ed. Livraria
do Advogado, 2001, p. 113.
53
artigo 240 do Estatuto da Criança e do Adolescente, esclareceu MARTHA DE TOLEDO
MACHADO
118
:
Se o ato de sexo explícito consubstancia-se na conjunção carnal ou nos atos
libidinosos referidos no art. 214 do Código Penal, haverá concurso entre o
tipo em questão e os crimes de estupro ou atentado violento ao puder, desde
que configuradas as elementares da violência real ou presumida, ou da grave
ameaça. (...) Mais reprovável ainda é a conduta de quem viola as proibições
ínsitas nos arts. 213 e 214 do Código Penal, e o faz de público, nas
circunstâncias previstas do art. 240 do ECA.
O disposto no artigo 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente incrimina a
conduta de fotografar ou publicar cenas sexuais ou pornográficas que envolvam crianças ou
adolescentes. Elucidando o conteúdo das condutas tipificadas nesta norma, ANTONIO
CEZAR LIMA DA FONSECA
119
escreveu:
Cena de sexo explícito é a cena que torna visível não apenas a relação
sexual, a conjunção carnal, mas aquela cena que envolve qualquer ato de
cunho sexual e que exponha a criança ou o adolescente à exploração sexual.
Num sentido lato, englobaria a cena pornográfica. A pornografia, embora
tenha cunho sexual, engloba não a imagem chula, a imagem grosseira,
como aquela foto na qual se mostra a criança ou adolescente fazendo atos ou
gestos obscenos, ou a foto na qual a criança está em nudez provocativa ou
posições vexatórias.
A conduta de publicar as cenas sexuais com crianças e adolescentes abarca a
colocação ou manutenção de tais cenas de filmagens ou fotografias pela internet, segundo tem
entendido o Supremo Tribunal Federal, ao considerar o crime contido no artigo 241 do
Estatuto da Criança e do Adolescente como norma aberta
120
. Seguindo este mesmo
entendimento MARTHA DE TOLEDO MACHADO explica que “para a caracterização do
tipo do art. 241, basta uma fotografia ou captação de uma imagem com pornografia ou cena
de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente, não se exigindo que venham no curso de
uma apresentação teatral ou cinematográfica de abjeto gosto”
121
.
118
MACHADO, Martha de Toledo, in CURY, Munir (coord.), Estatuto da Criança e do Adolescente
Comentado – Comentários Jurídicos e Sociais, 7ª edição, São Paulo: Ed. Malheiros, 2005, p. 795.
119
FONSECA, Antonio Cezar Lima da, Crimes contra a Criança e o Adolescente, Porto Alegre: Ed. Livraria
do Advogado, 2001, p. 123.
120
HC-76.689-0/PB, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, RT-760/519, referido por FONSECA, Antonio Cezar Lima
da, Crimes contra a Criança e o Adolescente, Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2001, p.122.
121
MACHADO, Martha de Toledo, in CURY, Munir (coord.), Estatuto da Criança e do Adolescente
Comentado – Comentários Jurídicos e Sociais, 7ª edição, São Paulo: Ed. Malheiros, 2005, p. 798.
54
Por fim, o Estatuto da Criança e do Adolescente teve acrescentado o artigo 244-
A, por meio da lei 9975 de 23 de junho de 2000, a fim de tipificar a conduta de submeter a
criança ou adolescente à prostituição ou exploração sexual. ANTONIO CEZAR LIMA DA
FONSECA conceitua exploração sexual como sendo “toda a forma de aproveitamento sexual
sobre alguma pessoa. Pode ser a exploração de forma comercial ou não. É todo tipo de
atividade onde alguém usa o corpo de uma criança ou de um adolescente para tirar vantagens
de caráter sexual”
122
. Para LUCIANA BERGAMO TCHORBADJIAN, “o conceito de
exploração sexual, por ser mais amplo, abrange o de prostituição. Submeter a criança ou o
adolescente a prostituição nada mais é do que explorá-los sexualmente
123
. A autora invoca o
princípio da especialidade
124
, para dirimir aparente conflito de normas entre o dispositivo em
comento e os artigos 227, 228, 229, 230 e 231 do Código Penal, asseverando que o Estatuto
da Criança e do Adolescente, sendo norma especial, prevalece sobre o Código Penal
125
.
Lembra que a pena prevista no artigo 244-A do ECA, tem seus limites entre 4 e 10 anos de
reclusão, enquanto a sanção prevista no artigo 228 do Código Penal fica entre 02 e 05 anos de
reclusão, argumentando que, “se o legislador expressamente reconheceu a necessidade de
punição exemplar daquele que explora a criança ou a adolescente, é porque entendeu
insuficientes, para tanto, os dispositivos do Código Penal”
126
. Esclarece ANTONIO CEZAR
LIMA DA FONSECA ainda que, “pelo princípio da especialidade, toda exploração sexual de
criança e adolescente que não estiver tipificada nos arts. 240 e 241 do Estatuto da Criança e
do Adolescente, ou nos dispositivos do Código Penal, caberá neste art. 244-A”
127
.
Como explicitado, a criança e o adolescente não sofrem apenas pela
prostituição e pela exploração sexual, mas também por outras agressões sexuais tais como o
estupro (art. 213, Código Penal), o atentado violento ao pudor (art. 214, Código Penal), a
posse sexual mediante fraude (art. 215 e par. único do Código Penal), e o rapto violento ou
122
FONSECA, Antonio Cezar Lima da, Crimes contra a Criança e o Adolescente, Porto Alegre: Ed. Livraria
do Advogado, 2001, p. 146.
123
TCHORBADJIAN, Luciana Bergamo, in CURY, Munir (coord.), Estatuto da Criança e do Adolescente
Comentado – Comentários Jurídicos e Sociais, 7ª edição, São Paulo: Ed. Malheiros, 2005, p.810.
124
Segundo FERNANDO CAPEZ, por este princípio, sintetizado no brocardo latino Lex speciallis derogat
generali, “a lei especial prevalece sobre a geral, a qual deixa de incidir sobre aquela hipótese”. Define o autor
como especial, “a norma que possui todos os elementos da geral e mais alguns, denominados especializantes,
que trazem um minus ou um plus de severidade”. CAPEZ, Fernando, Curso de Direito Penal: Parte Geral, vol.
1, 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 67.
125
TCHORBADJIAN, Luciana Bergamo, in CURY, Munir (coord.), Estatuto da Criança e do Adolescente
Comentado – Comentários Jurídicos e Sociais, 7ª edição, São Paulo: Ed. Malheiros, 2005, p.810.
126
TCHORBADJIAN, Luciana Bergamo, in CURY, Munir (coord.), Estatuto da Criança e do Adolescente
Comentado – Comentários Jurídicos e Sociais, 7ª edição, São Paulo: Ed. Malheiros, 2005, p.810.
127
FONSECA, Antonio Cezar Lima da, Crimes contra a Criança e o Adolescente, Porto Alegre: Ed. Livraria
do Advogado, 2001, p. 146/147.
55
mediante fraude (arts. 219 e 220 do Código Penal), sendo que, como bem observado também
por ANTONIO CEZAR LIMA DA FONSECA, estes delitos não foram prejudicados pela
edição deste crime e nem se confundem com ele
128
. Observe-se que os crimes descritos nos
artigos 219 e 220, referidos pelo autor, foram revogados pela Lei nº 11.106/05.
Como se pode observar, a gama de delitos que envolvem o chamado abuso
sexual infantil é bem mais ampla e complexa do que pode parecer à primeira vista, devendo
ser de conhecimento dos operadores do direito, principalmente delegados, promotores de
justiça e magistrados, a fim de responsabilizar conforme a lei os perpetradores dos delitos
dessa natureza.
2.2. Necessidade de oitiva da vítima nos casos de ASI
O Conselho Federal de Psicologia lançou manifesto contra o projeto de lei que
visa a implantação do Depoimento Sem Dano
129
como regra processual a ser adotada em todo
o país, argumentando, dentre outras coisas que “nos casos de homicídio, a Justiça utiliza
outros dispositivos para a produção de provas, sem o depoimento da vítima. Por que nos casos
de suspeita de abuso sexual de uma criança por um adulto, deve haver a exigência do
depoimento da criança?
130
. Para tentar responder a tal questionamento, faz-se imperativo
uma análise mais aprofundada de como funciona o processo, e a função da Justiça em si, a fim
de que se compreenda a relevância do depoimento da vítima nos casos de abuso sexual
infantil.
Como vimos no item anterior, nossos ordenamento jurídico contempla diversos
tipos penais crimes de natureza sexual, que tem por vítimas crianças e adolescentes, com
objetivo de evitar que atos dessa espécie ocorram e se proliferem. Para a devida
responsabilização, no entanto, uma vez que vivemos num Estado de Direito
131
, devem ser
128
FONSECA, Antonio Cezar Lima da, Crimes contra a Criança e o Adolescente, Porto Alegre: Ed. Livraria
do Advogado, 2001, pág. 147.
129
O Depoimento Sem Dano será objeto de tópico específico, no capítulo seguinte.
130
Trecho do manifesto extraído de notícia veiculada na internet, disponível em
<http://www.crp16.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=200&Itemid=43>. Acesso em 24 fev.
2010.
131
LENIO LUIZ STRECK conceitua Estado de Direito: “O Estado de Direito surge desde logo como o Estado
que, nas suas relações com os indivíduos, se submete a um regime de direito, quando, então, a atividade estatal
apenas pode desenvolver-se utilizando um instrumental regulado e autorizado pela ordem jurídica, assim como
os indivíduos – cidadãos – têm a seu dispor mecanismos jurídicos aptos a salvaguardar-lhes de uma ação abusiva
do Estado” (STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria geral do Estado,
56
observadas regras para o julgamento do fato imputado ao acusado que, como veremos adiante,
faz com que, nos casos de abuso sexual infantil seja, na sua esmagadora maioria, necessária a
oitiva da vítima a fim de provar a ocorrência do abuso e sua autoria, para a devida
condenação. É o que se chama em Direito de “devido processo legal”. Significa, de modo
bem simplificado, que ninguém pode ser julgado fora das normas pré-estabelecidas, sob pena
de se considerar nulo tal julgamento. Ou, nas palavras de PAULO RANGEL
132
:
o princípio significa dizer que se devem respeitar todas as formalidades
previstas em lei para que haja cerceamento da liberdade (seja ela qual for) ou
para que alguém seja privado de seus bens (...) a tramitação regular e legal
de um processo é a garantia dada ao cidadão de que seus direitos são
respeitados, não sendo admissível nenhuma restrição aos mesmos que não
prevista em lei.
O citado autor reputa tal princípio fonte de todos os demais princípios
norteadores do processo penal pois não verdade real, e nem como se respeitar o
contraditório, ou como verificar se as provas foram obtidas por meios ilícitos sem que tais
circunstâncias estejam compreendidas no princípio do devido processo legal. Em suas
palavras, “o devido processo legal é o princípio reitor de todo o arcabouço jurídico
processual. Todos os outros derivam dele”
133
. Trata-se de uma das maiores garantias obtidas
pela sociedade democrática de direito, contra possíveis desmandos e arbitrariedades das
autoridades constituídas.
O campo de detenção da Baía de Guantánamo conhecido como prisão de
Guantánamo -, de responsabilidade dos Estados Unidos, maior ícone da democracia e defesa
dos direitos e liberdades individuais do nosso tempo, exemplifica a ausência de observância
ao princípio do devido processo legal, que manteve encarcerados, sob condições incertas,
pessoas ditas prisioneiras de guerra, suspeitas da prática de terrorismo, sem qualquer respaldo
legal, sob comando de autoridades que, ao seu arbítrio, decidem se as mesmas devem ali
permanecer ou não. Em razão disso, tal prisão e o próprio Estados Unidos, foi alvo das mais
acaloradas e contundentes críticas e repúdios, como se na notícia extraída da internet
134
p. 83-84, in GRECO, Rogério, Curso de Direito Penal, parte especial, vol. I, 10ª edição, Niterói: Ed. Impetus,
2008, p. 93). Sintetiza JOSÉ AFONSO DA SILVA as características básicas do Estado de Direito, na sua
concepção, como sendo: a) a submissão ao império da lei, b) a divisão de poderes, e c) enunciado e garantia dos
direitos individuais. (SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, 23ª Ed. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 112 e 113).
132
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, 10ª edição, Rio de Janeiro: Ed. Luven Juris, 2005, p. 02.
133
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, 10ª edição, Rio de Janeiro: Ed. Luven Juris, 2005, p. 03.
134
Disponível em <http://noticias.uol.com.br/ultnot/reuters/2007/01/11/ult729u63785.jhtm>. Acesso em: 11 fev.
2010.
57
acerca de protestos realizados nas cidades de Londres e Washington, dentre outras, transcrita
em parte:
Prisão de Guantánamo atrai protestos mundiais
Por Esteban Israel
GUANTÁNAMO (Reuters) - Manifestantes, alguns com macacões laranja
de prisioneiros, fizeram protestos na quinta-feira em rias cidades do
mundo exigindo o fechamento da prisão militar norte-americana de
Guantánamo, onde cinco anos centenas de suspeitos de terrorismo
detidos sem julgamento ou acusação formal. Cerca de 12 pacifistas norte-
americanos fizeram uma passeata até os portões da base militar, um encrave
dos EUA no leste de Cuba. "Prisão de Guantánamo, lugar de vergonha,
chega de tortura em nosso nome", gritavam eles. (...) Os primeiros presos
chegaram algemados, vendados e com macacões laranja logo depois do
início da intervenção militar no Afeganistão em reação aos atentados de 11
de setembro de 2001. Mais de 770 suspeitos de ligação com os grupos Al
Qaeda e Taliban passaram por Guantánamo desde então, dos quais 395
permanecem e apenas 10 receberam acusações formais. A propósito do
quinto aniversário, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, pediu em Nova
York que a prisão seja fechada. O presidente George W. Bush já admitiu que
o local prejudica a imagem dos EUA, mas nada fez para acabar com isso. No
ano passado, ele sancionou uma lei que proíbe aos presos de
Guantánamo contestar sua detenção junto às cortes norte-americanas.
Asif Iqbal, que passou dois anos em Guantánamo, voltou para protestar. Ele
disse que era longamente interrogado, torturado com privação do sono e
obrigado a assinar uma falsa confissão. Acabou sendo solto sem nenhuma
acusação. Zohra Zewawi, de Dubai, disse que seu filho Omar Deghayes, 37,
preso há cinco anos no Paquistão, perdeu a visão de um olho devido a abusos
dos guardas. "Não vamos desistir até que eles sejam soltos e que Omar volte
à Inglaterra", disse ela. (...) Em Washington, cerca de cem pessoas exigiram
o fechamento da prisão, diante da Suprema Corte. Larry Cox, da Anistia
Internacional, disse que Guantánamo "se tornou um símbolo mundial para
abusos aos direitos humanos e políticas inadequadas executadas em nome
da guerra ao terrorismo. Isso trouxe vergonha à nossa nação". (...)
(Reportagem adicional de Paul Tait em Sydney, Tahani Karrar em Londres e
James Vicini em Washington) (grifou-se)
Tamanha a repercussão negativa da existência de tal prisão ensejou decreto
presidencial determinando o fechamento da mesma
135
, sem que a polêmica e revolta em torno
da mesma cessassem. Cristalina se mostra, assim, a relevância da obediência ao princípio do
devido processo legal, constituindo um dos pilares da democracia e do Estado de Direito, na
proteção e tutela dos direitos individuais, tão arduamente almejados por todos aqueles que
vivem em sociedade. Em razão de tal princípio, todos, sem exceção, têm direito a um
julgamento que siga as normas previamente estabelecidas, inclusive os acusados de terrorismo
ou de abuso sexual infantil – dois dos crimes tidos como dos mais abjetos.
135
Leia sobre em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2009/01/090122_obamaguantanamobg.shtml
58
Assim, o julgamento de uma conduta imputada – no caso, o abuso sexual infantil
– deve ser precedido de um processo, no qual são colhidas provas e ouvidas as partes, leia-se,
acusação e defesa. Ao final, o julgador magistrado -, profere um julgamento, absolvendo ou
condenando o acusado. Todo este processo e julgamento é normatizado, compilado
atualmente num código denominado Código de Processo Penal Brasileiro. Uma das normas
que interessa particularmente ao tema é sintetizada pelo brocardo in dubio pro reo. Significa
que, na dúvida, absolve-se o acusado. Nessa esteira é que o Código de Processo Penal traz em
seu artigo 386, VII que o juiz absolverá o réu se reconhecer não haver prova suficiente para a
condenação
136
.
Partindo dessa premissa, voltando-se especificamente para a análise do processo
que tem por objeto imputação de crime que configura o abuso sexual infantil, depara-se
comumente com as seguintes provas: exame de corpo de delito e outras perícias,
interrogatório do réu, depoimento do ofendido - vítima, depoimento testemunhal,
reconhecimento de pessoas ou coisas, e prova documental
137
. O exame de corpo de delito
consiste em exame médico que avaliará as condições em que se encontra o corpo, no caso, da
vítima, prestando-se a demonstrar os vestígios deixados pelo crime perpetrado.
No caso do abuso sexual, quando deixa vestígios, o exame de corpo de delito
constitui prova de extrema importância, mormente quando rastro de violência ou, no caso
de vítimas crianças ou adolescentes, quando deixa elementos que comprovem o abuso, por
meio de demonstração de realização do ato sexual. Ocorre que, em muitos casos, tal exame se
mostra inócuo na comprovação do abuso, por diversas razões. Uma delas consiste no fato de
muitos abusos serem continuados, com revelação após certo lapso temporal, fazendo com que
não haja indícios de desvirginamento recente, e , quando se trata de adolescente, não é raro
que se atribua a ruptura do hímen a um relacionamento sexual consentido pela vítima, e com
outra pessoa que não o acusado. Outro motivo reside na forma como é perpetrado o abuso
sexual infantil. Quando a vítima é criança, em razão de sua acanhada estrutura corporal,
muitas vezes o agressor não chega a consumar o ato sexual, com penetração fato que
136
JULIO FABBRINI MIRABETE, ao comentar o artigo 386, VII, do Código de Processo Penal, comenta que,
em razão de tal dispositivo, “excluídas todas as hipóteses anteriores, não pode ser a ação julgada procedente por
falta de provas indispensáveis à condenação” (MIRABETE, Julio Fabbrini, Código de Processo Penal
Interpretado, 11ª ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 1004)
137
Para informações mais detalhadas, consulte-se o Código de Processo Penal, artigos 155 a 250.
59
deixaria vestígio. O modus operandi do abuso se por toda sorte de ato sexual diverso da
penetração, incluindo sexo oral, masturbação, dentre outros.
Se, por um lado, pareça menos grave por não ter sido a vítima violada em seu
corpo, com a consumação do ato sexual da penetração, por outro é cediço que as
consequências psicológicas e emocionais da vítima são tão ou mais perversas, quando o
abuso sexual por outras formas. E no aspecto probatório, para fins de elucidação dos fatos e
devida responsabilização do agressor no processo, acusado ou réu deixa-se de obter
importante demonstração de que o abuso de fato ocorreu. ÁLVARO E. MORALES E
FERMIN R. SCHRAMM arrolam como meios probatórios aptos a comprovar o abuso sexual
infantil a prova testemunhal, a documental, a confissão, a inspeção e a perícia médico legal,
esclarecendo que, muitas vezes, não se obtém resultado positivo dessa espécie de prova, o que
tem por corolário o que segue, em suas palavras
138
:
Quando não evidências de abuso sexual por meio desses meios
probatórios, na maioria dos países o indício relevante torna-se o relato feito
pelo menor. Isso faz com que, quando não se encontrem provas concretas ou
indícios significativos sobre o processo de abuso sexual, se torna muito
difícil provar o delito e condenar o acusado, eventualmente culpado. A partir
das considerações anteriores, pode-se inferir que o falseamento de provas é
mais fácil do que sua verificação, o que corresponde à intuição
“falsificacionista” popperiana, segundo a qual basta um contra-exemplo para
contestar uma teoria ou uma afirmação com pretensões de validade universal
(Popper, 1972). Isso implica que demonstrar que o menor esteja dizendo a
verdade sobre o ocorrido é tarefa muito mais difícil do que ter boas razões
para suspeitar da veracidade de suas afirmações. Portanto, não tendo provas
contundentes e a demonstração do delito, resulta também mais fácil (ou
menos difícil) concluir que não houve o abuso sexual contra o menor. Em
suma, devido a essas dificuldades estruturais no estabelecimento de provas,
os esforços para lutar contra os abusos sexuais em menores acabam no vazio
e as dificuldades de provar levam à persistência da impunidade e, talvez, ao
recrudescimento do próprio abuso sexual.
Resta, assim, na grande maioria dos casos, a prova oral consistente na palavra
do acusado, da vítima e de testemunhas. Isso porque raramente prova documental acerca
do abuso, salvo naqueles casos em que o agressor costuma registrar o abuso com fotos ou
filmagens. Em geral, o abuso acontece em local escondido, no qual se encontram apenas a
138
MORALES, Álvaro E. e SCHRAMM, Fermin R. A Moralidade do Abuso Sexual Intrafamiliar em
Menores, p. 268 e 269. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/csc/v7n2/10246.pdf>. Acesso em: 22 fev.
2010.
60
vítima e seu algoz, e não deixa vestígios. Neste sentido argumenta CATARINA MARIA
SCHMICKLER
139
:
Porém, o abuso sexual contra crianças no seio familiar é crime e tem uma
característica que o distingue de muitos outros tipos de delito. Ele costuma
não ter testemunhas, tal qual um crime perfeito. Agressor e vítima costumam
ser as próprias testemunhas. Os familiares, quando estão presentes, ou estão
diretamente envolvidos, ou são consciente ou inconscientemente mplices
da violência.
Cinge-se, desta forma, o campo probatório, à prova oral. No interrogatório,
comumente o réu nega os fatos. Testemunhas presenciais, como dito alhures, são praticamente
inexistentes, já que o agressor toma o cuidado de realizar o ato em local não público e quando
não pessoas outras por perto. Lembre-se, como esclarecido no primeiro capítulo deste
estudo, que o agressor, na maioria, é alguém de confiança da vítima e da família, e se
aproveita de tal circunstância - e de tudo o que isso propicia - para perpetrar o abuso. Não
raras vezes, testemunhas presenciais ou oculares do crime existem, mas são também crianças
ou adolescentes, em geral irmãos, primos ou amigos da vítima. Isso ocorre porque o agressor
não os como ameaça, e ignora sua presença no local. Afinal, o que poderia uma criança
fazer para proteger outra? Consequência disso é que, quando o caso é revelado, e torna-se
judicializado, a criança que presenciou seu irmão, parente, ou amigo, sofrer o abuso, pode ser
chamada a depor sobre os fatos.
Além de todas as peculiaridades e ressalvas que se faz na oitiva em Juízo da
vítima criança ou adolescente, que também se aplicam à testemunha criança ou adolescente,
questão jurídica levantada por LEILA MARIA TORRACA DE BRITO, observando que,
“recordando o caso Isabella, pode se perguntar se os pais ou responsáveis por uma criança
poderão se opor à determinação de que seu filhos testemunhem”
140
. Juridicamente, a questão
se resolve na aplicação do disposto no artigo 142 e parágrafo único do Estatuto da Criança e
do Adolescente,considerando também o disposto no artigo 206 do Código de Processo Penal.
O Estatuto da Criança e do Adolescente é claro ao determinar que incumbe ao magistrado
nomear curador especial ao menor, para sua representação em Juízo, quando verificar que os
interesses dos crianças colidem com o de seus pais ou responsáveis. Veja:
139
SCHMICKLER, Catarina Maria, O Protagonista do Abuso Sexual – sua lógica e estratégias, Chapecó: Ed.
Argos, 2006, p. 37.
140
BRITO, Leila Maria Torraca. Diga-me agora...O Depoimento Sem Dano em Análise, Psic. Clin., Rio de
Janeiro, vol. 20, n. 2, p. 113-125, 2008, p. 120.
61
Art. 142. Os menores de dezesseis anos serão representados e os maiores de
dezesseis e menores de vinte e um anos assistidos por seus pais, tutores ou
curadores, na forma da legislação civil ou processual.
Parágrafo único. A autoridade judiciária dará curador especial à criança ou
adolescente, sempre que os interesses destes colidirem com os de seus pais
ou responsável, ou quando carecer de representação ou assistência legal
ainda que eventual.
Nos casos de abuso sexual infantil e intrafamiliar, quando a acusação recai sobre
o pai, ou outro parente, com suspeita de conivência ou omissão materna, os fortes indícios de
conflito de interesses entre os da criança e de seus pais ou responsáveis evidenciam que estes
não podem responder judicialmente por aqueles, e subsidiam a decisão de nomeação de
curador. O curador deve ser pessoa idônea e isenta de envolvimento na lide a ser dirimida. Em
casos como o ‘Isabella’, em que o irmão foi testemunha ocular do delito, se reputar-se
necessária sua oitiva, seus pais claramente não podem impedir a tomada de seu depoimento,
justamente em razão da flagrante colidência de interesses. Em sendo os responsáveis
momentâneos pela criança, avós da mesma, e, por conseqüência, pais do acusado, também
presente o conflito. Poder-se-ia levantar, como barreira para o depoimento, em casos como
este, o contido no artigo 206 do Código de Processo Penal, que dispõe:
Art. 206 - A testemunha o poderá eximir-se da obrigação de depor.
Poderão, entretanto, recusar-se a fazê-lo o ascendente ou descendente, o afim
em linha reta, o cônjuge, ainda que desquitado, o irmão e o pai, a mãe, ou o
filho adotivo do acusado, salvo quando não for possível, por outro modo,
obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias.
Sendo a testemunha, no caso, informante, parente em linha reta do réu, poderia
recusar-se a prestar depoimento. A legislação assim determinou ciente das implicações de tal
depoimento na vida familiar da pessoa, e também no próprio depoimento, que pode ser
influenciado pelo sentimento de afeto ou de proteção em relação ao acusado. Contudo, o final
do dispositivo contém uma ressalva: quando não for possível obter, de outra maneira, prova
do fato ou de suas circunstâncias. É exatamente nessa ressalva que se encontra a maioria dos
casos de abuso sexual infantil e intrafamiliar, situação que legitima e respalda a oitiva de
crianças e adolescentes em Juízo, na condição de testemunha, ou melhor, de informante,
que dela não se toma o compromisso de dizer a verdade, justamente por se compreender sua
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. No entanto, não se prescinde de sua oitiva,
para a elucidação dos fatos, sendo que as provas serão valoradas pelo juiz quando da prolação
da sentença. Volvendo à oitiva da vítima de abuso sexual infantil, que, em sua imensa
62
maioria, não testemunha presencial, seja adulto, seja criança ou adolescente, o que se tem
são testemunhas que irão relatar o que ouviram da própria vítima, quando esta confidenciou o
abuso, pedindo socorro.
Por fim, temos a palavra da vítima, reportada diretamente ao Juízo. Em verdade,
o conjunto probatório acerca do abuso imputado ao acusado respalda-se unicamente no relato
do ofendido. Isso porque, como esclarecido, as testemunhas irão relatar informações que
obtiveram da vítima, ou de pessoas outras que ouviram o que esta lhes contou. O estudo social
ou perícia psicossocial também se basearão na versão contada pela vítima. Embora outros
elementos também sejam considerados, com entrevistas de familiares, vizinhos, e visitas ao
local do suposto abuso, ou de convivência da vítima, o fato é que a palavra desta se torna, não
raras vezes, indispensável para a elucidação do caso. Destarte, de um modo ou de outro, a
vítima deve ser ouvida, a fim de que sua palavra seja elemento no conjunto probatório
produzido no processo que culminará no julgamento da conduta imputada ao acusado de ter
realizado o abuso sexual.
A respaldar o entendimento dos que defendem que a criança não deve ser ouvida
em processo penal relativo ao abuso sexual infantil por ela sofrido, poder-se-ia mencionar a
iniciativa da ação penal que, nesses casos, era, até bem pouco tempo atrás, privada. Embasado
no fato de se considerar que os antes denominados “crimes contra os costumes” refletem de
forma muito peculiar e profunda na intimidade das vítimas é que o legislador dispunha que a
ação penal era de iniciativa privada
141
. O artigo 225 do Código de Processo Penal assim
determinava, até a entrada em vigor da lei 12015/09 em agosto de 2009, que modificou a
redação desse dispositivo, transmudando a iniciativa em pública condicionada para todos os
crimes “contra a dignidade sexual”, e em pública incondicionada para os crimes dessa
natureza que tenham por vítima crianças e adolescentes ou outra pessoa considerada
vulnerável
142
.
141
Nesses casos, a ação penal é privada, ou de iniciativa privada. DAMÁSIO DE JESUS ensina que, quando “a
objetividade jurídica do crime corresponde a um interesse vinculado exclusivamente ao particular, pelo que o
Estado lhe outorga a titularidade da ação penal. Significa que o titular da ação penal não é o Estado, como
acontece nos casos anteriores, mas o sujeito passivo ou seu representante legal, a quem se outorga a iniciativa e a
movimentação”. (JESUS, Damásio de, Direito Penal, 1º vol. – Parte Geral, São Paulo: Saraiva, 1995, p. 574)
Comenta GHILHERME DE SOUZA NUCCI, em relação ao artigo 100 do Código Penal, que a ação “chama-se
privada porque o interesse em jogo é mais particular do que público, e o escândalo gerado pelo processo pode ser
mais prejudicial ao ofendido (strepitus judicii) do que se nada for feito contra o delinquente”. (NUCCI,
Guilherme de Souza, Código Penal Comentado, 5ª edição, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005, p. 449).
142
Dispunha o Código de Processo Penal:
Art. 225 - Nos crimes definidos nos capítulos anteriores, somente se procede mediante queixa.
§ 1º - Procede-se, entretanto, mediante ação pública:
63
Assim, até agosto de 2009, a própria vítima quando menor, representada ou
assistida por seus responsáveis, é que detinha o direito de ingressar ou não com a ação penal
para responsabilização do agressor. O legislador entendeu que, em razão da natureza do
crime, a vítima pode preferir silenciar, para não se submeter aos constrangimentos do
necessário processo judicial, que muitas vezes enseja indesejada lembrança e o revivenciar
do crime. Quando as partes declaravam-se sem condições financeiras de arcar com os custos
de constituir um advogado para a defesa de seus interesses perante a Justiça, e representam
pelo desejo de ver responsabilizado o agressor, a legitimidade para ajuizar a competente ação
penal passa a ser do Ministério Público
143
.
Segundo a redação anterior do dispositivo, quando a acusação recaía sobre a
figura dos pais, ou de quem detinha qualidade de responsável pela vítima, a ação penal
transmudava-se em pública, conforme estabelecido pelo então inciso II do artigo 225 do
Código Penal
144
. Justifica-se a intervenção do Estado nesses casos, diante do conflito entre os
interesses da vítima e do seu responsável legal, conforme elucida GUILHERME DE SOUZA
NUCCI
145
:
É natural que, nessas hipóteses, torne-se muito difícil para a pessoa ofendida
representar ou patrocinar um advogado para ajuizar queixa-crime contra a
pessoa que deveria representá-la em juízo, defendendo seus interesses.
Assim, é interesse público punir o sujeito que desvirtua sua função protetora,
atacando a pessoa de quem deveria cuidar.
Destarte, quando se trata de abuso sexual infantil intrafamiliar, a escolha para a
busca da responsabilização criminal do agressor não constituía mais escolha da vítima,
reputando-se de interesse público a punição do abusador. A modificação da iniciativa da ação
I - se a vítima ou seus pais não podem prover às despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis
à manutenção própria ou da família;
II - se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador.
§ 2º - No caso do nº I do parágrafo anterior, a ação do Ministério Público depende de representação.
Com a edição da lei 12015/09, passou a estabelecer o Código de Processo Penal:
Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública
condicionada à representação.
Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18
(dezoito) anos ou pessoa vulnerável.” (NR)
143
GUILHERME DE SOUZA NUCCI esclarece que “quando se tratar de menor ou pessoa inexperiente, admite-
se que a representação seja feita por outros parentes ou indivíduos que mantenham estreitos vínculos
especialmente de dependência econômica com a pessoa ofendida” (NUCCI, Guilherme de Souza, Código
Penal Comentado, 5ª edição, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005, p. 811)
144
Vide nota 45.
145
NUCCI, Guilherme de Souza, Código Penal Comentado, edição, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2005, p. 811.
64
penal, de privada para pública condicionada em qualquer caso e incondicionada em se
tratando de vítima menor de 18 anos ou vulnerável por outra razão, reflete a importância que
o Estado está a conferir a esta natureza de crime. Realmente, não se consideram que os
crimes sexuais sejam matéria concernente apenas à intimidade da vítima, ou assunto referente
ao âmbito familiar. Diante do passar do tempo, com evolução da sociedade civilizada em
tantos aspectos, e o concomitante crescimento da ocorrência de crimes sexuais,
principalmente contra crianças e adolescentes, verifica-se que a norma processual anterior, de
relegar à própria vítima ou seus pais ou responsáveis, a busca pela responsabilização criminal
do agressor não vinha resultando na esperada diminuição do delito.
De qualquer forma, uma vez presente esse intento de responsabilizar o agressor,
as normas legais de processamento e julgamento do fato ditam que incumbe à parte provar os
fatos alegados
146
. A acusação deve, assim, provar que o abuso ocorreu, e foi perpetrado pelo
acusado. Insta relembrar aqui os delineados princípios da inocência e do in dubio pro reo,
que, aliados à norma acima descrita, impõe à acusação o ônus de provar a materialidade e
autoria do fato imputado, sem o que o processo culminará na absolvição. Não seria o caso de
modificação de tais normas e princípios, que constituem-se, repise-se, em pilares o Estado
Democrático de Direito
147
, condição alcançada e tão almejada em nosso país.
Deve-se, então, trabalhar com as regras específicas existentes, alterando-se,
eventualmente, algumas, para melhor atender aos anseios da sociedade resolução de
conflitos minimizando-se as consequências negativas à vítima, oriunda da necessidade de
sua oitiva para a responsabilização do agressor, sem cogitar na supressão ou flexibilização dos
princípios acima arrolados. Esclarece-se que não se trata de obrigação de ouvir a vítima, ou
dever desta em prestar depoimento. Constitui, no entanto, ônus da acusação, que acaba por
recair sobre a vítima, em razão de todo o acima exposto. Ônus porque, se não o fizer, tal não
importará em sanção, em pena. Mas terá como consequência a indesejada absolvição daquele
que deve ser exemplarmente penalizado, para reprimenda de novos fatos
148
. Destarte,
146
Dispõe o Código de Processo Penal, no caput do artigo art. 156: “A prova da alegação incumbirá a quem a
fizer...”
147
Segundo ALEXANDRE DE MORAES, o Estado Democrático de Direito “significa a exigência de reger-se
por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades
públicas aos direitos e garantias fundamentais” (MORAES, Alexandre de, Direito Constitucional, ed., São
Paulo: Atlas, 1999, p. 48)
148
MARIA HELENA DINIZ define dever jurídico como “o comando imposto, pelo direito objetivo, a todas as
pessoas para observarem certa conduta, sob pena de receberem uma sanção pelo não cumprimento do
comportamento prescrito pela norma jurídica” enquanto, segundo suas palavras, o ônus jurídico “consiste na
necessidade de observar determinado comportamento para a obtenção ou conservação de uma vantagem para o
65
esclarecida e refutada a afirmação inserta no manifesto do Conselho Federal de Psicologia de
que “a criança não pode ter o dever de depor na Justiça...”
149
.
Ao contrário, os que defendem que a criança tem o direito de ser ouvida, para
sua valoração e para a proteção de seus interesses. Tal direito encontra-se encartado no artigo
12 da Convenção sobre os Direitos da Criança, aderido pelo Direito pátrio por meio do
Decreto Legislativo 28/90, que dispõe, in verbis:
1. Os Estados-partes garantem à criança com capacidade de discernimento o
direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhes
respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da
criança, de acordo com sua idade e maturidade. 2. para esse fim, é
assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e
administrativos que lhes respeitem, seja diretamente, seja através de
representante ou organismo adequado, segundo as modalidades previstas
pelas regras de processo da legislação nacional
Corrobora tal direito o fato da criança e adolescente terem sido erigidos à
categoria de sujeitos de direito com a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do
Adolescente, em 1990, deixando de ser considerados meros objetos de direito, conforme
dispunha o Código de Menores, que até então regia as questões jurídicas atinentes aos
denominados “de menor idade”, conforme asseverou JOSÉ ANTONIO DALTOÉ CEZAR
150
,
que comentou:
Por fim, quanto à oportunidade de a criança ser ouvida nos processos que lhe
dizem respeito, contanto que isso ocorra de forma acolhedora e profissional,
é importante que se ressalte que se trata de uma atitude que a valoriza como
pessoa, marca para ela a importância que lhe é dada.
Note-se que o direito de ser ouvida não se transmuda em obrigação de falar.
Contudo, como verificado alhures, o ônus da prova do abuso acaba recaindo sobre a pessoa da
vítima, no caso, das crianças e adolescentes, já que sua palavra constitui, muitas vezes, único
meio de prova da materialidade e autoria do crime. Conclui-se, desta feita, ser necessária a
próprio sujeito e não para a satisfação de interesses alheios” (DINIZ, Maria Helena, Curso de Direito Civil
Brasileiro, 2º vol., 9ª Ed., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 27 e 28)
149
Trecho do manifesto extraído de notícia veiculada na internet. Disponível em
<http://www.crp16.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=200&Itemid=43>. Acesso em: 24
fev. 2010.
150
CEZAR, José Antônio Daltoé, A Inquirição de Crianças timas de Abuso Sexual em Juízo, in DIAS,
Maria Berenice (coord.), Incesto e Alienação Parental realidades que a Justiça insiste em não ver, São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007, p. 173 e 174.
66
oitiva da vítima na maioria dos casos de abuso sexual infantil, para a devida responsabilização
do abusador.
Insta salientar que a busca pela verdade real, para a devida responsabilização do
agressor, não se presta meramente à solução do litígio, entendendo este como um processo, ao
qual quer dar cabo o Judiciário, conforme consta no manifesto do Conselho Federal de
Psicologia, argumentando que a criança não tem que servir como objeto ao sistema penal
para fornecer-lhe as provas necessárias para que as engrenagens jurídicas possam funcionar
adequadamente”
151
. A função precípua do Judiciário é buscar a solução de litígios, resolvendo
conflito de interesses. No caso específico de abuso sexual infantil, compete ao Judiciário
processar o julgar a conduta cometida pelo agressor, a fim de averiguar se houve cometimento
de crime e, se positivo, aplicar a devida pena. Esta, no exercício do jus puniendi do Estado,
foi exemplarmente definida por DAMÁSIO DE JESUS
152
:
pena é a sanção aflitiva imposta pelo Estado, medianteão penal, ao autor
de uma infração (penal), como retribuição de seu ato ilícito, consistente na
diminuição de um bem jurídico, e cujo fim é evitar novos delitos. Apresenta
a característica de retribuição, de ameaça de uma mal contra o autor de uma
infração penal. Tem finalidade preventiva, no sentido de evitar a prática de
novas infrações. A prevenção é: a) geral; b) especial. Na prevenção geral o
fim intimidativo da pena dirige-se a todos os destinatários da norma penal,
visando a impedir que os membros da sociedade pratique crimes. Na
prevenção especial a pena visa o autor do delito, retirando-o do meio social,
impedindo-o de delinqüir e procurando corrigi-lo.
No caso específico do abuso sexual infantil e intrafamiliar, o que se busca é a
responsabilização do agressor tanto para que pare de realizar tais atos, protegendo-se a vítima,
como também para que não realize novos atos em relação a outras vítimas. Além disso,
presta-se a evitar que outras pessoas, que tenham o mesmo intento, se abstenham de realizá-lo
por temer a reprimenda. A sociedade como um todo necessita e exige a aplicação da pena,
uma vez que a mesma configura requisito para a obediência às normas. Ora, sem sanção, não
se obedece à norma e sem tal obediência o caos, em lugar da paz social. E ao Judiciário
incumbe a aplicação da sanção, a fim de que a norma seja respeitada. Para tanto, existe o
processo legal, justamente para se evitar arbitrariedades.
151
Trecho do manifesto extraído de notícia veiculada na internet. Disponível em
<http://www.crp16.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=200&Itemid=43>. Acesso em 24 fev.
2010.
152
JESUS, Damásio de, Direito Penal, 1º vol. – Parte Geral, São Paulo: Saraiva, 1995, p. 457.
67
Destarte, imagine-se um caso concreto. O padrasto da vítima de 11 anos de
idade, após a denúncia elaborada por ela a uma professora, uma tia ou um irmão,
exemplificativamente, sofre processo criminal e, ao final, é solto em decorrência de
absolvição por insuficiência de provas. Ele voltará para sua casa, na qual encontrará a vítima
denunciante. Quais as chances dele voltar a realizar a barbárie, se efetivamente a denúncia era
verdadeira? Contra a mesma vítima e contra outras, talvez irmãs mais novas da primeira? A
resposta é óbvia, prescindindo de narrativa. A busca pela verdade real, por meio dos
depoimentos colhidos das vítimas, visa não à solução do processo como apenas mais um
caso resolvido -, ou ao alívio do julgador, mas à realização daquilo que chamamos de
justiça
153
. Mais especificamente, à concretização do jus puniendi que, na definição de
GONZÁLES BUSTAMANTE, “equivale à legítima defesa que se reconhece aos particulares.
A sociedade tem o direito de defender-se, adotando contra qualquer pessoa que ponha em
perigo sua tranquilidade as medidas preventivas e repressivas que sejam condizentes”
154
.
Visto, assim, que se faz imprescindível, na grande maioria dos casos, a oitiva das
crianças e adolescentes, supostamente vítimas de abuso sexual, bem como as peculiaridades
que cercam seu depoimento, em razão de suas características ímpares, resta analisar as formas
disponíveis de sua realização, em conformidade com a norma legal pertinente, bem como se
são adequadas e, não o sendo, quais seriam as alternativas para sua melhor realização.
2.3. Método tradicional de oitiva de menores em Juízo –– ineficiência e efeitos
colaterais
2.3.1. Regras do Código de Processo Penal
Segundo o disciplinado no Código de Processo Penal, a oitiva de menores em
Juízo se da mesma forma que a tomada de depoimentos de réus, vítimas e testemunhas,
153
Na descrição de FRANCISCO AMARAL: Ulpiano dizia que justitia est constans ete perpetua voluntas jus
suum cuique tribuendi (a justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu). É uma virtude,
uma atitude dos homens no seu relacionamento social. A justiça representa, antes de tudo, uma preocupação com
a igualdade, o que pressupõe a correta aplicação das regras de direito, evitando-se o arbítrio, e com a
proporcionalidade, isto é , tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, mas na proporção de sua
desigualdade e de acordo com seus méritos. (AMARAL, Francisco. Direito Civil Introdução, Ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003, p. 15 e 16).
154
BUSTAMANTE, Gonzáles apud TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, Processo Penal, 21ª Ed., São
Paulo: Saraiva, 1999, p. 13.
68
sem qualquer diferenciação. A regra, esculpida nos artigos 212 e seguintes, do Código de
Processo Penal, determina que o depoimento da testemunha, bem como de toda pessoa ouvida
no interesse do processo criminal, seja tomado na presença do Juiz, com perguntas feitas
diretamente pelas partes, quais sejam, Ministério Público, por meio de Promotor de Justiça e
Defesa, por meio de Defensor Público ou Advogado constituído ou nomeado. As perguntas
formuladas diretamente pelas partes aos depoentes em relação aos processos de competência
do juiz singular foram introduzidas com a reforma operada pela lei n. 11.690 de 09 de junho
de 2008, que antes as perguntas deveriam ser formuladas pelo magistrado. Outra
modificação se deu com a ordem das perguntas, que antes eram formuladas primeiramente
pelo juiz e depois pelas partes. Atualmente, as perguntas do Juízo são complementares.
Destarte, não houve, com tais inovações, nenhuma mudança palpável na tomada de
depoimentos das vítimas e testemunhas em Juízo.
Assim, na prática, tais regras levam à ocorrência do seguinte cenário: em uma
sala de audiências, na presença do Juiz, do Promotor de Justiça, do Advogado de Defesa (ou
Defensor Público) e do réu, a pessoa ouvida responde às perguntas formuladas, que são
transcritas pelo secretário no termo de audiência. Certo é que, muitas vezes, a presença do réu
é dispensada uma vez que tal pode causar constrangimento e até comprometer a extração da
verdade. Essa prática que vinha sendo aplicada por muitos magistrados tornou-se normatizada
com a reforma acima mencionada, como se pode ver no artigo 217 do Código de Processo
Penal:
Art. 217. Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar
humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido,
de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por
videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a
retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor.
Pelo dispositivo, em havendo meios tecnológicos disponíveis câmeras
audiovisuais interligadas, que possibilitem a realização de perguntas e respostas sem que a
testemunha e o réu precisem permanecer no mesmo recinto deve ser realizada a oitiva da
testemunha ou vítima por meio de videoconferência. Apenas se constatada a inexistência de
tais meios, ou qualquer outro motivo que impeça sua realização, é que se determina a retirada
do réu. Extrai-se do comando legal que, em prol da tutela do direito de ampla defesa e
contraditório do réu, deve constar na ata da audiência expressamente a impossibilidade de
realização de videoconferência. Tal norma reflete a influência da evolução tecnológica no
69
processo, a fim de aplicar os princípios norteadores do processo penal. Tardia, podem muitos
considerar esta inserção dos meios tecnológicos disponíveis que a gravação audiovisual é
de nosso conhecimento corriqueiro já há algumas décadas.
Não seria desarrazoado imputar a inserção dessa regra ao procedimento legal
tanto pela ausência de verba para a implementação da medida, como pela morosidade na
produção legislativa pelo seu tramitar naturalmente alongado e pela ausência de interesse na
edição desta espécie de norma a tutelar direitos daqueles desvalidos acusados de cometer
crimes, rechaçados pela sociedade em geral. Embora seja patente o descompasso temporal da
inserção da norma em relação à disponibilização, no mercado, dos meios tecnológicos, a
realidade é que a grande maioria dos tribunais e fóruns existentes pelo Brasil são desprovidos
de tais recursos, não havendo sequer perspectiva de implementação. Em muitos, a ausência de
servidores e até de juízes, de estrutura física leia-se prédios adequados, computadores,
impressoras figuram na frente como não poderia deixar de ser da lista dos itens a serem
supridos pelo orçamento dos Tribunais.
Certo é que, em alguns locais se pode deparar com o ideal de estrutura física,
operacional e humana esta, ao menos, em termos de número. Tais circunstâncias é que
propiciam a discussão acerca da necessidade, efetividade e adequação de regras como a
descrita no artigo 217 do Código de Processo Penal. De qualquer modo, seja por
videoconferência, seja com a retirada do réu do recinto, o fato de se prestar depoimento sem a
presença do suposto agressor, autor do crime do qual foi vítima, exclui apenas um dos fatores
de tensão no momento da oitiva.
As perguntas formuladas, seja pelo magistrado, pela acusação ou defesa, por si,
configuram elementos causadores de nervosismo no depoente, pelo simples fato de ser
questionado. Além disso, sabe-se que, muitas vezes, a forma de realização das perguntas se dá
em tom interrogador, quando não acusador, procurando a Defesa, em nome da tutela dos
interesses do réu, fazer com que a vítima, depoente, caia em contradição ou não se mostre tão
firme
155
. Desta feita, a regra que passou a vigorar com a reforma do Código de Processo Penal
introduzida pela lei n. 11.960/08, quanto às pergunta das formuladas diretamente pelas partes
leia-se, promotor de justiça e advogados - aos depoentes, proporciona condições mais
propícias para tal mister.
155
Essa técnica alcançou tamanha repercussão que foi denominada backlash, tema a ser explorado no item
seguinte, diante de sua relevância.
70
A contrapor tal ponderação, poder-se-ia argumentar que ao magistrado é dado
vetar a pergunta, a fim de que o depoente não seja obrigado a respondê-la. Contudo, na
prática, como estão todos no mesmo recinto, o depoente ouve as perguntas e presencia a
situação constrangedora de ver a mesma impugnada e vetada pelo juiz, circunstância
suficiente para deixá-la mais tensa e levá-la a produzir respostas confusas e contraditórias. A
par de tais circunstâncias, as regras atinentes ao processo penal parecem relegar a vítima a
uma posição marginal, que centralizado na figura do réu. Neste sentido asseverou
ANTONIO GARCÍA- PABLOS DE MOLINA, referido por SANDRO CARVALHO
LOBATO DE CARVALHO e JOAQUIM HENRIQUE DE CARVALHO LOBATO
156
:
O abandono da vítima do delito é um fato incontestável que se manifesta em
todos os âmbitos: no Direito Penal (material e processual), na Política
Criminal, na Política Social, nas próprias ciências criminológicas. Desde o
campo da Sociologia e da Psicologia social, diversos autores, têm
denunciado esse abandono: O Direito Penal contemporâneo advertem
acha-se unilateral e equivocadamente voltado para a pessoa do infrator,
relegando a vítima a uma posição marginal, no âmbito da previsão social e
do Direito civil material e processual.
Quem não se sente intimidado ao se sentar perante autoridades, sendo
questionado acerca de assunto que lhe causa certo desconforto e, muitas vezes, lembra uma
agressão sofrida, que tem sido objeto de tentativas de esquecimento e superação? Se tal
sentimento acomete um adulto formado, vítima de delitos como furto, roubo, lesão corporal,
que dirá de uma criança, a partir de cuja visão tudo se torna agigantado? Potencializada ao
extremo resta esta sensação, ao passo que se trata de vítimas de abuso sexual, perpetrado por
adultos, muitas vezes homens, cujas figuras estão representadas ali pelas autoridades togadas
e engravatadas.
A análise do tratamento dado ao fato abuso sexual infantil - e à própria vítima,
pelas ditas autoridades competentes, na apuração e julgamento do crime é tema do próximo
item, diante da relevância para o estudo proposto.
156
GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antônio García-Pablos de. Criminologia. ed. Trad. Luiz Flávio Gomes.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 73, apud CARVALHO, Sandro C. L de e LOBATO, Joaquim H. de
C., Vitimização e Processo Penal. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11854>.
Acesso em: 15 mar. 2010.
71
2.3.2. Peculiaridades das Crianças e Adolescentes e o Backlash
Quando se trata de crianças e adolescentes, a situação acima posta pode ensejar,
além de sofrimento emocional e danos psíquicos, como veremos adiante, a ineficácia de seu
depoimento, na medida em que não se extrai a verdade dos fatos de seu relato. É que o
nervosismo, a vergonha e o constrangimento podem impedir que a vítima proceda a um relato
verossímil, concatenado, firme e coerente, a fim de que possa servir de fundamento para a
decisão condenatória.
Prejudicada, assim, a busca da verdade real, princípio norteador do processo
penal, ensejando inúmeros julgamentos distorcidos, com absolvições por insuficiência de
prova, em razão dos princípios e regras atinentes ao processo penal, mencionadas no item
anterior deste capítulo. É que, como dito, a prova nos casos de abuso sexual infantil, na
maioria das vezes, cinge-se à palavra da vítima seja por meio de seu depoimento em Juízo,
seja pelas informações repassadas ao profissional da Assistência Social ou Psicologia em
estudo psicossocial ou laudo pericial psicológico.
De posse dessa informação, a Defesa, certa de estar no cumprimento de seu
papel, muitas vezes lança dúvidas sobre o relato da vítima, alegando ser o mesmo
contraditório, levantando suspeitas acerca do crédito que se deve dar a sua palavra,
argumentando ser fruto de fantasias próprias da idade. Este método defensivo tomou tamanha
proporção que recebeu denominação própria: backlash. TÂNIA DA SILVA PEREIRA,
referida por SANDRO CARVALHO LOBATO DE CARVALHO e JOAQUIM HENRIQUE
DE CARVALHO LOBATO, informa que o movimento tem por objetivo “desacreditar
vítimas de violência sexual, sobretudo menores”, tendo sido originado no Canadá, Estados
Unidos e Inglaterra nos anos 80
157
. Como bem esclarecem os citados autores
158
:
tal movimento, ainda que de outra forma, ocorre sempre em que, em
audiência, advogados tentam desacreditar as vítimas de crimes sexuais,
questionando suas condutas e atitudes, fazendo perguntas a menores de idade
sobre coisas que elas ainda não estão aptas a responder por não conhecer,
usando este argumento na tentativa de desqualificar seus depoimentos.
157
PEREIRA, Tânia da Silva. Abuso Sexual de Menores. Revista Visão Jurídica, 25, São Paulo: Escala,
2008, apud CARVALHO, Sandro C. L de e LOBATO, Joaquim H. de C., Vitimização e Processo Penal.
Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11854>. Acesso em: 26 fev. 2010.
158
CARVALHO, Sandro C. L de e LOBATO, Joaquim H. de C., Vitimização e Processo Penal. Disponível em
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11854>. Acesso em: 26 fev. 2010.
72
Segundo VIRGINIA BERLINERBLAU
159
, referida por MÔNICA GUAZELLI,
o backlash tem como consequência
Invalidar lãs denuncias, convertir em sospechoso a todo denunciante de
maltrato; diluir los límites que separam as víctimas de victimarios;
confundir la cuestión incorporando los escasos casos de violencia contra
varones (niños/adultos) ejercida por mujeres. En síntesis, se intenta invertir
el sentido de la conducta abusiva al atribuírsela a quien denuncia o protege,
buscando reforzar la violencia vigente y condenar a perpetuidad a todo niño
que sufre, a la vez que pretende llevar a la impotência a los profesionales
que hasta ahora llevan en bastante soledad la pesada carga de sostener La
protección de las víctimas, con escaso o inadecuado apoyo institucional
Assim, tornou-se prática não rara em processos judiciais dessa natureza colocar
em xeque a credibilidade da palavra da vítima. Caracterizar a criança como fantasiosa e até
mentirosa constitui argumento constante da defesa. Tal assertiva parece ganhar robustez
quando a vítima apresenta versões contraditórias e dissonantes, exemplificativamente, quando
altera drasticamente seu depoimento prestado na fase policial, ao ser ouvida em Juízo,
operando verdadeira retratação, assumindo a defesa do réu. Também por isso é que estudos
revelam que se deve ter especial cuidado na análise do conteúdo do depoimento das crianças e
adolescentes em juízo, principalmente no que concerne à sua oitiva acerca do abuso sexual
supostamente sofrido.
Contudo, trabalhos na área psicológica demonstram que nem sempre a mentira
da criança refere-se à ocorrência do abuso, mas, na maioria das vezes, residem justamente na
retratação. Esta, por sua vez, é justificável e, inclusive, ensejada pelo engendro no qual a
vítima é emaranhada. PIERRE SABOURIN
160
, acerca do tema, discorre:
Isto mostra bem o desconhecimento geral do que ocorre com o
funcionamento inconsciente entre os três protagonistas essenciais que estão
em jogo nesse tipo de família: o pai, a mãe e a criança. De fato, se existe um
sintoma que merece ter uma conotação positiva, seguramente o é a
transgressão paterna (a menos que também nos coloquemos fora da lei, em
conluio com o pai sedutor), mas sim a posição sacrificial da criança no
centro mesmo de tudo o que vai se desenvolver: inicialmente a sua tentativa
para falar, sua vitória excepcional em se fazer ouvir, a pressão dos
159
BERLINERBLAU, Virginia, apud GUAZELLI, Mônica, A Falsa Denúncia de Abuso Sexual, in DIAS,
Maria Berenice (coord.), Incesto e Alienação Parental realidades que a Justiça insiste em não ver, São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007, p. 131.
160
SABOURIN, Dr. Pierre, Porque a Terapia Familiar em face do Incesto?, in GABEL, Marceline (org.),
Crianças Vítimas de Abuso Sexual, 2ª edição, São Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 171.
73
acontecimentos e a pressão parental conjugadas, a criança vai retirar a sua
palavra e retratar-se. Sua mentira, quando a criança diz que é uma mentirosa,
será ainda uma atitude sacrificial, a pior de todas, fundadora de uma
quantidade de ocorrências que vão se suceder até a improcedência, por
exemplo, no plano judicial, até suas tentativas de suicídio e sua subseqüente
patologia psíquica.
Continua o autor
161
:
Aqui vemos bem o duplo laço, perfeitamente trágico, do qual uma criança é
prisioneira. Se houver uma retratação, veremos essa criança duplamente
refém em sua própria família, submetida às injunções contraditórias de ser
uma menina bem-educada (ou um menino) e, o obstante, obedecer às
provocações, intimidações, exibições sexuais, iniciação e masturbações de
seu pai. Quando penetração do corpo da criança, é um estupro, seja a
penetração oral, anal ou genital (lei de dezembro de 1980), e portanto um
crime. Se o pai confessa, parcial ou totalmente, seu advogado saberá
defendê-lo com todos os argumentos possíveis, a fim de desqualificar a
palavra da criança. Se o pai não reconhece os fatos, ou se ele se retrata (o
que é cada vez mais freqüente, levando-se em conta a quantidade de pais
sedutores em prisão preventiva que desmentem suas confissões), o juiz de
instrução terá muita dificuldade em levar em consideração a palavra da
criança, pois essa palavra é frágil se a criança, ela também, não estiver a todo
instante assistida por um advogado. Esse elemento judicial amplifica a crise
de maneira considerável, pois coloca em destaque a noção de direitos criança
diante dos direitos do adulto. É um dos elementos constitutivos do
tratamento correto desses casos; com efeito, existe uma função reparadora
prévia, indispensável a uma retomada da evolução interrompida nessa
criança, em particular o desenvolvimento natural de seu complexo de Édipo
que está estacionado. Para poder cuidar desse conjunto familiar em crise, é
preciso que, ao mesmo tempo, haja estrutura de uma rede de acolhimento
(família ampliada, assistência educativa) e que a criança tenha um advogado.
Além de tal característica das crianças e adolescentes, outras que tornam sua
oitiva complexa e diferenciada, não podendo ser colocada na área comum dos depoimentos
tomados de adultos formados, sob pena de produzir-se um testemunho incompleto e
desvirtuado, bem como de praticar-se novo ato traumatizante para a psique da vítima. Nesse
aspecto, acerca do time da criança ou adolescente abusada sexualmente, para que se abra e
passe a falar a respeito do mesmo, esclarecedoras são as palavras de LUÍSA FERNANDA
HABIGZANG e RENATO MAIATO CAMINHA
162
:
É importante ressaltar que o estabelecimento de uma relação de confiança
com a criança é fundamental para que ela se sinta confortável para revelar
161
SABOURIN, Dr. Pierre, Porque a Terapia Familiar em face do Incesto?, in GABEL, Marceline (org.),
Crianças Vítimas de Abuso Sexual, 2ª edição, São Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 172.
162
HABIGZANG, Luísa Fernanda e CAMINHA, Renato Maiato, Abuso Sexual contra Crianças e
Adolescentes – conceituação e intervenção clínica, 2ª edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2004, p. 95.
74
situações abusivas que geram sofrimento e que, muitas vezes, não foram
anteriormente relatadas em detalhes a outras pessoas.
As peculiaridades do modo de expressão das crianças e adolescentes, reforçadas
pelo fato que desencadeou alta dose de sofrimento psíquico, e, consequentemente, formas
psicológicas de defesa, são, muitas vezes, erroneamente interpretadas, para fragilizar a
credibilidade da palavra do infante. E. GOMBAU, E. SIMON e G. BARGADÀ referidos por
JOSEP TOMÀS
163
ensinam a esse respeito:
Credibilidade se refiere a la sinceridad y precisión del niño. La
credibilidade del niño está determinada em último lubar por el juez o
jurado, no por el evaluador forense. Benedek y Schetky (1987b) hacen uma
lista de los factores em el niño que ellos creen demuestran credibilidad: el
niño utiliza su propio vocabulario em vez de términos adultos y explica La
historia desde su ponto de vista; el niño revive el trauma de manera
espontánea mientras juega; los temas sexuales están presentes em SUS
juegos y dibujos; La afectación está em consonancia con las acusaciones; el
comportamiento del niño es seductor, precoz o regresivo, tiene uma buena
memória de los detalles, incluyendo detalles de sensibilidade motora, y
detalles idiosincrásicos; y El nino tiene por costumbre decir la verdade.
Um dos mais fortes argumentos utilizados para invalidar ou desacreditar o
depoimento prestado por uma criança ou adolescente, é o fato de se considerá-los mais
sugestionáveis que os adultos, como demonstra MARXSEN ET AL referidos por ERNA
OLAFSON
164
:
That young children are more suggestible than adults is well established.
That does not mean that the investigative interviewing of children is
impossible, only that requires skill and care. However, the literature’s
overemphasis on suggestibility can give the police, the judiciary, the media,
and the general public the mistaken impression that children are inherently
unreliable. This is an issue of considerable moment because such an
impression can be the bases for societal decisions with far-reaching
consequences… the suggestibility problem is a complex one, but the
literature [gives] the impression that children are simply untrustworthy
witnesses. This is simply not true.
163
GOMBAU, E., SIMON, G. e BARGADÀ, M. Parámetros prácticos para la evaluación forense de niños y
adolescentes que podrían haber sido abusados física y sexualmente, in TOMÀS, Josep (ed.), Trastornos por
Abuso Sexual em La Infância y a Adolescencia valor educativo Del juego y Del deporte, Unitat de
psiquiatria Infanto-juvenil de l’Hospital Val d’Hebron, 1ª edição, Barcelona: Ed. Laertes, 1999. p. 251.
164
MARXSEN et al. (1995), p. 451, apud OLAFSON, Erna. Children’s Memory and Suggestibility, in
FALLER, Kathleen Coulborn, Inteviewing Children About Sexual Abuse – Controversies and Best Practice,
New York: Oxford University Press, 2007, p. 12.
75
Além das características próprias da idade, em se tratando de abuso sexual, deve-
se levar em conta as manipulações perpetradas pelo molestador, a fim de que a vítima tenha
uma impressão deturpada dos acontecimentos. Como bem observa ERNA OLAFSON,
skillful molesters often act in ways to distort children’s original perceptions and thus their
memories and reports of being sexually abused
165
.
Além das tradicionais e antigas correntes usadas para respaldar aqueles que
pretendem desacreditar a palavra da vítima criança ou adolescente, soma-se a síndrome da
alienação parental, que foi objeto de estudo
166
, constituindo novo elemento para invalidar o
depoimento da vítima, a fim de obstaculizar a condenação do réu. Não se apregoa aqui a
inexistência de falsas denúncias de abuso sexual, seja por manipulação de um adulto, seja por
fantasias ou interpretações equivocadas das crianças, em razão das peculiaridades com que
enxerga o mundo e os acontecimentos que a rodeiam, próprias de sua idade e da condição de
pessoas em desenvolvimento. É cediço que tais ocorrem, ao lado de denúncias legítimas. Tal
situação é por demais complexa e de difícil discernimento, e vem se tornando ainda mais
tormentosa diante de movimentos como o backlash. Justamente por isso é que se faz
necessária apropriada e aprofundada investigação, para não se cometer a máxima injustiça de
se condenar um inocente ou o absurdo de se absolver um culpado, com suas nefastas
consequências.
2.3.3. Violência Institucional e Vitimização Secundária
O processo penal, tradicionalmente, focaliza o réu e acaba por deixar a vítima à
margem, como bem descrito por HERVÉ HAMON
167
:
Antes do grande rito de inclusão que representa a fase de julgamento,
convém que nos detenhamos nos ritos preparatórios contidos na fase de
instrução. Podemos dizer, paradoxalmente, a fase de instrução individualiza
ao máximo aquele que é somente incriminado, portanto presumido inocente.
De fato, todos os rituais da instrução incriminação, primeiro
comparecimento, acareação visam fazer com que os fatos cometidos por
165
OLAFSON, Erna. Children’s Memory and Suggestibility, in FALLER, Kathleen Coulborn, Inteviewing
Children About Sexual Abuse – Controversies and Best Practice, New York: Oxford University Press, 2007,
p. 14.
166
Vide item 1.5 do capítulo 2 deste trabalho.
167
HAMON, Hervé, Abordagem Sistêmica do Tratamento Sociojudiciário da Criança Vítima de Abusos
Sexuais Intrafamiliares, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São
Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 183.
76
uma pessoa entrem numa categoria jurídica preestabelecida pelo código ou
que digam, ao contrário, que os fatos não abarcam os elementos constitutivos
da infração. A fase da instrução individualiza também o culpado em outro
nível: o da personalidade investigação de personalidade, curriculum vitae,
perícia psiquiátrica, exame médico-psicológico. Também a vítima se
beneficia, na ocasião da instrução, de um tratamento muito individualizado
exames ginecológico e proctológico -, perícia de credibilidade,
eventualmente designação de um advogado, interrogatório individual.
Tal posição, contudo, vem sendo modificada, como se pode verificar da análise
da recente reforma operada no Código de Processo Penal. Realmente, quanto ao ofendido, isto
é, a vítima, houve introdução de algumas normas com o intuito de preservar sua imagem e
evitar contatos desnecessários com o suposto agressor, conforme se do artigo 202 e
parágrafos, em especial os 2º a 6º, abaixo transcrito:
Art. 201. Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado
sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as
provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações.
§ 1o Se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o
ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade.
§ 2o O ofendido será comunicado dos atos processuais relativos ao ingresso
e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à
sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem.
§ 3o As comunicações ao ofendido deverão ser feitas no endereço por ele
indicado, admitindo-se, por opção do ofendido, o uso de meio eletrônico.
§ 4o Antes do início da audiência e durante a sua realização, será reservado
espaço separado para o ofendido.
§ 5o Se o juiz entender necessário, poderá encaminhar o ofendido para
atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de
assistência jurídica e de saúde, a expensas do ofensor ou do Estado.
§ 6o O juiz tomará as providências necessárias à preservação da intimidade,
vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o
segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações
constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de
comunicação.
Como se vê, embora seja louvável a intenção do legislador, nenhuma
modificação significativa foi introduzida, com o fim de se evitar maiores danos psíquicos à
vítima por meio de sua oitiva no processo judicial. A regra descrita no parágrafo poderia
contemplar um possível avanço, com encaminhamento pelo Judiciário da vítima ao
atendimento multidisciplinar, abarcando a situação da vítima de abuso sexual, para tratamento
dos danos físicos e psíquicos ocasionados pela agressão. Ocorre que tal providência raramente
é colocada em prática por uma simples razão: inexistência de tais atendimentos.
77
Ademais, este atendimento, como veremos, tem de ser anterior ao depoimento
prestado em Juízo, visto que esta fase é, quase sempre, a última do longo percurso pelo qual
tem que passar a vítima, desde a denúncia da ocorrência do delito, até o julgamento do fato
pela Justiça. Nesse ínterim, a vítima do delito que configura abuso sexual, comumente, já teve
que relatar seu sofrimento para conselheiros tutelares, médicos, delegados, advogados, entre
outros. Assim, o atendimento multidisciplinar deve ser disponibilizado no início de tal
cruzada, o que pode se dar a partir da denúncia no colégio, nos conselhos tutelares ou no
hospital. Senão, ao menos na delegacia. É que o atendimento disponibilizado tão somente
quando o fato se torna judicializado, além de ser tardio para tratamento dos danos causados à
vítima pelo perpetrador do abuso, não previne ou ameniza os danos causados, mesmo que não
intencionalmente, pelos profissionais que tem contato com a vítima, em razão do processo
necessário para a responsabilização do agressor leia-se, médicos, delegados, promotores de
justiça e juízes, dentre outros.
Inescondível que o depoimento prestado perante o delegado (e escrivão,
advogado etc.) e em Juízo (diante do juiz, promotor de justiça, advogado e secretário, no
mínimo) constitui-se em nova agressão à psique da vítima. HERVÉ HAMON foi categórico
ao comentar que o processo penal transforma novamente em vítima a criança que foi vítima
de abusos sexuais praticados por um ascendente”
168
. Trata-se da chamada “violência
institucional”, perpetrada por aqueles que vestem a roupagem de autoridades e profissionais
pertencentes à instituições públicas que objetivam responsabilizar o agressor, visando a um
bem maior, que é a tutela dos interesses da vítima, quais sejam, integridade física, psíquica, e
sua dignidade. Tal fenômeno também recebe o nome de vitimização secundária ou
sobrevitimização que, na definição de JORGE TRINDADE
169
,
Mesmo depois de ocorrer o evento vitimizador (vitimização primária), a
vítima precisa continuar a se relacionar com outras pessoas, colegas,
vizinhos, profissionais da área dos serviços sanitários, tais como
enfermeiros, médicos, psicólogos e assistentes sociais, e profissionais da
área dos serviços judiciais e administrativos, funcionários de instâncias
burocráticas, policiais, advogados, promotores de justiça e juízes, podendo
ainda se defrontar com o próprio agente agressor ou violador, em
procedimentos de reconhecimento, depoimentos ou audiências. Essas
168
HAMON, Hervé, Abordagem Sistêmica do Tratamento Sociojudiciário da Criança Vítima de Abusos
Sexuais Intrafamiliares, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São
Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 182.
169
TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para Operadores do Direito. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007, p. 158.
78
situações, se não forem bem conduzidas, podem levar ao processo de
vitimização secundária, no qual a vítima, por assim dizer, ao relatar o
acontecimento traumático, revive-o com alguma intensidade,
reexperenciando sentimentos de medo, raiva, ansiedade, vergonha e estigma.
Devido a essa possibilidade, as agências de cuidados sanitários e judiciais
devem estar adequadamente aparelhadas, tanto do ponto de vista material,
quanto do ponto de vista humano, para evitar a revitimização-hetero-
secundária, ou pelo menos, para minimizá-la.
Acerca do procedimento investigativo que se opera na Delegacia,
elucidativamente descreveu ANTONIO SCARANCE FERNANDES, referido por SANDRO
CARVALHO LOBATO DE CARVALHO e JOAQUIM HENRIQUE DE CARVALHO
LOBATO
170
:
uma grande diferença entre o anseio da vítima, vinculada a um caso,
para ela especial, significativo, raro e o interesse da autoridade policial ou
agente policial, que tem naquele fato um a mais de sua rotina diária, marcada
muitas vezes por outros de bem maior gravidade; ainda, assoberbada pelo
volume, impõe-se naturalmente a necessidade de estabelecer prioridades. As
deficiências burocráticas por outro lado, aumentam geralmente a decepção.
Não funcionários suficientes e preparados. Não veículos disponíveis
para diligências rápidas. Tudo ocasiona demora e perde tempo. Mais do que
tudo isso, muitas vezes a vítima é vista com desconfiança, as suas palavras
não merecem logo de início, crédito, mormente em determinados crimes
como os sexuais. Deve prestar declarações desagradáveis. Se o fato é
rumoroso, há grande publicidade em torno dela, sendo fotografada,
inquirida, analisada em sua vida anterior. As atenções maiores são voltadas
para o réu. Isso gera o fenômeno que os estudos recentes m chamado de
vitimização secundária do ofendido.
ANTONIO CEZAR LIMA DA FONSECA denomina tal violência de abuso
estatal, afirmando que “não menos pior é o abuso estatal, decorrente de humilhações oriundas
de pessoas não habilitadas para tratar de assunto sexual com crianças e adolescentes”
171
. A
violência institucional ou vitimização secundária, independentemente do nome que receba,
além de prática inaceitável pela perspectiva moral, também pode ser considerada infringente
de regras legais, encartadas no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Constituição
170
FERNANDES, Antônio Scarance. O Papel da Vítima no Processo Criminal. São Paulo: Malheiros, 1995,
p. 69, apud CARVALHO, Sandro C. L de e LOBATO, Joaquim H. de C., Vitimização e Processo Penal.
Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11854>. Acesso em: 15 mar. 2010.
171
FONSECA, Antonio Cezar Lima da, Crimes contra a Criança e o Adolescente, Porto Alegre: Ed. Livraria
do Advogado, 2001, p. 143.
79
Federal, na proteção integral da criança. Nesse sentido, asseverou PATRÍCIA CALMON
RANGEL
172
:
Em resumo, dentro dessa nova ótica, toda e qualquer criança é digna e
merecedora de cuidados e proteção integral, com prioridade absoluta, da
família, do Estado e da sociedade, sendo possível a intervenção em seu favor
em qualquer âmbito, para a garantia de seu direito a se ver a salvo de
qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão”(conforme expressamente previsto no artigo da lei
8069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente)
Por mais duro e difícil que seja assumir a posição de algozes de vítimas tão
inofensivas, que sofreram crueldade do mais alto grau abuso sexual -, o primeiro passo
para a mudança é a assunção de tal responsabilidade. Sobre o tema, escreveu ALBERT
CRIVILLÉ
173
:
Pensamos, por exemplo, no funcionamento “real” do aparelho judiciário e
em suas conseqüências nefastas para determinado número de vítimas? Elas
também são uma violência real da qual seria muito fácil se desfazer com
posições de princípios fundadas num funcionamento ideal do sistema.
Questionando o papel do Judiciário e do Estado nos casos de abuso sexual
infantil e intrafamiliar, o autor
174
põe em xeque a atuação meramente repressora de tais
organismos:
Algumas abordagens educativas ou de cuidados fazem então da sanção penal
o pivô de uma intervenção que procura reparação para a vítima, corretivo
para o “sedutor” e o reordenamento das relações familiares. Na linha reta da
“normalização”, embora apresentado sob o aspecto de teorias mais
sofisticadas, o caso criminal é assim, aparentemente, posto a serviço do
objetivo educativo/cuidados.
Doutrinadores referidos por ALBERT CRIVILLÉ
175
apóiam e embasam o
pensamento que parece nortear a corrente atuação do Judiciário e instituições a ele vinculadas
172
RANGEL, Patrícia Calmon. Abuso Sexual Intrafamiliar Recorrente, tiragem, Curitiba: Juruá, 2008, p.
39.
173
CRIVILLÉ, Albert, Nem muito, nem pouco. Exatamente o necessário. Reflexões a propósito dos
profissionais, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São Paulo: Ed.
Summus, 1997, p. 136.
174
CRIVILLÉ, Albert, Nem muito, nem pouco. Exatamente o necessário. Reflexões a propósito dos
profissionais, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São Paulo: Ed.
Summus, 1997, p. 136/137.
175
CRIVILLÉ, Albert, Nem muito, nem pouco. Exatamente o necessário. Reflexões a propósito dos
profissionais, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São Paulo: Ed.
Summus, 1997, p. 137.
80
quando se trata de abuso sexual infantil, qual seja, o objetivo primacial é a responsabilização
do agressor, como nos comentários por ele tecidos:
Todavia, indo além mesmo das questões sobre os benefícios terapêuticos
atribuídos à punição, convém se interrogar sobre as ideologias ou
racionalizações que tal abordagem esconde. Por exemplo, Sgroi (1986)
defende a idéia de que “é mais adequado considerar a exploração sexual das
crianças como um abuso de poder e planificar uma estratégia de intervenção
conforme as circunstâncias”. Apoiando-se na análise feita por Burgess e
Groth, ela afirma que “os abusos sexuais na criança parecem não estar
motivados, em primeiro lugar, por desejos sexuais”. Não se trata, portanto,
de resolver um problema sexual, mas um problema de abuso de poder.
Inicialmente, deve-se condenar e punir, para, em seguida, poder pensar no
resto.
Assim, uma vez que tal entendimento parece razoável, por ele tem se pautado o
Judiciário como um todo, até porque tal atitude é a mais cômoda e prática. A Justiça, por sua
própria natureza, constitui-se em monopólio, e, detentora de tamanho poder, o de julgar os
atos dos demais, possui notória dificuldade em dividi-lo, e de assumir suas deficiências, bem
como de aceitar que necessita do auxílio e intervenção de profissionais de outras áreas para a
solução dos problemas que se lhe apresentam. O citado autor
176
descreve a lógica desse
entendimento:
Essa posição de princípio é tanto mais tentadora para o interventor porque
determinado número de vítimas, chegando à idade adulta, reclama a punição
do “sedutor” como um meio necessário para poder se libertar do passado. O
interventor encontra-se, então, preso a uma engrenagem em que qualquer
tentativa de compreensão em outro nível será interpretada como uma
negação da realidade e uma cumplicidade com o “sedutor”. (...) Abuso de
poder e violência, sem dúvida, existem. Não se trata de negá-los ou
minimizá-los. Todavia, é importante saber de qual poder se trata, como
importa saber de qual violência a criança foi objeto, para julgar o benefício
que a punição do sedutor pode trazer à vítima.
Não se pretende imputar à Justiça a responsabilidade por todos os danos
advindos do abuso sexual infantil, nem afirmar que a mesma tem sido relapsa, negligente ou
cruel, deixando de cumprir seu papel na proteção dos infantes. É cediço que o papel principal
e primordial da Justiça é devolver e manter a paz social, por meio de solução de conflitos. Na
prática, tal missão traduz-se em julgar. Julgar o ato do próximo. Julgam-se os atos ilícitos,
176
CRIVILLÉ, Albert, Nem muito, nem pouco. Exatamente o necessário. Reflexões a propósito dos
profissionais, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São Paulo: Ed.
Summus, 1997, p. 137.
81
cíveis e criminais. E, realmente, na maioria das vezes, o atuar do magistrado e instituições
conexas, cinge-se a tal atividade. Contudo, em alguns momentos, principalmente naqueles
afetos à infância e juventude, ou seja, nos casos em que as pessoas envolvidas são crianças e
adolescentes, o atuar do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Civil é redirecionado
para a proteção dos interesses de tais pessoas, que envolve muito mais que a
responsabilização de seu agressor.
Assim, é chegado o momento de alterar o rumo que o Judiciário e organizações
afins têm tomado frente ao abuso sexual infantil. Deve-se rever a atuação de todos os
profissionais envolvidos em tais casos, deixando de enxergá-los apenas como o mais cruel e
nefasto ato delituoso, que reclama a mais rigorosa e rápida punição. Antes da pessoa do
infrator, devemos nos voltar para alguém que foi por demais deixada de lado, que já sofreu
inúmeras negligências. O alvo de todos os esforços deve ser a vítima criança e adolescente
vitimada pelo abuso sexual. Transcreve-se, a este respeito, entendimento do autor ALBERT
CRIVILLÉ
177
:
De tanto ver o incesto como um abuso de poder e de denunciar a tolerância
cúmplice dos representantes da lei, chegamos a reduzi-lo a uma simples
transgressão, isto é, a um assunto que diz respeito somente à justiça. Cabe a
ela, portanto, encarregar-se dele. Nós nos esquecemos, de passagem, que a
essência do problema se situa em outra parte, e que o papel e o lugar da
justiça, no que se refere às vítimas, deve ser medido em relação à natureza
do problema e às particularidades de cada caso, muito mais do que em
relação à norma social da qual é guardiã. No caso de abusos sexuais, os
“danos” a serem reparados na vítima não estão forçosamente de acordo com
os interesses a serem defendidos para a ordem social. (...)A preocupação em
ser eficaz é bem legítima. Aliás, qual interventor não desejaria sê-lo? Resta,
contudo, saber o que se entende por ser eficaz, e para quem. Proteger a
criança, por exemplo, comporta muito mais coisas do que evitar a repetição
do abuso. (...) Exceto em casos extremos, a melhor maneira de solucionar o
problema não é fazer dela o equivalente a um órfão. Ao primeiro trauma,
pode se acrescentar um segundo, que cristalizará para sempre a situação e
tornará o luto ainda mais difícil.
Volvendo ao dito, o papel da Justiça no Estado Democrático de Direito é
fazer valer o regrado pelas leis, impondo sanções para tanto, sendo inviável e indesejado
modificá-lo, sob pena de esvaziar seu conteúdo, desvirtuando sua essência. Contudo, mesmo
para a função que pretende cumprir de julgar o acusado de violar a lei, por imputação de
177
CRIVILLÉ, Albert, Nem muito, nem pouco. Exatamente o necessário. Reflexões a propósito dos
profissionais, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São Paulo: Ed.
Summus, 1997, p. 137.
82
cometimento de abuso sexual infantil, a experiência tem demonstrado que as provas
amealhadas durante a instrução processual tem sido, além de ensejadora de nova vitimização,
também ineficaz ao seu fim precípuo provar a ocorrência e autoria do delito, culminando na
absolvição de muitos réus por insuficiência de provas.
Destarte, seja pela ineficácia probatória da espécie de prova denominada
depoimento do ofendido, seja pelas nefastas consequências não desejadas, mas presentes, de
dita prova, na própria vítima, conclui-se pela inadequação da oitiva de crianças e adolescentes
pelo método legal atualmente em vigor.
3. DEPOIMENTO SEM DANO – ANÁLISE CRÍTICA
Demonstrada à saciedade que o meio atual praticado para oitiva de menores em
Juízo, principalmente em casos de abuso sexual infantil, é inapropriado e ineficiente ao fim a
que se propõe e, ainda, ensejador de danos, convertendo o Judiciário de autoridade aplicadora
da lei em algoz perpetrador de abuso e violência institucional, resta buscar os meios
disponíveis na tentativa de encontrar outro método.
Depara-se, então, com a seguinte pergunta: qual método seria o ideal para a
realização da busca da verdade real, a fim de propiciar julgamento justo para o acusado de
abuso sexual infantil e, ao mesmo tempo, não causar mais danos psíquicos à vítima e, ainda,
protegê-la?
Na lição extraída pelo célebre texto escrito por CARNELUTTI, a resposta é
simples: não há. A Justiça humana, feita por homens e para homens é apenas um arremedo,
uma sombra, um rascunho da justa e perfeita Justiça divina.
Compara CARNELLUTI o Estado a um arco, e o Direito à armação, que é
necessária para manter unido este arco, até que o mesmo esteja pronto. O Estado consiste no
povo unido, firme o bastante para tornar-se Estado
178
. Segundo o doutrinador, o Estado pode
existir sem a armação, que é o Direito. Contudo, para tanto, necessário que uma força interior
trabalhe para manter unidos os tijolos, que são as pessoas. Essa força é o amor, nas suas
178
CARNELUTTI, Francesco. A Arte do Direito, 2ª ed., Campinas: Bookseller, 2005, p. 14.
83
palavras, “a sabedoria do povo traduz amar por querer bem, quer dizer, querer o bem do
amado...” e, como consequência, “...o bem de uma e de outro é o bem da mesma pessoa.
Como os tijolos se mantêm unidos, depois que o arco está construído, em virtude de uma
força interior, também uma força interior une os homens e faz de uma multidão uma
unidade...”
179
.
Destarte, CARNELLUTI afirma que o Direito é o substituto imperfeito do amor,
enquanto não se consegue alcançá-lo
180
:
...o direito é a armação do Estado. Enquanto falte a força interior ou,
francamente, enquanto falte o amor, a vida do Estado está em perigo sem
direito, como a existência do arco sem armação. No Estado de direito não
podemos ver, pois, a forma perfeita de Estado.(...). O Estado perfeito será, ao
contrário, o Estado queo necessite mais de direito; uma perspectiva, sem
dúvida muito distante, imensamente distante, mas certa, porque a semente
está destinada indubitavelmente a transformar-se em árvore carregada de
folhas e de frutos
Antes que se possa chamá-lo de utópico, exemplifica o doutrinador com maestria
uma sociedade possível e presente sem a existência de regras ou de direitos – a família
181
:
quando numa família o direito chega a ser supérfluo, quer dizer, quando a
armação pode cair sem que caia o arco, o que ocupa o lugar do direito
chama-se amor. Uma verdade, pois, como o sol clareia as coisas mais
deslumbram os olhos. (...) enquanto os homens que não saibam amar
necessitam de juiz e policiais civis para mantê-los unidos. Quer dizer:
enquanto os homens não saibam amar temos que obrigá-los.
E, finalmente, conclui, asseverando uma verdade tão inarredável quanto,
ininteligivelmente, difícil de se ver concretizada
182
:
um homem obrigado é um homem amarrado, e um homem amarrado não
tem liberdade. Sujeita-se o homem, que não logra fazer o bem verdadeiro
não pode fazer bem para si próprio nem para todos os demais, ainda os
juristas, falam continuamente de liberdade sem escutar o fundo desta imensa
palavra. Quando conseguimos escutá-lo, mais uma vez nossas idéias
invertem-se, e liberdade, em lugar de poder fazer o que gostamos, significa o
poder de fazer o que não gostamos. Entre os homens, os que não conseguem
o seu próprio sustento, o mais forte quando mata o mais fraco para comer
sozinho, não é livre senão servo; não deveria ter usado sua força para matar
o outro senão para sustentar o outro, não obstante, sua própria fome, merece
179
CARNELUTTI, Francesco. A Arte do Direito, 2ª ed., Campinas: Bookseller, 2005, p. 18.
180
CARNELUTTI, Francesco. A Arte do Direito, 2ª ed., Campinas: Bookseller, 2005, p. 18/19.
181
CARNELUTTI, Francesco. A Arte do Direito, 2ª ed., Campinas: Bookseller, 2005, p. 20.
182
CARNELUTTI, Francesco. A Arte do Direito, 2ª ed., Campinas: Bookseller, 2005, p. 20/21.
84
chamar-se liberdade. A liberdade, em suma, não é o poder sobre os demais,
senão sobre si mesmo.
Nessa linha de pensamento, esclarecedoras também as palavras de WILLIAM P.
YOUNG em seu best seller intitulado “A Cabana”, ao afirmar que a criança não tem o direito
de ser protegida e, que, na verdade, ninguém tem direito a nada. Explica, então, que a criança
é protegida porque é amada, e que os direitos são criados pelos homens justamente em razão
da falta de amor
183
.
Como o homem é falho, os próprios homens criam regras humanas, a fim de que
sejam seguidas, para possibilitar o convívio. E, para que sejam impingidos a obedecer as
regras, criam sanções. E, para aplicar as sanções e fazer valer as regras, institui-se a Justiça
humana. Busca-se, é verdade, incessantemente, pelo menos do ponto de vista filosófico, o
ideal, a perfeição, mesmo ciente de que tal é inalcançável. Daí, as mudanças, as inovações,
retratadas no cotidiano, nas novas práticas pelos magistrados, na jurisprudência, nas novas
teorias doutrinárias e, por fim, culminam nas alterações legislativas.
Nessa busca é que se insere o Depoimento Sem Dano que, dentre tantas outras
práticas inovadoras aplicadas aqui e ali, pelos ‘visionários’ da Justiça, conquistou posição de
destaque dentre os operadores de Direito e vem sendo objeto de intensa discussão entre estes e
também entre os profissionais da área da Psicologia e Assistência Social, bem como por todos
aqueles que se interessam pelo tema – abuso sexual infantil, como reprimi-lo e como ajudar as
vítimas desta atrocidade.
3.1. Definição
Depoimento Sem Dano é a denominação dada a um método de oitiva de crianças
e adolescentes em Juízo, isto é, em processos judiciais, diverso do modo constante no Código
de Processo Penal. Resume-se o procedimento à oitiva da vítima em sala diversa do recinto da
audiência, na qual a criança ou adolescente é entrevistada por profissional preparado para tal
tarefa, sendo que o magistrado, a acusação (promotor de justiça ou advogado) e a defesa
(defensor público ou advogado constituído), assistem a tudo de outro local, que o
183
YOUNG, William P., A Cabana, Rio de Janeiro: Ed. Sextante, 2008, p. 124 .
85
depoimento é gravado audiovisualmente. As perguntas, tanto do magistrado quanto das
partes, são repassadas ao entrevistador por meio de ponto eletrônico.
O projeto, de iniciativa de JOSÉ ANTONIO DALTOÉ CEZAR, juiz de Direito
do Rio Grande do Sul, tem como consequência positiva, evitar perguntas inapropriadas,
impertinentes, agressivas e desconectadas não do objeto do processo, mas principalmente
das condições pessoais do depoente”
184
. Segundo o autor, a gravação, que é objeto de
degravação, também é mantida nos autos, o quepermite que não só as partes e o Magistrado
tenham a possibilidade de revê-lo a qualquer tempo para afastar eventuais dúvidas que
possuam, mas também que os julgadores de segundo grau, em havendo recurso da sentença,
tenham acesso às emoções presentes nas declarações”
185
.
Como bem esclarece o autor, tido como pai do método, o mesmo originou-se
como resposta da busca por meio de oitiva de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual,
diverso do tradicional, a fim de extrair a verdade real sem causar danos psíquicos à criança ou
adolescente, sem deixar de atender os princípios do contraditório e ampla defesa
186
pilares
do devido processo legal, do processo penal e, por fim, do Estado Democrático de Direito,
como visto no capítulo 2 deste estudo. Embora seja focado na colheita do depoimento de
vítimas de abuso sexual infantil, o método vem sendo vinculado à oitiva de crianças e
adolescentes em Juízo em outros processos, quer de natureza criminal, quer afetos à Infância e
Juventude ou ao Direito de Família leia-se, para apuração de atos infracionais, de infrações
administrativas, de inobservância de obrigações relativas ao poder familiar, para sua eventual
destituição ou medidas protetivas, de questões atinentes à guarda, direito de visita, dentre
outros.
O chamado Depoimento Sem Dano, num primeiro momento, foi recebido com
enorme entusiasmo, considerado resposta satisfatória para os problemas gerados pelas leis
processuais então vigentes que persistem em vigor até hoje e que, além disso, representa
um avanço no Direito, ao serem reconhecidas suas limitações por meio dos operadores de
tal ciência e da necessidade de interdisciplinaridade, com consequente humanização da
184
CEZAR, José Antônio Daltoé, Depoimento Sem Dano Uma Alternativa para Inquirir Crianças e
Adolescentes nos Processos Judiciais, Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2007, p. 62.
185
CEZAR, José Antônio Daltoé, Depoimento Sem Dano Uma Alternativa para Inquirir Crianças e
Adolescentes nos Processos Judiciais, Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2007, p. 62.
186
CEZAR, José Antônio Daltoé, Depoimento Sem Dano Uma Alternativa para Inquirir Crianças e
Adolescentes nos Processos Judiciais, Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2007, p. 59/60.
86
Justiça. Corolário disso, trilhando o caminho natural das boas práticas no Judiciário, após
espalhar-se pelos Tribunais pátriosnão de forma tão ampla e integral como costuma ocorrer
com entendimentos jurisprudenciais, que necessitam de logística que inclui custos
operacionais com estrutura, equipamentos e material humano -, o Depoimento Dem Dano
tornou-se objeto de projeto de lei.
Quatro são os projetos que focaram a alteração legislativa para inclusão do
depoimento sem dano como método imposto por lei para a realização de oitiva de crianças e
adolescentes em Juízo: o projeto de lei n. 4126/04, que visava alterar o Código de Processo
Penal, o projeto de lei n. 7524/06, e o projeto de lei n. 35/07
187
, substitutivo ao projeto de lei
4126/04, que visa incluir a metodologia de oitiva de crianças e adolescentes em Juízo no
Estatuto da Criança e do Adolescente, esses três, originariamente, de autoria da Deputada
Federal Maria do Rosário (PT-RS). Em 2009 iniciou-se projeto de lei de n. 156 no Senado
Federal, que tem por objeto a reforma geral do Código de Processo Penal e traz em seu bojo
previsão de inquirição de crianças e adolescentes em Juízo, com base no Depoimento Sem
Dano. Nenhum, contudo, até o momento, tornou-se efetivamente lei, esbarrando em diversos
pontos controvertidos e conflituosos, como o fato de que, segundo o método originário de
DALTOÉ, entendimento perfilhado pelos projetos de lei, o profissional entrevistador deve ser
assistente social ou psicólogo, com o objetivo de facilitar o depoimento da criança
188
.
Considera-se que o entrevistador atua como espécie de intérprete na oitiva da criança, tal qual
ocorre quando o depoente não fala a língua nacional ou é surdo-mudo
189
. VELEDA
DOBKE
190
considera que:
se é determinada a nomeação de um intérprete no caso de a vítima não
entender a língua nacional ou ser surda-muda que não saiba ler e escrever,
também será possível a nomeação de um profissional para auxiliar na
realização da inquirição de uma criança vítima de abuso sexual. A
necessidade da nomeação de um “intérprete” em ambos os casos é evidente
Nisso reside um dos maiores entraves e tem sido motivo de rechaço o projeto de
lei acerca do depoimento sem dano pelos profissionais de ditas áreas. Consideram que
187
Íntegra do texto do projeto de lei pode ser vista no sítio do Senado Federal. Disponível em
<http://www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/getPDF.asp?t=39687>. Acesso em: 05 Abr. 2010.
188
CEZAR, José Antônio Daltoé, Depoimento Sem Dano Uma Alternativa para Inquirir Crianças e
Adolescentes nos Processos Judiciais, Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2007, p. 59/66.
189
Vide artigo 223 e parágrafo único do Código de Processo Penal.
190
DOBKE, Veleda, Abuso Sexual A Inquirição das Crianças - Uma Abordagem Interdisciplinar, Porto
Alegre: Ed. Ricardo Lenz, 2001, p. 92.
87
desvirtuamento de suas funções, que não englobam interpretação ou produção de provas no
processo judicial. Antes, contudo, de se averiguar quais os possíveis pontos negativos do
projeto, convém ater-se às pretensas vantagens do mesmo.
3.2. VANTAGENS PRECONIZADAS
Inserido no contexto atual de produção probatória no processo penal, em ações
penais que visam o processamento e julgamento de condutas de natureza criminal cuja espécie
pode ser enquadrada no que se denomina abuso sexual infantil, o Depoimento Sem Dano
apresenta inegáveis vantagens. É que, em comparação com a sistemática vigente, de oitiva da
vítima de abuso sexual infantil sob comando de regras constantes do Código de Processo
Penal, como visto no item 2.3.1 do capítulo 2 deste trabalho, a oitiva da vítima na forma
preconizada pelo projeto, sem dúvida, mostra-se consideravelmente menos danosa à
criança/adolescente ouvida e muito mais eficiente ao fim buscado pela produção probatória
alcançar ou ao menos se aproximar da verdade real. Isso fica evidenciado nas palavras de
JOSÉ ANTONIO DALTOÉ CEZAR
191
que, sendo magistrado do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, detém competência para processar e julgar crimes de natureza sexual,
deparando-se com o problema existente quando a suposta vítima era criança ou adolescente:
Percebi também que, embora houvesse um maior esforço para que as
inquirições em Juízo se procedessem com mais tranqüilidade para as vítimas,
assim como com regularidade processual para os acusados, na maior parte
dos casos, ante a inapropriação dos meios físicos e humanos utilizados pela
justiça criminal, as informações prestadas na fase policial não se
confirmavam em Juízo. Isso criava situações de constrangimento e
desconforto para todos os que participavam das solenidades, principalmente
para as crianças e os adolescentes apontados como abusados. Dessa forma,
as ações terminavam, na sua maior parte, sendo julgadas improcedentes, com
base na insuficiência de provas.
Não é objetivo desse estudo adentrar na seara psicológica e emocional da
vítima, entendendo como tal um mundo à parte, em que, muitas vezes, como os profissionais
da área enfatizam, a mente da criança usa de métodos próprios para a defesa e sobrevivência,
preferindo ‘esquecer’, silenciar, calar sobre o fato que lhe causou e ainda causa tanto
sofrimento. Tal sistema defensivo também produz o que se convencionou chamar de
síndrome do segredo. Psicólogos mencionaram casos em que a vítima separava, em sua
191
CEZAR, José Antônio Daltoé, Depoimento Sem Dano Uma Alternativa para Inquirir Crianças e
Adolescentes nos Processos Judiciais, Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2007, p. 59/60
88
mente, a figura do pai afetuoso, protetor e provedor, daquele que a abusava sexualmente, para
preservação de tal figura e consequente sobrevivência psíquica. Realmente, o cenário descrito
não é habitat dos operadores do Direito já que este, como ciência, embora lide com pessoas, o
faz em âmbito comportamental, visando regrar e manter a ordem da convivência mútua. A
existência e obediência a regras tem sido, desde o princípio, requisito basilar para o convívio
mútuo, possibilitando o surgimento, crescimento e desenvolvimento da sociedade.
Sobre o surgimento do Direito, escreveu CARLOS ROBERTO GONÇALVES
que “o direito nasceu junto com o homem que, por natureza, é um ser social. As normas de
Direito, como visto, asseguram as condições de equilíbrio da coexistência dos seres humanos,
da vida em sociedade”
192
. Acerca da ordem jurídica como pressuposto para a existência e
conservação da sociedade, explica o doutrinador que “a ordem jurídica tem, assim, como
premissa o estabelecimento dessas restrições, a determinação desses limites aos indivíduos,
aos quais todos indistintamente devem se submeter, para que se torne possível a coexistência
social”
193
. E, justamente para a manutenção da sociedade, sem que haja a completa e
oficializada justiça pelas próprias mãos, vingança, dentre outros, é que se faz presente o
Judiciário para, tomando o lugar da vítima ou de seus entes queridos, impingir a devida pena
retributiva ao agressor. A esta função, agregou-se, com a dita evolução, a ressocialização do
criminoso, para que, quando voltar ao seio da sociedade, não mais venha a delinquir. Na
prática, entretanto, é cediço que tão somente a vindita vem sendo aplicada por meio das penas
impostas pelo Estado-juiz em nosso país.
Tais considerações, que fogem ao tema, se prestam a demonstrar que necessário
se faz o processamento e julgamento do réu, para manutenção daquilo que chamamos de
sociedade civilizada no Estado Democrático de Direito. E, como visto no item 2.2 do capítulo
2 deste estudo, a palavra da vítima se faz, na grande maioria dos casos, imprescindível não
para que o processo chegue ao fim, mas para que seja realizada Justiça, sob a perspectiva de
punição ao agressor, perpetrador de abuso sexual. Assim, trabalhando com a realidade
inexorável que tudo indica a ausência de alternativas de mudanças aptas a fazer com que
seja dispensável a oitiva da criança vítima de abuso sexual, verifica-se que o método do
Depoimento Sem Dano desponta como melhor opção para a oitiva de crianças e adolescentes
em Juízo.
192
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol. I., Parte Geral, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 2.
193
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol. I., Parte Geral, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 1.
89
Quando se concebeu o método, foi analisado o panorama jurídico processual
existente, a fim de inserir o procedimento tido por mais eficaz e menos danoso. Obviamente,
embora os princípios não possam deixar de ser observados, sob pena de fazer entrar em
colapso todo o sistema não do Direito, mas também do Estado de Direito em que vivemos,
as regras específicas e pormenorizadas dos procedimentos podem e devem ser modificadas,
quando demonstrado que não atendem à sua função ou quando provada a existência de outro
meio de se obter o intento, com menos gravame para quem quer que seja. Assim é que o
Depoimento Sem Dano visa alterar o mínimo na regra processual vigente, sem deixar de
observar os princípios afetos à área. A principal alteração consiste na tomada do depoimento
da vítima não pelo magistrado, pelo promotor e advogado, mas por alguém capacitado para
conversar com a criança.
Notória é a necessidade de sensibilidade e capacitação para conversar com
crianças e adolescentes, isso em circunstâncias comuns, isto é, sem nenhum elemento
complicador, que faça com que a criança se feche, calando sobre o que se pretende que fale,
ou que forneça respostas confusas e contraditórias. Quando se trata da oitiva de crianças em
Juízo, quando as mesmas supostamente foram vítimas de abuso sexual, e o assunto é
exatamente este, a complexidade e dificuldade da tomada de depoimento é elevada ao seu
grau máximo. Justamente por isso é que o intermédio de profissionais capacitados para lidar
com a linguagem das crianças, treinados nos métodos que lhe trazem tranquilidade, para que
relatem os fatos, mostra-se imprescindível. Nesse sentido, escreveu MATILDE CARONE
SLAIBI CONTI
194
:
Psicanalistas defendem também que o juiz na instrução criminal deverá
recorrer da Psicanálise para analisar o motivo, as confissões, os silêncios,
compreender os testemunhos e reconstituir os fatos, afirmando os estudiosos
que a confissão devolve a tranqüilidade anímica da alma. Parece
desnecessário ressaltar que a Psicanálise é um dos instrumentos mais
importantes para o juiz penal na administração da Justiça.
JORGE R. VOLNOVICH
195
também entende que a intervenção de um
profissional especializado parece ser inevitável:
194
CONTI, Matilde Carone Slaibi, Da Pedofilia Aspectos Psicanalíticos, Jurídicos e Sociais do Perverso
Sexual, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2008, p. 53.
195
VOLNOVICH, Jorge R., Abuso Sexual de crianças pequenas: da suspeita à validação, in VOLNOVICH,
Jorge R. (org), Abuso Sexual na Infância, Rio de Janeiro: Ed. Lacerda, 2005, p. 46.
90
Trata-se, então, de solucionar um dos inconvenientes mais comuns nas
práticas jurídico-sociais e psicológicas com crianças que sofreram ASI e
cujo único registro está em suas mentes e em seus corações. O que
aparentemente gera maior confiabilidade, a saber, o nível de especialização
do profissional, que sua opinião é fundamental para a constituição da
prova, é, paradoxalmente, como mencionamos com os caos relatados, o
seu maior obstáculo. Isso acontece porque não existe saber a partir de uma
especialização sem implicação.
Tal entendimento é compartilhado por outros profissionais da área, como é o
caso da escritora DENISE MARIA PARISSINI DA SILVA
196
, que afirmou:
Nas Varas da Infância e da Juventude lida-se predominantemente com
questões ligadas à adoção, maus-tratos, negligência dos pais ou
responsáveis, abuso sexual e acolhimento da criança ou adolescentes em
instituições. Nesses casos, a presença e o acompanhamento direto do
psicólogo são fundamentais para o adequado estudo de caso e para a redação
de um laudo pericial devidamente fundamentado, que auxilie o juiz na
tomada de uma decisão mais favorável aos interesses da criança e/ou
adolescente.
É que, diante da ausência de conhecimentos técnicos dos operadores do Direito
para realizar entrevistas com crianças, este mister deve ser realizado por profissionais da
área. Isso reflete outra característica deste novo método, que consiste na acolhida, pelo
Direito, da interdisciplinaridade. Em análise superficial, não se trata de vantagem, que
apenas representa o reconhecimento dos operadores do Direito quanto à necessidade de
utilização de conhecimentos técnicos e científicos de outras áreas para a solução do conflito.
Tal qual ocorre quando se lança mão da perícia nas áreas médicas, contábeis, ou de
engenharia civil, florestal e agronomia, para citar apenas as mais incidentes, no Depoimento
Sem Dano também o reconhecimento da incapacidade do operador do Direito para a
verificação que se faz necessária, a fim de que, à luz das normas legais vigentes, alcance-se a
Justiça. A interdisciplinaridade, assim, é tão somente o reflexo do reconhecimento de que são
necessários conhecimentos outros que não os jurídicos para a resolução dos conflitos,
presentes no processo. Na prática, no entanto, tal reconhecimento revela profunda mudança
no pensar de muitos operadores do Direito, em especial dos magistrados.
196
SILVA, Denise Maria Perissini da, Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. A interface da
Psicologia com Direito nas questões de família e infância, 2ª edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2007,
p. 42.
91
De fato, a regra esculpida no artigo 182 do Código de Processo Penal, dispondo
que “o juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte”,
sendo corolário do princípio do livre convencimento motivado do juiz, não raras vezes tem
servido de fundamento para prolação de decisões completamente discrepantes da conclusão
apurada pelos profissionais dotados de conhecimentos especializados. Realmente, o princípio
do livre convencimento do juiz consigna que o magistrado é livre para tomar sua decisão,
apreciando com liberdade as provas produzidas, sem se prender, necessariamente, a uma ou a
outra. Não valoração da prova por meio legal, que tal valoração é função precípua do
julgador, que não se limita a meras constatações, e a cálculos matemáticos. Isso significa que
não valor predeterminado para a prova pericial, prova testemunhal, interrogatório, dentre
outros. E assim é justamente porque é impossível realizar tal valoração, de modo estático e
aritmético. Cada caso tem suas peculiaridades, não havendo como se valorar as provas de
modo genérico.
No entanto, esta premissa tem sido utilizada como argumento para respaldar
arbitrariedades ou decisões que muitas vezes até mesmo espelham a vaidade pessoal do
operador do Direito. Acreditam muitos desses que, como detém o ‘poder’ de julgar, é mais
apto a inclusive colher a prova, menosprezando os conhecimentos técnicos e especializados
dos profissionais de outras áreas. Como é cediço, no entanto, não hoje julgadores ou
profissionais de qualquer área que tenha conhecimento vasto e profundo em diversas matérias,
que dirá de ciências. Não. Os filósofos de outrora, ou grandes pensadores e doutrinadores, que
escreviam obras sobre o Direito como um todo, esquadrinhando todas as áreas, não mais
existem. Incabível aqui discutir os motivos que levaram ao desaparecimento, ou ao menos,
escassez destes profissionais ou estudiosos. Poder-se-ia atribuir à sistemática da civilização
moderna, que requer conhecimento profundo e aguçado acerca de um assunto específico os
especialistas, e, ainda, à rapidez com que os resultados são exigidos, o imediatismo, dentre
outros.
O fato inegável é que, hoje, a imensa maioria dos julgadores detém tão somente
o conhecimento acerca do Direito, e muitas vezes, setorizado, ou especializado em
determinada área. Assim, inviável se mostra a concretização de uma proposição relativa ao
treinamento e capacitação de todos os operadores do Direito que lidam com situações que
exigem conhecimento técnico diverso da área jurídica. A solução reside, então, na criação de
figuras chamadas auxiliares da justiça, em especial a dos peritos. São aqueles que, usando seu
92
conhecimento técnico ou científico específico de determinada área, produzem ou colhem as
provas e chegam a uma conclusão, tudo constante de laudo que será juntado no processo. Tais
auxiliares, no caso, peritos, são nomeados pelos magistrados, e muitos deles fazem parte
inclusive do quadro do Judiciário.
Volvendo à questão do efetivo reconhecimento da necessidade e eficácia de
intervenção de profissionais de outra área na produção probatória, muitos magistrados deixam
de realizar o chamado estudo social, por considerá-lo prescindível. Entende o juiz que a
colheita de depoimento das partes envolvidas em Juízo é mais que suficiente para a formação
de sua convicção. Deixa de considerar que, quando recebem a intimação para sua oitiva, as
partes têm a possibilidade de se prepararem física e emocionalmente, e de orientar quem será
ouvido, no caso, a criança, sobre o que deve falar e como se comportar. o estudo social
revela como as pessoas realmente vivem no local, que a assistente social se desloca para a
residência das partes, ouvindo cada uma e também eventuais parentes e vizinhos.
Certo é que tal postura vem perdendo força, demonstrando evolução e
maturidade do Judiciário em compreender que o auxílio de pessoas especializadas em
determinada matéria não retira do julgador o poder, e dever, de julgar. Reflexo deste novo
entendimento é a propositura do Depoimento Sem Dano justamente por um magistrado
197
,
cuja inspiração se origina nas idéias preconizadas por uma promotora de justiça
198
, ambos
operadores do Direito. Se antes havia resistência dos operadores do Direito, em especial dos
magistrados, em aceitar as opiniões e conclusões emitidas em laudos de avaliação psicológica
ou estudos sociais, hoje há implemento de projeto para que, no bojo do processo, as perguntas
às vítimas e testemunhas, dantes realizadas tão somente pelo juiz e partes, sejam realizadas
por meio de profissionais alheios à área do Direito. Abre-se mão do questionamento direto,
reconhecendo-se uma limitação por ausência de conhecimentos técnicos apropriados, em prol
da eficiência da colheita da prova e da minimização dos danos ao depoente. Destarte,
considerando inevitável a oitiva da vítima em Juízo, o Depoimento Sem Dano constitui-se em
ótima alternativa, não pelos menores danos causados à vítima, mas também pela maior
eficácia na extração de dados. É que os profissionais especializados, ao conduzirem a
197
JOSÉ ANTÔNIO DALTOÉ CEZAR, juiz de Direito integrante do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul,
titular do Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre desde 1999.
198
VELEDA DOBKE segundo consta em CEZAR, José Antônio Daltoé, Depoimento Sem Dano Uma
Alternativa para Inquirir Crianças e Adolescentes nos Processos Judiciais, Porto Alegre: Ed. Livraria do
Advogado, 2007, p. 61.
93
entrevista de modo direcionado, além de evitar sofrimento desnecessário, conseguem levar a
criança a relatar os fatos que são objetos do julgamento.
Outro ponto positivo do método é o fato da entrevista ser gravada. O acesso à
imagem e som do depoimento proporciona a todas as partes e julgadores que venham a atuar
nos autos informações muito mais precisas do que as postas no papel. Ora, cediço que
infinitas sensações e percepções que, embora inexprimíveis em palavras, revelam sentimentos
e pensamentos, constituindo-se em importantes elementos para a decisão a ser tomada no
processo judicial. Assim, do ponto de vista processual, a gravação contribui em muito para a
observância do princípio da busca pela verdade real. A gravação auxilia também na própria
dinâmica da tomada do depoimento, na medida em que o entrevistador não necessita fazer
apontamentos e anotações, o que prejudica a naturalidade da conversa e o tempo de fala do
entrevistado. Dentre as vantagens preconizadas pelos que defendem a prática da gravação,
KATHLEEN COULBORN FALLER cita as seguintes
199
:
Videotaping may decrease the number of interviews or the number of
interviewers. It provides complete documentation of what is said by the child
and the interviewer, which may ensure proper interview techniques. The
videotape could be used to persuade a disbelieving nonabusive parent of the
sexual victimization or the offender to confess or plead. For the victim, the
tape may decrease the probability of recantation, can refresh the child’s
recollection before going to court, or can substitute for the child’s
testimony. In addition, an expert witness may view the tape in order to form
an opinion about sexual abuse.
Chama atenção a vantagem relacionada à desnecessidade de submeter a criança a
diversas entrevistas, depoimentos, testemunhos. Em se tratando do método Depoimento Sem
Dano, uma vez que tem previsão de realização apenas na fase judicial, seria inócuo quanto a
essa suposta vantagem, que a criança teria percorrido todo o caminho preliminar até a
chegada ao Juízo. O projeto de lei em trâmite nas casas legislativas brasileiras, nesse aspecto,
inova ao prever a possibilidade de realização dessa prova de forma antecipada colhe-se o
depoimento da vítima ainda na fase investigativa, apenas uma vez, sendo esta utilizada tanto
para a instrumentalização do inquérito policial quanto para a instrução do processo judicial.
Certo é que a oitiva da vítima apenas uma única vez também tem sido alvo de críticas pelos
profissionais da psicologia, sob o argumento de que nem sempre em apenas uma sessão a
199
FALLER, Kathleen Coulborn, Documentation of the Interview, in FALLER, Kathleen Coulborn
Inteviewing Children About Sexual Abuse – Controversies and Best Practice, New York: Oxford University
Press, 2007, p. 61.
94
criança revele todo o fato que interessa ao processo. Razão assiste aos críticos, que a
ciência da psicologia demonstra que, muitas vezes, qualquer pessoa, principalmente a ferida, e
mais ainda, quando se trata de criança, necessita de tempo e criação de laços de vínculo e
confiança para falar daquilo que prefere calar. O assunto será melhor analisado no item
3.1.3.3.2. “O Calar da vítima como forma de sua Defesa”, que trata especificamente do tema.
Fator a ser arrolado como positivo, relacionado ao Depoimento Sem Dano
concerne à questão do espaço da tomada do depoimento. Embora pareça, numa análise
superficial, simples e sem relevância, o ambiente no qual se insere a criança ou adolescente a
ser ouvida num processo judicial influi em muito no seu estado emocional e psicológico,
acarretando consequências tanto negativas quando positivas à própria eficácia do
depoimento. Destarte, cediço que o ambiente relacionado ao Poder Judiciário tribunais e
fóruns em geral, e suas salas de audiência, vinculam-se a características de sobriedade,
seriedade e formalidade. Se, para os leigos, o significado de “estar perante o juiz” remete à
ansiedade, nervosismo e stress, quanto mais para crianças e adolescentes. De suma
importância, assim, a adequação do espaço físico para receber o depoente, a fim de propiciar
ambiente que transmita, na medida do possível, segurança e conforto para enfrentar a
entrevista, como descrevem JOSÉ CANTÓN DUARTE e MARIA DEL ROSÁRIO CORTÈS
ARBOLEDA
200
:
El ambiente de la entrevista debe garantizar que el niño se sienta
razonablemente a gusto, sobre todo si se trata de um preescolar (por su
mayor probabilidade de sentirse intimidado, ansioso y desorientado em este
ambiente formal). Un ambiente centrado em el niño que reduzca al mínimo
lãs posibilidades de distracción y que potencie La familiaridade puede
facilitar um procesamiento óptimo de La información. El ambiente debe ser
privado, informal y libre de perturbaciones y de instrumentos accesorios
que puedan distraer al niño; um lugar em el que se sienta seguro y que
garantice la confidencialidad.
Por fim, a maior vantagem relacionada ao método Depoimento Sem Dano,
constituindo-se na essência do mesmo, é a realização da tomada do depoimento por
profissional capacitado e treinado para manter essa tão difícil, delicada e complexa conversa
com a criança vítima de abuso sexual. Configura, também, um dos grandes empecilhos
levantados pelos profissionais da área da psicologia e assistência social, como veremos no
200
DUARTE, José Cantón e ARBOLEDA, Maria del Rosário Cortès, Guia para la Evaluacíon del Abuso
Sexual Infantil, 2ª edição, Madrid: Ed. Pirâmide, 2008, p. 155.
95
item seguinte
201
, ao tratar das objeções ao novo método, asseverando haver deturpação das
funções dessas profissões. No entanto, como dito alhures, partindo da premissa de que é
necessária a oitiva da vítima no processo penal que visa a responsabilização do ofensor, mais
adequado que a entrevista seja realizada por profissional capacitado a tanto, sem descuidar de
todas as medidas paralelas que devem ser tomadas – e, em sua grande maioria, não são -, para
a proteção da criança, englobando o processo terapêutico envolvendo não a criança ou
adolescente, mas sua família e inclusive o agressor.
Demonstrada à saciedade a complexidade, delicadeza e dificuldade que
caracterizam a extração de sentimentos, pensamentos e dados da criança/adolescente vítima
de abuso sexual, uma vez reputando-se inevitável a entrevista, notório que a mesma deva ser
realizada por quem detém conhecimento e experiência para tanto. A finalidade dessa
intervenção é dupla: eficácia na máxima extração de dados precisos acerca do fato objeto do
processo e julgamento e minimização e até nulidade dos danos advindos da entrevista, que
teriam campo muito mais fecundo se o depoimento fosse conduzido por pessoa despreparada.
A intervenção de um profissional que saiba conduzir a entrevista com a criança ou
adolescente, a fim de que a mesma não se feche ou produza respostas que não espelham a
verdade, em razão de perguntas que, intencionalmente ou não, manipulem ou sugestionem a
fala da vítima, se faz imprescindível também por outra razão: a leitura e a interpretação de
outra linguagem, que não a verbal, e que igualmente revela muito do que se passa no interior
de uma pessoa. Esta habilidade se faz especialmente relevante quando se trata de crianças e
adolescentes, como esclarece ERNA OLAFSON
202
:
Studies now demonstrate that infants and preschoolers have extensive
implicit memories that are behavioral, perceptual, and emotional long
before they consciously remember or can put words to what they recall
(Ornstein & Haden, 2002; Siegel, 1999). Much of this research has no
forensic application. However, young children recall implicitly and enact
both traumatic and nontraumatic experiences before they can provide
complete verbal narratives about them. For this reason, interviewers must
be alert to a child’s nonverbal behaviors and emotional responses that
reflect implicit memories. These behaviors and responses may offer
information about aspects of a child’s history that a child is unable or
unwilling to disclose verbally.
201
Vide subitem 3.1.3.3.1. Desvirtuamento da Função do Psicólogo.
202
OLAFSON, Erna. Children’s Memory and Suggestibility, in FALLER, Kathleen Coulborn, Inteviewing
Children About Sexual Abuse – Controversies and Best Practice, New York: Oxford University Press, 2007,
p. 12.
96
Muitas vezes a criança, ao não conseguir se expressar verbalmente, é capaz de
fazê-lo por meio da linguagem que lhe é familiar, como são os desenhos e brincadeiras, como
relata DENISE MARIA PERISSINI DA SILVA, asseverando que “através de desenhos,
jogos, brincadeiras com bonecos que reproduzem a cena traumática e demonstrem a
sexualidade, é possível fazer com que a criança manifeste os sentimentos que está
vivenciando”
203
. Para tanto, apenas o profissional com aptidão para compreender essa
linguagem característica, filtrando realidade e fantasia, é hábil a extrair os dados necessários
para a constituição da prova exigida para a condenação do perpetrador do abuso sexual
infantil. Nesse contexto, reais, abrangentes e de grande valia são os benefícios do projeto.
Não obstante, embora configure um grande passo em relação à regra atualmente
em vigor, e ainda em prática na maioria dos fóruns espalhados pelo país, considera-se hoje a
medida limitada, diante das necessidades que deixa de atender. Ademais, apontam-se
desvantagens do próprio método, argumentando sua ineficácia. Vejamos as principais
objeções levantadas em face do projeto.
3.3. OBJEÇÕES LEVANTADAS
3.3.1. Na Ciência do Direito
Não respaldo, no âmbito do Direito, para objeções ao método do Depoimento
Sem Dano. Isso porque, como vimos, o projeto atende aos princípios do contraditório e da
ampla defesa, bem como do devido processo legal. O método contempla, ainda, as normas
legais atinentes à proteção dos direitos das crianças, dispostos no Estatuto da Criança e do
Adolescente
204
e na Constituição Federal
205
que vedam todo e qualquer tipo de violência ou
203
SILVA, Denise Maria Perissini da, Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. A interface da
Psicologia com Direito nas questões de família e infância, 2ª edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2007,
p.143.
204
Dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seus artigos 17 e 18:
“Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do
adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças,
dos espaços e objetos pessoais.
Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer
tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.
205
Consta do artigo 227 da Constituição Federal que É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além
de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
97
constrangimento impingido a essas pessoas em desenvolvimento. não muito, como visto
no capítulo 2 deste estudo, a legislação deixava a desejar quando se tratava de punição dos
criminosos perpetradores de crimes contra crianças e adolescentes. Quanto à proteção dos
direitos das crianças e adolescentesintegridade física, liberdade sexual e dignidade, então, a
normatização simplesmente era inexistente.
Tal panorama foi modificado apenas com o advento da Constituição Federal, em
1988, seguido da edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990 menos de 20
anos. Ainda assim, a realidade atual no âmbito da legislação brasileira, num rápido e
superficial olhar, implicaria a conclusão de que os operadores do Direito estariam vinculados
e limitados pelas normas insculpidas no Código de Processo Penal.
A rigor, em visão legalista e simplista, tão-somente a alteração pelos
parlamentares, consubstanciada na edição de nova lei, ou de reforma do Código de Processo
Penal, seria capaz de reverter quadro tão cruel e com consequências perniciosas ao extremo
advindo da aplicação das regras do citado código à oitiva de menores em Juízo. Nesse
sentido, a atuação de inúmeros magistrados ao adotar o método Depoimento Sem Dano -,
encampados por diversos Tribunais no País, estaria fulminada pela nulidade, maculando a
prova e inutilizando o processo. Não sobreviveriam a um recurso dirigido à Corte Superior.
Contudo, a interpretação sistêmica, em conjunto com o disciplinado no Estatuto da Criança e
do Adolescente e no disposto na Constituição Federal, faz cair por terra os argumentos dos
legalistas, respaldando a atividade pioneira, pró-ativa e justa dos juristas que se antecipam à
atividade legislativa, muitas vezes impulsionada pelas boas e inovadoras práticas no
Judiciário. ANTONIO CEZAR LIMA DA FONSECA
206
discorre acerca da proteção
conferida pela Constituição Federal às vítimas de abuso sexual infantil:
A Carta Federal de 1988 dispôs sobre a matéria, determinando que a lei puna
severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do
adolescente (art. 227, par. 4º). O abuso e a exploração sexual ferem um leque
de direitos fundamentais da criança e do adolescente, tais como: a dignidade,
a imagem, o seu desenvolvimento físico e psíquico (mental, moral e
espiritual), bem como seu direito de liberdade. Tais ilícitos violam o direito
ao respeito (art. 17 do ECA), isto é, a integridade física, psíquica e moral da
criança e do adolescente, viola-se seus valores, idéias e crenças.
206
FONSECA, Antonio Cezar Lima da, Crimes contra a Criança e o Adolescente, Porto Alegre: Ed. Livraria
do Advogado, 2001, p. 143.
98
As peculiaridades que envolvem as crianças e adolescentes foram contempladas
no Estatuto da Criança e do Adolescente, mitigando a aplicação de princípios de direito penal
afetos à seara comum, isto é, que não envolvem tais pessoas com condições especiais, como
explana JORGE R. VOLNOVICH
207
:
Com efeito, no campo do ECA, a instituição in dubio pro reo fica invertida,
pois existe um fator de risco que compromete a integridade dos direitos da
criança, ou seja, a possibilidadeainda que mínima de manter um menino
ou uma menina em contato com um pai abusador.
De fato, a mudança operada com a entrada em vigor das normas do Estatuto da
Criança e do Adolescente foi de grande monta, considerando a criança e adolescente sujeitos
de direitos, e elevando tais direitos à tutela constitucional. Sobre o assunto, esclarecedores são
os comentários de PATRÍCIA CALMON RANGEL
208
:
Assim, os direitos da criança, nesse novo enfoque protetivo, foram erigidos
na norma constitucional no Brasil. A partir daí, os setores sociais mais
comprometidos com a visão histórica da proteção integral à infância e
juventude participaram da elaboração do Estatuto da Criança do
Adolescente, Lei Federal 8.069/90, que nasceu trazendo esperanças de uma
ação realmente transformadora, pois que regulamenta não direitos, em
tese, mas também as relações jurídicas que podem ser estabelecidas por esta
categoria social frente à família, à sociedade e ao Estado, para exercício
desses direitos.
Ainda sobre o assunto, a autora
209
discorre sobre a adoção da chamada doutrina
da Proteção Integral, hoje bem conhecida no mundo jurídico, mas ainda, na sua maior parte,
existente apenas no papel:
A doutrina da “Proteção Integral”, suporte teórico dessa legislação, tem
como paradigma principal a colocação da criança como sujeito de direitos,
com prioridade, diante da evidente hipossuficiência e mesmo impotência
dessa população. (...) O Estatuto, incorporando em todos os seus dispositivos
a doutrina da “Proteção Integral”, tornou toda e qualquer criança sujeito de
direitos, causando uma verdadeira revolução positiva na história dos direitos
da infância no Brasil.
207
VOLNOVICH, Jorge R., Abuso Sexual de Crianças Pequenas: da Suspeita à Validação, in
VOLNOVICH, Jorge R. (org), Abuso Sexual na Infância, Rio de Janeiro: Ed. Lacerda, 2005, p. 45.
208
RANGEL, Patrícia Calmon. Abuso Sexual Intrafamiliar Recorrente, tiragem, Curitiba: Juruá, 2008, p.
37/38.
209
RANGEL, Patrícia Calmon. Abuso Sexual Intrafamiliar Recorrente, tiragem, Curitiba: Juruá, 2008, p.
38.
99
Certo é que a necessidade de se recorrer à interpretação sistêmica, e aos
princípios da harmonização das normas, sem que a observância de uma implique a extinção
da outra, mas realizando-se a flexibilização das normas para a prevalência de todas, revela
que ainda muito a evoluir no aspecto legislativo acerca do tema. Contudo, a imperfeição
legislativa não pode ser justificativa para a perpetuação de métodos e técnicas arcaicas e
retrógradas, que não atendem à finalidade de produção probatória na busca da verdade real,
com preservação dos direitos das crianças e adolescentes, tão bem tutelados pela Lei Maior do
Estado Brasileiro de Direito. Especificamente acerca da tomada de depoimento de crianças e
adolescentes em Juízo, aplicando-se as normas do Código de Processo Penal, escreveu JOSÉ
ANTONIO DALTOÉ CEZAR
210
:
a normativa processual vigente, criminal ou civil, trata de forma geral a
produção da prova realizada em Juízo, não criando, em momento algum,
modelos diversos para inquirir crianças, adolescentes e adultos, circunstância
esta que desconsidera por completo o comando presente nos artigos 227 da
Constituição Federal e 4º, e do Estatuto da Criança e do Adolescente,
os quais determinam a efetivação dos direitos referentes, entre outros, à
dignidade e ao respeito, que restam desatendidos quando a condição peculiar
da pessoa em desenvolvimento não é observada adequadamente.
Não por acaso as crianças e adolescentes são alvo de proteção especial. Além de
sua característica peculiar, ainda em desenvolvimento e, por isso, incapazes de
autossuficiência e de independência que as capacitem a defender-se, o inexorável fato
sintetizado no jargão de que “a criança de hoje é o adulto do amanhã” norteia as regras de
tutela dos interesses e direitos da criança. Sendo a sociedade formada por pessoas, as gerações
que hoje são cuidadas pelos adultos, logo se tornarão os adultos que cuidarão dos idosos, até
há pouco adultos componentes da sociedade.
Visa o Depoimento Sem Dano minimizar os traumas e danos na medida em que
procura diminuir a mencionada violência institucional ou vitimização secundária,
perpetrada pelas instituições públicas, mesmo que o fim colimado seja a responsabilização do
agressor. Assim, com a adoção desse método, contemplar-se-á o comando constitucional de
proteção à criança e adolescente, como narrado por PATRÍCIA CALMON RANGEL
211
:
210
CEZAR, José Antônio Cezar, Depoimento Sem Dano Uma Alternativa para Inquirir Crianças e
Adolescentes nos Processos Judiciais, Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2007, p. 65.
211
RANGEL, Patrícia Calmon. Abuso Sexual Intrafamiliar Recorrente, tiragem, Curitiba: Juruá, 2008, p.
39.
100
Para essa pessoa em desenvolvimento devem ser garantidos, segundo a lei,
todos os direitos fundamentais. O objetivo é assegurar a toda essa categoria
social educação, saúde, convivência familiar saudável, lazer, enfim, todas as
políticas sociais básicas e, também, serviços protetivos especiais, quando a
criança ou adolescente estiver vivendo alguma situação de risco social, como
no caso da vitimização sexual.
Poder-se-ia levantar como objeção decisões proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal contra a denominada videoconferência. Esta, embora tenha pontos comuns com o
Depoimento Sem Dano, dele difere por ser mais limitada. Consiste a videoconferência em
método de oitiva de pessoas em Juízo, na qual prescinde-se que a pessoa a ser ouvida esteja
presente na sala de audiência. Tal qual o Depoimento Sem Dano, faz uso da tecnologia hoje
disponível, por meio da transmissão automática e em tempo real das imagens e sons de uma
sala (onde se encontra o depoente) para outra (a de audiência, na qual permanecem o
magistrado, o promotor de justiça, o advogado e demais servidores) e vice-versa. Assim,
quando se trata de réu preso, este pode ser ouvido no estabelecimento prisional em que se
encontra, a fim de se evitar sua locomoção até o fórum, o que gera custo operacional e,
principalmente, circunstância de alta periculosidade, já que propicia tentativa de fuga.
Também tem a finalidade de preservar a vítima ou testemunha, garantindo a elas tranquilidade
para prestar seu depoimento, sem a presença física do réu no mesmo recinto, quando denotado
que isto pode perturbar-lhe. Destarte, em tais situações, antes de se proceder a simples retirada
do réu da sala de audiências, alijando-o do conhecimento instantâneo do teor do depoimento,
pode-se, por meio da videoconferência, permitir que o réu assista à oitiva da testemunha de
outra sala.
Como se pode perceber, o Depoimento Sem Dano, além do uso dos recursos
tecnológicos para a solução de impasses como os acima colocados, contém elemento
fundamental que o diferencia: o interlocutor. Na videoconferência apenas o elemento da
distância espacial, que depoente e demais partes do processo permanecem em locais
diferentes, interligados por meio dos recursos tecnológicos. no Depoimento Sem Dano, o
interlocutor formula perguntas para o depoente, e conduz o depoimento, de forma a garantir
sua serenidade e tranquilidade no falar. O magistrado, promotor de justiça e advogado
formulam questões a serem repassadas pelo interlocutor ao depoente, mas aquele fará as
perguntas do modo que reputar pertinente e no momento que considerar oportuno. Tal
filtragem se porque o interlocutor detém conhecimentos e métodos técnicos apurados para
tanto, das áreas da psicologia e da assistência social.
101
Outra diferença entre os métodos consiste na sua finalidade. A videoconferência,
quando do interrogatório do réu sem sua locomoção, tem por objetivo minimizar os riscos
com segurança e os custos operacionais de locomoção do réu preso. Quando da oitiva de
testemunhas que se sentem constrangidas com a presença do réu, visa não dar maior
tranquilidade a ela isto poderia ser feito com a mera retirada do réu da sala de audiência,
permanecendo seu defensor técnico, advogado, que depois ele poderia ter acesso ao inteiro
teor do depoimento mas também dar plena vigência ao princípio do contraditório. O foco,
assim, é a pessoa do réu. O Depoimento Sem Dano, por sua vez, tem por fim colimado a
eficiência na extração da verdade real do depoente, vítima de abuso sexual infantil, com
minimização dos danos secundários a ela, evitando-se a violência institucional.
Por todo o acima exposto é que as decisões do Supremo Tribunal Federal em
relação à videoconferência, em que se anularam os processos nos quais o interrogatório foi
realizado por tal método
212
, não se aplicam ao Depoimento Sem Dano. Ademais, o Código de
Processo Penal sofreu, em 09 de junho de 2008, com a publicação da lei 11.690, com vigência
desde 09 de agosto daquele ano, alteração no seu artigo 217, que atualmente dispõe, in verbis:
Art. 217. Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar
humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido,
de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por
videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a
retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor.
A videoconferência está, assim, normatizada, ao menos para os casos de
constrangimento à testemunha ou vítima. Destarte, sob o prisma jurídico não restrições
quanto à videoconferência e, o que interessa ao estudo, ao Depoimento Sem Dano.
3.3.2. Na Gestão Judiciária
212
São três as decisões acerca da videoconferência no Supremo Tribunal Federal: Habeas Corpus 88.914-0 São
Paulo, cujo relator foi o Ministro Cezar Peluso, em que se anulou o interrogatório feito por videoconferência sob
o argumento de que são consectários dessa forma de tomada de depoimento a ausência de humanidade, a frieza,
a distância entre o acusado e o juiz; Habeas Corpus 91859- São Paulo, cujo relator foi o Min. Carlos Britto,
julgado em 04/11/2008, em que se considerou inconstitucional a lei estadual paulista n. 11819/05, por entender
que tal diploma legal ofende o inciso I do art. 22 da Constituição Federal, eis que disciplina matéria
eminentemente processual; e Habeas Corpus 90900 extensão São Paulo, cujo relator foi Min. Menezes
Direito, julgado em 19/12/2008, com base nos mesmos fundamentos do HC 91859/SP.
102
Em termos de Judiciário, como gestão, poder-se-ia agitar, como elemento
restritivo, o custo operacional e logístico da implantação do Depoimento Sem Dano. É que,
para a adoção deste método, necessário se faz a aquisição de instrumentos tecnológicos,
consistentes em câmeras de vídeo, monitores, gravadores de DVD, pontos eletrônicos para
comunicação. Também é preciso a disponibilização de uma sala apropriada para a instalação
de todos esses equipamentos, e interligação dos mesmos entre esta sala e a sala de audiência,
na qual permanecerão o magistrado, promotor de justiça, advogado e réu. Por fim,
imprescindível que a entrevista se faça por meio de profissional habilitado. Conquanto seja
comando constitucional a priorização de gastos com a infância e juventude, é cediço a
carência de recursos financeiros para as mais diversas finalidades no âmbito do poder público
como um todo, não sendo diferente no Poder Judiciário. Destarte, os recursos são poucos
diante de tantas prioridades de gastos, como construção de novos fóruns, reforma de outros,
manutenção de todos em termos estruturais e de equipamentos, gastos com materiais de
consumo, com serviços, com pagamento de folha de servidores e magistrados, dentre tantos
outros. Por que, então, efetuar gastos com a instalação de salas apropriadas para a
implementação do Depoimento Sem Dano?
A resposta consiste na definição do abuso sexual infantil e nas suas sequelas.
Como dito no primeiro capítulo, os traumas do abuso sexual costumam prolongar-se até a
vida adulta da vítima que, não raras vezes, torna-se algoz de nova vítima, perpetuando o
abuso, em ciclo perverso que só se estancará quando este mal for extirpado. O crime, repise-
se, é de alto repúdio, considerado abjeto, e de intensa crueldade, estando a sua repressão
encartada como imperativo constitucional
213
. Além disso, infelizmente não se pode dizer que
é espécie de crime que representa números módicos nas estatísticas. Como visto no capítulo 1
deste trabalho, impressionante são os dados coletados acerca do abuso sexual infantil,
atingindo muito mais pessoas do que se supõe. Tal número se eleva quando se trata da região
norte do país, por razões ainda desconhecidas
214
.
O Tribunal de Justiça de Rondônia implantou o método Depoimento Sem
Dano na Vara da capital com competência para processar e julgar Crimes contra Crianças e
Adolescentes que cumula competência para Atendimento à Mulher Vítima de Violência
Doméstica. O orçamento englobando adequação estrutural da sala, aquisição de equipamentos
213
Artigo 227, par. 4º da Constituição Federal.
214
Vide capítulo 1, item 1.6, deste estudo.
103
eletrônicos e a instalação dos mesmos somou a quantia de R$ 24.667,00
215
. Assim, não se
pode deixar de considerar que o custo operacional da implementação do projeto em todas as
comarcas, a fim de que, seja instalada ao menos uma sala para atender cada comarca constitui
entrave à adoção do projeto.
Para minimizar os custos e oferecer alternativa paliativa até que o ideal seja
possível instalação de uma sala para Depoimento Sem Dano, englobando, inclusive a
videoconferência em cada Comarca uma proposta seria a instalação de tais salas em
algumas comarcas, a fim de atender cada região. Incumbe a cada Tribunal de Justiça, em seu
respectivo Estado, implementar da melhor forma possível, com os recursos então disponíveis,
atendendo as peculiaridades locais, os novos procedimentos previstos em lei.
3.3.3. Na Ciência da Psicologia
O último ponto de maior relevância a ser destacado, apontado como negativo por
muitos, é o fato do projeto colocar como interlocutores da tomada do depoimento,
profissionais da área da psicologia. Insurgem-se profissionais dessas ciências, embora não
haja consenso sobre tal entendimento, argumentando que haveria um desvirtuamento de
função, que apregoam que ao psicólogo não é dado intervir como entrevistador ou
intérprete. Além dessa questão, têm sido levantados outros pontos, todos conexos com a
ciência da psicologia ou da assistência social. Analisaremos cada um deles individualmente,
diante de sua importância.
3.3.3.1. Desvirtuamento da função do psicólogo
As mais fortes e contundes ressalvas ao método de oitiva de crianças e
adolescentes em Juízo Depoimento Sem Dano provêm da classe dos psicólogos, afirmando
que, ao serem colocados como interlocutores ou intermediadores de entrevista gravada e
assistida em tempo real, dentro de um processo judicial, têm sua função deturpada. A esse
respeito, escreveu LEILA MARIA TORRACA BRITO
216
:
215
Informações obtidas na Secretaria Administrativa do TJRO, por meio do ofício n. 177/SA/2010.
216
BRITO, Leila Maria Torraca de. Diga-me agora...O Depoimento Sem Dano em Análise, Psic. Clin., Rio de
Janeiro, vol. 20, n. 2, p. 113-125, 2008, p. 6.
104
Cabe destacar inicialmente que a moção encaminhada pelo Conselho Federal
de Psicologia ao Senado Federal em 2007, citada por Daltoé Cezar (2008),
funda-se na compreensão de que tal tarefa “não diz respeito à prática
psicológica”. entendimento do órgão de representação dos psicólogos de
que esta técnica distancia-se do trabalho a ser realizado por um profissional
de psicologia, acarretando confusão de papéis ou indiferenciação de
atribuições, quando se solicita ao psicólogo que realize audiências e colha
testemunhos. Sem desconsiderar a difícil situação da criança que passa por
reiterados exames em processos dessa ordem, nota-se que, na proposta em
análise, na inquirição a ser feita por psicólogo não objetivo de avaliação
psicológica, bem como de atendimento ou encaminhamento para outros
profissionais, estando presente,apenas, o intuito de obtenção de provas
jurídicas contra o acusado.
Realmente, ao determinar que a entrevista seja conduzida por um profissional da
psicologia ou da assistência social, sendo esta entrevista realizada no âmbito do processo
judicial, para produção de prova consistente na oitiva da vítima do crime imputado ao réu,
requer-se do psicólogo ou do assistente social atividade diversa da terapia clínica ou da
avaliação das condições sociais da pessoa, inserida em seu contexto de vida. Para analisarmos
o questionamento acerca da atribuição, aos psicólogos, de função que não constitui sua
atribuição, mister analisar a relação entre Direito e Psicologia, que, como se verá, encontra-se
cada vez mais estreita e interdependente.
A corroborar a necessidade da intervenção do psicólogo no enfrentamento do
abuso sexual infantil, mesmo quando se trata de atendimento clínico, em terapias realizadas
em consultórios, de forma particular e privada, considera-se dever do profissional a denúncia
do abuso sexual infantil, contrapondo a obrigação de sigilo imposto pela ética. Em verdade,
reputa-se que o dever de denunciar o abuso, a fim de que o mesmo cesse, com
responsabilização do agressor, sendo que esta só pode ser realizada pelo sistema Judiciário, no
Estado Democrático de Direito, transcende a obrigação de manter o sigilo acerca do que é
revelado no divã.
Considera-se, destarte, também dever ético, a denúncia do abuso, dever este que
se sobrepõe ao dever ético do sigilo, como refere IRENE PIRES ANTÔNIO
217
:
A postura dos profissionais que receiam procurar ou atender aos pedidos da
Justiça, seja para denunciar ou esclarecer fatos, pode levar à impunidade
217
ANTÔNIO, Irene Pires. Posicionamento Ético dos Psicólogos no Atendimento dos Casos de Crianças e
Adolescentes Vitimizados, in FERRARI, Dalka C. A. e VECINA, Tereza C. C., O Fim do Silêncio na
Violência Familiar – teoria e prática, 3ª edição, São Paulo: Ed. Ágora, 2002, p. 213.
105
daqueles que agridem e deixar as vítimas em nova ou permanente situação
de risco. Esses profissionais têm muitas vezes, se baseado na questão ética
para manter o sigilo dos atendimentos, porém o resultado dessa postura pode
levar a um papel de omissão, em que a ética, invocada erroneamente,
provoca o inverso, ou seja, pode levar a uma postura perversa e antiética.
Assim, a alegação do sigilo, amparado pelo Código de Ética, poderá levar a
um novo quadro de violência familiar, perpetuando-a de maneira cruel.
A nova postura adotada por muitos psicólogos, ao decidirem por denunciar o
abuso revelado durante processo terapêutico, teve reflexos significativos para a interrupção
não do abuso sexual, mas de toda forma de violência intrafamiliar em geral, segundo
analisa MARIA AMÉLIA DE SOUZA E SILVA
218
:
A quebra do pacto do silêncio por profissionais que lidam com as crianças
foi um dos grandes passos de nossa legislação no sentido do efetivo combate
à violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes. A ética profissional
acontece uma vez que o profissional se compromete enquanto defensor da
integridade física e mental da criança e do adolescente; excluir a
responsabilidade da denúncia, manter o pacto do silêncio, é permitir que a
violência se perpetue, além de ser uma forma de manter a criança e o
adolescente como “cidadãos de papel”, como nos ensina o jornalista Gilberto
Dimenstin (1996).
Destarte, ao se voltar para a experiência realizada em outros países, verifica-se
que, na grande maior parte deles, atribui-se aos psicólogos a tarefa não só de realizar a tomada
de depoimento de crianças, mas também de orientá-las e de dar-lhes suporte emocional a fim
de que sua oitiva não se torne outro fator traumático ou sequer danoso.
Em recentíssima pesquisa realizada pelo Childhood Brasil, foi realizado
mapeamento das formas de escuta de crianças e adolescentes em todo o mundo. O trabalho
impressiona pela abrangência dos dados coletados e detalhamento das informações. Foram
catalogados 28 países nos quais se identificaram práticas diferenciadas de oitiva de crianças e
adolescentes, voltadas ao processo judicial
219
. Em 15 deles, dentre os profissionais que podem
ser responsáveis pela tomada do depoimento, encontra-se o psicólogo, exemplificativamente,
Alemanha, Argentina, Chile, Canadá e França
220
.
218
SILVA, MARIA AMÉLIA DE SOUSA E. Violência contra crianças – Quebrando o Pacto do Silêncio. in
FERRARI, Dalka C. A. e VECINA, Tereza C. C., O Fim do Silêncio na Violência Familiar – teoria e prática,
3ª edição, São Paulo: Ed. Ágora, 2002, p. 78/79.
219
SANTOS, Benedito Rodrigues e GONÇALVES, Itamar Batista (coord.). Depoimento Sem Medo (?)
Culturas e Práticas Não Revitimizantes Uma Cartografia das Experiências de Tomada de Depoimento
Especial de Crianças e Adolescentes, 2ª ed., São Paulo: Childhood Brasil, 2009. p. 38.
106
Certamente, não é imperioso que o Brasil copie o modelo adotado neste ou
naquele país, devendo buscar seu próprio método, diante das peculiaridades dos traços
culturais, do aspecto espacial, que o Brasil é um país continental, levando em conta, ainda,
as características do ordenamento jurídico nacional. No entanto, não se pode deixar de
ponderar o fato de uma vasta gama de países atribuir tão difícil e delicado mister a psicólogos,
fazendo com que se reflita acerca dos motivos determinantes a tanto.
A corrente que reputa não ser atribuição do psicólogo o auxílio da criança na
prestação de seu depoimento para fins judiciais, assevera ser de outra pessoa que não dessa
classe profissional esta função. Não aponta, contudo, quem seria o profissional habilitado a
tanto. Também não afirma que esse mister deva manter-se na figura do magistrado.
Argumenta, com razão, que os atores do Judiciário devem se preparar para lidar
com crianças e adolescentes, tanto técnica quanto emocionalmente. Mas em momento algum
aduzem que ao magistrado incumbe o dever de inquirir crianças e adolescentes vítimas ou
testemunhas de abuso sexual, ou qualquer outro tipo de violência sofrida. E deixam de fazê-
lo, ao que parece, diante do senso de que o operador do Direito não é preparado para esta tão
especial tarefa.
Aliás, quanto à preparação que os operadores devam receber, questiona-se: quais
seriam as matérias a serem aprendidas? Quem seriam os profissionais aptos a realizar tal
preparação? Não se vislumbra uma resposta para essas perguntas que seja desatrelada da
Psicologia. De igual forma, se tal linha de pensamento considera que deva ser criada nova
categoria profissional para a realização da função aqui em comento, qual formação exigir-se-
ia dos candidatos a “tomadores de depoimento infantil”? Certamente a grade curricular seria
repleta de matérias afetas à Psicologia.
Por tudo isso, razoável concluir-se que o profissional da Psicologia é o mais
indicado para realizar a tomada de depoimento de crianças e adolescentes em processos
judiciais, o que será visto mais pormenorizadamente no capítulo 4 deste estudo.
3.3.3.2. O Calar da vítima como forma de sua Defesa
220
SANTOS, Benedito Rodrigues e GONÇALVES, Itamar Batista (coord.). Depoimento Sem Medo (?)
Culturas e Práticas Não Revitimizantes Uma Cartografia das Experiências de Tomada de Depoimento
Especial de Crianças e Adolescentes, 2ª ed., São Paulo: Childhood Brasil, 2009. p. 46.
107
Um dos argumentos levantados contra a prática não de Depoimento Sem
Dano, que é forma de oitiva da criança ou adolescente em Juízo, mas da própria oitiva em si, é
o fato de, muitas vezes, a vítima preferir calar como forma de defesa psíquica. Psicólogos e
estudiosos do tema afirmam que a síndrome do segredo constitui a maneira que a vítima
encontra para proteger sua psique e, assim, suportar a violência que lhe é impingida. Além da
negação como forma de defesa emocional, outros motivos levam as vítimas a negarem ou
calarem acerca do abuso, ligadas mais a medos e temores externos e, na maioria das vezes,
incutidos pelo adulto agressor
221
:
Fear of family disruption is often an overarching fear that causes many
children to remain silent and continue to be abused. Fear of rejection by
both the offender and the non-abusing parent can make the child feel there
is no way out. Fear of abandonment causes children to go to great lengths to
deny their abuse to others and even to themselves.
Em verdade, como visto no primeiro capítulo, a síndrome do segredo constitui-se
mais numa forma que o agressor utiliza para perpetuar o abuso, fazendo com que a vítima se
cale e deixe de revelar as agressões, impedindo que medidas de proteção a ela e de
responsabilização ao abusador sejam efetivadas. HERVÉ HAMON
222
elucida com especial
clareza o modo como funciona a síndrome do segredo:
No sistema das famílias incestuosas, a lei moral e social é transgredida, mas
não anulada, e é substituída por uma lei familiar que se reduz e se resume ao
respeito pelo segredo. Se voltarmos à questão do segredo partilhado e da
contrapartida do poder que constitui a ameaça da revelação do segredo,
poderemos compreender melhor os mecanismos reiterados de controle, até
mesmo de terror, do pai sobre a criança vítima: “Se você falar, nós dois
vamos para a cadeia”; “Se você falar, ninguém acreditará em você”; “É um
segredo entre nós”; “Se você falar, sua mãe morrerá”; “Se você falar, eu
mato você” etc.
Por esse prisma, deixar de ouvir a criança ou adolescente vítima de abuso sexual
em Juízo pode, ao invés de protegê-los, acarretar-lhes maiores danos, inclusive psíquicos,
como esclarece CARLA CARVALHO LEITE
223
:
221
HEITRITTER, Lynn e VOUGHT, Jeanette, Helping Victims of Sexual Abuse, Minneapolis, Minnesota: Ed.
Bethany House, 2006, p. 28.
222
HAMON, Hervé, Abordagem Sistêmica do Tratamento Sociojudiciário da Criança Vítima de Abusos
Sexuais Intrafamiliares, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São
Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 178/179
223
LEITE, Carla Carvalho. A Função do Sistema de Garantia de Direitos e Sistema de Justiça na Prevenção
e Repressão do Abuso Sexual Infantil, in WILLIAMS, Lúcia Cavalcanti de Albuquerque e ARAÚJO, Eliane
Aparecida Campanha, Prevenção do Abuso Sexual Infantil Um Enfoque Interdisciplinar, Curitiba:Juruá,
108
Não se protege a criança deixando de escutá-la, ao contrário, reforça-se a lei
do segredo. Os adultosm medo de ouvir a revelação do abuso e a criança
interpreta essa mensagem como se nós adultos não quiséssemos protegê-
la. Os profissionais do Direito evitam perguntar ou perguntam esquivando-se
do enfrentamento real da questão, e a criança interpreta essa conduta como
se não quiséssemos ouvi-la.
De outro lado, recentes pesquisas realizadas na Inglaterra demonstram que depor
em Juízo acerca do abuso sofrido pode ser benéfico para a vítima. Em trabalho contrapondo
vítimas de abuso sexual quando crianças e adolescentes que depuseram em Juízo, por meio de
métodos especiais, isto é, utilizando-se de meios não revitimizantes, a vítimas que não foram
ouvidas em Juízo, aferiu-se que vítimas ouvidas, quando adultas, relataram que sentiram-se
valorizadas por terem sido ouvidas, apresentando menos sintomas pós traumas que as não
escutadas
224
.
3.3.3.3. Sessão única e impossibilidade de aferição
Outra crítica direcionada ao método Depoimento Sem Dano refere-se a limitação
da oitiva da criança ou adolescente a uma única oportunidade, sendo ela, muitas vezes,
insuficiente para que a criança ou adolescente sinta-se seguro e à vontade para revelar o que
recorda, pensa e sente. Esclarece-se que a insurgência contra a oitiva única não significa
defesa de quesitação da criança por diversos órgãos – desde a escola, passando pelo Conselho
Tutelar, ao médico examinador, Delegado, até chegar em Juízo. Ao contrário, reputa-se
recomendável que a vítima seja ouvida por única pessoa ou equipe. No entanto, não raras
vezes faz-se necessária não uma sessão, mas várias, até que a criança ou adolescente se abra.
Nesse aspecto, razão assiste aos opositores ao método, que prevê única oitiva
em Juízo. Se nessa oportunidade a vítima calar ou negar os fatos, a consequência indesejada
pode ser a absolvição do agressor, mesmo que tenha realmente perpetrado o abuso. O projeto
de lei
225
em trâmite no Senado em que consta a inclusão deste método de inquirição para
2009, p. 79.
224
Pesquisa referida por Tony Butler, no I Simpósio de Não Revitimizantes, realizado em Brasília, de 26 a 28 de
agosto de 2009. BUTLER, Tony. Testimony from Children and Adolescent Victims: The Experience of the
United Kingdom. In: I SIMPÓSIO DE CULTURAS E PRÁTICAS NÃO REVITIMIZANTES NA TOMADA
DE DEPOIMENTOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM JUÍZO, 2009, Brasília. Disponível em
<http://www.wcf.org.br/simposio_internacional.htm>. Acesso em: 17 mar. 2010.
225
Projeto de Lei do Senado 156, de 2009, disponível no sítio <www.senado.gov.br>. Acesso em: 02 Abr.
2010.
109
crianças e adolescentes no processo criminal, ao que parece, traça caminho para a solução
desse problema, ao prever a reinquirição, se necessário:
Art. 191. Na fase de investigação, ao decidir sobre o pedido de produção
antecipada de prova testemunhal de criança ou adolescente, o juiz das
garantias atentará para o risco de redução da capacidade de reprodução dos
fatos pelo depoente, em vista da condição da pessoa em desenvolvimento,
observando, quando recomendável, o procedimento previsto no art. 190.
§1º Antecipada a produção da prova na forma do caput deste artigo, não será
admitida a reinquirição do depoente na fase de instrução processual,
inclusive na sessão de julgamento do Tribunal do Júri, salvo quando
justificada a sua imprescindibilidade, em requerimento devidamente
fundamentado pelas partes.
3.3.3.4. E o tratamento da vítima e sua família?
Como o Depoimento Sem Dano foca na oitiva da vítima criança ou adolescente
em Juízo, sem nada prever acerca do momento anterior e posterior ao mesmo, muitos criticam
o projeto, sob fundamento de que o tratamento psicoterápico e acompanhamento social da
vítima e sua família, imprescindível o abuso sexual infantil atinge não a vítima em si,
mas também todos que estão ao seu redor, principalmente quando a violência é intrafamiliar -,
não é contemplado. Segundo os críticos, esta falha é decorrência da Justiça repressora e
punitiva vigorante.
Realmente, o sistema de proteção e defesa dos direitos e garantias da criança e
do adolescente, especificamente quanto ao atendimento da criança abusada, e de sua família,
incluindo até mesmo o agressor, não é abarcado pelo método Depoimento Sem Dano. É que,
como dito, o projeto visa solucionar problema que se apresenta quando da instrução
processual penal. Para atendimento da vítima e sua família, para os casos de violência infantil,
em especial para os casos de abuso sexual infantil, o Governo Federal, mantém programa
denominado Enfrentamento, antes denominado Sentinela, em que é previsto atendimento
multidisciplinar à criança, incluindo tratamento psicoterápico
226
.
226
Veja matéria acerca do programa disponível em <http://www.mds.gov.br/programas/rede-suas/protecao-
social-especial/programa-sentinela-protecao-social-as-criancas-adolescentes-vitimas-de-violencia>. Acesso em:
30 mar. 2010.
110
Não se olvida que o tratamento da vítima e sua família, auxiliando a mesma a
superar o trauma ocasionado pelo abuso sexual infantil, bem como na readaptação da família
diante das novas circunstâncias ensejadas pela revelação do abuso, e retirada do agressor do
núcleo familiar é essencial. A tão punição do agressor é insuficiente para a proteção da
vítima, bem como para a repressão do crime, já que, sem tratamento, o agressor, quando solto,
não raras vezes, voltará a incidir na prática do mesmo delito. De outro lado, a vítima, se não
receber tratamento adequado para a superação e recuperação dos danos psíquicos advindos do
abuso, poderá, quando adulta, transmudar-se em agressor. Assim, o tratamento erige-se a
matéria de suma importância, devendo ser alvo do Judiciário e do Legislativo, em conjunto
com atuação do Executivo, para implementos de programas que efetivamente disponibilizem
às vítimas e suas famílias os meios para a recuperação da sua saúde emocional.
Não é necessário, para tanto, modificar a estrutura ou os objetivos do Judiciário e
da Justiça como um todo. A Justiça brasileira, em consonância com os princípios
constitucionais vigentes, deve ser não apenas punitiva, mas também preventiva e restaurativa.
Assim, embora exista programa do Poder Executivo para atendimento de crianças e
adolescentes vítimas de abuso sexual infantil que contemplaria, ao menos em tese, os
reclamos advindos da Justiça restaurativa e preventiva, necessário que tal tratamento seja
dispensado por lei, obrigatoriamente, a fim de que haja vínculo efetivo entre o abuso revelado
e o tratamento disponibilizado pelo poder público, independentemente da vontade do
Executivo, por meio do seu gestor, que se modifica de tempos em tempos.
Destarte, a rede de proteção e defesa dos direitos e garantias das crianças e
adolescentes deve ser implementada em nosso País, a exemplo do que ocorre em outros
lugares, como nos Estados Unidos da América e em Cuba, por meio dos Child Advocacy
Centers centros de defesa da criança. Tais centros seriam locais, diversos dos tribunais,
fóruns e delegacias, nos quais seria disponibilizado atendimento multidisciplinar às vítimas de
abuso sexual infantil e suas famílias. Falar-se-á mais sobre tais centros, conhecidos por CACs,
no próximo capítulo.
concordância, diante de sua gritante obviedade, de que as vítimas e suas
famílias precisam de tratamento e não apenas servir de instrumento ao processo penal, sendo
notório que, se aplicado de forma isolada, o Depoimento Sem Dano não vai ajudar a vítima e
seus familiares a superarem os traumas decorrentes do abuso, da revelação do mesmo e do
111
processo de investigação e de responsabilização do agressor que, como visto, também são
fatores que causam stress e constrangimento. Contudo, a necessidade e urgência de que o
atendimento seja disponibilizado, não retiram os benefícios do projeto, na medida em que
minimiza ao menos um dos fatores causadores de sofrimento à vítima, consistente na
exposição de forma insensível e despreparada de sua pessoa e de fatos cuja lembrança causa-
lhe dor, vergonha, raiva e os mais variados sentimentos negativos.
3.3.3.4. Oitiva Tardia – apenas em Juízo
Outra crítica que se faz ao método Depoimento Sem Dano é que ele contempla
apenas a oitiva da criança ou adolescente em Juízo. Lembram os críticos que a criança, antes
de ser ouvida em Juízo, passa por longo calvário, desde a revelação do fato a alguém, que
então denuncia o abuso, e inicia série de inquirições e exames a que se submete a vítima. A
própria autora do projeto de lei que visa a alteração legislativa para introdução do
Depoimento Sem Dano no tramitar das ações penais que tenham como vítimas crianças e
adolescentes, Deputada Maria do Rosário, reconhece que tal medida, em si, é ineficaz para a
proteção das crianças e adolescentes contra novos abusos estatais, por meio da vitimização
secundária, como se vê na justificativa para a propositura da alteração
227
:
Embora o modelo de depoimento judicial hoje presente em Porto Alegre e
outras cidades do Rio Grande do Sul possa ser considerado um avanço e
mereça ser incorporado ao cenário jurídico nacional, e, com isso, crianças e
adolescentes vítimas de violência, ou que elas tenham presenciado, sejam
recebidas pelo poder judiciário com um novo olhar e atenção, o sistema que
o antecede e que trata desde a revelação da agressão até o ajuizamento da
ação, cível ou penal, permanecerá o mesmo, ensejando inúmeras e
inadequadas exposições do depoente, perante diferentes agentes, o queo é
mais aceitável, eis que tal forma de proceder, revitimizando a
criança/adolescente, como bem salienta Dobke (DOBKE, Veleda. Abuso
sexual: A inquirição de crianças, uma abordagem interdisciplinar. Porto
Alegre, Ricardo Lenz Editor, 2001, p. 54), pode a elas causar um dano (dano
secundário), muitas vezes maior do que o dano causado pela própria
agressão. (...) Exemplos obtidos junto às Varas da Infância e da Juventude
ensinam não ser incomum que a primeira revelação da agressão/abuso ocorra
na escola – para algum colega ou para a professora. Após, dando início a um
itinerário quase que infindável, normalmente é a criança encaminhada ao
serviço de orientação educacional da escola – SOE – perante o qual necessita
fazer um novo relato. Seguem-se após o Conselho Tutelar, Rede Pública de
Proteção (geralmente hospitais de referência), a Delegacia de Polícia, o
Instituto Médico Legal e o Ministério Público, quando novos relatos
227
Projeto de Lei n. 035/2007 – texto integral, disponível em
<http://www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/getPDF.asp?t=39687>. Acesso em: 05 Dez. 2009.
112
necessitam serem apresentado, quase que sempre para pessoas diferentes.
Somente após quatro, cinco ou seis inquirições da criança/adolescente, é que
o caso se apresentado perante a justiça, quando necessitará ela ser ouvida
novamente para falar sobre algo que lhe dói e lhe traz tristes lembranças.
Questiona-se, assim, não o modo como é colhido o depoimento da vítima
criança ou adolescente em Juízo, mas também todo o processo pelo qual passa a vítima até
chegar em Juízo, que, em verdade, se mostra o ponto final do trajeto. Sendo a inquirição
necessária, bem como o exame médico leia-se, exame ginecológico para verificar se
houve o abuso por meio da penetração tal qual é necessário uma intervenção cirúrgica que,
embora imprescindível, fere e causa sofrimento ao paciente, ao menos que esta fase tenha
seus danos minimizados. E não somente por questões de dignidade, humanidade ou de
proteção dos interesses da criança, no sentido de se evitar a vitimização secundária é que se
mostra necessária alteração no modo de proceder de todas as instituições e profissionais
envolvidos no desemaranhar dos casos de abuso sexual infantil.
A tão adoção do Depoimento Sem Dano pode ser ineficiente na produção
probatória, já que tardia, aplicado apenas em Juízo, permite que haja manipulações da criança
até a tomada de seu depoimento no âmbito do processo. Mesmo na ausência de manipulações
dolosas e voluntárias, com o firme propósito de alterar a verdade, as manipulações
involuntárias podem ensejar insegurança e retratação da vítima, bem como seu calar como
método defensivo. É o que relata PIERRE SABOURIN
228
:
Esse incesto ativo ou atuante é, portanto, inicialmente, uma palavra que vem
de uma criança sobre aquilo que é proibido designar, nomear, - as pulsões
sexuais do adulto com respeito à criança. As mudanças de comportamento
desta são imediatas, seus desenhos, fobias e pesadelos confirmarão a
primeira palavra quando ela tiver coragem de proferi-la. Mas a credibilidade
dessa palavra deverá ser estabelecida rapidamente, senão a criança não falará
mais.
Objetivando extirpar tais problemas, propõe então, a legisladora Deputada Maria
do Rosário, a introdução de novos dispositivos no Estatuto da Criança e do Adolescente, para
serem aplicados em ações penais em que crianças ou adolescentes sejam vítimas ou
testemunhas, para permitir a aplicação do instituto da produção antecipada de prova,
228
SABOURIN, Dr. Pierre, Por que a Terapia Familiar em face do Incesto?, in GABEL, Marceline (org.),
Crianças Vítimas de Abuso Sexual, 2ª edição, São Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 166.
113
reduzindo, ao final, a oitiva da criança a duas ocasiões a da prova antecipada e a em Juízo.
Veja os trechos a esse respeito, colhidos da justificativa da proposta legislativa
229
:
...em existindo a notícia de abuso sexual contra alguma criança/adolescente,
ao invés de iniciar ela a expor o seu relato a diversos agentes, de forma
fracionada, como antes referido, será ela encaminhada a algum local de
referência na abordagem de tal matéria hospital, clínica, profissional
técnico, etc ao qual caberá detalhar o ocorrido para o Ministério Público,
que, existindo indícios suficientes da prática do delito, ajuizará uma ação
cautelar de produção antecipada de prova contra o suposto agressor.
Posteriormente, após a citação do suposto agressor, em juízo, estando ele
acompanhado de seu procurador e tendo a possibilidade de participar da
produção da prova de forma mais ampla respeitados assim os princípios
constitucionais do contraditório e defesa técnica será a criança ouvida nos
moldes hoje realizados no Projeto Depoimento Sem Dano, e, após a
realização do depoimento, gravadas as imagens e som em um CD, servirá ele
para instruir expedientes do Conselho Tutelar, o inquérito policial e o
procedimento judicial que lhe seguir, não mais ouvindo-se a
criança/adolescente, exceto em situações em que isso se mostre necessário.
O assunto será objeto de exame no capítulo 4, ao tratar-se de método alternativo
implementado para utilização dos recursos adotados pelo Depoimento Sem Dano na oitiva na
Delegacia. Por ora, se presta esta informação a demonstrar que esta crítica, de adoção isolada
do Depoimento Sem Dano, é pertinente, que notória a insuficiência do mesmo para a
extinção ou, ao menos, a redução dos danos causados à vítima, e dos fatores que geram a
ineficiência da prova e, por conseguinte, a ausência de responsabilização do agressor. Embora
o Depoimento Sem Dano extirpe a maioria dos problemas em relação à colheita da palavra da
vítima infante em Juízo, não abrange as demais fases existentes desde a revelação do abuso
até o processo judicial, sendo, portanto, limitado tal projeto.
Tal constatação se faz não como crítica ao projeto, uma vez que, repisa-se, seu
objetivo jamais foi o de solucionar todos os problemas atinentes ao atendimento e resposta
das instituições públicas, ou não, envolvidas com o combate ao abuso sexual infantil, mas
apenas de, no âmbito restrito e específico do processo judicial criminal, em que se visa à
apuração e ao julgamento para fins de responsabilização do agressor, evitar que o depoimento
da vítima constitua novo fator causador de sofrimento, humilhação, constrangimento e dor.
229
Projeto de Lei n. 035/2007 – texto integral, disponível no endereço eletrônico
http://www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/getPDF.asp?t=39687
114
Assim, por esse prisma, conclui-se que o Depoimento Sem Dano tem se
mostrado eficaz aos fins a que se propôs, sem deixar de olvidar que consubstancia um
importante elemento, que, embora de suma relevância, não esgota todas as medidas que
devem ser implementadas na proteção das vítimas e no combate ao abuso sexual infantil.
Veja-se, então, algumas outras alternativas, não excludentes do Depoimento Sem Dano, mas
complementares, a fim de se criar e manter funcionando rede para proteção de crianças e de
adolescentes.
115
4. A INTERFACE ENTRE PSICOLOGIA E DIREITO E
OUTRAS EXPERIÊNCIAS RELEVANTES
4.1. A Interface entre Psicologia e Direito
Muitos dos métodos alternativos forjados para aprimorar o atendimento das
pessoas envolvidas em casos de abuso sexual infantil pelo Judiciário e instituições correlatas,
implicam necessariamente a interdisciplinaridade entre Psicologia e Direito e entre Serviço
Social e Direito. Ora, o Direito e a Psicologia têm como ponto comum o objeto de enfoque,
que é o ser humano. O Direito, regrando, normatizando condutas, e sancionando a
inobservância das mesmas, a fim de possibilitar a vida conjunta, podendo ser dito que enfoca
o homem como inserto no grupo. A Psicologia, por sua vez, tem como alvo a pessoa em si
mesma, como indivíduo. Enquanto no campo do Direito considera-se como maior conquista o
princípio da igualdade, a ciência da Psicologia prima pela diversidade, buscando valorizar a
pessoa como indivíduo.
Releva observar que o ser humano de que trata tanto o Direito como a
Psicologia, especialmente quando o assunto concerne ao abuso sexual infantil, não se limita à
vítima, englobando com igual importância o agressor. A leitura cômoda, instintiva e
maniqueísta do agressor como motivado por suas inclinações perversas e más, e alvo de
punição das mais severas possíveis, para aplacar o desejo de vingança daqueles que o assistem
mostra-se insuficiente e equivocada. Nesse aspecto peculiar, MATILDE CARONE SLAIBI
CONTI
230
descreve circunstância refletora de todo o sistema punitivo em que se funda o
Direito Penal, ao tratar do tema abuso sexual infantil e pedofilia sob o prisma do agressor:
Os sujeitos têm respostas surpreendentes, por isso não podemos afirmar que
o Direito sozinho ou a punição apenas não resolvem. A princípio, a função
da punição dada pelo Direito é uma função real: vai tocar no corpo do
sujeito, vai pôr o corpo do sujeito atrás das grades. Contudo cumpre
230
CONTI, Matilde Carone Slaibi, Da Pedofilia Aspectos Psicanalíticos, Jurídicos e Sociais do Perverso
Sexual, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2008, p. 08/09
116
assinalar que estudiosos demonstram que só a punição não resolve, não
regenera. Sobreleva destacar que, ao procurar ajuda, pode ter sua angústia
apaziguada.
Embora muito se vislumbre a conexão e co-dependência entre as ciências do
Direito e da Psicologia, implicando, na prática, na necessidade dos profissionais de ambas
áreas trabalharem juntos para a concretização dos direitos humanos, em especial dos direitos
da criança e do adolescente, pela efetivação do princípio da proteção integral, o desafio
sempre foi encontrar os meios adequados para colocar em prática este entrelaçamento fator
fomentado ultimamente pela proposta do método Depoimento Sem Dano. Especificamente
sobre a violência e o desafio da interdisciplinaridade, escreveram LIANA FORTUNATO
COSTA, MARIA APARECIDA PENSO e TÂNIA MARA CAMPOS DE ALMEIDA
231
:
Um importante desafio que esse tipo de trabalho nos impõe é a elaboração de
ações e reflexões interdisciplinares, vinculando entre si duas grandes áreas
de intervenção com diferentes paradigmas como são a Psicologia e o Direito.
A Psicologia pauta-se por uma busca compreensiva das ações humanas em
searas que vão do indivíduo aos seus respectivos contextos sócio-culturais,
enquanto o Direito busca normas e parâmetros legitimados na sociedade
como fundamento e meta de suas decisões. Por conseguinte, em linhas
gerais, podemos afirmar que a Psicologia interpreta e atua na dimensão
psicossocial do problema da violência sexual, enquanto o Direito legisla
nesses casos, muitas vezes tomando por subsídio a interpretação fornecida
pela Psicologia aos seus oficiantes.
O desafio é real, e necessita ser suplantado, que, não obstante a existência dos
pontos conexos e interdependentes, trata-se, em verdade, de analisar o mesmo fato por
ângulos diversos: O Direito pelo ângulo da prova, e a Psicologia pelo prisma dos efeitos
internos do abuso na criança e sua família, como bem esclarece KATHLEEN COULBORN
FALLER, “the forensic interviewer in child sexual case seeks the facts, that is, what
happened, whereas the clinical interviewer is focused less on the facts and more on how the
abuse and related events have affected the child”
232
. Em razão disso, que se estabelecer os
limites da interferência do trabalho advindo da Psicologia no Direito, como adverte
MATILDE CARONE SLAIBI CONTI, ao afirmar que “convém salientar que um limite,
até mesmo ético, na contribuição que a Psicanálise pode dar a qualquer profissão. Cabe aos
231
COSTA, Liana Fortunato, PENSO, Maria Aparecida, e ALMEIDA, Tânia Mara Campos de. O Grupo
Multifamiliar: Uma Intervenção no Abuso Sexual Infantil e Adolescente, in COSTA, Liana Fortunato e
LIMA, Helenice Gama Dias de (orgs.), Abuso Sexual A Justiça Interrompe a Violência, Brasília: Ed. Líber
Livros, 2008, p. 46.
232
FALLER, Kathleen Coulborn, Forensic and Clinical Interviewer Roles in Child Sexual Abuse, in
FALLER, Kathleen Coulborn, Inverviewing Children abou Sexual Abuse Controversies and Best
Practice, New York: Oxford University Press, 2007, p. 6.
117
juristas decidirem e tirarem conclusões do que a Psicanálise extrai, sobre a lógica da relação
do sujeito com a lei, a partir do inconsciente”
233
.
Esta interface, a despeito da relevância e imprescindibilidade para a solução de
muitos conflitos postos em Juízo, não tem sido objeto de enfoque quer na prática por meio
da atuação dos profissionais, e valorização de seu trabalho na tomada de decisões pelos
magistrados -, quer na teoria, por meio de estudos voltados para averiguar qual o papel destas
ciências correlatas no âmbito da resolução de lides e pacificação social. Isso tem sido uma das
causas de confusão nas atribuições dos profissionais da Psicologia, ensejando críticas
inclusive aos novos métodos mencionados no capítulo anterior. Destarte, para melhor
compreensão do assunto, e na tentativa de dirimir tais confusões, convém analisar a
intersecção dessas ciências, e suas implicações.
4.1.1. Evolução histórica das Ciências
A intersecção entre Direito e Psicologia teve seu início não muito, podendo
ser considerado recente. No início, o envolvimento da Psicologia com o Direito era atinente à
matéria penal, focada na pessoa do réu, a fim de compreender e sistematizar a mente
criminosa. Esclarece DENISE MARIA PERISSINI DA SILVA
234
:
A Psicologia Forense foi considerada, inicialmente, um ramo da Psicologia
dedicada ao estudo do comportamento criminal do ser humano, estendendo-
se à observação do cumprimento da pena imposta ao infrator. Diversos
autores desenvolveram escolas psicológicas, com o intuito de estabelecer
concepções e uma descrição compreensiva da correlação entre fatos e leis da
vida mental, aplicando-as a um procedimento de análise da conduta
delituosa. Assim surgiram a Escola Personalística, a Escola Genético-
Evolutiva, a Escola Tipológica, a Escola Patológica etc (Mira Y Lopez,
1967)
Posteriormente, transmudou-se o significado do termo “psicologia forense”,
passando a referir-se à matéria que abrangia a atuação do psicólogo no Judiciário, ou,
inversamente, a aplicação dos conhecimentos da Psicologia por profissionais do Direito.
233
CONTI, Matilde Carone Slaibi, Da Pedofilia Aspectos Psicanalíticos, Jurídicos e Sociais do Perverso
Sexual, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2008, p. 09.
234
SILVA, Denise Maria Perissini da, Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. A interface da
Psicologia com Direito nas questões de família e infância, 2ª edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2007,
p. 8.
118
Utiliza-se o termo no passado diante da constatação de que tanto o termo “psicologia forense”
quando seu conteúdo está ultrapassado, devendo ser revisto para abranger outras formas de
atuação do psicólogo na seara jurídica. Com o desenvolvimento do Direito, assim como da
Psicologia, a relação entre essas ciências tem se tornado cada vez mais estreita, com aumento
significativo da atuação da psicologia no auxílio da realização da justiça. Destarte, a
denominação, inclusive, de Psicologia Forense, transmudou-se para Psicologia Jurídica, como
sintetiza DENISE MARIA PERISSINI DA SILVA
235
:
A evolução conjunta do Direito com a Psicologia gera então a Psicologia
Jurídica, considerada apropriada para abarcar as questões envolvidas,
desenvolvidas pelos psicólogos nomeados peritos para dirimir controvérsias
no campo da psique, e trazidas ao Judiciário, no que se refere aos conflitos
emocionais e comportamentais, através de laudos e pareceres que servem de
instrumentos indispensáveis para que o juiz possa aplicar a justiça.
Com essa evolução, segundo a mesma autora, “a Psicologia trouxe uma
importante contribuição para o Direito: humanizar o Judiciário na busca da construção do
ideal de justiça, que é uma das mais impossíveis demandas dos indivíduos (o que não
significa que seja totalmente irrealizável...)”
236
.
É bem verdade que, embora a atividade dos profissionais da
Psicologia no âmbito jurídico seja intensa e aconteça quase três décadas, não existe
ainda um campo especializado na área da psicologia voltado para a capacitação de
profissionais dessa ciência, a fim de aperfeiçoar sua atuação no âmbito do Judiciário, o que
poderia ensejar a conclusão semelhante à da autora norte-americana KATHLEEN
COULBORN FALLER, ao afirmar que clinicians do no know how to do forensic work
because their training does not prepare them for it
237
. Embora tal declaração seja radical,
que os conhecimentos obtidos na graduação em Psicologia se mostram bastante úteis na
atuação no âmbito processual, o aperfeiçoamento e especialização, são, a toda vista, bem-
vindos, como escreveu DENISE MARIA PERISSINI DA SILVA
238
:
235
SILVA, Denise Maria Perissini da, Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. A interface da
Psicologia com Direito nas questões de família e infância, 2ª edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2007,
p. 8.
236
SILVA, Denise Maria Perissini da, Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. A interface da
Psicologia com Direito nas questões de família e infância, 2ª edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2007,
p. 10.
237
FALLER, Kathleen Coulborn, Forensic and Clinical Interviewer Roles in Child Sexual Abuse, in
FALLER, Kathleen Coulborn, Inverviewing Children abou Sexual Abuse Controversies and Best
Practice, New York: Oxford University Press, 2007, p. 5.
119
A Psicologia Jurídica é uma área ainda nova e pouco explorada da
Psicologia que faz interface com o Direito e necessita demarcar seu espaço
de atuação. Como não possui técnicas e conhecimentos próprios, vale-se de
outros conhecimentos construídos da Psicologia para aliar seu trabalho ao
do Judiciário, buscando uma atuação psicojurídica a serviço da cidadania,
respeitando o ser humano. Desta forma, embora haja muito ainda a caminhar
e construir enquanto identidade profissional, a Psicologia Jurídica atua ao
lado do Direito de diversas formas: no planejamento e execução de políticas
de cidadania, na observância dos direitos humanos e combate à violência e
na orientação familiar, entre outras (Silva, Vasconcelos e Magalhães, 2001)
Fundamentada na intersecção entre a Psicologia e o Direito, alhures explanada,
sendo a efetividade do Direito muitas vezes entrelaçada inexoravelmente aos conhecimentos
da Psicologia, a atuação de profissional dessa ciência é imprescindível no âmbito do
Judiciário, sendo cada vez maior. Esse crescimento vem ocorrendo no aspecto numérico e no
campo de atuação se antes era restrita aos casos de família ou de entendimento das
características psicológicas do criminoso, hoje se caminha para atuação na preparação para o
testemunho, intervenção na tomada de depoimento, oferecimento de suporte emocional para a
criança durante a inquirição, dentre outros. LIANA FORTUNATO COSTA, MARIA
APARECIDA PENSO e TÂNIA MARA CAMPOS DE ALMEIDA discorrem sobre a
intersecção, focando as vantagens da interdisciplinaridade
239
:
Como, então, aproximar e reconhecer os limites e as possibilidades dessa
parceria? Pensamos que o Direito, por intermédio da sua dimensão decisória,
favorece e mesmo ajuda a Psicologia a fazer o resgate do sentido reparador
da desproteção como a criança, que ocorre nessas famílias, quando é
possível a expressão das emoções em palavras e a reelaboração da vivência
com o outro dentro de um profundo processo de mudança. A decisão judicial
de encaminhar as famílias para atendimento possibilita a inclusão social
dessas pessoas, levando a Psicologia a assumir um papel diferente daquele
que apenas realiza diagnósticos para a justiça.
Destarte, da mesma forma que os novos campos de atividade que surgem ao
longo do tempo, diante da erupção de novas necessidades, ensejando a criação de novos
cursos ou especialidades, não seria de todo desarrazoado pensar no nascimento de uma nova
especialização no ramo da Psicologia, voltada justamente para a capacitação de profissionais
da área da Psicologia para atuação no âmbito jurídico, como apontou DENISE MARIA
238
SILVA, Denise Maria Perissini da, Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. A interface da
Psicologia com Direito nas questões de família e infância, 2ª edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2007,
p. 7.
239
COSTA, Liana Fortunato, PENSO, Maria Aparecida, e ALMEIDA, Tânia Mara Campos de. O Grupo
Multifamiliar: Uma Intervenção no Abuso Sexual Infantil e Adolescente, in COSTA, Liana Fortunato e
LIMA, Helenice Gama Dias de (orgs.), Abuso Sexual A Justiça Interrompe a Violência, Brasília: Ed. Líber
Livros, 2008, p. 46.
120
PERISSINI DA SILVA
240
, diante da necessária normatização da atuação dos psicólogos
judiciários – leia-se, aqueles que laboram dentro do Poder Judiciário como instituição:
...embora se trate da Psicologia no interior do sistema judiciário, os
procedimentos para sua atuação são definidos por provimentos de órgãos da
Justiça, sem qualquer participação do Conselho Federal ou Conselhos
Regionais da Psicologia. Porque isso aconteceu? Diante das dificuldades
enfrentadas, ainda nos dias atuais, pelos psicólogos que atuam no Judiciário,
os órgãos fiscalizadores da Psicologia deveriam promover ação mais
contundente para que esta área do conhecimento pudesse delimitar o seu
espaço na interface com o Direito.
Como ciência, a Psicologia não se restringe a um determinado e específico tipo
de atuação por parte de seus profissionais. Tal qual o Direito, ou outras formações
universitárias, o campo de abrangência é vasto. Exemplificativamente, o Direito permite, a
quem aufere seu bacharelado, inúmeras possibilidades, desde o exercício da advocacia, dos
cargos de Delegados, Defensores Públicos, Promotores de Justiça, Magistrados das diversas
Justiças setorizadas, o magistério, a consultoria, dentre tantos outros. Da mesma forma, a
Psicologia possui diversos segmentos nos quais podem se inserir o profissional capacitado
nessa área, incluindo não o atendimento terapêutico em consultório, mas também
consultoria e orientação em empresas, avaliação para aptidão e adequação de candidatos a
determinado trabalho, orientação vocacional, avaliação psicomotora para habilitação na
condução de veículos automotores, atendimento em escolas. Dentre as hipóteses de trabalho,
insere-se a Psicologia Forense, ou Jurídica, afeta ao poder Judiciário.
Assim, uma vez existente a matéria Psicologia Jurídica, basta a adequação de
seu conteúdo, para abranger os novos meios de atuação, a fim de preparar adequadamente o
profissional para trabalhar lado a lado com os profissionais do Direito, limitados e inaptos a
laborar nesse campo. Importa salientar que inexistem barreiras legais para esta propositura,
diante das normas que regem a profissão do psicólogo, a saber, Lei n. 4119, publicada em 27
de agosto de 1962. Essa lei instituiu a profissão de psicólogo em nosso país, regulamentando-
a. Em seu artigo 13, par. 2º, encontra-se a permissão para a atuação do psicólogo das mais
variadas formas:
240
SILVA, Denise Maria Perissini da, Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. A interface da
Psicologia com Direito nas questões de família e infância, 2ª edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2007,
p. 41/42.
121
Artigo 13. Ao portador do diploma de Psicólogo é conferido o direito de
ensinar Psicologia nos vários cursos de que trata esta lei, observadas as
exigências legais específicas, e a exercer a função de Psicólogo.
(...)
Par. 2º. É da competência do Psicólogo a colaboração em assuntos
psicológicos ligados a outras ciências.
Por sua vez, o Decreto n. 53.464/64 regulamenta as normas insculpidas na Lei n.
4119/62 e em seu artigo 4º assim dispõe:
Artigo 4º. São funções do Psicólogo:
(...)
6. Realizar perícias e emitir pareceres sobre a matéria de Psicologia.
Ausentes, assim, óbices de ordem legal para a especialização e atuação de
psicólogos das mais diversas formas na área jurídica, em especial para a concretização da
proteção integral conferida às crianças e adolescentes pela Carta Magna e Estatuto da Criança
e do Adolescente.
4.1.2. Atuação do Psicólogo no Processo Judicial
No âmbito do Poder Judiciário propriamente dito, a atuação de profissionais de
áreas diversas da jurídica em si iniciou-se não muito tempo atrás. FÁVERO, MELÃO e
JORGE, citados por MARIA ALEXINA RIBEIRO e HERON FLORES NOGUEIRA,
esclarecem que o Serviço Social começou a atuar, oficialmente, no então denominado Juizado
de Menores, no final da década de 40, quando se criou, no Judiciário paulista, o Serviço de
Colocação Familiar. Desde então, segundo tais autores, a atividade do serviço social vem se
estendendo no contexto da Infância e Juventude
241
. os psicólogos iniciaram suas atividades
no Poder Judiciário apenas a partir de 1980, por meio de trabalho voluntariado, na avaliação e
acompanhamento de famílias que demandavam auxílio na conservação de seus filhos fora de
instituições, segundo RAMOS e SHINE, também referidos por MARIA ALEXINA RIBEIRO
e HERON FLORES NOGUEIRA
242
. Atualmente, os diversos Judiciários do país, e de outros
países, possuem em seus quadros o cargo de psicólogo.
241
FÁVERO, MELÃO e JORGE (2005), apud RIBEIRO, Maria Alexina e NOGUEIRA, Heron Flores, A
Parceria entre o Grupo Multifamiliar e a “Nova Justiça”, in COSTA, Liana Fortunato e LIMA, Helenice
Gama Dias de (orgs.), Abuso Sexual A Justiça Interrompe a Violência, Brasília: Ed. Líber Livros, 2008, p.
84.
242
RAMOS e SHINE (1999), apud RIBEIRO, Maria Alexina e NOGUEIRA, Heron Flores, A Parceria entre o
Grupo Multifamiliar e a “Nova Justiça”, in COSTA, Liana Fortunato e LIMA, Helenice Gama Dias de
(orgs.), Abuso Sexual – A Justiça Interrompe a Violência, Brasília: Ed. Líber Livros, 2008, p. 85.
122
No aspecto legal, em se tratando do Poder Judiciário, a atribuição destes
profissionais não são apenas extraprocessuais. Ao contrário, sua função engloba atuar em
processos cuja solução exija conhecimentos afetos à área da psicologia, sendo fundamental a
atuação do psicólogo. Exemplificativamente, é o que se depreende do edital de Concurso
Público n. 01/2008, do Tribunal de Justiça de Rondônia, na parte que toca às atribuições das
categorias funcionais dos cargos de nível superior, em parte a seguir transcrito
243
:
2.2 - Atribuições das Categorias Funcionais/Especialidades/Requisitos/
Remuneração dos cargos de Nível Superior:
2.2.12 - Técnico Judiciário/Psicólogo
Atribuições: atuar no âmbito da Justiça, colaborando no planejamento e
execução de políticas de cidadania, direitos humanos e prevenção da
violência, centrando sua atuação na orientação do dado psicológico
repassado não para os juristas como também aos indivíduos que carecem
de tal intervenção, para possibilitar a avaliação das características de
personalidade e fornecer subsídio ao processo judicial, além de contribuir
para a formulação, revisão e interpretação das leis...
Além de orientar ou prover assistência durante o tramitar do processo, ou atuar
na conciliação, a atividade do psicólogo no âmbito do Judiciário abrange prover provas para
auxiliar na resolução da lide, fornecendo subsídios ao processo judicial. Seja por meio de
avaliações psicológicas, seja por meio de perícias ou de estudos psicossociais, o atuar desses
profissionais tem sido no campo probatório. Dentre as muitas situações em que a intervenção
do trabalho do psicólogo se faz não relevante, mas crucial, para resolução de casos
judiciais, consta no estudo de DENISE MARIA PERISSINI DA SILVA os seguintes: guarda
dos filhos na dissolução do vínculo conjugal e na união estável, paternidade e reconhecimento
de filhos, pensão alimentícia, adoção de criança ou adolescente, adoção internacional, guarda
e tutela por outros parentes ou pessoas, família substituta, abrigamento e desabrigamento
244
,
queixas de comportamento (prática de delitos por crianças, menores de 12 anos), vitimização
física, sexual, psicológica, tentativa de suicídio da criança ou adolescente, pais que tentam
impedir tratamento médico do filho, por questões religiosas, busca e apreensão de menores,
troca de bebês em maternidades, emancipação, registro civil, para retificação ou
cancelamento
245
.
243
Íntegra do edital disponível em <http://www.cesgranrio.org.br/eventos/concursos/tjro0108/pdf/tjro0108.pdf>.
Acesso em: 09 Fev. 2009.
244
atualmente, em conformidade com a lei 12010/09, o termo técnico-jurídico empregado é acolhimento e
desacolhimento.
245
SILVA, Denise Maria Perissini da, Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. A interface da
Psicologia com Direito nas questões de família e infância, 2ª edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2007,
123
Inobstante o vasto campo de atuação da Psicologia no âmbito jurídico, o
potencial de contribuição dessa ciência é de abrangência ímpar, como muito bem explanou
MATILDE CARONE SLAIBI CONTI
246
:
O campo de intersecção entre o Direito e Psicanálise é bastante amplo. A
Psicanálise pode ouvir o sujeito em suas angústias, onde quer que ele esteja.
Então, pode ouvir os criminosos no sistema penal, os adolescentes em
conflito com a lei, estar presente nos trabalhos de penas alternativas ou
também em casos de violência doméstica. Pode contribuir com o legislador,
quando ele vai fazer leis que dizem respeito aos crimes sexuais, que nesse
tipo de delito o criminoso, via de regra, tem uma patologia clínica, ou em
questões ligadas à filiação e à família. A psicanálise está pronta a acolher o
sujeito, que quer uma ajuda psíquica, uma ajuda do profissional que tem
experiência do inconsciente e pode ouvi-lo sobre sua angústia.
Embora, como visto alhures, a atribuição dos psicólogos nos quadros do
Judiciário englobe muito mais que o fornecimento de dados para subsidiar as decisões
judiciais dentro de um processo, esta tem sido a maior atividade desses profissionais, como
observou DENISE MARIA PERISSINI DA SILVA ao afirmar que “a perícia estabeleceu o
campo de atuação da Psicologia Jurídica na busca da verdade através da prova pericial”
247
.
Em verdade, dentro do processo judicial, a atividade do psicólogo tem sido centralizada na
perícia, também denominada avaliação psicológica, ou avaliação psicossocial quando
realizada pelo profissional do Serviço Social em conjunto com o Psicólogo. A atuação, assim,
se como auxiliar da justiça, anotando-se que não só o profissional que integra os quadros
do Poder Judiciário pode tomar a posição de perito, eis que ao magistrado incumbe nomeá-
lo
248
, podendo pertencer ou não à instituição. VAINER
249
, referido pela citada autora, descreve
o modus operandi da avaliação psicológica ou, ainda, perícia psicológica:
p. 67 a 151.
246
CONTI, Matilde Carone Slaibi, Da Pedofilia Aspectos Psicanalíticos, Jurídicos e Sociais do Perverso
Sexual, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2008, p. 08.
247
SILVA, Denise Maria Perissini da, Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. A interface da
Psicologia com Direito nas questões de família e infância, 2ª edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2007,
p. 7.
248
Dispõe o Código de Processo Penal, em seu artigo 159:
Art. 159 - Os exames de corpo de delito e as outras perícias serão feitos por dois peritos oficiais.
§ - Não havendo peritos oficiais, o exame será realizado por duas pessoas idôneas, portadoras de diploma de
curso superior, escolhidas, de preferência, entre as que tiverem habilitação técnica relacionada à natureza do
exame.
§ 2º - Os peritos não oficiais prestarão o compromisso de bem e fielmente desempenhar o encargo.
Art. 160 - Os peritos elaborarão o laudo pericial, onde descreverão minuciosamente o que examinarem, e
responderão aos quesitos formulados.
Dispõe o Código de Processo Civil, em seus artigos 145 e 421:
Art. 145. Quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico, o juiz será assistido por
perito, segundo o disposto no art. 421.
124
No tocante à perícia psicológica, Vainer (1999) afirma que esta possui três
momentos básicos; 1. Estudo consiste na fase de coleta dos dados, testes,
visitas domiciliares, exames e outros procedimentos; 2. Diagnóstico é o
momento da análise dos dados obtidos e da reflexão diagnóstica; 3. Laudo
consiste na exposição formal do estudo diagnóstico da situação e do parecer
técnico do perito.
A autora afirma, ainda, que a função do perito psicólogo é essencialmente
“oferecer ao juiz subsídios do âmbito de seu conhecimento técnico específico, sendo
fundamentais, portanto, o diagnóstico e o laudo, não podendo o profissional eximir-se de
defini-los”
250
, citando ABREU
251
para descrever a atuação desse profissional:
Através da prova pericial, o perito psicológico consegue, a partir de relatos,
detectar a verdadeira mensagem inconsciente, e buscar em cada caso qual
deva ser o maior benefício para a criança ou adolescente, procurando
responde à questão: “O que o Outro quer de mim”, intervindo, ainda que
minimamente, e à custa da angústia dos pais (Abreu, A., Anais do III
Congresso Ibero-Americano de Psicologia Jurídica – 1999)
Conclui-se, destarte que, embora o psicólogo utilize os conhecimentos e
ferramentas advindos da ciência a que pertence, os objetivos são outros que não os enfocados
no tratamento terapêutico. Diversamente, haverá sempre o cunho probatório, com
fornecimento de dados para permitir ao magistrado prolatar a melhor decisão no caso, seja no
julgamento do suposto agressor, seja na deliberação a respeito da guarda da criança. Esse
enfoque diversificado deve sempre nortear o trabalho deste profissional, segundo
KATHLEEN COULBORN FALLER
252
:
§ 1
o
Os peritos serão escolhidos entre profissionais de nível universitário, devidamente inscritos no órgão de
classe competente, respeitado o disposto no Capítulo Vl, seção Vll, deste Código.
§ 2
o
Os peritos comprovarão sua especialidade na matéria sobre que deverão opinar, mediante certidão do órgão
profissional em que estiverem inscritos.
§ 3
o
Nas localidades onde não houver profissionais qualificados que preencham os requisitos dos parágrafos
anteriores, a indicação dos peritos será de livre escolha do juiz.
Art. 421. O juiz nomeará o perito, fixando de imediato o prazo para a entrega do laudo.
249
VAINER apud SILVA, Denise Maria Perissini da, Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. A
interface da Psicologia com Direito nas questões de família e infância, edição, São Paulo: Ed. Casa do
Psicólogo, 2007, p. 16.
250
SILVA, Denise Maria Perissini da, Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. A interface da
Psicologia com Direito nas questões de família e infância, 2ª edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2007,
p. 17.
251
ABREU, A. apud SILVA, Denise Maria Perissini da, Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. A
interface da Psicologia com Direito nas questões de família e infância, edição, São Paulo: Ed. Casa do
Psicólogo, 2007, p. 12.
252
FALLER, Kathleen Coulborn, Forensic and Clinical Interviewer Roles in Child Sexual Abuse, in
FALLER, Kathleen Coulborn, Inverviewing Children abou Sexual Abuse Controversies and Best
Practice, New York: Oxford University Press, 2007, p. 6.
125
...the essence of forensic work is that it is for the legal area, whereas clinical
work focuses on therapeutic intervention, even at the assessment phase
(Sattler, 1998). This means that the forensic professional expects to provide
court testimony, whereas the clinical professional does not anticipate going
to court.
MIREILLE NATHANSON
253
acompanha o entendimento acima esposado
acerca do enfoque do trabalho do psicólogo no âmbito do processo judicial, acrescentando
que não se limita o psicólogo a obter as informações declaradas pela pessoa ouvida,
prestando-se a entrevista a, inclusive, servir de meio para se aferir sua credibilidade:
O psicólogo ou psiquiatra tem papel fundamental e inteiramente específico
para a avaliação. Deve ficar claro que, nesse estágio, não é um papel
terapêutico, mesmo se a maneira pela qual se desenvolvem essas primeiras
entrevistas podem condicionar o eventual acompanhamento psicoterápico. A
entrevista com a criança sozinha permite que ela diga “a sua” verdade ao
psicólogo que avalia seu funcionamento mental e, em certa medida, sua
credibilidade. A avaliação da atitude da família é necessária para a
elaboração das propostas para assumir a guarda.
DENISE MARIA PERISSINI DA SILVA
254
aduz que o psicólogo não busca
provas, afirmando que tal profissional fornece indicadores da situação familiar, diferenciando
os termos “indicadores” de “provas” no sentido jurídico da palavra:
A perícia estabeleceu o campo de atuação da Psicologia Jurídica na busca da
verdade através da prova pericial. Porém essa verdade que é oferecida aos
autos é sempre parcial e incompleta, não sendo possível apreender toda a
verdade do sujeito, seja devido a aspectos inconscientes que permanecem
inacessíveis à investigação (Barros, 1997), seja pelo distanciamento entre o
discurso racional e objetivo do Direito e o discurso afetivo e subjetivo da
Psicologia. Por esse motivo, como será visto adiante, o trabalho da
Psicologia Jurídica não busca provas (no sentido jurídico do termo), mas,
sim, indicadores da situação familiar que nortearão a atuação do psicólogo,
do advogado, do promotor e do juiz.
Outro aspecto peculiar do trabalho da avaliação ou perícia psicológica, em
especial quando se trata de criança ou adolescente, é que ela não se atém à pessoa enfocada,
qual seja, a vítima ou à criança sobre a qual recai a disputa da guarda, dentre outros exemplos.
253
NATHANSON, Mireille, A Hospitalização das Crianças Vítimas de Abusos Sexuais, in GABEL,
Marceline, GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São Paulo: Ed. Summus,
1997, p. 159.
254
SILVA, Denise Maria Perissini da, Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. A interface da
Psicologia com Direito nas questões de família e infância, 2ª edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2007,
p. 7.
126
Em muitos casos, necessário e conveniente que a entrevista se estenda aos familiares e
pessoas que compõe o ambiente no qual se insere o infante ou adolescente. Nesse aspecto,
oportuna a assertiva de MIREILLE NATHANSON
255
:
A avaliação, assim, demanda um trabalho interdisciplinar, isto é, que a
criança e, quando possível, a família, sejam entrevistados em separado pelos
diferentes interventores; todavia, é desejável que se perceba rapidamente
quem aparece como interlocutor privilegiado da criança, para evitar a
repetição de seu relato.
Oportuno observar que esse interlocutor privilegiado, não por acaso, muitas das
vezes, recai sobre a figura do psicólogo, que este detém o conhecimento necessário para
fazer com que a criança se abra, falando sobre sentimentos desconfortáveis e, em
conseqüência, sobre os fatos que os ensejaram. Quanto à inserção dos familiares e pessoas
que fazem parte do convívio da criança, esta se mostra imprescindível para a correta leitura
dos motivos ensejadores de determinados comportamentos tidos por inadequados, a fim de se
evitar um julgamento precoce, atribuindo os mesmos à índole do agressor ou da vítima. Como
visto nos capítulos anteriores, muitas vezes o atual agressor fora vítima no passado. Assim,
a chamada terapia familiar não atende apenas ao tratamento curativo e preventivo, mas
também à compreensão panorâmica e aprofundada do contexto subjacente, necessária e de
enorme relevância para a tomada de decisões – no caso, pelo magistrado - que influenciarão o
futuro dos personagens envolvidos, como o são a criança e seus familiares. PIERRE
SABOURIN
256
aponta esse método como o único capaz de quebrar tal ciclo perverso:
A terapia familiar particularmente, a terapia que se inspira em teorias
sistêmicas (...). Essa medida, em face das situações incestuosas, parece a
única perspectiva possível para desatar o que pertence ao laço mãe-filho e à
sua evolução possível, para evitar as identificações com o agressor que
muito cedo vão transformar essas crianças estupradas em sedutores que
viverão muito mal a adolescência, a vida sexual, a maternidade ou
paternidade (prostituição, toxicomania, histeria de conversão e psicose
histérica, suicídio e brutalização, até mesmo infanticídio...). Daí a
importância em se evitar o amálgama entre criança-delinqüente e criança-
vítima.
Dentre as ferramentas e procedimentos utilizados pelo psicólogo no âmbito
terapêutico, que pode ser usado também na seara processual, destaca-se o ludodiagnóstico
255
NATHANSON, Mireille, A Hospitalização das Crianças Vítimas de Abusos Sexuais, in GABEL,
Marceline, GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São Paulo: Ed. Summus,
1997, p. 159.
256
SABOURIN, Dr. Pierre, Por que a Terapia Familiar em face do Incesto? in GABEL, Marceline (org.),
Crianças Vítimas de Abuso Sexual, 2ª edição, São Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 170/171.
127
que, segundo DENISE MARIA PERISSINI DA SILVA, tem especialmente relevância na
interação com crianças que, em razão da pouca idade ou por estarem comprometidas
emocionalmente, não respondem a outros métodos de avaliação. Nas palavras da autora, o
ludodiagnóstico consiste em
257
:
...um procedimento de investigação clínica em que o psicoterapeuta procura
estabelecer um nculo com a criança, através da utilização de brinquedos
estruturados (carrinhos, bonecas, animais etc.) e não-estruturados (massinha,
guache, blocos de madeira etc.), com o objetivo de diagnosticar a
personalidade dessa criança. Esse diagnóstico fundamenta-se na obra de
Melanie Klein, que demonstrou a autonomia da criança na expressão de seus
conflitos familiares, angústias e dificuldades através da linguagem específica
dos brinquedos (estruturados e não-estruturados), visando facilitar a
comunicação entre o terapeuta e a criança, já que esta nem sempre dispõe de
uma linguagem verbal para manifestar seus problemas (Affonso, R. M. L.,
Anais do III Congresso Ibero-Americano de Psicologia Jurídica – 1999)
Todos esses instrumentos e procedimentos afetos à atividade do psicólogo
podem e devem ser utilizados quando na sua atuação em processo judicial, eis que
relacionados à sua especialidade, como bem observou KATHLEEN COULBORN FALLER
current best practice for interviewing for sexual abuse upon both the clinical and forensic
traditions
258
. Vê-se, destarte, que a função do psicólogo na seara judiciária, mesmo sem a
hipótese de atuar como interventor na oitiva de crianças e adolescentes, no que concerne
especificamente ao depoimento pessoal da vítima em Juízo, não pode ser considerada tal qual
a do terapeuta, em seu consultório.
Corolário dessa diferença do trabalho do psicólogo enquanto terapeuta, em
relação ao seu labor enquanto perito, bem como das peculiaridades dos métodos por ele
utilizado, é que a atuação do psicólogo possui diversas facetas, fragilizando, assim, a tese de
que sua atuação como “intérprete” ou “entrevistador” no Depoimento Sem Dano implique no
desvirtuamento de suas funções.
Embora a afirmação de que o psicólogo não deve ser chamado a atuar no método
de oitiva Depoimento Sem Dano não se sustente, diante de todo o alhures discorrido, a
257
SILVA, Denise Maria Perissini da, Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. A interface da
Psicologia com Direito nas questões de família e infância, 2ª edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2007,
p. 198.
258
FALLER, Kathleen Coulborn, Forensic and Clinical Interviewer Roles in Child Sexual Abuse, in
FALLER, Kathleen Coulborn, Inverviewing Children abou Sexual Abuse Controversies and Best
Practice, New York: Oxford University Press, 2007, p. 5.
128
delimitação, ou melhor, o estudo acerca da forma como deve ocorrer a intervenção de tal
profissional no processo judicial urge ser realizado. A ausência de regramento a respeito dessa
atividade peculiar e específica tem causado diversas e profundas discussões, originando
confusões e gerando insegurança em todas as partes envolvidas, inclusive nos profissionais da
área. Essa circunstância não advém da proposta alternativa de tomada de depoimento de
infantes, mas existe há muito, desde que os profissionais dessa área passaram a atuar no Poder
Judiciário
259
:
...como a formação acadêmica conferida pela maioria das Universidades
brasileiras volta-se para o modelo clínico, o psicólogo que atua no Poder
Judiciário se depara com funções distintas, porque, primeiro, representa uma
instituição diferente do consultório, e segundo, porque precisa se fazer
compreender no meio jurídico. Forma-se, assim, uma figura brida do
psicólogo, que muitas vezes se esquecendo de que o Direito necessita de
elementos de análise e de decisão psicológicas que não conseguiria obter por
conta própria, sente-se diminuído frente a uma ciência tal estruturada,
normativa e antiga quanto à jurídica (Anaf, C., Anais do III Congresso Ibero-
Americano de Psicologia Jurídica - 1999)
Volvendo às questões enfrentadas acerca da imprescindível normatização da
atividade do psicólogo na seara judiciária, conclui-se ser esta a solução para a problemática
relacionada à intersecção entre o Direito e a Psicologia.
4.4. OUTRAS EXPERIÊNCIAS RELEVANTES
Convém repisar que as tentativas de melhorias ou soluções para garantir o
adequado atendimento à vítima durante o trâmite do processo judicial, seja criminal, da área
de família, ou de infância e juventude, não se atêm apenas ao método Depoimento Sem Dano.
Este, como visto, tem sido sem dúvida o de maior impacto e repercussão, fomentando a
salutar discussão e estudo sobre o tema. No entanto, paralela e simultaneamente, diversos
outros projetos em andamento, que são colocados em prática sob forma de projetos pilotos, e
que vêm produzindo resultados positivos.
Muitos desses projetos, especificamente quanto à tomada de depoimento de
crianças e adolescentes em Juízo, estão compilados em cartografia elaborada por BENEDITO
259
SILVA, Denise Maria Perissini da, Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. A interface da
Psicologia com Direito nas questões de família e infância, 2ª edição, São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2007,
p. 29.
129
RODRIGUES DOS SANTOS e ITAMAR BATISTA GONÇALVES
260
, referido no
capítulo 3. Muitos, contudo, não se fazem presentes em tal trabalho, por não tratarem
especificamente da oitiva de crianças e adolescentes no processo, mas que, igualmente, são
destaques quando o assunto concerne à Justiça frente ao abuso sexual e ao atendimento às
crianças e adolescentes em geral. Alguns foram pinçados para serem objetos dos tópicos a
seguir.
4.4.1.Projeto Mãos que Acolhem
Basicamente, o projeto Mãos que Acolhem transfere a estrutura física e pessoal
bem como a metodologia do método Depoimento Sem Dano, à etapa anterior ao processo
judicial criminal, que consiste no inquérito policial. Assim, a oitiva da criança e adolescente
não é realizada pelo Delegado de Polícia, na presença do escrivão, e sim por meio de
psicólogo ou assistente social em sala adequada à sua linguagem e idade, enquanto a
autoridade policial assiste a tudo por sistema audiovisual.
O projeto, de autoria do magistrado então titular da Vara da Infância e Juventude
da Comarca de Ariquemes, em Rondônia, entrância, Dr. Rinaldo Forti Silva, encontra-se
contemplado pela cartografia referida anteriormente, na seção que concerne a guia de fontes,
especificamente acerca de páginas de interesse na Internet. Nessa página, o link de
navegação para o sítio do Tribunal de Justiça de Rondônia, que contém notícia acerca da
implantação do projeto, em 2008
261
.
A grande relevância do projeto é vislumbrar que o envolvimento da criança e do
adolescente com as instituições públicas, desde o momento em que o abuso sexual, ou o crime
de outra natureza, é revelado, não se inicia com a oitiva da criança ou e adolescente pelo juiz.
Ao contrário, como visto no capítulo 2 deste estudo, a tomada de depoimento em âmbito
judicial constitui, em sua maioria, na etapa final de longo caminho.
260
SANTOS, Benedito Rodrigues dos e GONÇALVES, Itamar Batista, Depoimento Sem Medo (?) – Culturas
e Práticas Não-Revitimizantes: Uma Cartografia das Experiências de Tomada de Depoimento Especial de
Crianças e Adolescentes, 2
a
edição, São Paulo: Childhood Brasil (Instituto WCF-Brasil), 2009.
261
SANTOS, Benedito Rodrigues dos e GONÇALVES, Itamar Batista, Depoimento Sem Medo (?) – Culturas
e Práticas Não-Revitimizantes: Uma Cartografia das Experiências de Tomada de Depoimento Especial de
Crianças e Adolescentes, 2
a
edição, São Paulo: Childhood Brasil (Instituto WCF-Brasil), 2009, p. 194.
130
A oitiva na Delegacia não pode ser considerada a etapa inicial, que antes as
crianças e adolescentes foram ouvidas e questionadas pelo parente, amigo adulto ou
professor, então pelo conselheiro tutelar, comissário, assistente social, médico, enfermeiro,
dentre outros. Contudo, em conformidade com o sistema legal vigente, a oitiva pela
autoridade policial constitui fase indispensável e, muitas vezes, essencial para o deslinde do
caso. É que o relatório formalizado ao fim do inquérito policial, bem como as provas ali
produzidas, indicam o caminho a ser seguido pelo Ministério Público se haverá denúncia,
com início do processo judicial criminal, se deverá o inquérito continuar, na busca de maiores
provas, ou se ocorrerá o arquivamento do inquérito, por ausência de provas suficientes a
embasar a ação penal.
Diante desse quadro, a humanização da oitiva das crianças e dos adolescentes é
de suma importância, a fim de evitar ou de minimizar traumas, já que, se o ambiente forense
se mostra hostil às crianças e adolescentes, a Delegacia de Polícia é ainda mais inadequada e
despreparada para receber infantes, descrita pelo autor do projeto em enfoque, RINALDO
FORTI SILVA como de aspecto nada acolhedor, presenciando e permanecendo no mesmo
ambiente de pessoas algemadas, feridas, embriagadas, drogadas. Agressores e agredidos,
ladrões e toda sorte de infratores, não raro, dividem a mesma sala, aguardando serem
ouvidos...”
262
Obviamente não é essa a expectativa da criança ao finalmente revelar o abuso a
um adulto. Sua esperança é receber a tão almejada proteção, livrando-se da situação que lhe
impingiu tanto sofrimento, e causador de constrangimento, vergonha, culpa, medo, e outros
sentimentos conflituosos. Comumente, a criança abusada não compreende que esta situação
configura um crime que, quando noticiado, enseja a atuação do sistema penal punitivo
vigente. Na lição do autor HAMON HERVÉ, “o pedido externo é antes de tudo um pedido
de proteção que, em nome da lei, tem formulação no mínimo muito complexa, à medida que
os fatos revelados e comunicados são igualmente crimes ou delitos suscetíveis de ações
judiciais por iniciativa do procurador da República”
263
.
262
SILVA, Rinado Forti, Projeto Mãos que Acolhem, Ariquemes/RO, 2008.
263
HAMON, Hervé, Abordagem Sistêmica do Tratamento Sociojudiciário da Criança Vítima de Abusos
Sexuais Intrafamiliares, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São
Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 181.
131
Uma vez que sua oitiva na Delegacia ainda é imprescindível, tornar a passagem
da criança ou adolescente por essa etapa menos dolorosa e menos constrangedora parece ser a
melhor solução no momento. Como bem ressaltou o autor do projeto, RINALDO FORTI
SILVA, “se o objetivo é minimizar a extensão do dano, contendo sua ação deletéria na psique
da vítima, afigura-se tardia a intervenção apenas na fase judicial, quando todas ou quase todas
as consequências danosas se instalaram”
264
. Destarte, o que se busca por meio do projeto
aqui enfocado é a “prevenção daqueles (danos) originados da falta de estrutura dos órgãos
primários de atendimento, tais como Delegacia de Polícia, Conselho Tutelar, I.M.L....”
265
, ou
seja, prevenir dos danos causados pelo que se convencionou denominar violência
institucional.
Outro aspecto inovador do projeto é a sua não limitação somente à colheita do
depoimento da vítima. De fato, o projeto demonstra que o enfoque não se limita à produção
probatória para fins criminais, mas externa genuína preocupação com o bem estar da vítima
ou da testemunha criança ou adolescente. Visa tornar mais humano o atendimento realizado
pelas instituições públicas, e, para tanto, inclui o acompanhamento do psicólogo, da assistente
social ou do pedagogo que recebeu a criança até o I.M.L., para realização do exame médico,
a fim de proporcionar a ela maior conforto e segurança. Dessa forma, busca o projeto
concretizar a ideia, ainda recente, mas contempladora da realidade inexorável, de que o
sistema penal não é um fim em si mesmo, como esclarece HAMON HERVÉ
266
:
Os agentes sociais e médicos então confrontam-se diretamente com o
sistema judiciário penal. Os movimentos militantes que reivindicaram ões
judiciais penais sistemáticas aumentaram ainda mais a confusão do pedido
ao aparelho judiciário; as ações judiciais penais tornaram-se um fim em si,
em nome da ilusão terapêutica do judiciário e em lugar de um apoio
educativo e terapêutico.
4.4.2. CHILD ADVOCACY CENTERS - CACs
Os Child Advocacy Centers centros de defesa da criança, também conhecidos
por CACs, constituem-se locais especialmente criados e mantidos para atendimento de
crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas em casos criminais, especialmente de abusos
264
SILVA, Rinado Forti, Projeto Mãos que Acolhem, Ariquemes/RO, 2008.
265
SILVA, Rinado Forti, Projeto Mãos que Acolhem, Ariquemes/RO, 2008.
266
HAMON, Hervé, Abordagem Sistêmica do Tratamento Sociojudiciário da Criança Vítima de Abusos
Sexuais Intrafamiliares, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São
Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 181/182.
132
sexuais infantis. O atendimento é global, significando que todas as facetas que envolvem o
abuso sexual infantil, concernentes ao sistema penal para punição do agressor bem como
atinentes à proteção da vítima e de seus familiares, são contemplados pelo CAC. Isso reduz
drasticamente a repetição de perguntas embaraçosas e exames constrangedores, bem como
evita que a criança e seu responsável tenham que peregrinar por diversas instituições, cada
qual com seu procedimento e sua prática, muitas vezes inadequados para as peculiares
características da vítima.
Embora o trabalho em rede seja erigido à solução para o atendimento aos casos
de abuso sexual infantil, como enfatiza HAMON HERVÉ ao afirmar que “o trabalho
pluridisciplinar, que é apregoado de modo quase mágico por todas as circulares ministeriais,
revela-se difícil de estabelecer e implica um rigor no manejamento dos conceitos e dos
campos respectivos”
267
, sua concretização tem encontrado obstáculos e barreiras. Assim, a
concentração dos profissionais de diversas áreas num mesmo local, e sob umaliderança ou
chefia, como ocorre no CAC, configura elemento essencial para que o trabalho em rede
realmente funcione, ao propiciar ambiente para que a atuação de todos flua efetivamente em
conjunto.
Cediço entre os profissionais atuantes na área que o atendimento de cada caso de
abuso sexual infantil deve ser peculiar, de forma multidisciplinar com todos os profissionais
falando a mesma linguagem e seguindo pelo mesmo caminho daí o termo trabalho em rede.
Assim, o enfoque multidisciplinar na resolução de casos de abuso sexual infantil não significa
a intervenção de profissionais e especialistas de diversas áreas, cada um no seu habitat,
agindo de forma individuada e desarmônica. Ao contrário, o trabalho em rede traduz o
envolvimento de vários atores, de forma orquestrada, o que pressupõe interação constante,
com troca de informações permanente, para que todos sigam, cada qual na sua seara, por um
mesmo caminho.
Exemplificativamente, o NCAC, the National Children’s Advocacy Center, em
Huntsville, Alabama USA, disponibiliza os seguintes programas: the multidisciplinary team
(MDT), consistente em equipe multidisciplinar voltada ao atendimento da criança para atos
267
HAMON, Hervé, Abordagem Sistêmica do Tratamento Sociojudiciário da Criança Vítima de Abusos
Sexuais Intrafamiliares, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São
Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 186.
133
concernentes ao processo judicial criminal; clinical services, por meio do qual são oferecidos
serviços médicos e psicológicos voltados não à avaliação das crianças e seus familiares para o
processo criminal, mas ao atendimento terapêutico, para ajudá-los a passar por esse momento,
e superá-lo; family advocate, definido como um programa de suporte para o familiar ou
responsável pela criança abusada, apoiando-o para que ele possa adequadamente apoiar a
vítima; stop child abuse and neglect (SCAN), de cunho preventivo, visa, por meio de
palestras, orientar e ensinar as crianças a não permitir que o abuso se inicie, ou que se
desenvolva; healthy families North Alabama, serviço voluntário de visitas às residências de
pais, desde o nascimento do bebê até sua inserção no jardim de infância, para orientação
quanto à educação, bem como prover suporte emocional aos pais nesta fase inicial da vida da
criança ; Just for dads, programa voltado aos pais ou responsáveis que não detêm a guarda de
seus filhos, objetivando orientá-los quanto à qualidade de tempo que devem passar com seus
filhos, bem como quanto à prestação alimentícia; the parent library, biblioteca voltada a pais
e profissionais interessados nos assuntos relativos a cuidados com a infância, a ser pai ou mãe
solteiros, paternidade, cuidados especiais, questões escolares, dentre outros, contendo livros,
vídeos e DVDs
268
.
Este CAC demonstra que é possível tornar real e concreta a perspectiva que
temos hoje, em nosso País, apenas como ideal. A justificativa para que ainda não exista, no
Brasil, de forma oficializada e padronizada, versão nacional de CACs, não se fulcra na
ausência ou carência de recursos financeiros. Em todo País projetos dessa natureza sendo
implementados, de autoria individual ou de um grupo, mas de maneira isolada. Há a iniciativa
do Judiciário, outras de programas municipais ou estaduais, e ainda programa federal de
combate ao abuso sexual infantil, com envolvimento de profissionais das mais diversas áreas,
dentre médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, bacharéis em Direito,
mencionando-se ainda os voluntários. Urge que tais investimentos e projetos sejam
unificados, para que, em cada município exista um centro especializado para atendimento de
crianças e adolescentes envolvidos, de alguma forma, em abusos sexuais, ou em crimes de
outra natureza.
Em Cuba, todos os municípios são contemplados com um CAC, denominado
Centro de Protección a Niñas, Niños y Adolescentes, sendo destacada a utilização de animais
268
Informações obtidas em folder da NCAC, também disponíveis em <www.nationalcac.org>. Acesso em: 08
set. 2010.
134
como cachorros e cavalos
269
, a fim de reduzir a tensão das crianças, favorecendo a
comunicação com o interlocutor, restando demonstrado ser possível a instalação e
funcionamento dos centros de atendimento à criança, independentemente do regime político
adotado, da cultura ou do poderio econômico do país.
4.4.3. Competência Unificada da Infância e Juventude e Crimes contra
Crianças e Adolescentes
A necessidade de visão panorâmica de todos os aspectos que envolvem o abuso
sexual infantil e intrafamiliar origina e motiva alterações não apenas concernentes à
adequação das metodologias empregadas no processo judicial, ou pelas instituições que
também atuam nesses casos, como são a Delegacia de Polícia, Conselho Tutelar, I. M. L,
abrigos, dentre outros. As peculiaridades características do abuso sexual infantil têm ensejado
modificações estruturais no Poder Judiciário, notadamente no que respeita à competência para
processar e julgar os feitos criminais que tem por objeto delitos de natureza sexual que tem
por vítima crianças ou adolescentes.
Comumente, para melhor desempenho de suas funções, o trabalho forense é
dividido, a fim de ser distribuído entre os diversos magistrados que compõe o Poder
Judiciário, seja Federal ou Estadual, seja da Justiça Comum ou da Especializada. A infância e
juventude bem como a maciça parte dos crimes cometidos contra crianças e adolescentes é da
competência da Justiça Comum, dita Estadual. Assim, por meio do Código de Organização
Judiciária, de âmbito estadual, o Poder Judiciário de cada Estado distribui a jurisdição,
dividindo-as em partes que se denominam Juízos ou Varas, de titularidade de um magistrado
específico. Os critérios utilizados para a divisão e distribuição do serviço forense comumente
consistem na natureza da matéria a ser enfrentada na demanda, sendo a maior diferenciação
entre área cível e criminal. Na área cível, divisão em relação aos processos afetos ao
Direito de Família, de Falências e Concordatas, de Sucessões, de feitos contra a Fazenda
Pública, de Executivos Fiscais e Precatórios, tudo de acordo com as características de cada
Comarca e Estado. Os assuntos concernentes à infância e juventude são objeto de apreciação
pelos Juizados da Infância e Juventude, sendo considerado assunto especial. Em muitas
269
MEDINA, Enrique Pérez. Experiência de Cuba sobre Culturas y Prácticas Alternativas de Toma
Especial de Declaración Testimonial de Niños y Adolescentes. In: I SIMPÓSIO DE CULTURAS E
PRÁTICAS NÃO REVITIMIZANTES NA TOMADA DE DEPOIMENTOS DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES EM JUÍZO, 2009, Brasília. Disponível em
<http://www.wcf.org.br/simposio_internacional.htm>. Acesso em: 17 mar. 2010.
135
Comarcas, porém, costumam-se cumular as competências da Vara Cível com a Infância e
Juventude, embasando-se no critério volume numérico de processos.
No âmbito criminal, na grande maioria das vezes, a competência para julgar
delitos é atribuída aos Juízos Criminais, sem qualquer distinção. Ocorre que determinados
feitos, em razão da natureza do delito ou das peculiaridades das vítimas, para melhor
resolução, requerem certa especialização, demandando o trâmite em Juízos criados
especificamente para tais casos. Exemplificativamente, na capital rondoniense vara
especializada para a Execução Penal, dois Juízos afetos aos Crimes Dolosos contra a Vida,
chamados Varas do Júri, bem como Vara dos Delitos de Tóxicos, sendo que recentemente foi
alterada a competência da antes denominada Vara dos Crimes contra Menores, para abarcar
também o atendimento à mulher vítima de violência doméstica
270
.
Movimento atual e crescente, mas não unânime, consubstancia-se na ideia da
alteração da competência para processar e julgar crimes que tenham por vítima crianças e
adolescentes, transferindo-a das Varas Criminais para as Varas da Infância e Juventude.
Dentre os Tribunais Estaduais que adotaram a medida, ainda que de forma experimental,
citam-se os Tribunais de Justiça do Mato Grosso do Sul
271
, do Rio Grande do Sul
272
e o de São
Paulo, tendo EDUARDO REZENDE MELO, magistrado deste Estado, preconizado, em
palestra proferida em Simpósio, que a unificação em enfoque constitui meio de assegurar
“maior especialização da justiça e de enfrentamento dos desdobramentos criminais e
protetivos de situações de abuso, permitindo unificação procedimental sem prejuízo ao
princípio do juiz natural e para evitar a repetição de atos em razão da segmentação do Sistema
de Justiça”
273
. Os fundamentos para a unificação da competência para processamento e
julgamento dos feitos criminais em que são vítimas crianças e adolescentes são diversos,
destacando-se a especialização e vocação do magistrado titular da infância e juventude para
270
Resolução n. 017/08-PR, do Tribunal de Justiça de Rondônia, publicado no Diário da Justiça 167/08, em 08
de setembro de 2008. Disponível em <http://www2.tj.ro.gov.br/novodiario/07A08/2008/20080908314-
NR167.pdf>. Acesso em: 09 mar. 2010.
271
Vide Resolução n. 534, de 17 de outubro de 2007, podendo ser encontrada no Diário da Justiça 1603, 19
de outubro de 2007 - Mato Grosso do Sul. Disponível em <www.tjms.jus.br.>. Acesso em: 09 mar. 2010.
272
Para maiores informações, vide <http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/docs/INFORMACOES/RELA%C7%C3O+DE+
%D3RG%C3OS+E+ENTIDADES+QUE+ATUAM+JUNTO+AOS+JIJS.HTM.> Acesso em: 09 mar. 2010.
273
MELO, Eduardo Rezende. Crianças e Adolescentes Vítimas e Testemunhas Análise Comparativa da
Normativa Internacional para Aprimoramento do Sistema de Garantia de Direitos Brasileiro. In: I SIMPÓSIO
DE CULTURAS E PRÁTICAS NÃO REVITIMIZANTES NA TOMADA DE DEPOIMENTOS DE
CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM JUÍZO, 2009, Brasília. Disponível em
<//www.wcf.org.br/pdf/Eduardo_Rezende.pdf>. Acesso em: 17 mar. 2010.
136
lidar com as peculiaridades dos infantes, como se conclui do afirmado por HERVÉ
HAMON
274
:
Ora, se o juiz de menores
275
está habituado a trabalhar em interação
constante com parceiros que pertencem a classes diferentes, seus colegas
magistrados, mais resguardados do exterior, podem perfeitamente continuar
a pensar num modelo linear (notadamente, o recurso à perícia pelo juiz de
instrução
276
). Paradoxalmente, a grande dificuldade, no momento, para o juiz
de menores é não poder falar de modo suficientemente técnico e estratégico
com seus colegas magistrados que exercem outras funções e são capazes de
intervir no tratamento judiciário (juiz de paz, vara de família para as
prescrições etc.). A formação inicial e contínua da Escola da Magistratura
leva cada vez mais em conta essa dificuldade.
Anote-se que, não raro, a capacitação e treinamento dos magistrados para atuar
nesta ou naquela área, particularmente no que atine ao tema em discussão, para atuar com
crianças e adolescentes, seja como vítimas de negligência, abandono, maus-tratos, seja como
vítimas de abuso sexual, é simplesmente inexistente. Salutar se faz, assim, a assertiva final da
passagem acima transcrita, acerca da formação e aperfeiçoamento do magistrado,
especialmente quando se trata de assunto grave e complexo como o em comento, eis que,
quanto ao Juiz de Direito, como bem esclarecem CELSO CORNELIO PEREIRA e MARIA
INÊS SOARES OLIVEIRA “seus profundos conhecimentos jurídicos, sua formação objetiva,
não o preparam para intervir e interagir adequadamente com crianças vitimizadas”
277
.
Outra vantagem decorre da estruturação que, em tese, aparelha os Juizados da
Infância e Juventude, notadamente de equipe multidisciplinar, como salienta referido autor
278
:
Para a realização desse trabalho de acompanhamento da família na crise e o
estabelecimento de um dispositivo de individuação da criança, o juiz de
menores, ao contrário dos outros magistrados, dispõe de um amplo leque de
equipes pluridisciplinares no quadro judiciário. Ele dispõe, igualmente, do
recurso aos interventores externos no campo judiciário e poderá continuar a
trabalhar em relação com todos os parceiros habituais polivalência de
setor, proteção materna e infantil, saúde escolar, hospitais, setor
intermediário de pediatria-psiquiatria, setor psiquiátrico adulto etc. Esse
274
HAMON, Hervé, Abordagem Sistêmica do Tratamento Sociojudiciário da Criança Vítima de Abusos
Sexuais Intrafamiliares, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São
Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 187.
275
O termo juiz de menores, no direito pátrio, corresponde ao juiz da Infância e Juventude.
276
O termo juiz de instrução refere-se ao equivalente ao juiz criminal, no âmbito jurisdicional brasileiro.
277
PEREIRA, Celso Cornelio e OLIVEIRA, Maria Inês Soares. A Atenção e o Cuidado com Crianças
Vítimas de Violência Sexual no Atendimento Judicial. Porto Velho, 2007, p. 5.
278
HAMON, Hervé, Abordagem Sistêmica do Tratamento Sociojudiciário da Criança Vítima de Abusos
Sexuais Intrafamiliares, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São
Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 186.
137
trabalho, em interação constante, expõe logo de início a difícil questão do
trabalho pluridisciplinar.
A maior razão, contudo, para a união das competências consiste na necessidade
de resolução do caso como um todo, sem decisões conflitantes ou desarmônicas em relação a
uma e outra faceta da demanda. É que o abuso sexual infantil origina questões que vão além
da necessidade de responsabilização criminal do agressor, como o acolhimento da vítima em
instituições quando verificado que vinha sofrendo negligência ou maus-tratos pelos seus pais
ou responsáveis, afastamento do suposto agressor do lar, perda ou suspensão do poder
familiar, guarda, tutela e curatela, alimentos, dentre outros, sendo estas questões
intrinsecamente imbricadas, muitas vezes, com o que vem sendo colhido e produzido no
processo criminal, como demonstra HERVÉ HAMON
279
:
De fato, uma das indicações da internação, mesmo se o pai estiver preso, é a
ausência de um laço suficiente de proteção da mãe e de um trabalho
relacional possível. Também é evidente que a co-incriminação da mãe pelo
juiz de instrução, combinada ou não com o encarceramento ou com a
libertação sob controle judiciário. Com freqüência acarretará que a criança
vá para um lar adotivo.
Pode-se concluir, desta feita, que, ao cindir-se a competência para o
processamento e julgamento do suposto abusador, réu no feito criminal, e a atinente a
questões da proteção aos direitos da criança e adolescente vítima do abuso, fazendo com que
os processos tramitem cada qual sob o comando de um magistrado, permite-se que ocorram
decisões conflitantes e desarmônicas, tais como o desacolhimento
280
da vítima para que
retorne ao lar concomitante à soltura do réu, suposto agressor, em decisão concessiva de
liberdade provisória, bem como enseja-se repetição de atos processuais como depoimentos,
estudos sociais, laudos avaliativos, dentre outros. Em razão disso, asseverou ANTONIO
CEZAR LIMA DA FONSECA, ao tratar do processo que tenha por objeto o abuso sexual
infantil, que
“a competência para tratar do assunto, na justiça criminal, deveria ser do Juizado da Infância e
da Juventude, e não de Varas Criminais como tem ocorrido”
281
.
279
HAMON, Hervé, Abordagem Sistêmica do Tratamento Sociojudiciário da Criança Vítima de Abusos
Sexuais Intrafamiliares, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São
Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 185.
280
Autorização judicial para que a criança ou adolescente saia da instituição de Acolhimento e seja entregue à
responsabilidade de um guardião.
281
FONSECA, Antonio Cezar Lima da. Crimes contra a Criança e o Adolescente, Porto Alegre: Ed. Livraria
do Advogado, 2001, p. 143.
138
Importa salientar que a unificação das competências da área criminal para
processamento e julgamento dos casos em que são vítimas crianças e adolescentes e da área
afeta à infância e juventude não é consenso entre os operadores do Direito, ao contrário,
forte corrente que entende ser contraproducente tal concentração, como ressalva HERVÉ
HAMON
282
:
O juiz de menores, quando uma instrução penal se desenvolver
concomitantemente à sua própria ação, terá de tratar com prudência a
condução do seu dossiê de assistência educativa. Se ele negar a realidade
penal e o desenrolar paralelo da instrução, corre o risco de passar ao largo
das preocupações primordiais da família. Se, ao contrário, ele se encontra
exageradamente “em sintonia” com a instrução, arrisca-se (e com ele a
equipe educativa que delegou) a ser invalidado e funcionará como apoio
logístico aos próprios rituais de inclusão do juiz de instrução e não mais
como garantia de apoio para a criança e sua família. O juiz de menores
deverá encontrar a posição de terceiro entre dois grandes sistemas: o sistema
familiar que repousa nos ritos de pertencimento e o sistema penal judiciário,
que repousa nos ritos de inclusão
A passagem anteriormente citada revela que, embora não esteja consolidada a
percepção de que a unificação das competências em enfoque seja a melhor forma de se
desempenhar a função jurisdicional nos casos criminais que envolvem crianças e adolescentes
na posição de vítimas, certa é a imprescindibilidade de intercomunicação permanente entre os
magistrados atuantes em ambos os Juízos, sem o que o trabalho interdisciplinar “não poderia
ser suficiente se, por outro lado, um trabalho plurifuncional não fosse efetuado de modo
preciso entre os diferentes magistrados envolvidos...”
283
.
Esta interação não pode ser produto unicamente do bom relacionamento entre os
colegas magistrados, ou da vocação e esmero dos Juízes em desempenhar da melhor e mais
adequada forma possível o seu papel de pacificador por meio do exercício da sua função
jurisdicional, ao contrário, deve ser consequência de obediência a procedimentos e comandos
legais, quer por meio de leis federais atinentes ao processo penal ou do Estatuto da Criança e
do Adolescente, quer por meio de resoluções ou diretrizes judiciais editadas pelos Tribunais
de Justiça a que são vinculados.
282
HAMON, Hervé, Abordagem Sistêmica do Tratamento Sociojudiciário da Criança Vítima de Abusos
Sexuais Intrafamiliares, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São
Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 185.
283
HAMON, Hervé, Abordagem Sistêmica do Tratamento Sociojudiciário da Criança Vítima de Abusos
Sexuais Intrafamiliares, in GABEL, Marceline (org.), Crianças Vítimas de Abuso Sexual, edição, São
Paulo: Ed. Summus, 1997, p. 187.
139
Destarte, seja por meio da unificação das competências para processamento e
julgamento dos feitos criminais para responsabilização criminal do suposto agressor e dos
feitos relativos à infância e juventude, seja por meio de intercâmbio de informações entre os
Juízos com competências distintas, mas imbricadas, parece acertado que deve haver a
intercomunicação entre os que detêm poder decisório sobre os processos que constituem tão
somente facetas diversas do mesmo caso, incidindo efeitos sobre as vidas das mesmas
pessoas, relevando destacar que se trata de criança e adolescente vítima de abuso sexual e
outras sortes de maus-tratos e abandono, com direito à proteção integral consagrada pela
Constituição Federal.
CONCLUSÃO
Como se observou durante todo o trabalho, o abuso sexual infantil possui
nuances complexas, com peculiar característica de envolvimento de questões emocionais e
psicológicas, tanto na motivação do agressor, quanto na resposta da vítima, importando
salientar que muitas vezes seno seio familiar, por quem deveria proteger a vítima, ou seja,
seu pai, irmão, tio, avô, padrasto ou outra pessoa próxima, sendo recorrente ao ponto de ser
designado abuso intrafamiliar. Em virtude dessas particularidades, o abuso sexual infantil
gera consequências que ultrapassam a perpetração do crime em si, nos aspecto temporal e
espacial, com efeitos que alcançam não só a vítima, mas todo o núcleo familiar e até social em
que inserida a criança e adolescente abusada, e que se perpetuam na psique desta até a idade
adulta, principalmente quando não é dispensado a ela e seus próximos o tratamento adequado,
dando azo a ciclo perene de abusos, em que o abusado transmuda-se em abusador.
140
Os dados epidemiológicos pesquisados demonstram que o desenvolvimento
civilizatório não implicou no almejado corolário da diminuição dos casos de abuso sexual
infantil, também conhecido pela sigla ASI. Ao revés, o mundo contemporâneo tem tornado a
compreensão e deslinde dos casos de ASI ainda mais complexas, ao agregar elementos antes
inexistentes ou pouco incidentes, com desenvolvimento de novas formas de patologias,
exemplificativamente a pedofilia e a síndrome da alienação parental, fruto das cada vez mais
constantes separações e divórcios, em que um dos genitores, com o propósito de atingir o
outro, incute memórias inverídicas em seus próprios filhos, inclusive o falso abuso sexual.
Diante desse cenário, verifica-se que extirpar ou ao menos tratar as
consequências do fenômeno abuso sexual infantil não é simples. Esse mister foi incumbido,
no Estado Democrático de Direito Brasileiro, ao Estado-Juiz, por meio do Poder Judiciário e
órgãos afins, que constituem o que denomina-se Justiça. A atividade precípua do Judiciário,
para concretização da Justiça ocorre por meio da aplicação das leis. Estas são elaboradas pelas
Casas Legislativas, que, após aprovadas pelo Poder que integram, e sancionadas pelo Chefe
Maior do Executivo Federal, passam a vigorar, sendo obedecidas pelos aplicadores do
Direito. Dentre as normas legais, encontram-se as processuais e procedimentais, que ditam o
caminho a seguir pelos atores no âmbito forense no atendimento dos casos judiciais, como são
os de abuso sexual infantil.
O Brasil é considerado avançado em termos de edição de normas, notadamente
em virtude da promulgação da Constituição Federal em 1988, seguida da publicação do
Estatuto da Criança e do Adolescente, por meio da qual as crianças e adolescentes passaram à
posição de sujeitos de direitos, a quem deve ser dispensado especial atenção e cuidado por
todos, inclusive pelas instituições públicas, em razão de sua particular condição de pessoas em
desenvolvimento, com adoção da chamada doutrina da proteção integral. Não obstante, os
estudos revelaram que essa tutela não tem sido vivenciada na prática, eis que referidas leis
trazem conceitos abertos, carecendo o sistema legal de normas processuais e procedimentais a
nortear a conduta dos envolvidos no atendimento dos casos de abuso sexual infantil,
especialmente aqueles que devem interagir com a vítima.
Em aplicação das normas específicas de atuação vigentes, os profissionais
envolvidos no âmbito jurisdicional têm focado, quase que exclusivamente, na busca da
141
responsabilização criminal do suposto agressor, que, embora possua relevância ao
proporcionar a paz social pela satisfação do desejo de Justiça bem como ao precaver novas
perpetrações de crimes ao desestimular possíveis abusadores, abrange apenas parte das
medidas que devem ser tomadas para o enfrentamento do abuso sexual infantil. O
fornecimento de condições para que a vítima e seus entes próximos superem os traumas
decorrentes do abuso e da revelação do mesmo, bem como a tomada de medidas protetivas
imediatas, como a retirada do suposto abusador do lar do infante, ou da alteração da sua
guarda para um parente próximo ou mesmo o seu acolhimento em instituições, quando
verificado que o seio familiar anterior proporcionava condições para a ocorrência do ASI,
configurando abandono ou maus tratos, são igualmente ou até mais relevantes quando se trata
da aplicação da doutrina da proteção integral. Não obstante, na ausência de normas
específicas, tem se negligenciado esses aspectos, ou quando muito, as providências tomadas
são desarmônicas com as decisões proferidas no âmbito da responsabilização criminal do
abusador.
Outra conseqüência da ausência de normas específicas de cunho procedimental é
que o atendimento não só em Juízo, mas na fase extrajudicial, seja na Delegacia de Polícia, no
I. M. L, no hospital, na Escola, no Conselho Tutelar ou Comissariado de Menores, tem se
pautado pelas regras procedimentais gerais e comuns, que não ponderam a particular condição
da vítima em razão de sua idade e desenvolvimento emocional, o que vem causando danos e
sofrimento, perpetrados, ainda que desprovido de intenção, por quem deveria proteger a
vítima – a esta nova violência convencionou-se chamar violência institucional ou secundária.
Muitos operadores do Direito, em especial os membros do Judiciário brasileiro
em parceria com profissionais das áreas afins, impulsionados por vivenciar em seu cotidiano
as mazelas advindas das atuais medidas aplicadas, constatando que são insatisfatórias para
garantir os direitos da criança e do adolescente, vem formulando e executando novas medidas,
no intuito de tutelar de forma efetiva os direitos consagrados pela doutrina da proteção
integral. Destaca-se, no cenário nacional, o denominado Depoimento Sem Dano, típico
exemplo de método alternativo formulado nessas circunstâncias.
De autoria de JOSÉ ANTONIO DALTOÉ CEZAR, magistrado gaúcho, a
proposta de nova forma de tomada de depoimento de crianças e adolescentes em Juízo tem se
revelado eficaz tanto na melhoria da produção probatória para instrução do processo criminal
142
quanto na mitigação dos danos antes infligidos aos agora submetidos à inquirição. Como toda
inovação, o método tem sido objeto de ressalvas que, verificou-se, não se prestam a invalidá-
lo, nem a justificar sua não transformação em lei, por meio de projeto já em trâmite no
Senado Federal.
No que toca aos aspectos jurídicos do processo criminal, aferiu-se que o projeto
obedece a todos os princípios norteadores do Processo Penal, notadamente os do contraditório
e ampla defesa. Contempla, também, os direitos consagrados pela Carta Maior e Estatuto da
Criança e Adolescente, respeitando-os como sujeitos de direitos, e garantindo sua dignidade,
buscando minimizar ao máximo os constrangimentos e sofrimentos que podem decorrer do
seu necessário depoimento, em razão das normas que fundam o Estado Democrático de
Direito Brasileiro.
Sob o prisma da Psicologia, o exame das principais críticas revelou que algumas
fundam-se não na invalidação do método, mas apenas afirmam que o Depoimento Sem Dano
deixa muitas questões não resolvidas. Realmente, a oitiva diferenciada ocorre apenas em
Juízo, sendo, portanto, tardia, tendo sido esta questão inclusive objeto de ajuste no projeto de
lei em andamento no Senado, com previsão da oitiva antecipada, ainda na fase inquisitorial.
Quanto à necessidade da vítima calar sobre o fato, como forma de defesa, aferiu-se que entre
os Psicólogos não consenso acerca dessa assertiva, entendendo muitos dos estudiosos no
assunto ser saudável que a vítima fale, desde que receba a devida validação, observando os
autores que não se pode esquecer que a Psicologia, por sua própria natureza, não é estanque,
variando os comportamentos pós abuso e, portanto, as medidas a serem tomadas em cada
caso, de acordo com a reação de cada vítima.
O tratamento da vítima e sua família, indubitavelmente, possui enorme relevo, a
fim de que superem os traumas decorrentes do ASI e de sua revelação, tanto para a efetiva
proteção dos direitos da criança e adolescente, quanto para a prevenção contra novos abusos,
eis que comumente a vítima do abuso torna-se abusador quando adulto ou até mesmo na
adolescência. Realmente, como enfatizado pela crítica, o tratamento não é contemplado pelo
Depoimento Sem Dano, mas não se pode esquecer que o método não tem a pretensão de
resolver todos os problemas afetos ao enfrentamento do abuso sexual infantil, sendo os fins a
que se propõe o projeto satisfeitos, quais sejam, melhoria da colheita da prova no processo
143
criminal, e atenuação do sofrimento e constrangimento que costuma acometer a vítima do ASI
enquanto presta depoimento em Juízo.
A previsão de única sessão para colheita das informações da vítima realmente
consiste em problema se a vítima preferir calar naquele momento, podendo ensejar inclusive a
absolvição do acusado. Contudo, o projeto de lei em tramite no Senado traz em seu bojo o que
pode ser reputada solução para esta questão, prevendo a possibilidade de reinquirição.
Por fim, após detida análise das normas pertinentes, bem como da doutrina
correspondente, conclui-se que uma das mais contundentes insurgências, lastreada em suposto
desvirtuamento da função do psicólogo, não se sustenta. muito a atuação do psicólogo no
Poder Judiciário difere abissalmente da do terapeuta, e jamais houve qualquer
questionamento. As leis concernentes ao trabalho do psicólogo permitem diversificadas
espécies de atividades, não limitando-o ao consultório ou trabalho terapêutico. Por outro lado,
diante dos elementos que compõe o cenário da tomada do depoimento de crianças e
adolescentes em Juízo, em especial as que presumidamente estão sob efeitos de traumas,
comumente decorrentes da violência ou abuso sofridos, o psicólogo é o profissional mais
indicado para a intervenção.
Corroborando a assertiva de que o Depoimento Sem Dano não é, e nem tem a
pretensão de ser, resposta e solução para todas as questões concernentes ao enfrentamento do
abuso sexual infantil, os estudos sobre outros projetos relevantes demonstra que muito
ainda a se fazer nesta área.
O projeto Mãos que Acolhem, consistente em migração do método Depoimento
Sem Dano para a Delegacia, a fim de evitar que a oitiva pelos meios mais adequados à criança
e ao adolescente seja realizado apenas em Juízo, antecipou, na Comarca de Ariquemes RO,
o que hoje é objeto do projeto de lei n. 156/09 em trâmite no Senado.
Os Centros de Defesa da Criança, que reúnem num único local os profissionais
que devem atender as crianças e adolescentes assim que o abuso é revelado, bem como
continuar o mesmo até o desfecho dos processos judiciais e correlatos, dispensando, ainda,
tratamento à vítima e seus familiares, em que pese serem experiências adotadas em outros
países, como Estados Unidos e Cuba, revelaram-se singelas, sem exigência de conhecimentos
144
extraordinários ou alta condição financeira, mas que proporcionam o ambiente ideal para a
concretização da interdisplinaridade, tornando possível o trabalho em rede, imprescindível
para a resolução eficaz dos casos de ASI.
Na mesma esteira do trabalho em rede, estão as iniciativas de unificação das
competências para processamento e julgamento dos crimes em face de crianças e adolescentes
e das Varas da Infância e Juventude. Embora não haja consenso acerca dessa centralização, a
necessidade da intercomunicação permanente entre os Juízos, se distribuídas as competências,
parece ser, pelo examinado, condição essencial para a garantia dos direitos da criança e do
adolescente envolvidos no caso.
Infere-se de todo o estudo exposto, destarte, que, a Justiça Brasileira pelo
Poder Judiciário e órgãos afins - vem buscando, por meio de seus atores, amoldar os
procedimentos no atendimento aos casos de abuso sexual infantil, a fim de que sejam
garantidos os direitos decorrentes da doutrina da proteção integral, conferidos às crianças e
adolescentes pela Constituição Federal e Estatuto da Criança e do Adolescente. Os exames
demonstraram, contudo, que a formatação e implemento de projetos inovadores, ainda que
eficazes, de modo aleatório e fragmentado, não basta, eis que seu alcance é limitado, restrito a
determinada localidade, seja um Estado, Comarca ou, muitas vezes, tão somente um Juízo.
Urge, diante do ponderado, que se normatizem as boas práticas após levantamento e avaliação
das mesmas, aferindo-se quais devem ser adotadas sistematicamente, de modo padronizado,
por meio das leis pertinentes.
145
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