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PATRICIA MIRANDA D’ AVILA
PRIMITIVO, NAÏF, INGÊNUO: um estudo
da recepção e notas para uma
interpretação da pintura de Heitor dos
Prazeres
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Artes, Área de Concentração Artes
Visuais, Linha de Pesquisa História, Crítica e Teoria
da Arte, da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, como exigência parcial
para obtenção do Título de Mestre em Artes Visuais
sob a orientação da Prof. Dra. Sônia Salzstein
Goldberg
São Paulo
2009
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PATRICIA MIRANDA D’ AVILA
PRIMITIVO, NAÏF, INGÊNUO: um estudo
da recepção e notas para uma
interpretação da pintura de Heitor dos
Prazeres
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Artes, Área de Concentração Artes
Visuais, Linha de Pesquisa História, Crítica e Teoria
da Arte, da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, como exigência parcial
para obtenção do Título de Mestre em Artes Visuais
sob a orientação da Prof. Dra. Sônia Salzstein
Goldberg
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
DATA DE APROVAÇÃO: ___/___/_____
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Agradecimentos
Em primeiro lugar, agradeço a quem esteve ao meu lado nessa jornada desde o
começo acolhendo a pesquisa. Sônia Salzstein Goldberg, provocando e exigindo,
incentivando a buscar os melhores caminhos para o desenvolvimento do trabalho.
A todas as pessoas que me receberam nos museus de São Paulo e Rio de
Janeiro, disponibilizando acesso ao material utilizado na pesquisa.
A Heitor dos Prazeres Filho pela entrevista, atenção e carinho e Regina pela
conversa gostosa e almoço idem.
Aos meus pais, José Luiz Silveira d‟Avila e Docelina T. Miranda d‟Avila, que
caminharam ao meu lado nesse percurso.
Aos meus meninos José Lucas e Glauber e por todas as horas que não
pudemos brincar juntos durante esse tempo, sua compreensão e interesse pelo meu
trabalho.
E pelas noites em claro, pelas conversas longas, por estar junto sempre, por
ouvir, indicar, ler inúmeras vezes o texto, por conhecer tanto a música do Brasil e
ensinar muitas coisas, Leonel Costa.
4
Resumo
A proposta da pesquisa consistiu em analisar quatro assuntos pertinentes à
compreensão da pintura de Heitor dos Prazeres. Em primeiro lugar, conhecer
historicamente o ambiente no qual as obras foram criadas e a relação do artista com o
universo do samba carioca, em segundo, recolher análises críticas que atestassem a
recepção dessa produção, em terceiro, analisar resquícios ou elementos que comprovem
a proximidade da invenção do artista em questão com referências ao imaginário de
herança africana que adquiriu expressão no Brasil, definida usualmente como arte afro-
brasileira e finalmente, uma análise crítica de algumas obras relevantes produzidas por
Heitor, relacionando-as com a produção de arte brasileira contemporânea à do artista em
discussão.
Para alcançarmos nossos objetivos a contento, recorremos aos acervos da
Fundação Bienal (Arquivo Wanda Svevo), do MAC-USP, do MAM SP, do Museu
Afro-Brasil, de Heitor dos Prazeres Filho (que gentilmente concedeu-nos entrevista), do
Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, do Museu Nacional de Belas Artes do
Rio, do MAM RJ, do site porta-curtas da Petrobras que tem em seu acervo um valioso
documentário com depoimento de Prazeres; além de toda a bibliografia a respeito da
natureza de nosso estudo. O resultado é uma análise crítica em relação aos estereótipos
relacionados à obra de Heitor, recorrente também em outros artistas de origem definida
como popular.
Palavras-chave: Heitor dos Prazeres, arte brasileira, arte afro-brasileira, samba,
pintura.
5
Abstract
The objective of this research consisted in analysing four issues relevant to the
comprehension of the painting of Heitor dos Prazeres.First, to know historically the
environment where his works were created and the relation between the artist and
the"samba carioca".Second, to collect critical analyses which proved the reception of
his works of art.Third, to analyse traces or elements that could support the proximity of
the invention of the artist with the imaginary of African heritage, which obtained great
expression in Brazil and is usually defined as Afro-Brazilian art. Finally, a critical
analysis of some important works produced by Heitor, associating them with the
production of the Brazilian Art contemporaneous with the artist.
To achieve our objectives successfully we used the collection of Fundação
Bienal(File Wanda Svevo), the Contemporary Art Museum-USP(MAC), the Modern
Art Museum of Sao Paulo(MAM SP), the Afro-Brazilian Museum, the Image and
Sound Museum of Rio de Janeiro, the National Museum of Fine Arts of R. Janeiro, the
Museum of Modern Art R. Janeiro, the "site porta-curtas" of Petrobras, which has a
valuable documentary with an testimony given by Prazeres, the collection of Heitor dos
Prazeres Filho(who kindly gave us an interview) and besides these, all the bibliography
related to the nature of our study.
The result is a critical analysis of the stereotypes related to Heitor dos Prazeres
works, stereotypes that are also recurrent in the work of other artists whose origin is
defined as popular.
Key words: Heitor dos Prazeres, Brazilian Art, Afro-Brazilian Art, Samba,
Painting.
6
Sumário
1. Nota introdutória.....................................................................................7
2. O Ovo........................................................................................................9
3. A Crítica: Primitivo, Naïf, Ingênuo....................................................22
3.1 Carlos Cavalcanti............................................................34
3.2Clarival do Prado Valladares..........................................40
3.3 Rubem Braga..................................................................47
3.4 Carlos Drummond de Andrade.....................................50
4. Pintura.........................................................................................................53
4.1 Arte afro-brasileira................................................................53
4.2 Brasil brasileiro......................................................................61
4.3 Pintura de Heitor...................................................................63
4.4 Moenda e as Bienais...............................................................77
4.5 Estampas para a Rhodia: Brazilian Look...........................85
4.6 Músicos, cotidiano e sapatos.................................................86
4.7 Dakar.......................................................................................92
5.Bibliografia...................................................................................................93
6.Anexos...........................................................................................................97
7
1. Nota introdutória
A dissertação presente foi pensada a partir de mais de uma indagação: além da
vontade de apresentar a obra de Heitor, tão múltipla, repleta de relações importantes
com sua comunidade de origem e formação, inserida num momento fundamental para a
discussão a respeito da arte brasileira do século XX, e repensar seu significado (ou
significados), tivemos a preocupação de revisar a recepção da obra do artista entre seus
contemporâneos, sejam artistas, jornalistas, críticos e público, comprador - ou não de
sua obra.
Decidimos optar pelas análises do jornalista Carlos Cavalcanti, por sua
amizade com Heitor e o franco incentivo de Cavalcanti em relação à pintura do sambista
tornar-se publicamente conhecida; Clarival do Prado Valladares figura em nossa análise
devido à importância de seus estudos em relação à produção afro-brasileira e a
proximidade que teve com o artista em questão cuja amizade frutificou em apreciação
valiosa a respeito do processo de produção e de aspectos peculiares à obra de Prazeres.
Os escritores Rubem Braga e Carlos Drummond de Andrade representam dois
intelectuais respeitáveis na história do Brasil e que foram seduzidos por Heitor tanto por
suas qualidades de caráter tanto pela suas artes, arriscando produzir análises para
compreender aquela usina criativa que era nosso artista.
Visitar artigos, análises críticas, noções históricas desses autores significa,
antes de qualquer coisa, a busca pela construção de conceitos que ao longo do tempo
acabaram por consolidar certas noções a respeito da obra de Prazeres.
Outros autores fundamentais como Nina Rodrigues, Arthur Ramos,
Gilberto Freyre, são a base do estudo, haja vista que não podemos esquecer a influência
desses intelectuais para a noção da formação do Brasil moderno.
8
Os termos arte primitiva, naïf e ingênua estão vinculados tão intensamente à
leitura da pintura do músico que não pudemos deixar de interpretar essas denominações
e o quanto elas estão carregadas de preconceitos ideológicos, de classe, étnicos e racias,
reduzindo a amplitude de representação e referências do autor.
Entendemos que a poética de sua arte reside justamente na capacidade do
artista em transpor rótulos, o alcance de sua produção era tão amplo cruzando tantas
fronteiras, tornando Heitor um interlocutor importante entre a comunidade da Praça
Onze, os sambistas descendentes de africanos, entre outras comunidades, a zona Sul do
Rio de Janeiro, o governo, intelectuais, artistas de outras origens, colaborando para a
divulgação e compreensão de um repertório cultural formador da noção de brasilidade
persistente até a atualidade.
Nosso personagem não se esgota tão facilmente, e o desejo de continuar
estudando sua obra e sua história transcende esse estudo, apontando mais
possibilidades, novos caminhos, que pretendemos seguir e esperamos despertar o
interesse em outros que almejam estudar temas como esses, afinal, carecem estudos
sobre assuntos semelhantes.
Não seria exagero afirmarmos a dificuldade enfrentada quando nos
debruçamos nessa tarefa devido aos poucos, porém importantes estudos sobre a arte e
uma reflexão crítica a respeito dos rótulos já citados nessa nota; entretanto, o desafio foi
muito mais saboroso e instigante.
9
2.O OVO
Não tenho inveja de qualquer atelier em Copacabana, na Tijuca,
Ilha do Governador ou outro lugar qualquer grã-fino. A Praça Onze
que é o meu negócio. No meu atelier na Praça Onze eu me sinto tão
feliz. Me traz recordação da minha infância, me lava a alma aquele
apito da Brahma, aquela Brahma que me traz recordação da minha
infância, da minha juventude. Me faz lembrar. Me sinto tão feliz como
que eu esteja na casa da minha família, a minha família que não
existe mais e outras pessoas mais: tia Ciata e outras pessoas mais.
Eis o motivo de por que me sinto feliz na Praça Onze. Esta
Praça Onze que é a Cidade Nova. É o meu bairro, o bairro que eu
tenho amizade, vivo em meu coração. O bairro da Praça Onze que é
conhecido de Cidade Nova. Cidade Nova, tradicional Cidade Nova,
que é a razão que eu me sinto feliz nesse meu atelier. Vendo meus
panoramas da favela, da rua General Pedra, lembrando do meu
saudoso colégio São Sebastião. É a Praça Onze, é a Cidade Nova. A
minha Cidade Nova. Eu pinto a cidade antiga porque está dentro de
mim. A cidade antiga é uma coisa que ainda tenho na recordação.
Ainda tenho dentro de mim, então tenho aquele espírito de coisas
antigas, o qual eu transporto para meus quadros. A minha pintura são
coisas que passaram por mim e eu passei por elas, na minha infância,
na minha juventude, no arrabalde, aí nesse mundo infinito.
1
É importante conhecermos a origem do artista Heitor dos Prazeres, seu
ambiente e como ele ecoa em sua obra, que abrange não só uma rica produção pictórica,
mas também uma produção múltipla em diversas áreas do universo artístico. A Cidade
Nova, a Praça Onze, a Penha, o Mangue e os arcos da Lapa são os cenários recorrentes
de suas pinturas, de sua música.
Este não é um texto antropológico. Entretanto, ao vasculharmos o lugar que foi
a Praça Onze e seu significado na construção de um repertório cultural para a população
do Rio de Janeiro, jaz inevitável que discutamos questões relacionadas a estudos da
antropologia urbana e do fenômeno deste ambiente para uma nova acepção de
elementos predominantemente oriundos de povos africanos. Como outros povos, os
africanos aqui expatriados trouxeram seus repertórios originais, e, com o tempo, por
1
Transcrição de documentário de Antonio Carlos da Fontoura, 1965.
10
meio de contatos e trocas, foram constituindo verdadeiras lutas pela sobrevivência e
gerando novos fenômenos artísticos, como o samba carioca.
Personagem indissociável desse cenário, Heitor dos Prazeres demonstra essa
vivacidade dinâmica em suas músicas, pinturas, objetos, coreografias e desenhos. Com
isso não pretendemos dizer que haja a cultura negra ou a cultura branca. O artista tem
sempre a liberdade de lançar mão de repertórios culturais de quantos grupos quiser; no
caso em questão aqui, porém, é inegável a influência de signos, ritmos e cores
pertencentes ao grupo que pretendemos analisar e que teve, durante um período
histórico, trocas e vivências que marcam a obra do referido artista.
A presença mítica da Praça Onze, citada por muitos sambistas contemporâneos
de Heitor, remete-nos à ideia das nações como “comunidades imaginadas”, tal como
descritas por Stuart Hall (2003): as nações [...] não são apenas entidades políticas
soberanas, mas comunidades imaginadas”. No caso de Hall, sua análise está dirigida às
comunidades caribenhas, mas é coerente transpor o conceito para a construção da
comunidade da Pequena África.
[...] esta questão (como são imaginadas as nações) é central, não
apenas para seus povos, mas para as artes e culturas que produzem,
onde um certo “sujeito imaginado” está em jogo. [...] Como imaginar
sua relação com a terra de origem, a natureza de seu pertencimento?
2
No nosso caso, a comunidade imaginada seria a Praça Onze, a África em
miniatura, a famosa Pequena África, de acordo com a denominação de Mano Lino
apelido dado a Heitor pelos bambas das rodas de samba. A Praça é o lugar da troca, da
invenção dessa África imaginada e construída por sua comunidade, permanecendo dessa
forma para a posteridade.
2
Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte: UFMG,
2003, p. 26.
11
A noção de pertencimento a uma determinada África era importante para
aquela comunidade, que se afirmava unida e perseverava apesar das dificuldades
impostas.
Nenhum pesquisador do início do século percebeu que a comunidade
negra, instalada no Centro da cidade do Rio de Janeiro, criava mais
que um gênero, uma cultura musical. Essa é uma das razões pelas
quais são tão obscuros os dados sobre a origem do samba carioca.
Além disso, o preconceito profundamente encravado em nossa
sociedade, especialmente nos anos que se seguiram à abolição da
escravatura, impedia que as manifestações culturais e religiosas de
negros merecessem sequer liberdade de existir, quanto mais de atrair a
atenção dos que, porventura, se interessassem pela história do nosso
povo.
3
Estamos falando do começo do século XX, período de cerca de vinte anos
após a abolição do trabalho escravo no Brasil. Aquela era uma temporada de difícil
afirmação e construção de identidades e lugares sociais para a população herdeira dos
trabalhadores cativos, que haviam sido expatriados à força de suas terras no grande e
diverso continente africano.
O incômodo provocado pelas manifestações de origem africana não era
novidade, como descreveu Nina Rodrigues, em 15 de fevereiro de 1901, no Jornal de
Notícias baiano, a respeito do batuque na Bahia no começo do século XX:
Começaram infelizmente, desde hontem, a se exibir em algazarra
infernal, sem espírito nem gosto, os celebres grupos africanisados de
canzás e búzios, que, longe de contribuírem para o brilhantismo das
festas carnavalescas, deprimem o nome da Bahia, com esses
espetáculos incommodos e semsaborões. Apesar de n‟esse sentido,
se haver reclamado da polícia providencias, é bom, ainda uma vez,
lembrarmos que não seria a prohibição d‟esses candomblés nas
festas carnavalescas.
4
3
Cabral, Sérgio. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996, p. 27.
4
Rodrigues, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1932, p. 237.
12
No início do século, a proibição avançou aos poucos na Bahia e também no
Rio de Janeiro, fato corroborado pelo medo das insurreições de negros nas principais
cidades:
Salvador, antiga capital, é no início do século XIX uma surpreendente
cidade do mundo colonial português. Porto exportador reunindo gente
de diversos interesses onde renascia uma forte aristocracia local, porto
negreiro abastecendo a região das Minas Gerais, Salvador seria a
cidade colonial em que o negro tinha maior presença, onde a chegada
de iorubas e islâmicos daria novas cores e significados às fortes
tradições festeiras dos bantos. se deflagraram as grandes revoltas
urbanas, conflitos que legam à sociedade brasileira da Primeira
República o temor de levantes negros nas capitais, expresso pelas
instituições policiais por uma duradoura vigilância e intolerância.
5
Em meados do século XIX, a vigilância e as determinações oficiais em
Salvador desencadearam uma diáspora de libertos em direção ao Rio de Janeiro:
Francisco Gonçalves Martins, chefe da policia na época da revolta
malê, se torna presidente da província da Bahia de 1849-1853 e, com
sua obsessão pelo perigo africano, defende limitar o escravo à esfera
da agricultura e coagir os libertos a voltar para a África. Durante sua
gestão amplia as exclusões dos escravos a ocupações urbanas, proíbe
aos negros o aprendizado de determinados ofícios, estabelece
impostos aos artífices urbanos, e aumenta a insegurança com ação
repressiva da polícia, que enche as prisões com libertos, aumentando
as levas de forros que partem alguns para a África, muitos para o Rio
de Janeiro.
6
Em seguida a esse período, pressões internacionais e o excesso de levantes
levaram o governo imperial a forçosamente proibir o tráfico com a África, o que elevou
consideravelmente o comércio escravagista interno. Após a década de 70, as plantações
de café que, com a decadência do mercado da cana de açúcar em face de concorrência
internacional, havia se tornado o meio de produção preponderante fomentaram a
migração forçada de escravos para as plantações do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e
de São Paulo.
5
Moura, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Coleção Biblioteca Carioca, Funarte,
Rio de Janeiro, 1983, p. 19.
6
Ibidem, p. 31.
13
Os movimentos abolicionistas se espalhavam pelo Brasil, ora acompanhados
por uma ideologia republicana, ora acompanhados por uma ideologia monarquista.
Fosse por questões de razões humanitárias ou até por medo, havia entre as elites um
grande número de defensores do fim da escravidão, que finalmente se concretizou com
a assinatura da Lei Áurea em 1888.
Ao final do século, temos um Rio de Janeiro com uma população que beirava
o milhão de habitantes, sendo somados a estes os milhares de negros oriundos da Bahia.
Já com suas alforrias, muitos se instalavam na então capital, atuando em afazeres
profissionais tipicamente urbanos.
As pequenas profissões não ligadas diretamente à estrutura capitalista
moderna que se impunha com suas regras, ainda permitindo a
iniciativa pessoal ou de um grupo descapitalizado, valendo-se de sua
força de trabalho e do domínio de alguma técnica, e podendo ser
realizadas numa parte da própria moradia em pequenas oficinas
improvisadas, na cozinha, ou na própria rua paralelamente à venda,
seriam muito exploradas pelos negros na cidade, muitos já tendo
ganho experiência, como forros ou escravos de ganho, nesses
expedientes na cidade de Salvador. [...]
[...] Pedreiros, ferradores, alfaiates, sapateiros, barbeiros, ferreiros,
marceneiros, ilustradores, tecelões, pintores de parede ou tabuletas,
torneadores, estofadores, serradores (não senadores), tintureiros,
costureiras, bordadeiras, lavadeiras, doceiras, arrumadeiras, artesãos,
vendedores ambulantes de seu próprio trabalho ou de quinquilharias,
de roletes de cana, bilhetes, refrescos, livretos, e de toda a sorte de
coisa miúda, o “faz-tudo”, crianças com bala, biscoitos, se defendendo
e ajudando as pequenas unidades familiares.
7
Tal diáspora favoreceu a organização de uma elite baiana na capital federal de
então. Nessa elite, floresceram novos costumes, que mais tarde contribuiriam para a
formação de uma cultura considerada uma das maiores expressões nacionais:
Assim, sob a proteção da bandeira branca de Oxalá, continuam
chegando ao Rio de Janeiro, nos porões de navios que faziam escala
no porto de Salvador, negros baianos livres, principalmente das
nações sudanesas, em busca de uma sociedade mais aberta onde
pudessem se afirmar, superando os traumas da escravatura. Os
primeiros que conseguem uma situação na capital, um lugar para
7
Ibidem, p. 67-68.
14
morar e cultuar os orixás e uma forma de trabalho, não hesitam em
fornecer comida e moradia aos que vão chegando, o que permitiu um
fluxo migratório regular até a passagem do século (XX), garantindo
uma forte presença de baianos no Rio de Janeiro.
De fato, os baianos se impõem no mundo carioca em torno de seus
líderes de candomblé e dos grupos festeiros, se constituindo num dos
únicos grupos populares no Rio de Janeiro, naquele momento, com
tradições comuns, coesão, e um sentido familístico que, vindo do
religioso, expande o sentimento e o sentido da relação consangüínea,
uma diáspora baiana cuja influência se estenderia por toda a
comunidade heterogênea que se forma nos bairros em torno do cais do
porto e depois na Cidade Nova, povoados pela gente pequena tocada
para fora do Centro pelas reformas urbanísticas. [...] Ali, os baianos
forros migrados por opção própria constituíram uma elite no meio
popular e, generalizando-se as informações dos seus sobreviventes e
descendentes, pode-se supor serem predominantemente nagôs
(iorubas).
8
No interior dessa elite, havia muitas Tias baianas figuras centrais na
organização política e social daquela comunidade , que exerciam o importante papel de
alicerçar as estruturas da produção cultural do grupo através da religião e das festas.
Era comum as baianas de maior peso irem à Bahia tratar de suas
coisas de santo e dos negócios de nação, progressivamente
centralizados nas casas de candomblé de Salvador, como os negros
baianos iam eventualmente à África, voltando com informações e
mercadorias. Tia Bebiana e suas irmãs-de-santo Mônica, Carmem do
Xibuca, Ciata, Perciliana, Amélia e outras que pertenciam ao terreiro
de João Alabá, formam um dos núcleos principais de organização e
influência sobre a comunidade. Enquanto as classes populares, em sua
minoria proletarizadas, sob a liderança inicial dos anarquistas, se
organizam em sindicatos e convenções trabalhistas, grande parte do
povão carioca que se desloca do cais para a Cidade Nova, pro
subúrbio e a favela, predominantemente negro e mulato, também se
organiza politicamente, em seu sentido extenso, a partir dos centros
religiosos e das organizações festeiras. Assim são essas negras que
ganham respeito por suas posições centrais no terreiro e por sua
participação conseqüente nas principais atividades do grupo, que
garantem a permanência das tradições africanas e as possibilidades de
sua revitalização na vida ampla da cidade.
9
Tia Ciata (Salvador, 1854 Rio de Janeiro, 1924) é figura de destacada
importância quando o assunto é o samba carioca e a Praça Onze. Ela teve morada
definitiva na Rua Visconde de Itaúna, nos arredores da famosa praça.
8
Ibidem, p. 86-87.
9
Ibidem, p. 94.
15
[...] Mas a mais famosa de todas as baianas, a mais influente, foi
Hilária Batista de Almeida, Tia Ciata, relembrada em todos os relatos
do surgimento do samba carioca e dos ranchos, onde seu nome
aparece gravado Siata, Ciata ou Assiata.
[...] Em 1876, com 22 anos, chega ao Rio de Janeiro, indo morar
inicialmente na rua General Câmara. Tempos depois, se muda por
conveniência para as vizinhanças de um dos líderes da colônia baiana
no Rio, Miguel Pequeno, marido de d.Amélia do Kitundi, na rua da
Alfândega, 304.
[...] Com a morte de tia Bebiana, Ciata fica sozinha, sua mudança para
a casa de Visconde de Itaúna simboliza a passagem do desfile e de
todo o “pequeno carnaval”, o grande carnaval da gente pequena, para
a Praça Onze.
10
Sergio Cabral corrobora os fatos através de sua pesquisa sobre o surgimento
do samba carioca:
As primeiras formas do samba carioca foram geradas pela
comunidade negra do Centro da cidade, responsável também pelas
novidades carnavalescas apresentadas pelos ranchos, como as
10
Ibidem, p. 101.
16
alegorias, as orquestras, o abre-alas e os “tenores” cantores de vozes
potentes e que eram responsáveis pelos solos das músicas cantadas. O
radialista e pesquisador Almirante (Henrique Foreis Domingues)
apontou a casa de Tia Ciata, na Rua Visconde de Itaúna, perto da
Praça Onze, como o local de nascimento do samba do Rio de Janeiro,
porque lá se reunia uma das duas elites da comunidade negra, formada
por criadores que quase sempre tocavam algum instrumento musical -
uns, por sinal, com grande maestria (a outra elite era integrada pelos
trabalhadores do porto, onde a remuneração assim como sua
organização sindical era bem superior à dos proletários de um modo
geral).
11
A casa de Tia Ciata era frequentada pela mais variada gente, criando encontros
entre a elite da zona sul, a elite baiana, o povo da região, artistas, jornalistas e
intelectuais como Mario de Andrade, que descreveu o terreiro de tia Ciata em um dos
capítulos de Macunaíma. Esse contato tão diverso era motivado por algumas razões:
Além da venda dos doces, Ciata passa também a alugar roupas de
baiana feitas pelas negras com requinte para os teatros, e no Carnaval
para as cocotes chiques saírem nos Democráticos, Tenentes e
Fenianos, as associações carnavalescas da pequena classe média
carioca.
[...] Com o comércio de roupas, muita gente de Botafogo vai até a
casa de Ciata. Torna-se folclórico para alguns assistir a um pagode na
casa da baiana, onde só se entrava através de algum conhecimento.
Do mesmo modo passa a interessar à alta sociedade da época a
consulta com os “feiticeiros” africanos, como eram estereotipados
aqueles ligados aos cultos negro-brasileiros (vide o episódio com o
presidente Wenceslau Brás, em que Ciata cura-lhe a perna), e mesmo
a freqüência aos candomblés, mais fechados à curiosidade de
estranhos. A partir dos conhecimentos do marido e de seu prestígio no
meio negro, reconhecido mesmo fora dele, Ciata começa a manter
relações com gente do outro lado da cidade [...].
Enfim, era necessário aprender a se relacionar de alguma maneira com
os brancos, ter aliados, conhecer gente de outras classes, como os
jornalistas pioneiros que cobriam nas páginas secundárias dos jornais
os acontecimentos das ruas que ganhavam algum destaque nas
proximidades do Carnaval.
12
O olhar de Arthur Ramos e a forma com que ele descreve o Carnaval da Praça
Onze refletem essa “curiosidade folclórica” em observar a cultura ali manifestada.
11
Cabral, Sérgio. op. cit., p. 32.
12
Moura, Roberto. op. cit., p. 101.
17
Inegavelmente, os personagens desse importante capítulo da historia brasileira
tinham consciência de sua origem e, como vimos, as tradições vinculadas ao continente
africano e preservadas pelas Tias conviviam naturalmente com a realidade do cotidiano
carioca. A interpretação dessa realidade acaba por tomar, não poucas vezes, os rumos do
folclore, estereotipando os personagens centrais daquele novo carnaval; não obstante,
seu testemunho é rico em detalhes e acrescenta-nos um olhar vivo sobre os tempos
daquele impressionante festejo. No último capítulo do livro O folclore negro no Brasil,
Ramos descreve o que, segundo seus estudos, seria a permanência do “inconsciente
folclórico” dos brincantes descendentes de africanos nos festejos carnavalescos da
mitológica Praça Onze:
Perseguido pelo branco, o negro no Brasil escondeu as suas crenças
nos terreiros das macumbas e dos candomblés. O folclore foi a válvula
pela qual ele se comunicou com a civilização branca, impregnando-a
de maneira definitiva. As suas primitivas festas cíclicas de religião e
magia, de amor, de guerra de caça e pesca... Entremostraram-se assim
disfarçadas e irreconhecíveis. O negro aproveitou as instituições aqui
encontradas e por elas canalizou o seu inconsciente ancestral: nos
autos europeus e ameríndios do ciclo das janeiras, nas festas
populares, na música e na dança, no carnaval...
Principalmente no carnaval. Todos os anos a Praça Onze de Junho, no
Rio de Janeiro, recebe a avalanche dessa catarse coletiva. Ali, o
carnaval é apenas um pretexto. Porque todo um mundo de
sentimentos, de crenças e de desejos, não tolerados na vida comum,
desperta de um trabalho surdo de recalques contínuos. O carnaval é
uma visão espectral da cultura de um grupo humano. Os civilizados
explodem a sua vida instintiva reprimida. Mas o primitivo apenas se
mostra na sua espontaneidade de origem. É o caso da Praça Onze,
conglomerado de todo um inconsciente ancestral. Ali se reúnem,
periodicamente, velhas imagens do continente negro, que foram
transplantadas para o Brasil: o monarca das selvas africanas, reis,
rainhas e embaixadores, totens, feiticeiros e xamãs, homens-tigres e
homens-panteras, griots, menestréis e bardos negros, pais-de-santo,
antepassados, pais e adolescentes em iniciação ritual...
O folião das avenidas passa por aquele lugar e não compreende o que
vê. Mas o etnógrafo vai registrando.Cerimônias de guerra e caça:lá
estão negros que se degladiam, terçando armas, brandindo lanças,
dançando pantomimas imitativas... Danças e desfiles totêmicos: os
ranchos, os clubes... embaixadas e desfiles régios: os cordões, os
antigos festejos do ciclo dos cucumbis... Fragmentos mágico-
religiosos: os cantos de macumba, as invocações, os ensaios
preliminares de possessão... A música e a dança: os instrumentos de
18
percussão, os cânticos, a estilização primitiva do samba, as escolas de
samba...
13
Para Arthur Ramos, as reminiscências atribuídas por ele a um “inconsciente
folclórico ancestral” tomavam corpo na forma de atavismos, justificando a permanência,
segundo o autor, do que considerava ser uma “estrutura primitivo-indiferenciada” onde
o folclore seria sua expressão máxima, descartando o trânsito, as trocas de informação e
o plano consciente das comunidades em manter as antigas manifestações inserindo-as
em novas realidades sociais:
É uma fantasmagoria. Num tempo absolutamente restrito, assistimos à
recapitulação de toda uma vida coletiva. Instituições que se
fragmentam se esboroam e se diluem. Os seus remanescentes são
recolhidos pela Praça Onze. A Praça Onze é o sensor do inconsciente
negro-africano. Todo um trabalho semelhante ao da elaboração onírica
(Traumarbeit) encontramos ali: condensações, simbolismos, disfarces,
sublimações, derivações [...].
A Praça Onze é a fronteira entre a cultura negra e a branco-européia,
fronteiras sem limites precisos, onde se interpenetram instituições e se
revezam culturas. Mas a Praça Onze, por sua vez, é um símbolo de
todas as Praças Onze disseminadas pelos focos de cultura negra no
Brasil. O negro evadido dos engenhos e das plantações, e das minas, e
dos trabalhos domésticos das cidades, e dos mocambos, e das favelas,
e dos morros... Vai mostrar nas Praças Onze o seu inconsciente
folclórico. Evadido no tempo e deslocado no espaço, o negro realiza
então um mbolo. O inconsciente folclórico é uma síntese do
inconsciente ancestral e do inconsciente interpsíquico. É um conteúdo
estrutural, um Paideuma.
14
De acordo com Ramos, o “inconsciente folclórico” seria “uma antiga estrutura
indiferenciada, que irrompe na vida dos civilizados na forma de superstições,
sobrevivências, valores pré-lógicos, folclore, em suma”. Podemos concluir, portanto,
que, para ele, a religião e as manifestações dos grupos baiano e carioca na Praça Onze
13
Ramos, Arthur. O folclore negro no Brasil: demopsicologia e psicanálise. 3ªedição. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2007, p. 229-231.
14
Ibidem, p. 230.
19
eram expressões de origem folclórica que reforçavam o olhar de curiosidade pelo
exótico dos visitantes da zona sul carioca.
O Carnaval da Praça Onze, em foto do livro de Arthur Ramos.
A despeito de tais olhares, “zonas de contato” entre grupos diferentes
aconteciam inevitavelmente, e foi nesse ambiente efervescente que muitos artistas
fundamentais para o enredo da história de nosso país desenvolveram suas vidas e
produções. O artista Heitor dos Prazeres cresceu nesse mesmo contexto social e, assim
como outros, foi educado dentro de um repertório intelectual forjado na casa de Tia
Ciata e na Praça Onze. Desde pequeno, ele ali frequentou como se estivesse numa
escola, aprendendo na religião e no cotidiano estratégias para suas artes e sua
sobrevivência. A trajetória de Heitor demonstra a vocação daquela comunidade em
movimentar ideias, disseminar novidades e fomentar invenções a partir de suas ricas
vivências.
20
A antiga Praça Onze
Na pequena biografia que traçou sobre Heitor dos Prazeres, Rubem Braga
conta um pouco sobre a presença do múltiplo artista na casa de Hilária:
Cresceu entre a Praça Onze e o Mangue, que naquele tempo “era
simplezinho” e onde “choromingavam os primeiros choros dos
carnavais cariocas” e os “sambas da Tia Ciata”. Se o poeta Manuel
Bandeira andou em 1910 ouvindo os sambas da Tia Ciata é capaz de
se lembrar de um negrinho magro, muito limpo e muito bem vestido,
com uma cabeça curiosamente talhada, as orelhas muito miúdas e
presas ao crâneo; numa delas pendia o cigarro aceso enquanto tocava
cavaquinho, ou na hora de esticar o braço para aceitar uma dose de
cachaça.
15
Os ofícios ensinados no início da vida de Prazeres foram aprendidos por ele
por meio da transmissão compartilhada com membros mais velhos da comunidade,
assim como fora sua vivência religiosa, corporal e musical na casa de tia Ciata. Essa
transmissão, como vimos, mantinha a tradição existente em diversas cidades
brasileiras, em que grupamentos de forros ou de escravos de ganho se especializavam
nas mais variadas profissões:
“Sou do tempo da aprendizagem, que agora é difícil. Quem sabia mais
ensinava o que viria a gerar a formação de grupamentos de pessoas em
torno de certos ofícios que se tornam tradicionais no grupo baiano na
15
Braga, Rubem. Três Primitivos. Ministério da Educação, 1953, p. 10-11.
21
Praça Onze, Zona do Peo, da Saúde”. [...] “fui um dos melhores
naquela época, vivia na Praça Onze”.
16
Com a morte de Tia Ciata, em 1924, “vieram dias difíceis” e, apesar da união
familiar até a década de trinta, o núcleo central, sua casa e suas festas encerraram um
ciclo da história carioca.
Heitor começou a pintar na maturidade, incentivado por amigos. Com sua
força expressiva e autobiográfica, representou em sua pintura tudo o que viu e viveu nos
bares, terreiros, ruas e festas do carnaval, deixando para a posteridade a história da
gente da Cidade Nova. Segundo ele, até o que ouvira falar sobre a roça, sobre os
trabalhos no eito, foi tema de suas obras.
O mangue, os trabalhadores, as danças, as festas, as mulheres, todo um
universo costumeiramente retratado pelo outro, captado por viajantes estrangeiros, ou
por artistas estranhos àquele lugar, recebeu nova interpretação pelos olhos do sambista.
Essa capacidade de realizar uma crônica de sua existência é justamente um dos
elementos marcantes do viço de sua invenção. A empatia com sua origem, com sua
história, enfim, com sua comunidade, foi contada pelo próprio artista no fim de sua
vida:
Eu sou Heitor dos Prazeres. Heitor dos Prazeres é o meu nome. Este
prazer que eu tenho no nome é o prazer que eu divido com o povo.
Este povo com quem eu reparto este prazer. Este povo que sofre, este
povo que trabalha, este povo alegre que eu compartilho a alegria desse
povo. A alegria deste povo, o sofrimento deste povo é o que me obriga
a trabalhar. É o que me faz transportar para a tela o sofrimento do
povo. Este povo que sou eu, um homem do povo. Não nada mais
sublime do que a massa humana. O povo é a massa humana, é a voz
do sangue, o povo é a carne humana, o povo é o aconchego, o povo é
tudo. Eu para o povo represento um pedaço. Eu sou o ovo e o povo é a
chocadeira.
17
16
Heitor dos Prazeres, As vozes desassombradas do museu, 1966, MIS/RJ. In: Moura, Roberto. Tia Ciata
e a Pequena África no Rio de Janeiro, Coleção Biblioteca Carioca, Funarte, Rio de Janeiro, 1983, p. 69.
17
Transcrição de documentário de Antonio Carlos da Fontoura, 1965.
22
3. A CRÍTICA: PRIMITIVO, NAÏF, INGÊNUO
A busca da compreensão a respeito dos vestígios da produção artística de
origem africana e, mais tarde, de origem afro-brasileira e das transformações de
conceitos e denominações para essas manifestações no Brasil remontam aos escritos de
Nina Rodrigues, um dos precursores das Ciências Sociais no país.
[...] A releitura de Silvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues
é esclarecedora na medida em que revela esta dimensão da
implausibilidade e aprofunda nossa surpresa, por que não certo mal-
estar, uma vez que desvenda nossas origens. A questão racial tal como
foi colocada pelos percussores das Ciências Sociais no Brasil adquire
na verdade um contorno claramente racista, mas aponta para além
desta constatação, um elemento que me parece significativo e
constante na história da cultura brasileira: a problemática da
identidade nacional.
18
Em nossa pesquisa, privilegiamos o material produzido por Nina Rodrigues
(Vargem Grande, 4 de dezembro de 1862 Paris, 17 de julho de 1906) pelo fato de este
ser o primeiro pesquisador no Brasil a ter como objeto de estudo as tradições africanas e
seus efeitos em nosso país. Não por coincidência, este autor escreveu a partir dos fins do
século XIX, período que coincide com a abolição da escravidão no país e,
consequentemente, como porta-voz oficial de uma elite racista que detinha o poder e
tomava decisões em relação ao destino dos negros libertos, demonstrando apreensão em
relação à presença do povo africano e de seus descendentes em terras brasileiras. Esta
preocupação é visível no texto de Sylvio Romero usado como prefácio para o livro de
Rodrigues, Os Africanos no Brasil, publicado postumamente:
É uma vergonha para a sciencia do Brasil que nada tenhamos
consagrado de nossos trabalhos ao estudo das línguas e das religiões
africanas. [...] nós que temos o material em casa, que temos a África
em nossas cozinhas, como a América em nossas Selvas e a Europa em
18
Ortiz, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 13.
23
nossos salões, nada havemos produzido neste sentido!É uma desgraça.
[...] O negro não é só uma machina econômica; elle é antes de tudo, e
máo grado sua ignorância, um objeto de sciencia.
Apressem-se os especialistas, visto que os pobres moçambiques,
benguelas, monjolos, congos, cabindas, caçangas... vão morrendo.
19
Dentre os assuntos abordados no livro, temos um capítulo inteiramente
dedicado às “Bellas-Artes nos Colonos Pretos”, em que o autor analisa a linguagem, a
dança, a música, a pintura e a escultura. No capítulo seguinte, ele discorre sobre
“sobrevivências totêmicas”, descrevendo festas populares e folclore; entre outros
assuntos, este capítulo aborda “sobrevivências africanas em festas populares outras, o
carnaval, a dança dos Congos, os Cacumbys”.
O discurso elaborado por Nina Rodrigues “possibilitou o desenvolvimento de
escolas posteriores, como por exemplo, a escola de antropologia brasileira, que,
vinculada aos ensinamentos de Nina Rodrigues, adquire com Arthur Ramos a
configuração definitiva de ciência da cultura”.
20
Um dos autores que posteriormente
também participou do desenvolvimento deste pensamento foi Gilberto Freyre.
Destacamos a importância de obras de autores europeus, precursores dos
estudos das questões raciais, que contribuíram para o desenvolvimento das teorias dos
pesquisadores brasileiros:
Ao se referir ao declínio da hegemonia do romantismo de Gonçalves
Dias e José de Alencar, que podemos situar em torno de 1870, Sílvio
Romero arrola uma lista de teorias que teriam contribuído para a
superação do período romântico. Dentre elas, três tiveram um impacto
real junto á intelligentsia brasileira, e de certa forma delinearam os
limites no interior dos quais toda a produção teórica da época se
constitui: o positivismo de Comte, o darwinismo social, o
evolucionismo de Spencer. Elaboradas na Europa em meados do
século XIX, essas teorias distintas entre si, podem ser consideradas
sob um aspecto único: o da evolução histórica dos povos.
21
19
Romero, Sylvio. Estudos sobre a Poesia Popular do Brasil. Rio de Janeiro, 1888, p. 10-11 In:
Rodrigues, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1932, p. 5-6.
20
Ortiz, Renato. op. cit, p. 14.
21
Ibidem.
24
No que tange à questão da adoção da teoria da evolução dos povos, cabe aqui,
para compreendermos termos que serão utilizados pelos críticos que escreveram sobre a
obra de Heitor, aprofundarmos de que modo foi trabalhada a questão da “evolução
histórica dos povos”.
A proposta do evolucionismo era “encontrar um nexo entre as diferentes
sociedades humanas ao longo da história: aceitando como postulado que o simples
(povos primitivos) evolui para o mais complexo (sociedades ocidentais)”, esta análise
do progresso das civilizações concedeu, no século XIX, garantias políticas para a
consciência do poderio europeu sobre as demais civilizações, o que foi consolidado com
a expansão do poder por meio do capitalismo.
22
Apesar de trabalharem embasados nas teorias citadas, os intelectuais
brasileiros defrontam-se dentro dessa lógica com a questão inevitável do atraso
brasileiro em relação às nações europeias, obrigando-os, segundo Ortiz, a investir na
possibilidade de “o Brasil se constituir como um povo, isto é, como nação” levando aos
estudos diferenciados em relação aos autores europeus sobre“o caráter nacional” para
chegar a formação de um “estado nacional”. Para particularizar seus estudos, o
pensamento brasileiro seguiu em direção à raça e ao meio, evoluindo mais tarde,
principalmente a partir de Gilberto Freyre (1900-1967), para a análise da cultura.
Freyre, entretanto, não abandonou questões raciais, analisando mestiçagens entre os
diferentes povos no Brasil:
Foi o estudo de antropologia sob a orientação do professor Boas que
primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor - separados
dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural.
Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura; a
discriminar entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de
influências sociais, de herança cultural e de meio.
23
22
Ibidem.
23
Freyre, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime patriarcal. 51ª
edição. São Paulo: Global, 2008, p. 32.
25
Além da questão da identidade nacional que, em Freyre, evolui para um
sentido mais positivo em relação ao desenvolvimento do país, apostando na mestiçagem
como uma qualidade do brasileiro , voltemos à importância do estudo precursor de
Nina Rodrigues e seus desdobramentos. A pesquisa voltada especificamente para a
produção das artes plásticas de matriz africana apenas se desenvolveu após cerca de
trezentos anos de escravidão da população oriunda de diversas regiões do continente
africano:
Durante quase três séculos, essa arte, seguindo o passo de sua matriz
africana, ficou totalmente ignorada, não apenas do grande público,
mas também do mundo erudito historiador, crítico de arte, sociólogo
ou antropólogo. Foi graças ao trabalho pioneiro de Nina Rodrigues
que os primeiros trabalhos de arte afro-brasileira foram publicados em
1904, na revista Kosmos.
Em 1949, Arthur Ramos analisa alguns exemplares por ele coletados
em 1927 nos candomblés da Bahia. Em 1968, Clarival do Prado
Valladares publica dados sobre as peças mais antigas encontradas pela
polícia em Alagoas e que foram apreendidas pela polícia em 1910,
peças essa utilizadas nos cultos afro-brasileiros nas últimas décadas do
século XIX.
24
Esses três autores, portanto, são fundamentais para compreendermos a
pesquisa e a interpretação dos vestígios culturais africanos incorporados pela cultura
brasileira, que rompem o silêncio em relação ao período escravocrata:
[...] nada se tem a respeito das populações africanas: o período
escravocrata é um longo silêncio sobre as etnias negras que povoam o
Brasil. Em sua bricolage nacional, o romantismo pode ignorar
completamente a presença do negro. A situação se transforma
radicalmente com o advento da Abolição. Como fato político, a
Abolição marca uma nova ordem onde o negro deixa de ser mãode
obra escrava para se transformar num trabalhador livre.
Evidentemente ele será considerado pela sociedade um cidadão de
segunda categoria; no entanto em relação ao passado tem-se que a
problemática racial torna-se mais complexa na medida em que um
novo elemento deve obrigatoriamente ser levado em conta. O negro
aparece assim como fator dinâmico da vida social e econômica
24
Munanga, Kabengele. Arte afro-brasileira: o que é afinal? In: Catálogo Mostra do Redescobrimento
Brasil 500 é mais. São Paulo: Associação Brasil 500 anos Artes Virtuais, p. 98-111.
26
brasileira, o que faz com que, ideologicamente sua posição seja
reavaliada pelos intelectuais e produtores de cultura.
25
Neste contexto de liberdade, o indivíduo ex-escravo e seus descendentes
reformularam seus papéis dentro da sociedade brasileira, dando espaço para o interesse
e para o desenvolvimento dos estudos dos autores citados. O pioneirismo de Nina não o
impediu de “ter buscado explicar, em bases ditas científicas, a inferioridade do elemento
africano e sua incapacidade inata para a civilização”.
26
Na esteira de seu pensamento,
outros intelectuais desenvolveram estudos como o Folclore negro do Brasil, de Arthur
Ramos, que teve a primeira edição publicada em 1935.
Eu não me canso, em meus estudos atuais sobre o negro brasileiro, de
chamar a atenção para os trabalhos de Nina Rodrigues, [...], o
Congresso (afro-brasileiro) de Recife (1934) assinalou nova fase das
pesquisas sobre o negro brasileiro, mas será injustiça desconhecer o
grande mérito da escola de Nina Rodrigues, revelou às gerações de
hoje os primeiros estudos científicos sobre a questão, agora
continuada pelos seus discípulos.
27
O desenvolvimento dessas pesquisas lançou olhar para os afro-descendentes
que a essa altura expandiam suas possibilidades de expressão e de trabalho através da
arte. O samba é um exemplo evidente disso, tendo alcançado no Rio de Janeiro a
possibilidade de ser gravado e comercializado. Convém, portanto, considerarmos o
empenho daquele grupo em formular uma arte que provocasse interesse .
A partir das décadas de 30 e 40(do século XX), a arte afro-brasileira,
reduzida ao espaço das casas de culto, começa a sair da
clandestinidade. Seus artistas abandonam o anonimato e alguns deles
começam a trabalhar dentro do conceito das chamadas artes “popular”
e “primitiva”, encorajados pelo movimento modernista e pela busca
do nacionalismo.
Estímulos científicos e culturais tais como o os dois congressos
organizados respectivamente em Recife (1934) e em Salvador (1937),
duas missões folclóricas enviadas ao Norte e Nordeste por Mário de
25
Ortiz, Renato. op. cit.,. p. 19.
26
Ferreira, Ligia F. Prefácio de Ramos, Arthur. O folclore negro do Brasil: demopsicologia e psicanálise.
3ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. 14.
27
Ibidem.
27
Andrade em 1937-38 para coletar material e outros estudos
africanistas vão contribuir para o reaparecimento de artistas e temas
afro-brasileiros nas artes plásticas.
28
Na realidade, os artistas não reapareceram, apenas permaneceram relegados a
uma marginalidade, cavando espaços e por essa agência, os intelectuais acabaram por
estabelecer contato com suas manifestações, divulgando sua arte para além de seu
espaço de convívio.
Apesar da evolução do pensamento de Nina através desses autores, que
modificaram sua ótica e optaram por abandonar a ideia de degenerescência do elemento
africano o que acabou por se desenvolver no otimismo da democracia racial de Freyre
, a produção artística daquele grupo permanece no lugar relegado a ela: primitivo ou
popular.Além disso o mito da democracia racial brasileira , que ecoa até os dias de hoje
serve para mascarar o racismo brasileiro ao longo dos anos em nosso país.
Segundo Stuart Hall, estudioso da diáspora negra desencadeada pelo processo
de escravidão dos africanos para as Américas e de seus desdobramentos pós-abolição,
os conceitos “popular” e “primitivo” são arriscados e movediços. Em relação à noção de
popular, Hall acredita que:
[...] há uma luta contínua e incessante irregular e desigual, por parte da
cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar
constantemente a cultura popular; para cercá-la e configurar suas
definições e formas dentro de uma forma mais abrangente de formas
dominantes. pontos de resistência e também momentos de
superação. Essa é a dialética da luta cultural.
29
A dialética desta “luta cultural”, de acordo com Hall, ocorre em uma “tensão
contínua” com a “cultura dominante”, tornando-se um “processo pelo qual algumas
28
Munanga, Kabengele. Arte afro-brasileira: o que é afinal? In: Catálogo Mostra do Redescobrimento
Brasil 500 é mais. São Paulo: Associação Brasil 500 anos Artes Virtuais, p. 98-111.
29
Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte: UFMG,
2003, p. 239.
28
coisas são ativamente preferidas para que outras possam ser destronadas”.
30
Assim foi,
por exemplo, o caso do romantismo brasileiro, com a figura do herói indígena
cambiando para a exaltação da herança cultural africana. Obviamente, entretanto, essa
preferência não determina a troca de papéis entre quem está no poder e quem permanece
à margem dele.
Verificamos esse fato na denominação frequentemente usada para definir as
expressões culturais vinculadas à tradição, ou que contenham resquícios de origem
africana: o que vem do povo e o que é primitivo (a respeito do popular, comentamos
anteriormente). Stuart Hall, mais adiante, analisa o sentido do primitivo citando o crítico
de arte Hal Foster, que, para nós, é coerente com as definições de autores brasileiros:
Hal Foster escreve: “O primitivo é um problema moderno, uma crise
na identidade cultural”, daí a construção modernista do primitivismo,
o reconhecimento fetichista e a rejeição da diferença do primitivo.
Mas essa resolução é somente uma repressão; o primitivo detido no
interior de nosso inconsciente político retorna como um estranho
familiar, no momento de seu aparente eclipse político. Essa ruptura do
primitivismo, administrada pelo modernismo, torna-se outro evento
pós-moderno. Essa administração é certamente evidente na diferença
de não produzir diferença alguma e que marca o surgimento ambíguo
da etnicidade no âmago do pós-modernismo global. Mas não pode ser
só isso, pois não podemos esquecer como a vida cultural, sobretudo no
Ocidente e também em outras partes, tem sido transformada em nossa
época pelas vozes das margens.
31
A margem, neste caso, seria a cultura de origem africana, reconhecidamente
criativa pelos estudiosos, e necessária para o estabelecimento do Brasil como nação:
Um padrão recorrente emerge: o “de cima” tenta rejeitar e eliminar o
que vem “de baixo” por razões de prestígio e status e acaba
descobrindo que não está de algum modo, frequentemente
dependente desse baixo - Outro [...] mas também o de cima inclui
simbolicamente o de baixo como constituinte primário de sua própria
vida de fantasia. O resultado é uma fusão móvel e conflitiva de poder,
medo e desejo na construção da subjetividade: uma dependência
psicológica de precisamente aqueles outros que estão sendo
rigorosamente impedidos e excluídos no nível de vida social. É por
30
Ibidem, p.241.
31
Ibidem, p. 320.
29
essa razão que o que é socialmente periférico é simbolicamente
central...
32
Assim como em Casa Grande e Senzala Gilberto Freyre aposta na
miscigenação entre portugueses com índios e negros, a posição de cada elemento a ser
miscigenado não ocorre em nível de igualdade. O colonizador português foi o
protagonista e, através de sua agência, garantiu a expansão de suas colônias; quanto à
miscibilidade, nenhum povo colonizador, dos modernos, excedeu ou sequer igualou
nesse ponto aos portugueses”.
33
Em relação à mulher indígena, segundo Freyre, “por qualquer bugiganga ou
caco de espelho estavam se entregando de pernas abertas aos caraíbas gulosos de
mulher”. Ao considerar a mulher branca, a mestiça e a negra, Freyre segue analisando o
papel sexual de cada uma, afirmando que
com relação ao Brasil, que o diga o ditado: ”Branca para casar, mulata
para f..., negra para trabalhar”, ditado em que se sente ao lado do
convencionalismo social da superioridade da mulher branca e da
inferioridade da mulher preta a preferência sexual pela mulata.
34
Embora os portugueses tenham se misturado aos povos que pretendiam
dominar, utilizando a denominação de arte primitiva para lidar com a crise de identidade
na arte europeia dos fins do século XIX e o início do século XX, este elemento
“primitivo”, por mais positivo que fosse para a sociedade europeia, não o seria para as
sociedades denominadas primitivas. Isso as condenaria ao eterno “atraso” em relação ao
ocidente, haja vista tratar-se apenas de um apêndice a ser utilizado como alternativa a
esta crise:
32
Stallybrass, Peter; White, Allon. The Politics and Poetics of Transgression. In: Hall, Stuart. Da
diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 329-330.
33
Freyre, Gilberto. op. cit., p. 70-72.
34
Ibidem.
30
Se se pensa que a pintura de Cézanne era uma súmula da cultura
figurativa européia, o problema se coloca nos seguintes termos: como
superar o limite histórico da pintura de Cézanne, como alargar seu
horizonte? O universalismo de Matisse não era uma solução, não se
tratava de transfigurar a realidade, mas de transformá-la em sua
estrutura. Não havia qualquer sentido em acolher os entalhadores
negros de máscaras e fetiches no paraíso da arte universal; o
necessário era resolver dialeticamente a contradição pela qual as duas
soluções opostas, oferecidas por uma “civilidade extrema” e por uma
“barbárie extrema”, apareciam como igualmente válidas no plano
estético e no plano histórico, ou melhor, ligadas entre si numa estreita
alternativa dialética.
35
Na arte europeia, nesta busca pela dialética, “Picasso não estava sendo o
primeiro a descobrir a escultura negra; havia os fauves e os expressionistas, seguindo
nos rastros do exotismo e primitivismo de Gauguin”.
36
O pintor Gauguin personifica “o
artista que se põe contra a sociedade de sua época para reencontrar numa natureza e
entre pessoas não corrompidas pelo progresso a condição de autenticidade e
ingenuidade primitivas, quase mitológicas”, almejando “a flor da poesia, agora exótica,
que é destruída pelo clima da Europa industrial”.
37
Além deste olhar para fora da Europa, concomitantemente aos desdobramentos
da ideia do exótico e do primitivo, “passa-se ao interesse pelo artista inculto, ingênuo,
popular, devendo esta última definição ser sumariamente excluída, devido à longa série
dos naïfs que despertam o interesse de uma sociedade saturada de intelectualismo”.
38
Segundo Argan, o “fundador” desse tipo de arte seria Henri Rousseau (1844-1910), “um
fiscal de impostos que, aos quarenta anos, deixou seu emprego para se dedicar à
pintura”.
Apesar de afirmar que Rousseau manifesta frente arte a “ilimitada admiração
do ignorante, do primitivo”, Argan sustenta que, na verdade, “ele não era inculto, e sim
35
Argan, Giulio Carlo. Arte Moderna. Tradução: Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo:
Companhia das letras, 1992, p. 426.
36
Ibidem, p. 426.
37
Ibidem, p. 130.
38
Ibidem, p. 134.
31
um autodidata que certamente carecia de cultura profissional” em consequência de seu
surgimento. De acordo com o autor, Henri Rousseau foi automaticamente “adotado por
artistas e literatos que combatiam a cultura preferida pela alta burguesia parisiense: de
Signac a Picasso, de Jarry a Apollinaire”.
Na opinião de Argan, o papel do artista Rousseau, que é contemporâneo ao
período das viagens de Gauguin para o Taiti e de Rimbaud para a África, favorece o
interesse pelo surgimento de um artista “virgem e primitivo” em Paris, tal e qual seriam
as culturas das terras longínquas buscadas pelo pintor e pelo escritor citados:
Logo mais, crer-sedescobrir a arte pura na escultura negra: o “caso
Rousseau” é o antecedente direto da crise cultural que levará Picasso a
refazer Les demoiselles d‟Avignon (1907) segundo o modelo
negro.[...] Sem dúvida, numa época em que se falava apenas em
progresso, a pintura de Rousseau poderia se mostrar
assustadoramente regressiva: revela não tanto seu próprio
primitivismo, e sim o de uma civilização que, convencida de possuir a
chave da verdade, afundava-se cada vez mais na superstição dos
símbolos, mitos e da magia.Gauguin, no Taiti, via os mitos dos
“bárbaros” com os olhos do parisiense em férias; Rousseau em Paris,
os mitos da civilização moderna com os olhos do primitivo
deslocado numa sociedade evoluída.
39
Em nosso país, tivemos um processo semelhante, localizado historicamente na
descoberta da obra de Cardozinho (1861-1942) por Fujita e Portinari, em 1932. O pintor
Cardozinho foi considerado o Rousseau brasileiro.
40
Rubem Braga escreveu sobre ele,
definindo-o não como um pintor, mas sim como “um fazedor de quadros”. Cardozinho
começou a pintar aos 70 anos, aposentado; autodidata, utilizava em seu processo
criativo imagens de cartazes e fotografias de revistas velhas e de jornais para pintar suas
figuras. Por isso, de acordo com Braga, ele não tinha “qualquer imaginação plástica” e,
39
Ibidem, p. 135-136.
40
Cavalcanti, Carlos. Heitor dos Prazeres, Pintura. Catálogo de exposição do MAM, abril de 1961,
Arquivo Wanda Svevo.
32
desta forma, distanciava-se dos verdadeiros artistas devido ao fato de não ter “a
sabedoria sem a qual não se faz grande arte”.
41
Em um artigo da década de 60 do século XX, Clarival do Prado Valladares,
um dos autores importantes para o estudo da presença africana no Brasil, problematizou
as consequências do significado do primitivo em terras brasileiras:
A maior freqüência de oportunidades para artistas de cor ocorre
quando estes se identificam a determinado tipo de produção, permitido
e aplaudido pelo público consumidor. E esta permissão e aplauso se
referem à denominada arte primitiva, situada em termos de docilidade,
de poeticidade anódina, na dose exata em que a pintura naïf deve
comportar-se no conjunto das coleções ou das decorações de
ambientes privados de aparente clima cultural.
42
Nesse mesmo artigo, Clarival analisa a reduzida presença de artistas negros
nas artes plásticas em relação a outras manifestações artísticas. Em suas palavras, “a
modesta presença de artistas brasileiros negros na atual produção e promoção das
chamadas artes plásticas desde que estas se tornaram um atributo de prestígio do estrato
social econômico mais elevado, na qual os negros numericamente pouco participam”,
43
combinada com as restrições impostas aos artistas, teria criado o panorama descrito a
seguir:
Raros são os artistas pretos e mestiços que se afirmam sob critério
crítico mais exigente, pois se conformam às regras do jogo sobre sua
produção, que deverá ser ao gosto do consumidor. E este último,
muitas vezes requer do “primitivo” ser homem de cor, preto, mulato
ou índio, procedente da pobreza afim de que a obra seja autêntica pela
origem. Isto não corresponde à generalidade, mas uma das
características da elite mandatária, em que os participantes procuram
acrescentar, a si mesmos, uma aparência intelectual.
44
41
Braga, Rubem. Três Primitivos. Ministério da Educação, 1953.
42
Valladares, Clarival do Prado. O negro brasileiro nas artes plásticas. Cadernos Brasileiros, ano X. Rio
de Janeiro, maio-julho, 1968. In: Catálogo Mostra do Redescobrimento Brasil 500 é mais. São Paulo:
Associação Brasil 500 anos Artes Virtuais.
43
Ibidem.
44
Ibidem.
33
Não podemos esquecer o que Stuart Hall nos diz a respeito da necessidade do
“de cima” pelo “de baixo”. O conflito de exclusão e aproximação, que determina
lugares socialmente fixos, talvez de fato obrigue esses artistas a aceitar a condição de
participar do jogo, adequando-se às regras, mas nem sempre fazendo concessões;
aproveitando-se desse espaço para, segundo Hall, tornarem-se “simbolicamente
centrais”.
Neste contexto, de acordo com Clarival, Heitor dos Prazeres é considerado um
dos precursores originais do gênero na pintura nacional, figurando como importante
representante dos escassos artistas negros em evidência no referido período.
Um capítulo que requer novo estudo é o da presença de artistas negros
entre os denominados “primitivos”. Heitor dos Prazeres (Rio1898-
1966), Paulo Pedro Leal (Rio, 1894), João Alves (BA, 1906),
Waldomiro de Deus Souza (BA, 1944), e José Barbosa da Silva
(Olinda, 1948) merecem, para cada um deles um acurado estudo,
porque trazem expressiva carga de originalidade, de contexto social,
além da potencialidade narrativa dos temas.
45
Dada a importância de Heitor dos Prazeres e o alcance que suas obras tiveram
não somente na pintura, mas também em outras áreas de atuação, inúmeras vezes a
crítica encarregou-se de interpretar e divulgar suas obras em periódicos, encartes e
livros.
O intuito deste capítulo será o de lançar um olhar sobre os escritos produzidos
por alguns autores a respeito da produção pictórica de Heitor dos Prazeres. O enfoque
da análise terá como destaque a produção crítica de Clarival do Prado Valladares (1918-
1983), Rubem Braga (1913-1990), Carlos Cavalcanti (nascimento e morte com datas
desconhecidas ), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).
45
Ibidem.
34
3.1 Carlos Cavalcanti
O crítico de arte, jornalista e desenhista Carlos Cavalcanti foi quem mais
escreveu sobre a obra pictórica de Heitor dos Prazeres. Ele é considerado, ao lado de
Augusto Rodrigues, o primeiro incentivador da carreira de pintor, estimulando-o a
lançar em exposições e mostras o que já produzia para enfeitar as paredes de sua casa:
Jamais havia pintado apenas musicado. Em 1937, perdeu a esposa.
Fiquei muito dolente, explica, e comecei a pintar. Viúvo, estava
morando num quarto barato na rua do Lavradio, que enchia de
desenhos e pinturas a gouache.Dissolvia as tintas de maneira
inadequada, às vezes em querosene. Seus temas iniciais foram os
mesmos de hoje - cenas do samba, da macumba e do trabalho rural.
46
Na década de 30, a então capital do país já conhecia os desfiles dos ranchos, as
primeiras escolas de samba e o carnaval da Praça Onze, além do incipiente mercado
fonográfico e o rádio, que difundiam a cultura musical alimentada nas rodas de bambas,
atraindo a curiosidade de intelectuais e jornalistas para o carnaval fora dos clubes de
elite e desfiles de corso.
Heitor dos Prazeres, importante personagem do samba carioca, gozava de
notoriedade na música, tendo sido premiado com o primeiro lugar no carnaval de 1932,
como musicista no “concurso oficial”, com o samba-canção “Mulher de Malandro”.
47
No Rio, ele morava num quarto da Praça Tiradentes, muito frequentado por jovens
universitários que queriam conhecer o universo da cultura afro-brasileira carioca as
rodas de samba, capoeira e jongo, os bambas, os terreiros de candomblé ; entre eles,
estavam Carlos Drummond de Andrade, Noel Rosa e Carlos Cavalcanti.
O contato inicial entre o jovem Cavalcanti e a obra do artista deu-se durante as
aulas de cavaquinho que ele recebia do então consagrado sambista. Desde o primeiro
46
Cavalcanti, Carlos. op. cit.
47
Ibidem.
35
contato com a música de Prazeres, e depois com seus desenhos e pinturas, Cavalcanti
percebeu as características que viria a analisar em suas criticas posteriores sobre o
artista: originalidade, expressividade, temática e cores das obras. Dessa convivência
surgiu seu interesse do jornalista em analisar e produzir material que divulgasse a obra
do amigo, além de um franco incentivo e estímulo, criando uma perspectiva de
compreensão da pintura de Prazeres como produto de sua vivência.
Como crítico de arte, Carlos Cavalcanti escreveu livros como Arte e Sociedade
(1966), Como entender a pintura Moderna (1978) e Dicionário Brasileiro de Artistas
Plásticos (1979), além de outros textos para jornais, catálogos de exposições e
colaborações para a revista Cadernos Brasileiros, editada por Clarival do Prado
Valladares; também participou do Dicionário das Artes Plásticas Brasileiras,
organizado por Roberto Pontual em 1969.
Procurando interpretar a opinião de Cavalcanti e suas considerações a respeito
da pintura de Mano Lino, citaremos aqui textos publicados por ele em catálogos para as
exposições de pintura de Heitor no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro,
em 6 de abril, e na Galeria Sistina em São Paulo, com abertura em 27 de novembro,
ambos datados do ano de 1961.
No catálogo da exposição realizada em abril de 1961, no MAM, Cavalcanti
procurou explicar ao público a origem da arte ingênua, contextualizando-a
historicamente:
No princípio deste século, especialmente os Expressionismo e o
Fovismo, acentuou-se o interesse pelas criações artísticas, livres de
preocupações de natureza intelectual, tanto na técnica como na
expressão, e reveladoras das camadas mais profundas e elementares da
personalidade. Quando Gauguin dizia pretender voltar não aos cavalos
clássicos do Partenon, mas aos rústicos cavalinhos de madeira de sua
infância, ou quando Vlaminck afirmava serem suas cores verdadeiros
gritos do instinto, estavam revelando novas concepções de pintura,
que nos ajudam a compreender o sentido do gosto atual pelo que
poderemos chamar a tradução plástica de puros ritmos da vitalidade.
36
A espontaneidade lírica e a ausência de intelectualismo das artes das
crianças e dos autodidatas passaram a interessar não somente os
artistas. Também aos estudiosos dos problemas da criação artística. Os
pintores populares ou autodidatas, assim como os artistas negros,
desconhecidos e negligenciados durante muito tempo pelos
preconceitos acadêmicos, tiveram nos princípios deste século súbita
valorização.
Surgiram então os ingênuos pintores de domingo, como os chamam na
França.
48
Nesse texto, ele não diferencia o que poderia ser arte de artistas negros, “arte
das crianças”, de pintores populares ou autodidatas também considerados ingênuos.
Ao contrário, Cavalcanti investe na ideia de que todos esses casos artísticos
pertenceriam à mesma categoria, que, de acordo com ele, seria oposta à dos eruditos
com “preconceitos acadêmicos”.
Quando se viu, porém, que os elementos permanentes e válidos da
criação artística estão mais na área emocional ou instintiva do que na
esfera intelectual ou racional do homem, passaram (os ingênuos) à
categoria de criadores artísticos autênticos, como as crianças e os
selvagens.
49
Após definir este grupo e suas semelhanças, ele acrescenta em suas
considerações a definição do que seriam os primitivos, em sua opinião, fruto de
confusão desta primeira categoria (ingênuos, crianças, negros, selvagens e artistas
populares). Em um catálogo para uma exposição de Prazeres naquele mesmo ano
desta vez na Galeria Sistina, em São Paulo ele reafirma suas opiniões:
Em outra oportunidade, falando de Heitor dos Prazeres, cuidamos de
um equívoco corrente no blico e mesmo entre críticos e artistas a
confusão entre ingênuos e primitivos.
Os primitivos nenhum possuímos na nossa pintura - são dotados de
elementarismo, mais instintivos. Expressam de modo imediato os
ritmos vitais. São como delegados da natureza. Fundam sua expressão
artística em impulsos diretos e profundos, livres de qualquer
intelectualismo figurativista. Interpretam mais do que representam.
[...] são mais simbólicos e deformadores, mais sintéticos e de maior
sentimento plástico. Manifestam interesse secundário pela figura
48
Ibidem.
49
Ibidem.
37
humana e substituem as imagens visuais por esquemas mentais,
carregados de simbolismo.
50
Cavalcanti não chega a enunciar exemplos sobre a criação dos primitivos, ou
sobre quais lugares poderíamos apreciar aquela manifestação expressiva. Ele prossegue
afirmando:
Sua pintura (dos primitivos) é de superfície, em duas dimensões, cores
planas, as cores primevas, e não de profundidade. Possuem concepção
geométrica da forma para exprimir, com ilogicismo e ausência de
senso estético, idéias e sentimentos e não sensações físicas.
51
Como vimos em Stuart Hall, em Kabengele Munanga e em Clarival
Valladares, os conceitos primitivo e popular e a estes acrescentamos a noção de
“ingênuo” , são movediços, criando restrições para a análise da produção artística dos
grupos “socialmente periféricos”. Sendo assim, lançar mão de ideias generalizadas,
como a de primitivos que criam “livres de qualquer intelectualismo figurativista”, e ao
mesmo tempo afirmar que eles “possuem concepção geométrica da forma” associada ao
“ilogicismo”, parece incoerente. Ao trabalhar com geometrias, dificilmente um artista
não pensará sua composição de forma lógica, seja na pintura corporal indígena, nas
pinturas rupestres ou na harmonia simétrica de uma figura de Ibejis africanos; seja num
ready-made de Duchamp, ou nas Demoiselles de Picasso.
É certo afirmarmos, como vimos em Argan, que a saturação do intelectualismo
europeu condicionou a revolta intelectual dos artistas das vanguardas europeias do fim
do século XIX e início do século XX, gerando este problema na interpretação de
culturas de outras sociedades como sendo meros antípodas da civilização ocidental.
Assim, sobrava para elas a pureza da “virgindade do primitivo”, gerando a necessidade
50
Cavalcanti, Carlos, Heitor dos Prazeres, Pinturas. Catálogo de exposição da Galeria Sistina, novembro
de 1961, Arquivo Wanda Svevo.
51
Ibidem.
38
de a arte de vanguarda lidar com “duas soluções opostas, oferecidas por uma civilidade
extrema e por uma barbárie extrema.
Carlos Cavalcanti adota a ideia da cultura ingênua autêntica como resposta à
falta de identidade do excesso de intelectualismo do artista brasileiro, criticando o
distanciamento da pintura e da vida social popular:
[...] os ingênuos autênticos como Heitor dos Prazeres são valores
dignos de atenção na nossa pintura contemporânea. Abrem ricas
sugestões de autenticidade na linguagem e temática de nossa pintura.
[...] nesse nosso país polifônico, nossos modernos tocam quase sempre
a flautinha grega de três notas do esteticismo dos estilistas parisienses,
como diria Siqueiros.
Por outro lado, europeizamo-nos também quanto ao papel que a
pintura deve desempenhar na vida social. Galerias esnobes, quadros
custando artificialmente milhões, artistas glorificados no colunismo
social, em suma uma pintura cada vez mais de finalidades privadas e
domésticas e não públicas, sem repercussão social, e, portanto,
educativa.
52
Assim como a vanguarda europeia procurou encontrar a resposta de sua crise,
a crítica de Cavalcanti aos artistas modernos brasileiros sem nomeá-los reproduziu, de
certa forma, a postura tomada por artistas como Gauguin e Picasso na Europa,
indicando a solução para o problema da pintura brasileira.
Natural que essas considerações ocorram diante deste artista tão
intrinsecamente popular, capaz de sugerir aos plásticos sensíveis,
clarividentes e criadores, com os dons de profecia imanentes ao
artista, caminhos e pesquisas que nos desviam do colonialismo
artístico em que ainda estamos vivendo.
53
Ao criticar o etnocentrismo, Cavalcanti não foge à regra da oposição entre o
popular e o erudito. Ele insiste em interpretar a obra de um artista como Heitor dentro
da ideia do “bárbaro” oposto ao “civilizado da elite”, e, assim, acaba não vislumbrando
52
Ibidem.
53
Ibidem.
39
a dialética de uma produção como a de Heitor ser de fato muito mais complexa do que
simplesmente ingênua:
Veja-se a temática de Heitor, ainda que restrita ao folclore urbano,
como a sua cnica, seu modo de sentir a forma e de viver a cor, ainda
que atenuadas no seu elementarismo de suas primeiras obras por
certas preciosidades de virtuosismo, adquiridas na continuação de
pintar pelos anos afora.
Tudo neste artista são sugestões vindas do povo onde afinal sempre
estiveram as raízes inspiradoras das grandes e autênticas artes
universais.
54
A razão da autenticidade de um artista como Heitor é muito mais apropriada se
observarmos sua obra como sendo de um artista da diáspora, que se apropria de códigos
culturais (no caso da pintura de cavalete) de maneira não binária pureza x impureza
como quer acreditar Cavalcanti. O artista urbano que Prazeres é indica caminhos
diferentes:
Em termos antropológicos, suas culturas (da diáspora) são
irremediavelmente “impuras”. Essa impureza, tão frequentemente
construída como carga e perda, é em si mesma uma condição
necessária a sua modernidade. Como observou certa vez o romancista
Salman Rushdie, “o hibridismo, a impureza, a mistura, a
transformação que vem de novas e inusitadas combinações dos seres
humanos, culturas, idéias, políticas, filmes, canções” é “como a
novidade entra no mundo”. Não se quer sugerir aqui que, numa
formação sincrética, os elementos diferentes estabeleçam uma relação
de igualdade uns com os outros. Estes são sempre inscritos
diferentemente pelas relações de dependência e subordinação
sustentada pelo próprio colonialismo.
55
Em relação ao sincretismo, no sentido de resistência e permanência cultural
das populações africanas que viveram no regime de escravidão das colônias, temos a
evolução do pensamento deste processo no Brasil através das palavras de Mestre Didi:
[...] assim sendo, todos os Babá, Ìyálòrìsà, Táta, Doné, Nengua e todos
os iniciados e seguidores da religião afro-brasileira podem e devem
procurar acabar com o que chamamos sincretismo. Os negros de hoje,
54
Ibidem.
55
Hall, Stuart. op. cit. p. 34.
40
para manterem viva a religião de seus antepassados, não é mais
preciso dizer que Santo Antonio é Ògún, São Jorge, Òsôsi e Senhor do
Bom Fim, Òsàlá, desde quando sabemos que nada disso é real.
56
Prazeres lida de forma natural com a realidade de sua cidade e com seu próprio
trânsito entre a Cidade Nova, as favelas e a zona sul carioca, sem negar sua formação, o
terreiro e a convivência com as Tias baianas.
Para a leitura da obra de Prazeres, seja na música, na dança, na pintura ou em
outras manifestações, o depoimento do próprio artista no documentário de Antonio
Carlos Fontoura,
57
citando elementos de seu cotidiano presentes em sua obra, comprova
a relação de Heitor com elementos mantidos pela população descendente de africanos:
[...] estas figuras que eu faço tem coisas que eu já vi; que ainda
existem. Estes bailes, estas macumbas, este samba.
Estas coisas que existem, tanto existem que eu sou um dos que existe,
não preciso ver mais, não preciso de modelo, tenho tudo aquilo do
passado e de agora dentro de minha memória [...].
Ato surpreendente seria Cavalcanti descartar a visão estrangeira incorporada à
formação e ousar outro olhar para a pintura do sambista, aprofundando estudos a partir
da África e de seus desdobramentos culturais em terras brasileiras.
3.2 Clarival do Prado Valladares
O historiador Clarival do Prado Valladares tem importante influência no
incentivo e na interpretação da obra de nosso ilustre Ogã.
Nascido em 1918, na cidade de Salvador, Clarival cursou em Recife o ensino
médio e parte de sua graduação em Medicina. Na década de 30, travou contato com
56
Santos, Deoscóderes M. dos. História de um terreiro Nagô. São Paulo: Max Limonad, 1988. In: Sodré,
Jaime. A influência da religião afro-brasileira na obra escultórica de Mestre Didi, p.189.
57
Transcrição de documentário de Antonio Carlos da Fontoura, 1965.
41
Gilberto Freyre, sendo influenciado por suas idéias e voltando-se para os estudos sociais
e a análise das manifestações artísticas. Terminou seus estudos na Bahia, em 1938,
mudando-se para o Rio de Janeiro em 1941.
Em 1952, cursou pós-graduação em Patologia na Universidade de Harvard, e
Biologia no MIT, ambos em Boston. Ao regressar ao Brasil, em 1956, tornou-se
docente em Anatomia Patológica na UFBA, sendo indicado pela Escola de Belas Artes
da mesma universidade para o ensino de História da Arte em 1962.
Em 1963, voltou ao Rio de Janeiro e lá viveu até sua morte, em 1983.
Valladares escreveu diversos livros, entre eles Arte e Sociedade nos
Cemitérios Brasileiros 2 volumes; Nordeste Histórico e Monumental 4 volumes;
Aspectos da Arte Religiosa no Brasil - Bahia, Pernambuco e Paraíba; Rio Barroco; Rio
Neoclássico; Artesanato Brasileiro; Riscadores de Milagres; Presciliano Silva; Alberto
Valença; Lula Cardoso Ayres; Albert Eckout e The Impact of African Culture on
Brazil.
58
Destacamos a preocupação do autor em relação à temática afro-brasileira e
africana em terras brasileiras, escrevendo artigos como “O negro brasileiro nas artes
plásticas” e “A iconologia Africana no Brasil”, ambos publicados em 1969.
Utilizaremos esses textos em nossa análise sobre os conceitos do autor acerca da
produção de Heitor dos Prazeres.
Clarival foi crítico de arte e redator-chefe da revista Cadernos Brasileiros
(órgão nacional do Congresso para a Liberdade da Cultura), tendo Carlos Cavalcanti e
Gilberto Freyre entre seus colaboradores. Conduziu a delegação brasileira no Festival de
Artes Negras em Dakar, realizado em 1966 com o lema Significado da Arte Negra na
Vida do Povo e para Povo”, e pertenceu ao júri internacional do evento.
58
Biografia cedida pelo Hospital Geral Prado Valladares, Bahia.
42
Heitor esteve presente nesse evento que analisaremos com maior
profundidade em outro capítulo divulgando sua música e sua pintura
59
. Clarival foi
grande amigo de Prazeres, frequentando seu atelier na década de 60, acompanhando sua
produção e apoiando o artista em seu último ano de vida, quando esteve muito tempo
hospitalizado devido ao câncer no pâncreas que o levou à morte.
Ao contrário de Carlos Cavalcanti, Valladares, considera Heitor dos Prazeres
primitivo e reconhece uma “auto-suficiência cultural absoluta”
60
na expressividade do
artista, lembrando que o convívio com outros pintores e os comentários dos críticos não
exerceram influência em sua trajetória, tanto em relação aos erros quanto aos acertos de
sua produção. Valladares também menciona a influência de Heitor sobre outros
“ingênuos e primitivos,” vislumbrando a construção de uma legião de artistas que
mercadologicamente viriam copiar seu estilo, percorrendo o “mesmo território
folclórico”.
Demonstrando preocupação em relação à “presença do negro brasileiro” nas
artes plásticas, ele analisa criticamente, como vimos, o rótulo de primitivo vinculado
ao fato de o artista ser homem de cor, preto, mulato ou índio, procedente da pobreza
afim de que a obra seja autêntica pela origem”, como garantia de oportunidades àqueles
indivíduos, que de outra forma não teriam visibilidade.
Teorizando sobre a questão, Clarival defende que o período colonial teria
evidentemente demonstrado uma presença maciça do labor de mãos africanas, sendo
que, posteriormente, com o advento da abolição, teria ocorrido a decadência e o
afastamento desses artífices.
59
Lírio, Alba. Heitor dos Prazeres: sua arte seu tempo. ND Comunicação, Rio de Janeiro, 2003.
60
Valladares, Clarival do Prado. Catálogo de exposição de Heitor dos Prazeres, galeria ART, São Paulo,
1967.
43
Cessada a produção artística coletiva destinada às igrejas e
comandadas pelas irmandades, os negros e mestiços sofreram redução
dessa via de valorização social do indivíduo. No correr do século
passado (XIX), especialmente nas cidades maiores, o artista se definiu
naquele capaz de educação dispendiosa, necessariamente no
estrangeiro, e de acordo com o gosto dominante da sociedade
consumidora.
A conseqüência imediata deste procedimento foi a rebaixa do negro
para uma margem de afirmação menor. O negro decresce na
integração às elites, à proporção em que se acentuam a alienação e
sofisticação da sociedade dominante. Os dois últimos processos levam
o brasileiro, particularmente o mestiço a assumir a imitação servil, a
aplaudir o gosto importado e a aprovar obra e autor pela procedência,
pelo endereço que lhe parece civilização, progresso, valor. São poucos
os artistas negros ou mulatos de origem popular entre os profissionais
consagrados da última metade da centúria passada, notadamente no
Rio de Janeiro, a metrópole de poderosa atração para as afirmações
vocacionais.
61
Prado Valladares procura justificar historicamente os fatores que teriam levado
à exclusão desses artistas do panorama das artes visuais brasileiras:
A sociedade brasileira sofreu nesses oitenta anos de libertação da
escravatura profundas alterações em seu complexo étnico, com
desvantagem para o negro. O elemento europeu e asiático da
imigração continuada até 1950, a economia organizada dos novos
grupos coloniais, a industrialização comandada, a capacidade
empresarial e a excelente habilidade de ocupação e de fixação,
conferiram ao alienígena desses oito decênios imediata superioridade
econômica.
Muito pouco se fez, e ficaram improfícuas, como iniciativas
educacionais, as tentativas de organizações que se instalaram sob o
propósito de preparar os libertos, os filhos de escravos nascidos sob a
Lei do Ventre Livre, para as profissões requeridas pela realidade
econômica da época.
62
Devemos atentar para a questão da imigração, que, incentivada pelo governo
brasileiro, cambiou a mão de obra do descendente de escravos pela do imigrante,
alegando que esta troca se devia ao despreparo dos recém libertos. Isso, porém, é
injustificável, uma vez que todos os afazeres até então eram designados aos escravos. O
61
Valladares, Clarival do Prado, 1968.
62
Ibidem.
44
incentivo ao embranquecimento do Brasil foi decisivo para a marginalização da mão de
obra afro-descendente:
A Independência e a República, que em quase toda a América deram
lugar a um profundo esforço nacional por elevar o nível cultural da
população, capacitando-a para o exercício da cidadania, não ensejaram
um esforço equivalente no Brasil.
[...] A máquina só funcionava substancialmente para mais consolidar o
poder e a riqueza dos ricos. Com o resultado social dessa política era
um atraso vexatório com respeito aos Estados Unidos, por exemplo, se
desenvolve nas classes dominantes uma atitude de franco
descontentamento para com o próprio povo, cuja condição mestiça ou
negra explicaria o atraso nacional.
Em conseqüência, aos motivos econômicos se somam incentivos
ideológicos para a realização de enormes investimentos públicos a fim
de atrair ao país colonizadores brancos, na qualidade de reprodutores
destinados a “melhorar a raça”. E não se queriam lusitanos porque
também seus avós portugueses se rebelava a alienação oligárquica,
convencida de sua própria inferioridade racial e que explicava seus
êxitos pessoais como exceções.
63
Como exemplo importante e digno de estudo Clarival indica Heitor dos
Prazeres, pela originalidade relacionada ao contexto social de sua obra, dotada de
“potencialidade narrativa”. De acordo com ele, o artista teria sido um caso excepcional
de sucesso e autonomia na criação, rompendo com as barreiras de acesso apresentadas
pelo autor.
Clarival analisa a obra de Heitor descrevendo o processo de criação de suas
pinturas na década de 60, quando Heitor alcançara sucesso comercial e trabalhava
intensamente para atender as encomendas, repetindo figuras e temas.
[...] Como artista ele criava, inventava cenas, figuras e composição.
Uma vez aprovado, tanto por seu espírito poético como pela reação do
público, passava a repeti-lo conforme os pedidos da freguesia.
A maior parte de sua obra corresponde, pois, a réplicas de cenas que
ele criou e depois admitiu como protótipos. Eram temas fixados,
variando em dimensão, número de figurantes, de objetos referidos e de
cores básicas.[...]
[...] Quando se tratava de um quadro de sucesso, para o qual teria de
atender pedidos de vários compradores, fazia-o em esquema, com
63
Ribeiro, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1995, p. 400-401.
45
recortes de cartolina, obedecendo às áreas de cor e o contorno de
figuras, como se faz no fabrico de vitrais. De manhã, ordenava o
trabalho da oficina, dando tarefas a cada assistente. [...]
O trabalho desenvolvia-se por fases. Havia momentos em que a
composição parecia abstrata, antes de receber os “recortes” das figuras
dos objetos. Aos assistentes competia pintar decalcando os modelos de
cartolina ainda sem cabeças, mãos e pés. Heitor dos Prazeres permitia
aos auxiliares atuar até as cores da roupa, mas a ele competia,
rigorosamente, fazer o desenho e o colorido da face e o movimento
dos gestos.
Acompanhando-o mais de perto, pude verificar que enquanto produzia
uma pintura comercializada, em telas, para as galerias e
colecionadores, através do trabalho de assistentes em sistema de
oficina, a ninguém permitia participar da pintura que ele mesmo fazia
nos tecidos dos trajes das cabrochas de seu conjunto musical. Também
era assim que costumava fazer em pratos de madeira, em cartão de
natal e às vezes em simples motivos florísticos, para encomendas de
pessoas de seu nível social. Nesses exemplos, ele mesmo fazia todo o
trabalho sem ajuda de outrem. A produção comercial de seu estúdio,
no seu modo de entender, estava certa e nada tinha de se estranhar.
64
Sem Título, 1964, óleo sobre tela. Coleção Museu Afro Brasil.
64
Lírio, Alba. op. cit., p. 150-151.
46
Sem Título, 1963, óleo sobre eucatex., Coleção Museu Afro Brasil.
A repetição temática caracteriza o artista dentro do contexto da arte moderna.
Acreditamos que, além das questões comerciais, a temática recorrente é um indício da
importância de um determinado tema para a identidade da obra, assim como as
bandeirinhas na pintura de Volpi, por exemplo. Além disso, não podemos esquecer que
na década de trinta, o pintor compôs com Noel Rosa a famosa canção Pierrô
Apaixonado, e naturalmente a figura do pierrô, assim como as cenas de carnaval foram
representadas constantemente pelo artista, justamente devido ao vínculo com seu ofício
de músico e com o carnaval propriamente dito.
As imagens criadas por Heitor dos Prazeres, na opinião de Clarival, eram
“portadoras de uma mensagem: o anseio da integração racial numa sociedade ideal”. Ele
retratava histórias e paisagens das quais fazia parte, distintamente de tantos artistas
modernistas que iam ao mangue ou ao morro retratar algo que não lhes pertencia,
interpretando e apropriando-se de um elemento que não era deles, pintando temas de
fácil sucesso comercial, como as mulatas de Di Cavalcanti.
A contradição se faz presente quando pintores como Di não são confundidos
com primitivos muito menos com ingênuos ou selvagens , por habitarem uma esfera
social diferente, apesar de visitarem a temática “morro, mangue, terreiro”.
47
E por falar no pintor Di Cavalcanti, definimo-lo como um dos casos
mais esquisitos do grã-finismo paulista. O casal Di Cavalcanti, Di
propriamente dito e a esplêndida pintora Noêmia, são queridíssimos
nas rodas elegantes de São Paulo.
[...] Di recebe telefonemas e convites para as melhores festas e as mais
disputadas reuniões. Todo o grã-fino e grã-fina anseiam ser pintados
por Noêmia. [...] É coqueluche, como eles dizem [...] E Di, no fundo,
é quem mais se diverte com aquilo tudo e de vez em quando consegue
vender uma tela sua qualquer grã-fino.
65
Essa esfera social distinta define a maneira com que Di pintava uma mulata e a
forma como a mulher negra era representada numa pintura de Prazeres. Enquanto no
primeiro o estereótipo da mulher sensual brasileira era o assunto central, em Heitor essa
mulher é mais inteira, indo além do objeto de exploração, como apresentado em Casa
Grande e Senzala, impondo sua condição feminina de forma muito mais ampla.
3.3 Rubem Braga
E chegamos a Rubem Braga (1913-1990). Tido por tantos como um dos
maiores cronistas do Brasil depois de Machado de Assis, o escritor capixaba contribui
com sua interpretação a respeito do artista e sua obra. Em seu livro Três Primitivos,
datado de 1953, ele realizou um estudo comparativo entre pintores considerados
populares no Brasil.
Braga analisa nesse estudo os precursores do que seria a arte ingênua em nosso
país, sendo eles Cardosinho (1861-1947), Heitor dos Prazeres (1898-1966) e José
Antônio da Silva (1909-1996). O autor anuncia que não pretende analisar tecnicamente
a pintura:
65
Silveira, Joel. Grã-finos em São Paulo, VVAA, Reportagens que abalaram o Brasil. 1ª Edição, Rio de
Janeiro: Bloch Eds. S.A., 1973, p. 88. In: Arte Privilégio e distinção. P. 105.
48
Deixemos de lado qualquer exame técnico da obra desses três homens,
o que estaria de resto, fora de nosso campo. Apenas procuramos dar
aos seus quadros, aqui reproduzidos, o fundo de uma vida e ambiente
que são, afinal, zonas legítimas da realidade e do sentimento
brasileiros.
66
Devemos considerar que a publicação desse material localiza-se num período
em que a pintura de Heitor era conhecida, tendo participado da primeira Bienal de
Arte de São Paulo, em 1951, com a obra Moenda premiada em terceiro lugar (Prêmio
Toddy de Aquisição).
Boa parte da análise de Rubem Braga destaca passagens conhecidas da
biografia do artista, comentando o começo de tudo:
Foi em 1937 que começou a fazer uns quadrinhos “para enfeitar a
parede”. O jornalista e desenhista Carlos Cavalcanti o estimulou, disse
que ele tinha jeito; suas primeiras aquarelas ficaram com Vicente
Leite. Começou a fazer uns óleos muito escuros.
67
Quando Rubem descreve o assunto das telas, ele parece discordar da opinião
de Clarival a respeito dos anseios do pintor em relação à sociedade, pois acredita que:
Sua pintura é uma flor natural de seu samba e de sua vida, de seu meio
e de suas mulatas de quem ele desenha com amor todos os dentinhos
brancos. Se às vezes exprime algum drama social, como “Os
refugiados” em que aparece a gente pobre carregando seus trastes,
expulsa do barraco de uma favela qualquer, ou uma reivindicação
racial, como naquela sala de jantar em que uma família preta é servida
por uma copeira branca, quase sempre reflete momentos amenos da
vida da gente do samba, não bem a de hoje, mas os do tempo já
antigo, em que para além de São Cristovão o Rio de Janeiro era muito
rural.
Quando questionado a respeito da série de pinturas que representavam pessoas
fugindo entre as matas, Heitor explicou: “é gente do morro. Uma ideia que me veio.
Não estão derrubando as favelas?”
68
66
Braga, Rubem. op. cit., p. 3-4.
67
Ibidem.
68
Lírio, Alba. op. cit.
49
Descendo o Morro, óleo sobre cartão, 36,5 x 54,5 cm.
69
Braga recorda o fato de Heitor ter começado a pintar a partir dos 40 anos,
lembrando que as telas do sambista muitas vezes tratam de “recordações da vida”, como
a imagem da Praça Onze que Carlos Drummond de Andrade tinha em sua casa, e que na
realidade não era mais como aparecia na pintura do artista.
Relembrando as imagens da “roça” pintadas pelo artista, Rubem Braga afirma
que elas se tratavam de
[...] uma ressonância da roça em que ele nunca viveu [...] assim é mais
fiel à sua cidade, cujo sentimento rural os pobres que vêm vindo
renovam sem cessar, e mesmo um homem nascido na Cidade Nova
ainda é no Brasil, como somos todos, uns vagos exilados do país
“essencialmente agrícola”.
70
Segundo o escritor, “sua imensa riqueza interna veio ganhar na pintura uma
expressão irmã do samba, e seria fácil reconhecer o ritmista na composição dos
quadros”. Rubem prossegue afirmando que Heitor não faz pintura do Partido Alto para
deleite dos ricos”, e encerra o texto afirmando que sua pintura é uma expressão
69
Fonte: Bolsa de Arte do Rio de Janeiro, obra em leilão de abril de 2003.
70
Rubem Braga, op.cit., p. 14.
50
legítima do Rio de Janeiro atrapalhado e saboroso a que a miséria nunca pode tirar o
gosto intensíssimo da vida”.
71
Além da análise que fez em livro sobre o pintor sambista Prazeres, Braga
escreveu em sua coluna para o Jornal do Brasil, em 30 de julho de 1964, sobre a
demissão do sambista da Rádio Nacional por questões políticas:
A Última Hora e a Tribuna da Imprensa concordaram afinal em
alguma coisa: em estranhar e reprovar as numerosas demissões na
Rádio Nacional. Hélio Fernandes abunda em adjetivos: absurdas,
despropositadas, sem sentido, desumanas, desnecessárias e
impopulares‟.
O Marechal Castelo Branco pode estar certo que praticou uma grave
tolice ao assinar essas demissões [...].
Heitor dos Prazeres, pintor e sambista, é uma das figuras mais
queridas da vida carioca e no lugar de demiti-lo depois de 22 anos de
serviço como ritmista da Nacional, o governo, se tivesse imaginação e
senso de justiça, devia era inscrever seu nome na Ordem Nacional do
Mérito [...].
72
3.4 Carlos Drummond de Andrade
Entre tantos amigos, Carlos Drummond de Andrade se destaca. Ele foi
apresentado ao pintor por Carlos Cavalcanti na década de 30, quando Heitor morava na
Praça Tiradentes. Sua intenção era ter um poema seu musicado pelo sambista; ao
recebê-lo, Prazeres acabou transformando os versos em pintura.
No período em que Drummond foi chefe do Gabinete do Ministro Capanema,
ele empregou Heitor no Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico do Ministério
da Educação e Cultura Laboratório de Restauração de Artes como auxiliar de
restauração.
71
Ibidem.
72
Lírio, Alba. op. cit.
51
Em 1967, o poeta escreveu no catálogo de uma exposição póstuma do amigo
pintor:
Não sei como os sábios explicam o „caso„ Heitor; a mim, que sou
leigo me parece um resultado feliz de aculturação: toda a vivacidade e
delicadeza de elementos originais do negro se preservaram nele, em
contato com formas culturais diversas; e sem choque, mas sem a
renúncia ao que ele tinha de melhor em sua ancestralidade. Heitor se
integrou na cultura urbana e cosmopolita do Rio, dando-nos ao mesmo
tempo um exemplo de pureza e autenticidade.
73
Segundo Luis da Câmara Cascudo, “a aculturação é o resultado da influência
de padrões estrangeiros na cultura orgânica de um povo”; Cascudo afirmou que “os
povos de índice cultural „inferior‟ têm uma personalidade defensiva muito mais
eficiente que os povos medianos, de cultura agenciada, em detrimento dos padrões
nacionais lógicos”
74
.
Carlos Drummond de Andrade, na tentativa de compreender a produção
artística de Mano Lino, definiu suas referências como “elementos originais do negro”
relacionados a culturas diversas, sem que Heitor perdesse sua “ancestralidade”
sinônimo de pureza.
Stuart Hall, citando Mary Louise Pratt,
75
defende que o processo de “resultado
híbrido” das culturas das colônias na América torna difícil a tarefa de desagregar
elementos “autênticos de origem”, afirmando ser a “lógica colonial” de um “tipo
transcultural”:
Através da transculturação “grupos subordinados ou marginais
selecionam e inventam a partir dos materiais a eles transmitidos pela
cultura metropolitana dominante”. É um processo da “zona de
contato”, um termo que invoca a “co-presença espacial e temporal dos
sujeitos anteriormente isolados por disjunturas geográficas e históricas
[...] cujas trajetórias agora se cruzam”. Essa perspectiva é dialógica,
73
Andrade, Carlos Drummond. Catálogo de exposição da Galeria Art, São Paulo, 1967.
74
Cascudo, Luís da Câmara. Civilização e Cultura. São Paulo: Global Editora, 2004.
75
Pratt, Mary Louise. “Imperial Eyes: Travel Writing and Transculturation”. In: Hall, Stuart. Da
diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 31.
52
que não é tão interessada em como o colonizado produz o colonizador
e vice-versa.
É fato também que, a essa transculturação que marcou a identidade de Prazeres como
artista urbano moderno, soma-se a noção de “comunidade imaginada”
76
: a Praça Onze
como a Pequena África, frequentada e vivida por aqueles sambistas, com suas tias
baianas a construir a identidade da população.
76
Anderson, Benedict. Imaginated Communities. Edição. London: Verso, 1991. In: Hall, Stuart. Da
diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 26.
53
4. PINTURA
4.1 Arte afro-brasileira
Uma ciência não escapa à ideologia quando oblitera as condições de
seu aparecimento ou de sua produção. Um saber é engajadamente
ideológico quando recalca não apenas as circunstâncias de sua
produção, mas também todo e qualquer outro saber possível em torno
de seu campo.
77
A arte europeia sofreu grande modificação a partir da Renascença, tendo seu
significado social profundamente alterado.
Digno de nota seria não considerarmos a produção de pinturas, esculturas
sacras e encomendas feitas pela corte, pela Igreja e por pessoas da alta sociedade, que
eram, naquele período, o veículo para o desenvolvimento da obra de artistas como
Michelangelo e Da Vinci para citarmos apenas as referências mais populares, afinal
este não é um estudo a respeito da Renascença Italiana.
Mário Pedrosa considera o Renascimento a obstrução do processo de
permanência transmitido através de mitos e ritos, que teriam a função de preservação de
“modos de observação e reflexões exatamente adaptados a descobertas autorizadas pela
natureza”.
78
O autor desenvolveu suas formulações a partir do conceito de Lévi-Strauss
sobre os mitos e os ritos, apostando na importância do chamado primordial da natureza,
em que a relação com a observação e a reflexão não teria mera função fabuladora.
79
Segundo ele, a função de mitos e ritos seria, na verdade, uma estratégia de
manutenção de “modos de observação e reflexões exatamente adaptados a descobertas
77
Sodré, Muniz. Prefácio de Contos Crioulos da Bahia, Mestre Didi. In: Sodré, Jaime. A influência da
religião afro-brasileira na obra escultórica de Mestre Didi. p. 181.
78
Pedrosa, Mario. Mundo, Homem, Arte em Crise. 2ª Edição. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 227.
79
Strauss, Claude Lévi-. O pensamento Selvagem. Edição. São Paulo: Papirus. In: Pedrosa, Mario.
Mundo, Homem, Arte em Crise. 2ª Edição. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 227-228.
54
autorizadas pela natureza”.
80
Entretanto, o próprio autor admite que a arte sacra, ainda
na Alta Renascença, tinha a função religiosa de instruir o povo sobre episódios da vida
de Cristo ou das Santas Escrituras, que são essencialmente relacionadas a mitos e ritos
daquela sociedade.
De certo modo, tanto na Europa quanto na África a arte fluiu em processos que
envolviam questões sociais, comerciais e estéticas, adequadas às suas necessidades. O
problema do choque entre os conceitos estéticos de cada civilização é concomitante ao
processo de colonização em que diferentes culturas entram em contato; a despeito da
diversidade de culturas que os europeus encontraram, os desdobramentos desses
encontros resultaram em dominação e crescente subordinação.
Temos alguns exemplos das civilizações africanas encontradas pelos viajantes
europeus no período de sua expansão colonialista:
[...] A Etiópia, no século IV assiste ao apogeu do Império de Aksum,
vinculado ao Reino de Sabá, que professava o cristianismo antes da
conquista dos árabes. No Sudão, por influência muçulmana, florescem
os Reinos de Gana, Shongai, Kanem, e Malinké, entre os séculos XI e
XIV. Universidades funcionavam em localidades como Timbuctú
ou Gao, antes da Europa. No século XVI, portugueses conheceram
outros impérios isentos da influência muçulmana, como Manicongo,
no Congo, cujos reis se converteram ao cristianismo, tendo inclusive
um príncipe consagrado como o primeiro bispo negro.
Os europeus também tiveram contatos com os reinos feudais Yorubá,
Dahomey, Benin, entre outros, e com as zonas chamadas Costa do
Marfim, de Escravos e do Ouro, que faz referência ao comércio ali
praticado. a observação comum a estes reinos é a existência de
soberanos divinos, com sua corte integrada por artistas, como
escultores, entalhadores, músicos, poetas, fundidores de bronze,
sacerdotes, e uma população urbana muito especializada em seus
ofícios, como comerciantes e artesãos.
81
80
Ibidem.
81
Sodré, Jaime. op. cit., p. 85.
55
Esse processo de dominação repercutiu na formação do Brasil, país colonizado
com a base de seu desenvolvimento estruturada principalmente a partir da mão de obra
africana na condição de escravidão.
A partir de um depoimento de John Luckok mercador inglês que viajou pelo
Brasil entre os anos de 1808 e 1818, e que em 1820 publicou um livro que trata da
cidade do Rio de Janeiro e da região sul do país , podemos analisar a dimensão das
mãos africanas na construção do Brasil, então colônia de Portugal:
Toda a casa em que se prezava era provida de escravos aos quais se
haviam ensinado algumas ou mais artes comuns da vida e que não
somente trabalhavam nessas especialidades (carpinteiros, pedreiros,
ferreiros) para a família a que pertenciam como eram também
alugados pelos senhores e pessoas não tão bem providas quanto
aqueles. Não conseguiam ganhar muito.
[...] Antes das dez horas da manhã, quando o sol começava a subir alto
e as sombras das casas se encurtavam, os homens brancos se faziam
raros pelas ruas e viam-se então os escravos mandraceando à vontade,
ou sentados à soleira das portas,fiando, fazendo meias ou tecendo uma
espécie de erva com que fabricavam cestos e chapéus. Outros
prosseguiam nos seus trabalhos de entregadores, saíam a recados ou
levavam à venda, sobre pequenos tabuleiros frutas, doces, armarinhos,
algodõezinhos estampados e uns poucos outros gêneros. Todos eles
eram pretos, tanto homens como mulheres, e um estrangeiro que
acontecesse de atravessar a cidade pelo meio-dia quase que poderia
supor-se transplantado para o coração da África.
82
Certamente, na arte desenvolvida em terras brasileiras o uso dessa mão de obra
se tornou imprescindível, pois, durante séculos, foi ela quem ergueu igrejas, esculpiu o
barroco brasileiro, construiu palácios, pintou tetos e os decorou. Mesmo que os mestres
daqueles afazeres muitas vezes fossem europeus, a grande dimensão dessas obras
implicava o trabalho cativo.
Aprendendo por força da necessidade do seu trabalho, um ofício, ou
exercendo uma atividade considerada não mecânica, conforme a
época, o negro e sua conseqüência, o mulato ou o pardo, soube impor
sua equidade de criação e sua compreensão, nos parâmetros dos seus
legados culturais africanos, do mundo luso-brasileiro [...] nada se pode
82
Luckock, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. In: Neves, Maria de
Fátima Rodrigues das. Documentos sobre a escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto, 1996.
56
estudar, em arte no Brasil, sem estabelecer a relação com os homens
de cor.
83
Esse fato contribui para compreendermos a representação de santos e anjos
com características africanas na cor da pele, nas feições e nos cabelos muitas vezes
encontrados em pinturas e entalhes das igrejas coloniais.
Na conexão da afro brasilidade à arte cristã, o dado que primeiro salta
aos olhos é a representação de santos e anjos com traços negróides, o
amulatamento das figuras representadas em pinturas, retábulos e
imagens católicas.
84
Roberto Conduru problematiza a questão do início das artes no Brasil e
questiona sobre qual África poderia teria permanecido e forjado a arte nacional. O autor
chega a cogitar atavismos culturais ou “forças plásticas e simbólicas que ressurgem não
racionalmente”, descartando a transmissão de informações de mestre para aprendiz, tão
difundida na África e que aqui se manteve no exercício de ofícios.
[...] negros de ganho, foram empregados como carregadores,
estivadores, ferreiros, pedreiros, carpinteiros, fabricantes de
carruagens e de móveis, tipógrafos, pintores, ourives, litógrafos,
escultores em madeira e pedra [...].
85
Jaime Sodré, analisando mais profundamente a questão, afirma que a cultura
negra sobreviveu ao que poderia ser chamado de seu extermínio porque soube se
guardar no recesso de comunidades religiosas, nas irmandades, e especialmente nos
terreiros. De acordo com ele, a resistência e adaptação revelam a permanência do
essencial, que hoje cultuamos, no sentido amplo”.
86
83
Araújo, Emanoel (org). A mão afro brasileira: significado da contribuição artística e histórica. São
Paulo: Tenenge, 1988. In: Sodré, Jaime, op.cit.
84
Conduru, Roberto. Arte afro brasileira. Belo Horizonte: C/Arte, 2007.
85
Pierson, Ronald. Branco e pretos na Bahia. São Paulo: Editora Nacional, 1971, p. 20. In: Sodré, Jaime.
A influência da religião afro-brasileira na obra escultórica de Mestre Didi.
86
Sodré, Jaime, op. cit., p. 182.
57
Não importa o quão deformada, cooptadas e inautênticas sejam as
formas como os negros e as tradições e comunidades negras pareçam
ou sejam representadas na cultura popular, nós continuamos a ver
nessas figuras e repertórios, aos quais a cultura popular recorre, as
experiências que estão por trás delas.Em sua expressividade,
musicalidade, sua oralidade e na sua rica,profunda e variada atenção à
fala;em suas inflexões vernaculares e locais; em sua rica produção de
contranarrativas; e,sobretudo, em seu uso metafórico do vocabulário
musical, a cultura popular negra tem permitido trazer à tona, até nas
modalidades mistas e contraditórias da cultura popular mainstream
elementos de um discurso que é diferente - outras formas de vida,
outras tradições de representação.
87
Podemos afirmar que essa cultura permaneceu principalmente na forma de
resistência, pois os processos de repressão e coação eram inúmeros, e a manutenção da
transmissão de conhecimentos é garantida em nossas terras através da adesão e
preservação de manifestações culturais ao longo dos séculos;
A persistência de formas culturais africanas foi favorecida pela
concentração de negros na cidade do Salvador, em especial dos
“negros de ganho”, semi-independentes, em torno dos quais se reunia
um contingente considerável de pretos livres, pouco assimilado.
88
Como vimos no primeiro capítulo, o cenário do Rio de Janeiro é semelhante ao
de Salvador, uma vez que muitos membros de comunidades baianas deslocaram-se para
a capital federal. As casas das Tias baianas seguiam um curso similar às da Bahia, em
que
também nessa época, ouviam-se com freqüência, em cerimônia do
candomblé, músicas de origem africana, isso por volta de 1900, e
“numerosas imagens usadas na adoração afro brasileira eram
importadas da África e outras eram feitas na Bahia por escultores de
cor”.
89
A manutenção de tradições é a garantia da arte afro-brasileira como
compreendida nos dias de hoje, pois, ao longo dos anos, ela sofreu adaptações, adquiriu
87
Hall, Stuart. op. cit., p. 323-324.
88
Sodré, Jaime, op. cit., p. 114.
89
Pierson, Ronald. Brancos e Pretos na Bahia. São Paulo: Editora Nacional, 1971, p. 120. In: Sodré,
Jaime, op. cit., p. 114.
58
novas maneiras de veiculação e aderiu a novas tecnologias, comprovando sua
importância e garantindo sua sobrevivência, haja vista que a cultura não pode se tornar
estática, a não ser que esteja morta.
Primeiro, peço que observem como, dentro do repertório negro, o
estilo que os críticos culturais da corrente dominante muitas vezes
acreditam ser uma simples casca, uma embalagem, o revestimento de
açúcar na pílula se tornou em si a matéria do acontecimento.
Segundo, percebam como, deslocado de um mundo logocêntrico
onde o domínio direto das modalidades culturais significou o domínio
da escrita e, daí, a crítica da escrita (crítica logocêntrica) e a
desconstrução da escrita , o povo da diáspora negra tem, em oposição
a tudo isso, encontrado a forma profunda a estrutura profunda de sua
vida cultural na música. Terceiro, pensem como essas culturas têm
usado o corpo como se ele fosse, e muitas vezes foi, o único capital
cultural que tínhamos. Temos trabalhado em nós mesmos como em
telas de representação.
Existem aqui questões profundas de transmissão e herança cultural, de
relações complexas entre as origens africanas e as dispersões
irreversíveis da diáspora; questões que não vou aprofundar aqui. Mas
acredito que esses repertórios da cultura popular negra uma vez que
fomos excluídos da corrente cultural dominante eram
frequentemente os únicos espaços performáticos que nos restavam e
que foram sobredeterminados de duas formas: parcialmente por suas
heranças, e também determinados criticamente pelas condições
diaspóricas nas quais as conexões foram forjadas. A apropriação,
cooptação e rearticulação seletivas de ideologias, culturas e
instituições européias junto a um patrimônio africano [...] conduziram
a inovações lingüísticas na estilização retórica do corpo, as formas de
ocupar um espaço social alheio, a expressões potencializadas, a estilos
de cabelo,a posturas, gingados e maneiras de falar, bem como a meios
de constituir e sustentar o companheirismo e a comunidade.
90
Desta forma, a arte afro-brasileira nos leva a problematizar de que forma se
constituiu e os motivos de ser assim nomeada:
A questão fundamental que se coloca não é descobrir nas artes
plásticas afro-brasileiras os universais da arte em geral, mas sim de
defini-la, ou melhor, descrevê-la em relação à arte brasileira de um
modo generalizado. Em outras palavras, se a arte afro-brasileira é
apenas um capítulo da arte brasileira, por que então este qualificativo
“afro” a ela atribuído?Descobrir a africanidade presente ou escondida
nessa arte constitui uma das condições primordiais de sua definição.
Mas que africanidade é essa, quando sabemos que os criadores dessa
arte são descendentes de africanos escravizados que foram
transplantados no Novo Mundo?Transplantação essa que operou um
90
Hall, Stuart, op. cit., p. 324-325.
59
corte e, consequentemente, uma ruptura, que, hipoteticamente, teria
provocado uma despersonalização, ou seja, uma perda de identidade,
ficam colocados o problema e as condições de continuidade dos
elementos de africanidade nessa arte, por um lado, e a questão das
novas formas recriadas no Novo Mundo e de como essas novas
formas poderiam ainda ser impregnadas de africanidade, por outro.
91
Exemplificando os modos de permanência de elementos africanos culturais e
artísticos em terras brasileiras elementos que, segundo Munanga, “para que possam
ser retidos na memória de um indivíduo cortado de suas raízes é preciso que pertençam
ao núcleo de sua existência, pois é este último que sobrevive à ruptura” , percebemos
os desdobramentos complexos dessas manifestações na nova organização social
imposta:
[...] podemos concluir que a continuidade e a recriação de todos os
elementos da arte africana não foram integrais, porque a totalidade de
suas estruturas social, política, econômica e religiosa não foi
transportada para o Novo Mundo. No entanto, a continuidade de
algumas formas de sua arte só foi recriada parcialmente, em função de
suas novas condições de vida. Outras não foram recriadas pois, tendo
em vista que se tratava de uma arte utilitária e funcional, elas não
encontraram um quadro funcional suficiente para se manterem apesar
de sua presença na memória coletiva.Seria o caso entre outros, das
artes da corte [...]. Com efeito, as cortes reais africanas das regiões de
onde foram trazidos homens e mulheres que foram escravizados no
Brasil (reinos do Congo, Cuba, Luba, Lunda, Cokwe etc., na África
Central, e os reinos Yorubá, Fon, Ashanti etc., na África Ocidental),
assim como todas as instituições a elas ligadas, foram motivos de
grandes obras de arte.
92
O autor afirma que a religiosidade é “um campo cultural muito resistente, no
qual se pôde nitidamente observar o fenômeno de continuidade dos elementos culturais
africanos no Brasil”, embora a “conversão dos negros africanos” figurasse “entre os
motivos evocados no século XVI para legitimar e justificar a escravidão”.
91
Munanga, Kabengele. op. cit., p. 98-111.
92
Ibidem.
60
Naturalmente, a produção de objetos litúrgicos foi necessária para as práticas
religiosas; para Munanga, é assim que surge a primeira manifestação das artes plásticas
afro-brasileiras. Uma arte sem dúvida religiosa, funcional e utilitária.”
Como vimos no segundo capítulo, é a partir da década de 30 do século XX que
verificamos novos rumos para as manifestações artísticas de características africanas,
com modificações adaptadas à realidade brasileira.
A expansão desta expressão para fora dos terreiros desencadeou a produção de
uma arte diversificada em relação ao que seria a temática relacionada á afro brasilidade;
de acordo com Munanga, os que “se utilizam do tema incidentalmente” (Tarsila do
Amaral, Lasar Segall, Alberto da Veiga, Guignard, Portinari, Djanira, José Pancetti,
Santa Rosa, entre outros), “da mesma maneira que o fazem com a indígena, a europeia,
ou outras que possam polarizar sua criatividade pessoal”. Para ele, que cita estudos de
Marianno Carneiro da Cunha para elaborar essas classificações, não seria possível
considerar esses artistas como sendo afro-brasileiros, pois isso “equivaleria a chamar o
Picasso das Demoiselles d‟Avignon de afro-francês ou afro-espanhol”.
Os artistas que de maneira consciente e sistemática lançaram mão da temática
afro-brasileira seriam Carybé, Mario Cravo Jr., Hansen Bahia e Di Cavalcanti. Para
Kabengele Munanga, entretanto, seria arriscado considerar Di como um afro-brasileiro
em sua arte, pois o oposto a busca de um ideal de beleza feminina branca poderia
gerar a classificação de artistas brancos ou negros como euro-brasileiros.
O terceiro grupo pertence ao de artistas que usaram a temática espontânea e
inconscientemente; ele cita “Guma, um branco gaúcho, e Louco, negro de Cachoeira, na
Bahia”. Para problematizar mais ainda a questão, Munanga questiona como
classificaríamos as obras da maioria dos artistas afro-brasileiros negros e mestiços,
que os da primeira e da segunda categoria seriam brancos.
61
Alguns elementos, segundo ele, poderiam ser indicadores de vantagens da
interpretação dos âmbitos de africano e brasileiro juntos. Esses elementos seriam:
[...] a forma ou o estilo; as cores e seu simbolismo; a temática; as
fontes de inspiração, todos harmoniosamente articulados através do
domínio de uma técnica capaz de dar corpo e existência a uma obra de
arte autêntica. Outros como a monumentalidade, a repetição, a
desproporção entre partes do corpo e a conceituação das idéias vêm se
somar para aprofundar a diferença entre a arte africana no singular, a
arte ocidental e outras.
93
Para Munanga, o estudo da arte afro-brasileira está apenas começando, e
carece de alguns “postulados básicos” para que possa “merecer e conservar seu atributo
e qualificativo de „afro‟”. Por isso, faz-se necessário o estudo específico desses artistas,
que ainda devem ser profundamente analisados. Kabengele enumera alguns: “Agnaldo
Manuel dos Santos, Rubem Valentim, Ronaldo Rego, Hélio de Oliveira, Mestre Didi,
Abdias do Nascimento, Emanoel Araújo, Sidney Lisardo etc.”. Incluímos, entre esses
artistas, o trabalho de Heitor dos Prazeres.
4.2 Brasil brasileiro
As primeiras décadas do século XX no Rio de Janeiro não foram favoráveis a
uma maior aceitação da cultura da população dos cortiços e subúrbios que se encontrava
na Praça Onze e nas festas da Penha:
[...] o que poderíamos chamar de ascensão social do samba, um gênero tão
execrado pelas classes dominantes das primeiras décadas do século que a
polícia prendia quem o cantasse, dançasse ou tocasse. E ai daquele que
andasse pelas ruas carregando um violão. Sendo negro mesmo é que a
situação piorava
94
.
93
Ibidem.
94
Cabral, Sérgio. Prefácio de Mistério do Samba, de Hermano Vianna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2004.
62
Entretanto, na capital do Brasil, uma transição ocorreu em relação à aceitação
daquela manifestação cultural, que foi gradualmente incorporada até tornar-se símbolo
da expressão nacional. Como vimos anteriormente, isso se deu através da atuação dos
sambistas, dentro da lógica dialética entre governo, intelectuais, boêmios (muitas vezes
boêmios e intelectuais), através da “luta cultural” enunciada por Stuart Hall.
Capital do Brasil desde 1763, o Rio de Janeiro era o destino de levas
de brasileiros livres e escravos, além de africanos vindos diretamente
de seus países de origem, transformando a cidade numa espécie de
síntese da cultura popular do país. [...]
A Europa e a África influenciavam decisivamente a vida do carioca de
modo geral, e, em particular, o seu carnaval.
95
Em depoimento citado no livro O Mistério do Samba, de Hermano Vianna,
Donga relembra a casa em que morava com Pixinguinha e Heitor dos Prazeres na Rua
do Riachuelo, centro do Rio de Janeiro, no início dos anos 10:
Embora sendo um antigo pardieiro [...] nos sentíamos bem instalados
e achamos boa a nova residência. No local, éramos visitados por gente
como Catulo da Paixão Cearense, Olegário Mariano, Bastos Tigre,
Hermes Fontes, Medeiros de Albuquerque, Edmundo Bittencourt,
Emilio de Menezes, Gutemberg Cruz e o grande Dr. Afonso Arinos de
Mello Franco, presidente na época da Academia Brasileira de Letras.
Ele nos apreciava tanto que sempre nos convidava para as audições
em sua residência, na praia de Botafogo, e na sua fazenda, no
Tombadouro [...].
96
A quantidade de artistas que pintaram, entalharam, esculpiram, dançaram
tocaram e cantaram, criando um conjunto de manifestações ao longo da história do país
muito antes de o primeiro samba ser tocado, deram corpo a um acervo artístico-cultural
que resultou nessa construção de identidade do século passado.
95
Cabral, Sergio. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996, p. 19-20.
96
Vianna, Hermano, op. cit.
63
Inseridos neste panorama, passemos a investigar o ponto de partida da obra de
Heitor dos Prazeres: o samba e seus protagonistas.
4.3 Pintura de Heitor
Foi no ambiente do terreiro de Tia Ciata, na convivência na Praça Onze e nas
festas da Penha, que Heitor dos Prazeres,Ogã Alabê-Nilu filho de Xangô,
ainda menino, tocou suas primeiras composições. Coerente com seu universo e com
suas referências culturais, ele utilizou aquele mesmo repertório anos mais tarde, em suas
pinturas figurativas que representam imagens das rodas de samba, dos terreiros, da
arquitetura das favelas, do mangue, dos bares dos boêmios, do carnaval enfim, do
cotidiano dos bairros suburbanos onde viveu, e de um Brasil rural que nele ecoava,
embora não tivesse propriamente vivido nele.
A minha pintura para mim é importante. É uma fuga das minhas
dores, das minhas mágoas, do meu sofrimento, das minhas paixões.
Eu me sinto num outro mundo, um mundo sofredor, um mundo
gozador, um mundo de felicidade. Um mundo feliz. É, a pintura me dá
toda essa alegria, me proporciona tudo isso que é riqueza para mim.
Na pintura eu sonho, eu sonho música, eu sonho momentos amorosos,
eu sonho alegria, enfim, tudo eu sonho, tudo me dá riqueza. Não
consigo fazer nada que não existe porque eu não me sinto bem. Estas
figuras que eu faço são de coisas que eu já vi, que ainda existem, estes
bailes, estas macumbas, estes sambas, estas coisas que existem. Tanto
existem que eu sou um dos que existem. Não preciso ver mais, não
preciso modelo. Eu tenho tudo aquilo do passado e de agora, dentro da
minha memória.
97
Como seu trabalho de coreógrafo, compositor e instrumentista continuou a se
desenvolver durante os anos de sua produção pictórica, não devemos analisar sua
pintura isoladamente, sem considerar o contexto de suas outras formas de expressão.
97
Transcrição de documentário de Antonio Carlos da Fontoura, 1965.
64
O envolvimento com a dança, o corpo, a música, o carnaval carioca e as
amizades acabou por ecoar em sua produção, como se fosse um registro desses eventos;
como se ele tivesse a necessidade de contar, através da pintura, aquilo que via e vivia.
Em sua maneira de pintar com figuras de um rigor decorativo, simétricas em sua
composição, organizadas seriada e repetidamente como em um ritmo , as cores
vibrantes e “carnavalescas”, que possuíam delicadas variações tonais, tingiam as
imagens de mulheres e homens a dançar ou a celebrar alguma coisa. Dessa maneira,
Heitor dos Prazeres procurava ilustrar seu próprio olhar sobre as heranças culturais e as
paisagens urbanas em que vivia.
Podemos considerar as pinturas de Heitor como um valioso registro de um dos
ambientes de maior efervescência cultural de nosso país, berço das primeiras escolas de
samba do Brasil.
Sua produção ficou rotulada como naïf devido ao autodidatismo e ao
repertório visual de suas imagens, vinculadas a cenários “populares”. Este rótulo foi
aceito ou, pelo menos, não contestado por Prazeres provavelmente por razões
comerciais, visto que as encomendas não cessavam, obrigando-o a articular uma equipe
para produzir suas pinturas sob sua orientação, como descreve Clarival em sua análise a
respeito da produção do artista. Temos aqui uma reflexão a respeito desse processo
pelas palavras do próprio artista:
[...] Mas é triste algumas coisas que eu faço que o destino não me
agrada. Coisas que eu faço que tenho amizade, que eu pretendia
guardar pra mim. Então vem um, gosta, leva, vem outro, faço outra
coisa, vem outro, gosta, leva. Então me sinto acorrentado,
obrigado a fazer comércio de formas que são desagradáveis.
É um sofrimento pro artista, porque me sinto comercializado. Eu
sinto que estou fracassando, por quê? Fracassando por que eu sou
obrigado a fazer coisas que não estão na minha vontade por causa do
comércio. Eu faço uma coisa que inspiro, a pessoa vem e pede outro
igual, depois vem outro e pede outro igual, depois vem outro e pede
outro igual, de forma que é uma tristeza. O artista que é obrigado a
65
comercializar-se, a atender situações de mercado, vive acorrentado e
acaba morrendo não fazendo aquilo que ele quer (sic).
98
Entretanto, caracterizar sua obra como ingênua acaba por reduzir a análise da
produção do artista. O estereótipo de pureza, ignorância e infantilidade impede o
simples ato de perceber sutilezas, nuances da obra sob outras perspectivas, pois a
produção de Heitor dos Prazeres, artista urbano, não diferia muito do que era produzido
pelos modernistas. Em razão de enriquecer assim a discussão acerca de sua obra, é
preciso desconsiderar a possibilidade de que um artista possa estar num estado de
pureza intocável semelhante ao de crianças e não sofrer influência daquilo que está
ao seu redor; principalmente se considerarmos uma cidade efervescente como o Rio de
Janeiro, a atuação deste artista no rádio, em turnês musicais dentro e fora do Brasil, e
suas participações em Bienais, desempenhando uma função pública no Ministério da
Educação e Cultura da outrora capital do país.
Pretendemos analisar a pintura de Heitor dos Prazeres a partir de suas obras
em acervos de museus cariocas e paulistas, observando a temática de cada uma das
quatro décadas compreendidas entre o período dos anos 30 até os anos 60. Além disso,
pretendemos analisar a ligação de sua produção com a herança afro-brasileira,
destacando eventos importantes para sua carreira, como as Bienais de São Paulo, a Feira
de Arte de Dakar e outras exposições.
O contato com imagens era uma realidade urbana da cultura de massa. A
imprensa carioca estava em franco desenvolvimento, produzindo jornais, almanaques,
revistas e cartazes em profusão nas primeiras décadas do século XX. As ilustrações
eram feitas por importantes desenhistas e caricaturistas, como J. Carlos, Crispim do
Amaral, K. Lixto, entre outros, e Heitor não estava isolado deste contexto urbano.
98
Ibidem.
66
Charge de K.Lixto para a revista Fon Fon, em 1912.
No início do século e nas cinco décadas seguintes, temos publicações como as
revistas Careta (1908-1960), O Cruzeiro (1928-1975) e O Malho, que foi uma revista
humorística brasileira criada por Crispim do Amaral em 1902, e interrompida na década
de 30. Tanto O Malho quanto a revista Para Todos entre 1922 e 1930 foram
dirigidas pelo grande designer e caricaturista J. Carlos.
Ilustração de K. Lixto para a capa da revista O Malho, maio de 1903.
99
O Tico Tico, lançada pelo jornalista Luís Bartolomeu de Souza e Silva, foi a
primeira revista a publicar histórias em quadrinhos no Brasil. Sua primeira edição saiu
no dia 11 de outubro de 1905, e, nos anos 60, começou a lançar apenas almanaques
99
Fonte: Fundação Casa de Rui Barbosa.
67
ocasionais, sendo finalmente fechada. Houve também a Revista da Semana, semanário
brasileiro editado de 1900 a 1962, e a Fon Fon, publicada entre 1907 até 1958.
100
Na década de 30, mais precisamente em 1931, a revista Para Todos publicou
uma matéria de duas páginas sobre as festas da Penha. Heitor dos Prazeres figurou
como personagem central dessa crônica sobre o evento, que aqui citamos na íntegra:
um samba em cada barraca, no arraial da Penha.As melodias se
misturam, e de longe parece que não são muitas, mas uma meio
desarticulada, cantada por 100 violões, animada por mil gargantas.De
perto, porém tudo se vae desaggregando, subdividindo-se, e então aqui
se nota bem nitido, o “Arrependido”, ali “Deixa essa mulher chorar” e
longe, na subida do morro, “o Rancho fundo” chorando numa voz
mais dolente.
E antigamente a Penha não era assim.Dizem os que vieram do passado
que a Penha era, sobretudo uma apotheose à virgem boa que vive no
alto, espalhando bênçãos sobre a cidade grande, fazendo milagres,
socorrendo os afflictos, dando-lhes, de graça, esperanças immensas....
Veio depois o samba, que fascina tanto, e acampou ao do morro,
rendendo também aqui de baixo, a sua homenagem á padroeira que
mora lá em cima, em montanha de granito...
Não digam ao sambista que elle está commettendo um peccado,
agindo assim.
Naquella orgia de música bohemia seria muito infeliz quem dissesse
que a virgem não faz milagres...O sambista que canta pela sua virgem
e pelo seu amor, saltaria como um louco, para defender a verdade que
elle cultua com a maior de todas as devoções...E o arraial seria, todo
elle,um campo de guerra santa pela gloria de todas as coisas christãs...
Olha-se em torno daquela paisagem quasi interminável de feira
colorida:e ha milhares de cabeças levantadas para o alto, recebendo
gostosamente a cerveja loura que cahe tantos copos suspensos ao ar.
É a Penha exaltação de todos os sentidos romanticos do homem
simples.
Canuto é como um Gary Cooper que tivesse nascido em Favella.Vem
com o seu grupo cantando os seus sambas:
“Vou a Penha rasgado
Pra pagar uma promessa
Eu não sou malandro
Porque tenho trabalhado
Vou de chinello charlotte
Terno de cimento armado
Só é o que a nota tem dado..”
É a Penha - treino individual de samba para as grandes olympiadas de
Momo...
No outro lado impera a fantasia de Heitor dos Prazeres, e as morenas
que cantam “Mulher de malandro”:
100
Fonte: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
68
“Mulher de malandro sabe ser
carinhosa de verdade
Ella vive com tanto prazer e quanto
Mais apanha
Ella tem amizade
Longe de mim tem saudade...”
Casam-se no espaço debaixo da sombra das árvores e das barracas, as
orações profanas da vida e do amor.
E encontram-se, no alto,com os canticos que descem da igreja
exaltando a morte...
É a Penha provando, com a realidade das coisas, que o dictado dos
livros classicos - “in Vino Veritas” continua sendo o mais perfeito
de todos os espelhos do mundo, porque e mais forte que raio-x e
porque põe na testa de toda gente um cartaz bem explicativo que
afasta todas as duvidas.
101
Além das publicações da época, de acordo com depoimento do pintor no
documentário de Antonio Carlos da Fontoura, a cartilha de sua infância marcou sua
memória. Segundo ele, que dizia ter passado por “mais de duzentas e sessenta e uma
escolas”, as figuras da Cartilha Felisberto Carvalho, fartamente ilustrada, foi um contato
marcante.
Na minha infância existia a cartilha de Felisberto Carvalho, a qual
tinha umas ilustrações e aquelas ilustrações apenas é que me seduziam
e eu não consegui aprender a ler e escrever até hoje. Porque as
ilustrações é que me seduziam e o que me interessava era desenhar, eu
coloria aquelas ilustrações.
102
Semelhante a muitas crianças, Heitor desenhava por gosto, mantendo esse
hábito mesmo durante sua carreira como músico consolidada. Não eram raros os
momentos em que amigos de boemia, como o jornalista Carlos Cavalcanti, o viam a
rabiscar guardanapos ou papéis que tivesse em mãos. Heitor decidiu dedicar-se à pintura
com mais afinco na década de 30 do século passado, época em que perdeu sua primeira
esposa. Ele optou, inicialmente, por imagens introspectivas, sem pretensões comerciais.
101
Revista Paratodos, sem identificação de autor, edição de 07/11/1931, nº 637, p. 7.
102
Transcrição de documentário de Antonio Carlos da Fontoura, 1965.
69
No início, “Heitor pintava com tinta guache, preparada por ele mesmo [...].
Mais tarde passou a utilizar a técnica de pintura a óleo”.
103
Sua paleta de marrons e
azuis deu o tom a cenas como Sonho, guache sobre cartão de 1939, em que o artista
aparece dormindo no centro da tela, sonhando com sua falecida esposa representada ao
lado esquerdo.
Esta cena em nada remete ao propalado imaginário primitivo ou ingênuo, tão
festejado pela crítica e consumido pelo público em décadas posteriores. A pintura em
questão traz uma cena onírica bem ao gosto das ilustrações da época, transfigurando o
inconsciente do sonhador em retrato flutuante a visitar seus sonhos, compartilhando a
agonia (da perda da amada) com o espectador.
Ao lado direito do sonhador, vemos o relógio medindo o tempo, imagens na
parede (fotografias, talvez?) e parte do estojo de violão. No centro, sonhando, virado
para a imagem projetada por seu inconsciente, ele parece recusar as coisas terrenas à
direita da tela, almejando a figura feminina; ela, por sua vez, não olha para ele, e é
representada perto da cadeira vazia, sendo que os mesmos tons de azul escuro colorem
tanto seu vestido quanto o encosto e o assento da cadeira. O quarto, ambiente privado
revelado através da pintura, convida o espectador a invadir sua intimidade.
Percebemos nesse princípio a preocupação do artista com seu universo
particular. Essa obra esteve presente nas paredes anteriormente nuas de sua casa na
Praça Tiradentes, surpreendendo os frequentadores de sua residência, atentos a todas as
manifestações artísticas do criativo sambista.
103
Lírio, Alba; Prazeres F°, Heitor dos. Heitor dos Prazeres: sua arte seu tempo. Rio de Janeiro: ND
comunicação, 2003.
70
O desenho da pintura, presente nos contornos das linhas cuidadosamente
pinceladas em cor preta que delimitam a geografia de toda a massa de cor vertida pelo
guache, aponta a tradição do desenho e da figuração na arte brasileira contemporânea ao
artista, aparecendo também nas obras de Di Cavalcanti e Portinari, entre outros.
Sonho, 1939, guache sobre cartão, 20x28 cm. Coleção da família.
Nas cores e na temática, essa obra guarda semelhanças com a produção do
influente pintor pernambucano Cícero Dias (1907-2003), o ilustrador das páginas de
Casa Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre. Dias também teve, por assim dizer,
sua fase surrealista entre a década de 20 e o final dos anos 30, período vivido
intensamente no Rio de Janeiro.
Na cidade do Rio, entre 1925 e 1928, frequentou cursos de arquitetura e
pintura na Escola Nacional de Belas Artes (Enba), mas não concluiu nenhum deles.
Dedicou-se à pintura em 1928, participando do Movimento Antropofágico iniciado por
71
Oswald de Andrade (1890-1954). Conviveu com Pagu, Anita Malfatti (1889-1964),
Raul Bopp (1898-1984) e Pedro Nava (1903-1984), entre outros.
Em 1929, Cícero Dias participou do Primeiro Congresso Afro-Brasileiro,
movimento a favor da arte e da cultura organizado por Gilberto Freyre (1900-1987) em
Recife. Nesse período, tornou-se colaborador da Revista de Antropofagia. Em 1937,
executou cenário e figurino para o balé O Jurupari, de Villa-Lobos e Sérgio Lifar, no
Rio de Janeiro; em 1931, expôs a obra Eu Vi o Mundo... Ele Começava no Recife no
Salão Revolucionário da Enba, causando grande escândalo.
104
Em catálogo de exposição póstuma de Heitor no ano de 2005, 0 curador
Antonio Carlos Abdalla atesta o contato de Prazeres com Cícero Dias:
Apesar de ter se iniciado na pintura relativamente tarde, foi
reconhecido e inclui, entre seus amigos próximos, gente do porte de
Djanira, Marc Berkowitz, Clarival do Prado Valladares, Augusto
Rodrigues, Cícero Dias, José Geraldo Vieira, Jayme Mauricio, Rubem
Valentim, Carybé, Agnaldo dos Santos, Carlos Scliar, Aldemir
Martins, Flavio de Carvalho e tantos outros artistas, jornalistas e
escritores que freqüentaram as bienais de São Paulo e o famoso
barzinho do Museu de Arte Moderna e Clube dos Artistas da Arte, do
Instituto dos Arquitetos do Brasil.
105
Utilizamos como referência as obras Sonho de uma prostituta e Sonho,
pintadas por Dias no começo da década de 30. Seus tons azuis e telúricos, além da
temática, guardam semelhança com a alegoria criada por Heitor, a delicadeza na
estrutura do desenho e a presença da linha também são marcantes na construção da obra
de ambos os artistas.
104
Fonte: Itaúcultural, 2009.
105
Fonte:Catálogo da exposição H.P.:Um pierrô apaixonado na BM&F;2005
72
Sonho de uma prostituta, 1930-32, aquarela sobre papel,
55,5 x 50 cm. Coleção Chateaubriand Bandeira de Mello.
Sonho, 1930, aquarela sobre papel, c.i.e. 50 x 30 cm. Coleção Gilberto Chateaubriand - Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Analisando o desenho de Sonho, consideremos uma imagem da Cartilha
Felisberto de Carvalho citada por Heitor ao se lembrar de seu tempo de menino, cuja
primordial função era o ensino da leitura e da escrita, acrescido da instrução moral. Essa
cartilha foi referência nas escolas desde a última metade do século XIX até a década de
40 do século XX.
73
Página do segundo livro de leitura de Felisberto de Carvalho, com texto moral para uso de
treino caligráfico (90ª edição, de 1934, com prefácio datado de junho de 1891, Niterói, RJ) .
Nas ilustrações que seduziram o menino, e que foram coloridas por ele, as
figuras das lições destacam a linha e o contraste entre preto e branco. Observamos a
ênfase no uso da linha de contorno preenchida de cor ou a massa colorida contornada
com intenção de destacar as formas não neste guache sobre cartão de 1939, mas na
maioria de suas pinturas, o que nos leva a imaginar seu processo de pintar semelhante
ao de colorir figuras.
Outra professora de desenho que ele teve foi sua mãe, Celestina Gonçalves
Martins, costureira e bordadeira. Com ela, Heitor aprendeu o que mais tarde aplicou na
criação de figurinos e bordados para si e para suas pastoras usarem em apresentações
públicas, treinando o trabalho de riscar a matriz do bordado que consiste em copiar ou
criar um traçado original em papel fino para decalcar o desenho nos tecidos, base das
linhas e cores do bordado. No documentário citado de Antonio Carlos Fontoura,
vemos o artista folheando um caderno repleto desses desenhos feitos por ele em papel
de seda; na sequência, o pintor executa o decalque de um desenho original para outro
suporte.
74
O processo de decalcar, apresentado no documentário e descrito no segundo
capítulo, permitia ao artista reproduzir ou reordenar figuras já representadas em pinturas
anteriores, facilitando o trabalho de seus assistentes na atividade de comercializar sua
obra e atendendo à demanda de sua clientela. Entre os clientes, temos seu amigo Cartola
(1908-1980), que conviveu com Heitor desde os tempos da Tia Ciata. Sendo mais novo,
Cartola fazia parte da “ala jovem”, com Pixinguinha, Paulo Benjamin de Oliveira (Paulo
da Portela)e Donga, entre outros.
106
Durante essa convivência, Cartola solicitou uma encomenda a Heitor:
A amizade de Heitor dos Prazeres e Cartola também seguiria por toda
a vida, nos momentos bons e nas horas difíceis de um e de outro. Em
1964, dois anos antes de morrer, Heitor dos Prazeres, consagrado
como pintor, criou o convite de casamento de Cartola e Dona Zica e
com o mesmo tema ilustrou o cardápio do restaurante Zicartola, um
sobrado na tradicional Rua da Carioca, no Centro do Rio de Janeiro,
misto de bar e casa de shows de samba, fundada por Cartola e Dona
Zica, com a parceria de Sérgio Cabral, por onde passaram grandes
nomes do samba e da bossa nova.
107
Desenhos para Cartola e Dona Zica, 1964 (divulgação do bar Zicartola e convite de casamento).
106
Lírio, Alba; Prazeres F°, Heitor dos. op. cit., p. 55.
107
Ibidem, p. 79-80.
75
O caráter decorativo dessas duas ilustrações é evidente na minúcia de
pequenos detalhes, cuidadosamente arquitetados para ornar a imagem das duas figuras
que representam a união entre Dona Zica e o sambista Cartola.
O aspecto das imagens desses desenhos guarda semelhança com anúncios de
revistas desenhados nas primeiras décadas de 1900. Também como referência, temos as
figuras para bordado, que costumavam ser repletas de ornamentos e pequenos detalhes,
assim como as ilustrações citadas.
Anúncio das Pastilhas Valda publicado na Revista Careta, número 165, Rio de Janeiro, 1914.
108
Os esboços do acervo do Museu Nacional de Belas Artes revelam uma linha
mais orgânica, em um processo antecedente ao acabamento dado na conclusão dos
trabalhos em pintura ou à nanquim.
108
Fonte: Casa de Rui Barbosa.
76
Usina de açúcar, grafite sobre papel colado num suporte de papel vergê, 32,5x43,4 cm. MNBA, RJ,
sem data.
Mudança da cidade para o morro, grafite sobre papel, colado num suporte, 22,0x49,7cm. MNBA,
RJ, sem data.
Tanto nos esboços do acervo do Museu Nacional de Belas Artes, quanto nos
desenhos em nanquim para o convite de casamento de Dona Zica com o sambista
Cartola e para a imagem de divulgação do bar ZiCartola, notamos a preocupação do
artista com a linha enxuta, com a minúcia de detalhes a preencher vazios sem o uso de
recursos de luz e sombra. No caso dos desenhos a nanquim, a presença de elementos
decorativos florais e de fitas entrelaçadas reproduz o estilo de ornamentos dos desenhos
para bordar tecidos.
77
Na década de 40, incentivado por Carlos Cavalcanti e Augusto Rodrigues
(Recife, 1913 Resende, 1993) um dos fundadores da Escolinha de Arte Brasil ,
Prazeres investiu profissionalmente na pintura, retratando cenas cotidianas do Rio de
Janeiro e cenários rurais.
4.4 Moenda e as Bienais
No período compreendendo entre os fins dos anos 30 e toda década de 40,
Heitor na maioria das vezes utilizou o guache sobre cartão, e podemos observar seu
universo particular se expandindo para as cenas rurais, demonstrando uma visível
mudança nos tons de sua paleta; os verdes são mais luminosos, e os amarelos, azuis e
vermelhos surgem com intensidade.
Um importante exemplo desse olhar para o campo é criado na década de 1950,
mais precisamente em 1951. Trata-se do premiado óleo sobre tela Moenda. Apesar de o
artista afirmar em depoimento que pintava somente aquilo que vira, as cenas rurais
guardam distância do Rio de Janeiro urbano vivido por ele.
Entretanto, não podemos nos esquecer do Brasil “essencialmente rural”, nas
palavras de Rubem Braga, que era motivo de interesse para o pintor.
78
Moenda, 1951, óleo sobre tela, 65x81,1 cm. MAC-USP.
A pintura de 1951 teve participação na primeira Bienal de São Paulo e recebeu
o prêmio Toddy de Aquisição, figurando com o terceiro lugar e colaborando para a
consagração e inserção definitiva de Heitor no contexto da pintura brasileira.Além de
ter sua obra premiada nessa primeira Bienal, Heitor também expôs os trabalhos Calango
e Feira Livre.
A obra é um marco importante na visualidade da auto-representação do
trabalho realizado pelos negros brasileiros. Sua poética investe numa qualidade
temporal e contemplativa dos trabalhadores, tanto do homem quanto da mulher, que
parecem imersos em seu próprio tempo, donos da terra e de si mesmos na pesada lida da
lavoura de cana de açúcar, símbolo do poderio dos tempos coloniais e fonte dos
martírios impostos à mão de obra escravizada oriunda do continente africano.
79
Estudo para o quadro Moenda, década de 50, desenho, 49x59 cm. Coleção da família.
Não traços de sofrimento ou de dominação na imagem, tampouco de
melancolia devido ao abandono que a mão de obra negra sofreu após a tardia abolição
da escravidão em nosso país. Diferente disso é o que podemos ver na prancha do livro
Viagem Pitoresca ao Brasil (1834), de Jean-Baptiste Debret, que retrata o período
colonial, em que o fruto do trabalho desses homens não será exclusivamente seu, haja
vista que nem seu corpo é de propriedade sua; a imagem denuncia um movimento
extenuante, infindável, a devorar o esforço de homens num labor sem fim:
[...] O lugar de maior perigo que há no engenho é o da moenda,
porque, se por desgraça a escrava que mete a cana entre os eixos, ou
por força do sono, ou por cansada, ou por qualquer outro descuido,
meteu desatentamente a mão mais adiante do que devia, arrisca-se a
passar moída entre os eixos, se lhe não cortarem a mão ou o braço
apanhado, tendo para isso junto da moenda um facão, ou não forem
tão ligeiros em fazer parar a moenda.
109
109
Neves, Maria de Fátima Rodrigues das. Documentos sobre a escravidão do Brasil. São Paulo:
Contexto, 1996, p. 30.
80
Debret, Jean-Baptiste, Pequena moenda portátil, aquarela, em Viagem pitoresca ao Brasil, 1834.
Em Moenda, o otimismo alimenta o trabalho; não marcas de sofrimento,
mas sim de dignidade e de uma ocupação libertadora, embora se trate do pesado
trabalho na roça e no processamento da cana de açúcar. A figura feminina, que não era
prevista no estudo, permite-nos imaginar uma união a enunciar a liberdade.
Não denúncia social nessa pintura simplesmente pelo fato de a
desigualdade estar superada. Nesse estágio imaginado, a terra está distribuída
igualmente para o usufruto de todos os trabalhadores.
O compartilhar em parceria da plantação e do trato com o produto da lavoura é
quase uma representação utópica, dada a situação, na década de 40, do domínio da terra
pelos grandes proprietários. O trabalho do negro era substituído pelo do imigrante,
sendo que o trabalhador dificilmente era dono daquilo que produzia.
Emprestamos o seguinte conceito de utopia para sustentar nossa leitura:
Não tomamos a palavra “utopia” no sentido de modelos utópicos ou
metanarrativas totalizadoras do progresso, mas no sentido de utopias
críticas que buscam aquilo que Tom Moylan chama de “expressão
sediciosa de mudança social baseada em um processo permanente de
imaginar aquilo que ainda não existe”.
110
110
Shohat, Ella; Stam, Robert. Crítica à imagem eurocêntrica. Cosac Naify, 2006, p. 45.
81
A suavidade e a delicadeza da imagem, rica em detalhes, também diferem
bastante da figura melancólica do negro sofrido na lavoura como aparece na pintura
Bananal, de Lasar Segall (1891-1957):
[...] Não foi, contudo Segall um pintor cultural, existencialmente
brasileiro. (Não se emite com isso nenhuma apreciação pejorativa à
sua obra.) Sua arte, decididamente sombria e pessimista não o é à
maneira brasileira, temperamental ou sentimental, ingênua ou
extrovertida, mas interiorizada, profunda, nutrida numa concepção
filosófica do mundo, e essa carga de tristeza se sente mesmo quando
os temas de que trata são de natureza risonha ou festiva.
[...] Segall é um grande pintor nostálgico, de uma saudade que vem
dos tempos e não de uma lufada de tristeza de uma tarde tropical que
nos entorpece [...].
111
Segall, Lasar, Bananal, 1927, óleo sobre tela, 87x124cm. Acervo da Pinacoteca do estado de São
Paulo.
A pujança do trabalhador oprimido a serviço do progresso do país em O
Lavrador de Café, de Cândido Portinari (1903-1962), indica também outro caminho
diverso ao de Heitor:
111
Pedrosa, Mario. Mundo, Homem, Arte em Crise. 2ª Edição. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 260-261.
82
Cândido Portinari [...] apresenta uma obra cheia de drama humano, no
entanto ele também é, na sua pintura, mais espetacular, mais
eloqüente, que sombrio ou triste.
[...] Sua vocação era “política”, não no sentido estrito da palavra, pois
nunca foi um político, mesmo quando se elegeu no duro senador pelo
PCB, mas num sentido amplo, de gosto, de convivência, de comércio
social, de participação.
112
Portinari, Cândido, O lavrador de café, óleo sobre tela, 100x81 cm. MASP.
A novidade na representação do trabalho dessas mãos humanizadas por Heitor
provocou fascínio entre os primeiros espectadores da obra, que o próprio artista,
devido à sua origem, poderia ser um daqueles trabalhadores.
Seu otimismo não significa alienação em relação ao estado de coisas, mas um
investimento na celebração da vida. Mesmo quando retratava sofrimento, como nas
cenas de fugas do morro que veremos mais adiante, a alegria persistia justamente para
afirmar a força e a capacidade de resistência das pessoas que ele pintava.
A premiação na Bienal de 1951 foi considerada pelo próprio artista como um
marco em sua carreira, pois, apesar de receber reconhecimento e participar de
diversas exposições, aquela consagração consolidou sua carreira agora, além de
músico, como pintor.
112
Ibidem, p. 261-262.
83
Confesso que não esperava ser premiado. Sabia que ia competir com
artistas de muito maior projeção e valor do que eu. Por isso, quando
soube da notícia de que um dos meus quadros havia sido premiado,
experimentei uma grande surpresa, uma das maiores da minha vida.
113
Sua participação nas Bienais estendeu-se aos anos de 1953, com as pinturas reunidas
em sala especial Choro Carioca, Frevo Pernambucano, Jogo no Barraco e Joguinho em
Família , 1957 O Guarda-Chuva, de Mignone e 1961 As Três Artes, Mulher
Abstrata, Pierrot Apaixonado, Os Capoeiras e Os Jogadores de Sinuca.
A primeira Bienal, em que obteve o prêmio para artistas nacionais,
possibilitou ainda mais oportunidades para o artista, que considerava São Paulo a cidade
responsável por impulsionar sua produção pictórica. Além das participações nas Bienais
de São Paulo, Heitor recebeu um importante convite: colaborar com a produção dos
festejos do IV Centenário da cidade organizado por Ciccilo Matarazzo, também
financiador das Bienais , ao lado de um grupo importante de artistas:
Para Diretor Artístico, a Comissão do IV Centenário escolheu, entre
os coreógrafos de fama internacional, Aurélio M. Millos, que havia
alcançado significativos êxitos, colaborando com famosas instituições
coreográficas de Paris, Berlim, Budapest, Viena, Estocolmo, Madrid,
Buenos Aires, etc., e dirigindo as secções de ballet dos maiores teatros
italianos, como o Scala de Milão, Ópera de Roma, Festivais de
Florença e Veneza. Chegando a São Paulo, a tempo de participar do
juri de seleção, Aurélio Millos iniciou os trabalhos de organização do
quadro geral do conjunto e os ensaios técnicos. Além dos ballets
criados sôbre músicas existentes de compositores de renome
mundial, como Bach, Scarlatti, Mozart, Verdi, J. Strauss, Ravel,
Respighi, Villa-Lobos, Strawinski, Béla Bartók, Casella e Jacques
Ibert, foram previstas criações sôbre músicas inéditas de Camargo
Guarnieri, Souza Lima e Mignone. foram convidados para projetar os
cenários e figurinos os pintores Cândido Portinari, Burle-Marx,
Anahory, Noêmia Mourão, Quirino da Silva, Lasar Segall, Di
Cavalcanti, Aldo Calvo, Irene Ruchti, Clovis Graciano, Heitor dos
Prazeres, Oswald de Andrade Filho, Santa Rosa, Toti Scialoja e Flávio
de Carvalho.
114
113
Lírio, Alba; Prazeres F°, Heitor dos. op. cit., p. 134.
114
Revista do IV Centenário de São Paulo, publicação oficial dos 400 anos da cidade.
Editora Abril, 1954.
84
A contribuição de Heitor deu-se no espetáculo do terceiro programa:
O GUARDA-CHUVA - Comédia coreográfica em um ato.
Argumento de Oswald de Andrade Filho. Música de Francisco
Mignone. Coreografia de Aurelio M. Milloss. Cenário e trajes de
Heitor dos Prazeres. Criação absoluta para o Ballet do IV
Centenário.
115
Esse espetáculo tornou-se, mais tarde, motivo de uma pintura denominada O
Guarda-Chuva, de Mignone, que foi exposta na Bienal de 1957.
A década de 50 alavancou a produção do artista, e o reconhecimento
ocasionou sua participação em diversas exposições além das Bienais. No ano de 1956,
ele esteve na exposição “50 anos de Paisagem Brasileira”, no Palácio dos Estados do
Parque do Ibirapuera; em 1957, em uma mostra itinerante denominada “Arte Moderna
no Brasil”, que percorreu países da América do Sul; em 1959, no Rio de Janeiro, em sua
primeira mostra individual, realizada na Galeria Gea , seguida pelas exposições, na
década de sessenta na Galeria Sistina em São Paulo em 1961, e no mesmo ano, no
MAM do Rio de Janeiro; em 1963, retorna a São Paulo para mostrar obras na Galeria
Selearte.No ano seguinte vai para Salvador por intermédio de Jorge Amado expondo na
Galeria Quirino e finalmente no ano de 1965, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul
em Porto Alegre apresenta pinturas sendo a obra Frevo, adquirida para o acervo do
museu.
Frevo, sem data, óleo sobre tela 38x46, acervo do MARGS
115
Ibidem.
85
Além das exposições individuais, as coletivas no Brasil e no
exterior ocorreram em abundancia e se encontram listadas em anexo ao final de nossa
dissertação.
4.5 Estampas para a Rhodia: Brazilian Look
Na década de sessenta, exatamente em 1963, Heitor recebe o convite para criar
estampas para os tecidos da Rhodia, empresa têxtil que neste período assume papel
importante na divulgação da moda brasileira para o mundo. O convite celebra o fato de
Prazeres pertencer ao elenco dos artistas brasileiros reconhecidos como os mais
importantes no país:
As idéias de um país eternamente exótico também foram reformuladas (ou
aproveitadas) no transcorrer dos anos 1960 pela empresa de fios sintéticos
Rhodia, numa associação da arte brasileira à sua matéria prima. A empresa
planejou uma ação de marketing integrada, na qual o fabricante desses fios
custeava as publicidades das tecelagens que exibiam o selo da marca,
expondo padrões de artistas e modelos criados por estilistas brasileiros. Em
associação com a companhia aérea VARIG e a Revista Cruzeiro, a Rhodia
levava as criações nacionais para serem desfiladas na Europa, nos Estados
Unidos e até no Japão
As suas principais coleções anuais e artistas convidados foram:
Em 1 962: Brazilian Nature por Livio Abramo;
Em 1 963: Brazilian Look por Heitor dos Prazeres;
Em 1964: Brazilian Style, Aldemir Martins;
Em 1965: Brazilian Primitive por Isabel Pons;
Em 1966: Brazilian Fashion Team por Hércules Barsotti;
Em 1967: Brazilian Fashion Follies por Willy de Castro.
116
116
Neira ,Luz Garcia , A invenção da moda Brasileira, www.eca.usp.br/caligrama/n_10/04_neira.pdf
86
4.6 Músicos,cotidiano e sapatos
Imagens do cotidiano da Cidade Nova são pretexto para o artista lançar mão
da paleta cada vez mais luminosa, mostrando cenas de trabalho, convivência, festas e
brincadeiras.
Sem título, óleo sobre tela, 1954, Museu Afro - Brasil
São recorrentes as cenas de músicos em rodas de samba, ora cercados por
grupos dançando em outras ocasiões tocando pelas ruas da cidade. Esta temática
familiar à realidade de nosso músico, também era representadas por artistas como
Portinari, que tinham fascínio pelas figuras populares brasileiras, como os sambistas.
Portinari “executa para a Rádio Tupi do Rio de Janeiro uma série de painéis
que tem como tema a música popular”
117
, feitos sob encomenda de Assis
Chateaubriand em 1942 para decorar a sede da rádio.
117
Fabris, Annateresa, Candido Portinari : EDUSP,1ª Edição - 1996 p.180
87
Em 1948, um incêndio destrói seis dos oito painéis que certamente foram
vistos por Heitor, que neste período trabalhava na Rádio Nacional e tinha contato com o
universo das Rádios importantes contemporâneas a ele.
Portinari, Cândido Chorinho, 1942 Painel a têmpera/tela225 x 300 cm Rio de Janeiro, RJ
Roda de Samba, óleo sobre tela, sem data, Museu Afro - Brasil
A elegância e delicadeza de traços bem característicos da pintura de Prazeres
aparecem principalmente na presença dos músicos e no jogo entre as figuras de perfil e
88
o flautista que olha de frente o espectador. Resta-nos imaginar se a troca e influência
entre Heitor e os artistas de seu convívio não ocorriam como Clarival chegou a afirmar.
As cores na pintura de Prazeres seguem em direção digamos opostas
às cores do painel de Portinari, sendo as cores do último soturnas conferindo um ar de
melancolia repetido nos olhares dos instrumentistas e na postura estática de seus corpos,
diferentemente dos músicos de Prazeres, que parecem tocar mais alto, dançando nas
ruas, admirados pela figura da moça na janela.
Os sapatos que sempre aparecem tão ricamente detalhados nos pés dos
sambistas e dançarinos de Heitor em tantas de suas obras, também são vislumbrados nos
pés do clarinetista e do tocador de cavaquinho de Portinari, entretanto, o tocador de
cuíca descalço jamais figuraria numa imagem de Heitor, pois os sapatos representam
liberdade, geralmente um dos primeiros itens comprados por negros alforriados no
período da escravidão, onde os sapatos eram vetados aos escravos:
Estar vinculado a uma confraria religiosa, pentear cabelos, usar sapatos,
roupas de seda, roupas bem engomadas, usar chapéus, tocar instrumentos
musicais de origem européia, fazer uso da escrita e leitura, são exemplos de
praticas culturais cotidianas que vivenciadas por negros permitiam uma
aproximação com a imagem de civilizados.
Tal questão pode ser compreendida se considerarmos que alguns
subalternizados visavam conquistar status semelhante aos que detinham
poder, quando se apropriavam de praticas culturais legitimadas como
melhores e superiores.Os escravos que fugiam durante a primeira metade do
século XIX, na Capital do Império, “procuravam ansiosamente adquirir os
símbolos da liberdade, como sapatos, para esconder sua condição
real”(Soares,2002,p.83).
118
118
CRUZ, M. S.,Nem tudo é valentia ou vadiagem:práticas culturais e usos de símbolos de civilidade
por escravos, forros e mestiços na Província do Maranhão oitocentista. Outros Tempos (UEMA. Online),
v. 04, p. 16-36, 2007
89
Sem título, óleo sobre tela, 1954, Museu Afro-Brasil
Assim como o menino empina a pipa na rua entre transeuntes e um rapaz que
transporta roupas numa bicicleta como desculpa para geometrias e cores vivas, os
meninos na roça põem no ar o balão que lembra a mesma forma dos lampiões dos
postes das ruas representadas pelo pintor, e a disposição das crianças no quadro
assemelha-se aos músicos e dançarinos em outras pinturas.
As cores do balão se repetem nas blusas dos meninos, num jogo poético de cor
e movimento onde novamente os personagens aparecem impecavelmente vestidos.
Outro exemplo das figuras emblemáticas de Heitor está em Baile de Rua, que
pertence à coleção do filho de Heitor dos Prazeres.
Baile de Rua, 1954, óleo sobre madeira, 49x66cm, coleção da família
90
Em Baile de Rua, de 1954, podemos encontrar na disposição das figuras e na
minúcia de detalhes, muitos dos elementos consagrados do estilo de Heitor, nos detalhes
a seguir e na imagem como um todo, um interessante jogo de formas e cores, e na
ordenação triangular dos personagens do baile percebemos a sistemática ordenação
geométrica da composição que muitas vezes é semelhante ao triângulo ou a um losango.
O olhar convidativo de duas mulheres na pintura solicita a participação do
observador na roda de samba, fato natural para Heitor, pois não era incomum o pintor
transformar suas exposições de pintura em grandes festas com música e dança como fez
em São Paulo, Rio de Janeiro e na Feira de Arte de Dakar, que o artista participou no
último ano de sua vida.
Baile de Rua (detalhe) Baile de Rua (detalhe)
91
Baile de Rua (detalhe)
Baile de Rua (detalhe)
92
4.7 Dakar
A Feira de Arte de Dakar evento que transcorreu de 1 a 24 de Abril de 1966,
idealizada pelo consagrado intelectual Leopold Senghor (1906-2001) presidente do
Senegal neste período, foi um evento marcante na vida do artista Prazeres, ilustre entre
convidados ilustres, como a cantora Clementina de Jesus, o capoeirista Mestre Pastinha,
o pintor Rubem Valentim, entre outros, em delegação conduzida por Clarival do Prado
Valadares, como vimos anteriormente.
De acordo com o que citamos a respeito da análise de Clarival sobre a pintura
de Prazeres, o lema a da Feira de Arte era Significação da Arte Negra na Vida do Povo
e para o Povo”, sendo um marco nas relações oficiais entre Brasil e África:
O jornal Dakar Martin registrou, na edição de 30 de março: ”(...) Trata-se de
algumas personalidades muito conhecidas no Brasil por suas atividades em
alguns segmentos, principalmente naqueles dedicados às relações entre Brasil
e África, do que ainda sobrevive de cultura africana na América Latina e suas
influências sobre a cultura brasileira.. Quase todos participaram do comitê
brasileiro no Festival.O Sr. Clarival do Prado Valadares, critico de arte e
redator chefe da revista Cadernos Brasileiros (órgão nacional do Congresso
para a Liberdade da Cultura) conduz esta delegação e fará parte do júri
internacional que vai conferir os prêmios de arte contemporânea.O Sr.
Valadares deve também apresentar uma comunicação sobre aspectos da arte
afro-brasileira. Ele é autor dos textos biográficos e críticos que dizem
respeito aos artistas brasileiros cujas obras participam do confronto.São eles
o Srs.Rubem Valentim e Heitor dos Prazeres,pintores, e o escultor Agnaldo
dos Santos, morto prematuramente há quatro anos”
119
Meses depois, em 24 de outubro do mesmo ano, o artista falece vitimado por
um câncer no pâncreas, sendo enterrado no Cemitério São Francisco Xavier, mais
conhecido como Cemitério do Caju.
119
Alba Lírio, Heitor dos Prazeres sua arte seu tempo, ND Comunicação, RJ, 2003,p.142-143
93
5. BIBLIOGRAFIA
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97
6.ANEXOS
Anexo 1
Exposições de Heitor dos Prazeres:
Individuais
1959 - Rio de Janeiro RJ - Individual, na Galeria Gea
1961 - Rio de Janeiro RJ - Individual, no MAM/RJ
1961 - São Paulo SP - Heitor dos Prazeres: pinturas, na Galeria Sistina
1963 - São Paulo SP - Individual, na Galeria Selearte
1964 - Salvador BA - Individual, na Galeria Quirino
1965 - Porto Alegre RS - Individual, no Margs
Coletivas
1944 - Belo Horizonte MG - Exposição de Arte Moderna, no MAP
ca.1946 - Londres (Inglaterra) - Mostra em homenagem à Real Força Aérea Britânica - um de seus
quadros é adquirido pela Rainha Elizabeth
1951 - São Paulo SP - 1ª Bienal Internacional de São Paulo, no Pavilhão do Trianon - 3º prêmio
1952 - Rio de Janeiro RJ - Exposição de Artistas Brasileiros, no MAM/RJ
1953 - São Paulo SP - 2ª Bienal Internacional de São Paulo, no Pavilhão dos Estados
1954 - São Paulo SP - Arte Contemporânea: exposição do acervo do Museu de Arte Moderna de
São Paulo, no MAM/SP
1957 - Buenos Aires (Argentina) - Arte Moderna no Brasil, no Museo de Arte Moderno
1957 - Lima (Peru) - Arte Moderna no Brasil, no Museo de Arte de Lima
1957 - Rosario (Argentina) - Arte Moderna no Brasil, no Museo Municipal de Bellas Artes Juan B.
Castagnino
98
1957 - Santiago (Chile) - Arte Moderna no Brasil, no Museo de Arte Contemporáneo
1959 - Rio de Janeiro RJ - 30 Anos de Arte Brasileira, na Enba
1961 - São Paulo SP - 6ª Bienal Internacional de São Paulo, no MAM/SP
1963 - Campinas SP - Pintura e Escultura Contemporâneas, no Museu Carlos Gomes
1965 - Bonn (Alemanha) - Brazilian Art Today
1965 - Londres (Inglaterra) - Brazilian Art Today, na Royal Academy of Arts
1965 - Paris (França) - Oito Pintores Ingênuos Brasileiros, na Galeria Jacques Massol
1965 - Viena (Áustria) - Brazilian Art Today
1966 - Dacar (Senegal) - 1º Festival Mundial de Artes Negras
1966 - Moscou (União Soviética, atual Rússia) - Pintores Primitivos Brasileiros
Póstumas
1966 - Dacar (Senegal) - 1º Festival Mundial de Artes Negras
1966 - Rio de Janeiro RJ - Auto-Retratos, na Galeria Ibeu Copacabana
1966 - Rio de Janeiro RJ - O Artista e a Máquina, no MAM/RJ
1966 - São Paulo SP - O Artista e a Máquina, no Masp
1967 - São Paulo SP - Individual, na Galeria Ars Artis
1979 - São Paulo SP - 15ª Bienal Internacional de São Paulo, na Fundação Bienal
1980 - Rio de Janeiro RJ - Homenagem a Mário Pedrosa, na Galeria Jean Boghici
1982 - Bauru SP - 80 Anos de Arte Brasileira
1982 - Lisboa (Portugal) - Brasil 60 Anos de Arte Moderna: Coleção Gilberto Chateaubriand, no
Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão
1982 - Londres (Inglaterra) - Brasil 60 Anos de Arte Moderna: Coleção Gilberto Chateaubriand, na
Barbican Art Gallery
1982 - Marília SP - 80 Anos de Arte Brasileira
1982 - São Paulo SP - 80 Anos de Arte Brasileira, no MAB/Faap
1983 - Belo Horizonte MG - 80 Anos de Arte Brasileira, na Fundação Clóvis Salgado. Palácio das
Artes
1983 - Campinas SP - 80 Anos de Arte Brasileira, no MACC
1983 - Curitiba PR - 80 Anos de Arte Brasileira, no MAC/PR
1983 - Olinda PE - 2ª Exposição da Coleção Abelardo Rodrigues de Artes Plásticas, no MAC/Olinda
1983 - Ribeirão Preto SP - 80 Anos de Arte Brasileira
99
1983 - Santo André SP - 80 Anos de Arte Brasileira, na Prefeitura Municipal de Santo André
1984 - Paris (França) - Heitor dos Prazeres: retrospectiva, na Galeria Debret
1984 - Roma (Itália) - Heitor dos Prazeres: retrospectiva, na Embaixada do Brasil na Itália
1987 - São Paulo SP - As Bienais no Acervo do MAC: 1951 a 1985, no MAC/USP
1988 - Rio de Janeiro RJ - Hedonismo: Coleção Gilberto Chateaubriand, na Galeria Edifício Gilberto
Chateaubriand
1988 - Rio de Janeiro RJ - O Mundo Fascinante dos Pintores Naïfs, no Paço Imperial
1992 - Poços de Caldas MG - Arte Moderna Brasileira: acervo do Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo, na Casa da Cultura de Poços de Caldas
1994 - Poços de Caldas MG - Coleção Unibanco: exposição comemorativa dos 70 anos de
Unibanco, na Casa da Cultura de Poços de Caldas
1995 - Rio de Janeiro RJ - Coleção Unibanco: exposição comemorativa dos 70 anos do Unibanco,
no MAM/RJ
1998 - Rio de Janeiro RJ - Heitor dos Prazeres: um século de arte
1998 - São Paulo SP - Fantasia Brasileira: o balé do IV Centenário, no Sesc Belenzinho
1998 - São Paulo SP - Mostra Comemorativa do Centenário do Artista, na Galeria Albert Einstein
1998 - São Paulo SP - O Colecionador, no MAM/SP
1998 - São Paulo SP - O Moderno e o Contemporâneo na Arte Brasileira: Coleção Gilberto
Chateaubriand - MAM/RJ, no Masp
1999 - Rio de Janeiro RJ - As Três Artes de Heitor dos Prazeres, no MNBA
1999 - São Paulo SP - Cotidiano/Arte. O Consumo, no Itaú Cultural
2000 - São Paulo SP - Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento, na Fundação Bienal
2001 - São Paulo SP - Figuras e Faces, na A Galeria
2002 - Piracicaba SP - 6ª Bienal Naifs do Brasi, no Sesc
2002 - São Paulo SP - Pop Brasil: a arte popular e o popular na arte, no CCBB
2002 - São Paulo SP - Santa Ingenuidade, na Unifieo
2003 - Rio de Janeiro RJ - Arte em Movimento, no Espaço BNDES
2005 - São Paulo SP - Individual, no Espaço Cultural BM&F
Fonte: www.itaucultural.org.br
100
Anexo 2
Transcrição do depoimento de Heitor dos Prazeres filmado em 1965 por
Antônio Carlos da Fontoura, disponível no site www.portacurtas.com.br:
Eu sou Heitor dos Prazeres. Heitor dos Prazeres é o meu nome. Este prazer
que eu tenho no nome é o prazer que eu divido com o povo. Este povo com quem eu
reparto este prazer. Este povo que sofre, este povo que trabalha, este povo alegre que eu
compartilho a alegria desse povo. A alegria deste povo, o sofrimento deste povo é o que
me obriga a trabalhar. É o que me faz transportar para a tela o sofrimento do povo. Este
povo que sou eu, um homem do povo. Não nada mais sublime do que a massa
humana. O povo é a massa humana, é a voz do sangue, o povo é a carne humana, o
povo é o aconchego, o povo é tudo. Eu para o povo represento um pedaço. Eu sou o ovo
e o povo é a chocadeira.
A minha pintura para mim é importante. É uma fuga das minhas dores, das
minhas mágoas, do meu sofrimento, das minhas paixões. Eu me sinto num outro
mundo, um mundo sofredor, um mundo gozador, um mundo de felicidade. Um mundo
feliz. É, a pintura me toda essa alegria, me proporciona tudo isso que é riqueza para
mim. Na pintura eu sonho, eu sonho música, eu sonho momentos amorosos, eu sonho
alegria, enfim, tudo eu sonho, tudo me riqueza. Não consigo fazer nada que não
existe porque eu não me sinto bem. Estas figuras que eu faço são de coisas que eu vi,
que ainda existem, estes bailes, estas macumbas, estes sambas, estas coisas que existem.
Tanto existem que eu sou um dos que existem. Não preciso ver mais, não preciso
modelo. Eu tenho tudo aquilo do passado e de agora, dentro da minha memória.
101
Não tenho inveja de qualquer atelier em Copacabana, na Tijuca, Ilha do
Governador ou outro lugar qualquer grã-fino. A Praça Onze que é o meu negócio. No
meu atelier na Praça Onze eu me sinto tão feliz. Me traz recordação da minha infância,
me lava a alma aquele apito da Brahma, aquela Brahma que me traz recordação da
minha infância, da minha juventude. Me faz lembrar. Me sinto tão feliz como que eu
esteja na casa da minha família, a minha família que não existe mais e outras pessoas
mais: tia Ciata e outras pessoas mais.
Eis o motivo de por que me sinto feliz na Praça Onze. Esta Praça Onze que é a
Cidade Nova. É o meu bairro, o bairro que eu tenho amizade, vivo em meu coração. O
bairro da Praça Onze que é conhecido de Cidade Nova. Cidade Nova, tradicional
Cidade Nova, que é a razão que eu me sinto feliz nesse meu atelier. Vendo meus
panoramas da favela, da rua General Pedra, lembrando do meu saudoso colégio São
Sebastião. É a Praça Onze, é a Cidade Nova. A minha Cidade Nova Eu pinto a cidade
antiga porque está dentro de mim. A cidade antiga é uma coisa que ainda tenho na
recordação. Ainda tenho dentro de mim, então tenho aquele espírito de coisas antigas, o
qual eu transporto para meus quadros. A minha pintura são coisas que passaram por
mim e eu passei por elas, na minha infância, na minha juventude, no arrabalde, nesse
mundo infinito.
Na minha infância existia a cartilha de Felisberto Carvalho, a qual tinha umas
ilustrações e aquelas ilustrações apenas é que me seduziam e eu não consegui aprender a
ler e escrever até hoje. Porque as ilustrações é que me seduziam e o que me interessava
era desenhar, eu coloria aquelas ilustrações. Mas é triste algumas coisas que eu faço,
que o destino não me agrada. Coisas que eu faço que tenho amizade, que eu pretendia
guardar pra mim. Então vem um, gosta, leva, vem outro, faço outra coisa, vem outro,
102
gosta, leva. Então me sinto acorrentado, obrigado a fazer comércio de formas que
são desagradáveis.
É um sofrimento pro artista, porque me sinto comercializado. Eu sinto que
estou fracassando, por que? Fracassando por que eu sou obrigado a fazer coisas que
não estão na minha vontade por causa do comércio. Eu faço uma coisa que inspiro, a
pessoa vem e pede outro igual, depois vem outro e pede outro igual, depois vem outro e
pede outro igual, de forma que é uma tristeza. O artista que é obrigado a comercializar-
se, a atender situações de mercado, vive acorrentado e acaba morrendo não fazendo
aquilo que ele quer.
(canção)
Vai, vai, saudade
Saudade voraz
Vai dizer a ela
Que eu não posso mais
Vai, vai, saudade
Me deixa viver em paz
Vai, vai, saudade
Saudade voraz
Vai dizer a ela
Que eu não posso mais
Vai, vai, saudade
Me deixa viver em paz
Eu sou um covarde
103
E covarde demais
Vai, vai, saudade
Me deixa viver em paz
Vai, saudade
104
Anexo 3:
Texto de catálogo de exposição de Heitor dos Prazeres, por Carlos
Cavalcanti.
105
106
107
108
Anexo 4
Textos de Clarival do Prado Valadares para a revista Brasileira de
Cultura, republicados no catálogo da exposição Mostra do Redescobrimento
Brasil 500 é mais. São Paulo: Associação Brasil 500 anos Artes Virtuais.
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Texto de Rubem Braga, capítulo do livro Três Primitivos sobre Heitor dos
Prazeres.
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