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MÁRCIA REGINA DOS SANTOS FELDMAN
HISTÓRIAS QUE SE CRUZAM NA SIGNIFICAÇÃO SOCIAL DADA
AO PROGRAMA UNIVERSIDADE PARA TODOS
Programa de Pós-Graduação em Educação
Universidade Nove de Julho – Uninove
São Paulo
2010
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MÁRCIA REGINA DOS SANTOS FELDMAN
HISTÓRIAS QUE SE CRUZAM NA SIGNIFICAÇÃO SOCIAL DADA
AO PROGRAMA UNIVERSIDADE PARA TODOS
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Nove de Julho, como exigência parcial para a obten-
ção do título de Mestre em Educação, sob a orienta-
ção da Profa. Dra. Ivanise Monfredini.
São Paulo
2010
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Feldman, Márcia Regina dos Santos.
Histórias que se cruzam na significação social dada ao Programa Universidade Para To-
dos. / Márcia Regina dos Santos Feldman. 2010.
298f.
Dissertação (mestrado) – Universidade Nove de Julho - UNINOVE,
São Paulo, 2010.
Orientador (a): Profa. Dra. Ivanise Monfredini
1. ProUni - Programa Universidade para Todos. 2. Genericidade em si.
3. Genericidade para si.
CDU 37
MÁRCIA REGINA DOS SANTOS FELDMAN
HISTÓRIAS QUE SE CRUZAM NA SIGNIFICAÇÃO SOCIAL DADA
AO PROGRAMA UNIVERSIDADE PARA TODOS
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Uni-
versidade Nove de Julho, aprovada pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes
membros:
_______________________________________
Profa. Dra. Ivanise Monfredini
Uninove/SP
Orientadora
_______________________________________
Profa. Dra. Claúdia Barcelos de Moura Abreu
Unifesp/SP / UFPR/PR
Avaliadora convidada
_______________________________________
Prof. Dra. Rosemary Roggero
Uninove/SP
Avaliador do programa
Nota: _____(__________________________________)
São Paulo, ____/____/____.
Dedico este trabalho a Hanan Feldman (in memori-
an) que com sua dignidade e simplicidade soube o-
lhar o mundo e as pessoas com respeito.
AGRADECIMENTOS
Aos meus filhos Ilana, Tamara e Felipe, pelo incentivo e paciência nesses dois anos de
pesquisa.
Aos meus pais Mercedes e Agostinho, pelo carinho e preocupação.
Ao Thiago Cruz de Oliveira, pela colaboração na transcrição das entrevistas.
À professora Dra. Ivanise Monfredini, que desde o início de meu mestrado acreditou
em meu projeto, mostrou-me caminhos, leituras e possibilidades para realização desta pesqui-
sa
Às professoras Dra. Claúdia Barcelos de Moura Abreu e Dra. Rosemary Roggero, pela
disponibilidade, atenção e sugestões.
À Renée Vituri e seu esposo Júnior, pela generosidade de me receber em seu lar du-
rante tantos finais de semana, e pacientemente, ler, comentar e enriquecer o texto de minha
pesquisa.
Ao Jorge Freneda, pela disposição e carinho na elaboração da versão do resumo em
língua inglesa.
Aos colegas da turma de 2008, pelo companheirismo, fazendo um pouco mais fácil es-
se caminho tão árduo. Como não deixar de registrar nossos cafés da tarde que, de modo tão
afetivo, nos faziam mais unidos.
Aos meus amigos que souberam entender meu cansaço e meu distanciamento.
À Maria Luiza Favret pelo trabalho de revisão.
Agradeço a todos aqueles que não desistiram de mim.
SUMÁRIO
LISTA DE TABELAS ............................................................................................................. vii
LISTA DE QUADROS ........................................................................................................... viii
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ............................................................................... ix
RESUMO ................................................................................................................................. xii
ABSTRACT ............................................................................................................................ xiii
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 1
CAPÍTULO 1 – OPÇÕES METODOLÓGICAS E SUJEITOS DESTA PESQUISA .............. 4
1.1 – Categorias de análise ..................................................................................................... 6
1.2 – Sujeitos desta pesquisa ................................................................................................ 13
CAPÍTULO 2 – PROGRAMA UNIVERSIDADE PARA TODOS: PANORAMA
HISTÓRICO, POLÍTICO, SOCIAL E ASPECTO LEGAL .................................................... 18
2.1 – Reconfiguração do Estado ........................................................................................... 18
2.2 – A educação superior no processo de publicização e privatização ............................... 23
2.3 – Prouni: aspectos legais................................................................................................. 30
2.3.1 – Quanto aos tipos de concessão de bolsas ................................................................. 33
2.3.2 – Quanto à adesão, ao desempenho e às isenções concedidas pelo governo ............. 33
2.3.3 – Quanto ao perfil do aluno candidato ao Prouni ...................................................... 35
2.4 – Algumas análises sobre a implantação do Prouni ....................................................... 37
CAPÍTULO 3 – A JUVENTUDE BRASILEIRA .................................................................... 45
3.1 – Perfil educacional dos jovens brasileiros .................................................................... 48
3.2 – O mercado de trabalho para os jovens brasileiros ....................................................... 52
3.3 - Ações governamentais para a juventude ...................................................................... 58
CAPÍTULO 4 - PROUNI: ALTERNATIVA POSSÍVEL – ANÁLISE DOS DADOS .......... 61
4.1 – O lugar social dos entrevistados. A experiência familiar ............................................ 62
4.2 – A escolarização ............................................................................................................ 75
4.3 – A experiência do emprego, ou da ausência dele. A busca da empregabilidade .......... 88
4.4 – As possibilidades ......................................................................................................... 96
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 118
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 120
APÊNDICES: ENTREVISTAS ............................................................................................. 129
Beatriz Rodeiro Martinez ................................................................................................... 130
Rodrigo Lourenço Gonçalves ............................................................................................. 153
Emília Mara Lima Silva ..................................................................................................... 164
Tatiana de Oliveira Cruz Barbosa ...................................................................................... 176
Karen Jaqueline Santana Gomes ........................................................................................ 200
Wendy Francisco Pereira .................................................................................................... 215
Kelly Cristina Pereira ......................................................................................................... 227
Eduardo Pires de Oliveira ................................................................................................... 245
Elton Luiz Fotoni ................................................................................................................ 271
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Bolsas ofertadas por ano, 2005-2008
Tabela 2 – Bolsas ofertadas por região, 2005-2008
Tabela 3 – Bolsas por turno – cursos presenciais –, 2005-2008
Tabela 4 – Bolsistas por categoria administrativa da IES, 2005-2008
Tabela 5 – Bolsistas por sexo, 2005-2008
Tabela 6 – Bolsistas por raça, 2005-2008
Tabela 7 – Bolsistas professores da educação básica pública, 2005-2008
Tabela 8 – Bolsistas portadores de deficiência, 2005-2008
Tabela 9 – População por grupo etário e sexo, censo IBGE 2000 (em milhões)
Tabela 10 – Perfil da população brasileira total – jovem e adulta –, 2006
Tabela 11 – IDEB 2005-2007 e projeções para o Brasil
Tabela 12 – Estudantes de 15 a 24 anos – por grau que frequentavam (em milhões) –, 1995 a
2001
Tabela 13 – Nível de instrução dos jovens de 15 a 24 anos que não frequentam a escola
Tabela 14 – Estimativa da população acima de 16 anos e jovens de 16 a 24 anos – segundo
condição de atividade –
Tabela 15 – Taxas de desemprego dos jovens com idade entre 16 e 24 anos – segundo grupo
de quartis do rendimento familiar mensal –. Regiões metropolitanas, 2004
Tabela 16 – Distribuição dos jovens com idade entre 16 e 24 anos – segundo situação de tra-
balho, estudo e procura de trabalho por grupo de quartis do rendimento familiar
mensal –. Regiões metropolitanas, 2004
Tabela 17 – Do ingresso ao término do ensino fundamental dos entrevistados
Tabela 18 – Último Enem realizado pelos entrevistados e respectiva pontuação
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Legislação Prouni ano de 2004
Quadro 2 – Legislação Prouni ano de 2005
Quadro 3 – Legislação Prouni ano de 2006 a 2008
Quadro 4 – Programas e projetos do governo Luis Inácio Lula da Silva para a juventude
Quadro 5 – Instituições de ensino fundamental frequentadas pelos entrevistados
Quadro 6 – Instituições de ensino médio frequentadas pelos entrevistados
Quadro 7 – Cursos matriculados e instituições frequentadas pelos entrevistados
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Anped – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
BM – Banco Mundial
Capes – Coordenação de Aperfeiçoamente de Pessoal de Nível Superior
Cedeca – Centro de Defesa da Criança e do Adolescente
CIP – Centro de Internação Provisória
Dieese – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
EE – Escola Estadual
EJA – Educação de Jovens e Adultos
EM – Ensino Médio
Emef – Escola Municipal de Ensino Fundamental
Enade – Exame Nacional de Desempenho do Estudante
Enem – Exame Nacional do Ensino Médio
FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador
FHC – Fernando Henrique Cardoso
Fies – Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior
FMU – Faculdades Metropolitanas Unidas
FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
Gats – Acordo Geral sobre Comércio de Serviços
Ibase – instituto Brasileiro de Análises Sociais e Economicas
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Ideb – Indíce de Desenvolvimento da Educação Básica
IES – Instituição de Ensino Superior
Ifes – Institutições Federais de Ensino Superior
Inep – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
LDB – Lei de Diretrizes e Bases
Mare – Ministério da Administração Pública e da Reforma do Estado
MEC – Ministério da Educação
MMC – Movimento de Moradia do Centro
x
MP – Medida Provisória
MTE – Ministério do Trabalho e Emprego
OIT – Organização Internacional do Trabalho no Brasil
OMC – Organização Mundial do Comércio
ONG – Organização não Governamental
PCN's – Parâmetros Curriculares Nacionais
PEA – População Economicamente Ativa
PED – Pesquisa de Emprego e Desemprego
PGFN – Procurador Geral da Fazenda Nacional
PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PNE – Plano Nacional de Educação
PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
Polis – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais
Pronaf – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
Prouni – Programa Universidade para Todos
PT – Partido dos Trabalhadores
Reuni – Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
RFB – Receita Fedaral do Brasil
Seade – Superintendência Estadual de Apoio à Pessoa com Deficiência
Senai – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
Sesi – Serviço Social da Indústria
Sinaes – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior
Sisprouni – Sistema do Programa Universidade para Todos
TCC – Trabalho de Conclusão de Curso
TCU – Tribunal de Contas da União
UNE – União Nacional dos Estudantes
Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
Uniban – Universidade Bandeirantes
Unicef – Fundo das Nações Unidas para a Infância
Unicid – Universidade Cidade de São Paulo
Unicsul – Universidade Cruzeiro do Sul
Uniesp – União das Instituições Educacionais do Estado de São Paulo
xi
Unifesp – Universidade Fedreal de São Paulo
Uninove – Universidade Nove de Julho
Unip – Universidade Paulista
USP – Universidade de São Paulo
VAI – Programa de Valorização de Iniciativas Culturais
RESUMO
FELDMAN, Márcia Regina dos Santos. Histórias que se cruzam na significação social dada
ao programa universidade para todos. Dissertação de mestrado. São Paulo: Universidade
Nove de Julho, 2010.
O presente trabalho tem como sujeito de estudo o aluno de ensino superior com bolsa conce-
dida pelo Prouni. E, como objeto, a significação social que esse aluno atribui ao Prouni. Os
procedimentos metodológicos delinearam-se por meio de levantamento bibliográfico e da
entrevista semi-estruturada como técnica, sendo o depoimento de nove alunos/indivíduos de
ensino superior com bolsa concedida pelo Prouni o cerne do estudo. O objetivo central foi o
de verificar por meio das vozes dos entrevistados, se a significação social que o aluno atribui
ao Prouni ocorre na genericidade do “em-si” ou do “para-si”. Os dados foram analisados sob
o pensamento de Lukács, tendo como eixos orientadores das análises: formação pelo trabalho
- sujeito enquanto ser social; reflexo na consciência; teleologias e alternativa. As narrativas
analisadas sob a perspectiva qualitativa de pesquisa revelaram que estudar em uma faculdade
é uma necessidade, construída para manter a labilidade, mesmo em situação de não trabalho.
A pesquisa demonstrou ainda que, diante da possibilidade de um curso superior, a significa-
ção dada ao Prouni é elaborada no imediato, não havendo demonstração de uma compreensão
crítica da realidade.
Palavras-chave: Prouni; genericidade em-si; genericidade para-si
ABSTRACT
FELDMAN, Márcia Regina dos Santos. Histories that cross the social meaning given to the
university program to all. Master´s dissertation. São Paulo: Nove de Julho University, 2010.
The current essay has as subject of study the college student who has fringe benefit supports
acquired from Prouni. Yet, as object, the social meaning that that student attributes to Prouni.
The methodological procedures outlines bibliographical research and also a semi-structured
interview as technique which the statements from nine students/individuals from college stu-
dent who have fringe benefit supports acquired from Prouni are the core of the study. The
main objective was that to verify by their voices if the social meaning that the students
attribute to Prouni occurs when in the engendering of “in-itself” or of “to-itself”. The data
were analyzed under Lukács´s thoughts, and they also have as investigation guidance: forma-
tion by work subject as social being; reflection on principles; teleology and option. The
narratives analyzed under a quantitative perspective from the research revealed that studying
in a college is a need, built to keep labiality, even in situation of non work. The research pre-
sented, yet, by the possibility of a graduating college course, the meaning given to Prouni is
prepared on the moment, and there is no demonstration of a critical comprehension of reality.
Key-words: Prouni; engendering by themselves, engendering to themselves
INTRODUÇÃO
Camadas da sociedade sem oportunidade de se inserir no mundo produtivo, principal-
mente por terem sido excluídas dos direitos prioritários de um Estado democrático, como e-
ducação, saúde e moradia, têm sido objeto, nos últimos governos, desde a década de 1990, de
resgate histórico e social, por meio de Programas e Ações Governamentais de alcance popu-
lar.
Nesta pesquisa, aborda-se um desses Programas
1
, o Programa Universidade para To-
dos (Prouni), que possibilita o acesso ao ensino superior de indivíduos pertencentes a uma
camada da sociedade dita excluída, com perfil bem definido: estudante de escola pública, com
baixa renda familiar, que não tenha cursado nenhuma faculdade e que busca no ensino superi-
or sua emancipação social.
Cabe dizer que o interesse pelo tema surgiu da trajetória pessoal e profissional desta
pesquisadora, que vem de uma família numerosa, com dificuldades financeiras, e que até a
sua primeira graduação realizou seus estudos na rede pública.
Na década de 1970, na Universidade de São Paulo (USP), palco dessa primeira gradu-
ação, teve a oportunidade de vivenciar discussões sobre o acesso e o direito de ingresso à edu-
cação pública aos estudantes oriundos de camadas populares. Essas discussões se davam entre
um grupo de estudantes que lutava pela democratização do acesso ao ensino superior público,
pois estudantes com melhores condições financeiras e que haviam cursado o ensino básico em
escolas particulares tinham maiores chances de alcançar sucesso no vestibular e, consequen-
temente, maiores possibilidades de ingresso nas universidades públicas.
Hoje, atua na educação básica, como professora efetiva da Secretaria de Educação do
Estado de São Paulo, vivenciando a precariedade do ensino público, e na educação superior,
em uma faculdade que tem como missão proporcionar ensino de qualidade a alunos de classes
menos favorecidas e, de modo geral, provenientes do ensino público, por meio da utilização
de vários programas governamentais de inclusão, como: Programa Escola da Família, Univer-
sidade na Alfabetização, Programa Jovem Acolhedor, Bolsa Escola Municipal para o Ensino
Superior, Programa de Financiamento Estudantil e o Prouni. Foi essa vivência que despertou
o interesse desta pesquisadora pela discussão desse último programa.
1
Esses programas são comentados em pormenores no capítulo 1.
2
O Prouni é um programa de inclusão universitária que concede bolsas de estudo parci-
ais ou integrais em instituições de ensino superior privadas
2
a estudantes de baixa renda.
O programa também assegura às instituições de ensino que a ele aderem isenção dos
impostos e contribuições no período de vigência do termo de adesão: imposto de renda de
pessoas jurídicas; contribuição social sobre o lucro líquido; contribuição social para financia-
mento da seguridade social; contribuição para o Programa de Integração Social, além do par-
celamento de antigas dívidas, conforme se no art. 10 da Lei 10.260, de 12 de julho de
2001, alterada pela Lei 11.552, de 19 de novembro de 2007. A regulamentação do parce-
lamento encontra-se na Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 6, de 17 de dezembro de 2007.
É um programa de inclusão que atende, ao mesmo tempo, a dois segmentos opostos da
sociedade: atende às necessidades de apoio financeiro das instituições privadas, que durante
décadas foram favorecidas por leis que possibilitavam a renúncia fiscal, desde, principalmente
a década de 1970, e às pessoas das camadas de baixa renda familiar que não conseguem aces-
so às universidades públicas e têm dificuldades para pagar seus estudos na rede privada.
Diante do exposto, a presente pesquisa tem como sujeito de estudo o aluno de ensino
superior com bolsa concedida pelo Prouni. E, como objeto, a significação social que esse alu-
no atribui ao Prouni. O problema que se pretende discutir, no limite que a pesquisa possibili-
tou é se esta significação se na genericidade do “em-si” ou do “para-si
3
”? Esse aluno é ca-
paz de elevar-se a uma consciência “para-si”?
Partiu-se da hipótese de que o aluno do ensino superior, por estar inserido em um con-
texto de privatização que visa a eficiência e a eficácia dos resultados, é alvo de um sistema
que não contribui para um avanço significativo em termos de formação humana. Ao contrario,
contribui para o fortalecimento da adaptação do indivíduo ao que está posto, reforçando de-
terminadas significações sociais relacionadas ao ensino superior e sua “função social”.
O objetivo principal foi verificar, por meio dos depoimentos dos entrevistados, se a
significação social que eles atribuem ao Prouni ocorre na genericidade do “em-si” ou do “pa-
ra-si”, posto que a formação, como prática social, pode ser mediadora de uma humanização
mais plena pelo acesso do aluno à cultura mais ampla, à ciência e à arte.
Para isso, buscou-se traçar a trajetória dos alunos, considerando a formação escolar, a
experiência familiar, o meio social, econômico e cultural em que vivem, suas expectativas em
relação à formação universitária. Procurou-se verificar também a importância dada às ativida
2
Nas instituições públicas de ensino superior, as ações positivas foram implementadas por meio de cotas aos
estudantes autodeclarados afrodescendentes.
3
As categorias “em-si” e “para-si” serão explicadas, em pormenores, no capítulo 1 deste trabalho.
3
des exigidas pela instituição que os remetem a experiências culturais. Buscou-se ainda com-
preender como esses alunos significam a experiência universitária, considerando os impactos
na sua formação e o lugar ocupado pelo Prouni nessa experiência.
Os dados foram analisados sob o pensamento de Lukács (1978, 1981), tendo como ei-
xo orientador as seguintes categorias de análise: formação pelo trabalho do sujeito enquanto
ser social; reflexo na consciência; teleologia e alternativa.
Este trabalho está organizado em quatro capítulos, como se segue.
No capítulo 1, Opções metodológicas e sujeitos desta pesquisa, abordam-se as catego-
rias utilizadas na análise dos dados, as metodologias escolhidas, bem como as justificativas
dessas escolhas. Apresentam-se também os sujeitos entrevistados.
No capítulo 2, Programa Universidade para Todos: panorama histórico, político, so-
cial e aspecto legal, aborda-se a reconfiguração do Estado brasileiro sob o pensamento neoli-
beral, a expansão universitária em uma dimensão mercadorizada e as políticas públicas edu-
cacionais que se pretendem de resgate social, especialmente o Prouni, no tocante à legislação.
Apresentam-se também algumas análises e discussões referentes ao programa.
No capítulo 3, A juventude brasileira, procurou-se apresentar o jovem brasileiro no a-
tual momento histórico, objetivando identificar seu espaço na sociedade, principalmente no
que se refere à educação e ao mundo do trabalho. Buscou-se ainda apresentar algumas políti-
cas públicas a essa faixa etária.
No capítulo 4, Prouni: a alternativa possível, apresenta-se a análise dos dados, con-
forme as categorias propostas, procurando relacionar a individualidade “em-si” e “para-si”
desses sujeitos com os conteúdos apresentados nos capítulos anteriores.
CAPÍTULO 1 – OPÇÕES METODOLÓGICAS E SUJEITOS DESTA
PESQUISA
Esta pesquisa amparou-se na técnica da entrevista semiestruturada, a qual permitiu que
cada um dos entrevistados expressasse sua vivência particular e deu-lhes oportunidade de, em
determinado momento, tornar-se singulares, pois possibilitou resgatar o indivíduo como sujei-
to no processo histórico, reativando “o conflito entre liberdade e determinismo” (FREITAS,
2002, p. 15). O depoimento de nove alunos/indivíduos de ensino superior com bolsa concedi-
da pelo Prouni constituiu o cerne deste estudo.
Recorreu-se também à pesquisa bibliográfica sobre políticas públicas de inclusão uni-
versitária, políticas públicas da educação superior no Brasil e estudos sobre a juventude. Os
principais autores consultados foram: Peroni (2006); Silva Junior (2002); Silva Junior e
Sguissard (2005); Sposito (2003)
Fez-se uso ainda de relatórios de pesquisa do Instituto Nacional de Estudos e Pesqui-
sas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do Ministério da Educação (MEC), do Instituto Bra-
sileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Departamento Intersindical de Estatística e Estu-
dos Socioeconômicos (Dieese), do Instituto Polis e da Organização Internacional do Trabalho
no Brasil (OIT).
Para embasar a análise dos dados, considerando as categorias propostas, realizou-se
principalmente a leitura dos seguintes autores: Duarte (1993) e Lukács (1978, 1981).
Para verificar se a significação social que o aluno atribui ao Prouni ocorre na generici-
dade do “em-si” ou do “para-si”, buscou-se analisar as narrativas sob a perspectiva qualitativa
de pesquisa, especialmente por se entender que, nessa ótica, o papel do investiga-
dor/pesquisador é “o de melhor compreender o comportamento e a experiência humanos [...]
compreender o processo mediante o qual as pessoas constroem significados e descrever em
que consistem estes mesmos significados” (BOGDAN e BIKLEN, 1994, p. 70).
No processo de construção de uma pesquisa qualitativa, a documentação dos dados
não é mera gravação neutra da realidade, mas sim orientada ou para codificação e a categori-
zação ou para a análise de estruturas sequenciais no texto, envolvendo o pesquisador em ques-
tões do tipo como avaliar a validade e a apropriabilidade do processo de pesquisa e dos dados
produzidos.
5
Os investigadores que utilizam a perspectiva qualitativa em suas análises buscam es-
tudar objetivamente os estados subjetivos dos seus sujeitos, tendo como meta principal cons-
truir conhecimento, e não opinar sobre determinado contexto. Interagem com os seus sujeitos
de forma natural, não intrusiva e não ameaçadora.
Os teóricos qualitativos (BOGDAN e BIKLEN, 1994; CHIZZOTTI, 2005), dentre ou-
tros interessam-se pela maneira como as pessoas se comportam e pensam sobre as suas pró-
prias vidas, as suas experiências e as situações particulares vivenciadas. Por meio das entre-
vistas, é possível coletar dados sobre como as pessoas se comportam e pensam suas experiên-
cias e as situações que vivenciam.
A pesquisa qualitativa tem como um de seus enfoques a análise de casos concretos,
partindo das narrativas e atividades das pessoas em seus contextos locais. Buscou-se então,
neste estudo, entender os fenômenos humanos e sociais em sua complexidade e dinamicidade
e interpretar os seus significados.
Para isso, as questões das entrevistas, base deste trabalho, foram elaboradas com o in-
tuito de permitir que os envolvidos falassem, se revelassem. E, quanto a isto, vale registrar o
que expõe Ianni:
vários modos de dizer a verdade, ou procurá-la. Um deles, segundo nos
parece, consiste em deixar que as pessoas envolvidas em situações e proble-
mas estudados utilizem as suas próprias palavras. Mesmo quando elas não
estão em condições de ver claro, ou quando não podem dizer as coisas com
clareza; mesmo nesses casos revelam dados significativos para a compreen-
são das situações e problemas. Em geral, no entanto, dizem o essencial. Essa
é uma contingência de toda a situação, a não ser quando ela não contém ten-
sões ou antagonismos, o que não se verifica nesta história. À medida que fa-
lam, que dizem apenas o que querem, que tomam decisões e agem, revelam
também as relações e as estruturas mais íntimas das situações e problemas.
Neste ponto, as pessoas podem aparecer como personagens e a história pode
adquirir os seus movimentos reais (1996, p. 21).
Nesse sentido, a opção pela ênfase na análise dos dados, sob a ótica da pesquisa quali-
tativa, constitui um procedimento metodológico eficaz, porque por meio dos relatos orais, das
narrativas, das entrevistas e dos depoimentos pessoais é possível socializar um conhecimento
particular, além de possibilitar a compreensão dos fatos problematizados, nem sempre consi-
derados no cotidiano.
Segundo Chizzotti
Na pesquisa qualitativa todos os fenômenos são igualmente importantes e
preciosos: a constância das manifestações e sua ocasionalidade, a frequência
6
e a interrupção, a fala e o silêncio. É necessário encontrar o significado ma-
nifesto e o que permaneceu oculto. Todos os sujeitos são igualmente dignos
de estudo, todos são iguais, mas permanecem únicos e todos os seus pontos
de vista são relevantes [...]. Esses conceitos manifestos, as experiências rela-
tadas ocupam o centro de referência das análises e interpretações na pesquisa
qualitativa (2005, p. 84).
Neste trabalho de pesquisa, a escolha da abordagem qualitativa de investigação, en-
quanto proposição de coleta e de interpretação dos dados, respaldou-se no fato de que tal a-
bordagem estimula o pensamento do entrevistado, fazendo emergir aspectos subjetivos, atin-
gindo motivações não explícitas ou mesmo conscientes de maneira espontânea, o que propor-
cionou a abertura de espaços de exploração que favoreceram a interpretação e a compreensão
do objeto de pesquisa.
1.1 – Categorias de análise
Para o estudo aqui proposto, em consonância com Duarte, concebeu-se que a formação
propiciada pela escolarização, e no caso desta pesquisa, a formação universitária, pode se
constituir em uma prática que contribui para
a elevação da consciência do indivíduo ao nível da genericidade para-si, ou
seja, para a formação, pelo indivíduo, de uma relação consciente entre sua
vida concreta, histórica e socialmente determinada, e as possibilidades de
sua objetivação ao nível da universalidade do gênero humano [...] que não se
reduza ao nível da inserção do indivíduo na socialidade em-si, mas que tenha
por objetivo fundamental que esse homem viva uma socialidade para-si
(1993, p. 119).
É importante dizer que, de acordo com Duarte (1993), Lukács afirma que tanto o “em-
si” quanto o “para-si”o determinações ontológico-universais do ser social que se articulam.
Para este autor, enquanto o “em-si” das individualidades está presente no cotidiano da vida
social, o “para-si” necessita de uma prévia ideação objetivada pela capacidade do homem de
transpor a própria consciência além de sua própria particularidade. O “para-si” apresenta-se
nas decisões conscientes em busca de novas relações sociais, pois as particularidades, histori-
camente produzidas, não potencializam o processo de superação e de ascensão à genericidade
consciente.
A trajetória escolar dos entrevistados, a possibilidade de darem continuidade aos estu-
dos mediante sua condição econômica precária, a importância dada à experiência universitá
7
ria e a significação social do Prouni, constituíram-se nas categorias empíricas que orientaram
a análise teórica, que, como anteriormente indicado, teve como base as contribuições de
Lukács (1978, 1981) e Duarte (1993).
Segundo Lukács (1978) o trabalho é a base para a construção do indivíduo social. Ele
se caracteriza como um fenômeno original e célula geradora da vida em sociedade.
Como aponta Duarte “os seres humanos, a partir de um certo ponto da evolução natu-
ral (biológica), tornaram-se biologicamente aptos à realização de uma atividade chamada tra-
balho” (2004, p. 48).
Assim, é possível compreender que o trabalho é determinante das relações sociais e
identitárias do próprio indivíduo. O homem tem no trabalho sua valoração, na ocupação desse
espaço, sua materialização, e nesse movimento, sua essência. É definido e se define pela sua
posição no mundo do trabalho, pelo que possui ou pelo que produz.
O homem se distingue dos animais na medida em que transforma a natureza, produ-
zindo, a partir das finalidades socialmente postas, seus meios de vida e, indiretamente, sua
própria vida material, como ato da consciência dirigido pela própria consciência, entendida
“não como o domínio racional de todo o processo, mas apenas a intencionalidade do sujeito
de pensar uma ação, ou seja, de preestabelecer um fim para seus atos e antever o resultado de
sua ação” (MAGALHÃES, 2003, p. 2).
Para Lukács (1978), as finalidades sociais nascem de uma necessidade humano-social,
sendo preciso, porém, ter um conhecimento da natureza para que não seja um mero projeto
utópico. Portanto, o trabalho se faz na busca dos meios e na compreensão dos atributos espe-
cíficos ao objeto trabalhado, considerando sua finalidade. Segundo o autor, a conseqüência
disso “é que em cada processo singular de trabalho o fim regula e domina os meios” (1978, p.
10), não se tratando, por conseguinte, de mera causalidade, gerada pelas forças da natureza,
mas sim de um processo teleológico, construído nas tramas das relações de força e de poder
entre os próprios seres humanos.
Diferente do animal, que é programado para agir conforme sua natureza e necessida-
des e, por isso, não modifica sua existência, antes adapta-se ao meio em que vive e age instin-
tivamente, os seres humanos, segundo Lukács (1981), criam e recriam sua existência por meio
da ação consciente do trabalho, trabalho este que, enquanto atividade consciente, apresenta
caráter teleológico, provocando, deste modo, opções, escolhas e liberdade.
Para esse autor, o caráter alternativo do “por” no processo do trabalho se apresenta a
partir da finalidade do trabalho. O filósofo húngaro exemplifica esse processo ao falar do ho-
mem primitivo, que escolhe, de um conjunto de pedras, uma que lhe parece mais apropriada
8
aos seus fins, deixando outras de lado, caracterizando então uma escolha ou alternativa. os
animais se relacionam com a natureza de modo instintivo, por uma ligação com a natureza
biológica, epifenômica, e não por uma alternativa.
No processo de trabalho dos homens, a escolha produz hábitos, reflexos condicionados
que tornam suas objetivações genéricas “em-si”, gerados por decisões alternativas. A alterna-
tiva “é um ato da consciência e uma categoria mediadora por meio da qual o reflexo da reali-
dade se torna veículo do ato de por um existente” (LUKÁCS, 1981, p. 19).
O trabalho é que promove a relação do homem com a natureza de forma consciente,
buscando, portanto, a partir de suas finalidades teleologicamente postas, alternativas e esco-
lhas para as objetivações da práxis humana.
Segundo Lukács (1981), na medida em que ocorre desenvolvimento humano social, as
relações do homem com a natureza se tornam cada vez mais complexas, transformando as
escolhas e alternativas de uma dimensão utilitária e imediatista em uma dimensão de caráter
social diversificado e diferenciado.
O filósofo chama a atenção para o fato de que a alternativa sempre será concreta, pois
pressupõe a decisão de uma pessoa concreta a respeito de condições concretamente melhores
para realizar uma finalidade concreta. Isto quer dizer
que toda alternativa (e toda cadeia de alternativas) no trabalho nunca pode se
referir à realidade em geral, mas é uma escolha concreta entre caminhos cuja
meta (em última análise, a satisfação da necessidade) foi produzida não pelo
sujeito que decide, mas pelo ser social no qual ele vive e opera. O sujeito
pode tomar como objeto de sua finalidade, de sua alternativa, as possibilida-
des determinadas sobre o terreno e por este complexo de ser que existe inde-
pendentemente dele (LUKÁCS, 1981, p. 21).
que se dizer então que nenhuma escolha se faz de maneira independente, mas sim
conforme as possibilidades e as condições histórica e socialmente construídas, porém passí-
veis de serem alteradas pela ação consciente dos sujeitos humanos.
Para o homem, a categoria alternativa, tem como conteúdo ontológico essencial não
somente o caráter cognitivo que impulsiona a satisfação de uma necessidade, mas também e
principalmente a posição teleológica frente à necessidade mediada pelo trabalho. O animal, ao
contrário, apenas tem na escolha o fim imediato para a sua necessidade. O que caracteriza o
domínio da consciência sobre o elemento instintivo, puramente biológico.
9
Em todo ato humano, não existe apenas uma finalidade, mas um curso de ação e todos
os outros meios necessários para realizá-la objetivamente no mundo “em-si”. Medeiros, escla-
rece que para Lukács,
O trabalho, em particular, e a prática humana em geral, além de ser caracte-
rizada como realização de uma finalidade pré-concebida, deve ser compre-
endida como escolha entre alternativas concretas existentes. Em todo ato
humano, não apenas uma finalidade (valor), mas um curso de ação (dever-
ser) e todos os outros meios necessários a realizá-la objetivamente num
mundo em si insensível com relação aos desígnios humanos [...] são escolhi-
dos, e outros negados (2007, p. 10).
Isto posto, é razoável inferir que a alternativa é uma categoria determinante, uma vez
que é por meio dela que se realiza a passagem da possibilidade à realidade.
Como sintetiza Gramsci:
A possibilidade o é a realidade, mas é, também ela, uma realidade: que o
homem possa ou não fazer determinadas coisas, isto tem importância na va-
lorização daquilo que realmente se faz. [...]. Mas a existência das condições
objetivas – ou possibilidade, ou liberdade – ainda não é suficiente: é necessá-
rio ‘conhecê-las’ e saber utilizá-las. Querer utilizá-las (1978, p. 47).
Pode-se dizer, então, que a consciência humana não é epifenômica, mas sim teleológi-
ca. Como explica Lukács “na medida em que a realização de uma finalidade torna-se um
princípio transformador e reformador da natureza, a consciência que impulsionou e orientou
um tal processo não pode ser mais do ponto de vista ontológico um epifenômeno” (1981, p. 13).
Nesse processo, o autor afirma que não identidade sujeito e objeto, uma vez que o
produto do trabalho objetivado não se identifica mais com o ser que o subjetivou.
No reflexo da realidade a reprodução se destaca da realidade reproduzida,
coagulando-se numa ‘realidade’ própria da consciência. Pusemos entre aspas
a palavra realidade porque, na consciência, ela é apenas reproduzida; nasce
uma nova forma de objetividade, mas não uma realidade, e exatamente em
sentido ontológico não é possível que a reprodução seja da mesma nature-
za daquilo que ela reproduz e muito menos idêntica a ela (LUKÁCS, 1981,
p. 15).
Parafraseando Ranieri (2009), a capacidade humana de produzir os meios de satisfazer
suas necessidades pressupõe um conhecimento concreto das propriedades do objeto a ser
transformado, o que remete à categoria do reflexo da consciência que, segundo Lukács (1981)
10
diferencia o ser e o seu reflexo na consciência, sendo esta diferenciação um fato fundamental
do ser social.
Nesse sentido,
o reflexo tem uma natureza peculiar contraditória: por um lado, ele é o exato
oposto de qualquer ser, precisamente porque ele é o reflexo e o não ser; por
outro lado e ao mesmo tempo, é o meio através do qual surgem novas objeti-
vidades no ser social, por meio do qual se realiza a sua reprodução no mes-
mo nível ou em nível mais alto (LUKÁCS, 1981, p. 15-6).
Essa reprodução do ser social pode se dar tanto na dimensão do “em-si” quanto do
“para-si”, mesmo porque estas dimensões fazem parte do processo de constituição social do
indivíduo. Na tendência “em-si”, ele reproduz a partir de uma ideia concretizada, enqua-
drando-se em uma essência prévia, relacionando-se sempre com os objetos de sua cotidiani-
dade de um modo espontâneo e imediato. Costa diz que
na sociedade moderna, os saberes incorporados ao cotidiano dos indivíduos
são funcionais às atividades práticas e imediatas, servem para que o indiví-
duo ‘funcione bem’ no seu cotidiano. A superficialidade extensiva faz das
ações cotidianas meras reprodutoras da ‘normalidade’ da vida de cada indi-
víduo. Coexistem, de forma absolutamente tranqüila, na consciência pragmá-
tica do homem do cotidiano, representações de mundo contraditórias em si,
sem ao menos ter-se clara essa questão, pois o saber cotidiano é heterogêneo
(2001, p. 34).
na tendência “para-si” pressupõe-se que os homens se objetivem reflexivamente
enquanto gênero e enquanto humanidade, construindo relações temporais e funcionais com os
seres “em-si” e, com isso, criando um sentido para o mundo no qual vivem, definindo a cada
momento qual é a sua essência. De acordo com Costa, “a superação da superficialidade empí-
rica do cotidiano é uma tarefa que os homens realizam ao adotarem uma postura reflexiva
frente à vida cotidiana. É pelo distanciamento reflexivo frente ao cotidiano, que o homem o
compreende e analisa” (2001, p. 34).
Segundo Duarte (1993), ao transformar a natureza por meio do trabalho, o homem, no
início do processo de humanização do gênero humano, estava se transformando de um ser
genérico para um ser genérico em-si”. As objetivações humanas limitadas pelos utensílios,
costumes e linguagem constituíram a primeira e indispensável esfera de objetivação do gênero
humano. O ser “em-si” também é constituído por pensamentos e ações que dirigem as suas
objetivações “em-si”, mesmo que essas relações estabelecidas não alcancem o plano da gene-
recidade “para-si”.
11
É com o surgimento da sociedade de classes
4
que as relações econômicas, provenien-
tes da exploração, foram se tornando cada vez mais autônomas, ou seja, “em mediadoras entre
as forças produtivas e as relações sociais em geral(HELLER, 1977, p. 230). É no capitalis-
mo que essas relações atingem, segundo esta autora o ponto máximo enquanto ser “em-si”
convertido em autônomo. Somente a superação da alienação nas relações econômicas exigirá
o desenvolvimento de um sentido “para-si”. De acordo com a autora, a apropriação das obje-
tivações genéricas “em-si” constitui a base da vida social. O indivíduo somente pode objeti-
var-se mediante essas apropriações, encontrando-se a possibilidade do alcance da generici-
dade “para-si”.
É importante salientar ainda, conforme Heller (1977), que a prática pedagógica da es-
cola é mediadora entre a formação do indivíduo na vida cotidiana portanto, onde ele se a-
propria das objetivações genéricas “em-si” – e sua formação nas esferas não cotidianas, as das
objetivações genéricas “para-si”.
De acordo com Duarte “uma das diferenças entre a apropriação das objetivações gené-
ricas em-si e a apropriação das objetivações genéricas para-si está em que esta última exige,
em princípio, a superação do caráter imediato, espontâneo, com que se realiza a primeira”
(1993, p. 140).
As objetivações genéricas “para-si”, como a ciência, a moral, a filosofia e a arte, além
de representarem objetivamente o desenvolvimento do gênero humano, representam também
a relação consciente dos homens com as objetivações genéricas “em-si”.
Como aponta Heller:
O para-si constitui a encarnação da liberdade humana. As objetivações gené-
ricas para-si são expressão do grau de liberdade que o gênero humano alcan-
çou em uma determinada época. São realidades nas quais está objetivado o
domínio do gênero humano sobre a natureza e sobre si mesmo (sobre sua
própria natureza) (1977, p. 233).
Com a finalidade de análise, Lukács (1981) decompõe o trabalho humano em dois
momentos: objetivação e alienação, que no ato real são inseparáveis. A capacidade humana de
criar objetos sociais antes inexistentes possui caráter positivo. É na produção de objetos soci-
ais e de sua alienação em relação a eles que o ser humano se hominiza e desenvolve bens que
4
Embora Marx reconhecesse que, nas diferentes épocas históricas, sempre existiram múltiplas categorias sociais,
considera que o século XIX presenciou, de maneira mais marcante, a polarização de duas classes antagônicas e
hostis: a burguesia e o proletariado. O capitalista é proprietário dos bens de produção, enquanto o operário possui
apenas sua força de trabalho, vendida em troca de salário (ARANHA, 1992). Portanto, o surgimento das classes
sociais está associado à divisão do trabalho.
12
o produzem e o reproduzem, o que leva o indivíduo ao que o filósofo denomina estranhamen-
to, caráter negativo da exteriorização.
Lukács (1981) entende o estranhamento, na sociedade capitalista, como o não reco-
nhecimento do homem de sua própria produção e reprodução social. Na verdade, torna-se
obstáculo ao desenvolvimento humano, o que impede a formação de uma individualidade rica
e livre, possibilitada e ao mesmo tempo impedida pela sociedade capitalista.
Para que haja uma real possibilidade de objetivação do ser “para-si” na sociedade capi-
talista, Lukács (1981), citado por Tassigny, aponta para a necessidade
de superação dos estranhamentos. Entretanto, destaca que o desenvolvimen-
to social anima um ser cada vez mais integrado e, por isso, crescentemente
portador de necessidades genéricas [...] implica-se daí uma consciência pro-
gressivamente mais sintonizada com as necessidades humanas como um to-
do. Tal superação, entretanto, ainda irá demandar escolhas, em escala social,
de valores que sejam expressão do próprio fim do desenvolvimento social: a
produção de seres livres e autônomos (TASSIGNY, 2004, p. 84).
Quanto à alienação, segundo Duarte (1993), superá-la demonstra a prática de objetiva-
ções genéricas “para-si”, como a produção de ciência, arte e filosofia, transpondo o caráter
não consciente e espontâneo das objetivações genéricas “em-si”, na medida em que se desen-
volve uma relação consciente do indivíduo com o gênero humano. Entretanto, ainda para o
autor, não é apenas a apropriação das objetivações genéricas “para-si” que garantem a supera-
ção da alienação, pois, se assim o fosse, a formação da individualidade “para-si” dependeria
da posse ou não posse de determinadas formas do saber. Mas
a relação consciente com a genericidade para-si torna-se, à medida em que
vai se desenvolvendo na vida do indivíduo, mediadora na reconstrução da
hierarquia das atividades cotidianas e dos valores que dirigem tais ativida-
des. O indivíduo passa a não mais aceitar como ‘natural’ a hierarquia das a-
tividades da vida cotidiana [...] (DUARTE, 1993, p. 143)
Em suma, o trabalho, entendido como práxis humana material e não material, e não
apenas como produção de mercadorias, é uma categoria fundante na formação do indivíduo
enquanto ser social. Por meio do trabalho ele promove objetivações e apropriações, a partir
das constantes relações com a natureza e consigo próprio. O homem satisfaz suas necessida-
des de modo consciente e teleológico, tornando a sua capacidade de fazer alternativas e esco-
lhas o seu estar em sociedade, mesmo que em condições não determinadas por ele. Reunidos
13
na esfera das relações sociais, os homens criam valores e definem objetivos de vida a partir
dos desafios encontrados na atividade produtora de sua existência.
Desse modo, tanto o indivíduo “em-si” quanto o indivíduo “para-si” devem ser com-
preendidos como um homem real inserido em determinado contexto histórico-social.
1.2 – Sujeitos desta pesquisa
Os sujeitos que compuseram a amostra desta pesquisa foram nove alunos, matricula-
dos em instituições do ensino superior, com bolsa proveniente do Programa Universidade para
Todos (Prouni), criado pelo Governo Federal. Foram ouvidos alunos do curso de pedagogia,
marketing, economia, enfermagem, turismo e direito.
Os alunos ouvidos também tiveram acesso ao ensino superior por meio do Exame Na-
cional do Ensino Médio (Enem). Portanto, possuem o perfil socioeconômico definido pelo
programa: baixa renda familiar, estudos realizados em escolas públicas e não portadores de
diploma de ensino superior.
Desses sujeitos, oito encontram-se na faixa etária de 18 a 31 anos. Somente um deles,
Eduardo, tem 46 anos de idade e foi escolhido por se tratar de um sujeito com uma história de
vida diferenciada, já que foi interno do sistema carcerário paulista. Ou, em suas próprias pala-
vras, um indivíduo que viveu “[...] como qualquer animal em qualquer outra situação, e sendo
o ser humano autoadaptável e com instinto de sobrevivência enorme, o meu instinto era de
sobreviver, mais do que sobreviver o meu corpo, tinha de sobreviver minha mente”.
Ainda, partindo da premissa de que a categoria administrativa poderia influenciar nas
significações, foram contempladas instituições de três categorias: faculdades, centro universi-
tário e universidades, como se segue: Faculdades Integradas Brasileiras Renascença/Uniesp;
Faculdade São Camilo; Centro Universitário UniSant´Anna; Universidade Presbiteriana Mac-
kenzie; Universidade Bandeirantes de São Paulo (Uniban).
As entrevistas transcorreram no período de junho a dezembro de 2009. Sete foram rea-
lizadas na residência dos sujeitos deste estudo e duas na instituição de ensino na qual estu-
dam. Todas foram gravadas e transcritas.
Para a realização deste trabalho, esta pesquisadora enfrentou alguns entraves. Quando
informados de que o depoimento seria gravado, a grande maioria alegou não ter disponibili-
dade de tempo. Outra dificuldade foi o não comprometimento dos entrevistados em relação às
datas e horários marcados, o que resultou, algumas vezes, na remarcação do encontro.
14
Embora tenham ocorrido entraves, a pesquisadora se sentiu privilegiada em poder ter
contato com a história de vida dessas pessoas. Alguns alunos que aceitaram dar seu depoi-
mento, permitiram o acesso às suas residências. Esta pesquisadora foi recebida carinhosa-
mente pelos familiares, inclusive, convidada, algumas vezes, a participar das refeições junto à
família. Um fato curioso nessas visitas foi o envolvimento das pessoas próximas ao entrevis-
tado nas narrativas de sua trajetória escolar. Muitas vezes elas se emocionaram, principal-
mente com fatos que relembravam o difícil passado. Aqueles que deram seus depoimentos na
instituição foram igualmente solícitos e atenciosos.
De todo modo, o processo de entrevistas possibilitou o estabelecimento de uma rela-
ção de confiança entre entrevistados e entrevistadora.
Por meio dos depoimentos, foi possível conhecer mais amplamente essas personagens
que, com as suas experiências e trajetórias de vida, nos mostraram um pouco das tensões soci-
ais vivenciadas por uma camada substancial da sociedade brasileira. Uma camada que, tolhida
ao longo da história da possibilidade de acesso ao ensino superior, alcança-o, na grande maio-
ria das vezes, por meio de políticas públicas governamentais.
Foi possível também traçar o perfil dessa pequena amostra dessa camada da sociedade,
que contribuiu para a realização desta pesquisa, e que apresentamos a seguir.
Beatriz Rodeiro Martinez é uma jovem de 27 anos que vive com a mãe e duas irmãs,
em casa própria, na cidade de Ribeirão Pires, SP. Cursa pedagogia nas Faculdades Integradas
Brasileiras Renascença/Uniesp São Paulo, capital –, terceiro semestre, período noturno. Em
1996, logo após o término do ensino médio, matriculou-se em um curso de teatro promovido
pela prefeitura de Ribeirão Pires. Após o curso, foi convidada a trabalhar no projeto de teatro,
no qual permaneceu até o ano de 2004. Neste mesmo ano, aderiu a uma organização não go-
vernamental (ONG) que, por meio da arte-educação, atendia jovens com idades entre 16 e 24
anos, em vulnerabilidade social, que buscavam o primeiro emprego. Em 2006, a prefeitura
exigiu que os professores da ONG tivessem graduação, o que motivou Beatriz a buscar o en-
sino superior. Para sustentar-se no ensino superior, faz trabalhos esporádicos na área de teatro.
Rodrigo Lourenço Gonçalves tem 23 anos. Filho mais velho de três irmãos, mora com
os pais, o irmão e a irmã na Vila Maria, Zona Norte da cidade de São Paulo, em casa própria.
Concomitantemente ao ensino médio cursou o técnico em administração na Escola Técnica
Estadual (Etec). No Centro Universitário UniSant´Anna, São Paulo, fez o curso superior de
tecnólogia em marketing, que terminou no semestre de 2009. Hoje trabalha como auxiliar
administrativo no Grupo Autofax – Tecnologia para decisão de negócios.
15
Emília Mara Lima Silva, 22 anos nasceu e foi criada em São João da Boa Vista, SP.
Uma vez conseguida a bolsa pelo Prouni, mudou-se para a cidade de São Paulo e matriculou-
se no curso superior de tecnólogia em marketing, no Centro Universitário UniSant´Anna, ter-
minando-o no semestre de 2009. Longe da família, mora com uma amiga e o pai desta no
centro da cidade em um pequeno apartamento. O aluguel e outras despesas são divididos.
Mesmo tendo terminado a faculdade, trabalha como atendente em uma loja de roupas.
Tatiana de Oliveira Cruz Barbosa tem 31 anos e é a mais velha de três irmãs. É casada
e tem dois filhos, uma menina de 11 anos e um menino de 2. Mora no centro da cidade de São
Paulo, em um edifício financiado pela Caixa Econômica Federal, por meio do Programa de
Arrendamento Residencial
5
, aos participantes do Movimento de Moradia do Centro
6
(MMC).
Cursa o 3º semestre de direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Estagia na área.
Karen Jaqueline Santana Gomes tem 18 anos. Mora com a mãe e a irmã mais nova no
centro da cidade de São Paulo, também em apartamento conquistado por meio do Movimento
de Moradia do Centro. Quando criança, sempre acompanhava a mãe em reuniões do MMC.
Pratica handball desde o ensino fundamental. Começou a trabalhar com 16 anos, como estagi-
ária, encaminhada pelo Núcleo Brasileiro de Estágio (Nube), com o propósito de conseguir
dinheiro para acompanhar a turma em um cruzeiro de formatura do ensino médio. Cursa o
semestre de enfermagem na Faculdade São Camilo e trabalha em uma clínica odontológica na
capital.
Wendy Francisco Pereira tem 27 anos e mora com seu companheiro no centro da cida-
de, em imóvel conseguido por meio da luta da população de baixa renda para a conquista da
moradia. Oriundo de uma família composta por pai, mãe e dez irmãos é natural de Itabaiani-
nha, Sergipe, e até os 10 anos ajudou o pai, na zona rural, na venda de banana. A partir dos 12
anos foi trabalhar no comércio da pequena cidade. Aos 16 anos, pela precariedade de opções
de trabalho que a cidade oferecia, começou a atuar na indústria de confecção. Morou em Ita-
baianinha até os 20 anos, quando veio para São Paulo, reencontrando a mãe e alguns irmãos
que aqui residiam. Cursa o semestre de turismo, na Universidade Bandeirantes (Uniban).
Continua trabalhando no ramo da confecção, como costureiro.
5
Programa instituído por meio da Lei 10.188, de 12 de fevereiro de 2001, para atendimento da necessidade de
moradia da população de baixa renda, sob a forma de arrendamento residencial, com opção de compra (BRASIL.
PLANALTO DO GOVERNO, 2001).
6
O Movimento de Moradia do Centro surgiu por volta de 1984, fruto da mobilização de um grupo de moradores
de cortiços engajados na luta contra taxas de aluguéis abusivas e cobranças de água e luz muito além das suas
possibilidades. Sua atuação caracteriza-se pela ocupação de edifícios públicos e privados ociosos no centro de
São Paulo, tendo como fundamento a luta pela moradia e a organização urbana de trabalhadores empregados e
desempregados (BLOCH e MARTINS, 2009).
16
Kelly Cristina Pereira tem 22 anos, é casada e possui um filho. Tem três irmãos por
parte do pai e dois por parte da mãe. É a mais velha dos irmãos e não conhece a e. Ficou
órfã de pai aos 4 anos de idade e foi morar com os avós paternos na Paraíba, onde permaneceu
até os 9 anos, quando a família transferiu-se para Caraguatatuba, São Paulo. Dois anos depois,
retornou à Paraíba e seis anos mais tarde, já com 17 anos, voltou para São Paulo. Foi morar
em Itaquaquecetuba com os avós, permanecendo sob seus cuidados até os 19 anos, quando se
casou. Kelly trabalha desde os 14 anos. Já trabalhou como atendente de sorveteria, de loja de
noivas, como babá, costureira em confecção de bolsas, monitora em escola de informática.
Hoje atua como atendente em empresa de telemarketing e cursa o semestre de pedagogia
nas Faculdades Integradas Brasileiras Renascença/Uniesp.
Eduardo Pires de Oliveira, 46 anos, faz questão de frisar que é filho de empregada
doméstica e de pai funcionário público. A mãe, hoje com 64 anos, ainda exerce a função de
doméstica e sempre foi engajada em movimentos políticos comunitários. Nascido em tempo
de governo ditatorial, época de inúmeras proibições, motivado pela mãe tornou-se um contes-
tador. Considera-se um revoltado por natureza. Com 14 anos começou a trabalhar como offi-
ce-boy. A partir daí passou a ter um novo registro na carteira a cada três meses, em diferentes
atividades. Serviu o exército, época em que se especializou no trato de equinos, função que
exerceu por mais um ano depois de sua baixa. Foi policial militar. Saiu da corporação na con-
dição oposta, de presidiário, em liberdade assistida. É divorciado da mãe de seu filho, hoje
com 19 anos, e casado com outra mulher. Atualmente exerce a profissão de manobrista notur-
no e cursa o 5º semestre de pedagogia nas Faculdades Integradas Brasileiras Renascen-
ça/Uniesp.
Elton Luiz Fotoni é filho de pais separados. Tem 26 anos e mora com a mãe em um
espaço ocupado na Vila Albertina, Zona Norte de São Paulo, espaço caracterizado como nú-
cleo habitacional de risco. Contratado pela prefeitura, começou a trabalhar aos 19 anos como
auxiliar de almoxarife na Escola da Polícia Militar do Barro Branco. Permaneceu por dez me-
ses, quando foi chamado para trabalhar com um primo em um escritório contábil, como auxi-
liar de contabilidade, cargo em que permanece até hoje. Elton teve uma banda de música e
participou do Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais
7
no governo da prefeita
7
Criado pela Lei 13.540 e regulamentado pelo Decreto 43.823/03, o do Programa para a Valorização de
Iniciativas Culturais (VAI), tem como objetivo apoiar financeiramente atividades artístico-culturais de jovens de
baixa renda de regiões da Cidade desprovidas de recursos ou equipamentos culturais. A primeira edição do VAI,
realizada em 2004, contabilizou 645 projetos inscritos, sendo 65 contemplados. Em 2005 foram selecionadas 71
propostas, de 450 inscritas. Em 2006 foram 758 inscrições e 62 grupos. 2007 foi um ano de crescimento, com
777 inscritos e 102 selecionados (PORTAL DA PREFEITURA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2008).
17
Marta Suplicy
8
. Toca teclado, escreve poesias e cursa o semestre de ciências contábeis na
Universidade Paulista (Unip).
A metodologia utilizada envolveu basicamente três momentos. O primeiro refere-se à
elaboração cnica da entrevista semiestruturada; o segundo, à realização das entrevistas, que
foram gravadas, transcritas e posteriormente editadas, de forma a facilitar a compreensão do
leitor, porém sem que as características dos depoimentos fossem alteradas; o terceiro foi o de
tratamento e análise dos dados.
As questões foram organizadas de forma a: 1) caracterizar o perfil e traçar a trajetória
escolar dos alunos e a experiência familiar de cada um; 2) identificar sua compreensão e suas
expectativas quanto à experiência universitária e o lugar do Prouni nela. A análise dos dados
coletados baseou-se nas categorias já mencionadas.
As entrevistas, por constituírem a base deste trabalho de pesquisa e por trazerem ele-
mentos cuja análise não se esgota nesta investigação, encontram-se no apêndice, com o intuito
de que outros investigadores possam, com outros olhares, fazer uso do material levantado por
esta pesquisadora.
8
Prefeita da cidade de São Paulo de 1º de janeiro de 2001 a 1º de janeiro de 2005.
CAPÍTULO 2 – PROGRAMA UNIVERSIDADE PARA TODOS:
PANORAMA HISTÓRICO, POLÍTICO, SOCIAL E ASPECTO LEGAL
Neste capítulo é apresentado um panorama histórico-político brasileiro da década de
1990, buscando identificar as reformas políticas e sociais ocorridas em tempos de influência
do pensamento neoliberal. A reconfiguração do Estado e a inserção da discussão do ensino
sob a égide de um Estado gerencial também são abordadas. O Programa Universidade para
Todos constituiu o núcleo desta parte do trabalho.
O Prouni é um programa do governo inserido na reconfiguração da educação superior
brasileira, quando se redefinem os conceitos de público e privado. Portanto, para entender o
programa como política afirmativa
9
que atua por meio da iniciativa privada, é preciso enten-
der, antes, essas transformações e as reformas do Estado ocorridas a partir do governo de Fer-
nando Henrique Cardoso
10
(FHC), sob o chamado pensamento neoliberal (SILVA JR., 2002).
2.1 – Reconfiguração do Estado
A reconfiguração do Estado, segundo Hypólito (2005), dá-se na tentativa de superar a
crise do Estado Nação, que se apresenta desde a década de 1970, a partir dos objetivos impos-
tos pelo pensamento neoliberal, e na reestruturação produtiva do capitalismo. No Brasil, país
em que jamais se constituiu o Estado de Bem-Estar Social
11
, toma corpo, a partir do governo
de FHC, a tese de um Estado inoperante frente às necessidades de desenvolvimento do capita-
lismo e a inserção no novo pacto proposto pelo capital por meio da expansão da globalização.
O papel do Estado passa a ser muito mais de controle, avaliação e gerenciamento, e as
ações das políticas públicas sociais passam às mãos de instituições privadas. Portanto, a re
9
Do ente abstrato, genérico, destituído de cor, sexo, idade, classe social, dentre outros critérios, emerge o sujeito
de direito concreto, historicamente situado, com especificidades e particularidades. O indivíduo ‘especificado’,
portanto, será o alvo das novas políticas sociais, políticas estas que buscam concretizar a igualdade substancial
ou material do indivíduo especificado (PIOVESSAN, 1998, p. 130).
10
Presidente da República de 1995-1998 e 1999-2002.
11
O Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) foi implantado nos países capitalistas avançados do hemisfério
norte como defesa do capitalismo contra o perigo do retorno do nazifacismo e da revolução comunista. A crise
econômica gerada pela Segunda Guerra Mundial, as críticas nazifacista e socialista ao liberalismo, a imagem da
sociedade socialista em construção na União Soviética e na China, fazendo que os trabalhadores encontrassem
nelas (ignorando o que ali realmente se passava) um contraponto para as desigualdades e a injustiça do capita-
lismo, tudo isso levou a prática política a afirmar a necessidade de alterar a ação do Estado, corrigindo os pro-
blemas econômicos e sociais (CHAUÍ, 2000, p. 555).
19
configuração dos conceitos de público e privado cria novas formas de gerência para a reorga-
nização estatal.
O Brasil, na década de 1990, apresenta as reformas estruturais que irão inseri-lo na
nova ordem mundial, as quais, segundo Silva Júnior, “tendem para um desmonte do Estado
intervencionista na economia e nos setores sociais” (2002, p. 62).
A adequação à nova abordagem da administração pública aparece, no Brasil, com Luis
Carlos Bresser Pereira
12
, na década de 1990. Segundo o ex-ministro, nos anos 1990, embora o
ajuste estrutural permanecesse entre os principais objetivos, a ênfase deslocou-se para a re-
forma do Estado, particularmente para a administrativa. Para Bresser, a questão central que se
apresentava era de como reconstruir o Estado, como redefinir o novo Estado que estava sur-
gindo em um mundo globalizado:
A abordagem gerencial, também conhecida como nova administração públi-
ca, parte do reconhecimento de que os estados democráticos contemporâneos
não são simples instrumentos para garantir a propriedade e os contratos, mas
formulam e implementam políticas públicas estratégicas para suas respecti-
vas sociedades tanto sociais quanto na área científica e tecnológica, para isso
é necessário que o Estado utilize práticas gerenciais modernas, sem perder
de vista sua função eminentemente pública [...] não se trata, porém da sim-
ples importação de modelos idealizados do mundo empresarial, e sim do re-
conhecimento de que as novas funções do Estado exigem novas competên-
cias, novas estratégias administrativas e novas instituições (BRESSER-
PEREIRA, 1998, p. 7).
Essa abordagem é criticada por intelectuais (SILVA Jr., 2002; SGUISSARDI, 2001;
PERONI, 2006, dentre outros) que entendem o desmonte do Estado como plano da reconfigu-
ração do capital, em prejuízo das camadas mais pobres, distanciando-as dos chamados servi-
ços públicos, como saúde, educação e moradia, que passam a ser publicizados ou privatiza-
dos, ainda que se mantenham sob controle do Estado:
A tese da inoperância do Estado Nação foi aclamada como a nova verdade
histórica. Porém, numa análise mais cuidadosa, podemos compreender que
longe de um desmonte do Estado Nação, o momento histórico atual coloca
uma redefinição de suas funções e de seu papel, num novo pacto proposto
pelo capital, com graves perdas para as classes trabalhadoras, constituindo-se
num retrocesso na construção de um mundo mais igualitário e democrático.
As diferenças entre os países ricos e pobres cresceram nas duas últimas dé-
cadas. Junto com a supremacia econômica está a dominação política, reali-
zada através de várias instituições globais, tais como: o FMI Fundo Mone
12
Luís Carlos Bresser Pereira foi ministro da Administração Pública e da Reforma do Estado (Mare) no primeiro
mandato do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998).
20
tário Internacional, o Banco Mundial e a OMC Organização Mundial do
Comércio (COSTA, 2000, p. 2).
De acordo com Peroni:
A estratégia do neoliberalismo é reformar o Estado ou diminuir sua atuação
para superar a crise. O mercado é que deverá superar as falhas do Estado; as-
sim, a lógica do mercado deve prevalecer, inclusive no Estado, para que ele
possa ser mais eficiente e produtivo (2006, p. 11).
No momento em que se observam grandes movimentos de adaptabilidade provenientes
das próprias contradições do modo de produção capitalista, mudanças e transformações
profundas na forma de produção da vida material objetiva e subjetiva. Estas mudanças acon-
tecem “na esfera do Estado, da produção, do mercado e também no âmbito político-cultural”
(PERONI, 2006, p. 11).
No âmbito da ideologia neoliberal
13
, não era o capitalismo que estava em crise, mas o
Estado, que se apresentava incapaz de acompanhar os avanços e as mudanças do capitalismo,
tornando-se, segundo essa visão, uma máquina emperrada, envelhecida, incapaz de atingir
metas de uma gestão eficiente e eficaz.
A resposta neoliberal para essa crise foi reformar o Estado ou diminuir sua atuação e
interferência no mercado. O próprio mercado, segundo Peroni “é que deverá superar as falhas
do Estado; assim, a lógica do mercado deve prevalecer, inclusive no Estado, para que ele pos-
sa ser mais eficiente e produtivo” (2006, p. 11).
Mas, para autores citados por Peroni (2006), como Mészáros (2002), Antunes (1999) e
Harvey (1989), a crise não se encontra no Estado, mas é uma crise estrutural do capitalismo.
Para esses autores, as estratégias de superação da crise, como o neoliberalismo, a globaliza-
ção, a reestruturação produtiva e a terceira via, é que estão redefinindo o papel do Estado.
Conforme Peroni:
Segundo o diagnóstico neoliberal, o Estado entrou em crise tanto porque
gastou mais do que podia para legitimar-se, já que tinha que atender às de-
mandas da população por políticas sociais, o que provocou a crise fiscal,
13
Conceituação: denominação de uma corrente doutrinária do liberalismo que se opõe ao social-liberalismo e/ou
novo liberalismo (modelo econômico keynesiano) e retoma algumas das posições do liberalismo clássico e do
liberalismo conservador, preconizando a minimização do Estado, a economia com plena liberação das forças de
mercado e a liberdade de iniciativa econômica. Tem como princípios a ênfase na liberdade, na propriedade, na
individualidade (direitos naturais), na economia de mercado autorregulável e na sociedade aberta; defende a livre
concorrência; o fortalecimento da iniciativa privada com ênfase na competitividade, na eficiência e na qualidade
de serviços e produtos (LIBÂNEO, 2005, p. 97).
21
quanto porque, ao regulamentar a economia, atrapalhou o livre andamento
do mercado. As políticas sociais, para a teoria neoliberal, são um verdadeiro
saque à propriedade privada, pois são formas de distribuição de renda, além
de também serem um obstáculo ao livre andamento do mercado, visto que os
impostos oneram a produção (2006, p. 13).
Ainda segundo a autora, o papel do Estado em relação às políticas sociais é alterado e
passa a racionalizar recursos e esvaziar o poder das instituições, que as instituições demo-
cráticas são permeáveis às pressões da população, além de serem consideradas improdutivas
pela lógica do mercado.
Nesse contexto, as esferas do público e do privado passam, portanto, ser entendidas,
como dizem Silva Júnior e Sguissardi (2002), com base nas relações sociais de produção. O
movimento contraditório do capital irá determinar o que é estatal, público e privado.
No Brasil, na década de 1990, essas transformações das relações sociais no modo de
produção capitalista se darão por meio do projeto político neoliberal de Fernando Henrique
Cardoso. Como apontam os autores acima citados:
O governo de FHC teve no centro de seu projeto político a construção da ci-
dadania. Tornado público pelo discurso de seus membros e arautos nos
grandes espaços e templos da mídia, esse projeto alardeava a construção do
novo cidadão brasileiro a erigir-se sobre os pilares do modelo de competên-
cia e empregabilidade e em meio à intensa mudança institucional e constru-
ção de nova organização social nos moldes do novo paradigma de Estado,
cuja racionalidade se fundava em crescentes e inegáveis valores mercantis
(SILVA JUNIOR e SGUISSARDI, 2005, p. 7).
Segundo esses autores, esse modelo de projeto político para o Brasil, a partir da déca-
da de 1990, foi muito convincente. Fernando Henrique Cardoso colocou em prática uma polí-
tica conforme as orientações do capital financeiro internacional, preocupando-se de forma
tangencial com o fortalecimento do capital produtivo industrial brasileiro. Ainda segundo os
autores, tratava-se de um projeto que apresentava os seguintes traços:
A adoção no país do novo paradigma de organização das corporações mun-
diais; a desnacionalização da economia; a desindustrialização; a transforma-
ção da estrutura do mercado de trabalho, incluindo sua terceirização e preca-
rização, e flexibilização das relações trabalhistas; a reforma do Estado e a
restrição da esfera pública e a ampliação da privada; o enfraquecimento das
instituições políticas de mediação entre a sociedade civil e o Estado, especi-
almente dos sindicatos e partidos políticos; o trânsito da sociedade do em-
prego para a sociedade do trabalho, isto é, a tendência ao desaparecimento
dos direitos sociais do trabalho; a transferência de deveres e responsabilida-
des do Estado e do direito social e subjetivo do cidadão para a sociedade ci-
vil (SILVA JUNIOR e SGUISSARDI, 2005, p. 4).
22
No Brasil, é no Plano da Reforma do Estado que as políticas sociais foram considera-
das serviços não exclusivos do Estado, portanto, de propriedade pública não estatal ou privada
e, como tais, dependentes da ação e do movimento do mercado.
Peroni entende que:
As estratégias de reforma do Estado no Brasil são: a privatização, a publici-
zação e a terceirização. Terceirização, conforme Bresser-Pereira é o proces-
so de se transferirem, para o setor privado, serviços auxiliares ou de apoio
[...]. O conceito de privatização significa transformar uma organização esta-
tal em uma organização de direito privado, pública, não-estatal (2006, p. 21).
Ainda, sobre a reforma do aparelho do Estado, BRESSER-PEREIRA explica que sua
proposta
parte da existência de quatro setores dentro do Estado: (1) o núcleo estraté-
gico do Estado, (2) as atividades exclusivas do Estado, (3) os serviços não
exclusivos ou competitivos, e (4) a produção de bens e serviços para o mer-
cado [...]. Na União, os serviços o exclusivos do Estado mais relevantes
são as universidades, as escolas técnicas, os centros de pesquisas, os hospi-
tais e os museus. A reforma proposta é a de transformá-los em um tipo espe-
cial de entidade não estatal, as organizações sociais. A ideia é transformá-
los, voluntariamente, em “organizações sociais”, ou seja, em entidades que
celebrem um contrato de gestão com o Poder Executivo e contem com a au-
torização do parlamento para participar do orçamento público (1997, p. 286).
A reforma estatal propunha, portanto, uma concepção de modernização ancorada na
eficiência dos setores do Estado e de modelos de administração pública, valorizando a admi-
nistração privada, a descentralização, a autonomia, mas com controle por resultados.
Com essa nova administração
as políticas públicas passam, no país e no exterior, por um processo de mer-
cadorização do espaço estatal ou público, sob o impacto de teorias gerenciais
próprias das empresas capitalistas imersas na suposta anarquia do mercado,
hoje estruturado por organismos multilaterais a agirem em toda a extensão
do planeta (SILVA JUNIOR e SGUISSARDI, 1999, p. 75).
A partir desses enfoques, o governo brasileiro, na década de 1990, teve como meta a
flexibilização radical no plano social, incluindo as áreas a ela pertinentes, inclusive a educa-
ção.
Nessa década, enquanto o Ministério da Administração Federal e da Reforma do Esta-
do (Mare) preocupou-se com questões da reforma do estatal, o Ministério da Educação e dos
23
Desportos (MEC) atuou de maneira mais incisiva na reestruturação do sistema da educação
superior, por meio da implantação de medidas legais, como a Lei de Diretrizes e Bases (LDB
9.394/96), decretos, portarias, medidas provisórias, emendas constitucionais.
No Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, estava previsto um programa de
descentralização da educação para o setor público não estatal, estabelecendo um sistema de
parceria entre Estado e sociedade. O Plano previa, para a educação, um programa de publici-
zação
14
, entendendo-a como um dos serviços não exclusivos do Estado, porque não tem ne-
cessariamente que ser executada/prestada por ele, mas regulada, facilitada, promovida ou par-
cialmente financiada por ele, o qual deixa de ser executor e passa a ser coordenador desse
serviço (BRASIL, PRESIDÊNCIA, 1995).
Essa nova administração gerou também uma nova forma de olhar a educação, a qual
passou a ser vista como um serviço e, então, a mesma lógica de mercado se aplicou na busca
da eficiência e da eficácia.
2.2 – A educação superior no processo de publicização e privatização
Apesar de os processos de publicização e de privatização terem alcançado todos os
campos dos serviços públicos, considerando o tema desta pesquisa, o presente item traz à dis-
cussão a educação do ensino superior.
No governo de Fernando Henrique Cardoso, em 9 de janeiro de 2001 foi aprovado, por
meio da Lei nº 10.172, o Plano Nacional de Educação (PNE). No texto da lei, no que se refere
à educação superior, lê-se como diretriz:
A pressão pelo aumento de vagas na educação superior, que decorre do au-
mento acelerado do número de egressos da educação média, já está aconte-
cendo e tenderá a crescer. Deve-se planejar a expansão com qualidade, evi-
tando-se o fácil caminho da massificação. É importante a contribuição do se-
tor privado, que já oferece a maior parte das vagas na educação superior e
tem um relevante papel a cumprir, desde que respeitados os parâmetros de
qualidade estabelecidos pelos sistemas de ensino (BRASIL, 2001, s/p).
Ainda, no texto da lei, a justificativa do governo ao apresentar um plano de expansão
universitária respalda-se na assertiva de que
14
Publicização consiste na transferência da execução de atividades do setor público estatal para o setor público
não estatal (COUTINHO, 2003, p. 957).
24
nenhum país pode aspirar a ser desenvolvido e independente sem um forte
sistema de educação superior. Num mundo em que o conhecimento sobrepu-
ja os recursos materiais como fator de desenvolvimento humano, a impor-
tância da educação superior e de suas instituições é cada vez maior. Para que
estas possam desempenhar sua missão educacional, institucional e social, o
apoio público é decisivo (BRASIL, 2001, s/p).
Essa visão também aparece no texto de apresentação da versão preliminar do Antepro-
jeto de Lei da Educação Superior de 6 de dezembro de 2004, governo Luís Inácio Lula da
Silva, à época com Tarso Fernando Gerz Genro na cadeira do Ministério da Educação, con-
forme segue:
A educação superior brasileira tem a missão estratégica e única voltada para
a consolidação de uma nação soberana, democrática, inclusiva e capaz de ge-
rar a emancipação social. Esta proposta traduz a visão política expressa no
Programa de Governo Lula, reafirmada no debate público, nas críticas e con-
sensos de que o projeto de nação está intrinsecamente vinculado aos destinos
da educação superior (FÓRUM NACIONAL DE PRÓ-REITORES DE
GRADUAÇÃO DAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS, 2005, p. 6).
Mas, segundo Ristoff
15
, o sistema de educação superior público brasileiro é pequeno e
excludente, às vezes quase privado, mesmo dentro de um espaço público.
A verdade é que o Brasil continua concebendo a universidade como coisa
para um pequeno e seleto grupo, um espaço onde alguns poucos privilegia-
dos têm a oportunidade de acessar o último conhecimento. Que a universi-
dade deve servir à sociedade que a criou parece não haver dúvidas. Resta, no
entanto, saber a que sociedade deve servir. E, neste sentido, parece evidente
que num país democrático, ou que se queira democrático, a universidade
precisa romper com o elitismo que a concebeu e engajar-se num projeto na-
cional que promova o acesso das populações hoje excluídas e transforme as
universidades brasileiras em universidades do povo, para o povo e pelo povo
[...]. O que está acontecendo entre nós é o contrário: as elitizadas e exclu-
dentes universidades públicas elitizam-se ainda mais e forçam populações
inteiras de jovens a buscarem nas universidades privadas e pagas o seu único
refúgio. Hoje é duas vezes mais difícil ingressar em um curso de graduação
de uma universidade pública do que há cinco anos. Estamos hoje entre os pa-
íses com um dos sistemas de educação superior mais privatizados do planeta
(2006, p. 7).
Na avaliação dos autores, a educação superior no Brasil, principalmente nas décadas
de 1980 e 1990, sofreu uma histórica ausência de financiamento público que criou um cenário
ainda maior de exclusão.
15
Dilvo Ilvo Ristoff foi diretor de Avaliação e Estatísticas da Educação Superior do Instituto Nacional de Estu-
dos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, de junho de 2003 a janeiro de 2008(INEP/MEC, 2003, s/p).
25
Em crítica ao governo de Fernando Henrique Cardoso, Ristoff elenca algumas ações
que acredita importante avaliar:
Crescente vulgarização do sentido de universidade; agressiva privatização do
sistema; desinvestimento programado e gradativo nas Instituições Federais
de Ensino Superior (Ifes); desvalorização programada das carreiras dos do-
centes e dos técnico-administrativos nas Ifes; crescimento vertiginoso da ex-
clusão no acesso às IES públicas; desrespeito repetido à Constituição no que
se refere à autonomia das Universidades, à democracia interna e à indissoci-
abilidade entre ensino, pesquisa e extensão; desestímulo financeiro à pesqui-
sa; expansão desigual e sem controle de qualidade da pós-graduação, com
crescimento desenfreado de cursos endogênicos; privatização crescente do
espaço público, através de cursos regulares, especializações, mestrados e
doutorados, assessorias, consultorias, etc., oferecidos, como mercadorias, a-
través das fundações de apoio; privatização branca do espaço público através
de mestrados profissionalizantes pagos e de cursos sequenciais pagos; des-
mantelamento dos processos de avaliação institucional; desmantelamento de
programas acadêmicos, com cortes de bolsas, na graduação e na pós-
graduação; aligeiramento da graduação através de cursos sequenciais, colo-
cados no mesmo patamar valorativo dos cursos de graduação, ou de propos-
tas de encurtamento da graduação; aligeiramento dos mestrados através da
proliferação de cursos profissionalizantes pagos, mesmo em IES públicas e
gratuitas, e da burocracia produtivista instituída pela Capes; perda de quali-
dade acadêmica através da substituição de professores efetivos por estagiá-
rios de docência (2006, p. 3).
Para Silva Júnior, “o governo de Fernando Henrique foi marcado pela expansão dos
valores mercantis na construção de uma nova organização social” (2005, p. 22). Ainda, nas
palavras do autor:
Fernando Henrique, em sua prática política à frente da Presidência, governou
conforme o capital financeiro internacional, preocupando-se tangencialmente
com o capital nacional industrial e com o fortalecimento de um capital pro-
dutivo brasileiro [...]. Por outro lado, por conta da desmobilização da socie-
dade civil ocorrida na década de 1980, gerenciou (mais do que governou) o
país (2005, p. 20).
Desde 1980, o papel das políticas públicas educacionais vem sendo debatido, levando-
se em consideração a necessidade de adequação ao novo momento histórico, político, econô-
mico e social que se instaurou a partir dessa década, caracterizada pela completa estagnação
econômica que o Brasil viveu
16
. Organizações mundiais como a OMC (Organização Mundial
16
A década de 1980, chamada de década perdida, caracterizou-se pela redução do ritmo do crescimento da renda
em relação às décadas de 1970 e 1960 e, consequentemente, afetou de forma adversa os menos favorecidos. O
resultado desses dois efeitos foi a ausência de melhorias significativas na redução da pobreza, estagnação do
rendimento e a sua má distribuição que se mantiveram até o início da década de 1990 (ROCHA, 2000).
26
do Comércio) e o Banco Mundial (BM) têm interferido diretamente nos projetos políticos da
educação brasileira.
Desde 1994, com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), temas da
área educacional fazem parte das chamadas negociações multilaterais de comércio. Em 1999,
foi adotada uma lista incluindo doze setores de serviços sujeitos às regras do Acordo Geral
sobre Serviços
17
(Gats). A educação, vista como um mercado potencialmente lucrativo, é in-
cluída nesses setores.
Ribeiro discute a amplitude do acordo:
Em um sentido puramente econômico, como destacado pela comissão for-
mada na Universidade de São Paulo (USP) para a discussão sobre a liberali-
zação da educação como item dos setores de serviços do Gats, a liberaliza-
ção pode trazer consequências positivas e negativas. Dentre as positivas, o
aumento de investimento no setor; a ampliação dos benefícios oferecidos ao
consumidor, devido à queda de preços dos serviços em um mercado em con-
corrência; a atualização tecnológica. Entre as consequências negativas, a
desnacionalização do setor; o acirramento da competitividade, com prejuízo
para os pequenos e médios empreendimentos; e o agravamento do quadro
das diferenças regionais, que a lógica de mercado se expande nas regiões
de maior atratividade econômico-financeira (2006, p. 138).
Do mesmo modo, o Banco Mundial, entre outras ações, ressalta a importância da edu-
cação superior para o desenvolvimento econômico e social, para o aumento da produtividade
no trabalho.
Nesse sentido, em documento intitulado enseñanza superior Las lecciones deri-
vadas de la experiência, o Banco Mundial apresenta quatro ações básicas da educação superi-
or:
Fomentar a maior diferenciação das instituições, incluindo o desenvolvimen-
to de instituições privadas; proporcionar incentivos para que as instituições
diversifiquem as fontes de financiamento, por exemplo, a participação dos
estudantes nos gastos e a estreita vinculação entre o financiamento fiscal e os
resultados; redefinir a função do governo no ensino superior; adotar políticas
que destinadas a outorgar prioridade aos objetivos da qualidade e da equida-
de (BANCO MUNDIAL, 1994, p. 28-9).
17
O Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (Gats) é o primeiro acordo comercial multilateral que abrange
comércio de serviços. Foi elaborado durante a Rodada Uruguai, que durou de 1986 até 1993, e entrou em vigor
em 1995. O acordo tem como objetivo aumentar o nível de liberalização e de desregulamentação no setor de
serviços internacionalmente. É administrado pelo Conselho para o Comércio de Serviços, que opera dentro da
OMC. O Gats dividiu o comércio de serviços em doze setores: comunicações, obras públicas e engenharia, dis-
tribuição, educação, ambiente (incluindo água), finanças, saúde e serviços sociais, turismo, lazer, cultura e des-
porto, transportes e “outros”. Os serviços públicos não estão formalmente incluídos no Gats, pelo menos obriga-
toriamente (PORTAL REBRIP, 2005, p. 2).
27
A educação superior, a partir da década de 1990, é, portanto, especialmente influenci-
ada pelo pensamento das organizações multilaterais e responde, a partir das políticas públicas
implementadas desde então, de maneira a viabilizar as orientações desses organismos.
No que concerne à imposição dessa lógica mercantil, Schwartzman ao analisar a atua-
ção da educação superior, explana:
Em situações de estagnação econômica, a educação pode funcionar como
mecanismo de filtragem e consolidação das desigualdades sociais, contro-
lando o acesso a posições de autoridade, prestígio e riqueza. Ao invés de
fonte de geração e distribuição de competências, a educação funcionaria,
nestes casos, como mecanismo de distribuição e controle de credenciais que
permitem ou não o acesso a posições socialmente vantajosas, determinadas
pelas condições anteriores, ou “capital cultural” das famílias dos estudantes.
Quando isto ocorre, os aspectos formais e burocráticos da educação se tor-
nam dominantes, reduzindo a relevância da formação técnica e profissional
(2004, p. 481).
A reestruturação da educação superior, tendo como eixo central as orientações dos or-
ganismos multilaterais, provocou um processo de reconfiguração do público e do privado, o
que alterou a identidade das Instituições de Ensino Superior, tornando a educação um produto
a ser adquirido no mercado universitário.
Esse processo acentua a aparência produzida pelo capital, na qual as relações sociais
“parecem um infinito movimento de mercadorias e de homens, que se relacionam entre si e
com a natureza” (SILVA JR.e SGUISSARDI, 1999, p. 91).
Marx buscou desvendar a lógica do modo de produção emergente, com a base no es-
tudo do movimento difuso e fragmentado de homens e coisas por meio da mercadoria.
Para Marx (1982), a mercadoria apresenta-se por suas qualidades intrínsecas, suas
qualidades físicas, próprias e para sua utilidade. O seu preço é o resultado das relações dessas
qualidades. Há dois fatores constituintes da mercadoria, dois tipos de valor: o valor de uso e o
valor de troca.
Quanto ao valor de uso, Marx afirma:
se realiza com a utilização ou o consumo. Os valores de uso constituem
o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social dela. Na
forma de sociedade que vamos estudar, os valores de uso são, ao mesmo
tempo, os veículos materiais do valor de troca (1982, p. 42).
28
Quanto ao fator de troca, Marx assinala que “todo trabalho, de um lado, dispêndio de
força de trabalho humano, no sentido fisiológico, e, nessa qualidade de trabalho humano igual
ou abstrato, cria o valor das mercadorias” (1982, p. 54).
Para Silva Júnior e Sguissardi (2001),
o valor de troca da mercadoria só irá se manifes-
tar no momento da troca, quando valores externos à mercadoria forem comparados. Ou seja, o
valor de troca de uma mercadoria não corresponde exatamente à utilidade daquilo que é tro-
cado, mas sim aos valores a ela agregados, quer sejam valores objetivos, quer sejam subjeti-
vos, determinados pela motivação social.
Para Marx (1982), a mercadoria e em movimento relações sociais motivadas pelo
seu valor de troca, cuja substância é o trabalho humano social e abstrato.
Conforme Silva Júnior e Sguissardi:
Dessa forma, a mercadoria oculta as relações sociais que se desenvolvem na
sociedade capitalista. As relações sociais de produção são motivadas pelo
processo de valorização do capital possibilitado pela incorporação, à merca-
doria, de relações sociais de exploração daqueles que vivem do trabalho e
lhe acrescentam valor, por meio do trabalho social e abstrato, que lhe é es-
tranho, e com o qual o trabalhador não se identifica (1999, p. 93).
A mercadoria, na sociedade capitalista, é a forma de contato entre os homens, que tra-
zem em si as relações sociais de exploração, na medida em que as únicas formas de busca de
elementos de igualdade encontram os valores quantitativos do trabalho humano abstrato nelas
materializado. Marx explica:
A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características so-
ciais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características
materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por o-
cultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produto-
res e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à margem
deles, entre os produtos do seu próprio trabalho. Através dessa dissimula-
ção, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, com
propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos (1982, p. 42).
Marx discute, em O Capital, livro III, o expansionismo do capital e de suas formas or-
ganizativas, tanto materiais como simbólico-culturais. Essa característica expansionista faz do
capitalismo um modo de produção extremamente dinâmico em sua base produtiva, na econo-
mia, na política, na cultura e na necessária unidade social.
29
Para Silva Júnior e Sguissardi, a própria lógica do capitalismo, “historicamente produ-
zida, impõe-lhe constantes processos de rupturas e continuidades para sua própria manuten-
ção” (1999, p. 97).
E é essa necessidade de expandir o capital e ao mesmo tempo redefinir as esferas do
público e do privado que interessa observar, pois a tendência à superacumulação de capital em
qualquer uma de suas formas (mercadorias, desemprego, capital-dinheiro, etc.) fará acontecer
as mudanças nas superestruturas.
Sobre essa expansão, Harvey abaliza:
O capitalismo é orientado para o crescimento. Uma taxa equilibrada de cres-
cimento é essencial para a saúde de um sistema econômico capitalista, visto
que através do crescimento os lucros podem ser garantidos e a acumula-
ção do capital, sustentada. Isso implica que o capitalismo tem de preparar o
terreno para uma expansão do produto e um crescimento em valores reais,
pouco importam as consequências sociais, políticas, geopolíticas ou ecológi-
cas. Na medida em que a virtude vem da necessidade, um dos pilares básicos
da ideologia capitalista é o crescimento (1989, p. 166).
O geógrafo marxista complementa sua análise apontando:
O capitalismo é, por necessidade, tecnológica e organizacionalmente dinâ-
mico. Isso decorre em parte das leis coercitivas, que impelem os capitalistas
individuais a inovações em busca do lucro. Mas a mudança organizacional e
tecnológica também tem papel-chave na modificação da dinâmica da luta de
classes, movida por ambos os lados, no domínio dos mercados de trabalho e
do controle do trabalho (1992, p. 169).
As transformações das relações sociais de produção no modo de produção capitalista
são imprescindíveis para a própria manutenção do capitalismo. O papel do Estado, nesse sis-
tema, tem lugar de representante do próprio modo de produção e do capital. O Estado orienta
ou produz as transformações necessárias, de forma direta ou indireta, tanto na produção quan-
to na economia, na política, na cultura e na educação.
No Brasil, de acordo com Carvalho (2006), foi no segundo mandato (1999 a 2002) de
Fernando Henrique Cardoso que “verificou-se o aprofundamento da parceria público/privado,
tanto pela disseminação de cursos pagos de extensão como pela relação estreita entre funda-
ções privadas e as universidades públicas” (2006, p. 5-6). A eficiência e a produtividade das
instituições privadas foram argumentos importantes para a opção política de estímulo à inicia-
tiva privada na expansão de vagas.
30
Silva Júnior (2008), em seus escritos, avalia que o governo do Partido dos Trabalhado-
res (PT), com Luís Inácio Lula da Silva na presidência (início em 2003 até o presente), deu
continuidade ao modelo de políticas públicas desenvolvidas pelo governo anterior. De acordo
com o autor, as organizações não governamentais (ONGs) e as empresas privadas continua-
ram a assumir, por meio dos incentivos financeiros do governo, as ações de políticas públicas
voltadas à educação, saúde, juventude, entre outras. Para esse estudioso, o presidente Luís
Inácio Lula da Silva, submisso às agências multilaterais, manteve as políticas públicas sob a
lógica mercantil, orientadora da esfera educacional brasileira.
2.3 – Prouni: aspectos legais
O Programa Universidade para Todos (Prouni) é uma ação de política pública de ex-
pansão universitária implantada no governo Lula que se enquadra na lógica de publicização.
Segundo Mancebo, a proposta do governo petista de expansão do acesso e promoção
da permanência do aluno no ensino superior
independentemente da natureza da instituição a que pertença, materializada
no Prouni, demonstra a reconfiguração entre o público e o privado, pois o
Prouni não implicará propriamente numa redução dos recursos estatais desti-
nados à educação superior pública, todavia colocará em curso um mecanis-
mo de reaplicação de verbas para a iniciativa privada (2004, p. 854).
Se a proposta do atual governo brasileiro é expandir e promover a permanência do a-
luno no ensino superior, se o ensino público superior é “pequeno e excludente”, como afirmou
Ristolf (2006), o Prouni aplica-se bem a esse raciocínio de expansão. Na própria justificativa
do projeto de lei (BRASIL/MEC, 2004), fica clara a ideia de que o Prouni está inserido num
esforço de mudança de rumos, criando uma nova relação entre o setor público e o privado.
Hoje, o Prouni é um programa de ampla aceitação social que já atendeu, desde sua cri-
ação até o processo seletivo do primeiro semestre de 2008, cerca de 385 mil estudantes, se-
gundo dados divulgados pelo Ministério da Educação (MEC).
Esse programa foi instituído em 10 de setembro de 2004 por meio da Medida Provisó-
ria 213, transformada na Lei 11.096 em 13 de janeiro de 2005, sob a gestão do MEC.
Destina-se à concessão de bolsas de estudo integrais e bolsas de estudo parciais de 50% para
cursos de graduação e sequenciais de formação específica, em instituições privadas de ensino
superior, com ou sem fins lucrativos.
31
No que concerne à legislação referente ao Prouni tem-se:
Quadro 1
Legislação Prouni Ano de 2004
Legislação Data
Do que se trata Breve explicação Legislador Nome
Medida
Provisória
nº 213
10/09/2004
Institui o Programa Universidade
para Todos, regula a atuação de
entidades beneficentes de assistên-
cia social no ensino superior e
outras providências
Nesta medida, que se converteu na
Lei 11.096, de janeiro de 2005,
ficaram estabelecidos os critérios de
concessão de bolsas de estudo para
o ensino superior e as isenções de
impostos e contribuições das insti-
tuições de ensino superior que
aderirem ao Prouni
Presidente
da Repúbli-
ca
Luiz Inácio
Lula da
Silva
Instrução
Normativa
SRF 456
5/10/2004
Dispõe sobre a isenção do imposto
de renda e de contribuições aplicá-
vel às instituições que aderirem ao
Prouni.
Esta Instrução tem por objetivo
regulamentar junto à Receita Fede-
ral as isenções de impostos e con-
tribuições das instituições de ensino
privadas.
Secretário
da Receita
Federal
Jorge
Antônio
Deher
Rachid
Decreto nº
5245/04
15/10/2004
Regulamenta a MP 213, de 10 de
setembro de 2004, que institui o
Prouni, regula a atuação de entida-
des beneficentes de assistência
social no ensino superior e
outras providências.
Este decreto afirma que sob a
gestão do Ministério da Educação, o
Prouni será implementado pela
Secretaria da Educação Superior.
Os procedimentos operacionais
serão dispostos pelo Ministério da
Educação
Presidente
da Repúbli-
ca
Luiz Inácio
Lula da
Silva
Portaria nº
3.268
18/10/2004
Dispõe sobre os procedimentos
para a adesão de instituições de
ensino superior ao Prouni e
outras providências.
Esta portaria esclarece sobre a
proposta de adesão, conforme os
procedimentos nela estabelecidos,
nesta Portaria, incluindo um modelo
no Anexo I.
Ministro da
Educação
Tarso Genro
Portaria nº
3.964
2/12/2004
Dispõe sobre o processo seletivo
do Prouni, referente ao primeiro
semestre de 2005, e outras
providências.
O primeiro processo seletivo para o
Prouni deu-se no período de
06/12/2004 até o dia 17/12/2004
Ministro da
Educação
Tarso Genro
Portaria nº
4.212
17/12/2004
Dispõe sobre alterações no pará-
grafo único do artigo 13 da Portaria
3.964 e do artigo 9 da mesma
portaria
Estabelece a validade da utilização
da nota do Enem referente aos anos
de 2002 e 2003. Estabelece também
a média aritmética de no mínimo 45
pontos como pré-condição de
participação do processo de classi-
ficação no Prouni.
Ministro da
Educação
Tarso Genro
32
Quadro 2
Legislação Prouni Ano de 2005
Legislação Data
Do que se trata Breve explicação Legislador Nome
Lei nº
11.096
13/01/2005
Institui o Prouni, regula a atuação
de entidades beneficentes de
assistência social no ensino superi-
or; altera a Lei 10.891, de 9 de
julho de 2004, e outras provi-
dências
A MP 213, de 2004, é convertida
em lei. O texto referente ao Prouni
se mantém na sua maior parte e o §
sobre a avaliação das instituições
é alterado.
Presidente
da Repúbli-
ca
Luiz Inácio
Lula da
Silva
Portaria
524
18/2/2005
Dispõe sobre a ocupação de bolsas
remanescentes do Prouni, altera o
prazo para o registro no Sistema do
Prouni Sisprouni, de aprovação e
reprovação de candidatos pré-
selecionados no processo seletivo
referente ao primeiro semestre de
2006, e dá outras providências
O artigo 4 dispõe sobre critérios de
ocupação de bolsas eventualmente
remanescentes. Devem ter priorida-
de: estudantes professores da rede
pública e estudantes autodeclarados
indígenas
Ministro da
Educação
Tarso Genro
Portaria nº
1.861
1/7/2005
Regulamenta a concessão de
financiamento, pelo Fies, aos
bolsistas selecionados pelo Prouni
no processo seletivo referente ao
primeiro semestre de 2005 e
outras providências
Esta portaria regulamenta o financi-
amento de estudos aos alunos
selecionados pelo Prouni com
bolsas parciais
Ministro da
Educação
Tarso Genro
Decreto nº
5.493
18/7/2005
Regulamenta o disposto na Lei
11.096, de 13 de janeiro de 2005
Este decreto regulamenta a conces-
são de bolsas de estudo
Presidente
da Repúbli-
ca
Luiz Inácio
Lula da
Silva
Portaria nº
2.729
8/8/2005
Dispõe sobre a política de oferta de
financiamento no âmbito do fundo
de financiamento ao estudante do
ensino superior – Fies
No artigo 1º, a escala de prioridade
para a concessão de financiamento é
estabelecida. No artigo 4º, ficam
estabelecidos os critérios de finan-
ciamento
Ministro da
Educação
Tarso Genro
Portaria nº
3.121
9/9/2005
Dispõe sobre os procedimentos de
manutenção de bolsas e de emissão
de termos aditivos ao termo de
adesão no sistema do Prouni
Sisprouni, e dá outras providências
Esta portaria regulamenta os proce-
dimentos de envio de dados sobre o
aluno bolsista pelo Prouni por meio
unicamente do Sisprouni
Ministro da
Educação
Tarso Genro
Quadro 3
Legislação Prouni Ano de 2006 a 2008
Legislação Data
Do que se trata Breve explicação Legislador Nome
Portaria nº
569
23/02/2006
Regulamenta o artigo 11 da Lei
11.180 de 23 de setembro de 2005
O artigo 11 da Lei 11.180 autoriza a
concessão de bolsa-permanência, no
valor de até R$ 300 mensais, exclu-
sivamente para o custeio das despe-
sas educacionais, a estudantes
beneficiários de bolsa integral do
Prouni. Esta concessão é regula-
mentada pela Portaria nº 569, que
confirma o valor da bolsa em R$
300, define quais cursos poderão
receber a bolsa e define a carga
horária dos cursos.
Ministro da
Educação
Fernando
Haddad
Portaria
Normativa
nº 1
31/03/2008
Institui bolsa complementar no
âmbito do Prouni.
As instituições de ensino superior
poderão oferecer bolsas comple-
mentares àquelas exigidas em
função da adesão ao programa. As
instituições poderão oferecer bolsas
de 25% mas não poderão ser conta-
bilizadas como bolsas do Prouni,
para fins de isenção fiscal.
Ministro da
Educação
Fernando
Haddad
33
2.3.1 – Quanto aos tipos de concessão de bolsas
No que se refere à concessão de bolsas, inicialmente foi estabelecido que poderiam ser
integrais ou de 50%.
No parágrafo primeiro da Lei nº 11.096 consta que a bolsa de estudo integral será con-
cedida a brasileiros não portadores de diploma de curso superior cuja renda familiar per capi-
ta não exceda o valor de até um salário mínimo e meio. A bolsa parcial de 50% será concedi-
da a brasileiros não portadores de diploma de ensino superior cuja renda familiar per capita
não exceda o valor de até três salários mínimos.
Posteriormente, o Decreto 5.493, de 18 de julho de 2005, regulamentou o disposto
na Lei 11.096. Modificou a porcentagem do valor das bolsas: elas passaram a ser integrais
ou parciais, de 50% ou 25%. No mesmo decreto, no artigo do parágrafo 3º, ficou vedada a
acumulação de bolsas de estudo vinculadas ao Prouni, bem como a concessão de bolsas de
estudo a ele vinculadas para estudante matriculado em instituições públicas e gratuitas de en-
sino superior.
No Decreto 5.493, artigo 7º, ficam estabelecidas as condições para a concessão de
bolsas de 25%, conforme se segue:
As instituições de ensino superior, com ou sem fins lucrativos, inclusive be-
neficentes de assistência social, poderão converter até dez por cento das bol-
sas parciais de cinqüenta por cento vinculadas ao Prouni em bolsas parciais
de vinte e cinco por cento, à razão de duas bolsas parciais de vinte e cinco
por cento para cada bolsa parcial de cinquenta por cento, em cursos de gra-
duação ou sequenciais de formação específica, cuja parcela da anualidade ou
da semestralidade efetivamente cobrada, com base na Lei n
o
9.870, de 1999,
não exceda, individualmente, o valor de R$ 200,00 (duzentos reais)
(BRASIL, 2005, s/p).
2.3.2 – Quanto à adesão, ao desempenho e às isenções concedidas pelo governo
Quanto à adesão das instituições privadas e seu respectivo desempenho, o artigo da
Lei 11.096 determina que a instituição privada de ensino superior com ou sem fins lucrati-
vos, não beneficente, poderá aderir ao Prouni mediante assinatura de termo de adesão, cum-
prindo-lhe oferecer, no mínimo, uma bolsa integral para cada nove estudantes pagantes regu-
larmente matriculados.
34
Cabe dizer que, conforme o artigo 10º da Lei 11.096, somente poderão ser conside-
radas entidades beneficentes de assistência social aquelas que oferecerem no mínimo, uma
bolsa de estudos integral para cada nove estudantes pagantes de curso de graduação. De acor-
do com o artigo 1º, estas instituições deverão aplicar anualmente, em gratuidade, pelo menos
20% da receita bruta proveniente da venda de serviços, acrescida da receita decorrente de a-
plicação financeira, de locação de bens, de venda de bens não integrais ao ativo imobilizado e
de doações particulares.
Ainda, no que se refere às instituições beneficentes, o artigo 16º da Portaria 3.268,
de 18 de outubro de 2004, estabelece que as instituições de ensino superior beneficentes de
assistência social poderão destinar, em caráter excepcional, até um quarto das bolsas integrais
e parciais de 50% vinculadas ao Prouni a estudantes que não fizeram o Exame Nacional do
Ensino Médio (Enem), para as turmas iniciantes de 2005.
O parágrafo do artigo da Lei 11.096 explicita que o Ministério da Educação
(MEC) desvinculará do Prouni o curso considerado insuficiente, segundo os critérios de de-
sempenho do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior
18
(Sinaes), por três avali-
ações consecutivas. A Lei 11.509, de 20 de julho de 2007, alterou o parágrafo do artigo
da Lei 11.096, determinando a desvinculação dos cursos com desempenho insuficiente
no Sinaes por duas avaliações consecutivas.
A adesão ao programa pressupõe isenção de impostos e contribuições, como previsto
no artigo da lei. A instituição que aderir ficará isenta dos seguintes impostos e contribui-
ções no período de vigência, conforme incisos:
I – Imposto de renda de pessoa jurídica;
II – Contribuição social sobre o lucro líquido;
III – Contribuição social para financiamento da seguridade social;
IV – Contribuição para o programa de integração social.
Cabe à instituição de ensino que aderir ao Prouni apresentar semestralmente, ao Minis-
tério da Educação, de acordo com o respectivo regime curricular acadêmico, conforme o arti-
go 14º do decreto nº 5.493, incisos:
I O controle de frequência nima obrigatória dos bolsistas, correspondentes a
75% da carga horária do curso;
II O aproveitamento dos bolsistas no curso, considerando-se, especialmente, o
desempenho acadêmico;
18
Criado pela Lei n° 10.861, de 14 de abril de 2004.
35
III A evasão de alunos por curso e turno, bem como o total de alunos matricula-
dos, relacionando-se os estudantes vinculados ao Prouni.
Falsear as informações prestadas no termo de adesão, de modo a reduzir indevidamen-
te o número de bolsas integrais e parciais a serem oferecidas, é considerado falta grave, como
apontado no artigo 12º, parágrafo 2º, inciso III.
2.3.3 – Quanto ao perfil do aluno candidato ao Prouni
A bolsa Prouni, conforme a Lei nº 11.096, artigo 2º, é destinada a:
I – Estudante que tenha cursado o ensino médio completo em escola da rede públi-
ca ou em instituições privadas na condição de bolsista integral;
II – Estudante portador de necessidades especiais;
III Professor da rede pública de ensino, para os cursos de licenciatura e pedago-
gia destinados à formação do magistério da educação básica, independentemente
da renda a que se refere, que esteja no efetivo exercício do magistério.
Acrescentam-se a esse público, como previsto no artigo 15º do Decreto 5.493: tra-
balhadores de instituição de ensino superior e seus dependentes, em decorrência de convenção
coletiva ou acordo trabalhista, nos termos da lei, em observância aos procedimentos operacio-
nais fixados pelo Ministério da Educação (MEC), especialmente quanto à definição de nota de
corte para seleção de bolsistas e aos métodos de aproveitamento de vagas eventualmente re-
manescentes, sem prejuízo da pré-seleção, conforme os resultados do Enem. Nesses casos, a
instituição de ensino superior interessada em conceder bolsas de estudo vinculadas ao Prouni,
deverá informar previamente ao Ministério da Educação e encaminhar cópia autenticada aos
atos jurídicos.
O estudante a ser beneficiado pelo Prouni, como tratado no artigo da Lei 11.096,
será pré-selecionado pelos resultados e pelo perfil socioeconômico do Enem, ficando em aber-
to a existência de outras medidas que possibilitem outros critérios a serem definidos pelo
MEC. Na etapa final, a instituição de ensino será a responsável pela aferição dos dados pres-
tados pelos alunos concorrentes.
Quanto ao desempenho do aluno, o artigo 17º da Portaria n٥ 3.268 determina que o es-
tudante vinculado ao Prouni que recebeu bolsa integral ou parcial de 50% deverá apresentar
aproveitamento acadêmico em, no mínimo, 75% das disciplinas em cada período letivo.
36
Sobre o processo de inscrição, a Portaria nº 3.964, artigo 3º, estabelece que, ao efetuar
sua inscrição, o candidato deverá escolher a modalidade de bolsa (integral ou parcial) e até
cinco opções de cursos, turnos ou instituições de ensino superior, dentre as opções disponí-
veis, conforme sua renda familiar per capita e a adequação aos critérios referidos no artigo
2º dessa portaria.
Ainda no artigo da supracitada portaria, parágrafo 1º, fica estabelecido o que se en-
tende por renda bruta mensal: somatório de todos os rendimentos auferidos a todos os mem-
bros do grupo familiar, que deverão ser comprovados, por meio de declaração, pelos que pos-
suem renda própria; os que não a possuem deverão fazer a comprovação por meio de docu-
mentos emitidos ou reconhecidos por órgãos oficiais ou pela fonte pagadora de rendimentos
de qualquer um dos componentes do grupo familiar.
Cabe dizer que, conforme exposto no mesmo parágrafo, entende-se por grupo familiar
o conjunto de pessoas que residem na mesma moradia do chefe do grupo e que estejam rela-
cionadas ao candidato pelos seguintes graus de parentesco: pai; padrasto; mãe; madrasta; côn-
juge; companheiro; filho; enteado; irmão; avós.
O artigo do capítulo II da Portaria 3.964, trata da pré-seleção dos bolsistas. É
considerada a média aritmética entre as notas obtidas pelo candidato nas provas de conheci-
mento e de redação do Enem referentes ao ano anterior. A Portaria 4.212, de 17 de dezem-
bro de 2004, acrescenta no parágrafo 3º do artigo 2º que será pré-condição para a classificação
no Prouni uma média aritmética de no mínimo 45 pontos entra as notas obtidas pelo candidato
nas provas de conhecimento gerais e de redação do Enem em que ele se inscrever.
Quanto à classificação, o parágrafo do artigo da Portaria 3.964 dispõe que os
candidatos serão classificados em apenas uma das opções escolhidas, em ordem decrescente.
No caso de notas idênticas, o desempate será determinado de acordo com a seguinte ordem de
critérios:
I – Maior nota na prova de redação;
II – Maior nota na prova de conhecimentos gerais;
III – Menor renda per capita;
IV – Persistindo o empate, o desempate beneficiará o candidato mais velho.
37
2.4 – Algumas análises sobre a implantação do Prouni
O Prouni é hoje objeto estudado por diferentes segmentos da sociedade.
Carvalho (2002) avaliou os impactos de ação afirmativa desencadeada pelo Governo
Federal. Apresentou um retrato empírico sobre do Prouni como política de inclusão em uma
tradicional instituição de ensino superior privada, com razoável institucionalização de ações
inclusivas em prol de grupos de baixa renda e afrodescendentes. Em sua pesquisa, ouviu 400
graduandos bolsistas do programa, o que corresponde a 100% dos alunos por ele atendidos no
universo estudado.
A pesquisa realizada por Carvalho (2002) foi dividida em blocos temáticos, sendo o
quinto bloco o que mais nos interessa analisar:
Nesse bloco estão operacionalizados cinco eixos de análise sobre o Prouni: i)
como uma política de acesso ao ensino superior; ii) como um instrumento de
inclusão social; iii) como política pública que cria vagas nas IES privadas,
com riscos de ampliar a privatização do ensino superior; iv) o Enem como
processo de seleção dos candidatos ao Prouni; v) os impactos do Prouni na
política de bolsas sociais da IES pesquisada.
Com relação ao primeiro eixo – o Prouni como uma política de acesso ao en-
sino superior são identificáveis as seguintes dimensões: i) o Prouni como
medida paliativa, mas que garante o acesso ao ensino superior; ii) medida
ampliadora do acesso ao ensino superior não público; iii) permite o acesso a
alunos da rede pública de ensino pela meritocracia; iv) é medida favorecedo-
ra da diversidade no ensino superior.
No segundo eixo de análise o Prouni como instrumento de inclusão social
o destacadas as seguintes dimensões: i) o Prouni permite igualdade de
direitos entre bolsistas e pagantes; ii) enseja oportunidades de ascensão pro-
fissional e cultural; iii) democratiza o ensino superior nas IES privadas; iv)
favorece a diversidade; v) não assegura contudo efetiva inclusão social aos
bolsistas do Prouni. No entanto, fica evidente que os bolsistas entendem que
o Prouni abre portas a ascensão profissional e cultural, uma vez que veem
na formação a nível superior a oportunidade de entrar em contato com novos
conhecimentos, receber qualificação e, ao seu término, conseguir empregos
melhor remunerados. Ressalva-se que entre os bolsistas de 2006 poucos a-
pontaram que o Prouni não inclui socialmente; tal afirmação foi mais recor-
rente entre os bolsistas de 2005.
No terceiro eixo o Prouni como política pública que gera vagas em univer-
sidades privadas a maioria dos alunos percebe o Prouni como medida que
democratiza o ensino superior, por oferecê-lo as pessoas que não têm condi-
ções financeiras para financiar [...].
Com relação ao quarto eixo de análise o Enem enquanto processo de sele-
ção para as bolsas do Prouni duas dimensões são destacadas: i) trata-se de
prova que avalia competências e habilidades, mas de forma muito genérica;
38
ii) muitos bolsistas do Prouni percebem o Enem como um método de avalia-
ção mais eficaz do que as provas vestibulares, por avaliar competências e
habilidades e por apresentar os conteúdos de forma interdisciplinar e contex-
tualizadas.
No quinto eixo de análise os impactos do Prouni sobre a sistemática ante-
rior de bolsas sociais adotadas pela IESa maioria dos bolsistas ressalta que
o Prouni ampliou a quantidade de bolsas oferecidas pelas IES. Já a maioria
entende que: i) não houve impactos positivos; ii) houve redução de bolsas
antes destinadas aos mais pobres; iii) diversificou o espectro de bolsistas; iv)
apenas complementou o sistema de bolsas já existentes na IES (2002, p. 14-5).
Carvalho (2002) relata algumas conclusões provisórias sobre os impactos do Prouni,
enquanto política de inclusão social. Para esse pesquisador, existe uma percepção dos efeitos
positivos porque o Ministério da Educação (MEC) controla melhor o uso dos recursos corres-
pondentes à renúncia fiscal da União e a adoção do Enem como critério seletivo na alocação
das bolsas, em resposta parcial à exigência da meritocracia acadêmica.
Na esfera pública, o Prouni foi elemento de análise em recente auditoria operacional
realizada no período de 4 de junho a 7 de novembro de 2008 pelo Tribunal de Contas da Uni-
ão (TCU). Tal auditoria teve como objeto de avaliação as ações governamentais voltadas ao
acesso e permanência da população economicamente desfavorecida no ensino superior. Ações
realizadas por intermédio do Programa Universidade para Todos e pelo Fundo de Financia-
mento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), no que concerne ao alcance dos objetivos, me-
canismos de implementação e controle dos respectivos programas, bem como de sintonia com
o mercado de trabalho e o público-alvo.
De acordo com o documento:
A presente auditoria teve por escopo verificar a operacionalização dos pro-
gramas na busca da concretização dos seus objetivos, tendo em vista a sua
inserção na política governamental para o ensino superior, a análise dos cur-
sos financiados em relação às demandas de mercado e os mecanismos de
controle que abrangem os programas para o regular alcance do seu público-
alvo. Buscou-se identificar, mais especificamente: 1) se as formas de imple-
mentação do Prouni e do Fies refletem o previsto nos objetivos e normas dos
programas e estão alinhadas às metas previstas no PNE para a educação su-
perior; 2) o perfil dos cursos abrangidos por meio do Prouni e do Fies; 3) se
a operacionalização das contrapartidas recebidas pelas IES margem à o-
corrência de algum tipo de impropriedade; 4) e se existem sistemas adequa-
dos de controle operacional e de monitoramento do Prouni e do Fies
(BRASIL/TCU, 2009, p. 3).
39
Ao final da auditoria, o Tribunal de Contas da União conclui, entre outros dados, que
cerca de um em cada cinco cursos que oferecem bolsas no Prouni obtiveram nota inferior a
três no Exame Nacional de Desempenho de Estudante (Enade), abaixo da média considerada
satisfatória.
A auditoria constatou também que uma parcela ainda maior de cursos – 34,65% do to-
tal – nem sequer foi avaliada pelo Enade. Dos cursos avaliados, 20,9% estão abaixo da média;
1,7% tiveram nota um (a mais baixa) e 19% ficaram com nota dois. A maior parcela, 40,8%,
ficou na média (nota três) e 11% dos cursos obtiveram nota quatro. A nota máxima foi alcan-
çada por apenas 0,7% dos cursos.
Quanto à discussão sobre a permanência do aluno Prouni, o relatório do TCU (2009)
apontou que 56% dos alunos têm dificuldades em se manter no programa, mesmo usufruindo
da bolsa.
O relatório também avaliou ter sido ambiciosa a meta estabelecida pelo Programa Na-
cional de Educação (PNE), que fixa o atendimento de pelo menos 30% da população de 18 a
24 anos, até 2011, pelo ensino superior. No ano da promulgação da lei, apenas 9% da popula-
ção nessa faixa etária frequentava uma instituição de ensino superior no país.
Ainda em oposição a essa meta, o TCU (2009) também aponta as baixas taxas de con-
clusão do ensino médio e as altas taxas de distorção idade-série, que levam os jovens a con-
cluir essa etapa da educação básica fora da faixa etária esperada, ou seja, ao redor dos 17-18
anos. Em 2005, ainda segundo o relatório, o percentual de concluintes do ensino médio foi de
65% e a distorção idade-série chegou a 46%.
Verificou-se também que, no ano de 2006, mesmo após a realização dos processos se-
letivos
19
, havia ainda, no ensino superior, cerca de 50% de vagas ociosas em instituições pri-
vadas. Em contraste, nas instituições públicas, o número de vagas não preenchidas totalizou
8,5%, considerando as instituições estaduais e federais.
Para os relatores, a condição socioeconômica de grande parte dos jovens brasileiros
em idade de cursar o ensino superior não permite que arquem com os custos de um curso su-
perior privado, e aí se explica a quantidade de vagas ociosas no ensino privado.
Ainda de acordo com o documento, para avaliar a evolução do Prouni os principais in-
dicadores são a quantidade de instituições de ensino participantes do programa; o número de
estudantes inscritos; o número de estudantes classificados para as entrevistas e o número de
19
Sinopse estatística do ensino superior, do ano de 2006, elaborada pelo Inep/MEC.
40
contratos firmados; os cursos de maior demanda; o tipo de moradia e a renda familiar per ca-
pita do grupo familiar.
Todavia, entendem os relatores que muitas dessas informações demonstram fragilida-
de de comprovação, uma vez que os critérios adotados no programa devem ser passíveis de
confirmação, porém muitas vezes são subjetivos ou, se objetivos, de difícil comprovação, o
que aumenta a responsabilidade das instituições de ensino superior.
Algumas informações são autodeclaradas e a comprovação de sua veracidade é difícil,
por exemplo: o caso da proibição de um aluno bolsista do Prouni estar matriculado em institu-
ição pública e gratuita ou ser portador de diploma de ensino superior. Outro caso é o da
renda familiar. Deve-se lembrar que o Brasil possui alto índice de atividade econômica infor-
mal, o que pode ser empecilho à comprovação das informações relativas à renda.
Segundo análise, a demanda pelas bolsas de estudo disponibilizadas pelo Prouni tem
se mantido elevada, o que se traduz em um bom indicador quanto ao grau de receptividade
que o programa tem junto à comunidade acadêmica.
Informações apresentadas no site do Ministério da Educação
(2008) comprovam a a-
firmativa do TCU. Apontam que o Prouni atingiu, no semestre de 2008, o número de 521
mil bolsas oferecidas, superior à meta de 400 mil bolsas no período de 2006–2009, conforme
se segue:
41
Tabela 1
Bolsas ofertadas por ano 2005-2008
Ano Bolsas
2005
2006
2007
2008
112.275
138.668
163.854
225.005
Fonte: Sisprouni 04/06/2008
Tabela 2
Bolsas ofertadas por região 2005-2008
Região População Total de bolsas % em relação à população
Sudeste 177.873.120 227.398 0,0012
Sul 26.733.595 85.358 0,0031
Nordeste 51.536.405 63.096 0,0012
Centro-Oeste 13.222.854 36.797 0,0027
Norte 14.623.316 21.943 0,0015
Fonte: Sisprouni 15/09/2008
Tabela 3
Bolsas por turno – Cursos presenciais – 2005-2008
Turno Total de bolsas
Noturno
Matutino
Vespertino
Integral
288.755
77.667
16.638
15.914
Fonte: Sisprouni 15/09/2008
Tabela 4
Bolsista por categoria administrativa da IES – 2005-2008
Categoria da IES Total de bolsas
Com fins lucrativos
Entidade beneficente de assistência social
Sem fins lucrativos não beneficente
215.412
130.627
88.533
Fonte: Sisprouni 15/09/2008
Tabela 5
Bolsista por sexo – 2005-2008
Sexo Total de bolsas Percentagem
Masculino
Feminino
244.248
190.344
56,20
43,80
Fonte: Sisprouni 15/09/2008
42
Tabela 6
Bolsista por raça – 2005-2008
Raça Total de bolsas Percentagem
Branca
Parda
Preta
Amarela
Indígena
Não informada
204.580
142.407
54.853
8.728
1.019
23.005
47,07
32,77
12,62
2,02
0,23
5,20
Fonte: Sisprouni 15/09/2008
Tabela 7
Bolsistas professores da educação básica pública – 2005-2008
Bolsistas Total de bolsas Percentagem
Demais bolsistas
Professores
428.879
5.713
98,69
1,31
Fonte: Sisprouni 15/09/2008
Tabela 8
Bolsistas portadores de deficiência – 2005-2008
Bolsistas Total de bolsas Percentagem
Demais bolsistas
Portadores de deficiência
431.498
3.094
99,29
0,71
Fonte: Sisprouni 15/09/2008
Os dados disponibilizados pelo Ministério da Educação (MEC) permitem verificar
que, apesar do número expressivo de bolsas ofertadas, os bolsistas brancos, homens e da Re-
gião Sudeste são a grande maioria. Também é possível perceber que a maior parte das bolsas
pertence a estudantes de cursos noturnos, comprovando a necessidade de manterem um traba-
lho para permanecer no ensino superior. Outra questão importante a observar é o pequeno
percentual de professores em busca de um aperfeiçoamento continuado: somente 1,31% dos
alunos bolsistas pelo Prouni são professores.
Conforme dados obtidos em pesquisas realizadas (TCU, 2009; CATANI, HEY,
GIGGLIOLI, 2006), o maior problema do programa é a permanência do aluno até a conclusão
do curso.
Segundo Catani, Hey e Gigglioli (2006), o Laboratório Universitário da Universidade
Cândido Mendes constatou que cerca de 35% dos alunos que estão no último ano do ensino
médio ou que o concluíram (3,7 milhões, num total de 10,5 milhões) vêm de família em
que a renda média sequer é suficiente para a aquisição de eletrodomésticos de primeira neces-
sidade.
43
Respostas a um questionário aplicado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) à a-
mostra dos alunos beneficiários do programa confirmam essa realidade, ao indicar que 56%
dos alunos têm dificuldades em se manter no programa, mesmo usufruindo da bolsa.
Na voz dos próprios bolsistas, no 51º Congresso da União Nacional dos Estudantes,
realizado em 16 de julho de 2009, a aceitação do Prouni como política de inclusão é inequívo-
ca. Durante a cerimônia de a abertura os estudantes receberam o presidente da República com
as seguintes palavras de ordem: “agora o filho de pedreiro vai poder ser doutor!” A dificulda-
de de continuidade nos estudos também é evidente, como se pode perceber em carta enviada
pelos alunos ao presidente Luís Inácio Lula da Silva, reivindicando justamente a implantação
de uma política de assistência, com a intenção de evitar a evasão dos estudantes que não con-
seguem arcar com custos como transporte, alimentação e a compra de livros (PORTAL UNE,
2009, s/p).
Ainda que alvo de críticas, o Prouni conta com o apoio dos jovens carentes, represen-
tados pelas mais variadas organizações, como: União Nacional dos Estudantes, União Brasi-
leira dos Estudantes Secundaristas, União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São
Paulo.
Para esses estudantes, o programa é uma conquista social, o que se pode constatar na
fala de Lúcia Stumpf, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), por ocasião do
Encontro dos Estudantes do Prouni, em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, em 29 de março de
2008: “essas conquistas são uma demonstração de que, quando a gente luta e se organiza, as
vitórias acontecem” (PORTAL UNE, 2008, s/p).
A fala de Débora Pereira, aluna “Prouni ou Prounista”, como ela se define, em depoi-
mento feito no dia 28 de abril de 2009, deixa evidente o apoio dado pelas organizações repre-
sentativas dos estudantes ao programa e reforça sua aceitabilidade por camadas alijadas da
sociedade brasileira.
Oportunidade. Esta é a palavra que define o desejo que move milhões de
brasileiros. Operários, domésticas, ambulantes, filhos de trabalhadores, cida-
dãos reféns de um sistema social que oprime, marginaliza, segrega. Pessoas
que por muito tempo foram apenas números, estatísticas de desemprego,
pobreza, exclusão. Oportunidade. Isto é o que o Prouni oferece. Não se trata
somente de uma bolsa de estudos, mas do direito de voltar a sonhar [...].
Sempre que vejo as pessoas praguejando, ou simplesmente desdenhando do
Prouni ou de qualquer outro programa de acesso à universidade (como o Re-
uni), fico me perguntando se esses indivíduos pararam para refletir sobre
os impactos diretos que esse tipo de ação tem sobre a vida do povo. Certa-
mente vieram de berço dourado, tomando muito todinho e leite ninho, brin-
cando em playground, sem nunca ter pisado em uma favela, remado até a ca
44
sa de um ribeirinho ou passado qualquer tipo privação na vida. Por fim, que-
ro ressaltar que escrevo tudo isso com a propriedade de quem foi criada no
extremo sul da Zona Sul de São Paulo, onde dá tudo errado [..]. Filha de mãe
operária às vezes empregada doméstica – e pai ausente, sei bem como é a-
traente a ilusão da vida fácil. Se ao final deste ano de 2009 terei em mãos
meu diploma de jornalista é porque agarrei uma oportunidade, a única e mais
importante de toda uma vida, assim como milhares de pessoas que certamen-
te viram um mundo de sonhos começar a se concretizar no dia em que assi-
naram o contrato de suas bolsas de estudos (PORTAL UNE, 2009, s/p).
Essa fala sugere que o Prouni atende às necessidades de acesso à educação superior,
tão desejada pelo jovem das camadas populares, que entende que o diploma adquirido será de
grande valia para sua ascensão no mercado de trabalho e no seu meio social.
O Prouni se configura hoje, à camada excluída da sociedade, como uma ação política
de resgate social.
Desse modo, no capítulo a seguir, o tema é o jovem brasileiro neste momento históri-
co, objetivando identificar o espaço que realmente ocupa na sociedade, principalmente no que
se refere à educação e ao mundo do trabalho. Buscou-se compreender também o significado
que esse jovem tem de si mesmo e como as políticas públicas dirigidas a essa faixa etária o
têm identificado e agido para inseri-lo na sociedade.
CAPÍTULO 3 – A JUVENTUDE BRASILEIRA
O presente capítulo apresenta um quadro da juventude brasileira na sociedade contem-
porânea.
O Programa Universidade para Todos (Prouni) faz parte de um plano maior do Gover-
no Federal: o Plano Nacional de Educação (PNE). O Prouni
somado à expansão das Universidades Federais e ao Programa de Apoio a
Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais Reuni,
ampliam significativamente o número de vagas na educação superior, con-
tribuindo para o cumprimento de uma das metas do Plano Nacional de Edu-
cação, que prevê a oferta de educação superior até 2011 para, pelo menos,
30% dos jovens de 18 a 24 anos (BRASIL/MEC, s/d, s/p).
O objetivo do PNE é o resgate social desses jovens que, devido a suas condições eco-
nômicas, sociais e educacionais desfavorecidas, são tolhidos do acesso ao ensino superior.
A primeira preocupação foi estabelecer limites para a abrangência do próprio uso dos
termos juventude e jovens: quem é considerado jovem e o que é considerado juventude?
Sposito salienta que “ao buscar estabelecer um recorte que incida sobre a temática dos
jovens, é preciso, inicialmente, reconhecer o debate e algumas das imprecisões que permeiam
a própria definição do que se pode considerar juventude” (2003, p. 10).
A autora complementa afirmando que
é preciso compreender que a categoria sociológica “juventude” encerra
intrinsecamente uma tensão que não se resolve: ela é ao mesmo tempo um
momento no ciclo de vida, concebido a partir de seus recortes socioculturais,
e modos de inserção na estrutura social (2003, p. 10).
Para a Organização Internacional do Trabalho
20
(OIT), como expresso no documento
intitulado Trabalho decente e juventude no Brasil
21
20
Trata-se de uma agência do sistema das Nações Unidas, fundada com o objetivo de promover a justiça social.
No Brasil, a OIT tem mantido representação desde 1950, com programas e atividades que refletem os objetivos
da organização ao longo de sua história (PORTAL OIT, s/d, s/p).
21
Estudo relativo à juventude brasileira. Vai além da análise exclusiva do desemprego juvenil, abrangendo tam-
bém a realidade do trabalho decente para os jovens. Propõe-se apresentar um breve e sintético diagnóstico da
situação da juventude no Brasil. Faz parte de um relatório maior chamado Trabalho decente e juventude na Amé-
rica Latina (OIT, 2009).
46
a juventude pode ser definida sob diferentes óticas, critérios ou prismas.
Pode ser vista como período de transição para a vida adulta, ou como
momento presente, único, particular e especial do ciclo de vida das pessoas.
Tanto em um como em outro caso, ao analisar a juventude, é necessário
levar em conta a heterogeneidade e os diferentes padrões vivenciados por
distintos grupos de jovens, assim como o fato de que os processos
tradicionais de transição ao longo do ciclo de vida dos indivíduos estão se
tornando cada vez mais complexos (2009, p. 23).
A concepção do Governo Federal, na gestão do presidente Luís Inácio Lula da Silva,
ao definir, em documento oficial (Guia de Políticas Públicas de Juventude, 2006), a juventude
como uma condição social e os jovens como sujeitos de direitos, reitera as definições traçadas
por Spósito e também pela OIT.
É considerando tal significação que, conforme expresso no Guia de Políticas Públicas
de Juventude, o Governo Federal propõe que a elaboração de políticas públicas para a
juventude deve partir do pressuposto de que a juventude não é única, mas sim heterogênea,
com caracterísitcas distintas que variam de acordo com aspectos sociais, culturais,
econômicos e territoriais” (2006, p. 6).
Para a elaboração de tais políticas, as faixas etárias são delimitadas conforme proposto
pela Secretaria Nacional de Juventude, vinculada à Secretária-geral da Presidência da
República, no atual governo. São considerados jovens aqueles que se encontram na faixa
etária de 15 a 29 anos. Todavia, cabe enfatizar que alguns programas, como o Prouni, apesar
de terem como foco a juventude, atendem a outras faixas etárias.
Os jovens representam hoje uma camada da sociedade bastante relevante. Segundo o
último censo demográfico realizado pelo IBGE, no ano de 2000 havia 34 milhões de jovens
no Brasil, correspondendo aproximadamente a 20% do total da população.
Ainda conforme dados obtidos no censo 2000, o IBGE sinaliza que a população do
país ultrapassou 170 milhões de habitantes, e 50% desta população é constituída por crianças
e jovens com menos de 25 anos (Tabela 9). A maioria destes jovens (81,25%) vive em zonas
urbanas, composta de 53,6% de brancos, 45,3% de negros, 0,65% de orientais e 0,5% de indí-
genas (Tabela 10).
Considerando os dados do IBGE de 2000, observa-se que o corte entre 15 e 24 anos
corresponde aos jovens nascidos nos primeiros anos da década de 1980 (Tabela 9).
47
Tabela 9
População por grupo etário e sexo – Censo IBGE 2000 (em milhões)
Grupo etário Sexo masculino Sexo feminino Total
0 a 4
16,4
5 a 9
16,6
10 a 14
17,4
15 a 19
17,9
20 a 24
16,1
25 a 29
6,8
7,
0
13,8
30 a 34
13,0
35 a 39
12,3
40 a 44
10,5
45 a 49
50 a 54
55 a 59
60 a 64
65 a 69
70 a 74
75 a 79
80 ou mais
Total
83,5
86,3
169,8
Fonte: Sposito (2003). Dados coletados do IBGE.
Tabela 10
Perfil da população brasileira total, jovem e adulta – 2006*
Grupo Valores absolutos
Participação no total da faixa etária considerada em %
Pop. Total 15 a 24 anos 25 anos ou mais Pop. total 15 a 24 anos 25 anos ou mais
Total**
187.227.792
34.709.905
103.871.542 100,0*** 18,5*** 55,5***
Homens
91.196.371 17.289.321 49.019.641 48,7 49,8 47,2
Mulheres
96.031.421 17.420.584 54.851.901 51,3 50,2 52,8
Amarelos
918.978 159.020 623.578 0,5 0,5 0,6
Brancos
93.096.286 16.259.127 54.546.643 49,7 46,8 52,5
Indígenas
518.597 110.099 292.913 0,3 0,3 0,3
Negros
92.689.972 18.180.859 48.406.351 49,5 52,4 46,6
Rural
31.293.966 5.784.261 15.869.056 16,7 16,7 15,3
Urbano
155.933.826 28.925.644 88.002.486 83,3 83,3 84,7
0 a 4 anos
87.828.038 4.139.756 42.573.086 46,9 11,9 41,0
de estudo
9 a 11 anos
40.305.447 15.358.689 24.929.294 21,5 44,2 24,0
de estudo
12 anos ou mais
15.914.228 2.906.249 13.007.979 8,5 8,4 12,5
de estudo
Fonte: OIT/Prejal, a partir dos microdados da PNAD/IBGE 2006. *Inclui Norte Rural. **Exceto a primeira linha.
***Participação na população total; as demais linhas correspondem a participação na respectiva faixa etária considerada.
(Extraído do documento da OIT)
Os dados apresentados na Tabela 10 demonstram a precariedade do tempo de estudo
da população jovem brasileira: 44, 2% dos jovens entre 15 e 24 anos possuem de nove a onze
anos de estudo, o que corresponde ao ensino básico. Somente 8,4% dessa população possui
48
doze anos ou mais de estudo. Os dados deixam clara a necessidade de políticas públicas vol-
tadas à inclusão educacional dos jovens brasileiros.
Embora se perceba tal necessidade, pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e pelo Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em
Políticas Sociais (Polis), no ano de 2006, com jovens de 15 a 24 anos de idade, mostrou que a
educação não é a primeira na lista das principais preocupações dos jovens.
Segundo dados obtidos pelos institutos, em capitais como Salvador, Belém e Belo Ho-
rizonte a educação ocupa a quarta posição; no Distrito Federal, São Paulo e Rio de Janeiro,
sobe para o terceiro lugar; em Porto Alegre e Recife, está em segundo lugar.
Conforme apurado pela Polis e pelo Ibase em pesquisa cujo objetivo era “provocar o
debate sobre as condições e perspectivas com relação à educação, ao trabalho, à cultura e ao
lazer e os limites da sua participação em atividades políticas, sociais e comunitárias [...]”
(2005, p. 12), são preocupações principais dos jovens brasileiros:
1) Violência: falta de segurança; criminalidade.
2) Trabalho: emprego; desemprego; falta de oportunidades; primeiro em-
prego.
3) Educação: qualidade do ensino; degradação das escolas públicas; acesso
a ensino médio e universitário.
4) Miséria: pobreza; fome; desigualdade social; má distribuição de renda.
5) Política: corrupção; descaso do governo com jovens; falta de consciência
dos (as) governantes.
6) Saúde.
7) Discriminação: racismo; preconceito (POLIS e IBASE, 2005, p. 12).
3.1 – Perfil educacional dos jovens brasileiros
Nos anos de 1990, o governo de Fernando Henrique Cardoso criou ações que aumen-
taram as oportunidades de acesso à escolarização básica.
Cabe dizer, com base em Libâneo (2005), que a política educacional adotada por FHC,
concebida de acordo com a proposta do neoliberalismo, assumiu dimensões tanto centraliza-
doras quanto descentralizadoras.
Das ações consideradas descentralizadoras, dentre outras, o governo instaurou a TV
Escola, por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), e designou
recursos financeiros diretamente para as escolas, oriundos do salário-educação. Essa é a única
ação que se pode dizer orientada para a descentralização de fato (LIBÂNEO, 2005).
49
o centralismo apresentou-se nitidamente na elaboração dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs), pois ignorou as pesquisas sobre currículo realizadas pelas universidades
e pecou por não cobrar maior participação da sociedade, “uma vez que as ações realizadas não
foram fruto de consultas aos diversos setores sociais [...], mas surgiram de decisão preparada
desde a campanha eleitoral” (LIBÂNEO, 2005, p. 140).
Alocar todas as crianças dentro da escola é uma grande e desejável iniciativa, todavia,
como aponta Libâneo, “a ampliação das vagas deu-se pela redução da jornada escolar, pelo
aumento do número de turnos, pela multiplicação de classes multisseriadas e unidocentes,
pelo achatamento dos salários dos professores e pela absorção de professores leigos” (2005, p.
144).
É interessante frisar também que a acessibilidade das crianças e adolescentes ao ensi-
no básico não é garantia de inclusão, de condições sociais dignas, pois a exclusão continua
ocorrendo, entre outras razões, por causa da má qualidade do ensino oferecido, principalmente
nas escolas públicas de ensino fundamental e médio, devido, entre outros motivos, à forma
como aconteceu a expansão do acesso.
Segundo SPOSITO (2003), os problemas que afetam a qualidade do ensino público es-
tão além da precariedade do material e dos equipamentos, dos baixos salários, da formação
inadequada dos docentes. Enfatiza a autora que
essas condições deterioradas, acompanhadas de um processo educativo des-
compassado dos sujeitos jovens e adolescentes, produzem como resultado o
desinteresse, a resistência, as dificuldades escolares e, muitas vezes, práticas
de violência, que caracterizam a rotina das unidades escolares (2003, p. 16).
Dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) confirmam a asserti-
va no que concerne à qualidade do ensino ou à sua precariedade, conforme se segue.
50
Tabela 11
Ideb 2005-2007 e projeções para o Brasil
Anos iniciais do ensino
fundamental
Anos finais do ensino
fundamental
Ensino médio
Ideb obser-
vado
Metas Ideb obser-
vado
Metas Ideb ob-
servado
Metas
2005 2007 2007 2021 2005 2007 2007 2021 2005 2007 2007 2021
Total
3,8 4,2 3,9 6,0 3,5 3,8 3,5 5,5 3,4 3,5 3,4 5,2
Dependência administrativa
Pública 3,6 4,0 3,6 5,8 3,2 3,5 3,3 5,2 3,1 3,2 3,1 4,9
Federal 6,4 6,2 6,4 7,8 6,3 6,1 6,3 7,6 5,6 5,7 5,6 7,0
Estadual 3,9 4,3 4,0 6,1 3,3 3,6 3,3 5,3 3,0 3,2 3,1 4,9
Municipal 3,4 4,0 3,5 5,7 3,1 3,4 3,1 5,1 2,9 3,2 3,0 4,8
Privada 5,9 6,0 6,0 7,5 5,8 5,8 5,8 7,3 5,6 5,6 5,6 7,0
Fonte: Ideb/Inep. Censo escolar 2005-2007.
Sposito (2003) apresenta tabela comparativa entre as Pesquisas Nacionais de Amostras
Domiciliares de 1995 a 2001 (Tabela 12), em que é possível observar a universalização do
ensino básico.
Tabela 12
Estudantes de 15 a 24 anos, por grau que frequentavam – em milhões (1995 a 2001)
Anos Fundamental Médio Superior Total
1995
2001
Crescimento absoluto
Crescimento relativo
5,9
6,4
0,5%
7,7%
4,6
7,6
3,0%
75,1%
1,1
2,1
1,0%
88,7%
11,7
16,2
4,5%
38,5%
Fonte: Sposito (2003). Dados coletados do IBGE – PNAD – 1995 a 2001.
Observa-se, na tabela, o aumento significativo de oportunidades escolares no ensino
médio, consequência também do crescimento do acesso ao ensino fundamental. O acesso efe-
tivo passou de 4,6 milhões, em 1995, para 7,6 milhões, em 2001, um crescimento relativo de
75,1%.
Sposito (2003), em seu estudo, também observou, por meio da análise de dados dispo-
nibilizados pelo PNAD e pelo IBGE, que “depreende-se também [...] a permanência das dis-
torções entre a idade e a série cursada. Em 2001, dos 8,4 milhões de estudantes na faixa etária
entre 15 e 17 anos, 4,4 milhões ainda estavam cursando o ensino fundamental” (2003, p. 13).
Portanto, 50% dos jovens nesta faixa etária (15 a 17) têm algum tipo de distorção idade-série
escolar. Essas distorções se agravam em relação ao ensino médio, pois, segundo a autora, na
mesma pesquisa, do total de 7,6 milhões de matrículas da população até 24 anos, apenas 3,9
51
milhões correspondem à faixa etária de 15 a 17 anos, prevista como ideal para esse nível de
ensino.
Pesquisa intitulada Juventude brasileira e democracia: participação, esforços e políti-
cas, desenvolvida e publicada em 2006 pelo instituto Polis em parceria com o Ibase, fortalece
as conclusões de Sposito (2003) referentes aos dados disponibilizados pelo IBGE e pela
PNAD.
Na realização da pesquisa mencionada, o instituto Polis e o Ibase desenvolveram, num
primeiro momento, levantamento estatístico, por meio da aplicação de um questionário junto
a 8 mil jovens de 15 a 24 anos. Num segundo momento, foi realizado um estudo qualitativo,
utilizando-se, para isso, um grupo de diálogo formado por 913 jovens, que participaram de 39
reuniões, nas oito regiões em que se realizou a pesquisa. Constatou-se, na polifonia das vozes,
que 53% dos entrevistados não estudavam; 24,3% não possuíam o ensino fundamental com-
pleto; 33,2% concluíram o ensino médio; 86,2% estavam estudando em escolas públicas; 27%
não estudavam e não trabalhavam.
Na oportunidade, os jovens menos favorecidos falaram aos cnicos do Polis sobre as
dificuldades que enfrentam para ter acesso ao sistema educativo e, não menos significativo,
sobre as dificuldades de permanecer até a conclusão da educação básica. Reclamaram também
da realidade das instituições públicas, considerando-as espaços pouco abertos ao favorecimen-
to de experiências de “sociabilidade, solidariedade, debates públicos e atividades culturais e
formativas” (POLIS, 2006, p. 23).
Na representação desses jovens participantes da pesquisa realizada pelo instituto, a es-
cola deveria se configurar como espaço de estímulo a hábitos e valores básicos, de maneira a
contribuir para a construção de projetos de vida, possibilidades de melhoria das condições de
vida, trabalho, lazer e ação política.
A tabela 13 apresenta o que foi constatado pela pesquisa.
52
Tabela 13
Nível de instrução dos jovens de 15 a 24 anos que não frequentam a escola
Faixa etária 15-19 20-24 Total Porcenta-
gem
Nunca frequentou escola
344.144 534.403 878.548 5%
Ensino fundamental incompleto
3.641.110 5.832.753 9.493.863 53%
Ensino fundamental completo
640.558 1.206.699 1.847.257 10%
Ensino médio incompleto
410.281 886.159 1.296.441 7%
Ensino médio completo
998.816 3192328 4.191.144 23,5%
Ensino superior completo
2.206 246.506 248.712 1,5%
Total
6052.891 12.067.517 18.120.408 100%
Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2000.
Apesar das contradições inerentes às instituições públicas de ensino, é possível, pelas
vozes dos jovens, mesmo que por meio de clichês, ouvir frases como: estudar para ter um
futuro melhor, estudar para poder cuidar da família, estudar para ganhar dinheiro, a formação
educativa via formalidade pode preparara para a emancipação social. Portanto, como diz o
relatório da Polis, “o caminho do aperfeiçoamento da democracia passa, inexoravelmente,
pela escola, que precisa estar preparada para cumprir esse papel” (2006, p. 24).
É, portanto, dever das políticas públicas criar condições para que os jovens participem
efetivamente da vida social, econômica, cultural e democrática do Brasil, segundo documen-
tos da Organização Internacional do Trabalho (2006).
3.2 – O mercado de trabalho para os jovens brasileiros
Sobre pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, em 1999, com jovens resi-
dentes em nove regiões metropolitanas, Sposito afirma que “foi possível verificar que no Bra-
sil a condição juvenil não pode ser depreendida apenas da realidade escolar ou seja, da situ-
ação dos jovens como estudantes –, mas deve ser compreendida também a partir do mundo do
trabalho” (2003, p. 23).
Com as profundas transformações do mercado de trabalho nas últimas décadas, em
função de crises financeiras, globalização, políticas financeiras, tecnologia, o emprego da for-
ça de trabalho entrou em crise, atingindo particularmente os jovens.
53
Na disputa por um posto de trabalho, considerando o elevado número de mão de obra
disponível, o jovem está em desvantagem, por sua falta de experiência. Além disso, em geral,
a juventude é atingida mais severamente em momentos de retração e menos beneficiada em
períodos de melhoria e/ou recuperação do país.
Resultados obtidos no estudo intitulado Juventude: outros olhares sobre a diversida-
de, lançado pelo Ministério da Educação e pela Organização das Nações Unidas para a
Educação a Ciência e a Cultura (Unesco), em 2007, confirmam o exposto.
Para 14,3% (3.014.944) dos jovens brasileiros que já estavam trabalhando ou
que nunca trabalharam, a principal razão para estarem sem trabalho ou nunca
terem trabalhado é a falta de experiência [...]. 11,8% (2.489.564) atribuíram
à atual situação do país a razão por o trabalharem, 10,5% (2.202.816), a
idade e 9%, (1.892.301) o fato de não terem estudado o suficiente
(MEC/UNESCO, 2007, p. 317).
Nesse cenário, ainda conforme dados apresentados na pesquisa desenvolvida pelo
MEC/Unesco, tem-se que
para 61,3% (16.428.451) dos jovens brasileiros que trabalham, as atividades
que desempenham no trabalho já têm relação com aquilo que eles estudam
ou estudaram. Para 27,8% (7.463.911), existe alguma relação entre o que es-
tudam ou estudaram e a atividade que desempenham no trabalho [...] (2007,
p. 317).
Para inserção no mercado de trabalho, o grau de escolaridade é considerado essencial
para a maioria dos entrevistados pelo MEC/Unesco, como apontam os números:
Para 37,4% (17.896.158) dos jovens brasileiros, o nível de escolaridade é a
qualidade mais importante que uma pessoa deve ter para conseguir trabalho.
Para outros 32,1% (15.377.536), a principal qualidade é a experiência, para
11,8% (5.637.973) é a recomendação de pessoas influentes e para 11%
(5.255.788) é o nível de especialização (2007, p. 317).
De todo modo, segundo relatório da Organização Internacional do Trabalho:
A inserção de uma porcentagem significativa de jovens brasileiros de ambos
os sexos no mercado de trabalho é precária, e se caracteriza, entre outros as-
pectos, por elevadas taxas de desemprego e informalidade, assim como bai-
xos níveis de rendimentos e proteção social. Isso significa que a juventude
brasileira é afetada por um elevado déficit de trabalho decente (2006, p. 23).
54
De acordo com pesquisa que tem como título Juventude: diversidade e desafios no
mercado de trabalho metropolitano, realizada em 2006 pelo Departamento Intersindical de
Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o problema do acesso ao mercado de traba-
lho está vinculado a vários fatores, dentre outros: sexo, condição econômica, formação profis-
sional. Conforme o relatório apresentado, “o acesso dos jovens às oportunidades de ingresso
no mercado de trabalho tem suas limitações, verificando-se padrões de inserção diferenciados
em função da idade, sexo, condição econômica da família, bem como a região de domicílio”
(DIEESE, 2006, p. 2).
Em 2004, nas seis regiões metropolitanas em que a Pesquisa de Emprego e Desempre-
go (PED) foi realizada, tinha-se:
Tabela 14
Estimativa da população acima de 16 anos e jovens de 16 a 24 anos, segundo
condição de atividade
Condições de atividade Número de pes-
soas acima de 16
anos
Jovens de 16 a 24 anos
%
População de 16 anos e mais 26.573 6.484 24,4
População economicamente
ativa
18.246 4.696 25,7
Ocupados 14.748 3.074 20,8
Desempregados 3.498 1.623 46,4
Desempregados em primeira
procura
566 520 91,9
Inativos 8.328 1.789 21,5
Fonte: Convênio Dieese/Seade, MTE/FAT e convênios regionais, PED
Vê-se que população jovem, de 16 a 24 anos, em 2004, somava 6,5 milhões de pesso-
as, correspondentes a cerca de 20% da população com idade acima de 16 anos residente nes-
sas áreas. Desse contingente juvenil, grande parte 4,7 milhões – estava engajada na força de
trabalho local, quer na condição de ocupados, quer na de desempregados. Tais informações
mostram que é expressiva a presença desse segmento na população economicamente ativa
(PEA) com mais de 16 anos, representando mais de um quarto dos trabalhadores (25,7%).
Entre os ocupados com mais de 16 anos (14,7 milhões), os jovens representam uma
proporção menor, de 20,8%, totalizando 3,1 milhões de pessoas. Quando se consideram os
desempregados, a proporção de jovens é bem maior, e, entre os 3,5 milhões de desemprega-
dos nas regiões metropolitanas analisadas, 1,6 milhões encontram-se na faixa etária entre 16 e
24 anos de idade, o que significa que 46,4% do total de desempregados acima de 16 anos são
jovens.
55
Segundo dados do Convênio Dieese, Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados
(Seade), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e Fundo de Amparo do Trabalhador
(FAT) e convênios regionais, em 2004, entre os jovens inseridos na força de trabalho, ou seja,
capacitados para o trabalho, em torno de 30% encontravam-se em situação de desemprego nas
regiões metropolitanas de Porto Alegre (29,3%), Belo Horizonte (30,3%), São Paulo (32,6%)
e no Distrito Federal (36,7%). A condição dos jovens era ainda pior em Salvador e Recife,
com taxas superiores a 40%.
De acordo com os órgãos do convênio:
A crescente dificuldade de inserção ocupacional para os trabalhadores em
geral pode ser vista principalmente a partir do agravamento do desemprego.
Neste contexto, entretanto, a falta de perspectiva para a juventude inegavel-
mente se destaca como um dos principais fatores de desagregação social no
período atual brasileiro. Chama a atenção o fato de o desemprego ser uma
forma de exclusão que adquire proporções preocupantes entre a população
jovem de todas as áreas urbanas pesquisadas, no entanto, recai particular-
mente sobre o grupo etário de 16 a 17 anos, as mulheres, jovens residentes
nas regiões metropolitanas do Nordeste do Brasil e aqueles pertencentes às
famílias de mais baixa renda (DIEESE; SEADE; MET; FAT, 2005, p. 4).
Como consequência da dificuldade de inserção do jovem no mercado de trabalho, es-
tabelece-se uma redefinição dos espaços por ele ocupados. Parte se dirige para a inatividade,
muitas vezes fora da escola, com perda de autoestima; outra parte insiste na procura de em-
prego sem sucesso.
Pesquisas (DIEESE, 2005; OIT, 2006; SPOSITO, 2003) mostram que o desemprego é
maior entre os jovens de menor renda (Tabela 15), com menores oportunidades de
profissionalização e menor tempo de escolarização.
Tabela 15
Taxas de desemprego dos jovens com idade entre 16 e 24 anos, segundo grupo de quartis do
rendimento familiar mensal. Regiões metropolitanas – 2004
(em porcentagem)
Regiões metropoli-
tanas
Grupo de famílias
1º quartil 2º quartil 3º quartil 4º quartil
Belo Horizonte
66,1 44,1 29,5 26,5
Porto Alegre
58,7 34,2 23,2 18,8
Recife
66,0 49,1 39,2 31,1
Salvador
67,1 47,9 40,3 34,4
São Paulo
58,5 39,3 29,9 22,1
Fonte: Convênio Dieese/Seade, MTE/FAT e convênios regionais. PED
Nota: Grupo 1º Quartil = 25% das famílias com menor renda familiar.
Grupo 2º Quartil = 25% das famílias com renda familiar imediatamente superior ao Grupo 1.
Grupo 3º Quartil = 25% das famílias com renda familiar imediatamente superior ao Grupo 2.
Grupo 4º Quartil = 25% das famílias com maior renda familiar.
56
Portanto, diante dos números, conclui o Dieese:
As taxas de desemprego dos jovens diminuem à medida que se passa das
famílias mais pobres às de renda mais elevada. Comprovando que níveis de
renda familiar mais alto permitem melhor condição de acesso ao mercado de
trabalho; na medida em que os jovens pertencentes a estas famílias podem se
preparar mais para disputar as vagas oferecidas, as chances de uma busca por
trabalho têm maior chance de serem bem-sucedidas. Mas, mesmo nessa situ-
ação mais privilegiada, as dificuldades enfrentadas pelos jovens no mercado
de trabalho ainda permanecem maiores do que as identificadas para a média
da população adulta (2005, p. 9).
Como consequência dessa conjuntura desumana e desigual, “há a retroalimentação da
pobreza desse segmento familiar. Isso se confirma quando se verifica que, entre os jovens
mais pobres, o percentual de desempregados é sempre mais que o dobro do apurado entre os
jovens mais ricos”(DIEESE, 2005, p. 8).
A combinação dos sucessos escolares e ocupacionais determina a vida do trabalhador
e sua atuação social. A fase compreendida entre os 16 e os 24 anos é uma das mais críticas,
pois é quando ocorre o término dos estudos e a inserção no mercado de trabalho.
Nas pesquisas realizadas pelo Dieese (2005), observou-se que, entre as famílias mais
abastadas, os jovens tendem a permanecer mais tempo na escola, enquanto entre as famílias
mais pobres ocorre o oposto. Assim, a combinação vida escolar e trabalho é realidade para um
percentual maior de jovens pertencentes às famílias de maior poder aquisitivo, conforme da-
dos a seguir (Tabela 16).
57
Tabela 16
Distribuição dos jovens com idade entre 16 e 24 anos segundo situação de trabalho, estudo e procura de trabalho
por grupo de quartis do rendimento familiar mensal. Regiões metropolitanas – 2004
Total e grupos de família
Regiões metropolita-
nas
Inativos % População economicamente ativa
%
Só estuda Afazeres
domésticos
e outros
Estuda e
trabalha
Estuda e
procura
trabalho
Trabalha
e/ou procu-
ra
Porto Alegre
19,0 10,7 17,6 9,2 43,5
1º quartil 21,2 20,1 5,8 12,4 40,5
4º quartil 23,1 5,1 26,5 8,4 36,9
Recife
26,0 15,6 11,7 10,2 36,6
1º quartil 27,8 25,0 4,7 11,9 30,5
4º quartil 29,6 8,6 16,9 9,4 35,4
Salvador
23,4 9,1 16,4 14,4 36,6
1º quartil 26,2 16,2 7,3 17,3 33,0
4º quartil 29,3 4,8 22,8 14,3 28,8
São Paulo
13,3 9,9 15,9 10,4 50,4
1º quartil 12,7 19,3 6,7 13,4 47,9
4º quartil 16,0 4,8 24,6 8,7 45,9
Fonte: Convênio Dieese/Seade, MET/FAT e convênios regionais. PED
Nota: Grupo 1º Quartil= 25% das famílias com menor renda familiar.
Grupo 4º Quartil = 25% das famílias com maior renda familiar.
Nas regiões pesquisadas, conforme a Tabela 16, a tentativa de combinar a vida estu-
dantil com alguma ocupação mostra-se frustrada para parcela expressiva de jovens pertencen-
tes a famílias economicamente desfavorecidas.
Os dados trazidos pelo Dieese muito provavelmente explicam-se pela inevitabilidade
de os jovens mais carentes contribuírem para o orçamento familiar. Conforme a amostra apre-
sentada na Tabela 16, em São Paulo, por exemplo, 13,4% dos jovens de famílias de menor
renda encontram-se nessa situação; entre os mais favorecidos, isso acontece com apenas 8,7%
deles.
Resultados obtidos em outra pesquisa
22
, no mencionado estudo realizado pelo MEC
em parceria com a Unesco, reforçam as conclusões acima, ao mostrar que
jovens com até a 4ª série do ensino fundamental, 25,9% (2.834.349) indicam
serem eles próprios o principal provedor econômico de suas residências e
outros 20,4% (2.232.191) indicam ser o pai. Entre os jovens com ensino su-
perior, tais indicações têm suas porcentagens alteradas para 16,4% (568.616)
e 43,5% (1.504.888), respectivamente (2007, p. 317).
22
Juventude: outros olhares sobre a diversidade.
58
O abandono dos estudos também é mais frequente entre os jovens oriundos de famílias
com poder aquisitivo menos expressivo. Mais grave é constatar a elevada parcela de jovens
provenientes dessas famílias que sequer conseguiram continuar os estudos ou o trabalho, nem
ingressar no mercado de trabalho. Essa parcela de inativos, que se dedica exclusivamente aos
afazeres domésticos ou a outras atividades, atinge um patamar muito elevado, retrato de uma
situação injusta, que exige mudanças.
Instituições internacionais como a Unesco desenvolvem estudos sobre essa camada da
população, no intuito de orientar as implementações de políticas públicas com a intenção de
possibilitar a inserção dos jovens no mercado produtivo e proporcionar melhorias em sua qua-
lidade de vida.
Todavia, os dados apresentados nesta parte revelam a crueldade da dinâmica da lógica
do capital. Os jovens brasileiros, levados ao mundo do trabalho por razões de sobrevivência,
são obrigados a fazer escolhas que se inserem dentro de uma realidade econômica e social,
realidade esta que, por um lado, obriga a interrupção da escolarização, negada diante da ur-
gência de um salário, e, por outro, rechaça a falta de escolarização, obrigando esse jovem a
consumir conhecimento, o que não garante o emprego, considerando o alto nível de desem-
prego, bem como a precariedade do trabalho e o subtrabalho
23
. O jovem permanece, portanto,
inserido num ciclo vicioso de pobreza e exclusão.
A condição de inserção da juventude no mercado de trabalho é a efígie do modelo ca-
pitalista neoliberal responsável pela concentração de renda e pela acentuação da desigualdade
social.
3.3 - Ações governamentais para a juventude
Existe um interesse muito grande por parte dos órgãos governamentais pela juventude
brasileira. Essa preocupação não é exclusiva do governo atual. foi alvo de governos anteri-
ores, especialmente na década de 1990, no mandato de Fernando Henrique Cardoso.
A criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 13 de julho de 1990, é
representativa desse interesse, uma vez que induziu à formulação de políticas públicas, pro-
gramas e ações sociais destinadas às crianças e aos adolescentes.
23
Situações relativas aos ocupados com jornada de trabalho acima de 44 horas semanais, aos aposentados e
pensionistas que se mantêm ativos no mercado de trabalho, aos trabalhadores com mais de uma ocupação e ao
trabalho de pessoas abaixo de 16 anos de idade (POCHMANN, 2004, p. 397).
59
A partir do ECA, segundo Sposito, “programas e ações foram criados e não mais or-
ganizados pela ideologia do menor em situação irregular, mas pela nova e cidadã doutrina de
proteção integral aos adolescentes em conflito com a lei” (2003, p. 20).
De acordo com a autora, as ações que surgiram tinham como foco atender a questões
que levassem em conta a condição dos jovens em risco social, ou seja, questões da área da
saúde, da segurança pública, do trabalho e emprego.
Todavia, segundo Sposito (2003), de certa forma as ações desenvolvidas no governo
FHC apresentavam a condição juvenil como elemento problemático em si mesmo, o que re-
queria estratégias de enfrentamento dos problemas da juventude.
O governo atual, sob a presidência de Luís Inácio Lula da Silva, a partir de 2004, em
documentos oficiais, apregoa que “entender as singularidades e as peculiaridades das juventu-
des e garantir direitos a esta geração são fatores fundamentais para consolidar a democracia
no Brasil, com inclusão social” (BRASIL/MEC, 2006, p. 5).
Com esse pressuposto, no ano de 2004, foi criado um grupo interministerial, coorde-
nado pela Secretaria geral da Presidência da República, objetivando identificar os principais
programas federais existentes e, com isso, traçar um diagnóstico da situação do jovem bra-
sileiro. Essa ação governamental resultou na definição de uma Política Nacional da Juventu-
de, cuja implementação foi coordenada pela Secretaria Nacional da Juventude da Secretaria
geral da Presidência da República
24
e assessorada pelo Conselho Nacional de Juventude
25
.
Esse conjunto de ações envolve diretamente oito ministérios e seus respectivos programas,
como mostrado no quadro 4.
24
A Secretaria Nacional de Juventude está vinculada à Secretaria geral da Presidência da República e é responsá-
vel por articular os programas e projetos, em âmbito federal, destinados aos jovens na faixa etária entre 15 e 29
anos (BRASIL/PRESIDÊNCIA, s/d, s/p).
25
O Conselho Nacional da Juventude foi criado em fevereiro de 2005 e constitui um espaço de diálogo entre a
sociedade civil, o governo e a juventude brasileira. É um órgão consultivo que tem o objetivo de assessorar a
Secretaria Nacional de Juventude da Secretaria geral da Presidência da República na formulação de diretrizes da
ação governamental (BRASIL/PRESIDÊNCIA, s/d, s/p).
60
Quadro 4
Programas e projetos do governo Luís Inácio Lula da Silva para a juventude
Ministério Programa Público alvo
Adolescente Jovens Adultos
Desenvolvimento Social
e Combate à Fome
Projeto Agente Jovem de De-
senvolvimento Social e Humano
x x
Esporte
Programa Bolsa-Atleta
Programa Segundo Tempo
x
x
x
x
Desenvolvimento Agrá-
rio
Programa Pronaf Jovem
Programa Nossa Primeira Terra
x
x
Defesa
Projeto Rondon x X
Trabalho e Emprego
Programa Nacional de Estímulo
ao Primeiro Emprego
x
Cultura
Programa Cultura Viva x x X
Secretaria Nacional da
Juventude
Programa Nacional de Inclusão
de Jovens
x
Ministério da Educação
e Meio Ambiente
Programa Juventude e Meio
Ambiente
x
Ministério da Educação
Programa Brasil Alfabetizado x x X
Programa Escola Aberta x x X
Programa Escola de Fábrica x X
Programa de Melhoria e Expan-
são do Ensino Médio
x
Programa de Integração da Ed.
Profis. ao EM na mod. de EJA
x X
Programa Nacional do Livro
Didático para o Ensino Médio
x
Programa Saberes da Terra x X
Programa Universidade para
Todos
x X
Fonte: Guia de Políticas Públicas da Juventude, 2006.
Como se vê, o Programa Universidade para Todos, universo da presente pesquisa, in-
sere-se nesse conjunto de ações governamentais sob a tutoria do Ministério da Educação, que
tem em sua cadeira o ministro Fernando Haddad.
Segundo o Governo Federal, o entendimento de que a juventude é uma condição social
e de que os jovens são sujeitos de direitos, permeia as ações governamentais voltadas para a
juventude. Oferecer oportunidades e garantir direitos aos jovens, para que eles possam resga-
tar a esperança e participar da construção da vida cidadã no Brasil, é o discurso proclamado.
Como assinala Sposito, “as políticas sociais universais ainda precisam ser aprofunda-
das ao lado de um grande conjunto de direitos emergentes relativos à própria condição juve-
nil” (2003, p. 35).
A população jovem brasileira, disputada por tantos espaços sociais, mercado de traba-
lho, estudo, mídia, consumo, drogas, governo, está longe de alcançar os pressupostos de um
discurso de inclusão. Entretanto, muitas ações significam, para os jovens, possibilidades e um
sonho possível.
CAPÍTULO 4 - PROUNI: ALTERNATIVA POSSÍVEL
ANÁLISE DOS DADOS
Não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em
tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de ar-
bitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada
deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.
Bertold Brecht
Este capítulo tem como objetivo contextualizar e analisar as informações obtidas por
meio dos relatos dos entrevistados. Para isso, foi considerada a trajetória escolar, a possibili-
dade de continuidade nos estudos mediante condições econômicas precárias, a importância
dada à experiência universitária e a significação social dada ao Prouni pelos sujeitos que se
dispuseram a colaborar, permitindo com seus depoimentos a explicitação de relações entre a
formação universitária, a experiência familiar e escolar, a condição econômico-cultural e sua
formação como indivíduos.
Cabe dizer, segundo Vigotsky (1981) citado por Souza Filho (2008), que o desenvol-
vimento humano se dá a partir de experiências que proporcionem a criação de competências e
aptidões, oriundas das relações sociais. Conforme o autor, ainda em menção à Vigotsky, se
não houver essas experiências não haverá o desenvolvimento da consciência, da intenção, do
planejamento, entre outras funções psicológicas superiores.
Como já mencionado, os dados foram analisados com base no pensamento do filósofo
húngaro Geörge Lukács, tendo como eixo basilar as categorias de análise: formação pelo tra-
balho – sujeito enquanto ser social; reflexo na consciência; teleologias e alternativa.
O foco foi a significação da própria experiência e o papel do Prouni nessa experiência,
procurando articular a individualidade ”em-si” e “para-si” desses sujeitos com os conteúdos
apresentados nos capítulos anteriores sobre a política do ensino superior, o programa Univer-
sidade para Todos, a condição da juventude brasileira e o depoimento dos entrevistados.
Buscar identificar se a significação social que os personagens dessa história atribuem
ao Prouni ocorre na genericidade do “em-si” ou do “para-si” remeteu à discussão sobre o pa-
pel da família, do ambiente cultural em que cada um foi criado e ao estudo das respectivas
trajetórias escolares. A análise desses dados possibilitou a compreensão dos diferentes con-
tornos que demarcaram os processos de escolarização que, de certa forma, contribuíram
62
para a formação desses sujeitos, tanto na dimensão individual quanto nas esferas social e cul-
tural.
4.1 – O lugar social dos entrevistados. A experiência familiar
De acordo com Meihy:
Seja qual for a categoria de memória escolhida para verificação da i-
dentidade, é fundamental que se leve em conta o lugar social dos indi-
víduos ou grupos que projetam as versões. Os compromissos de clas-
ses sociais são, pois, os mais amplos e influentes de todos. São eles
que ajustam os indivíduos no quadro social (2005, p. 66).
Assim, falar do processo de escolarização de cada um dos entrevistados, bem como da
significação que têm para eles o Prouni, requer, antes de tudo, uma passagem pelo lugar social
ocupado por esses indivíduos.
“Eu não sabia que era pobre”, assim se expressou Tatiana ao reelaborar o passado.
Estudante da Escola Estadual Padre Anchieta, considerada, pela jovem e por sua famí-
lia, uma escola de “bom vel”, Tatiana escolarizou-se e criou-se entre os filhos de comerci-
antes do bairro do Brás, São Paulo, capital, com condições financeiras melhores que a de sua
família. Nesse período, os pobres que frequentavam a escola eram poucos e a menina estava
incluída entre eles, como mencionou: “éramos poucos, eu estava incluída neles”.
A infância e parte da adolescência vivida em meio a esse círculo social trouxeram con-
sequências: Tatiana não desenvolveu a consciência de pertencimento de classe, pois seus pais
nunca permitiram que os filhos percebessem suas reais necessidades. Conforme revelou:
“meus pais, para ser sincera, nunca deixaram perceber que eu era tão pobre”.
Para Tatiana, morar “no Brás, na Rua Muller, numa vila fechada, numa casa alugada
[...] um quarto e cozinha grandes” representa mais um dos fatores que simbolizam a preocu-
pação dos pais em não deixar transparecer aos filhos que pertenciam a uma classe social me-
nos privilegiada, o que era reforçado pelo grande esforço do casal para dar aos filhos o que
fosse necessário.
Na visão de Tatiana, a família “vivia super bem”, como pode ser constatado em sua fa-
la
63
[...]
Eu nunca soube o que era pedir um tênis e não ter, e mesmo quando ado-
lescente, quando surgiu Nike, esses tênis mais caros. A gente cresceu numa
vila fechada, com uma educação muito rígida. A gente dormia às sete da noi-
te, íamos para a escola, chegávamos, tomávamos banho e dormíamos. Brin-
quedos à vontade, mesa fartíssima, graças a Deus.
À época, a menina não tinha consciência do parco salário recebido pelos pais e da sig-
nificância de morar em uma casa de aluguel. Hoje, adulta, ao ressignificar essa experiência
vivida na infância, valora:
a gente cresceu com muito luxo, perto do que a gente enxerga hoje co-
mo pobreza, muito luxo”.
Os pais de Tatiana escolheram apresentar um mundo com possibilidades de consumo.
Linha telefônica, artigo de luxo naquele tempo, primeiro carro, roupas, clube, festas, enfim,
tudo que fizesse os filhos se sentirem em uma realidade social compatível com a daqueles
com quem conviviam, os filhos de comerciantes de classe média.
Tatiana considera que teve uma criação muito tranquila, tanto em casa quanto na esco-
la. Disse que sabia existir pobreza, violência, drogas, porém realidades que passavam distan-
tes de sua vida. Contou:
Eu sabia que existia. Meus pais me criaram com muita consciência de que
existia pobreza, de que existia muita gente que passava fome, que tinham
menos do que nós, que nós tínhamos que valorizar o que tínhamos. Essas
coisas eram muito longe de mim [...]. A gente tinha vizinhos que passavam
mais necessidade que a gente, mas a gente não percebia, porque minha mãe
nos ensinou a dividir absolutamente tudo. Então, todos os brinquedos que
nós tínhamos eram excelentes, eram da Estrela, a gente dividia com a crian-
çada. A gente não percebia que as crianças não tinham, porque para a gente
não fazia diferença elas terem ou não. Nós tínhamos e era o suficiente para
todo mundo. Assim como comer, a gente ia lanchar, lanchava todo mundo.
É interessante notar que a consciência de pobreza existia, mas longe de sua casa. Os fi-
lhos de Dona Neuma ouviam dizer que havia pessoas que passavam fome, vizinhos que pas-
savam necessidade, amigos sem brinquedos. Aprenderam a dividir e não sabiam diferenciar o
ter e o não ter. Por outro lado, e não menos intrigante é o posicionamento de Tatiana quanto à
condição da pobreza:
Hoje, como adulta, eu vejo que não eram tão longe, foi com muito esforço
dos meus pais que nos protegeram dessa pobreza que nos rodeava a todo ins-
tante.
64
A fala da jovem sugere uma consciência estereotipada da pobreza, uma vez que consi-
dera válida a tentativa dos pais de protegê-la contra a pobreza como se esta fosse passível de
proteção.
Ao avaliar o passado, concluiu:
Eu cresci achando que eu não era tão pobre. Na verdade, eu era sim, porque
a faixa etária, quer dizer, a faixa social era de pobreza sim, num nível de
classe média baixa. Os pais trabalhavam, mas não tinham um emprego estru-
turado, digamos assim, eram empregados terceirizados que ganhavam um sa-
lário, se esforçavam muito para nos dar tudo. Morávamos de aluguel, a pri-
meira linha telefônica que minha mãe comprou foi com muito esforço na-
quela época, o primeiro carrinho que ela comprou foi com muito esforço, era
um fusquinha, sabe? Era tudo pouquinho, mas parecia muito, perto do mun-
do em que eu vivia. Na escola, eu nunca, nunca, nunca me senti diferenciada
dos meus amigos, que eram filhos de donos de lojas, porque vestíamos a
mesma roupa, íamos às mesmas festas, à praia, ao clube. Nós éramos sócios
do Corinthians, desde pequenininhas.
A consciência da realidade à qual de fato pertencia foi adquirida, mas não antes de seu
pai morrer. Nas palavras de Tatiana: “eu vim perceber que era pobre depois que meu pai fale-
ceu”.
Tatiana é um exemplo de uma vivência e convivência mascaradas pelo sentimento de
proteção produzido pelo distanciamento de sua própria classe, como ela lembra: “era uma vila
fechada de portão trancado e tudo”. Com a morte do pai, Tatiana precisou trabalhar para aju-
dar a mãe a cuidar de suas irmãs.
Quando meu pai faleceu, eu tinha 18 anos de idade e nunca tinha trabalhado.
Eu inventei de trabalhar com 17 anos, numa lojinha, mas cansei, trabalhei,
cansei e falei para o meu pai que não queria trabalhar, e ele disse para que eu
saísse e fosse estudar. Na verdade, o que meus pais queriam é que a gente es-
tudasse, isso sempre assim, eles se esforçavam muito para isso, minha mãe
incentivava muito. Meu pai, na maneira dele bem simplória, com a quarta sé-
rie primária, nunca deixou de incentivar a gente. Então, quando meu pai fa-
leceu, eu era uma menina de 18 com cabeça de 15 ou 16 anos.
E, assim, a menina de 18 anos com cabeça de 15 ou 16 anos foi obrigada a inserir-se
no mercado de trabalho, forçada a entrar em contato com a pobreza, com a realidade, injusta e
desigual. Talvez, tenha percebido que contra a pobreza não há proteção.
Wendy, opostamente a Tatiana, originário de uma família muito humilde, desde cedo
conheceu uma vida difícil.
65
Na infância, sob a tutela autoritária do pai, foi obrigado a trabalhar na roça e a vender
bananas. Quando adolescente, com 16 anos, por falta de opções na cidade em que morava
(Itabaianinha), diante das dificuldades financeiras que se apresentavam cada vez com maior
intensidade e também da necessidade e vontade de continuar os estudos, não teve escolha:
começou a trabalhar como costureiro, mesmo não gostando da profissão.
A fala de sua mãe de que os estudos o levariam a uma vida melhor é ouvida desde ce-
do. Apesar de se mostrar sem vontade ou vontade para estudar, busca intermitentemente um
diploma de curso superior como única saída para uma vida marcada pela falta de opção. Para
conseguir um emprego melhor e ser qualificado para o mercado, ingressou no ensino superior,
com a crença de que “através da faculdade eu conseguiria um emprego por causa da qualifica-
ção”.
Wendy viveu e ainda vive sob a pressão das limitações financeiras graves, com muito
sacrifício. A educação é muito valorizada, sendo considerada como capaz de propiciar melho-
res condições de vida.
Todavia, o trabalho infantil, juntamente com o comportamento autoritário do pai, que
considerava os estudos totalmente desnecessários, “coisa de vagabundo”, muito provavelmen-
te interferiram na vida acadêmica de Wendy, que se assume hoje como uma pessoa que não
estuda: “não leio nada em casa, até as meninas da sala perguntam como eu consigo, e eu falo:
‘meio que embromeition’”.
Atualmente, mesmo tendo galgado os primeiros degraus da faculdade, continua na
área da confecção, trabalho do qual já se cansou e que não realiza enquanto profissional. Con-
forme pontuou: “eu não gosto dessas coisas de linha de produção, sempre é muito puxado,
não é fácil, e também tanto tempo que já me ‘encheu’”.
São Paulo, a megalópole, não abriu para Wendy muitas oportunidades, como revela o
depoimento do rapaz:
Nos primeiros três meses eu recebi o seguro-desemprego. Depois fiquei en-
rolando e não conseguia emprego. Eu também não queria mais costurar. Eu
tentava em outra área, mas não conseguia, porque eu tinha quatro anos de
registro na área da costura e as empresas falavam que não tinha nada a ver
com o que eu queria.
O mercado de trabalho, apesar de parecer promissor, não ofereceu a Wendy muitas
condições de inserção, como ele vislumbrava. E, assim, por não apresentar experiências signi-
ficativas em outros ramos de atuação, é obrigado, até mesmo por uma questão de sobrevivên-
cia, a permanecer naquilo que tanto se esforça para sair: na área da confecção.
66
Elton nasceu, cresceu e ainda vive em uma mesma comunidade localizada na periferia
de São Paulo. Por influência do modo de criação de sua mãe, reforçado pela sua irmã, ele é
muito educado, qualidade observada por esta pesquisadora. Cresceu com seus amigos da
mesma rua e tinha nos jogos de futebol sua maior diversão. Além do futebol, também lembra
que gostava de assistir à televisão.
Hoje avalia suas opções de lazer, principalmente no tocante à televisão, como sendo
aberrações ou besteiras. Carregado de uma crítica aparentemente moralista, na verdade nega o
que fez parte integrante de sua infância e de tantos outros jovens: “às vezes a gente ficava em
frente à televisão, mas a televisão também é outra aberração. Se as pessoas soubessem o quan-
to a televisão faz mal... Eu gosto, mas não assisto muito não, na verdade assisto mais a TV
Cultura”.
Quando chegou a juventude, formou um novo grupo de amizades, o que o influenciou
na sua formação política e filosófica. Elton e a nova turma de colegas reuniam-se na casa do
professor Jarbas para discutir política e filosofia. Essas reuniões instigaram-no a buscar co-
nhecer novos assuntos, que para ele até então eram desconhecidos.
Jarbas é professor de Sociologia, Filosofia, História e Geografia. Formado pela Uni-
versidade de São Paulo (USP), acreditava que mudanças sociais, políticas e econômicas
poderiam acontecer a partir das mudanças de pensamento.
Foi fora da escola que Elton teve a experiência de buscar o conhecimento como forma
de participação. O gosto pela leitura e pelo estudo não se deu pela via da escola, mas por ami-
gos e professores, em rodas de conversa informais, como rememora:
Com 16 ou 17 anos, quando eu, assim que coloquei o fora da escola,
quando terminei, é que conheci o pessoal. E eles falavam coisas absurdas
que eu “nossa”, tínhamos uma roda de amigos assim, que ficavam conver-
sando sobre política, filosofia, eu pensava: o que esses caras estão falando?
Quando terminava a conversa, eu chegava aqui em casa, pegava o livro de
história.
E foi assim,
nas reuniões com seus amigos, que Elton disse ter aprendido a gostar de ler
e de estudar.
Eu via (poxa) que coisa absurda! E eu comento com meus amigos até hoje
que eu aprendi a gostar de estudar de ler, coisas relacionadas a história, lite-
ratura, quando eu saí da escola, porque fui meio que motivado pelos meus
amigos a buscar uma coisa mais diferenciada, consegui enxergar o que está
por trás de muita imbecilidade televisiva, sabe?
67
A cada encontro, estava Elton, achando tudo engraçado, um criticava o outro, um
ficava bravo porque recebeu críticas e não gostava, e isso acabava influenciando alguma coisa
na pessoa, porque a pessoa ficava ali pensando: poxa, que interessante”.
Os encontros com o professor e demais integrantes do grupo incentivaram Elton a
busca por respostas, ou pelo menos entender as discussões mantidas pelo pequeno grupo. O
interesse de Elton confirma que a inserção dos indivíduos em diferentes espaços, “o envolvi-
mento cultural com os grupos aos quais pertencem, orientam, limitam ou ampliam as suas
opções, confrontos e visões do mundo no correr do tempo” (FONSECA, 2006, p. 184).
De Itaquaquecetuba para a Paraíba, da Paraíba para Caraguatatuba, de Caraguatatuba
para a Paraíba e da Paraíba para Itaquaquecetuba, essas mudanças constantes de um lugar a
outro marcam a vida de Kelly.
As lembranças mais distantes da infância e da adolescência, com períodos de idas e
vindas, em busca de melhores condições de vida, permeiam as reminiscências dessa entrevis-
tada, uma criança criada pelos avós paternos e na companhia do pai, que não conheceu sua
mãe, como contou:
Eu não conheço a minha mãe. Ela mora aqui perto da minha casa, mas eu
não a conheço. Ela mora no Itaim e eu em Itaquá. É perto. Eu a visitei
muitos anos, mas se eu a vir eu não a conheço. Eu fui na casa dela uma
vez. Depois ela se mudou de e a gente se desencontrou, agora ela voltou
para lá.
Em decorrência das necessidades postas pela vida à sua família, a jovem c
omeçou a
trabalhar aos 14 anos e acumulou desde então uma longa lista de profissões, como: atendente
em sorveteria, atendente em loja de noivas, babá, costureira e monitora em escola de informá-
tica. Sua rotina era trabalho e estudo.
Nas horas vagas, viajava com o grupo de amigos do bairro para cidades vizinhas em
busca de diversão nas baladas ou divertia-se em parques de diversão da sua cidade. Contou
com alegria:
A gente ia para o parquinho. Parquinho de diversão. Então, a gente ia para
lá, eu tinha amigos que eram DJ em salão, nós íamos também para o salão,
íamos para a pizzaria, o normal, às vezes íamos para a praia no final de se-
mana, uma porção de coisas.
“Uma porção de coisas”, para Kelly, significa os parquinhos, as baladas e, às vezes,
idas às praias. Atividades suficientes e pertinentes ao mundo possível. Não em nenhum
68
momento da fala dessa entrevistada, ou de outras entrevistadas, uma necessidade ou um sen-
timento de falta. Seu modo de pensar, de agir e de se transportar a um futuro são pertinentes
com os pensamentos de seu meio.
Resultado de uma vida marcada por rupturas familiares e constante necessidade de i-
das e vindas, Kelly vê na persistência o segredo para o sucesso.
Os alunos ficam dormindo na sala, dormindo literalmente. Então, pode até
ser cansaço. Mas eu também me canso. Eu trabalho, eu acordo cinco horas
da manhã, chego ao trabalho às sete horas, porque da minha casa é muito
longe. Todo dia eu acordo às cinco horas, e é aquela correria.
Beatriz nasceu, cresceu e ainda vive em Ribeirão Pires, interior de São Paulo. Consi-
dera-se uma pessoa tímida e contou que desde muito nova, em decorrência da necessidade,
responsabilizou-se pelos afazeres domésticos e pelos cuidados com os irmãos mais novos. Na
ocasião, sua mãe, única mantenedora do lar, precisava trabalhar fora para sustentar a família.
Em tom de desabafo, Beatriz disse que, em dado momento de sua vida, a única coisa que sa-
bia fazer era cozinhar.
O contexto no qual cresceu, levou-a a pensar que, após os estudos, se casaria e criaria
seus filhos.
Eu não falava, não falava em fila de banco, não pedia, não comprava nada na
farmácia, eu era muito tímida, eu era muito, assim tinha uma autoestima bai-
xa, muito baixa, eu não acreditava em mim, eu fazia tudo o que as pessoas
me pediam para não contrariar ninguém, para que as pessoas continuassem
gostando de mim [...] e achava que era isso e só, e que a minha vida é isso, e
que depois eu ia casar, quem sabe alguém me quisesse, e eu pensava em cri-
ar os meus filhos.
Beatriz, aos 19 anos, ao terminar o noivado, sente desmoronar o seu mundo de certe-
zas. Com esse término repentino, “o meu motivo era morrer, porque eu não via outro caminho
para mim a não ser casar e cuidar de casa”.
No período, a jovem, incentivada pela mãe, começou a fazer aulas de teatro. Nesse
ambiente, sua mãe via, além da possibilidade de superação, a oportunidade de conhecer um
mundo até então desconhecido e novas formas de encarar a realidade.
Beatriz contou um pouco das suas primeiras sensações ao entrar no teatro: “na hora em
que eu entrei assim, porque eu nunca tinha entrado em um teatro na minha vida, quando eu
entrei no teatro eu falei: meu Deus do céu, que mundo é este?
69
Na entrevista, foi possível observar que o teatro funcionou como fronteira entre a falta
de perspectiva e um mundo cheio de possibilidades. A jovem transformou-se em uma multi-
plicadora da arte da representação. Suas palavras mostram a importância que atribui à função
que assumiu: “com perfil para poder capacitar e continuar com o trabalho de multiplicação, eu
fui escolhida, graças a Deus. Fui escolhida e no ano seguinte comecei com o trabalho de
capacitação”.
O ingresso no mundo teatral trouxe a Beatriz oportunidades de se dedicar a alguns ser-
viços sociais. O trabalho realizado, sempre por meio do teatro, objetivava resgatar o jovem
adolescente da camada mais vulnerável da sociedade, que em busca de um primeiro emprego
vê-se tolhido pela timidez, pela inexperiência e pelas condições precárias de trabalho.
A arte-educação transformou a vida e o olhar de Beatriz, dando-lhe novo ânimo. É
possível perceber o entusiasmo em suas palavras:
O que me dava prazer era a arte-educação. Era ver a transformação dos meus
alunos, que entravam mudos e saiam falantes, como eu entrei muda e saí fa-
lante (risos). Sabe, para mim era isso, era ver o meu aluno no palco. No final
do trabalho os jovens estavam falando sem timidez, e as mães ficavam muito
agradecidas, elas diziam: “você mudou a vida do meu filho”. Ele conseguiu
arrumar um emprego. Ele consegue se expressar, eu me emociono em
lembrar. Eu vi que eu tinha que fazer isso, tinha que fazer isso, arte-
educação.
A arte-educação, segundo Beatriz, proporcionou-lhe uma forma crítica e contestadora
de ser, o que pode ser creditado à influência desse grupo social definido, o teatro. De adoles-
cente tímida, com baixa autoestima e sem perspectiva de vida, Beatriz avalia que se transfor-
mou em uma mulher que diz não ter medo da vida. De acordo com suas próprias palavras:
Eu sou assim, eu não tenho medo de perder território, eu gosto de dividir, eu
acho que o objetivo, o meu objetivo, quando eu fui fazer teatro, é isso, é po-
der pegar o que me fez crescer como pessoa e dividir, socializar mesmo.
Karen, a mais jovem de todas as entrevistadas, cresceu no centro da cidade de São
Paulo. Conviveu com amigos que moravam em outros bairros, distantes, como relatou: “meu
grupo de amigos, incrível, nunca foi daqui, todo mundo é da Zona Leste, uns de Itaquera ou-
tros de Guaianazes, Cidade Tiradentes, todo mundo sempre é de muito longe”.
Essas amizades são fruto das relações vividas em sala de aula, pois a escola, por estar
muito próxima da estação de metrô, atrai alunos de outras regiões. O grupo tinha um forte
vínculo: “a gente se via todo dia, todo dia. Virou uma família, praticamente todo dia mesmo”.
70
Porém, um fato ocorrido com alguns integrantes da equipe, no terceiro ano do ensino médio,
trouxe alguns problemas à união da equipe, como relatou Karen:
No terceiro ano, quando separaram quatro alunos para uma sala e os outros
quinze em outra sala, foi uma comoção nacional. A diretora quase expulsou
todo mundo, porque foram todas as mães, ninguém queria ir mais para a es-
cola. As mães se ligaram e combinaram de ir conversar com a direção da es-
cola, tentar mudar. Doce ilusão! A diretora disse aos pais que, se nós não
voltássemos para a escola, tudo bem, poderíamos ficar em casa e repetiría-
mos de ano. Então todo mundo voltou para a escola.
O desejo de participar de um cruzeiro de formatura foi o que motivou Karen a procu-
rar seu primeiro emprego. Sobre o anseio pela viagem e sua ligação com a primeira inserção
no mercado de trabalho, contou:
Eu comecei a trabalhar aqui bem perto de casa, mas eu trabalhava para ter
meu dinheiro, porque já no 2° ano do ensino médio meus amigos já estavam
falando em um cruzeiro de formatura que ia ter no final. No ano eu disse
para minha mãe que eu queria ir, mas minha mãe disse que “não podia pa-
gar”, aí eu falei: “posso trabalhar e eu pago”, e ela concordou, e aí eu pensei:
agora vou ter que trabalhar.
Karen, com o salário que recebia, pagou o cruzeiro e, posteriormente, saiu do empre-
go, com o objetivo de treinar handebol, uma de suas paixões. Porém, isso acabou não aconte-
cendo: a jovem não se dedicou ao esporte, optou por continuar trabalhando. Manter-se finan-
ceiramente independente era essencial, pois “você se acostuma a ter dinheiro, aí, depois, vol-
tar a ficar dependendo do dinheiro de pai, de mãe, e nem sempre eles podem dar... Então eu
pensei: eu preciso de dinheiro”.
Com o término do ensino médio e o ingresso no mercado de trabalho, os encontros
com os amigos tornaram-se menos frequentes. A leitura que Karen faz é que agora todos tra-
balham, portanto, nem sempre têm tempo para uma reunião com os colegas, como antes.
Quando acaba a escola, a gente continua se falando do mesmo jeito, um pou-
co menos, porque agora praticamente todo mundo trabalha. Antes tinham
uns mais boyzinhos que não trabalhavam, mas agora todos trabalham.
Hoje, Karen considera que o ingresso no ensino superior é um dos fatores que exigem
a busca de um cargo no mercado de trabalho
71
Hoje, boa parte está na faculdade, então tem um gasto e nem todos têm bol-
sa. eu tenho bolsa, e todos que estão na faculdade pagam. Uma das mi-
nhas amigas, a Maira, até trancou o curso na Faculdade Osvaldo Cruz, por-
que era muito caro. Então trabalham, ajuntam para pagar a faculdade.
Para Karen, seu grupo é formado por aqueles que precisam trabalhar e por aqueles que
ela denomina de “boyzinhos”, sendo o trabalho importante critério de classificação. Indagada
pela entrevistadora porque os considera “boyzinhos”, respondeu:
Porque eu, a Camila e a Laura, deixa eu ver quem mais? O e o Chiqui-
nho, sempre trabalhamos, porque queríamos ter dinheiro quando precisásse-
mos, por vários motivos, mas tinha outras pessoas, também muito queridas,
mas que não trabalhavam porque não precisavam.
Ao analisar porque os “boyzinhos” não precisam trabalhar, Karen elencou alguns ele-
mentos:
Porque os pais tinham mais condições, ou eles também não queriam, ou não
precisavam. Também eu não vou falar que estou indo trabalhar porque preci-
so, porque o tenho condições, mas eu queria trabalhar, queria meu dinhei-
ro e eles não. Quando queriam, pediam para os pais, e os pais davam, não
precisavam correr atrás do dinheiro deles.
Em tom de brincadeira, Karen revela que hoje ironiza o cansaço que seus amigos de-
monstram, e relembra que, já na escola, mantinha um ritmo de trabalho que a deixava também
cansada.
Hoje, por exemplo, quando a gente marca uma coisa e um deles fala que está
cansado, eu falo: “está vendo, quando você marcava na escola e eu falava
que estava cansada, está vendo como é”?
Karen, apesar de sua pouca idade, considera-se muito responsável. Relegou suas ativi-
dades esportivas para um plano secundário, pois no trabalho e nos estudos sua responsabi-
lidade maior. Em suas palavras, “hoje em dia, tudo mudou”. Acredita saber priorizar suas
atividades, e neste momento não há lugar para dedicação total ao esporte.
De todos os entrevistados, Eduardo carrega em suas reminiscências de vida uma ver-
dade que constrói de forma bastante complexa e, muitas vezes, de difícil leitura. Na maior
parte das vezes, sua fala vem impregnada de autoexplicação e justificativas, tendo exigido
cuidado desta pesquisadora na análise de sua fala, para não correr o risco de interpretações
equivocadas e injustas.
72
A verdade construída por Eduardo é o reflexo da relação, também complexa, entre
seus familiares. O que, talvez, não poderia deixar de ser, uma vez que
A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a famí-
lia, com a classe, com a escola, com a igreja, com a profissão: enfim,
com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse
indivíduo. As instituições sociais exercem poderosas influências no
que será lembrado e no modo como será lembrado (BOSI, 1983, p.
17).
O depoimento de Eduardo revela uma infância e adolescência assinaladas pela consci-
ência da diferença, o que ficou muito nítido cada vez que fez distinção entre ele e seu irmão.
Nas palavras do depoente, seu irmão “era estruturalmente um trabalhador”, e ele, um intelec-
tual; enquanto ele era um estudioso, seu irmão não conseguia sentar atrás de uma carteira es-
colar.
Eduardo considera-se um “estudante nato”. Seu irmão aprendia tudo fazendo, “conse-
guia fazer qualquer coisa, mas não verbalizava diante do meu pai, era uma coisa a autoridade
que o meu pai exercia sobre ele”.
Nessa divisão entre o fazer e o pensar, Eduardo deixou clara a construção de um mun-
do bipolar e o lugar que ocupa nesse mundo: “então o meu irmão era submisso, resignado, e
eu era o crítico, revoltado. Duas personalidades completamente diferentes”.
Esse confronto parece ter gerado um conflito interno que, apesar de passado, permane-
ce vivo na memória de Eduardo, como pode ser percebido em seu depoimento:
Eu não sei trabalhar. Eu não sei fazer nada. Eu tinha uma constituição física
muito frágil, pouco disposto para trabalhos físicos. Meu pai exigia muito do
meu irmão; em contrapartida, ele me deixava de lado. Então enquanto o meu
irmão aprendia fazendo, eu aprendia olhando, não tinha o mesmo desempe-
nho que ele, eu gastava mais tempo raciocinando para levar menos tempo
para fazer.
Eduardo parece entender que o pai, considerando as diferenças de modo de ser de cada
um dos irmãos, não acreditava nas suas potencialidades: “era um sistema em que o meu pai
não acreditava muito, não dava muita credibilidade para ele (para o meu sistema). Mas sem-
pre funcionou para mim, pensar mais para fazer menos besteira, sempre foi a minha política”.
O não conformismo de Eduardo extrapola os limites de sua casa, em uma busca, como
ele mesmo diz, pela vida, porém sem nenhum vínculo de pertencimento:
73
Socialmente, vendo tudo, tudo que pode ser visto em uma cidade como São
Paulo, eu dormi em algumas calçadas desta cidade por pura opção, não que a
situação me obrigasse, mas, porque eu não tinha um lugar em que eu quises-
se estar, eu não queria estar em casa, eu não podia estar na escola. Não tinha
como ter um serviço que me sustentasse a vida, fazia as minhas contas, todas
as minhas contas davam em nada, eu vou gastar tanto aqui, tanto ali, tanto a-
li, tanto ali, eu vou trabalhar tanto, mas para quê, em função do quê? Era
mais fácil eu trabalhar onde eu estivesse por um prato de comida.
Foi no exército, corporação de grande relevância na vida de Eduardo, que ele teve a
chance de começar a reestruturar sua vida. Como ele mesmo diz: “e eu fui me estruturando
dentro do exército, a minha válvula de escape era trabalhar com os animais, uma coisa que eu
fiz muito bem”.
Considera as relações sociais passíveis de corrupção:
Eu acredito que o poder corrompe muito mais, o poder corrompe muito mais
do que o dinheiro, muito mais, o poder corrompe em qualquer nível, ele não
depende da capacidade que o indivíduo tem de mexer com o dinheiro. Se ele
tiver poder, ele um jeito de melhorar uma situação, ou piorar uma situa-
ção.
No exército, Eduardo teve a oportunidade de aprender a trabalhar com os cavalos.
Após o exército, ele se tornou professor de equitação em uma instituição, segundo ele, pode-
rosa: “trabalhava em um meio muito poderoso, muito poderoso mesmo, era uma coisa acima,
em nível de fechado”, como fez questão de frisar. Todavia, contou que, ali dentro, novamente
mudou as relações estabelecidas ao tentar popularizar um aprendizado que, segundo ele, era
próprio da elite:
Para mim não, eles pagariam se eles perguntassem para qualquer um dos ou-
tros aquilo, seria uma consulta com psicólogo, quarenta minutos, uma hora,
psicoterapeuta, assim que funciona também dentro desta função, e eu não me
incomodava com nada, se alguém tocasse no meu ombro e me perguntasse
alguma coisa, eu respondia automaticamente, então o que eu fazia? Eu tor-
nava vulgar um conhecimento que deveria ser restrito, pois para eles deveria
ser restrito, era uma questão de poder, e para mim o poder estava no transmi-
tir, então isto me colocou filosoficamente no sentido contrário ao dos indiví-
duos que trabalhavam comigo.
Eduardo c
ontou que, quando era policial militar, “por um descuido da vida [...] eu saí
da polícia, eu saí da situação oposta, eu saí de policial para ser um preso”. Nesse ambiente
Então, eu já convivia com o embate, na minha filosofia de vida, já dentro da
polícia há nove anos, ou seja, não é porque eu estava na situação de ter o po-
74
der que este poder conseguia me corromper, a briga nem era com o sistema,
era comigo mesmo, então onde você consegue sustentar os seus ideais, inde-
pendente da função que você está ocupando, e eu posso dizer que consegui,
o meu ponto de vista já era humanista na função de polícia, num dado mo-
mento me vejo como preso, uma coisa do outro lado do sistema, do outro la-
do da parede, do outro lado da moeda, ou qualquer outra coisa que possa es-
tabelecer essa diferença, se bem que dentro de uma eu descobri que todas as
situações o prisões, eu aprendi que depende de como você as encara, se
você encarar com liberdade você não é livre como você faz os outros li-
vres, se você se prender dentro dela, até sapateiro consegue prender os ou-
tros, dentro da sistemática em que ele se prende, que ele se impõe e impõe
aos outros.
Eduardo considera que não se adequa às convenções sociais e estabelece uma relação
de oposição, demonstrando um espírito bastante contestador em relação à sociedade. Mesmo
dentro do presídio, continuou a se opor ao que ele chama de sistema:
Então eu comecei a fazer o que eu fiz a vida inteira, caçar encrenca de novo,
não porque eu não goste do que eu estou criticando, as pessoas o aceitam
as críticas. Então eu fui questionar poderes, poderes arraigados dentro da es-
trutura, institucionalizados por pessoas de dentro e de fora daquela estrutura.
Eu, como um remanescente nativo da ditadura, estava lidando com ferra-
mentas que conhecia de cor e salteado; contra fogo, use fogo, contra água,
use água, e assim por diante, use as próprias ferramentas do inimigo contra
eles mesmos, e vai se acomodando aos poucos, e se usar uma arma meio es-
quisita ele vai pensar: opa, o cara está contra mim, quem não está pró está
contra, então o sistema não aceita muitas críticas. Como eu tinha de sobrevi-
ver dentro, e sobreviver incluía mais a mente do que o corpo, o natural
temor diante a morte, eu pensei: se funcionar está bom, se eu for para outro
lugar pelo que eu sou eu morro, então não pode ficar pior do que está. O
bendito do tempo que a gente passa dentro de um distrito é totalmente perdi-
do, e ele acaba sendo contraproducente quando você vai para um sistema pe-
nitenciário, porque já vai institucionalizado, você vai com medo, você já
cria tensão quando chega. É como ir a um matadouro: você vai cutucando o
boi, cutucando o boi com aquele esporão elétrico, ele chega no estado de
tensão tal que se você soltar ele e não matá-lo, não será mais o mesmo boi
que entrou, é isto que acontece com o ser humano.
Eduardo, com uma crença fiel em sua filosofia de vida, buscou, mesmo dentro da pri-
são, sustentar seus ideais humanistas. Para ele, liberdade, corrupção, direitos, justiça, injustiça
não são somente palavras, mas conceitos que acredita serem pessoais e construídos no decor-
rer de sua trajetória de vida.
75
4.2 – A escolarização
Histórias contadas, histórias omitidas, mas que
podem ajudar-nos a ver o indivíduo em relação com a história de seu tempo,
permitindo-nos encarar a intersecção da história da vida com a história da
sociedade, esclarecendo, assim, escolhas, contingências e opções com que se
depara o indivíduo (GOODSON, 1992, p. 75).
Essas histórias contribuem para a reconceptualização dos estudos sobre a escolaridade
de cada um dos entrevistados.
Sobre o processo de escolarização, quanto ao ingresso e término no ensino fundamen-
tal, a análise dos depoimentos mostrou a seguinte situação:
Tabela 17
Do ingresso ao término do ensino fundamental
Nome Idade
Nascimento Ensino Fundamental
Karen 18 anos 1991 1998 a 2008
Emília 22 anos 1987 1994 a 2001
Kelly 22 anos 1987 1994 a 2001
Rodrigo 23 anos 1988 1993 a 2000
Elton 26 anos 1983 1990 a 1997
Wendy 27 anos 1982 1992 a 1999
Beatriz 31 anos 1978 1985 a 1992
Tatiana 31 anos 1978 1985 a 1992
Eduardo 46 anos 1963 1970 a 1976
A maioria dos entrevistados cursou o ensino fundamental durante a década de 1990,
com exceção de Karen, a mais jovem, e de Eduardo, Tatiana e Beatriz, os mais velhos. Estu-
daram num contexto marcado por mudanças no cenário político nacional e internacional.
As reformas e projetos educacionais da década de 1990 estavam afinados, como sali-
enta Patto (2005), com as metas educacionais negociadas pelas agências multilaterais. As me-
tas oficiais, no que se refere à educação, objetivavam a universalização do ensino fundamen-
tal, a melhoria nos índices dos resultados do rendimento escolar e o barateamento dos inves-
timentos públicos em educação.
76
O período que se estende de 1990 a 1994, em que sucedeu o afastamento de Collor de
Mello e a posse de Itamar Franco na presidência do Brasil, coincidiu com a realização, em
Jomtien, Tailândia, da Conferência de Educação para Todos (1990), marco político e concei-
tual da educação fundamental, promovida pela Organização das Nações Unidas para a Educa-
ção, Ciência e Cultura (Unesco), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), Banco Mundial e Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) (LIBÂNEO,
2005, p. 94).
Na ocasião dessa conferência, quando da aprovação da Declaração Mundial de Educa-
ção para Todos, foram estabelecidas prioridades para a universalização do ensino fundamental
nos países do Terceiro Mundo, com o objetivo claro de atender às demandas e às necessidades
da nova forma de modernização capitalista, uma vez que princípios como eficiência, equidade
e qualidade eram as palavras de ordem, como se constata em documentos como: Satisfação
das necessidades básicas de aprendizagem: uma visão para o decênio de 1990; nos documen-
tos da Unesco: Transformação produtiva com equidade (1990) e Educação e conhecimento:
eixo da transformação produtiva com equidade (1992).
A educação e o conhecimento são vistos como pedra angular e eixo de transformação
produtiva e do desenvolvimento econômico no novo processo de estruturação do capital, em
que não há espaço para o indivíduo não qualificado. Desqualificação é aqui uma nova forma
de exclusão do processo produtivo. Há, então, uma crescente demanda por qualificação. Daí a
ênfase no discurso da importância da universalização do ensino fundamental.
O investimento em educação, como aponta o Banco Mundial, “permite o aumento da
produtividade e do crescimento econômico” (LIBÂNEO, 2005, p. 95), o que reflete a tendên-
cia de uma gica economicista, e o ajuste do sistema educativo tem como objetivo último a
adequação do sistema escolar às demandas e exigências do mercado.
Todavia, o paradoxo é grande. De um lado, -se o reconhecimento da educação para
o mundo do trabalho e para o desenvolvimento da economia. De outro, assiste-se “a desneces-
sidade crescente da instrução pública como formadora de mão de obra, num cenário de de-
semprego estrutural” (PATTO, 2005, p. 10).
Como afirma Nosella: “o cidadão da década de 90 é como um tecido entrelaçado pelos
fios da ideologia que proclama uma sociedade sem trabalho, sem história, sem utopia” (2005,
p. 16). Um indivíduo que a partir da “constatação de que vivemos em uma sociedade de traba-
lhadores sem trabalho” (2005, p. 62), sofre “o traumático fenômeno do fim do emprego”
(2005, p. 62).
77
Com isso, nos anos de 1990, o aprofundamento da perspectiva da educação como um
produto que se compra, e não como um direito universal, atinge níveis insuportáveis e, com
isso, “o que se assistiu foi a derrocada fragorosa da escola como lugar de aquisição de conhe-
cimentos e de capacidade de refletir. Esse desmantelamento [...] recentemente tornou-se do-
mínio público: hoje é senso comum que a maior parte dos diplomados pela escola pública de
primeiro e segundo graus mal sabe ler, escrever e fazer as quatro operações” (PATTO, 2005,
p. 10).
O que se assiste hoje é
a ditadura do pensamento único; o instrumentalismo triunfante; [...]. Minis-
tros e secretários da educação buscaram, como regra, a melhoria das estatís-
ticas educacionais e o barateamento dos investimentos públicos em educa-
ção. Como cortina de fumaça, a retórica da inclusão escolar [...] e de uma
política educacional pautada em crescente e espantoso descaso pela forma-
ção escolar (PATTO, 2005, p. 10).
Vê-se aqui o desprezo total do conhecimento como aspecto fundamental para a forma-
ção plena do indivíduo, sendo esse conhecimento direcionado aos interesses do capital, na
conjuntura político-econômica na qual o Brasil se insere.
É possível perceber que a implementação de políticas públicas para a educação gera
algumas modificações no sistema educacional brasileiro. Como aponta Oliveira (2007), o sis-
tema muda lentamente, mas muda. De um lado, a população historicamente tolhida de seus
direitos tem mais oportunidades de acesso à educação formal. De outro lado, porém, esse a-
cesso, alcançado com lutas e conflitos, faz que a exclusão mude de qualidade e de lugar.
Inseridos nesse quadro estão os entrevistados, cuja trajetória perpassa pelo ensino pú-
blico.
78
Quadro 5
Instituições de ensino fundamental frequentadas pelos entrevistados
Nome Ensino Fundamental Cidade Bairro
Karen
EMEF Duque de Caxias São Paulo Glicério
E. E. Prof. Gomes Cardim São Paulo Aclimação
E. E. Oscar Thompson São Paulo Cambuci
E. E. São Paulo São Paulo Centro
Emília
São João da Boa
Vista
Kelly
Paraíba
Caraguatatuba
Paraíba
Rodrigo
EMEF Almirante Tamandaré São Paulo Vila Maria
Elton
E. E. Izac Silvério São Paulo Jardim Tremem
E. E. Arnaldo Barreto São Paulo Jardim Tremem
Wendy
Itabaianinha/SE
Beatriz
Centro Educacional Sesi Ribeirão Pires Jardim Panorama
Tatiana
E. E. Padre Anchieta São Paulo Brás
Eduardo
São Paulo
Quadro 6
Instituições de ensino médio frequentadas pelos entrevistados
Nome Ensino Médio Cidade Bairro
Karen
E. E. São Paulo São Paulo Centro
Emília
São João da Boa Vista
Kelly
E. E. Profa. Edina Álvares Barbosa Itaquaquecetuba Vila Japão
Rodrigo
E. E. Imperatriz Leopoldina São Paulo Jardim Japão
Elton
E. E. Conselheiro Ruy Barbosa São Paulo Horto Florestal
Wendy
E. E. São Paulo São Paulo Centro
Beatriz
Centro educacional Sesi Ribeirão Pires Jardim Pano-
rama
Tatiana
E. E. Padre Anchieta São Paulo Brás
Eduardo
São Paulo
79
Mudanças constantes de escola assinalam o processo de escolarização de Kelly. Suas
primeiras experiências de aprendizagem foram interrompidas. Fez metade da 1º série em São
Paulo, mudou-se para a Paraíba e terminou essa série, mas segunda ela, a diretora matriculou-
a outra vez na 1º série.
Novamente sua família transferiu-se, agora para Caraguatatuba, e lá ela cursou a 4ª e a
5ª séries do ensino fundamental. Nesse momento, ela comparou os ensinos de São Paulo e da
Paraíba, ao dizer: “eu morava lá no Norte, eu vim para Caraguatatuba. Nós passamos
dois anos. Foi quando eu tive uma noção de como era atrasado, o ensino daqui era bem mais
adiantado do que lá”. Retornou para a Paraíba e retomou os estudos. Completou o ensino fun-
damental e optou cursar simultaneamente o magistério e o ensino médio regular, na esperança
de ter melhor oportunidade de trabalho.
Mais uma vez seus planos foram interrompidos e, de volta a São Paulo, matriculou-se
no ensino médio, mas não conseguiu cursá-lo por questões burocráticas: os documentos de
transferência não chegaram, obrigando Kelly a fazer supletivo e finalizar sua educação básica.
Existe na fala de Kelly o conflito inerente à educação: curso de magistério, escola
com farda: saia pregueadinha, blusa, boina, sapato e meia; cá – “escola meio bagunçadinha”
Assim, os alunos não deixavam os professores darem aulas. Se você quisesse
aprender mesmo, você precisava ficar bem na frente, porque senão você não
conseguia ouvir nada. Era muito difícil mesmo, uma turma muito difícil
mesmo, muitos dos professores não conseguiam mesmo, não conseguiam
tomar a rédea da sala, a sala é que levava. Os professores chegavam e iam ler
revistas, alguns; outros não, outros chegavam e davam aula mesmo, davam
aquela aula, e o pessoal prestava atenção. Quando o professor era firme,
chegava passava na lousa, e aquilo e aquilo, e pronto, e o pessoal fazia.
Como tantos jovens brasileiros, Kelly precisava estudar. Ao deparar-se com as rela-
ções existentes com professores numa escola que não atende às necessidades dos jovens, bus-
ca alternativas possíveis. Para ela cumprir aquilo que tem como imprescindível: terminar o
ensino médio. Para poder viver, como diz Duarte (1993), apropria-se das possibilidades exis-
tentes em sua consciência “em-si”.
Em suas gavetas, coleções de documentos provam seus estudos, mas comprovam tam-
bém a dificuldade de concluí-los, como apontou em seu depoimento.
Eu vim na frente. Quando acabei o 3º, faltava o ano, que tinha de fazer,
que era estágio e o TCC. Mas eu acabei não fazendo. Eu não concluí.
Quando eu cheguei aqui, eu não encontrei mais o curso de magistério, não
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tinha mais. Então não pude terminar. Fiquei lá em casa com o ao3º no pa-
pel, mas não tenho a conclusão e nem posso mais.
Assim, Kelly finalizou a educação básica por meio do supletivo, ensino que diz ser
“meio diminuído, você não tudo o que precisa ver, é uma aprendizagem bem minúscula”,
mas foi essa a sua possibilidade.
A entrevistada Beatriz disse que cursou todas as séries do ensino fundamental e médio
em uma mesma escola. Considera esse um período sem grandes entraves, mas com alguns
aborrecimentos.
Sob o rótulo de obesa, teve uma adolescência assombrada pelos preconceitos dos co-
legas de escola, como relatou: “eu era assim, era assim, era gordinha, aquela coisa. Sempre
sofri preconceito na escola”, situação que a deixava com uma autoestima muito baixa.
Questões familiares e pessoais coincidiram com o término de seus estudos, provocan-
do um momento de retroação e a necessidade de assumir algumas responsabilidades domésti-
cas. Sobre essa situação, comentou:
E aí, quando eu saí do ensino médio, eu cuidei das minhas irmãs, estava cui-
dando das minhas irmãs, e minha mãe estava fazendo faculdade na época, e
eu fiquei meio parada assim, cuidando de casa. Fazendo comida, essas coisas
(risos). Levava a irmã para a escola, ia em reunião de irmã, era isso que eu
fazia, assim mesmo, responsabilidade da minha mãe.
Beatriz mostrou-se muito retraída, tímida, como ela mesma se autodescreve. O pre-
conceito sofrido na escola contribuiu para acreditar que seu futuro estaria restrito à formação
e cuidado de uma família.
Elton, jovem morador de um bairro periférico da cidade de São Paulo, estudou em es-
colas próximas a bairros de classe média. Lembrou-se de suas dificuldades de aprendizagem,
desde a série, e as atribuiu ao fato de não saber nem ler nem escrever bem. Recordou que
teve já nos primeiros anos muita dificuldade com a leitura. Contou:
Não tinha facilidade para escrever e ler, tinha bastante dificuldade mesmo. E
no decorrer do curso acabei sendo incentivado pela minha irmã mais velha a
me dedicar mais à leitura, a escrever mais e sempre buscar ter a melhor cali-
grafia possível, e ortografia também contava muito.
Teve como elemento facilitador de sua aprendizagem a irmã mais velha, que o acom-
panhou em seus estudos e traçou as diretrizes. Lembrou-se de uma redação que fez quando
cursava a série: detestada pela professora, foi refeita pela sua irmã, copiada por ele e apro-
81
vada pela professora. Sua fala mostrou que desde cedo ele aprendeu a escrever seguindo um
modelo ideal.
Então, na escola eu fiz uma redação do Sapo que a professora detestou de-
mais. Não, você tinha que fazer assim, assado etc. etc. e, no final das contas,
eu fiz e a minha irmã não gostou, nem a professora tampouco. Minha irmã
fez uma redação e disse “é assim que você tem que escrever”, a minha irmã
mais velha! E eu escrevi e levei para a professora, e ela disse “nossa, agora
sua redação está bem melhor”. E daquele momento em diante, em matéria de
escrever, eu sempre tive um mesmo padrão de leitura.
A vida escolar de Elton também foi marcada pelo preconceito racial, como revelou em
seu depoimento:
Então, engraçado, eu tinha uma grande dificuldade com os professores. Teve
uma vez que eu desenhei um boneco no caderno e o boneco eu pintei de
marrom. A professora disse que o boneco não podia ser marrom, ele tinha
que ser rosa. Eu falei para ela que meu boneco seria marrom, e ela falava
não, a cor da pele é rosa. Eu disse não, marrom. Então ela pegou o caderno,
rasgou a folha e jogou meu caderno no chão.
Elton entendeu ter enfrentado problemas por contrariar o pensamento de seus profes-
sores na época. Em suas palavras, o que incomodava era “o absurdo da situação, a questão de
imposição. Você tem que fazer o que eu estou mandando, que eu estou certa e você está erra-
do”.
Comentou que, ainda novo, “não tinha uma consciência assim concisa da situação,
mas sabia o que estava querendo naquele momento e sabia o que aquele desenho representava
para mim, e que se representasse outra coisa para ela, problema totalmente dela, eu não tinha
nada a ver com isso”.
Ao terminar o ensino médio, o jovem rapaz passou a ter clareza da diferença existente
entre as escolas públicas e as privadas, a escola diferenciada dual. O cursinho, segundo ele,
foi o marco dessa conscientização.
Você sente mais isso quando você faz cursinho pré-vestibular. Eu fiz cursi-
nho. Eu tinha uma colega que veio de escola particular. Eu conversava com
ela e ela falava que veio justamente fazer o cursinho para relembrar o que
foi passado, como reavaliar seus conhecimentos. Eu olhava para ela e falava:
“nossa, eu vim aqui para o cursinho para aprender coisas que eu nunca vi na
vida”. Você se conta de que, por mais que sejam duas vidas totalmente,
digamos, diferentes de nível acadêmico, porque ela vem de escola particular
e eu de escola pública, ela teve muito mais conteúdo, aprendizado.
82
Em poucas palavras, Elton resumiu sua visão sobre a qualidade de ensino da escola
pública: “na verdade, a escola pública a gente tem consciência que é ruim, mas só você saindo
realmente para saber o quanto aquele ruim era mais muito ruim mesmo, entendeu?”.
Diante dessa realidade, Elton, ao avaliar de quem é a culpa pela defasagem no conhe-
cimento veiculado na escola pública, assim se expressou:
A culpa de passar e transmitir o conhecimento não é totalmente dos profes-
sores. Tem professor que, poxa, por mais que ele tenha graduação, ele não
tem vocação nenhuma de transmitir o conhecimento ao aluno. Tem bastantes
professores assim, mas acho que a grande culpa mesmo é da infraestrutura,
sem dúvida. Sabe 46 a 50 alunos em uma sala de aula, são 50 histórias. En-
tão, para um professor lidar com 50 pessoas totalmente diferenciadas umas
das outras, é muito difícil. Então, é que está, você tem que driblar muitas
questões envolvidas. O professor quer dar a aula, sempre tem pessoas con-
versando, que acabam dispersando a atenção dos demais alunos, ou o profes-
sor, que talvez não tenha tempo de pegar e completar a grade de conteúdo
que tem que dar, ele acaba atropelando.
Hoje, ao analisar a problemática, Elton concluiu:
Não sei se é por culpa dos professores ou pelo modo de alguns governos ou a
prefeitura colocarem 46 a 50 alunos, e vem aquilo, que o aluno de escola pú-
blica tem muito mais dificuldade de entrar em uma faculdade porque muitas
coisas ele acaba tendo que aprender no cursinho.
Apesar das dificuldades, da qualidade das escolas públicas pelas quais passou, das
marcas negativas resultantes dos primeiros anos de escolaridade, Elton conseguiu ingressar
em uma universidade, o que, em dado momento da sua vida não passava de mera utopia. Não
somente para ele, mas para boa parte de indivíduos da sociedade brasileira, conforme pertença
a esse ou àquele grupo.
Rodrigo, outra pessoa que contribuiu para a elaboração desta pesquisa, fez os primei-
ros anos de estudo, até a série, enfrentando grandes dificuldades com matemática. Pensou
em desistir, mas superou a dificuldade com o auxílio da professora do ano. Concomitante-
mente ao ensino médio, cursou técnico em administração no Senai, com o objetivo de prepa-
rar-se melhor para o mercado de trabalho.
Apesar de gostar de estudar, admitiu não ter feito um bom ensino médio, principal-
mente no 2º e 3º anos, por ter que conciliar os dois cursos. Defendeu os professores e disse ter
se esforçado o necessário, pois não pôde se dedicar:
83
Chegava cansado à noite. Fiz o que eu achei necessário, mas eu não tenho do
que reclamar. As matérias fundamentais, como português e matemática, os
professores eram excelentes. A estrutura da escola também. Apesar de ser à
noite, não tinha baderna, não tinha bagunça. Se rolava droga, bebida, não
chegava ao meu conhecimento, nunca. Eu tive sorte.
Sorte é a palavra de Rodrigo. Fez o que precisava ser feito. Preparou-se para o traba-
lho, priorizou o ensino técnico.
As reminiscências de Wendy evidenciam um aluno sofrido, como tantos outros brasi-
leiros. Nasceu na cidade de Itabaianinha, cidade que apresentou com orgulho e lembrou se
tratar da terra dos anões. Sem orgulho, porém, comentou sobre seu ingresso tardio na educa-
ção formal. Sob os cuidados de seu pai, lavrador, comerciante e para quem estudar era coisa
de vagabundo – como contou a própria irmã de Wendy, que, em meio à entrevista, emociona-
da, rememorou as palavras do pai o menino somente teve contato com a escolarização for-
mal aos 10 anos de idade. Crença que também valia para as mulheres da família.
Aos 10 anos foi então matriculado na série do ensino fundamental. Paralelamente
aos estudos, sempre trabalhou. Nunca desistiu, ao contrário, disse que sempre procurou estu-
dar, pois sabia que na frente os estudos fariam a diferença. Visão reforçada pela mãe, que,
mesmo em oposição ao pai, lutava para manter os filhos na escola e constantemente falava:
“você tem que estudar se quiser ser gente. Você tem que estudar sempre. Estude, estude”.
Wendy disse que antes do 10 anos não esteve totalmente fora do aprendizado por
acompanhar uma banca na localidade em que morava. Conforme pontuou, banca era um gru-
po de várias crianças, de várias idades, que se reuniam com um adulto, na informalidade, para
terem noções de leitura, escrita e matemática.
Declarou não gostar de estudar e considera que não é bom nos estudos. Contou que,
pelo cansaço, passava sempre na média. Aprendia o mínimo. “Estudava pouco, para ficar
na média mesmo, mas eu percebi que mesmo sem eu estudar tanto eu me saía bem, compara-
do a muitos da sala”.
Conforme comentou Wendy, na busca por melhores condições de vida, sua mãe e al-
guns de seus irmãos mudaram-se para São Paulo, o que fez também em 2000, aos 18 anos.
Terminou o ensino médio na Escola Estadual São Paulo e desde então busca melhor formação
para o mercado de trabalho.
Ao relembrar o passado, Eduardo contou que é filho de pais com pouca escolaridade
formal, mas, segundo ele, com muita sabedoria. Considera-se um aluno contestador. Em sua
fala, procurou deixar claro que a e, por ser uma mulher envolvida em movimentos sociais
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desde muito jovem, foi quem transmitiu o caráter contestador que faz parte de sua forma de
pensar. Narrou:
Nasci dentro do regime da ditadura, falar era proibido e pensar mais ainda.
Isto me criou muitos problemas, porque o meu próprio desenvolvimento,
quer dizer, eu fui alfabetizado e a partir do momento em que eu me senti no
controle com a própria língua, eu comecei a ler e não parei nunca mais.
Contou que iniciou o ensino fundamental em uma escola da prefeitura, passando de-
pois
para o colégio do Estado, e efetivamente em sala de aula, dentro desse perío-
do inicial, eu fui até a série. Na eu tive problemas de currículo. Eu me
atrapalhei um pouco com o currículo, entrei em atrito com os professores, e
por marra, minha mesmo, o que não posso fazer bem feito, ou que venha a-
trapalhar as outras pessoas, normalmente eu deixo de fazer. Me enrosquei
em Geografia, Geografia não, porque na época em que eu estava cursando,
em 1977, 1978, a disciplina era Estudos Sociais, e a essa estrutura de Estu-
dos Sociais, eu era muito crítico, eu tinha uma visão muito crítica, pela
minha própria formação familiar.
Declarou que até a série estudou regularmente, abandonando os estudos aos 14 a-
nos, após essa etapa. O que aconteceu exatamente que o fez parar de estudar não ficou escla-
recido, apenas mencionou que perdeu o respeito pela professora e que esqueceu essa passa-
gem da vida.
A série foi para Eduardo uma divisória entre os estudos regulares e, nas suas pala-
vras, o estudo da vida. Problemas familiares interferiram na relação com a escola e, dos 14 até
os 23 anos, Eduardo estudou a vida. Como disse: “vivi. Eu vivi. Eu fui estudar a vida”.
Anos mais tarde, após os 23 anos, concluiu a e a séries em um curso supletivo.
Concluiu o ensino médio anos depois, em um curso oferecido dentro da penitenciária na qual
se encontrava detido.
Na história contada por Eduardo, ficou evidente a sua paixão pelos estudos, o que po-
de ser notado na seguinte fala:
Minha diversão era ficar dentro de uma biblioteca lendo. Não tinha noção de
pesquisa, de elaboração de pesquisa, essas coisas técnicas não eram ensina-
das no meu tempo de escola. Quando pediam uma pesquisa para mim, eu me
enterrava dentro de uma biblioteca o dia inteiro, dois, três dias, às vezes uma
semana, para construir aquilo que imaginava e aquilo que pensava que o pro-
fessor merecia de mim.
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Pensar mais para fazer menos “besteira” é o lema que Eduardo diz seguir na sua vida.
A outra entrevistada, Emília, uma jovem de São João da Boa Vista, cursou o ensino
fundamental em escola pública na sua própria cidade, mas, como acontece com grande parte
dos jovens brasileiros, aos 16 anos precisou começar a trabalhar. Começou a trabalhar não
para ajudar em casa exatamente, mas para poder se sustentar. Cursava o ensino médio no pe-
ríodo matutino, mas a necessidade de trabalhar obrigou-a a se transferir para o noturno.
Considerava que “o ensino à noite era muito fraco, muito, muito fraco”. Escola fraca,
professores que faltavam muito, aulas bagunçadas e um grupo de alunos que não queria estu-
dar.
A realidade vivida por Emília resultou em defasagens em sua aprendizagem. Isso a le-
vou a fazer um cursinho para ter alguma chance de concorrer a uma vaga no ensino superior
de jornalismo. Ao falar sobre o seu ensino médio, reiterou várias vezes ter sido fraco.
Foi muito fraco. Quando eu entrei no cursinho, eu ralei para caramba, no
primeiro ano. Nossa senhora!!! Estudava demais, demais, demais. Eu não
sabia nada. Nossa, é como se eu estivesse fazendo o ensino médio de novo,
em um ano. Muito fraco.
Emília considera que essa passagem pelo cursinho sanou muita das suas dificuldades.
Falou que no final do 1º ano já sabia fazer tudo.
Karen, outra personagem entrevistada, cursou o ensino fundamental em três escolas di-
ferentes. Terminou o ensino médio em 2008 e iniciou o ensino superior no ano de 2009.
Passou por escolas tidas como modelo na cidade de São Paulo, como a Escola Estadu-
al São Paulo, considerada na época de difícil acesso, muito concorrida e sem vaga para todos.
Como disse Karen: a São Paulo era considerada uma escola muito boa, porque o patrão da
minha mãe falava que nessa escola, bem antes, tinha que prestar vestibular para entrar”. Para
a jovem, a qualidade da escola estava associada à dificuldade de seleção ingresso nela.
Considera um ganho ter conseguido a vaga nessa escola e revelou que “estava espe-
rando uma bomba de ensino [...], muita matéria, professores cobrando demais”. Todavia, ava-
liou que, para ela, “não foi nada puxado, porque estava acostumada”. Acostumada não com as
cobranças das escolas pelas quais já havia passado, mas porque ela mesma se “cobrava e
sempre estudava [...], sempre”.
Karen, em seu depoimento, demonstrou sentir orgulho de ter ingressado na menciona-
da escola, pois “todo mundo ficava admirado por eu estudar na Escola São Paulo e ir bem, me
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davam os parabéns”. Entretanto, revela: “mas, no meu modo de ver, a escola era normal”, fala
que sugere não querer exprimir esse sentimento.
Durante esse percurso, disse nunca ter enfrentado dificuldades nos estudos e que se
considera uma pessoa muito estudiosa. Contudo, reconhece que não é das mais dedicadas,
como pode ser percebido em sua alocução: “eu estudo, mas falar que eu dedico, da minha
vida, uma hora por dia para estudar, não, mentira, não faço isso. Eu prestava atenção nas au-
las, nas matérias que o professor ensinava, porque depois eu ia trabalhar e não tinha tempo de
ficar estudando em casa e eu também sempre joguei pela escola”.
Diante das condições impostas pela vida, Karen disse que sempre procurou “associar o
tempo da escola com o tempo da atividade física e o trabalho”. Para isso, buscava se organizar
estudando “tudo o que tinha para estudar na escola. Como o São Paulo sempre teve semana de
prova, eu tinha estudado tudo aquilo todo dia, eu revisava e sempre fui muito bem nas pro-
vas, mas se não fosse, também minha mãe, ela sempre exigiu que eu fosse bem na escola”.
Por ser a filha mais velha, Karen sempre foi cobrada pela mãe a ser exemplar nos es-
tudos. Conforme contou: “ela cobrava como toda família cobra, mas como eu estudava e mi-
nha irmã não gostava muito de estudar, a minha mãe achava que eu tinha de dar exemplo, por
ser a mais velha”. Acrescentou: “nada muito exagerado, afinal, eu estava havia dez anos na
escola, ia ficar fazendo o que lá? Bagunçando?”. Complementou dizendo ainda “que não ha-
veria outro sentido, a não ser estudar”.
Sobre sua trajetória na escola pública, não admite inferiorizar-se: eu acho, não é por-
que estudei em escola pública que preciso ser considerada coitadinha”.
Ao contrário do entrevistado Elton, que vê na escola privada uma melhor oportunidade
de aprendizado, Karen avalia que o aluno da escola privada não tem a obrigação de aprender:
“se ele está pagando, ele vai ter a matéria; se não alcançar a média, paga uma taxa, faz uma
nova prova e pronto”. Já a escola pública, em sua opinião, oferece ao aluno o conhecimento,
dando oportunidade igual a todos. Em suas palavras: “a escola pública [...] trabalha mais que a
escola particular”. Na sua avaliação, o sucesso, seja na escola privada ou na pública, “depende
do esforço de cada um”.
Outra trajetória escolar, tão interessante quanto as demais, é de Tatiana. A moça con-
sidera que sua passagem pelo ensino básico foi “muito tranquila mesmo”. Relatou que, apesar
da pouca escolaridade, seu pai, que estudou até a série primária, gostava muito de livros e
que “ele tinha muitos livros em casa, um exagero de coleções, que a gente acabou doando
quando ele faleceu, mas ele tinha muitos livros”.
87
Mencionou, com enlevo, que aos 5 anos de idade já sabia ler, conquista que atribui aos
pais, que sempre a incentivaram a estudar.
Tatiana contou que cursou a maior parte da educação básica em uma mesma escola.
Para ela, uma escola pública tradicional, forte à qual atribuiu o seu sucesso no Enem, pela
base tida no ensino fundamental e médio. Para Tatiana:
A escola era muito boa, a Padre Anchieta. Até uns dois anos depois que eu
saí de lá, eu saí em 95 me formei em 95, ainda era muito forte. Tive um ami-
go que saiu da Padre Anchieta, fez meio ano de cursinho no Anglo e entrou
em primeiro lugar em Economia na USP. Ele era uma pessoa dedicada, mas
o ensino era muito forte tanto que minha base para o Enem foi o que eu a-
prendi nela, comparada com o que temos hoje no ensino de 2º grau.
Estudar na Padre Anchieta é tido por Tatiana como um privilégio, pois considera ter
estudado em uma boa escola, muito tranquila, organizada e com ótimos professores. Resumiu
sua passagem pela referida escola dizendo: “eu fui extremamente privilegiada”.
Os personagens aqui entrevistados, com os olhos no presente, voltaram-se ao passado,
revelando experiências peculiares e ao mesmo tempo análogas do ingresso e da passagem na
educação básica.
Cada um, à sua maneira, tem sua visão do vivido, a sua forma de dar sentido e signifi-
cado ao processo de escolarização. Ao mesmo tempo, as histórias e opiniões se combinam,
apresentam uma unidade orgânica que, ao mesmo tempo singular, mostra um grupo de pesso-
as cujos destinos estão estreitamente ligados, o que permitiu a esta pesquisadora uma imagem
mais concreta da realidade: a constatação de que a continuidade na formação escolar aparece
como um desafio para todos.
Na visão ora positiva, ora negativa do ensino que receberam no passado, fica a certeza
de que a possibilidade de acesso e permanência desses sujeitos sociais na escolarização formal
está estreitamente relacionada à sua condição econômica.
Observou-se ainda, por meio dos depoimentos, a ausência de interesse do poder públi-
co para com a educação dessa população. Quando interesse, volta-se para a reprodução de
uma escola dual, uma educação que contribui para consubstanciar a contínua produção da
desigualdade nacional.
Corroborando com Portella (2007), a exclusão, que anteriormente acontecia pelo não
acesso do aluno à escola, hoje apresenta característica diferente: a exclusão hoje compreende
a falta de qualidade do ensino público brasileiro, o que provoca uma formação deficitária de
grande parte de nossos estudantes.
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Diante do exposto, é razoável inferir que, com raras exceções, a educação se move por
falácias, conforme os interesses da classe dominante, o que acarreta, certamente, entraves ao
oferecimento de uma educação de qualidade, uma educação formal por meio da qual o aluno
de fato aprenda, adquira capital cultural.
4.3 – A experiência do emprego, ou da ausência dele. A busca da empregabilidade
De acordo com Duarte, “a relação do indivíduo com as objetivações genéricas em-si
caracteriza-se, além da espontaneidade, também pelo pragmatismo, pelo raciocínio probabilís-
tico, pela analogia, pela hipergeneralização, pela imitação e pelo tratamento aproximativo da
singularidade” (1993, p. 141).
Esse pensamento pragmático, probabilístico, hipergeneralizado, nos parece, é o que
faz os entrevistados acreditarem que o ensino superior proporcionará melhores condições de
emprego, como pode ser visto nos seus depoimentos.
Beatriz, por exemplo, mostrou-se surpresa quando, na organização não governamental
na qual trabalhava, recebeu a notícia de que cursar o ensino superior seria condição para con-
tinuar na equipe. Sentindo-se culpada por sua exclusão, a jovem relatou:
Dificultaram o processo de seleção. Na época, eu era a responsável técnica, e
veio a exigência de que o responsável técnico, para assinar o projeto, teria
que ter graduação, todos os professores teriam quer ser graduados e o coor-
denador pedagógico também teria que ser graduado. Na nossa ONG dois
eram graduados, tinham feito Educação Artística, tinham se graduado naque-
le ano, tinham terminado, e eu falei: “gente, continuem, eu não posso mais
trabalhar, mas vocês podem trabalhar, não tem problema, eu vou correr atrás
do prejuízo, porque eu não fiz antes, eu vou ter que correr atrás agora.
A fala de Beatriz “vocês podem trabalhar, eu vou correr atrás do prejuízo”, além de
demonstrar o sentimento de perda por não ter um curso superior, por estar fora do mercado de
trabalho, a conformação e o convencimento de que é culpada por sua própria exclusão, carre-
ga em seu bojo a consciência “em-si” da importância imediata do ensino superior. Ela assume
como responsabilidade individual um processo que é político, relacionado à profissionaliza-
ção das ONGs, no Brasil, que se dá na segunda metade da década de 1990 e início de 2000
26
.
26
Neste período, segundo Steil e Carvalho (2001), a lógica da eficácia e dos resultados passam a definir os crité-
rios de inclusão e pertencimento das instituições. As ONGs adaptam-se a novos modelos de profissionalização e
inserem-se em um processo social e cultural que envolvem disputas pelos sentidos e pelo capital simbólico,
acumulados ao longo da história dessas organizações.
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Elton desde a adolescência questiona a sua condição do estar no mundo. Sabe que pre-
cisa separar o seu eu do mundo. Para o rapaz, “uma coisa é ir à busca de seus sonhos, outra
coisa é saber de suas reais necessidades econômicas e sociais”. Diante de sua visão da reali-
dade, quando perguntado se a escolha pelo curso técnico tinha relação com o trabalho, assim
se pronunciou: “é, eu acho que pode ser que sim, mas é muito complicado isso. A gente mais
questionava sobre a nossa condição. Condição de estar aqui, a sua condição que o mundo
mostra para você”.
Elton vive a ilusão de que empregabilidade é certeza de uma vida mais tranqüila, e a
educação superior, garantia dessa condição.
A gente tem até meio que uma postura de separar o eu do mundo, mas acaba
cometendo um equívoco, porque eu estou dentro dele, qual a oportunidade
que eu consigo alcançar fora, dentro desse mundo econômico, financeiro,
social? Essa que é a grande dificuldade. Eu não vejo, antigamente eu até i-
maginava esse mundo muito distante, mas eu senti com o primeiro emprego,
as primeiras dificuldades, os encontros com o patrão, essas coisas todas, e
você começa a se ver dentro do mercado de trabalho, e imaginar como é que
ele funciona, e quando eu falo esse mundo que está aí, é essa relação de você
pegar e buscar uma coisa melhor para si e levar vantagem em determinadas
situações, mas não vantagem em relação a golpear alguém, passar para trás,
isso não, mas pegar e encontrar uma brecha para você pegar e ter uma vida
mais tranquila, e isso é muito difícil, sinceramente, e isso na minha área
principalmente é muito complicado.
Elton demonstra uma consciência “em-si”, menos no imediato. Ele
tem consciência de que não se confunde com “esse mundo”, mas que para
estar nele é preciso estudo.
A escolha de Elton em relação ao curso superior também está estreitamente relaciona-
da à busca de adaptação às exigências do mundo do trabalho.
Eu preferi a Unip, porque já estava na área, trabalhando no escritório de con-
tabilidade, e pensei: então, vou fazer ciências contábeis, mesmo. Foi uma
decisão bem pensada, até então porque é um emprego que uma estrutura,
uma base mais sólida, entendeu?
Vê-se que “uma decisão bem pensada” significa para o jovem escolher uma graduação
que possibilite melhor oportunidade de trabalho. Esta perspectiva adaptativa embasa a fala de
muitos outros jovens. Todavia, considerando que ainda não uma força capaz de abolir a
forma capital, não parece haver outra alternativa senão lutar por um trabalho, mesmo que em
sua forma alienada e, na maioria das vezes, precária.
90
Kelly, a menina que “pensa grande”, contou que escolheu o curso de Pedagogia por-
que, para ela, ele oferece uma gama de possibilidades.
Pedagogia é uma área ampla, pode-se dar aulas, pode escolher a série, pode
escolher a matéria, você pode se aprofundar naquela matéria, em história,
geografia, pode-se aprofundar. Em mais dois anos da faculdade, então eu
penso assim, daqui a alguns anos, não sei quantos, eu vou estar dando aula.
Vou saber qual matéria mesmo eu vou querer seguir, se eu vou querer ficar
na pedagogia normal, porque com pedagogia se pode dar aulas de várias ma-
térias. Então eu vou saber, daqui para frente eu vou saber se eu vou querer
uma determinada matéria ou seu eu vou querer pedagogia mesmo.
Ao analisar a fala da jovem, vê-se que esse leque de possibilidades restringe-se às ati-
vidades de sala de aula. Contraditoriamente, o que parecia amplo acaba se reduzindo às maté-
rias as quais, supostamente, pode lecionar. Apesar de cursar Pedagogia, não demonstra co-
nhecer os limites e a amplitude da própria área de atuação.
Repetindo o mesmo clichê proclamado por tantos outros brasileiros, Kelly deixa claro
que seu estudo e sua escolha pelo curso estão intimamente ligados ao mundo do trabalho.
Então, eles pensam em só fazer o ensino médio, porque todos pedem o ensi-
no médio para trabalhar. Até para ser gari eles pedem o ensino médio. O que
antes era suficiente ter até a 4º ou até a 8º, agora não, agora precisa do ensino
médio.
Fica evidente, na sua fala, a crença na promessa da empregabilidade e a confirmação
do incentivo ao individualismo exacerbado.
Ao mesmo tempo, Kelly parece enxergar a importância do estudo também na forma-
ção individual, e não somente como meio para inserção no mercado de trabalho, como aponta
o trecho a seguir:
Então eles ficam para isso, para isso que serve, para conseguir em-
prego, e não pensam grande, não pensam em ter mais conhecimento, em ver
coisas novas, em continuar.
Kelly é uma jovem, como milhares de outras, que acredita que o ensino superior modi-
fica o futuro das pessoas. Em sua visão, somente trabalhar e ficar em casa significa “não fazer
nada”, é preciso estudar.
Formada sob a ilusão da “sociedade do conhecimento” do ponto de vista cultural –,
ao considerar que fazer algo é sinônimo de continuidade nos estudos, revela a sua apropriação
91
da cultura em que se formou, atualizada pelas necessidades atuais de manutenção das relações
sociais vigentes: “o futuro para mim é o meu, eu enxergo o meu, é terminar minha faculdade,
poder exercer aquilo que eu escolhi, e ainda tentar fazer outra, porque para mim isto não aca-
ba, enquanto eu puder fazer, enquanto eu consegui, eu vou fazer, não importa”. De acordo
com Duarte,
é uma ideologia produzida pelo capitalismo, é um fenômeno no campo da
reprodução ideológica do capitalismo. Assim, para falar sobre algumas ilu-
sões da sociedade do conhecimento é preciso primeiramente explicitar que a
sociedade do conhecimento é, por si mesmo, uma ilusão que cumpre uma
determinada função ideológica na sociedade capitalista contemporânea
(2001, p. 7).
Ao mesmo tempo em que critica as pessoas que somente trabalham e ficam em casa,
Kelly busca no ensino superior uma oportunidade de ingresso no mercado de trabalho, atuan-
do naquilo que escolheu. Kelly percebe que os estudos podem fazer a diferença em suas rela-
ções sociais.
Rodrigo, com o intuito de inserir-se no mercado de trabalho, encaminhou seus estudos
desde cedo:
Eu fiz eletro, eletricista de manutenção. Eu fiz elétrica, eu entrei no Senai em
2002, em janeiro de 2002. Eu fiquei 2002 e 2003, era um curso de dois anos.
Em 2003 surgiu a oportunidade de trabalhar internamente no Senai. Eu não
ganhava nada, não era remunerado, o que eu ganhava era conhecimento, era
prática.
Quando perguntado sobre a importância dada ao curso superior, no sentido de mudan-
ças no modo de pensar, responde prontamente: “profissionalmente me ajudou muito, hoje eu
penso de uma maneira diferente, consigo enxergar coisas que não enxergava lá atrás, não i-
maginava que seria tão importante”.
O importante para ele é o seu modo de agir no trabalho. E, neste sentido, acredita te-
rem ocorrido transformações na sua conduta profissional. Hoje, considera-se mais maduro.
Consegue fazer a distinção entre trabalho e momentos de lazer: “brincadeiras no serviço, cri-
ancice, palhaçada, risada, descontração, não é isso. Trabalho é trabalho, você tem o seu mo-
mento de descontração, de conversar, de fazer piadas”.
Rodrigo se como um trabalhador melhor. É mais um exemplo do que buscam esses
entrevistados: melhor adaptação às exigências do mundo do trabalho, ampliando sua empre-
gabilidade. Não superação da individualidade “em-si” “para-si”, ou seja, não desenvolve
92
uma “relação consciente, livre e universal com o gênero humano” (DUARTE, 1993, p.
144), mas sim, uma relação pragmática com o trabalho, assumindo a radicalização do históri-
co individualismo, por meio da busca da empregabilidade.
Esses jovens apropriam-se do curso superior, a partir de suas formações individuais
vividas junto à família, suas comunidades e seus amigos. Estas apropriações possibilitam a
inserção na cultura, numa sociedade formada sobre relações de dominação que estabelecem os
valores necessários.
Conforme Duarte:
Trata-se, portanto, de um processo formativo em-si. Através dele todos nós
“ingressamos” no gênero humano. Não estou com isso afirmando, porém,
que a apropriação das objetivações genéricas em-si ocorra de forma idêntica
para todos os seres humanos, independente do momento histórico e da posi-
ção de cada ser humano no interior das relações sociais. Estou apenas afir-
mando que ninguém pode viver em sociedade sem realizar um mínimo de
apropriações dessas objetivações (1993, p. 137).
Em uma sociedade que acredita que o curso superior é sinônimo de garantia de empre-
go ou de melhores condições de trabalho, apropriação esta determinada historicamente, have-
rá uma busca constante por uma formação superior visando à empregabilidade.
Em alguns momentos, não ficou muito tida na fala dos entrevistados essa relação
imediata entre ensino superior e trabalho, como pode ser verificado no depoimento de Karen,
quando perguntada sobre o futuro.
Eu não tenho essa ilusão. As pessoas, os professores viviam falando: “você
não vai crescer, porque você não tem sonho”. Eu falava: “você vai crescer e
cair do cavalo porque você sonha!” Acho que não pode ser tanto para um
quanto para outro, mas eu o consigo ficar imaginando vou me formar,
vou fazer isso, vou fazer aquilo. Eu vou muito devagar, vou devagar com o
andar da carruagem, vendo o que e o que o dá. Me projetar no futuro,
não! Porque eu não sei bem o que quero – trabalhar com coração, com idoso,
com criança, tem muita coisa para fazer ainda, de básico são quatro anos,
e depois tem especialização para depois trabalhar diretamente, então com
três meses não para saber o que eu quero ainda, o que eu sei é que não
pretendo sair da faculdade.
A voz de Karen espelha a tática dos oprimidos: a da sobrevivência, o que exige uma
capacidade de leitura da realidade muito menos idealista e muito mais concreta
Karen extrema importância ao trabalho, porém não se verificou em sua fala uma
relação direta entre a escolha de um curso superior e uma possível inserção no mercado. In-
clusive, em um momento da entrevista, quando perguntada se está contente com o curso, res
93
pondeu: “eu estou sim. Eu não sei o que vai ser no futuro, mas hoje as pessoas perguntam:
‘você está fazendo faculdade’? Estou. ‘Do quê’? Enfermagem. ‘Onde’? São Camilo. E as pes-
soas comentam: ‘nossa, está com o futuro garantido, viu’! E eu fico pensando: que bom! To-
mara que seja mesmo, porque não é pouco”.
Apesar de mostrar certa resistência quando se refere ao futuro, a fala de Karen sugere
um tom de preocupação quanto ao futuro e às possibilidades de conquistar um bom emprego.
Preocupação que se justifica ao se considerar que, na atual estruturação do capital, o indivíduo
está à mercê da própria sorte frente a uma nova promessa, a da empregabilidade, num merca-
do competitivo em que não há espaço para todos.
Tatiana, com um perfil de luta por uma sociedade melhor, inserida em projetos e pro-
gramas voltados para uma classe menos favorecida, cresceu com um projeto pronto de vida:
“desde que me entendo por gente, dos quatro anos de idade, eu cresci sabendo que eu ia estu-
dar, fazer faculdade, me formar, casar, sempre foi uma meta! A faculdade foi uma coisa que
eu adiei”.
Num dado momento de sua vida, entre as possibilidades de escolha que o ensino supe-
rior lhe oportunizou, Pedagogia e Direito, Tatiana, mesmo cursando o primeiro semestre
em Pedagogia, se transferiu para o curso de Direito. Rememorou:
Parei para pensar um pouquinho no seguinte: o que eu, enquanto pedagoga, a
princípio, podia fazer. E o que eu Tatiana, como advogada, poderia fazer. Eu
pesei os dois para ver [...] pesei a minha condição social, não vou mentir. Pe-
sei, sim, a minha condição pessoal, da minha família, o dinheiro, porque re-
almente há uma diferença muito grande [...] decidi por Direito.
Tatiana acredita que, com esse curso, alcançará os conhecimentos necessários para
amparar a si mesma, à sua família e à sua comunidade.
Em decorrência das verdades que construiu ao longo da vida, teme diante da nova es-
colha. Não esquece sua formação “socialista”, como caracterizada por ela. Por isso, tem muita
preocupação em relação ao exercício da profissão:
Eu fiquei com muito, muito medo. Tenho até hoje medo, estou no segundo
ano e tenho medo, até hoje, de não conseguir trabalhar como agente de direi-
to, por conta da minha ideologia, da minha história de vida. Desde que meu
pai faleceu, de tudo o que eu cresci, dos 18 anos até hoje, de tudo o que a-
prendi na vida, o quanto a pobreza é dura, o quanto a discriminação é dura, e
que existem pessoas que precisam de ajuda de fato, e que estejam ali ampa-
rando, que as motivem a crescer, que resgatem realmente a cidadania dessas
pessoas, para que elas possam andar com suas próprias pernas. Por isso, eu
tenho muito medo.
94
Hoje, já atuando como estagiária na área, Tatiana acredita que a formação universitária
garantirá a chance de concorrer, de maneira igualitária, por melhores salários. Quando per-
guntada sobre a importância da universidade em sua formação, respondeu:
Hoje total, porque sem a graduação, hoje em dia, não se consegue mais en-
trar no mercado de trabalho, a concorrência é gigantesca. Realmente, o ensi-
no médio virou nada, o ensino médio hoje é exigência básica para qualquer
emprego, para qualquer nível de emprego. A graduação, hoje, na verdade,
é muito pouco no mercado de trabalho, a globalização acabou engolindo tu-
do e supervalorizando, nesse sentido, e padronizando. São aqueles que estão
na universidade hoje e quem têm dinheiro. Infelizmente, quem não ocupa os
melhores cargos, não tem os melhores salários, não tem um bom padrão de
vida, mantém a estabilidade do capitalismo, que é a exploração do menos
privilegiado. Essa camada menos privilegiada que está entrando nas univer-
sidades, que não teve oportunidade como as pessoas que têm dinheiro, en-
tendeu, tem a oportunidade de se igualar realmente e de disputar “pau a
pau”, um salário entendeu?
Reflexo da própria educação familiar e do ambiente comunitário no qual cresceu, Tati-
ana tem hoje um projeto de vida bem definido: ser juíza, seu maior sonho; que, até então, a-
creditava impossível de alcançar. Mas hoje, vislumbrada com as primeiras aprendizagens ad-
quiridas na academia, volta a idealizar: “porque eu sei hoje que vou disputar a vaga de juíza,
que é um grande sonho, porque sempre sonhei em ser juíza de igual para igual, entendeu? O
que jamais há dois anos eu sonhava”
.
O discurso oficial a respeito da equalização das oportunidades aparece incorporado na
linguagem de Tatiana, mais uma entre dezenas de pessoas alimentadas com a ilusão da inclu-
são e com a promessa da igualdade conquistada por meio da competição individual. Ou seja,
ela está trocando o “sonho igualitário” e se apropriando da mentalidade competitiva.
Emília também acredita que após o curso superior terá muito mais preparo para en-
frentar o cotidiano do trabalho. Considera que agora tem “noção do que se passa numa empre-
sa, como são feitas as coisas. No nosso trabalho, eu sei montar, fazer esse trabalho para mon-
tar uma empresa, montar uma loja, no caso. Crescimento pessoal, maturidade no auge, por-
que, nossa Senhora!!!, eu era muito colada com a minha mãe, e aprendi a fazer tudo aqui em
São Paulo sozinha. Aprendi a andar sozinha aqui em São Paulo, correr atrás”.
Wendy, pela sua própria história de vida, credita ao ensino superior sua possibilidade
de qualificar-se para um novo mercado de trabalho, escapando daquilo que desde sua infância
lhe foi imposto pelas contingências do mercado em sua cidade natal, para um trabalho que
minimamente lhe traga mais prazer.
95
O ingresso de Wendy no ensino superior se deu, nitidamente, com vistas à conquista
de um emprego, pois, assim como Tatiana, o rapaz considera que o ensino médio não é mais
garantia de nada. Nas palavras de Wendy: “o ensino médio não era suficiente para conseguir
um emprego melhor e ser qualificado para o mercado”.
O rapaz mantém firme a crença de que a faculdade lhe dará essa qualificação. Todavia,
sabe que apenas um diploma não é suficiente para uma mudança. Além do diploma, pensa ser
necessário demonstrar conhecimento, porém disse que não consegue superar suas dificuldades
e se julga sem condições de superação.
No entanto, Wendy se contradisse ao dizer que está tentando mudar o seu comporta-
mento em relação aos estudos. Mudar “a forma de eu levar meus estudos, sabe, começar a
estudar mesmo”. Mudar não exatamente em busca do saber pelo saber, mas sim por ver que
“o mercado de trabalho não quer apenas o diploma”, conclusão que tirou após passar por i-
númeras entrevistas e não ser selecionado.
Wendy avalia que as oportunidades de estágio proporcionadas pela faculdade serão
como alavancas que permitirão concretizar um de seus desejos: mudar o registro na carteira
de trabalho.
Em sua visão, a faculdade amplia, “primeiramente, a facilidade de conseguir um está-
gio, porque entrar na área por meio do estágio é mais fácil, sem um diploma, sem uma facul-
dade, sem ter qualquer qualificação não dá certo”. Assim, a princípio, o estágio é seu ponto de
partida para mudar de uma profissão imposta pelas contingências sociais para uma que, acre-
dita, lhe trará maior satisfação.
Embora tenha sonhos e acredite na faculdade como meio facilitador de alcançá-los,
Wendy a todo momento traz para si a responsabilidade pelo seu fracasso. A fala “acho que
ainda não estou muito interado, eu me atraso muito na faculdade” demonstra isso.
Na verdade, a voz de Wendy entoa a ideologia meritocrática, presente, inclusive, na
sua avaliação de sua formação básica. Sua visão o impede de ver uma formação básica defici-
ente promovida por um sistema educacional também deficiente.
Diante das vozes dos entrevistados, confirma-se a assertiva de Gentili (1998) de que a
empregabilidade se incorpora ao senso comum, orientando e definindo as opções ou a falta
delas, dos sujeitos, seja no campo educacional, seja no mercado de trabalho.
A empregabilidade apresenta-se como uma nova versão de exploração e, sob a ideolo-
gia do capitalismo global, significa que
96
a educação ou a aquisição (consumo) de novos saberes, competências e
credenciais apenas habilitam o indivíduo para a competição num mercado de
trabalho cada vez mais restrito, não garantindo, portanto, sua integração
sistêmica plena (e permanente) à vida moderna. Enfim, a mera posse de
novas qualificações não garante ao indivíduo um emprego no mundo do tra-
balho (ALVES, 2010, p. 8).
É importante salientar que, conforme dito no capítulo 3, os jovens brasileiros sofrem
com a precariedade da inserção no mercado de trabalho. A Organização Internacional do Tra-
balho (OIT) (2006) declara que são elevadas as taxas de desemprego e informalidade, assim
como são baixos os níveis de rendimento e de proteção social aos jovens.
Nesse contexto, o aparato midiático, quer seja por parte do governo na divulgação de
programas como o Prouni, quer seja por parte das instituições privadas na promoção de seus
cursos, contribui para a disseminação e inculcação da necessidade de um novo perfil de traba-
lhador. Preenche a mente dos jovens propagandeando à exaustão “a necessidade dos indiví-
duos consumirem um conjunto de novas competências através de cursos de requalificação
profissional” (ALVES, 2010, p. 8). Sem que, no entanto, a vida da maioria da população po-
bre do país e, num nível mais amplo, as relações sociais de produção que produz a classe po-
bre, sofra alterações.
Nas palavras de Alves: “o que ocorre é a operação ideológica sutil de atribuir aos indi-
víduos, e apenas a eles, a ‘culpa’ pelo fracasso na sua inserção profissional, demonstrando o
poderoso recurso da psicologia do neoliberalismo de ‘culpabilizar’ as vítimas” (2010, p. 9).
Assim, a educação, que poderia promover seres genéricos “para-si”, estabelecendo
“uma relação consciente livre e universal com o gênero humano”, corrobora, na verdade, com
o fortalecimento do capital e, consequentemente, com a manutenção de uma relação social
imediata e alienada.
Por esse prisma, a educação não se configura como um direito, mas sim como uma
opção individual, assim como acontece com as oportunidades de emprego e de renda. Portan-
to, sob relações sociais alienadas, a maioria dos seres humanos vive quase que exclusivamente
no âmbito da genericidade “em-si”.
4.4 – As possibilidades
A possibilidade de se conquistar uma inserção efetiva no mercado de trabalho é vis-
lumbrada pela sociedade a partir das capacidades individuais de consumir conheci
97
mentos, que supostamente garantiriam essa inserção. A educação, na sua forma institucionali-
zada, busca reproduzir os valores postos, gerando assim, uma contradição entre o poder fazer
e o querer fazer.
Visto por esse prisma, cada sujeito deveria ter a liberdade de escolher aquilo que mais
o atrai, aquilo que acredita que o capacitará para melhor competir.
Todavia, quando um dos meios (senão o único) de ingressar no ensino superior é o
Programa Universidade para Todos (Prouni), a nota dos alunos no Enem baliza as alternativas
possíveis e, consequentemente, os cursos e as faculdades a serem escolhidos, o que nem sem-
pre torna concreta a oportunidade de emprego e renda.
As possibilidades postas para os inscritos no Prouni estão condicionadas aos resulta-
dos obtidos no Enem, e a escolha já está, então, potencialmente decidida. Na tabela 18 é pos-
sível verificar as médias obtidas pelos entrevistados. Esta pontuação é que determinará as
oportunidades de inserção no ensino superior.
Da pontuação alcançada pelos aqui entrevistados têm-se
Tabela 18
Último Enem e respectiva pontuação dos entrevistados
Aluno Ano que reali-
zou o último
Enem
Nota geral
obtida
Média nacional
Prova objetiva
Média nacional
Redação
Beatriz
2007 69.7 51.52 52.08
Elton
2007 63 51.52 52.08
Emília
2004 50/52 45.58 48.95
Karen
2007 70 51.52 52.08
Kelly
2008 58 40.54 59.35
Tatiana
2007 65 51.52 55.99
Eduardo
2006 60.5 36.90 52.08
Rodrigo
2006 63 36.90 52.08
Wendy
2007 54 51.52 55.99
Fonte: Inep (2004, 2006, 2007, 2008)
Os cursos disponíveis são apresentados no site do Prouni considerando as médias obti-
das no Enem, obrigando os inscritos a optarem por aqueles que suas notas permitem. No qua-
dro 7, é possível observar as mudanças necessárias para se garantir um curso superior, mesmo
que este curso não fosse aquele sonhado.
98
Quadro 7
Cursos efetivados e instituições frequentadas
Aluno Curso sonhado O que está cursando Instituição
Beatriz Artes Pedagogia Renascença
Elton Letras/História Ciências Contábeis Unip
Emília Jornalismo Tecnólogo em Marketing UniSant’Anna
Karen Ciências Biológicas Enfermagem São Camilo
Kelly Medicina Pedagogia Teresa Martin
Tatiana Pedagogia/Direito Direito Mackenzie
Eduardo Fisioterapia Pedagogia Renascença
Rodrigo Administração Marketing UniSant’Anna
Wendy Informática Turismo Uniban
Embora cheios de sonhos, os indivíduos entrevistados se veem, como tantos outros jo-
vens brasileiros, obrigados a aceitar as possibilidades impostas ou as alternativas possíveis.
Todos os personagens dessa história, vidas cruzadas pela mesma política de interven-
ção social, Prouni, são resultado de um tempo histórico social que delineou generalidades e,
ao mesmo tempo, tracejou singularidades.
Cada um tem uma personalidade, um caráter, um temperamento, um jeito de sentir, de
se emocionar e de expressar seus sentimentos. Singularidade e generalidade, elementos que de
alguma forma se atraem e se integram e os tornam indivíduos ao mesmo tempo singulares e
semelhantes em relação a outro.
Almeida (2004), mencionando Lukács, explica o processo dialético generalidade e
singularidade. De acordo com esse estudioso:
O ser humano estabelece vínculos tanto com a natureza, quanto com a socie-
dade, por meio da relação dialética que se desenvolve entre seu ser singular,
que não se assemelha a nenhum outro, e o seu ser geral, que se identifica
com os outros seres humanos na vida em sociedade e com a espécie, bem
como com todos os seres vivos, na natureza. Assim, o homem é, ao mesmo
tempo, portador de uma singularidade, que o distingue de todos os outros se-
res, e de uma generalidade que o torna um ser semelhante a qualquer outro: a
relação dialética entre a diferença (singular) e a semelhança (geral) viabiliza
a inserção do ser humano na natureza e na sociedade [...]. O singular nega o
geral, mas está presente nele e, por outro lado, a generalidade anula a singu-
laridade, porém, só se realiza por meio dela (ALMEIDA, 2004, p. 6-7).
99
Indivíduos diferentes e, ao mesmo tempo, análogos, que compartilham um mesmo de-
sejo e sonho: um dia poder estudar e trabalhar com algo que realmente lhes interesse ou que
contribua para uma busca por conhecimentos pertinentes à sua formação individual.
E, a partir do momento em que percebem a impossibilidade de fazer o curso que tanto
almejaram, imediatamente mudam a opção, realizando a significação que têm do ensino supe-
rior: porta de entrada para o mercado de trabalho e para uma vida financeiramente melhor do
que a que tem hoje.
Kelly, sempre desejou fazer pediatria.
Desde sempre: eu sempre quis ser pediatra. Eu sempre gostei de criança [...]
eu acho bonito. É uma profissão dura, tem uma hora que você tem que dar
uma notícia para a família, tem que ser uma pessoa neutra, não pode de-
monstrar emoção. Tudo [...] o que me atraía era poder salvar as pessoas. É
uma profissão muito bonita, mas muito difícil também.
Sua rotina de vida, seus estudos a levam, pouco a pouco, a vislumbrar outras possibili-
dades:
Na verdade, quando eu fiz magistério, já mudou um pouco a minha cabeça.
Até a série, quando eu comecei a fazer o ano do ensino médio e fui fa-
zer o primeiro estágio, ainda pensava em medicina, mas aí mudou, medicina
ficou para segundo plano. No ano do ensino médio, pedagogia ficou em
primeiro plano, porque era o que eu estava fazendo na época. Eu achava
muito interessante, eu gostei muito, eu me identifiquei. É muito difícil, tem
muita coisa, tem muita regra, mas, sei lá, eu gostei.
Entre a medicina e a pedagogia, assim ficou dividido o desejo de Kelly.
Quando se inscreveu ao Prouni, o sonho de fazer medicina não havia de todo esmaeci-
do. Farmácia e biomedicina foram a sua primeira e segunda opções, respectivamente. Talvez
a jovem ainda não tivesse se dado conta de que critérios meritocráticos fariam a diferença
entre o sonho e o possível.
Nem farmácia, nem biomedicina. Kelly foi aprovada na quarta opção, em pedagogia,
na Teresa Martin. Pedagogia foi a alternativa possível, e a jovem parece ter encontrado razões
para prosseguir seus estudos na área.
Assim, Kelly, talvez até mesmo como um recurso para aceitar internamente a realida-
de posta, procura fazer uma conexão entre a medicina e a pedagogia. A fala “isso [o sonho de
ser pediatra] também foi o que me influenciou a fazer pedagogia, porque eu gosto muito de
100
criança” justifica o seu estar na pedagogia. A frase a medicina fica para segundo plano,
quando eu puder, porque eu ainda tenho interesse” reforça a justificativa que, antes de tudo,
criou para si própria. Kelly acredita simplesmente estar adiando seus estudos na área da medi-
cina.
Quanto à instituição, ao ser interpelada sobre os critérios de escolha, respondeu:
Eu escolhi a Teresa Martin porque um colega meu de trabalho tinha uma tia
que já tinha estudado na faculdade Teresa Martin, já tinha se formado. Ela
falou que era muito boa na área de pedagogia, o foco era pedagogia na Tere-
sa Martin. Então eu me inscrevi para pedagogia. Meu critério foi à qualida-
de.
No que se refere à avaliação da entrevistada ao Programa Universidade para Todos, as
palavras: “dá muita oportunidade para pessoas que querem, aqueles que buscam mesmo” dei-
xam transparecer o modo positivo como enxerga o programa. Outro aspecto positivo, para ela,
é que “o Prouni é para quem quer e para quem não tem possibilidade de pagar uma faculdade
boa”.
O programa é visto pela jovem como um mediador que oportuniza a realização de um
curso superior em uma boa faculdade. Para Kelly se não fosse o programa, ela não estaria
estudando ou, estaria frequentando uma faculdade “barata”.
Talvez eu fosse procurar a mais barata, uma qualidade mais barata, e tentar
um desconto para ser acessível para mim. O Prouni para mim foi tudo, por-
que desde sempre eu quis fazer faculdade, eu nunca fui aquela pessoa que
não tinha objetivo, tem pessoas que só querem terminar o ensino médio.
As palavras de Kelly sugerem que o valor da mensalidade define a qualidade do ensi-
no oferecido em uma instituição: mais barata, menos qualidade; mais cara, mais qualidade.
Todavia, avaliar a qualidade do ensino no interior de uma instituição vai além do valor
das mensalidades. Como garantir, de fato, “um bom ensino no interior de um estado de coisas
em que o uso da política educacional para fins escusos é facilitador por insensata descontinui-
dade administrativa e pela transformação literal da política educacional em ‘negócios da edu-
cação’?” (PATTO, 2005, p. 61).
Corroborando com Florestan Fernandes, na obra Universidade brasileira, é pertinente
ainda salientar que “as massas de matrículas e de formandos escondem uma ‘mentira
101
estatística’: em vez de sanar deficiências, agrava-se a situação, difundindo-se a ‘má escola e o
‘mau ensino’ (1975, p 158), consequentemente crescimento quantitativo em detrimento ao
qualitativo.
Outra história, porém com desfecho semelhante. Emília, como todos os outros entre-
vistados, sempre cursou o ensino público. Contou que cursar jornalismo era seu sonho: “sem-
pre quis, não sei, sempre quis”. Após terminar o ensino médio, durante alguns anos, Emília
tentou ingressar no curso de jornalismo, porém sem obter sucesso.
Sua frustração por não conseguir seu objetivo aparece atrelada à deficiência que atri-
bui aos anos no ensino médio. Emília imputa a culpa do insucesso especialmente ao ensino
médio, “porque era muito fraco. Eu nunca ia conseguir, e eu queria fazer jornalismo no come-
ço, mas eu não passava”.
Emília, em busca da superação das dificuldades provenientes do ensino básico, fre-
quentou um cursinho, época na qual disse ter se empenhado muito: “quando eu entrei no cur-
sinho, eu ralei para caramba, no primeiro ano. Nossa senhora!!! Estudava demais, demais,
demais. Eu não sabia nada. Nossa, é como se eu estivesse fazendo o ensino médio de novo,
em um ano”.
Após três anos de cursinho, mesmo com uma sensação de superação, Emília não teve
êxito nos vestibulares para jornalismo: “eu não passava, não passava em federal”, desabafou.
Com isso, iniciou um processo de desânimo e depressão:
Quando eu entrei no ano, que eu fiz meio, eu comecei a entrar em
depressão de fazer cursinho. Não passava no vestibular, fazia cursinho, fazia
cursinho, fazia vestibular, e nada.
As tentativas de Emília para ingressar na área de jornalismo passaram pelas universi-
dades públicas e pelas privadas. Por meio do Prouni, “tudo quanto é faculdade que eu via, eu
colocava”.
Diante da realidade do vestibular e da impossibilidade de matricular-se em jornalismo,
ela modificou seus interesses: “eu comecei a ver, e comecei a pesquisar as notas que batiam.
Eu vi marketing que batia, e comecei a me interessar por marketing. Também coloquei mais
umas opções”. Contou:
Eu lembro que eu coloquei administração. Marketing estava em primeiro
porque era mais fácil, Administração eu colocava mais para baixo, adminis-
tração eu colocava como uma das últimas, que era difícil. Cheguei a colocar
jornalismo também, mas ficou assim. Eu acho que eram cinco
102
opções no meio do ano, acho que três foram marketing e uma jornalismo e
administração.
Por fim, Emília entrou na UniSant´Anna, graduação em
marketing. Apesar do desgosto inicial, ela rapidamente incorporou a
lógica do que lhe foi oferecido, pois, “afinal, a gente aprende a gostar,
no começo eu não gostava muito, não, eu achei que não era isso que
queria, mas foi bem no começo, mas eu comecei a gostar, comecei a
me inteirar, no domingo trabalhava, estudava bastante, e peguei muito
gosto”.
Hoje “eu não sei se eu tento outra faculdade também”, mas se tentasse seria “de jornalismo”.
Vê-se com Emilia mais uma história de sonho adiado, mais uma decisão determinada pelo
campo minado de relações e concepções que estruturam e dão o contorno ao cotidiano, muitas
vezes sofrível, da maioria dos jovens da população brasileira.
Mesmo não tendo conseguido entrar no curso dos seus sonhos, Emília faz uma avalia-
ção muito positiva do programa, incentivando inclusive “todo mundo a fazer Enem. Incentivo
todo mundo. Eu explico como é que é, explico passo a passo como é que é, porque eu achei
que foi muito válido para mim o Prouni”.
Na concepção de Emília, o Prouni é responsável por uma grande mudança em sua vi-
da. Em suas palavras:
Mudou a minha vida completamente. Muito assim, de sair da minha casa,
de São João, para vir para cá. Foi uma reviravolta na minha vida. Eu era de
brigar com a minha irmã, de pegar no soco assim. A minha irmã é mais ve-
lha que eu e a gente brigava, brigava muito com a minha mãe. Agora mudou,
eu sou uma pessoa mais controlada, sou mais responsável, sabe? Eu entendo
mais as coisas, eu dou mais valor às coisas, coisas que eu não dava. Muita
coisa, tipo coisa de casa, assim, eu dou muito valor.
Vê-se que, na mente dessa jovem, o Prouni proporcionou não somente o acesso ao en-
sino superior na grande capital, mas também favoreceu a independência e o amadurecimento
pessoal.
Wendy acredita na formação superior como meio de qualificar-se para o mercado:
“através da faculdade eu conseguiria um emprego, por causa da qualificação”. Na voz do ra-
paz, transparece a confiança, aparentemente incontestável, na possibilidade de atingir o pleno
emprego por meio da educação. A tese da empregabilidade está nitidamente incorporada ao
seu modo de pensar e de avaliar o acesso ao ensino superior.
Sua história de vida não é diferente de tantas outras histórias de jovens brasileiros.
Trabalho na infância, dificuldade para estudar, aprendizagem precária, mas mesmo assim
chegou em São Paulo e pensou em “fazer faculdade”.
103
Dentre os cursos oferecidos pelo mercado, informática era o que mais o atraía. “Eu
pensava em fazer informática”, contou o rapaz.
Questionado pela pesquisadora sobre o porquê da sua escolha, respondeu: “porque eu
gostava muito de mexer com computador, programas, sempre mexia. Já tinha uma familiari-
dade”.
Wendy prestou rios vestibulares, e percebeu que “os anos foram passando. [...]
Mesmo fazendo vários vestibulares para várias faculdades, eu chegava perto para passar”.
Para esse sergipano, o motivo para tanta dificuldade está relacionado à concorrência: e eu
não consegui, porque a área é muito concorrida, até para o Enem”.
O jovem, diante das possibilidades indicadas pelo próprio programa, procurou e pes-
quisou muito para fazer suas escolhas. Após algumas considerações, teve como primeira op-
ção “informática na Uninove, porque você se inscreve de acordo com a média das faculda-
des”.
Em decorrência da nota de corte, no sistema do Prouni “vinha um aviso aconselhando
outra opção”. Então “eu pesquisei muito para a segunda opção”. “Pesquisar muito” significa-
va encontrar compatibilidade entre a nota do Enem e os cursos oferecidos pelo Prouni.
Assim, o jovem optou também por moda, mas, como gostaria de iniciar logo seus es-
tudos no ensino superior e “não ficar perdendo mais tempo”, deixou moda para última opção,
decidindo-se por administração, “porque o pessoal me falava sempre que se eu não soubesse o
que fazer, que escolhesse administração”. Um critério de escolha que o necessariamente
agradou ao jovem, mas que foi visto como a possibilidade naquele momento.
Diante da perspectiva de um curso superior, as preferências e os sonhos foram deixa-
dos de lado, e vigorou a lógica do possível. Informática continuou como primeira opção, mas
agora já interessavam outros cursos, como administração, por não saber o que fazer, e até mo-
da, que é a profissão de Wendy e que ele deseja abandonar. Entretanto, se é para fazer um
curso superior e “não ficar perdendo tempo”, como declarou, vale até aquilo que não se dese-
ja.
Como não obteve sucesso em sua primeira tentativa no Prouni, inscreveu-se novamen-
te. Ao ser indagado sobre suas novas opções, Wendy demonstrou-se um pouco confuso: “eu
vou ter que começar tudo de novo, e estou em dúvida entre turismo e informática”. Entre os
dois cursos, turismo foi sua primeira opção na segunda configuração para o Prouni. A justifi-
cativa da escolha gira principalmente em torno da concorrência:
104
Porque eu vi que a concorrência era muito grande em sistema de informação,
então, como meu namorado já fazia turismo, pesquisei a área em cursos, li-
vro, li muito sobre o mercado e fui fazer turismo. As matérias não são tão di-
fíceis quanto em sistema de informação, que é muito complicado.
Wendy procurou razões que o convencessem. A concorrência, no seu entender acirra-
da, o grau de dificuldade da disciplina e a influência do namorado parecem ter sido convin-
centes para ele nesse momento.
Mesmo que em detrimento do seu sonho Wendy tenha sido impelido a aceitar o que a
vida lhe oportunizou, o rapaz considera que o Prouni é, “de todos os programas, o que a
oportunidade de entrar no ensino superior. Eu acho que o Prouni é o melhor, sim”.
Karen, ao dizer “eu sempre pensei em faculdade”, procurou demonstrar que o ensino
superior sempre fez parte de suas aspirações. Acreditava que deveria continuar imediatamente
após o ensino médio, porque sempre ouviu: “quando você acaba a escola e fica sem estudar,
você acostuma com a moleza, e quando volta é uma coisa horrorosa”. Então, logo após termi-
nar o ensino médio, ingressou na faculdade.
Inicialmente, em dúvida sobre qual curso escolher, uma tendência natural, num pri-
meiro momento, povoou seus pensamentos. Ficou entre ciências biológicas e engenharia am-
biental.
Porque eu sempre gostei de bicho do mato, o pessoal até me chamava de bi-
cho do mato. Eu sempre ficava procurando bicho, e eu ficava fazendo um ca-
tálogo dos bichos que eu encontrava, era uma coisa bem simples: da cor tal,
tamanho tal, mas era o meu catálogo.
Apesar de considerar-se uma boa aluna, estudiosa e responsável, como um sonho
impossível estudar em uma universidade pública.
pensei em veterinária, engenharia ambiental, qualquer coisa, mas na USP
tinha os cursos no interior, então eu pensei: vou ficar aqui mesmo. Prestei
USP e passei na primeira fase, por milagre de Deus. A nota de corte estava
muito baixa para eu passar, porque eu não fui tão bem assim na prova, mas
eu passei para a segunda fase, mas eu sabia que na segunda não ia passar.
Porque é USP, e eu não tinha me preparado. Se eu tivesse um ano de cursi-
nho, estudado para valer, talvez eu passasse.
Karen expressou em seu depoimento uma grande necessidade de contenção nas proje-
ções de seu futuro, de seus sonhos: “eu sabia que não ia passar nem da primeira fase, mas
105
passei, e minha mãe ficou naquele sonho: ‘minha filha na USP’, e eu falava: mãe, corta esse
sonho”.
Como não conseguiu ingressar na USP, mesmo com notas consideradas bastante com-
petitivas, foi orientada por alguns professores a se inscrever no Prouni.
Outras dúvidas então surgiram:
Eu não sabia exatamente o que queria, então eu fui naquela página de inscri-
ção umas dez vezes, e ficava pensando: meu Deus, que curso?, que curso?,
porque eu gosto de educação física, gosto de bicho, gosto de mato, eu gosto
de um monte de coisa, e eu ficava pensando.
A trajetória esportiva de Karen influenciou em parte suas escolhas. Como primeira
opção, na inscrição para obter uma bolsa pelo Prouni, escolheu educação física. A Anhembi
Morumbi e a FMU foram as instituições pretendidas, em primeira e segunda opção, respecti-
vamente.
As decisões de Karen foram influenciadas também pela experiência que obteve quan-
do trabalhou com uma médica que lhe proporcionou conhecer as atividades de atendimento
médico. Contou:
Nessa época (final de dezembro) eu estava trabalhando com uma médica [...]
em uma clínica odontológica [...] Quando terminou a escola, eu saí e fiz mui-
ta amizade com a doutora. Uma vez fui com essa médica em uma espécie de
hospital, e tive contato com muitas áreas, e fiquei pensando: nossa, que legal
atender as pessoas!, e não conseguia saber o que era mais legal, atender as
crianças ou os idosos. Eu vi que a enfermagem atendia em todas as áreas e
pensei: vou fazer enfermagem. Perguntei para uma das enfermeiras quais e-
ram as melhores faculdades de enfermagem, e ela falou que a São Camilo, a
Unicid e a Unifesp eram boas faculdades.
Diante disso, sua terceira e quarta opções foram enfermagem, na São Camilo, nos pe-
ríodos matutino e noturno; a quinta opção foi enfermagem, na Unicid, no período noturno.
No final, nem bichos, nem mato, nem educação física: “a quarta foi para a qual eu pas-
sei, e também a Unicid, noturno enfermagem”. Contou que optou por estudar na São Camilo e
que, mesmo diante da emoção da mãe, procura conter-se: “quando eu entrei na faculdade, foi
um rio de lágrimas, até fiquei muito emocionada e disse: mãe, componha-se”.
Para Karen, o Prouni é um programa que preenche uma necessidade de oportunidade:
“acho que do que a gente tinha antes desse programa para o que se tem agora, está cem por
cento”.
106
Ela acredita que o Prouni abre portas, sendo o Enem considerado um critério mais jus-
to de promoção, uma vez que leva em conta o aprendizado do ensino médio: “é nesse momen-
to que se vai ver o quanto se estudou no ensino médio. Para prestar o Enem e para tirar uma
boa nota e para poder usar essa nota no Prouni”.
Ao ser interpelada se mudaria algo no programa, respondeu: “eu acho que, se pudesse
mudar, seria em relação a mais bolsas. Porque eu não sei quantas bolsas dão, mas acho que
pelo número de gente que precisa é pouco ainda. Se pudesse mudar alguma coisa, seria isso, o
número mesmo”. Na fala da jovem, evidencia-se que ela enxerga o programa como uma exce-
lente oportunidade de inserção no ensino superior para as camadas menos privilegiadas da
sociedade.
Ainda, em sua elocução vê-se incorporado o discurso da
promessa de mobilidade social oferecida às classes dominadas como resulta-
do da vitória na “livre competição meritocrática” baseia-se na educação for-
malmente democrática proposta pelos “liberais” [...]. A igualdade de oportu-
nidades é ponto importante da ideologia capitalista, pois garantiria aos mais
capazes, aos mais esforçados, [...] o acesso às melhores posições. A educa-
ção tornaria permeáveis as classes sociais, de modo que, quem não “subis-
se”, ou não teria se esforçado suficiente, ou teria sido menos capaz (ROSSI,
1980, p. 71).
Na avaliação de Karen, o Prouni não é algo que acontece gratuitamente, mas que reco-
nhece o esforço pessoal, e ela se julga merecedora.
Durante muitos anos, Beatriz, outra entrevistada, envolveu-se com atividades de repre-
sentação, o que a fez inicialmente, pensar em cursar teatro.
Todavia, no momento da inscrição para uma bolsa pelo Prouni, diante da tela de um
computador, precisou adaptar-se rapidamente às condições que lhe foram apresentadas.
Quanto às opções, falou: “a primeira vez que eu coloquei, fiquei muito feliz por ter en-
trado, mas a nota de corte não me possibilitava”. Contou que fez “várias opções até o último
momento”, modificando a cada instante as suas escolhas, conforme a nota de corte permitia.
Efetuava mudanças todos os dias, “porque é assim, aparecem para a gente uns quadri-
nhos. Quando eu fiz as minhas escolhas, as notas estavam entre 59 e 60, mas no outro dia eu
olhava e tinham subido para 70, porque as pessoas que tinham notas maiores que eu ti-
nham se inscrito para essas vagas”. Era preciso adequar-se ao oferecido.
Beatriz, motivada a cursar o ensino superior, desenvolveu técnicas para ajudá-la a ad-
ministrar as mudanças que era forçada a fazer: “eu comecei a mudar, comecei a mudar, vascu
107
lhei no site do Prouni, anotei tudo no caderninho, anotei todas as faculdades que tinha, as no-
tas que tinha por dia, e ali ia mudando, mudando, mudando, mudando”.
Fica evidente que a nota de corte, também para Beatriz, foi a referência e o limite das
possibilidades. Num primeiro momento, selecionou aquilo que gostaria de cursar: “eu pensei
em teatro, então coloquei teatro. Teatro. A segunda opção foi a Paulista de Artes, educação
artística. E na terceira, quarta e quinta opções eu coloquei pedagogia”.
Quando as possibilidades de cursar uma faculdade de teatro esgotaram-se, ela pensou:
“tudo bem, sem problema [...]. Eu queria fazer pedagogia, então eu comecei a focar só em
pedagogia”. E os critérios de escolha passaram a ser aquelas faculdades mais próximas de sua
casa:
Eu fui primeiro nas faculdades que eu conhecia, como em São Bernardo a
Metodista, que eu conhecia e que era perto de casa. E, assim, eu levei tam-
bém em consideração ser próximo da minha casa, porque tinha faculdade
que era longe, eu falei: “como é que eu vou fazer? Saio onze horas da
noite da faculdade? ir pra casa como?”
Sobre a importância que atribui ao Prouni, Beatriz considera que o programa possibili-
tou a realização de um sonho: cursar o ensino superior.
Se não fosse o Prouni, eu não estaria fazendo faculdade agora. O Prouni
essa possibilidade, entendeu?, de eu ter, este momento. Eu não tenho que me
preocupar com o pagamento, a única coisa que eu tenho que me preocupar é
a cada seis meses ir assinar a renovação de bolsa, só assim eu ganho a mi-
nha matrícula, só isso.
A vida continua, e o sonho de cursar teatro continua presente, como pode ser verifica-
do em seu depoimento.
Eu vou terminar de fazer, daqui a dois anos e meio, e vou para uma pós-
graduação em arte-educação. Arte-educação direto. A minha opção foi fazer
pedagogia e depois arte-educação. E vou ter um filho. E vou ter um filho, eu
estou com 31 para 32, se demorar muito não dá. (risos)
Os infortúnios, mesmo que não sejam percebidos assim por ela, não lhe destruíram o
sonho. Este permanece vivo, fazendo parte agora de seu projeto futuro, juntamente com o
desejo de ter um filho.
108
Eduardo ainda estava no presídio quando tomou conhecimento do Enem. A ele e aos
seus companheiros foi apresentada a ideia de realizarem o exame. Porém, em sua opinião, não
bastava expor uma idéia: aderir a ela envolvia convencimento, pois
o nível de escolaridade nestas instituições em que eu passei é muito alto, en-
tão tudo é mais difícil, todo mundo pensa, e alguns pensam muito mal de
muitas coisas, pensam mal de quase tudo e de uma forma muito negativa, en-
tão você tem de convencer [...] sempre que possível e bem argumentado, tu-
do é abraçado com vontade, ou repelido veementemente, então a questão é
você vender uma ideia.
O Enem apareceu para Eduardo como uma oportunidade diferente. Até então, no pre-
sídio, eram oferecidos apenas cursos profissionalizantes, que proporcionavam uma formação
técnica para aprimoramento profissional.
Prestamos o Enem. Eu cheguei em 2003, assisti aulas em 2004, nos pro-
puseram vários cursos profissionalizantes, como cabeleireiro, corte e costura,
cabeleireiro não, barbeiro, foram uns quatro ou cinco formados lá, inclusive
exercem essas funções. Algumas oficinas que prestavam serviço dentro,
para aprimorar a situação técnica do indivíduo, aproveitar quem tem e instru-
ir quem não tem, em nível de instrução, nível de prática, então dentro dessas
propostas, o que aconteceu, de 2004 para 2005, veio a proposta do Enem, em
2005 o Enem já estava lá.
Eduardo prestou o Enem em agosto de 2005. Em setembro do mesmo ano, foi transfe-
rido para o regime semiaberto, o que produziu nele a sensação de retorno à vida e de redesco-
berta de si mesmo. Naquele momento, “eu não pensei, eu estava em uma situação nova, uma
adaptação, quem eu sou, como eu sou. Vou botar o na rua, me situar. Fiquei cinco anos no
fechado, precisava me situar, tentar retomar a vida, e para retomar a vida eu tinha de estudar,
não tinha como”.
Nesse momento da vida de Eduardo, o grande empecilho para dar continuidade aos es-
tudos foi a situação financeira, pois “a minha realidade era assim, vou fazer um curso de 400,
mas eu não tenho formação para ganhar 600, eu vou gastar metade do meu salário em uma
faculdade, tenho filho, tem isto, tem aquilo, e é uma realidade”.
Eduardo até então disse não conhecer o Prouni e que nunca havia pensado em fazer
uma faculdade. Mas, “de repente, chegam os resultados oficiais do Enem, e também abrem
as inscrições para o Prouni. que eu fui saber o que era Prouni, como funcionava, mas vis-
lumbrar cem por cento não, porque eu nunca pensei em fazer uma faculdade”.
109
Com o Enem realizado, Eduardo está habilitado a se inscrever para uma bolsa de estu-
dos pelo Prouni, podendo, inclusive, pensar em dar continuidade aos estudos.
Diante da possibilidade de estudar com uma bolsa de cem por cento, Eduardo acredita
que vale a pena tentar: bolsa cem por cento, eu falei, se eu conseguir uma bolsa cem por
cento, acho que vale a pena tentar”.
Considerou sua formação técnica anterior, pensou em estudar fisioterapia, não conside-
rando sua vontade, mas a praticidade, já que “era massagista prático”.
Não a minha vontade, mas a minha possibilidade de exercer a função. Eu sou
massagista prático. Às vezes, as pessoas me perguntam onde foi, como foi
que eu aprendi, e eu não consigo dizer, faz parte do meu ser, não sei quando
começou.
Frente à necessidade de escolher cursos, seu sonho, como ele disse, ficou nas extremi-
dades das opções. Não acreditava que teria chance de conseguir uma bolsa de estudos para
fisioterapia. Então, dentre as possibilidades, também escolheu pedagogia e direito. De manei-
ra confusa, mencionou:
Eu coloquei fisioterapia, uma em cada ponto. E no centro eu coloquei peda-
gogia, isto é, as quatro primeiras e as três últimas eu coloquei direito, porque
eu já tinha estudado alguma coisa sobre nota de corte, então a nota de corte,
ela me tirava naturalmente. Eu coloquei pedagogia depois porque eu sabia
que eu ia pegar.
Ele narrou como foi o seu processo de escolha:
Eu tinha que ir com certeza, e o que eu tinha certeza era isso. Fisioterapia,
que eu conhecia; direito, que eu tinha certeza que não ia, porque a nota não
permitia. Eu pensei: vou disputar uma ou duas vagas com muita gente, den-
tro do Prouni, então, se eu tenho que concorrer com uma pré-seleção, eu
vou fazer pedagogia.
Contou ainda que procurou conhecer o curso de pedagogia, no qual tinha certeza de
que conseguiria ingressar.
Então eu fui estudar para saber o que é pedagogia, qual o tipo de formação
que tem, o currículo que oferecia, tudo, e como você tem de dizer o curso e a
unidade onde você vai fazer, eu pensei: Álvares Penteado é do lado, vou
dar uma passadinha lá, não dói nada. Fui na Álvares Penteado, olhei, o-
lhei, peguei algumas informações com o pessoal ali, pedi um folder, um fo-
lheto, alguma coisa, e conversando com uma menina que estava fazendo pe
110
dagogia ela me entregou uma ementa do curso, com todas as matérias do
curso, então, decidido.
Eduardo precisava se adequar. Além do curso, era necessário conciliar horários e loca-
lidade, pois precisaria se apresentar todas as noites no presídio, uma vez que estava na condi-
ção de regime semiaberto.
A unidade da faculdade foi escolhida pela proximidade do centro, ou seja,
facilitando a situação que eu estava vivendo quanto ao desenvolvimento de-
la, ou seja, eu teria condição de chegar, sem ter problema de horário na uni-
dade, e saindo de eu teria condição de me locomover da minha residência
para cá.
Para ele, poder cursar o ensino superior, mesmo tendo declarado nunca ter pensado
nisso, foi uma vitória e deu-lhe ânimo. Um ensejo para poder superar sua condição de presidi-
ário.
Apesar de considerar-se um estudioso nato, um autodidata, confessou que a faculdade
lhe trouxe novos desafios.
O curso superior é uma coisa de louco. É difícil, porque o sistema que é uti-
lizado dentro do curso superior exige uma certa responsabilidade maior do
aluno. O interesse do aluno é que demanda a capacidade ou não que o pro-
fessor vai ter de transmitir aquele conteúdo, aquela ideia, aquele conceito. E
o que acontece?. O pessoal mais novo da sala trabalhou com um sistema di-
ferente no ensino médio. Como eu não fiz o ensino médio de maneira tradi-
cional, e o meu fundamental é muito antigo, o que eu tenho é o meu conhe-
cimento autodidata, o que aconteceu, foi um período de adaptação curto, po-
rém muito intenso.
Eduardo se emocionou ao lembrar de seus sentimentos nos primeiros dias de aula, por
estar estudando, fato até então excluído de sua vida, de seus quereres.
Ele (o curso) faz parte da minha vida tanto quanto tudo o que eu fiz, com
uma semana de curso eu me sentia assim: bem, primeiro tem de passar o êx-
tase. Eu nem posso falar direito que eu ainda me emociono, o êxtase de estar
em uma sala de curso superior, com uma proposta que, dentro da estrutura de
tudo que eu passei, de tudo que eu vivi, já tinha sido colocada fora de ques-
tão, já não fazia parte dos meus quereres e, de repente, apesar de tudo que eu
passei, eu estar ali dentro. Foi emocionante, é emocionante ainda, mas eu
não posso espalhar isto por , eu choro muito, é uma coisa que já faz parte
de mim, de que eu não consigo me separar mais. Hoje eu penso pedagogia,
eu penso filosofia, eu penso história da educação. Hoje eu vivo cada uma das
matérias que eu tive, e tem um detalhe: eu não deixo de viver porque ela pa-
rou, ainda existe um diálogo permanente com coisas que eu tive no primeiro,
no segundo semestre.
111
Diante da grandeza da realização pessoal, Eduardo avalia de maneira altamente positi-
va o Prouni e acredita que este é o melhor programa em educação: a melhor coisa que foi
feita em matéria de educação”.
Defende também a qualidade do aprendizado dos alunos bolsistas, pois a necessi-
dade de apresentar bons rendimentos no final de cada semestre para que a bolsa tenha conti-
nuidade. Para ele, “nós, agora eu posso dizer nós, porque eu estou no quinto, quando eu
estava no primeiro não dava para dizer nós, mas nós do Prouni nos destacamos em todos os
cursos que fazemos”.
Hoje, Eduardo defende a importância de um curso superior, mesmo que o retorno fi-
nanceiro não seja atraente. Argumentou:
Ninguém que se interesse muito pelos estudos é visto como normal, não é
uma coisa que tenha valor. Normalmente o indivíduo pergunta quanto você
vai ganhar com isto. Eu não vou falar para ele quanto é o salário de um pro-
fessor, em uma escolinha particular de educação infantil está entre 810 e 900
reais, ou seja, eu ganho isto como manobrista, eu não preciso de formação
nenhuma. Se eu for dirigir e levar criancinhas para e para eu ganho
2000 a 2500 reais. Então, tirando a situação econômica, eu tenho a forma de
estudar, então a forma de estudar, não são todos os indivíduos que estão a-
costumados, e os que estão acostumados, muitos não sabem que o Prouni e-
xiste.
Para Eduardo o Prouni e o acesso que proporciona ao ensino superior é “alucinante;
emocionalmente, envolvente e delicioso”. A sequência de adjetivos demonstra a sua total feli-
cidade com o curso, com a faculdade, com o que a vida lhe proporcionou.
Elton, apesar de já estar no mercado de trabalho, ao escolher um curso de ensino supe-
rior, optou por aqueles que fizeram parte da sua formação, principalmente da formação fora
dos muros das escolas. Escolheu aqueles cursos que realmente o fizeram pensar e buscar o
conhecimento que interessava para ele.
Eu optei por letras e história. A primeira opção foi história na PUC, a se-
gunda opção foi letras no Mackenzie, a terceira opção agora não me lembro
ao certo, o que mais lembro foi que a antipenúltima opção foi ciências con-
tábeis na Unip.
Ao final, Elton, indeciso entre letras e ciências contábeis, optou pela última, porque
estava na área, em um escritório de contabilidade.
112
Quando perguntado se tinha sido fácil escolher entre uma e outra, prontamente res-
pondeu:
Foi sim, foi uma decisão bem pensada, até então porque é um emprego que
uma estrutura, uma base mais sólida entendeu?. Se eu quiser fazer um
curso de história depois da formação em ciências contábeis, não vou ter mui-
ta dificuldade em fazer. Mas se eu chegar e fizer um curso de letras, depois
terei mais dificuldades numa pós no curso de ciências contábeis.
Elton acredita na visibilidade que um curso superior proporciona às pessoas: “eu, na
área de ciências contábeis, procuro ser visto pelo mercado. Já acabei deixando alguns currícu-
los na Catho
27
e já recebi muitas ofertas de outros empregos”.
Para o rapaz, o Prouni, apesar de ter sido uma possibilidade, não foi a única. Caso não
tivesse conseguido bolsa, procuraria pagar uma faculdade, como anteriormente já o fizera.
Elton avalia que os programas de políticas públicas na área da educação, como o
Prouni, não resolvem o problema de tantos jovens, pois “a escola pública não tem a mínima
estrutura em transmitir conteúdo a um aluno, ao ponto dele passar em um bom curso em uma
universidade pública, como a USP”. Defende ainda que:
Não adianta você pegar e fornecer bolsas para as pessoas que têm dificulda-
des na base, entendeu? Eu tive um colega de classe que tinha grandes difi-
culdades em fazer regra de três, ele não era Prouni, eu não sei se veio de es-
cola pública. Tem pessoas que m problemas com redação também, uma
pessoa que não consegue colocar uma vírgula na redação!
Todavia, acredita que o Prouni cumpre o seu papel de possibilitar melhores qualifica-
ções para o trabalho: “se você pensar no Prouni como se fosse uma porta que a pessoa tem
para entrar no mercado de trabalho – bem, muito bem!” Para ele:
Hoje em dia, a universidade é um grande portal para uma pessoa que quer
buscar seu espaço no mercado de trabalho. As próprias universidades pro-
clamam: se você quer um grande sucesso em sua carreira, se matricule aqui.
Ver por esse lado, o Prouni fornece essa oportunidade de a pessoa ingressar
na faculdade, de modo gratuito, para se inserir no mercado de trabalho, “po-
xa”. Aí, maravilha!
Entretanto, Elton “na verdade” não entrou “no mercado de trabalho graças ao Prouni”,
apenas na universidade.
27
Catho, é um site de classificados de currículos e de empregos da América do Sul
113
O jovem tem consciência da utilitariedade do ensino superior. Acredita que a universi-
dade acrescenta novos conhecimentos voltados para o mercado de trabalho.
Eu acho que como experiência de vida acrescenta, sim. Acho que todo e
qualquer espaço onde se reúnam pessoas para buscar um objetivo, que é a
formação, acaba trazendo experiência pra vida. Percebe-se que cada pessoa
tem o seu modo de trilhar em busca de um objetivo. Acaba-se tendo confli-
tos ou até amizades, como em um trabalho em grupo, cada pessoa com um
modo de visão diferente. Você tem que debater, tem que saber conversar. Is-
so não vai ficar só ali, vai chegar a uma mesa de reunião, com clientes, e será
necessário saber discursar e convencer o cliente da maneira mais adequada
para a empresa dele. Acho que tudo isto é uma grande contribuição do ensi-
no superior.
Em suma, para Elton, o ensino superior proporciona melhores condições de emprega-
bilidade, sendo o Prouni apenas um dos elementos de acesso.
Tatiana, por estar engajada em projetos comunitários, buscou áreas que considerou a-
fins, como pedagogia ou direito. A necessidade de saber e de conhecer os direitos dos cida-
dãos instigou-a a pensar em sua própria qualificação:
Comecei a pensar em direito, simultaneamente com pedagogia, no movimen-
to, porque os conflitos que nós passamos acabaram despertando a necessida-
de de saber, de conhecer seu direito, para saber até aonde se pode e deve ir e
o que se pode exigir. Até onde está seu direito, onde está o abuso de autori-
dade, ver o que o governo está deixando de fazer, entendeu? Essas coisas,
sabe, lidando com as crianças, isso foi me despertando uma sede gigantesca
de justiça, e para mim educação e direito eram coisas que andavam juntas.
Eu não consigo separar. Hoje, principalmente, não consigo separar.
Uma experiência vivida em Criciúma reforçou o interesse de Tatiana pelas áreas de di-
reito e pedagogia, pois “o projeto era uma coisa que ligava educação e direito, e eu sempre
gostei muito de direito”. Assim, Tatiana foi
viver essa experiência em Criciúma na área de direito e educação, porque o
Cedeca trabalhava com menores infratores adolescentes em conflito com a
lei, que vinham de uma história de falta de educação e de falta de amparo
educacional por parte do governo, porque é o que acontece, é o que vemos
hoje em dia, o descaso da educação no nosso país realmente leva, sim, a uma
desigualdade social gigantesca, e que leva o jovem da periferia, sim, não é o
principal fator, mas eu acredito que seja um fator muito forte, que leva o jo-
vem da periferia a chegar à criminalidade, principalmente como está hoje. O
crime é mais atrativo que a escola. Eu fui conhecendo esse lado. Lá eu traba-
lhava com um advogado, com a promotora da cidade e
com os
adolescentes
em conflito com a lei no CIPES que é o Centro de Internação
114
Provisória. Me apaixonei de vez pelo direito e fiquei apenas três meses e
meio, realmente foi relâmpago.
Essa experiência, associada a sua própria história de vida, estimulou-a a disputar uma
vaga no ensino superior. Na tentativa de realizar seu sonho, prestou o Enem, objetivando con-
seguir uma bolsa de estudo.
Como a pontuação alcançada foi de 49 pontos, portanto insuficiente para tentar uma
vaga em direito, optou por pedagogia na Unicsul, porém não teve êxito nessa primeira tentati-
va.
Apaixonada por educação, resolveu então, por conta própria, “prestar vestibular na
Unicsul”. Foi aprovada e cursou pedagogia seis meses.
Mas as condições financeiras obrigaram-na a desistir do curso, tornando imperativa a
busca por outros meios para continuar estudando. Tatiana não desistiu, tentou novamente o
Enem, inscreveu-se novamente para uma bolsa de estudos pelo Prouni.
Agora, julgando-se um pouco mais preparada, procurou sair-se melhor na redação: “eu
tinha entendido que tanto para pedagogia na Unicsul, quanto direito no Mackenzie, as duas
instituições avaliam bastante a redação, e eu me lembro que duas semanas antes eu fiquei no
Mackenzie e treinei um pouco”. Foi aprovada em pedagogia na Unicsul.
No segundo semestre letivo, abriram-se as inscrições para o Prouni. Tatiana, imbuída
de coragem, resolve aproveitar mais essa oportunidade. Desta vez, direito no Mackenzie, sua
primeira e única opção. Não importando o resultado, Tatiana pensou
Quer saber? Se der, deu, senão, estou muito feliz na minha faculdade, e esta-
va realmente [...] ou era isso ou não era nada.
Veio então a surpresa:
Num belo dia, saiu o resultado, e estava lá, a bolinha amarela. Tremi dos pés
à cabeça, chorei que nem criança, porque a dúvida foi gigantesca. O que eu
ia fazer? estava certa numa coisa, que eu gostava e que gosto, muito, en-
tendeu? Mas estava diante de um salto gigantesco na vida, que é ser agente
de direito, entendeu?
Para Tatiana, a mudança de curso representou uma mudança de patamar que a igualará
a outros indivíduos pertencentes à camada mais privilegiada da população. Na verdade, o di-
reito é visto por ela como um
115
trampolim para brigar de igual para igual com outras pessoas, para estar no
mesmo patamar dessas pessoas que hoje dominam o mundo. Eu sei que eu
não vou mudar o mundo, não tenho esse idealismo de que vai acontecer uma
revolução, porque não vai, mas eu sei que se eu puder ajudar duas ou três
pessoas vou estar fazendo o meu papel, mas o meu objetivo realmente é usar
o direito para ser uma agente do direito que trabalhe somente em prol de jus-
tiça.
Assim que terminar a faculdade de direito, Tatiana pensa em retomar pedagogia,
até porque eu quero trabalhar com criança e adolescente [...]. É a área em
que eu quero trabalhar, eu sei que é loucura, por causa dos menores infrato-
res. Eu sei que é loucura, mas eu não consigo enxergar toda essa maldade
nos adolescentes infratores. Eu não consigo enxergá-los tão marginais assim.
Para ela, a pedagogia é o único caminho de compreensão da infância e da adolescên-
cia. Tanto é que defende a necessidade de
todo juiz de direito, na área de criança e adolescente, todo advogado, todo
promotor, tinha que ter feito um curso de pedagogia para entender um pou-
quinho de todas as matérias, a psicomotricidade, o conviver com a criança, o
entender a infância, porque eu acho que faz muita diferença na hora de en-
tender o problema daquele garoto.
O grande sonho da estudante é poder implantar um projeto na Fundação Casa, fazendo
uso dos conhecimentos adquiridos no direito e na pedagogia, um agregando ao outro e ambos
tornando possível uma vida melhor aos menores infratores.
Apesar de envolta em sua genericidade “em-si”, Tatiana, ao apresentar uma possibili-
dade de mediação social que proporcionaria a superação, demonstra, mesmo que de forma
embrionária, a tentativa de superação de sua relação imediata com a realidade.
Como aponta Duarte: “o fato de que o processo de ascensão à individualidade para-si é
um processo contraditório e repleto de conflitos não significa que o indivíduo não aspire a
uma vida na qual ele se sinta bem no mundo, mas sim que ele deseja um mundo no qual todos
os homens se sintam bem” (1993, p. 192), como é a aspiração de Tatiana.
Tatiana, ao aferir importância ao Prouni, credita-lhe o fato de ser um programa que
traz oportunidades. O Prouni, para ela,
apesar de ser um programa a princípio com fins assistencialistas, é um pro-
grama que traz oportunidades. Pelo que eu percebo e quase todo mundo que
eu conheço é que a oportunidade que é dada é agarrada com muita força,
com muita força mesmo. É muito valor que se dá.
116
Programas como o Prouni, diante da grande dívida social acumulada pela camada do-
minante e pelo Estado, apesar de procurarem instrumentalizar a razão, ao invés de formarem
para a reflexão sobre a realidade, configuram-se, muitas vezes, como única alternativa àqueles
que precisam da educação como meio de inserção social.
Quanto aos contemplados, a jovem acredita que são
muito diferentes da maioria da minha sala, por exemplo, que o pai paga a fa-
culdade, não se preocupa em pegar umas dependências, não se preocupa em
fazer seis ou sete anos de faculdade. Para o aluno do Prouni faz muita dife-
rença, porque já está correndo atrás de um tempo que não tinha, ele sabe que
não teve. O que eu percebo é que agarra com muita vontade essa oportuni-
dade.
Daí a credibilidade dada por Tatiana ao programa.
Os depoimentos dos entrevistados revelam as necessidades criadas socialmente e im-
postas pelos meios de produção. Estudar em uma faculdade é uma necessidade, construída
para manter a empregabilidade, mesmo em situação de não trabalho.
Portanto, “a consciência que reflete a realidade adquire um certo caráter de possibili-
dade” (LUKÁCS, 1981, p.16). O reflexo na consciência dos alunos entrevistados, frente ao
ensino superior, é de possibilidade, de alcance do pleno emprego.
Os depoimentos comprovaram a amplitude das aceitações. As escolhas são realizadas a
partir das possibilidades postas.
Neste caso, quando o trabalho é realizado num sentido ainda mais próprio, a
alternativa revela ainda mais claramente a sua verdadeira essência: não se
trata apenas de um único ato de decisão, mas de um processo, uma ininter-
rupta cadeia temporal de alternativas sempre novas (LUKÁCS, 1981, p. 18).
A possibilidade de emprego, aberta no curso superior, induziu os depoentes a elaborar
no imediato, ou seja, em suas genericidades “em-si”, a importância dos cursos possíveis.
O que vemos então é que o Prouni reforça a significação social posta ao ensino superi-
or. Ou seja, reforça a meritocracia, valor presente na nossa sociedade. Para os alunos, a edu-
cação superior é imprescindível para conquistar empregos mais valorizados social e economi-
camente. No caso do aluno contemplado com uma bolsa do Prouni, verifica-se que a mérito
cracia como reflexo na consciência mediada pela possibilidade (alternativa) é sintetizada co-
mo: melhorar sua condição por meio da conquista de bons empregos.
117
Certamente o caráter de alternativa da decisão de realizar a posição teleoló-
gica se torna mais complexo, mas isto apenas aumenta a sua importância en-
quanto salto da possibilidade à realidade. Para o homem primitivo, o objeto
da alternativa é somente a utilidade imediata em geral, ao passo que, na me-
dida em que se desenvolve o caráter social da produção, isto é, da economia,
as alternativas assumem um modo de ser cada vez mais diversificado, mais
diferenciado (LUKÁCS, 1981, p. 20).
As alternativas fazem parte das características da cotidianidade social, do “mundo em
que vivemos”. Entre os entrevistados, observamos o individualismo “em-si”, característico da
formação de todos nós, nas relações sociais postas. Raros foram os depoimentos que indica-
vam um nível de consciência sobre o fato de que a mudança da condição da precarização hu-
mana, social e econômica em que se encontram, poderia se dar de outra forma, talvez, por
uma ação de toda a sociedade. Por outro lado, os relatos sobre os cursos reforçam também
esta visão, pois voltam-se especialmente para a formação de profissionais “atrativos” ao mer-
cado. Ou seja, estamos diante de um círculo vicioso em que a perspectiva da formação huma-
na plena nem se coloca como possibilidade. Esta constatação será desdobrada nas considera-
ções finais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho teve como sujeitos de estudo nove alunos de ensino superior com
bolsa concedida pelo Prouni. O objetivo principal foi o de verificar se a significação social
que esses alunos atribuem ao Prouni ocorre na genericidade do “em-si” ou do “para-si”, posto
que a formação, como prática social, pode ser mediadora de uma humanização mais plena
pelo acesso do aluno à cultura mais ampla, à ciência e à arte.
Por meio da análise dos depoimentos, buscou-se compreender como esses alunos sig-
nificam a experiência universitária, considerando os impactos na sua formação e o lugar ocu-
pado pelo Prouni nessa experiência.
Buscou-se, para isso, traçar a trajetória de cada um, considerando a formação escolar,
a experiência familiar, com o meio social, econômico e cultural no qual estão inseridos, suas
expectativas em relação ao ensino superior e a importância aferida às atividades exigidas pela
instituição que os remetem a experiências culturais.
Para responder ao desafio, esta pesquisadora transitou nos sentimentos, nas atitudes,
nas lembranças, nas dificuldades, nas lutas e vitórias que compõem a história desses persona-
gens, vidas cruzadas pela mesma política de intervenção social, Prouni.
Os estudos permitiram verificar que esses estudantes universitários significam o ensi-
no superior como meio de inserção no mercado de trabalho. Capacitar-se para o trabalho é
assegurar a sua condição de trabalhador. Na voz de cada um deles, a empregabilidade está
incorporada como meta a ser alcançada por meio do ensino superior. o há, por parte dos
entrevistados, a demonstração de uma consciência para-si, na discussão das relações de domi-
nação.
A eles, abriu-se a oportunidade, por meio de programas de políticas públicas, de ma-
tricular-se em uma faculdade privada. Assim, a realidade é apropriada a partir do que é possí-
vel. Desse modo, se adaptam, quase que imediatamente, aos cursos possíveis, pois a necessi-
dade maior é o fazer uma faculdade, possibilidade posta, até então a uma camada muito restri-
ta da população.
Os depoimentos comprovaram a amplitude das aceitações. As escolhas são realizadas
a partir das possibilidades postas. As possibilidades postas fazem parte das características da
cotidianidade. Revelam a tendência de realizar atividades sem ter certeza de seus resultados.
119
Os depoimentos mostraram que, quando as oportunidades de acesso ao ensino superior
são oferecidas, não há demonstração de uma compreensão crítica da realidade.
Essa pesquisa demonstrou que a simples inserção do jovem no ensino superior não é
garantia da objetivação plena que produziria indivíduos livres e universais.
O ensino superior conquistado por meio de um programa de políticas públicas do go-
verno federal, não garante a conquista da igualdade social, pois a competição individual ou a
mentalidade competitiva é a conduta imposta pelo capital.
Paradoxalmente, os depoimentos mostraram que a escola é vista, muitas vezes, como a
única instituição capaz de promover a superação dos problemas econômicos e sociais que
vivenciam, mesmo que muitas vezes criticada pela qualidade oferecida.
A realidade social da possibilidade de um curso superior induziu os depoentes a elabo-
rar no imediato, ou seja, em suas genericidades em-si”, a importância dos cursos possíveis.
Essa elaboração teleológica é realizada a partir da importância dada pela própria sociedade
aos estudos superiores, como meio de valorização da capacidade laboral.
Os depoentes demonstraram no decorrer de suas falas um grau de consciência do “em
si” diferenciados. O que, não poderia deixar de ser, uma vez que, como aponta Duarte (1993)
a genericidade “em si” faz parte da humanização, a apropriação das objetivações genéricas
“em-si” não ocorrem de forma idêntica para todos os seres humanos.
Entretanto, esta diferenciação na significação, elaborada por esses alunos, se deu não
por conta dos estudos superiores realizados, mas por conta das trajetórias individuais de vida.
Assim, a educação formal veiculada no mundo capitalista, que poderia promover seres
genéricos para-si, estabelecendo “uma relação consciente livre e universal com o gênero hu-
mano”, corrobora, na verdade, com o fortalecimento do capital e, consequentemente com a
manutenção de uma relação social imediata e alienada, como visto nos depoimentos dos en-
trevistados dessa história.
Quando falamos da vida de qualquer pessoa humana, não espaço para um ponto fi-
nal, posto que o mundo se transforma a cada instante e as pessoas também, havendo sempre
novos conhecimentos a serem descobertos a respeito de um mesmo indivíduo ou de um grupo
de indivíduos, de suas vidas, de suas histórias. Deste modo, coloca-se nesta pesquisa um pon-
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APÊNDICES: ENTREVISTAS
Beatriz Rodeiro Martinez
13/06/2009
Márcia – Beatriz, onde você estuda, que curso você está fazendo e que semestre está?
BeatrizBom, eu estou estudando na Uniesp - Faculdade Renascença, no centro de São Pau-
lo, no Anhangabaú, estudo Pedagogia e estou cursando o terceiro semestre, finalizando o ter-
ceiro semestre.
Márcia – Está acabando então?
Beatriz Dia quinze termina, dia quinze não tem prova até o dia dezessete, se eu não me en-
gano.
Márcia Beatriz, fale um pouco da sua trajetória de vida antes da Faculdade, por que chegou
à Faculdade, o que significa o curso pedagogia para você, então como foi até antes da facul-
dade?
Beatriz Bom, eu com dezenove anos, comecei fazer teatro na minha cidade aqui mesmo no
centro cultural.
Márcia – Qual que é a sua cidade?
Beatriz – Ribeirão Pires.
Beatriz É, e eu comecei fazer teatro com dezenove anos, no centro cultural, que era gra-
tuito e eu estava sempre procurando alguma coisa para fazer.
Márcia – E por que você foi fazer teatro?
Beatriz Foi uma coisa louca assim, eu tinha terminado um noivado, estava chorando em
casa, chorando, minha mãe estava fazendo teatro porque ela tinha entrado na rede da prefeitu-
ra.
Márcia – Sua mãe fazendo teatro?
Beatriz Ela tinha acabado de entrar na prefeitura e a prefeitura estava promovendo um cur-
so de “contação” de histórias.
Márcia – Para as crianças?
Beatriz Para elas, e eles estavam promovendo este curso e a minha mãe estava fazendo
esse curso com o Professor Zeca Capelini, ele desenvolveu um curso de teatro e teve um
dia que eu estava chorando desesperada, minha mãe disse: “levanta daí, vamos comigo.” Eu
comecei a chorar (risos). E aí eu fui.
Márcia
– Você já tinha terminado o ensino médio?
Beatriz – Já, já tinha terminado com dezessete anos eu terminei.
131
Márcia – Com dezessete anos?
Beatriz – Com dezessete eu terminei, é que eu sou adiantada.
Márcia - Você é de outubro?
Beatriz Eu sou de julho. E aí, assim quando eu saí do ensino médio eu cuidei das minhas
irmãs, estava cuidando das minhas irmãs, e minha mãe estava fazendo faculdade na época e
eu fiquei meio parada assim, cuidando de casa. Fazendo comida, essas coisas. (risos). Levava
a irmã para escola, ia a reunião de irmã, era isso que eu fazia, assim mesmo, responsabilidade
da minha mãe.
Márcia - Você não pensava na época em fazer faculdade?
BeatrizNão, porque era meio perdida, não sabia o que eu queria fazer, a única coisa que eu
sabia que eu gostava era de cozinhar, todo mundo falava votem que fazer Nutrição, tem
que fazer Nutrição, mas eu era meio, por incrível que pareça, tímida, era muito tímida.
Márcia – Era tímida?
Beatriz Eu não falava, não falava em fila de banco, não pedia, não comprava nada na far-
mácia, eu era muito tímida eu era muito, assim tinha uma auto-estima baixa, muito baixa, eu
não acreditava em mim, eu fazia tudo o que as pessoas me pediam para não contrariar nin-
guém, para que as pessoas continuassem gostando de mim, eu era assim, era assim, era gordi-
nha aquela coisa. Sempre sofri preconceito na escola e achava que era isso e só, e que a minha
vida é isso e que depois eu ia casar, quem sabe alguém me quisesse, e eu pensava em criar os
meus filhos.
Márcia – Isso foi aos dezenove anos?
Beatriz Foi aos dezenove, assim eu pensava tanto, quando eu terminei o meu noivado o
meu motivo era morrer, porque eu não via outro caminho para mim, a não ser casar e cuidar
de casa, aí foi que a minha mãe me levou para o teatro, aí eu cheguei lá. Na hora que eu entrei
assim, porque eu nunca tinha entrado em um teatro na minha vida, quando eu entrei no teatro
eu falei: “meu Deus do céu, que mundo é esse?” E aí, eu fui e fiz a minha inscrição, e eu fui
entrando aqui, entrando ali, o Alexandre Martim que era o coordenador da época, ele dava
aulas para quem era adulto. Ele me viu um dia lá, eu estava lá, estava lá, não tinha o que fazer
em casa (risos) eu estava lá, era do lado de casa, eu ia para lá, era julho estava tendo oficinas
de artes que eles faziam como curso de férias, estava tendo aula de cenografia e figurino e de
maquiagem artística, maquiagem de teatro, e eu estava lá, e eu fui lá, fiquei lá.
Márcia – Você não tinha feito nenhum curso ainda?
Beatriz
– Nada, eu só tinha feito a inscrição.
132
Márcia – Então, você só tinha feito a inscrição?
Beatriz – O curso começaria em agosto.
Márcia – E o que você fez?
Beatriz Fiquei rodeando, e um dia ele me achou e perguntou o que eu estava fazendo lá,
quem eu era, e ele me perguntou se eu não queria assistir uma aula, vamos lá. Ele me chamou
e eu fui e comecei, e eu não parei mais.
Márcia – Aí começou o curso?
Beatriz – Eu fiquei nesse curso de férias, e em agosto começou a oficina.
Márcia – Já era de teatro mesmo?
Beatriz – Já era de teatro, só que era um curso de coreografia, figurino e maquiagem.
Márcia – Ah, não era representação?
Beatriz Não, era específico e comecei a fazer a oficina em agosto, eu e minha mãe. Eu,
minha mãe, minha irmã, nós três fomos fazer oficinas juntas, e eu fiz seis meses de oficina,
quando chegou dezembro, ele estava fazendo seleção de pessoas que ele achava interessante
entre os alunos para poder darem aula.
Márcia – E aí você fez um curso de representação, então?
Beatriz Fiz, e fiz nesses seis meses. Fiz de teatro, oficina de teatro para adulto. Nós monta-
mos uma peça, montamos um espetáculo, e nesse meio tempo, eu fui convidada para atuar em
outro espetáculo que estava acontecendo e o Alexandre me chamou para fazer uma atuação,
porque eu canto também, ele me chamou para cantar em outro espetáculo que os dois têm e
assim, em seis meses, a minha vida mudou, eu falei “Jesus!” Do nada eu já estava o dia inteiro
no teatro. O Alexandre precisava de doze pessoas, ele precisava escolher doze pessoas que
seriam os multiplicadores, e que teriam outras capacitações, e ganhariam uma bolsa de cento e
cinquenta reais para poder dar aula para criança e adolescente.
Márcia – Onde?
Beatriz mesmo, porque ele ia ampliar. A visão dele era ampliar no segundo ano e abrir
mais oficinas, porque ele sozinho não conseguia dar aula para todo mundo, e ele usou esse
primeiro ano, para identificar algumas pessoas.
Márcia – Sim, com perfil?
Beatriz Com perfil para poder capacitar e continuar com o trabalho de multiplicação, e eu
fui escolhida, graças a Deus, fui escolhida e no ano seguinte comecei com o trabalho de
capacitação. Eu dava aula todos os sábados, era uma turma de interpretação pela manhã.
Márcia
– Quando foi isto?
133
Beatriz Foi, em, eu fiz aula em 90, em 97, em 98, em agosto de 90, eu comecei com a pri-
meira turma.
Márcia – Onze anos atrás.
Beatriz – Onze anos atrás.
Márcia – Uma vida já.
Beatriz – Uma vida, e aí eu comecei todos os sábados, nós dávamos aula, tinha capacitação às
segundas-feiras, e dávamos aula de manhã para uma turma de crianças, à tarde com os adoles-
centes e à noite nós tínhamos a nossa aula, que era ele quem dava para gente e, nessas capaci-
tações vinham pessoas da Unesp. Eu confundo Unesp, vieram pessoas da Unesp que eram
professores que trabalhavam com ele e vieram dar essas capacitações para nós e eu fiquei de
1994 a 2004. O Alexandre saiu, ele foi embora devido alguns problemas. Problemas políti-
cos de repasse de verbas.
Márcia – E o projeto foi cancelado?
Beatriz Não, o projeto não foi cancelado. O Alexandre Marques saiu, ele pediu para sair. E
veio outra pessoa no lugar dele, o Roberto Lima, uma ótima pessoa.
Márcia – Também de sua cidade?
Beatriz Não. O Alexandre também não era da cidade, era de São Paulo, de São Paulo, o
Roberto Lima também de São Paulo e ele veio para ficar como gerente, gerente de cultura.
Ele procurou dar continuidade ao trabalho, com a mesma filosofia do Alexandre, que era de
sempre ampliar os multiplicadores com qualidade, num trabalho com qualidade, então sempre
tinham as capacitações, tudo direitinho. E foi assim até 2004, quando o Roberto Lima saiu.
Ele passou da gerência de cultura para secretário da cultura e entrou o Cássio, de Santo An-
dré, que continuou com o trabalho. Quando o PT perdeu, entrou o PV e “amassa” tudo o que
se tinha feito e começa tudo de novo, então eu saí. Eu saí em dois mil e quatro.
Márcia – Em meio à mudança política?
Beatriz – Mas eu saí não por causa disso, não foi só por causa da política, porque eu acho que
eu tenho que trabalhar em todo lugar, mas em dois mil e quatro, nós abrimos uma ONG. Nós,
artistas, nos reunimos em um determinado lugar, em dois mil e dois. Nós precisávamos de
nota fiscal, porque nós nhamos muito problema com emissão de nota fiscal. Então o próprio
Gilberto Lima, na época, o secretário, sentou com a gente e contratou um profissional para
poder nos instruir como organizar uma cooperativa ou uma associação. Nós decidimos abrir
uma associação e eu fui nomeada diretora do departamento financeiro. Eu e mais algumas
pessoas começamos trabalhar nessa associação. Em dois mil e quatro, nós conseguimos um
projeto grande do Governo Federal que é o Programa Nacional do Primeiro Emprego e eu
134
como era diretora financeira, fiquei com a parte burocrática do trabalho. Deveria fazer todas
as prestações de contas, escrever projetos, fazer todas essas coisas e, eu não estava conseguin-
do conciliar o meu trabalho como multiplicadora, aqui no centro cultural. Como conseqüên-
cia, começou a ter um rendimento menor porque eu estava dividida, era muito trabalho, era
muita coisa burocrática que eu tinha que fazer e, eu não conseguia fazer as pesquisas paralelas
que eu fazia antes dos espetáculos. Comecei a perceber que não ia dar mais, porque assim,
infelizmente, o Programa Nacional de Primeiro Emprego estava me pagando um super salário
e aqui eu era voluntária, porque falar que você ganha cento e cinquenta reais não é um salário,
é um trabalho voluntário, e eu terminei esse ano com o trabalho do teatro.
Márcia – Em 2004?
Beatriz Em 2004, eu fechei, fiz a apresentação dos meus espetáculos, das minhas turmas e
eu não dei o meu nome de novo, porque tem um processo, vovai e faz uma ficha, e eu não
me apresentei.
Márcia – E você continuou com o projeto?
Beatriz Continuei com o projeto do primeiro emprego até 2006. Em 2004, nós atendemos
75 alunos daqui de Ribeirão. Daqui de Ribeirão mesmo, pessoas de vulnerabilidade social, de
dezesseis a vinte e quatro anos, que tem tudo a ver com o que eu queria, e eu comecei a visua-
lizar assim o que eu queria fazer mesmo, porque apesar de gostar de atuar, nunca foi para mim
uma coisa que me desse um prazer esplêndido assim.
Márcia – A atuação não lhe realizava?
Beatriz – O que me dava prazer era a arte-educação, era ver a transformação dos meus alunos
que entravam mudos e saiam falantes, como eu entrei muda e sai falante (risos). Sabe, para
mim era isso, era ver o meu aluno no palco. No final do trabalho os jovens estavam falando
sem timidez e, as mães ficavam muito agradecidas, elas diziam: “você mudou a vida do meu
filho. Ele conseguiu arrumar um emprego. Ele consegue se expressar, eu me emociono em
lembrar. Eu vi que eu tinha que fazer isso, tinha que fazer isso, arte-educação. O que eu faço
no trabalho de atriz é porque nunca se pode dar aula para um aluno se não está vivenciando,
se não está atuando, porque ele tem que ter a referência sua. O aluno tem que ver o professor
no palco. Ele tem que ver o professor atuando. Então todo o trabalho que eu faço de atuação é
para isso, é para criar referência, para nunca parar, para sempre renovar, trabalhar sempre com
diretores diferentes, para não ficarmos limitados.
Márcia – Isso você faz ainda?
135
BeatrizFaço apresentações infantis. Eu parei com o espetáculo adulto, parei justamente por
causa da faculdade, porque a gente tem temporada de quinta à domingo e não daria mais para
fazer temporada de espetáculo adulto.
Márcia Então, resumindo. Em 2004, você parou o seu trabalho de multiplicadora aqui em
Ribeirão Pires e assumiu a ONG que desenvolvia o atendimento aos jovens em relação ao
primeiro emprego, até 2006.
BeatrizEntão, quando chegou 2006 nós conseguimos nos inscrever em um edital do gover-
no, que é concorrido. Escrevemos um projeto e ganhamos a concorrência. Atendemos setenta
e cinco alunos em 2004, e em 2006 atendemos cento e setenta e cinco alunos. Nós ampliamos,
atendemos Ribeirão Pires, Mauá, Santo André, atendemos vários alunos, e a demanda foi
maior, a responsabilidade aumentou e assim, eles viram que ONGs pequenininhas como a
nossa estava crescendo e a política de novo veio.
Márcia – O que aconteceu?
Beatriz – Dificultaram o processo de seleção. Na época, eu era a responsável técnica, e veio a
exigência de que o responsável técnico, para assinar o projeto, teria que ter graduação, todos
os professores teriam quer ser graduados e o coordenador pedagógico também teria que ser
graduado. Na nossa ONG dois eram graduados, tinham feito Educação Artística, tinham se
graduado naquele ano, tinham terminado, e eu falei: “gente, continuem, eu não posso mais
trabalhar, mas vocês podem trabalhar, não tem problema, eu vou correr atrás do prejuízo, por-
que eu não fiz antes, eu vou ter que correr atrás agora”. Então me afastei desse projeto, conti-
nuei na associação, me afastei do projeto. Mas eles não conseguiram ganhar outros editais,
porque quando se tira uma pessoa, desfalca uma equipe. Você tem uma equipe, de repente
saem duas pessoas do processo burocrático, complica. Quem é arte educador não sabe, não
sabe lidar com isso, que é muito difícil, é muito difícil usar as palavras certas para fazer um
projeto e ir a uma reunião que tem só gente importante, saber falar e saber articular.
Márcia – Você levou um tempo para se preparar?
Beatriz – Levei um tempo, eu me preparei desde 2002, e eu saí para ir para a faculdade.
Márcia – Quando mesmo você terminou o ensino médio?
Beatriz – Em 1994.
Márcia – Em 1994, você tinha dezessete anos.
Beatriz – Eu tinha dezessete anos.
Márcia Quando você parou para pensar que tinha que fazer a faculdade, quantos anos você
tinha?
136
Beatriz Já tinha vinte e sete anos. E eu falei: “Meu Deus, agora eu tenho que correr atrás.”
Financeiramente não conseguiria.
Márcia – Por quê?
Beatriz Porque eu morava sozinha nos fundos da minha casa, nessa época eu pagava to-
das as minhas contas. Foi quando encerrou a pensão de meu pai, não tinha mais pensão. A
minha mãe só estava com a prefeitura que pagava somente setecentos, oitocentos reais. Quan-
do eu trabalhava, sempre pagava minhas contas. Eu nunca deixei minha mãe pagar minhas
contas, sempre paguei minhas contas. Eu não gosto e nunca pedi dinheiro para mim, para ci-
garro, por exemplo, para nada, por isso eu sempre trabalhei, desde quatorze anos para me sus-
tentar. Minha mãe sempre pagou a água, luz, alimentação e comida, porque tínhamos pensão
alimentícia do meu pai. Quando eu fiz vinte e dois anos, eu falei para ela que queria morar
sozinha, porque a minha vida não condizia mais com a vida da minha família. Eu tinha uma
vida noturna, eu ensaiava à noite e ensaiar faz barulho (risos). Começou, então, os atritos e
nós tínhamos inquilino na casa, quando o inquilino saiu, eu falei para a minha mãe me deixar
morar ali nos fundos. Na época, eu estava trabalhando no telemarketing e estava no teatro.
Márcia – E você dava conta de tudo?
Beatriz Dava. Eu estava apresentando Saltimbancos que era uma peça infantil, daí fecha-
mos com a Prefeitura de Ribeirão e era assim. Fazia apresentação de manhã, saía daqui às seis
horas e ia para escola fazer as apresentações, levava a minha roupinha e o meu salto alto na
mala (risos), tirava a maquiagem, passava a outra maquiagem. A perua me deixava no centro
de Ribeirão, eu pegava o trem meio dia, para estar às duas horas no Jabaquara.
Márcia – Isso quando?
Beatriz – Isso em 2001.
Márcia – E você trabalhava no telemarketing, no Jabaquara?
Beatriz No telemarketing no Jabaquara. Eu fazia isso todo dia, durante dois meses. Eu saía
às vinte horas.
Márcia – E ia ensaiar?
BeatrizNão, ensaiar não, porque a gente já tinha deixado pronto o espetáculo. Eu tinha que
estar com a voz boa, porque eu cantava, era um espetáculo que eu cantava, tinha que estar
com a voz boa, aquela “coisa”, tinha de estar ungida.
Márcia Foi quando vopercebeu que precisava fazer um curso superior? Como foi esse
momento?
137
BeatrizEu pensei “tenho de dar um jeito”. A minha preocupação era o quê. Eu sempre quis
fazer artes, eu sempre quis fazer artes, desde antes de assumir o programa do primeiro empre-
go. Meu foco sempre foi fazer artes, eu queria fazer educação artística, artes cênicas, alguma
coisa assim, mais educação artística do que artes cênicas, eu sempre quis. Só que quando eu
assumi o projeto do primeiro emprego, eu comecei a me questionar. Eu pensei: “gente, será
que tudo o que eu tenho de artes não vai agregar mais na pedagogia do que eu estudar tudo de
novo?” Eu penso muito nisso, sabe, de concorrer com pessoas que tem até capacitações me-
lhores do que eu, sabe, que já trabalham que estão no mundo. Eu estava em dúvida se eu fazia
pedagogia ou fazia educação artística. Eu estava muito em dúvida. que o curso de pedago-
gia era duzentos e oitenta reais e o de educação artística era seiscentos.
Márcia – como você soube dos valores?
Beatriz – Vi na Firp
28
, que é a faculdade daqui de Ribeirão, só tinha pedagogia e eram duzen-
tos e oitenta reais; em Santo André, na Faculdade Coração de Jesus, que é onde tinha edu-
cação artística, estava seiscentos reais.
Márcia – Um valor alto para você?
Beatriz Alto?! Não, não tinha como, não tinha. Não tinha, imagina, eu ganhava no telemar-
keting seiscentos reais a setecentos reais, não tinha como eu pagar, não dava. Era irreal, por-
que eu tinha que pagar a minha alimentação, condução, aqui e ali, não, não dava. E eu come-
cei a pensar, eu tenho que fazer alguma coisa, fui procurar informação sobre o Fies. Fui à
Caixa Econômica procurar, porque a minha amiga tinha conseguido pelo Fies. Fui procurar o
Fies, o programa Escola da Família, porque outros amigos meus também tinham feito pelo
programa Escola da Família. Fui à escola, conversar com o coordenador do Programa Escola
da Família, ele falou que eu tinha que escrever um projeto. Só que primeiro eu tinha que fazer
a minha matrícula no ensino superior, fazer a matrícula na faculdade e ver se a faculdade tinha
um programa.
Márcia – Se a faculdade estava associava a um programa do governo?
BeatrizÉ. Se estava associada a um programa. E eu fui procurar essas informações aqui em
Ribeirão mesmo. A minha amiga foi comigo e ela falou para mim que tinha que fazer a mes-
ma coisa, entrar na faculdade, fazer matrícula e ver se tinha o programa.
Márcia – Da Escola da Família?
Beatriz – Tanto para a Escola da Família quanto para o Fies. É a mesma coisa.
Márcia –. Você estava vendo as duas coisas?
28
FIRP – Faculdades Integradas de Ribeirão Pires
138
Beatriz É. Nesse meio caminho um amigo me falou assim “porque que você não tenta o
Prouni?”. Eu já tinha ouvido falar alguma coisa, já tinha ouvido falar muito vagamente.
Márcia – Do Prouni?
Beatriz – É. Estava no começo ainda, estava começando.
Márcia – Isso foi quando?
Beatriz Foi em dois mil e seis. Então nós não sabíamos muito como que era isso. E ai eu
perguntei para ele como que é que funcionava. Ele falou: “olha, eu sei que você tem que pres-
tar o Enem”. E na minha cabeça, esse negócio de Enem era só quando você terminasse o ensi-
no médio. Achava que não poderia prestar depois do ensino médio. Mas guardei isso na mi-
nha cabeça.
Márcia – Até o ensino médio você fez na escola pública?
Beatriz blica. Sempre, estudei em escola blica. Estudei no Sesi, aqui em Ribeirão. O
meu pai era da indústria, e eu estudei no Sesi. Fiquei com isso na minha cabeça. Guardei esse
nomezinho.
Márcia – Prouni.
Beatriz É. E fui trabalhar, eu precisava. Eu fui procurar emprego, fui “caçar”. Foi quando
eu comecei a enviar meu currículo para algumas agências. Comecei a trabalhar com recrea-
ção, voltei a trabalhar com recreação, que era uma coisa que eu trabalhava muito tempo,
trabalhei como autônoma, fazendo um bico aqui, um bico ali. Nisso, chegou esse a época de
inscrição no Enem. Fui e fiz minha inscrição e prestei. Nem estudei, eu tinha parado a escola
em 1994. Eu pensei assim: “eu vou na ‘louca’, não vou estudar nada, eu quero ver como que
estão os meus esquemas.” Me ferrei, me ferrei. (risos). Porque, a minha pontuação foi 36. Eu
não entendi a prova. Na segunda vez foi muito diferente. A prova desse primeiro ano que eu
fiz para o outro, foi completamente diferente.
Márcia – Será que você estava mais bem preparada?
Beatriz Não sei, não sei. Bom, enfim, mas eu sei que depois que eu fiz essa primeira prova
do Enem, eu destaquei a prova e pensei. gente, eu preciso engolir o mundo. (risos)”. Literal-
mente, eu precisava engolir o mundo para eu me capacitar. Eu nem pensei assim em estudar
matemática, não, eu falei assim: “eu preciso engolir o mundo!” Comecei a engolir o mundo.
Tudo que eu via, tudo de informação que eu via, eu parava assistia na televisão, o jornal, re-
vista, se alguém estava falando sobre política, eu escutava. Eu gosto de política, mas eu nunca
fui aquela pessoa de ficar estudando. E me enfiei, e ai tudo que falava de globalização, todas
aquelas palavras estranhas que iam falando, meio ambiente, eu fui querendo saber de tudo. E
prestei de novo, quando eu prestei de novo, eu consegui.
139
Márcia – Quantos pontos você fez?
Beatriz 69.7 pontos. Eu não acreditei. Eu não acreditei. Nesse ano o meu cunhado fez tam-
bém, na mesma época. Eu não acreditei. Porque quando saiu o gabarito, meu cunhado confe-
riu, eu falei: “gente!” E ele também acha impossível minha pontuação. Eu achei fácil a prova,
diferente da outra vez que eu tinha feito, eu achei fácil. Eu pensava assim: não, não é possível,
mas eu fiquei na minha. Então abriram as inscrições para o Prouni e eu fiz a inscrição.
Márcia – Pela internet?
Beatriz – Pela internet, tudo pela internet.
Márcia - E como foi a inscrição?
Beatriz – Você tem os seus dados lá, eles lhe dão uma carta com os dados.
Márcia – O Prouni?
Beatriz Não, o Enem. Você tem que ter o número e fazer a inscrição pelo número, você
entra lá no site do Prouni e tem que escolher até cinco cursos.
Márcia – Quais cursos você escolheu, você lembra?
Beatriz - Eu fiz várias opções até o último momento.
Márcia – Como assim, eu não entendi?
Beatriz – Porque são alguns dias que você tem de inscrição. Então assim, fecha, por exemplo,
eu não lembro agora que horário que fechava, acho que era às oito horas da noite.
Márcia – Você pode ir mudando?
Beatriz – Você pode mudar, você pode mudar.
Márcia – E você mudou muito?
Beatriz Lógico! A primeira vez que eu coloquei, eu muito feliz por ter entrado, mas a nota
de corte não me possibilitava.
Márcia – Que instituições eram?
Beatriz – Anhembi Morumbi. Anhembi Morumbi, lógico.
Márcia – E qual era o curso primeiro?
Beatriz – Eu pensei em teatro, então eu coloquei teatro.
Márcia – Então a sua primeira opção, no primeiro momento foi Anhembi Morumbi, teatro.
Beatriz Teatro. A segunda opção foi a Paulista de Artes, educação artística. E a terceira,
quarta e quinta opção eu coloquei pedagogia.
Márcia – Em que faculdade?
Beatriz – Firp, que foi a última.
Márcia
– Em Ribeirão Pires?
140
Beatriz É, aqui em Ribeirão, que foi a última, a última opção. Coloquei a Uninove, Unino-
ve, pois a minha nota também estava encaixando e coloquei, como é o nome daquela faculda-
de? Ai, esqueci, não era muito conhecida assim não, dessas bam-bam-bam, mas era uma que
não tinha o que falar.
Márcia – Isso foi a primeira seleção?
Beatriz – Primeira de tudo, primeira.
Márcia – Durante um tempo você foi mudando?
Beatriz – O dia inteiro.
Márcia – Todo dia você mudava?
Beatriz – Toda dia, todo dia.
Márcia – Por que você mudava?
Beatriz Porque é assim, aparecem para gente uns quadrinhos. Quando eu fiz as minhas es-
colhas, as notas estavam entre cinquenta e nove e sessenta, mas no outro dia eu olhava e
tinha subido para setenta, porque as pessoas que tinham notas maiores que eu, tinham se
inscrito para essas vagas.
Márcia– E depois?
Beatriz Eu comecei a mudar, comecei a mudar, vasculhei no site do Prouni, anotei tudo no
caderninho, anotei todas as faculdades que tinham, as notas que tinham por dia, e ali ia mu-
dando, mudando, mudando, mudando. Teve uma hora que as minhas opções de educação ar-
tística e artes se esgotaram. Eu pensei: “tudo bem, sem problema.” Eu queria fazer pedagogia,
então eu comecei a focar só em pedagogia.
Márcia – Quando você focou em pedagogia, você pensou em qual faculdade?
Beatriz – Eu pensei nas faculdades que eu conhecia. A Uniesp eu não conhecia e não era nem
Uniesp, era Faculdade Renascença.
Márcia – Então quais foram as suas opções?
BeatrizEu fui primeiro nas faculdades que eu conhecia, como em São Bernardo a Metodis-
ta, que eu conhecia e que era perto de casa. E assim, eu levei também em consideração ser
próximo da minha casa porque tinha faculdade que era longe, ai eu falei: “Como é que eu
vou fazer? Saio onze horas da noite da faculdade ir pra casa como?” Priorizei isso e no último
momento, no último, último, muito último, eu coloquei duas opções cem por cento.
Márcia – O que quer dizer esses 100%?
Beatriz – São 100% de bolsa. Porque você pode colocar opções cem por cento ou 50%.
Márcia
– Conforme a renda?
Beatriz – Não, a renda é depois. É que a minha renda dava tanto para 100% quanto para 50%.
141
Márcia – Você lembra qual foi a sua última opção? Vamos tentar, é que a gente tem que lem-
brar a última opção.
Beatriz – Eu acho que eu coloquei como primeira opção a Firp.
Márcia – A Firp, aqui, pedagogia. Pedagogia Firp.
Beatriz É. A segunda opção foi a Faculdade Renascença que era 100%. Ai depois eu colo-
quei três de 50%, duas na Uninove que foi em recursos humanos, no curso de recursos huma-
nos , uma de recursos humanos e uma eu esqueci, sabe quando você vai colocando porque não
tinha mais, teve uma hora num tinha mais opção. Tinha muita para administração e eu odeio,
odeio administração.
Márcia – Administração estava fora das suas opções?
Beatriz Não dá, não dá para eu colocar para uma coisa que não vai. Então eu coloquei re-
cursos humanos porque eu sei que é uma coisa que o teatro ajuda. É próximo e coloquei ges-
tão, acho que era gestão de recursos humanos, era na área. E a última era de 50%, de, eu num
vou lembrar.
Márcia - Está bom. Essa foi a sua última configuração?
Beatriz - Essa foi a minha última configuração. E eu fiquei esperando.
Márcia – Ficou esperando o resultado?
Beatriz – Mas tem que ficar esperando. É um sofrimento. (ri).
Márcia – E tudo internet?
Beatriz Tudo internet. A gente tem que ficar esperando a carta, porque tem primeira cha-
mada, segunda chamada e terceira chamada. Eu fiquei esperando até quando chegou uma car-
ta.
Márcia – Quem enviou?
Beatriz O Ministério da Educação, dizendo “Parabéns, você foi selecionada no Programa
do Prouni para a Faculdade tal, com bolsa integral cem por cento, você tem que comparecer
na faculdade levando todos os documentos comprobatórios no prazo de tanto a tanto. Para-
béns, cordialmente, não sei o que, não sei o que”. (ri).
Márcia – E o que você fez?
Beatriz – Ai eu falei: “ai meus Deus, onde é essa faculdade?” (risos).
Márcia – Onde é?
BeatrizOnde é essa faculdade?! (risos). Eu peguei, porque eles mandam o endereço, o tele-
fone, liguei para e eles indicaram o campus para eu levar os documentos e são muitos do-
cumentos, são muitos documentos, são muitos documentos.
Márcia
– Precisa levar todos?
142
Beatriz Levar tudo. Os meus documentos, os documentos de todos que moram comigo,
carteira profissional como a minha irmã tinha sido mandada embora, eu precisei levar a resci-
são, tudo, tudo, tudo, tudo. Por exemplo, eu lembro, na época, que eu peguei o holerite da
minha mãe e constava um salário de mil duzentos e quarenta e poucos reais. Eu havia arre-
dondado para mil duzentos e cinqüenta e eu pensei assim: “Meu Deus! Será que vai ter pro-
blema?” Porque eu tinha uma amiga que não conseguiu fazer a matrícula na faculdade por
falta de documento. Eu falei “pronto!” Eu tive que juntar os seis últimos holerites, os seis úl-
timos extratos de conta minha, da minha mãe, da minha irmã, cartão de crédito, extrato de
cartão de crédito, extrato de Marisa, de C&A, tudo, tudo, não podia faltar nada. Tudo, ajuntei
tudo. Ajuntei tudo, peguei a minha carteira, porque eu estava sem registro.
Márcia – Você levou todos os documentos para a Faculdade?
Beatriz – Levei todos os documentos, mas apresentar todos os documentos não quer dizer que
você conseguiu.
Márcia – Não?
Beatriz Não. A funcionária da faculdade falou que os meus documentos ficariam para
serem avaliados. Depois da avaliação eu teria de fazer uma prova, que é a prova da faculdade,
fazer a prova, a redação, tudo direitinho, e aguardar até que fosse chamada. Depois de tudo fui
chamada para fazer a matrícula.
Márcia – E o que aconteceu?
Beatriz Eles falaram que a unidade de Educação era na Rua Conselheiro Crispiniano. Eu
procurar porque eu não queria chegar atrasada no primeiro dia de aula (risos). Quando eu
cheguei em frente do nosso prédio, tudo destruído
29
, tudo acabado (risos), eu pensei: “gente,
não vai começar a aula.” E não começou mesmo. Eu fui no primeiro dia de aula, cheguei
não tinha aula. E foi isso assim, eu comecei assim, engraçado, eu tinha uma expectativa to-
talmente diferente.
Márcia – Qual expectativa você tinha?
Beatriz – Eu tinha uma expectativa que faculdade tivesse pessoas mais maduras.
Márcia – Em que sentido: maduras, de idade, de conhecimento?
Beatriz – Não, de conhecimento. De conhecimento.
Márcia – Fale um pouco disso.
Beatriz Sabe, a primeira coisa que eu observei na minha classe, acho que por ser uma fa-
culdade que não tem aula às sextas-feiras, ela agrega muito o pessoal da igreja Adventista,
29
A Mantenedora havia recém comprado o prédio na Rua Conselheiro Crispiniano e estava fazendo as reformas.
143
setenta por cento dos alunos da minha classe o adventistas, eu me senti um “ET”. Não
que eu tenha nada contra a religião, mas a minha religião é totalmente destoante do que eles
acreditam. (ri).
Márcia – Qual é a sua religião?
Beatriz – Eu sou cardecista. Então, é totalmente destoante.
Márcia – Mas você tem conflitos com o pessoal da sala?
Beatriz Não. Não tenho porque eu sou super aberta e eu acho que a gente discutir futebol,
religião, é para crescer, para aprender.
Márcia – Então qual foi o problema?
Beatriz Culturalmente é muito, muito destoante. É que eu sou muito crítica, eu sou muito
crítica.
Márcia – O que você estranhou?
Beatriz Você não consegue desenvolver uma conversa com alguém, porque eles são todos
pautados pela mídia, sabe?
Márcia – Como assim?
Beatriz Senso comum, essa é a palavra certa. É muito senso comum, então assim, quando
eu comecei a fazer o primeiro semestre de aula, eu estava com um pique, eu estava com uma
vontade de dividir tudo. Porque eu sou assim, eu não tenho medo de perder território, eu gosto
de dividir, eu acho que o objetivo, o meu objetivo quando eu fui fazer teatro é isso, é poder
pegar o que me fez crescer como pessoa e dividir, socializar mesmo, entendeu? E eu che-
guei com um pique muito grande, e eu encontrei nas meninas uma receptividade muito gran-
de. Eu não sei se foi um erro meu, porque eu encontrei ali na Márcia, na Mirna, na Firmina,
mesmo elas sendo adventistas, uma visão assim, mas, como é que eu posso dizer, mais políti-
ca, política no sentido de eu sei que existe, mas eu critico. Eu sei criticar e criticar sem ser
preconceituoso, criticar.
Márcia – E vocês ainda continuam juntas?
Beatriz Ainda continuamos juntas. Nós agregamos algumas pessoas. Nós somos meio crí-
ticas e chatas mesmo. Muita gente queria entrar no grupo para levar nota, sabe, e eu sou chata,
eu falo para as meninas: “olha, o dia que vocês não me quiserem no grupo porque eu sou as-
sim, vocês podem tirar que eu faço o trabalho sozinha, sem problema.” Eu não gosto de nin-
guém encostando. Agora, pessoa que eu vejo que tem mais dificuldade, tem uma menina lá,
eu percebo que ela é muito, ela é muito compromissada, sabe, mas ela tem dificuldade, ela
tem dificuldade. Ela fez, ela fez EJA, ela fez EJA, sabe. Então, a gente que ela quer, mas
ela tem dificuldade, essas pessoas eu agrego.
144
Márcia – E você acha que ela está melhorando?
Beatriz – Está. Eu falo para ela. Ela teve crescimento.
Márcia – Mas você estava me falando da decepção que você tem com o grupo no todo. Então
como você explica essa decepção? Você diz que é falta de conhecimento, falta de interesse, o
que você acha, qual é a sua decepção com o grupo?
BeatrizAs pessoas me falam muito sobre o que é a educação hoje em dia. Ah, quando vo
for dar aula você vai ver o que é.
Márcia – Que pessoas?
Beatriz Minha mãe que aula. Outros amigos meus que estão no Estado, estão na Pre-
feitura. Eles falam assim que é um ninho de cobras, falam com essas palavras.
Márcia – Com essas palavras.
Beatriz “Cuidado que a educação é um ninho de cobras. Sabe, quando você chegar com
essa sua idéia de socializar as pessoas vão querer lhe engolir porque é todo mundo individu-
al”. E eu percebo isso na minha classe.
Márcia – O que? A individualidade?
Beatriz A individualidade. Eu tenho faltado, tenho faltado porque assim, porque, às vezes,
eu tenho pouco tempo, estou cansada de ir para faculdade, para chegar lá e as pessoas ficarem
falando, falando, falando. O professor tentando falar e não conseguindo, às vezes eu vou fazer
uns trabalhos muito longe, em Arujá, é muito longe e eu não consigo chegar. E eu penso que é
melhor ir para a casa direto do que chegar às vinte horas na faculdade.
Márcia – Mas essa sua decepção é com o grupo, é com o curso ou é com a faculdade?
Beatriz Eu acho que em primeiro lugar, eu acho que é com o grupo e está movimentando
todas as outras coisas. Por exemplo, o fato da gente não ter uma sala de aula onde nós somos
parceiros, reflete na postura do professor.
Márcia – Como assim, fale um pouco disso.
Beatriz Eu não sei, não sei, parece que alguns professores não têm cronograma, fica uma
coisa meio solta, muito solta. E eu sou uma pessoa muito regrada.
Márcia – O que você chama de solta? Uma aula solta?
Beatriz Aula solta. Cronograma solto. Eu não gosto de falar isso, mas tem umas aulas, são
as aulas que eu estava mais esperando, que eram as aulas que trabalham a escrita e as aulas de
contextos culturais. E eu sinto, às vezes, que não tem uma sustentação, um sustento, é meio
solto. E eu tenho vontade de levantar e sair da aula.
145
Márcia Você sente a dificuldade do professor diante da classe? Você acha que essa dificul-
dade é do professor ou é dele em relação à turma? Como é que você essa dificuldade do
professor?
Beatriz – No semestre passado, tinham problemas com o professor mesmo.
Márcia – Em relação à didática?
Beatriz Do professor não ter didática, não ter preparação, em minha opinião. De não ter
preparação mesmo para estar dando aula para um grupo de faculdade. Mas eu acho que, por
outro lado, é porque trabalhar conteúdos de arte, dependendo da filosofia que a pessoa tem é
uma filosofia muito construtivista, então assim, nós vamos compartilhar, vamos socializar,
vamos fazer uma troca de conhecimento e nós vamos chegar a um resultado, a um objetivo.
Mas eu acho, que a minha classe, não está preparada para essa troca de conhecimento e eu
acho que, neste caso, o professor deveria ter um plano B.
Márcia – E não tem?
Beatriz – Não tem. Não tem.
Márcia – Isso lhe frustra?
Beatriz Muito. Nossa! Muito, muito. Sabe, alguns professores, por exemplo, criaram um
plano B, pode não ter sido um plano B eficaz, eficiente, pode não ter sido, mas alguns profes-
sores criaram um plano B e socializaram isso na sala de aula com a gente. Ele falou assim
“olha, eu não conseguia dar aula para vocês, eu tive que parar tudo que eu estava fazendo, e
propor outra atividade para ver se conseguia, pelo menos, chacoalhar alguns de vocês”. E fa-
lei, no meio de toda a classe: a gente vem para faculdade, a gente chega cansada, o pessoal
fala o tempo inteiro.
Márcia – Mas fala o quê?
Beatriz Paralelo, paralelo! Paralelo, sem respeito nenhum, sem respeito nenhum, sabe, sem
respeito nenhum, nenhum, nenhum. E quando falamos alguma coisa é porque estamos nos
achando. É isso que eu falo entendeu, é muito complicado e ficou muita rixa muito grande.
Márcia – Mas, você sente essa rixa?
Beatriz – Eu senti isso mais fortemente.
Márcia – Vamos fazer uma projeção, como é que você está imaginando a metade que falta do
curso?
Beatriz Ah, eu falei paras as meninas de nos transferirmos para outra classe, para outra
classe.
Márcia
– Então, o seu problema me parece, pelo que você está falando é com o grupo.
Beatriz – Com o grupo, com o grupo, com o grupo.
146
Márcia – Não tanto com a instituição então? Não tanto com os professores?
Beatriz – Não, a instituição tem o problema administrativo, que a gente sabe.
Márcia Mas, enquanto expectativa pessoal, enquanto pedagogia, você acha que o problema
maior é o grupo de alunos.
Beatriz – Para mim é, para mim é.
Márcia A faculdade proporciona possibilidades de superação do senso comum, como você
disse no início?
Beatriz O professor de filosofia deixou para o nosso grupo um seminário sobre Ana Haydt,
e eu senti um desafio, sabe, o professor desafiava a gente, querendo saber nossa opinião pe-
rante o texto. Eu não deixo ninguém falar. (risos).
Márcia – Você não deixa, e daí você falou mesmo?
Beatriz Nossa senhora! Não me desafia. Não me desafia que eu fico louca. E no final do
debate, foi o único seminário, não desmerecendo os meus colegas, mas leitura para mim não é
seminário, leitura para mim não é seminário, você pode até ter uma colinha para você se nor-
tear, porque eu sou uma pessoa que eu viajo. (risos). E no final do debate, porque virou um
debate o seminário, eu falei para o professor: “é, quem sabe agora o pessoal se localiza.” Mas
eu sei que isso é um problema que o professor tem, eu sei disso, eu me vejo no lugar de vocês,
eu tenho empatia o suficiente para me colocar no lugar de vocês e saber que tem uma estrutu-
ra atrás de mim que fala assim “você tem que segurar o aluno”, entendeu, e a vontade é fe-
char, falar “vem cá, vamos trabalhar, vamos desenvolver, vamos”.
Márcia – Você acha que o nível poderia ser outra na sua sala de aula?
Beatriz Eu acho que isso é geral, das faculdades particulares. Eu acho que a USP é o que é
hoje porque não segura aluno, entendeu, mas a faculdade particular, ela precisa do aluno por-
que ele paga a mensalidade. Então, ela vai segurar, e com isso, para mim, a qualidade cai, ela
cai porque o professor não tem como. Eu vejo assim, o professor está dando aula na faculdade
para uma turma de semestre.
Márcia – Você tem essa sensação?
Beatriz – Essa sensação.
Márcia E aí, faltam três semestres e meio. Como é que você está se sentindo, você vai ter-
minar.
Beatriz Eu vou terminar, vou terminar. Apareceu uma proposta de emprego para mim ago-
ra.
Márcia
– Por conta da faculdade?
Beatriz – Sim. Se eu não tivesse, eu não teria arrumado.
147
Márcia – Você não se arrepende, você acha que está no caminho certo?
Beatriz Não, não, não me arrependo mesmo. Eu acho assim que eu estava com uma, uma
visão bem romântica do que é uma faculdade. Agora eu sei o que é. É isso e eu vou ter que
levar isso até o final e eu tenho certeza que a cada semestre vai só piorar esse tipo de situação.
Márcia – Mas em que a faculdade está lhe trazendo benefício? Pessoal, não em termos de vo-
cê conseguir um emprego, mas pessoal.
Beatriz Pessoal... Eu já era crítica (risos), porque eu sou insuportável (risos). Mas é isso
mesmo, eu já era crítica.
Márcia – Mas, a faculdade está ajudando a desenvolver o espírito crítico?
Beatriz Sim. Muito. Porque assim, quanto mais a gente conhece, engraçado assim que a
educação é uma coisa que ela vai ligando, então, depois que eu fiz o seminário da Ana Haydt,
menina!Ahhh! Ferveu. Eu estou fervendo até agora. Eu estou fervendo porque ela fala muito
da política, política como um problema, para tudo, tudo que gera é político. E eu fico me con-
sumindo, porque assim é aquela coisa de qual vai ser a minha função na sociedade. A forma-
ção de pessoas críticas e reflexivas como é que vai ser? De que forma? Porque ela fala que a
gente não pode colocar a política na sala de aula, mas como que a gente pode formar uma
criança para o mundo que já está. É aquela coisa toda.
Márcia – Mas você acha que a faculdade está lhe trazendo mais conscientização?
Beatriz Está. Eu acho que assim, não sei se a palavra certa é ideologia, não sei se é, não,
não é essa a palavra certa. A faculdade segue uma proposta pedagógica, que eu percebo que é
mesmo de criar aquela coisa de incentivar, de fervilhar, de criar essa coisa que eu estou agora,
que eu não sei o que é.
Márcia – Inconformismo, talvez?
Beatriz É. Para por meio disso, tentar mudar tentar fazer com que as pessoas falem “espera
aí”. E o trabalho que eu fiz, eu estou levando para o meu trabalho, porque eu faço trabalho
com criança, entendeu, falo sobre sustentabilidade, sobre meio ambiente, então assim, tudo da
faculdade eu estou conseguindo levar para o meu trabalho e isso está me fazendo crescer lá,
porque as pessoas tão olhando de uma forma diferente. Eu já mandei uns currículos e, no
começo do ano fui chamada para fazer uma entrevista para Secretaria do Estado de São Paulo,
Prefeitura do Estado de São Paulo para ser consultora temática. Então assim, eu tenho um
programa que é um programa que fala de cultura, que atinge nove municípios de São Paulo,
com problemas sociais como, Brasilândia, Capão Redondo, Campo Limpo, e a gente está fa-
zendo um trabalho com o tema Villa Lobos esse ano. Vamos montar nove espetáculos com a
interdisciplinaridade das artes. Me chamaram para uma entrevista, eu fui fazer a entrevista,
148
me pediram um esquema de projeto, não um projeto propriamente dito, mas um resumo de
tudo o que a gente conversou. Ai eu mandei, mandei e agora eu estou esperando.
Márcia Então fala uma coisa, para eu entender essa questão. Na avaliação que você está
fazendo do seu curso, vofez uma avaliação da sua turma e para você está clara a deficiên-
cia, mas que avaliação você faz do curso?
Beatriz Tem dois lados? Tem que dividir entre pedagógico e administrativo. Para o admi-
nistrativo, zero.
Márcia – E o pedagógico?
Beatriz Acho que tem uma linha legal assim. Eu percebo que os professores têm uma uni-
dade, porque é difícil você encontrar uma unidade.
Márcia – Mesmo que alguns professores não conseguindo um plano B, como você disse?
Beatriz – É, mas eu acho que é uma coisa que, então, faltaria um direcionamento de um coor-
denador pedagógico para identificar isso e tentar mudar, dar um foco para esse professor em
particular, que eu acho que é do perfil.
Márcia – Perfil de quem?
Beatriz – Do professor.
Márcia – O perfil desse professor especial que você está falando?
Beatriz – É. Um perfil pessoal.
Márcia – Você está falando de um professor?
Beatriz Um que já trabalha muito tempo na mesma linha, muito tempo de casa, e assim,
tem certa resistência na mudança.
Márcia – Então a sua crítica é a um professor e não à instituição.
BeatrizNão, não. Os outros sentem uma dificuldade muito grande com a minha classe, mas
sempre vem falar e procurar desenvolver. Cada um tem um jeito.
Márcia O que a Uniesp lhe trouxe como formação extra, oportunidade de formação extra-
aula? Colocou-lhe em contato com algumas coisas fora da sala de aula, alguma experiência
cultural ou o que ela lhe proporcionou só está dentro da sala de aula?
Beatriz – Está dentro da sala de aula.
Márcia Eu digo em termos de conhecimentos culturais, por exemplo, a Uniesp tem projetos
de informação cultural?
Beatriz – Não que eu saiba.
Márcia – Não tem.
Beatriz
– Não. E eu sinto muita falta disso, por exemplo, das horas complementares.
Márcia – Você não está fazendo as suas horas complementares?
149
Beatriz Eu não estou. Assim, eu gosto de ir a um espetáculo, eu não deixo de assistir a um
espetáculo, não deixo de ter acesso.
Márcia – E não vale para as horas complementares?
Beatriz Então, vale, mas eu não estou sendo direcionada de uma forma que eu consiga ter.
Tem que ter carimbo no ingresso. Só que tem peças que eu vou assistir que não têm ingresso.
Quer dizer, eu vou assistir teatros alternativos eu não vou assistir teatro em “teatrão”.
Márcia – Então você está com dificuldade em tornar aceito as coisas que você está assistindo?
Beatriz – Não, eu não estou nem me preocupando com isso, por enquanto.
Márcia – Quer dizer que o acesso a cultura já veio com você?
Beatriz – Já.
Márcia – Não foi nada que a instituição tinha lhe oferecido?
Beatriz – Não.
Márcia – As colegas da sua sala estão preocupadas com a questão, aproveitando essas oportu-
nidades de teatro, cinema ou não também?
BeatrizNão, têm algumas meninas, têm uma menina em particular lá, que ela adora, assim.
Tudo o que um professor fala pra ela assistir ela vai ver. E por causa do tempo, enfim, eu acho
que cada um tem o seu tempo, tem a sua forma.
Márcia – E os outros?
Beatriz – As outras meninas não têm tempo nem pra respirar. (risos).
Márcia – Mas por que elas não têm tempo, trabalham?
Beatriz Porque elas trabalham de segunda à sexta. Sexta-feira à noite elas não podem fazer
nada, porque são da igreja Adventista, até sábado às seis horas da tarde. Quando chega à noite
no sábado, elas vão fazer os trabalhos da faculdade e no domingo vão pra igreja. Não têm
tempo. E é assim, cada um frequentando suas reuniões.
Márcia – Que reuniões?
Beatriz As reuniões que eu fazia do cardecismo. Eu não consigo mais. Não porque são no
meio de semana, mas eu faço os meus estudos, eu faço os meus estudos particularmente aqui,
leio uns livros, tal e tal, entendeu?
Márcia – Você acha que a faculdade muda a rotina de vida?
Beatriz Muda, muda, muda. Outro dia eu tive uma crise na faculdade, eu tive uma crise de
começar a chorar no meio da aula.
Márcia – Por quê?
150
BeatrizUma crise, crise mesmo porque a professora Zaquie passou um trabalho para gente.
Eu não gosto de fazer meia boca, não gosto. E ela passou um trabalho que era de memoriza-
ção, você tinha que ter umas oito horas seguidas para poder desenvolver o trabalho. E eu não
consegui desenvolver. Chegou no dia, eu não consegui desenvolver e eu não gosto de mentir,
não gosto de mentir. E eu estava muito estressada, estava acontecendo umas coisas na sala,
ajunta um monte de coisas, e eu cheguei na sala de aula e desabei, é bem a minha cara (ri), é
bem a minha cara. A Zaquie entrou e perguntou “O que está acontecendo”? A Sueli, que é a
“mãezona”, é a minha “mãezona” lá, falou: “ai professora, ela está assim porque ela não con-
seguiu fazer o trabalho”. Mas foi um momento de estresse, a professora me acalmou, mas é
assim, um dia antes tinha sido o seminário da Ana Haydt, então eu estava muito, muito, mui-
to, muito nervosa.
Márcia mais uma coisa para gente encerrar. Como é que você avalia o Prouni? Qual a
importância do Prouni na sua formação? Se não fosse o Prouni, que outro jeito você teria para
estar estudando? Como é que você vê isso, a sua formação em relação ao Prouni?
Beatriz – É simples, se não fosse o Prouni eu não estaria fazendo faculdade agora.
Márcia – Você não estaria?
Beatriz – Não. Não assim, da forma que eu estou me dedicando como eu estou me dedicando.
Porque uma coisa é você ter um compromisso com a família, você trabalhar a semana inteira
para prover o seu sustento e ter que trabalhar sábado e domingo, então que horas que você vai
encontrar para fazer pesquisas, para estudar? Não tem. Você leva como os meus amigos leva-
ram, você leva a faculdade, mas leva médio. O Prouni essa possibilidade, entendeu, de eu
ter, momento. Eu não tenho que me preocupar com o pagamento, a única coisa que eu tenho
que me preocupar é a cada seis meses ir assinar a renovação de bolsa, só, assim eu ganho a
minha matrícula, só isso.
Márcia – Tem uma cobrança de rendimento ou não?
Beatriz – Tenho que estar entre os melhores da sala, não posso ter muitas faltas, tenho que ter
um envolvimento na sala, mas para mim isso é o de menos. Eu faria por mim mesma. (risos).
E assim, se não fosse, de verdade, se não fosse o Prouni eu não faria a faculdade.
Márcia – Qual é o seu projeto de vida, terminando o curso superior?
Beatriz – Eu vou terminar de fazer, daqui dois anos e meio e vou para uma pós-graduação em
arte-educação. Arte-educação, direto. A minha opção foi fazer pedagogia e depois arte-
educação. E vou ter um filho. E vou ter um filho, eu estou com trinta e um para trinta e dois,
se demorar muito não dá. (risos).
151
Márcia – Agora me fala, você pretende trabalhar então com o terceiro setor?
Beatriz É, eu acho que sim. Eu acho que com essa falta de emprego, o terceiro setor é um
setor que está crescendo muito e está sendo reconhecido pelo Ministério do Trabalho e Em-
prego. O Ministério já está começando a abrir o olho para “se não for assim num vai, o Brasil
cai”.
Márcia – Você sente isso?
Beatriz Sinto. Já sentia quando eu estava dentro da associação e, sabe, a gente participava
muito de coisas assim relacionadas à política, tinha que estar sempre no meio. E é um assunto
que se discute muito. Ou a gente foca no terceiro setor como precursor da atividade de traba-
lho e renda para pessoas ou, daqui a pouco, a gente não vai ter mais possibilidades de empre-
gos, porque as empresas não vão sustentar.
Márcia – O que não teremos?
Beatriz Trabalho. Trabalho. As pessoas não vão conseguir, não vão conseguir sustentar os
seus filhos porque ou a gente faz o emprego informal virar formal através do terceiro setor ou
a presidência cai, tudo cai, tudo cai. A presidência está mal das “pernas”, a gente sabe dis-
so. Por isso que toda vez eles vem e fazem um selo novo para aposentadoria e vai dificul-
tando mais paras as pessoas idosas. O que eu acho é que tem que ser mais estruturado, eu
acho que ainda está precisando de uma estruturação maior no terceiro setor.
Márcia Mais uma coisa, para nós terminarmos, seus dados assim, com quem você mora,
quantos irmãos, a sua condição social assim de trabalho, se você tem filhos, etc.
Beatriz Bom, eu moro com a minha mãe e com uma irmã e meia (risos), porque tem uma
irmã minha que é comissária de bordo, então assim, ela tem as coisas dela aqui e tem as coisas
dela em São Paulo. Então, aqui ela mantém as coisas dela aqui, porque ela fala para gente que
ou ela volta para casa para renovar, se renovar espiritualmente ou ela morre em São Paulo por
causa do estresse. Então ela deixa o quartinho dela. Mas ela vem falar as coisas com a minha
mãe, resolve e vai embora. Tenho a minha irmã Juliana que é a mais nova, ela está trabalhan-
do agora na farmácia. Conseguiu emprego na farmácia. Ela tem vinte e quatro anos, está tra-
balhando numa farmácia e ganha mais ou menos quatrocentos e cinqüenta reais, eu não sei
quanto que é, assim muito bem, ganha bem pouco, para ela pagar o xampu, o creme, as
coisas dela. E ai ela comprou, coitadinha, o guarda-roupa que ela tanto queria, agora está pa-
gando em dez vezes. (risos). E, e ela trabalha, não estuda, já briguei com ela, falei vai fazer,
mas ela assim, ela pegou uma era do estudo público muito ruim, então assim, eu ainda tinha
um pouco de base, eu na minha época, é verdade, eu tive um pouco de base no estudo público.
Ela num teve nada, num teve nada. E agora eu estou ajudando-a, vai lendo essas coisas a
152
qui, vai lendo aqui (ri), para você melhorar seu vocabulário por. A minha mãe, ela é, trabalha
no Estado, dá aula para turma de terceira série.
Márcia – Ela é efetiva no Estado?
Beatriz Efetiva, efetiva. Quando eu entrei no Prouni, ela trabalhava na Prefeitura, tanto
que os documentos que eu tenho são da Prefeitura. E ai, logo que eu entrei na faculdade ela
passou no Estado. ela largou a Prefeitura e foi para o Estado, porque o salário é mais ou
menos o mesmo, mas alguns benefícios diferentes que ela acaba tendo por ser servidora
pública do Estado. Eu trabalho assim esporadicamente, sou atriz, e faço recreação. Então as-
sim eu trabalho para algumas agências, as agências me contratam por dia de trabalho. Tem dia
que eu vou atuar, tem dia que eu vou ficar na portaria falando para as pessoas entrarem,
“seja bem vindo” (risos), tem dia que eu trabalho pela manhã que é a que eu mais trabalho,
que é a que eu mais gosto, eu trabalho diretamente com as crianças, em Santo André, no Alto
Shopping Global, que a gente faz um trabalho de direcionamento para educação do trânsito.
Temos uma mini cidade e eu direciono as crianças e faço esse trajeto com elas, de como andar
nas ruas, de como atravessar, de como se comportar no trânsito.
Márcia – Como free-lance?
Beatriz É free-lance, eu ganho por dia e o pagamento varia entre trinta, quarenta até cin-
qüenta reais por dia, quando o trabalho é bom.
Márcia – Você é casada?
Beatriz – Não. Solteiríssima.
Márcia – Ah é, é que o seu projeto de filho vem depois da faculdade.
Beatriz – Vem depois. Sou solteira, como diz um menininho lá, eu estou largada. (risos).
Márcia – Muito bem Beatriz, eu quero lhe agradecer pelo seu depoimento e por você ter cola-
borado com a minha pesquisa.
Rodrigo Lourenço Gonçalves
20/06/2009
Márcia Então Rodrigo, qual seu nome completo, onde você estuda, qual curso está e em
qual semestre?
Rodrigo Bom, o meu nome é Rodrigo Lourenço Gonçalves, eu estudo no Centro Universi-
tário UniSant´Anna, mais conhecido como UniSant´Anna, eu faço o curso de Tecnologia em
Marketing, estou no quarto e último semestre.
Márcia – Você trabalha?
Rodrigo - Então, hoje eu sou auxiliar administrativo.
Márcia – Por conta do curso superior?
Rodrigo – Foi por conta do curso, por conta do curso.
Márcia – É estágio?
Rodrigo Eu comecei como estagiário, mas fui efetivado. Tenho 23 anos, sou o filho mais
velho de três, moro com os meus pais.
Márcia – Aqui em São Paulo?
Rodrigo – Aqui em São Paulo. São Paulo, capital. Zona Norte, na Vila Maria.
Márcia – Você é o mais velho de três?
Rodrigo – Mais velho de três.
Márcia – Que idade tem os seus irmãos?
Rodrigo – O meu irmão tem 19, não, o meu irmão fez 20 e minha irmã fez 15.
Márcia – Seus pais? Você mora com os seus pais?
Rodrigo Eu moro com os meus pais. O meu pai tem 55, a minha mãe tem 45, não, a minha
mãe tem 49. A minha mãe tem 49 e o meu pai tem 55. Sou formado em técnico de adminis-
tração também.
Márcia – Onde você estudou o ensino médio?
Rodrigo – Foi sempre em escola pública.
Márcia – Sempre em escola pública. Lá na Vila Maria?
Rodrigo na Vila Maria. Da primeira a série foi no Tamandaré
30
, ali na Alberto Byng-
ton. E do 1º colegial ao 3º eu estudei no Imperatriz
31
.
Márcia – E como é que foi a sua trajetória na escola pública?
30
EMEF Almirante Tamandaré Vila Maria
31
EE Imperatriz Leopoldina, situada no Jardim Japão
154
Rodrigo – Olha, eu tive dificuldades quando eu estava na 3º série do ensino fundamental.
Márcia – Por quê?
Rodrigo Porque eu não tinha aula. Eu não sei como está hoje o ensino, mas quando eu fiz
era muito ruim.
Márcia – Você lembra em que ano você fez a 3º?
Rodrigo - Foi em 1995. Em 1995, eu estava na 3º série.
Márcia – Quais foram as dificuldades?
Rodrigo - Falta de professor porque naquela época, era um professor para lecionar todas as
matérias. Foi horrível. eu cheguei à quarta série e assim, a gente, o pessoal misturava, eles
misturavam os alunos, pegavam um pouquinho de cada classe e montavam uma para poder
aumentar o círculo de amizade, dentre outras coisas. E eu senti muita dificuldade porque a
maioria dos alunos da minha classe, no ano anterior, no caso na terceira série, eles estavam
muito mais avançados.
Márcia – E você lembra-se disso tão bem?
Rodrigo – Eu me lembro disso muito bem.
Márcia – Deixou uma marca em você.
Rodrigo Eu lembro que eu queria parar de estudar, eu tinha muita dificuldade em matemá-
tica, a professora precisou conversar muito comigo, conversou com a minha mãe, virava e
mexia eu chorava na sala, queria embora.
Márcia – Você lembra-se disso, da sensação que você teve?
Rodrigo Lembro, tudo perfeito. Daí, consegui e na quarta série foi a minha reviravolta, da
quinta série até o segundo colegial foi tranquilo.
Márcia – Você era estudioso, gostava de estudar?
Rodrigo Gostava de estudar. Quando eu entrei no segundo colegial, eu entrei também para
o Senai
32
.
Márcia – Você fez as duas coisas?
Rodrigo – Eu fiz as duas coisas.
Márcia – Em que área você fez Senai?
Rodrigo Eu fiz eletro, eletricista de manutenção. Eu fiz elétrica, eu entrei no Senai em
2002, em janeiro de 2002. Eu fiquei 2002 e 2003, era um curso de dois anos, em 2003 surgiu
a oportunidade de eu trabalhar internamente no Senai. Eu não ganhava nada, não era remune-
rado, o que eu ganhava era conhecimento, era a prática.
32
Senai – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
155
Márcia – Aceitou?
Rodrigo – Aceitei. Aí eu tive que mudar o meu horário da escola porque no meu primeiro ano
de Senai eu estudava de manhã e fazia Senai à tarde, à noite eu ficava em casa, estudava al-
guma coisa. No último ano de Senai eu fazia o estágio de manhã, fazia o curso a tarde e fazia
o terceiro colegial a noite. E ai mudou tudo porque eu fiz o básico, não me esforcei, eu fiz o
básico, a sala era boa, os professores eram bons.
Márcia – Mesmo sendo à noite?
Rodrigo – Mesmo sendo à noite, não tenho o que reclamar.
Márcia – Fez a noite no Imperatriz.
Rodrigo – Foi no Imperatriz no ano de 2003.
Márcia Então você tem a sensação que você fez um bom ensino médio apesar de que você
não pode se dedicar completamente.
Rodrigo Não pude me dedicar, chegava cansado a noite, fiz o que eu achei necessário, mas
eu não tenho do que reclamar. As matérias fundamentais como português e matemática os
professores eram excelentes, a estrutura da escola também. Apesar de ser a noite, não tinha
baderna, não tinha bagunça. Se rolava droga, bebida, não chegava ao meu conhecimento,
nunca. Eu tive sorte. Quando eu terminei o ensino médio eu prestei o Enem a primeira vez.
Márcia – Como foi?
Rodrigo - Fiz a prova, não fui tão bem, mas também não fui tão mal.
Márcia – Você lembra a nota?
Rodrigo No meu primeiro ano de Enem eu tirei uma média somando as questões alternati-
vas mais a redação, acho que foi 5.3 pontos.
Márcia – Você tentou o Prouni, nesse ano?
Rodrigo – Não tentei, eu não lembro se já tinha o Prouni.
Márcia – Não tinha.
Rodrigo – Eu não lembro se tinha.
Márcia – Não, não tinha. O Prouni começa em 2005.
Rodrigo eu parei e comecei a trabalhar. trabalhei. Em 2004, que era meu ano de e-
xército, consegui um emprego e trabalhei, até o final do primeiro semestre de dois mil e
seis. No primeiro semestre de 2006, eu fiz uma inscrição numa escola técnica do Estado, na
Etec
33
, no curso de técnico em administração, fiz a prova, passei e fiz o curso durante um ano
e fiz o Enem naquele ano também, em 2006.
33
Etec: Escola Técnica Estadual de são Paulo
156
Márcia – Em 2006, você prestou o Enem também?
Rodrigo – Isso.
Márcia – Já tinha o Prouni.
Rodrigo Já tinha o Prouni que foi dessa prova que eu vim com média 6.3 pontos, e eu pas-
sei na inscrição do final do ano, porque o Prouni tem duas inscrições, passou a inscrição do
final do ano e eu não corri atrás, eu não vi a bolsa, eu esqueci, quando eu fui ver era tarde.
Esperei, até o final de 2006, e eu fiz o técnico, no começo de 2007 eu continuei com o cni-
co, quando foi em maio de 2007, eu fiz a inscrição no Prouni.
Márcia – Maio de 2007?
Rodrigo Isso. Maio ou junho, não vou me recordar da data certa, mas foi entre esses dois
meses.
Márcia - Você precisou fazer o Enem outra vez?
Rodrigo – Não.
Márcia – Valia a última nota?
Rodrigo Valia a nota. Não sei como será esse ano, mas no ano que eu fiz, fazendo o Enem
podia-se tanto se inscrever no final do ano para começar no começo, quanto na metade do ano
seguinte, e foi assim que eu entrei na faculdade.
Márcia – Você lembra qual foi a primeira configuração de escolhas que você fez?
Rodrigo Lembro. Foi para o curso de administração geral na Uninove, na Vila Maria. A
segunda opção foi administração geral, na Uniban da Vila Guilherme. A terceira opção foi, se
não me falha a memória, administração geral na Uniban de Santana. A quarta opção foi a tec-
nologia e marketing da UniSant´Anna, que é onde eu estou hoje. A quinta opção foi tecnolo-
gia e marketing, também na Uninove da Vila Maria.
Márcia – Isso é da primeira configuração?
Rodrigo – Primeira e única.
Márcia – Primeira e única.
Rodrigo Eu fiz escolhas em instituições mais próximas da minha casa. Eu preferi fazer es-
sas escolhas. Eu não fui pelo nome porque a minha média comparada com a dos outros na
nota de corte, eu ia perder a oportunidade, era gastar “pixe
34
”. Então eu fiz escolhas por as
universidades serem mais próximas da minha casa.
Márcia Mas e o curso? Porque você fez dois técnicos diferentes. Você fez elétrica e admi-
nistração?
34
Segundo o entrevistado essa gíria significa perder oportunidade.
157
RodrigoEu estou fazendo tecnológico agora em marketing porque é uma área que eu gosto,
eu vou ser sincero, eu fiz a escolha porque estava na relação.
Márcia – Você nem pensava em fazer isso?
Rodrigo – Eu nem pensava em fazer.
Márcia – A sua vontade seria administração?
RodrigoA minha vontade é administração geral, é de tudo um pouco. Pegar o conceito para
poder administrar. Mas daí, eu entrei na tecnologia e marketing, e agora com o passar do cur-
so eu aprendi a gostar, tem coisas que a gente gosta mais, tem coisas que a gente gosta menos,
é normal. Mas é um curso bom.
Márcia – Como é que você ficou sabendo que você passou na UniSant´Anna?
Rodrigo - Como que eu fiquei sabendo? Quando você faz a inscrição você tem a data que
eles falam que vai sai o resultado. Eu fui, eu lembro como se fosse hoje, eu estava na sala de
uma aula no curso técnico, eu não tinha adquirido o meu computador ainda, sai da aula e eu
parei numa lan-house e vi que tinha saído, as outras opções que eu tinha escolhido, elas esta-
vam em vermelho. Ele tem como se fosse um farolzinho assim em cima e a única opção que
estava verde tinha sido essa da UniSant´Anna.
Márcia – O que você pensou na hora?
Rodrigo – Ai, eu pulei de alegria.
Márcia – Gostou do resultado?
Rodrigo – Gostei, gostei. Fazer faculdade!
Márcia – Mesmo tendo sendo a quarta opção?
Rodrigo Mesmo sendo a quarta opção. De todas que estavam ali, qualquer uma que saísse
para mim me agradaria bastante. No outro dia, eu estava trabalhando e não estava gostando
do estágio porque eu fui enganado na entrevista, me falaram uma coisa, uma função, e era
outra e eu aproveitei, já saí do estágio, eu saí acho que eram duas ou três horas da tarde, sai do
estágio e já passei na faculdade para pegar a relação de documentos.
Márcia – Você entrou com bolsa 100%?
Rodrigo – Com bolsa 100%.
Márcia – E qual foi o pedido da faculdade, você teve que apresentar documentos?
Rodrigo - Tive que apresentar uma série de documentações: comprovante de renda, compro-
vante de endereço, meu e de todos os componentes da casa. Tive que apresentar o imposto de
renda do meu pai, o comprovante de renda e de endereço dos demais além dos documentos
escolares. Certificados de conclusão do primeiro grau e do segundo grau.
Márcia
– Apresentou tudo?
158
Rodrigo – Apresentei tudo.
Márcia – Precisou fazer alguma prova?
Rodrigo Precisei fazer a prova na faculdade também. Eu tive que aguardar, eu fui apresen-
tei a documentação, passou por uma auditoria, eles me deram uma data, eu retornei, me fala-
ram que eu tinha que fazer um vestibular e eu fui, fiz o vestibular, sincera e honestamente eu
não sei qual é a minha nota do vestibular.
Márcia – Não informaram para você?
Rodrigo Não passaram, e eu também não corri atrás. Eu liguei no dia que, no caso, eles
me deram, liguei numa sexta-feira à noite, perguntei se eu tinha sido aprovado, eles falaram
que tinha e aí foi que começou a faculdade.
Márcia Como é que você vê, hoje, esse curso que você? Você acha que ele vai contribuir
para a sua vida profissional?
Rodrigo Ele vai, aliás, está. A faculdade, em si, o físico dela não é dos melhores, mas é
um lugar bom.
Márcia – Quais as observações que você pode fazer sobre a instituição?
Rodrigo – O físico dela não é das melhores.
Márcia – O que você chama de físico?
Rodrigo – A estrutura, o prédio.
Márcia – Em geral a UniSant´Anna não tem bons prédios?
Rodrigo – O prédio não é dos melhores.
Márcia – Por quê?
Rodrigo Não sei se a construção é antiga. Eu estou no bloco I. No quinto andar do bloco
I. Não é dos melhores, mas também não é dos piores.
Márcia – Mas o que lhe incomoda na parte física?
Rodrigo - Com relação a isso eu não vejo como culpa da faculdade, mas, que nem, banheiros,
bebedouros, escadas, que nem na escada rolante que tem horas que funciona, horas que não,
não sei se eles param para economizar energia, eu até pensei, se eu tiver oportunidade, eu
vou desenvolver alguma coisa para fazer a escada rolante funcionar, sem energia, nem que
seja para descer. Só com o peso em cima, a gente só bota o pé com o peso ela desce. (risos).
Márcia – Ela vai sem energia.
Rodrigo Ela vai. Porque se for para economizar energia pelo menos isso daí ajuda, fica
só pra subir mesmo que é o mais difícil.
Márcia
– E, enquanto biblioteca, laboratórios?
Rodrigo – A biblioteca é uma biblioteca boa, eu pouco frequentei a biblioteca.
159
Márcia – Por quê?
Rodrigo Tudo que eu precisei eu busquei na internet. Consegui buscar em site, por sinal eu
vi com um pessoal amigo que tinha, eu pouco procurei, mas é uma biblioteca estruturada,
tem um lugar onde você entra, você senta, você digita o nome do livro que você quer, ele
mostra na prateleira que ele está, o corredor que ela está, tudo certinho.
Márcia – Laboratório?
Rodrigo – Laboratório, laboratório é bom.
Márcia – Você precisou de laboratório no seu curso?
Rodrigo – Não.
Márcia – Não teve.
Rodrigo Não teve. A gente teve aquele laboratório de informática no primeiro semestre.
Não eram lá essas coisas, eu não sei como que está hoje, mas quando eu fiz, eu particularmen-
te, eu não considerava adequado.
Márcia – Por quê?
Rodrigo Faltavam máquinas, as máquinas meio devagar, eram dois às vezes até três alunos
por micro, e, querendo ou não, isso dificulta um pouquinho.
Márcia – Atendimento administrativo?
Rodrigo O atendimento, olha, eu, do tempo que eu precisei do administrativo, foi mais no
começo para fazer matrícula, essas coisas, eu até que fui bem atendido, fui bem atendido.
Márcia – Os professores?
RodrigoOs professores, um ou outro que às vezes não vai com a cara, não gosta da matéria
ou não tem uma boa didática, mas, no mais, os professores eram bons.
Márcia Culturalmente o que a universidade lhe proporcionou? Não em termos de forma-
ção do conteúdo do seu curso, mas culturalmente? Possibilidade de você ter tido acesso à tea-
tros, exposições.
Rodrigo A faculdade exige atividades complementares, uma carga total de 120 horas. Eu
fui à teatros, fui ao Museu da Língua Portuguesa, cinema, fui a exposições.
Márcia – Qual o interesse nessas atividades?
Rodrigo - Vamos dizer que foi cinquenta por cento. Cinquenta por cento, no sentido pessoal,
mas os outros cinquenta por cento naquele sentido de obrigação, você ter que ter o compro-
vante, fazer uma resenha da atividade e entregar.
Márcia E me fala uma coisa, se não fosse a bolsa do Prouni, o que você acha que estaria
fazendo?
160
Márcia trabalhando. Financeiramente falando, eu não teria condições de fazer uma fa-
culdade. Independente de ser uma faculdade de quatro anos onde o valor é maior ou essa tec-
nológica que o valor é menor, eu não teria condições.
Márcia – Então, de alguma maneira o Prouni ajudou a sua entrada no curso superior?
Rodrigo – 100%.
Márcia – Você tem de cem por 100%?
Rodrigo – 100%.
Márcia – Qual a importância de um curso superior?
Rodrigo Ele me ofereceu a oportunidade de evoluir como pessoa, fazendo uma faculdade e
com isso a gente evolui em outras áreas da vida: família, emprego.
Márcia – Você sente isso?
Rodrigo – Muito. Nossa!
Márcia – Em dois anos você mudou?
Rodrigo Em dois anos, eu tenho ciência de como eu entrei na faculdade e como eu estou
saindo.
Márcia – Profissionalmente?
Rodrigo Profissionalmente me ajudou muito, hoje eu penso de uma maneira diferente, con-
sigo enxergar coisas que eu não enxergava lá atrás, não imaginava que seria tão importante.
Márcia – Por exemplo?
Rodrigo Brincadeiras no serviço, criancice, palhaçada, risada, descontração, e não é isso.
Trabalho é trabalho, você tem o seu momento de descontração, de conversar, de fazer piadas.
Márcia – Você fez estágio?
Rodrigo – Eu comecei onde eu estou, como estagiário.
Márcia – Ah, é verdade.
Rodrigo – Eu comecei como estagiário.
Márcia – Qual a empresa você trabalha?
Rodrigo – Autofax.
Márcia – Qual o segmento dessa empresa?
Rodrigo – Nós fornecemos soluções tecnológicas para as empresas.
Márcia – Qual que é a sua função?
Rodrigo – O meu trabalho é auxiliar administrativo, assistente de CRM.
Márcia – O que é CRM?
161
Rodrigo Costumer Relationship Management, ou seja, relacionamento com o cliente. E, eu
trabalho lá, dou suporte para o pessoal que trabalha na rua.
Márcia – Você entrou como estagiário?
Rodrigo – Eu entrei como estagiário.
Márcia – Nessa mesma função?
Rodrigo – Nessa mesma função.
Márcia – Quando tempo você ficou?
Rodrigo Eu fiquei de estágio um ano. Eu fiquei um ano como estagiário, vou para o meu
segundo ano de emprego agora.
Márcia – E quando você foi admitido?
Rodrigo – Eu fui efetivado em junho de 2000.
Márcia E o que você acredita que ter sido básico para a sua efetivação? A empresa poderia
só ter você como estagiário.
RodrigoPoderia renovar meu contrato de estágio. Eu creio que foi o conhecimento tanto na
área profissional, o conhecimento que a gente adquire trabalhando, a gente começa a enxer-
gar, e o amadurecimento como pessoa.
Márcia – E hoje você desenvolve o quê?
Rodrigo – O meu trabalho, eu trabalho com pessoas.
Márcia – Portanto, está exercendo a mesma função?
Rodrigo A mesma função, com tarefa a mais que os demais porque os demais são mais no-
vos que eu na empresa, então eu faço algumas coisas além deles. Hierarquicamente eu tam-
bém sou um grau acima deles.
Márcia – Você está em qual grau?
Rodrigo Eu sou assistente de CRM pleno e o pessoal que começou é júnior, tem júnior,
pleno e sênior. Eu ainda sou pleno.
Márcia – Tem perspectiva lá na empresa para o teu futuro ou não?
Rodrigo Tem a perspectiva de assumir a supervisão do departamento, estou trabalhando
para isso. Se vai acontecer ou não, eu não sei, mas (risos). Mas a minha perspectiva é fazer a
supervisão do departamento, a empresa está crescendo, vai adquirir sede própria.
Márcia – Está pensando em crescer junto com a empresa?
Rodrigo Eu estou pensando em crescer junto com a empresa, a não ser que a empresa não
queira que eu cresça com ela. (risos).
Márcia
– Como é que você avalia o Prouni. Você mudaria alguma coisa, mudaria o quê?
162
Rodrigo – Olha, o Prouni, eu, particularmente, eu não tenho o que mudar, eu acho o processo
seletivo deles muito bom e, no caso, honesto, sincero, a única coisa que eu talvez mudasse
seria, isso eu não sei nem sei é por parte do programa ou por parte das universidades, aumen-
taria a quantidade de bolsas em universidades mais conceituadas: Mackenzie, PUC, Metodis-
ta.
Márcia – Fala um pouco disso.
Rodrigo Na minha visão, porque hoje, infelizmente, o nome conta muito, não tem como,
independente da experiência profissional eu não consigo enxergar, por exemplo, se eu chegar
hoje e se eu for demitido, amanhã eu vou cair no mercado, correr atrás de um emprego com o
meu currículo tendo a UniSant´Anna e na mesma formação alguém do Mackenzie ou da PUC.
Márcia – Você sente que vai ter diferença?
Rodrigo Tem diferença, tem sim. Pode ser que eu esteja vendo pelo em ovo, mas eu vejo
essa diferença.
Márcia Então você tem a sensação de que poucas vagas nas instituições com conceitos
mais elevados?
Rodrigo – Com conceito mais elevado. O nome, não sei, não é nem o nome.
Márcia Você tem idéia da média que você precisaria ter no Enem para entrar, por exemplo,
no Mackenzie?
Rodrigo No Mackenzie, dependendo do que voescolhe, daria uma média de sete e meio
a oito. O primeiro curso é mais ou menos isso.
Márcia Uma média alta e com poucas vagas. Você constatou que tinha um número menor
de vagas.
Rodrigo Tinha. Era uma vaga para administração, era o curso que eu tava focado, era uma
vaga para administração, duas para psicologia, e assim sucessivamente e, a UniSant´Anna
não. A UniSant´Anna tinha quinze vagas para tecnologia e marketing, administração geral,
administração geral, que é um valor mais elevado, já eram cinco vagas, é mais ou menos isso.
Márcia – Muito interessante. A única coisa que eu acho que faltou é dizer se você é casado.
Rodrigo – Sou solteiro. Namoro, mas sou solteiro.
Márcia – Você faz parte de algum movimento estudantil, religioso?
Rodrigo – Não. Eu só frequento a igreja.
Márcia – Ah, você frequenta a igreja?
Rodrigo – Frequento a igreja católica.
Márcia
– Você é atuante na igreja?
163
Márcia – Você teve alguma dificuldade para se manter no curso, financeiramente? Você rece-
beu algum tipo de apoio?
Rodrigo Olha, financeiramente, assim, livros eu não comprei nenhum, não comprei livros
durante o curso todo.
Márcia – E se tivesse que comprar?
Rodrigo – Eu não teria condição.
Márcia – Não teria condições.
Rodrigo – Não teria condições.
Márcia – Condução?
Rodrigo Condução a gente, nós estudantes nós temos a facilidade de pagar meia. Então, a
instituição, ela tem parceria com o SPTrans, que é da prefeitura, então a gente paga meia con-
dução. Não com o SPTrans, mas também com o governo, paga meia no ônibus e meia no
metrô. Mas, de vez em quando assim, a gente olha na carteira e não tem dois reais para comer
um lanche.
Márcia – Você já teve essa situação?
Rodrigo Já. De vez em quando só. Graças a Deus nunca passei fome aqui na faculdade.
Mas de vez em quando o estômago aperta e a gente olha na carteira, está meio complicado,
a gente segura, chega em casa e janta.
Márcia – Mas vale à pena?
Rodrigo Mas, vale à pena. E faculdade é... , eu nunca me esqueço, uma professora minha
no curso técnico, quando comentei com ela, eu falei: ah professora, eu ganhei uma bolsa, eu
vou ter que parar o curso aqui para poder ganhar a bolsa, porque até eu perguntei lá, se eu
podia trancar e entrar no próximo semestre para poder terminar o curso por completo e fala-
ram que não. Ela disse: “Não perca essa chance. Vai porque a faculdade você vai ver, é outro
mundo. Você vai amadurecer como homem, como profissional”, e isso não saiu da minha
cabeça e hoje eu vejo que é verdade. Hoje eu vejo esse amadurecimento tanto pessoal quanto
profissional.
Márcia – Você não se arrepende de nada?
Rodrigo – Não. Não me arrependo de nada.
Márcia - Muito obrigada. Seu depoimento foi riquíssimo.
Emília Mara Lima Silva
20/06/2009
Márcia – Qual o seu nome completo, quantos anos você tem, onde você estuda, que curso está
fazendo, em qual semestre está?
Emília O meu é Emília Mara Lima Silva, tenho 22 anos, estudo na UniSant’Anna , estou
fazendo o curso de Marketing, último semestre.
Márcia – Onde você mora?
Emília – Eu moro na Rua Jaguaribe.
Márcia – Mora sozinha?
Emília – Eu moro com mais duas amigas.
Márcia – Duas amigas que estudam também?
Emília – Estudam. Estudam e trabalham.
Márcia – Na UniSant’Anna?
Emília – Não. Uma estuda no Mackenzie e a outra faz USP.
Márcia – E você, é de onde?
Emília – São João da Boa Vista.
Márcia – Onde que é São João da Boa Vista, Minas?
Emília Não, fica em São Paulo, interior de São Paulo, fica umas três horas daqui. É para
de Campinas. Mas é pertinho.
Márcia – Você está sozinha aqui, e a sua família toda mora lá?
Emília – A minha mãe mora em São João da Boa Vista e o meu irmão mora em Botucatu.
Márcia – E aqui, você não tem família?
Emília Não. tenho mais duas amigas que moram em outro lugar. De São João também.
As meninas que moram aqui são de São João.
Márcia – E elas fazem outras faculdades?
Emília – Sim.
Márcia – Elas também têm bolsa do Prouni?
Emília – Não, não.
Márcia – Conta um pouquinho, Emília, como foi a sua trajetória escolar. Onde você fez o seu
Ensino Básico, o seu Ensino Médio, como é que foi?
Emília
– É, o Básico eu fiz sempre em escola pública.
Márcia – Sempre foi?
165
Emília É sempre foi. O Básico foi numa escola boa, assim, de lá. Agora o Ensino Médio
não foi tão bom assim, porque eu comecei a trabalhar, eu tive que trabalhar cedo.
Márcia – Com quantos anos?
Emília – Com dezesseis anos. Quinze anos eu já trabalhava, mas eu estudava de manhã.
Márcia – E porque você trabalhava?
Emília Ah, porque eu precisava ajudar. É. Enfim, eu nem ajudava em casa, mas a minha
mãe queria que a gente trabalhasse, então comecei cedo. Eu nunca ajudei em casa assim, mas
era mesmo para ter o meu dinheiro. Aí, com dezesseis anos comecei a trabalhar registrada e
tive que mudar para noite e o ensino à noite era muito fraco, muito, muito fraco.
Márcia – O que é fraco para você?
Emília Por exemplo, os professores não davam aula, iam para ficar de bobeira, tinha um
que sempre faltava, o de química nunca ia dar aula e era uma bagunça, ninguém estava a fim
de estudar. A escola pública a noite é a pior coisa que tem.
Márcia – De um modo geral, as escolas da sua cidade são assim?
Emília – Tem uma lá que dizem que é um pouco melhor, mas a noite, esquece.
Márcia – Não tem jeito?
Emília – É.
Márcia – Você tem mais irmãos?
Emília – Tenho dois irmãos. Aí eu estudei, eu fiz dois anos de cursinho também.
Márcia – Ah, você fez dois anos de cursinho?
Emília – Depois que eu acabei o ensino médio, eu fiz dois anos e meio de cursinho.
Márcia - Lá mesmo?
Emília – É, lá em São João. Só que eu fiz em escola particular.
Márcia – O cursinho foi particular.
Emília É. No primeiro ano eu tinha meia bolsa e do segundo para o terceiro eu tinha bolsa
inteira.
Márcia – Por que você quis fazer cursinho?
Emília Porque, porque era muito fraco. Eu nunca ia conseguir, e eu queria fazer jornalismo
no começo.
Márcia – Por que jornalismo?
Emília – Sempre quis, num sei, sempre quis.
Márcia – Fez algum trabalho de reportagem na escola?
Emília
– Não, não. Sempre quis, desde sempre, nem sei. Mas eu não passava, eu não passava,
não passava em Federal.
166
Márcia – Você tentou então antes?
Emília Tentei, em Federal. Prestei tudo quanto é Faculdade Federal que tem possível. Eu
fui até para o Paraná fazer prova.
Márcia – Foi até o Paraná e não conseguiu?
Emília - Fui para tudo quanto é canto.
Márcia – como você avalia a sua formação inicial?
Emília Foi muito fraca. Quando eu entrei no cursinho, eu ralei para caramba, no primeiro
ano. Nossa! Senhora!!!
Márcia – Estudou muito?
Emília Estudava demais, demais, demais. Eu não sabia nada. Nossa, é como se eu tivesse
fazendo o Ensino Médio de novo, em um ano.
Márcia – Essa era a sua sensação?
Emília – Nossa, eu não sabia nada. Ainda mais da parte de física, química, matemática, nada.
Márcia – E resolveu, melhorou?
Emília Melhorou, melhorou muito. Nossa senhora!!! No fim do ano eu estava bem,
sabia fazer tudo. Ai quando eu entrei no terceiro ano, que eu fiz meio, eu comecei a en-
trar em depressão de fazer cursinho. Não passava no vestibular, fazia cursinho, fazia cursinho,
fazia vestibular e nada.
Márcia – Mas porque fazer só para a Federal?
EmíliaAh, porque eu não tinha condição de pagar uma privada, porque geralmente é muito
caro.
Márcia – Você sabe mais ou menos qual o valor da mensalidade?
Emília Oitocentos reais em uma faculdade mais ou menos. em são João, por exemplo, é
esse preço.
Márcia – Tem faculdade em São João?
Emília – Tem, tem duas faculdades lá. Tem duas faculdades e um Cetec
35
. Ai também eu ten-
tava o Prouni em jornalismo, eu nunca conseguia, eu nunca conseguia. E a minha nota não era
alta, eu não lembro exatamente quanto era, não era alta, mas também não era baixa, era uma
média assim.
Márcia – A sua nota de vestibular você diz?
Emília – Do Enem.
Márcia – Ah, então, me fala, quantas vezes você fez o Enem.
35
Centro Tecnológico
167
Emília – Enem, “vixe”, eu acho que foi uma no colegial e mais quatro vezes.
Márcia – Você lembra as notas que você obteve?
Emília – Era tudo a mesma média. Eu não lembro assim, mas era 50, 52, era uma coisa assim.
Márcia – Todas elas?
Emília – Todas elas. O que eu ia melhorzinha era na redação, aí eu ia melhor.
Márcia – O seu último Enem, você obteve essa média também entre 50 e 52?
Emília – Foi essa média, eu não lembro quanto foi não. É foi por aí.
Márcia – E o Prouni, como é que ele surge na sua vida?
Emília Ah, não dava para pagar a faculdade, eu não passava na Federal, eu comecei ten-
tar o Prouni, eu tinha que fazer o Enem, sempre, só que jornalismo, eu sempre tentava.
Márcia – Você lembra a primeira vez que você tentou Prouni, em que ano?
Emília Deixa-me ver, eu acabei em 2004, me deixa pensar, eu estou com 22 anos, foi em
Márcia – Em 2004 ainda não tinha Prouni, o primeiro Prouni foi em 2005.
Emília – Ah é. Então foi só o ENEM em 2004.
Márcia – Foi só o ENEM.
Emília É, então deve ser, então foi o ENEM em 2004. E comecei a tentar o Prouni, eu
lembro que eu não tentei, eu não tentei o Prouni quando eu fiz colegial mesmo, isso eu sei, eu
tenho certeza, no colegial que eu comecei a tentar. Mas eu acho que não foi no primeiro,
não, no colegial não, no cursinho. Nos três anos de cursinho que eu fiz eu tentei.
Márcia – Você tentou o Prouni?
Emília – O Prouni.
Márcia – E me conta. Quais eram suas opções de curso quando se inscrevia para o Prouni?
Emília – Só jornalismo.
Márcia – Só jornalismo.
Emília – Só jornalismo não, me desculpa, jornalismo e rádio-tv.
Márcia – E que opções de faculdade você colocava?
Emília – Tudo quanto é faculdade que eu via eu colocava.
Márcia – Mas aqui em São Paulo?
Emília – Em São Paulo, no interior.
Márcia – Você lembra qual faculdade lhe interessava?
Emília – Ah! a PUC/Campinas.
Márcia – PUC/Campinas, você colocava como primeira opção?
Emília
Sim. A PUC/Campinas e a Metodista de Piracicaba também me interessavam bas-
tante, porque era mais perto de lá e eu conhecia assim um pouco.
168
Márcia – E como últimas opções, você colocava qual?
Emília assim, eu tentava São João, é não, São João, não tentava era ali na Unifeob
36
,
aqui São Paulo tinha uma que é de artes, eu não me lembro como o que é, eu não sei o que de
artes eu tentei na PUC de São Paulo.
Márcia – Sempre jornalismo?
Emília – Sempre jornalismo.
Márcia – E aí o que acontecia?
Emília Não passava por causa dessa nota eu não era selecionada. Na última vez que eu fiz
em foi em 2007.
Márcia – Em 2007, você prestou Enem outra vez?
Emília Não, eu prestei Enem em 2006 que eu fiz a prova, é eu fiz a prova em 2006, tem
uma chamada no final e no meio do ano. Eu peguei no meio do ano de 2007.
Márcia – 2007.
Emília eu não tentei jornalismo, eu comecei a ver, e comecei a pesquisar as notas que
batiam, eu vi Marketing que batia, e comecei a me interessar por Marketing também eu
coloquei mais umas opções lá.
Márcia – Tenta lembrar quais as opções que você colocou, na ordem.
Emília Eu lembro que eu coloquei administração, marketing estava em primeiro porque era
mais fácil, administração eu colocava mais para baixo, administração eu colocava como uma
das últimas que era difícil, cheguei a colocar jornalismo também, mas ficou assim, eu acho
que eram cinco opções no meio do ano, acho que três foram marketing e uma jornalismo e
administração.
Márcia – E a UniSant’Anna estava em qual opção?
Emília A UniSant’Anna, coloquei a UniSant’Anna, acho que foi primeiro a UniSant’Anna,
eu coloquei uma de artes aqui em São Paulo que eu não lembro o nome, agora eu não lem-
bro a faculdade.
Márcia – Mas a UniSant’Anna estava em uma das primeiras opções?
Emília – Estava.
Márcia – Como você ficou sabendo que passou?
Emília – Foi a seleção do meio do ano, eu passei, minha mãe não acreditou. (risos)
Márcia – Como foi a questão de você vir para São Paulo?
Emília – Eu morava com a minha mãe e com os meu irmãos, meus irmãos casados.
36
Centro Universitário da Fundação de Ensino Octávio Bastos.
169
Márcia – Seus pais são separados?
Emília – Meu pai já faleceu.
Márcia Qual a reação de sua família quando souberam que você foi aprovado no vestibular
em São Paulo?
Emília– Então, a minha mãe me apoiou, porque ela sabe que eu sempre quis sair de São João,
eu não queria fazer faculdade em São João, eu queria fazer faculdade fora, uma amiga, melhor
amiga daqui de São João morava aqui em São Paulo. Eu liguei para ela e pedi para ficar uns
tempos na casa dela, “não vem morar comigo”, e eu fiquei morando com ela até que ela se
mudou para Butantã.
Márcia – Onde é que ela morava?
Emília Na Vila Leopoldina, que ela estudava na USP e foi morar perto da USP que é
no Butantã, é muito longe pra mim!
Márcia – E o que aconteceu?
Emília – Eu vim morar, aí eu fiquei perdida, não tinha onde eu ficar.
Márcia – Quer dizer que com a sua família não teve problema nenhum?
Emília – Não.
Márcia – Financeiramente, como é que você fazia?
Emília Como eu fui morar com ela, eu não pagava aluguel, porque o apartamento era da
avó dela, e eu não pagava aluguel e não trabalhava, no primeiro semestre eu não trabalhei,
mas em janeiro a avó dela colocou o apartamento a venda, porque era um apartamento muito
grande para nós duas, sabe, não valia a pena, colocou a venda e vendeu. Eu precisaria ir para
o aluguel, minha mãe falou que eu teria que voltar, pois não daria conta de me bancar: “você
volta e vai para outra faculdade aqui em São João”. Falei não, não vou voltar, não vou voltar,
nisso era final de semana e eu fui para São João, quando voltei, nesta semana eu conversei
com um amigo meu da minha faculdade, ele falou para eu ir fazer um teste em uma loja de
eletrônica, mas não deu certo porque eu nunca trabalhei com esse negócio de eletrônica, não
entendia nada, voltando, eu estava passando em frente ao Shopping Bourbon que tinham
acabado de abrir. Na primeira loja que eu entrei, a moça falou “você não quer ficar para fazer
um teste?”, já fiquei na primeira loja que eu entrei comecei a trabalhar.
Márcia Loja do quê?
Emília – É loja de roupas, eu fiquei lá seis meses, e por isso que eu fiquei aqui em São Paulo.
Márcia – E o problema da moradia, como você resolveu?
170
Emília – Aí não tinha lugar para ficar, o meu namorado conhecia uma menina lá em São João
que tinha morado na casa de uma senhora aqui, que aluga quartos para estudante, e eu fui mo-
rar lá com ela.
Márcia – Onde?
Emília – Na Pompéia
Márcia – Perto do Shopping Bourbon.
EmíliaÉ pertinho, eu ia até trabalhar a pé, era muito perto, eu fiquei acho que três me-
ses, só que eu não estava gostando, porque não tinha muita privacidade, assim sabe, era só ela
e eu, mas ela ficava muito perto de mim (risos). Então o meu namorado conhecia outra meni-
na que morava aqui na São João, aqui em São Paulo, eu fui eu vim morar num apartamento
aqui na Dona Veridiana, na rua de baixo.
Márcia – Pertinho.
Emília É. Quando eu vim, eu entrei na casa e tinha uma menina que eu conhecia, que é a
que eu moro junto hoje, que é lá de São João também.
Márcia – Coincidência.
Emília É. Eu fiquei lá, fiquei lá, agosto, setembro, janeiro, fevereiro, fiquei seis meses
nesse apartamento, mas as meninas brigavam muito entre si, muito, muito, muito, era uma
maior loucura.
Márcia - E você?
Emília A gente se dava bem, elas brigavam, eu não brigava não, elas brigavam muito entre
si, a que é amiga do meu namorado começou a falar, falava, isso eu não sabia, falava para
elas: “se vocês quiserem mudar, pode mudar daqui, eu e a Emília temos lugar para ficar”. Sa-
be como as meninas a odiavam, elas vão mudar, chegaram um dia em janeiro, em fevereiro,
falou assim oh, “daqui uma semana nós vamos mudar”, eu não tinha lugar para ficar outra
vez.
Márcia – Quantos dias você teria para se ajeitar?
Emília Uma semana, para arrumar outro lugar para morar. Uma delas já tinha arrumado
mesmo, uma foi morar em Pinheiros saiu, aí ficou essa menina que foi morar com o namorado
dela e eu e outra menina de São João também, ela me ajudou a procurar, a gente correu atrás
no fim de semana, não achamos lugar nenhum, ela veio morar aqui, que veio ela, a irmã
dela, e o pai dela, o pai dela mora aqui também, é de São João, e ele trabalha aqui em São
Paulo. E ela falou “Emília vamos ficar com a gente”, você fica por um tempo, e ela me
trouxe para e veja, a minha cama está desmontada, está tudo socado ali, faz uns três meses
que eu estou aqui.
171
Márcia – Então, quem mora aqui?
Emília – O pai, minha amiga e eu.
Márcia – E você está aqui há quanto tempo?
Emília Coisa de seis meses que a gente mudou, quando eles mudaram, eu mudei junto com
eles, mas eu estou aqui provisório, estou esperando acabar a faculdade para poder procurar
outro lugar.
Márcia E agora me conta sobre o curso, que no final de toda essa história, você acabou en-
trando em Marketing na UniSant’Anna. Como foi começar um curso diferente do que você
tinha pensado?
Emília No começo eu não gostava muito não, eu achei que não era isso que eu queria, mas
foi bem no começo, mas eu comecei a gostar, comecei a me interar, no domingo trabalhava,
estudava bastante e peguei muito gosto.
Márcia – Você está trabalhando na área?
Emília – Não, não trabalho na área.
Márcia – Pensa em trabalhar, como você pensa o futuro quando terminar o curso?
Emília – Eu quero fazer uma pós.
Márcia – Como é que você vai fazer essa pós?
Emília Então (risos) eu não sei, eu vou ver se eu faço, então primeiro eu preciso arrumar
um emprego melhor para poder pagar a minha Pós, eu estou correndo atrás também, quero
fazer minha pós no Mackenzie.
Márcia – Em que área você quer fazer pós?
Emília – Administração. E eu não sei se eu tento outra faculdade também.
Márcia – Qual?
Emília – De jornalismo.
Márcia – Jornalismo está no seu coração ainda? Você não desistiu.
Emília – Então...
Márcia – Como você avalia o curso na instituição que você está?
Emília – Ah, eu achei que foi muito válido.
Márcia Como é o curso, os professores, a parte administrativa, como é a instituição de um
modo geral?
Emília – Eu acho que eles são organizados lá sim, tinha um ou outro professor que não levava
a sério, mas de maneira geral a sala, todo mundo levava a sério o curso. Eu achei que deu para
aproveitar muito assim, aprender muita coisa.
Márcia
– Como é a biblioteca?
172
EmíliaAh, a biblioteca é muito fraca, meio fraca, mas eu também não frequentava a biblio-
teca.
Márcia Você não frequentava. Como é que você fez para estudar, ou preparar seus traba-
lhos?
Emília – O pouco que precisou, ou tirava xerox ou comprava.
Márcia – O que é pouco, por que pouco?
Emília – Porque não precisava de muito livro assim, era um ou outro. Esse ano é que pediram
mais livros, e eu queria ter os livros, eu gosto de ler e eu comprei todos os livros.
Márcia – Como é que você fez essa compra? Foram caros os livros?
Emília – Não foi porque tem um amigo de uma amiga que trabalha numa livraria, e conseguia
um contato assim para gente.
Márcia – Só nesse semestre?
Emília – Só nesse semestre.
Márcia – Você acha que o curso superior acrescentou algo para você, que mudanças você teve
nessa trajetória de dois anos e meio, em termos de formação pessoal?
Emília – Ah, eu acho que eu tenho muita noção do que eu não tinha antes.
Márcia – Em que sentido?
Emília Noção do que se passa numa empresa, como que são feitas as coisas. No nosso tra-
balho, eu sei montar, fazer esse trabalho para montar uma empresa, montar uma loja, no caso.
Crescimento pessoal assim, maturidade assim no auge assim porque, Nossa Senhora!!! Eu era
muito colada com a minha mãe, eu aprendi a fazer tudo aqui em São Paulo sozinha. Aprendi a
andar sozinha aqui em São Paulo, correr atrás.
Márcia – Se não fosse o Prouni, você acredita que estaria estudando?
Emília – Eu acho que eu estaria fazendo jornalismo lá em São João.
Márcia – Pago?
Emília – Pago.
Márcia – Como é que você iria pagar?
Emília A minha mãe no começo me incentivava a estudar fora, agora ela quer que eu volte
para São João, ela não quer que eu fique aqui. Todo dia ela me liga. Nesse meio tempo que eu
saí lá do apartamento, que eu precisei trabalhar, ela queria que eu voltasse. Ela conversou com
uma pessoa lá, com quem ela trabalha, que é bem influente assim, e ele ia conseguir um des-
conto na faculdade lá para mim.
Márcia
– E com esse desconto você daria conta de pagar?
173
Emília A minha mãe ia pagar porque para eu poder voltar ela estava fazendo de tudo, ela
estava topando qualquer parada. (ri). E ela ia pagar, mas eu não queria, mesmo que era jorna-
lismo que eu sempre quis, eu não queria parar o que eu comecei. O meu namorado que falava
“você sonhou tanto com isso, de sair de São João, para no primeiro imprevisto, você voltar?
Agora que você conseguiu uma bolsa, você não vai conseguir outra com tanta facilidade. Não
vai”.
Márcia – Seu namorado é daqui mesmo?
Emília – Não, ele é de lá.
Márcia – Ah, ele é de lá, ele mora lá?
Emília – Mora lá.
Márcia – Quando vocês se encontram?
Emília – No final de semana.
Márcia – Ele vem para cá?
Emília No final de semana passado ele veio, eu não pude ir. Eu acho que ele vem sábado
agora.
Márcia – para eu entender. Quer dizer que o fato de você conseguir a bolsa de estudo pelo
Prouni além de possibilitar fazer uma faculdade aqui em São Paulo, trouxe também indepen-
dência pessoal?
Emília Nossa!!! Mudou a minha vida completamente. Muito assim, de sair da minha casa,
de São João para vir para cá, foi uma reviravolta na minha vida. Eu era de brigar com a
minha irmã, se pegar no soco assim. A minha irmã é mais velha que eu e a gente brigava, bri-
gava muito com a minha mãe. Agora mudou, eu sou uma pessoa mais controlada, sou mais
responsável, sabe, eu entendo mais as coisas, eu dou mais valor as coisas, coisas eu não dava.
Muita coisa, tipo coisa de casa assim eu dou muito valor.
Márcia Você ajuda nas tarefas diárias?
Emília – Aqui tem a faxineira. Porque todo mundo trabalha.
Márcia Você tem o hábito de freqüentar espaços culturais? A faculdade a incentivou a essa
prática?
Emília Por meio das atividades complementares. Em São João, eu gostava de ir ao teatro,
mas era bem fraco.
Márcia – Que teatro?
Emília Tiquinha. O teatro é lindo, mas as apresentações não eram tão boas, agora que está
melhor, mas eu não fico lá também. Só que aqui em São Paulo, por eu ficar sozinha, eu não
saio, eu não saio.
174
Márcia – Você não sai?
Emília – Eu conheço aqui em São Paulo o Museu da Língua Portuguesa.
Márcia – Só?
Emília – Só. Assim, eu sempre quis ir ao MASP, eu quero muito ir lá.
Márcia – Na sua área, não há lugares importantes para você visitar? Na área de Marketing?
Emília – Para ser sincera, eu não conheço.
Márcia – Você não conhece? Então não fez diferença, a faculdade nesse sentido não acrescen-
tou? Como você deu conta de entregar as atividades complementares?
Emília Ah, eu fazia inglês, eu faço inglês, e contou inglês, contou o curso libras que eu fa-
zia, o museu que eu fui, palestras na faculdade etc.
Márcia – Então acabou dando conta? Que perspectivas o curso que você está fazendo lhe pro-
porciona?
Emília Tem muita gente que tem essa mentalidade: eu quero um diploma”. Eu não, eu
não estou fazendo faculdade para isso, eu quero trabalhar na área, não estou fazendo faculda-
de pra ter um diploma. Eu sei que eu não trabalho exatamente no Marketing, mas, pelo
menos na área administrativa, eu quero.
Márcia – Você tem de manter uma nota para continuar no Programa Prouni?
Emília – Não, eles falavam que tinha, mas, o Rodrigo, por exemplo, ele fez prova substitutiva
no semestre passado, não deu nada.
Márcia – Não aconteceu nada?
Emília – Não. Tem um menino que é do Prouni, lá da faculdade também, que ele pegou DP.
Ele só vai pagar a DP a parte, ele não perdeu a bolsa.
Márcia – Você não ficou de DP, não ficou nada?
Emília – Não.
Márcia – Você está terminando o curso agora, esse semestre?
Emília – É.
Márcia – Vai voltar para a sua cidade?
Emília Por enquanto não, esse ano eu ainda vou ficar aqui. Vou procurar um emprego me-
lhor, eu quero me aperfeiçoar no inglês.
Márcia – Você quer fazer um curso de inglês?
Emília – Eu já faço?
Márcia – Onde você faz?
Emília
– Eu fazia no Senac, agora eu fiz um semestre no CNA, vou voltar a fazer no Senac.
175
Márcia Muito obrigada. Você tem alguma coisa a mais que gostaria de falar em relação ao
Prouni?
Emília Eu incentivo todo mundo a fazer Enem. Incentivo todo mundo. Eu explico como é
que é, explico passo a passo como é que é porque eu achei que foi muito válido para mim o
Prouni.
Márcia – Então você acaba sendo uma divulgadora do Prouni?
Emília – Oh, para todo mundo eu falo.
Márcia – Para quem?
Emília Para os meus primos quem estão em idade, eu falo para o pessoal em São João
que está fazendo faculdade, que está parado, eu falo que vale a pena fazer em qualquer idade.
Márcia – E você acha que as pessoas não sabem sobre o Enem?
Emília Sabem pouco viu, porque a minha prima, a minha prima conseguiu um bolsa no
Prouni. Acho que ela está em Santos, acho que é, nem lembro mais, mas eu peguei, eu expli-
quei para ela passo a passo como fazia, ela foi certinho, conseguiu uma nota e conseguiu en-
trar. O meu primo também foi nesse caminho, ele vai fazer a prova agora, o Enem agora e vai
tentar também.
Márcia – Então você está sendo uma divulgadora do Prouni. Emília, muito, muito obrigada.
EmíliaEu gostaria de perguntar. Você entende o programa Prouni assim, bem a fundo, cer-
tinho. Tem bolsa para fazer pós?
Márcia – Não tem bolsa para fazer pós.
Emília – Nada, nem ajuda, nada?
Márcia Não, nem ajuda. O Prouni é exclusivamente para graduação e para quem nunca fez
nenhuma faculdade.
Emília – E dá pra fazer outra vez?
Márcia Não, é para quem nunca fez nenhuma faculdade. Ele é exclusivo para quem tem
uma renda determinada e para as pessoas que fizeram o ensino médio em escolas públicas.
Emília – Obrigada.
Tatiana de Oliveira Cruz Barbosa
14/08/2009
Tatiana Meu nome Tatiana de Oliveira Cruz Barbosa, estudo na faculdade Presbiteriana
Mackenzie no curso de Direito, estou no 3º semestre.
Márcia – Fala de sua trajetória escolar.
Tatiana Eu estudei a vida inteira no mesmo colégio, no Padre Anchieta
37
, aqui na Celso
Garcia, na Rua Visconde de Abaeté. Estudei a vida inteira lá. Só não me formei neste colégio,
porque no meio do terceiro ano, achei que ia trabalhar e mudei de escola. Tive um ensino
muito tranquilo mesmo. Meus pais sempre me incentivaram a estudar. Meu pai era uma pes-
soa que tinha a série primária, mas gostava muito de livros. Ele tinha muitos livros em
casa, um exagero de coleções que a gente acabou doando quando ele faleceu, mas ele tinha
muitos livros.
Márcia – Em quantos irmãos vocês são?
TatianaTenho duas irmãs, a Michele e a Cristiane. A Michele tem vinte e cinco anos. Foi a
primeira a se formar. Ela é psicóloga e se formou na São Marcos
38
.
Márcia – Pelo Prouni?
Tatiana Não, se formou beneficiada pelo Programa de Financiamento Estudantil (Fies) e a
Cristiane, que estuda na Uniesp, está se formando no próximo semestre em Administração. Eu
tive uma infância muito tranqüila. Meus pais sempre me incentivaram muito a estudar, muito
mesmo, desde o “prézinho”. Aprendi a ler muito cedo, com cinco anos eu estava lendo.
Então eu fiz um ensino básico muito bom.
Márcia – Como era sua escola?
Tatiana A escola era muito boa, o Padre Anchieta. Até uns dois anos depois que eu saí de
lá, eu sai em 95, me formei em 95, ainda era muito forte. Tive um amigo que saiu do Padre
Anchieta, fez meio ano de cursinho no Anglo, e entrou em primeiro lugar em Economia na
USP. Era uma pessoa dedicada, mas o ensino era muito forte, tanto que minha base para o
Enem foi o que eu aprendi na escola. Comparada com o que temos hoje no ensino médio, eu
fui extremamente privilegiada.
Márcia – Como eram os professores?
37
EE Padre Anchieta, localizada na Rua Visconde de Abaeté, no bairro do Brás.
38
Universidade São Marcos
177
Tatiana – A escola era muito tranqüila, muito bem organizada, tinha ótimos professores. Pro-
fessores que me conheciam desde pequena, então acompanharam toda minha trajetória e co-
nheciam meus pais.
Márcia – Como era a estrutura da escola?
Tatiana – Era muito boa.
Márcia – Como eram os alunos?
Tatiana Na minha época, por incrível que pareça, quem frequentava, eram filhos dos co-
merciantes da região do Brás. Então, digamos, que de pobre, classe média baixa éramos pou-
cos. Eu estava incluída neles, mas meus pais, para ser sincera, nunca me deixaram perceber
que eu era tão pobre. Eu vim perceber depois que meu pai faleceu.
Márcia – Como assim?
Tatiana Porque a minha mãe e meu pai nos criaram de uma maneira incrível, não é Cris
39
?
A gente nunca percebeu que era tão pobre. A gente morava ali no Brás, na Rua Müller, numa
vila fechada, numa casa alugada. Era um quarto e cozinha grandes, a gente vivia super bem,
comíamos muito bem, nos vestíamos muito bem. Eu lembro que meu pai, todo fim de mês,
trazia um pacote de roupa para a gente, sabe.
Márcia – O que seu pai fazia?
Tatiana Meu pai era vendedor de roupa, minha mãe também, no Brás. Meu pai trabalhava
na Rua General Carneiro e minha mãe no Brás. Então assim, a gente cresceu com muito luxo,
perto do que a gente enxerga hoje como pobreza, muito luxo. Eu nunca soube o que era pedir
um tênis e não ter, e mesmo quando eu era adolescente quando surgiu Nike, esses tênis mais
caros. Então a gente cresceu numa vila fechada com uma educação muito rígida. A gente
dormia às sete da noite, sabe (risos). Íamos para a escola, chegávamos, tomávamos banho e
dormíamos, mas assim, brinquedos à vontade, mesa fartíssima, graças a Deus.
Márcia – Nada lhes faltou na infância?
Tatiana Nada. Eu cresci achando que eu não era tão pobre, na verdade, eu era sim, porque
faixa etária, quer dizer, a faixa social era de pobreza sim, num nível de classe média baixa. Os
pais trabalhavam, mas não tinham um emprego estruturado, digamos assim, eram empregados
terceirizados que ganhavam um salário, se esforçavam muito para nos dar tudo. Morávamos
de aluguel “entendeu”, a primeira linha telefônica que minha e comprou foi com muito
esforço. O primeiro carrinho que ela comprou foi com muito esforço, era um fusquinha, sabe.
Era tudo pouquinho, mas parecia muito perto do mundo em que eu vivia. Então, na escola, eu
39
Cris é o apelido da irmã de Tatiana que estava presente no momento da entrevista.
178
nunca, nunca, nunca me senti diferenciada dos meus amigos que eram filhos de dono de lojas,
porque vestíamos a mesma roupa, íamos às mesmas festas, íamos à praia, íamos ao clube. A
gente era sócia do Corinthians desde pequenininha, então, final de semana inteiro era clube.
Márcia – O que vocês faziam nas horas de lazer?
Tatiana Basicamente clube, a Cristiane jogava no clube. Ela jogava federada, jogou dois
anos vôlei, então a gente vivia no clube, nosso lazer era o clube, saíamos da vilinha nos finais
de semana ou nas férias, e passávamos o dia no Corinthians, praticando esporte na piscina. A
gente teve uma criação muito tranquila, tanto na escola quanto em casa, violência, droga e
pobreza eram coisas muito distante para mim. Eu sabia que existia, meus pais me criaram com
muita consciência de que existia pobreza, que existia muita gente que passava fome, que tinha
menos do que nós, que tínhamos que valorizar o que tínhamos, e essas coisas. Nossa, era mui-
to longe de mim, e hoje como adulta, eu vejo que não era tão longe, que foi muito esforço dos
meus pais em nos proteger dessa pobreza que nos rodeava a todo instante. A gente tinha vizi-
nhos que passavam mais necessidade que a gente, mas, mas a gente não percebia, porque mi-
nha mãe nos ensinou a dividir absolutamente tudo. Então todos os brinquedos que nós tínha-
mos eram excelentes eram da Estrela, a gente dividia com a criançada. Então, a gente não
percebia que as crianças não tinham, porque para a gente não fazia diferença elas terem ou
não. Nós nhamos, e era o suficiente. Todo mundo brincava assim, como comer, a gente ia
lanchar lanchava e todo mundo junto. Era uma vila fechada de portão trancado e tudo.
Márcia – Qual o bairro?
Tatiana No Brás, na Rua Müller. Hoje ela virou um grande estacionamento, não é, primeiro
um estacionamento, hoje é uma grande loja gigantesca. Era uma vila constituída basicamente
de nordestinos da cidade do meu pai, Sergipe Itabaianinha. Todo mundo se conhecia, era
muito agradável o ambiente. A gente andava de bicicleta, a gente andava de patins, jogava
vôlei, jogava bola. Eu tive uma infância maravilhosa. Então, tanto eu quanto minhas duas
irmãs, crescemos muito saudáveis, nesse sentido. A gente sabia que existia violência, pobreza,
mas como isso nunca se aproximou da gente, a gente não tinha medo de viver, não tinha medo
de conhecer as pessoas, não fazíamos diferença entre as pessoas. Podia estar bem vestido ou
mau vestido, a gente estava tratando de igual para igual, porque a pobreza não era tão feia
para gente (risos). Realmente era uma redoma de vidro.
Márcia – E isso foi bom, você acha que isso foi positivo?
Tatiana Foi e não foi. Na verdade, foi positivo porque eu cresci muito bem, muito saudável
até a fase da adolescência. A crise foi bem menor, aquela coisa de brigar com os pais, de fugir
de casa, era aquela coisinha muito pequenininha minha mãe é uma chata, hoje ela não me
179
deixou ir para o clube, estou de castigo. Então, era muito tranquilo, até as brigas com os pais
foram sempre muito tranqüilas.
Márcia – E o lado negativo?
Tatiana Porque quando meu pai faleceu, eu tinha dezoito anos de idade, e nunca tinha tra-
balhado. Eu inventei de trabalhar com dezessete anos numa lojinha, mas cansei trabalhei, can-
sei e falei - não quero mais pai, e ele disse - então sai e vai estudar na verdade. O que meus
pais queriam é que a gente estudasse, isso sempre foi assim. Eles se esforçavam muito para
isso, minha mãe incentivava muito, sabe, meu pai na maneira dele bem simplória, com a quar-
ta série primária, nunca deixou de incentivar a gente. Então, quando meu pai faleceu, eu era
uma menina de dezoito com cabeça de quinze ou dezesseis anos.
Márcia – Quantos anos você tem?
Tatiana Hoje tenho trinta e um anos, e até eu colocar os pés no chão, e ajudar minha e
que tinha ficado com três filhas e um salário mínimo, porque meu pai era um vendedor regis-
trado, portanto, tinha uma pensão de um salário nimo. Minha mãe tinha que trabalhar e
que eu ia ter que trabalhar para ajudar minha mãe e minhas duas irmãs, a Cris com dezesseis
anos e a Michele com doze anos.
Márcia – E você tinha quantos anos?
Tatiana – Eu tinha dezoito anos, e demorou muito para eu enxergar.
Márcia – O que é muito?
Tatiana Dois anos até eu engravidar da minha filha, da minha primeira filha que eu tive
com vinte anos.
Márcia – Quais foram as dificuldades que você enfrentou?
Tatiana De conflito, de conflito assim, eu sabia que eu precisava de ajuda, mas tudo o que
eu tinha vivido antes, toda a vida que eu tinha, não conseguia largar. Então, eu fui sim traba-
lhar no shopping. Eu ganhava muito bem, mas eu gastava tudo. Eu estava na fase da balada,
então “x” era para roupa de marca, “x” era balada, entendeu? Compra alguma coisinha para
casa, não era para casa, era bolacha, Danone, mas não era uma ajuda para minha mãe real-
mente. Sabe, depois que meu pai faleceu, minha mãe batalhou muito para criar a gente, muito
mesmo. E eu fui perceber isso, quando eu engravidei, porque aí, a coisa se reverteu contra
mim. Eu era a mãe. Eu tinha outra responsabilidade, com outra pessoa, eu fui enxergar o
quanto eu fui irresponsável nesses dois anos, mas que eu também não tinha maturidade.
Márcia – Mas por que você fala irresponsável?
Tatiana
Por não ter ajudado a minha mãe, não ter crescido na hora, foi imaturidade real-
mente, porque eu fui criada numa redoma de vidro, e eu não percebi que a vida tinha mudado.
180
Minha mãe continua se esforçando para manter, que não dava mais para manter, era muito
difícil, mas ela continuou se esforçando, e eu não fui madura o suficiente para ajudá-la, para
tirar um pouco do peso sobre ela.
Márcia – Mas você acha que estava preparada?
Tatiana Não, e não fui preparada para isso. Eu fui preparada para sair do terceiro ano e en-
trar na faculdade, e a partir daí a gente nem tinha noção do que seria faculdade, sabe, se eu ia
começar a trabalhar depois.
Márcia – Então, isso você chama de lado negativo?
Tatiana Sim. Porque com tudo isso, eu não amadureci tanto o quanto eu deveria. Meus
pais, com essa redoma, acabaram me podando um pouco, nesse sentido, eu não amadureci
tanto quanto eu deveria. Não amadureci com a situação financeira que existia, classe média
baixa. Eu tinha que ter tido mais consciência disso, e eu não tinha, mas não culpo meus pais,
nem ninguém por isso, pelo contrário, eu agradeço muito hoje tudo que eu vejo. Agradeço
muito, o que eles fizeram por mim, pelas minhas irmãs. É bem claro para mim.
Márcia – Então, com dezoito anos, você engravidou?
Tatiana Não, não, com vinte anos! Tinha um namorado, eu namorava quatro anos
com pai da minha filha. Eu não cheguei a casar com ele, mas nós namoramos muito tempo.
Sete anos nós ficamos juntos, bastante tempo. Eu namorava quatro anos, quando eu engra-
videi. Quando engravidei, a minha mãe falou - se não vai casar só porque engravidou, para
e pensa, graças a Deus foi a melhor coisa, porque eu fiquei dentro da casa da minha mãe e
continuei trabalhando. Tive a minha filha e quando ela tinha um aninho, a gente terminou o
namoro e cada um seguiu a sua vida. Hoje eu sou casada. Eu casei quando minha filha tinha
quatro anos. Sou casada, casei como eu sempre sonhei na igreja. O pai dela também casou. Eu
tenho um bebê de dois anos e ele tem um bebê de um ano. Então, é assim, seguimos as nossas
vidas tranquilamente. Um pai super atencioso com a minha filha. A família dele ama minha
filha, me dou muito bem com todo o mundo. Então, foi tranquilo. A fase da gravidez que foi
conturbada sabe. Eu tive que crescer da noite para o dia, mas valeu, valeu porque eu cresci
realmente. É porque você tem que amadurecer, tem que crescer, porque ali você tem uma pes-
soa que dependia de mim, e minha mãe em momento algum me julgou, graças a Deus, ficou
brava no começo é claro, normal, mas não me julgou, me apoiou e me fez pensar. Se eu tives-
se casado, era o trabalho de casar e descasar, não teria realizado o sonho que eu tive, que
eu realizei de casar da maneira que eu quis, entendeu?
Márcia
– E você continuou trabalhando? Terminou os estudos?
181
Tatiana Terminei o ensino médio com dezessete anos, em 97, eu comecei trabalhar. Meu
pai faleceu no final de 96, então em 97, comecei a trabalhar, depois que meu pai faleceu, eu
só voltei a estudar em 2005 com vinte e sete anos.
Márcia – E por que só com vinte e cinco anos você resolveu voltar a estudar?
Tatiana Então, vamos voltar um pouquinho, quando meu pai faleceu, nós morávamos e AE
Carvalho
40
, numa vilinha. Minha mãe tinha comprado uma casa lá, mas era um lugar muito
longe. A gente cresceu no centro no Brás, não sabia morar longe, na verdade. a gente deci-
diu voltar para o Brás.
Márcia – Quando vocês voltaram para o Brás?
Tatiana Nós voltamos para o Brás em 97, assim que meu pai faleceu, meses depois, a gente
voltou para o Brás. A gente morou seis meses em AE Carvalho, até então, continuei traba-
lhando, já pensava na faculdade, porque sempre foi um sonho.
Márcia – Por quê?
Tatiana Porque, porque eu cresci com isso, e a princípio, educação física. Porque eu cresci
com o esporte quando era mais nova, ou biologia até que eu descobri que eu tinha muito medo
de aranha, aí não consegui fazer biologia e ficou só educação física. A gente gostava muito de
esportes. A Cris jogava no Corinthians, eu joguei em outras entidades, na igreja. Eu e a Cristi-
ane crescemos na igreja metodista, meus pais não eram, mas desde pequenininha nós cresce-
mos lá, confesso que faz muito tempo que não vou, mas crescemos lá. Então, nós jogávamos
vôlei na metodista e na presbiteriana. A gente sempre estava fazendo esportes, então para
mim, educação física era decisão, estava decidido, mas depois que tive a minha filha, amadu-
reci um pouquinho mais e achei que eu não ia conseguir fazer educação física e decidi fazer
pedagogia.
Márcia – Mas por que não ia conseguir?
Tatiana – Eu achei que eu não ia conseguir sobreviver com educação física.
Márcia – Você achou que educação física não lhe daria o sustento?
Tatiana Economicamente, eu achei que não ia conseguir sobreviver, e também pela questão
da idade, eu estava com vinte e sete anos. Na educação física tem um teste prático para en-
trar, tem que fazer esse teste e, eu achei que não ia dar conta, e optei por pedagogia, porque
quando a gente foi morar no Brás, em noventa e sete, a minha mãe que fazia parte do mo-
vimento de moradia do centro, que é um movimento que existe uns vinte e oito anos, na
40
AE Carvalho – Cidade Antonio Estevão de Carvalho, bairro do município de São Paulo, zona leste.
182
época, existia vinte anos, porque estou nele oito ou nove anos, e minha mãe fazia
parte, mas muito moderadamente, ela ia às reuniões.
Márcia – Que movimento é esse?
Tatiana É um movimento que luta por moradia no centro de São Paulo, que por ideologia
luta por ocupar os prédios públicos, principalmente aqueles desocupados, para que ele virem
moradia e modifique um pouco essa coisa de “dormitórios” que as vilas têm, para que o traba-
lhador que trabalha no centro também possa morar no centro, para ter um pouco mais de vida,
para passar menos tempo no trânsito, para poder chegar mais cedo em casa e poder olhar o
caderno dos seus filhos, brincar com os seus filhos antes de dormir, a princípio, a princípio,
não é essa a idéia principal do movimento de moradia.
Márcia – Tem alguma bandeira partidária?
Tatiana Não! Não, nós não estamos ligados a nenhum partido político. É um movimento
social que luta realmente por um mundo melhor, que luta por moradia digna. O pessoal tem o
costume de confundir: lutar por moradia como sendo como moradia de graça. Então, é lutar
por moradia digna com preço que a população da classe média baixa possa pagar, que é a po-
pulação de três a seis salários mínimos, então de um a seis ou de três a seis.
Márcia – Como sua mãe entrou nesse movimento?
Tatiana Então, a minha mãe entrou nesse movimento para ser sincera, eu não sei, mas foi
há muito tempo.
Márcia – Depois que seu pai faleceu?
Tatiana Não, não, muito antes. Acho que ela ouvir falar quando eu era muito pequenininha,
quando meu pai faleceu, minha mãe fazia parte uns seis ou sete anos, que era muito
simploriamente. Eu acho que uma vizinha ficou sabendo que havia reuniões desse movimen-
to, aí, eles se reuniam para discutir sobre essas moradias, com a promessa de lutar por proje-
tos. Ela começou a ir para ver se conseguia uma casa própria.
Márcia – Que ações ela fez nesse tempo?
Tatiana A princípio nenhuma, simplesmente era ouvinte. Ela ia e ouvia as reuniões que
tinha como seu principal líder, o Luís Gonzaga da Silva que é o GG e Luiza que ainda hoje
são coordenadores do movimento, e a princípio, esse movimento trabalhava com cortiços,
então essas pessoas saiam e conversavam com as pessoas que moravam aqui na região central,
na Santa Cecília, na Luz, conversavam com as pessoas, lutavam por água, saneamento básico
dentro desses cortiços e dessas pensões, com o tempo, esse movimento foi crescendo. Essas
pessoas foram se agregando ao movimento e o movimento começou a lutar por moradia pro-
priamente dita, realmente em ocupar prédios, em chamar a atenção do governo para tanta gen
183
te que trabalhava no centro e necessitava de moradia aqui, e principalmente o tanto de prédios
públicos desocupados.
Márcia – Ainda tem prédios desocupados nesta área?
Tatiana – Muito. Eu ouvi uma pesquisa essa semana da faculdade de arquitetura da USP, que
aqui na região central tem cerca de noventa e oito prédios públicos desocupados e total-
mente sem utilidade. O que vai contra a Constituição, é inconstitucional porque se falta mora-
dia e moradia é um direito garantido da constituição, e se o governo tem esse dever e se tem
prédio público desocupado, tem o dever de transformar, o dever de procurar projetos.
Márcia – Vocês são atuantes no movimento?
Tatiana Sim, o movimento está atuante, mas com a prefeitura do PSDB é bem difícil con-
versar, quando era o PT, foi quando conseguimos esse prédio e tantos outros prédios que a
gente conseguiu, mas com o PSDB e eu vou citar aqui o partido, porque aqui cabe dizer que
não temos nenhum vínculo partidário, mas é bem mais fácil negociar com os partidos de es-
querda ou de quase esquerda, porque não sei se para falar que o PT é de esquerda, mas, de
qualquer forma, como boa petista que sou, desiludida, mas boa petista, mas todos os partidos
que passaram pelos governos são melhores que o PSDB para classe média e média baixa, até
a classe média mesmo, que deixou de existir, agora é média baixa e a média baixa virou
miserável, infelizmente. É bem por e em novembro de noventa e seis o movimento fez a
primeira ocupação, aqui na Rua do Carmo, no Casarão
41
da Rua do Carmo, e foi ali, a primei-
ra ocupação, e minha mãe foi convidada para participar dessa ocupação como militante do
movimento, e nessa ocupação, ela acabou de revelando uma grande líder, e até hoje, minha
mãe é uma das coordenadoras, em nível nacional. Ela é uma mulher muito lutadora, com mui-
ta coragem, e a Rua do Carmo foi a primeira ocupação, foi quando a minha mãe entrou de vez
e encarou verdadeiramente a luta. Minha mãe é uma lutadora, teve uma vida muito difícil e
até hoje é, está com cinquenta e sete anos, e cursa uma faculdade. É uma mulher incrível,
ela encarou a luta e foi atuar no movimento de moradia do centro. Em noventa e sete, nós
mudamos para o Brás, e minha mãe estava participando ativamente. Foi quando houve uma
segunda ocupação, que foi na Rua do Ouvidor, aqui em baixo, perto da Secretaria de Segu-
rança, aqui no centro. Nós ficamos oito anos lá, e em 98, quando eu engravidei, eu me cadas-
trei no movimento, porque eu estava grávida, e independente de casar ou não, eu tinha que ter
um canto com a minha filha. Eu tinha que pensar num futuro a partir dali. Minha filha nasceu
em janeiro de 99. Mais ou menos em março ou abril, nós fomos morar em uma ocupação da
41
Casarão – É um belíssimo casarão, situado na Rua do Carmo, 81 que fora abandonado por muitos anos.
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Rua do Ouvidor, porque o aluguel ficou muito caro e nós fomos morar na ocupação. Foi
quando eu comecei a participar ativamente do movimento. Eu era cadastrada, então era
apenas base militante, para você entender um pouco: o prédio da Rua do Ouvidor era um
prédio de doze andares, ocupado totalmente por moradores. Moravam cerca de mil e duzentas
pessoas ali, cerca de cem a cento e vinte famílias, famílias essas oriundas do nordeste, mora-
dores de rua, pessoas que sofreram despejo, pessoas de cortiços que faziam parte do movi-
mento, que com a ocupação passaram a morar na ocupação. Era muito bem organizada, havia
uma portaria vinte e quatro horas, os próprios moradores faziam a portaria vinte e quatro ho-
ras, todos os moradores tinham carteirinha, com apresentação que se podia entrar no pré-
dio. Tinha horário de visita, eu que era moradora podia levar minhas visitas das oito horas
às dezoito horas da tarde, porque eram salas muito grandes e foram divididas com madeirite,
para não incomodar o vizinho. A limpeza de cada andar era feita pelos moradores, havia esca-
la, cada dia um morador limpava o banheiro e as escadas. Era proibido beber, morador que
chegava bêbado dormia do lado de fora.
Márcia – Por quê?
Tatiana – Porque a bebida é fogo, a gente nunca conhece a pessoa que bebe, e aí morando tão
próximo um do outro, podiam acontecer agressões, coisa desse tipo. A gente cobrava muito
dos pais que colocassem as crianças na escola. Isso era regra básica para morar lá. As crianças
tinham que estar estudando, e regras normais de convivência.
Márcia Você disse anteriormente, que foi pelo movimento que surgiu o interesse por peda-
gogia? Por quê?
Tatiana Porque eu trabalhava no shopping. Eu saí do shopping porque eu trabalhava em
Guarulhos, era muito longe. Então, eu estava morando aqui no centro, e trabalhando em Gua-
rulhos. Eu saí da loja e fiquei desempregada, foi quando a pastoral da moradia que tinha uma
parceria com o movimento criou um projeto, em conjunto com a pastoral da moradia, a prin-
cípio, de reforço escolar para as crianças, porque o que a gente viu era que a crianças ficavam
muito ociosas no período que estavam fora da escola, ela estudavam pela manhã, e ficavam
fazendo bagunça à tarde ou vice-versa, e em conjunto com a pastoral da moradia, a gente cri-
ou essas aulas de reforço, e eu fui dar aula.
Márcia – Você tinha formação pedagógica?
Tatiana Não, não tinha nenhuma formação pedagógica. Tinha terminado o ensino médio e
fui dar aula, mas tive ajuda, tive ajuda de duas coordenadoras, duas ex - coordenadoras do
movimento, a Ana Maria e a Marta, ambas já formadas já, a Ana Maria em letras e filosofia, e
a Marta em história que trabalhavam muito com o Paulo Freire, então me deram algumas di
185
cas. Eu comecei a ler Paulo Freire e comecei a dar aula de reforço para as crianças e comecei
a dar aula para as crianças com a metodologia de Paulo Freire, que é uma educação libertado-
ra, porque além do reforço escolar, o que a gente começou a perceber com o reforço escolar
foi o dia a dia das crianças. Veio à tona a agressividade, a fome, o desprezo, a discriminação
que elas sofriam, a história de vida delas. E eu fui me envolvendo com todas essas crianças,
então ensinar a ler e a escrever não era o suficiente, eu tinha que aprender a trabalhar com a
vida delas e trabalhar com a vida dessas crianças era prepará-las para que elas pudessem se
defender do mundo ali fora. Elas moravam numa ocupação sim, mas não eram invasoras, não
eram marginais, porque elas tinham ocupado um prédio, porque elas não tinham onde morar,
e a culpa não era delas, e sim, de uma situação social que existia no país, que não era culpa
nem dela nem dos pais delas. A gente começou a trabalhar além da alfabetização, e as consci-
entizá- las realmente da vida que elas tinham. Então, era um trabalho de educação e política,
baseado na educação libertadora de Paulo Freire. A gente começou isso em 99 e em 2001, a
Marta
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ganhou a prefeitura, ela retomou o movimento Mova Movimento de Alfabetização
de Jovens e Adultos e eu comecei a participar do recomeço do Mova. Desde dois mil e um,
montamos uma sala de alfabetização, à noite, na ocupação, na Rua do Ouvidor para os pais
também, porque era feito todo um trabalho com as crianças de manhã e à tarde, e quando elas
voltavam à noite para casa, elas voltavam a mesma rotina de violência, de relaxo, descaso e
desprezo dos pais, e eu comecei a perceber que eu também tinha que começar a trabalhar com
os pais, e com os pais, além do analfabetismo, analfabetismo funcional, eles não liam, não
escreviam, mas sabiam lidar muito bem com dinheiro, pegar ônibus, tudo isso. Eles tinham
vontade de aprender também, então, assim o filho chegava em casa com a lição, e o pai e a
mãe não sabiam ensinar, eram brutos, ignorantes. Então eu vi que o meu trabalho com as
crianças estava sendo em vão, eu senti que a gente tinha que trabalhar com os adultos tam-
bém, e aí, nós começamos dar aulas, eu dei aula no Movimento do Centro, a Cristiane deu
aulas para os adultos, à noite, com o apoio da prefeitura e com o material da prefeitura. Com o
apoio do Mova, nós trabalhamos um ano e meio sem nenhum centavo.
Márcia – Sem nenhuma remuneração?
Tatiana Sem nenhuma remuneração, a princípio. Para começar o projeto, quando o Mova
saiu, nós nos agregamos a eles, entramos no projeto, e em dois mil e dois, uma das coordena-
doras do Mova, uma professora chamada Marilene, me informou que tinham mais vinte e
duas salas, porque tinha outra entidade que não conseguiu fazer convênio com o Mova, por
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Marta Suplicy, prefeita da cidade de São Paulo de 2000 a 2004 pelo Partido dos Trabalhadores
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que não tinha documentação. Perguntaram se a gente não queria assumir essas salas, então o
movimento acabou assumindo mais vinte e duas salas que ficavam na zona sul de São Paulo
no Jardim São Salvério, em Heliópolis, na Vila Cristina, em Santo Afonso, que fica ali na
Água Rasa e no Colégio Renovação que fica ali na Rua Padre Bento. Assumimos essas salas.
Hoje o projeto ainda existe, eu coordeno esse projeto junto com outra pessoa que é a Lurdi-
nha, a Maria de Lurdes, uma coordenadora pedagógica formada em Letras, fazendo pós e ago-
ra faz psicopedagogia. Hoje, nós temos oito salas, porque assim o projeto tem algumas
exigências, precisam ter vinte alunos inscritos, doze diários para que as salas permaneçam
abertas, então, realmente as salas que iam diminuindo, a gente ia fechando, porque dava muito
trabalho, ajudar a prefeitura e com a saída do PT, ficou muito difícil lidar com a prefeitura,
porque o pessoal do PSDB não percebe que o Mova é um movimento e não é uma instituição
e acabou institucionalizando o Mova, exigindo coisas demais e como é o dinheiro público, a
gente entende e respeita. Então, quando uma sala está pequena, a gente passa os alunos para
outra sala e fecha a sala. Então, hoje ainda temos oito salas todas na zona sul de São Paulo.
Márcia – E você viu que precisava estudar pedagogia?
Tatiana Então, a partir daí de dois mil e dois, quando eu entrei no Mova realmente, a pre-
feitura de São Paulo deu muitos cursos, ela capacitou muito os agentes do Mova, muitos pro-
fessores do Mova, porque a grande maioria eram pessoas que apenas tinham o magistério, e
para trabalhar com adultos, era necessário ter um pouquinho mais, e o que a prefeitura fez foi
promover cursos de capacitação em parceria com a PUC
43
, então eu fiz muitos cursos para
aprender a trabalhar com alfabetização, na área da geografia, língua portuguesa, da matemáti-
ca, todos baseados na pedagogia libertadora de Paulo Freire, de trabalhar com o a conscienti-
zação, tanto das crianças quanto dos adultos, e tudo isso adaptado para as crianças, porque
elas necessitavam dos mesmos mecanismos de defesa, para que crescessem melhor. Trabalha
com a realidade do adulto é o que eu acredito que funcione, que eu acredito que certo, e o
Mova faz isso, então, com esses cursos eu me apaixonei por educação, e foi em dois mil
sete, que eu resolvi prestar vestibular na Unicsul
44
.
Márcia – Pelo Prouni?
Tatiana – Sem o Prouni, tentei pagar a faculdade!
Márcia – A Unicsul?
Tatiana Em 2007, não, perdão, em 2005, eu prestei vestibular na Unicsul para pedagogia, e
fiz apenas três meses, porque eu não consegui pagar, e em 2005, mesmo logo após eu ter en
43
PUC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
44
Unicsul – Universidade Cruzeiro do Sul
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trado na faculdade, eu fiz uma viagem para o Rio Grande do Sul, em janeiro. Pouco antes de
começar às aulas, participei de um encontro de jovens da América Latina, chamado Jam Lati-
na, é um encontro patrocinado por uma ONG dos EUA chamada YES
45
, que junta jovens mi-
litantes são coordenadores, para trocar experiência da América Latina inteira, eu fiquei vinte e
dois dias no Rio Grande do Sul, entre Rio Grande, Santa Catarina fui até Buenos Aires, por-
que tinha um pessoal da Argentina em troca de experiência, e quando eu voltei, eu recebi um
convite de uma pessoa, um doutor em direito, o André Vianna, que morava em Criciúma para
trabalhar em Criciúma, na verdade, para abrir, para criar um centro de defesa dos direitos da
criança e do adolescente o Cedeca
46
, na cidade de Criciúma em parceria com uma ONG, que é
a ONG criada pelo Andre Vianna, chamada Ócio Criativo
47
que trabalha na denúncia da ex-
ploração do trabalho infantil, com o Conselho Municipal de Educação da Criança e Adoles-
cente da cidade.
Márcia – E o que você decidiu?
Tatiana Então, eu fui pra Criciúma com a minha filha e passei quatro meses em Criciúma,
peguei as coisas e fui, fui porque acreditei no projeto. O projeto era uma coisa que ligava edu-
cação e direito, e eu sempre gostei muito de direito, porque achava que não ia sobreviver que
não ia conseguir atuar.
Márcia – Então, nesse momento da sua vida, você pensa em estudar direito?
Tatiana – É.
Márcia – Você pensou em educação física, pedagogia e agora direito?
Tatiana – Comecei a pensar em direito simultaneamente com pedagogia, no movimento, por-
que os conflitos que nós passamos acabou despertando a necessidade de saber, de conhecer
seu direito, para saber ate aonde você pode ir, até que ponto você deve ir, o que você pode
exigir, qual é seu direito, onde está o abuso de autoridade. Ver o que o governo está deixando
de fazer, entendeu? Essas coisas, e lidando com as crianças, tudo isso foi me despertando uma
sede gigantesca de justiça e para mim, educação e direito eram coisas que andavam juntas. Eu
não consigo separar, e hoje, principalmente, não consigo separar. Então eu fui viver essa ex-
periência em Criciúma, na área do direito e educação, porque o Cedeca trabalhava com meno-
res infratores adolescentes em conflito com a lei, que vinham de uma história de falta de edu-
cação, de falta de amparo educacional por parte do governo, porque é o que acontece, é o que
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YES – Rede Yes, é uma iniciativa da ONG Global Rework the World que luta pela inserção dos jovens no
mercado de trabalho
46
Cedeca – Centro de Defesa da Criança e do Adolescente
47
O Instituto Ócio Criativo tem como missão, mobilizar pessoas e organizações para a prevenção e erradicação
do trabalho precoce e a garantia dos direitos fundamentais da criança e do adolescente.
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vemos hoje em dia. O descaso da educação no nosso país realmente leva sim a uma desigual-
dade social gigantesca, e que leva o jovem da periferia sim, não é o principal fator, mas eu
acredito que seja um fator muito forte, que leva o jovem da periferia chegar na criminalidade,
principalmente como está hoje. O crime é muito mais atrativo do que a escola. eu fui co-
nhecendo esse lado, e lá, eu trabalhava com advogado e com a promotora da cidade e com os
adolescentes em conflito com a lei no CIP
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, que é o centro de internação provisória, me apai-
xonei de vez pelo direito e fiquei apenas três meses e meio, realmente foi relâmpago, porque
eu não consegui ficar longe da minha família e do meu marido que ficou aqui, eu era casa-
da!
Márcia – Você já era casada?
Tatiana Eu casei em 2003. Meu marido ficou aqui e eu fui. É que eu sou assim, quando eu
acredito, quer dizer, eu era assim, hoje eu não sou mais assim. Eu era muito corajosa nesse
sentido, porque eu acreditava de verdade no projeto e queria conhecer. Era uma coisa que me
emocionou muito, e o André me incentiva muito a prestar vestibular, e eu iria prestar, não
cheguei a prestar porque voltei para cá, e quando eu voltei em dois mil e cinco mesmo, foi
logo no comecinho de 2005. Eu voltei no meio de dois mil e cinco, e quando eu voltei, fui
trabalhar no diretório de direito do Mackenzie. A minha irmã do meio, a Cristiane, trabalhava
lá, à noite. Eu fui trabalhar de secretária.
Márcia – Onde você morava?
Tatiana – Já morava aqui! Nós viemos para cá em 2001.
Márcia – Este prédio é ocupação?
Tatiana Não. Aqui foi um prédio negociado com a Caixa Econômica Federal. Nós tínha-
mos a ocupação da Rua ou Ouvidor, nós tínhamos a ocupação há um ano e meio, aproxima-
damente, e o movimento tinha mais duas outras ocupações na Rua São Francisco e outra na
Floriano Peixoto, que era um prédio da Caixa Econômica Federal, que foi o que gerou a ne-
gociação com a Caixa para poder comprar esse prédio. Então, a Caixa Econômica Federal, em
parceria com a prefeitura, comprou e reformou esse prédio, e financiou através de um pro-
grama chamado Programa de Arrendamento Residencial, era um programa que estava jogado
dentro de alguma gaveta em Brasília, alguém pegou esse programa, reativou a Caixa, viu que
era uma boa idéia e negociou junto com a prefeitura de São Paulo a reforma deste prédio. En-
tão, hoje eu moro num apartamento financiado, um financiamento de quinze anos, para pesso-
as que ganhavam de três a seis salários nimos, e para conseguir morar aqui, o critério era
48
CIP – Centro de Internação Provisória
189
participar do movimento, porque o movimento é que indicou as pessoas para morarem aqui.
Então, as pessoas que hoje moram aqui são as pessoas que mais têm lutado pelo movimento.
Eram as mais antigas, as que mais participavam realmente. Foram as primeiras a conquistar a
sua moradia, e mais o critério normal da Caixa Econômica que é ter o nome limpo, renda den-
tro desse parâmetro. O programa tinha essas exigências para poder morar aqui. Em 2005,
quando eu fui para Criciúma viver essa experiência em direito, eu já morava aqui na Fernão
Sales e, quando eu voltei para São Paulo, eu fui trabalhar no diretório de direito do Mackenzi-
e, e foi quando eu acordei de verdade para a vida universitária, porque eu vim de Criciú-
ma com uma gana muito grande. Eu estava muito sentida de ter largado a faculdade no co-
meço em 2005. Eu estava muito sentida de não ter conseguido pagar. Fui para Criciúma
para tentar me estruturar e tentar outra coisa.
Márcia – Faculdade, para você, era uma continuidade lógica?
Tatiana Sempre foi, desde que me entendo por gente, dos quatro anos de idade que eu cres-
ci sabendo que eu ia estudar, fazer faculdade, me formar, casar, sempre foi uma meta! Foi
uma coisa que eu adiei, muito mais por vontade minha, porque depois que eu ganhei a minha
filha, continuei a trabalhar e ganhando muito bem. Eu podia ter ido fazer faculdade, mas ia
fazer outras. Saí, criei minha filha e acabei deixando a faculdade um pouco de lado. Mas em
momento algum eu desisti. Eu sabia que uma hora eu ia voltar, e a hora foi realmente em
2005, que eu tentei e vi que não ia conseguir pagar. Parei, fui para Criciúma, vi que não ia
conseguir ficar longe da minha família, voltei e quando eu entrei no Mackenzie como secreta-
ria, então a vontade explodiu, porque eu trabalhava no diretório direito no Centro Acadêmico,
diretamente com os estudantes, e fiz uma amizade gigantesca com eles. O Mackenzie é uma
instituição privada de classe média alta e têm pessoas ótimas, que sempre apoiaram e davam
uma força para mim e para minha irmã entrar em uma faculdade. Em dois mil e seis, nós fi-
zemos nosso primeiro Enem – dificílimo fui péssima!
Márcia – Você lembra a sua nota?
Tatiana – 49.
Márcia – Por que você não foi bem?
Tatiana Porque eu não tinha noção do que era a prova, realmente eu fui despreparada. Fui
pensando que era uma coisinha e fui, cheguei lá, não era uma prova difícil, mas uma prova
cansativa que exigia um preparo, realmente exigia uma dedicação para leitura no momento, e
eu tinha um bloqueio muito grande em escrever, então a redação no primeiro Enem foi o que
pesou, não me lembro a nota, sei que somando os dois e dividindo deu quarenta e nove, por
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que eu tinha muito medo de escrever, não acreditava que eu podia escrever. Então fui muito
mal mesmo. E aí não consegui entrar em nenhuma universidade.
Márcia – Você se inscreveu para o Prouni?
Tatiana – Sim. Eu me inscrevi para o Prouni.
Márcia – Então em dois mil e seis, com quarenta e nove pontos você tinha o direito de tentar o
Enem que exige uma nota mínima de quarenta e cinco pontos?
Tatiana Eu tinha o direito, mas na verdade o critério de seleção é das faculdades. Eles aca-
bam selecionando por pontuação e minha pontuação era muito pequena.
Márcia – Qual o curso que você pensava fazer, no primeiro Enem?
Tatiana – Pedagogia.
Márcia – Você lembra suas opções no Prouni?
Tatiana Lembro! Primeira opção foi pedagogia para a Unicsul, a segunda opção foi direito
no Mackenzie. Eu coloquei somente duas não coloquei mais nada. Eu não usei. Foi isso, e
eu não consegui, porque era uma pontuação muito baixa mesmo. Assim eu desisti, passou
2006, e em 2007 eu fiz novamente o Enem.
Márcia – Você se preparou?
Tatiana Não, não, em 2006 eu engravidei, em 2007 eu tive meu neném e fui fazer o Enem,
com os seios pingando, mas fui. Meu bebê era novinho, e eu fiz às três horas de prova. Eu me
lembro que quando eu saí de casa, eu não tinha estudado porque não tinha condições, porque
ele era muito novinho, quando saí de casa, dobrei os joelhos e orei a Deus por sabedoria, cal-
ma para fazer a prova, e que ele me iluminasse na redação, porque eu tinha entendido, que
tanto para pedagogia na Unicsul, quanto direito no Mackenzie, as duas instituições avaliam
bastante a redação. Eu me lembro que duas semanas antes fiquei no Mackenzie, treinei um
pouquinho de redação com uma amiga minha, a Maria Eugênia, que é estudante de direito, e
ela foi me ensinando a fazer redação, e eu fui me aperfeiçoando e criando coragem para es-
crever, e quando eu cheguei na prova, eu cheguei tranquila. Fiz às três horas de prova com
muito cuidado. Eu fiz a prova e sim, eu entendi o Enem. Não era tão difícil. Acredito que
agora vai estar mais concorrido por causa das universidades federais. Mas não era tão difícil,
mas muito cansativa, realmente testa o adolescente, porque o adolescente que está na idade de
fazer o Enem, não tem paciência de fazer uma prova deste tamanho, não tem.
Márcia – Você acha que ele não é preparado para esse tipo prova?
Tatiana Não! Hoje em dia não. Não é preparado, porque muita gente que eu conversei, ali
no Mackenzie, muitos colegas meus, ali do Prouni, fizeram o Enem, mas porque faziam cur
191
sinho antes, tinham bolsas de estudo em cursinho também, então eles estavam preparados,
mas o que se vê na escola publica hoje realmente não dá!
Márcia – A quais fatores você atribuiu o seu não sucesso no primeiro Enem?
Tatiana Foi falta de atenção, falta de preparo. Acho que de conhecimento próprio, deveria
ter lido melhor as questões. Sabe, achei que fosse uma coisa simples e não é tão simples.
Márcia – Qual foi a sua nota no segundo Enem?
Tatiana Então, eu fiz 8.0 na redação, e 7.4 nas questões, nas, não, eu fiz 6,5 nas questões e
a media geral foi 7.9 ou 7.95, uma ótima pontuação.
Márcia – Você tentou se inscrever para o Prouni novamente?
Tatiana – Aí sim, fui para o Prouni outra vez.
Márcia – Quais foram as suas opções?
Tatiana – Fiz a inscrição para o Prouni e coloquei como primeira opção, mas achei que a nota
ainda não era suficiente para o Mackenzie.
Márcia – Pedagogia?
Tatiana Na Unicsul. Porque como em dois mil e cinco, eu comecei lá, a faculdade de peda-
gogia, e eu gostei do curso, achei que era uma boa instituição. Pesquisei no site do MEC e a
nota é B em pedagogia, então, essas universidades, digamos, não menores com menos prestí-
gio, digamos assim, é uma boa faculdade, está ali junto da São Judas. É uma boa faculdade, só
coloquei pedagogia e direito Mackenzie de novo, mais nada.
Márcia – Não aproveitou as outras três opções?
Tatiana Não! Nenhuma outra, não tinha outra opção para mim, então eu fui selecionada
pelo Prouni em pedagogia, fiquei felicíssima. Cursei seis meses na Unicsul, fiz o primeiro
semestre na Unicsul, aí eu estava sentada no diretório do Mackenzie, na Internet, quando eu vi
que havia sido abertas as inscrições para o Prouni, e eu podia aproveitar ainda a mesma nota
do último Enem. Então, pensei - quer saber, se der deu se não, estou muito feliz na minha
faculdade, e estava realmente. Coloquei a primeira opção - Mackenzie, direito noturno, mais
nenhuma, ou era isso ou não era nada. Num belo dia, saiu o resultado e estava lá, a bolinha
amarela. Tremi dos pés à cabeça, chorei que nem criança, porque a dúvida foi gigantesca so-
bre o que eu ia fazer. Já estava certa numa coisa, que eu gostava e que gosto muito, entendeu?
Mas estava diante de um salto gigantesco, na vida que é ser agente de direito, entendeu? Que
é trabalhar a educação em outro patamar, porque não adianta esconder, é muito diferente para
a população leiga, o que uma advogada fala e o que uma pedagoga fala. Infelizmente, o pata-
mar que se hoje em termos de cultura no nosso país é a palavra doutor, que vem na frente,
injustamente, porque doutor é quem faz doutorado, e bacharel em direito não é doutor. Mas
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esse título, que é dado culturalmente, faz muita diferença para a sociedade. E eu parei para
pensar um pouquinho no seguinte - o que eu quanto pedagoga, a princípio, podia fazer e o que
eu Tatiana, como advogada poderia fazer. Eu pesei os dois para ver.
Márcia – Você pensou em você ou na sociedade?
Tatiana Para a sociedade, para a minha família também, e também pesei a minha condição
social, não vou mentir, pesei sim a minha condição pessoal, da minha família. O dinheiro,
porque realmente uma diferença muito grande, pesei a instituição. A Mackenzie é uma
grande universidade, é a terceira maior do país em termos de universidade privada, ela está
atrás, é a segunda na verdade, ela esta atrás da PUC, a terceira, num patamar geral, porque
vem USP, PUC e Mackenzie em São Paulo. Ela é a segunda, é uma instituição de peso em
direito. Tem nome, a Mackenzie é conhecida por formar ótimos técnicos, ótimos advogados.
Então realmente faz diferença no mercado de trabalho, e eu realizei um pouquinho, tudo o
que eu vivi em Criciúma, e eu decidi por Direito. Pesou mais, pesou poder ajudar mais, pesou
o bolso, o financeiro para mim, e por eu estar dentro da Mackenzie, trabalhar alguns
anos, já ter muitos amigos e resolvi e fui fazer direito.
Márcia – Também pesou abandonar a educação?
Tatiana – Pesou, pesou muito, eu fiquei com muito, muito medo. Tenho até hoje medo, estou
no segundo ano e tenho medo até hoje de não conseguir trabalhar como agente de direito, por
conta da minha ideologia, da minha história de vida. Desde que meu pai faleceu, de tudo o
que eu aprendi, dos dezoito anos até hoje, de tudo o que aprendi na vida, o quanto a pobreza é
dura, o quanto a discriminação é dura, e existem pessoas que precisam de ajuda e de pessoas
que as ajudem de fato, e que estejam ali, aparando, que as motivem crescer, que resgatem
realmente a cidadania dessas pessoas. Para que elas possam andar com suas próprias pernas, e
eu tenho muito medo, porque a faculdade de direito é muito pesada, pelo menos para mim,
que tenho essa consciência socialista de um mundo melhor, que acredito mesmo que as pesso-
as deveriam ter um patamar de igualdade, pelo menos um pouco mais, não digo uma vida com
grana, entendeu? Mas um pouco mais sim. No nosso país, um pouco mais de responsabilidade
do poder público, na faculdade de direito, e principalmente na Mackenzie, que é uma institui-
ção Presbiteriana, que preza muito pelo legalismo, pela postura escrita, que não tem uma pos-
tura muito extensiva dos códigos, entendeu? Tem uma visão fechada de sociedade, formada
por professores extremamente legalistas, onde existem pessoas ricas, de classe média alta, da
mais alta, estudam no Mackenzie.
Márcia
– Como você se sente na universidade? Há discriminação?discriminação com alu-
nos do Prouni?
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Tatiana Há bastante sim. Hoje sou do diretório acadêmico de direito como gestão, não mais
como secretária, a Mackenzie tem diretório acadêmico e todo ano tem eleição, e uma coisa
que a gente percebe muito, dentro da Mackenzie, é a discriminação, principalmente com os
alunos que possuem bolsa pelo Prouni. A Mackenzie é uma instituição de São Paulo que mais
aderiu ao Prouni, e o curso de direito dentro Universidade Presbiteriana Mackenzie foi o curso
que mais tem bolsa pelo Prouni, então o que a Mackenzie fez? Por conta das bolsas do Prouni,
ele cortou as bolsas que dava enquanto instituição filantrópica, então esses alunos que tinham
trinta, quarenta, cinqüenta por cento de bolsa acabam perdendo e perdem lugar para o Prouni.
Márcia – E como fica a relação entre os alunos?
Tatiana Fica uma relação diplomática, porque é um curso diplomático que ensina a gente a
agir até com um certo, um certo fingimento, não sei se essa é a palavra certa, mas é um certo
fingimento mesmo, então na verdade é assim, a camada da elite da Mackenzie no meio daque-
les gatos pingados do Prouni, pois em cada sala deve ter em média cinco a seis pessoas com
bolsas pelo Prouni, contra setenta alunos pagantes, a média de alunos por sala é de oitenta.
Tem cinco a seis alunos com bolsa do Prouni, o chega a dez por cento da sala, ainda sim, é
uma grande quantidade de bolsas, e esses alunos enxergam os alunos bolsistas como pessoas
oportunistas, pois não precisaram prestar vestibular, a pontuação no Enem foi suficiente.
Márcia – Por quê?
Tatiana Porque não prestam vestibular, então para eles, é uma grande “mamata” não ter
passado por todo aquele estresse do cursinho, outra coisa, realmente se dá oportunidade para
as camadas mais pobres, por estarem no mesmo patamar de igualdade, ao menos de disputa,
embora os currículos deles sejam excelentes (na minha sala tem uma moça que faz adminis-
tração na Getúlio Vargas, e simultaneamente Direito na Mackenzie, dificílimo concorrer com
o currículo desses, mas de qualquer forma, o patamar de concorrência está ali par a par, uma
vez que se está dentro da Mackenzie, de qualquer forma, é diferente de eu estar fazendo uma
Unicsul, por exemplo, embora seja uma ótima universidade, mas é diferente.
Márcia – Você tem algum exemplo sobre melhores oportunidades?
Tatiana Tenho. Tenho um exemplo na própria diretoria. As vagas que chegam para a Mac-
kenzie, a grande maioria de vagas de estágios que os escritórios mandam, vem escrito: alunos
da USP, PUC ou Mackenzie, entendeu? Um estagiário da Mackenzie de segundo ano, assim
como eu, ganha seiscentos ou setecentos reais, fora o vale refeição e vale transporte enten-
deu? É um salário que uma pessoa ganha para trabalhar seis horas por dia, é um salário de
uma pessoa que trabalha oito a dez horas por dia.
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Márcia Mas em termos de sala de aula, qual a relação com colegas de sala? Ela é velada,
discriminada?
Tatiana Não, não, não é, existem sim sempre aqueles, mas é algo escondido, não aquela
descriminação exposta, em nenhum momento. Se escuta “bochicho”, um ou outro falando -
olha esses pobres do Prouni, aqui!
Márcia – Eles sabem quem são?
Tatiana Não, não sabem não é revelado pela universidade, realmente que é que sabe,
mas de um modo geral, a pior reclamação vem de quem perdeu a bolsa, por causa do Prouni,
porque a faculdade de direito acabou por perder a filantropia por conta disto.
Márcia – Em termos de nota?
Tatiana – A média do Mackenzie cinco e meio.
Márcia – Em relação aos alunos bolsistas, existe alguma diferença de rendimento?
Tatiana Não, não, o sistema de notas para os alunos bolsistas do Prouni é igual ao dos alu-
nos pagantes, existe, existe, setenta e cinco por cento de aprovação. É isso que você quer sa-
ber?
Márcia Quero saber se o aluno que tem uma bolsa de estudos pelo Prouni tem rendimento
diferenciado?
Tatiana Não, pelo contrário, eu não sei em outras faculdades, mas na Mackenzie e na mi-
nha sala, os alunos do Prouni são os mais esforçados, entendeu? Alguns acabam pegando al-
gumas dependências, aliás, a Mackenzie é uma fábrica de dependência. O professor deixa a
gente por um décimo de ponto. Entendeu porque o que faz a Mackenzie ganhar dinheiro são
as dependências. A “molecada” pega muita dependência, mas os estudantes do Prouni, de
maneira nenhuma, deixam a desejar. Até porque, o próprio Enem é um obstáculo gigantesco.
Para um aluno que saiu agora do ensino médio, imagina para mim que terminei o ensino mé-
dio doze anos, então o próprio Enem é uma dificuldade em si, passou dali você está,
praticamente, no mesmo patamar, porque assim, a minha pontuação no Enem, os meus 80
pontos, na redação do Enem significam 90 pontos na redação da Mackenzie, então na verda-
de, é excelente, de igual para igual. A média do Prouni para entrar no Mackenzie é acima de
sessenta e nove pontos, menos que isso dificilmente entra-se no Mackenzie, a menor que teve
agora no meio do ano foi 79 pontos, tudo isso em direito. Eu conheço uma caloura que entrou
com 69 pontos, entendeu? Mas é de 69 para cima, o que é muito difícil no ENEM, para quem
está saindo de uma escola pública, com o ensino que tem hoje, com a base, principalmente,
interpretativa que a interpretação é tudo no Enem, até a área de cálculo no Enem exige uma
195
interpretação muito boa, entendeu. Então é complicado para o aluno, hoje em dia, o ensino
médio, hoje em dia é muito defasado.
Márcia – Se não fosse o Prouni, o que você estaria fazendo?
Tatiana sim, eu estaria fazendo pedagogia, numa faculdade modesta, que eu pudesse
pagar e com certeza fazendo pedagogia, mas realmente numa faculdade que eu pudesse pagar,
na Uniesp ou Unicsul, entendeu? Sem desmerecer, de maneira alguma, nenhuma instituição
educacional, nenhuma mesmo, mas assim, em questão de valor há uma diferença muito gran-
de e na Mackenzie pedagogia é novecentos e sessenta e quatro reais, quase o mesmo valor que
direito que é mil e sessenta e oito reais.
Márcia– E na Uniesp?
Tatiana – Está em torno de duzentos reais, é o que eu poderia pagar realmente.
Márcia – Que avaliação você faz do Prouni?
Tatiana – De início, eu até critiquei um pouco, pelo governo colocar dinheiro em uma institu-
ição privada e não na blica, porque eu que sempre sonhei em entrar na USP, não vou con-
seguir entrar, e depois eu fui enxergando que vai muito mais alem do governo, da verba, o
governo poderia colocar toda essa verba na USP, mas se ele não mudar o método de seleção,
continuará estudando os que estão lá, hoje, porque menos de dez por cento da USP são de
pessoas que fizeram cursinhos populares, ou que estudaram por conta própria. O resto mesmo
é uma grande elite, e a gente sabe disso.
Márcia – Então o Prouni é uma oportunidade?
Tatiana Hoje eu vejo como uma grande oportunidade para o estudante de classe média bai-
xa, para o estudante que sonha com a universidade, mas que não pode pagar, que sonha com
uma grande carreira.
Márcia – Que diferença faz uma universidade na vida de um jovem?
Tatiana – Hoje total, porque sem a graduação não se consegue entrar no mercado de trabalho.
A concorrência é gigantesca e realmente o ensino médio virou nada. O ensino médio, hoje, é
exigência básica para qualquer emprego, para qualquer nível de emprego. A graduação, na
verdade, é muito pouco no mercado de trabalho. A globalização acabou engolindo tudo e
super valorizando nesse sentido e padronizando, porque quem está na universidade hoje,
quem tem dinheiro, infelizmente é quem ocupa os melhores cargos. Aqueles que não conse-
guem estar nas universidades, continuam não tendo os melhores salários, não tendo um pa-
drão de vida melhor. Mantém, assim, a estabilidade do capitalismo, que é a exploração dos
menos privilegiado. E essa camada, que está entrando de estudantes pelo Prouni, que vem
dessa camada menos privilegiada, que não teve oportunidades como essas pessoas que tem
196
dinheiro, entendeu? É a oportunidade de se igualar realmente a essas pessoas, e de disputar
“pau a pau” por um salário, porque eu sei que hoje eu posso disputar uma vaga de juíza, que é
um grande sonho, porque sempre sonhei em ser juíza de igual para igual, o que jamais há dois
anos eu sonhava.
Márcia Como é que você se mantém no curso? Você tem dificuldades em se manter como
universitária na Mackenzie, em termos de alimentação, livros?
Tatiana Olha, tem, tem, na verdade, eu não tenho grandes dificuldades, como outras pesso-
as, mas eu tenho sim, porque se gasta muito enquanto universitário, o Prouni a chance de
estar dentro, mas se manter na universidade é muito difícil, e numa universidade de padrão
como a Mackenzie mesmo eu tendo consciência de que eu não tenho o mesmo padrão de vida
que eles têm, não vivo como eles, não vou aos bares todos os dias, não passo no barzinho, não
vou às festas, mas eu tenho necessidades sim de ter livros, porque apesar de ter uma ótima
biblioteca, e eu a utilizo, a maioria dos livros da biblioteca, mas tem um livro ou outro que se
tem que ter, ainda mais em direito que é necessário consultar muito. Então se tenho que com-
prar o conjunto de códigos que eu vou precisar para todas as provas, e que vai chegar uma
hora que vai faltar na biblioteca, tem que ter um livro, ou o outro que se tem que estudar um
pouco mais de uma matéria ou outra, então na verdade, o que eu faço: para comprar meus
livros em três ou quatro vezes, e passo o semestre pagando. Eu utilizo a condução do estágio,
eu estou estagiando em frente ao Mackenzie, então a condução que eu recebo uso para a fa-
culdade.
Márcia – Seu estágio é remunerado?
Tatiana Sou remunerada no estágio, a facilidade de estar dentro do Mackenzie como eu
falei é o estágio, é fácil de conseguir mesmo no primeiro semestre se consegue, estou no ter-
ceiro semestre, mas já estou estagiando, mas mesmo quem entrou no Mackenzie hoje, está
estagiando, e é um pouco mais fácil, mas é o que eu lhe disse, passo o semestre pagando esses
livros e começo ou outro pagando outros, eu utilizo muito a biblioteca, essa é a vantagem, por
exemplo, do Prouni no Mackenzie.
Márcia – Por quê?
Tatiana Porque a gente tem uma ótima biblioteca, uma biblioteca muito ampla. São cinco
bibliotecas, então facilita o estudante da Mackenzie, nesse sentido.
Márcia – Que oportunidades a instituição oferece além do ensino acadêmico?
Tatiana Na verdade a Mackenzie é uma instituição religiosa, mas que infelizmente como
toda religião hoje em dia é, vive um pouco de hipocrisia, na verdade porque dentro da univer-
sidade, a universidade é muito burocrática, extremamente burocrática, tudo no Mackenzie se
197
tem que fazer um requerimento, os dirigentes do Mackenzie são pessoas extremamente for-
mais dentro da faculdade de direito, exigem uma formalidade gigantesca em exatamente tudo
o que se faz.
Márcia – Isso é positivo ou negativo?
Tatiana Isso é muito negativo, porque atrapalha muito o aluno, no sentido de: se eu perco
uma prova, por exemplo, e eu chego e falo com o professor - “professor, você me dá essa pro-
va de novo?” Não, você tem que fazer um requerimento para o diretor e se o diretor não defe-
rir, eu perdi a prova, e perdi a matéria, com isso estou com dependência, entendeu? Então os
professores seguem muito esse rito, na verdade, os professores não têm muita liberdade, não
tem muita autonomia dentro do curso. Tem uma questão de faltas muito rígida, vinte por cen-
to de faltas, a média é cinco e meio, vinte e cinco por cento de faltas a dia é sete, e parece
pouco, mas é extremamente difícil tirar cinco e meio na Mackenzie, eles exigem muito, mui-
to, muito no curso.
Márcia – E culturalmente, houve uma ampliação de conhecimento?
Tatiana Ampliou sim, a Mackenzie oferece muitas oportunidades, muitas palestras, existe o
diretório acadêmico que também faze muitas palestras, até politicamente, inclusive, e até
mesmo politicamente contra a instituição, que é muito burocrática e acaba impedindo tudo, é
muito formalista, tem uma influência muito grande do PSDB, que acaba impedindo um pouco
da realidade daqui de fora, chegar dentro da Mackenzie, a Mackenzie tem um pouco de blo-
queio com questões socialistas, então não muito para falar, eu acabei encontrando um gru-
po dentro, chamado Práxis, é um grupo de estudantes de direito que participam de vários
movimentos sociais, que hoje são os representantes legais do diretório acadêmico. Nós faze-
mos as eleições, mas vivemos numa pressão gigantesca dentro da universidade, todo ano de
gestão, nossa é simplesmente repressão, meio que como na época da ditadura que a Macken-
zie apoiava aquele grupo que caçava os comunistas, é bem assim, para gente fazer, por exem-
plo, nós fizemos uma palestra em dois mil e seis em apoio à candidatura do LULA, chamava-
se a discriminação dos movimentos populares, a criminalização não a discriminação. Sofre-
mos uma repressão gigantesca dentro da faculdade, inclusive com os professores em sala de
aula. Os professores têm uma posição muito positivista, muito legalista, como disse, e que
foge totalmente a esse âmbito da questão social. É um movimento social baderneiro, é claro
que tem sociologia, se estuda Karl Marx, dentre outros, se estuda todas as pessoas, todos os
pensadores, e são colocados de uma maneira positiva, mas na abertura para se trabalhar
esse tipo de coisa, não mesmo, eles realmente vedam qualquer tipo de trabalho. Então, o
que a gente faz, a gente modifica. Ao invés de criminalização, a gente e discriminação, en
198
tendeu? A gente põe a situação racial no país e convida um grande palestrante, um de direita
outro de esquerda, chama os alunos para “pegar fogo” e quando a faculdade vê,foi, porque
na verdade o que o grupo Práxis acredita, e que eu acredito, que não faz sentido discutir polí-
tica ligada a realidade, numa faculdade de direita, por isso a hipocrisia da Mackenzie, por ser
uma instituição evangélica, por ser uma instituição cristã deveria vedar todo tipo de discrimi-
nação, mas acaba não incentivando, não tratando como deveria a realidade do nosso país, co-
mo deveria para um estudante de direito, formando agentes que vão trabalhar e vão mexer
diretamente com vida, sabe, é um juiz que vai decidir ali a liberdade de alguém, a pensão ali-
mentícia, seja que área for.
Márcia – Você tem como meta continuar sua luta pelos seus ideais e pelos seus movimentos.
Tatiana Sim, na verdade, o direito para mim é meu trampolim, para brigar de igual para
igual, com outras pessoas, para estar no mesmo patamar dessas pessoas, que hoje dominam o
mundo. Eu sei que eu não vou mudar o mundo, não tenho esse idealismo que vai acontecer
uma revolução, porque não vai, mas eu sei que seu eu puder ajudar duas ou três pessoas, que
eu consegui ajudar, eu vou fazer o meu papel, mas o meu objetivo realmente é usar o direito
para ser uma agente do direito que trabalhe somente em prol de justiça, e o que a gente apren-
de na faculdade que justiça e direito são coisas diferentes, que o direito busca a justiça e a
justiça é um ideal, e é realmente a justiça é um ideal, e o agente de direito faz da justiça o que
ela quer, porque não para saber o que se passa na cabeça de um juiz, embora o juiz tenha
que ter discernimento, tenha que ser uma pessoa de boa fé, mas não dá para saber, entendeu, o
que se passa na cabeça de um juiz, e nem de um advogado, porque o que a gente aprende é
que para um advogado a verdade é a verdade do seu cliente. E aí o que eu digo, o direito para
mim é o trampolim para eu estar no mesmo patamar das pessoas que dominam o mundo, e
que eu possa me intrometer ali e mexer meus dedos.
Márcia – E a educação? Tem lugar ainda ou não?
Tatiana Assim que eu terminar a faculdade de direito, eu começo, eu retomo pedagogia, até
porque eu quero trabalhar com criança e adolescente. É a área que eu quero trabalhar, eu sei
que é loucura, por causa dos menores infratores. Eu sei que é loucura, mas eu ainda não con-
sigo enxergar toda essa maldade nos adolescentes infratores. Eu não consigo enxergá-los tão
marginais assim, eu ainda acho que tem conserto. A educação e o direito para mim são inse-
paráveis, então, terminando direito eu vou para pedagogia, vem pós, mestrado, doutorado
se Deus quiser.
Márcia
– Mas o que você pretende seguir mesmo?
199
Tatiana Seguir na educação, porque o direito para mim veio para me fortalecer, entendeu?
Eu gosto muito de direito, estou amando a faculdade, mas educação é minha paixão e é o sen-
tido da minha vida. Eu não vou conseguir separar, para mim trabalhar com criança e adoles-
cente, mesmo como agente de direito, se eu não entender de educação, se eu não tiver a sensi-
bilidade que o curso me passar, eu não vou conseguir trabalhar da maneira que eu quero. Para
mim, todo juiz de direito, na área de criança e adolescente, todo advogado, todo promotor
tinha que ter feito um curso de pedagogia para entender um pouquinho de todas as matérias, a
psicomotricidade, o conviver com a criança, o entender a infância, porque eu acho que faz
muita diferença na hora de entender o problema daquele garoto, porque será que ele entrou
para o tráfico, porque será que ele matou. Sabe, é a primeira vez dele, seque vale a pena
joga-lo na Fundação Casa, o que ele vai viver lá dentro, na verdade, eu sonho muito, e eu so-
nho, quem sabe um dia, em estar lá, na Fundação Casa, imaginou eu conseguir implantar um
projeto lá dentro, como agente de direito e pedagoga, eu vou poder juntar as duas coisas, é um
grande sonho quem sabe...
Márcia – É um grande sonho, quem sabe!
Tatiana – É um grande sonho e eu vou lutar por isso.
Márcia – Você quer acrescentar mais algum comentário?
Tatiana para complementar, que na verdade acho que é importante frisar que o Prouni,
apesar de ser um programa a princípio com fins assistencialistas, é um programa que traz o-
portunidades, e o aluno do Prouni, o que eu percebo e quase todo mundo que eu conheço, é
que a oportunidade que é dada é agarrada com muita força, com muita força mesmo. É muito
valor o que se dá, é muito diferente da maioria da minha sala, por exemplo, que o pai paga a
faculdade, não se preocupa em pegar uma dependência, não se preocupa em fazer seis ou sete
anos de faculdade, para o aluno do Prouni faz muita diferença, porque está correndo atrás
de um tempo que não tinha, sabe, que ele não teve, e o que eu percebo é que agarra com muita
vontade essa oportunidade, só por isso para mim o programa já é bastante válido.
Márcia – Muito obrigada pelo seu depoimento.
Karen Jaqueline Santana Gomes
16/08/2009
Márcia – Estou aqui começando a entrevista com a Karen, na Rua Fernão Sales, ela é estudan-
te de enfermagem da Faculdade São Camilo e está cursando o primeiro semestre. Quantos
anos você tem?
Karen – Tenho dezoito anos!
Márcia – Como foi o seu ensino básico, você sempre estudou em escola pública?
Karen – Da primeira até a terceira série, estudei no Colégio Duque de Caxias
49
aqui no Glicé-
rio, a gente mudou de casa, saímos daqui do Centro e fomos morar na Vila Mariana, e eu
passei a estudar no Gomes Cardim até a quarta série, da quinta à oitava, eu fui automatica-
mente para o Oscar
50
, eu estudei da quinta à sexta série, fiz um monte de amigos e amigas,
a gente jogava futebol, vôlei pela escola, só que a minha mãe voltou para
51
nesse prédio, e
quando a gente voltou não consegui vaga no São Paulo nem eu nem minha irmã.
Márcia – O nome da escola é São Paulo
52
?
Karen É! E não conseguimos vaga porque é uma escola renomada, blica e a gente conti-
nuou morando aqui, mas estudando lá na Vila Mariana.
Márcia – Era bom?
Karen – Ótimo para a gente, não queria voltar.
Márcia – Vocês já estavam entrosados?
Karen Já! Quando eu estava na sétima série, consegui a vaga aqui, eu e minha irmã e vie-
mos, as duas, e eu estudei a da sétima do ensino fundamental até o terceiro ensino médio.
Márcia – Como era o ensino?
Karen O que estudei no Duque, apesar de que todo mundo falava que era bagunçado, eu
sempre achei muito bom. Eu saí sabendo muita coisa. Assuntos tratados na sexta série tinham
aluno que nunca tinha ouvido falar, mas eu tinha aprendido na terceira série a mesma coisa
no Oscar, mas dava para sentir a diferença, e era tudo público que tinha diferença de ser
Municipal e Estadual. Quando eu fui para o São Paulo que era considerada uma escola muito
49
Escola Municipal de Ensino Fundamental “Duque de Caxias, localizada na baixada do Glicério”.
50
EE Oscar Thompson - Cambuci
51
Centro de São Paulo, local onde a entrevista foi realizada – Rua Fernão Sales
52
EE São Paulo, originalmente denominada Ginásio do Estado de São Paulo, localizada no Parque Dom Pedro II
– Centro de São Paulo
201
boa, porque o patrão da minha mãe falava que essa escola bem antes, tinha que prestar vesti-
bular para entrar.
Márcia – Era uma escola muito concorrida e não tinha vaga para todos?
Karen E eu estava esperando uma bomba de ensino, porque eu estava acostumada com um
ritmo de ensino.
Márcia – Bomba em que sentido?
Karen Muita matéria, professores cobrando demais, mas para mim não foi nada puxado,
porque eu estava acostumada.
Márcia – Você já estava acostumada com um ritmo forte na escola?
Karen – É! Porque não cobravam, mas eu me cobrava e eu sempre estudava.
Márcia – Você sempre estudou muito?
Karen Sempre, então eu acabei ficando mais tranquila e todo mundo ficava admirado por
eu estudar na Escola São Paulo e ir bem, me davam os parabéns, mas no meu modo de ver, a
escola era normal.
Márcia – Você sempre teve horário de estudo, sempre foi disciplinada?
Karen Eu estudo, mas falar que eu dedico da minha vida, uma hora por dia para estudar
não, mentira, não faço isso. Eu prestava atenção nas aulas, nas matérias que o professor ensi-
nava, porque depois eu ia trabalhar e não tinha tempo de ficar estudando em casa e eu também
sempre joguei pela escola.
Márcia – O que você jogava?
Karen Eu jogava handball, a aula acabava às doze horas e vinte minutos, eu pedia para a
professora me deixar sair às doze horas para o treino.
Márcia – Você era federada?
Karen Não! jogava pela escola mesmo e a maior parte das meninas foi por esse cami-
nho, mas eu trabalhava e não tinha como federar.
Márcia – Você começou a trabalhar com que idade?
Karen Com quatorze anos! Mas era estágio! Eu estudava até as doze horas e das doze as
treze eu ia treinar, e às treze horas e trinta minutos eu tinha que estar no serviço, então eu não
tinha tempo de ficar depois estudando, eu estudava tudo o que eu tinha para estudar na escola,
como o São Paulo sempre teve semana de prova, eu tinha estudado tudo aquilo todo dia, eu
revisava e sempre fui muito bem às provas, mas se não fosse também minha mãe. Ela sempre
exigiu que eu fosse bem na escola.
Márcia
– Por que a sua mãe a sua família sempre cobrou seus estudos?
202
Karen Ela cobrava como toda família cobra, mas como eu estudava e minha irmã não gos-
tava muito de estudar, a minha mãe achava que eu tinha de dar exemplo por ser a mais velha.
Márcia – Você é a mais velha e era cobrada por ser a mais velha?
Karen – É! Mas nada muito exagerado afinal eu estava há dez anos na escola, ia ficar fazendo
o que lá, bagunçando? Mas eu nunca tive notas baixas não.
Márcia – Não teve notas baixas, mas você falou que com quatorze anos já estava trabalhando?
Karen – Como estágio.
Márcia – Estágio com quatorze anos?
Karen Quatorze não! Com dezesseis anos, porque tem que estar no ensino médio! Eu con-
segui este estágio por meio do Núcleo Brasileiro de Estágio, o Nube.
Márcia – Então não era um estágio para universitários?
Karen Não, tem o estágio universitário, mas o que eu fiz precisava ter o ensino médio. Ca-
dastrei-me, fiz meu currículo, e eles me encaminharam para as vagas. Eu comecei a trabalhar
aqui bem perto de casa, mas eu trabalhava para ter meu dinheiro, porque já no segundo ano do
ensino médio, meus amigos estavam falando em um cruzeiro de formatura que ia ter no
final. No terceiro ano eu disse para minha mãe que eu queria ir, mas minha mãe disse que não
podia pagar, então eu falei: “posso trabalhar e eu pago”, e ela concordou, e eu pensei: “agora
vou ter que trabalhar” .
Márcia – Então você começou a trabalhar por causa do cruzeiro?
Karen É! Minha mãe disse para eu pagar em várias vezes para pagar menos por mês, mas
eu paguei em seis meses, porque minha intenção era trabalhar, pagar o cruzeiro e sair do tra-
balho para poder treinar.
Márcia – E aconteceu isso?
Karen – Foi! Paguei o cruzeiro, sai do emprego só que não fui treinar, fui trabalhar em outro.
Márcia – Por que você quis trabalhar em vez de treinar?
Karen – Porque você se acostuma a ter dinheiro, depois voltar a ficar dependendo do dinheiro
de pai de mãe e nem sempre eles podem dar, então eu pensei – “eu preciso de dinheiro”.
Márcia – E foi para aonde o cruzeiro?
Karen – Búzios e Ilha Bela!
Karen Mas da minha turma de amigos eu fui. Aquele bando de “bolhas” (risos), todo
mundo fala – vamos, vamos e na hora só eu assinei o contrato, paguei e fui.
Márcia – Você se arrependeu?
Karen
Eu não! O pessoal vendo as fotos no Orkut falava “nossa, nossa(risos) e eu falava:
“então paga que você vai”.
203
Márcia – E isso foi quando, Karen?
Karen – Foi nesse final de ano, agora! Aí eu prestei USP.
Márcia Você terminou o ensino médio, mas até antes disso você estudava aqui perto, seu
grupo de amigos era daqui?
Karen Meu grupo de amigos, incrível, nunca foi daqui, todo mundo é da zona leste, uns de
Itaquera outros de Guaianazes, Cidade Tiradentes, todo mundo sempre é de muito longe.
Márcia – Quando vocês se encontravam?
Karen A gente se via todo dia, todo dia, virou uma família praticamente, todo dia mesmo.
No terceiro ano, quando separaram quatro para uma sala, e os outros quinze em outra sala, foi
uma comoção nacional. A diretora quase expulsou todo mundo, porque foram todas as mães,
ninguém queria ir mais para escola, as mães se ligaram e combinaram de ir conversar com a
direção da escola, tentar mudar, doce ilusão. A diretora disse aos pais que se nós não voltás-
semos para a escola, tudo bem, poderíamos ficar em casa e repetiríamos o ano, então todo
mundo voltou para escola, mas era pior.
Márcia – O que vocês fazem nos finais de semana?
Karen – Hoje mesmo o pessoal está indo para o Ibirapuera, eu não vou.
Márcia – Mas não por minha culpa?
Karen. Não, eu tinha outras coisas para fazer, eu ia jogar, mas o jogo foi cancelado e agora eu
vou assistir outro jogo (adoro). Eles ficam me xingando, porque a gente sempre marca, vai à
casa de um na casa do outro, então a gente conhece a mãe de todo mundo. Um dia estáva-
mos aqui no prédio, e os vizinhos ligaram reclamando do barulho, “ô está muito barulho
pelo amor de Deus”. Quando acaba a escola, a gente continua se falando do mesmo jeito, um
pouco menos porque agora praticamente todo mundo trabalha, antes tinham uns mais boyzi-
nhos que não trabalhavam, mas agora todos trabalham.
Márcia – Mas por que boyzinho?
Karen Por que eu a Camila a Laura, deixa-me ver quem mais, o o Chiquinho, sempre
trabalhamos, porque queríamos ter dinheiro quando precisasse, por vários motivos, mas ti-
nham outras pessoas também muito queridas, mas que não trabalhavam porque não precisa-
vam.
Márcia – E por que não precisavam?
KarenPorque os pais tinham mais condições, ou eles também não queriam, ou não precisa-
vam e também eu não vou falar que estou indo trabalhar porque preciso porque não tenho
condições, mas eu queria trabalhar, queria meu dinheiro e eles não. Quando queriam, pediam
para os pais e os pais davam, não precisava correr atrás do dinheiro deles, hoje não, boa parte
204
está na faculdade então tem um gasto e nem todos tem bolsa. eu tenho bolsa e todos que
estão na faculdade pagam. Uma das minhas amigas a Maira até trancou o curso na Faculdade
Osvaldo Cruz, porque era muito caro. Então trabalham, ajuntam para pagar a faculdade, hoje,
por exemplo, quando a gente marca uma coisa e um deles fala que está cansado, eu falo: “está
vendo, quando você marcava na escola e eu falava que estava cansada, está vendo como é”.
Márcia Fazer uma faculdade sempre foi seu objetivo? Fez o ensino médio pensando na fa-
culdade?
KarenNão, não sei, acho que não! Eu queria acabar a escola e continuar estudando, porque
dizem que quando você acaba a escola e fica sem estudar, você acostuma com a moleza e
quando volta é uma coisa horrorosa. Eu sempre pensei em faculdade, mas não exatamente no
quê.
Márcia – Você sempre pensou que ia fazer uma faculdade, mas não pensou em quê?
KarenÉ. Pensei em fazer ciências biológicas, fazer biologia, mas fiquei sabendo que biolo-
gia tinha mais em Santos, e eu não ia mudar de cidade, esqueci biologia e comecei a pensar
em engenharia ambiental.
Márcia – Ainda no ensino médio?
Karen Sim! Fiz o Enem, e no final do ano, prestei USP para gestão ambiental, também na
área biológica.
Márcia – Por quê?
Karen Porque eu queria mexer no meio do mato, e fazendo biologia teria que fazer uma
especialização, daí depois da especialização, então eu pensei: “não é para mim isso”.
Márcia – E fazendo engenharia ambiental já iria direto?
Karen – Isso!
Márcia – E por que o interesse por essa área?
Karen Porque eu sempre gostei de bicho do mato, o pessoal até me chamava de bicho do
mato. Eu sempre ficava procurando bicho, e eu ficava fazendo um catálogo dos bichos que eu
encontrava, era uma coisa bem simples: da cor tal, tamanho tal, mas era o meu catálogo. Mas
eu fiquei doente e minha mãe disse que se eu continuasse no meio do mato de novo “ela me
mataria”.
Márcia – Mas você ficou doente por causa do contato com os bichos?
Karen – É! Fiquei com um caroço que dá na nuca, tem um nome bem estranho.
Márcia – Tudo por conta de bicho?
205
Karen – É! Eu quase morri por causa do remédio, o caroço está aqui ainda, mas não tem mais
nada o que afetar em mim, eu não vou lembrar o nome agora é muito estranho, o médico dava
o remédio muito caro e eu tomava quando era pequena.
Márcia – Então esse seu apego pelos animais é desde cedo?
Karen Sim. Desde sempre! E eu lembro que o remédio era muito ruim, muito mesmo, era
uma cápsula que se abre e põe na água, é uma coisa absurda de ruim, depois disso eu me ne-
gava a ir para o meio do mato, mas ainda gostava muito de bichos, até hoje eu tenho uma pas-
ta enorme cheia de papel com as minhas anotações dos bichos.
Márcia – Você pensa ainda em estudar nessa área?
Karen pensei em veterinária, engenharia ambiental qualquer coisa, mas na USP tinha
os cursos no interior, então eu pensei: “vou ficar aqui mesmo”. Prestei USP e passei na pri-
meira fase, por milagre de Deus, a nota de corte estava muito baixa para eu passar, porque eu
não fui tão bem assim na prova, mas eu passei para a segunda fase, mas eu sabia que na se-
gunda eu não ia passar.
Márcia – Por quê?
Karen Porque é USP, e eu não tinha me preparado, se eu tivesse um ano de cursinho, estu-
dado para valer, talvez eu passasse. Eu sabia que não ia passar nem da primeira fase, mas pas-
sei e minha mãe ficou naquele sonho minha filha na USP, e eu falava: “mãe corta esse so-
nho, porque eu não vou passar”, e ela ficava falando: “não seja pessimista não”.
Márcia – Você prestou vestibular para engenharia ambiental na USP?
Karen – É, engenharia ambiental!
Márcia – Quando você fez o Enem?
Karen – No final do ano passado.
Márcia – Como é que você foi no Enem?
Karen – Eu fui bem.
Márcia – Qual foi a sua nota?
Karen Eu sabia que você ia perguntar (risos), porque eu nunca lembro a minha nota, ainda
mais porque as notas são separadas é de zero a cem nas questões e de zero a cem na redação,
na redação eu tive 8.5, eu sei que fui bem, agora nas questões eu não lembro exatamente a
nota, eu sei que a média dos dois foi7, alguma coisa assim.
Márcia – Bem acima da média nacional?
Karen Isso! Quando eu recebi o resultado nos gráficos, minha mãe ficou muito orgulhosa,
ela não estudou, foi até a série, porque minha mãe é da Bahia, e ela trabalhava na roça
206
desde pequena, então a escolinha na roça é até a série só, mas para mim, ela é uma das mu-
lheres mais inteligentes que eu conheço.
Márcia – Por quê?
Karen Muita coisa que ela fala desde que éramos pequenas em casa, eu foi ver na faculda-
de, os professores falando que realmente tem estudos, que comprovam, e ela fala que ela a-
prendeu com a vida e com a mãe dela que não teve nem a série. Ela falava olha não pega
nisso que vai lhe dar isso e a gente nunca acreditava, mas fui ver na faculdade e é verdade e
ela tem muita vontade de me ver formada. Quando eu entrei na faculdade, foi um rio de lá-
grimas, até fiquei muito emocionada e disse – “mãe componha-se”. .
Márcia – Você acha que ela tem vontade de estudar?
Karen – Ela ia fazer enfermagem também, mas eu soube só depois que eu decidi e entrei para
fazer enfermagem, ela disse que o sonho dela sempre foi fazer enfermagem.
Márcia – Mas você não sabia?
Karen – Não! Não fui influenciada?
Márcia – Quando você se inscreveu para o Prouni?
KarenEu prestei o Enem o ano passado, mas não me inscrevi para o Prouni, porque as ins-
crições acabaram antes, eu acho, da prova do Enem, eu pensei em trabalhar e ajuntar dinheiro.
Márcia – Em 2009?
Karen – É! Olha o que eu pensava trabalhar ajuntar dinheiro, fazer um daqueles cursos prepa-
ratórios para faculdade de novo.
Márcia – Pensava em algum curso específico?
Karen Eu ia decidir o curso, mas eu ia fazer USP, eu pensava, vou fazer o cursinho vou
estudar muito, mas aí veio o Prouni.
Márcia – E como foi?
Karen Eu falei com um professor que a gente tem contato, e ele disse: “se inscreve Karen,
sua nota foi boa no Enem, vai que você ganha uma bolsa e não precisa nem prestar vestibu-
lar”. Então eu me inscrevi, mas eu não sabia exatamente o que eu queria, então eu fui naquela
página de inscrição umas dez vezes e ficava pensando: “meu Deus que curso que curso, por-
que eu gosto de educação física, gosto de bicho, gosto de mato, eu gosto de um monte de coi-
sa”, e eu ficava pensando.
Márcia – Você lembra suas opções?
207
KarenA primeira opção foi educação física na Anhembi Morumbi, a segunda foi educação
física na FMU
53
. Nessa época eu estava trabalhando com uma médica, porque depois que eu
saí daquele primeiro emprego, eu fui trabalhar em uma clínica odontológica no final de de-
zembro, quando terminou a escola, eu sai, mas fiz muita amizade com a doutora. Uma vez fui
com a essa médica em uma espécie de hospital e tive contato com muitas áreas, e fiquei pen-
sando: “nossa, que legal atender às pessoas”, mas não conseguia saber o que era mais legal,
atender crianças ou idosos. Eu vi que a enfermagem atendia em todas as áreas e pensei: “vou
fazer enfermagem”, perguntei para uma das enfermeiras quais eram as melhores faculdades de
enfermagem e ela falou que São Camilo, a Unicid
54
e a Unifesp
55
eram boas faculdades, então
eu coloquei São Camilo e Unicid, Unicid de manhã foi a última opção, porque eu não queria
estudar de manhã, então minhas opções foram Anhembi Morumbi a primeira, FMU a se-
gunda, enfermagem noturno porque eu ia trabalhar durante o dia, terceira opção, enfermagem
matutina, a quarta foi para qual eu passei e também a Unicid noturno enfermagem.
Márcia Como você recebeu a notícia que tinha sido aprovada para a bolsa de estudo na Fa-
culdade São Camilo?
Karen A minha nota para algumas faculdades era baixa, cada uma tem sua nota, cada fa-
culdade estipula a sua para bolsas naquele curso. Teve faculdade que a minha nota ficou a
baixo da média ou tinha completado os alunos. Eu vi pelo site que eu estava aprovada para
o curso de Enfermagem no São Camilo, eu estava meio que não acreditando, porque me fala-
ram que eu teria de passar por um processo de entrevista, aquelas coisas de vir alguém na casa
para ver realmente se vonão tem condições. Pediram-me um monte de documentos, vai e
volta até ter tudo certinho.
Márcia – E você conseguiu ajuntar tudo?
Karen Não! Porque eu não entendia o que estava precisando, ou era um ou era outro, ai fui
levando um sim um não, chegando um papel servia, outro não servia, e eu tinha levado três
documentos, a atendente da faculdade achou melhor me dar uma lista com todos os docu-
mentos necessários e eu saí como uma doida.
Márcia – Você estava feliz?
Karen – Agora?
Márcia – Não, quando você recebeu a notícia, quando soube que ia fazer enfermagem?
53
FMU – Faculdades Metropolitanas Unidas
54
Unicid – Universidade Cidade de São Paulo
55
Unifesp – Universidade Federal de São Paulo
208
Karen Até a hora que assinei a minha matrícula eu não estava nem acreditando ainda. Eu
não estava levando fé, porque eu não tinha passado por nenhuma entrevista por nenhum agen-
te, eu achava que estavam me enrolando, aí fui lá, e a funcionária disse que eu tinha passado e
eu respondi: “mas eu não fiz a entrevista ainda”, e a funcionária pediu para eu assinar a minha
matrícula, aí eu fiquei muito feliz.
Márcia – Aí você acreditou?
Karen Eu fiquei pensando: “será que vai dar certo”, quando cheguei em casa e falei para a
minha mãe, ela ficou muito mais feliz que eu, porque eu estava tão acostumada, seis meses
em casa dormindo e eu pensava: “vou estudar de manhã, vou ter que trabalhar, vou ter que
fazer isso aquilo, já estava cansada antes de começar, mas vai indo, vai indo e a gente se acos-
tuma”.
Márcia – Como foi o seu primeiro ano?
Karen Eu comecei em agosto, porque isso tudo foi em julho, estamos em outubro e estou
adorando.
Márcia – É isso mesmo que você queria?
Karen Até agora, é sim! Estou vendo que tem várias especializações em várias áreas dife-
rentes que eu posso fazer. É muito bom, dá para trabalhar com tudo o que eu quero.
Márcia – Você está sentindo dificuldades para se manter no curso?
Karen – Não!
Márcia – Em termos de livros, material?
KarenNão, porque a Faculdade São Camilo dá todo o apoio, tem a biblioteca com todos os
livros do curso.
Márcia – Você não precisou comprar nada?
Karen Não! A gente pode pegar e ficar um mês com o livro, é ir e sempre renovar a
retirada, tem laboratório de informática, também não se paga nada para fazer pesquisas. Os
professores estão ali, a todo o momento, dão telefone, e-mail, e tem o próprio portal da São
Camilo em que existem debates e fóruns, fala-se ao vivo com a outra pessoa sobre, por exem-
plo, trabalhos que não estamos conseguindo fazer, então em questão de apoio de estudar óti-
mo.
Márcia – Nenhuma dificuldade?
Karen Não! E ainda o pessoal do meu curso é muito variado, a turma é de sessenta alunos,
tem pessoal com dezoito anos, umas cinco pessoas até os trinta e oito anos, e esse pessoal de
209
trinta e oito mais ou menos, trabalham no Incor
56
, então eles têm muita coisa para passar e
ao mesmo tempo muita coisa para aprender, porque para eles é mais difícil pegar aquelas coi-
sas microbiológicas dos estudos, então eu ajudo, por exemplo, a gente formou um grupo de
estudo, eu explico a matéria que o professor passou para uns cinco ou seis alunos e quando
chegar aquelas matérias de procedimentos que eles já sabem eles vão acabar ajudando a gente,
também porque eles estão dez anos fazendo aquilo, porque tem muitos técnicos em en-
fermagem.
Márcia Pelo fato de você ter apenas estudado em escola pública, você tem algum tipo de
dificuldade de aprendizado?
Karen Não! Porque eu ia para a escola para estudar, então eu estudava, eu sei que muita
gente da minha sala, meus amigos entraram e saíram da faculdade, eles não aguentaram e co-
mentavam nossa nunca imaginei que isso ia ser cobrado na faculdade, questões básicas co-
mo fazer pesquisas e trabalhos de acordo com as normas Abnt
57
, nós fizemos vários no ensino
médio que muitos não fizeram, muitos compraram, muitos se encostaram aos outros, então
agora dá para ver se vale à pena ou não, vestibular também não é fácil de passar.
Márcia – Você acha que isso é pessoal, de cada um mesmo?
Karen Eu acho, não é porque estudei em escola pública que preciso ser considerado como
coitadinho, não tive a matéria mentira porque escola pública, eu tenho pra mim, trabalha
mais que a escola particular, porque na escola particular o aluno não tem a obrigação de a-
prender, pelo menos é essa visão que a gente tem, ele está pagando, ele vai ter a matéria ali, se
não alcançar a média, paga uma taxa, faz uma nova prova e pronto, a escola pública pode não
ser grande coisa na questão do todo, mas as escolas que eu estudei, os professores eram óti-
mos, davam tudo o que tinham, não era todo aluno que estava interessado e eles não vão fazer
nada contra isso.
Márcia – Por você ser bolsista na faculdade, você sente alguma discriminação?
Karen. Não, nunca, na minha sala tem muitos bolsistas do Prouni, eu não sei se têm tantos,
mas tem muitas bolsas, porque eu fui a algumas reuniões dos sem-terra bolsistas, porque fize-
ram uma prova especial no São Camilo e conseguiram bolsas de estudo, enfim tem muito bol-
sista lá na minha turma então não tem essas coisas não.
Márcia – Você pensou que iria ter discriminação?
Karen – Eu achei que os alunos pagantes pensariam assim: “você é bolsista, eu pago sua
parte também”, quando na verdade não é, as instituições abrem bolsas, mas elas ganham per
56
INCOR – Instituto do Coração
57
ABNT – Associação Brasileira de Normas e Técnicas
210
centual de descontos em alguma coisa do governo, mas não tem nada não, um dia desses,
eu estava até pensando que geralmente, sempre que passa uma “neguinha” na faculdade al-
guém está “zuando”, mostra, pelo menos na televisão, que sempre tem algum idiota “zuando”
alguma coisa com um bolsista ou alguém diferente, mas nunca teve nada, nada mesmo, é
uma integração assim muito bacana entre todos os cursos, as pessoas se conhecem , tem o
núcleo básico de saúde, então ajuntam todas as turmas na minha turma de núcleo, têm pessoas
da nutrição e enfermagem do primeiro semestre, então a gente conhece o resto da turma
deles, porque estão com o resto da nossa turma, então tem uma integração muito grande.
Márcia – Como foram suas notas?
Karen – Até agora estou bem.
Márcia Você acha que tem diferença do aluno bolsista para outros alunos, em termos de
rendimento?
Karen – Eu acho que se interfere, interfere muito pouco.
Márcia – Não dá nem para perceber?
Karen – Tem aquela questão, você é bolsista não pode ficar em dependência.
Márcia – Não pode?
Karen Mas pelo que eu vi ali não tem isso não, o aluno bolsista ou não bolsista, preto,
branco ou japonês se ficar de “DP
58
em três matérias, ele repete, não falaram nada de perder
a bolsa, se ficar de “DP” vai ter que cursar no próximo ano essas duas matérias a parte, para
passar nessas duas matérias e para fechar aquele ano e ganhar o certificado, lá no final do cur-
so, quer dizer, vai de aluno para aluno, tem aluno ali como em todo lugar que se encosta, tem
aluno que estuda o que estuda tira nota o que se encosta não.
Márcia – O que você pensa que esse curso de enfermagem vai lhe proporcionar?
Karen Ainda não estou pensando, vamos devagar porque eu sempre fui assim muito “re-
trancuda”.
Márcia – “Retrancuda”, essa palavra é nova! O que é “retrancuda”?
Karen É ficar sempre com o atrás, eu nunca fui de voar muito alto, porque o tombo é
maior ainda.
Márcia – Você não sonha tão alto?
Karen Eu não tenho essa ilusão, as pessoas, os professores viviam falando: “você não vai
crescer”! Porque vonão tem sonho, e eu falava: “você vai crescer e cair do cavalo, porque
você sonha”! Acho que não pode ser tanto para um quanto para outro, mas eu não consigo
58
DP – dependência, ou seja, o aluno deverá cursar novamente a disciplina
211
ficar imaginando vou me formar, vou fazer isso, vou fazer aquilo, eu vou muito devagar,
vou devagar com o andar da carruagem e vendo o que e o que não dá, me projetar no futu-
ro, não! Porque eu não sei bem o que quero trabalhar com coração, com idoso, com criança,
tem muita coisa para fazer ainda, de básico são quatro anos e depois tem especialização
para depois trabalhar diretamente, então com três meses nãopara saber o que eu quero ain-
da, o que eu sei é que não pretendo sair da faculdade.
Márcia – Então você pretende terminar o curso?
KarenNão! Mas projetar, não! Mas sair, não passa pela minha cabeça não, ainda mais ago-
ra que estou me acostumando com o ritmo de estudo, de pegar livro e arrumar tempo para ler
livro, não é que eu tenho tempo, eu arrumo tempo.
Márcia – Você vê alguma mudança nesses três meses como universitária?
Karen Já! Responsabilidade está mexendo com pessoas muito mais velhas do que eu, a
pessoa tem vivência de trinta anos a mais, e eu com dezoito anos, ele sabe tudo o que está se
falando, às vezes, você sabe: de eu poder ensinar uma pessoa que tem mais que o dobro da
minha idade, eu fico muito feliz, eles até falam: “nossa, não acredito como você, na sua idade,
já sabe isso”. Dá um orgulhinho, mas já volta para retranca, ó calma vai devagar!
Márcia – Você é muito pé no chão!
Karen – Porque sonhar, sonhar, viver sonhando!
Márcia – Você namora?
Karen – Estou enrolada. Agora então eu não tenho mais tempo para mim, vou para faculdade,
vou trabalhar, chego do trabalho, vou estudar e depois vou tomar banho e vou dormir.
Márcia – Seu namorado também faz faculdade?
Karen – Era para ter feito, mas não fez. Agora está vendo a questão de bolsa atleta.
Márcia – Ele é atleta?
Karen Ele joga handball também, porque acaba ficando muito tempo nesse mundo de
handball, e acaba conhecendo somente gente assim, eu parei muito namoro porque falavam
para eu escolher entre o esporte e eu falava: “filho, obrigada, beijo”. Vou jogar, “porque nin-
guém é obrigado a aceitar que a pessoa passe todo final de semana jogando de manhã até a
noite jogando, quando o está treinando e falam: “vamos até tal lugar?”e a resposta é: “Não,
preciso dormir porque amanhã tenho treino”“. Ele não é obrigado a aceitar, mas eu também
não sou obrigada a abrir mão do que eu gosto por causa disso, e ainda falavam para mim que
isso não daria em nada. Gente, para mim é diversão. O que eu posso fazer? Vou largar o
handball para ir para o shopping? Não vou mesmo mas apanhar, ser xingada se errar o gol,
para mim é diversão!
212
Márcia – Ainda é diversão?
Karen Hoje em dia mudou! É isso que eu ia falar! A gente vai crescendo e antes era priori-
dade, não importa se eu estava estudando, trabalhando, handball era prioridade. Então eu tinha
que comer, porque eu tinha que estar bem para treinar, hoje, handball é hobby, desde o final
do ano, eu treino de final de semana. Antes não, antes eram todos os dias. Mas eu comecei
a trabalhar de sábado até as vinte horas mais ou menos e aí, no domingo, faz uns três ou
quatro anos que eu não vou. ele liga: “você não vai treinar”? Eu falo: “não, estou no traba-
lho, ou, tenho trabalho da faculdade para fazer”.
Márcia – Você participa de algum movimento estudantil, movimento comunitário?
Karen – Ainda não.
Márcia – Porque eu sei que este prédio é resultado do movimento de moradia do centro.
Karen A gente participava, que agora eu não participo mais. Faz um tempinho que não
tem nada. A minha mãe ainda vai.
Márcia – Sua mãe ainda vai?
Karen Sim! Desde que eu era pequena que ela faz parte desse movimento de moradia. A
gente ia para as reuniões, para as pastorais, para mim e para minha irmã era tudo diversão,
festa no meio da rua, todo mundo gritando. Era festa (risos).
Márcia – Existe um grêmio na faculdade? Você participa?
Karen – Ainda não! Mas já vi que tem hand.
Márcia – Você está interessada?
Karen – Mas eu não tenho tempo para treinar, não sei como fazer, que horas que é o treino.
Márcia – Você já pesquisou sobre isto?
Karen – Já! Já verifiquei, estou vendo se encaixa na minha agenda um tempo para treinar.
Márcia – Você estaria estudando sem a bolsa de estudo do Prouni?
Karen O que aconteceu nos três primeiros meses. Meus planos eram um, eu estaria ou pro-
curando trabalho ou trabalhando, fazendo cursinho provavelmente não, porque é muito mais
caro do que achei que fosse. Eu não teria dinheiro para pagar, eu estaria trabalhando e trei-
nando e jogando quando desse.
Márcia – O Prouni abriu portas?
Karen – Com certeza!
Márcia – Você poderia estar estudando sem a bolsa de estudo?
Karen Não! Porque quando se trabalha, se sabe o quanto custa, se ganhar “x” de dinheiro
por dia, para prestar uma provinha, você o tanto de dinheiro que tem que dar, e às vezes
213
a faculdade não é tão renomada assim. Eu acho que setenta ou oitenta reais para prestar um
vestibular, é um absurdo.
Márcia – Você acha muito caro?
Karen E para prestar, nem se sabe se vai passar, a mensalidade de faculdade, pelo amor
de Deus! Minha mãe fala; “você é muito mão fechada”, eu falo: “mãe, se eu for abrir a mão
assim, não faço mais nada, não tenho mais dinheiro para dar”. Eu fiz as contas, no mínimo
novecentos reais por mês. Eu não ganho isso, como é que eu ia fazer? Jogar nas costas do meu
pai? Nem “ferrando”, então eu ia estar em casa.
Márcia – Então o Prouni abriu essa possibilidade de você poder estudar?
Karen Exatamente! Porque, ou era bolsa ou era bolsa. Amigos meus que não prestaram o
Prouni, e ficaram esperando a bolsa de outros lugares, não conseguiram a bolsa. Uma amiga
está fazendo ETE
59
e o estágio, ela está trabalhando. Eu falei: “filha, você tem que arrumar
um tempo para respirar”. Ela sai do trabalho, vai para o estágio e para a ETE. Ela pensava em
enfermagem e jornalismo, e eu engenharia ambiental e biologia. Ela prestou ETE para enge-
nharia ambiental e eu desisti da ETE em engenharia ambiental, e fui para enfermagem. Hoje
ela está fazendo esse estágio e está gostando de mais!
Márcia – Você está contente com as condições oferecidas pela faculdade?
Karen Eu estou sim! Eu não sei o que vai ser no futuro, mas hoje as pessoas perguntam:
você está fazendo faculdade? Estou, respondo. Do quê? Enfermagem. Onde? Eu falo, São
Camilo e as pessoas comentam: “nossa, está com o futuro garantido, viu!” E eu fico pensan-
do: que bom tomara que esteja mesmo, porque não é pouco.
Márcia – O curso é de quanto tempo?
Karen São quatro anos de curso! E a São Camilo tem todo um esquema, tem as matérias
fixas e tem as matérias optativas. Pode-se optar por fazer até o final do ano, as duzentas horas
complementares, entre cursos, palestras ou alguma coisa que acrescente para a área.
Márcia – Você está fazendo as horas complementares?
Karen – Já! Já fui a palestras de cuidados paliativos, sobre o investimento do governo na saú-
de pública, mas não foram coisas assim muito grandes, porque não tenho tempo. Trabalhar,
estudar, e geralmente é de segunda ou de sexta feira, que é o dia que não tem aula no meu
campus Pompéia, não tem aula de segunda, mas dependendo da hora, não posso ir, porque
estou trabalhando.
Márcia – você costuma ir a cinema, teatro, exposição?
59
ETE – Escola Técnica Estadual
214
Karen – Eu gosto, mas faz um tempo que não vou, mas tem algumas coisas que a gente parti-
cipa que também contam horas, se forem voltadas para a área, como feiras e essas coisas as-
sim. É como um professor falou que o primeiro semestre não é para se pensar nas horas com-
plementares. Mas todo mundo pensa, pois se passar em todas as matérias e não tiver as duzen-
tas horas, não se recebe o certificado no final do ano. Então ficamos preocupados o tempo
todo com isso. Chega ao fim do semestre, tem TCC
60
para fazer, tem isso, tem aquilo, mas vai
indo. Enquanto der para ir levando, eu vou levando. Uma hora vou ter que parar uma coisa,
para poder fazer as horas complementares. Vou fazer dez matérias, mas eu faço as dez maté-
rias.
Márcia – Você mudaria alguma coisa no Prouni?
Karen Não! Acho que o que a gente tinha antes desse programa, para o que se tem agora,
está cem por cento.
Márcia – Por quê?
Karen Nada são cem por cento na vida. Mas, esse programa, literalmente, abre portas. Não
precisa prestar vestibular para entrar na faculdade, se ganha a bolsa de graça. É nesse momen-
to que se vai ver o quanto estudou no ensino médio, para prestar o Enem e para tirar uma boa
nota e para poder usar essa nota no Prouni. Então, para se conseguir bolsa, em âmbito nacio-
nal, isso é muita coisa. Não é que ganhou de graça, eu não fiz a prova da faculdade para
passar, mas pegaram todo o meu histórico escolar, e fala com os professores sobre ser ou não
boa aluna. Teve todo um estardalhaço, então todo mundo da escola sabia que eu estava con-
correndo a uma bolsa pelo Prouni.
Márcia – Então você não mudaria nada?
Karen – É, eu acho que se pudesse mudar, em relação, a mais bolsas. Porque eu não sei quan-
tas bolsas dão, mas acho que pelo número de gente que precisa é pouco, ainda se pudesse mu-
dar alguma coisa seria isso, o número mesmo.
Márcia – Muito obrigada pelo seu depoimento.
60
TCC – Trabalho de Conclusão de Curso
215
Wendy Francisco Pereira
16/08/2009
Márcia – Fale sobre a sua trajetória escolar.
Wendy – Complicado!
Márcia – Complicado Wendy? Por quê?
Wendy – Primeiro eu comecei a estudar aos dez anos.
Márcia – Por que aos dez anos?
Wendy – Acho que meu pai não queria.
Márcia – Você sempre morou em São Paulo?
Wendy Não! Sou de Sergipe, interior de Sergipe, da cidade de Itabaianinha. É a cidade dos
anões.
Márcia A cidade que passa na televisão? E é mesmo a cidade dos anões? Tem muita gente
pequena?
Wendy Sim! Não é que você sai da rua e assim um monte, mas têm várias famílias que
têm anões.
Márcia – Você nasceu lá em Itabaianinha, Sergipe?
Wendy – Eu nasci e morei até os vinte anos.
Márcia – O que você fez até seus dez anos? Quando você começou a estudar?
Wendy – Brinquei como toda criança, mas trabalhei também!
Márcia – Onde você trabalhava?
Wendy – Trabalhei com o meu pai na zona rural, no comércio, vendendo banana.
Márcia – Isso antes dos dez anos, antes de ir para a escola? Mas a roça era do seu pai?
Wendy Não! Morei em outra cidade com a minha irmã, voltei para minha cidade Itabaiani-
nha e continuei trabalhando no comércio.
Márcia – Com quantos anos, você lembra?
Wendy – Com uns doze ou treze anos eu já estava na escola.
Márcia – Você já estava na escola. Por que você começou estudar com dez anos?
Wendy – Porque minha irmã me colocou, na zona rural, em outra cidade.
Márcia – Foi quando você aprendeu a ler a escrever. Foi fácil aprender com dez anos?
Wendy Sim! Porque minha mãe antes dos dez anos, minha mãe me colocava numa espécie
de banca.
Márcia
– O que é banca?
216
Wendy É um tipo de escola. Algumas crianças da cidade se reúnem no fundo do quintal,
montam uma sala de aula, pagam uma pessoa para ensinar. Mas não tem certificado de nada,
só o ensino mesmo, a leitura e a escrita.
Márcia – Interessante! Com dez anos você se matriculou em uma escola oficial?
Wendy – É! Minha irmã me matriculou na zona rural!
Márcia – Você morava com a sua irmã?
Wendy Morei até os sete anos com meus pais, e até os dez anos com a minha irmã. Fiz a
primeira série na zona rural, passei em primeiro lugar da sala, Saí da roça e voltei a morar na
cidade Itabaianinha. Comecei a estudar direto. que quando vim da roça para Itabaianinha
eu não consegui mais vaga, porque eu vim no meio do semestre. Não consegui vaga e perdi
um ano.
Márcia – Você já estava com doze anos?
Wendy Perdi mais tempo. Fiz a segunda e a terceira série e não parei mais até a quinta sé-
rie, estava com dezesseis anos, mais ou menos, então tive que começar a trabalhar.
Márcia – Você fazia a quinta série e trabalhava?
Wendy – Passei para a quinta série e no segundo semestre já comecei a trabalhar.
Márcia – Mas você não parou de estudar? Estudava de manhã e trabalhava à tarde?
Wendy – É!
Márcia – Em que você começou a trabalhar?
Wendy Comecei a trabalhar como costureiro, que é o meu trabalho atualmente, mas eu não
gosto.
Márcia – Por que você não gosta?
Wendy Eu não gosto dessas coisas de linha de produção, sempre é muito puxado, não é
fácil e também tanto tempo que já me “encheu”.
Márcia – Por que você foi trabalhar como costureiro?
Wendy – Para ajudar em casa.
Márcia – Não tinha outra opção de trabalho?
Wendy – Não! Porque a cidade era pequena, tinha pouca coisa para trabalhar.
Márcia – Como você fez para continuar os estudos?
Wendy Na quinta série comecei a trabalhar e tive que pagar escola particular por um ano e
meio, quase dois anos, porque não consegui escola pública. Trabalhava e pagava a escola par-
ticular, terminei a quinta e a sexta série do ensino fundamental.
Márcia
– Você queria estudar? Nunca quis parar?
217
Wendy Sempre buscava isso. Minha mãe como tinha pouca interferência, ela falava: você
tem que estudar se quiser ser gente. Você tem que estudar sempre, estude, estude”. Ela sempre
tentou colocar a gente na escola, mas tinha o bloqueio do meu pai.
Márcia – Por que o bloqueio do seu pai?
Wendy – Ele dizia que estudo não era nada. “Para que estudar?”
Márcia – Você acha que o pensamento do seu pai influenciou você?
Wendy – Durante a infância sim, até os dez anos toda criança fala sobre escola, se está ou não
se está.
Neste instante, a irmã de Wendy que estava presente na entrevista, pois estávamos na casa
dela, interrompe a fala do irmão e completa o que o pai falava a respeito dos estudos.
Irmã – Para que estudar? Vagabundo! Meu pai falava que não tinha que estudar, que tinha que
trabalhar, ele dizia que quem estudava em colégio era tudo vagabundo!
Márcia – Talvez ele tenha aprendeu isso com o pai dele.
Wendy – Provavelmente, porque a maioria deles não veem motivo para estudar.
Márcia – Em quantos irmãos vocês são?
Wendy – Somos em dez irmãos!
Márcia – Todos desta mesma cidade, Itabaianinha?
Wendy – Sim todos!
Márcia – Bem, então você foi trabalhar?
Wendy – Isso, na indústria de confecção, mas sempre pensando nos estudos lá na frente. Fiz a
sétima e a oitava série, depois da oitava série veio o ensino médio. Então a minha mãe veio
para São Paulo, passei a morar sozinho lá em Sergipe.
Márcia – Quantos irmãos vieram com ela?
Wendy Ela veio com quase todos, lá em casa ficaram eu e outro irmão. Para São Paulo vie-
ram minha mãe e mais cinco irmãos. Fiquei só.
Márcia – Você não quis vir?
Wendy Não! Continuei trabalhando na mesma indústria de confecção, e estudando. Fiz o
primeiro ano do ensino médio.
Márcia – A escola era boa?
Wendy – Era sim! A questão era eu (risos). Eu não era nada bom.
Márcia – Em que sentido?
Wendy Acho que mais pelo cansaço, eu trabalhava muito puxado. Então não ajudava, eu
acabava não estudando, passava sempre na média.
Márcia
– Você acabava passando sem saber de verdade?
218
Wendy – Mais ou menos isso mesmo! Passava por nota.
Márcia – Você sentia isso?
Wendy – Com certeza. Aprendia o mínimo.
Márcia – Quando você terminou o ensino médio?
Wendy Em 2003. Mas eu não terminei o ensino médio lá, em Itabaianinha, eu fiz o pri-
meiro ensino médio. Depois eu me mudei para São Paulo.
Márcia – Então você decidiu vir. Sua mãe já estava aqui e parte dos seus irmãos. Por que você
quis vir para São Paulo?
Wendy Depois de dois anos, eu pensei: “vou ver se vou gostar, vou mudar essa rotina aqui
porque já está ficando cansativa”.
Márcia – Quando você chegou em São Paulo, para onde você foi?
Wendy – Vim aqui mesmo, nesse prédio! Minha mãe já morava aqui,
Márcia – Quantos anos você tinha?
Wendy – Vintes anos.
Márcia – O que você fez quando chegou em São Paulo?
Wendy – Cheguei e procurei começar a estudar.
Márcia – Então você já chegou pensando em estudar?
Wendy – É. Queria terminar o ensino médio.
Márcia – Onde você se matriculou?
Wendy Na Escola Estadual São Paulo, que é aqui do lado. Mas foi complicado. Eles não
queriam aceitar a transferência. Quase eu não consegui.
Márcia – Por quê?
Wendy A diretora estava vetando a transferência dizendo que não tinha vaga. Mas tinha,
eles é que são muito burocráticos. Retornei à escola e falei que eles eram obrigados a aceitar a
transferência. Insiste até que eu consegui e fizeram a minha transferência. Comecei a estudar
em 2003 e em 2004 terminei o ensino médio.
Márcia – Você aproveitou mais os estudos?
Wendy – Também não (risos). Acho que eu me habituei a não estudar.
Márcia – Você não se dedicou aos estudos?
Wendy Eu estudava pouco, somente para ficar na média mesmo. Mas eu percebi que mes-
mo sem eu estudar tanto eu me saia bem, comparando com muitos da sala. Eu era igual a mui-
tos da sala.
Márcia
– Além de estudar você conseguiu trabalho aqui em São Paulo?
219
Wendy Sim. Nos primeiros três meses eu recebi o seguro desemprego. Depois fiquei enro-
lando e não conseguia emprego. Eu também não queria mais costurar. Eu tentava em outra
área, mas não conseguia porque eu tinha quatro anos de registro na área da costura e as em-
presas falavam que não tinha nada haver com o que eu queria.
Márcia – E o que você queria?
Wendy Procurei trabalho em escritório, logo que cheguei, procurei também trabalhar em
supermercado, mas não consegui. Continuei procurando, procurando e vi que não dava para
ficar sem dinheiro. Então eu entrei em uma oficina de costura. Passei seis meses e sai da ofi-
cina. Fiquei enrolando de novo, ficava fazendo bico em casa, costurando. Fiquei nessa situa-
ção por dois anos. Foi quando minha mãe voltou para Sergipe, porque aconteceu um proble-
ma e teve que voltar. Eu fiquei, mas sempre estudando sem parar e em 2004 eu tentei entrar
na faculdade, mas não consegui.
Márcia – Por que você queria entrar para uma faculdade?
Wendy – Porque eu estava vendo que o ensino médio não era suficiente.
Márcia – Suficiente para quê?
Wendy – Para conseguir um emprego melhor e ser qualificado para o mercado.
Márcia – Você acredita a faculdade lhe dá essa qualificação?
Wendy – Através da faculdade eu conseguiria um emprego por causa da qualificação.
Márcia – E você pensava em fazer qual faculdade?
Wendy – Eu pensava em fazer informática.
Márcia – Por que informática?
Wendy Porque eu gostava muito de mexer com computador, programas, sempre mexia.
tinha uma familiaridade.
Márcia – Então você achava que fazer uma faculdade de informática seria bom para você?
Wendy Ia sim! Mas os anos foram passando. Eu já tinha tentado fazer o Enem desde o pri-
meiro ano do ensino médio, lá em Sergipe.
Márcia – Então você já fez Enem?
Wendy – Desde o primeiro Enem.
Márcia – Você lembra das suas notas?
Wendy A primeira, que eu fiz em Sergipe, eu não lembro, mas era 6.0, acima de 60. Na
redação eu sempre me saia melhor, 7.5 na redação e na prova objetiva eram 4.0 ou 4.5.
Márcia – E você prestou o Enem aqui em São Paulo?
Wendy
– Prestei.
Márcia – Como você se saiu aqui em São Paulo?
220
Wendy A mesma coisa, sempre a mesma média, variando da redação para a parte objetiva,
quando a objetiva saia alta, a redação saia baixa e vice-versa.
Márcia – Qual foi o último Enem que você fez? Foi em que ano?
Wendy – Foi esse último, em 2008.
Márcia – Você lembra a sua nota?
Wendy – Acho que foram 5.4!
Márcia – E nesse tempo você estava trabalhando?
Wendy – Estava! Onde já estou há três anos e meio
Márcia – Na confecção?
Wendy Depois que eu concluí o ensino médio, eu comecei a trabalhar porque fiquei sozi-
nho depois que minha mãe foi para Sergipe.
Márcia – Então você foi levado à confecção.
Wendy É foi! Mesmo fazendo vários vestibulares para várias faculdades, eu chegava perto
para passar.
Márcia – Quais faculdades você tentou?
Wendy – Tentei Fatec.
Márcia – Sempre na área da informática?
Wendy – É! E eu não consegui, porque a área é muito concorrida, até para o Enem.
Márcia – Então você prestou o Enem no ano passado, obteve a nota 5.4! Então você se inscre-
veu no Prouni?
Wendy Foi, no começo do ano mesmo! Porque no final do ano saiu o resultado do Enem /
2008.
Márcia – Quais foram suas opções?
Wendy A primeira opção foi informática na Uninove, porque você inscreve-se de acordo
com a média das faculdades.
Márcia – Então a sua opção dependia da nota de corte que a faculdade informava?
Wendy É que quando eu colocava o curso no sistema do Prouni, vinha um aviso aconse-
lhando outra opção. Eu pesquisei muito para a segunda opção.
Márcia – E qual foi a sua segunda opção?
Wendy Administração, porque o pessoal me falava sempre se eu não soubesse o que fazer
que escolhesse administração.
Márcia – Então suas opções eram informática e administração?
Wendy
Cheguei a colocar até moda Mas era para entrar num curso superior logo, e não
ficar perdendo mais tempo.
221
Márcia – Moda era uma opção mais para o final?
Wendy – É mais para o final mesmo! Mas aí não sei o que eu fiz. Não prestei muita atenção.
Fiz minha inscrição no último dia e consegui fazer o cadastro direito. Nem olhei as últimas
chamadas, não sei se fui chamado ou não.
Márcia – Então você perdeu a primeira inscrição?
Wendy – Perdi!
Márcia – Quando você fez a segunda inscrição?
Wendy – Em 2007. E não consegui nenhuma classificação.
Márcia – Mas você lembra se eram as mesmas opções?
Wendy – Foram! Administração e informática.
Márcia – Você teve sucesso?
Wendy Consegui uma bolsa na Faculdade Cantareira, mas parcial. O pessoal falou que a
faculdade era muito ruim.
Márcia – Você não tem bolsa integral?
Wendy – Não!
Márcia – Você tem uma bolsa parcial de 50%?
Wendy – Isso! Minha renda não permite uma bolsa de 100%.
Márcia – Por que você não se matriculou na Faculdade Cantareira?
Wendy Eu pensei: eu não vou pagar uma faculdade que não é muito aceita no mercado.
Complicaria e eu não quis. Tentei no ano seguinte. Fiz o Enem de novo.
Márcia – Qual foi a sua nota desta vez?
Wendy – 6.3 pontos!
Márcia – Melhorou então? Este foi o último?
Wendy – Não. Esse foi o penúltimo. Eu não consegui nenhuma classificação.
Márcia – Em 2008, você faz seu último Enem. Qual foi sua nota?
Wendy – Foram 5.4! Foi o que eu consegui.
Márcia – Diminui?
Wendy – Foi.
Márcia – Quais foram as opções no Prouni?
Wendy – Primeiro foi sistema de informação na Uniban- São Judas.
Márcia – E as outras opções?
Wendy Eu não lembro do outro curso que eu coloquei, porque tinha outro curso, acho que
era administração.
Márcia
– E a última opção?
222
Wendy – Sistema de informação também!
Márcia – Mas você cursa Turismo?
Wendy – É mesmo, tem Turismo.
Márcia – Que é a que você foi classificado.
Wendy – Ai desculpa a minha cabeça, nossa.
Márcia – O turismo foi qual opção?
Wendy – A primeira opção
Márcia Então, na última configuração, turismo ficou sendo a primeira opção Por que Turis-
mo?
Wendy Porque eu vi que a concorrência era muito grande em sistema de informação, então
como meu namorado fazia turismo, pesquisei a área em cursos, livro, li muito sobre o mer-
cado e fui fazer turismo. As matérias não são tão difíceis quanto em sistema de informação,
que é muito complicado.
Márcia Então quando você muda a configuração das opções, deu certo? Como voficou
sabendo da sua classificação?
Wendy – Mandaram um e–mail e uma carta para casa.
Márcia – Então você foi classificado em Turismo na Uniban?
Wendy – É assim mesmo, a gente verifica no sistema. Fiquei ansioso para ver.
Márcia – O que você sentiu quando viu o resultado?
Wendy – Fiquei contente! Porque depois de tanto tempo mesmo sendo o que eu não queria.
Márcia – Por que você ficou contente mesmo sem ser o curso que você queria?
Wendy Fiquei sim! tanto tempo tentando, na luta, então eu vi a oportunidade de eu en-
trar na faculdade mais rápido, já estava tentando há cinco anos.
Márcia – E fazer faculdade continuava sendo importante para você?
WendyCom certeza! Continuar porque já estava parado há tanto tempo. Fui me dando con-
ta que estava há muito tempo sem estudar, apenas trabalhando.
Márcia – O próximo passo foi preparar a documentação?
WendyA documentação foi bem burocrática, mesmo sendo bolsa parcial, tive que voltar na
faculdade umas três vezes, saia do meu trabalho, foi bem complicado. Quase não consegui a
bolsa, tive que pedir um documento em Sergipe, um comprovante de residência da minha mãe
em Sergipe, foi muito complicado para conseguir toda a documentação, mas consegui.
Márcia – Você teve dificuldades para acompanhar as aulas?
Wendy
– Sim! Acho que o cansaço do trabalho. Não acompanho bem as disciplinas. Mas fico
sempre na média.
223
Márcia – Qual o motivo de sua dificuldade?
Wendy – Meu conhecimento anterior me prejudica um pouco.
Márcia – E o que você faz para suprir sua dificuldade?
Wendy – Tento o máximo prestar atenção nas aulas, porque em casa eu não estudo.
Márcia – Você não estuda em casa?
Wendy Não! Não leio nada em casa, até as meninas da sala perguntam como eu consigo, e
eu falo: “meio que embromeition”. Minhas notas no primeiro semestre não foram boas.
Márcia – Então você está fazendo o curso, praticamente, apenas assistindo às aulas?
Wendy – Sim! Minhas notas foram acima de 4.5, só tirei uma vermelha.
Márcia – Qual é a média na Uniban?
Wendy Média 5. Eu tirei acima de 4.5, tirei uma vermelha, fiquei em DP em uma maté-
ria, quer dizer, ainda nem é DP, porque lá o curso é anual na Uniban.
Márcia – Entendi! Você frequenta a biblioteca?
Wendy – Não.
Márcia – Você comprou livros?
Wendy – Não! Eu não leio nenhuma apostila.
Márcia – Você não lê as apostilas, não freqüenta a biblioteca e não compra livros?
Wendy – Isso.
Márcia – Você utiliza o laboratório de informática?
Wendy Eu fui uma vez, o tempo é muito curto, de final de semana que eu posso ir,
mas o cansaço, essa rotina do trabalho já me saturou tanto.
Márcia – E você acha que vai dar conta de terminar a faculdade, assim nesse seu ritmo?
Wendy – Acho que posso pegar o diploma, mas....
Márcia – Então você acha que vai lhe ampliar suas possibilidades de trabalho?
Wendy – Então é o que já estou tentando mudar.
Márcia – O que você está tentando mudar?
Wendy – Meus estudos, a forma de eu levar meus estudos, sabe, começar a estudar mesmo.
Márcia – Por quê?
Wendy – Porque eu estou vendo que o mercado de trabalho não quer apenas o diploma.
Márcia – Não quer? Você acha isso ou está ouvindo isso?
Wendy – Eu acho e presencio.
Márcia – Por quê?
Wendy
– Porque eu passei por entrevistas e não fui selecionado.
Márcia – Então o diploma não é tudo?
224
Wendy – Não mesmo!
Márcia – Em que a faculdade está mudando o seu modo de pensar?
Wendy – Acho que ainda não estou muito interado, eu me atraso muito na faculdade.
Márcia – Atrasa como?
Wendy – Chego muito tarde.
Márcia – Você já tem um grupo de amigos na faculdade?
Wendy Tinha, mas agora não, porque eu mudei. Agora eu mudei, vim para a Vila Mariana,
e ainda não tenho um grupo.
Márcia – Você sente discriminação por ser bolsista?
Wendy – Não! Nenhuma, o pessoal até acha legal e dizem: “nossa você é bolsista”!
Márcia – E por que eles acham que é legal?
Wendy – Porque eu não pago (risos).
Márcia – Você tem amigos que são bolsistas?
Wendy – Meu irmão e uma amiga.
Márcia E essa questão da nota, você tem que ter uma média por ser aluno Prouni, ou não,
você só não pode repetir?
Wendy Eu acho que é a mesma coisa para todos os alunos, mesmo eu não tendo lido todo o
manual do Prouni, mas.
Márcia – Como você avalia sua faculdade?
Wendy – Acho que não posso nem avaliar tanto.
Márcia – Ela é uma boa faculdade?
Wendy – O ensino é bom, pelo menos a maioria dos professores são bem dedicados.
Márcia – Quando você diz a maioria, o que não estaria bom.
Wendy – Tem uns professores que brincam muito, eu acho que tem poucas aulas.
Márcia – se você pudesse, estaria fazendo o curso em outra faculdade?
Wendy – Eu queria estar na São Judas.
Márcia – Você queria estar mesmo na São Judas, está pensando em mudar?
Wendy – Eu fiz o Enem esse ano para ver se eu consigo uma bolsa integral.
Márcia – Mas que curso, o mesmo?
WendyAgora estou em dúvida. Se eu for começar com bolsa integral, eu vou ter que come-
çar tudo de novo, e estou em dúvida entre turismo e informática.
Márcia – Turismo e informática, a informática é o curso que você sempre quis fazer.
Wendy
– Mas aí tem toda uma coisa, um processo, tem a dificuldade da matéria.
Márcia – Você se sente capaz de enfrentar isso?
225
Wendy – Acho que eu não me sinto preparado não.
Márcia – Você está buscando se preparar ou não.
Wendy – Estou deixando. Como sempre.
Márcia Que dificuldades votem para se manter no curso, em termos financeiros mesmo,
você tem uma bolsa de 50%, mas você teria livros para comprar, alimentação, condução?
Wendy – Tenho dificuldades sim, com certeza, tanto que não estou pagando a faculdade.
Márcia – Você não está pagando os 50%?
Wendy Não. Para eu passar para o segundo ano, eu vou precisar fazer um acordo e efetivar
o acordo.
Márcia – Que dificuldades você teve.
Wendy Dificuldade financeira mesmo, eu não saí ainda, porque eles não cancelam a bol-
sa nem a faculdade cancela a matrícula.
Márcia – Então você está tendo dificuldades para se manter e pagar esses 50% , você não ten-
tou outro tipo de financiamento?
Wendy Não. Primeiro porque me falaram que o Fies tem juros horríveis. Eles cobram mui-
tos juros, eu não pesquisei, mas falaram para eu não fazer o Fies.
Márcia Certo! É para terminarmos, que oportunidades você acha que a faculdade lhe pro-
porciona no mercado de trabalho?
Wendy Primeiramente, a facilidade de conseguir um estágio, porque entrar na área por
meio do estágio é mais fácil, sem um diploma, sem uma faculdade, sem ter qualquer qualifi-
cação não dá certo.
Márcia – Você está feliz em São Paulo? Pretende ir embora?
Wendy – Eu gosto daqui! Não pretendo não, vou fazer a vida aqui mesmo.
Márcia – E o Prouni, você acha que é um bom programa do Governo?
Wendy De todos os programas que dão a oportunidade de entrar no ensino superior, eu a-
cho que é o ProUni é o melhor sim.
Márcia – Por quê?
Wendy – Porque tem a questão que o pagamento da bolsa é fixo, não têm regras para cancelar
a bolsa, e os outros programas como a Bolsa Universidade, que é para os sem-terra, que dá
50% de desconto, mas se não pagar no dia certo, terá que pagar o valor integral, e outros que
eu busquei como o Mérito Acadêmico, não dá uma bolsa suficiente.
Márcia Então você acha que o Prouni é uma boa bolsa de oportunidade de quem não tem
condições financeiras?
Wendy
– É a melhor, sim.
226
Márcia – Você mudaria alguma coisa no Prouni?
Wendy – O sistema de seleção por renda.
Márcia – Você está dentro da exigência para bolsa integral?
Wendy – Não, eu não consigo bolsa integral. Eu nem conseguia fazer o cadastro, eu não sabia
porque, fui verificar e depois eu vi que era a renda.
Márcia – Então você mudaria a renda, aumentaria um pouco mais? Por quê?
Wendy Porque, por exemplo, para mim que moro sozinho, tenho despesa de aluguel, com a
casa alimentação, e esta renda que eles estipulam não seria suficiente para pagar 50% da fa-
culdade e manter a casa sozinho.
Márcia – Você participa de algum movimento estudantil?
Wendy – Não.
Márcia – E social?
Wendy – Só o MMT
Márcia – O movimento de moradia do centro?
Wendy – Isso
Márcia – O que você faz nas horas vagas?
Wendy – Acho que dormir (risos).
Márcia – Não vai ao cinema ou teatro?
WendyEu sou muito preguiçoso, para sair não é só por dinheiro. Porque lazer pode ser um
parque, museus e muitos são gratuitos. A questão é que prefiro dormir, ficar em casa e ir para
a balada também.
Márcia – Muito obrigada pela entrevista e pelo tempo que você disponibilizou.
Kelly Cristina Pereira
21/10/2009
Márcia Muito bem, estou começando minha entrevista com a Kelly, estou na Uniesp, local
onde a Kelly estuda. Então Kelly, qual sua idade e seu nome completo.
Kelly – Meu nome é Kelly Cristina Pereira, tenho 22 anos.
Márcia – Fale um pouco de sua família.
KellyEntão, meu pai morreu quando eu tinha quatro anos. Eu fui morar com minha avó, eu
moro com ela desde então. Casei e agora eu moro com meu marido.
Márcia – E a sua mãe?
Kelly Eu não conheço a minha mãe. Ela mora aqui perto da minha casa, mas eu não a co-
nheço. Ela mora no Itaim e eu em Itaquá. É perto. Eu a visitei muitos anos, mas se eu a
vir eu não a conheço. Eu fui na casa dela uma vez. Depois ela se mudou de e a gente se
desencontrou, agora ela voltou para lá.
Márcia – Você morou com a sua avó até agora. Você tem irmãos?
Kelly Morei com meu pai, meu avô e minha aaté quando eu casei. Hoje minha avó já
faleceu. Eu tenho mais três irmãos, e tenho mais dois irmãos por parte de mãe. No total somos
seis irmãos e eu sou a mais velha.
Márcia – Seus avós maternos ou paternos?
Kelly – São de parte de pai.
Márcia – Quantos anos você tem?
Kelly – Eu tenho 22 anos.
Márcia – Você é casada?
KellyEu casei com 19 anos. Tive meu filho com 20. Perdão com 21, o ano passado. Ele vai
fazer um ano agora, neste mês.
Márcia – Onde você mora?
Kelly – Em Itaquá, Manoelfei, é uma estação de trem, na Vila Bartira.
Márcia – Como foram os seus estudos? Sempre em escola pública?
Kelly – Sempre em escola pública.
Márcia – Como foi o ensino fundamental?
Kelly Foi bom, assim. Na série eu entrei na metade do ano. Daí eu fui daqui para o
228
norte.
Márcia – De São Paulo para o norte do país?
Kelly Fui para a Paraíba. Minha avó morava e eu fui com ela. Daí eu entrei na primeira
série na metade do ano. A diretora pensava que eu não iria conseguir acompanhar. Mas eu
acompanhei e passei de ano. que ela me voltou para o primeiro ano, porque eu entrei na
metade. Tive que fazer tudo outra vez.
Márcia – Na Paraíba, você fez a 1º série?
Kelly – Fiz da 1º à 8º série na Paraíba.
Márcia – Na mesma escola?
Kelly Não. Eu passei por três escolas. O ensino fundamental em uma mesma escola e o en-
sino médio em duas escolas diferentes.
Márcia – Todas elas eram escolas públicas?
Kelly – Todas públicas, inclusive quando eu fiz o magistério, fiz em uma escola de freiras que
era anteriormente particular, mas depois se transformou em pública. Era um colégio muito
grande, tinha regras para entrar, tinha uniforme composto de saia pregueadinhas, blusinha
com gravatinha, boina, meias e sapatos.
Márcia – O magistério era um bom curso?
Kelly Eu gostei muito, eu aprendi muito. Achei o magistério maravilhoso, eu absorvi mais
coisas do que o ensino médio normal, que eu fiz.
Márcia – Você fez o ensino médio normal também?
Kelly – Fiz, enquanto eu estava fazendo o magistério...
Márcia – Por que você escolheu fazer magistério?
Kelly Eu tinha a opção de fazer o ensino médio e o magistério. que o magistério dava
direito de eu dar aulas. Agora tem uma lei que obrigada o professor estar cursando a faculda-
de. Eu sei que ainda tem gente hoje, na Paraíba que dá aulas só com o curso do magistério.
Márcia – E dão aulas para que séries?
Kelly – Para a 4º, 5º série. Tem gente que encara até a 8º série.
Márcia – É mesmo? Só com o magistério?
Kelly – Só com o magistério. Eles vão para campo mesmo, para sítios.
Márcia – Para a zona rural. Por que você escolheu fazer Magistério?
Kelly – No começo eu ficava procurando estágio, depois eu fui gostando, fui fazer estágio, fui
dar aulas numa escolinha do ensino rural lá, eu via que precisava bastante, fui tendo interesse,
e achei interessante, achei assim, não é fácil, mas nos dá um retorno bem maior.
Márcia
– Você chegou a dar aulas depois que se formou?
229
Kelly Não. Quando eu estava para me formar, mudaram o tempo de curso do Magistério.
Era até então de três anos e eu estava terminando, mas neste ano passou a ter quatro anos,
como eu já estava voltando para São Paulo, eu não pude terminar.
Márcia – Quem decidiu voltar para São Paulo?
Kelly A minha avó, porque ela não tinha nenhum parente lá, somente ela, eu e meu avô,
todos os filhos dela estavam aqui. Ela tem 14 filhos, todos aqui em São Paulo, não tinha ne-
nhum lá. Meus avós tinham muita idade, longe dos filhos, muito longe, são três dias daqui
para lá. Então, ela resolveu voltar para São Paulo. Eu vim na frente, quando acabei o terceiro,
e tinha o quarto ano que tinha de fazer, que era estágio, TCC, mas eu acabei não fazendo,
Eu não concluí. Quando eu cheguei aqui, eu não encontrei mais o curso de magistério, não
tinha mais. Então não pude terminar. Fiquei em casa com o primeiro ao terceiro no papel,
mas não tenho a conclusão e nem posso mais.
Márcia – E aí o que você fez?
Kelly Eu fui para Itaguá, fora isso, eu morei em Caraguatatuba, quando eu tinha nove
anos, eu fiz a quarta e a quinta série. Eu morava , lá no norte, eu vim para Caraguata-
tuba. Nós passamos dois anos, foi quando eu tive uma noção de como era atrasado, o ensino
daqui era bem mais adiantado do que lá.
Márcia – Por quê?
Kelly – em uma determinada série, não tinha aula de história, era ciências. Não tinha geo-
grafia, não tinha física, não tinha química. Tinha o básico: português, matemática, ciências, e
história, algumas, às vezes nem história tinha, eram estudos sociais. Então, quando eu vim
para cá, era totalmente diferente, a escola lá em Caraguatatuba era muito boa.
Márcia – Era pública?
Kelly – Era pública. Tinha laboratório, também exigia farda para entrar.
Márcia – Mesmo assim, você acompanhou o curso?
Kelly Acompanhei bem, do fundamental até o do médio, eu fui ótima. No começo deu
um trabalhinho, mas depois eu consegui. Depois quando eu voltei para lá, para mim eles
eram meio lentos. Tudo o que eles passavam para mim, eu tinha visto. Por exemplo, eu
estava na 4º, eu fui ver na sexta a mesma coisa, então eu sabia de cor e salteado.
Márcia – Quando você voltou para São Paulo, você foi procurar uma escola pública de ensino
médio normal?
Kelly Então, eu estava fazendo o magistério lá, terceiro ano e fazendo o ano, eu estava
fazendo os dois ao mesmo tempo, terceiro ano do magistério e primeiro ano do médio normal,
daí quando eu vim para cá, eu vim com o primeiro ano, eu concluí os dois, conclui o tercei
230
ro e conclui o primeiro, concluí os dois, estudava pela manhã e a noite, e à tarde a gente fazia
estágio. Quando eu vim pra cá, eu tinha o primeiro, me matriculei para fazer o segundo e o
terceiro, para terminar e fazer o Enem.
Márcia – E a escola aqui em São Paulo era de qualidade?
Kelly No Bairro que a gente morou, a gente morou num bairro chamado Jardim Odete, em
Itaguaquecetuba, a escola era meio bagunçadinha, era à noite. Eu estudava à noite, eu nunca
tinha estudado à noite, eu sempre estudei de manhã.
Márcia – Bagunçada em que sentido?
Kelly – Assim, os alunos não deixavam os professores darem aulas, se você quisesse aprender
mesmo, você precisava ficar bem na frente, porque senão você não conseguia ouvir nada. Era
muito difícil mesmo, uma turma muito difícil mesmo, muito dos professores não conseguiam
mesmo, não conseguiam tomar a rédea da sala, a sala é que “levava”. Os professores chega-
vam e iam ler revistas, alguns, outros não, outros chegavam e davam aula mesmo, davam a-
quela aula, e o pessoal prestava atenção. Quando o professor era firme, chegavam passavam
na lousa, e aquilo e aquilo e pronto. O pessoal fazia. Então, eu estudei seis meses, quando a
minha avó mudou–se. Nós nos mudamos para Manoelfeio, na Rua Limeira.
Márcia – Você já tinha terminado o segundo ou estava no meio?
Kelly Eu estava no meio, foi quando eu pedi transferência. A outra escola era muito boa, a
Édina
61
, muito boa.
Márcia – Em que período você estudou, no Édina?
Kelly – Período da manhã.
Márcia – Você acha que tinha diferença entre os períodos manhã e noite?
Kelly Com certeza, porque é assim, de manhã o pessoal vai mais interessado, bem mais
interessado, porque à noite o pessoal mais maduro, pessoal que trabalha, alguns estão
para terminar, para ter o diploma em casa, e pela manhã não, são jovens mesmo que que-
rem terminar. Eles querem terminar, querem fazer faculdade. Eles vão para estudar, daí é bem
mais fácil, de manhã a gente tem a mente bem mais limpa, para conseguir entender.
Márcia – Você acha que aprende melhor?
Kelly – Eu acho, a aprendizagem é melhor, com certeza, o foco é melhor.
Márcia – E você foi bem no 2º e no 3º ano do ensino médio?
Kelly Então no 2º, neste ano que eu me transferi, eu consegui transferi minha matrícula,
mas não consegui concluir, então eu perdi um ano. No ano eu precisei fazer o supletivo. O
61
Escola Estadual Profa. Édina Álvares Barbosa
231
supletivo é assim, é meio diminuído, você não vê tudo o que precisa ver, é uma aprendizagem
bem minúscula.
Márcia – Mas por que você não conseguiu terminar?
KellyQuando eu me transferi, eles demoraram para me devolver os documentos para eu me
matricular na outra escola, fiquei sem matrícula, daí chegou uma hora que eles falaram:
“não, você vai precisar trazer os documentos, se não tem como”. Eu fui, pedi na outra escola,
mas tive esperar, porque o meu documento original era da Paraíba.
Márcia Então você perdeu o ano por conta de documentação. Não é que você não foi bem,
foi por causa da documentação?
Kelly – Não, eu sempre fui bem.
Márcia – Então no ano seguinte, você se matriculou nesta mesma escola?
Kelly – Isso, nesta mesma escola.
Márcia – Matriculou–se outra vez no segundo ano ou fez o supletivo?
Kelly – Eu fiz o supletivo.
Márcia – Você fez supletivo referente ao segundo e terceiro ensino médio?
Kelly Do e 3º. Seis meses para cada ano. Então eu fiz no Edna, à noite. Os professores
eram bons lá, a maioria o pessoal, alguns da sala se salvavam, alguns bagunceirinhos, alguns
não queriam nada com nada, não deixavam a classe estudar, os professores precisam ter jogo
de cintura, eles brincavam, mas também davam aulas, e era legal, o ensino foi bom, apesar de
ser resumido, muito resumido, o básico do básico. Mas foi bom, foi bom.
Márcia Neste meio termo, você morava em Itaguaquecetuba e o que vofazia além de es-
tudar?
Kelly Eu estudava a noite e trabalhava de manhã, das 8h às 18h como costureira de bolsas
em uma fábrica. Mas eu não era registrada. Passei três anos trabalhando sem registro. Eu não
sabia nem o que era registro. Para mim não fazia diferença.
Márcia – Você não tinha nem os seus documentos, carteira de trabalho?
Kelly – Eu tenho carteira de trabalho desde 2007. Eu trabalho desde os 14 anos.
Márcia – Você já exerceu outras profissões?
Kelly Trabalhei em sorveteria, trabalhei em loja de noivas como atendente, trabalhei
como babá, trabalhei em uma escola de informática, nesta escola de informática eu estava
fazendo o curso, e com o meu trabalho eu pagava o curso. Nesta escola, eu era monitora. O
que eu aprendia eu passava para os outros alunos.
Márcia
. Onde você exerceu essas profissões?
232
Kelly – Na Paraíba, quando eu vim para cá, eu já trabalhei como costureira.
Márcia – Você fez curso de costureira?
Kelly – Não, eu só olhava a costureira com a qual eu trabalhava. Minhas roupas foram sempre
feitas por ela, ela sabia minhas medidas, olhava a roupa na revista e fazia igual. Eu ajudava, e
recebia as roupas novas como pagamento do meu trabalho. Eu aprendi com ela e comecei a
fazer minhas roupas também. Depois eu arrumei emprego de costureira aqui. que eu sabia
costurar naquela máquina de pé. Sabe aquela bem antiga, quando eu fui para a máquina indus-
trial eu tomei um susto. Ela era muito rápida, mas eu aprendi em uma semana eu aprendi.
Márcia – Além de trabalhar e estudar, o que você fazia em suas horas vagas?
Kelly – No fim de semana eu saia, ia para a balada.
Márcia – No seu bairro mesmo?
Kelly Não, eu ia para Suzano, com meus amigos da escola mesmo. Às vezes ia para um
parque, tem um parque em Itaguaquecetuba, perto do hospital Santo Marcelino. A gente ia
para o parquinho.
Márcia – Mas, parquinho de quê?
Kelly Parquinho de diversão. Então, a gente ia para lá, eu tinha amigos que eram D.J. Em
salão, nós íamos também para o salão, ia para a pizzaria, o normal, às vezes ia para a praia no
final de semana, uma porção de coisas.
Márcia – Quando você termina o supletivo, o que você pensar fazer?
Kelly – Ainda no segundo ano do ensino médio, eu já queria fazer o Enem.
Márcia – Por quê?
KellyPorque eu trabalhava e via a dificuldade de fazer uma faculdade. Mas eu queria fazer.
Na verdade o que eu queria fazer era medicina.
Márcia – Você queria estudar medicina? Você pensava no Enem por causa do Prouni?
Kelly – Não, eu não pensava no Prouni ainda, este Programa ainda não existia.
Márcia – E por que você queria prestar o Enem?
Kelly – Porque os professores mesmos falavam: “façam o Enem, vocês conseguem um pontos
nos vestibulares públicos.”
Márcia – E você pensava em medicina?
Kelly: Isso.
Márcia – Desde quando você pensava em estudar medicina?
Kelly – Desde sempre. Eu sempre quis ser pediatra. Eu sempre gostei de criança. Isso também
foi o que me influenciou em fazer pedagogia, porque eu gosto muito de criança. Quando eu
233
fiz estágio, nossa eu adorava a sala, eu fiz estágio em sala da pré–escola, eu fiz no primeiro,
no segundo, no terceiro. Eu adorava dar aula.
Márcia – E a Medicina. Por que medicina?
Kelly Medicina por que eu acho bonito. É uma profissão dura, tem uma hora que você tem
que dar uma notícia para a família, tem que ser uma pessoa neutra, não pode demonstrar emo-
ção. É tudo.
Márcia – É isso que lhe atraia?
Kelly Não, o que me atraia era poder salvar as pessoas. É uma profissão muito bonita, mas
muito difícil também.
Márcia – Então você passou parte da sua vida pensando que ia fazer medicina?
Kelly: Isso.
Márcia – Quando você terminou o supletivo, ainda pensava em estudar Medicina?
Kelly Na verdade, quando eu fiz magistério, mudou um pouco a minha cabeça. Até a
oitava série, quando eu comecei a fazer o primeiro ano do ensino médio, e fui fazer o primeiro
estágio, eu ainda pensava em medicina, mas aí mudou, medicina ficou para segundo plano, no
segundo ano do ensino médio, pedagogia ficou em primeiro plano, porque era o que eu estava
fazendo na época. Eu achava muito interessante, eu gostei muito, eu me identifiquei. É muito
difícil, tem muita coisa, tem muita regra, mas sei lá, eu gostei.
Márcia – Então quando você terminou o supletivo, e já prestou o Enem?
Kelly – Eu prestei o Enem em 2007. Eu estava terminado o segundo ensino médio e eu prestei
Enem.
Márcia – Foi a primeira vez? Como você se saiu nas provas?
Kelly A prova do primeiro Enem não foi muito difícil, para mim não foi, eu achei, não se
porque eu estudei muito, eu achava que ia ser muito difícil, eram muitas questões, mas na
redação eu não me saí bem, eu não sou muito boa em redação, mas quando eu recebi a nota
em casa eu fiquei muito feliz.
Márcia – Você lembra a nota?
Kelly Nota? Lembro! 64. Achei que eu fui bem, adorei. Eu lembro que eu chorei, eu fiquei
muito feliz. eu me inscrevi no Prouni. Não, eu ia me inscrever, daí aconteceu que eu não
consegui, não deu tempo. As inscrições se fecharam. Eu pensei que era só uma vez. A primei-
ra vez, eu não consegui me inscrever, na segunda eu tornei a perder a inscrição, mas por bo-
beira, porque eu não sabia que eram duas vezes que eles abriam. Eu achava que a segunda
chamada era para quem tinha se inscrito na primeira, então, eu era totalmente leiga, eu não
sabia de nada. Depois eu conversei com a minha professora, com a diretora da escola também,
234
que até hoje eu converso com elas, foram elas que me indicaram o Prouni, e elas falaram que
eu podia me inscrever na primeira e na segunda chamada também. Então, eu prestei o Enem
outra vez, nessa vez eu achei muito difícil, porque eu estava grávida, e as questões eram muito
grandes, parecia um livro, cada questão, eram muitas questões e parecia uma história cada
questão, tinha de ler muito. O tempo era curto, era um dia para fazer a redação e a prova
tinha 64 questões mais a redação. As questões eram grandes, depois as alternativas também
eram grandes. Eu achei que eles colocaram muitos textos, eu tive dificuldade, porque não deu
tempo. Eu queria ler, eu queria pensar direito para poder responder. Eu tive muita dificuldade,
quase eu não consegui terminar a prova, quando eu terminei, já estava no finzinho, sabe aque-
la chamada que eles dão para acabar, a monitora da sala me ajudou, disse para eu ir marcando.
Eu primeiro marco na folha e depois eu marco no gabarito, e eu deixei tudo para o fim, eu tive
de correr, e algumas questões eu marquei errado. Não marquei no gabarito aquela que eu que-
ria, aquela que eu tinha marcado, por causa da pressa, e quando eu fui corrigir aquelas que eu
tinha marcado na prova, eram as que estavam certas. Acho que eu perdi umas quatro questões,
eu fiquei muito nervosa. Daí quando a recebi na nota, eu tirei 5.8. Eu achei que eu ainda fui
bem, porque pelo tempo que foi curto, e as questões que eu não respondi.
Márcia Você estava grávida quando prestou o Enem? Quantos meses você estava de sua
gravidez?
Kelly – Eu já estava quase para ganhar, o meu filho vai fazer um ano agora.
Márcia – Você estava quase com nove meses?
Kelly – Isso.
Márcia – O que aconteceu após o Enem?
Kelly Eu fui me inscrever no Prouni, eu sabia que a minha nota não era muito alta. Eles
sempre dão as notas que estão concorrendo às bolsas, quando a gente abre a ficha de inscrição
e olha a faculdade aparece a nota de corte.
Márcia –. Qual foi o seu critério de escolha? Que cursos você escolheu?
Kelly – A primeira opção, eu coloquei farmácia.
Márcia – Próximo de medicina?
Kelly – Isso, a segunda eu marquei biomedicina, a terceira, a quarta e a quinta foram RH.
Márcia – Você podia escolher as faculdades?
Kelly – Isso, podia escolher a faculdade e o curso.
Márcia – Você lembra quais foram as faculdades escolhidas?
Kelly
Farmácia eu escolhi Drummond, Biomedicina eu escolhi Mogi, Faculdade de Mogi
das Cruzes, a terceira opção foi Pedagogia, em Arujá, a quarta opção foi Pedagogia na Teresa
235
Martin e a quinta foi RH na Cruzeiro do Sul. Quando eu estava me escrevendo, a nota máxi-
ma da Cruzeiro do Sul, das pessoas que estavam inscritas, era 57.3, e eu me inscrevi porque a
nota era aproximada da minha, que eu não entendi, quando eu me inscrevi em Pedagogia
na Teresa Martin, a nota era mais alta que a minha, e eu consegui, e não consegui recursos
humanos
Márcia – Quais foram os seus critérios de escolha?
Kelly – Pelo mercado. Eram faculdades bem conhecidas.
Márcia – Você conhecia Teresa Martin?
Kelly Eu escolhi a Teresa Martin porque um colega meu de trabalho, tinha uma tia que
tinha estudado na faculdade Teresa Martin, tinha se formado. Ela falou que era muito boa
na área de pedagogia, o foco era pedagogia na Teresa Martin. Então eu me inscrevi para pe-
dagogia. Meu critério foi a qualidade da faculdade.
Márcia – Como foi quando você recebeu a notícia que tinha obtido sucesso?
Kelly – Nossa! Primeiro na primeira chamada eu não passei. Passei na segunda chamada.
Márcia – Você precisou prestar um vestibular?
Kelly O vestibular mesmo. Eu prestei o vestibular normal, sem o Prouni. Daí quando eu
olhei no site, eu disse: “não acredito que eu fui escolhida para a segunda chamada, várias pes-
soas foram escolhidas, várias pessoas não conseguiram comprovar documento, às vezes não
fizeram a prova, não passaram na prova da faculdade, se não passaram não tem como, porque
na segunda chamada se você vai fazer a prova da faculdade, tem de passar nela, também, se
você não passar no vestibular interno da faculdade, mesmo tendo passado no Prouni não tem
como matricular–se.
Márcia – Você já conhecia onde era a faculdade?
Kelly – Não, o endereço que estava lá era da Freguesia do Ó, quando eu procurei na Internet e
vi que era no centro eu disse: “Meu Deus, como é longe! Como é longe! Como eu vou chegar
lá”, eu pensei assim, eu pensei em não fazer, porque era muito longe, porque eu não sabia ir,
mas eu que eu não ia trabalhar, quando eu consegui emprego, logo em seguida veio a faculda-
de e as duas eram bem próximas.
Márcia– Onde você trabalha?
Kelly Eu trabalho na Atendo, no setor de telemarketing. Por algum momento eu pensei em
não fazer a faculdade, eu nem fui comprovar os documentos. Quando foi no dia 16, manda-
ram–me um e–mail, eu vi na caixa de e–mail, abri e estava lá. A Teresa Martin – Uniesp, ago-
ra estava escrito que o endereço era no centro da cidade. Vi o endereço, e eu disse: “agora
236
eu vou comprovar os documentos”, quando eu cheguei aqui e trouxe os primeiros documen-
tos, eles falaram que ainda estava faltando documentos.
Márcia – Você entrou com 100% de bolsa?
Kelly – Isso, 100%.
Márcia – Então você tinha de comprovar renda de um salário mínimo e meio?
Kelly Isso, tinha de juntar o salário das pessoas da casa, e tinha de dar o valor que pede lá,
esse é o critério. Em casa, dava, porque eu não estava trabalhando ainda, era o trabalho do
meu esposo. Mesmo assim, quando eu cheguei aqui e fui comprovar. Eles pegaram a minha
carteira e eles perguntaram se eu estava trabalhando, pois quando eu fiz a inscrição eu estava
empregada, portanto somariam o meu salário e o do meu esposo. Então vai ter de somar o seu
salário com o do seu esposo, e também não tinha colocado que eu tinha um filho. É necessário
colocar os que têm renda, mas têm de colocar os que não têm renda também. Eu não sabia e
não coloquei o meu filho. A atendente da faculdade colocou de última hora e falou que ia
mandar analisar, se eles aceitassem tudo bem. eles juntaram os dois salários, mas mesmo
assim deu certo. Por pouco, muito pouco, acho que por dois reais.
Márcia – Os dois salários não ultrapassaram um salário mínimo e meio?
Kelly Por três ou quatro reais. Ela falou que eu tinha sorte! Daí juntando pequenas coisas,
eu fui vendo que era para eu fazer, porque primeiro era longe, eu não sabia onde era, eu ia
desistir por causa disso, eu ia tentar novamente, do nada fico sabendo que era perto, perto do
meu trabalho, nem cinco minutos do meu trabalho, um local fácil de achar. Então a questão da
renda, que eu achava que não ia conseguir e consegui por pouco. Juntando estas coisas, estas
pequenas coisas, eu fui pondo na minha cabeça que era para eu fazer. Quando é para você
fazer é para você fazer. Então em vim, comprovei a renda, e falaram eu tinha de fazer a prova.
Fiz a prova. Eu me preparei para a prova, fiz a prova e passei. A secretaria da faculdade me
chamou para fazer a matrícula. Eu fiquei muito feliz, muito aliviada, vim toda feliz para a
matrícula, daí me matricularam em Letras.
Márcia – Por quê? Foi engano?
Kelly Isso, engano. Matricularam–me em letras pela manhã. E eu falei que meu curso era
Pedagogia. Por isso, até que fui matriculada em pedagogia, as aulas tinham começado e eu
fiquei um pouco perdida.
Márcia – As aulas já tinham começado?
Kelly Já, quase um mês. Eu cheguei totalmente desnorteada. Quando eu fui para casa eu
pensei que não iria conseguir. Falei para o meu marido que não conseguiria. Eu achei muito
237
difícil. Tem muita coisa que eu não sabia, mas eu fui vendo que não era eu, várias pessoas
tinham dificuldades, um ajuda o outro, e assim que leva.
Márcia E agora? Você está quase terminando o primeiro semestre. Como você avalia o
curso, a sua evolução?
Kelly – O curso de Pedagogia é muito bom.
Márcia – Você está contente com o curso?
Kelly Estou. Estou aprendendo muita coisa, muita coisa que eu não vi, às vezes eu tenho
muita dificuldade, mas nada que a gente não possa ir estudando para melhorar, mas é bom,
porque a gente aprende coisas novas. Tenho bastantes dificuldades ainda, mas eu sei que vou
conseguir passar por isso. Eu passei por tantas coisas, tantas etapas, eu consegui chegar até
aqui, por que eu não vou conseguir passar por essa?
Márcia – E aqui na faculdade, você utiliza a biblioteca, o laboratório de informática?
Kelly – O laboratório, muito. Eu saio do serviço às 13h ou às 15h. Às vezes, eu venho para cá
às 15h horas, vou para o laboratório, e faço umas pesquisas, vou para a biblioteca ler os meus
livros mesmos. Eu tenho muitos livros em casa.
Márcia – Você gosta de ler?
Kelly Eu tenho quase uma biblioteca. Agora eu estou meio preguiçosa, mas eu lia muito,
depois que eu engravidei, não sei, eu tenho muito sono, eu ia ler um livro, não conseguia ler
nem um parágrafo direito, mas agora eu estou retomando, porque agora tenho de ler muitos
livros, e eu estou retomando.
Márcia – Que perspectivas você tem do seu curso? Como o curso superior poderá ajudá–la em
seu futuro?
Kelly – Pedagogia é uma área ampla, pode-se dar aulas, pode escolher a série, pode escolher a
matéria, você pode se aprofundar naquela matéria, em história, geografia, pode–se aprofun-
dar. Em mais dois anos da faculdade, então eu penso assim, daqui a alguns anos, não sei quan-
tos, eu vou dar aulas. Vou saber qual matéria mesmo eu vou querer seguir, se eu vou querer
ficar na pedagogia normal, porque com pedagogia se pode dar aulas de várias matérias. Então
eu vou saber, daqui para frente eu vou saber, se eu vou querer uma determinada matéria ou
seu eu vou querer pedagogia mesmo.
Márcia – E a medicina?
KellyA medicina fica para segundo plano, quando eu puder, porque eu ainda tenho interes-
se. Eu gosto muito de genética, eu gosto muito destas coisas que mexem com o sentido da
vida. Acho muito interessante. Eu estava vendo uma reportagem ontem, sobre o descobrimen-
to de como funcionam as células do envelhecimento. Achei muito interessante, muito interes
238
sante. Eles estão quase chegando ao objetivo da vida eterna, eu acho interessante demais,
também teve outra matéria que eles descobriram o DNA do boi, como funciona. Eu acho mui-
to interessante, eu acho muito legal, eu acho assim, eu também gosto da área da biologia.
Márcia – Então isto ficou para outro momento? Você ainda pensa em fazer medicina?
Kelly – Com certeza, quando eu terminar esta faculdade, eu vou fazer Prouni de novo.
Márcia – Vai fazer o Enem?
Kelly Vou tentar outro curso, este eu vou fazer bem feito, mas eu vou poder prestar nova-
mente, mesmo que eu não possa me inscrever pelo Prouni, porque eu tenho 100%, eu não
posso me inscrever.
Márcia – É pelo Prouni não, o Prouni dá direito a um curso só.
Kelly – Mas eu posso tentar, como eu tenho tempo, eu posso tentar fazer outra coisa, como eu
me inscrevi agora para fazer informática, eu posso fazer inglês, eu vou fazer a prova, você
passa e eu vou fazer inglês.
Márcia – Agora me fala sobre o Programa Prouni, que opinião você tem sobre este programa?
Kelly – Então, o Prouni é bom, é bom, dá muita oportunidade para pessoas que querem, aque-
les que buscam mesmo. De 2007 até hoje, eu conheci muitos que estão no programa e se es-
forçam mesmo, que querem mesmo e procuram. O Prouni é para quem quer e para quem não
tem possibilidade de pagar uma faculdade boa.
Márcia – Se não fosse o Prouni você estaria estudando?
Kelly Não. Talvez, com um apertinho. Mas eu não sei se era em uma faculdade boa, talvez
eu fosse procurar a mais barata, uma qualidade mais barata, e tentar um desconto para ser
acessível para mim. O Prouni para mim foi tudo, porque desde sempre eu quis fazer faculda-
de, eu nunca fui aquela pessoa que não tinha objetivo, têm pessoas que querem terminar o
ensino médio.
Márcia – Você conhece pessoas assim?
Kelly – Muita gente, muita gente. Muitos jovens.
Márcia – Você tem amigos com este pensamento? Que querem só terminar o ensino médio?
Kelly – Tenho, só querem ter um diploma para ficar guardado.
Márcia – O que seus amigos pensam fazer?
Kelly Então, eles pensam em fazer o ensino médio, porque todos pedem o ensino médio
para trabalhar. Até para ser gari eles pedem o ensino médio. O que antes era suficiente ter até
a quarta ou até a oitava, agora não, agora precisa o ensino médio. Então eles ficam para
isso, só para isso que serve, só para conseguir emprego, e não pensam grande, não pensam em
ter mais conhecimento, em ver coisas novas, em continuar.
239
Márcia – Você ouviu muito, isto?
Kelly Muito, muito, muito, eu ficava revoltada, falava: “gente que futuro vocês têm? O que
vocês farão em casa? Trabalhar e ficar em casa! Sem fazer nada.
Márcia – O que é o futuro para você?
Kelly O futuro para mim é o meu, eu enxergo o meu, é terminar minha faculdade, poder
exercer aquilo que eu escolhi, e ainda tentar fazer outra, porque para mim isto não acaba, en-
quanto eu puder fazer, enquanto eu consegui, eu vou fazer, não importa. Eu conheço muita
gente assim.
Márcia – Você conhece muita gente como você?
Kelly – Muita gente.
Márcia Você conhece pessoas que tiveram a mesma oportunidade que você teve com o
Prouni?
Kelly – Conheço, a minha cunhada, ela está fazendo agora RH, também pelo Prouni, tem uma
colega dela que conseguiu uma bolsa de 50% em ciências biológicas. Ela começou fazer o
curso agora, porque não teve formação de turma e ela não pode começar. Começou agora, ela
está há meses e está querendo desistir.
Márcia – Por quê?
Kelly Porque não é o que ela achava. Ela achou que o curso é muito difícil. Ela não está
acompanhando, diz que tem muita coisa.
Márcia – E o que será que ela gostaria de fazer?
Kelly – Ela gosta de biologia.
Márcia – Mas é o que ela está fazendo.
Kelly Mas eu disse a ela que ela não tem opinião formada, eu disse: “eu acho que vonão
sabe se gosta de biologia para dar aulas, ou para exercer a profissão de bióloga mesmo, que
faz testes, estas coisas”. Eu falei para ela: “você tem de ver, você tem de ver o que você quer
de verdade. Se quer atuar fazendo testes, na área biológica mesmo, ou se quer dar aula de bio-
logia.
Márcia – Licenciatura?
Kelly – Isso, licenciatura em biologia. Ela disse que não sabe.
Márcia – Agora de tudo o que já aprendeu aqui na faculdade, em que medida tudo isto já con-
tribuiu para uma mudança de pensamento?
Kelly – Então, o pouco tempo que eu passei, eu já vi que para ser professora é preciso ter gar-
ra mesmo, porque não é fácil. Eu vejo, às vezes, os professores vêm e os alunos ficam dor
240
mindo na sala.
Márcia – Aqui na sua sala?
Kelly – Isso, dormindo literalmente.
Márcia – Por que você acha que eles dormem?
Kelly Então, pode até ser cansaço. Mas eu também me canso. Eu trabalho, eu acordo cinco
horas da manhã, chego ao trabalho às sete horas, porque da minha casa é muito longe. Todo
dia eu acordo às cinco horas, e é aquela correria. Eu venho correndo, por que não posso che-
gar atrasada, se chegar atrasada a gente volta. Então eu saio às13h ou às15h, e eu fico até as
18h esperando o início das aulas. Eu fico lendo, quer dizer, a maioria das vezes eu não leio,
porque se eu leio o meu olho começa a arder, acho que é o cansaço, porque eu não durmo
muito bem, e eu fico aqui até as 10 horas da noite, depois eu vou para casa, chego em casa
quase meia noite, vou comer, vou dormir.
Márcia – E seu filho, quem cuida dele?
Kelly – Minha sogra, minha sogra cuida dele, e o meu esposo quando chega, porque ele chega
mais cedo. Ele chega em casa às três e meia ou quatro horas. Eu chego em casa e quase não
vejo meu filho, vejo muito pouco, às vezes eu chego, ele está dormindo, às vezes eu chego ele
acorda, porque ele também ele sente falta. Ele vai fazer um ano, que eu penso assim, se eu
consegui, eu tenho de tentar. Porque Deus não dá as coisas na hora errada, foi na hora certa,
às vezes eu acho que não é a hora, mas se deu agora é porque tem de ser agora.
Márcia – O que o seu marido acha?
Kelly Então, ele no começo, dizia que não ia dar certo, que eu ia ficar muito tempo fora de
casa, mas agora ele está me dando apoio, porque ele viu em mim uma certeza. Ele achou que
eu não ia conseguir, ele falou: “você não vai conseguir, é muito cansativo, você vai desistir.”
Mas eu falei que eu não irei desistir.
Márcia – Ele tem curso superior?
Kelly – Não.
Márcia – Ele pensa em fazer?
Kelly O meu marido é muito inteligente, ele é inteligente, que ele é preguiçoso. Eu que
fico empurrando-o, eu fiz a inscrição dele para o Enem. Eu o inscrevi para o Prouni. que
ele se inscreveu em faculdades que a nota era impossível, justamente para não ganhar.
Márcia – Você acha que foi para não ganhar ou porque ele tem um sonho.
Kelly Não, foi para o ganhar. Esse ano, quando eu me inscrevi, eu falei para ele, vamos
inscrever outra vez, sua nota foi boa. A nota dele foi boa, foi mais que a minha. Eu falei in-
centivei ele a se inscrever. Ele gosta de física, ele gosta de biologia, de química, ele gosta de
241
cálculo, ele é muito inteligente. Ele pode atuar nesta área, ele pode atuar na área de desenho
industrial, ele desenha muito bem, ele tem uma mão ótima para desenho. Eu falei para ele,
tem várias faculdades que você pode escolher naquilo que você gosta.
Márcia – E o que ele fala?
Kelly Ele começa a ver. Este ano ele não conseguiu se inscrever para o Prouni. Ele foi ten-
tar se inscrever no Enem, mas ele não conseguiu e eu também não consegui. Eu tentei muitas
vezes, a gente ficou horas no computador, porque a inscrição antes era pelo correio, agora é só
pela internet. Tentei muitas vezes, como é pela internet, é muita gente tentando, quer dizer,
tem congestionamento. Eu conheço muita gente que falou que não conseguiu se inscrever.
Márcia – Você que está incentivando ele a continuar?
Kelly – Estou, porque ele está deixando passar a vida, ele já tem 26 anos.
Márcia – Ele trabalha em quê?
Kelly Ele trabalha na Telefônica, no suporte cnico do Speedy, ele é muito inteligente, e
ele está deixando a inteligência se esvair, ele está perdendo o tempo dele.
Márcia Bem, nós falamos das oportunidades que o Prouni lhe deu e que está lhe dando.
Você tem alguma crítica ao Programa, algum comentário?
Kelly Crítica? Crítica eu não tenho, eu teria crítica de outras faculdades públicas mesmo.
Assim, pelo pouco que eu vi, eu conheço muita gente, muitos se inscreveram para cursos na
USP. eles são muito exigentes. É difícil, tem que dar o máximo para poder passar. que
tem aquelas pessoas que conseguem comprar gabaritos. Eu sei, conheço pessoas que compra-
ram gabaritos, e que passaram. Eu não acho justo com aquela pessoa pobre mesmo, que não
tem como pagar, que estuda mesmo. Eu vejo, eu conheço muita gente que não tem condição
mesmo, e estuda muito para fazer o vestibular, e quando chega na hora, consegue uma nota
mais alta e não consegue o curso porque uma pessoa vem que comprou o gabarito e conseguiu
passar.
Márcia – Ou conseguiu fazer um cursinho.
Kelly Isso, também tem isso. Porque tem dinheiro, a maioria do pessoal é porque tem di-
nheiro, as pessoas que vão para a escola pública têm dinheiro, porque a USP é renomada no
mercado. A USP é bem rica, então quer dizer, as pessoas que têm dinheiro, que poderiam es-
tudar em escolas particulares, que fazem um curso preparatório bom, pagam duzentos, trezen-
tos reais num curso, num cursinho pré- vestibular, fazem vestibular, passam e pessoas que
estudam em casa mesmo não passam.
Márcia
– E essas pessoas estudam em escola privada.
242
Kelly Isso, eu também participei de um cursinho. Eu estava grávida, para não ficar parada
em casa, eu participei de um cursinho chamado Educafo, são pessoas, ou melhor, é uma fun-
dação aqui perto.
Márcia – É uma ONG?
Kelly: Isso, são pessoas que já fizeram faculdade. Eles preparam os alunos para o vestibular.
Márcia – Para qualquer aluno ou existe um segmento? Qualquer aluno. Mesmo que o nome da
fundação refira-se aos afrodescendentes, qualquer uma pessoa pode estudar lá?
Kelly – Qualquer um, não tem nada a ver.
Márcia – Precisa comprovar renda?
Kelly – Não. É totalmente grátis, você só compra a apostila, o resto é por conta deles.
Márcia – Você fez este cursinho?
Kelly – Fiz.
Márcia – Foi bom?
Kelly – Muito bom, os professores sabem o que estão fazendo, são pessoas que atuam na área.
Márcia – Em que sentido, foi bom você fazer este cursinho?
Kelly Eu vi o esforço deles, porque não é brincadeira, você não ganha nada, você está ali
porque quer ver a outra pessoa conseguir o que você conseguiu. Então eu achei muito interes-
sante. Eu achei muito bom. São pessoas que saíram da Educafo, estudaram na Educafo mes-
mo, e resolveram montar o cursinho, em lugares como em Itaguá. Lugares longes, daí eles
montaram o cursinho lá. Os professores moram muito longe, demoram três a quatro horas
para chegarem, e eles o, dão aulas, às vezes, bado e domingo, porque muita gente traba-
lha.
Márcia – Por que estas pessoas fazem isto?
Kelly Eu acho que eles fazem isto porque eles se dedicam à pessoas que se dedicam a eles,
eles querem ajudar as pessoas que querem a mesma coisa que eles quiseram.
Márcia – O que eles querem?
Kelly Os alunos ou os professores? Da parte dos universitários que o dar aulas para os
alunos, eles querem ver as pessoas no mesmo lugar que eles estão, porque eles sabem a difi-
culdade.
Márcia – Quando você diz: a gente, a quem está se referindo?
Kelly Às pessoas que não têm condição de pagar mesmo. Então eles fizeram pensando nis-
to. Eles mesmos falaram no primeiro dia, eles estavam explicando o que era o Educafo, por-
que eles estão fazendo aquilo, e eles explicam que eles passaram pela mesma situação, de não
ter um real no bolso, e precisarem estudar em casa. Mas estudar em casa não é a mesma coisa,
243
não tem uma pessoa explicando, às vezes você entende uma coisa, mas fica uma lacuna,
outra pessoa que entendeu melhor, ajuda o outro. É bem melhor, e eles fazem isto. São
pessoas que deixam a família no domingo, podiam estar no lazer, mas o, eles vão ensinar
pessoas que eles nem conhecem.
Márcia – Então isto é uma crítica importante que você faz ao acesso à escola pública. Mas eu
pergunto, em relação de haver a oportunidade de se ter uma bolsa de estudo do governo. Você
se sente discriminada aqui na faculdade por ser bolsista?
Kelly – Aqui não, mas tem gente que é discriminada.
Márcia Na Uniesp, você não se sente discriminada? Por exemplo, você não é identificada
por aluna bolsista Prouni?
Kelly – Não, aqui não. Os alunos nem sabiam. Mas como eu entrei na metade do mês, eu sen-
ti sim, diferença. Eu preciso correr atrás de muita coisa que eu não sei, muita coisa que eu não
vi, têm pessoas que têm mais habilidade. Eu sinto como se eu tivesse mais dificuldade de a-
prender. Eu me comparo com pessoas aqui que são bastante inteligentes. Sabe, demonstram
domínio do assunto.
Márcia – Você não se sente inteligente?
KellyEu sou, mas não ao ponto de demonstrar domínio no assunto. Eu sinto dificuldades, e
eu vejo pessoas que demonstram que não sentem dificuldades.
Márcia – Como você justifica sua dificuldade? Na sua formação?
Kelly – Como eu já falei, eu venho lá do Norte, Paraíba, e lá o ensino é bem baixinho mesmo,
eles não se atualizam muito.
Márcia – Então você acha que este estudo fez diferença no seu conhecimento geral?
Kelly Não fez tanta diferença, porque eu estudo em casa também. Eu tenho muitos livros,
meu primo é muito esforçado também, ele me ajudou muito lá em casa.
Márcia – Retomando, você não é identificada como aluna Prouni. Você não sente discrimina-
ção nenhuma aqui na Uniesp. Agora, você disse que conhece pessoas que são discriminadas?
Kelly – São alunos do Prouni em outras instituições de ensino, na classe que estudam tem 105
alunos.
Márcia – Qual é a faculdade?
Kelly Cruzeiro do Sul. A sala é dividida em três, são aqueles que têm 50% de descontos
conseguidos pela própria faculdade, tem aqueles que pagam 100%, que tem dinheiro para
pagar, e tem os bolsistas.
Márcia
– Mas como sabem quem é quem?
Kelly – Porque eles discriminam.
244
Márcia – Mas eles quem? Os professores ou os próprios alunos?
Kelly Os próprios alunos. Eles se separam em grupos, é como se fosse assim, quem paga a
faculdade 100%, que tem dinheiro senta na frente. Não, na verdade não é isso, na verdade os
bolsistas é que sentam na frente.
Márcia – Por quê?
Kelly Porque os bolsistas é que precisam correr atrás, porque eles sabem que podem perder
a bolsa e então precisam correr atrás.
Márcia – Então o bolsista tem de correr atrás? Você tem de correr atrás?
Kelly – Tenho. Eu tenho de manter a média se não perco a bolsa. A gente fica naquela, bolsis-
ta é assim: ele é inseguro pela parte da bolsa, mas a insegurança ajuda, porque faz você correr
atrás. Assim, quanto mais você sabe que pode perder uma coisa, mais você corre atrás: eu não
vou perder, eu vou bater o martelo. Eu não vou perder, mas quem paga 100% não está nem aí.
Márcia – Você sente isto, na Uniesp?
Kelly – Por enquanto não. E isto é muito bom, a gente tem um entrosamento maior.
Márcia – Por que você acha que aqui não existe discriminação?
Kelly Então, pelo pouco que eu vi, aqui tem pouca gente que paga 100%. A maioria é bol-
sista, bolsista mesmo de 100%, pelo Prouni, tem eu e mais uma menina, os outros alunos
têm desconto. Alguns pagam 100% mesmo, mas estes também não fazem diferença, não dis-
criminam, até agora não. Então, a minha colega, está tendo a maior dificuldade aqui, porque
os alunos daqui não ajudam, eles atrapalham, aqueles que pagam que dizem que tem dinheiro
para pagar, eles não estão nem aí, se não passarem eles fazem de novo. Bolsista não, eles es-
tão sentados na frente, querem estudar, e os outros às vezes atrapalham o desempenho dos
bolsistas. Às vezes caem no mesmo grupo, porque grupo é assim, caiu com aquela pessoa, ela
não quer fazer prejudica você. Então é assim, ela falou que teve muita dificuldade no co-
meço, porque eles faziam isto, discriminavam muito, então começaram a se agrupar bolsistas
com Prouni, para poder se desviar dos alunos pagantes 100%, que eram a maioria.
Márcia Eu acho que nós conseguimos falar de tudo, tudo o que precisávamos. Tem alguma
coisa que você gostaria de falar para encerrar?
Kelly – Não.
Márcia Então muito bem, eu vou encerrar a nossa entrevista, eu agradeço muito, foi muito
importante tudo o que você falou. Muito obrigada.
Eduardo Pires de Oliveira
26/10/2009
Eduardo Meu nome é Eduardo Pires de Oliveira, estou fazendo o quinto semestre de peda-
gogia, tenho quarenta e seis anos, um pouco tarde para pensar em uma formação universitária,
mas é um sonho que a gente sempre persegue uma possibilidade que se tornou assim com o
horizonte que se abriu um pouco mais tarde.
Márcia – Onde você estuda?
Eduardo – Eu estudo na Uniesp, na unidade da Conselheiro Crispiniano, faço licenciatura em
Pedagogia.
Márcia – Fale sobre a sua trajetória escolar. Como foi a sua formação no ensino básico. Quais
escolas você freqüentou?
Eduardo Bem eu fiz o fundamental, eu iniciei em escola da prefeitura, e depois passei para
o colégio do Estado, e efetivamente em sala de aula, dentro deste período inicial eu fui até a
sétima série, na sétima eu tive problemas de currículo.
Márcia – Como assim de currículo?
Eduardo Eu me atrapalhei um pouco com o currículo, eu entrei em atrito com os professo-
res, e por “marra” minha mesma, o que eu não posso fazer bem feito ou que venha atrapalhar
as outras pessoas, normalmente eu deixo de fazer.
Márcia – Mas o que tinha o currículo?
Eduardo Me enrosquei em Geografia. Geografia não, porque na época que eu estava cur-
sando, em 1977, 1978, a disciplina era Estudos Sociais. E essa estrutura de Estudos Sociais,
como eu já era muito crítico, eu já tinha uma visão muito crítica, pela minha própria formação
familiar.
Márcia – Por que pela própria formação familiar?
Eduardo Minha mãe é empregada doméstica, meu pai foi funcionário público até se apo-
sentar, minha mãe inclusive ainda exerce a função de doméstica.
Márcia – Qual a idade de sua mãe?
Eduardo Sessenta e quatro anos. Mas ela sempre foi totalmente engajada em movimentos
políticos, inclusive dentro deste engajamento nós nos ambientamos.
Márcia – Que tipo de movimento político? De comunidade?
Eduardo
É. Movimentos comunitários, a favor de abertura de creches, contra a carestia. Eu
nasci dentro do regime da ditadura, então falar era proibido e pensar mais ainda, então isto me
246
criou muitos problemas, porque o meu próprio desenvolvimento, quer dizer, eu fui alfabetiza-
do e a partir que eu me senti no controle com a própria ngua eu comecei a ler e não parei
nunca mais.
Márcia. Por incentivo de sua mãe?
Eduardo. Também, minha mãe me apoiava, ela me incentivava, não , ela me motivava, é, ela
me motivava muito, ela tem a terceira série primária, da época dela, e o ensino tinha uma qua-
lidade superior. A gente não consegue definir o porquê, e isto também é uma problemática
dentro do curso que eu estou seguindo, mas as matérias em si, a estrutura em si, ela formava
melhor e mais cedo. Era um pouco mais dura, mais firme a disciplina, mas em contra partida,
o ensino era um pouco melhor, ele fluía melhor.
Márcia – Por que você acredita que ele fluía melhor?
Eduardo Bom, seria bem pelo meu pai e minha mãe. Meu pai tinha a segunda série do
primário e a minha mãe a terceira. Meu pai era almoxarife da prefeitura, se aposentou nesta
função, uma pessoa muito inteligente, muito desenvolta. Meu pai escrevia muito bem, argu-
mentava muito bem. Então com este pequeno suporte de duas três séries do primário, o indi-
víduo tinha como se desenvolver. Hoje em dia, se exige nível médio até para gari. E antiga-
mente não, antigamente o indivíduo se posicionava em relação ao estudo, ele ia estudar se
estivesse com disposição, com vontade, imbuído de estar estudando. Então o fluxo era dife-
rente, aquilo fluía melhor, desenvolvia melhor porque o estudo era de interesse do próprio
aluno. Hoje em dia não, hoje em dia se apresenta como uma obrigação, uma obrigação para os
pais, uma obrigação para as crianças, fica aquela coisa forçada, o indivíduo não consegue se
situar dentro da própria necessidade dele, ou seja, o aprender a gostar da escola. Todos, pelo
menos dentro da região que eu me criei, todos os que eu conheço, os mais antigos, os da mi-
nha época, da Zona Sul de Santo Amaro (Capão Redondo), extremo sul da capital, essa de-
senvoltura era muito maior, muito maior. Até dentro da minha própria turma, eu acredito que
até por ser muito crítico, eu acabei sendo recalcitrante demais, nesse remoer as coisas, eu aca-
bei ficando um pouco estagnado, parado mesmo. Eu sempre fazia questão de ter certeza do
que estava fazendo, mas ter certeza com dez ou onze anos é uma coisa meio que estranha.
Márcia – E você acabou tendo problemas com geografia?
Eduardo – Com a professora especificamente.
Márcia – Em relação a quê?
Eduardo Para ser sincero, eu consegui meio que bloquear isso. E eu não consigo me lem-
brar o porquê, eu sei que perdi o respeito por ela.
Márcia
– Você não lembra o motivo?
247
Eduardo Não, não, o lembro o que foi que levou a discussão. Eu também estava passan-
do por uma situação um pouco crítica, familiar. Meu pai era alcoólatra, e nós estávamos no
início do tratamento dele com os alcoólatras anônimos. Eu tive crises de gastrite nervosa, e
em geral, isso acabou se acumulando e gerando uma tensão muito grande, tanto dentro da
escola, como em casa, e eu parei um pouco para voltar meu ânimo.
Márcia – Você tinha quanto anos?
Eduardo Eu estava com quatorze anos. Na minha época, a gente entrava com sete anos,
como o meu aniversário é no final de ano, então eu já comecei com oito anos e fui até os qua-
torze anos.
Márcia – Então você parou? O que você fez, e quanto tempo você ficou sem estudar?
Eduardo – Na realidade, eu fiquei este tempo todo sem estudar, parei na sétima, depois eu fiz
supletivo, mas já velho, eu tinha vinte e três para vinte e quatro anos, eu fiz o supletivo.
Márcia – E o que você fez dos quatorze até os vinte e três anos?
Eduardo – Vivi. Eu vivi. Eu fui estudar a vida. Eu tive uma crise existencial. Eu era o segun-
do filho. O meu irmão era estruturalmente um trabalhador, usando um termo que eu aprendi
no curso de pedagogia, ele vivia na fase psicomotora. Tudo nele era fazer, ele aprendia fazen-
do coisas que o individuo comum precisa estudar uma vida e às vezes não aprende. Mas ele
não conseguia sentar atrás de uma carteira escolar, de jeito nenhum. Este sistema não funcio-
nava com ele. É uma coisa que o angustiava, ao contrário, eu era o estudante nato, aquele sis-
tema eu conseguia aprender, assimilar, trabalhar com aquilo, inclusive eu tive muitas rusgas
com o meu pai, por causa disso. Porque do mesmo jeito que o meu irmão aprendia fazendo,
ele não conseguia verbalizar isso. Ele conseguia fazer qualquer coisa, mas não verbalizava
diante do meu pai. Era uma coisa, a autoridade que o meu pai exercia sobre ele. Num dava
posição, e eu por ter desenvolvido mais pelo lado intelectual, eu não pensava , criticava,
como falava, não tinha papas na língua. Então o meu irmão era submisso, resignado e eu era o
crítico, revoltado, duas personalidades completamente diferentes. Foi nessa crise existencial
que eu entrei também em função da escola, pois a escola era muito carente, como as maiorias
das escolas da periferia as são, longe da carência que outras escolas tiveram no mesmo lugar.
As pessoas se desenvolveram longe da fartura que podem ter em relação aquilo hoje, e não ser
aproveitado. Mas eu precisava de mais, eu precisava de um laboratório, minha diversão era
ficar dentro de uma biblioteca, lendo, não tinha noção de pesquisa, de elaboração de pesquisa,
essas coisas técnicas não eram ensinadas no meu tempo de escola. Quando pediam uma pes-
quisa para mim, eu me enterrava dentro de uma biblioteca o dia inteiro, dois, três dias, às ve
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zes uma semana, para construir aquilo que eu imaginava e aquilo que eu pensava que o pro-
fessor merecia de mim.
Márcia – Neste período então você estava envolvido com você mesmo?
Eduardo É, quando eu entrei em crise existencial, eu entrei em função da morte, de elabo-
rar a morte, não a morte acontecida, ocorrida, mas a morte provável, possível. O que eu farei
sem o meu pai e a minha mãe? Eu não sei trabalhar, eu não sei fazer nada. Eu tinha uma cons-
tituição física muito frágil, pouco disposto para trabalhos físicos, porque o meu pai exigia
muito do meu irmão, em contra partida, ele me deixava de lado. Então, enquanto o meu irmão
aprendia fazendo, eu aprendia olhando. Não tinha o mesmo desempenho que ele, eu gastava
mais tempo raciocinando para levar menos tempo para fazer. Era um sistema que o meu pai
não acreditava muito, não dava muita credibilidade para ele, mas sempre funcionou para mim.
Pensar mais para fazer menos besteira, sempre foi a minha política. Aí, dentro desta crise e-
xistencial, eu pensava, meu pai vai morrer, minha mãe vai morrer, eu vou fazer o que da vida.
Eu não sei fazer nada. Então eu resolvi por mim mesmo aprender, aprender levando em con-
sideração o exemplo de meu irmão, se ele consegue fazer tudo só vendo, se ele consegue, eu
também consigo, se eu conseguir aprender tudo o que ele aprendeu , que o meu pai ensinou,
olhando, eu aprendo qualquer coisa, eu faço qualquer coisa, que eu tenho de testar, preciso
saber se eu posso fazer qualquer coisa mesmo, e aí eu comecei.
Márcia – A fazer o quê?
Eduardo Tudo, comecei a trabalhar. Passei para o horário noturno. O sistema de crise que
vai se estendo da sexta para a sétimas série, daí eu comecei a trabalhar como office –boy, tra-
balhar como office –boy é controlar determinadas situações que pressupõe um novo desafio,
automático. Então, quanto mais rápido eu aprendo uma função mais rápido eu preciso de ou-
tro desafio. Então eu aprendi datilografia, expedição, arquivo, tudo, todo o manuseio de um
escritório, assim coisa de um ano, um ano e meio eu aprendi na prática, sempre na prática,
sempre curioso, sempre perguntando. E as pessoas têm ciúmes do conhecimento que têm, e se
preocupam muito com a função deles, é como eu havia dito, qualquer coisa que eu possa
fazer, que eu possa prejudicar alguém. Ás vezes, minha mãe me lembra de coisas que eu nem
me lembrava. Eu abro mão daquela situação em função de outras necessidades que a pessoa
tem, então na minha primeira carteira de trabalho, eu tinha um novo registro a cada três me-
ses, se dava um pequeno atrito, se a minha posição punha em risco o emprego de alguém e
aquela pessoa precisava do emprego mais do que eu, eu saía. Eu tinha aprendido o que eu
precisava, na verdade, não existia uma ambição em torno daquela função, e não existe ainda,
não é uma coisa que eu tenha nascido com ela. Meu pai me criticava muito por isso, ele falava
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você não tem ambição. Eu dizia eu tenho, mas a minha ambição é um pouquinho maior,
eu ambiciono coisas que o dinheiro, que o mundo que eu vivo não pode me oferecer. Eu gosto
do conhecimento, conhecimento pelo conhecimento. Eu com vinte anos carregava a alcu-
nha de cientista, em muitas situações falavam pergunta para o sabe tudo. O sabe tudo
sabe. Eu ainda carrego um pouco desta alcunha, é um pouco pejorativo e ao mesmo tempo é
um afago no ego. Então o conhecer não era uma opção, é uma filosofia de vida, me interessa
saber, eu aprendo mais pelo mérito da questão do que qualquer outra coisa que envolva esta
questão. Ah não, este vai ser promovido, aquele vai ser promovido, não interessa o cargo, me
interessa o mérito da questão em si, quem é que tem razão dentro da questão. Em que o que
nós estamos fazendo juntos vai colaborar para isto que nós estamos fazendo flua direito. Eu
não faço questão nenhuma de seu cargo, e às vezes as pessoas não acreditam, às vezes não, as
pessoas não acreditam. O sistema ensina para as pessoas que ninguém pode ser desinteressa-
do. Então você não pode trabalhar solidariamente com alguém, porque a pessoa sempre vai
desconfiar que está tendo interesse de alguma coisa, de qualquer coisa. Ela nunca vai acreditar
que você está trabalhando pelo prazer de trabalhar, conhecendo pelo prazer de conhecer.
Então as pessoas que têm o conhecimento se apropriam daquele conhecimento e vão soltando
aos poucos, em doses homeopáticas, exercendo o poder que a coisa tem, o controle que se
pode exercer com aquilo.
Márcia – Retornando, com vinte anos você decidiu fazer o supletivo.
Eduardo Com vinte anos, não. Quando eu fiz o supletivo eu estava saindo do exército. É
dos quatorze aos dezessete anos, dezoito anos, eu passei vivendo, vivendo, vivendo intensa-
mente. Socialmente, vendo tudo, tudo que pode ser visto em uma cidade como São Paulo. Eu
dormi em algumas calçadas desta cidade, por pura opção, não que a situação me obrigasse,
mas porque eu não tinha um lugar que eu quisesse estar. Eu não queria estar em casa, eu não
podia estar na escola, o tinha como ter um serviço que me sustentasse a vida, fazia as mi-
nhas contas, todas as minhas contas davam em nada, eu vou gastar tanto aqui, tanto ali, tanto
ali, tanto ali, eu vou trabalhar tanto, mas para que, em função do quê? Era mais fácil eu traba-
lhar onde eu estivesse por um prato de comida, pois eu vou me magoar menos do que esta
situação de competição. A ambição das pessoas era uma coisa que me magoava, ainda me
magoa muito. A pessoa o desrespeita em função desta ambição, então o que era uma filosofia
de vida acabou-se tornando uma pedra fundamental, um modo de vida que eu não tenho mais
como fugir dele. Ás vezes, eu lamento quando as pessoas não me entendem , mas também fui
aprendendo , segurando minha revolta em relação ao sistema, não que ela não deva existir,
mas como ela deva se manifestar. E foi o próprio conhecimento, sempre o conhecimento, co
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nhecer pessoas, fazer amigos, viver intensamente mesmo que aquilo lhe cause dor, não ter
medo da dor, junto com a perda do medo da dor eu perdi o medo da morte que me levou adi-
ante. Não que eu abuse dela, eu abuso da vida, mas a morte, o meu problema inicial, se tornou
em uma fase de solução, ou seja, o medo que eu tinha de perder o meu pai e a minha mãe, se
tornou apenas a espera da dor egoísta que eu vou sentir por mim mesmo. Eu vou perder qual-
quer um deles, não mais uma coisa desesperante, não uma coisa que vai me desestruturar.
Ainda vivi uma vida até acontecer isto daí com o meu pai, e vou tentando voltar para a escola.
Márcia – Você vai tentando voltar, como?
Eduardo Tentando sabe, você se propõe a fazer, mas voltar à escola normal eu não conse-
gui mais, dentro desta época não. Na minha adolescência, quando eu saí da escola, encerrou,
encerrou. Não consegui mais voltar, não consegui esquecer, ela ficou ali, em estado latente,
mas foi uma soma. Não posso dizer que foi currículo, foi uma soma muito grande, uma
coisa muito forte, tanto no meu embate com a vida, quanto dos desafios que a vida estava me
oferecendo. Então eu fiz um bolo só, não consegui resolver, e optei por uma solução que foi
conhecer a vida. Conheci a vida e com dezessete, dezoito eu já estava formado.
Márcia – Formado em quê?
Eduardo Garçom. De uma hora para outra eu resolvi, nunca tinha feito nada para terminar,
por causa desta coisa da não ambição de não entrar em atrito. Eu não entrava em nada que
tinha uma briga. Nada, nada. Se você precisa mais do que eu, então você fica e eu vou. Não
vamos perder nossa amizade por causa disso. Se preocupar com a vida por causa disso, eu não
queria me preocupar com nada. Então eu fiquei nessa estrutura por um bom tempo, e um dia
passando pela Liberdade, nesse vai e vem, passei a mão num folheto do Senac divulgando um
curso de garçom. Eu disse - eu faço isso, eu sei fazer isso, e o que eu não sei eu aprendo. Fui
da Liberdade até aqui na Francisco Matarazzo, aqui do outro lado, na zona oeste. Vim, fiz
minha inscrição porque precisava da autorização dos pais, pois eu era menor ainda, então le-
vei o papel para minha mãe assinar, e pedi uma ajuda para condução. Efetivamente não con-
versei de depender, não depender era precisar, porque a gente nunca teve o suficiente para
depender de alguém em casa. Então, era a condução no primeiro mês, até vir a ajuda de custo
do curso, eram quatro meses de curso. Nesses quatro meses, viajei para Goiânia umas quatro
ou cinco vezes.
Márcia – Tudo por conta do curso?
Eduardo Não, não em função do curso por ser garçom. Eu me destaquei dentro da turma, e
eu ia a eventos específicos, onde precisava de um certo domínio. Eu era solicitado para esse
tipo de serviço, ganhava mais nesses finais de semana do que no meu curso todo. Então fiz
251
um nome, uma estrutura de vida em torno desse curso, e isso foi por um período de quatro
meses, então eu fui convidado para trabalhar em Goiânia. Saí na última quinzena e no ultimo
mês o curso. Eu fiz minha última arte de menino.
Márcia – O que você fez?
Eduardo Eu sumi, desapareci. Eu fui segunda feira para trabalhar na Francisco Matarazzo.
Nós tínhamos uma parte teórica e uma parte prática, exercidas todas no mesmo dia. Então,
nós servíamos o almoço dentro do restaurante da escola, e até esse período do almoço, nós
tínhamos a estrutura prática, ou melhor, teórica. Depois dessa estrutura teórica, eu simples-
mente desci pronto para trabalhar e falei - não, não quero não. Avisa para um dos meus
amigos que eu não estou muito bem. A palavra amigo é muito forte, eu gosto de fazê-los, mas
são poucos que considero nessa situação, e um dos meus poucos amigos do curso, o mais
chegado mesmo, foi para quem eu avisei, e eu disse - avisa que eu não estou muito bem, e eu
parei na porta do elevador, não desci , voltei para o vestiário, troquei de roupa, peguei minhas
coisas e fui de carona para Goiânia.
Márcia – Você foi para Goiânia? Você tinha sido convidado para trabalhar mesmo sem termi-
nar o curso?
Eduardo É, sem terminar. Não tinha terminado mesmo, eu estava na fase final mesmo. O
curso encerraria no dia quinze de agosto, e isso era finalzinho de outubro, era igual tensão
pré-menstrual.
Márcia – Mas aí você foi trabalhar em Goiânia. Você já tinha um emprego prometido?
Eduardo Não, não. Fui na "orelhada" mesmo, na louca. Porque isso eram eventos específi-
cos que tinham por lá, "fui na doida". Cheguei lá, sai daqui na segunda feira e cheguei na
quarta feira. Na quinta feira eu estava empregado, na sexta eu tinha recebido um convite
pra assumir uma chopperia, no centro de Goiânia.
Márcia – Aceitou?
Eduardo Aceitei. Voltei para casa em São Paulo, apanhei da minha mãe, foi a última vez
que apanhei da minha mãe. Ficou um pedaço da cara assim, sem nascer barba por muitos a-
nos.
Márcia – É mesmo?
Eduardo Minha mãe me pediu para sentar, eu era pequeno. Meu pai falou muito antes co-
migo, pelo telefone, porque eu voltei na segunda feira seguinte, já com tudo isso pronto,
com o convite feito e aceito. A idéia era terminar o curso e voltar para Goiânia. Meu pai esta-
va muito tranqüilo, eu deitado no hall de entrada da escola, umas seis e meia da manhã, mais
ou menos. Meu pai telefonou para e me disseram - olha seu pai está para falar com você.
252
Meu pai muito, muito calmo. Isso queria dizer que minha mãe estava muito nervosa, e minha
mãe raramente ficava nervosa. Minha mãe tinha se habituado com as minhas aventuras, e
se incomodar comigo após o terceiro dia. Até três dias, eu ficava na rua e ela não se inco-
modava. Ela sempre confiava muito no meu juízo, palavra que eu uso muito, mas não sei o
que significa. Então esse passo que eu dei nesses quatro meses foram fundamentais na minha
estrutura, na minha forma de ser na minha família. Uma porque foi decisão minha, e duas
porque eu fui até o fim, e a terceira ficou mais complicada, porque eu não pude dar continui-
dade a esta profissão, porque fui convocado para o Exercito. Convocado para o exército, por
ser uma formação estruturada em cima de conhecimento, condicionamento e várias outras
coisas que eu aprendi dentro da estrutura do curso que eu estou fazendo, aquilo ali me encan-
tava. Eu lidava com animai, lidava com cavalos. Então, daquilo ali todas as minhas fantasias
de criança, de menino, como eu sempre gostei de filmes, não de soldados, mas de academia,
então academia para mim, a palavra academia para mim, significava espaço onde eu pudesse
aprender e aprender o que se gosta e o que não se gosta também. Mas estruturalmente apren-
der. Então assistia muito filme de academia de formação, dos Estados Unidos, as mais im-
portantes, muitos filmes sobre colégios, colégios antigos, formas de ensinar, formas de apren-
der. E dentro disto daí, a primeira coisa que me apareceu é você ser para o mundo aquilo que
gostaria de ter tido durante as minhas diversas fases. Por exemplo, dentro do colégio eu pre-
tendo ser um professor que eu gostaria de ter tido deste jeito, ou me fundamentar dentro da-
queles que eu tive e que gostei, que souberam me incentivar dentro daquilo, dentro daquela
estrutura de ensino. Não tivéssemos estruturas de ensino, porque o ensino dentro do exército é
totalmente técnico. Então eu sou perito em muitas coisas, eu não tenho diploma de nada, mas
tenho formação, assim em medidas de segurança, segurança assim de três presidentes, o vice
que assumiu, o general que saiu e o falecido.
Márcia – Como assim?
Eduardo Eu estava lá, no meio da transição, na transição do governo do Brasil. Eu estava
dentro do exército, eu entrei no governo militar e sai dentro do governo do Sarney. Era uma
estrutura interessante, porque tudo aquilo que eu assisti, que eu vi, aquilo que eu tentei formar
da minha personalidade, vinculado diretamente a esta estrutura da não ambição. Então, pala-
vra feia, todo mundo briga. Vocação, vocação não é para uma profissão. Vocação é pela for-
ma de se investir na profissão, algumas pessoas precisam de vocação. Militar é um, policial é
outro, um médico, médicos sanitaristas, que são termos que eles usam mais, mas é o médico
que atende o público, que é vinculado ao trabalho com o público, direto, não pela função em
si, mas pelos benefícios que aquela função vai trazer para alguém. Então, algumas têm de ser
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estruturadas dentro de uma vocação, uma vocação para ser, se não tem vocação para ser não
faz, não faz e se fizer faz mal feito, ou seja, presta um mau serviço. A história do poder, da
ambição. Eu acredito que o poder corrompe muito mais, o poder corrompe muito mais do que
o dinheiro, muito mais. O poder corrompe em qualquer nível, ele não depende da capacidade
que o indivíduo tem de mexer com o dinheiro, se ele tiver poder ele um jeito, de melhorar
numa situação, ou piorar uma situação, muito rapidamente, e também se perder em seus ide-
ais. Eu fui me estruturando dentro do exército, a minha válvula de escape era trabalhar com os
animais, uma coisa que eu fiz muito bem, bem o suficiente para sair de e exercer essa fun-
ção por mais de um ano.
Márcia – Em que função? Como tratador de animais?
Eduardo – Trabalhar com cavalos. Na realidade, o cavalo é um bicho muito simbiótico com o
ser humano, onde você for, você vai descobrir que o ser humano passou por cima de um lom-
bo de um cavalo, de um eqüino de qualquer espécie, para poder chegar aonde ele chegou. Faz
parte da história do ser humano, da história da humanidade, é uma pretensão de um estudo
mais para frente.
Márcia – É a sua tese.
Eduardo – É. É uma tese bem mais lá para frente. Até lá eu vou ter de aprender muito.
Márcia – Mas aí, você terminou o exército?
Eduardo Terminei o exército e retornei para São Paulo, trabalhava em um meio muito po-
deroso, muito poderoso mesmo, era uma coisa acima, em nível de fechado, mais fechado que
a hípica, mais fechado que o Jóquei Clube, muito restrito, cavalos muito caros, e pessoas entre
si muito selecionadas, só Deus sabe. Como eu nunca fui chegado em ambição, a estrutura de
poder não me interessava, me interessava ali, as pessoas, as crianças, ali eu me estruturei co-
mo professor.
Márcia – Professor de quê?
Eduardo. Eu sou professor de equitação. E o gosto, o gosto de formar alguém, o gosto de
ensinar para alguém alguma coisa. Ali eu tive noção de tudo o que eu havia feito no exército,
do que eu tinha feito na vida, o tanto que eu havia aprendido, o tanto que eu havia ensinado. E
ali veio uma história que eu vim confirmar depois, confirmar não, foi reafirmado durante o
curso, aprender e ensinar sempre. Tudo está envolvido na educação, em tudo a gente se educa.
E também era interessante, por exemplo, eu trabalhei sempre com classes, bem, esta divisão
não existe para mim, mas como eu preciso me situar, então que seja classe, com classes infe-
riores, com menos possibilidades do que a minha, menos, menos. Eu posso me considerar
privilegiado, nunca passei fome, a não ser por opção. Eu posso não ter comido caviar, mas
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nunca faltou uma mortadela, um pão quente, um cafezinho para tomar, comida na mesa. Meu
pai sempre me ensinou que o trabalho lhe proporciona isto e qualquer nível de trabalho. Então
eu nunca passei necessidade deste gênero, e dentro desta estrutura, eu trabalhava com pes-
soas infinitamente superiores, financeiramente, economicamente, que a minha, e aquilo não
me assustava, não me punha medo nem barreiras. Eu não olhava para as pessoas, nem cobrava
das pessoas aquilo que eu ensinava. Isto me colocou em papos de aranha com todos os mes-
tres de equitação, dentro desta escola.
Márcia – Você não cobrava pelas aulas?
Eduardo. É. O conhecimento nunca teve um preço para mim.
Márcia. Mas os alunos pagavam?
Eduardo – Normalmente sim.
Márcia – Por conta deles. Não que você colocasse um valor?
Eduardo. Para mim não, eles pagariam se eles perguntassem para qualquer um dos outros,
aquilo seria uma consulta com psicólogo, quarenta minutos, uma hora, psicoterapeuta, assim
que funciona também dentro desta função. E eu não me incomodava com nada, se alguém
tocasse no meu ombro e me perguntasse alguma coisa, eu respondia automaticamente, então o
que eu fazia? Eu tornava vulgar um conhecimento que deveria ser restrito, pois para eles de-
veria ser restrito. Era uma questão de poder, e para mim, o poder estava no transmitir. Então
isto me colocou filosoficamente no sentido contrário dos indivíduos que trabalhavam comigo.
Eu com quatro anos de exército, mais uns cinco meses de função dentro deste círculo fechado,
dizem questão de escolas de equitação, alguns com séculos de existência, Colognia, Versa-
lhes, e mais uma que tem, Marselles e Madrid, que são escolas estruturadas em cima de equi-
tação.
Márcia – Escolas de equitação.
Eduardo. De equitação. que a escola de equitação tem as mesmas simbologias que tem
uma escola normal. Era em torno dela que se desenvolviam as escolas antigamente.
Márcia – Eu não entendi.
Eduardo. A formação, o caráter. A escola sempre começava em torno da cavalaria. Ela se
estruturava em torno da cavalaria, porque era uma condição de nobreza, e eu queria vulgarizar
isto, dentro de uma escola em que todo mundo era aristocrata, tinha descendência aristocráti-
ca, de tudo quanto é lugar do mundo. Conheci pessoas muito importantes, digamos assim.
Fiz-me respeitar por muitas pessoas que eu aprendi a respeitar dentro do mundo delas, ou seja,
como pessoas não de sete cabeças, mas pessoas como nós que brigam, discutem, se posicio-
nam, porque tem uma estrutura bem formada para isso. Então já existia um debate, eu
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estava li com vinte e três, anos mais ou menos. Finalzinho de mil novecentos e oitenta e três,
eu conheci a minha primeira esposa, o conhecê-la limitou a possibilidade que eu tinha. Não
que ela tenha me limitado. Eu me limitei, porque eu fui convidado para ir para a França, para
ser um cavalariço, lá, que para mim seria demais. Mas alguma coisa me dizia que não era o
momento. Eu ainda não conhecia suficientemente o meu país, o meu mundo, para poder me
aventurar em outros lugares e, eu ia misturar muitas coisas. Optei por não ir e também em
função, na época, de minha namorada, e sosseguei meu facho por aqui. Primeiro passo, que
eu não vou para lugar nenhum, eu acabei de segurar a carreira que eu tinha me colocado e
tinha me posicionado com quatorze anos, que estava começando a parar ali. Ela seguiu vários
rumos, mas em nenhum momento ela parou para voltar, repensar aquilo que eu deixei de fa-
zer. Ali foi o momento de repensar, e pensar em voltar para a escola. Quando eu saí da escola,
eu estava frequentando a sétima série, então eu comecei o supletivo na sétima série. O suple-
tivo era um semestre para cada ano, ou seja, em dois anos eu concluiria o Ensino Fundamen-
tal. Então eu entrei no primeiro semestre do segundo ano, para eu fazer a minha sétima série,
noturno, e neste mesmo ano eu fiz a o exame de eliminação de matéria. Quando eu fui pro-
movido para a oitava série, que seria a quarta série do ginásio na minha época, eu tinha
eliminado todas as matérias. Eu eliminei todas as matérias com uma prova só, e com notas
boas, exatamente por causa de humanas. Matemática é uma matéria que você tem que traba-
lhar com ela se não você enferruja, mas humanas não, humanas continua sendo para mim uma
coisa fácil, e como eu lia muito, eliminei e consequentemente, eu não fiz a oitava série, fui
direto para o ensino Médio, e no ano seguinte eu me matriculei na Roberto Conte, Instituto
Educacional Roberto Conte, uma instituição de ensino do Estado, que ainda existe na zona
Sul, que tinha o nome de Instituto, não era o que fora outrora, mas ainda era o melhor
lugar para fazer o ensino médio. Fiz o "vestibulinho", entrei e aí aconteceu a greve mais longa
dos professores do Estado que eu tenho notícia, isto foi em mil novecentos e oitenta e oito.
Consequentemente, eu perdi um pouco em algumas matérias e ganhei em outras. Tinham
alguns professores muito importantes que não participaram da greve, naquela época existia
a condição de se ter trinta por cento funcionando, e professores antigos de cargo, com mais
idade, com diferentes posições definidas, que não eram contrários a greve, mas não participa-
ram, posição que eu também ocupava em algumas situações que eu vivi, apoio cem por cento
a greve, mas não participo. Eu não acredito, eu não acreditava. Então eu peguei uma professo-
ra de matemática e uma de química. Então os três meses que praticamente durou a greve, eu
“esmerilhei” o que me fazia falta. Faltava no meu currículo: laboratório em que eu pudesse, os
professores utilizam o termo mastigar, mastigar, faltava alguém com que eu pudesse promo
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ver um diálogo, que me fizessem aprender aquilo que eu pretendia ensinar. Eu via ali um bom
espaço, apesar de que as duas professoras foram muito duras na disciplina, era química e ma-
temática, mas aquilo me deu sustentação justamente para prestar o SESU do Ensino Médio.
Eu fiz o exame de suplência do ensino médio, e eliminei cinco matérias, ficaram três. Eu fi-
quei retido em português, ciências e inglês. Estruturei-me, no ano seguinte fui fazer. Mas
eles desmembraram ciências, então foi matemática, física, química e biologia, aumentou então
o número de matérias, tanto é que eu fiquei enroscado em matemática por mais dez anos, eu
só consegui passar em matemática, quando se fundiu novamente em ciências.
Márcia – Como mais dez anos? Quando você se formou?
Eduardo – Efetivamente eu fiquei oitenta e oito, oitenta e nove e noventa. Em mil novecentos
e noventa, meu filho nasceu. Eu me casei com aquela moça que eu comecei a namorar em
oitenta e seis, e em noventa meu filho nasceu. restava matemática, porque quando elas
se desmembraram, eu fui eliminando ano a ano. Em alguns anos tinham dois exames e outros
um só. Eu eliminei inglês e física no primeiro ano, mais um ano, eu me inscrevi para as maté-
rias de novo, e eliminei química e biologia e fiquei enroscado em matemática, matemática eu
prestei dez anos seguidos. Não consegui passar dos quatro pontos e meio, justamente por não
ter feito a oitava série, porque a oitava série me base para entrar no ensino médio, aquela
base eu não tinha. Durante todo esse tempo de noventa a noventa e dois, eu entrei para a polí-
cia. Já tinha casado, já tinha separado, e a trajetória foi esta, voltar para a escola e fazer suple-
tivo. Mas efetivamente em sala de aula, eu voltei no ensino superior, para assumir todas as
matérias, vou assimilar a rotina, as exigências, os desafios.
Márcia – E para você é um grande desafio?
Eduardo É, voltei mesmo no curso superior, muito pelas minhas posições, e minhas po-
sições me custaram muito caro, sustenta-las durante a vida, me custaram muito caro. Muitas
possibilidades que eu teria na vida eu perdi, em função de não ter ambição suficiente para
refrear os meus posicionamentos. Nunca tentei impô-los, mas também nunca deixei de expor,
e nem nunca permiti que o meu ponto de vista se submetesse a nada. Conciliar sim, submeter
nunca, nem submeter ninguém. Então, estes questionamentos me complicaram dentro daquela
escola de equitação, com quem eu me embati direto com a tradição. Para ser sincero, na equi-
tação, eu me senti como Paulo Freire, a minha proposta era uma coisa inaceitável, é como
você romper uma tradição, não tem como, não existe como, não tem porquê. A fundamenta-
ção da minha pedagogia é para isso.
Márcia
– Romper?
257
Eduardo Não. Dentro deste sistema, onde eu não consegui fazer isto, um dia retornar para
ele.
Márcia. Na equitação? É seu projeto?
Eduardo. Minha aposentadoria.
Márcia. Você acha que vai ter espaço?
Eduardo. É uma coisa cara, eu não quero espaço, eu não ambiciono muita coisa.
Márcia – Eu digo espaço para ensinar. Você acha que vai ser bem vindo para ensinar?
Eduardo Não dentro daquele sistema, o que eu quero propor, é justamente levar isto daí
para quem possa usufruir mais do que se possa oferecer. Então ensinar, para uma criança sim-
ples, montar. Eu tive o prazer de ver alguém, quase que com a mesma formação que eu parti-
cipar de uma olimpíada. Eu faço parte da formação de um dos campões olímpicos, olhar para
uma pessoa e vê-la lá, é muito gratificante. Nós éramos meninos, vinte e dois, vinte e três a-
nos. Ele olhava para mim assim, ele bebia o que eu falava e eu comia o que ele fazia. Sempre
os dois. Nós estávamos sempre juntos, não importava quantos metros tinha entre a gente. A
gente se identificava e eu me identificava com muitos dos meninos que estavam lá, e é onde,
apesar de eu ter vivido uma situação que nos iguala também, mas é onde a gente se sente i-
gual, quando as crianças que estão com a gente se encontram. Elas não vêem diferença, elas
não enxergam diferenças. Elas nos enxergam como iguais, ambos e todos. Então é essa forma
que eu quero levar para a minha prática, que eu quero manter na minha prática, e levar para
tudo, para equitação, para a sala de aula.
Márcia – Então, quando você prestou o Enem, você já tinha pretensão para área da educação?
Eduardo – Literalmente, diretamente, não.
Márcia – Diretamente, não?
Eduardo – Não, a palavra pedagogia não existia na minha vida, no meu vocabulário.
Márcia – Então quando você presta o Enem, você pretende que curso superior?
Eduardo Mas a graduação, quando eu pretendi uma graduação, digamos que eu estudei
para saber o que é pedagogia, o ela me oferecia, e até ela em si, como profissão, tem como eu
trabalhar, porque normalmente eu estudo. Mas retomando, dentro da equitação eu aprendi que
a melhor coisa que tem é você estudar aquilo que você faz, então, para eu fazer qualquer outra
graduação eu tinha que estar trabalhando dentro de uma escola, dentro daquele ambiente, den-
tro daquela estrutura, para eu não perder o contato com ela. Eu acredito que a minha próxima
graduação será filosofia, se não for filosofia, vai ser uma graduação dentro da área, ou seja,
uma estruturação para que eu dê um passo adiante, gradualmente, graduar as coisas. Aprendi a
graduar as coisas, então enquanto o mundo se atropela, eu vou como uma tartaruga,
258
disputando a corrida com o coelho, eu vou fazer sempre no meu ritmo. Então, dentro deste
ritmo eu fui me educando a vida inteira e trabalhando em torno da educação, na hora de
escolher eu me senti um adolescente.
Márcia – Então, explica esta questão do Enem, como você chega ao Enem?
Eduardo. Bom, por um descuido da vida, o que algumas pessoas chamam de injustiça, outros
de fatalidade, todo mundo um monte de nome, eu dou o nome de vida, então eu continuo
vivendo, do jeito que a gente tinha de viver, umas coisas a gente sofre, outras não, e num des-
tes percursos da vida, quando eu saí da polícia, eu saí da situação oposta. Eu saí de policial
para ser um preso. Então, eu convivia com o embate, na minha filosofia de vida, dentro
da polícia nove anos, ou seja, não é porque eu estava na situação de ter o poder que este
poder conseguia me corromper. A briga nem era com o sistema, era comigo mesmo, então
onde você consegue sustentar os seus ideais, independente da função que você está ocupando,
e eu posso dizer que consegui. O meu ponto de vista era humanista na função de polícia,
num dado momento me vejo como preso, uma coisa do outro lado do sistema, do outro lado
da parede, do outro lado da moeda, ou qualquer outra coisa que possa estabelecer esta dife-
rença, se bem que dentro de uma eu descobri que todas as situações são prisões. Eu aprendi
que depende como você as encara, se você encarar com liberdade você não é livre como
você faz os outros livres, se vose prender dentro dela, até sapateiro consegue prender os
outros. Dentro da sistemática que ele se prende, que ele se impõe e impõe aos outros. Então,
desta estrutura eu acabei um ano e um mês dentro de um distrito policial, da zona leste. Qua-
tro anos dentro de uma penitenciária estadual em Taubaté, e como qualquer animal em qual-
quer outra situação, e sendo o ser humano auto adaptável e com instinto de sobrevivência
enorme, o meu instinto era de sobreviver, mais do que sobreviver o meu corpo, tinha de so-
breviver minha mente. E não tem coisa melhor para fazer quando não se tem nada para fazer,
do que ler. Um dos meus grandes prazeres da vida, um pouco de silêncio, em um lugar que eu
possa me encostar e ler, e nós tínhamos uma biblioteca com um acervo muito grande e rico.
Eu tendi um pouco para o direito, quando eu não tinha o que fazer, queriam-me “aloprar” que
estava preso. Eu estudava o meu caso, e estudando o meu caso eu estudava direito por osmo-
se, ou seja, para mim, não bastava alguém vir me dizer que baseado nisto daqui você tem di-
reito, não é isso, meu português não permitia isso. Eu tinha de interpretar aquilo e achar que
eu tinha, se eu achasse que não, eu até concordaria, mas se não fosse essa vírgula, esse ponto,
que isso um entendimento diferente, se uma possibilidade de dois entendimentos, pode
ser que eu tenha pode ser que não. Então, eu vou aproveitar o meu tempo. É uma coisa massa-
crante ainda, estudar direito, falar sobre direito, estudar sobre leis. A estrutura, acho que, é a
259
pior coisa que o sistema tem, porque é onde é mais hipócrita. O sistema no geral, a pessoa diz
assim, você passou por uma injustiça grande, levando a vida que eu vivia, estruturada em ci-
ma de direitos como ela era. A possibilidade que eu podia pensar que aquilo poderia acontecer
comigo, era nenhuma. Se aconteceu comigo, pode acontecer com qualquer um, e ao longo
deste tempo eu fui conhecendo diversas pessoas inocentes e “ferradas” dentro deste sistema,
porque se eu sou, eu tenho por obrigação racionalmente acreditar que existem outras pessoas
que podem ser, como conhecer a alma humana? Esta foi a minha escola de quatro anos, não
aquilo que eu fiz a vida toda, de que todo ser humano é meu amigo até que se prove o con-
trário. Quebrei muito a cara, tive muita desilusão, sofri muitas desilusões neste meio do cami-
nho, desilusões não com o que as pessoas tinham para oferecer, mas sim, com que eu esperava
delas. Então eu aprendi a adequar as minhas expectativas, estas expectativas bem adequadas
dentro da penitenciária me ajudaram muito, dentro deste sistema, como eu nunca consegui
fazer nada sem mudar alguma coisa.
Márcia – Você já tinha terminado o ensino médio?
Eduardo Não tinha terminado ainda. Eu estava pendurado em matemática ainda. Quando
eu entrei na polícia, o fato de eu estar na polícia, aquilo ocupa muito tempo.
Márcia – Você tinha outras prioridades?
Eduardo Não. Mas matemática era uma coisa que não adiantava estudar. O único jeito de
estudar matemática era tendo um cérebro para eu devorar. Se não tivesse um cérebro para eu
devorar, não tem jeito, porque matemática é mais conceito do que elaboração que você possa
fazer em qualquer aula, mas é conceito mesmo. Se eu apreender o conceito, qualquer coisa
que você ensinar a partir daquele conceito eu aprendo, agora se eu não apreender aquele con-
ceito, não adianta. Matemática não é difícil, o que é difícil é um professor que ensine bem.
Não é uma prática corrente dentro do ensino da matemática.
Márcia – É lá então, que você resolve terminar a matemática?
Eduardo Eu cheguei, já estava com um ano perdido, um ano perdido, que vai ser à base do
meu TCC, sobre o tempo que o indivíduo perde enquanto espera uma decisão judicial. Eu já
tinha perdido um ano e um mês, não para se fazer nada, absolutamente nada, onde o
o ócio físico, mas o espaço psicológico que o indivíduo tem. Ele precisa ser ocupado com
alguma coisa, é como prender dentro de uma gaiola para dez ratos, você prender vinte. Todos
eles podem ser castrados, nenhum deles se reproduz, não aumenta a população, tem comida
para todos, mas a própria situação de estarem presos produz uma tensão incrível, e ele vai
desenvolver alguma coisa para fazer. Se isto acontece com os roedores, você imagina com os
humanos. Então você imagina as coisas que eu vi dentro deste presídio. Então, aquela socie
260
dade que cria ali, que se cria em cima do ócio, em cima da tensão, em cima da justiça, e olha,
para acreditar nela dentro. É difícil, dentro de tudo isto, vou começando a me estruturar
ali, fui de novo, como eu já tinha feito em outras situações, fazendo o meu nome. Eu pus a
minha posição em relação ao ser humano, respeitando e sendo respeitado, começo a mudar as
coisas, fui candidato a Presidente Bernardes quando foi inaugurada.
Márcia – Candidato a quê?
Eduardo – A ser o inaugurador da primeira cadeia de segurança máxima.
Márcia – Você tinha alguma vantagem?
Eduardo – Vantagem nenhuma, não, eu era um líder político lá dentro.
Márcia – Mas você interessava ao sistema daquele lugar?
Eduardo Não, não interessa para o sistema. Então eu comecei a fazer o que eu fiz a vida
inteira, caçar encrenca de novo, não porque eu não goste do que eu estou criticando. As pes-
soas não aceitam as críticas, então eu fui questionar poderes, poderes enraizados dentro da
estrutura, institucionalizados por pessoas de dentro e de fora daquela estrutura. Eu, como um
remanescente nativo da ditadura, estava lidando com ferramentas que eu conhecia de cor e
salteado, contra fogo, use fogo, contra água use água e assim por diante. Use as próprias fer-
ramentas do inimigo contra eles mesmos, e vai se acomodando aos poucos, e se usar uma ar-
ma meio esquisita, ele vai pensar, opa, o cara está contra mim, quem não está pró está contra.
Então o sistema não aceita muitas críticas, como eu tinha de sobreviver lá dentro, e sobreviver
incluía mais a mente do que o corpo, o natural temor diante a morte, eu pensei, se funcionar
está bom, se eu for para outro lugar pelo o que eu sou eu morro, então não pode ficar pior
do que está. O bendito do tempo que a gente passa dentro de um distrito é totalmente perdido,
e ele acaba sendo contraproducente quando você vai para um sistema penitenciário, porque
vai institucionalizado, você vai com medo, vocria tensão quando chega, é como ir a
um matadouro, vovai cutucando o boi, cutucando o boi com aquele esporão elétrico. Ele
chega ao estado de tensão tal que se você solta-lo e não mata-lo, não será mais o mesmo boi
que entrou. É isto que acontece com o ser humano. Isto desumaniza dentro do sistema, e isto é
uma crítica dentro do sistema, dentro deste sistema tem coisas que podem ser oferecidas para
indivíduos que não tiveram aqui fora, que pode ser de grande valor. O principal delas é a edu-
cação, e que não tem durante este primeiro período, é inexistente. Ele pode variar entre seis
meses e dois anos. Quando o indivíduo já vai depois de ter passado por uma tensão
toda, misturado com indivíduos de vários graus, tanto de periculosidade, quanto
de violência, quanto de intensidade dos crimes. Não existe mais seleção, esta
seleção por não existir, e o Estado não ter um controle efetivo na parte interna
261
daquilo ali, onde o Estado não está, o Estado se cria. Então dentro se cria uma sociedade,
porque aquelas pessoas precisam sobreviver, dentro de um ócio terrível, de uma falta de espa-
ço terrível. Podem aparecer coisas que na sociedade, aqui do lado de fora, podem parecer ridí-
culas, podem parecer violentas, podem parecer grotescas, mas embora tudo isto pareça muito
estranho, dentro não é. Aquela sociedade vai ser normal, se você submeter qualquer ser
humano na mesma situação, mesmo que seja em outro tipo de institucional idade, por exem-
plo, num quartel, num pequeno espaço, se colocar muitos indivíduos, todos amontoados. O
mesmo que nós vemos acontecer nas escolas, de alunos dentro de uma sala de aula, deixa um
ser humano para tomar conta de diversas mentes, muito mais versáteis do que a dele (profes-
sor), prontas para aprender tudo, como ele não vai consegui abranger a atenção de todas aque-
las trinta e quatro, trinta e cinco mentes, tudo o que escapar ao controle dela, vira uma outra
sociedade, dentro daquela própria sala de aula. E isto acontece em todo o lugar, é natural do
ser humano. Neste intermédio, vou para a penitenciária e indo para a penitenciária houve a
possibilidade de, mesmo que com uma briga política, a penitenciaria que nós conseguimos,
praticamente, antes de nós irmos para algum lugar.
Márcia – Quando você fala: nós, de quem você está falando?
Eduardo De todos os presos que estavam ali. Porque os presos que estavam dentro do Dis-
trito, sobre o qual eu vou começar o meu TCC, eles são especiais, especial não no sentido de
quem se destaca ou que tem privilégio, e sim o que corre risco. Dentro do sistema, um policial
vale menos que um estuprador.
Márcia – Dentro do sistema penitenciário?
Eduardo Sim. O estuprador pode ser alvo de violência, ele pode sofrer violência física,
sexual, mas o policial é a morte, é uma sentença de morte dentro do sistema. E ao contrário do
que as pessoas pensam, as prisões especiais, elas não tem nada de especial. Ela é especial
porque segrega quem o tem condição de conviver dentro do sistema, porque o sistema tem
sua própria lei, então para brigar com estas leis é um tanto quanto complicado. Eu tive o
desprazer, porque quando a gente vai para o fórum, para sumariar, para dar prosseguimento ao
processo em si, ao processo propriamente dito, de cada um, você passa por um sistema co-
mum, numa carceragem comum, pelo lugar que você desce, você é discriminado, se você
escapar de um lado, eles te pegam de outro, eles te matam. Então, a tensão que é perma-
nente dentro do próprio sistema em si, pelo o que ele é, para quem está nesta situação especi-
al, ela aumenta bastante.
Márcia
– Você foi preso como policial?
262
Eduardo Lamentavelmente como policial. Eu estava na ativa, eu fui preso no dia trinta e
um de agosto de dois mil e um. Eu tinha trabalhado o dia todo, tinha saído do serviço, fui me
apresentar aqui no DHPP
62
e fui preso. Prestei esclarecimentos e fui preso. Detalhe, eu já sa-
bia que ia ser preso, já tinha passado trinta dias dentro de um distrito comum em mil novecen-
tos e noventa e nove, por causa desta mesma situação. Achei que ela estaria resolvida, mas na
realidade nunca está. Aquela história que para o Estado sempre cabe recurso, então se o Mi-
nistério Público, representando o Estado resolver acusar ou defender alguém, sempre recurso
até a última instância, o Estado aparece para acusar, mas ele pode também defender, ele
não existe para acusar. Hoje em dia, existe um órgão diferente e é diferenciado, os pro-
curadores da defensoria pública, a defensoria blica existiu no papel durante muito tempo,
efetivamente ela começou a existir em 2005, no papel existe desde 1988, são esta coisas que
no Brasil acontece.
Márcia Bem, vamos tentar retomar o assunto do Enem. Como você presta este exame
dentro?
Eduardo Bem, eu não entendia muito bem a estrutura do Enem, porque na minha época de
estudante não tinha isso aí. E quem estava na escola normal, tendo aula no ensino médio ou
no ensino superior, ou no final do fundamental, ninguém conseguia me explicar efetivamente
o que era, e eu pensei, é uma prova, eu vou fazer.
Márcia – Você já tinha eliminado matemática?
Eduardo – Não. Eu estava chegando.
Márcia – Mas como você faria Enem, sem ter terminado o Ensino Médio?
Eduardo – Mas a primeira coisa que me ofereceram foi essa.
Márcia – O quê?
Eduardo O SESU. Eu pensei, se fora eu fazia todo o ano, porque aqui dentro eu vou dei-
xar de fazer.
Márcia – Então você presta o SESU dentro da penitenciária e passa em matemática?
Eduardo É, eu fiz para todas as matérias, e passei em todas inclusive matemática, quando
encerrei esta fase, vem o Enem, agora que tenho o ensino médio completo , vou fazer o quê,
nesta situação? Eu ainda estava empregado.
Márcia – Empregado como?
Eduardo Efetivamente eu ainda tinha a possibilidade de exercer a função. Eu estava inclu-
sive recebendo, eu fui para julgado, mas ela se extingue a partir da apelação, ou seja,
62
DHPP – Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa
263
de uma instância superior, pensei, tenho no mínimo mais um ano, um ano e pouco para espe-
rar. Então, vou fazer alguma coisa, parado eu não fico.
Márcia – Aí você presta o Enem, mesmo sem saber o que era?
Eduardo É, eu fui estudando. Eliminei as matérias do ensino médio naquele semestre.
Entrei lá em setembro em dois mil e três. Fiz o SESU no início do ano de dois mil e quatro, e
efetivamente, eu teria até o final de dois mil e quatro, para ver se a minha situação tinha uma
solução, tentar, tentar tudo bem. Mas eu tinha noção das minhas possibilidades, aí eu pensei, é
mais um ano, preciso fazer alguma coisa. Então eu resolvi ficar como assistente na sala de
aula. Eu assistia às aulas, mas não contava mais nada, porque eu já tinha o ensino médio, mas
assistia às aulas. O professor de história era muito crítico, muito inteligente, moço, rapaz ain-
da, estava na idade quando a minha crítica era também mais ácida, vinte e cinco, vinte e seis
anos. nos embates do dia a dia, do conversar, do aprender, aprendi muitas coisas de histó-
rias com ele, história comum me foi proposto ensinar, não a história crítica. Então desmistifi-
cou muita coisa. Ele colocou a posição e falou que tinha o exame do Enem e perguntou o nós
achávamos de trazer este exame para dentro. Perguntamos o que era o Enem. O professor
explicou o que era e para quem tinha terminado ou estava terminando o ensino médio era
uma possibilidade já, ou para quem ia embora para a rua, para quem estava saindo não para
quem ia progredir no regime de prisão semi-aberto, veio a idéia. Éramos três salas, cerca
de sessenta alunos.
Márcia – E todos aderiram?
Eduardo. sempre que possível e bem argumentado, tudo é abraçado com vontade, ou re-
pelido veementemente, então a questão é você vender uma idéia.
Márcia – Aí vocês fizeram o Enem?
Eduardo O nível de escolaridade nestas instituições que eu passei, é muito alto. Então tudo
é mais difícil, todo mundo pensa e alguns pensam muito mal de muitas coisas. Pensam mal de
quase tudo e de uma forma muito negativa, então você tem de convencer, convencido veio o
Enem, prestamos o Enem e cheguei lá em 2003, assisti aulas em 2004, nos propuseram vários
cursos profissionalizantes como cabeleireiro, corte e costura, cabeleireiro não, barbeiro. Fo-
ram uns quatro ou cinco formados lá, inclusive exercem essas funções, algumas oficinas que
prestavam serviço dentro, para aprimorar a situação técnica do indivíduo, aproveitar quem
tem e instruir quem não tem, em nível de instrução, nível de prática, então dentro destas pro-
postas, o que aconteceu, de 2004 para 2005, veio a proposta do Enem, em 2005 o Enem
estava lá.
Márcia
. Aí você prestou?
264
Eduardo – Eu não prestei o primeiro, e prestei em 2006, o segundo.
Márcia – E como foi lá dentro mesmo?
Eduardo dentro mesmo, a mesma estrutura. Porque lá, nesta unidade especificamente,
um dos problemas muito grave do sistema, é o espaço físico. nós tínhamos um espaço físi-
co bem próximo de uma sala de aula mesmo, ou seja, era dentro do nosso espaço de visita,
fora da área de carceragem, dentro da área de segurança, mais para ser estruturado como uma
sala de aula comum, como as nossas aqui. Eram três salas, efetivamente as três salas nunca
estavam completas, na minha época sim, parte do pessoal saiu, parte do pessoal desistiu. O
ensino fundamental básico é obrigatório, é obrigatória a alfabetização, quanto mais obrigató-
ria são as coisas lá, menos as pessoas querem, mas algumas pessoas se desenvolveram dentro
deste sistema lá, desde a alfabetização e alguns deles estão fazendo a faculdade, é que eu o
tenho contato com alguns deles, mas eu fiz contato com o meu professor e um dos nossos
amigos, que tinha uma formação um pouco melhor, também conseguiu bolsa cem por cen-
to.
Márcia – Como você se saiu no Enem?
Eduardo Eu me saí bem, eu fui acima da média nacional, a média nacional foi 45.8 e eu
tirei 60.5.
Márcia. Você lembra quanto você tirou na redação?
Eduardo Lembro, não foi muito boa, eu tirei cinquenta e oito. Eu sempre fui meio compli-
cado para escrever por causa da recalcitrância. Quando eu penso que não,estou eu batendo,
se em outros lugares não serve, no Enem serve menos ainda, bem menos ainda.
Márcia. Você já tinha conhecimento do Prouni, quando você faz o Enem?
Eduardo Como funcionava não, sabia que existia o Programa Universidade para Todos e
que este Universidade para Todos era mantido pelo governo e que ele oferecia bolsas, só. A
minha intenção era fazer o Enem como prova, como autoavaliação.
Márcia. Que é um dos objetivos do Enem.
Eduardo – É.
Márcia – Mas como você se decide para o Prouni, como foi este processo?
Eduardo Eu fiz o Prouni, quer dizer o Enem em 2006. A prova foi em agosto e fui promo-
vido ao sistema semi - aberto em setembro. Então, na realidade, eu não pensei. Eu estava em
uma situação nova, uma adaptação. Quem eu sou, como eu sou, vou botar o pé na rua, se situ-
ar. Fiquei cinco anos no fechado, precisava me situar, tentar retomar a vida e para retomar a
vida eu tinha de estudar, não tinha como. De repente chegam os resultados oficiais do E
265
nem, e também abrem as inscrições para o Prouni. Eu fui saber o que era Prouni, como fun-
cionava, mas vislumbrar cem por cento, não, porque eu nunca pensei em fazer uma faculdade.
Márcia – Fazer uma faculdade não fazia parte da sua trajetória.
Eduardo A minha realidade era assim, vou fazer um curso de quatrocentos reais, mas eu
não tenho formação para ganhar seiscentos reais. Eu vou gastar metade do meu salário em
uma faculdade, tenho filho, tem isto tenho aquilo, e é uma realidade.
Márcia. Mas quando você entendeu que era bolsa, isto o interessou?
Eduardo Bolsa cem por cento, eu falei, se eu conseguir uma bolsa cem por cento, acho
que vale a pena tentar.
Márcia – O que você pensou em fazer?
Eduardo – Fisioterapia.
Márcia – Era a sua vontade?
Eduardo – Não a minha vontade, mas a minha possibilidade de exercer a função, eu sou mas-
sagista prático, às vezes as pessoas me perguntam onde foi, como foi que eu aprendi e eu não
consigo dizer, faz parte do meu ser, não sei quando começou.
Márcia – Quando você fez a inscrição para o Prouni, como foi?
Eduardo – Você faz inscrição para sete cursos.
Márcia – É isto que eu quero saber. Você lembra a ordem de sua escolha?
Eduardo – A primeira opção era fisioterapia, apesar de eu saber que não ia poder fazer.
Márcia – Que faculdade?
Eduardo Nem me lembro, porque eu tinha certeza que eu não ia fazer. As duas segundas
opções eram pedagogia, nas unidades aqui na Renascença e a segunda era na Unip.
Márcia – E as outras, não são sete são cinco.
Eduardo Não eram sete, quando eu fiz eram sete. Eu coloquei fisioterapia, uma em cada
ponto, e no centro eu coloquei pedagogia, isto é, as quatro primeiras e as três últimas eu colo-
quei direito, porque eu tinha estudado alguma coisa sobre nota de corte, então a nota de
corte, ela me tirava naturalmente. Eu coloquei pedagogia depois porque eu sabia que eu ia
pegar.
Márcia – Você então escolheu pedagogia pela nota de corte ou porque era sua preferência, ou
você foi pensando onde poderia entrar?
Eduardo – A minha idéia era a inscrição dura trinta dias, eu fiz minha inscrição no trigésimo
dia.
Márcia
Então você não foi mudando suas opções no decorrer do período de inscrição?
266
Eduardo Não. Eu tinha que ir com certeza, e o que eu tinha certeza era isso. Fisioterapia
que eu conhecia, direito que eu tinha certeza que eu não ia, porque a nota não permitia. Eu
pensei, vou disputar uma ou duas vagas com muita gente, dentro do Prouni, então se eu
tenho que concorrer com uma pré - seleção, eu vou fazer pedagogia. Fui estudar para saber o
que é pedagogia, qual o tipo de formação que tem, o currículo que oferecia, tudo, e como você
tem de dizer o curso e a unidade onde você vai fazer, eu pensei, Álvares Penteado é do la-
do, vou dar uma passadinha lá, não dói nada. Fui à Álvares Penteado , olhei, olhei, peguei
algumas informações com o pessoal ali, pedi um folder, um folheto alguma coisa e conver-
sando com uma menina que estava fazendo pedagogia, ela me entregou uma ementa do curso,
com todas as matérias do curso. Então decidido, a unidade da faculdade foi escolhida pela
proximidade do centro, ou seja, facilitando a situação que eu estava vivendo quanto o desen-
volvimento dela, ou seja, eu teria condição de chegar, sem ter problema de horário na unidade
e saindo de lá eu teria condição de me locomover da minha residência para cá.
Márcia. Como foi sua adaptação no curso de pedagogia?
Eduardo O curso superior é uma coisa de louco. É difícil, porque o sistema que é utilizado
dentro do curso superior, ele exige certa responsabilidade maior do aluno. O interesse do alu-
no é que demanda a capacidade ou não que o professor vai ter de transmitir aquele conteúdo,
aquela ideia, aquele conceito, e o que acontece, o pessoal mais novo da sala trabalharam com
um sistema diferente no ensino médio. Como eu não fiz o ensino médio de maneira tradicio-
nal e o meu fundamental muito antigo, o que eu tenho é o meu conhecimento autodidata, o
que acontece, foi um período de adaptação curto, porém muito intenso, ou seja, me situar,
como, aqui estava mais próximo do que eu fazia do que eles estavam habituados a fazer, por-
que o próprio sistema não permite. Apesar de falar muito em autonomia, não permite muita
autonomia, e isto era uma palavra muito feia, quase um palavrão na minha época, e eu já tinha
pouco esta predisposição para a autonomia.
Márcia – Como você avalia a importância do curso, para você hoje?
Eduardo Ele faz parte da minha vida tanto quanto tudo o que eu fiz, com uma semana de
curso eu me sentia assim, bem primeiro, tem de passar o êxtase. Eu nem posso falar direito
que eu ainda me emociono, o êxtase de estar em uma sala de curso superior, com uma propos-
ta que dentro da estrutura de tudo que eu passei, de tudo que eu vivi. Já tinha sido colocado
fora de questão, não fazia parte dos meus quereres, e de repente apesar de tudo que eu pas-
sei eu estar ali dentro, foi emocionante. É emocionante ainda, mas eu não posso espalhar isto
por aí, eu choro muito, é uma coisa que faz parte de mim que eu não consigo me separar
mais. Hoje eu penso pedagogia, eu penso filosofia, eu penso história da educação, hoje eu
267
vivo cada uma das matérias que eu tive e tenho detalhe eu não deixo de viver porque ela pa-
rou, ainda existe um diálogo permanente com coisas que eu tive no primeiro, no segundo se-
mestre, meu livro de cabeceira aberto é o do Isidoro Blikstein, terceira vez que vou lê-lo.
Márcia – Você está lendo para poder escrever bem?
Eduardo Não para escrever, mas para entender , Isidoro Blikstein foi um marco na minha
capacidade de escrever e foi o que me situou, foi o que me fez respirar no vel superior sem
estar em êxtase, como um pai de santo e sem me amedrontar com a situação, ou seja, me es-
truturou dentro da situação, tudo tem um jeito de se fazer. Aqui eu estou aprendendo um
novo jeito de fazer as mesmas coisas, aprendi muitas coisas de muitas maneiras, eu vou estru-
turar, eu sou que posso dialogar com as formas que eu aprendi e as formas que eu estou a-
prendendo, essa liberdade para mim já é uma coisa que me deixou assim à vontade.
Márcia – Que perspectivas você tem para depois do curso superior?
Eduardo Não existe depois, nunca depois, existe agora, minha perspectiva é terminar o
curso, meu plano mais longo, mais remoto é o TCC, que tem de acontecer até o final do ano
que vem, mas um ano é muito rápido, depois de tudo que eu vivi é uma fração de segundo,
ontem eu estava no primeiro semestre.
Márcia. O Prouni, como política de educação, para você, ela foi importante?
Eduardo – Importantíssima, de todos os valores que eu defendi durante praticamente a minha
vida toda, o valor mais bem estruturado é o da educação, e a melhor coisa que foi feita em
matéria de educação, se bem que as pessoas são muito imediatistas, querem resultados pron-
tos, na hora, mas nós, agora eu posso dizer nós, porque eu estou no quinto, quando eu
estava no primeiro não dava para dizer nós, mas nós do Prouni nos destacamos em todos os
cursos que fazemos.
Márcia – Em que sentido?
Eduardo – Nós nos destacamos dos demais.
Márcia – Em nota?
Eduardo Em nota, em interesse, por quê? Porque é aquela estrutura que eu falei que o meu
pai tinha, minha mãe tinha, quem conseguia ir até à escola, às vezes, lavava o para colocar
a sandália, porque íamos com barro até a escola, andávamos quilômetros para ir para uma
escola. Então você precisava de vontade, acho que a pior coisa que foi feita para o Enem foi
equipará-lo a um vestibular, porque cria ambição em torno. Ele nunca teve problema, em to-
das as edições dele, quando ele foi colocado como parâmetro para o vestibular, o que não ti-
nha a necessidade de ser, que são avaliações diferentíssimas. Eu nunca prestei vestibular,
será o meu próximo passo.
268
Márcia. Para um curso específico?
Eduardo Especificamente filosofia, eu quero ver se eu consigo fazer filosofia na USP, mas
tem de ter vontade, para lá não pode ser apenas um sonho, tem de estar imbuído com um pou-
co mais de vontade.
Márcia Por que vodisse que os alunos com bolsa do Prouni têm um desenvolvimento
diferenciado.
Eduardo – Eles têm um desenvolvimento importante.
Márcia – Em sua opinião, é diferente de alguém que entrou na faculdade pelo vestibular tradi-
cional?
Eduardo É diferente, porque a pessoa quando está pelo Prouni mesmo que ela tenha menos
idade do que eu, ela também estaria da situação de desistir. Foi aberto uma vez, um questio-
namento sobre o curso, na realidade não é o Prouni que é deficiente é o sistema. Se o sistema
oferece como mercado, é um mercado, mesmo que não coloque um valor financeiro, é um
mercado. Então os cursos que ficam disponíveis para as bolsas do Prouni, eles são proporcio-
nalmente oferecidos de acordo com a procura.
Márcia – Por exemplo?
Eduardo Por exemplo, direito. Qualquer curso de direito, eu sei que deveria ter feito uma
pesquisa aqui. Eu achei interessante, na minha sala tem cinco alunos Prouni, dos cinco Prouni,
se não me engano, três são cem por cento, nós não nos conhecíamos.
Márcia – Então não existe nenhum tipo de discriminação?
Eduardo. Não, não, não existe nomeação nenhuma, não tem, por exemplo, o que é complica-
do no Prouni, ele determina o curso que você vai fazer.
Márcia. Por que ele determina?
Eduardo. Determina o que eu digo, é a partir da sua escolha. A partir da sua escolha, na hora
que você opta por um curso e é selecionado para este curso, você ganha um carimbo daquele
curso. Você ganhou aquele curso inteiro, aquilo ali tem suas responsabilidades perante ele,
por exemplo, qualquer bolsista tem uma faixa de aproveitamento necessário. Por exemplo, eu
não sou avaliado por mim mesmo, eu sou avaliado pela turma.
Márcia – Como assim?
Eduardo. Pela turma, eu preciso estar entre os trinta por cento melhores da turma, da minha
turma inteira, dentro do curso, então, por exemplo, se eu tivesse entrado no semestre seguinte,
eu teria bem menos trabalho para me manter nos trinta por cento de cinco, dos cinco primei-
ros. O rendimento do aluno Prouni é contado por turma, então se você entra, se você acha que
faz um bom negócio, porque para nós também é um negócio, você tem de escolher, a proxi
269
midade, o nível do curso, eu escolhi o da Renascença, a Uniesp conseguiu manter o da Renas-
cença
63
, a Renascença era um dos melhores cursos de Pedagogia da cidade, era um curso tra-
dicional, bem estruturado. O cartel, eu detesto esta palavra, cartel é para cavalo, o conjunto
docente. Quando você escolhe o curso, você recebe a bolsa, o horário e isto o vincula, o pren-
de. Então por exemplo, para eu poder fazer o meu estágio eu tive de mudar o meu horário de
emprego, porque eu não posso mudar o meu horário de aula, a minha bolsa é Pedagogia, no-
turno, então você tem de fazer a opção inicial com bastante cuidado. Uma das vantagens que
tem no Prouni é que enquanto você não se formar, você pode concorrer, você não pode ter um
diploma universitário, se você tiver um diploma você não entra no Prouni, então, por exem-
plo, se eu for formado, mesmo que eu seja bolsista, eu consigo um avanço. Pode ser que eles
tenham um conjunto de informações que me deem algumas vantagens no CNPq
64
, em algum
lugar que me financie uma bolsa para o mestrado, ou para outra graduação. Mas o Prouni,
mesmo, oferece uma graduação. Ele oferece a qualquer um que não tenha concluído uma
graduação, desde que se sigam os parâmetros que são necessários, ou seja, hoje em dia se é
difícil para uma pessoa que fez os estudos em escola particular, mesmo que tenha sido com
bolsa, meia bolsa. O grau de seleção do Prouni é exigente, porque quem está entrando com
isto daí é o pessoal da escola pública. Para quem está terminando, para quem terminou
dois, três anos, para quem parou, para quem está um pouquinho mais fresco, nossa, a possibi-
lidade de fazer é grande. Para um ser humano normal, não estou colocando eu, porque o auto-
didata também não é normal.
Márcia. Você não se considera normal?
Eduardo Não, nenhum autodidata é normal. Ninguém que se interesse muito pelos estudos
é visto como normal. Não é uma coisa que tenha valor, normalmente o indivíduo pergunta,
quanto você vai ganhar com isto. Eu não vou falar para ele que o salário de um professor em
uma escolinha particular de educação infantil, está por volta de oitocentos e dez reais, nove-
centos reais, ou seja, eu ganho isto como manobrista. Eu não preciso de formação nenhuma,
se eu for dirigir e levar criancinhas para lá e para cá eu ganho dois mil a dois mil e quinhentos
reais. Então, tirando a situação econômica, eu tenho a forma de estudar, então a forma de es-
tudar, não são todos os indivíduos que estão acostumados e os que estão acostumados. Muitos
não sabem que o Prouni existe. Eu apresentei o Prouni para a minha irmã, logo no término do
segundo semestre. Eu a tinha convencido até de mudar de faculdade. Ela também está fa-
zendo pedagogia, “tadinha”, estava fazendo enfermagem, estava tão bem, acostumada, ia su
63
A UNIESP comprou as Faculdades Renascença em 2005
64
CNPQ - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
270
bir na vida, mas a estrutura seria do Prouni mesmo. Ela fez o Prouni para a área de enferma-
gem mesmo, mas o Prouni ofereceu uma vaga para ela cem por centos, mas em Manaus. Már-
cia. Mas isto não foi um erro?
Eduardo Mas antes era diferente, você se inscrevia no curso e ele selecionava a faculdade.
Mas é assim que funciona, se eu me inscrevi para bolsa em curso de Ensino Federal. Eles me
indicam onde tem vaga, então se é Federal eu posso ir para a Federal da Bahia, do Sergipe.
Márcia – Eduardo, você gostaria de acrescentar mais algum comentário?
Eduardo. Em uma frase eu resumiria em adjetivos.
Márcia – Então fala.
Eduardo – Alucinante. Emocionante. Empolgante. Envolvente e delicioso.
Márcia – Você está feliz com o seu curso?
Eduardo Eu estou muito feliz. Quando começamos esta entrevista, eu estava morrendo de
sono, eu estava acabado, eu trabalhei a noite toda. Eu pensei, eu vou para a faculdade, eu me
sinto tão bem aqui dentro. Eu lamento ter trocado o meu turno de trabalho, porque antes eu
chegava aqui às quatro horas.
Márcia Bem, estou encerrando , são nove horas e quarenta e cinco minutos. Muito, muito
obrigada, pelo seu depoimento.
Elton Luiz Fotoni
04/11/2009
Márcia – Como foi a sua trajetória escolar?
Elton Estudei no Isac Silvério
65
aqui próximo mesmo no bairro da Vila Albertina. Fiz da
série até a série, depois passei para uma escola ali no Jardim Tremembé, chamado Arnaldo
Barreto
66
. Lá fiz da 5º à 8º série. O ensino médio estudei e completei em uma escola chamada
Conselheiro Rui Barboza
67
que fica no Horto Florestal.
Márcia – Como é que foi da 1º à 4º série?
Elton Bom, do que eu me lembro, tive, nos primeiros anos, grandes dificuldade com leitura.
Eu não tinha facilidade para escrever, ler, tinha muitas dificuldades mesmo. No decorrer do
curso, acabei sendo incentivado pela minha irmã mais velha a me dedicar mais na leitura, a
escrever mais, sempre buscar ter a melhor caligrafia e a ortografia também contava muito.
Márcia – Então foi a sua irmã que o incentivou?
Elton – Isso, exatamente. Ela me incentiva bastante.
Márcia – Quantos anos tinha sua irmã?
Elton – Minha irmã tem cinco anos a mais do que eu.
Márcia – Você com uns sete anos e ela com uns onze anos?
Elton Isso! Então na escola, eu fiz uma redação do Sapo que a professora detestou demais.
A minha irmã não gostou nem a professora tão pouco, então minha irmã fez uma redação e
disse: “é assim que você tem que escrever”.
Márcia – Quem lhe falou isso?
Elton A minha irmã mais velha! Eu copiei e levei para a professora e ela disse: “nossa ago-
ra sua redação está bem melhor”, e daquele momento em diante, em matérias de escrever, eu
sempre tive um mesmo padrão.
Márcia – Então a sua irmã o ajudou mais que a professora?
Elton – Mais que a professora!
Márcia – Por quê?
Elton Então, engraçado, porque eu tinha uma grande dificuldade assim com os professores.
Uma vez eu desenhei um boneco no caderno. Pintei-o de marrom e a professora disse que o
boneco não podia ser marrom, ele tinha que ser rosa, e eu falei para ela que meu boneco seria
65
EE Prof. Izac Silvério – Jardim Tremembé
66
EE Arnaldo Barreto – Jardim Tremembé
67
EE Conselheiro Ruy Barbosa – Horto Florestal
272
marrom. Ela falava que a cor da pele é rosa, eu dizia que era marrom. Ela pegou o caderno e
rasgou a folha e jogou meu caderno no chão.
Márcia – Quando foi isso?
Elton – Na 3º série do ensino fundamental.
Márcia – E o que aconteceu?
Elton Na época, até comentei com os meus pais. Eu não me lembro muito bem se eles che-
garam a ir à secretaria reclamar da professora. A professora, na época, era tida como artista
plástica. Ela dava aula de língua portuguesa e era artista em seu momento de folga, ou fora da
escola.
Márcia – E ela disse que o boneco tinha que ser rosa?
Elton – É um absurdo! Eu disse que meu boneco seria marrom. Ela perdeu as estribeiras.
Márcia – E você lembra-se de tudo?
Elton Foi uma marca, tanto que eu gostava de estudar na época, mas hoje em dia, eu de-
senho razoavelmente. São coisas que ficam mesmo, não tem como.
Márcia – A atitude da professora lhe trouxe alguma consequência?
Elton Não! Não! A coisa que mais marcou foi o absurdo da situação, a questão da imposi-
ção: “você tem que fazer o que eu estou mandando, eu estou certa e você está errado”. Diante
da situação, não digo você está certo ou errado, mas eu tenho que defender o meu lado.
Márcia – Você tinha consciência do absurdo?
EltonNa época eu não tinha uma consciência assim concisa da situação, mas sabia o que eu
estava querendo naquele momento, e sabia o que aquele desenho representava para mim e que
se representava outra coisa para ela, o problema era totalmente dela. Eu não tinha nada haver
com isso.
Márcia – E depois?
Elton Até a e série, foi normal. Eu não era um aluno de altas notas, mas também não
tinha notas ruins, sempre foram notas medianas.
Márcia – Você era disciplinado?
Elton Era sim, bastante disciplinado. Sempre tive mais facilidades com as matérias ligadas
às humanas, como história, geografia e português. E tinha muita dificuldade com exatas, e
isso me acompanhou até o final do terceiro ensino médio.
Márcia – Mas você foi para área de exatas?
Elton Aí que está, ciências contábeis, por mais que todo mundo acredite que seja uma ciên-
cia exata, ela é uma ciência humana e eu fui descobrir isso no ano passado porque o professor
falou “ciências contábeis é uma ciência humana, porque na história da humanidade mudam-se
273
os critérios, dificulta a estabilização, acompanham os avanços tecnológicos e isso é a história
do homem”.
Márcia – Então você está na sua área?
Elton – É.
Márcia – As escolas pelas quais você passou foram boas escolas?
Elton Não, não. é que está, na verdade a escola pública, a gente tem consciência que é
ruim, mas você saindo, realmente para saber o quanto aquele ruim era muito pior mesmo,
entendeu?
Márcia – Como assim?
Elton A culpa de passar e transmitir o conhecimento não são totalmente do professor, tem
professores que por mais que ele tenha graduação, ele não tem vocação nenhuma de transmitir
o conhecimento ao aluno. Tem muitos professores assim, mas acho que a grande culpa mes-
mo é da infra-estrutura, sem dúvida, sabe, quarenta e seis à cinquenta alunos em uma sala de
aula, são cinquenta histórias, então, para um professor lidar com cinquenta pessoas, totalmen-
te diferenciadas umas das outras, é muito difícil. O professor precisa driblar muitas questões
envolvidas, tem que dar a aula, sempre têm pessoas conversando que acabam dispersando a
atenção dos demais alunos, ou o professor que talvez não tenha tempo de pegar e completar a
grade de conteúdo acaba atropelando tudo.
Márcia – Você sentia isso, você fala isso por sentir que isso aconteceu?
Elton Aconteceu sim, sinto muito que aconteceu isso sim. É engraçado, você sente mais
isso quando você faz cursinho pré-vestibular. Eu fiz cursinho e assim que eu cheguei tinha
uma colega que vinha de escola particular, eu conversava com ela, e ela falava que veio jus-
tamente fazer o cursinho para “pegar” e relembrar o que tinha sido passado, ela queria rea-
valiar seus conhecimentos. Eu olhava para ela e falava: “nossa eu vim aqui para o cursinho
para aprender coisas que eu nunca vi na vida”.
Márcia – E o que você percebeu?
Elton Eu me dei conta de que são duas vidas totalmente, digamos, diferentes, porque ela
vem de escola particular e eu de escola pública, ela teve muito mais conteúdo e aprendizado.
Já não sei se é por culpa dos professores ou pelo modo de que alguns governos ou a prefeitura
colocam quarenta e seis à cinquenta alunos em uma mesma sala. Vem aquilo que o aluno de
escola pública tem muito mais dificuldade de entrar em uma faculdade, porque muitas coisas
ele acaba tendo que aprender no cursinho.
Márcia
– Se é que vai fazer cursinho!
274
Elton Exatamente, se é que esse aluno vai fazer mesmo o cursinho. Então, esse tempo, essa
fase ensino médio foi assim, logicamente que têm aqueles professores que marcam, que são
professores bons mesmo que incentivam: “não, você tem que fazer isso, pois você vai ver que
lá na frente e lá fora, as coisas são completamente complicadas”.
Márcia – Fazia sentido, na época, essa frase?
Elton – Não! Na verdade a gente tem a visão de aluno, a gente sai da escola e olha para o lado
e fica pensando o que é que se vai fazer. Agora se começa a procurar emprego, aparece aquele
primeiro conflito da idade, a gente com dezessete anos tem que fazer exército. Com dezoito
anos não se tem experiência nenhuma, mas as empresas exigem experiência.
Márcia Conflitos que a própria sociedade impõe para você! Nesse tempo você morava
aqui no bairro, você sempre morou aqui?
Elton – Sempre moramos por aqui.
Márcia – Quando você era criança, o que fazia nas horas de lazer?
Elton – Olha, a gente jogava mais futebol mesmo.
Márcia – A diversão era futebol?
EltonÀs vezes, a gente ficava em frente à televisão, mas a televisão também é outra aberra-
ção, se as pessoas soubessem o quanto a televisão faz mal. Eu gosto, mas não assisto muito
não, na verdade assisto mais à TV Cultura.
Márcia – Você assistia a muitos programas na televisão?
Elton – Quando adolescente muito sim, muita besteira.
Márcia – Seus amigos, no final do ensino médio, também tinham a consciência que você tinha
sobre a escola pública?
Elton É engraçado, porque cada fase tem um grupo de amigos diferenciados, da primeira
série à oitava série do ensino fundamental sempre tive mais contato com a vizinhança, o pes-
soal mais próximo mesmo, e esses amigos, nesse período, tinham tudo haver, sempre jogando
futebol, conversando essas bobeiras todas. Depois eu conheci o Jarbas
68
e o Geilton
69
.
Márcia – Quando você conheceu o professor Jarbas?
Elton Olha, o professor Jarbas, eu conhecia de vista, desde jovem assim, desde menini-
nho mesmo seis ou sete anos de idade. Ele sempre foi meu vizinho. Mas contato assim, con-
versar, foi com dezesseis ou dezessete anos, quando eu saí, que coloquei o fora da escola,
quando terminei, é que conheci o pessoal. E eles falavam coisas absurdas, que eu “nossa”, nós
tínhamos uma roda de amigos assim, que ficavam conversando sobre política, filosofia, eu
68
Jarbas é professor de filosofia e de sociologia em escola pública.
69
Geilton é irmão do professor Jarbas
275
pensava: “o que esses caras estão falando”? Quando terminava a conversa, eu chegava aqui
em casa, pegava o livro de história.
Márcia – Para entender o que tinham falado?
Elton É! Eu ouvia e “poxa” que coisa absurda. E eu comento com meus amigos até hoje,
que eu aprendi a gostar de estudar, de ler coisas relacionadas à história, literatura, quando eu
saí da escola, porque fui meio que motivado pelos meus amigos a buscar uma coisa mais dife-
renciada, conseguir enxergar o que está por traz de muita imbecilidade televisiva sabe.
Márcia – Qual a formação do professor Jarbas?
Elton – O Jarbas é professor de sociologia, filosofia, história e de geografia, formado na USP.
Márcia – Quem mais era do seu grupo, nessa fase?
Elton Era um grupo de uns quinze, um pessoal bem próximo mesmo, em relação à afetivi-
dade, e tinha o Jarbas e o irmão dele, tinham outras pessoas que moravam em outras regiões
que vinham até ele para conversar.
Márcia – E você estava entre eles?
Elton E eu lá, no meio, eu achava engraçado, um criticava o outro, um ficava bravo porque
recebeu criticas e não gostava, e isso acaba influenciando alguma coisa na pessoa, porque a
pessoa fica ali pensando: “poxa, que interessante”, e acaba se infiltrando, sem muito esforço?
Márcia – Quando você começou a trabalhar?
Elton – Lembro que com dezenove anos eu consegui meu primeiro emprego.
Márcia – Qual foi o seu primeiro emprego?
Elton Eu comecei a trabalhar no Barro Branco, na escola da polícia militar, como auxiliar
de almoxarife, por contrato com a Prefeitura. Fiquei no cargo, por dez meses, e depois fui
chamado para trabalhar com o meu primo no escritório contábil. É o mesmo que estou até
hoje. Eu saí do Barro Branco com vinte anos, e entrei aqui no escritório. Estou com vinte e
seis anos, então são seis anos de empresa, na área de contabilidade.
Márcia – Você fez Enem logo depois do término do seu terceiro ano do ensino médio?
Elton Não! Após o ensino médio, eu fiz um curso técnico em administração na ETE
70
. De-
pois eu prestei o Enem.
Márcia – Qual foi a sua nota no Enem?
Elton – Tirei 6.3, na época era uma nota razoável para conseguir alguma bolsa.
Márcia – Você se saiu bem na redação?
Elton Em redação, eu tirei 7.5. Português, história e geografia que levantaram a nota.
70
ETE – Escola Técnica Estadual
276
Márcia – No tempo que você estava no ensino médio, já pensava em fazer uma faculdade?
EltonPensava sim! Mas assim, quando cheguei ao terceiro ensino médio, eu pensava: “nos-
sa, está chegando” e eu ouvia meus amigos falando: “eu vou fazer curso de ciência da compu-
tação, administração”, foi quando caiu minha ficha: “o que eu vou fazer"?
Márcia – E em que você pensava?
Elton – Eu ficava perdido, não imaginava nada.
Márcia – A faculdade era algo distante ou não?
Elton – Na verdade, era uma coisa utópica, eu não sabia como era aquilo, não sabia como iria
chegar até lá.
Márcia – Por quê?
EltonNa verdade, quando se está no ensino médio, se pensa assim, como se fosse algo bem
distante, se imagina que, após um ou dois anos, já terminou o terceiro ensino médio, e a gente
precisa buscar fazer alguma coisa, ou um curso profissionalizante, ou o ensino superior. Essa
que é a questão, e não eu, mas existem outras pessoas que estando no terceiro ensino mé-
dio, cometem o mesmo erro ou equívoco, ou talvez, de não fazer um planejamento longo, e
acreditar que um ano é uma coisa muito distante e isso está errado, é um erro muito grave.
Márcia – Aqui na comunidade, você e seus amigos, faziam parte do ideal de vocês, irem para
uma faculdade?
Elton Olha, enquanto grupo, eu acredito que essa vontade louca de fazer universidade, nun-
ca foi assim tão lógico de que tem aquilo que fica passando pela cabeça: “poxa”, tenho que
fazer um curso superior, eu tenho que me atualizar, tenho que seguir, tenho que ter uma área
em que eu vou construir minha vida sobre aquilo. A gente nunca teve uma coisa assim, mais
ligada ou focada nisso.
Márcia – Quando você optou fazer um curso técnico, você pensava no trabalho?
EltonÉ, eu acho que pode ser que sim, mas é muito complicado isso. A gente mais questio-
nava sobre a nossa condição.
Márcia – Que condição?
Elton – Condição de estar aqui, a sua condição que o mundo mostra para você.
Márcia – Que tipo de condição?
Elton – Esta questão engloba muitas outras coisas, é muito complexo é complicado.
Márcia – Como você vê a sua condição?
Elton Ai é que está. A gente tem até meio que uma postura de separar o eu do mundo, mas
acabo cometendo um equívoco, porque eu estou dentro dele, qual a oportunidade que eu con
277
sigo alcançar fora, dentro desse mundo econômico, financeiro, social. Essa que é a grande
dificuldade.
Márcia – Esse mundo, ao qual você se refere, está distante?
Elton é que está. Eu não vejo, antigamente eu até imaginava esse mundo muito distante,
mas eu senti com o primeiro emprego, as primeiras dificuldades, os encontros com o patrão,
essas coisas todas e você começa a se ver dentro do mercado de trabalho, e imaginar como é
que ele funciona, e quando eu falo esse mundo que está ai, é essa relação de você pegar e bus-
car uma coisa melhor para si, e levar vantagem em determinadas situações, mas não vantagem
em relação a golpear alguém, passar para traz, isso não, mas pegar e encontrar uma brecha
para você pegar e ter uma vida mais tranqüila e isso é muito difícil, sinceramente, e isso na
minha área principalmente é muito complicado.
Márcia – Vamos falar sobre o Enem, agora você fez 6.3 pontos e se inscreveu para o Prouni?
Elton – É, fiz a minha inscrição.
Márcia – Você se lembra quando foi?
Elton Foi em 2007. Tem uma história muito engraçada. Eu fiz o Enem em 2007, não, foi
em 2006, eu fui para me candidatar à vaga, e deu problema no site do Prouni.
Márcia – Que problema?
Elton O problema de data de nascimento, o sistema estava registrando que eu nasci em 19
de setembro de 1997, sabe.
Márcia – E você nasceu, quando?
Elton Eu nasci no ano de 1983. Eu estava vendo se conseguia alguma vaga, porque tinha
conseguido uma pontuação boa, e nada e nada, eu ligava lá para o pessoal do Inep e dizia que
estava errada a minha data, os meus dados, e eu pedia que eles retificassem, nisso eu perdi a
oportunidade de ingressar na faculdade, em janeiro, no primeiro semestre. Mas teve a outra
opção no segundo semestre.
Márcia – Com o mesmo Enem?
Elton – Isso, aí eu peguei, me inscrevi para concorrer à bolsa.
Márcia – Por quais cursos você optou?
Elton Eu optei por letras e história. A primeira opção foi história na PUC, a segunda opção
foi letras no Mackenzie, a terceira opção agora não me lembro, ao certo, o que mais lembro
foi que a antepenúltima opção foi ciências contábeis na Unip.
Márcia – A última, você não se lembra?
Elton
– Não! E aí que apareceu a oportunidade de ser cinqüenta por cento no Mackenzie, mas
eu optei por cem por cento na Unip.
278
Márcia – Por quê?
Elton – Eu preferi a Unip, porque já estava na área, trabalhando no escritório de contabilidade
e pensei: “então, vou fazer ciências contábeis, mesmo”.
Márcia – Foi uma decisão fácil, escolher entre letras e ciências contábeis?
Elton Foi sim, foi uma decisão bem pensada, até então porque é um emprego que dá uma
estrutura, uma base mais sólida entendeu, se eu quiser fazer um curso de história depois da
formação em ciências contábeis, não vou ter muita dificuldade em fazer. Mas se eu chegar e
fizer um curso de letras, depois terei mais dificuldades numa pós no curso de ciências contá-
beis.
Márcia – Então a sua escolha foi baseada na perspectiva do trabalho?
Elton – Sim!
Márcia – O curso está proporcionando mais oportunidades?
Elton Eu, na área de ciências contábeis, procuro ser visto pelo mercado, acabei deixando
alguns currículos na Catho
71
e já recebi muitas ofertas de outros empregos.
Márcia – Você está gostando do curso?
Elton – É um curso que proporciona empregabilidade.
Márcia – Mas você está gostando do curso?
Elton – Gosto. Gosto sim. Se bem que eu trabalho na área tributária lá na empresa.
Márcia – É diferente do curso em si?
Elton – Não muito, digamos que é cruzado.
Márcia – E como é você, na universidade, como bolsista? Existe alguma diferenciação na sala
de aula, algum tipo de discriminação?
Elton Não! Não! Engraçado que no primeiro semestre, entrou o pessoal da UNE
72
“Putz”,
eu não gosto do pessoal da UNE, nossa detesto.
Márcia – Por quê?
Elton Não entendo o que eles dizem sobre “camarada, camarada”, poxa, em mil e novecen-
tos “e trá lá”, se vocruzasse com um comunista, os caras estavam falando da mesma
forma do mesmo jeito. As coisas mudam, em vez das pessoas se reformularem, muitas vezes
podem até manter o mesmo ideal, mas buscar assim novas formas de se dirigir às pessoas,
mas “camarada”, esses clichê, não vai, não desce. E aí, eles entraram na sala de aula e disse-
ram para separar todos os alunos do Prouni.
Márcia – Separar para quê?
71
Catho online é uma empresa que possibilita o encontro de candidatos e recrutadores.
72
UNE – União Nacional dos Estudantes
279
Elton Não, eles falaram que os alunos do Prouni deveriam se reunir na sala tal, porque ha-
veria uma palestra do grêmio da Unip, apoiada pela UNE. tinham alguns integrantes da
UNE, que faziam parte do grêmio estudantil da Unip e eles falavam: “nós sabemos que os
alunos do Prouni são jogados de lado”, “aquele blá blá blá todo”. Eu fiquei olhando e falei
para uma colega: “o que esse cara está dizendo”? Porque a princípio, você não identifica
quem é aluno Prouni e quem não é.
Márcia – Não existe essa nomeação?
Elton Não! Se vofala: “olha eu não sou Prouni, mesmo outra bolsa, do movimento dos
sem terra, ninguém sabe e ninguém fica lhe interrogando se você é bolsista ou não. Na verda-
de, quem fez separação foi o pessoal do grêmio estudantil. Eu pensei:” você que é um "baba-
ca", que está agora sim, diferenciando cada aluno, você que está diferenciando os alunos do
Prouni diante dos demais, não é a universidade que está fazendo isso.
Márcia – E os professores?
Elton – Os professores nem sabem quem é quem, e se souberem eles nem mencionariam.
Márcia – Em relação às notas, você sente alguma diferença por ter estudado apenas em escola
pública?
Elton Então, é que está, grande parte das pessoas que estão ali, não digo todos e nem a
grande maioria, mas acredito que muitas pessoas vieram de escolas públicas, então as dificul-
dades que eles têm e que eu tenho, pelo menos são similares, ou até as pessoas que ficam 7 ou
8 anos sem estudar, e entram em uma faculdade, as dificuldades são bem maiores.
Márcia – Então, você não vê nenhuma diferença?
Elton – Não! Não tem mesmo.
Márcia – Você freqüenta a biblioteca, empresta livros?
Elton Freqüento sim, utilizo a biblioteca, os salas de informática, como um universitário
normal.
Márcia – Que avaliação você faz da Unip?
Elton Olha, eu gosto muito do curso que eu faço, a estrutura é muito boa, eu cheguei a
freqüentar aulas de outras faculdades, e eu sei que tem algumas melhores, mas a Unip não
ruim não, os professores conseguem passar o conteúdo, assim não tem dificuldade, tanto que
professores profissionais que estão mais de 35 anos na área, o que às vezes, foge-se até
um pouco das aulas, conversando e trocando experiências do trabalho. Falamos sobre os pro-
gramas que utilizamos para contabilizar, então, eu não tenho do que reclamar, porque são pro-
fessores que conseguem passar todo o conteúdo mesmo.
280
Márcia – Qual a importância do Prouni, nesse seu momento, para você, como universitário? É
um programa que o ajudou ou não?
Ao tivesse uma bolsa de estudo?
Elton Olha, eu estaria na universidade. Porque, tanto antes de eu conseguir o Prouni, quan-
do eu terminei meu curso na ETE, eu fiz seis meses na faculdade Santa Rita de Cássia, não sei
se você conhece? E depois é que eu fui para a Unip.
Márcia – Qual foi o curso que você fez na Santa Rita de Cássia?
Elton – Fiz ciências contábeis, e também me ajudou para eliminar algumas matérias.
Márcia – E você pagava uma mensalidade integral?
Elton Sim! Pagava normal. Por mais que o Prouni beneficie bastante os jovens, como o
programa da escola da família, ajuda, mas não é esse problema que a adolescência sofre hoje
em dia.
Márcia – Qual é o problema?
Elton Assim, de ter acesso a uma boa educação, porque a escola pública não tem a mínima
estrutura em transmitir conteúdo a um aluno, ao ponto dele passar em um bom curso em uma
universidade pública, como a USP.
Márcia – Em sua opinião, um aluno da escola pública não tem chance de passar em um vesti-
bular público?
Elton – Eu acho que até tem, mas é muito mais difícil?
Márcia O aluno da escola pública não tendo condições de continuar a estudar e fazer uma
universidade pública, vai para uma privada, com bolsas de estudo oferecidas pelo governo,
isto é bom?
Elton – É uma desculpa.
Márcia – Você está dizendo que o aluno da escola pública, pela sua formação, tem dificuldade
em conseguir uma vaga em uma universidade pública?
Elton – Sim, tem! Mas não só aluno de rede pública também. Na Unip, por mais que seja uma
minoria, mas também tem alunos que vem de escola privada e também tem dificuldade.
Márcia – Uma minoria?
Elton Não sei se é uma minoria, mas pelo menos uns 40 ou 45%, eu o sei bem ao certo,
mas eu presumo isso.
Márcia – Ao seu modo de ver, tem muitos alunos de escola pública nas universidades e facul-
dades privadas?
Elton
– Tem sim, tem de escola pública e de escola privada.
Márcia – Qual é o problema, então?
281
Elton Não adianta você pegar e fornecer bolsas para as pessoas que tem dificuldades na
base, entendeu? Eu tive um colega de classe que tinha grandes dificuldades em fazer regra de
três, ele não era Prouni, eu não sei se veio de escola pública, têm pessoas que tem problemas
com redação também, uma pessoa que não consegue colocar uma vírgula na redação!
Márcia – Você esta dizendo que o problema é da educação básica?
Elton – Me desculpe, mas eu acredito que você já pegou alunos que têm esses problemas.
Márcia Então, você acha que uma bolsa de estudos não dará da má formação do ensino bá-
sico?
Elton Se você pensar no Prouni, como se fosse uma porta que a pessoa tem para entrar no
mercado de trabalho – bem muito bem!
Márcia – Por meio do ensino superior?
Elton Sim! Mas hoje em dia, a universidade é um grande portal para uma pessoa que quer
buscar seu espaço no mercado de trabalho. As próprias universidades proclamam: “se você
quer um grande sucesso em sua carreira se matricule aqui”. Ver por esse lado, o Prouni forne-
ce essa oportunidade, de a pessoa ingressar na faculdade, de modo gratuito, para se inserir no
mercado de trabalho, “poxa”. Aí, maravilha!
Márcia Para você, essa oportunidade de estudar no ensino superior, está lhe abrindo portas
para o mercado de trabalho?
Elton – Está ajudando. Na verdade, eu não entrei no mercado de trabalho graças ao Prouni.
Márcia – Além de conhecimentos para o mercado de trabalho, a universidade acrescenta algo,
em termos de formação de conhecimento novo, que não seja voltado para o mercado de traba-
lho.
Elton Eu acho que como experiência de vida acrescenta, sim. Acho que todo e qualquer
espaço, onde se reúnam pessoas para buscar um objetivo, que é a formação, acaba trazendo
experiência pra vida. Percebe-se que cada pessoa tem o seu modo de trilhar em busca de um
objetivo. Acaba-se tendo conflitos ou até amizades, como em um trabalho em grupo, cada
pessoa com um modo de visão diferente, você tem que debater, tem que saber conversar. Isso
não vai ficar ali, vai chegar a uma mesa de reunião, com clientes, e será necessário saber
discursar e convencer o cliente, de maneira mais adequada para a empresa dele. Acho que
tudo isto é uma grande contribuição do ensino superior.
Márcia – Seus amigos também estão cursando o ensino superior?
Elton – A maioria faz faculdade sim.
Márcia
– Há quanto tempo você mora aqui?
Elton – Há vinte e seis anos. Eu nasci aqui.
282
Márcia – Quem mora com você?
Elton – Eu e minha mãe apenas.
Márcia – A sua irmã mora na parte de cima?
Elton – Isso!
Márcia – Quais as oportunidades de experiência culturais a universidade oferece ao aluno?
Elton – Olha é engraçado, eu não sei se outras universidades possuem, são as chamadas ativi-
dades complementares.
Márcia – Você aproveita essas atividades?
Elton Eu particularmente aproveito. Geralmente, saio para assistir peças teatrais no Sesi
73
na Paulista ou no Centro Cultural Vergueiro.
Márcia – Você já tinha esse hábito?
Elton – Eu já tinha sim! Na verdade, era uma coisa meio que de praxe que eu fazia.
Márcia – Então, além de estudar você outras coisas?
Elton Sim! Sim! Olha, gosto muito de tocar de compor, também gosto muito de poesia e
gosto muito de desenhos. Sou apaixonado por essa parte, nesses dias eu estava lendo o livro
Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto, eu fiquei assim maravilhado com a es-
trutura poética que tem o livro.
Márcia – Qual trecho você gostou mais?
Elton Foi a parte que estão os dois coveiros conversando, um fala da parte nobre de Recife
e o outro da parte menos favorecida. O que eu acho interessante da classe nobre, é que eles
dão mais gorjetas e da outra a parte pobre, tem muito trabalho. Então eu achei isso muito le-
gal. Eu gosto também do Alcântara Machado, são contos que você lê e fica maravilhado, as
gírias da época, ele é muito bom escritor.
Márcia – Você toca teclado?
Elton Estou estudando, faz um ano e pouco que estou estudando, mas com o trabalho e a
faculdade, fica meio difícil.
Márcia – Você não tem banda?
Elton Eu tive um grupo de musica, sim! A gente participou de alguns eventos, mas de-
pois todo mundo seguiu seu rumo, uns começam a namorar outros casaram.
Márcia – Você é solteiro?
Elton Não! Eu namoro. Ela está na faculdade estudando, ela faz propaganda e marketing na
Unip também, ela estuda na Chácara Santo Antonio e eu estudo no campus Marte.
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SESI – Serviço Social da Indústria
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Márcia – Sua namorada mora em Santo Amaro?
Elton – Ela mora no Grajaú, ela mora para lá de Interlagos.
Márcia – Você a conheceu na faculdade?
Elton – Não, por meio de um colega.
Márcia – Você já participou de algum movimento estudantil?
Elton Na verdade, teve um movimento que eu participei chamado Valorização de Iniciati-
vas Culturais, é um programa da prefeitura que começou quando a Marta era prefeita, ela que-
ria motivar os jovens, oferecendo certa verba para realizar algumas atividades culturais, aqui
na região. A gente fazia parte de um projeto de cinema social, a gente trazia os filmes e apre-
sentava para o pessoal da comunidade, mas foi uma experiência muito pesada, porque houve
muitos conflitos de pontos de vistam ideológicos, muitos queriam ir para o lado do comunis-
mo para abrir a mente da população, como eles diziam. Mas os métodos para isso eram muito
diferenciados, uns queriam colocar uma linha daquele muito além do cidadão Kane, outros
queriam colocar Hitchcock e outros Almodóvar.
Márcia – Havia discussão?
Elton – Fazíamos uma votação.
Márcia – Onde os filmes eram passados?
Elton – Aqui mesmo.
Márcia – Na rua?
Elton É! E acabou focando ali, próximo a pedra, onde ocorreram exibições. Tinham algu-
mas bandas tocando também.
Márcia – Mas e aí?
Elton É, um ano a prefeitura ofereceu a verba e depois você tinha-se de fazer uma doação
para uma ONG, e tentar manter uma parceria com essa ONG, e tentar manter o projeto social.
Não deu certo e paramos. A gente acabou doando o equipamento para uma ONG, regida pela
secretaria da cultura.
Márcia – Foi uma boa experiência?
Elton Foi sim, uma boa experiência. A gente acaba reconhecendo o quando é bonito o dis-
curso e o quanto é amarga a atitude.
Márcia – Você acha que é muito discurso e pouca ação?
Elton É então, a gente que são coisas que vão pesando, a cada dia. As pessoas não têm
uma boa educação. A educação é horrível, os hospitais públicos são péssimos e o transporte
mais ainda. As condições de vida não são boas, quando você recebe um aumento de salário,
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pelo dissídio, quase no final do ano, que é bem inferior à inflação, então vai somando, cada
vez ganha menos porque as coisas cada vez mais encarecidas.
Márcia – E o seu futuro?
Elton É! Isso que preocupa. Eu imagino morando fora da cidade de São Paulo. Eu acho que
ir para o interior, Sorocaba, Campinas, mas aqui, acho que não tem mais jeito.
Márcia – Você gostaria de falar mais alguma coisa?
Elton Acho que o programa é uma grande porta para os jovens ingressarem no mercado de
trabalho, isso sem dúvida, mas em relação à educação em si não, ele não é a solução. A solu-
ção está em investir nos setores de base mesmo, e talvez base não seja a questão de educa-
ção, mas a questão financeira e também da saúde.
Márcia Eu quero deixar registrado o agradecimento por você ter aberto as portas da sua ca-
sa. Muito obrigada.
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