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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM HISTÓRIA DA LITERATURA
Letícia Nunes Gomes
MEMÓRIA E LOUCURA: O MOVIMENTO DA INSULARIDADE EM
A LOUCA DE SERRANO, DE DINA SALÚSTIO
Dissertação submetida como requisito parcial à
obtenção do grau de Mestre em História da Literatura
do Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Rio Grande.
Orientadora: Profª. Drª. Eloína Prati dos Santos
Data da defesa: 14 de dezembro de 2010
Instituição depositária:
Sistema de Bibliotecas – SIB
Universidade Federal do Rio Grande – FURG
Rio Grande, dezembro de 2010
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Conheci Cabo Verde através da Literatura.
José Vicente Lopes
A identidade dos contrários chega à sua plena realização:
encontraremos mais que nunca no fundo da maldade a
bondade, no da loucura o juízo, no do riso a tristeza, e no
fracasso a ressurreição, e Dom Quixote e Sancho chegarão ao
mais alto da humanidade do fundo da sua loucura e tontice.
Miguel de Cervantes
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AGRADECIMENTOS
Esta dissertação para ser concretizada teve, como dizem em crioulo cabo-verdiano,
um djunta-mô, juntando as mãos. Meu agradecimento:
Ao PIBIC-CNPq, por ter me proporcionado a iniciação científica.
À Capes, por me dar uma bolsa de um ano para o desenvolvimento do mestrado.
À Associação Atlantis para o Desenvolvimento da Ciência, por me presentear com
a bolsa trabalho no segundo ano do mestrado, oportunizando o seguimento dos meus
estudos. Nessa incluí as pessoas Ivan Soares, Kayo Soares, Hugo, Igor, Giovanni
Ruggiero e Joice, o meu braço direito. Obrigada pelo carinho!
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras, Mestrado em História da Literatura, e
nisso incluí os professores e os meus colegas, pelo apoio.
Ao professor José Luís Giovanoni Fornos, por me apresentar a literatura africana
de língua portuguesa e por desconstruir o meu olhar ocidental.
À minha orientadora Eloína Prati dos Santos, por ter paciência e generosidade
comigo e por ser um exemplo a seguir. Obrigada por tudo!
À Claudia Jane Maydana, por me ajudar e por ser uma mulher admirável.
Aos meus pais, Enildo, por me ensinar o valor do discurso, e Izabel, por me ensinar
o valor do silêncio.
As minhas irmãs Priscila e Bianca, por estarem perto mesmo se longe.
Aos meus sogros João e Marta pelo apoio e exemplo de seriedade com a ciência.
Aos meus amigos que aqui não cabem por serem muitos, mas que divido entre os
que vieram do mar e os que são da terra.
À essa gente que veio do mar e que me trouxe um universo de outro lugar,
obrigada por me apresentar outros horizontes.
À essa gente que vive na terra e que me mostra o valor das raízes, obrigada por
sempre estar próxima de mim.
Ao Giovanni Abdelnur Ruggiero, o mar por onde eu quero navegar, pela presença
constante, pelo incentivo e por ser o meu exemplo.
SUMÁRIO
RESUMO _____________________________________________________ 5
ABSTRACT ___________________________________________________ 6
INTRODUÇÃO ________________________________________________ 7
1. Cabo Verde: uma literatura em revista ____________________________ 11
1.2 Da herança à mudança _________________________________ 19
2. Mulher reescrevendo a Mulher __________________________________ 27
2.1. A memória como espaço _______________________________ 28
2.2. Noites mornas em ilhas mágicas _________________________ 31
2.3. A flor que nasce no deserto ______________________________ 36
3. Do passado ao presente: vozes em desassossego __________________ 41
3.1. Entre Serrano e a Capital _______________________________ 43
3.2. Os ambientes ________________________________________ 48
3.3. Enredo _______________________________________________ 52
4. “Onde as semelhanças nos seus destinos”? ________________________ 53
4.1. Filipa: do espaço à formação do sujeito _____________________ 56
4.2. Louca: da loucura à libertação ____________________________ 61
CONSIDERAÇÕES FINAIS _______________________________________ 71
REFERÊNCIAS ________________________________________________ 78
ANEXOS ______________________________________________________ 83
4
RESUMO
Esta dissertação examina a temática da insularidade no romance A Louca de
Serrano, de Dina Salústio. Tema explorado desde os “claridosos”, nesta narrativa possui
um significado diferente da tradição literária cabo-verdiana. A insularidade não é vista pelo
viés geográfico e sim pelos sentimentos das personagens Filipa e Louca. Personagens
que foram isoladas na comunidade serranense por apresentarem o diferente e o novo. A
trajetória de Filipa reproduz esse isolamento através da frieza e solidão de seu
comportamento. A Louca tem a insularidade imposta a ela pela comunidade como uma
tentativa de silenciar o seu discurso.
Palavras-chave: Romance cabo-verdiano, mulher e insularidade, loucura e memória.
5
ABSTRACT
This thesis examines the theme of insularity in the novel A Louca de Serrano, by
Dina Salústio. The theme has been explored since the “claridosos” and in this narrative
takes a significance different from that of the Caboverdian literary tradition. Insularity here
is not seen from the geographical point-of-view but from the feelings of the main
characters, Filipa and Louca (the crazy one). These characters have been isolated within
the Serranean community for bringing in the different and the new. The trajectory of Filipa
reproduces this isolation through the coldness and solitude of her behavior. Louca has the
insularity imposed on her as an attempt at silencing her discourse.
Keywords: Caboverdian novel, women and insularity, madness and memory.
6
INTRODUÇÃO
O definitivo muitas vezes tem a dimensão
reduzida do acaso.
Dina Salústio
Graduada em Letras, Português e Francês, pela Universidade Federal do Rio
Grande, no ano de 2005 tive a oportunidade de me vincular ao projeto Pós-colonialismo e
Estudos Multiculturais nas personagens de ficção dos romances afro-luso-brasileiros,
orientado pelo professor Dr. José Luís Giovanoni Fornos, que me possibilitou entrar em
contato, primeiro com a teoria literária sobre a personagem, e após com os Estudos
Culturais. Esse percurso, que durou três anos e meio como bolsista vinculada ao CNPq e
um ano como voluntária, permitiu o conhecimento sobre questões do tema, como
colonialismo, pós-colonialismo, diáspora, identidade e alteridade, através do estudo de
obras ficcionais das literaturas portuguesa, africana de língua portuguesa e brasileira.
Em busca de uma obra ou escritor para desenvolver a dissertação, fiz a escolha de
continuar com o estudo na literatura africana de língua portuguesa. Nesse caminho entro
em contato, por acaso, com um trecho da obra A Louca de Serrano (1998), da escritora
cabo-verdiana Dina Salústio. O trecho é do artigo de Simone Caputo, A Louca de
Serrano, de Dina Salústio (disponível online). A leitura deste me apresentou o que
desejava para desenvolver a dissertação: uma linguagem lírica que aborda questões
relacionadas à identidade feminina, ao discurso da loucura e um toque do realismo
mágico presente na literatura africana.
O que eu não imaginava era que romances cabo-verdianos não possuem muitas
edições. Assim, tive dificuldade em conseguir esse romance, pois sua última publicação
7
foi quase dez anos e não havia em nenhuma biblioteca ou livraria brasileira qualquer
menção a ele. Encontrei-o pela internet, em Lisboa, na Livro di Téra, um espaço cabo-
verdiano que divulga a cultura e a arte do arquipélago. Esse espaço não é uma livraria,
mas o rapaz (Belarmino) com quem dialoguei conseguiu o único exemplar e me anunciou
que o restante das obras seria inviável conseguir. Quando li o romance tive a certeza que
seria a obra que iria estudar na minha dissertação.
As outras obras de Salústio vieram pela Amazon, dos EUA, Mornas eram as noites
(1999)
1
. Os poemas reunidos na obra Mirabilis de veias ao sol (1991)
2
, organizada por
José Hopffer Almada, vieram da Biblioteca da Iowa State University, EUA, pelo Comut da
FURG.
Ao ler neste ano o jornal A Semana, de Cabo Verde, descubro que Dina Salústio
lançou um outro romance, Filhas do Vento (2010)
3
. Nesse jornal encontro uma coluna
escrita pelo poeta José H. Almada e em um dos seus artigos o seu endereço
eletrônico. Entro em contato com o poeta Almada, e ele, muito gentil, me passa o
endereço eletrônico de Salústio. Entro em contato com a escritora e conto a minha
“odisséia” em busca de notícias e obras dela. Ela, muito simpática e terna, me envia o
romance Filhas do Vento e com ele consigo formar o corpo ficcional deste estudo.
A parte crítica da dissertação é composta pelos estudiosos que trabalham com a
obra da escritora: Simone Caputo, Carmen Tindó Secco e Sonia Santos no Brasil, José H.
Almada, Manuel Lopes e Daniel Spínola em Cabo Verde, e a ensaísta Inocência Mata em
Portugal.
Através dos críticos começo a pensar a história literária de Cabo Verde e o
contexto social em que Salústio escreve suas obras. Assim, percebo que para questionar
o discurso contido no romance seria necessário entender a formação da literatura do
arquipélago.
O capítulo intitulado “Cabo Verde: uma literatura em revista” traça o percurso
histórico-literário de Cabo Verde a partir da revista Claridade (1936) até a geração
mirabílica. Esta revista desenvolveu o horizonte literário para as próximas gerações. Seus
estudos sobre a identidade cabo-verdiana oportunizaram o pensamento de uma cultura
desvinculada do olhar do império, logo, a sua publicação representa a autonomia
intelectual do arquipélago cinquenta anos antes da independência política.
O diálogo existente entre literatura e história será apresentado a partir dos estudos
1
A identificação deste romance será pela sigla MN.
2
A identificação deste romance será pela sigla MVS.
3
A identificação deste romance será pela sigla FV.
8
de Benjamin Abdala Junior, Jane Tutikian, Tania Macedo, José H. Almada, Daniel
Spínola, Pires Laranjeira e Manuel Ferreira. Estes serão alguns dos nomes que
apresentarão a formação da literatura cabo-verdiana no contexto social e político do
arquipélago.
No capítulo, “Mulher reescrevendo a Mulher” serão apresentadas as obras de
Salústio. Começo pelos poemas da geração mirabílica, passando por alguns contos de
Mornas eram as noites e chegando ao último romance, Filhas do Vento. Nesse caminho
serão trabalhadas as questões relacionadas aos discursos que permeiam o universo
feminino inserido em uma sociedade ainda com modelos coloniais e os deslocamentos
que as personagens de Salústio realizam, físicos ou pela memória. Este último é
recorrente na obra salustiana, constituindo, por vezes, o mecanismo de projeção dos
espaços míticos em que os sujeitos femininos buscam a sua plenitude.
Simone Caputo é uma das principais estudiosas da cultura literária cabo-verdiana
no Brasil e insere a produção de Dina Salústio dentro do contexto das escritas femininas
de Cabo Verde. Na sua obra, Cabo Verde Literatura em Chão de Cultura (2008), constrói
um novo cânone literário cabo-verdiano, apresentando textos e escritoras em um
processo de divulgação e inserção de novas vozes na história literária do arquipélago.
Assim, diz Caputo, “as escritoras colocam em ação, em seus textos, a mulher cabo-
verdiana, seja como protagonista, coadjuvante ou figurante de destaque, documentando a
historicidade da participação feminina na construção e no desenvolvimento do país” (p.
284).
No capítulo “Do passado ao presente: vozes em desassossego” é apresentado um
resumo analítico do romance, já que é uma obra pouco conhecida na academia e não
publicação desde 2001.
No capítulo “Onde as semelhanças nos seus destinos?” é feita a análise do
romance, em que trato da insularidade como o elo que une as duas personagens centrais,
Filipa e a Louca. Nele apresento uma pequena introdução sobre o contexto da
insularidade na literatura cabo-verdiana. No subtítulo “Filipa: do espaço à formação do
sujeito” é abordada a memória como mecanismo de reconstrução da identidade, sendo a
busca desta empreendida pela insularidade em que a personagem se encontra. Para isso,
Raquel Souza (2010) ajuda a construir o pensamento sobre a memória como veículo de
deslocamento no tempo e espaço e Stuart Hall (2009), no que toca à questão da memória
como forma de reconstrução das identidades partidas. Hall aborda os sujeitos diaspóricos,
mas neste trabalho a memória será examinada como uma estratégia de ressignificação
9
da identidade. No subtítulo “Louca: da loucura à libertação”, a insularidade é abordada
pelo isolamento que a comunidade impõe à personagem Louca. Neste subtítulo, Foucault
será a base do estudo, explicando os espaços de exclusão dos sujeitos considerados
alterados do meio social e o significado da personificação da loucura em uma sociedade.
O romance A Louca de Serrano é trabalhado a partir da segunda edição em 2001,
publicada em São Vicente pela Spleen-Edições. Dessa forma, gostaria de esclarecer de
antemão que as referências aos trechos do romance são identificados com a sigla LS e os
números de página desta edição.
10
1. Cabo Verde: uma literatura em revista
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
(...)
Aqui eu não sou feliz
(...)
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
(...)
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
Manuel Bandeira
Raras vezes nota-se a literatura como um universo simbólico capaz de modificar o
meio social. Na literatura cabo-verdiana isso ocorreu: chegaram aos poetas Baltasar
Lopes da Silva, Manuel Lopes e Jorge Barbosa obras da literatura brasileira dos anos 20
e 30 do século XX e a partir de sua leitura eles começaram a pensar a literatura cabo-
verdiana do Movimento Claridade.
pouco mais de 20 anos, eu e um grupo reduzido de amigos,
começámos
4
a pensar o nosso problema, isto é, no problema de Cabo
Verde. Precisávamos de certezas sistemáticas que nos poderiam vir,
como auxílio metodológico e como investigação, de outras latitudes. Ora
aconteceu que por aquelas alturas nos caíram nas mãos, fraternalmente
juntas, em sistema de empréstimo, alguns livros que consideramos
essenciais pro domo nostra. Na ficção o José Lins do Rego d'O menino de
engenho, do Bangüê; o Jorge Amado do Jubiabá, e Mar morto; o Amando
Fontes de Os corumbas; o Marques Rebelo de O caso da mentira...
4
Todas as citações seguirão a ortografia das obras de origem.
11
(LOPES, B. apud ABDALA JUNIOR, 2007, p. 104)
Pensar a história literária cabo-verdiana é pensar a importância de periódicos para
a divulgação da palavra poética. O percurso literário de Cabo Verde foi construído através
de revistas que fomentavam a difusão cultural e o conhecimento geral sobre literatura.
Ocorria a publicação de algumas obras
5
, mas em número menor, sendo as revistas o
veículo que une diversos escritores com os diferentes expoentes linguísticos.
Começo a descrever a história literária cabo-verdiana a partir da revista Claridade
(1936)
6
, porque ela representa a ruptura com as temáticas literárias de Portugal.
Inspirados no regionalismo da literatura brasileira, os claridosos escrevem poesias que
vão ao encontro da cultura crioula, mostrando assim, uma independência intelectual e
cultural em relação ao império. Segundo Jane Tutikian, no artigo Por uma Pasárgada
Cabo-verdiana, a revista Claridade,
Procurava assumir a modernidade, sobretudo a realista, a busca das raízes
antropológicas e culturais, manifestada no gosto pela etnografia e filologia
do crioulo e, ainda, a valorização da criatividade popular. Apontava, dessa
forma, a descoberta de um espaço marcado pela insularidade, pela fome,
pela seca, pelo mar feito prisão e caminho de uma cultura essencialmente
mítica (TUTIKIAN, 2007, p. 248).
As problemáticas sociais e econômicas do arquipélago tornam-se temáticas
literárias. A Claridade representa a denúncia da estrutura política e social do arquipélago,
como o período histórico é a dependência colonial de Portugal; a explicitação do seu
caráter político é camuflada. Pires Laranjeira aponta esse caráter; para ele a revista tem
um compromisso “se não marxista, pelo menos anti-fascista e anti-colonialista”, e mais,
“Aposto na hipótese de que existiram como projecto e programa, restando o título de
Claridade como única referência à luz do dia” (LARANJEIRA, 1985, p. 105 – 106).
Segundo Laranjeira a etimologia da palavra claridade é composta “por dois
qualitemas: clara + idade” (1985, p. 109). Para ele, a Claridade se opõe à questão da
Negritude, no caso, a negação da africanidade pura, de uma essência negra (1985, p.
5
Escritores, que contribuíram para a história literária da prosa cabo-verdiana, antes da independência em
1975, são Baltasar Lopes, Manuel Lopes, Teixeira de Sousa, Antônio Aurélio Gonçalves, Luís Romano,
Teobaldo Virgínio.
6
O período anterior à revista Claridade é o chamado Cabo-verdianismo. Vários escritores e teóricos
apontam a revista Claridade como marca da originalidade literária (VEIGA, 1998). Esta revista teve nove
números entre 1936 e 1960 (Mindelo, Ilha de São Vicente): 1936 dois números; 1937 um número; 1947
dois números; 1948, 1949, 1958 e 1960 um número em cada um destes anos. Entre outros, contam-se
os seguintes colaboradores da publicação: Aguinaldo Brito Fonseca, Antonio Gonçalves, Arnaldo França,
Baltazar Lopes, Corsino Fortes, Félix Monteiro, Gabriel Mariano, Jorge Barbosa, Manuel Lopes, Onésimo
Silveira, Osvaldo Alcântara, Ovídio Martins, Terêncio Anahory e Xavier Cruz” (MACEDO, 2007, p. 91).
12
111). A relação do nome da revista com a luz mostra a negação da escuridão que antes
existia na literatura cabo-verdiana, escuridão sobre a abordagem de temáticas
relacionadas ao contexto social do arquipélago.
Essa revista oportunizou o estudo do folclore cabo-verdiano, da língua crioula, das
especificações culturais do arquipélago, dando luz às problemáticas políticas, sociais e
geográficas de Cabo Verde. Laranjeira, ao citar António Aurélio Gonçalves, acrescenta
que
[...] intervieram outras determinantes mais poderosas e de raízes mais
fundas, como, por exemplo, a convicção de uma originalidade regional
cabo-verdiana, a necessidade de protestar e de dar o alarme perante uma
crise económica, causada pela estiagem, pelo abandono do porto de S.
Vicente, pela sufocação proveniente do encerramento da emigração para a
América do Norte (Idem, p. 108).
Essa movimentação intelectual surge inspirada em obras literárias brasileiras que
tratam as mesmas problemáticas, porém no contexto do nordeste brasileiro. Influenciados
pelo movimento modernista da geração de 30 que ocorre no Brasil, os escritores cabo-
verdianos encontram através de espaços, falas e temas a sua realidade construída pelo
imaginário brasileiro. A seca, a fome, a fuga, a miséria nos espaços são temáticas de
escritores como João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rego, Jorge Amado, Amando
Fontes, Marques Rebelo, Manuel Bandeira e Gilberto Freyre.
As influências brasileira e portuguesa
7
, mais o caminho trilhado por uma discussão
sobre a miscigenação cultural e étnica que estava sendo feita em 1930, permitem que
escritores cabo-verdianos produzam uma revista que mostra o regional, visando
características do espaço, da história dos povos, formando um pressuposto da identidade
cabo-verdiana.
A questão sobre a miscigenação cultural e étnica deve ser discutida devido às
diversas opiniões sobre a naturalidade desse processo no arquipélago. Para Manuel
Ferreira foi um processo harmonioso que ocorreu de forma natural; para outros
estudiosos, como Elisa Andrade e José Hopffer Almada, foi uma necessidade social,
econômica e fisiológica, porém os povos africanos foram prejudicados em vista da sua
história de deslocamento para Cabo Verde. José H. Almada aponta um africanismo
português mais permissivo que a europeização africana, porém criou-se a mitificação do
7
Alguns críticos como Tania Macedo e Manuel Ferreira dizem que essa influência é da revista Presença
(1927), Pires Laranjeira diz que a influência social e política, pelo questionamento do status quo
dominante, encontra-se na revista Seara Nova (1921).
13
mulato. No entanto, o ensaísta afirma que durante o regime colonial, existia a hierarquia
em que os brancos eram considerados superiores, os mulatos (o arquétipo dos cabo-
verdianos) superiores aos negros, e estes continuavam com o estigma de subalternos e
inferiores. O argumento da miscigenação cultural e étnica em Cabo Verde serviu para
perpetuar o racismo e o preconceito contra os povos originários da África.
A revista Claridade surge cinquenta anos antes da independência política de Cabo
Verde, rompe com os arquétipos linguísticos e estéticos de influência europeia e
possibilita uma nova consciência sobre a linguagem, valorizando traços da regionalidade,
da raiz cabo-verdiana e do crioulo. É com esse intuito que o lema da revista clama por
fincar os pés no chão, permitindo que a voz seja direcionada para os povos
marginalizados e periféricos que construíram e fazem parte da identidade do
arquipélago
8
.
A revista não aborda explicitamente a descolonização política de Cabo Verde,
porém constrói um horizonte em que esta reflexão é alcançada. Os claridosos, ao propor
uma nova técnica literária em que o objetivo central é a independência dos modelos
literários de Portugal, constroem um pensamento em que desvinculam a cultura cabo-
verdiana da cultura do seu colonizador. Essa revista tem uma grande importância pela
percepção e ruptura da relação império e colônia, constituindo um olhar do cabo-verdiano
independente dos discursos do colonizador e promovendo a consciência e a autonomia
culturais.
No poema “Irmão” de Jorge Barbosa, no número da revista Claridade, de 1936,
o eu-lírico enuncia a sua postura perante a condição dos cabo-verdianos periféricos. Com
o título “Irmão”, ele se insere dentro daquelas condições que denuncia, “Nestas pobres
Ilhas nossas/ És o homem da enxada”, dando voz aos sujeitos que não fazem parte da
história e da literatura cabo-verdiana. No trecho do mesmo poema, “Cruzaste Mares/ na
aventura da pesca da baleia,/ (…) Sob o calor infernal das fornalhas/ alimentaste de
carvão as caldeiras dos vapores,/ em tempo de paz/ em tempo de guerra.”, o eu-lírico
reconta a história da escravidão e apresenta ao leitor o trabalho que este irmão ainda
exerce dentro do contexto social de Cabo Verde. No fim deste poema, “A Morna.../ Parece
8
Importante tratar da colonização do arquipélago, que foi descoberto pelos portugueses em 1460 e possuía
poucos habitantes chamados de náufragos por alguns historiadores. O ambiente não proporcionava
habitação e uma das teorias para este evento são as desfavoráveis condições climáticas. Neste contexto
povoam o arquipélago os portugueses (pouca nobreza, muitos degredados políticos) e os africanos
(principalmente guineenses e senegaleses). Para alguns teóricos as condições desfavoráveis influenciaram
o processo de miscigenação devido às dificuldades que tanto os africanos quanto os portugueses tinham
para resolver, sendo a maior parte delas situações que não tinham a ajuda do império (Cf. ANDRADE,
1998).
14
que é o eco em tua alma/ Da voz do Mar”, o sujeito poético apresenta a marca identitária
cabo-verdiana a “morna”, música popular do arquipélago. Segundo Abdala Junior a morna
possui “raiz no lundum africano, provavelmente foi assimilado no Brasil e levado para
Portugal, (…) no século XVIII entra em Cabo Verde, período que marca um grande afluxo/
refluxo de escravos para a Bahia” (ABDALA JUNIOR, 2007, p. 101 - 102). A morna neste
poema carrega a originalidade cabo-verdiana, característica musical que vem das classes
periféricas do arquipélago, possuindo a influência da modinha brasileira e do fado
português, este também originário do lundum.
Pela consciência que estes poetas têm das múltiplas ausências a que o
arquipélago está exposto, produzem poemas inspirados no tema da fuga, no sentimento
“ter de ir, querendo ficar ou querendo ir e tendo que ficar”. Isso determinou uma forte
crítica da época que os acusava de evasionistas. Essa expressão surge pela influência de
poemas, entre eles o poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, do poeta brasileiro Manuel
Bandeira. Porém, diferente do que alguns críticos pensavam no período, a fuga não está
necessariamente relacionada ao deslocamento territorial: representa, sim, a projeção da
sociedade idealizada, uma alternativa de mostrar a realidade que possuía diversas
dificuldades; é o deslocamento consciente e pela consciência, de forma ficcional e não
físico.
Mais tarde quiseram apodar a Claridade e os que prolongaram o seu
espírito, através da poesia e da ficção, como evasionistas. Não se pode
negar que esse tema não esteja presente na poesia da Claridade como,
aliás, surge na Certeza
9
e já havia sido indiciado (começa-se agora a saber
disso) nos poemas da juventude de Amílcar Cabral. É um fruto da época e
assim merece ser entendido em sua larga expressão: no fundo era o
reconhecimento da tacanhez e da insuficiência do meio mercê da
incapacidade colonial. Dessa forma, o evasionismo dos anos 30 e 40
adquiria a expressão de recusa e não de fuga. O resto é, em grande parte,
excesso ou injustiça crítica (FERREIRA, 1987, p. 44).
A importância brasileira neste contexto de mudança estética na literatura mostra
com quem os cabo-verdianos gostariam de se identificar. A presença brasileira é o
espelho do mesmo processo colonial cabo-verdiano, porém com particularidades e
riquezas culturais diferentes das do império. Essa ligação não surgiu a partir dos
claridosos, sendo constatada em 1822, quando na ilha de Santiago ocorre uma revolta em
que os cabo-verdianos querem se unir ao Brasil recém independente, como mostra o
trecho de Elisa Andrade:
9
Revista que surge em 1944.
15
Sobre a revolta dos aldeãos de Ribeira de Engenho (Santiago) de 1822,
escreve Rocha Martins na sua obra “História da Colónias Portuguesas,
Academia das Ciências de Lisboa, Tip. da Empresa Nacional de
Publicidade, Lisboa, 1933, p. 175: “Levedava uma revolução. Diversos
indivíduos pretendiam que o povo se manifestasse para unir o arquipélago
ao governo brasileiro.” Segundo o Governador Chapuzet, que chegou a
Cabo Verde a 11 de Fevereiro de 1923
10
, tinha sido informado à sua
chegada que algumas pessoas procuravam constituir um partido ligado ao
Brasil para onde queriam enviar uma delegação para solicitar a sua adesão
ao plano: independência de Cabo Verde em união com o Brasil que
acabara de proclamar a sua independência (1822). A ideia de
independência de Cabo Verde unido ao Brasil deve ter sido muito forte e
subsistido por muito tempo nos espíritos, Galvão e Selvagem (op. cit. vol. I,
p. 99) falam da ideia que circulava entre os liberais de Cabo Verde nos
anos 1830 preconizando a formação de uma “Confederação Brasileira” que
reunisse o Brasil independente, Angola e Moçambique. Em 1836, por
ocasião de uma rebelião de escravos e jornaleiros na ilha do Sal, tomaram
a bandeira do consulado do Brasil que desfraldaram (Cof. B.O. de Cabo
Verde, nº 189, 22 de Maio de 1947). (ANDRADE, 2009, p. 209)
Essa união de países irmãos pela colonização e que possuem o mar como estrada
e elo, mostra a importância daquelas obras citadas no início deste capítulo. A revista
Claridade surge em chão sólido, os centros culturais e sociais estavam discutindo a
temática da realidade. Manuel Ferreira (1987) diz que a influência brasileira e a revista
portuguesa Presença são documentos importantes nesse novo impulso literário, porém as
revistas Ressurgimento (1934-1935), A Mocidade Cabo-verdiana (1935) e A Juventude
(1936) mostravam que o signo da mudança estava presente, através de alguns
prefácios, gestos, pequenas referências.
Esse horizonte de conscientização sobre a cultura cabo-verdiana e sobre o ilhéu
inserido no mundo, se apresenta nos periódicos como Certeza (1944), Suplemento
Cultural (1958), Seló e o Boletim Cabo Verde (1949-1965): este último teve colaboração
de quase todos os escritores cabo-verdianos da época.
No contexto dos anos 40 do século XX, surge a primeira obra ficcional da moderna
literatura cabo-verdiana, Chiquinho, de Baltasar Lopes, publicado em 1947, mas escrito
desde 1940. Sua temática é o mundo insular e sua linguagem apresenta algumas
expressões e formas sintáticas em crioulo. Nessa década, e sob a influência histórica da
Segunda Guerra Mundial, surge a revista Certeza, em 1944, com duração até 1957. Esta
revista visa a literatura de libertação política, diferente da Claridade, que tem o objetivo de
ser uma literatura regionalista como reconhecimento da identidade. A característica da
10
Acreditamos que essa data esteja errada, sendo 1823 e não 1923 pela persistência da ideia.
16
Certeza, segundo José Almada, é “a esperança enquanto conteúdo fundamental do
destino humano” (ALMADA, 1998, p. 138).
A Certeza possui o traço ideológico da consciência do atraso do país. Segundo
Tania Macedo, essa revista tem o “componente antievasionista no pensamento e textos
dos colaboradores, redundando em um profundo apego à terra, agora vista como espaço
de mudanças que devem ser implementadas” (MACEDO, 2007, p. 95). O poema “Anti-
evasão” de Ovídio Martins é a negação da fuga das ilhas. Ao dialogar com o poema “Vou-
me embora pra Pasárgada”, de Manuel Bandeira, Martins apresenta a negação dos ideais
claridosos, que acredita serem o abandono da luta pela modificação do espaço social do
arquipélago: “Atirar-me-ei ao chão/ E prenderei nas os convulsas/ Ervas e pedras de
sangue/ Não vou para Pasárgada” (MARTINS, 2008, p. 134-135)
Macedo discute esse processo como a consciência dos escritores sobre o
subdesenvolvimento social. Ao citar Antônio Candido, ela diz: “os autores voltaram-se
'contra as classes dominantes, vendo na degradação do homem uma conseqüência da
espoliação econômica e não do seu destino individual'” (MACEDO, op. cit., p. 88).
A Certeza tem a influência dos textos nordestinos brasileiros, do neo-realismo
português, com traços ideológicos do marxismo; seus poemas possuem temáticas que
abordam a libertação, o comprometimento ideológico com a humanidade. Segundo
Manuel Ferreira é nesse movimento que surge a modificação do passado “hesperitano”
para a temática da ilha. Elisa Andrade, ao contar do mito das Hespérides, diz:
Quando os deuses partilharam a terra entre si, Atlântida coube a Posidon
(Neptuno) que veio a casar-se com Clito, uma mortal, que tendo perdido os
seus pais, aí vivia sozinha. Desse casamento nasceram dez filhos. Posidon
dividiu a ilha em dez parcelas, deu uma a cada um dos filhos e atribuiu a
supremacia a Atlas. (…) O mito das Hespérides, estas ninfas do
entardecer, que com a ajuda do dragão Ladon guardavam o jardim dos
deuses, onde se encontravam as maçãs de ouro que a Terra tinha
oferecido a Hera como presente de casamento, quando esta se casou com
Zeus. (ANDRADE, 1998, p. 18-19)
A tais mitos gregos os poetas recorrem na tentativa de dar um passado heroico
para Cabo Verde, assim como a textos de Platão quando descreve o mito de Atlântida. A
ilha possuía habitantes filhos de humanos com deuses: um povo guerreiro que foi
destruído em um cataclismo (reza o mito que foi castigo de Zeus a destruição de
Atlântida, pela indecência dos cruzamentos com mortais, pela avidez do poderio).
Segundo Manuel Ferreira a importância desse mito era tão forte que um dos fatores que
17
levou o poeta Jaime de Figueiredo a não contribuir com a revista Claridade está na
escolha do nome desta ele preferia o nome Atlântida a Claridade. Os escritores da
revista Certeza, ao escolherem tratar de Cabo Verde pela sua condição de ilha, e não
pela associação ao mito grego, mostram a consciência histórica e não mítica em que suas
poesias estavam sendo produzidas.
Segundo Almada “a Certeza constitui, certamente, uma das árvores mais frondosas
germinadas a partir da Claridosidade, não pelo facto de ter consolidado os contornos
do nosso modernismo, (...), como também por (…) ter feito excursos poéticos de elevado
nível na interrogação do ser social cabo-verdiano e da sua identidade. (ALMADA, 1998, p.
137). Essa consciência produz textos que visam a ampliação do horizonte, ultrapassando
o espaço do arquipélago e dialogando com o continente africano, como diz Macedo ao
citar Amílcar Cabral :
Anos volvidos, aparece a Certeza, folha infelizmente efémera, fundada por
estudantes do Liceu. Nela, Arnaldo França, Nuno Miranda, Tomaz Martins,
G. Rocheteau e outros jovens, ensaiam uma nova mensagem e mostram
que compreenderam a dos Poetas da Claridade. Mas a Certeza não é
apenas uma compreensão da Claridade.
O seus Poetas o contacto com o Mundo é cada vez maior sentem e
sabem que, para além da realidade cabo-verdiana, existe uma realidade
humana, de que não podem alhear-se. Sentem e sabem que não é apenas
em Cabo Verde que “há gritos lancinantes pela noite silenciosa” e “homens
vagabundos” que “fitam estrelas que a madrugada esculpiu”. E dizem,
querem dizer “um canto... que cruze nos mares mais distantes e entre nos
corações dos homens... um canto com contornos de paz e relevos de
esperança”. De esperança (CABRAL, 2007, p. 97)
11
O poeta Tomás Martins, um dos poucos poetas que explora o tema amor, aborda
essa temática pelo coletivo, pelo amor fraterno, diferente da postura de outros poetas que
apresentam o amor na individualidade. Como esclarece Manuel Ferreira, “o amor que se
exprime nos anos 30 e 40, é um amor fundido na camaradagem do comprometimento
ideológico” (FERREIRA, 1987, p. 52). Tutikian, ao mencionar a revista Certeza, diz que
11
Importante frisar que neste contexto surgem textos de Amílcar Cabral, publicados na revista Mensagem
em Lisboa, de 1946 a 1949. Guineense de nascença, filho de cabo-verdianos, teve seus primeiros estudos
em Cabo Verde. Produziu vários textos ficcionais e teóricos e foi o grande impulsor da independência de
Cabo Verde e Guiné-Bissau. No processo de libertação política que ocorreu em 5 de julho de 1975 em Cabo
Verde, usava o lema dar a conhecer Cabo Verde aos cabo-verdianos. Seria a prática do lema da revista
Claridade que dizia fincar os pés no chão. Foi conhecido na Europa como o libertador e difusor da libertação
das colônias africanas de Portugal. Membro da Casa d’África, da Casa dos Estudantes do Império, dirigiu
diversos colóquios e comunicações na França, Inglaterra, Itália em prol da discussão da libertação das
colônias africanas. Cabral morreu em 20 de janeiro de 1973, brutalmente assassinado por elementos
infiltrados no PAIGC (Partido Africano para Independência da Guiné e Cabo Verde) a mando dos
colonizadores.
18
“recusa o restrito e o tribal, colocando em seu lugar a luta pela inserção de Cabo Verde,
como nacionalidade, dentro do contexto africano” (2007, p. 237).
A partir da década de 50 a temática da escravidão e da subjugação humana
começam a ser mencionadas na poesia. Aguinaldo Fonseca publica Linha do horizonte
(1951), e nesta obra o poema “Magia Negra”, que faz menção à escravidão: como
“Arrasta-se o vão lamento/ Da África dos meus avós,/ Do coração desta noite,/ Ferido,
sangrando ainda/ Entre suores e chicotes”. Neste aparece a “África” com conotação
política, dando relevo às questões de libertação que Amílcar Cabral discute.
Essas duas revistas são consideradas, por todos os críticos mencionados neste
capítulo, como os momentos decisivos da formação literária de Cabo Verde. Deram o
horizonte estético e político do arquipélago, permitiram o olhar para as problemáticas
sociais do país. As revistas que as sucederam carregam traços do regionalismo cabo-
verdiano e da liberdade política no contexto africano.
1.2. Da herança à mudança
O conhecimento da identidade (Claridade) aliado à percepção do processo colonial
(Certeza) permitem na literatura a autonomia cultural, substituindo o lugar do colonizado
pelo sujeito livre em Cabo Verde.
Em 1958
12
surge uma nova revista no plano literário em Cabo Verde, o Suplemento
Cultural. Publicam nesta revista alguns dos poetas que participaram da Claridade e da
Certeza. Porém, diferente da temática regional que a Claridade sugere e da posição
marxista que a Certeza explora, o grupo do Suplemento Cultural visa a substituição “do
conceito de regional para o conceito de nacional. É assim que uma nova perspectiva em
relação à situação colonial surge próxima à década de 60 e nesta se vai prolongar e
aprofundar.” (FERREIRA, 1987, p. 56)
Nesta revista os poetas o Carlos Alberto Monteiro Leite, ativista literário e
político; Gabriel Mariano, um dos fundadores, e que no primeiro número da revista afirma
que quem lançou os alicerces da sociedade crioula foi o homem crioulo, o próprio cabo-
12
Surge na década de 60 a obra ficcional Famintos (1962), de Luis Romano. Este constrói o espaço
referente à ilha de Santo Antão, sua temática é a fome e a condição de sujeitos reprimidos. Despontou na
historiografia literária cabo-verdiana pela utilização do crioulo na produção da escrita. Teobaldo Virgínio,
irmão de Luís Romano, produz suas narrativas visando o espaço, também recorrendo a ilha de Santo
Antão. Produziu as obras narrativas Distância (1963) e Beira de Cais (1963).
19
verdiano: o negro, o mulato e o branco já aculturados.”
13
(apud FERREIRA, 1987, p. 57). É
nesse período que a consciência sobre a colonização começa a ser discutida e
tematizada no plano literário.
Gabriel Mariano, que em suas narrativas visa os deslocamentos espaciais, produz
críticas que estão vinculadas à emigração e ao que isso resulta no processo social e
econômico do arquipélago. No poema “Caminho Longe”, o poeta aborda a emigração,
denunciando os chamados 'contratados', “Caminho/ caminho longe/ ladeira de São-Tomé/
Não devia ter sangue/ Não devia, mas tem.”, cabo-verdianos que viam nas roças de São-
Tomé a esperança de libertarem-se da miséria a que estavam expostos pela seca do
arquipélago. Pela emigração, procuram melhores condições econômicas, porém “caminho
longe/ ladeira de São-Tomé/ Devia ser de regresso/ devia ser e não é” ( MARIANO, 2003,
p. 151). Esses homens que iam, pelas condições piores que encontravam, não
retornavam.
Segue no mesmo caminho o poeta Onésimo Silveira, que no poema “Hora Grande”
discute a relação colonial através da imagem da criança, “As crianças nascerão sem
metas nos olhos/ E as suas mãos sujar-se-ão/ Do mel do nosso olhar...”. É pelo símbolo
da infância, da renovação, que o poeta explora a questão colonial em que existe o
discurso da diferença pela cor da pele. Porém, através do “olhar de mel” do eu-lírico, a
ternura e a fraternidade surgirão, e assim “As crianças serão crianças!/ Negras e loiras e
brancas/ Serão pétalas da mesma flor...” ( SILVEIRA, 2003, p. 146).
Surge em 1962 a revista Seló, organizada por Rolando Vara-Cruz Martins, Jorge
Miranda Alfema e Oswaldo Osório, a que se juntaram Armênio Vieira e Mário Fonseca. O
nome da revista remete ao “brado utilizado na Ilha Brava. Quando se vê um navio na linha
do horizonte que está a demandar porto, a gente grita Seló, para avisar as pessoas da
terra que está um barco a se aproximar” (OSÓRIO, 1999, p. 70). Nesse chamado que a
revista faz, prolonga-se o discurso reivindicativo e expressa-se a angústia e a
problemática social da colonização. uma inovação estética, possibilitando novas
formas de representar a linguagem: neologismos, paralelismos, justaposições. Seria a
representação do novo homem cabo-verdiano através de uma nova escrita. Esta revista,
segundo Manuel Ferreira, “é um projeto que ultrapassa a esfera das condições sociais
para englobar os próprios mitos da linguagem esgotada, no intento de exprimir a
'esperança' e os 'sonhos' do 'homem novo'” (1987, p. 62),
como mostra o poema
13
Este trecho é retirado do texto que Gabriel Mariano apresentou aos Colóquios Cabo-Verdianos, em 1959,
com o título Do funco ao sobrado ou o ‘mundo’ que o mulato criou. O texto discute a mestiçagem e o seu
papel na formação da sociedade cabo-verdiana.
20
“Caboverdeamadamente construção meu amor”, de Oswaldo Osório,
Cantalutando caboverdeamamos
caboverdeamadamente construímos a nossa terra
cantalutando caboverdeano os nossos sonhos descem às mãos
a esse ato caboverdeamor
cantaluta cantaluta cantaluta
caboverdeamadamente (OSÓRIO, 1987, p. 61-62)
A década de 70
foi o período de intensa movimentação tanto intelectual quanto
política no processo de independência colonial de Cabo Verde. Surgem no panorama
literário temáticas que foram plantadas desde o movimento da Claridade. Segundo
Manuel Ferreira “é o tempo da ressurreição, e com ela que significa a liberdade, irrompe a
necessidade e o prazer da inovação, da invenção, da mudança que pressupõe a criação
de um novo espaço: uma nova língua, uma nova escrita a voz do reencontro para os
fundamentos de uma nova estética” (idem, p. 63).
Surge em 1974 a primeira prosadora cabo-verdiana, Orlanda Amarílis, com a obra
Cais-do-Sodré Salamansa. Livro de contos que prioriza as personagens femininas em
trânsito entre a ilha de S. Vicente e a cidade de Lisboa, Portugal, em uma referência a
sujeitos diaspóricos. Em 1982 publica a obra Ilhéus dos pássaros, que segundo Manuel
Ferreira “introduz, tal como o havia feito em Cais-do-Sodré Salamansa, o
desdobramento ou, antes, o prolongamento do espaço geográfico de Cabo Verde, que vai
das ilhas e penetra pelo mundo afora” (FERREIRA, 1987, p. 80).
São poetas importantes dessa década João Manuel Varela, com seus
pseudônimos (João Vário, Timóteo Tio Tiofe), Corsino Fortes, Teobaldo Virgínio, Daniel
Filipe, entre outros. Corsino Fortes terá um papel fundamental na literatura cabo-verdiana.
Singular na construção de suas poesias, utiliza temáticas que mostram o cabo-verdiano e
seu espaço, porém seu diferencial será o trabalho com a palavra, verso a verso, como
mostra o poema “Pão & fonema”, 1975:
“Ouve-me! primogênito da ilha
Ontem
fui lenha e lastro para navio
Hoje
sol semente para sementeira
Devolvo às ondas
A evocação de ser viagem
E fico pão à porta das padarias
21
Onde
o bolor da terra
é sangue e trigo
E o milho que amamos
É nosso irmão uterino
Onde
os corvos sangram do alto
bibliotecas de tantas sílabas
Onde
o osso é cada vez mais espiga (...)”
14
(FORTES, 2003, p.159).
O poema mostra a fusão do eu-lírico com elementos naturais e representantes da
identidade cabo-verdiana, como “milho”, a “sementeira”, também aludindo ao processo
intelectual literário, “biblioteca”, “sílabas”. Na primeira estrofe o eu-lírico remete ao
processo histórico da escravidão, em que negros eram arrancados das suas origens e
culturas, transformados em “lenha e lastro”, base dentro dos navios. A marca do passado
está na temporalidade do “ontem”. Na temporalidade do “hoje”, representa-se o cabo-
verdiano no presente, sendo o “sol semente para sementeira”, o cabo-verdiano, sinônimo
de “sol” pela sua energia que semeia mais pela do que pela lucidez da colheita. Ocupa
o posto de “semente” como metáfora da esperança, pois não significa que mesmo
preparada a “sementeira” brotará a plantação.
15
Essa dificuldade repercute no “bolor da
terra”, em que é “sangue e trigo”. “Sangue” que o cabo-verdiano agricultor deixa na
tentativa de consolidar a plantação e “trigo” no alimento que este proporciona, como o
pão.
16
O “milho” é considerado como “irmão uterino”, pois, como os cabo-verdianos,
adaptou-se às terras secas, e também foi transplantado, vindo da América do Sul,
fincando-se nas terras áridas de clima tropical seco do arquipélago. Em muitos períodos
foi o único alimento dos cabo-verdianos. Os “corvos” podem estar relacionados tanto com
as aves que comem as sementes quando estas são postas na terra, quanto com a
14
As questões da seca, da fome, da miséria e da emigração possuem fundamentos no plano histórico e
social das ilhas. Em 1927 e 1947, segundo Daniel Spínola (1998, p. 53), ocorreu um grave ciclo de secas,
em que as terras não viram uma gota de chuva, os habitantes não conseguiram plantar, e o que plantaram
não conseguiram colher. Este episódio desencadeou uma grande mortalidade no arquipélago. Segundo
Simone Caputo em 1940 ocorreu uma seca no arquipélago que provocou a morte de mais de 20.000
habitantes; em 1942 e em 1948, outra seca provocou outras 30.000 mortes. A alternativa que restava aos
cabo-verdianos era a emigração para as roças de São Tomé. trabalhavam na agricultura, alimentavam-
se e mandavam dinheiro e alimentos para Cabo Verde (2008, p. 84).
15
Daniel Spínola explora o significado e o ritual que os cabo-verdianos desenvolvem nos períodos de
preparar as sementeiras. A sementeira é o processo anterior de ver os grãos na terra; o ritual desenvolvido
une diversas pessoas no auxílio da plantação, este denominado “djunta-mô”, juntando as mãos ( SPÍNOLA,
1998, p. 49).
16
José Hopffer Almada discute a relação do trigo nas terras cabo-verdianas. Este alimento era para os
portugueses o que o milho era na base alimentar dos africanos. A adaptação do milho era mais favorável
do que a do trigo, porém a plantação do trigo era realizada para a alimentação dos senhores (ALMADA,
1998, p. 63).
22
temática da fome, pois sem as sementes não alimento, sendo esta temática exposta
tantas vezes na história literária do arquipélago, transformando-se em “bibliotecas de
muitas sílabas”. Na última estrofe o eu-lírico une o trabalho tão fundamental do agricultor,
o que produz o alimento, com a planta, o milho, significado e significante de resistência,
em que o cabo-verdiano possui “o osso cada vez mais espiga”.
Nessa geração os poemas afirmam elementos que caracterizam a identidade do
cabo-verdiano e, de forma literal, várias obras apresentam o desejo da independência,
que ocorre em 5 de julho de 1975, através de uma releitura da história.
Surge no panorama literário a abertura para várias temáticas, algumas novas e
outras conhecidas por possuírem semelhanças com períodos anteriores. É o caso do
“pessimismo, intimismo, metafisicamente interrogativo, surrealista ou neo-simbolista”
(ALMADA, 1998, p. 152), marcas da mudança social, e da desestruturação e desamparo
do arquipélago como país independente, perante as dificuldades econômicas, sociais e
ambientais. Nesse contexto os poetas que possuem tais características são Filinto Elísio,
António de Névada, Valdemar Velhinho Rodrigues, Jorge Carlos Fonseca, Vasco Martins
ou José António Lopes.
Em 1977 surge a revista Raízes, com ideário temático das revistas Claridade,
Certeza, Suplemento Cultural e Seló mas, diferente destas, seus poetas visam poesias de
reconstrução nacional. Sua produção abrange textos poéticos, narrativos, históricos,
sociais e econômicos. Como marca diferenciadora, aponta José H. Almada, “possui o
convívio e o intercâmbio de todas as gerações modernistas cabo-verdianas até sua
edição” (1998, p. 151). Entre os que contribuíram com a revista encontram-se Arnaldo
França, também diretor, rio de Andrade e Jaime Figueiredo, com ensaios; na ficção,
Antônio Aurélio Gonçalves, Baltasar Lopes, Osvaldo Alcântara, Ovídio Martins, Corsino
Fortes, Mário Fonseca, Tacalhe, Armênio Vieira, Jorge Carlos da Fonseca, Pedro Duarte
e Jorge Miranda Alfama. Contou esta revista com produções estrangeiras como a da
soviética Helena Riáusova e das portuguesas Ana Maria da Silva Santos e Rosária da
Conceição Rogado Chaves e do americano Gerald Moser. Félix Monteiro produz um texto
sobre o poeta cabo-verdiano Eugênio Tavares que, como outros poetas Guilherme
Dantas e Jorge Barbosa, foi esquecido nas histórias literárias. Um dos pressupostos da
revista é o resgate e a incorporação destes poetas no imaginário cultural literário cabo-
verdiano.
Surge em 1983 a revista Ponto & Vírgula. Diferente das outras, insere as artes
relacionadas à escrita, ao teatro, ao cinema, à novela, à literatura oral e à música, assim
23
permitindo a valorização do cabo-verdiano através das diversas correntes artísticas
(FERREIRA, 1987, p. 88). Nomes que realizaram esta revista foram Baltasar Lopes,
Antônio Aurélio Gonçalves, Filinto Barros, João Lopes Filho, Romualdo da Cruz, Rendall
Leite, Leão Lopes, Pedro Gregório, Vera Duarte, Eduardo Cardoso, Francisco Tomar,
João Rodrigues, Teobaldo Virgínio, Mesquitela Lima, José Vicente Lopes, Armênio Vieira,
Vasco Martins, Nicolau Fope Vermelho, Canabraba, Daniel A. Pereira, Nhô Djunga, entre
outros; foi dirigida por Germano Almeida, Leão Lopes e Rui Figueiredo. (FERREIRA,
1987, p. 87-88)
Em 1986, surge o Movimento Pró-Cultura como instrumento de revelação da nova
geração e das gerações que vão surgindo. Seu caráter é pluralista, aceitando e discutindo
temáticas que não precisam ter ligação filosófico-ideológica nem um único aspecto
estético-formal; o objetivo é mostrar a universalidade da literatura cabo-verdiana. Para
manter seus princípios, o movimento fez a opção pela gestão da arte pelos seus
criadores, negando qualquer auxílio político-partidário, privado ou público. Neste terreno
surgem diversas publicações em crioulo, e também a restauração de tradições orais e a
publicação de histórias do folclore cabo-verdiano.
Desse movimento cultural, surgem as revistas Voz di Letra, Sopinha de Alfabeto e
Fragmentos. A Voz di Letra, coordenada por Oswaldo Osório e Ondina Ferreira, foi uma
fonte que revelou a geração de 80. A Sopinha de Alfabeto surge no panorama em 1986,
como cisão no interior do Movimento Pró-Cultura, devido os objetivos desse Movimento,
que não visava uma homogeneidade, uma similitude estética na produção literária. A
Sopinha de Alfabeto apresenta poemas com características intimistas, crítico-existenciais,
metafísicas, por vezes uma surrealização da realidade. Segundo José H. Almada, no
primeiro número seus temas mostram a violência dos centros urbanos de forma niilista,
satirizando a condição social. No segundo número, as poesias apresentam os mesmos
espaços, porém de forma surreal. A revista Fragmentos, segundo José H. Almada, adota
um “fragmentarismo, enquanto ideário, como o modo de existência, por excelência, da
poesia enquanto simbologia da condição humana” (1998, p. 158). Sua importância está
na contribuição de quase todos os poetas da geração de 80, e as temáticas voltam-se
para o “social, surrealista, metafísica, crítico-existencial, neo-simbolista, 'criolista',
intimista, recuperando a poesia marginal e incorporando as poesias inéditas das gerações
anteriores.” (Idem).
A contemporaneidade poética, iniciada nos anos 90 do século XX, mantém uma
24
comunicação com as gerações passadas e com poetas universais
17
, estabelecendo a
intertextualidade, a releitura e a metaficção como recursos estéticos. Assim amplia visões
sobre as problemáticas humanas, como a morte, a angústia, a inquietação existencial, a
solidão, a religiosidade cristã, entre outras. As questões sociais continuam como
preferência da maioria dos poetas, pois estes, inseridos em um contexto de ausências
múltiplas, absorvem esses conflitos e utilizam suas obras como mecanismo de denúncias,
visando uma discussão e, assim, melhora das condições sociais.
Em 1991, ocorre a publicação da obra Mirabilis de Veias ao Sol, organizada por
José Hopffer Almada, a primeira antologia poética pós-independência. A obra reúne
poetas que publicaram nas revistas Voz di Letra, Fragmentos, Sopinha de Alfabeto, Ponto
e Vírgula, Raízes, entre outras. Seus poemas possuem um caráter de contestação, em
que a liberdade tão esperada junto com o sentimento de igualdade não são vistos e nem
sentidos. Estes poemas reúnem temáticas tradicionais da literatura cabo-verdiana
atualizadas em contextos contemporâneos pós-coloniais. A insularidade, por exemplo,
marca espacial de Cabo-Verde desde os claridosos, apresenta-se como solidão,
insularidade existencial, permitindo que as discussões voltem-se ao questionamento do
humano e sua consciência social. Carmen Tindó esclarece essa tendência.
Notamos que, diante do desencanto advindo do enfraquecimento e
despolitização das utopias revolucionárias, os poetas passaram a
construir novas imagens e metáforas voltadas para o interior do
humano, numa procura de politização dos sentimentos. O
compromisso, dessa maneira, deixa de ser um pacto tramado com
instâncias exteriores aos homens e passa a penetrar na interioridade
destes. Transforma-se, assim, em uma “política dos afetos”, espaço
intervalar entre indivíduos capazes de criar uma cidadania ativa, uma
vez que a liberdade não mais se apresenta como algo messiânico
vindo de fora, mas como um processo tecido entre múltiplas e
diversas subjetividades (SECCO, online).
A tendência ao intimismo, a volta do sujeito para si mesmo, possibilita um olhar
para as tradições e os preconceitos sobre os quais a sociedade foi construída, assim
desatando o elo da alienação de estruturas rígidas e condicionantes da sociedade. É
nesse contexto e temática que surgem os poemas e ficções da escritora Bernadina de
Oliveira Salústio, esta que adota o pseudônimo de Dina Salústio. Suas abordagens giram
em torno da mulher, da posição que esta voz ocupa na sociedade, da importância do seu
17
José H. Almada cita como personalidades influenciadoras da contemporaneidade: “Nietzsche, Fernando
Pessoa e seus heterônimos, os simbolistas e surrealistas, Jorge Luis Borges, Saint-John Perse, Bertolt
Brecht, Neruda, Walt Whitman e Aimé Césaire” (Idem. p.159).
25
papel e de como é tratada e pensada dentro de mecanismos políticos, econômicos e
sociais.
26
2. Mulher reescrevendo a Mulher
[…] necessidade de publicar as inúmeras
histórias de mulheres, histórias de vida que
passam por mim[...]. Não são ficção, é um
encontro que é verdade, um só momento.
Dina Salústio
No Deserto cresce a Mirabilis.
18
José Almada
A nova geração literária pós-independência surge, em 1991, como esperança de
um novo olhar que denuncia as estruturas ainda colonizadas. Na antologia Mirabilis de
veias ao sol surge, no cenário literário do arquipélago, a poeta Dina Salústio. A poeta
escreve poemas de questionamentos existenciais, com enunciação feminina.
Bernardina de Oliveira Salústio nasce em Santo Antão em 27 de março de 1941.
Poeta, ficcionista e ensaísta, Salústio assume os papéis de “jornalista, assistente social,
produtora de rádio, diretora da rádio educativa, dona de um programa de histórias infantis
e técnica do Ministério dos Negócios Estrangeiros” (SANTOS, 1999, p. 238), como
também “membro coordenador da Associação dos Escritores Cabo-verdianos, sócia
fundadora das revistas Mujer e Ponto & Vírgula, colaboradora do Instituto da Condição
Feminina...”( CAPUTO, 2008, p.219). Ela é a primeira romancista caboverdiana, pioneira,
com a obra A Louca de Serrano (1998), uma das poucas vozes feminina em um cânone
literário composto majoritariamente por vozes masculinas (CAPUTO, 2008, p. 202).
O seu percurso literário é identificado pelos poemas na obra poética Mirabilis de
18
Segundo Secco o significado dessa expressão é da planta que resiste nas securas do deserto, uma
analogia aos poetas que resistem à estrutura política e social do arquipélago (2004, p. 216). Os poemas a
serem tratados neste capítulo serão da obra Mirabilis de Veias ao Sol, organizada por José Hopffer Cordeiro
Almada e publicada em 1991, e editada pelo Instituto Caboverdiano do Livro, em Praia, Cabo Verde. Assim,
os trechos poéticos de Salústio serão identificados apenas com o número da página da edição acima
referida.
27
Veias ao Sol: antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos (1991), organizada por
José Hopffer Almada. Na categoria ficção, publicou a crônica “Cantar... ou Chorar
Apenas” (1993), os contos reunidos na obra Mornas eram as noites (1994), os romances
A Louca de Serrano (1998) e Filhas do Vento (2010). Na categoria literatura infanto-juvenil
publicou A estrelinha Tlim-Tlim (1998). Escreveu os ensaios “A defesa do último recurso:
interrupção voluntária da gravidez” (1985), “Violência contra a mulher” (1999),
Insularidade na Literatura Cabo-verdiana e Vítreas Labaredas, estes dois últimos reunidos
na obra Cabo Verde Insularidade e Literatura (1998), organizado por Manuel Veiga.
A obra de Salústio é marcada por questões relacionadas à mulher como sujeito
social e político. O que se nota em comum na sua produção literária e ensaística é a
linguagem construída liricamente, um estilo de prosa poética. Sua escrita é uma “poesia
lírica no sentido de conter uma experiência individual e uma subjetiva postura mental
perante a realidade do mundo”, como descreve Mata (2007, p. 434). Salústio, como
representante da geração mirabílica, escreve textos que exercem a luta contínua por
modificar as estruturas de opressão. Neles ela aborda a questão da tradição como
incitadora da exclusão social.
2.1. A memória como espaço
Nos poemas, de Salústio, encontram-se eu-líricos femininos frente à memória
19
.
Vozes femininas se pensam com desejos e saudades, diretoras dos seus sentimentos.
Esses poemas carregam a ausência, o abandono, a solidão, o deslocamento para o
passado em busca de sentido para o presente.
A memória é o elo que une os poemas: é por este mecanismo que vemos as
partidas para longe, amores que voltam em lembranças como fuga da solidão, um espaço
de autoconhecimento. É o caso do poema “Por que havias de chegar”, em que o eu-lírico
se debruça sobre uma saudade e lembra os momentos com o afeto passado.
Por que havias de entrar
num dia de porta aberta
e me surpreender nua
19
Exceto o poema “Geme-se grita-se e expulsa-se” (p.156), que trata da metapoesia e não faz referência à
memória.
28
a um canto tiritando
procurando confusa os trapos
para me tapar (p. 152)?
20
O poema é dialógico e interrogativo, possui uma voz questionadora em que realiza
perguntas retóricas para o tu, o amado. Nessas indagações quer entender as saudades
que sente, ao mesmo tempo em que interroga a ausência do outro, chegando à última
pergunta e assim conclusiva, “Para quê?/ Se foi o tempo de um cigarro?” (p. 152). Nestas
interrogações o eu-lírico justifica a ausência por ter sido um envolvimento fugaz, como o
tempo de um cigarro.
A memória como depósito de sentimentos retratados pela ausência aparece no
poema “Chegam notícias de barcos no fundo”.
Chegam notícias de barcos no fundo
copos em cacos
cacos em corpos
papéis vazios
bocas seladas (p. 154).
A formatação do poema é irregular, podendo ser representada como o pensamento
ou as lembranças, e mostra o eu-lírico dilacerado “cacos em corpos” por notícias que
trazem a ele saudade. A presença do barco remete a viagem, a distância, a notícia. Esta
notícia, o eu-lírico apresenta com expressões de dor e de forma negativa, os “copos
quebrados”, os “corpos em cacos”. A presença da preposição “sem” mostra a falta que o
eu-lírico sente, “ventos sem brisa/ (...) menino sem riso/ (...) braços sem abraço”, sendo
negado aos substantivos a presença dos adjetivos. O poema acaba com uma
interrogação, “Por que drama por uma amizade que morre?”, como se o destino das
notícias, que chegam de barcos, fosse o anúncio de uma separação.
A memória como mecanismo de observação de ações é apresentada no poema
“Estranha-me que aragens e arrepios”.
Estranha-me que aragens e arrepios
não corram pelo bosque em propostas inquietantes
de desassossego louco e ciclones rudes.
(…)
Admira-me que cicatrizes recusem novas dores
20
Serão apresentados trechos dos poemas e no anexo dessa dissertação aparecem em sua íntegra.
29
promessas de vida
para renascerem em chagas abertas fantasiadas de arlequim
num dia negro solene e sério (p. 153).
Neste poema um eu-lírico questionador e observador, que recorre à lembrança
de ações ocorridas como forma de não viver o sentimento no plano do real; uma
estratégia de não se envolver novamente no amor. Isto é apresentado pela negação
“aragens e arrepios/ não corram/ (...)/ cicatrizes recusem novas dores”. Este eu-lírico
prefere observar a agir, a descrição das ações é pelo olhar que o eu-lírico tem sobre elas.
Neste poema o sujeito-lírico usa a memória como recurso do não envolvimento afetivo, é
o distanciamento para que “novas dores” nasçam através de lembranças “fantasiadas
de arlequim”.
No poema “Apanhar é ruim de mais” o mais extenso e que possui um título, o
recurso da memória é a denúncia do abandono, da maternidade solitária.
Eram deuses contava-se
e diabos e loucos e tinham um altar
cheiravam a maresia a madeira verde
e desfiavam sonhos e liam sinas
nos cabelos sem dono ao amanhecer
(...)
Os corpos fecharam-se e a ameaça cumpriu-se
Nem deuses loucos nem demónios
Humanos apenas. Humanos amantes.
(...)
Éramos eu e tu
dentro de mim.
Centenas de fantasmas compunham o espetáculo
E o medo
Todo o medo do mundo em câmara lenta nos meus olhos (p. 157-158).
O eu-lírico em deslocamento pelas suas lembranças reconstrói o passado em
diálogo com o presente. O sujeito feminino lembra o homem que “cheirava a maresia” e
“desfiava sonhos”, mas que no amanhecer abandona a amante. Desse envolvimento
restou uma mãe com um filho nos braços, “Éramos eu e tu”, sem “pulsos acariciados” e
nem “um afago nas faces”. Este poema é a denúncia da paternidade irresponsável,
homens que chegam do mar e partem deixando filhos sem pai e mães sem “riso” e com
“olhos” sem “luz”. O recurso da animização, “uma mosca vomitou de náusea/ o céu
soluçou estrelas/ as vagas cuspiram raiva/ o vento envergonhado desfez-se em pó”,
mostra ações que os amantes não perceberam quando se amaram, mas que significam a
30
repulsa dos elementos da natureza, por presenciarem tantas histórias semelhantes.
O desejo e a saudade são elementos presentes nestes poemas. A voz feminina
canta as suas saudades por desejos antes realizados. A saudade é o sentimento que
impulsiona a memória, é por ela que nos deslocamos em tempos e espaços outros. São
espaços que trazem a tranquilidade, a permissão, o consentimento a essas vozes de
serem elas mesmas; lugares onde não existe a exclusão e onde elas são porta-vozes dos
seus sentimentos.
2.2. Noites mornas em ilhas mágicas
O escritor Daniel Spínola, no ensaio “Mornas eram as noites” (1998), descreve o
narrar de Dina Salústio como uma “narrativa em que tudo acontece em reflexão, isto é,
em que a ação é o reflexo da abstração das personagens” (p. 205). Para o escritor a
forma literária salustiana a mostra como a “escritora da psicanálise por excelência” (p.
206). Ela percorre e descreve os pormenores, as pequenas ações dos personagens e
espaços que passam despercebidas em uma narrativa tradicional. Diferente da corrente
literária cabo-verdiana que marcava suas obras pelo tema da seca e da fome, Dina
Salústio escolheu explorar o interior dos sujeitos que passam por essas condições, tanto
físicas quanto emocionais; a denúncia dela vem do íntimo doloroso das personagens. Nas
palavras de Spínola “sabe muito bem descrever o dilaceramento e o abismo que se
formam no interior das personagens” (p. 206).
Abismos e dilaceramentos com os quais o leitor entra em contato no livro de contos
Mornas eram as noites (1999). Neste, a narradora inicia com a epígrafe “… De como elas
se entregaram aos dias” (MN, p. 1), anunciando o protagonismo feminino e o quotidiano
em que estão inseridas. Em contos curtos, densos, com uma narração feminina, as
histórias são sobre mulheres loucas, prostitutas, lésbicas, donas de casa, entre outras.
Entre os temas inclui-se o espaço que a mulher ocupa na sociedade; a violência infantil; a
filosofia dos contos orais e da reflexão sobre os sentimentos; o papel da tradição na
estrutura e na perpetuação de preconceitos sociais; a libertação e a metanarrativa. Seu
principal alvo é a condição da mulher subjugada na sociedade, porém parte da questão
do gênero e a amplia a todas as formas de exclusão social.
O espaço feminino na sociedade é o tema recorrente nos textos salustianos. Sua
31
preocupação é com os espaços a que as mulheres pertencem e com os quais dialogam.
O primeiro conto desta obra, “Liberdade adiada”
21
(MN, p. 7), apresenta a personagem
central em busca de um espaço de pertencimento. Cansada da vida que a maltrata, ela
procura o seu lugar na morte, última alternativa para fugir da realidade.
A ensaísta Carmem Tindó Secco, no seu ensaio Algumas Tendências da Poesia
Cabo-verdiana Hoje (online), examina em alguns poetas da pós-independência como é
apresentada a categoria espaço, que antes visava a libertação pela independência e hoje
confronta-se com o desequilíbrio econômico e a miséria social. Secco afirma que a
intenção de seu estudoé investigar se, a par destas distopias sociais, as produções
poéticas caboverdianas se instituem como 'lugares revolucionários' afirmando-se como
escritas de compromisso estético e político”.
O compromisso em denunciar e retratar a condição de diversas mulheres é o lugar
revolucionário dos textos de Salústio. Em entrevista a Simone Caputo, a escritora diz ser
o primeiro conto da obra intencional por “querer mostrar o meu reconhecimento a estas
mulheres cabo-verdianas que trabalham duro, que fazem o trabalho da pedra, que
carregam água, que trabalham a terra, que têm a obrigação de cuidar dos filhos, de
acender o lume” (CAPUTO, 2008, p. 218), uma homenagem às mulheres cabo-verdianas,
como também a outras mulheres que se encontram nas mesmas condições da
protagonista, tendo nas suas vidas a liberdade adiada.
A escolha de trabalhar o íntimo das personagens é também o espaço de revolução,
tanto estético quanto temático, é a alternativa de manifestar sentimentos que na
sociedade cabo-verdiana, ou em outras, não possuem lugar. O corpo feminino é descrito
como o espaço discursivo. As personagens falam pelo corpo, na busca de que seus
desejos sejam escutados, como em “Sentia-se cansada. A barriga, as pernas, a cabeça, o
corpo todo era um enorme peso que lhe caía irremediavelmente em cima” (MN, p. 7).
Sônia Santos, no ensaio “A mulher caboverdiana e 'a oportunidade do grito'” (1999,
p. 237), discute as políticas relacionadas à mulher na sociedade cabo-verdiana através
dos contos da obra Mornas eram as noites. Santos aborda o papel social da mulher nessa
sociedade, sendo a principal difusora da cultura, das tradições, além da responsabilidade
sobre a economia familiar, devido ao intenso fluxo de emigração masculina. A ensaísta,
ao apresentar Dina Salústio, ressalta que ela “traduz a força, os desejos e as angústias da
mulher caboverdiana integrados à problemática da mulher na atual conjuntura universal”
21
Neste espaço apresentarei alguns contos pelos seus trechos, porém eles encontram-se completos no
anexo dessa dissertação.
32
(p. 238). Santos acrescenta que a escrita de Salústio absorve as questões sociais atuais,
“dando espaço aos gritos que eclodem das sociedades periféricas, para fazer História” (p.
239).
No espaço em que 50,5% da população é feminina e que os direitos que
asseguram a mulher como cidadã começaram a ser discutidos em 1995
22
, é urgente
introduzir novas formas de pensar as tradições e suas perpetuações no imaginário social
do arquipélago. Este questionamento aparece nos contos “Filho és. Pai serás”, “Mãe não
é mulher”, “Campeão de coisa nenhuma”, em que a tradição possui múltiplas faces, uma
delas a repressão. Assim, o texto salustiano sugere revoltas contra um sistema em que as
próprias mulheres também propagam a condição de marginais e de inferiores. O discurso
salustiano é tanto uma denúncia da condição dos sujeitos que ainda são tratados como
escravos colonizados, quanto crítica para as próprias pessoas que, inseridas nesse
contexto, não emergem com força e voz de liberdade, como acontece no conto “A
oportunidade do grito” (MN, p. 9).
Salústio constrói espaços em busca de uma libertação e plenitude para as
personagens; ela desconstrói os estereótipos através da complexidade íntima das
mesmas. Ela apresenta a prostituta que se apaixona, a louca que não possui patologia
mental, o camarada que é Jesus Cristo, enfim, a modificação do olhar sobre alguns temas
antigos da sociedade.
Nesse deslocamento temático ela trabalha a ideia de libertação. No conto “Rosa
Negra” a narradora exibe a louca Leonor, “Dizem que é louca”, porém a voz da narradora
não partilha desse conceito. Ao descrever Leonor, apresenta a maneira de olhar da
personagem: ela olha “para longe, para o mais longe dos longes, onde o acesso é
privilégio dos que racional e loucamente optaram por um espaço indomável” (MN, p. 86).
Este espaço indomável que não é amansado remete à liberdade de Leonor, uma
personagem louca por não fazer referência às tradições e aos modos usuais de
representação da realidade, e que possui um discurso de sentir a vida no limite de cada
instante. Este conto dialoga sobre a liberdade com o personagem Jesus do conto “Com
todo o respeito, Um camarada” (MN, p. 62).
A narradora, ao iniciar o conto, nos diz: “Aprendi com a minha mãe e a Igreja a
temer e a adorar a Deus. Na realidade, posso corrigir-me: adorar a Deus com temor”
(idem). Porém, quando a narradora se refere a Jesus, diz: “Com Jesus o caso é outro.
22
“Em 1995, Cabo Verde participa da Conferência Mundial de Beijing e adota a Declaração e o Plano de
Ação Mundial para as Mulheres, tendo o objetivo de dar a atenção sobre as problemáticas da condição
feminina”. (CAPUTO, online)
33
Com todo o respeito, é um camarada” (idem). Na primeira desconstrução a narradora
separa Jesus de Deus, logo, Jesus da religião católica. A narradora ao estabelecer esse
distanciamento, apresenta Jesus grandioso, não como o filho de Deus, e sim como um
libertário. Por querer homenagear Jesus, a narradora pensa em dar-lhe uma vela “que
consumindo-se, deixa cair grossas lágrimas de luz” (p. 63). Ela vai à igreja e, ao perguntar
sobre a vela, se depara com os verbos “comprar e vender”, “sem dúvida, os termos
exatos para a operação, mas que me chocaram, porque não imaginados no início” (idem).
A relação comercial mostra o distanciamento do Jesus da narradora em relação ao Jesus
Cristo da Igreja. A ligação dela é de ternura para com o personagem, admiração por
aquilo que ele significa quando o seu discurso clama pela liberdade, e não de culto à
imagem crucificada da Igreja.
A temática da liberdade remete às possibilidades de libertação da mulher. Em
Cabo Verde as mulheres, independente da sua condição social, procuram pelos espaços
de igualdade em que seus discursos possam ser ouvidos, como mostra o trecho em que
Caputo apresenta o cânone literário cabo-verdiano, questionando a falta expressiva de
vozes femininas.
Lembramos um outro tempo (compreendido entre a Antologia da Ficção
caboverdiana organizada por Baltazar Lopes, 1960, com 100% de texto
masculino, e os dois volumes de entrevistas feitas por Michel Laban, 1992,
com uma solitária Orlanda Amarílis figurando ao lado de 24 escritores) em
que o cânone cabo-verdiano demonstrava pouca permeabilidade à autoria
feminina (CAPUTO, 2008, p. 202).
A ensaísta Inocência Mata, no seu texto “Mulheres de África no espaço da escrita:
A inscrição da mulher na sua diferença”, trata da questão do cânone literário feminino nos
países africanos de língua portuguesa. Para a ensaísta, o estudo das escritas femininas é
um exercício de desconstruir e discutir os discursos que compõem um cânone literário.
Para Mata, citando Jacques Le Goff, “a história das mentalidades se alimenta
naturalmente dos documentos do imaginário”; assim é pelo estudo desses “documentos
literários que poderemos chegar a história de vozes silenciadas, pois é também a escrita
representação do indizível” (2007, p. 423). Ao trazer essas escritoras para dentro de um
cânone começa-se a dar oportunidade de serem ouvidos os seus discursos, promovendo
uma “cultura de equidade e uma cidadania participativa, (…) que desnaturalizem a
injusteza da permanência de um cânone que alia ao seu poder regulador o poder de
exclusão” (idem).
34
A dimensão revolucionário dos textos de Salústio permite a modificação de antigos
conceitos e exclusões do universo feminino. Ao falar sobre mulheres abandonadas,
vítimas, ela cria ocasiões de denúncia, promovendo a desconstrução de regras sociais.
No romance Filhas do Vento (2010) põe-se em questão a violência e a busca do espaço
de pertencimento. Uma das representações da violência se pelo passado de Marta,
que foi violentada por seu cunhado. Esse espaço na narrativa é a projeção de Mãe dos
Ventos, o caminho para este lugar é pela memória, sendo pelo sonho o transporte que as
personagens se deslocam.
No romance Filhas do Vento a narradora constrói uma história sobre a origem das
essências que fazem da empresa de perfumaria Cosmos a mais bem sucedida da região.
A narração ocorre simultaneamente ao desvendamento dessa origem e à produção de
uma metaficção, que contém a memória da descendente da família Vales, representante
do mundo da Mãe dos Ventos.
Trata-se de uma narrativa construída em dois planos, um no espaço citadino, outro
no espaço mítico. No primeiro entramos em contato com a história da família Vales e no
segundo conhecemos a Associação das Filhas do Vento, uma organização coordenada
por mulheres que possuem a missão de proteger o território de Mãe dos Ventos. Esse
espaço é uma “ilha mágica” (FV, p. 160) e quem estabelece o elo entre os dois mundos é
a protagonista, Susana Vales.
A projeção criativa de Serrano e Mão dos Ventos nos remete ao conceito de
heterotopias, de Aimée Bolaños, que são “espaços alternativos, oníricos, projetivos, que
sinalizam conflitos, omissões, ausências e não poucas vezes configuram refúgios míticos
onde os sujeitos se encontram em uma memória habitada desde dentro pelas ficções de
identidade mais complexas” (BOLAÑOS, 2010, p. 179). Bolanõs, em sua conceituação de
diáspora, relaciona as heterotopias com os sujeitos diaspóricos, que buscam como
refúgio, por não retornarem à terra de origem, a alternativa de projetá-la, momento em
que a memória traz ao presente pessoas, espaços e sentimentos passados. A obra
salustiana não trata de sujeitos diaspóricos, porém o mesmo veículo de deslocamento, a
memória, é identificado. Os espaços míticos alternativos de Salústio apresentam as
múltiplas ausências no que toca à condição feminina na sociedade.
Estas heterotopias salustianas discutem a ordem e a organização da sociedade.
Os espaços oníricos são criados como alternativas de estabelecer uma ordem interna nas
personagens, em que elas possuam a plenitude de suas identidades.
A narrativa Filhas do Vento apresenta a história de mulheres sofridas, felizes e
35
loucas perseguindo um espaço ideal, mítico, que representa a busca de pertencimento
social. É um romance construído no realismo mágico como A Louca de Serrano e também
apresenta a mulher como protagonista da história.
2.3. A flor que nasce no deserto
“Em Cabo Verde quando nasce uma menina, ela é mulher” ( CAPUTO, 2008, p.
218), declara Salústio. A mulher caboverdiana possui o papel de transmissora da cultura,
propagando de geração a geração, através dos contos orais e pela influência na criação
dos filhos.
Após a independência, em 1975, 90% das mulheres eram analfabetas e 35% das
famílias eram chefiadas por mulheres, aumentando este número nas zonas rurais, onde
vive a maior parte da população, e em que 62% das mulheres são chefes da família (p.
272-273). Segundo Caputo, o papel econômico das cabo-verdianas é importante porque
[...] a mulher é normalmente chamada a realizar tarefas na agricultura,
como a sementeira, a colheita, o descasque e a transformação do produto;
por vezes, faz trabalhos pesados, como carregar pedregulhos ou latões de
cascalho à cabeça na frente de abertura de estradas na rocha, ajudando o
homem, ao mesmo tempo em que se desdobra para cumprir as tarefas
domésticas como cuidar do filho pequeno, transportar lenha, recolher água
(para o que precisa percorrer longos trajetos), ou fazer funcionar o fogão
de pedra. (...) A maternidade precoce, a alta taxa de aborto clandestino, o
alcoolismo e a prostituição, aliados ao analfabetismo, são entraves
significativos à emancipação feminina neste contexto (p. 162-163).
Em 1979, pela Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação em Relação às Mulheres (CEDAW), o arquipélago aderiu, no seu plano
jurídico, aos direitos iguais entre homens e mulheres, “já que sempre estiveram
presentes, participaram e lutaram juntamente com eles para o nascimento e consolidação
do país” (CAPUTO, 2008, p. 273), porém estes direitos não foram implantados
imediatamente.
As cabo-verdianas, no período de emigração dos seus maridos, tiveram que
assegurar a sustentabilidade da casa sozinhas; isso fez com que elas assumissem os
papéis tanto domésticos quanto públicos, embora seus direitos trabalhistas continuassem
36
menores que os dos homens. (CAPUTO, 2008, p. 274)
Em 1981 surge a OMCV, Organização das Mulheres de Cabo Verde, onde são
discutidas as mudanças e as problemáticas no que toca à situação das mulheres no
arquipélago. A OMCV entende a emancipação como processual, como conquista gradual
do contingente feminino na sociedade, criando recursos objetivos e subjetivos que
permitam à mulher participar na transformação de sua condição de vida, bem como
promover sua plena integração no desenvolvimento do país (CAPUTO, 2008, p. 163).
A OMCV oportunizou às mulheres discussões sobre a pecuária familiar e a
agricultura de subsistência; ofereceu cursos de corte, costura, rendas, bordados,
economia doméstica, prevenção da gravidez, sexualidade, maternidade e criação como
processo de desenvolvimento do cidadão. Outro ponto de auxílio foi “a evolução do direito
do trabalho relativamente às mulheres, com a supressão das barreiras ao acesso
feminino a certas profissões (como magistratura e técnico aduaneiro)” (CAPUTO, 2008, p.
164). Estas últimas profissões tiveram como base importante o direito das mulheres de
não precisarem mais da autorização dos maridos para poderem trabalhar.
Nesta organização as escritoras tiveram papel fundamental, divulgando e
auxiliando o trabalho da OMCV. Poetas como Dina Salústio, Vera Duarte, Lara Araújo,
Eunice Borges, Margarida Moreira, entre outras, que produzem seus textos como
“escritura feminina” (CAPUTO, 2008, p. 166), inscrevem as mulheres cabo-verdianas nas
problemáticas sociais, econômicas e culturais do arquipélago, divulgando a luta e a
situação em que elas se encontram no panorama mundial.
Em 1995, após a Conferência Mundial de Beijing, o governo cabo-verdiano adota
medidas para reduzir a maternidade precoce e a paternidade irresponsável, para
aumentar os rendimentos das famílias chefiadas por mulheres e demandar uma maior
atenção da sociedade cabo-verdiana à problemática da condição feminina ( CAPUTO,
2008, p. 275).
Hoje a história do arquipélago é outra, no Relatório de Apresentação dos Dados
Preliminares do Censo 2010 (online) as mulheres são 50,5% e os homens 49,5% da
população, a maior parte da população, 61,8% mora em centros urbanos e 38,2% em
zonas rurais (p.11). A taxa de natalidade caiu em relação à década passada; entre 1990-
2000 verificou-se um ritmo de crescimento de 2,4%; de 2000 a 2010 a população cresceu
de 434.625 habitantes para 491.575, sendo constatado um crescimento de 1,23%. Isso
indica que, se a taxa de natalidade se mantiver nesse ritmo, Cabo Verde duplicará em
56,3 anos (p. 12). A população caboverdiana é jovem: a idade média é de 26,8 anos, 1/3
37
(31,7%) da população tem menos de 15 anos, 61,9% entre 15 e 65 anos e 6,4% tem mais
de 65 anos.
No Questionário Unificado de Indicadores Básicos de Bem Estar de 2007- QUIBB
CV o índice de alfabetização nas mulheres é de 73%, entre as de 15 a 24 anos com
96,6% de alfabetizadas, diferente do contexto de 1980 em que 90% das mulheres eram
analfabetas (CAPUTO, 2008, p. 273). Em relação aos chefes de família, as mulheres são
41% e os homens 59%, em zonas urbanas, e nas zonas rurais elas ocupam 50,1% contra
49,9% dos homens na chefia.
Esses números mostram uma modificação social em Cabo Verde. Desde a
independência até hoje equilibrou-se a população entre homens e mulheres, a chefia das
casas está distribuída igualmente entre mulheres e homens (os dados não informam se
ambos dividem o papel de gestor da casa) e a taxa de natalidade diminui, pois entre as
famílias que antes eram compostas de 5 filhos a proposição mudou para 3,9 filhos por
família.
O trabalho cultural, desportivo, educacional e político estão modificando a
demografia do arquipélago. a modificação de antigos conceitos sobre masculinidade e
feminilidade, como mostra a estatística do trabalho de Adilson Semedo, Religião e
Cultura: A influência da Religião Católica na Reprodução da Dominação Masculina em
Cabo Verde, 2009. Neste estudo, verifica-se que, dos questionados, entre homens e
mulheres, 66,2% acredita que exista machismo na sociedade, 13% não acredita e 21%
não se posicionaram (p. 155). No que toca à chefia da família, sendo o chefe da família,
81,6% dizem que ambos devem gerir a casa, 16,8% que o homem deve representar este
papel e 1,7% a mulher (p. 156). Na questão sobre o que se espera de uma mulher
durante a relação sexual, 58,1% dizem que seja ela carinhosa, 28,3% que faça prevalecer
os seus desejos participando ativamente, 6,3% que atinja o orgasmo e 6,1% que aceite
tudo o que for proposto pelo parceiro sexual (p. 174). Na mesma questão, porém sobre a
postura de um homem em um ato sexual, 64,7% dizem que seja carinhoso, 22,9% que
participe ativamente com o parceiro sexual, 5,6% que aceite tudo o que for proposto pelo
parceiro sexual e 5,0% que atinja o orgasmo (p. 175). Esse questionário aborda questões
sobre a visão da homossexualidade, da infidelidade, do casamento, da religião
relacionada à educação escolar, entre outras questões sociológicas. Nas conclusões do
estudo afirma-se que “a Igreja católica foi um dos expoentes institucionais do arquipélago
e tinha uma influência notável sobre as populações e as autoridades locais” (SEMEDO,
2009, p. 184). Isso pode ser um fato importante quando se discute a educação moral e os
38
discursos que a sustentam, sendo estes relacionados a dogmas católicos. Outra questão
é sobre a estrutura familiar em que “a cada vez maior intromissão do Estado nas questões
íntimas retirou o homem do centro na medida em que a violência contra a mulher já não
tem pela frente apenas a censura social, mas é passível de sanção penal” (p. 186). A
divisão da chefia familiar também é uma questão que está em modificação, sendo
constatado que a maioria adere à divisão dupla, em que tanto os homens quanto as
mulheres são responsáveis pela criação e educação dos filhos. Essas modificações
sociais, Semedo questiona de forma genérica:
até que ponto a introdução no arquipélago da democracia, enquanto
regime socio-político, não tem trazido alterações no corpo da própria
cultura cabo-verdiana, entendida como forma de pensar, estar e sentir a
vida e na vida (2009, p. 190).
Os dados, tanto os preliminares do Censo 2010, quanto do QUIBB CV 2007,
mostram que a estrutura social do arquipélago se modificou após a independência. Junto
com o estudo de Semedo, pode-se inferir que o plano político e o social estão sendo
repensados. As antigas formas de representação do homem como “ordem fálica” e
dominadora da mulher, está dando lugar, gradativamente, a uma nova masculinidade que
surge no horizonte de Cabo Verde, em que o papel social tanto da mulher quanto do
homem está sendo reconhecido, pelas suas individualidades e também pela união,
quando trata da gestão familiar.
Essas mudanças são alicerçadas pelos meios de difusão cultural do arquipélago.
Constata-se, desde a independência, a denúncia e a crítica a antigas formas de
dominação. A modo de reconhecimento a essa luta, em 16 de julho de 2010 Dina
Salústio recebe o prêmio classe da Medalha do Vulcão, na categoria Letras, pelo seu
trabalho de divulgação da cultura caboverdiana, através da literatura. O prêmio simboliza
“o reconhecimento de Cabo Verde aos artistas, escritores, cidadãos e desportistas pela
contribuição que deram ao País ao longo dos 35 anos de Independência”. Nas palavras
do Presidente cabo-verdiano, Pedro Pires,
A nação cabo-verdiana tem sobejas razões para celebrar os seus criadores
e artistas, pois tem a sorte de possuir uma plêiade de mulheres e homens
da cultura nacional. Graças a estas mulheres e homens que têm escrito,
cantado, pintado e esculpido ao longo dos tempos, que assim contribuíram
para moldar a alma crioula, dando um toque de singularidade a este povo;
por eles e com eles, somos culturalmente mais ricos e emocionalmente
39
mais unidos (Rádio Televisão Caboverdiana- RTC, 16 jul. 2010- online)
Este prêmio representa a gratidão e o reconhecimento àqueles que construíram e
divulgaram o arquipélago independente. A literatura, como outras áreas, tem papel
importante neste trabalho, pelo processo ativo de combate às antigas estruturas sociais
de desigualdade, como também pela tradução de seus textos para diversas línguas e a
divulgação das problemáticas locais para outras culturas. Neste processo de troca de
experiências universais, novas histórias estão sendo escritas.
No deserto nasce a flor mulher, em terreno ainda arenoso, mas com raízes cada
vez mais fortes, a se sustentar; no Deserto nasce a flor Salústio. Os textos da escritora
atravessaram o mar e com eles os discursos neles contidos. As mulheres de Salústio em
seus deslocamentos, físicos ou memorialísticos, procuram novos horizontes, espaços de
igualdade em que sejam plenas.
40
3. Do passado ao presente: vozes em desassossego
23
O romance A Louca de Serrano, de Dina Salústio, publicado pela primeira vez em
1998, possui o marco de primeiro romance de autoria feminina em Cabo Verde. A
narrativa é construída em dois espaços, a capital e a aldeia Serrano. Filipa é a
personagem central, constituindo o elo entre Serrano, onde viveu na sua infância, e a
capital, onde vive na sua fase adulta. A estrutura da narrativa é memorialística, Filipa, com
trinta e dois anos, lembra a sua infância e o universo serranense: um espaço mágico, em
que vivem personagens construídos com características do real maravilhoso, como a
parteira e a Louca. A Louca divide espaço com a protagonista Filipa, possui a memória do
vilarejo mais de duzentos anos, e por isso questiona a estrutura social que rege
Serrano.
A narrativa apresenta personagens, ambientes, situações, algumas das quais
estarão também em Filhas do Vento (2010), como o realismo mágico, o lirismo nas
construções metafóricas, a personificação dos objetos inanimados, o protagonismo
feminino e as histórias de mulheres transgressoras, bem como, das conformadas.
semelhança deste último romance com o livro de contos Mornas eram as
noites onde, além do protagonismo ser feminino, também aparece a frase “nessa noite
morna.” (FV, p. 14). A expressão remete ao título dos contos, porém modifica a estrutura
sintática em que não verbo, sendo uma construção nominal, de função adjetiva. A
expressão é assertiva: a noite é morna. Assim, morna carrega a descrição de temperatura
em que a umidade se mistura com o calor dando a sensação de desconforto, de
abafo, de angústia. A noite é abafada, desconfortante, angustiante.
Simone Caputo o título dos contos relacionando-o ao estilo musical, a morna,
“música eram as noites”; música formada por um coro de vozes femininas, “música de
mulheres, em que a mulher é a principal construtora da nacionalidade e da identidade no
23
Título referente ao artigo de Inocência Mata (2003) que possui a mesma chamada.
41
cotidiano crioulo” (2008, p. 282). Se acrescentarmos à leitura de Caputo a frase retirada
do outro romance de Salústio, Filhas do Vento, construímos o coro das vozes femininas,
cantando as angústias, o desconforto, o silenciamento em que essas mulheres vivem,
que saem do livro de contos e se propagam em outros textos de Salústio.
No diálogo entre as personagens de sua obra, identificamos a louca Leonor (MN), a
louca Susana Vales (FV) e a louca de Serrano (LS). Estas mulheres, que se distinguem
do meio social em que estão inseridas, representam a modificação do olhar sobre a
sociedade, questionando as tradições e os discursos que as legitimam. O realismo
mágico existente transforma em mítico o espaço em que elas se encontram e se
harmonizam consigo mesmas: o impossível jardim de Leonor na saudade, a ilha mágica
Mãe dos Ventos de Susana Vales, e a bela e selvagem Serrano da Louca.
A memória também é um tema dessa intertextualidade. Leonor traz na memória “os
infernos e céus de instantes longínquos” (MN, p. 87); Susana reconstrói a história da sua
família e carrega a memória e o papel social de sua avó; a Louca de Serrano é a perita
na história do vilarejo, por viver a mais de duzentos anos, e por possuir a memória do
lugar desde o início da sua fundação. Além disso, temos Genoveva, que perde a
memória, a parteira, que possui a memória sobrenatural das parteiras, e Filipa, que se
desloca via memória, reconstruindo assim a sua trajetória.
Serrano pode ser o microcosmo de Cabo Verde, pelas menções de personagens
filhos de camponeses que emigram, como no arquipélago; pela relação com o trabalho na
agricultura, sendo a sementeira um dos símbolos mais fortes da identidade cabo-
verdiana; como também por Serrano ser uma ilha, “mulher, gigante de pedra atirada ao
mar” (LS, p. 14). Porém, a temática transcende o espaço da ilha e a geografia de Cabo
Verde e discute: a insularidade como tema da história literária cabo-verdiana (na história
do arquipélago a insularidade está no isolamento que o império português impôs a Cabo
Verde); as representações que surgem por tradições, algumas identificáveis como crítica
aos modelos católicos, nas quais as mulheres possuem voz e espaço no que se refere à
maternidade e ao casamento, e outras que silenciam atos violentos em nome da
manutenção da ordem da sociedade, como a parteira, em Serrano. Assim, as
personagens femininas de Salústio são tanto cabo-verdianas quanto qualquer mulher “de
um tempo sem nome e sem história, (…) em todas as épocas e lugares” (LS, p. 26), que
passa pelos mesmos caminhos que estas personagens.
A narrativa se desenvolve de forma ondulante, “ondulantemente louca como a
própria loucura” (MN, p. 86). No primeiro capítulo, espécie de prólogo, apresenta os
42
personagens, espaços e enredo, em que o tema da loucura se explicita.
3.1. Entre Serrano e a Capital
Como o romance não é linear, para caracterizar as personagens as separamos
pelos espaços, a vila de Serrano e a capital. Filipa nasce em Serrano, um lugar mítico
com características do real maravilhoso, que o personagem Loja descreve como “mulher
velha, gigante de pedra atirada ao mar e que em tempos que ninguém conheceu, deitara
fora de si bocados do seu corpo que se espalharam como ilhas pelo mundo” (p. 14). Este
espaço é o mais marcante da história, sendo apresentado pela descrição de uma
ventania que com sua força rasga as roupas da primeira personagem que aparece na
narrativa, Virgínia, mulher que nunca teve relações sexuais com nenhum homem, mas
está grávida de gêmeos.
Em Serrano conhecemos as personagens Loja, Jerónimo, a parteira, Gremiana e
Maninha. O personagem Loja é um caixeiro viajante, que conhece Serrano em uma das
suas viagens e se estabelece na aldeia sendo o dono do botequim, “castigado, dizia-se,
pelo crime de amar Serrano, porque todos os amores pagam um preço, por existirem ou
simplesmente por não terem sido permitidos existir” (p. 14). É o único estrangeiro que
conseguiu ficar em Serrano e estabelecer um bom vínculo com os habitantes.
Comerciante que é, fica no vilarejo até sair o último serranense do vale, por motivo da
construção de uma barragem.
Jerónimo é descrito como um camponês, homem rude que trabalha no campo e
possui características diferentes dos homens de Serrano. E casado com Maninha e
enquanto esta sofre por não engravidar, sempre se mostra solidário com a dor da esposa.
Ele é o primeiro a encontrar Genoveva, a quem chama de Fernanda, quando esta, após
sofrer um acidente de avião, aparece próximo da lavoura onde ele trabalha. Jerônimo,
preocupado com a saúde da jovem, decide cuidá-la sozinho, escolha feita por ter medo
da reação dos serranenses em ver uma estrangeira.
O jovem agricultor teve medo por Fernanda e imaginava os perigos que ela
corria no vale, sabendo do ódio dos camponeses por estranhos, mas
depressa refez o pensamento e sentiu a injustiça para com os serranenses,
aceitando que, apesar de intolerantes, e não gostando de desconhecidos,
43
eles nunca seriam capazes de castigar uma criatura tão desarmada. Outra
vez a figura de Gremiana surgiu à sua frente, como que lhe pedindo um
adiamento para a conversa com a família, sobre a forasteira, e ele acatou o
conselho, a consciência tranquila (p. 74).
Jerónimo pensa em Gremiana, pois ela estava indefesa quando foi morta pelos
homens do vilarejo. Ele leva Fernanda para a sua casa e após alguns meses nasce uma
criança, Filipa. Fernanda, desmemoriada e perdida no tempo e espaço, foge de Serrano
deixando sua filha. Jerónimo a cria com muita afetividade, diferente dos serranenses,
educando-a até os sete anos de idade. Com medo de perdê-la para a morte e por
acreditar que ela possui uma doença desconhecida, manda a menina para a capital, em
busca do tratamento adequado. Este momento, na narrativa, é o rompimento da ligação
física entre Jerónimo e Filipa.
O agricultor servira o exército na capital e aprendera a profissão de mecânico.
Após sair de Serrano pela primeira vez, seu desejo era de não retornar mais à aldeia. Seu
pai, ao perceber as intenções do filho, pede para ele abandonar a ideia e ficar em
Serrano, pois tinha perdido um filho para a emigração e não deseja perder outro. Ele
acata o pedido do pai, mesmo se culpando por esta atitude. A iniciação sexual de
Jerónimo acontece, como a de todos os homens de Serrano, pelas mãos da parteira.
Mas, diferente dos outros homens, ele também inicia sexualmente a nova parteira,
Gregória.
A parteira, como a Louca, é personagem com características do real maravilhoso.
Possui a memória histórica das outras parteiras; quando ajuda os homens com problemas
relacionados à sexualidade fica com o corpo de mulher jovem, metamorfoseando-se. A
personagem é a mentora espiritual, representante da tradição serranense e a escolha da
mulher para esta função é feita por um processo sobrenatural. Da penúltima parteira para
a última, a escolha ocorre por pressão social, pois a parteira que atuava antes morre
entalada na porta da Casa da Luz (esta porta molda-se de acordo com a pessoa que nela
passa). Como não parteira e Virgínia, a moça grávida de gêmeos, entra em trabalho
de parto, as mulheres mais velhas buscam uma jovem, Gregória, de trinta e três anos de
idade, para ser a nova parteira. Não querendo realizar tal função, mas não tendo escolha,
Gregória realiza o parto. Nascem os gêmeos e ela não consegue fugir da Casa da Luz;
após a tentativa, ela bebe o líquido mágico guardado em uma garrafa velha, que os
poderes de ver o passado, o presente e o futuro, prende os cabelos no mesmo carrapito
da outra parteira e perde sua memória, preservando somente a memória que condiz às
parteiras. A função dela é cuidar do povoado e o espaço sagrado é a Casa da Luz; seu
44
trabalho é assistir aos nascimentos como também,
[...] competia ainda à mulher da casa da porta grande e janela minúscula
iniciar os jovens na vida sexual, com direito a posterior acompanhamento,
o que ela fazia com a discrição de uma senhora e, pensava-se, com
alguma altivez por saber que toda a aldeia, em algum momento, dependia
dela e da qualidade superior das suas sagradas intervenções que se
repetiam quando algum dos novatos e menos novatos, sobretudo estes,
reparavam que algo na sua natureza desfuncionava em termos operativos
e a procuravam para os seus sábios conselhos e medicações, no meio de
aparente grande sigilo, conforme a tradição de séculos mandava e o recato
aconselhava (LS, p. 12-13).
Por ser respeitada na aldeia, ordens e apóia as decisões das mulheres,
principalmente, e a conselho seu, de procurar ajuda na vila vizinha no que diz respeito ao
caso da infertilidade. Ela mantém o segredo sobre a esterilidade dos homens, junto com
as serranenses; e isso proporciona a conservação da mesma ordem social, perpetuando
a violência a que elas são expostas.
Humilhações e pancadas a personagem Gremiana não aceita. Ela não acata os
conselhos da parteira em procurar o “farmacêutico”, na vila vizinha, e um dia, quando
seu marido Valentim no bar, expondo a intimidade do casal, vangloriando-se da sua
virilidade e acusando-a por não lhe dar um filho, resolve contar a verdade sobre a
fertilidade repentina das mulheres, e acaba trucidada pelos homens da aldeia.
Gremiana não suplicou, e gritou e voltou a gritar que os homens de
Serrano eram uns animais hipócritas e covardes. Pedaços dos seus gritos
berravam ainda que ela não daria nunca a Valentim o prazer de lhe salvar
o seu orgulho podre de homem a troco de ser coberta por macho que não
desejasse (LS, p. 73).
As mulheres de Serrano, após as falas de Gremiana e o ato de violência que ela
sofre, se calam com medo do que se reserva para elas, mas vêem que seus maridos
nada tinham entendido das falas da jovem, pois eles “só ouviam o que queriam” (LS, p.
73).
Outra personagem que se nega a procurar a ajuda de outro homem em nome do
sentimento por seu marido é Maninha. Seu nome quer dizer infértil, infecundo, estéril. Por
vezes, ela acredita que o nome a atrelou à incapacidade de gerar uma criança. Maninha é
casada com Jerónimo e seu desejo é dar um filho a ele.
45
Tinham-se passado cinco anos, duas semanas e um dia sobre a data em
que Jerónimo a fizera mulher na oficina do quintalão, e podia muito, de
cara levantada ter procurado longe de Serrano, cura para o emprenhamento
difícil, ultrapassado que estava o “prazo de honra”, como era conhecido na
região o período de três anos de espera concedido a qualquer mulher
casada, antes de tentar reforços longe de casa para engravidar.(...) ia
adiando a visita, porque queria mostrar a toda a gente que ela e o seu
homem eram muito capazes de semear um filho sem a ajuda da tecnologia
da cidade (LS, p. 54).
Mesmo passando por diversas tentativas frustradas, ela não desiste, e se sente
culpada, quando Jerónimo leva Fernanda, que está grávida, para a sua casa. Maninha
não aceita Filipa por ciúmes; a menina é filha da estrangeira que roubou o seu marido.
Carrega esse sentimento até o final da narrativa, e quando Filipa, adulta, procura pelo pai,
Maninha mente ao detetive que Jerónimo morreu em um acidente.
Outro espaço na narrativa é a capital. Lugar em que vivem os San Martins, pais
biológicos de Genoveva, ou Fernanda, avós de Filipa, uma família rica, que possui uma
casa que é chamada de Vila pela sua extensão. Sua riqueza é derivada de negócios no
ramo do turismo e da hotelaria. Na casa de Genoveva moram a sua e, Joana San
Martin, e o seu pai, Pedro San Martin. Mesmo longe de Serrano as mulheres são
culpadas pelo não nascimento de crianças. Pedro acusa a sua esposa de não lhe ter
dado um filho homem. A infertilidade do casal, após o nascimento de Genoveva, é
explicada quando Joana,
[...] cansada da injustiça de anos, gritou para o marido que se ele não
tivesse envolvido com uma desconhecida que lhe passou a doença
venérea que o tornou estéril, podia ter tido dezenas de rapazes que lhe
continuariam os negócios, não deixando, porém de frisar, antes de pôr fim
à discussão, que felizmente, na família, quem de facto prestavam eram as
mulheres, mães, filhas ou esposas dos S. Martin (LS, p. 45).
Genoveva é uma adolescente quando sofre o acidente de avião, tem quatorze anos
de idade e é uma modelo fotográfica. Sua viagem é para atuar como modelo, na cidade
vizinha. Nesse acidente apenas Genoveva sobrevive. Sua família a tinha considerado
morta após cinco meses de busca, quando Paula convida a amiga Joana para uma
exposição de fotografia de Sílvio Luxemburg. Nesta exposição está uma fotografia de
Genoveva. O fotógrafo explica onde a conheceu e diz que ela está na cidade. A família
encontra Genoveva, que pelo trauma do acidente está desmemoriada, não reconhece
46
seus pais e também não se lembra da filha que deixara em Serrano. A sua memória vai
sendo descoberta com a ajuda de psicanalistas que a acompanham na sua vida. Ela casa
com Sílvio e tem com ele um filho. No final da narrativa, ela se encontra com um pouco
mais de quarenta anos de idade e está separada do fotógrafo.
Quando Filipa, doente, é entregue ao padre da capital, aos sete anos, é
apresentada à família de sua mãe. Sua avó, por acreditar que a menina era fruto de uma
violência que Genoveva teria sofrido quando desmemoriada, não aceita Filipa,
recomendando ao amigo e advogado Diegues que entregue a menina para adoção.
Assim, começam os seus deslocamentos por diversas famílias, até os dezoito anos. A
última madrasta é Maria Helena, descrita na narrativa como mulher irresponsável, que
abandona a filha, Bia, de nove anos, aos cuidados de Filipa, então com dezessete anos,
em nome de um novo casamento. Aos dezenove anos de idade, Filipa casa com Garcia e
engravida de Matilde, sua única filha. Filipa é descrita como uma personagem fria em
seus sentimentos. Não desejou ter filhos, mas cria Matilde, e após dois anos de casada,
se separa do marido. Na infância possui o carinho do pai, Jerônimo, e da Louca, sendo
estas imagens as lembranças a que a protagonista recorre ao tentar compreender sua
maneira de lidar com os outros.
A Louca, como Filipa, está presente tanto em Serrano, quanto na capital. Na aldeia
ela aparece menina, morre quando completa trinta e três anos de idade, para reencarnar
novamente em outro corpo, porém com a mesma memória. Ninguém acompanha o seu
nascimento ou a sua morte, nasce de família desconhecida e morre quando completa o
ciclo, sendo vista novamente pelos serranenses com nove anos de idade. Na capital, ela
surge discutindo a diferença de classes em que o padre sustenta um discurso de que os
pobres devem perdoar os ricos, “Devemos ser generosos e rezar pelos ricos, tão
necessitados de pena, coitados!” (LS, p. 39), assim, ironizando a igreja católica que
mantém a dependência entre os ricos que dão esmolas e os pobres que as recebem,
perpetuando a subordinação de uns sob os outros. A Louca possui um discurso
desestabilizador da sociedade e por isso é chamada de demoníaca. Para o padre da
cidade, ela é uma comunista, o que faz com que o trabalho dele, de manter a mesma
ordem, seja perturbado.
Uma desconhecida que nunca tentou entrar na igreja, o que levava os fiéis
mais atentos a definir-lhe possíveis laços com o demónio, continuava a
argumentar, em palavras desarticuladas, que os pobres eram a porcaria
que os ricos utilizavam para se tornarem mais ricos, para pecarem, para
47
desobedecerem aos princípios de igualdade definidos por um conhecido
visionário e, finalmente, os utilizavam como instrumento para a sua própria
salvação (LS, p. 39).
O padre é um homem que encontrou na igreja sua salvação da miséria que
passava. Filho de uma família numerosa e pobre, resolve seguir o caminho do sacerdócio
quando recebe o convite de outro padre que lhe dá uma moeda em um momento de
necessidade. Ele não possui vocação, mas o sacerdócio é o caminho para não retornar à
miséria. Reza ao seu Deus pedindo que ajude os mais necessitados, mais pela culpa que
sente em nada fazer para mudar a situação destes, do que por acreditar que eles
mereçam uma vida melhor, como mostra o trecho,
[...] por que pobre é superficial, mesquinho e imediatista digo-te eu, meu
Pai. Com uns pequenos agrados, talvez eles diminuam o ódio no peito e
me facilites a vida, meu Cristo dos padres. Não digo que dês possibilidades
a todos de terem bancos e fábricas, ou tenham sucesso nos negócios,
tenham bons dentes, não cheirem mal (p. 43).
A postura do padre perante os pobres é a denúncia que está no discurso da Louca
pronuncia, questionando as estruturas sociais, e no caso a religiosa, que não modificam a
realidade dos mais necessitados. Em Serrano, as suas falas tratam da condição das
mulheres que sofrem opressão de seus maridos por não darem filhos a eles. Para a
Louca “os farmacêuticos da cidade vizinha são a desafronta da sociedade serranense” (p.
64), é pelo medo da violência, atrelada ao não cumprimento da honra aos maridos, que as
mulheres procuram esse método, como último recurso para engravidarem.
3.2. Os ambientes
Serrano é um espaço importante para compreendermos a trajetória íntima de
Filipa. Sua descrição começa no primeiro capítulo com sua formação demográfica e
cultural. “Constituído por cento e noventa e três habitantes, três cães e uma fonte” (LS, p.
9). Para a Louca é uma comunidade de habitantes com “ideias parvas”, frios nas suas
relações, que, por morarem distante de outra fronteira, repercutem a sua distância nas
relações.
48
Serrano tinha a capacidade de reduzir as pessoas a meros objectos
destinados a cumprir o destino, às vezes somente a praga que orientava a
vida da aldeia, pelo que ali não se cultivava o hábito de partilhar o interior
de cada um, pelo menos no que respeitasse à vida (LS, p. 128).
Trata-se de uma aldeia dentro de um vale, que possui suas regras e comandos
pela parteira, em nome da força sobrenatural que vem da montanha, a mãe do vale.
Assim,
Serrano, esquecida da civilização, comprimia-se entre os caminhos
remotos que levavam a uma longínqua saída para a capital e a região
selvagem que se estendia até se perder as vistas, imersa num mundo
povoado de seres de estranhos costumes aos quais não estavam alheios
denunciados pactos com os subterrâneos da terra e das águas, habitados
por animais que nunca se mexiam e pedras com miolo mole que em
determinados períodos se tornavam caprichosos e ditavam as regras que
conduziam os destinos de quem por ali nas noites passava (LS, p. 14).
A descrição neste espaço é realizada numa linguagem em prosa poética, em que
metáforas são construídas no lirismo em que a figura da animização, recurso
frenquentemente usado. Nestas imagens os objetos carregam características humanas,
como “sem levantar os olhos da bacia larga que parecia ter engolido o interior do quarto”
(LS, p. 10), ou “O pai do bebé foi encontrado morto (…), estrangulado pela corda que
levava ao ombro e que de repente ganhou vida e o abraçou pelo pescoço em gestos
possessivos.” (LS, p. 12). A violência e a injustiça contidas nesta narrativa são expressas
de forma suave pela linguagem. Isso não diminui a importância dos fatos, mas
contrapõem-se às ações rudes. Ao transformar o objeto em personagem, a animização dá
vida e ações aos seres inanimados como forma de criticar as ações realizadas pelo
homem.
Em Serrano ocorrem fatos extraordinários que remetem ao recurso narrativo do
realismo mágico; isso pode ser pensado como uma estratégia de mostrar a realidade
distorcida: tanto a situação dos menos favorecidos que sobrevivem de esmolas, quanto a
violência a que as mulheres estão submetidas em nome de uma “honra masculina” o
prazo de três anos para que uma mulher casada engravide. Essa discussão aborda as
sociedades ainda com posturas repressoras, em que a opressão é apresentada como
49
forma de manter a ordem vigente.
Outro hábito particular de Serrano são os rituais de morte. Na aldeia não rituais
para o nascimento ou casamento, somente para a sacramentação da morte, e neste são
realizados festas durante o percurso do velório a deixar o corpo no alto da montanha,
podendo durar até três dias de cerimônia. Como diz a Louca,
[...] que a presença da morte transtornava de tal modo os frágeis viventes,
suspensos de fatalidade incontornável, que eles se entregavam de forma
impudica e total às coisas da vida e misturavam-se uns com os outros em
outras cerimónias onde homem não conhecia esposa, e mulher não tinha
marido, e os corpos não tinham dono e eram apenas e somente a carga
que carregavam sem nome ou marca que denunciasse a origem, a espécie
e o destino, procurando com tudo isso, expressão máxima da sua
inteligência e criatividade, seduzir as forças do vale e saber alguma coisa
do seu futuro (LS, p. 23).
Um dia surgem funcionários da cidade, medindo e mapeando esse território. Um
deles pergunta o nome da aldeia, e assim surge de forma inusitada o nome Serrano,
como descreve o trecho:
Compreende-se o espanto e a confusão que se instalaram na cabeça dos
autóctones, porque a à data, jamais tinham sequer pensado na hipótese
de dar um nome, o mais singelo que fosse àquela terra que, aliás, nunca
reclamara por uma identificação. [...] (LS, p. 17).
----------------------------------------------------------------------------------------------------
A velha parteira cujo nome também não estava inscrito em nenhuma
memória, livro, registo ou tribunal do mundo, depois de sentir de cada um
dos seus o respirar donde recebia parte da força que mostrava nos
momentos de imperativa decisão e de perfurar com o olhar a terra
estendida a seus pés; depois de num esforço que ultrapassava toda a
energia que alguém pudesse imaginar em corpo tão minguado ter erguido
a cabeça e contemplado a montanha, a fonte, as serras e o céu, num
tempo que parecia ter levado dias a concretizar-se; depois de ter fechado
os olhos e adormecido, acordou do sono ao qual os estrangeiros dos
binóculos e instrumentos raros atribuíram o estatuto de coma débil, com
voz segura, precisamente igual à voz com que a moça louca gritava nas
noites negras, falou e disse que o lugar se chamava Serrano (LS, p.18-19).
Identidade e alteridade estão presentes neste trecho. Serrano teve nome
porque foi questionada por estrangeiros. Essa nomeação remete a quem pertence o
território e a sua legitimidade histórica, cultural, econômica e social. Foi este encontro
entre serranenses e estrangeiros que causou o estranhamento e a repulsa dos aldeões
por todos os sujeitos de outras localidades.
50
Na aldeia, séculos após a primeira visita dos primeiros funcionários da cidade, é
construída uma barragem. Esta é denominada “Barragem de Gremiana ou simplesmente
Gremiana” (LS, p. 192), devido o seu corpo estar nessas águas. Essa construção
modifica a vida pacata da vila, sendo alguns moradores deslocados para outros vilarejos
pela importância da sua terra para a construção da obra. Esta se rompe e as suas águas
libertam-se, destruindo o que antes era chamado de Serrano.
Dizia-se que a barragem tinha comido, além da terra, todos os indivíduos,
homens e mulheres que um dia sairam das furnas onde se tinham
escondido para não abandonar a aldeia, e como se movidos por um desejo
único, comandados pela parteira (…) puseram-se de olhando a
gigantesca obra, tentando perceber o outro lado do seu destino e foi aí que
se deu o funesto acontecimento (…). Os muros da barragem rebentaram,
com um estrondo imenso que se ouviu na aldeia próxima, as águas
invadiram o vale, e os velhos e as velhas mais velhas, e outras gentes não
assim tão velhas, os que não tinham podido ou querido abandonar Serrano
foram arrastados pela corrente (p. 191).
A catástrofe significa uma ironia em relação ao que aconteceu com Gremiana, que,
por sua liberdade e das outras mulheres, acaba morta nessas águas. São as mesmas
águas, e logo a mesma estrutura cultural, coordenada pela parteira, que exterminam
Serrano. Como a Louca diz, anos antes de ocorrer o acidente,
No meio do berreiro ou da cantilena, conforme os humores, repetia que
havia de chegar uma hora, mal nascesse o sol, em que as águas iriam
levar o vale com elas, livrando o mundo, para sempre, dos estupores que
eram os serraneses e as serranas (LS, p. 145).
Entre os habitantes a angústia da demora em nascerem crianças. Esta
problemática é resolvida quando estudiosos que estão junto com os construtores da
barragem examinam os componentes existentes na água da fonte e confirmam que “a
água da fonte de Serrano situada ao sul da mina roxa, provocava fraqueza na natureza
dos homens, não na perícia em executar o exercício da procriação, mas na eficácia última
do tal exercício.” (LS, p. 193). A fonte sempre esteve presente em Serrano, sendo
descrita na narrativa como parte da demografia. Essa descoberta fez com que os
homens, que saíram de Serrano antes do rompimento da represa, realizassem uma
romaria à barragem, homenageando Gremiana, como forma de arrependimento pelo ato
cometido contra ela. Segundo os homens, ela foi “a única mulher que se negou a deitar
51
com um macho qualquer, somente para ter um filho para oferecer ao seu Valentim” (LS,
p. 193).
A capital é o espaço em que Filipa vai morar quando sai de Serrano. Na narrativa,
esse ambiente não possui características singulares, podendo ser qualquer lugar que se
contrapõe a Serrano. a descrição de moradias, como a casa de Filipa e a sua pensão.
Esta equivale, à herança familiar, o negócio de hotelaria da família San Martin. Chama-se
Brisa, quando Filipa a encontra, decadente, sem hóspedes e necessitando de reformas.
Ela a reergue, fazendo dela o seu meio de sustento, e é neste espaço, depois Hotel
Samar, que Filipa realiza o réveillon de 1995.
3.3. Enredo
A narrativa possui uma estrutura fragmentada, em que aos poucos nos é
apresentada a história da protagonista Filipa e suas lembranças que a ligam o território de
origem, Serrano, e sua vida na capital. O tempo está entre o passado da protagonista em
Serrano, vivido pela memória, e o presente, em que é contada a história, na capital. O
romance possui um narrador anônimo, onisciente e onipresente que se localiza fora da
trama. O que o primeiro capítulo indica é que esse narrador recebeu a história de alguém,
“origem desta breve narração, chegados ao nosso conhecimento através de processos
que juramentos obrigam a calar” (LS, p. 26). Ocorre também uma mudança de voz
narrativa, que por momentos passa pela fala da Louca. Porém, é pelo narrador anônimo
que conhecemos o íntimo dos personagens e os pormenores dos espaços.
O conflito da narrativa está em Filipa relembrar fatos ocorridos desde a sua
infância, isso mostra que questões não resolvidas no passado estão interferindo no seu
quotidiano. Na Louca o conflito está em não conseguir modificar a ordem que a
sociedade, tanto a serranense quanto a da capital, impõe às mulheres e os sujeitos mais
necessitados economicamente. Ao fim da narrativa, Filipa se questiona se teria o mesmo
destino da Louca, e o narrador lança a questão “Onde as semelhanças nos seus
destinos?” (LS, p. 211).
A semelhança que as une pode ser a solidão a que as personagens Filipa e Louca
são relegadas, representada pela insularidade, assunto a ser detalhado no próximo
capítulo.
52
4. “Onde as semelhanças nos seus destinos?”
E o sonho aparece como a única máscara capaz de
devolver a dignidade ao ilhéu, pelo poder de decidir do
seu próprio destino. Suprema liberdade! Mesmo que pelo
tempo suficiente de se dizer ou escrever um poema. Pelo
tempo de se ler ou ouvir um poema.
Dina Salústio
No dicionário Novo Aurélio Século XXI, o conceito de insularidade é tornar solitário,
isolar, tornar incomunicável, separar da sociedade (FERREIRA, 1999, p. 1120). A partir
desse conceito e abrindo para o contexto da literatura cabo-verdiana, percebe-se que
desde os claridosos o tema da insularidade se fez presente na literatura do arquipélago.
Tal isolamento vem da postura do império português para com o arquipélago, que via nas
outras colônias, Moçambique, Angola, Goa e Brasil, mais matéria-prima a ser explorada e
mais êxito econômico. Outro fato é a imposição do mar sobre as ilhas cabo-verdianas,
tema amplamente tratado na história literária do arquipélago. Sem a ajuda do império e
sem a oportunidade de deslocar-se para outras fronteiras, os habitantes vêem-se
forçados a ficarem ilhados. A insularização desencadeia uma cultura própria, estreitando
a convivência entre os negros guineenses e senegalenses e os brancos portugueses,
favorecendo um processo rápido de miscigenação e desencadeando, entre outros fatos, o
idioma crioulo e o português como as línguas oficiais de Cabo Verde.
A insularidade é tema frequente na literatura cabo-verdiana, afigurando-se “como
uma das principais colunas da literatura” do arquipélago (Veiga, 1998, p.06). Este tema
percebe-se na relação estabelecida entre a ilha e o ilhéu. Na literatura apresenta-se como
expressão de separação, de solidão, de isolamento, de impotência. Sua representação
está associada à relação do mar sobre as pequenas porções de terra, repercutindo no
modo de vida insular. Essa imposição carrega as marcas da pouca comunicação com o
continente; das catástrofes que os habitantes têm de resolver entre eles; da insuficiência
53
de um território estruturado na colonização portuguesa e distante do império.
Na literatura este tema surge com a expressão do “querer bipartido”, em ter que ir
quando se quer ficar, mas também de ficar e ver a precariedade do território quando se
deseja ir. Lembramos que os claridosos quando se inspiraram no modernismo brasileiro
dos anos 30, começaram a produzir poesias que tratavam da temática da fuga, da
procura de outros horizontes, do alargamento de olhares sobre outras culturas, e por isso
foram considerados pelos críticos da época como evasionistas. No dizer de Salústio, uma
“fuga que muitas vezes era construída mais no íntimo dos escritores do que propriamente
realizada no seu processo de deslocamento” (SALÚSTIO, 1998, p. 36).
Dina Salústio, no ensaio “Insularidade na Literatura Cabo-verdiana”, diz que
[…] qualquer tentativa de abordar a literatura cabo-verdiana implica
entrar, por opção ou descuido, no cenário que moldou e marcou
Cabo Verde, e obriga, necessariamente, a penetrar na intimidade das
suas mulheres e dos seus homens, modelos traídos pela
transparência opaca das palavras, companheiras constantes de
todas as travessias. E nesta viagem ao encontro da literatura, antes
de qualquer outra visão, surge-nos o mar enorme e sem fim, ditando
o rumo, traçando rotas, revelando distâncias, marcando o silêncio.
Imposições que vão definir as relações entre a ilha e o ilhéu, e que
no conjunto, e no desenrolar, se pode chamar insularidade (1998,
p.33).
Para a escritora, falar da literatura do arquipélago implica tratar esta categoria,
uma espécie de “vingança do escritor-ilhéu” da sua história, do “sentimento de injustiça
que experimenta face ao isolamento” (SALÚSTIO, 1998, p. 35). A insularidade é temática
presente na obra salustiana, nos poemas que tratam da separação, da solidão do eu-
lírico, nos contos que expressam a impotência em modificar a realidade, bem como nos
romances em que a estratégia de modificação do isolamento é efetuada pela projeção de
espaços imaginários, muitas vezes construídos em termos do real maravilhoso, e que
carregam uma força de invenção e renovação da realidade.
No romance A Louca de Serrano o tema é constatado. Mas, diferente da corrente
literária que o aborda pelos aspectos geográficos, sociais e políticos que a insularidade
física influencia, a sua relação se via os sentimentos dos personagens, obrigando o
leitor a penetrar na intimidade das suas mulheres e dos seus homens, como diz Salústio
na citação acima.
Na narrativa a insularidade não poderia ser tratada pela relação ilha-mar-ilhéu,
abordadas pela tradição literária, pois a única menção ao mar ocorre na descrição do
54
surgimento de Serrano, não tratando das imposições que este causa. Porém, essa
temática se faz presente pela relação do sujeito com a cultura do espaço, da personagem
com a comunidade serranense.
Para os ensaístas José Hopffer Almada e Inocência Mata há marcada presença da
insularidade na narrativa. Segundo Almada, no artigo “A Louca de Serrano de Dina
Salústio”, essa temática é apresentada,
[…] no contexto da problemática da libertação das amarras sociais e
geográficas, da peleja entre o querer ficar ficar na tradição e ter de
partir para a modernidade. Deste modo, a insularidade ínsita no texto
do romance A Louca de Serrano é entendida não nos limites
conceptuais da insularidade geográfica, social e/ou existencial de
cariz convencional e matriz claridosa, mas, sobretudo, enquanto
insularidade de mundos interiores (ALMADA, 2007, online).
Para José Almada a insularidade encontra-se na separação entre a tradição,
representada pelo povoado de Serrano, e a modernidade da metrópole. Os sujeitos
naturais e residentes em Serrano não possuem vínculos sociais, culturais e econômicos
com a capital. Suas relações com os estrangeiros são curtas e rasas, não se identificando
com os sujeitos que vem de espaços diferentes, inclusive com o restante do país. É a
insularidade física de uma comunidade e sua relação com as tradições que repercutem na
identidade e no modo como os habitantes se representam e representam o outro.
Nessa mesma lógica, Inocência Mata apresenta essa temática como ponto
fundamental da obra. Para Mata, Salústio “opera um deslocamento ideológico na sua
conceituação”, apresentando a insularidade não pelo viés das ilhas e sim “das
comunidades que habitam os vales e as montanhas de Serrano”. Isto é, os motivos do
“aprisionamento” já não são “naturais”, geográficos e sim “ideológicos, fazendo implodir o
fatalismo inerente à condição insular” (2007, p. 435). Para Mata, a temática vincula-se a
uma “insularidade espiritual” das personagens de Serrano, mulheres que sabiam da
problemática da infertilidade dos homens, mas que, por possuírem uma “precariedade
psicológica e cultural”, mantinham esse segredo, e perpetuavam a subalternidade
feminina e os maus tratos (2007, p. 436).
Ambos os estudiosos representam a insularidade através dos sentimentos que os
habitantes demonstram. Para Almada está no encerramento de uma comunidade em
relação ao diferente, e no que isso implica: o isolamento íntimo dos personagens. Para
55
Mata está na alienação das personagens femininas sobre sua condição e representação,
perpetuando a tradição e consequentemente a dependência feminina.
Salústio explora nesta obra o protagonismo feminino. Como nos seus contos e
poemas, apresenta tanto a mulher alienada, presa nas tradições que perpetuam a
inferioridade feminina, quanto a mulher subversiva, com voz, postura e que, por
apresentar novas estratégias de libertação, é denominada louca, ou sofre a violência até a
morte (Gremiana) como tentativa de silenciamento.
Seguindo a temática da insularidade pela abordagem das personagens e pelo
íntimo destas, identificamos a insularidade na protagonista Filipa e na personagem Louca.
Ambaso consideradas estrangeiras por não terem nascido das mãos da parteira-velha
e sofreram um isolamento do restante da comunidade. Em Filipa a insularidade é
traduzida pelo isolamento em relação às pessoas ao seu redor. E na Louca, mulher
libertadora, é identificada pelo discurso crítico que denuncia as amarras da tradição
serranense.
Num primeiro momento, a insularidade encontra-se na discriminação, no exílio e no
ilhamento imposto pela sociedade sobre estas personagens. Num segundo momento,
desencadeia o distanciamento, que Filipa incorpora nas suas relações com outros
personagens na sua vida adulta, e que na Louca a impede de modificar a ordem social
pela qual o seu discurso clama.
4.1. Filipa: do espaço à formação do sujeito
Que toda partida é alfabeto que nasce
todo o regresso é nação que soletra.
Que toda partida É potência na morte
E todo o regresso É infância que soletra
Corsino Fortes
Filipa surge na narrativa com seus trinta e dois anos, próxima dos trinta e três,
mora na capital, no período do fim do ano de 1994. Sua ligação com Serrano se dá por ter
nascido na comunidade, onde sua mãe, Genoveva, após sofrer um acidente de avião e
56
perder a memória, é encontrada por Jerónimo, que a cuida e após cria a menina que ela
abandona ao fugir do vilarejo. Filipa permanece em Serrano até o período em que
Jerónimo a entrega ao padre na capital.
A narrativa é estruturada pela memória. O primeiro capítulo é construído como um
prólogo
(CAPUTO, 2008, p. 236), indicando os principais fatos da história que será
apresentada na narrativa. A partir deste capítulo o narrador aborda a personagem Filipa e
suas lembranças sobre Serrano. O processo permite a intromissão de duas
temporalidades, a primeira o mês de dezembro de 1994, um tempo presente, e a outra o
vilarejo Serrano, no período anterior ao seu nascimento, em tempo passado.
O narrador a descreve como uma pessoa de relações rasas, por vezes
considerada uma mulher “com grande ausência de afetos” e “fria”
(LS, p.175), por seus
amigos, ou “ar distante de estátua” (LS, p. 29) por seu ex-marido – expressões essas que
mostram que sua relação com os outros é frágil e distante. Mesma impressão o leitor tem
quando é descrito o nascimento de sua filha. Numa passagem que é marcada pela
frustração de Filipa por romper com seus objetivos e por ter de adotar de uma posição
que não faz parte dela, a expressão ser mãe não possui significado:
Tinha dezenove anos e a barriga não fazia parte da sua vida e queria
saber como incluir o filho nos seus planos quando deixasse a clínica,
mas não chegou a nenhuma conclusão por que a meio do pensamento
o anestésico entrou em acção, deixando-a na mais completa solidão
(LS, p.29).
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A madrasta estava ao lado dela quando a médica a anestesiou. Pouco
depois tiraram-lhe a filha e ninguém reparou que ao voltar-lhe a lucidez
se esqueceu de perguntar pela criança (LS, p. 35).
Como sua idade está próxima dos trinta e três anos, idade em que a Louca morre,
começa a pensar sobre si mesma e também sobre suas relações, sua maneira de lidar
com os outros. Nesse processo de reconstrução do seu passado, Filipa projeta sua
infância. Lembra da Louca constantemente e pergunta-se se não teria o mesmo destino
desta. Nesse realismo psicológico que permeia a personagem, Filipa procura
compreender sua trajetória; suas diversas famílias, sua família no presente. Esse jogo de
lembranças do passado, revividas no período de renovação, fim de ano, mostra a ela o
quanto é isolada. Como meio de sanar esse turbilhão de sentimentos, procura reencontrar
seus pais, sua mãe Genoveva, e seu pai adotivo Jerónimo, pessoas que marcaram a sua
identidade.
57
Segundo Stuart Hall, discorrendo sobre o deslocamento físico dos sujeitos
diaspóricos, os processos de deslocamento podem desencadear a reconstrução da terra
de origem, como alternativa de compreensão da suas identidades partidas (2009, p. 29).
A estratégia de voltar às origens através das lembranças é uma alternativa para aqueles
sujeitos que se encontram longe da sua terra natal. Filipa desloca-se, mas não é uma
saída transnacional, e sim regional, e mais significativos do que os espaços que percorreu
foram as pessoas que encontrou neles. O deslocamento que a personagem faz na
narrativa, além do físico, é principalmente pela memória. Segundo Raquel Souza “a
essência da memória é a imagem que se movimenta” (2010, p. 247). A imaginação de
Filipa está ligada ao passado, à imagem da sua infância, e ao presente, à imagem da sua
fase adulta, jogo estabelecido entre duas temporalidades e espaços diferentes.
A personagem, através do deslocamento memorialístico, recorda o passado
atualizando-o no presente, movimento temporal e espacial que a leva a reconstruir sua
trajetória. Começa por lembranças anteriores ao seu nascimento, mas a maior parte da
narrativa trata da sua infância em Serrano. No período em que esteve muda, estabelece a
comunicação pelos desenhos que faz dos olhos das pessoas de Serrano, e se comunica
pelo olhar com a Louca, a única que consegue ler este tipo de linguagem.
Na sua infância acredita que as pessoas de Serrano não se comunicam com ela
por ser muda, mas depois descobre que o verdadeiro motivo é o fato de ser considerada
estrangeira. Na obra, estrangeiro é o sujeito que não nasceu pelas mãos da guia
espiritual do vilarejo, a parteira, personagem que representa o respeito ao sagrado, ao
sobrenatural. Mentora do vilarejo e símbolo da tradição serranense, a parteira é o elo
entre os homens e as mulheres, os velhos e as crianças. Devido ao fato de Filipa ser
estrangeira, os habitantes de Serrano, tanto adultos quanto crianças, ignoram a presença
da menina, isolando-a de qualquer convívio.
O deslocamento memorialístico da personagem é a maneira de compreender o seu
modo de ser, a frieza que transmite e a solidão que a identifica: sentimentos agregados
desde a sua infância e que a personagem está decidida em mudar na sua personalidade.
Para isso, programa um reencontro com sua família, a do passado e a do presente, e com
os personagens que compõem a sua trajetória:
Seria um fim de ano diferente porque o adiara durante muitos anos e se
tinha empenhado para que não faltasse nenhum dos ingredientes que o
tornariam inesquecível. Preparara-o com muito rigor e estava a chegar o
dia. Um dia apenas. Sem pensar em dores que doíam ou pudessem
58
doer por milhares de razões obscuras ou não, como se tivesse colocado
toda a sua felicidade numa carta que iria ser jogada no dia trinta e um de
Dezembro, expondo-se a que no dia seguinte tivesse de recomeçar tudo
de novo se falhasse, ou simplesmente dar o caso por encerrado o que,
sem dúvida, seria muito mais doloroso (LS, p. 32).
O fato de Filipa ter saído de perto de seu pai aos sete anos de idade e nunca mais
ter retornado pode ter influenciado na sua frieza nos relacinamentos. Mas outro ponto
influenciador pode ter sido a cultura de Serrano, a maneira como os próprios serranenses
se representam. Eles estabelecem elos frágeis com o outro, independente de ser do
vilarejo ou não, atitude potencializada em relação a estrangeiros, característica essa de
comunidades insulares. Assim, podemos pensar o isolamento de Filipa pela ruptura que
teve com seus pais e o que isso trouxe de consequências a sua personalidade, como
também pela influência cultural que o território exerce sobre a formação de sua
identidade.
Ela não cultivava sentimentos muito profundos, se calhar também
porque nasceu e cresceu em Serrano, de gentes parcas em
manifestações de carinho, agrestes de ternuras e secas de fantasias, o
que fez com que ela tivesse desenvolvido um sentimento generalizado
que abarcava indistintamente tudo que a rodeava. Não havia
compartimentos especiais entre o que comia e quem lhe dava o comer,
ou o ar que respirava. Era tudo um bloco que não conseguia, mesmo
depois de adulta, fraccionar e atribuir pesos e medidas. Os seus
sentimentos eram frouxos e sem consistência pensava, sem
complexos, enquanto molengona, mudava de posição, no confortável
sofá cinzento (LS, p. 120).
Filipa é tanto Serrano como a capital, é tanto filha de Jerónimo e Genoveva quanto
parte de todas as famílias com quem cruzou no seu caminho. Os conflitos que aparecem
nesse momento da sua vida mostram como situações e relações estão mal resolvidas. A
narrativa comporta essa relação caótica no íntimo da personagem como uma busca de
sentido para a sua realidade, busca essa que pode estar tanto nas tradições serranenses
que se perpetuam em Filipa, quanto na formação individual e seletiva da sua
personalidade.
Segundo Simone Caputo “a busca da identidade é um tema importante, o que
proporciona um fio condutor da trama” (2008, p. 236). Porém, um dos discursos da Louca
é sobre a maldição que Serrano carrega. Este pode ser o fio condutor implícito da obra,
pois este castigo está intimamente ligado com as representações que os serranenses
fazem de si e dos outros, repercutindo na insularidade das suas identidades. A busca de
59
identidade, que Filipa desenvolve através de suas lembranças, é a alternativa de livrar-se
do castigo que permeia o vilarejo e que ela carrega. Este castigo é a negação do outro,
apresentado pela não comunicação entre os personagens. Em outra escala, essa
negação do outro é observada na perpetuação de tradições que repercutem na
subordinação de uns aos outros. Este último caso está presente no discurso da Louca.
Serrano, por ser uma vila afastada e sem comunicação com as fronteiras, constrói
seu universo dentro da pequena comunidade. O isolamento a que os habitantes são
condicionados resulta no ilhamento que estes impõem a outros habitantes.
Passada a história pela sua memória, Filipa decide encontrar o seu espaço, um
lugar de identificação e harmonia consigo mesma, projeção para dentro de si mesma.
Para isso acontecer, necessita reaver, não apenas na memória, os sujeitos que compõem
o seu passado.
Na hora em que Filipa deixava a aldeia, a jovem, parecendo mais
atrapalhada do que nunca, disse-lhe que um dia seria feliz porque
encontraria o seu lugar, apesar das centenas de luas que haviam de
passar e dos imensos obstáculos que teria de vencer antes de achar o
seu poiso. (…) - Onde será o meu poiso? interrogou-se, querendo pôr
ordem nas ideias que chegavam às catadupas e não lhe davam
descanso (LS, p. 33).
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Feito um balanço a sua parte económica, decidiu que era tempo de
resolver outros sonhos (...). Precisava reaver Jerónimo e conhecer todas
as pessoas que passaram por ela, não porque se sentisse amargurada
com as ausências, mas para poder substituir por rostos e nomes os
olhos que a olhavam do seu álbum de olhos, como fantasmas que
pediam paz (LS, p. 189).
No réveillon de 1995 em seu hotel, Filipa reencontra seus pais, a Louca e os
personagens que fazem parte da sua história de vida. É um momento de renovação, de
superação dos modelos do passado que rege o presente e que se modificam para o
futuro. A maldição de Serrano que é a não comunicação com o outro, a não permissão de
sentimentos, chega ao fim com o encontro de Filipa com as pessoas que passaram pela
sua vida.
O mergulho íntimo que Filipa efetua nessa narrativa é a analogia do mergulho em
que Serrano foi destruído. Ela mergulha em si, como Serrano mergulhou nas águas da
barragem, porém, diferente do vilarejo, ela ressurge. Este movimento permite uma
transcendência da personagem, ultrapassando a sua incomunicabilidade, as águas
serranenses que faziam parte dela, as águas da sua tradição. A morte de Filipa, que
60
ocorre próximo do fim da narrativa, é uma morte simbólica, que representa o novo ciclo, o
seu ressurgimento.
Stuart Hall esclarece que a memória é a rede e o local que constitui o elo entre o
passado e o presente para os sujeitos em deslocamento ou deslocados (2009, p. 26).
Filipa não conseguiria voltar ao passado para reescrevê-lo, sua trajetória escreve sua
história, seu mecanismo de reconstrução de si mesma é a memória: elemento que se faz
pela criativa imaginação do seu criador, na organização de fatos e sentimentos
impulsionados por ações que acontecem na narrativa. Dessa forma, poderíamos dizer
que Filipa sana os conflitos que surgem no período do presente, relembrando
problemáticas guardadas no seu íntimo e que, depois de visitadas, desencadeiam uma
nova Filipa, ou seja, um novo sujeito que passa por um mergulho interior e reescreve sua
história, dando sentido e corpo aos olhos que guarda no seu álbum de olhos e que
habitam suas lembranças.
4.2. Louca: da loucura à libertação
A loucura e o louco tornam-se personagens maiores em
sua ambigüidade: ameaça e irrisão, vertiginoso desatino
do mundo e medíocre ridículo dos homens.
Michel Foucault
Michel Foucault, na obra História da Loucura na Idade Clássica, relata que a
instituição de reclusão surgiu para isolar os leprosos do resto da sociedade. No século
XV, a lepra representa a presença da morte, e a forma de negá-la é pelo isolamento
daqueles que possuem a doença (2008, p. 4).
Com o surgimento do tratamento para os leprosos, estes não precisam mais
ocupar esses espaços, que passam a serem frequentados pelos portadores de doenças
venéreas, no final do século XVI. Foucault diz “que a doença venérea se isolou, numa
certa medida, de seu contexto médico e se integrou, ao lado da loucura, num espaço
moral de exclusão” (2008, p. 8). A presença dessa doença na sociedade representava um
61
desregramento moral, por ser uma doença sexualmente transmitida, e como forma de
negar a imoralidade, isolam-se os doentes do restante da sociedade e do tratamento
médico adequado.
No século XVII a loucura surge como ocupante dos espaços de reclusão. Mas,
antes de ocupar os manicômios a loucura era resolvida na sociedade européia pelo
deslocamento dos loucos. Para o filósofo, a loucura esteve ligada, no século XV, à
Renascença, pela imagem simbólica e também real, da Nau dos Loucos (2008, p. 9)
24
.
Esse navio aportava em algumas comunidades e lá os marinheiros eram encarregados de
levar os loucos, pessoas que destoavam do meio social, para outra comunidade. Por
vezes o lugar de permanência desses sujeitos é o próprio mar, espaço limiar entre um
mundo e o outro, e que se incumbia de encerrar a loucura. O significado dessa viagem
para aqueles que expulsavam era o de purificar os loucos. A partida via água simboliza o
retorno à origem, podendo os loucos purificarem-se e retornarem ao convívio social.
Porém, quando os loucos chegavam a outra localidade eram colocados em casas com o
mínimo de assistência, ali permanecendo até a morte.
Na Idade Média a figura da loucura representa a verdade contida na ilusão. O
discurso que vem da loucura possui o tom da crítica, assim, o louco é visto como o
detentor da verdade. Foucault acrescenta que “se a loucura conduz todos a um estado de
cegueira onde todos se perdem, o louco, pelo contrário, lembra a cada um sua verdade;
na comédia em que todos enganam aos outros e iludem a si próprios, ele é a comédia em
segundo grau, o engano do engano” (2008, p. 14). O tema da loucura surge nesse
período, como crítica do modo de vida europeu, principalmente no que se refere à
questão da morte. É um período histórico de pestes e guerras que condicionavam a
existência do homem. A ideia do fim do mundo, e assim, do fim do homem, se torna
constante na metade do século XV. A presença da morte é figurada, pela ironia do
discurso da loucura, que mostra aos homens a sua morte em vida, a sua morte pela
medíocre existência no mundo. Assim, Foucault diz:
O medo diante desse limite absoluto da morte interioriza-se numa ironia
contínua; o medo é desarmado por antecipação, tornado irrisório ao atribuir-
se-lhe uma forma cotidiana e dominada, renovada a cada momento no
espetáculo da vida, disseminado nos vícios, defeitos e ridículos de cada um.
24
Surge de forma literária, não como nau dos loucos, mas como navio representando uma viagem
simbólica, mítica de heróis modelos éticos, que traz senão a fortuna, pelo menos a figura de seus destinos
ou suas verdades. A Narrenschif é a única que teve existência real, pois eles existiram, esses barcos que
levavam sua carga insana de uma cidade para a outra. [...]Os loucos tinham então uma existência
facilmente errante, isso ocorrendo na primeira metade do século XV. (Cf. FOUCAULT, 2008)
62
A aniquilação da morte não é mais nada, uma vez que já era tudo, dado que
a própria vida não passava de simples fatuidade, palavras inúteis, barulho
de guizos e matracas. A cabeça, que virará crânio, já está vazia. A loucura é
o já-está-aí da morte. […] Da máscara inútil ao cadáver, é o mesmo sorriso
que permanece. Mas o que existe no riso do louco é que ele ri antes do riso
da morte; e pressagiando o macabro, o insano o desarma. (2008, p.16)
A loucura desmascara a vida aos homens: ironizando suas atitudes apresenta-os à
morte existencial, a morte em vida. É por veicular essa denúncia que o louco é isolado da
sociedade, à semelhança do leproso que se apresentava vivo, enquanto a própria
presença da morte. Nesse sentido, a experiência da loucura no fim do século XV, assume
a dimensão de sátira moral. No século XVII, a Nau dos Loucos e a imagem do louco como
detentor da verdade é substituída pelo hospital e pelos sujeitos alterados. O espaço agora
é fixo e abarca sujeitos que não seguem as regras sociais e morais de uma sociedade.
Michel Foucault, na obra Doença Mental e Psicologia, diz
Criam-se (e isto em toda a Europa) estabelecimentos para a internação
que não são simplesmente destinados a receber os loucos, mas toda
uma série de indivíduos bastante diferentes uns dos outros, pelo menos
segundo nossos critérios de percepção: encerram-se os inválidos
pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados
opiniáticos, os portadores de doenças venéreas, libertinos de toda
espécie, pessoas a quem a família ou o poder real querem evitar um
castigo público, pais de família dissipadores, eclesiásticos em infração,
em resumo todos aqueles que, em relação à ordem da razão, da moral e
da sociedade, dão mostras de “alteração” (1994, p. 78).
E o filósofo acrescenta que “a patologia mental tem realidade e valor de doença
no interior de uma cultura que a reconhece como tal” (1994, p. 71).
Seguindo este conceito, começo a pensar a personagem Louca. Ela não possui
características patológicas que a descrevam como portadora de uma doença mental,
porém a sua posição, tanto de gênero quanto ideológica, de denunciar as estruturas que
organizam a vila, a identifica como um sujeito alterado. Nesta narrativa não Nau dos
Loucos e nem hospital, porém o mecanismo de exclusão é feito pela sociedade, pelo
isolamento a que a comunidade a submete.
A negação da presença da personagem é dada pelo mesmo motivo que isolava os
loucos no século XV, por representar uma sátira moral. O discurso que ela profere faz
com que a sociedade a declare louca; é uma denúncia da subalternidade da mulher em
Serrano e dos sujeitos pertencentes à classe menos favorecida, da cidade vizinha.
63
Foucault diz que “para os homens da lei, a loucura atinge essencialmente a razão, com
isso alterando a vontade ao mesmo tempo em que a inocenta” (2008, p. 140). Esse
argumento é utilizado pelos habitantes sobre a louca: para eles o discurso dela não os
atinge, pois a razão dela está alterada. Dessa forma, desautorizam o discurso e a crítica
que este contém.
A apresentação da Louca na obra ocorre na nomeação de Serrano, um momento
em que sua voz foi escutada por todos. A personagem é construída com características
do real maravilhoso, pois habita em Serrano por mais de duzentos anos e possui a
memória desse espaço. Mulher que nasce misteriosamente, aparece na vila com seus
nove anos de idade, e que morre quando completa trinta e três anos. É denominada
demoníaca e louca pelos habitantes da vila e comunista pelo padre da cidade,
representações essas que evidenciam o olhar da comunidade sobre ela. A personagem
não fica somente em Serrano, também discursa na cidade vizinha, falando aos mais
necessitados e mostrando-lhes a miséria a que estão expostos.
A caprichosa mulher era temida porque inquietava corpos e almas e
perturbava os rumos de cada um, nas raras vezes que aparecia, com gritos
e frases que pareciam punhaladas. Ao lembrarem-se dela, as mulheres e os
homens odiavam o religioso que os iludia com promessas de felicidade
depois da morte, odiavam a descrente porque lhes lembrava a miséria em
que pacificamente chafurdavam e odiavam-se, medrosos, sem jeito de
outras ousadias do que rasgados lamentos por si mesmos (LS, p. 39).
Por possuir a memória do território de Serrano, a Louca critica a postura das
mulheres que perpetuam a sua condição de oprimidas. Estas serranenses são as que
mais a isolam.
Porém, existiu em Serrano uma mulher que não aceitava essas regras e devido a
isso acaba morta de forma violenta por todos os homens do vilarejo. Esta personagem é
Gremiana. A Louca conta esta parte da história.
Gremiana nunca aceitou os conselhos da parteira e das mulheres mais
velhas que, perante os maus tratos do marido, a aconselharam a
procurar um farmacêutico na cidade vizinha que distava o comprimento
de uma urgência ou de um querer, nem nunca se mostrou inclinada a
desabafar sobre o possível desejo de ter um filho; mas nesse dia,
enquanto a tarde caía e Valentim oferecia no botequim a vida íntima dos
dois, apregoando a sua virilidade e a pouca serventia da companheira,
ela esqueceu a vergonha de mulher humilde, perdeu o medo às
pancadas que viriam e às injúrias que iriam acontecer e gritou as
verdades, todas elas, aos homens da região, a todos eles, que na
64
mesma hora, juntos, marido, pai, irmãos, amigos, inimigos e parentes e
os demais companheiros, velhos e novos, escorreitos e desarticulados,
sóbrios e bêbados, correram atrás dela aos insultos e à paulada (LS, p.
64-65).
Este trecho mostra a maior angústia de Serrano: o fato de não nascerem crianças
no vilarejo. Para as mulheres, e sob a influência da parteira-velha, o segredo da
infertilidade masculina não deveria ser revelado. Uma das causas desse silêncio pode ser
o medo que as mulheres tinham do “castigo da montanha”, sendo o eco que os
serranenses ouvem e que a Louca usa para os ameaçar, dizendo que “pela burrice dos
habitantes a montanha iria destruir Serrano” (LS, p. 56). Outra causa, e talvez seja a mais
coerente com a narrativa, seria pela violência a que estavam expostas. O recurso do
silêncio e o de procurar o “farmacêutico” na cidade vizinha era a forma de manter a honra
do marido, e também de não sofrerem violência,
[...] a parteira aconselhava a jovem sobre o que fazer caso a vida se tornasse
insuportável pela acumulação de ameaças e humilhações, desde a privação
calculada do sexo à violentação, da traição à pancada, tudo em nome da sua
incapacidade de procriar (LS, p. 64).
Isto é justificado pela insularidade geográfica do vilarejo, fato que impulsiona uma
ordem fechada, com estrutura própria, que causa um domínio de uma parte da sociedade
sobre a outra, neste caso, o do gênero masculino sobre o feminino.
A escolha do narrador em apresentar a Louca no esquadro real maravilhoso nos
mostra tanto uma crítica da realidade, em que elementos sobrenaturais são utilizados
para ironizar atitudes da realidade, como também para “subtrair o texto à ação da lei e,
por êsse meio, transgredi-la” (TODOROV, 1970, p. 161).
Torna-se claro, afinal, que a função social e a função literária do
sobrenatural são uma única: trata-se da transgressão de uma lei. Seja
no interior da vida social ou da narrativa, a intervenção do elemento
maravilhoso constitui sempre uma ruptura no sistema de regras
preestabelecidas, e acha nisso sua justificação (TODOROV, 1970, p.
164).
Esta estratégia literária possibilita um discurso livre de qualquer lógica ou
julgamento, mas também uma “transculturação de formas distintas do fantástico europeu
e norte-americano com aspectos das culturas indígenas e afro-americanas” (COUTINHO,
2003, p. 27). Porém, na relação estreita com a literatura africana e da América do Sul, o
65
real maravilhoso aparece não como obra surreal, e sim como significado mítico e de
concretude da realidade, sendo um elemento formador de significado de sociedades e
culturas. Alejo Carpentier, na obra O reino deste mundo, nos apresenta uma explicação
para este fenômeno quando diz:
Acontece que muitos esquecem disfarçados de mágicos baratos – que
o maravilhoso começa a sê-lo, de maneira inequívoca, quando surge de
uma inesperada alteração da realidade (o milagre), de uma revelação
privilegiada da realidade, de um destaque incomum ou singularmente
favorecedor das inadvertidas riquezas da realidade, ou de uma
ampliação das escalas e categorias da realidade, percebidas com
particular intensidade, em virtude de uma exaltação do espírito, que a
conduz até um tipo de “estado limite”. Antes de tudo, para sentir o
maravilhoso é necessário ter fé (CARPENTIER, 1985, Prefácio).
Essa estratégia autonomia ao discurso da Louca, que não passa por nenhuma
violência física na sociedade. Se fosse uma mulher como qualquer serranense, poderia
acabar morta como Gremiana. O fato de atuar no plano do sobrenatural a protege da
violência que o seu discurso causa na sociedade. A Louca não é uma construção
feminina do anjo do lar, da mulher domesticada, da maternal; sua caracterização é a de
uma mulher mítica que, por possuir esse distanciamento, compreende a estrutura da
subordinação feminina. Ao ignorar a presença da Louca, os habitantes de Serrano
mostram uma única atitude para com ela: o silêncio que representa a negação de
qualquer discurso que ela pronuncie.
O sobrenatural que ela carrega remete ao que Carpentier chama de fé, de enxergar
o irreal como real, representando uma perspectiva mítica da personagem (1985,
Prefácio). Essa construção dialoga com o personagem bíblico Jesus Cristo. A relação
com a idade trinta e três anos e o discurso de libertação são leituras transculturais, em
que ocorre uma apropriação de uma determinada cultura, sendo modificada para um
contexto próprio (HALL, 2009, p. 31), no caso o evangelho católico recontado no contexto
da vila de Serrano. A vila é uma zona de contato em que se cruzam duas histórias de
origem mítica sobre a libertação. Nesta é revivida por uma mulher, oportunizando voz
àquelas que não a possuem em Serrano.
Confirmando essa relação, Cristo também foi considerado um louco, como diz
Foucault,
Cristo não quis apenas cercar-se de lunáticos, ele mesmo quis passar
aos olhos de todos por demente, percorrendo assim, em sua
66
encarnação, todas as misérias da degradação humana: a loucura torna-
se assim a forma última, o último degrau do Deus feito homem, antes da
realização e da libertação da Cruz. (…) Respeitar a loucura o é
decifrar nela o acidente involuntário e inevitável da doença; é
reconhecer esse limite inferior da verdade humana, limite não acidental
mas essencial. Como a morte é o fim da vida humana no plano do
tempo, a loucura é o fim da vida no plano da animalidade (2008, p. 156-
157).
É pelo discurso da Louca que deparamos com os modelos de representação dos
serranenses. A loucura que repugna os habitantes é a crítica de seus hábitos que se
lança a eles. A personificação da loucura é a mostra dessa sociedade ainda com modos
primitivos, sob o regimento da animalidade, sendo o instinto a outra face da loucura. A
descrição da morte de Gremiana é um exemplo dessa estrutura social. A morte dessa
personagem representa o último veículo de silenciamento; nas outras personagens, Filipa
e a Louca, o isolamento foi a maneira de manter a mesma ordem social.
Não ficou provado, mas a Louca de Serrano, a mulher que nascia e
morria a cada trinta e três anos, de mãe e canto desconhecidos e
herdava a memória, o rosto e o destino da mulher que a antecedia,
disse que a humilhação das gentes do lugar era terem tido corpo e não
lhes ter sido dado cabeça (LS, p. 96).
A apropriação do discurso religioso e a subversão da personagem de libertação é a
crítica que a narrativa faz à própria história bíblica. A Louca diz a Filipa “que cada um
tinha o seu destino a cumprir, preço por se ter nascido, tal como ela própria pagava o seu,
ou o dos pais que desobedeceram à natureza que os criara” (p. 145). Esse trecho remete
aos primeiros habitantes bíblicos do paraíso, Adão e Eva.
A relação de Adão e Eva com a Louca explica porque a personagem de libertação
é do gênero feminino. Eva representa a mulher transgressora das regras divinas, e devido
a isso ela é expulsa do paraíso junto com Adão. Este é condenado pela ação da mulher e
como pena perde o lugar de origem. Se pensarmos o contexto da narrativa em Cabo
Verde, verificaremos que esta sociedade é estruturada e modelada pelos dogmas
católicos. A religião católica é um dos pilares do processo de colonização portuguesa.
Símbolo da civilização e papel central na sociabilidade entre brancos e negros, a igreja
católica foi responsável pela educação moral e social desses espaços. No seu discurso a
mulher é a pecadora, aquela que causou o caos, e devido a isso expôs o homem que lhe
deu vida (SEMEDO, 2009). Esses discursos apresentam o símbolo mulher de forma
negativa, inferiorizando o seu papel como agente social e apresentando-a no contexto
67
matrimonial e maternal. Suas privações se dão por serem as representantes de Eva, e por
isso carregam o pecado dentro de si mesmas. A narrativa, ao apresentar uma mulher
como personagem de libertação, subverte o discurso de dominação da educação secular
católica. Ao invés de surgir um homem que liberta os povos escravizados, repete-se o
mesmo discurso, porém na voz de uma descendente de Eva.
Essa discussão religiosa aparece também na obra Mornas eram as noites, em que
a narradora dos contos apresenta a sua versão sobre Jesus e sobre a loucura. Assim, ao
expor Cristo, no conto “Com todo o respeito, Um camarada”, ela nos diz:
Com Jesus o caso é outro. Com todo o respeito, é um camarada. A
gente fala-se e entende-se.(...) Gosto de o ver de braços abertos, pés
juntos, tenso, olhando para mim, para além de mim. Gosto de o ter
exposto às minhas mãos, ao meu olhar, aos meus pensamentos e
diálogos, na intimidade conseguida. Comove-me. Como as coisas belas
me comovem e sinto-me mais à vontade para lhe contar da minha vida.
Respeitosamente.(MN, p. 61-62)
A loucura é tematizada pela personagem Leonor, no conto “Rosa Negra”, uma
personagem sincera com seus sentimentos e coerente com seus pensamentos. A
narradora, ao discorrer sobre Leonor, não a mostra como uma portadora de patologia
mental, pelo contrário, esse conto é um elogio à loucura, fazendo um paralelo com o
conto acima pela maneira de olhar o outro.
Ao ouvir dizer dos olhares vazios dos loucos, ri-se, porque sabe que
eles olham para longe dos longes, onde o acesso é privilégio dos que,
racional e loucamente, optaram por um espaço indomável, onde o riso
convive com cada sopro de vida, cada brilho de cada momento, cada
oportunidade, no seu tempo limite ( MN, p. 86).
Salústio oferece sua versão sobre Jesus e a loucura, personagens que junto com
a Louca representam a libertação de regras que mantém a subordinação de uns pelos
outros. Jesus e Leonor, ambos olham para o além do outro sujeito, oportunizando formas
diversas de representação e de discurso na realidade. O mesmo olhar reaparece na
Louca, como diz Filipa:
Os olhos da amiga que ela adivinhava nas coisas mais diferentes, um
bocado de nuvem, um raio de luz ou uma sombra fugaz, aconselhavam-
na a não desistir! (LS, p. 162).
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Filipa lembrava-se de um clarão de luz nos olhos da amiga, mas era um
segredo entre as duas e soube sempre guardá-lo, como parte do seu
68
patrimônio querido (LS, p. 74).
A relação estabelecida entre esses personagens apresenta a modificação de
estruturas da sociedade. Em Serrano a fecundidade feminina é tratada como o vazio do
útero das mulheres, e assim repercute no seu papel na sociedade. O trecho abaixo
apresenta o olhar dos homens sobre a fecundidade.
Sim, porque nas suas poucas falas, os homens de Serrano diziam
que as mulheres é que podiam falhar na procriação, porque os
machos, estes, nada tinham a ver com tal tarefa e bastava ver o
mecanismo visível da sua sexualidade que, de cada vez que enchia
e desenchia, um filho poderia nascer; dezenas, centenas, milhões de
filhos poderiam nascer. A terra é que pode ser fértil ou não e terra
eram as fêmeas e os seus úteros que às vezes não passavam de
terra seca (LS, p. 63).
Consideradas secas, por não fazerem o que lhes é de obrigação, pois segundo a
maioria dos homens do vilarejo ter filhos é responsabilidade feminina, as mulheres são
tratadas com desrespeito e culpabilidade. O nascimento de uma criança nessa
comunidade está atrelado à honra masculina (LS, p. 53), pois simboliza a potência e a
virilidade dos homens. De certa forma o exercício da sexualidade feminina é discutido
nesta obra como um foco de repressão da mulher. A discussão sobre a subalternidade é
o tema central da narrativa, não se fechando no contexto em que foi escrito, que a
questão da opressão sobre as mulheres é identificada em diversas culturas, inclusive em
Cabo Verde.
A justificativa da morte cíclica da Louca é dada na narrativa pelo fato de que o
“fardo que ela carrega” ser muito pesado para uma vida. Necessita morrer para nascer
novamente, com a mesma memória, e assim tentar eliminar a maldição que ronda
Serrano, maldição que percorre toda a narrativa, e que está na incomunicabilidade entre
os habitantes, na não fraternidade quanto ao outro.
Ao ocorrer o reencontro no veillon de 1995, que simboliza o elo que Filipa não
possuía, este representa a quebra do castigo que perseguia os serranenses. A Louca, ao
ver a maldição findar-se pela união que Filipa estabelece com seus pais e também com
as pessoas que passaram pela sua vida, despede-se e anuncia que a maldição acabou e
por isso o seu destino foi cumprido, não precisando mais reencarnar. A insularidade da
Louca termina pela religação entre o passado e o presente, momento em que os
69
serranenses se relacionam com o diverso, manifestando assim possuir sentimentos.
O cuidado da escritora em abordar essa temática mostra o seu comprometimento
em desestabilizar as estruturas arcaicas e dominadoras de repressão. A escolha de tratar
a temática da libertação pela personagem louca mostra a crítica aos sujeitos que se
consideram “lúcidos”, porém suas atitudes possuem mais alterações do que a da própria
loucura. Assim, termino com a percepção de Foucault sobre o surgimento da loucura no
século XV, que dialoga com esta narrativa,
Não é mais o fim dos tempos e do mundo que mostrará
retrospectivamente que os homens eram uns loucos por não se
preocuparem com isso; é a ascensão da loucura, sua surda invasão,
que indica que o mundo está próximo de sua derradeira catástrofe; é a
demência dos homens que a invoca e a torna necessária (FOUCAULT,
2008, p. 17).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Mar azul e branco e as luzidias
Pedras: o arfado espaço
Onde o que está lavado se relava
Para o rito do espanto e do começo
Onde sou a mim mesma devolvida
Em sal espuma e concha, regressada
Sophia Andresen
Nessa viagem pelas letras de Salústio, encontrei a insularidade na sua obra.
Diferente da corrente literária que aborda esse tema pela questão geográfica, o trabalho
de Salústio é apresentar ao leitor a insularidade íntima das personagens. A loucura e a
memória são presenças tanto temáticas quanto semânticas da insularidade. A Louca é
isolada por ter esse estereótipo; Filipa é isolada por ser “estrangeira”, mas o mecanismo
de modificação da sua solidão é pela memória.
A insularidade permitiu aos claridosos o sonho de um outro espaço em que
Pasárgada é o desejo. O reconhecimento da identidade cabo-verdiana foi desenvolvido
por este movimento que oportunizou um processo de autonomia cultural e, anos mais
tarde, política. Manuel Veiga, ao falar da temática da insularidade na formação da história
literária do arquipélago, diz
A meu ver, no entanto, a insularidade da crioulidade extravasa o
sentimento de solidão e de nostalgia, emergente do acanhado espaço
geográfico das ilhas, para encorporar outros aspectos resultantes tanto da
dialéctica entre a imensidade do mar arquipelágico e a pequenez das ilhas
retalhadas que as ondas “afogam e afagam”, como também entre a
grandeza do sonho ilhéu que não se conforma com a medida da ilha e os
problemas sociais, políticos e culturais de que as mesmas têm sido palco.
Na verdade, como cheguei a afirmar, em outro lugar, a fome existencial
do ilhéu ultrapassa os limites da estreita fronteira contornada pelo mar para
se projectar na procura do mais além. O visível não lhe chega, ele tem
necessidade do imaginário. (1998, p. 9)
71
O espaço mítico de Serrano dialoga com a e dos Ventos e com Pasárgada;
essa projeção é a urgência de novos modelos sociais na sociedade contemporânea. A
não comunicação que existe em Serrano é o anúncio de velhas estruturas políticas que
não são modificadas pela falta do reconhecimento de novos modelos de representação
social. Ao ser construído um espaço mágico em que a chave de entrada é a memória,
Salústio mostra que os espaços legitimadores de diferentes identidades estão localizados
nos pensamentos. A memória remete à construção histórica dos espaços, sendo ela
veículo de deslocamento: deveríamos conhecer melhor a memória histórica dos espaços
para que não se perpetuem ideias de exclusão construídas em tempos coloniais.
A presença física do mar na história de Cabo Verde formou a cultura e condicionou
a estrutura política, econômica e social, por não oportunizar a comunicação com as
fronteiras do além mar. O mar foi o condicionante físico do arquipélago, porém a
miserabilidade do território e o sentimento de abandono que os cabo-verdianos
vivenciaram ocorreu pela presença da colonização portuguesa que, por não conhecer a
geografia e o clima do local, e por ver nas outras colônias mais bens de lucro, não
desenvolveu ou oportunizou a melhoria do território.
Tudo não passa de ficção, dirão aqueles que não vêem como um movimento
cultural pode desencadear o conhecimento do seu meio, o conhecimento do seu povo, da
erudição do popular. A literatura de Claridade permitiu aos cabo-verdianos o
conhecimento da sua identidade, a brecha de pertencimento social, modificando modelos
representativos, literários e sociais que vinham do império. Os personagens começam a
ser descritos como oriundos de territórios periféricos e marginais. O conhecimento que a
revista Claridade oportunizou no arquipélago promoveu, cinquenta anos mais tarde, a
independência política do país.
A escrita da Dina Salústio está nesse horizonte literário. Sua prioridade é a
denúncia das amarras ainda coloniais. Seu espaço de revolução é o compromisso de
promover o pensamento e, assim, a desconstrução de mecanismos de exclusão social.
Ela fala da mulher, voz aos seres inanimados, critica as posturas e políticas da
sociedade, tudo isso no lirismo marítimo, como diria José Almada.
A insularidade na obra A Louca de Serrano apresenta as mesmas características
da insularidade existencial, surgindo e efetuando-se no espaço pela falta de comunicação,
que, no período de dependência política, o império português impôs ao arquipélago. Na
narrativa ela é presente na maneira da comunidade representar o diferente, o
“estrangeiro”, que são apresentados pelas personagens Filipa e Louca.
72
A insularidade em Filipa é dada pela solidão de sujeito perante uma comunidade.
Dessa solidão que sofre desde a infância, desencadeia-se um realismo psicológico que
permite à personagem reescrever sua trajetória, organizando os sentimentos e ações que
vivem em sua memória, realizando uma negociação entre o passado e o presente,
relocalizando-se no espaço e tempo do presente. Na Louca a insularidade imposta a ela
é a forma de desautorizar o seu discurso, que satiriza a mentalidade primitiva da
sociedade serranense.
Serrano é Filipa e a Louca, espaço que representa o castigo que carrega seus
habitantes. A insularidade do vilarejo é a mesma que a comunidade impõe às
personagens Filipa e Louca. O ciclo da maldição que os serranenses possuem, sendo na
obra uma leitura da incomunicabilidade que cultivam, termina ao ser realizado o
reencontro, entre passado e presente, entre serranos e os estrangeiros, entre o discurso
do passado colonial e o discurso do presente da independência.
As duas personagens unidas pelo isolamento adotam posturas distintas na
representação da realidade. A Louca, apesar de possuir um discurso agressivo, pede por
igualdade de direitos, assim, na mesma tentativa de distanciamento, ela clama por união.
Já Filipa interioriza a mesma frieza a que foi exposta na infância, formando a base de sua
identidade, ocorrendo uma modificação do seu modo de ser por estar próxima dos
trinta e três anos, idade limite que representa a morte na narrativa, no caso da Louca.
Rememorar a sua trajetória oportuniza a Filipa reconhecer-se, é o modo como
retorna ao passado, dando um sentido novo ao presente. Um mergulho interior possibilita
uma nova Filipa, com representações da realidade diferentes das que aprendeu com as
tradições.
No mesmo sentido, a modificação de padrões de opressão e subordinação social
devolvem à Louca a libertação das reencarnações pelas quais não passará mais. O seu
fardo que, por ser pesado, a obrigava a desencarnar e reencarnar novamente, termina
pela representação da afetividade entre pessoas de diferentes culturas, e assim ocorre a
simbologia do respeito ao outro.
As protagonistas de Salústio são mulheres que se encontram fora dos seus
espaços, estão sempre em busca ou retratam um espaço mítico. Este espaço sempre se
confronta com a realidade, não se apresenta como uma projeção do espaço físico e sim
como uma busca de plenitude no espaço íntimo, uma fusão entre o espaço social e
interior da mulher. Na busca do seu lugar localizam-se sempre em um deslocamento, num
lugar de passagem.
73
Nos poemas da escritora a memória é presença. As lembranças dos eu-líricos
mostram os deslocamentos no tempo e espaço, por vezes apresentando sentimentos
contidos e reprimidos. É na memória o espaço de plenitude dos sujeitos líricos, e é por
esse veículo de deslocamento que eles se auto conhecem. Nos contos a denúncia das
amarras sociais é mostrada como crítica aos modelos de representação cultural no que
diz respeito às mulheres e também aos sujeitos excluídos das discussões sociais.
A bandeira que a Louca carrega ultrapassa a condição exposta dos sujeitos que a
rodeiam e vai pelo discurso daquele que ela representa analogamente, Jesus Cristo, que
em nome da liberdade dos povos hebreus, busca a transcendência social através do
amor universal em respeito às diferenças culturais. A liberdade íntima que Filipa almeja
projeta a liberdade dos indivíduos em seus diferentes contextos sociais. Seria a troca: em
nome da realização do amor coletivo suspende o individualismo. O castigo que ameaça a
aldeia seria a escravidão sentimental, em que o outro não é observado e não possui voz.
Somente pela libertação dessas representações sociais, Serrano é perdoada.
A busca estabelecida por Filipa é a ressignificação da cultura de origem na sua
identidade, curando através dessa retrospectiva o imaginário representativo da sua
interioridade. Filipa funde-se com Serrano, ultrapassando-o, pois seu destino poderia ser
o mesmo do território que foi destruído pelas águas do vale, sendo metáfora do profundo
mergulho interior. Atravessada essa fronteira cultural, a protagonista consegue a
libertação e reconstrução da sua identidade. Ao término do romance, na temporalidade
de um réveillon, marca de mudança cíclica, Filipa, curada da sua tempestade interior,
projeta o retorno a Serrano.
A mulher jovem da sua infância, de repente estava incrivelmente bela, como
sempre aparecia no seu pensamento e nos seus sonhos: rosto sem idade,
olhos que a fixavam profundamente, com a força de Serrano. Encostaram-se
uma à outra. Agora eram duas mulheres e apesar da força que lhes pudesse
ser atribuída, nenhuma delas mostrava qualquer tipo de segurança. Deixaram-
se estar até que ainda abraçadas, sentaram-se. A aldeia chegava mágica,
linda e feiticeira.
– Serrano – disse Filipa engolindo todo o ar que podia – Vamos voltar para lá?
Passou-se um largo momento e depois, apenas algumas palavras no ar em
jeito de despedida:
– Acabou-se Serrano e a sua maldição. Acabou-se tudo.
A Louca de Serrano afastou-se, o seu destino cumprido e, pela primeira vez,
nas suas centenas de vida, chorava de saudade, enquanto foguetes
acompanhavam-lhe os derradeiros gestos.
Filipa sentia-se, igualmente, livre e só. (LS, p. 211-212)
Essa modificação íntima de Filipa remete analogamente à esperança de uma
74
modificação social, em que os discursos da Louca sejam escutados e legitimizados.
Salústio dialoga com um contexto de escritoras africanas de língua portuguesa.
Elas, a partir do processo de independência, começam a escrever textos que abordam o
feminino, modificando o panorama literário colonial que apresenta essa enunciação pelo
viés do território, em que a mulher é assimilada à pátria. Pela luta de libertação os (as)
poetas cabo-verdianos (as) não tematizam a mulher em questões do íntimo feminino,
porém, após a independência, surgem novas vozes e nelas escritoras descrevendo a
mulher como corpo, marca de um espaço físico.
As escritoras utilizam o corpo feminino como denúncia do espaço social opressivo
do silenciamento, no que respeita a questões do gênero. A mulher-pátria muda para a
mulher-íntimo, o que era voz coletiva passa para voz individual. Assim, as escritoras
inserem no imaginário popular uma nova significação do símbolo mulher e oportunizam
um novo espaço em que se diluam as bases da exclusão, em que essas mulheres foram
inscritas.
A escolha da personagem Louca com referência ao personagem Jesus insere a
discussão sobre a influência religiosa na estrutura social, no mesmo momento que
reivindica direitos pela voz de uma descendente de Eva, mulher transgressora na história
católica.
Esse gesto modifica a consciência histórica do gênero, transferindo a dimensão
feminina ao contexto do terreno e do carnal, inscrevendo a mulher na auto consciência do
seu corpo e do seu sentir, assim ultrapassando os preconceitos e castrações referentes à
história das mulheres, que muitas delas perpetuam nos seus quotidianos.
Ao ler Dina Salústio, fica aquela sensação de ler o interior do sujeito, de entrar em
contato com o interior das personagens. As suas falas desvelam a complexidade do ser
mulher na sociedade e no íntimo. Os desejos que ela permite e inscreve são desejos
femininos de completude. Seus textos dialogam tanto com a corrente literária pós-colonial
africana de língua portuguesa quanto com os discursos de outras escritoras fora desse
contexto. A mulher-corpo é tema de busca de auto conhecimento; é pela sua descrição
que encontramos o íntimo feminino sob a aparência que se revela socialmente. As
temáticas de Salústio extrapolam a dimensão ilha do espaço Cabo Verde, a dimensão
mulher, e reescrevem o pertencimento dessas mulheres tanto do corpo feminino quanto
do espaço social feminino, sendo esta questão não restrita ao arquipélago. O seu trabalho
de escritora, como também de cidadã, ativa socialmente, permite a criação de novas
regras, de novas formas de representação, tanto da mulher quanto da sociedade.
75
Este trabalho pretendeu lançar um olhar sobre a obra A Louca de Serrano e
apresentar ao público brasileiro a escritora cabo-verdiana Dina Salústio. Porém, não
possui o objetivo de fechar qualquer tipologia ou nomenclatura sobre o valor da produção
da obra da escritora. É apenas um olhar interessado.
76
Foi uma longa viagem.
Hoje, o abraço e o ponto final.
Dina Salústio.
77
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81
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VEIGA, Manuel. Cabo Verde: insularidade e literatura. Paris: Karthala, 1998.
82
ANEXOS
Poemas referentes ao primeiro capítulo “Cabo Verde: uma literatura em revista”.
Fragmentos do poema “Irmão” (1941), de Jorge Barbosa. BARBOSA. In: LUCE,
2010.
“Irmão”
Cruzaste Mares
na aventura da pesca da baleia,
nessas viagens para a América
de onde as vezes os navios não voltam mais.
(...)
Sob o calor infernal das fornalhas
alimentaste de carvão as caldeiras dos vapores,
em tempo de paz
em tempo de guerra.
E amaste com o ímpeto sensual da nossa gente
as mulheres nos países estrangeiros!
Em terra
Nestas pobres Ilhas nossas
És os homem da enxada (...)
A Morna...
Parece que é o eco em tua alma
Da voz do Mar (…)
Poema “Magia Negra”, de Aguinaldo Fonseca. In: DÁSKALOS et al., 2003, p. 137.
“Magia Negra”
Abro
De par em par, a janela
Ao convite da noite tropical.
E a noite enche o meu quarto de estrelas vivas.
Nesta hora morna e calma,
Profunda e densa como um túnel,
O rumorejar longínquo das palmeiras
Varrendo o Céu
83
É misteriosa voz do negro martirizado.
Prendo os meus gestos e o meu grito abafo.
Silêncio...
No poço da paz nocturna
Interceptada
Pela orgia sincopada
Das estrelas e dos grilos,
Arrasta-se o vão lamento
Da África dos meus Avós,
Do coração desta noite,
Ferido, sangrando ainda
Entre suores e chicotes.
E a Lua Cheia que veio
A voz quente do batuque,
Faz feitiço...
E o negro dorme
Sonhando ser Santo um dia.
Poema “Anti-evasão”, de Ovídio Martins. In: CAPUTO, 2008, p. 134-135.
“Anti-evasão”
Pedirei
Suplicarei
Chorarei
Não vou para Pasárgada
Atirar-me-ei ao chão
E prenderei nas mãos convulsas
Ervas e pedras de sangue
Não vou para Pasárgada
Gritarei
Berrarei
Matarei!
Não vou para Pasárgada
Poema “Caminho Longe”, de Gabriel Mariano. In: DÁSKALOS et al., 2003, p. 151.
“Caminho Longe”
Caminho
caminho longe
84
ladeira de São-Tomé
Não devia ter sangue
Não devia, mas tem.
Parados os olhos se esfumam
no fumo da chaminé.
Devia sorrir de outro modo
o Cristo que vai de pé.
E as bocas reservam fechadas
a dor para mais além
Antigas vozes pressagas
no mastro que vai e vem.
Caminho
caminho longe
ladeira de São-Tomé
Devia ser de regresso
devia ser e não é.
A terceira parte do poema “Hora Grande”, de Onésimo da Silveira. In: DÁSKALOS et
al., 2003, p. 146.
“Hora Grande”
3
Nas feridas do seu parto
As raízes do nosso umbigo beberão a seiva
E no ventre da “mamã-terra”
Germinarão as sementes das nossas certezas
E nos embriagaremos da carne dos seus frutos...
As crianças nascerão sem metas nos olhos
E as suas mãos sujar-se-ão
Do mel do nosso olhar...
As crianças serão crianças!
Negras e loiras e brancas
Serão pétalas da mesma flor...
85
Poemas de Dina Salústio reunidos na obra Mirabilis de veias ao Sol (1991): os
poemas não possuem título exceto “Apanhar é ruim demais”, para identificá-los
será citado o primeiro verso de cada poema.
“Por que havias de chegar”
Por que havias de chegar
num dia enevoado de bruma
nessa manhã de vento forte que me roubou
a (minha) máscara?
Por que havias de entrar
num dia de porta aberta
e me surpreender nua
a um canto tiritando
procurando confusa os trapos para me tapar?
Por que nesse maldito dia em que desprevenida
lavava uma saudade
e arrumava a um canto
um tempo que me doía?
Por que me terias que abraçar
e me chamar mulher
e abrir a janela e inventar um sol
sussurrar uma canção?
Para quê?
Se foi o tempo de um cigarro? (SALÚSTIO, 1991, p. 152)
Praia, 1986
“Chegam notícias de barcos no fundo”
Chegam notícias de barcos no fundo
copos em cacos
cacos em corpos
papéis vazios
bocas seladas
crianças vendidas
brinquedos sem dono
ventos sem brisa
violão sem cordas
meninos sem riso
braços sem abraços
céus sem espaço
Por que drama por uma amizade que morre? (SALÚSTIO, 1991, p. 154)
86
“Estranha-me que aragens e arrepios”
Estranha-me que aragens e arrepios
não corram pelo bosque em propostas inquietantes
de desassossego louco e ciclones rudes.
E que sombras nubladas não passeiem pelos olhos em jogo
e se desfaçam em raios brasa ao chegar ao fim
Espanta-me que as areias não tomem vida
e contem estórias agarradas ao corpo
de outras horas que por lá passaram.
E que gotas salgadas não se transformem num rio gritante
de caudal azul e inundem o solo de fantasias brancas
Admira-me que cicatrizes recusem novas dores
promessas de vida
para renascerem em chagas abertas fantasiadas de arlequim
num dia negro solene e sério.
E que as pernas não se tornem asas
para com a brisa voarem o espaço de um sorriso
Assombra-me que a ausência não provoque alucinações
e não traga visões de deserto solidão e frio.
Dói-me que a folha em branco
não exija nada
não grite palavras
não risque a pele
não acorde sentidos
não rasgue a paz (SALÚSTIO, 1991, p. 153).
“Geme-se grita-se e expulsa-se”
Geme-se grita-se e expulsa-se
é um nascimento barato
Entra-se come-se e paga-se
é uma casa barata
Bebe-se encharca-se e cai-se
é um bar barato
Encosta-se mija-se e cospe-se
é uma rua barata
Enrola-se fuma-se e tosse-se
é um tabaco barato
Toca-se torce-se e esgota-se
é um amor barato
Trabalha-se cumpre-se e assina-se
87
é um ofício barato
Levanta-se mexe-se e dorme-se
é um viver barato
Deita-se olha-se e morre-se
é uma morte barata
Escreve-se lê-se e rasga-se
é um poema barato (SALÚSTIO, 1991, p. 156).
Praia, 1986
“Apanhar é ruim de mais”
Eram deuses contava-se
e diabos e loucos e tinham um altar
cheiravam a maresia a madeira verde
e desfiavam sonhos e liam sinas
nos cabelos sem dono ao amanhecer
Eram deuses e diabos contava-se
e perturbavam com seu canto
e ameaçavam o som aceite
Juntaram-se cordas e leis e facas
e afiaram-se línguas e palavras
Armaram-se cercos e armadilhas para os apanhar
Revolveram-se templos e bares
Praias e castelos
Os cães não ladraram
os anjos adormeceram
a lua se escondeu.
Os corpos fecharam-se e a ameaça cumpriu-se
Nem deuses loucos nem demónios
Humanos apenas. Humanos amantes.
Uma mosca vomitou de náusea
o céu soluçou estrelas
as vagas cuspiram raiva
o vento envergonhado desfez-se em pó.
a noite caiu e fez meu choro em pedaços.
Éramos eu e tu
dentro de mim.
Centenas de fantasmas compunham o espetáculo
E o medo
Todo o medo do mundo em câmara lenta nos meus olhos.
Mãos agarradas
Pulsos acariciados
um afago nas faces.
Éramos tu e eu
88
dentro de ti.
Suores inundavam os olhos
Alagavam lençóis
corriam para o mar.
As unhas revoltam-se e ferem a carne que as abriga.
Éramos tu e eu
dentro de nós.
As contrações cada vez mais rápidas
o descontrolo
a emoção
a ciência atenta
o oxigénio
a mão amiga.
De repente a grande urgência
a Hora
a Violência
Éramos nós libertando-nos de nós.
É a nossa dor.
São nossos o sangue e as águas
O grito é nosso
A vida é tua
O filho é meu.
Os lábios esquecem o riso
os olhos a luz
o corpo a dor.
A exaustão total
o correr do pano
o fim do parto. (SALÚSTIO, 1991, p. 158)
89
Contos da obra Mornas eram as noites (1999), de Dina Salústio.
“Liberdade adiada”
Sentia-se cansada. A barriga, as pernas, a cabeça, o corpo todo era um enorme
peso que lhe caía irremediavelmente em cima. Esperava que a qualquer momento o
coração lhe perfurasse o peito, lhe rasgasse a blusa.
Como seria o coração?
Teria mesmo aquela forma bonita dos postais coloridos?
Seriam todos os corações do mesmo formato?
… Será que as dores deformam os corações?
Pensou em atirar a lata de água ao chão, esparramar-se no líquido, encharcar-se,
fazer-se lama, confundir-se com aqueles caminhos que durante anos e mais anos lhe
comiam a sola dos pés, lhe queimavam as veias, lhe roubavam as forças.
Imaginou os filhos que aguardavam e que já deviam estar acordados. Os filhos que
ela odiava!
Aos vinte e três aos disseram-lhe que tinha o útero descaído. Bom seria que caísse
de vez! Estava farta daquele bocado de si que ano após, enchia, inchava, desenchia e lhe
atirava para os braços e para os cuidados mais um pedacinho de gente.
Não. Não voltaria para casa.
O barranco olhava-a, boca aberta, num sorriso irresistível, convidando-a para o
encontro final.
Conhecia aquele tipo de sorriso e não tinha boas recordações dos tempos que
vinham depois. Mas um dia havia de o eternizar. E se fosse agora, no instante que
madrugava? A lata e ela, para sempre, juntas no sorriso do barranco.
Gostava da sua lata de carregar água. Tratava-a bem. Às vezes, em momentos de
raiva ou simplesmente indefinidos, areava-a uma, dez, mil vezes, até que ficava a luzir e a
cólera, ou a indefinição se perdiam no brilho prateado. Com o fundo de madeira que tivera
que lhe mandar colocar, quando começou a espirrar água e não suportava uma torcida
de farrapo, ficou mais pesada, mas não eram daí os seus tormentos.
Atirar-se-ia pelo barranco abaixo. Não perdia nada. Aliás nunca perdeu nada.
90
Nunca teve nada para perder.
Disseram-lhe que tinha perdido a virgindade, mas nunca chegou a saber o que
aquilo era.
À borda do barranco, com a lata de água à cabeça e a saia batida pelo vento,
pensou nos filhos e levou as mãos ao peito.
O que tinha a ver os filhos com o coração? Os filhos... Como ela os amava,
Nossenhor!
Apressou-se a ir ao encontro deles. O mais novito devia estar a chamar por ela.
Correu deixando o barranco e o sonho de liberdade para trás.
Quando a encontrei na praia, ela esperando a pesca, eu atrás de outros desejos,
contou-me aquele pedaço da sua vida, em resposta ao comentário de como seria bom
montar numa onda e partir rumo a outros destinos, a outros desertos, a outros natais. (p.
7-8).
“Com todo o respeito, Um camarada”
Aprendi com a minha mãe e a Igreja a temer e a adorar a Deus. Na realidade,
posso corrigir-me: adorar a Deus com temor.
Não tenho traumas, apesar de entre Ele e eu ter havido sempre uma densa parede,
transparente, é certo, que nunca permitiu a transponibilidade ou pequena espreitadela ao
íntimo, que fosse. Também os meus olhos nunca se levantaram para Ele. Ficaram caídos,
com o peso dos meus pecados.
As distâncias tinham que ser cumpridas. Na minha impotência e na Sua
onipotência.
Com Jesus o caso é outro. Com todo o respeito, é um camarada. A gente fala-se e
entende-se. Por exemplo, espaços meus onde ele não entra porque, à partida, eu
digo-lhe que são coisas minhas e de outras pessoas e não ficaria bem ele participar.
Vezes há, que pelo mesmo pudor que tenho em relação a outros amigos, eu poupo-o de
situações que poderiam causar algum constrangimento. Ele poderia até compreender.
Estou certa de que me entenderia, mas amigo não foi feito para se encostar à parede.
Por outro lado, departamentos da sua vida dos quais não quero nem o
endereço.
91
Entrando, ou não, na vida de cada um, houve sempre o que se pode chamar de
muito carinho e muita cumplicidade entre os dois e, para mim, não mais bonito do que
esses sentires. E a protecção que me dá.
Um dia, cansada de o ver crucificado, resolvi tirá-lo da cruz onde o pregaram.
Como lhe poderia falar de uma cena alegre e brilhante, estando ele triste e sangrando?
Acho que eu teria que ser muito cruel.
Sem o madeiro, numa representação de ferro, deite-o bem no meio da minha mesa
de cabeceira. Num fundo de veludo azul petróleo.
Pareceu-me que sorria.
Gosto de o ver de braços abertos, pés juntos, tenso, olhando para mim, para além
de mim. Gosto de o ter exposto às minhas mãos, ao meu olhar, aos meus pensamentos e
diálogos, na intimidade conseguida. Comove-me como as coisas belas me comovem e
sinto-me mais à vontade para lhe contar da minha vida. Respeitosamente.
Há dias, prometi-lhe uma vela.
Na igreja, o homem que me atendeu, meio carrancudo, informou-me que não
vendiam velas e que eu as fosse comprar na loja ao lado.
Comprar e vender: sem dúvida, os termos exactos para a operação, mas que me
chocaram, porque não imaginados no início.
Eu queria uma vela diferente. Comprida e amarela. Das que consumindo-se,
deixam cair grossas lágimas de luz.
Não necessariamente de dor.
Tenho velas vulgares, mas essas não lhas quero oferecer. Terá que ser uma coisa
bonita. Como o sorriso de um camarada. Como o sorriso da sua ternura. (p. 62-64).
“Rosa Negra”
25
Dizem que é louca. Ondulantemente louca como a própria loucura. Mas não atira
pedras. As pedras das montanhas e do coração da terra! Belas demais para servirem de
balas.
E porque agredir as pessoas? Por não serem igualmente loucas? Por serem felizes
25
A formatação deste conto respeita a fonte original.
92
nos risos alugados, nas lojas mofas de histórias falsas? Por mentirem e por dizerem a
verdade? Por serem diferentes e iguais?
Nem pedras, nem olhares.
Ela é louca e os loucos não sabem olhar.
Ao ouvir dizer dos olhares vazios dos loucos, ri-se, porque sabe que eles olham
para longe, para o mais longe dos longes, onde o acesso é privilégio dos que, racional e
loucamente, optaram por um espaço indomável, onde o riso convive com cada sopro de
vida, cada brilho de cada momento, cada oportunidade, no seu tempo limite.
Que importa se depois há um nada que se espelha na transparência, ou na cicatriz
gravada no gesto fugaz do riso?
A fugacidade do riso dos loucos. Fugaz, também, o riso daquele menino que, mal o
inicia, se volta para dentro de si, para o mundo cansado da miséria; a esperança não é
para ele.
Ela chega leve, esvoaçante na saia preta.
Negra, diz-me ela. Como negra é a noite, a paixão e maresia.
O meu coração às vezes é negro e insondável e eu espelho-me nos seus
batimentos descompassados, urgentes e conflituosos.
Queria que a flor que te trouxe fosse negra como o som da morna numa cidade
europeia e perfumada.
… há um flutuar de energia no ritmo do abraço antigo e, timidamente, eu digo-lhe:
Comprei um cartão de Natal com o seguinte dizer: “No fim do caminho/ No
último instante do fim/ Eu estarei contigo”. Gostas?
Ridículo. Acho parvo esperar o fim do caminho. Cada passo é um fim. Cada
93
minuto, um dia; cada dia, uma história. Belo é assim: “Ao longo do caminho/ no primeiro
instante de um momento qualquer, estaremos juntos/ Em muitos momentos de um
instante qualquer”.
– Estragaste a minha alegria. Já não gosto do poema que eu comprei – ensaio um
sorriso.
– Um poema não se compra nem se encomenda. É como a paixão.
Sem se preocupar em saber dos meus farrapos, saiu, deixando, na mesa, a flor
que pedira para mim de um impossível jardim e que cheirava a saudade. Sabia a mar e
falava de um lugar tão distante que eu não chegava lá.
É que eu não tenho a loucura de Leonor, capaz de trazer para mim e para ela o
inferno e o céu de instantes longínquos. (p. 86-87)
94
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