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Retratos da violência contra a criança: as produções discursivas de cuidadoras
que frequentam uma instituição de atendimento
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Pedro Paulo Viana Figueiredo
Retratos da violência contra a criança: as produções discursivas de cuidadoras
que frequentam uma instituição de atendimento
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Pernambuco, como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Psicologia.
Orientador: Prof. Dr. Pedro de Oliveira Filho
RECIFE
2010
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Figueiredo, Pedro Paulo Viana
Retratos da violência contra a criança : as produções discursivas de
cuidadoras que frequentam uma instituição de atendimento / Pedro Paulo
Viana Figueiredo. Recife: O Autor, 2010.
158 folhas : il., quadro
Tese (Mestrado) Universidade Federal de Pernambuco. CFCH.
Psicologia, 2010.
Inclui: bibliografia e apêndices.
1. Psicologia social. 2. Violência familiar. 3. Abuso sexual em crianças. 4.
Violência contra as crianças. I. Título.
159.9
150
CDU (2. ed.)
CDD (22. ed.)
UFPE
BCFCH2010/19
Recife, 03 de Fevereiro de 2010
A todas as participantes deste trabalho por confiar e
expor um pouco de suas vidas.
AGRADECIMENTOS
Este é um trabalho desenvolvido por alguém que não tinha experiência prévia com a
pesquisa e escrita acadêmica. Para que ele fosse possível, várias pessoas contribuíram em
minha trajetória para que uma inquietação pessoal se tornasse um estudo acadêmico.
Gostaria de agradecer aquelas que confiaram e me ajudaram neste caminho de aprendizado
seja de maneira profissional, acadêmica ou afetiva.
À Rhute, por indicar os caminhos e ajudar a colocar em forma de projeto minhas
inquietações. Sua ajuda foi essencial.
A Pedro pelo aprendizado, paciência, orientação neste trabalho e por guiar minha iniciação
no mundo acadêmico e no estudo da psicologia social discursiva. Não é exagero dizer que
você é um orientador exemplar.
À Fernanda, Larissa, Juliana Barbosa, Jullyane, Ludmila, Isaac, Márcio e Simone pelas
contribuições e questionamentos sobre as análises no grupo de estudo que permitiram o
enriquecimento deste trabalho. Devo ainda um agradecimento especial a Jullyane por me
ajudar a conduzir os grupos focais.
À Juliana Lucena pelas conversas animadoras durante as horas de aperreio e eventuais
ajudas com este trabalho.
À Isa pelas contribuições e leituras desta dissertação que me ajudaram em momentos
difíceis.
A toda turma de 2008, pelas relações afetivas e trocas de ideia durante os diversos
momentos dessa jornada.
Ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPE, e todo o corpo docente pelo
aprendizado. A Alda em especial, por nos guiar com paciência durante todos os
procedimentos necessários do curso.
A Ricardo Méllo e Benedito Medrado pelas contribuições fundamentais na banca de
qualificação que ajudaram no desenvolvimento desta dissertação.
Aos seguintes profissionais que me iniciaram na temática da violência contra criança: Liliane
Martins, Cleide Paixão, Adriana França, Valéria Nepomuceno, Gabriela Amazonas, Aline
Tavares, Elisabeth Costa e Karla Ribeiro.
À minha família, por dar todo o apoio necessário.
Às participantes, pela disponibilidade de participar desta pesquisa.
A CAPES, pelo apoio fundamental.
LISTA DE QUADROS
57
RESUMO
Trata-se de um trabalho que tem como foco de interesse os discursos que cuidadoras de
crianças que sofreram violência produzem sobre a violência doméstica. A pesquisa foi
realizada numa organização não-governamental (ONG) da cidade do Recife que atende
crianças e adolescentes vítimas de violência. A partir das intervenções profissionais na
instituição de reuniões de orientação, oficinas, capacitações, cursos, palestras etc. as
cuidadoras têm contato com conceitos acerca da violência que não tinham anteriormente.
Tais conceitos, porém, podem não ser bem aceitos, havendo resistências em serem
adotados que não fazem parte de suas vivências ou até mesmo contradizem práticas e
conceitos antigos. É relevante, portanto, explorar os discursos sobre a violência doméstica
que as cuidadoras produzem para compreender que atos/eventos passam a ser entendidos
como violência em suas trajetórias de vida e na relação com seus/suas filhos/as a partir da
intervenção institucional. Este é um trabalho de natureza qualitativa que teve como
participantes cinco cuidadoras (mulheres) que frequentam o atendimento desta ONG. Duas
entrevistas com grupos focais foram utilizadas como instrumento de geração de material
discursivo, sendo gravadas para posterior transcrição, e tiveram duração média de 2h15min
cada. O material foi analisado a partir da psicologia social de natureza discursiva
desenvolvida por autores como Jonathan Potter, Margareth Wetherell, Derek Edwards e
Michael Billig, que enfatizam o caráter retórico do discurso (como as pessoas argumentam
sobre eventos e fenômenos), sua função (ação e consequências do discurso) e variabilidade.
Os relatos dessas mulheres focalizam, em sua maioria, suas experiências pessoais. Nesses
relatos cada participante deu ênfase a características ou eventos distintos que envolveram a
violência contra seus/suas filhos/as. Foram também produzidos discursos que descrevem
experiências anteriores de violência sofridas geralmente na infância por essas mulheres.
Essas experiências, e outras experiências do cotidiano familiar dessas mulheres,
influenciaram, segundo elas, no reconhecimento, ou na ignorância, da violência que
seus/suas filhos/as estariam sofrendo, pois forneceram repertórios que determinavam os
atos que poderiam ser classificados ou não como atos violentos. Relatam a importância das
intervenções na instituição para que compreendessem a violência doméstica e pudessem
reconhecê-la, bem como significar eventos passados a partir de novos referenciais
fornecidos pela instituição. Também discutem como, em um primeiro momento, o apoio (ou
a falta de apoio) da família e/ou de grupos religiosos tornou-se essencial no momento de
decidir sobre como proceder para impedir a continuação daquilo que passaram a reconhecer
como violência contra seus/suas filhos/as. Através de seus relatos, podemos compreender
exemplos de conceitos e práticas que foram apropriadas pelas participantes a partir de
repertórios sobre o fenômeno da violência doméstica fornecidos pela instituição. Estes
repertórios permitiram que elas passassem a nomear e significar eventos recentes e antigos
que antes não eram reconhecidos como sendo violentos.
Palavras-chave: violência doméstica; abuso sexual infantil; violência contra criança;
psicologia social discursiva.
ABSTRACT
This work focuses on the discursive production from caretakers who had abused children
about domestic violence. The research was developed on a non-governmental organization
(NGO) located on the city of Recife which attends children and teenagers victims of violence.
From the professional intervention in the institution mainly from orientations’ meetings,
workshops, seminars etc. those caretakers get in touch with a set of concepts about
violence that they don’t have beforehand. These concepts, on the other hand, may not be
well accepted, resisting on being adopted once they are not part of the caretakers
experiences or even contradict older practices and concepts. It is relevant to explore the
discourses that caretakers produce about domestic violence to comprehend which
acts/events, since the institutional intervention, turn out to be understood as violence in
their life’s trajectories and in the relationship with their children. This is a qualitative
research which had five caretakers (all of them women) who are attended in the NGO. Two
focal group interviews were used to generate discursive data. The interviews were recorded
to subsequent transcription and had the average duration of 2h15min each. The material
was analyzed having as reference the social psychology of discursive nature developed by
authors such as Jonathan Potter, Margareth Wetherell, Derek Edwards and Michael Billig,
which emphasize the rhetorical character of discourse (how people argument about events
and phenomena), its function (actions and consequences of discourse) and variability. Those
women’s accounts focus, on the most part, in their own experiences. On those accounts
each participant focused on distinct events or characteristics that involved the violence
against their children. Were also produced discourses that describe previous experiences of
violence suffered generally on the childhood by these women. These experiences, and
others experiences from their everyday, influenced, in their words, the recognition, or
unawareness, of the violence that their children were suffering, because they gave
repertoires which determinate the acts that should be or should not be qualified as a violent
act. They talk about the importance of the institution’s intervention in order to comprehend
the domestic violence and recognize it, as well as redescribe past events from new
references given by the institution. They also discuss how, in a first moment, the support (or
lack of support) given by the family and/or by religious groups turned out to be very
important in the moment to decide how to proceed to stop what they began to recognize as
violence against their children. Through their accounts, we can comprehend examples of
concepts and practices that were appropriated by the participants from repertoires about
the domestic violence phenomena gave by the institution. Those repertoires allowed them
to name and signify recent and old events that weren’t recognized before as violent events.
Keywords: domestic violence; child sexual abuse; violence against children; discursive social
psychology.
SUMÁRIO
9
13
14
15
21
23
29
34
35
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54
55
58
61
62
65
66
68
70
73
74
83
100
122
122
136
145
1. Introdução
Este trabalho aborda a questão da violência no espaço doméstico. O desejo de
realizá-lo surgiu após minha experiência como estagiário em psicologia numa organização
não-governamental (ONG) da cidade do Recife no período de março/2006 a dezembro/2007.
Essa instituição, que tem entre seus objetivos garantir a promoção e a defesa dos direitos
humanos de crianças e adolescentes, realiza, entre outras atividades, atendimento jurídico e
psicossocial em casos que esses sujeitos são vítimas de violência. Durante este período eu
atuava no atendimento clínico a crianças e adolescentes e em atendimentos de intervenção
junto aos familiares, na maioria das vezes em psicoterapia de grupo.
O atendimento em psicoterapia de grupo era pontual, e o modo de intervenção mais
comum junto aos familiares se dava por meio de orientações realizadas pela equipe
interdisciplinar (que era formada por duas advogadas, uma assistente social e uma
psicóloga, na época em que deixei de participar da instituição) ou por meio de oficinas
temáticas promovidas pela equipe. Daqui em diante, utilizarei o termo cuidadores/as. Esta
foi uma escolha para identificar aqueles/as
1
que estão com a responsabilidade da criança e
que não foram indicados como agressores, podendo não ser necessariamente seus pais.
Nas intervenções psicoterápicas, chamou minha atenção o fato de que muitas vezes
as crianças que estavam na instituição por terem sido identificadas como vítimas de
violência doméstica relatavam também sofrer atos por parte de seus/suas cuidadores/as
que poderiam ser classificados como tal. De outra forma, durante as oficinas com os/as
cuidadores/as notei que muitas vezes o discurso destes/as em relação ao que poderia ou
não ser considerado violência doméstica divergia ou era resistente ao discurso promovido
pela instituição.
A participação em seminários com outras entidades que formam a Rede ARCA Ação
em Rede pela Criança e Adolescente e conversas informais com profissionais de outras
instituições que prestam atendimento psicossocial, me fizeram acreditar que este não era
1
Para contemplar os gêneros linguísticos masculinos e femininos, optei por grafar as palavras desta
maneira.
10
um fato incomum, pois, era relatado que crianças e adolescentes atendidos nestas
instituições e que tinham sido encaminhados pelos órgãos responsáveis Conselho Tutelar,
Centros de Defesa, GPCA, Ministério Público enquanto vítimas de violência doméstica por
parte de um dos/as seus/suas cuidadores/as no caso, aquele/a considerado/a o/a
agressor/a sofriam concomitantemente violência por parte daquele/a cuidador/a que
procurou o apoio da instituição.
Assim, os profissionais nessas instituições precisam intervir junto a essas famílias no
caso de perceberem ou desconfiarem que a criança ou adolescente esteja sofrendo alguma
violência, com fins tanto preventivos como de intervenção psicossocial, tendo como
finalidade contemplar o atendimento integral, conforme previsto no Estatuto da Criança e
do Adolescente
2
. Porém, aquilo que a equipe profissional identifica como violência em
especial violência doméstica é entendido como tal pelos/as cuidadores?
Nas intervenções psicossociais e jurídicas dos profissionais junto aos/às
cuidadores/as nessas instituições, há o encontro entre o discurso dos profissionais e o
discurso dos/das cuidadores/as sobre temas como violência, violência doméstica, maus-
tratos etc. Com isso, os profissionais objetivam intervir nos casos em que a desconfiança
ou existem informações de que os/as cuidadores/as estão cometendo violência contra as
crianças ou adolescentes que estão sob seu cuidado, informando das consequências de tais
atos para estas crianças ou adolescentes e das possíveis implicações para esses/as
cuidadores/as, que estão sujeitos a ão da lei por cometer crime contra essas crianças ou
adolescentes. É justamente na situação de intervenção que haverá a construção do
fenômeno que passará a ser nomeado de violência doméstica para esses/as cuidadores/as,
porém, os atos/eventos que compõem esse fenômeno podem não ser entendidos como tal
uma palmada pode ser entendida como uma punição educativa, por exemplo.
Tendo em conta uma possível diferenciação ou mesmo conflito entre repertórios que
definem determinados atos como sendo violentos: o informal (ou popular), de valores
morais tradicionais e o formal (ou acadêmico), que nesses espaços geralmente são
2
As instituições de atendimento se encaixam na seguinte linha de ação política de atendimento que
é preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, no art. 87: “serviços especiais de
prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração,
abuso, crueldade e opressão” (BRASIL, 1990, art. 87, § III).
11
permeados pelo discurso dos direitos humanos e por referências da literatura que fala sobre
os malefícios de se praticar violência contra a criança/adolescente, surge o interesse em
pesquisar quais discursos os cuidadores/as de crianças que sofreram violência produzem
sobre a violência doméstica.
O objetivo geral deste trabalho, portanto, é analisar a produção discursiva sobre a
violência doméstica em jogos discursivos de cuidadoras que tiveram filhos/as vítimas de
violência. Os objetivos específicos são os seguintes: a) identificar e analisar nessa produção
conceitos e argumentos mobilizados para falar sobre a violência no espaço doméstico,
dando especial atenção à variabilidade e às funções desses conceitos e argumentos; e b)
identificar e analisar relatos que compreendam mudanças sobre o conceito de violência para
os/as cuidadores/as e que sejam atribuídas a intervenções institucionais.
É tendo estes objetivos por base que escolhemos como título “Retratos da violência
contra a criança”. Supondo que um retrato podendo ser ele fotográfico, desenhado,
rabiscado, pintado etc. não é uma representação fiel do mundo, mas antes, estabelecido
por várias escolhas como ângulo da foto, tipo de lente, filtros, tipo de material, assunto a ser
enfatizado, pincéis e cores a serem utilizadas etc., as participantes argumentaram sobre este
fenômeno a partir de escolhas que permitissem “pintar o quadro adequado” sobre o
fenômeno de acordo com seus interesses.
Esta dissertação foi organizada em oito partes. No capítulo que se segue,
discutiremos sobre a violência doméstica e o abuso sexual infantil, tendo como foco os
conceitos que mais se destacaram nos discursos produzidos pelas cuidadoras. Para tal,
pontuaremos brevemente que eventos favorecem o surgimento desses conceitos, sua
visibilidade no exterior e no Brasil, além de demonstrar como esses conceitos chegam aos
cuidadores nas intervenções.
No capítulo três, discutiremos o referencial teórico-metodológico que permeará a
pesquisa. Será discutida a importância da linguagem na construção do mundo social, o
movimento construcionista e a psicologia social discursiva.
No capítulo quatro, discutiremos sobre a metodologia adotada neste trabalho. Nele
falaremos sobre a escolha do instrumento para geração de material discursivo, a escolha dos
participantes e os procedimentos de análise.
12
No capítulo cinco, apresentaremos de maneira breve as narrativas de trajetórias de
cada participante até a chegada na instituição em questão. Nos capítulos seis e sete,
apresentaremos as análises referentes às entrevistas com grupos focais realizadas com as
participantes. Neles, discutiremos sobre como as participantes falam sobre violência contra
criança, violência doméstica e como elas falam sobre o papel que a instituição desempenha
em suas vidas. Para finalizar, no capítulo oito faremos algumas considerações sobre os
resultados discutidos na análise e sobre o trabalho de uma maneira geral.
2. Sobre a violência doméstica e o abuso sexual infantil
Por que falar sobre a violência doméstica e o abuso sexual infantil? A resposta não é
simples nem tão pouco direta. Utilizando uma metáfora musical, essa dissertação não foi
uma melodia executada de forma linear e harmoniosa em solo, e sim, a partir de um
trabalho árduo de composição das melodias e vozes de todos/as os/as participantes/as
envolvidos/as. O autor, enquanto executor e co-autor da obra, teve que estar sempre
atento, durante toda sua execução, à batuta das participantes que marcavam a melodia e o
ritmo da composição. Desse modo, era constantemente obrigado a rever a obra de modo a
deixar a melodia o mais fiel possível.
Assim, em favor de uma pesquisa que tem como questão de interesse como a
violência doméstica é conceituada nos dos jogos discursivos empreendidos por cuidadoras
3
que tiveram filhos/as vítimas de violência doméstica, não pretendemos nos debruçar sobre a
literatura em profundidade. Em seu lugar, vamos efetuar a discussão necessária para que
compreendamos de que lugares vêm as narrativas/relatos/argumentos empreendidos pelas
participantes ao longo das análises.
Nas idas e vindas ao longo dos diversos atos que compõem este trabalho,
construímos este capítulo motivados por três fatos que se destacaram nos dois encontros e
nos momentos em que os participantes falavam sobre a violência que seus/suas filhos/as
sofreram e, às vezes, sobre a violência que elas próprias sofreram. Foram estes fatos que nos
fizeram escolher esses dois conceitos como importantes de serem desenvolvidos. Primeiro,
as participantes relatavam seus casos utilizando termos sobre a violência que compreendiam
tanto um repertório informal (ou popular) quanto um repertório formal (ou técnico). Em
segundo lugar, seus/suas filhos/as foram classificados como vítimas de violência doméstica
e, em alguns casos, como vítimas de abuso sexual. Dessa forma, seus relatos vão estar
3
A princípio, nosso objetivo compreendia entrevistar cuidadoras e cuidadores, porém, foi-nos
indicado apenas mulheres para participar da pesquisa, coerente com o contexto dos responsáveis
pelas crianças que frequentam a instituição, que são mulheres em sua maioria.
14
sempre se referindo a esses dois conceitos em seus diversos aspectos, seja qualificando cada
um deles, categorizando-os, explicando como acontecem, posicionando a si mesmas, a
vítima e aquele que agride etc. E em terceiro lugar, é constante em seus discursos a
presença da instituição como o local que as instruiu sobre esses conceitos, fazendo com que
elas (re)significassem os eventos que seus/suas filhos/as sofreram e os eventos que elas
mesmas sofreram em alguma época através de um novo repertório sobre a violência.
Porém, nesse trabalho argumentaremos em favor de uma teoria que conceba a
violência doméstica foco de nossa pesquisa de forma ampla, e não dividida em
“caixinhas”, cada qual contendo suas características fundamentais. A partir da discussão que
desenvolveremos posteriormente na análise, pretenderemos demonstrar que aquilo que a
literatura chama de violência doméstica é um fenômeno estabelecido na relação entre as
pessoas no cotidiano e que muitas vezes é resistente ao arcabouço jurídico-psicológico
disponível.
O que chamamos aqui de arcabouço jurídico-psicológico é o conjunto de termos e
práticas desenvolvidos nos momentos de intervenção por diferentes profissionais que
compõem os órgãos que atendem com a criança vítima de violência e sua família. Porém,
que termos e práticas são esses que mencionamos aqui? Para que o/a leitor/a compreenda
de que falamos, mostraremos como o termo violência doméstica é utilizado na literatura
brasileira quando relacionado à violência praticada contra crianças e adolescentes no
espaço doméstico e como chegou às participantes nas intervenções. Para tal,
desenvolveremos dois sub-tópicos que compreendam: a) de que forma(s) se fala sobre o
conceito(s) de violência doméstica e abuso sexual na literatura corrente no Brasil e b) como
esses discursos chegam aos/às cuidadores/as nas intervenções.
2.1 Conceito(s) de violência doméstica e abuso sexual infantil no Brasil
Os conceitos/caracterizações da violência doméstica e do abuso sexual infantil são
bastante complexos, recebem diversas nomeações e são desenvolvidos a partir de
diferentes disciplinas que se comprometeram com suas elaborações, mas tem seu lócus
privilegiado na psicologia e na medicina (SILVA, 2008). Muitas vezes eles se confundem e a
violência doméstica quando diz respeito àquela cometida contra crianças e adolescentes
15
também é denominada abuso infantil. E o abuso sexual infantil muitas vezes deixa de ser
uma subcategoria da violência doméstica/abuso infantil e torna-se uma categoria à parte,
com objetivo de tornar mais visível a ocorrência do fenômeno. Para nosso interesse, vamos
falar brevemente sobre como a violência doméstica/abuso se consolidou como um tipo
4
internacionalmente e no Brasil, tornando-se objeto de interesse e intervenção pública e,
posteriormente, descrever como alguns/mas autores/as brasileiros/as os conceituam.
2.1.1 Visibilidade internacional do fenômeno
No âmbito internacional, esses conceitos (violência doméstica, abuso infantil) só
entraram em cena a partir de sua elaboração no campo da medicina. Segundo Guerra
(2001), o primeiro estudo científico que se tem notícia relatando sobre a violência de pais
contra filhos/as foi elaborada por um médico, Ambroise Tardieu, no ano de 1860. Ele teria
resolvido denunciar o fenômeno fundamentando-se em “evidências” de violências físicas
contra crianças que encontrou ao realizar autópsias no necrotério parisiense, bem como em
outros estudos de casos em que crianças apresentavam pancadas e ferimentos no corpo.
Mas seu trabalho não teve repercussão na época (GUERRA, 2001).
Porém, o termo “abuso infantil” (child abuse) se constitui como um tipo “em um
tempo específico (1961) em um lugar específico (Denver) nas discussões de algumas pessoas
de autoridade (pediatras)”
5
(HACKING, 1999, p. 125). Antes disso, seu predecessor era o
termo “crueldade contra crianças” (cruelty to children), estabelecido no início do século XIX,
na Europa, e surge após movimentos tais como a abolição da escravidão, legislação sobre
o emprego infantil, implantação do sufrágio universal, anti-vivissecção e crueldade contra os
animais (ibid.).
A primeira sociedade dedicada a lutar contra a crueldade contra crianças foi a New
York Society for the Prevention of Cruelty to Children, fundada em 1874, como adjunta da
Human Society, cujo objetivo era prevenir a crueldade contra os animais (HACKING, 1995;
1999). A fundação da NYSPCC ocorreu após seu fundador ter sido intimado, através da
4
Conceito do filósofo Nelson Goodman, apropriado por Ian Hacking (1999) que diz respeito a como
uma “grande classificação se estabelece socialmente, é compartilhada e pode ser modificada
sempre, com a finalidade de construir sentido sobre o mundo” (MÉLLO, 2006, p. 36).
5
No original: “at a definite time (1961) at a definite place (Denver) in the discussions of some
authoritative people (pediatricians)”.
16
carta de uma senhora, a intervir na proteção de uma criança que sofria maus-tratos (MÉLLO,
2006). Muito do que se chamava, nessa época, de crueldade contra crianças é hoje chamado
de abuso infantil, mas estes dois não são classificados igualmente:
Muitas instâncias do que os Vitorianos
6
chamaram de crueldade contra
crianças nós agora chamamos de abuso infantil, e vice-versa. Mas os dois
tipos de classificação de comportamento não são idênticos. Eles são, com
certeza, cheios de analogias. Quando examinamos um cenário mais amplo,
vemos muitas semelhanças entre as ligas de reforma populista ou de
caridade na década de 1880 e aquelas iniciadas na década de 1960. Alguns
parecem ser repetições, mesmo sob detalhes tais como entusiasmo por
parte de alguns grupos em forçosamente separar pais e filhos. As
organizações de mulheres tiveram papeis focais em ambos os períodos
7
(HACKING, 1999, p. 134).
Porém, algumas características gerais que permitem diferenciar os termos abuso
infantil e crueldade contra crianças. Hacking (1995; 1999) enumera alguma delas. Em
primeiro lugar, nos Estados Unidos em especial, o abuso infantil não tinha classe social
definida. Pressupunha-se que ocorria em todas as classes sociais e, com isso, se almejava
formar uma ampla frente política de combate ao fenômeno. Era interessante, portanto, que
esse combate não fosse apresentado como algo exclusivamente liberal ou como uma
reforma social. Enquanto que, na época em que surge na Europa, a crueldade contra
crianças dizia respeito a pessoas pobres machucando seus filhos, era um vício das classes
baixas
8
(HACKING, 1995, p. 57). O autor argumenta que o movimento moderno contra o
abuso infantil temia a podridão (rot) na família norte-americana, em oposição ao medo
europeu desse ser apenas um fenômeno encontrado nas classes pobres. Havia também o
medo dos modelos de família defendidos pelo polo conservativo dos ativistas contra o abuso
infantil. Modelos que, por sua vez, foram desafiados pelo polo feminista radical e sua crença
de que o abuso infantil era um fenômeno produzido pelo sistema patriarcal. A agitação em
6
Comumente chamado de “Era Vitoriana”, diz respeito ao tempo de reinado da Rainha Vitória da
Inglaterra durante os anos de 1837 e 1901.
7
No original: “Many instances of what Victorians called cruelty to children we now call child abuse,
and vice-versa. But the two types of classification of behavior are not identical. There are, indeed,
plenty of analogies. When we examine a larger scene we see many resemblances between populist
or charitable reform leagues in the 1880s and those begin in the 1960s. Some seem to be repeats,
even down details such as the enthusiasm on the part of some groups for forcibly separating parents
and children. Women’s organizations have comparably focal roles in both periods. There are
nevertheless very general grounds of difference that we can quickly enumerate”.
8
No original: “vice of the lower classes”
17
torno dos movimentos contra o abuso infantil aconteceu numa coalizão incomum entre
aqueles que desafiavam a família tradicional e aqueles que temiam sua dissolução (ibid.).
Em segundo lugar, a crueldade contra crianças era uma coisa má, porém o abuso
infantil não era apenas um mal (evil) em sua pior forma, mas também a poluição da criança,
da família e da sociedade. Além disso, o abuso infantil principalmente quando envolvia
conteúdos sexuais era representado como o grande mal da vida privada. O que leva à
incorporação de atos sexuais no conceito de abuso infantil. Em 1961 a battered baby
syndrome (síndrome do bebê espancado) foi apresentada à American Medical Association.
Logo em seguida, ativistas feministas colocaram ênfase no abuso sexual familiar
9
, fazendo
com que o abuso envolvesse conotações de incesto e o “incesto produz sentimentos
peculiares de horror em uma grande variedade de sociedades” (HACKING, 1995, p. 58). Além
do mais, o abuso infantil logo foi associado com uma série de atos que a maioria das pessoas
achavam repugnantes e ininteligíveis, tais como atos sexuais envolvendo adultos e um
bebês. Esta é uma característica que o torna diferente de como atos semelhantes eram
concebidos na época em que a crueldade contra crianças surgiu na Europa. Naquela época,
mesmo quando atos sexuais envolvendo adultos e crianças/adolescentes eram levados a
júri, eles não eram associados com o conceito de crueldade contra crianças.
Em terceiro lugar, a crueldade contra crianças não era um conceito médico, mas o
abuso infantil foi medicalizado desde o seu início: foi uma ideia trazida por um grupo de
pediatras. Na década de 1960, o abuso infantil e a negligência fizeram parte da agenda
política dos médicos, declarando que os abusadores eram doentes
10
: “a medicina não tinha
de forma alguma mantido controle uniforme da administração do abuso infantil, mas quem
quer que almeje controle deve tratar o abuso infantil dentro de alguma ciência
11
” (HACKING,
1999, p. 135). Em contraste, as pessoas que cometiam a então chamada crueldade contra
9
Hacking (1999) afirma que se pode atribuir uma data exata para o remodelamento da ideia de
abuso sexual: o dia 17 de Abril de 1971, quando Florence Rush se endereçou ao New York Radical
Feminist Conference sobre esta questão.
10
Como veremos nas análises, essa é uma conclusão que algumas das cuidadoras chegam em relação
àqueles que cometeram violência contra seus/suas filhos/as através de um discurso
psicopatologizante que torna desviante qualquer conduta atípica. No caso, utilizam o discurso de que
uma pessoa que comete abuso não pode ser “normal”.
11
No original: “Medicine has by no means kept uniform control of the administration of child abuse,
but whoever aims at control must treat child abuse within some science”.
18
crianças não eram controladas sob um tipo especial de conhecimento sobre o cruel, os pais
que cometiam tais atos não formavam um grupo especial de pessoas que exigiam um
conhecimento específico tais como aqueles que cometiam o abuso infantil. Antes, eram
pessoas que deveriam ser afastadas de sua prole porque tinham machucado seus filhos, e
não por ser uma “espécie que machuca crianças” (child-harming species) (HACKING, 1995).
Então, durante os anos de 1910-1960 nos Estados Unidos, vários problemas
envolvendo crianças e adolescentes estavam em voga, tais como a moralidade infantil,
saúde infantil e os adolescentes que cometiam crime (HACKING, 1995; 1999). Nesse
contexto, entre os anos de 1961-1962 surge o conceito de abuso infantil a partir de um
grupo de pediatras em Denver liderados por C. H. Kempe. Utilizando raios-X como provas
objetivas, eles passaram a ter atenção para os danos repetidos em crianças pequenas
(HACKING, 1995). Assim, em 1961 surge o que o grupo de Denver chamou de battered child
syndrome (síndrome da criança espancada). O estudo, publicado no ano de 1962, é
considerado como o primeiro artigo a tratar do tema da violência contra a criança cometido
por seus/suas cuidadores/as (caretakers).
Só a partir do interesse médico e suas “provas objetivas”, foi possível afirmar que tal
fenômeno acontecia dentro da família e que pais ou cuidadores/as causavam danos às
crianças. O grupo de médicos supracitado utilizou como provas “objetivas e científicas
chapas fotográficas de raios-X para mostrar como o fenômeno acontecia e que “era real”.
Hacking (1999), dentro de uma perspectiva que considera que o abuso infantil é socialmente
construído “ou, como eu prefiro dizer, feito e moldado
12
(p. 125) , afirma que este foi
um conceito tornado “real” a partir das diversas relações e movimentos que o tornaram
possível:
Abuso infantil não é algo que foi imaginado por ativistas; inumeráveis
casos de crianças que foram abusadas fisicamente, sexualmente ou
emocionalmente. Esta é a razão de dizer que o abuso infantil é real
13
(p.
126, grifos do autor).
12
No original: “or, as I prefer to say, made and molded”.
13
No original: Child abuse is not something that has been imagined by activists; there are
innumerable cases of children who have been physically, sexually or emotionally abused. That is the
point of saying that child abuse is real”.
19
Utilizaram-se apenas dos raios-X porque eles “temiam que uma audiência
conservadora de colegas não reconhecessem nada mais do que aquilo que pudesse ser
provado por raios-X”
14
(HACKING, 1995, p. 61). Sendo que a síndrome da criança espancada
(battered child syndrome) dizia respeito a bebês de três anos abaixo. Por razões políticas, o
grupo de Denver disse posteriormente ter deliberadamente decidido não ir a público com o
termo “abuso físico” para rotular aquele fenômeno por eles identificado e que acontecia nas
famílias americanas. Mas, após tirarem uma série de fotografias de crianças machucadas
“não apenas com paus e pedras, mas por correias, pregos, bitucas de cigarro, água
escaldante
15
(HACKING, 1995, p. 61) foi possível divulgar que reconheciam que os bebês
não seriam as únicas vítimas, acreditando que crianças e adolescentes poderiam também ser
vítimas de punição física por seus pais.
Segundo Foucault (2001), a medicina, a partir de um olhar clínico, tem a propriedade
de descrever a partir daquilo que vê/percebe e ao mesmo tempo estabelecer um saber em
torno desse olhar:
Descrever é seguir a ordenação das manifestações, mas é seguir também a
sequencia inteligível de sua gênese, é ver e saber ao mesmo tempo, porque
dizendo o que se o integramos espontaneamente ao saber: é também
ensinar a ver, na medida em que é dar a chave de uma linguagem que
domina o visível (pp. 124-125)
Dessa forma, as provas “objetivas” tornavam inteligíveis a concepção de um saber e
forneciam uma linguagem de acesso para que os demais parceiros (outros médicos,
principalmente) pudessem ver e reconhecer o fenômeno
16
.
Assim, o conceito inicial battered child (criança espancada), passou a ser apenas uma
subclassificação de um conceito central, o child abuse (abuso infantil), que então tornou-se
alvo de intervenções políticas, virando um problema de saúde pública.
14
No original: “They feared that a conservative audience of colleagues would not acknowledge
anything more than what could be proved by X rays”
15
No original: “*…+ not only with sticks and stones but by straps, nails, cigarette butts, scalding water”
16
As provas “materiais e objetivas” dos casos de violência doméstica/abuso infantil parecem ser até
hoje utilizadas no sentido de fornecer uma linguagem acessível às pessoas mostrando que esse é um
fenômeno que existe e pode estar mais próximo do que imaginamos. Como exemplo, o site
observatório da infância (www.observatóriodainfancia.com.br), mantido por um médico, contém
definições de vários conceitos ligados à violência contra crianças com fotos de crianças que
sofreram violência que tem como objetivo atingir um grande público que deseje saber sobre o
fenômeno.
20
Na mesma linha de argumentativa de Hacking, Méllo (2006), em seu trabalho A
construção da noção do abuso sexual infantil, trabalhando com a perspectiva teórica das
práticas discursivas
17
, chama a atenção para as redes de negociações de sentidos que
envolvem o termo abuso sexual infantil e quais foram as forças sócio-políticas e
governamentais que permitiram sua construção e identificação. Para isso, analisa
documentos internacionais e outros eventos que serviram de marcos para a construção do
termo. Estes documentos, marcos e elaborações teóricas teriam a preocupação de construir
o fenômeno como um problema de saúde pública. O autor identifica a construção do termo
como um tipo, ou seja, uma categorização
como organização e seleção de aspectos de um acontecimento que,
inevitavelmente, se constitui em práticas discursivas que se fundam a partir
de vivências diversas, tais como interação face a face, mediadas pelos
veículos de comunicação, pelos processos históricos que cada pessoa
vivencia e pela humanidade (p. 34).
O autor acredita que para a construção de um tipo se solidificar, precisa estar
construído a partir de uma matriz
18
. Em seu estudo, a matriz do abuso sexual infantil é
elaborada a partir de três instituições fundamentais: a constituição do “eu”, a noção de
infância e a noção de direitos, que descreveremos brevemente.
a) a constituição do “eu” – “o ‘abuso’ aparece dentro de várias transformações
políticas importantes, que produzem modos de existência para essa criatura que
conhecemos como ‘ser humano’” (MÉLLO, 2006, p. 128). São essas práticas que
tornam possíveis uma subjetividade, um ser individualizado, que através de diversos
saberes é constituído como um ser dotado de “subjetividade, de memória e de
consciência” (ibid.).
b) a noção de infância A infância é constituída como um problema social apenas a
partir do século XIX (ARIÈS, 1981). Méllo (2006) refere-se à infância como uma noção
que foi construída a partir do advento do Estado, da família e da escola:
17
De uma maneira geral, esse é um termo que se refere a uma abordagem teórico-metodológica que
tem como interesse o uso da linguagem nas interações sociais (SPINK, 2004).
18
Hacking (1999) define matriz a partir do conceito de tipo: “Ideias não existem num vácuo. Elas
habitam uma configuração social. Vamos chamar isso a matriz dentro da qual uma ideia, conceito ou
tipo, é formado” *“Ideas do not exist in a vacuum. They inhabit a social setting. Let us call that the
matrix within which an idea, a concept or kind, is formed”+ (p.10).
21
“É esse lugar atribuído para a criança na sociedade e na família (com as
mudanças destas também), especialmente a partir do século XVI,
solidificado no século XVII e com formas imperativas a partir do século XVIII,
que permitiu, na metade do século XX, julgar a relação sexual entre um
adulto e uma criança ou adolescente como ‘abuso’ sexual, constituindo-o
como um tipo e lhe dando autonomia suficiente para ‘universalizar’ e
‘naturalizar’” (MÉLLO, 2006, p. 44).
c) a noção de direitos As crianças passam a ser categorizados em conjunto com as
mulheres e idosos como seres humanos que tinham direitos específicos. A partir de
então, passa a ser dever do Estado o cuidado com as crianças através do
policiamento das famílias. Aos pais e/ou responsáveis são atribuídas
responsabilidades para fazer que tais direitos sejam cumpridos.
[...] caso eles não sejam capazes de manter seus filhos em dispositivos
disciplinares, o Estado, por meio de inquérito realizado por profissionais
(Assistente Social, Policiais e Psicólogos) e julgado por um juiz, exerce a
guarda dessas crianças (MÉLLO, 2006, p. 51)
Dessa forma, o abuso sexual infantil torna-se um fenômeno que diz respeito à esfera
pública, de intervenção estatal, envolvendo profissionais e órgãos competentes através de
dispositivos da governamentabilidade
19
.
2.1.2 Visibilidade do fenômeno no Brasil
A violência doméstica/abuso passa a ter visibilidade no Brasil a partir da influência da
literatura estadunidense, porém, com a diferença de não ser um movimento liderado pela
área médica, mas por profissionais como os/as assistentes sociais, psicólogos/as e juízes.
Como afirma Méllo (2006), a palavra “abusado” não é empregado com frequência na
literatura brasileira para designar alguém que sofreu violência sexual. Em seu lugar, é mais
comum o uso da frase “crianças vítimas de abuso”. Maria Amélia Azevedo e Viviane Guerra
(irmãs, a primeira médica e a última assistente social) são as autoras mais referidas na
literatura brasileira de violência contra criança e é no texto delas que passou a ser comum o
termo “violência doméstica” para englobar aquilo que na literatura internacional era
19
Conceito elaborado por Foucault (2008[1979]) que, de uma maneira geral, diz respeito às táticas
desenvolvidas pelo Estado que permitem definir a cada instante o que lhe compete, o que é público
ou privado, o que é ou não estatal, etc.
22
chamado de abuso infantil (child abuse). A partir de seus trabalhos, “violência doméstica”
passou a ser o termo adotado por outros/as autores/as para nomear o fenômeno.
Elaborando o conceito de “violência física doméstica”, Guerra (2001) discute os
textos que falam sobre violência contra crianças dos quais encontrou registro antes da
publicação de seu livro. Afirma que o primeiro estudo na literatura acadêmica brasileira que
analisa um caso de espancamento contra criança data de 1973, e diz respeito a uma
publicação de professores da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo:
Os autores desse artigo fazem uma revisão da bibliografia mais relevante na
época sobre o assunto, apontam as formas adequadas de fazer o
diagnóstico clínico, as dificuldades a ele inerentes, o prognóstico e as
implicações sociais e psicológicas do fenômeno. Posteriormente, em 1975,
surge a descrição de mais cinco casos documentados por um pediatra
radiologista, no Rio de Janeiro (Dr. Armando Amoedo, Revista Brasil Jovem).
Alguns outros trabalhos elaborados por médicos psiquiatras, especialmente
em São Paulo e Minas Gerais, são ofertados aos anos 1980. Em 1984, surge
o primeiro livro brasileiro, intitulado Violência de pais contra filhos:
procuram-se vítimas, fruto da minha dissertação de Mestrado [...] (p. 81)
Méllo (2006) afirma que também um trabalho cadastrado no banco de dados da
Coordenação de estudos e Pesquisas sobre a Infância CESPI, da Universidade de Santa
Úrsula, que diz respeito a um trabalho de conclusão de curso datado de 1924. Sob o título de
Esboço dico-jurídico de delinquentes sexuais. O autor (ibid.) entende que não se pode
afirmar com certeza ser este um trabalho sobre abuso sexual, mas ressalta que é uma
confirmação da iniciativa da área médica nos estudos sobre práticas sexuais consideradas
problemáticas no Brasil.
Nesse sentido, Guerra (2001) destaca a peculiaridade dos trabalhos brasileiros a
partir de três aspectos. Em primeiro lugar, as descrições brasileiras seguem um modelo
médico francês e estadunidense, que privilegiam a área clínica e a discussão dos agressores
seguindo um modelo psicopatológico. Segundo, o lançamento de sua obra no ano de
1984, que tenta romper com o modelo psicopatológico e analisar o fenômeno sobre o pano
de fundo cultural e social brasileiros. E por último, o contexto político-social em que o Brasil
se encontrava entre os anos de 1960-1980, que teve na década de 1980
20
uma maior
20
A autora afirma ainda que nessa década, o Brasil teve como referências um movimento
internacional que buscava garantir os direitos infantis e um movimento nacional, com a derrocada do
23
denúncia da situação enfrentada pela infância brasileira e a violação de seus direitos,
configurando daí em diante a batalha pela garantia dos direitos da infância e da
adolescência.
É então a partir da década de 1980, que surgem em maior intensidade trabalhos que
se propõem a analisar o que passou a ser conhecido como violência doméstica. Inicialmente,
este termo abrigava violências diversas praticadas contra mulheres e crianças: violência
sexual, violência física, violência emocional e negligência (MÉLLO, 2006).
Em 1989, Azevedo e Guerra organizam o livro Crianças vitimizadas: a síndrome do
pequeno poder, com artigos de várias áreas profissionais e especialidades diversas para dar
maior visibilidade ao fenômeno, demonstrando como identificá-lo e quais procedimentos a
serem adotados. Nele, busca-se a definição de vários aspectos da violência contra criança
chamados de abuso-vitimação psicológica, física e sexual para descrever tanto as
características como as consequências “orgânicas” e “psicológicas” para a
criança/adolescente vítima de violência e quais os tratamentos indicados.
É a partir desses marcos que a produção acadêmica passa a debruçar-se sobre o
conceito, almejando não uma melhor identificação das crianças que estão sendo vítimas
de violência, mas também, uma definição mais ampla que permita a melhor identificação da
violência tomando emprestado o que Foucault (2001) descreveu como sendo o “ver,
saber” da medicina, é o ver/perceber o fenômeno da violência contra a criança a partir dos
saberes acadêmicos que ao mesmo tempo vai fornecer uma linguagem de acesso que
identifique este fenômeno e, simultaneamente, crie o saber sobre aquilo que vê/percebe.
2.1.3 A violência doméstica/abuso infantil na literatura brasileira
Os conceitos de violência doméstica/abuso infantil na literatura brasileira são auto-
referentes e circulares. Com isso quero dizer que eles circulam em torno de um eixo comum:
a tipificação e caracterização em violência física, emocional/psicológica, negligência e sexual.
De peculiar existem algumas categorizações por parte de alguns/mas autores/as que tentam
ampliar essas caracterizações de modo a contemplar mais aspectos que permitam identificá-
la.
regime militar que permitiu a luta “por uma nova Constituição e por uma lei voltada às necessidades
de nossas novas gerações” (p. 85)
24
Não pretendo abordar todas elas aqui, nem privilegiar qualquer uma delas, apenas
mostrar quais são as definições mais comuns de forma contextualizar que repertórios
formais (ou técnicos) utilizaram as cuidadoras para caracterizar a violência doméstica no
grupo focal. Estamos interessados em como esses conceitos passam a fazer parte de
repertórios interpretativos
21
para o fenômeno da violência doméstica nas intervenções
institucionais e como as participantes se apropriam dele para (re)significar suas histórias de
vida e de seus/suas filhos/as. Ou seja, estamos interessados em que usos elas fazem desses
conceitos, e não o que eles pretendem dizer isoladamente. Afinal, partimos de uma
perspectiva que considera a linguagem em uso como construtora de realidades. Nesse
sentido, os conceitos isolados, abstratos e grafados no papel adquirem algum sentido
quando utilizados nas interações cotidianas. Deixando isso claro, abordaremos agora
algumas definições.
Guerra (2001) que, como destacamos, foi pioneira no estudo da violência
doméstica no Brasil, a define como sendo reconhecida nas formas de violência sexual, física,
psicológica e negligência. Cada uma é conceituada da seguinte forma:
Violência sexual se configura como todo ato ou jogo sexual, relação hetero
ou homossexual entre um ou mais adultos e uma criança ou adolescente,
tendo por finalidade estimular sexualmente esta criança ou adolescente ou
utilizá-los para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra
pessoa (AZEVEDO e GUERRA, 1989)
A violência psicológica também designada como tortura psicológica ocorre
quando um adulto constantemente deprecia a criança, bloqueia seus
esforços de auto-aceitação, causando-lhe grande sofrimento mental.
Ameaças de abandono também podem tornar uma criança medrosa e
ansiosa, representando formas de sofrimento psicológico.
A negligência representa uma omissão em termos de prover as
necessidades físicas e emocionais de uma criança ou adolescente.
Configura-se quando os pais (ou responsáveis) falham em termos de
alimentar, de vestir adequadamente seus filhos etc., e quando tal falha não
é o resultado das condições de vida além do seu controle. (p. 33, grifos da
autora)
No que diz respeito à violência física, a autora conceituava dessa forma na primeira edição
do seu livro:
21
Os repertórios interpretativos serão mais bem desenvolvidos no próximo capítulo.
25
Violência física é entendida como o emprego de força física contra a
criança, de forma não acidental, causando-lhe diversos tipos de ferimentos
e perpetrada por pai, mãe, padrasto ou madrasta (GUERRA, 2001, p. 41)
Porém, após revisar as definições brasileiras sobre a violência física, verifica que alguns
falam em síndrome, outros em violência ou introduzem a nomenclatura abuso-vitimização
física; quando ferimentos, espresente o conceito de dano; e, sobre a nomenclatura de
violência física, incluem-se a punição severa e os castigos inapropriados à idade e à
compreensão da criança (GUERRA, 2001). Cada acréscimo dizia respeito à que época foram
construídos, por que categoria profissional, e a partir da reprodução de aspectos conceituais
de outros países.
Nesse sentido, na obra Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder,
organizada por Azevedo e Guerra (2007[1989]), a nomenclatura abuso-vitimização é
utilizada para descrever a violência contra crianças. Dizem ter escolhido esse novo termo
porque envolveria tanto a vitimização enquanto violência interpessoal, quanto o abuso
enquanto ação (ou omissão) de um adulto que é capaz de “causar dano físico ou psicológico
à criança” (p. 35). Dentro da categoria abuso-vitimação, criaram as subcategorias física,
psicológica e sexual
22
:
[Abuso-vitimação física] inclui tanto o abuso sico propriamente dito
quanto a negligência, definida por alguns como “forma insidiosa de maus-
tratos”. Os castigos corporais m sido considerados como abuso-
vitimização física. É bem verdade que a literatura é unânime em
considerar como maus-tratos duas modalidades de castigos corporais: os
castigos cruéis e pouco usuais e os castigos que resultam em ferimentos.
No primeiro caso estão os castigos extremos e inapropriados à idade e
compreensão da criança, por exemplo, cárcere privado, treino prematuro
do toilette etc. no segundo caso estão o bater de forma descontrolada e
com instrumentos contundentes
23
. (p. 36, grifos das autoras)
[Abuso-vitimização psicológica, também+ designado como “tortura
psicológica”, ocorre quando o adulto constantemente “deprecia a criança,
22
No mesmo capítulo em que desenvolvem essas definições, incluem uma tabela (p. 45) sob a qual
mostram dados da incidência internacional de cada um dos abusos-vitimizações que descrevem.
Porém, é interessante notar que colocam sob a classificação de violência física, violência psicológica
e violência sexual as obras de onde extraíram os dados correspondentes a cada um dos abusos-
vitimações.
23
As autoras argumentam ainda que a ambiguidade e dificuldade na definição dessa forma de abuso-
vitimização dá-se porque não se costuma considerar o ambiente que ocorrem, o que inclui a
intenção do agente, o efeito do ato sobre quem recebeu, o julgamento de valor de um observador
sobre o ato e a fonte do critério para o julgamento.
26
bloqueia seus esforços de auto-aceitação, causando-lhe grande sofrimento
mental. Ameaças de abandono também podem tornar uma criança
medrosa e ansiosa, podendo representar formas de sofrimento psicológico.
O abuso-vitimização psicológica pode assumir duas formas básicas: a de
negligência afetiva e a de rejeição afetiva. A negligência afetiva consiste
uma falta de responsabilidade, de calor humano, de interesse para com as
necessidades e manifestações da criança. A rejeição afetiva caracteriza-se
por manifestações de depreciação e agressividade para com a criança. Por
ser muito difícil de detectar, dada sua colocação intensamente subjetiva,
costuma-se categorizar como abuso apenas as formas graves (extremas) e
continuadas de rejeição ou negligência afetiva (p. 41, grifos das autoras).
O conceito [abuso-vitimização sexual] está longe de ser preciso. No
entanto, é possível considerarmos como tal “todo ato ou jogo sexual,
relação heterossexual ou homossexual, entre um ou mais adultos e uma
criança menor de 18 anos, tendo por finalidade estimular sexualmente a
criança ou utilizá-la para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou
de outra pessoa” (MYRE, 1986) (p. 42, grifo das autoras).
Após descrever três modalidades de abuso-vitimização, as autoras afirmam que os
fenômenos que esses conceitos tentam captar têm, na literatura nacional e internacional, as
seguintes características básicas:
- trata-se de um fenômeno que não é caudatário do sistema de
estratificação social e do regime político vigente numa dada sociedade. Por
outras palavras: ao contrário do fenômeno da vitimação, não pode ser dito
um fenômeno característico da pobreza [...];
- trata-se de um fenômeno que, embora não se restrinja ao lar, tem nele
sua origem e sua ecologia privilegiada;
- trata-se de um fenômeno que pode reproduzir-se em termos de um
verdadeiro ciclo da violência
24
[...];
- trata-se de um fenômeno que, embora vitimize meninos, tem na mulher-
criança sua vítima mais frequente. Isso tem a ver com o fato de que a
vitimização é um processo que tem sua raiz no padrão falocrático das
relações sociais de gênero. Nessa mesma raiz está o fato de tratar-se de um
fenômeno onde o agressor é um homem, na quase totalidade dos casos.
(pp. 43-44, grifos das autoras).
É interessante notar que, como afirmam as autoras e é confirmado por outras
literaturas, a predominância dos homens como agressores no abuso sexual contra
crianças ocorrido no espaço doméstico e familiar (ARAÚJO, 2002; FURNISS, 1998; GUERRA,
2001; SAFFIOTI, 1999). Em contraste, na literatura por nós consultada, existem aqueles/as
24
Por ciclo da violência as autoras compreendem a relação entre o abuso em família físico/sexual ->
episódios de desaparecimento de crianças -> exploração de crianças -> maturação para tornar-se um
agressor/explorador, que pode por sua vez tornar-se um explorador de crianças ou um abusador de
sua futura família.
27
que afirmam haver um grande número de mulheres autoras do que se chama maus-tratos
contra crianças
25
(ARAÚJO, 2002; DELFINO et al., 2005; MENDONÇA, 2002; SAFFIOTI, 1999;
2007). Estes maus-tratos, por sua vez, acontecem muitas vezes pelo que é caracterizado
como sendo o abuso de poder daquela que tem a legitimidade de disciplinar a criança no
espaço doméstico (ARAÚJO, 2002; MENDONÇA, 2002; SAFFIOTI, 2007). Achamos importante
problematizar a ideia de que são homens que praticam agressões para pontuar que,
como podemos observar na análise, havia atos que as participantes desta pesquisa
praticavam contra seus/suas filhos/as que não eram entendidos como violência até serem
nomeados como tal. Até então, faziam parte de uma pedagogia legitimada pelo “poder de
ser mãe”.
Quanto à perspectiva de gênero, ela é adotada por outros autores, principalmente
àqueles que também inserem a violência contra as mulheres no conceito mais amplo de
violência doméstica. Nesse sentido, procura-se evidenciar que o local que a mulher tem na
sociedade, desde a infância, é construído como um local de submissão ao poder masculino.
Concordamos com a postura desenvolvida por Butler (2008) de que o discurso sobre a
mulher e o “ser” mulher na sociedade faz parte dos processos pelos quais fazem com que
essa identidade seja estável e natural. Discurso que também naturaliza o poder masculino
que, como afirma Saffioti (2007), tem num polo o homem adulto, macho, branco e rico, e,
no outro, a menina, criança, negra e pobre. Como pontuam Weatherall (2002) e Speer &
Potter (2002), são justamente esses discursos sobre o gênero que circulam em nossa
sociedade que vão fazer parte dos repertórios sobre o ser mulher/menina nas interações
sociais através da linguagem em uso que estabilizam esse local da mulher/menina.
O fato de que o termo violência doméstica pode também se referir à violência
praticada contra as mulheres no espaço doméstico é referenciado Araújo (2002), ao
comentar que na literatura os conceitos de violência doméstica, violência intrafamilar e
violência contra mulher são frequentemente usados para designar um tipo de violência que
acontece no espaço doméstico e familiar contra crianças, adolescentes e mulheres. Afirma
também que, apesar da sobreposição entre eles, há especificidades em cada um:
25
Em minha experiência como estagiário de uma ONG que atendia crianças e adolescentes vítimas de
violência, este fato era presente. Identificavam-se episódios de violência de algumas mulheres
cuidadoras contra as crianças que estavam sua tutela.
28
Violência intrafamiliar designa a violência que ocorre na família,
envolvendo parentes que vivem ou não sob o mesmo teto, embora a
probabilidade de ocorrência seja maior entre parentes que convivem
cotidianamente no mesmo domicílio. A violência doméstica, por sua vez,
não se limita à família. Envolve todas as pessoas que convivem no mesmo
espaço doméstico, vinculadas ou não por laços de parentesco. E a violência
contra a mulher, embora ocorra frequentemente no espaço doméstico e
familiar, não se restringe a ele. É perpetrada por parentes e não-parentes,
dentro e fora do domicílio
26
(p. 4)
E como abuso sexual infantil:
[...] uma forma de violência que envolve poder, coação e/ou sedução. É
uma violência que envolve duas desigualdades básicas: de gênero e
geração. O abuso sexual infantil é frequentemente praticado sem o uso da
força física e não deixa marcas visíveis, o que dificulta a sua comprovação,
principalmente quando se trata de crianças pequenas. O abuso sexual pode
variar de atos que envolvem contato sexual com ou sem penetração a atos
em que não há contato sexual, como o voyeurismo e o exibicionismo. (p. 5)
Para chegar a essa perspectiva de gênero, ela toma emprestado o conceito de
violência de gênero de Saffioti (1997), pois
[...] quando se adota a expressão violência contra a mulher ganha-se
espaço para além da violência doméstica, mas perde-se grande parte da
violência de gênero contida especificamente nas violações dos direitos de
crianças e adolescentes, cometidas não por homens, mas também
por mulheres agressoras. Isso prejudica a aproximação do real, pois as
mulheres são grandes espancadoras de crianças, embora raramente
pratiquem violência sexual contra crianças - as estatísticas internacionais
estimam em torno de 1 a 3% a proporção desse tipo de agressão. (p. 5)
Podemos perceber que essas diversas categorizações apresentadas têm como
objetivo construir e representar a realidade de um fenômeno. Elas são alteradas,
expandidas, deixadas de lado, reutilizadas sob outra bandeira com o objetivo de estender a
essência daquilo que seria violência contra criança. Por exemplo, Azevedo e Guerra (2001) e
conceituam o termo “violência psicológica doméstica”:
Historicamente, o constructo
27
VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA DOMÉSTICA foi
cunhado no seio da literatura feminista como parte da luta das mulheres
26
Semelhante diferença entre violência intrafamiliar e violência doméstica é presente no caderno
organizado pelo Ministério da Saúde, Violência intrafamiliar: orientações para a prática em serviço
(BRASIL, 2001).
27
Por constructo entende-se conceito deliberada e conscientemente inventado ou adotado, para uma
finalidade científica específica. [Bastos, Lilia da Rocha et alii (1979). Manual para a elaboração de
29
para tornar pública a violência cotidianamente sofrida por elas na vida
familiar privada. O movimento político-social que, pela primeira vez,
chamou a atenção para o fenômeno da violência contra a mulher praticada
por seu parceiro, iniciou-se em 1971, na Inglaterra, tendo sido seu marco
fundamental a criação da primeira “CASA ABRIGO” para mulheres
espancadas, iniciativa essa que se espalhou por toda a Europa e Estados
Unidos (meados da década de 70), alcançando o Brasil na década de 80. (p.
25, grifos das autoras)
Todas essas conceituações e diferenciações fazem parte das estratégias retóricas (BILLIG,
2008) que empreendemos no cotidiano, e que não dizem respeito apenas ao âmbito técnico.
Como veremos, as participantes empreenderam estratégias semelhantes para descrever o
que seria violência, violência contra criança e violência doméstica ao longo dos grupos focais.
Poderíamos estender-nos ao longo das diferentes classificações elaboradas por diversos
autores na literatura brasileira, porém, acreditamos que esses são os mais referenciados e
são o suficiente para nosso objetivo aqui.
2.2 Como tais conceitos são apresentados aos/às cuidadores/as
Pensei em utilizar conceitos presentes nas cartilhas que são distribuídas durante as
intervenções e/ou outros eventos aos/às cuidadores/as e população em geral pela ONG em
que a pesquisa aconteceu. Porém, mesmo com a permissão da instituição em divulgar seu
nome na pesquisa, alguns relatos dos familiares permitiriam o/a leitor/a mais próximo da
realidade recifense identificar os profissionais e demais pessoas que as cuidadoras citam em
seus relatos. E, uma vez que alguns relatos falam de profissionais que o fazem mais parte
daquela instituição e não gostariam ou permitiriam ter seus nomes divulgados, utilizamos
outra estratégia.
Utilizamos como referência os conceitos disponibilizados no site da Rede ARCA
(www.acaoemrede.org.br), que é
[...] uma articulação de entidades da sociedade civil para Promoção, Defesa
e Controle Social dos Direitos da Infância e da Adolescência na Região
Metropolitana do Recife. Atualmente, a Rede ARCA é composta pelas
organizações não governamentais: Centro Brasileiro da Criança e do
Adolescente Casa de Passagem, Coletivo Mulher Vida (CMV), Centro Dom
Helder Câmara de Estudos e Ação Social (CENDHEC), Centro das Mulheres
do Cabo, Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), Movimento de Apoio aos
projetos e relatórios de pesquisa, teses e dissertações. Rio de Janeiro: Zahar. Glossário de termos
básicos em pesquisa científica]
30
Meninos de Rua (MAMER), Núcleo Educacional Irmãos Menores de
Francisco de Assis (NEIMFA) (http://www.acaoemrede.org.br/arca.html).
Dessa forma, utilizar este site como referência contempla os conceitos utilizados nas
cartilhas e/ou outros materiais de divulgação presentes na instituição pesquisada, que faz
parte desta Rede, além de diminuir a capacidade de identificação desta.
Apresentarei agora os conceitos de violência doméstica:
“Todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra
criança e/ou adolescentes sendo capaz de causar dor ou dano de
natureza física, sexual e/ou psicológico à vítima implica de um lado
numa transgressão do poder /dever de proteção do adulto e, de outro,
numa coisificação da infância, isto é, numa negação do direito que
crianças e adolescentes têm de serem tratados como sujeitos e pessoas
em condição peculiar de desenvolvimento” (Azevedo e Guerra.
Laboratório da Criança USP/2001)
É Universal
Porque acontece em todas as sociedades do mundo, todos os países e em
todas as classes sociais (ricos e pobres cometem violência contra crianças e
adolescentes).
É um acontecimento Endêmico
Significa dizer que se tornou habitual, que é comum nas sociedades que
crianças e adolescentes sofram violência dentro da sua casa. Grande parte
das crianças e adolescentes de todo mundo é vítimas de algum tipo de
violência em casa e/ou na rua onde mora.
Independe de classe social, raça/etnia, religião, gênero
Podemos dizer que a Violência Doméstica acontece em todas as classes,
todas as etnias, todas as religiões e com pessoas de qualquer gênero
(homens e mulheres). Contudo, não podemos deixar de levar em conta que
a pobreza é uma violência (estrutural) e desta forma aprofunda as
dificuldades, as carências e os conflitos da convivência familiar, ampliando
também, as possibilidades de Violência Doméstica. Podemos dizer ainda
que, no Brasil, a população negra e feminina está mais vulnerável à
Violência, assim como é a população mais exposta às situações de pobreza.
Multidimensional
Significa que deve ser visto por várias dimensões: A dimensão da família, da
sociedade, da criança e do adolescente. Levar em conta aspectos sociais,
psicológicos, culturais, patológicos e econômicos;
Responsáveis pela Violência Doméstica contra crianças e adolescentes:
pai/mãe, madrasta/padrasto, tio(a), primo(a), avós, vizinhos(as) e
cuidadores em geral;
31
Vítimas: Criança e adolescente (ambos os sexos)
(http://www.acaoemrede.org.br/viol02.html, grifos no original).
E as tipificações da violência doméstica:
1 VIOLÊNCIA FÍSICA
Emprego de força física no processo disciplinador de uma criança ou
adolescente por parte de seus pais e/ou responsáveis. Vai desde a simples
palmada no bumbum até agressões com armas brancas e de fogo,
instrumentos e imposição de queimaduras, socos, pontapés. Se relaciona a
qualquer ato disciplinador que atinja o corpo de uma criança/adolescente.
São consideradas Violência física: Palmadas, beliscões, puxavão de
orelhas, empurrões etc. (Azevedo e Guerra. Laboratório da Criança -
USP/2001)
2 VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA
“É todo ato de humilhações, ameaças, desqualificações e desrespeito direta
ou indiretamente” (Azevedo e Guerra. Laboratório da Criança USP/2001)
“Rejeição, depreciação, discriminação, desrespeito e punições exageradas
são formas comuns desse tipo de agressão, que não deixa marcas visíveis,
mas marca por toda vida” (ABRAPIA)
3 NEGLIGÊNCIA
“Omissão em termos de prover as necessidades físicas e emocionais de
uma criança ou adolescente. Os pais ou responsáveis falham em termos de
alimentar, de vestir adequadamente seus filhos, de prover educação e
supervisão adequada.; quando tal falha não é o resultado das condições de
vida além do seu controle...” (Azevedo e Guerra. Laboratório da Criança
USP/2001)
“Em função da grande situação de pobreza que vive a maior parte da
população brasileira, a negligência é de difícil constatação. Assim alguns
profissionais indicam como alternativa para identificação, comparar os
recursos que a família dispõe para suas crianças com os recursos oferecidos
por outras famílias de mesma condição sócio-econômica... ou a
comparação dos tratos dispensados a cada filho, buscando identificar algum
tratamento desigual.” (Ministério da Saúde)
A Negligência pode ser:
Médica (incluindo a dentária): as necessidades de saúde de uma
criança/adolescente não estão sendo preenchidas;
Educacional: os pais não providenciam as condições para frequência
e acompanhamento da escola;
Higiênica: quando falha nos cuidados de higiene;
32
De supervisão ou supervisão perigosa: a criança é deixada sozinha e
sujeita a riscos;
Física: Não roupas, o é alimentada, o é protegida do frio,
calor.
De orientação quando pai, mãe e responsáveis não exercem seu
papel de orientar e apoiar;
De afeto: Quando é negado o carinho, o amor, a atenção, o toque.
Quando falhas em prover as carências afetivas e emocionais das
crianças e adolescentes.
(Azevedo e Guerra. Laboratório da Criança USP/2001)
4 VIOLÊNCIA SEXUAL
Todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual entre um ou mais
adultos ou adolescente em fase de desenvolvimento superior (com relação
de consanguinidade, afinidade e/ou responsabilidade), tendo por finalidade
estimular sexualmente esta/criança/adolescente ou utilizá-los para obter
uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou outra pessoa. (Azevedo e
Guerra. Laboratório da Criança USP/2001)
5 SÍNDROME DE MUCHAUSEN
Esta síndrome caracteriza-se pelo encaminhamento de crianças e
adolescentes a serviços de saúde repetidamente, porém os sintomas
apresentados pela família não são verdadeiros. Coloca a criança ou
adolescente em situação de enfermidade desnecessária, expostos a
procedimentos médicos como exames e medicamentos e proibição da
relação social com amigos, vizinhos e atividades escolares (sob o pretexto
de estar enferma);
6 TRABALHO INFANTIL
O trabalho infantil é o uso da mão-de-obra da criança e do adolescente com
menos de 16 anos em qualquer atividade econômica e em situações
prejudiciais ao desenvolvimento físico, mental, moral e a escolarização. É
impulsionado pela violência estrutura (situação de pobreza), contudo
precisa ser também compreendido como uma violência que pais, mães ou
responsáveis podem causar às crianças e adolescentes.
7 VIOLÊNCIA FATAL DOMÉSTICA
Atos e/ou omissões praticados por pais, parentes ou responsáveis em
relação a crianças e/ou adolescentes que sendo capazes de causar-lhes
dano físico, sexual e ou psicológico podem ser condicionantes únicos ou
não - de sua morte. (Azevedo e Guerra. Laboratório da Criança USP/2001)
33
(Azevedo e Guerra. Os novos e Pequenos Mártires, Infância e Violência
Doméstica. 2000)
(http://www.acaoemrede.org.br/viol03.html, grifos no original)
Não vou fazer uma discussão aprofundada desses conceitos, mas irei destacar alguns
pontos que interessam para o trabalho. Como já foi mencionado, os conceitos são auto-
referentes e circulares. Nesse sentido, as referências mais comuns sobre a violência
doméstica utilizadas dizem respeito às produções de Maria Amélia Azevedo e Viviane Guerra
em suas publicações individuais e as que elaboram como fazendo parte do LACRI
Laboratório de Estudos da Criança, sediado no Instituto de Psicologia da USP.
Outro ponto importante de ser notado é que, ao longo do desenvolvimento das
produções, novas categorias e conceitos são desenvolvidos para englobar tudo aquilo que
deve ser reconhecido como violência doméstica. Assim, existem aqui categorias não
existentes em outros conceitos sobre a violência doméstica, tais como a Síndrome de
Muchausen, o Trabalho Infantil e a Violência Fatal Doméstica.
Dessa forma, perceberemos que do mesmo modo que a literatura técnica tenta ao
longo dos anos agregar mais conceitos à categoria violência doméstica de modo a abarcar
tudo aquilo que possa ser considerado e reconhecido como tal, as cuidadoras argumentam
sobre a violência doméstica a fim de englobar vários aspectos de suas experiências,
pontuando o que deve ou não deve ser considerado como tal além de fornecerem
justificações.
3. Considerações sobre o Discurso e a Linguagem e sua apropriação na
Psicologia Social Discursiva
Quando eu utilizo uma palavra disse Humpty Dumpty, em um tom de
grande sarcasmo , ela significa exatamente o que quero que signifique,
nem mais, nem menos.
Mas a questão é disse Alice se você tem o direito de fazer as palavras
significarem para você coisas diferentes do que elas querem dizer para as
outras pessoas.
Diálogo entre Humpty Dumpty e Alice em Alice no País do Espelho, de Lewis
Carroll.
A presente pesquisa tem como interesse os jogos discursivos
28
produzidos sobre a
violência doméstica por cuidadoras que tiveram filhos/as vítimas de violência. Apoiaremo-
nos em ideias que enfatizam a importância que a linguagem e o discurso têm na vida social.
As considerações sobre o discurso nesta pesquisa são inspiradas pelas reflexões do
movimento do construcionismo social que, em linhas gerais, está preocupado com o
entendimento do processo pelo qual as pessoas por intermédio do discurso descrevem,
explicam e dão sentido ao mundo em que vivem e a si mesmas (GERGEN, 1985).
Compartilhando dessa posição teórico-metodológica que tem como tópico de
interesse a linguagem em uso, foram adotadas como referências para esta pesquisa
perspectivas discursivas (GARAY; IGUEZ; MARTÍNEZ, 2005) que assumem a importância da
linguagem enquanto prática social construtora de realidades. Afunilando as possibilidades
de discussão dentro dessas perspectivas, através da escolha daquelas que nos aproximam
dos objetivos e interesses dessa pesquisa e, também, dos interesses de seu autor são
relevantes, para nós, as reflexões teóricas mais amplas do Construcionismo Social e as
reflexões da Psicologia Social Discursiva em torno da análise e interpretação de textos
sociais.
Esse capítulo será dividido em duas partes. Na primeira, procuraremos discutir sobre
a importância da linguagem para psicologia social, principalmente na perspectiva que
28
A escolha desse termo será melhor explicitada nas páginas 43 e 44.
35
propõe o movimento do Construcionismo Social. Na segunda, discutiremos sobre os
principais pressupostos da Psicologia Social Discursiva, que fundamentará nossa análise e
discussão.
3.1 O movimento construcionista e a importância da linguagem
Esta seção tem como objetivo desenvolver algumas reflexões sobre o movimento
construcionista, as implicações da adoção de um dos posicionamentos construcionistas e a
importância dos estudos sobre a linguagem para este movimento, principalmente aquelas
reflexões iniciadas pelo giro linguístico (ÍBAÑEZ, 2004).
O termo construcionismo pode ser empregado a partir de matrizes distintas, e até
contraditórias, dentro das ciências sociais (POTTER, 1998). Para Holstein e Gubrium (2008), o
construcionismo estaria mais próximo de um mosaico de produções e definições, no qual o
termo tem reverberado nas ciências sociais desde os anos 60. As pesquisas nessa área
teriam em comum a ênfase na dinamicidade das realidades sociais e nos processos em que
são atribuídos sentidos a estas realidades. Para os autores (2008, p. 3):
A ideia principal sempre foi a de que o mundo em que vivemos e nosso
lugar nele não estão simples e evidentemente “lá” para os participantes.
Em vez disso, os participantes constroem ativamente o mundo do cotidiano
e seus elementos constituintes. Baseado nesse princípio, o construcionismo
tem se tornado um movimento intelectual cujos insights empíricos são
amplamente reconhecidos
29
.
Nesse contexto, parece ser um consenso na literatura que aborda as origens do
construcionismo a importância do livro A Construção Social da Realidade (1976) de Peter
Berger e Thomas Luckmann como uma obra que teve grande influência na sociologia do
conhecimento numa perspectiva construcionista (GERGEN; GERGEN, 2008; HOLSTEIN;
GUBRIUM, 2008; POTTER; HEPBURN, 2008; POTTER, 1998). A obra, a partir da
fenomenologia, discute o modo como o mundo em que vivemos não é formado de
fenômenos naturais e objetivos e sim construído através de várias práticas e convenções
29
No original: “The leading idea always has been that the world we live in and our place in it are not
simply and evidently “there” for participants. Rather, participants actively construct the world of
everyday life and its constituent elements. Grounded on this principle, constructionism has become
an intellectual movement whose empirical insights are widely recognized”.
36
sociais. Dessa forma, os autores tentam demonstrar como “a experiência de uma pessoa
adota a forma de entidades e estruturas sólidas e perduráveis”
30
(POTTER, 1998, p. 54).
Outros trabalhos, como os de Karin Knorr-Cetina (1981, 1995), Bruno Latour & Steve
Woolgar (1986), Bruno Latour (1987) e Steve Woolgar (1988) são citados como reflexões que
buscam entender a ciência como prática social, incluindo o estudo de que processos
legitimam esses conhecimentos (SPINK, 2004; POTTER, 1998; GERGEN; GERGEN, 2008). Em
geral, estes autores dão ênfase às negociações na elaboração de conhecimentos científicos,
construindo um contraste com o ponto de vista de “livro de contos”, segundo o qual as
produções científicas seriam regidas de uma maneira simples e mecânica, pelo resultado de
experimentos, observações, replicações, etc. (POTTER, 1998). Nigel Gilbert e Michael Mulkay
(1984), por exemplo, analisaram o contraste entre como os cientistas descreviam suas
teorias, procedimentos e experimentos em entrevistas informais e como estes mesmos
cientistas as escreviam nos contextos mais formais de divulgação científica.
Em psicologia social, Kenneth Gergen é reconhecido como um dos autores que
tomam parte na busca de um movimento semelhante em psicologia. No artigo Social
Psychology as History (1973), Gergen questiona o lugar da psicologia como reprodutora de
métodos que são aplicados nas ciências naturais desde o século XVIII. Para tal, o autor
argumenta que as pesquisas em psicologia são investigações históricas que, diferente das
ciências naturais, lidam com fatos que em sua maioria não se repetem e que flutuam através
do tempo. Tal fato tem como consequência uma possível mudança de comportamento social
em uma questão qualquer através da apropriação pela sociedade dos resultados de
pesquisas científicas sobre determinado aspecto de comportamento. A psicologia social
então deveria estar interessada em processos historicamente contingentes.
Gergen pretendia mostrar como os resultados de pesquisas em psicologia social não
estão livres de valores e podem ter sentidos diversos de acordo com a cultura e
compromissos sociais em que os pesquisadores estariam inevitavelmente implicados:
Por exemplo, elevada alta-estima poderia ser nomeada egoísmo;
necessidade de aprovação social poderia ser traduzida por necessidade de
integração social; diferenciação cognitiva como perfeccionismo;
criatividade como desvio; controle interno como egocentrismo. Do mesmo
modo, se nossos valores fossem outros, conformidade social poderia ser
30
No original: “cómo adopta la experiencia de uma persona la forma de entidades y estructuras
sólidas y perdurables”.
37
vista como comportamento solidário; mudança de atitude como adaptação
cognitiva; e o desvio em direção ao risco como uma conversão corajosa.
(GERGEN, 2008[1973], p. 477)
Alguns anos depois, Gergen discute sobre o movimento construcionista em psicologia
no seu artigo The Social Constructionist Movement in Modern Psychlogy (1985), afirmando
que o construcionismo social “vê o discurso sobre o mundo não como um reflexo ou mapa
do mundo, mas como um artefato de intercâmbio comum”
31
(GERGEN, 1985, p. 1). Neste
artigo, Gergen declara ter escolhido o termo construcionismo em oposição a construtivismo,
como um modo de diferenciá-lo do construtivismo Piagetiano e ligá-lo às reflexões
desenvolvidas por Berger e Luckman
32
.
Em resumo, Gergen (1985) acredita que este movimento teria como características
as crenças de que:
O que nós tomamos como experiências do mundo não ditam elas mesmas os termos
pelos quais o mundo é entendido tem por base o convite construcionista a duvidar
das coisas no mundo tal como elas são observadas, como se fossem categorias
naturais que sempre estavam lá, dando ênfase a como o conhecimento é
desenvolvido a partir de um contexto;
Os termos pelos quais o mundo é entendido são artefatos sociais, produtos de
intercâmbio entre pessoas e situados historicamente o processo de entender o
mundo não seria feito de modo automático e dirigido pela natureza das coisas em si,
mas pelo resultado do empreendimento cooperativo de pessoas ao se relacionarem;
O grau pelo qual uma dada forma de entendimento prevalece ou é suspensa ao longo
do tempo não é fundamentalmente dependente na validade empírica do processo em
questão, mas das vicissitudes dos processos sociais o conhecimento, dado seu
caráter de negociação social, estaria sujeito a questionamentos ou reiterações dentro
de uma comunidade. Seriam então essas comunicações, negociações, conflitos,
31
No original: “Social construcionism views discourse not as a reflection or map of the world but as
an artifact of communal interchange”.
32
Uma outra definição, que aqui faço um resumo grosseiro, estaria no artigo de Arendt (2003) em
que o Construcionismo seria proveniente da Psicologia Social e o Construtivismo da Psicologia do
Desenvolvimento. O autor acredita que, embora pareçam conflitantes, ambos estariam pautados em
princípios semelhantes da filosofia pós-moderna, a saber: “crítica ao acesso possível a uma realidade
independente do indivíduo, rejeição de um enfoque cartesiano de investigação científica fundado no
rigor e na objetividade” (p. 1). Para outras diferenças e semelhanças, ver Rasera e Japur (2005).
38
retórica, entre sujeitos em uma comunidade científica que fariam com que
determinado conhecimento prevalecesse ou não;
Formas de conhecimento negociado têm uma importância crítica na vida social, uma
vez que eles são integralmente conectados com muitas outras atividades em que as
pessoas se engajam as descrições e explicações sobre as coisas tomam parte em
vários padrões sociais, servindo para dar suporte a alguns e excluir outros. Alterar
descrições e explicações sobre o mundo social nos leva a ameaçar algumas ações e
abrir convite a outras.
As reflexões construcionistas, nesse aspecto, são impregnadas por um substrato
crítico-político, que tem como objetivo subjacente o de libertação daquilo que se tornou
instituído através do desafio a realidades essencializadas (GERGEN; GERGEN, 2008). A
premissa que distingue a pesquisa construcionista das demais, de acordo com Hacking
(1999), é justo a da crítica ao status quo. Por exemplo, se supomos um fenômeno social
qualquer, podemos assumir que ele não precisa existir nem ser como é → então ele não será
determinado pela natureza das coisas tais como elas são → assim, ele não é inevitável.
Todas essas assunções têm implicações para a pesquisa e reflexão a partir de uma
perspectiva construcionista, uma vez que uma noção tal como o abuso sexual infantil pode
passar a ser questionado em seu status de algo que sempre “esteve lá” e ser entendido
como um termo que toma parte a partir de um conjunto de práticas sociais (entre elas, as
práticas discursivas) que a tornaram possível (HACKING, 1995, 1999; MÉLLO, 2006).
Porém, as definições de construcionismo social também são diversas, com várias
classificações dependendo daqueles que a desenvolvem e dos objetivos que querem
alcançar com aquela definição. Podem ser entendidas como radicais e conservativas;
libertadoras, gerenciais e opressivas; relativistas, revisionistas e neobjetivistas; cancerosas,
perniciosas e pandêmicas; mutantes, insípidas, da moda ou desinteressantes (HOLSTEIN;
GUBRIUM, 2008). Supondo que, no construcionismo social, o conhecimento é, de certa
forma, ideológico, político e permeado de valores, Schwandt (2006) supõe que haja
construcionismos sociais “fracos” e “fortes” de acordo com as implicações sociais a que se
propõem.
Holstein e Gubrium (2008) definem como fracas as pesquisas construcionistas
preocupadas com como a realidade social é construída, almejando detectar métodos, regras
e estratégias pelas quais a realidade é criada pelas pessoas e dada como tal; e como fortes
39
aquelas que pretendem tornar visíveis que características de determinado aspecto do
mundo social são importantes de serem discutidas, por serem realidades não reconhecidas
no dia-a-dia. Os pesquisadores construcionistas, então, estariam em um extremo ou outro
ou oscilando entre as possíveis variações.
para Danziger (1997) um light constructionism e um dark constructionism,
poderiam ser descritos assim:
O primeiro se refere àqueles autores para os quais a vida pode ser
transformada através de uma abertura à multiplicidade do discurso, não
havendo muitas referências a questões de poder, e estruturas sociais, e
privilegiando o vel macrossocial para o estudo da construção do
conhecimento. os autores classificados dentro do ‘dark constructionism’
enfatizariam os aspectos não-discursivos dos relacionamentos humanos,
especialmente aqueles relativos às questões de poder (RASERA; JAPUR,
2005, p. 25).
As diferentes posturas, então, não permitem e nem pretendem uma definição
única do que seja construcionismo social. Dado as diferentes tentativas de se definir o
construcionismo social algumas poucas delas discutidas aqui muitos autores preferem
entendê-lo como um campo de tensões (RASERA; GUANAES; JAPUR, 2004) e sugerem a
existência de uma “galáxia construcionista”, dado a diversidade de usos do termo (LÓPEZ;
MOYA, 2003). Nesse sentido, Ian Hacking em seu livro The Social Construction of What?
(1999) discute sobre o fato de que o construcionismo passou a pertencer a todos e a
ninguém, nos advertindo sobre a cautela que se deve tomar ao falar sobre a construção
social “de algo”.
Contudo, que implicações têm essa perspectiva para a Psicologia Social? Para
Jonathan Potter (1998), a perspectiva construcionista traz a discussão da dicotomia ciência e
senso comum, ressaltando que epistemologicamente não haveria diferenças entre as
produções de conhecimento científicas e aquelas produzidas nos contextos cotidianos da
vida em sociedade. Para que tal prerrogativa seja adotada, precisamos conceber a produção
cientifica como algo amplo, produzido por pessoas em uma cultura e em momentos
históricos determinados. O conhecimento científico, assim como o conhecimento produzido
pelo senso comum, passa por processos de negociação e discussão durante sua elaboração,
não é neutro e isolado dos valores e das necessidades/interesses daqueles que o produzem,
é um conhecimento profundamente dependente do contexto.
40
O construcionismo nos convida, dessa forma, a duvidar daquelas interpretações do
mundo que damos por certas e estáveis, seja na ciência ou na vida cotidiana. Assim, ele
nos conduz a questionar a crença de que a observação poderia garantir a legitimação das
categorias ou dos juízos resultantes dessa observação. O construcionismo “convida-nos,
portanto, a desafiar as bases objetivas do conhecimento convencional” (GERGEN, 1985, p.
2).
Assim, o posicionamento proposto pelo construcionismo para o conhecimento
sugere que abdiquemos da visão representacionista do conhecimento, a qual tem como
principio a metáfora da mente como espelho da natureza
33
(RORTY, 1979). Deve-se,
portanto, ver o conhecimento não como uma coisa que as pessoas possuem em suas
cabeças e sim como algo que constroem em convívio umas com as outras. Na verdade, o
conhecimento é uma forma compartilhada de empreendimento, inerente às pessoas em
relação. Por conseguinte, “resulta numa socialização do conhecimento que passa a ser algo
que construímos juntos por meio de nossas práticas sociais e não algo que apreendo do
mundo” (SPINK, 2004, p. 20).
Esta será uma das contribuições mais relevantes do movimento construcionista para
esse trabalho. Estando interessados em quais jogos discursivos os cuidadores/as produzirão
sobre a violência doméstica, estamos de antemão supondo que há um conhecimento que os
participantes irão negociar durante a interação provocada pela situação de pesquisa. Não
haverá “o discurso” sobre violência doméstica que será extraído e organizado
adequadamente pelo pesquisador como a exposição de um resumo dos grupos focais
realizados. Antes, teremos o registro de jogos de discursos entre participantes e
moderadores dentro daquele contexto de interação em que foram produzidos conceitos,
ideias, percepções, opiniões e crenças específicas àquela situação. Num momento posterior,
há ainda a interação desse produto com discursos diversos trazidos para o texto no contexto
de análise.
33
Rorty (1979) lançava mão dessa metáfora como sendo ideal para ilustrar como era sustentado o
conhecimento sobre o mundo na filosofia, pois acreditava que “The picture which holds traditional
philosophy captive is that of the mind as a great mirror, containing various representations
some accurate, some not and capable of being studied by pure, nonempirical methods.
Without the notion of the mind as mirror, the notion of knowledge as accuracy of
representation would not have suggested itself. Without this latter notion, the strategy
common to Descartes and Kant getting more accurate representations by inspecting,
repairing, and polishing the mirror, so to speak would not have made sense” (p. 12).
41
A perspectiva construcionista busca trabalhar a interface entre os aspectos
performáticos da linguagem e as condições em que esta é produzida (SPINK; MEDRADO,
2004), concebendo a linguagem como ação, como uma prática social que produz
consequências. É necessário, então, realizarmos considerações acerca da importância que
passou a ter a linguagem para as ciências humanas e sociais e, por conseguinte, para a
psicologia social e que toma parte nas perspectivas construcionistas que dão ao discurso
um lugar privilegiado. Mais especificamente, das reflexões que levaram em consideração a
importância da linguagem na construção do real e do racional, que influenciaram a
psicologia discursiva (GERGEN; GERGEN, 2008).
Tomás Íbañez (2004) chama de “giro linguístico” o aumento progressivo dado à
importância da linguagem no decorrer do século XX nas ciências humanas e sociais, sendo
esse um fenômeno que foi se formando progressivamente, adotando várias modalidades ao
longo do tempo. Argumenta que tal “giro”, deu-se a partir de uma dupla ruptura que
ocorreu no início do referido século, a saber, a linguística moderna instituída por Ferdinand
de Saussure, e a filosofia analítica, denominação de uma nova forma de entender e praticar
filosofia iniciada por Gottlob Frege e Bertrand Russell.
O “giro linguístico” teria contribuído para o surgimento de novos conceitos sobre a
natureza do conhecimento, seja ele científico ou do senso comum, permitindo:
[...] que surgissem novos significados para aquilo que se costuma entender
pelo termo ‘realidade’ tanto “social” ou cultural” quanto “natural” ou
“física” e a desenhar novas modalidades de investigação proporcionando
outro contexto teórico e outros enfoques metodológicos (ÍBAÑEZ, 2004, pp.
19-20)
Não nos debruçaremos aqui sobre uma discussão extensa dos autores e eventos que
envolveram esse movimento. Gostaríamos, porém, de enfatizar como importante o
rompimento que este faz com uma tradição cartesiana, no qual a linguagem seria um
simples veículo para expressar nossas ideias ou uma simples roupagem do nosso
pensamento, considerando que:
Ela [a linguagem] é a própria condição do nosso pensamento e, para
entender esse último, temos que nos concentrar nas características da
linguagem em vez de contemplar o suposto mundo interior de nossas
ideias. Nosso conhecimento não se radica nas ideias que dele fazemos; ele
42
se abriga, sim, nos enunciados que a linguagem nos permite construir para
representar o mundo (ÍBAÑEZ, 2004, p. 33).
Interessa-nos, em especial, discutir brevemente as obras de dois autores que
tomaram parte nesse movimento e que focam a linguagem em uso, Ludwig Wittgenstein
com Investigações Filosóficas (1996[1953]) e John Austin com How to do things with Words
(1962). Discutiremos alguns conceitos-chave de ambos os autores que nos interessam
dentro de uma perspectiva discursiva.
Wittgenstein, sob supervisão de Bertrand Russell, concebeu uma obra de grande
impacto no movimento filosófico de sua época e que o tornou conhecido, o Tratactus
Logico-Philosophicus (1921). A obra é proveniente de sua tese de doutoramento e que tinha
como objetivo a elaboração de uma linguagem ideal que evitasse os erros provenientes da
linguagem cotidiana (ÍBAÑEZ, 2004). Wittgenstein tem seus escritos muitas vezes divididos
em “primeiro Wittgenstein” e “segundo Wittgenstein”, sendo “primeiro o Tratactus e
“segundo” suas obras seguintes (D´OLIVEIRA, 1996). Interessam-nos aqui conceitos
referentes ao “segundo Wittgenstein”, que abandonou o logicismo e a busca de uma
perfeição linguística e se dedicou a como a linguagem “funciona” através de seus usos.
Discutiremos duas de suas considerações sobre a linguagem, realizados na sua obra
Investigações Filosóficas (1996[1953]): a linguagem como uma caixa de ferramentas e os
jogos de linguagem.
Wittgenstein acreditava numa linguagem que o era um sistema unificado, porém,
um composto de diferentes partes com diferentes funções distintas de acordo com seus
usos:
Pense nas ferramentas em sua caixa apropriada: estão um martelo, uma
tenaz, uma serra, uma chave de fenda, um metro, um vidro de cola, cola,
pregos e parafusos. Assim como são diferentes as funções desses objetos,
assim são diferentes as funções das palavras. (E semelhanças aqui e ali.)
(...) (p. 31, § 11)
É de suma importância, dentro de uma perspectiva que considera a linguagem em
uso, a noção de que as palavras têm funções que estenderemos para o discurso que
funcionam como uma caixa de ferramentas, disponível por nós para diversos usos.
Observemos o seguinte extrato, proveniente do segundo grupo focal realizado para essa
43
pesquisa, quando as participantes
34
estavam se acomodando na sala e tinham uma conversa
sobre seus filhos, que estavam do lado de fora brincando. Lúcia comenta sobre o filho de
Camila tocando flauta:
Lúcia: Ele tava assim pri pribri ((imitando som da flauta)) ((risos))
Jullyane: Foi lindo- já pegou a flauta lá, tá tocando=
Camila: =É, é o que ele mais gosta
Jullyane: ((risos))
Lúcia: E ele é hiperativo mesmo?
Camila: A ps- a (.) a neura disse que era.
((falas subsequentes omitidas))
Esqueçamos os símbolos estranhos utilizados nesse extrato, que serão mais bem
definidos num momento adequado. Nesse momento, convém apenas observarmos a palavra
neura. A palavra não diz nada “por si”. Porém, em seu uso nesse contexto específico,
podemos entender que sua função é nomear a especificidade médica, neurologista, da
pessoa que acompanha seu filho. Neura, num contexto diferente do exemplificado acima,
poderia ser utilizado para descrever uma pessoa neurótica! O que nos leva ao segundo
conceito de Wittgenstein que nos interessa.
O termo jogos de linguagem salienta que a linguagem é composta de diferentes jogos
em que empregamos as palavras em situações distintas com diferentes objetivos e regras. O
usuário da linguagem desempenha um papel diferente de acordo com diferentes situações
em que toma parte, tais como comandar, descrever, relatar, cantar uma cantiga, fazer uma
anedota, etc. (WITTGENSTEIN, 1996[1953], § 23). Potter (2001) acredita ser essa uma das
mais fortes metáforas utilizadas por Wittgenstein para descrever uma forma de ver a
linguagem como fragmentada:
Essa metáfora pode ser usada para apoiar a extensa assunção da análise do
discurso que as práticas das pessoas são organizadas ao redor do uso de
discursos particulares ou repertórios interpretativos. Nos alerta contra o
objetivo de prover uma explicação abrangente e coerente da linguagem
34
Lúcia e Camila são nomes fictícios escolhidos pelas participantes para representá-las. Jullyane é o
nome real de uma das moderadoras.
44
como um sistema abstrato e foca, ao invés, em práticas específicas ligadas a
ocasiões e situações
35
(p. 41).
Daí tomarmos o termo jogos de linguagem e adequá-lo aos nossos interesses
utilizando o termo jogos discursivos, dando ênfase ao fato de que em nossa análise,
consideramos que o discurso das pessoas sobre a violência e o uso de palavras, conceitos,
ideias, percepções, opiniões, metáforas, etc. é dinâmico e acontece em um contexto
específico: a situação de pesquisa.
Como Wittgenstein, Austin estava preocupado com as fraquezas das concepções
filosóficas de linguagem e seu tratamento da linguagem como um sistema referencial
abstrato. Porém, tinham como diferença a concepção do que era linguagem de maneira
mais ampla:
Enquanto Wittgenstein tinha a linguagem fragmentada em um grande
número de diversos jogos de linguagem que de certa forma desafiavam
uma caracterização precisa e ampla, a meta de Austin era especificamente
dar uma explicação ampla, sistemática dessa linguagem ativa
36
(POTTER,
2001, p. 43).
Apesar de sua obra How to do things with words (Como fazer coisas com palavras)
não fazer referência a Wittgenstein ou nenhum outro autor, acredita-se que uma
influência das reflexões de Wittgenstein bem como de outros filósofos contemporâneos que
estudavam a linguagem. Austin, junto com outros filósofos norte-americanos, concordava
com o rompimento da tradição cartesiana de se pensar o mundo, considerando que a
linguagem é um instrumento para fazer coisas e realidades BAÑEZ, 2004). Desse autor,
interessa-nos o conceito de atos discursivos
37
.
Austin acreditava que a linguagem era usada para fazer coisas, era um meio de ação.
Tinha como projeto principal atacar pontos de vista que outorgavam uma importância
35
No original: “This metaphor can be used to support the widespread discourse analytic assumption
that people's practices are organized around the use of particular discourses or interpretative
repertoires. It cautions against the goal of providing an overall coherent account of language as an
abstract system and focuses instead on specific practices tied to occasions and settings”.
36
No original: “Whereas Wittgenstein has language fragmented into a huge number of diverse
language games that are likely to defy a precise overall characterization, Austin's aim was specifically
to give an overall, systematic account of this active language”.
37
Em Tomás Íbañez (2004), o termo original speech-act foi traduzido como “atos de linguagem”.
Termo também presente como “acto lingüístico” na tradução em espanhol Cómo hacer cosas com
palabras (sem data). Prefiro nesse trabalho utilizar a tradução “atos discursivos”, em conformidade
com a tradução para o espanhol “actos discursivos” presente na obra de Potter (1998).
45
fundamental à linguagem enquanto algo que diz respeito fundamentalmente a questões de
verdade e falsidade, e, ao invés dos “valores de verdade” das afirmações abstratas,
interessava-lhe a natureza prática da linguagem (POTTER, 1998). Austin elaborou duas
classes de expressões distintas: as constativas e as performativas. Como exemplo de frases
constativas, teríamos a afirmação “Recife é a capital de Pernambuco”, e de frases
performativas, “Chamarei esse cachorro de Apolo”. Nas expressões constativas, as frases
afirmam algo: independente de Recife ser ou não a capital de Pernambuco, assim é
afirmado; nas expressões performativas, as frases fazem coisas: chamar o cachorro de Apolo
faz parte do ato de nomeá-lo.
Potter e Wetherell (1987) apontam a teoria geral dos atos de fala
38
como uma teoria
que não distingue sentenças que fazem coisas das sentenças que dizem coisas, bem como
não distingue sentenças performativas das constativas. A teoria geral dos atos de fala foi
proposta por Austin tendo por base que todas as expressões realizam ações e, ao mesmo
tempo, apresentam feitos dependentes de questões de verdade e falsidade
39
(POTTER,
1998, p. 25). Expressar a frase “Chamarei esse cachorro de Apolo” quando não nenhum
cachorro ao redor pode ser problemática. Austin elaborou essa noção ao observar que os
critérios para distinguir as frases constativas das performativas podem ser aplicados para
ambos. O ponto central nessa teoria é de que certas palavras, quando usadas em frases,
podem ter diferentes forças. Assim, “Você poderia chamar Pedro?” pode ser usada com a
força de um pedido, uma questão, ou qualquer outra força de acordo com as circunstâncias
(POTTER, 1998).
Assim, traz para a discussão a ideia de que as expressões não devem ter um status
especial, centrando a atenção nas afirmações como ações realizadas em determinados
contextos e objetivando resultados distintos. Traz como importante o fato de que os
chamados atos discursivos descrever, informar, etc. são atos como vários outros e,
portanto, são parte das práticas que tomam parte. Voltando para o exemplo acima, a fala de
Lúcia: “E ele é hiperativo mesmo?”, faz parte e só pode ser expresso a partir de um contexto
que envolvia a descrição de características do filho de Camila.
38
General theory of speech acts.
39
No original: “todas las expresiones realizan acciones y, al mesmo tiempo, presentan rasgos
dependientes de cuestiones de verdad y falsedad”.
46
Tendo exposto algumas breves considerações sobre o movimento construcionista e a
linguagem, discutiremos sobre a abordagem teórico-metodológica que utilizaremos nesse
trabalho: a psicologia social discursiva. É a partir dela que lançaremos olhar sobre o material
de análise. Compreendida como um tipo particular de análise do discurso, a psicologia
discursiva possui como característica um desenvolvimento engajado a um nível teórico,
metodológico e conceitual (POTTER, 2004).
3.2 Principais pressupostos da Psicologia Social Discursiva
Esse trabalho utilizou como referencial teórico-metodológico a abordagem da
Psicologia Social Discursiva, conforme desenvolvida por pesquisadores como Jonathan
Potter, Margareth Wetherell, Derek Edwards, Michael Billig, que enfatizam a natureza
retórica do discurso (como as pessoas argumentam sobre eventos e fenômenos), sua função
(ação e consequências do discurso) e variabilidade (BILLIG, 2008; POTTER; EDWARDS, 2001;
POTTER; WETHERELL, 1987).
A Psicologia Social Discursiva é a aplicação de ideias da análise do discurso para
tópicos de interesse em psicologia social. É uma abordagem para a psicologia que toma
como fundamental as características do discurso de ser orientado à ação e construtor de
realidades (POTTER; EDWARDS, 2001). Foi desenvolvida a partir de uma forma particular de
análise de discurso que foi elaborada por Potter e Wetherell no livro Discourse and Social
Psychology (1987) e que tem uma descendência teórica complexa, baseadas também em
ideias provenientes da retórica, da sociologia da ciência, da análise de conversação e do pós-
estruturalismo.
A análise do discurso teve origem no esforço dos linguistas em desenvolver modos de
analisar estruturas gramaticais que iam além dos limites das sentenças individuais para lidar
com textos maiores, inclusive aqueles que ocorrem naturalmente em situações cotidianas,
tais como falar ao telefone, conversar na esquina, comentar um evento e dados
conversacionais (EDWARDS, 2005).
Utilizada em vários campos, a análise do discurso é utilizada na psicologia, linguística,
sociologia, filosofia, comunicação, literatura e estudos sociais, tendo diversas afiliações
teóricas, históricas e de influência interdisciplinar (POTTER, 2004). Conceição Nogueira
(2001) pontua que a análise do discurso não é apenas um método, e sim, “uma perspectiva
sobre a natureza da linguagem e da sua relação com questões centrais das ciências sociais”
47
(p. 4). Potter et al. (1993) veem a análise de discurso como sendo uma teoria e método de
estudar práticas sociais e as ações que o constituem. Na psicologia discursiva, é desenvolvida
essa abordagem de análise de discurso que está mais preocupada com práticas,
organizações, ações e efeitos de um discurso do que com estruturas textuais abstratas,
compreendo o discurso como uma peça chave para entender a vida social.
Porém, o que estamos chamando de discurso? De acordo com Potter e Edwards
(2001):
Na Psicologia Social Discursiva discurso é definido como fala e textos,
estudados como práticas sociais. Essa definição combina o senso de
discurso como um objeto e como uma prática. Por razões teóricas,
metodológicas e empíricas, a Psicologia Social Discursiva toma o discurso
como central na vida social (p. 104).
Nogueira (2001) lembra que o termo discurso não se aplica apenas à linguagem, mas
a qualquer padrão de significado visual ou espacial, podendo referir-se a textos visuais
(televisão, cinema, tiras em quadrinhos) ou físicos (cidades, jardins, corpos), porém, sendo
mais comum na análise de discurso baseada em textos escritos (documentos, cartas,
entrevistas, artigos de jornais, etc.).
Potter e Wetherell (1987) apresentam três correntes teóricas como sendo as bases
da Psicologia Social Discursiva: a teoria dos atos de fala, discutida na seção anterior, a
etnometodologia e a semiologia.
Potter e Wetherell (1987) afirmam que a etnometodologia, que tem o sociólogo
Harold Garfinkel como figura central, é o estudo da forma como as pessoas comuns
produzem e dão sentido à vida social cotidiana. Nas palavras de Garfinkel (1967):
Os estudos etnometodológicos analisam as atividades diárias como
métodos de seus membros para fazer essas mesmas atividades
visivelmente-racionais-e-reportáveis-para-todos-os-propósitos-práticos, por
exemplo, “explicáveis”
40
, como organizações corriqueiras das atividades
cotidianas
41
(p. vii).
Ele pretendia estudar que métodos as pessoas utilizavam para explicar o mundo,
tendo como interesse principal o estudo da variedade de métodos que as pessoas
40
Os termos “accountable”, “accountability”, “account” não tem uma tradução que capture o
mesmo sentido em português, sendo “explicável” o termo que mais se aproxima.
41
No original: “Ethnomethodological studies analyze everyday activities as members’ methods for
making those same activities visibly-rational-and-reportable-for-all-practical-purposes, i.e.,
“accountable,” as organizations of commonplace everyday activities”.
48
empregavam para produzir e compreender descrições factuais (POTTER, 1998). Ou seja,
pretendia estudar como as pessoas produziam descrições do mundo social que pareciam
racionais, adequadas e justificáveis. Dois conceitos etnometodológicos são importantes na
psicologia social discursiva, a indexcalidade e a reflexividade.
O conceito de indexicalidade tem como ideia fundamental o fato de que o significado
de uma palavra depende do contexto em que ela é usada (POTTER, 1998). É a propriedade
segundo o qual as mesmas ações adquirem significados diferentes em contextos distintos,
abrindo um espaço novo e complementar para a compreensão das regras sociais como
flexíveis e em estado permanente de elaboração, além de que, por outro lado, a
possibilidade de entender como o significado é elaborado e compartilhado em cada
processo contextualizado de interação (GARAY; IÑIGUEZ; MARTÍNEZ, 2005). Ou seja, se
tomarmos uma palavra “solta no espaço”, não poderemos dizer com certeza o que ela quer
dizer, qual sua função . O que sentido a uma expressão é a combinação de palavras e em
qual contexto elas estão sendo utilizadas. Voltando ao exemplo utilizado na seção anterior, a
palavra neura, tem sentido dento do contexto da frase de Camila “a neura disse que era”
e seu significado está indexado ao contexto mais amplo em que ela toma parte.
A reflexividade se caracteriza por conceber o discurso como uma atividade
multiformulativa e multiconsequencial. O discurso não se refere meramente a ações,
eventos e situações, pois é também uma parte potente e constitutiva destes. Voltemos ao
mesmo exemplo da fala de Camila. Sua descrição ao mesmo tempo não apenas representa
seu filho como hiperativo, mas também constitui seu filho como uma criança hiperativa para
as pessoas ao seu redor que não podem mais olhar para ele e seus atos sem que o vejam
a partir dessa descrição.
Em relação à semiologia, proposta pelo linguista suíço Ferdinand Saussure, Potter e
Wetherell (1987) explicam que ela tem como princípio norteador a arbitrariedade do signo.
Nesse princípio, preconiza-se a distinção entre um conceito o significado e seu som de
fala associado o significante; sendo a combinação dos dois chamada de signo linguístico.
Nesse sentido, o argumento para a arbitrariedade dos signos apoia-se na
demonstração que nem a natureza do significante, nem a do significado, nem a relação
entre eles é fixa ou determinada. Contudo, o argumento mais controverso é que significados
e conceitos são por si arbitrários. Assim, ressalta-se que o significado é arbitrário ao
próprio referente, como também que a cultura significado ao mundo de forma arbitrária.
49
A consequência disso é que o uso da linguagem não pode ser vista como um processo de
nomeação, no qual se usa uma lista de palavras que corresponde a uma coisa que ela
nomeia, mas sim como um uso sempre dependente de um sistema de relações que se
estabelecem em um contexto cultural.
O foco de análise da psicologia social discursiva é o modo como conceitos
psicológicos são utilizados nas interações discursivas. No discurso cotidiano temas
psicológicos tais como percepções, memórias, entendimentos, emoções, são relacionados à
descrição de eventos e ações do mundo externo, por exemplo, como nos sentimos ao ouvir
um discurso do político X, o que achamos de um texto, de um evento polêmico. Essa
abordagem diferencia-se de outras psicologias que partem do pressuposto de que a
psicologia popular é errada, inexata, ilógica. Para Edwards (2004), a análise de discurso
desenvolvida na psicologia discursiva depende da análise conversacional, da retórica e da
filosofia analítica.
Segundo Wooffitt (2005), a análise conversacional foi iniciada a partir do trabalho do
sociólogo Harvey Sacks ao examinar conversas de telefone ao Los Angeles Suicide Prevention
Center, e que examinava a linguagem enquanto ão social. A análise conversacional é um
modelo para se examinar o que as pessoas dizem de maneira empiricamente rigorosa,
levando em consideração que as coisas que são ditas pelas pessoas não são simplesmente
expressões de seus pensamentos, atitudes, memórias, crenças, etc., e devem ser levadas em
conta como ações de desempenho de vários tipos no contexto em que elas são ditas
(EDWARDS, 2004). Tal modelo foi desenvolvido por alguns etnometodologistas
notadamente Harvey Sacks e seus colaboradores Emanuel Schegloff e Gail Jefferson como
uma estratégia de análise que pudesse captar mais fielmente a linguagem em uso, criando
um modo de transcrever entrevistas que tenta reproduzir em texto o que aconteceu no
fenômeno original: entonações, gaguejos, reparações, etc. Preocupa-se em como a
contribuição de diferentes pessoas em uma conversa são mescladas juntas e o modo como
diferentes ações xingamentos, reclamações, agradecimentos, desculpas, etc. são
produzidas e administradas (POTTER; WETHERELL, 1987).
O discurso é situado em termos de retórica: o modo como uma descrição é colocada
em uma fala ou texto e descrita de uma maneira ou de outra faz parte de seu caráter
argumentativo. A pesquisa, na psicologia social discursiva considera o modo como as falas e
textos são utilizados em sequências de interação, são orientadas para ambientes
50
institucionais e identidades, e são postas juntas retoricamente (POTTER, 2004). O autor que
melhor desenvolveu a importância dos argumentos retóricos na psicologia social foi Michael
Billig, principalmente em seu livro Argumentando e Pensando (2008), no qual, chamando a si
mesmo de psicólogo antiquário, revisita grandes autores da retórica e afirma a importância
dos estudos retóricos para a psicologia social moderna.
Billig (2008) acredita que quando argumentamos, não estamos apenas defendendo
uma posição como, ao mesmo tempo, estamos combatendo argumentos alternativos, e que
isso faz parte do jogo retórico. Voltemos mais uma vez ao exemplo de Camila (!).
Observemos a pergunta de Lúcia: “E ele é hiperativo mesmo?”. Lúcia, nesse momento,
provavelmente está interessada em saber se ele é hiperativo ou se outras explicações
para seu comportamento agitado. Camila responde: “A ps- a (.) a neura disse que era”. Ou
seja, ela nesse momento descarta outras explicações possíveis a partir do uso da figura de
uma especialista que, em uma cultura em que o saber médico tem um status importante,
deve ser confiável.
Além disso, Billig (2008) diz que um argumento não tem sentido a partir de uma
lógica interna, mas a partir tanto daquilo que está sendo afirmado, quanto daquilo que está
sendo rejeitado implícita ou explicitamente:
Por exemplo, declarar-se a favor da pena capital não é apenas fazer uma
declaração sobre nós mesmos ou sobre matar criminosos perigosos; é uma
declaração contra a visão abolicionista. O ponto pode ser generalizado. Um
argumento a favor de uma questão polêmica também é um argumento
contra os contra-argumentos. Dessa forma, a afirmação e a negação estão
entremeadas na medida em que os logos do discurso também são
antílogos, a serem entendidos com relação ao contexto da polêmica (grifos
do autor, p. 10).
Em relação à filosofia analítica, a psicologia discursiva utiliza autores da filosofia da
linguagem, principalmente Ludwig Wittgenstein, Gilbert Ryle e John Austin. Tais autores
trouxeram contribuições para a compreensão do uso da linguagem que servem de base para
a análise de discurso desenvolvida pela psicologia discursiva.
Para Potter (2004), a análise do discurso, e como ela é utilizada na psicologia social
discursiva, baseia-se em três fundamentos principais: o discurso é orientado à ação, situado
e construído.
51
O discurso é orientado à ação, e sua análise compreende as ações e práticas que este
desempenha. Assume-se que o mundo está em constante movimento, um mundo em que o
discurso faz com que coisas aconteçam, se realizem. O discurso é então utilizado por nós de
modo a realizar ações como parte de práticas mais amplas, como, por exemplo, quando digo
“Me dá o sorvete!” eu posso estar respondendo a inúmeras possibilidades de perguntas que
me precederam. O que torna importante definir o contexto no qual meu discurso foi
produzido.
Os analistas de discurso tratam o discurso como ocasionado na medida em que
ocorreu numa sequencia de interação. Ou seja, as ações não estão soltas no espaço, mas
baseadas em um contexto que a precede e que se segue. Continuando o exemplo anterior,
minha resposta poderia ter sido precedida de alguém que me ofereceu um lanche, e
perguntou “Você prefere ganhar o sorvete ou o picolé?¨, ou de uma briga entre crianças, na
qual uma tomou ou sorvete da outra, ou ainda, foi uma resposta enfurecida numa situação
na qual eu apontava para um sorvete o qual eu estava impossibilitado de alcançar pelo fato
do sorveteiro tê-lo colocado fora do meu alcance.
Por fim, o discurso é construído na medida em que as pessoas usam a linguagem para
construir versões do mundo social. Os eventos são explicados através de uma variedade de
recursos linguísticos pré-existentes, “quase como uma casa é feita de tijolos, vigas etc.”
(POTTER; WETHERELL, 1987, pp. 33-34), o que implica no uso seletivo de termos no qual
alguns aspectos são levados em consideração e outros são omitidos. A noção de discurso
enquanto construído considera que as interações sociais são baseadas em negociações que
envolvem eventos e pessoas que, através da explicação de fenômenos, constroem a
realidade. O que não é feito deliberada ou intencionalmente, pois, pode ser que uma pessoa
ao dar explicações de um fenômeno não esteja consciente de estar construindo versões do
mundo social, mas tal construção emerge enquanto ela tenta dar sentido a este fenômeno.
Assim, Potter (2004) acredita que esta forma de se tratar o discurso, a qual denomina
de construcionismo discursivo, diferencia-se de vários construcionismos cognitivos, que
considera o modo como as imagens que nos chegam do mundo são postas juntas, e
diferencia-se também de vários construcionismos sociais que tentam entender a produção
de pessoas individuais através da internalização de relações sociais. Estaria mais interessado
em estudar como um mundo de descrições, afirmações, alegações, notícias, certezas etc. são
parte das práticas humanas (POTTER; HEPBURN, 2008).
52
Na análise do discurso como este é utilizado na psicologia social discursiva , o
modo como diferentes versões de mundo são construídas e estabilizadas como
independentes do falante, é tratado como algo a ser analisado na produção de discurso, “o
foco dos construcionistas discursivos está na prática das pessoas”
42
(POTTER, 2004, p. 610),
pois, o discurso é, nessa perspectiva, o meio fundamental de ação no mundo. A abordagem
centrada no discurso mudaria o foco de uma busca das entidades subjacentes que produzem
determinada fala ou comportamento para um exame detalhado de como expressões
valorativas são produzidas no discurso (POTTER; WETHERELL, 1987).
Um dos interesses de análise na psicologia social discursiva é na existência de
variabilidade no discurso das pessoas. Para os teóricos dessa abordagem nossos discursos
são inconsistentes, ambíguos, contraditórios. Como o discurso é construído, situado e
orientado à ação, espera-se que com diferentes tipos de atividade, diferentes tipos de
discurso irão ser produzidos (POTTER et al., 1990). Potter e Wetherell (1987) dizem não
acreditar na forma de ver o discurso das pessoas como consistentes e coerentes, tal como
esperado em pesquisadores que seguem um modelo “realístico” de linguagem.
Em caráter de resumo do que estamos discutindo até esse momento do texto sobre a
psicologia social discursiva, Potter & Wetherell (1987) sugerem que, conforme vêm sendo
afirmado:
a) a linguagem é usada para uma variedade de funções e seu uso tem uma variedade de
consequências;
b) a linguagem é construída e construtiva;
c) um mesmo fenômeno pode ser construído/produzido de inúmeros modos;
d) haverá, portanto, considerável variação nestas explicações;
e) não há, até agora, um modo à prova de falhas de lidar com esta variação e diferenciar
explicações que são “literais” ou “acuradas” daquelas que são retórica ou meramente
desapropriadas, havendo assim problemas com a descrição de variabilidade em um
discurso para pesquisadores com um modelo “realístico” de linguagem;
f) os modos construtivos e flexíveis em que a linguagem é usada devem, elas mesmas,
tornarem-se um tópico central de estudo.
42
No original: “discourse constructionists focus on people's practices”.
53
Assim, a abordagem da psicologia social discursiva neste trabalho faz-se relevante na
medida em que tem interesse nos jogos discursivos e nos sentidos que cuidadores/as
produzirão sobre a violência doméstica, bem como a existência de contradições,
inconsistências e ambiguidades, ou seja, variabilidade no discurso dos participantes.
Um último ponto que merece destaque é em relação à memória. Durante os grupos,
as participantes descreveram eventos passados em seus relatos/narrativas e, para isso,
estariam trazendo memórias destes eventos. Mas, o que são memórias?
Edwards et al. (1992) falam que a memória costuma ser definida como retenção, a
totalidade do conhecimento de um indivíduo sobre o passado, sua organização semântica, a
reconstrução de eventos experienciados etc. Além disso, a linguagem é utilizada como base
para operacionalizar e teorizar sobre esse fenômeno:
Materiais linguísticos são usados como input experimental, seja por suas
propriedades linguísticas definíveis (fonética, semântica, gramatical,
pressuposicional etc.), ou também por stand-ins textuais para os eventos
que descrevem e para as cognições dos sujeitos sobre esses eventos. [...]
Materiais linguísticos não são apenas úteis para o método, mas aparecem
fortemente também na teoria. Distinções entre memória de curta duração
e memória de longa duração, ou entre diferentes níveis de processamento,
ou outros tipos de memória (semântica e episódica etc.), frequentemente
apelam para distinções linguísticas ou são fortemente baseadas em
representações linguísticas e textuais e metáforas
43
(p. 441).
Porém, tendo por referencial a psicologia de base discursiva que também enfatiza o
papel da linguagem, definiremos a memória não como uma entidade mental. Antes,
assumiremos que os eventos relatados pelas pessoas (no nosso caso em especial, as
participantes) e, portanto, suas memórias, são construídas retoricamente, como parte de
argumentos voltados a objetivos específicos (EDWARDS; POTTER, 1992; EDWARDS et al.,
1992).
43
No original: “Linguistic materials are used as experimental input, either for their readily definable
linguistic properties (phonetic, semantic, grammatical, presuppositional etc.), or else as textual
stand-ins for the events they describe, and for subjects’ cognitions about those events. *…+ Linguistic
materials are not only useful for method, but feature strongly in theory too. Distinctions between
STM and LTM, or between different depths of processing, or other kinds of memory (semantic and
episodic etc.), often appeal to linguistic distinctions or are heavily based upon linguistic and textual
representations and metaphors”.
4. Metodologia
4.1 Escolha do instrumento para geração de material discursivo
A pesquisa teve como instrumento de geração de material discursivo a entrevista com
grupos focais (FLICK, 2007; GASKELL, 2002; PUCHTA; POTTER, 2004). Optamos pelos grupos
focais porque seu objetivo é estimular os participantes a falar e reagir àquilo que outras
pessoas no grupo dizem” (GASKELL, 2002, p. 75). O grupo focal também tem como tendência
criar um ambiente mais natural e holístico em que os participantes consideraram os pontos
de vista entre seus diferentes membros na formulação de suas respostas e comentam suas
experiências e as experiências dos outros (ibid.).
Os grupos focais, quando utilizados para pesquisas sociais, são conversas orientados
para a tarefa
44
(PUCHTA; POTTER, 2004) em que moderadores e participantes se engajam
numa atividade comum para produzir opiniões sobre determinado assunto. Nesse sentido, o
ambiente criado para a pesquisa foi bastante familiar para as participantes, pois, ao
frequentar as oficinas promovidas na instituição, se habituaram à forma de participar de
atividades em que discutiam diversos assuntos em grupos: violência contra criança, direitos
da criança, reconhecimento da violência doméstica etc. Além disso, os grupos focais
promovem um ambiente ainda que não natural de discussão sobre determinado assunto
muito semelhante àqueles que ocorrem naturalmente em nosso cotidiano: conversando com
os outros, utilizando argumentos, sugestões, elaborando opiniões etc. Como referencial para
conduzir os grupos focais e compreender a dinâmica que lhes é inerente, utilizamos o livro
Focus Group Practice, de Claudia Puchta e Jonathan Potter (2004). Escolhemos esse livro para
referência por se tratar de uma obra que aborda o grupo focal numa perspectiva discursiva.
Nos grupos focais, o entrevistador/pesquisador tem o papel de moderador,
questionando, provocando discussões, estimulando as opiniões de todos/as os/as
participantes e facilitando a variabilidade discursiva. Puchta e Potter (ibid.) dizem que na
literatura sobre os grupos focais, é comum ter como objetivo deste obter as percepções,
opiniões, crenças e atitudes dos participantes sobre determinado assunto. Tais termos variam
de noções psicológicas mais técnicas, como atitudes, até noções psicológicas mais cotidianas,
44
Task-oriented talk, no original.
55
como percepções. Porém, eles continuam, poderíamos resumir como atitudes seu produto
comum: grupos focais produzem atitudes sobre produtos, serviços, políticos, problemas
sociais ou qualquer coisa
45
” (p. 67).
Na teoria das atitudes tradicional, atitudes são consideradas separadas do objeto de
estímulo”, vistas como possessões individuais e avaliações abstratas (PUCHTA; POTTER,
2004). Numa perspectiva discursiva o foco es na interação e cada uma dessas
características é entendida de forma diferente. Ao invés de se concentrar nas “atitudes”
desta forma, o interesse se direciona para as avaliações, observando como estas são
desenvolvidas, em parte, através da construção do objeto de estímulo”. Assim, qualquer
objeto de estímulo” pode ser negociado, construído e definido através da fala: é algo
construído e alcançado conjuntamente. Nessa pesquisa, o objeto-foco de interesse
construído e negociado através da interação entre participantes e moderadores foi o
conceito de violência doméstica. Veremos, ao longo das análises, como esse não foi um
conceito estanque, algo que estava “na cabeça” das pessoas esperando uma
oportunidade para ser expresso. Antes, foi um conceito construído e negociado a partir das
diferentes contribuições de cada participante e provocado tanto pelos moderadores como
por diferentes opiniões presentes nos jogos discursivos promovidos no grupo focal.
4.2 Escolha dos participantes e realização da pesquisa
Como é padrão nas pesquisas com seres humanos, antes de iniciar a pesquisa, foi
necessário obter a aprovação do Comitê de Ética da UFPE. Julgamos importante compartilhar
do rigor que nos foi exigido no sentido de garantir a integridade dos possíveis participantes,
em que tivemos que deixar explícito no Termo de Consentimento que a pesquisa não
envolveria riscos à saúde dos participantes. A partir da avaliação do projeto inicial pelo
Comitê, foram-nos sugeridas algumas modificações no texto do Termo de Consentimento
para que este fosse aprovado. No total, o texto presente no Termo foi avaliado e teve que ser
reformulado por três vezes para alcançar os critérios estabelecidos em cada reavaliação.
Todas as reformulações giraram em torno do risco ou não-risco para os participantes em
expor suas experiências.
Numa das avaliações, por exemplo, exigiu-se que deixássemos claro que a pesquisa
45
No original: “Focus groups produce attitudes about products, services, politicians, social issues or
whatever”.
56
envolveria riscos à saúde dos participantes, uma vez que estariam se expondo ao participar
em uma pesquisa em que falariam de suas experiências com a violência.
Fomos informados pelas secretárias do Comitê de Ética que, nas sugestões e
reformulações do projeto para adequação aos seus requisitos, diferentes avaliadores têm o
projeto em mãos e podem não concordar com o que foi sugerido pelo avaliador anterior.
Então, mesmo antes do início da pesquisa, as diferentes noções da violência doméstica que
os avaliadores produziram ao ler o trabalho influenciaram diretamente na construção do
trabalho a partir do momento que diferentes avaliadores concordavam e discordavam que
falar sobre violência implica em riscos à saúde dos entrevistados. Seus diálogos com o texto
sobre os danos de falar sobre as experiências vividas pelos/as possíveis participantes já eram
construções sobre a violência doméstica. Os avaliadores provavelmente oscilavam entre a
ideia de que a violência doméstica é um assunto que pode ser exposto, “podendo envolver
riscos e danos, ou que deve ser tratado no âmbito privado e que sua exposição
“necessariamente envolve” riscos e danos.
Após esse trâmite, a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e teve permissão
para ser executada como pode-se verificar no termo de consentimento, a aprovação final
foi de que “não envolve riscos”. Em seguida, entramos em contato com a ONG em questão
para negociarmos a escolha dos participantes.
Estive em reunião com a equipe, no dia 02 de março de 2009, e fizemos uma seleção
dos participantes em potencial da pesquisa a partir de dois critérios principais: ser antigo o
suficiente na instituição, o que implicaria na participação em diversas intervenções
institucionais e num maior fortalecimento para falar sobre o tema; ser relativamente novo,
mas avaliado pela equipe como alguém que poderia falar sobre o tema sem danos. No
universo dos participantes selecionados a partir dos dois critérios supracitados, privilegiamos
aqueles que me conhecessem através das diferentes atividades promovidas na instituição,
objetivando com isso criar um ambiente de pesquisa mais confortável em que eu seria uma
figura familiar para as participantes. Elaboramos então uma lista para que a equipe entrasse
em contato com os participantes e os questionasse sobre o interesse em participar da
pesquisa. Então, só depois eles passariam para mim a lista com aqueles que tinham interesse
de participar.
Entrando em contato com as pessoas que tinham interesse, contatamos oito
participantes, mas apenas seis poderiam comparecer num mesmo horário. No dia e horário
57
marcado para o grupo focal somente cinco compareceram. A sexta participante ligou
momentos antes do grupo explicando que não poderia comparecer, mas não deu
justificativa. O grupo focal aconteceu dia 22 de abril de 2009, com as seguintes participantes:
Camila, Adriana, Lúcia, Karla e Zilda
46
, e dois moderadores, eu e Jullyane
47
. Das oito
perguntas que tínhamos planejado no roteiro inicial (apêndice 2) apenas as quatro primeiras
foram discutidas num primeiro momento, sendo necessário encerrar o grupo e pedir para
que retomássemos num segundo momento, se estivessem de acordo.
Retomamos assim o grupo num segundo momento, que aconteceu dia 28 de Abril de
2009 e teve como participantes: Camila, Adriana e Lúcia. As outras duas participantes que
também estavam no grupo anterior não compareceram. Karla, quando contatada, disse estar
a caminho, mas não chegou dentro do prazo de tolerância estabelecido e nem após. o
telefone de Zilda constava como desligado durante as tentativas de contato. Este grupo
também teve eu e Jullyane como moderadores. Os grupos foram gravados, com a permissão
dos pesquisados após assinarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
48
, em dois
gravadores digitais posicionados em locais opostos.
Os encontros aconteceram em espaços diferentes. O primeiro aconteceu no auditório
da instituição, que é amplo e foi cuidadosamente preparado pela equipe profissional da
instituição para que as pessoas que circulassem na instituição não conseguissem ver as
pessoas que estavam lá, evitando também a desconcentração no grupo ao ficar observando
pessoas entrarem e saírem da instituição a porta de entrada do auditório é de vidro e fica
de frente para a entrada da instituição. Dispomos as cadeiras em roda no centro do auditório
e cada participante sentava no local que escolhesse. o segundo encontro aconteceu na
sala de atendimento psicológico com participantes e moderadores sentados em almofadas
no chão, se distribuindo em roda. Ambos os grupos tiveram duração aproximada de duas
horas e quinze minutos.
O primeiro grupo teve como objetivos a apresentação da pesquisa para as
participantes, favorecer a narrativa de cada uma sobre as trajetórias que percorreram até o
reconhecimento da violência contra seus/suas filhos/as e após o reconhecimento, perguntar
46
Camila, Adriana e cia foram nomes fictícios escolhidos pelas próprias participantes ao final do
segundo grupo. Zilda e Karla foram nomes fictícios escolhidos por mim.
47
Jullyane Brasilino pertence à minha turma no Programa de Pós-Graduação e gentilmente aceitou
meu convite de ajudar-me a conduzir o grupo focal.
48
O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido encontra-se no Apêndice 1.
58
o tempo de frequência de cada uma na instituição e sobre a participão em atividades
interventivas ou não na instituição e/ou em outros espaços.
Após o primeiro grupo, Jullyane sugeriu reformular a ordem das perguntas, que
partiriam de questões mais gerais apara questões mais específicas. Então, o segundo grupo
foi iniciado tendo como foco a discussão mais específica em relação à violência, em seguida
questionando sobre o que seria violência contra a criança e violência doméstica, objetivando
compreender construções atuais acerca dos termos, mudança de concepções através de
intervenções da instituição ou outros locais frequentados pelas participantes bem como se
atribuíam, em qualquer aspecto, importância à instituição desde que passaram a frequentá-
la.
4.3 Procedimentos de análise
A transcrição dos grupos teve início imediatamente após os dias em que
aconteceram, para que trechos e direcionamentos de fala fossem recordados com facilidade.
Para transcrição das falas nós utilizamos certos símbolos, que são uma adaptação ao nosso
interesse do Sistema Jefferson de notação (EDWARDS, 2004) proposto por Gail Jefferson para
análise de conversação, conforme o quadro 1:
A: palavra [palavra
B: [palavra
Colchetes denotam o começo de falas que coincidem
palav-
O sinal de travessão indica que a palavra foi subitamente cortada
A: palavra=
B: =palavra
Os sinais de igualdade mostram que não há pausa discernível entre
dois turnos de fala
(.)
Pausa Simples
((palavra))
Comentários do transceptor
Quadro 1 Adaptação do Sistema Jefferson de notão
Utilizaremos essa adaptação porque o sistema de notação da maneira que
comumente é utilizado nessa perspectiva, principalmente pelos autores Jonathan Potter e
Derek Edwards, compreende a transcrição minuciosa de todos os detalhes da fala. Puchta e
Potter (2004) argumentam sobre a importância desse detalhamento para o estudo das
interações faladas:
Uma variedade de pesquisas sobre conversação leva à conclusão inexorável
que nenhum detalhe da interão pode ser seguramente deixado de lado
como insignificante. Nenhuma faceta da fala, quer seja uma pausa, um
reparo, uma mudança na tonalidade ou volume, a seleção de palavras
59
particulares, o ponto em que um falante se sobrepõe a outro, ou mesmo
um fungado, deve ser assumido como irrelevante para a interação [...] é
assim que a vida real é. Os falantes hesitam, pausam, se repetem e se
corrigem
49
. (pp. 3-4, grifos dos autores).
Julgamos desnecessário para nosso objetivo tanta riqueza de detalhes, pois são alguns
aspectos da interação como o corte súbito de palavras para escolha de outras e as
sobreposições de fala que julgamos importantes de evidenciar. Desse modo, mantivemos
apenas aqueles detalhes da interação que contemplassem os interesses de nossa análise.
Após a transcrição, seguimos com o processo de codificação e análise do material
(POTTER; WETHERELL, 1987). A codificação envolve a leitura minuciosa de todas as
transcrições com o objetivo de afunilar todo o material discursivo disponível a partir das
categorias ou temas que são de interesse da pesquisa. É uma fase pré-analítica em que
separamos todo o material relevante, porém, não é uma etapa única: ocasiões em que as
categorias ficam claras na medida em que as análises vão sendo feitas, implicando num
retorno às codificações e fazendo com que análise e codificação sejam um processo cíclico.
No que diz respeito à análise propriamente dita, afirmamos anteriormente que na
posição teórico-metodológica que compartilhamos não há um modo padrão de se fazer
análise do discurso. Potter e Wetherell (1987) afirmam que ela é feita principalmente de
duas fases intimamente ligadas:
Primeiro, a procura por um padrão nos dados. Esse padrão se dará na
forma de variabilidade: diferenças quer seja no conteúdo ou forma das
explicações, e consistência: a identificação de características compartilhadas
pelas explicações. Em segundo, a preocupação com a função e
consequência. O objetivo teórico básico da análise do discurso é o
argumento de que a fala das pessoas compreendem muitas funções e tem
efeitos variados. A segunda fase da análise consiste em formar hipóteses
sobre essas funções e efeitos e procurar por evidência linguística
50
(p. 168,
grifos dos autores).
49
No original: “A wealth of research on conversation leads to the inexorable conclusion that no detail
of interaction can be safely dismissed as insignificant. No facet of speech, whether it is a pause, a
repair, a change in pitch or volume, the selection of particular words, the point at which one speaker
overlaps another, or even a sniff, should be assumed to be irrelevant to interaction *…+ that’s how
real life is. Speakers hesitate, pause, repeat themselves and correct themselves”.
50
No original: “First, there is the search for pattern in the data. This pattern will be in the form of
both variability: differences in either the content or form of accounts, and consistency: the
identification of features shared by accounts. Second, there is the concern with function and
consequence. The basic theoretical thrust of discourse analysis is the argument that people’s talk
fulfills many functions and has varying effects. The second phase of analysis consists of forming
hypothesis about these functions and effects and searching for the linguistic evidence”.
60
Nesse sentido, em nossa análise teremos por base as afirmações de que o discurso é
orientado à ação, situado e construído (POTTER, 1998, 2004), e consideraremos como focos
para análise a variação na produção de discurso (POTTER; WETHERELL, 1987) e a organização
retórica (BILLIG, 2008).
5. Trajetórias até a instituição
No primeiro encontro, perguntamos às participantes sobre as trajetórias que
percorreram até a chegada na ONG. Elas falaram de eventos que aconteceram antes e a
partir do reconhecimento da violência contra seus/suas filhos/as, principalmente em forma
de narrativas.
Todas as participantes são das ditas classes populares ou de baixa renda. Estas são as
informações resumidas de cada participante e moderadores/as:
Camila tem 23 anos, chegou à instituição através do encaminhamento da
assistente social do Hospital da Restauração. Seu filho tinha 2 anos na
época. O pai do seu filho, juntamente com a madrasta, tentou matá-lo.
Além da violência contra seu filho, relatou que cinco anos atrás teve sua
filha assassinada pelo “rapaz que eu morava com ele”. Frequenta a
instituição há dois anos.
Karla tem 39 anos, chegou à instituição através Conselho Tutelar. Sua filha
tinha 7 anos na época. Foi encaminhada ao Conselho Tutelar através do
GPCA (Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente) após denunciar seu
marido ao descobrir que ele, que já era suspeito de ter assediado três
crianças do bairro, tinha também assediado sua filha. Frequenta a
instituição há cinco meses.
Adriana tem 35 anos, chegou à instituição através do Conselho Tutelar.
Resolveu denunciar seu marido na GPCA no momento em que sua filha
relatou que “papai tava mexendo comigo”. Sua filha tinha cerca de 4 anos
na época. De lá, foi encaminhada ao Conselho Tutelar, que por sua vez a
encaminhou para a ONG com o objetivo de ter acompanhamento jurídico e
psicossocial Após o caso vir à tona na família, sua sobrinha relatou que ele
também tinha lhe assediado alguns anos atrás. Frequenta a instituição
cinco anos.
Lúcia tem 40 anos, chegou à instituição através da GPCA. Após notar
comportamentos masturbatórios em sua filha na época com 2 anos e se
posicionando contrária à pediatra que disse ser esse um comportamento
normal, procurou ajuda psicológica na Facho (Faculdade de Ciências
Humanas de Olinda). Associou esse comportamento com eventos
posteriores que lhe fizeram ter certeza que sua filha sofria abuso. Resolveu
então procurar o Hospital Agamenon Magalhães por não saber que órgão
procurar para fazer a denúncia. Lá, lhe encaminharam para a GPCA.
Frequenta a instituição há cinco anos.
62
Zilda tem 31 anos, chegou à instituição através da GPCA. Seu filho tinha 4
anos na época. No dia em que seu filho voltou do final de semana que
passou com seu ex-marido, o menino apresentava febre e vômito e ela
resolveu pegar medicamentos para ele no IMIP (Instituto Materno Infantil
de Pernambuco). A partir dos conselhos de uma vizinha, resolveu
aproveitar que estava no hospital e ter uma consulta médica para o
menino. Após a enfermeira mostrar-lhe que a criança foi vítima de
agressões, foi encaminhada para realizar a denúncia contra o ex-marido na
GPCA. Frequenta a instituição a cerca de um ano.
Pedro tem 26 anos, foi estagiário da instituição em questão. Esta foi sua
primeira e última experiência de estágio em psicologia clínica. Suas
vivências nessa época o motivaram a elaborar a pesquisa.
Jullyane tem 26 anos e foi convidada a participar como moderadora.
tendo experiência prévia na moderação de grupos focais, ela afirmou que
essa foi sua primeira experiência com a temática da violência contra a
criança.
A partir dessas breves informações para familiarizar o leitor com a história de cada
participante, nos concentraremos em suas narrativas. Elas não seguiram um padrão ao
relatar suas histórias, e cada uma delas deu ênfase aos aspectos que julgaram relevantes
para que suas histórias fossem compreendidas. Porém, de modo geral existem três
personagens comuns nas narrativas: a participante, seu/sua filho/a e o agressor; e, como
contexto, a situação de descoberta da violência.
5.1 Camila
Sua narrativa inicia com a descrição da violência que seu filho sofreu:
[...] uma tentativa de homicídio que o próprio pai- que eu digo hoje em dia
que ele é o genitor (.) tentou junto com a madrasta (.) tentou matar o
menino. De (.) várias formas. Espancou até chegar o ponto do menino ficar
em coma. [...]
Nesse trecho, ela traz com estranheza a imagem do pai que espancou o filho, dizendo
que foi uma tentativa de homicídio realizada por “o próprio pai” em conjunto com a
madrasta. Tal fato levou Camila a hoje chamá-lo de “genitor”. Há a mudança de identidade
do pai da criança que, em seu relato, tem hoje um papel mais distante, é apenas aquele que
gerou seu filho. Em qualquer narrativa, é comum os personagens possuírem uma identidade
contínua ou coerente ao longo do tempo, porém, pode haver mudanças nessa identidade
para demonstrar um engano em relação ao personagem (GERGEN, 2007a). Ela fala sobre
eventos que justificam sua mudança de opinião em relação a esse pai:
63
[...] eu tinha um trauma pelo caso pela minha menina e depois ficar
com um homem (.) que ele chegou ao ponto de hmm de matar. ((chora))
[...] E ter passado mais uma vez por um tipo de violência que foi a do meu
menino (.) de (.) que o que me revolta mais é que o pai também sabia da
história da minha menina. [...] o que me revolta é que ele sabia que ele tem
feito a mesma coisa, que ele me ameaçou pelo que aconteceu.
Aquele que matou sua filha não era o pai, mas alguém com quem ela morava.
aquele que espancou seu filho, além de ser o pai da criança, conhecia sua história anterior
de violência, fato que no relato da participante parece ter causado maior impacto
“revolta” ele ter agido da mesma forma que o rapaz anterior, que a ameaçou caso ela
tornasse público a violência que cometeu. No discurso da participante, ela constrói a ideia
de que um pai que espanca o próprio filho não cabe num papel de “pai”, e lhe posiciona
51
no
local de “genitor”.
Seu filho foi internado no Hospital da Restauração e passou dois dias em coma após
as severas agressões que sofreu. Camila relata então sua posição na história, dizendo que
“eu tive aquela coragem que quase, acho que quase mulher nenhuma tem” denunciando o
ex-companheiro na delegacia e, no dia seguinte, quando a imprensa foi ao hospital em que
seu filho estava internado, ela deu entrevista e mostrou sua foto. Ela constrói a imagem de
corajosa se opondo a uma imagem implícita da mulher que não toma providências quando
se encontra nesta situação. Diz que essa não é uma tarefa fácil, pois seus familiares o
aceitaram que ela tivesse se pronunciado e tornado pública a violência contra seu filho, não
querendo que ela tivesse dado parte na polícia, e afirma que “só uma mãe mesmo (.) que
passou pelo tanto que eu passei que entende”. Ela objetiva com esse argumento a
aprovação daquilo que relata e a identificação com as demais participantes, pois se encontra
entre pessoas que estão ali porque teriam tomado a mesma decisão que ela. Em nossa
cultura, circula a ideia de que a violência doméstica é algo que deve ficar no âmbito privado
e não vir a público, através dos posicionamentos tomados tanto por aquelas pessoas que
resolvem não se pronunciar como a mulher que não tem coragem de se sobrepor às
ameaças, por exemplo como por pessoas próximas (familiares ou não) que não oferecem o
51
Referimo-nos aqui ao conceito de posicionamento de Harré e van Langenhove (2003), que poderia
ser resumido como o ato de posicionar-se e posicionar a outros em um determinado local:
dominante ou submisso, autorizado ou desautorizado, confiante ou suspeitoso, etc.
64
suporte necessário para que a violência cesse ou possa ser interditada por
pessoas/órgãos/instituições competentes.
Foi a assistente social do hospital em que seu filho ficou internado que lhe
encaminhou para a ONG, para que tivesse a assistência necessária. Seu filho passou a ter,
além do acompanhamento psicológico na instituição, o acompanhamento de um psiquiatra,
de um neurologista e a tomar remédios “para ver se ele se acalmava”. A participante não
fala como seu filho se comportava antes das agressões, ele aparece na narrativa através de
relatos que o descreviam antes e depois do tratamento na instituição. Ela constrói a
imagem de uma criança que ficou com graves sequelas da violência: passou a não falar e
teve que ser ensinada a andar e a comer novamente, “como a gente faz com uma criança
nova”.
Em seguida, ela relata as benesses que a instituição trouxe para a vida de sua criança,
a partir do momento em que ele passou a frequentá-la:
foi quando eu cheguei aqui, foi assim (.) foi b- dolor- doloroso, bastante
(.) aqui na época que a psicóloga era Vanessa
52
(.) ela (.) ela (.) às vezes eu
perguntava ao meu menino o que ela fazia e ele ficava calado. Ele era uma
criança que ficava muito na dele, hoje em dia não, hoje em dia ele brinca,
ele se diverte, ele fala com todo mundo, mas antigamente pra cheg-
próximo a um homem ele não chegava.
Camila organiza seu discurso de um modo que constrói o silêncio como uma
característica do seu filho, e que era assim também durante o processo psicoterápico (frase
grifada). Em sua fala, porém, não fica claro se ele era “uma criança que ficava muito na dele”
a partir do momento em que sofreu violência ou se essa era uma característica que Camila
acredita ser dele desde momentos anteriores. Mas, o mais importante de ser notado é que
ela descreve a criança como tendo sofrido mudanças a partir da intervenção da instituição,
dizendo em outros momentos que hoje ele é “uma criança saudável”, que nem parece que
“sofreu tanto trauma”.
52
Tanto os profissionais que as participantes mencionam, como os/as filhos/as, familiares,
conhecidos/as e ex-companheiros serão referenciados por um nome fictício.
65
5.2 Karla
Diferentemente de Camila, a narrativa de Karla é estruturada através do
estabelecimento de nculos causais (GERGEN, 2007a) entre comportamentos que percebia
em sua filha e a descoberta de que seu marido tinha sido denunciado por assediar uma
criança “da idade da minha filha”. Karla fala que sua filha era acompanhada por uma
psicóloga porque “tem problema, desde os quatro anos ela se masturbava”, e que foi a
partir desse acompanhamento que descobriu que seu marido tinha “de certa forma” lhe
molestado:
Então ele é o principal suspeito, ele assediou minha filha. Segundo ela me
disse ele ofereceu dois reais a ela pra tocar ela que ela não deixou. E
além dela tem mais três crianças. Que se el- uma sobre suspeita de que
ele ainda molestou. Infelizmente é capaz que ele mexeu mesmo.
É interessante notarmos, e vamos marcar ao longo das análises, a apropriação pela
participante de expressões que provavelmente foram aprendidas ao longo das diversas
intervenções (“se masturbava”, “molestou”), expressões essas usadas para descrever o
“problema” que sua filha tinha. Percebemos também, nesse trecho, a coexistência de
termos técnicos e populares em seu relato assediou, molestou, mexeu para descrever um
mesmo evento. Entendemos melhor aqui porque ela acha que sua filha foi molestada “de
certa forma”. Ela separa sua filha, que não chegou a ser tocada fato que ela chama de
“assédio” – das outras meninas que foram molestadas/mexidas.
Em seguida, relata que uma menina que está sob suspeita de ter sido molestada por
seu marido também estaria frequentando a ONG “para fazer tratamento”. Porém, ela se
posiciona de forma diferente de Camila quanto aos resultados de um acompanhamento
psicológico, relatando o andamento do acompanhamento psicológico na ONG para a sua
filha: “E eu tentand- a cinco meses aqui. Ela ainda com problemas, ela ainda bem
assim (.) agitada, né?”; e atribui como causa disso “porque que sente falta dele como pai”.
Em seu discurso, o marido não é reposicionado ou perde o status de pai como fez Camila
a partir do momento que descobriu que ele tinha assediado sua filha.
No grupo focal, bem como em qualquer contexto argumentativo, as participantes
estarão sempre fornecendo relatos para combater ou apoiar argumentos e fatos, sejam eles
implícitos ou explícitos, falando sobre pessoas presentes ou ausentes. Nesse caso, a
66
construção do relato de Karla tem como efeito mostrar que, diferente daquilo que disse
Camila, sua filha ainda tem problemas mesmo sendo acompanhada, e o “pai” continua
sendo “pai” – seja qual for a ideia implícita de pai que ela está apoiando em seu discurso.
A narrativa de Karla desacredita o acompanhamento psicológico que sua filha tinha
anteriormente, devido às masturbações. Ela constrói a psicóloga como alguém que não
soube identificar a origem desse comportamento, enquanto que ela própria conseguiu
identificar ao estabelecer vínculos entre as masturbações e os assédios de seu marido para
com a menina, após a descoberta de que ele teria assediado outra criança:
Ainda falei com a menina (.) ela mesma que começou a contar que ele
assistia filme de sexo com ela. Inclusive quando ela tava assistindo televisão
ela começava a se masturbar eu acho q ela liga uma coisa a outra [...] E eu
sempre procurei ajuda, mas não me lembro porque a psicóloga não
conversava com ela. E eu perguntava à psicóloga, contava e ela “não ela
não fala nada, ela faz desenhar, desenhar” [...] Ela contou pra mim que
houve alguma coisa, ela contou pra mim. Eu sempre perguntava a ela- o
resultado dos exames lá. foi quando (.) veio essa bomba. eu
denunciei.
Ela passa a construir um relato em que se vacina da conveniência (POTTER, 1998) de
afirmar que essa foi uma percepção que partiu apenas dela, mas foi a própria filha quem lhe
relatou, deixando seu discurso verossímil. Traz ainda para o argumento provas objetivas,
concretas “o resultado dos exames está lá” , que servem para assegurar que aconteceu
assédio contra sua filha, se defendendo de acusações implícitas de que o assédio não teria
ocorrido. A partir de sua denúncia na GPCA que foi encaminhada para a ONG.
5.3 Adriana
De todas as participantes, Adriana e Lúcia são as mais antigas a frequentar a
instituição. Notamos que as narrativas de Adriana e Lúcia demonstram maior apropriação de
termos técnicos aprendidos nas diversas intervenções institucionais, além de descrever com
mais detalhes os eventos que contextualizaram a descoberta de que suas filhas sofriam
abuso sexual seja por ter precisado contar a história inúmeras vezes, seja por se expressar
de maneira mais clara.
Ao relatar o caso de sua filha, a participante traz o termo técnico “abuso sexual” para
definir o que aconteceu: “E na época ela tinha quase quatro an- cerca de quatro anos
quando meu esposo abusou ela (.) sexualmente, né?, abuso sexual”. A participante traz o
67
termo “abuso sexual” não para explicar o que aconteceu com sua filha. Ela se apropriou
do termo de tal forma que utiliza esses mesmos termos para descrever como sua filha
contou para ela o que lhe aconteceu e imediatamente retifica sua fala: ela chegou pra mim
e contou ‘mamãe, pai- pai me abusando, meu pai mexendo comigo’. Ela não falou
abuso no caso, lógico, eu tô falando agora (.) mas na época ela falou que ‘papai tava
mexendo comigo’”.
Em relação ao contexto que envolveu esse abuso, Adriana se posiciona em sua
narrativa de modo a deixar claro que quando os eventos aconteceram, ela não tinha como
presenciar:
[...] Eu trabalhava na época e quem ficava com a criança era ele. Ele tinh- eu
largava à noite então ele ficava mais tempo com ela. Então ele ficava
mais tempo com ela em casa, ele e a menina, eu chegava à noite. Então
(.) o que ocorreu, né?, essa situação no período em que ele ficava com ela.
[...]
Notamos um excesso de preocupação em enfatizar que o pai ficava com a filha
porque ela trabalhava, chegava à noite, e que “o que ocorreu” foi em sua ausência. Nesse
momento, tal ênfase poderia passar despercebida e não compreenderíamos bem o objetivo
da participante em estruturar seu argumento dessa forma. Porém, como veremos no
capítulo seis, no segundo encontro ela qualifica as negligências que os pais cometem contra
seus filhos através de categorizações (BILLIG, 2008). Ao estruturar sua narrativa da forma
que fez nesse trecho, ela se defende de acusações implícitas de pessoas ausentes em sua
fala de que ela tenha sido negligente com sua filha ao não presenciar o abuso que sofreu,
posicionando-se como não pertencendo à categoria dos pais que cometeram negligência. A
dinâmica presente nos dois grupos focais realizados nessa pesquisa tornou possível que
compreendêssemos posicionamentos/argumentos/narrativas/relatos/descrições do
primeiro encontro baseados em posicionamentos/argumentos/narrativas/relatos/descrições
do segundo encontro e vice-versa. Essa é uma característica que notamos nos dois
encontros realizados e que serão pontuados ao longo das análises.
Continuando sua narrativa, fala que após sua filha relatar o que o pai tinha feito,
resolveu denunciá-lo na GPCA. A GPCA a encaminhou para o Conselho Tutelar, e de foi
encaminhada para a ONG porque lhe asseguraram que ela teria acompanhamento jurídico e
psicossocial não só para a menina, mas também para ela, que diz ter ficado bastante
68
traumatizada com essa vivência. Descreve então como era o comportamento da sua filha
quando começou o atendimento na instituição:
[...] quando aconteceu o abuso, Sandra ((filha)) não dormia, Sandra gritava,
Sandra chorava, Sandra batia, Sandra não queria chegar perto de homem
nenhum e não queria se aproximar de ninguém do sexo (.) é (.) masculino. E
ela ficou muito traumatizada e eu também porque nunca acreditava que
em casa (.) isso podia acontecer. No meu pensamento, eu pensava que isso
acontecia com qualquer pessoa menos comigo. Então eu também passei
um tempo no atendimento aqui, não foi fácil pra mim, não dormia também,
não dormia, eu passava noites sem dormir. [...]
Adriana traz em sua narrativa argumentos que fazem parte do repertório
institucional ao explicar algumas características dos pais/cuidadores que não percebem a
situação de abuso, no caso, não acreditar que esta é uma situação que pode acontecer na
própria casa, e a crença de que aconteceria com qualquer pessoa menos com ela. Em seu
discurso, diz ter ficado traumatizada por não acreditar que isso aconteceria em sua casa.
Esse, porém, é um fato inconsistente com os relatos que a participante desenvolve no
segundo encontro, em que descreve como ela própria se reconhecia como vítima de
violência por parte de seus pais e irmãos bem como teria sofrido abuso sexual de familiares
próximos. Nesse momento, o objetivo da participante é apresentar-se como alguém que não
poderia perceber que sua filha sofria violência dentro de casa, então, o deixadas de lado
narrativas de eventos de seu passado que demonstrassem que ela de alguma forma deveria
estar atenta ao que acontece em casa.
5.4 Lúcia
No momento em que Lúcia tem a voz no grupo, um evento bastante interessante
acontece. Quando estamos falando sobre determinado assunto, trazemos conceitos e
argumentos que não são necessariamente nossos, mas que fazem parte de um repertório
linguístico que fomos adquirindo ao longo de nossas vidas (POTTER; WETHERELL, 1987).
Porém, dado a dinamicidade de um grupo focal como de qualquer outro grupo de
conversa conceitos/termos/argumentos de outras pessoas podem ser assimilados e
utilizados como repertórios para a construção de nossa fala, que são estes
conceitos/termos/argumentos que passam a fazer parte do jogo discursivo construído
naquele momento. Nesse sentido, Lúcia narra o que aconteceu com sua filha da seguinte
forma:
69
É (.) meu comp- abusou de minha filha (.) antes de dois anos. Ela tinha (.) se
tocava assim (.) se masturbava. Eu tinha procurado a pediatra e ela disse
que é normal- aí entrou na normalidade. Aí só que (.) de noite (.) ela só vivia
nua (.) me chamando ela. Eu disse: “quem lhe deixou nua?”, ela: “foi papai”.
que eu não queria pensar, eu achava assim que (.) que (.) que podia vir
de fora, não de dentro de casa, entende? Aconteceu comigo, eu tinha cinco
anos de idade, não chegou a caso, a caso de (.) de (.) polícia nem nada não
quando eu era pequena, mais ou menos da idade dela, uns três, quatro
anos. Agora foi um vizinho, um senhor. Então eu achava, que podia vir de
fora e por el- meu pensamento, perturbado com isso, eu nunca pensava
que podia ser o pai. Eu, minha preocupação era mais com [Pedro: Gente de
fora] É. E por ela ter ((incompreensível)) e morar numa vila eu ficava
tranquila, né? (.) entre aspas. Mas aquilo me chamava muita atenção.
Ela utiliza termos técnicos para descrever tanto o que aconteceu com sua filha
(“abusava”) quanto para descrever seu comportamento (“se masturbava”). Utiliza o saber
médico como modo de se vacinar de possíveis acusações de que haveria possibilidade de ter
notado que sua filha sofria abuso, utilizando como apoio a legitimidade de uma pessoa
experiente (POTTER, 1998), no caso, a médica que disse ser normal o comportamento
masturbatório. Aproxima sua descrição à elaborada por Karla, que ligou a masturbação da
filha a um possível abuso, estabelecendo vínculos causais em sua narrativa que poderiam
levá-la a essa conclusão. Porém, estrutura sua narrativa de modo a colocar uma
particularidade ausente na narrativa de Karla: não poderia notar o abuso porque achava que
pessoas de fora praticariam abuso utilizando argumentos semelhantes aos de Adriana
uma vez que foi assim que aconteceu em sua infância. E, assim como fez Camila, descreve a
descrença na possibilidade de um pai poder praticar esse ato: eu nunca acreditava que
podia ser o pai”.
Ao prosseguir com sua narrativa, Lúcia diz que notava outros comportamentos
estranhos na criança, tais como querer dar-lhe beijo de língua, chamá-la de marido, via o
marido andando seminu com ela nua no braço e presenciou ele vendo filme pornô na sala
com a criança estando próxima. Porém, diz não ter percebido esses fatos com maior clareza
porque foi na época que tinha entrado em depressão e, apesar de notar tais fatos estranhos,
“não tinha forças” para agir. Fala ainda que tentava sustentar para a filha a imagem de que
seus pais não viviam brigando, evitando sempre conflitos na frente da menina e justifica
porque não se manifestou ao notar essa série de eventos.
Então, relata o momento chave em que decidiu tomar providências:
70
[...] foi quando ela pegou perguntou bem alto, assim: “mamãe, eu posso
chupar a pitoca do meu pai como picolé?eu criei força num sei de onde
peguei disse (.) olhei pra cara dele, ele fechou os olhos (.) eu disse:
“não minha filha. A gente não pode fazer isso não, né? se for um pai
muito feio [...]
A partir desse momento, ela relata que sua filha lhe confirmou que foi seu pai quem
tinha lhe dito que ela poderia fazer isso e vincula outros eventos que poderiam ter relação
com comportamentos abusivos. Por exemplo, fala sobre uma vez em que ao chegar da praia
flagrou a criança alisando o pênis do pai por cima do short enquanto parecia dormir, e que
ele queria que esse comportamento “parecesse normal como pegar num braço, numa
perna”.
Com o relato de confirmação da filha e a relação que a participante estabeleceu com
outros eventos, procurou a irmã para contar o que estava acontecendo e decidiu separar-se
do marido. Tendo se separado do marido sem colocar “no lápis e papel” o que presenciou, o
pai visitava a filha com regularidade e continuou “perturbando o juízo dela”. Então, com o
apoio da pediatra e a certeza de que a menina não estava mentindo, procurou o Hospital
Agamenon Magalhães que lhe levou para a GPCA para realizar a denúncia.
Relata também os percalços que teve que enfrentar por causa de sua mãe que lhe
pediu para retirar a queixa e resolver as coisas de outra forma, porém, o escrivão da
delegacia lhe disse que isto não era possível, e questionou se ela estava contando a verdade.
Ela teve então que relatar que não era mentira sua, mas que não estava encontrando apoio
na família para levar a denúncia adiante. O GPCA então, “pela sua fala”, encaminhou sua
filha para a ONG para ter atendimento jurídico e psicossocial. Ela enfatizou bastante que foi
a partir de sua fala na delegacia que aconteceu o encaminhamento; seu discurso tem como
objetivo mostrar que ela conseguiu levar a denúncia sem apoio familiar.
5.5 Zilda
Zilda chegou ao final da narrativa de Lúcia e não acompanhou os relatos anteriores.
De todas as participantes, ela foi quem narrou de maneira mais breve e com menos detalhes
o seu caso, só fornecendo mais detalhes num momento posterior do encontro.
Em sua narrativa, ela diz que percebia algo estranho em como seu filho se
comportava na época em que descobriu a agressão que o menino sofreu. Separada do pai
71
do menino, ele ou sua atual companheira sempre iam buscar a criança nos finais de semana.
Ela diz que passou a desconfiar de que havia algo errado a partir do momento que o menino
se escondia e não queria ir com o pai:
[...] Mas quando ele chegava em casa, que o menino via a cabeça dele, ele
saía correndo. O menino chorava, o menino se escondia embaixo da cama,
nisso eu ia suspeitando (.) por causa de Elias ((filho)). E ele: bora, Elias,
bora!”. E Elias nem aí, num queria ir com ele mesmo. [...] Aí toda vez que o
menino entrava em casa correndo, eu suspeitava dessa coisa, porque como
é que o menino via ele e corria toda vez? [...] Ele ficava mesmo assim ó, na
parede assim ó, escondido pra ele não pegar. Uma vez ele inventou de subir
a cama (.) o menino (.) pra não querer ir. ele foi, entrou no meu quarto,
pegou o menino de cima da cama, pegou pelo braço e rodou. E ele
chorando, chorando, o menino chorava até a lágrima descer de dor (.)
chorando mesmo. Aí eu fiquei com aquilo encucado na cabeça, né? “Porque
é que ele agiu assim com Elias?” eu fiz: “deve acontecendo alguma
coisa com Elias e Elias não pode falar, eu acho que acontecendo alguma
coisa. Acredito que alguém- ou alguém tá agredindo ele, porque como é que
ele quando vê o pai bota pra chorar e não quer ele?”.
Nesse trecho, Zilda relata o início da percepção de vínculos entre o modo que o
menino se comportava e possíveis agressões que ele estaria sofrendo. A participante
objetiva com esses relatos preparar o ouvinte criando o contexto que envolveu a descoberta
da violência, falando sobre eventos que se tornaram comuns e que a levou a ficar “com
aquilo encucado na cabeça”. Porém, como o pai sempre pedia desculpas ao menino após
esses episódios “ele era o pai e pedia desculpas” , continuava a levar o menino para
passar os finais de semana com ele sob sua aprovação, mas sempre com relutância da
criança em acompanhá-lo.
Ela passou a suspeitar e monitorar por telefonemas o que o menino estava fazendo
durante o tempo que ficava na casa do pai. Diz que em um dos finais de semana
aconteceu um fenômeno atípico. Sempre que ligava para perguntar pelo menino, ele nunca
se encontrava perto para atendê-la; além disso, ele não voltou no domingo como era de
costume e ela resolveu ir buscá-lo. Foi à casa do pai buscá-lo pessoalmente e, após muito
esperar, o menino apareceu “cansado, com febre e vomitando”.
Resolveu ir ao IMIP pegar remédios para o menino e, a partir do conselho da vizinha
de que aproveitasse que estava e consultasse um médico, fez a ficha para que ele fosse
atendido. No consultório, a enfermeira questionou com quem e onde a criança estava, e
mostrou-lhe as marcas roxas e as queimaduras de cigarro no corpo do menino. Após dizer
72
que a criança estava sob tutela do pai no dia anterior, a equipe tomou as providências de
encaminhá-la a GPCA com os atestados das lesões para que denunciasse o ex-marido por
maus tratos. Então, a delegada da GPCA encaminhou Zilda e o filho para a ONG, para que
tivessem acompanhamento jurídico e psicossocial.
6. Falando sobre Violência
Como dito no capítulo anterior, o primeiro encontro teve como foco as narrativas
sobre as trajetórias que as participantes percorreram até a chegada na instituição. Em suas
falas, desenvolveram características dos personagens comuns em suas histórias de violência:
os/as cuidadores/as, a criança/vítima, e o pai/agressor. Porém, também apareceram em seus
relatos breves descrições sobre aquele que agride e teorias do porque ele pratica violência.
No segundo encontro, a discussão foi direcionada para a temática da violência, e tais
descrições foram mais bem desenvolvidas e tomavam parte em suas argumentações
objetivando principalmente situar tanto o agressor como a criança na situação de violência.
Para fins práticos, e objetivando uma melhor compreensão para o leitor, esse capítulo
será dividido em sub-tópicos de acordo com os temas que foram provocados e discutidos no
segundo encontro. A análise dos argumentos das participantes em um dado tema foi
construída de modo a compreender a dinâmica em que aconteceram, seguindo a ordem em
que os discursos foram produzidos. Quando possível, cada sub-tópico compreenderá
também os discursos que fazem parte do tema em questão e que foram produzidas no
primeiro encontro de forma espontânea, ou seja, sem uma pergunta que necessariamente os
provocassem. Dessa forma, será mais fácil situarmos as diferentes posições tomadas por
cada participante na construção de seus argumentos e entender a dinâmica que envolveu os
dois encontros, além de permitir que apontemos contradições, inconsistências e
variabilidades em suas falas.
Tomamos como primeiro tema tipos de violência uma vez que, quando questionadas
sobre o que acreditavam ser violência, os jogos discursivos que aconteceram no grupo diziam
respeito à violência categorizada em tipos ou ilustrada como tal. Em seus argumentos,
utilizaram termos e figuras bastante parecidos com o discurso técnico que prevalece na
literatura nacional sobre violência principalmente violência contra criança que seria
aquele aprendido através da participação ou passagem por instituições diversas e nas
atividades promovidas pela ONG em questão dentro de suas atividades comuns ou
apoiadas/promovidas por esta , materiais de divulgação e meios de comunicação de massa.
74
6.1 Tipos de violência
O segundo encontro começa a partir do questionamento de um dos moderadores
pedindo que as participantes falassem um pouco sobre o que achavam ser violência. A
primeira participante a se pronunciar é Adriana, que diz:
Adriana: Violência é tudo aquilo que seja- tudo aquilo que (.) venha de
encontro à pessoa, né? Tudo aquilo que machuca, que dói (.) que a gente
sente uma agressividade- até um, um próprio (.) você falando verbalmente
até- violência até também da própria verbação, né? Então não precisa ser
violência de você bater (.) mas violência até de você falando verbalmente já
se torna também uma violência. E violência é tudo aquilo que você sabe,
né?, é- é espancar, é você bater, é você tirar (.) sangue de uma pessoa, né?,
entã- de violência sexual, então assim, tod- todo tipo. Matar, também, é
uma violência também. Então pra mim, na minha concepção (.) são tudo
isso, né?, que vem de encontro à vida da gente.
Ela inicia seu discurso trazendo uma definição sintética de violência, “tudo aquilo que
(.) venha de encontro à pessoa”, e, logo em seguida, ilustra sua definição com exemplos que
compreendem diversos atos violentos, trazendo em seu vocabulário termos que circulam na
literatura como tipos de violência, a saber, violência verbal (“verbação”), violência sexual,
violência física. No capitulo dois, discutimos que a literatura costuma dividir a violência
doméstica em tipos, e que é comum categorizá-la através dos termos violência física,
violência psicológica, violência sexual e negligência. Objetivando aumentar os critérios que
envolvem a violência doméstica, o material utilizado nas instituições de atendimento sejam
cartilhas, panfletos ou qualquer material de circulação costuma ter amplas definições de
violência e diferentes caracterizações dos atos que a envolve para que as pessoas possam
identificá-la. A violência da “verbação” que a Adriana desenvolve é comumente incluída na
categoria violência psicológica, porém, a participante pode ter aprendido essa definição
como uma categoria à parte nas intervenções institucionais.
Adriana utiliza uma expressão que faz referência a um estado mental
53
(EDWARDS;
POTTER, 2005), “sente uma agressividade”, para ilustrar que a violência não necessariamente
envolve contato físico. Em seguida, utiliza termos que fazem parecer não ser comum a
violência sem contato físico: “Então não precisa ser violência de você bater (.) mas violência
até de você falando verbalmente se torna também uma violência”. Adriana está
53
Uma vez que abordamos o discurso como uma prática social e não como uma expressão mental,
não nos referiremos a estados mentais como algo pertencente ao “interior privado” dos
participantes, mas, consideraremos, como Edwards (1999), que estados mentais são categorias dos
falantes que têm objetivos específicos no discurso.
75
dialogando com um conceito de violência mais restrito, fazendo contraste entre definições de
violência que poderiam ser estranhas e/ou incomuns e definições mais comuns, que
desenvolve a partir da frase: “E violência é tudo aquilo que você sabe, né?. Por um
momento, aquilo que a participante desenvolve em sua concepção de violência não parece
algo tão sólido como o ato de espancar ou bater, porém, faz referência a um refinamento no
conceito de violência que permite reconhecer e caracterizá-la a partir de outros atos em que
o bater mais comumente associado à violência não necessariamente está presente.
A discussão prossegue com a fala de Camila:
Eu não sei o que falar, mas (.) assim, é um (.) é um, eu não sei nem assim o
que falar (.) porque a- a violência é (.) a par- é uma coisa que a partir do
momento que você ofende (.) um (.) o seu irmão, eu digo assim irmão
porque somos todos filhos de Deus. E, a partir do m- (.) n- não como
Adriana falou, verbalmente, mas de todos os tipos. Como é q- (.) que pra
mim, uma pessoa que é (.) contra, algum tipo de raça, é uma violência. Eu
sou- eu mesmo sou- odeio, pra mim (.) quem é preconceituoso. Quem fala
sobre qualquer tipo de raça, ou qualquer tipo de religião eu não (.) eu chego
nem perto, eu num discuto, eu me retiro logo.
Camila continua numa mesma linha argumentativa iniciada por Adriana, de que
violência envolve outras coisas que não só contato ou dor física, afirmando que violência não
é só verbal, mas de todos os tipos. Introduz novos elementos que caracterizem esses tipos de
violência, como a ofensa e o preconceito. Billig (2008) afirma que uma forma de estender a
essência” de um conceito quando ele não abrange todos os elementos que queremos
argumentar é criar categorias e particularizações. Para o autor, categorizar envolve
particularizar e vice-versa. Nesse caso, o argumento iniciado por Adriana não contemplava
outras características que Camila acreditava que diziam respeito à violência, fazendo com
que ela introduzisse novos termos para que o conceito de violência que passou a ser
desenvolvido e discutido no grupo contemplasse também aquelas características que para
ela são importantes.
É interessante a participante fazer alusão ao termo “irmão”, comum nos grupos
religiosos, seguido da afirmação de que está falando assim “porque somos todos filhos de
Deus”. No grupo anterior, enquanto narrava os fatos que envolveram a descoberta da
violência contra seus filhos, Camila recebeu de Karla a sugestão de que procurasse “uma
ajuda espiritual”, enquanto esta descrevia o desprazer que tinha de viver ultimamente e
como não iria aceitar nem entender a violência que aconteceu contra sua filha e contra seu
filho. Sua resposta dava descrédito à possibilidade de que a igreja a fizesse esquecer e
76
superar esses fatos. Camila procura então mudar uma provável imagem de pessoa não
religiosa nesse momento. O que seria uma fala banal é um fato importante de ser pontuado
para mostrar a dinamicidade nos relatos que ocorrem em um grupo focal, em que os
argumentos das participantes sempre estarão se relacionando e interagindo de maneira
complexa em resposta a diversos momentos dos encontros. Camila continua:
Camila: Mas assim=
Pedro: =Então, pra tu até o preconceito também [é violência?
Camila: [É, é (.) Que principalmente tem (.) que são mais assim- são dois
tipos de preconceito que a turma fala muito (.) que é daquele Candomblé (.)
que tem assim- falo assim- no sentido de macumba e pra quem é negro
[Pedro: Uhum] Que (.) que eles falam muito, a hoje em d- a hoje em dia até
quem é o- o homossexualismo, sem- sendo mais (.) minimizado
[Pedro: Uhum] Por causa das leis, mas uhmm (.) apesar que (.) tem- tem
uma lei também que é contra os negros e contra a religião, mas não
adianta. No- que é o que gente mais vê, se chegar numa igreja a-
principalmente a Assembleia ((Assembleia de Deus)) (.) se você chegar lá, e
(.) eles já olham já de uma forma bem diferente (.) eles. E principalmente se,
assim- se sentar (.) uma pessoa- um pai de santo e um pastor, ali- dali vai
rolar discussão [Pedro: Uhum] então cada um- pra mim, é cada um com sua
crença, cada um tem que respeitar [Pedro: Uhum] Então eu acho assim, né?
A minha fala questionando sobre o preconceito, utilizando a expressão “Então, pra tu
até o preconceito também é violência?, é um tipo de construção que parece problematizar a
argumentação de que preconceito seria um tipo de violência, que é acompanhada por uma
fala de Camila tentando justificar sua afirmação. Camila responde falando de tipos de
preconceito que existem, dizendo que o preconceito contra homossexuais estaria sendo
minimizado devido a leis, e que, apesar de haver leis contra o preconceito racial e religioso,
elas não adiantam. A participante parece trazer elementos que lhe são familiares, ao falar da
impossibilidade de reunir numa mesma conversação um pai de santo e um pastor. Continua:
Pedro: Então pra tu violência são...?
Camila: É, é- é tudo (.) não é bater, matar, verbalizar (.) é é tudo tudo
mesmo, tudo tudo tudo=
Jullyane: =Tudo que diz respeito às pessoas, né?, [que você tá falando?
Camila:
Jullyane: Que diz respeito à religião, à ra...
Camila: Exatamente
77
Camila resume o conceito ampliando o que foi trazido anteriormente por Adriana,
“não é bater, matar, verbalizar, mas “tudo mesmo”. Podemos inferir que “tudo mesmo”
são os outros elementos utilizados em seu discurso afim de que contemplassem todas as
características que ela acreditava ser violência. Elementos que são relacionados por uma das
moderadoras, na tentativa de compreender a que ela estaria se referindo. Então, além de
tipificar a violência através de categorizações como fez Adriana, a participante desenvolve
um conceito mais amplo que também engloba tais tipificações.
A discussão é retomada em seguida por Lúcia, que inicia sua fala nomeando e
qualificando um tipo de violência, a psicológica:
Eu acho que uma das piores violências que tem (.) é a psicológica, que não
se tem como provar. É (.) que não deixa marcas, né? [Pedro: Uhum] Que
não se tem que- como provar [...]
A escolha de Lúcia de descrever a violência psicológica pode ser entendida se
voltarmos ao contexto do primeiro encontro, no qual a participante narrava os fatos que
envolveram a descoberta de que sua filha sofria abuso. Ela traz para o argumento que essa é
uma das piores violências que têm porque aprendeu a tipificar dessa forma violência
psicológica os atos cometidos por seu ex-companheiro contra sua filha, pois houve
dificuldade (ou até ausência) de provas físicas/materiais de que tenha acontecido o abuso no
momento da denúncia. Ela utiliza termos que encontramos na literatura sobre violência
doméstica que descrevem a categoria violência psicológica (GUERRA, 2001), no caso, que
não deixa marcas e que é mais difícil de provar que ela traz como “não se tem como
provar.
No discurso das participantes, as marcas físicas constituem um elemento chave para
que suas denúncias sejam reconhecidas como verídicas. Aquelas participantes que não
tinham elementos concretos” para provar que as agressões contra seus/suas filhos/as
aconteceram encontraram maior resistência em algum momento, como podemos notar nos
trechos abaixo de Adriana, Zilda e Lúcia, pertencentes ao primeiro encontro:
Adriana: [...] a juíza não pode fazer nada porque não tinha assim (.) é (.)
provas suficientes, que o laudo deu negativo, porque no IML deu que a
criança (.) tinha não sei quantos dias tinha feito o abuso, mas não foi
rompido então não tinha (.) é (.) provas suficientes encontradas na criança.
Então ele foi absolvido por falta de provas [...]
Zilda: [...] Aí eu peguei e levei o menino no hospital, no Hospital da
Restaurão. Aí chegou lá, quando chegou lá fez um bocado de exame.
78
((incompreensível)) isso aqui não- tem como provar diante da justiça que
realmente aconteceu alguma coisa, só que pegou o raio-X dele e rasgou
[Pedro: Quem rasgou o raio X dele?] O pai dele (.) pegou o raio-X e rasgou. E
aquele raio-X justamente poderia até mostrar à justiça [...]
Lúcia: [...] Vanessa ((psicóloga da filha)) tinha me passado que ela não tinha
falado nada. Ela só (.) tinha os desenhos (.) num tinha- conseguiu falar nada.
Já a médica, pelo que ela me passou, ela até me disse- que ela falou, que
ela disse- que ela disse: “num era pra eu falando isso pra você não, mas
esse homem era pra preso. (pausa longa) Ela disse isso a mim- foi a
única psiloga assim que chegou a dizer alguma coisa assim de- de (pausa
longa) material, né? Entre aspas porque foi psicológica [...]
Habigzang et al. (2005) relatam que os processos jurídicos de abuso sexual infantil
normalmente exigem provas materiais que acabam dificultando a comprovação do abuso”
em muitos casos e desconsideram as outras dimensões que envolvem esse fenômeno. No
caso de Adriana e Lúcia, por exemplo, os atos praticados não envolveram penetração ou
qualquer outro elemento que deixasse marcas físicas que tornasse visível que ocorreu abuso.
Ainda de acordo com os trechos destacados, não o abuso sexual, mas também a violência
física, pode ser difícil de provar em juízo quando as provas materiais foram destruídas, como
no caso de Zilda.
Retomando o discurso anterior de Lúcia, ela segue com o relato eventos de sua
experiência que reforçam seu argumento de que esta seria uma forma de violência mais
difícil de ser provada:
[...] As pessoas não se responsabilizam (.) A Facho ((Faculdade de Ciências
Humanas de Olinda)) mesmo num (.) uma- um (.) minha irmã mesmo até
passou pra mim isso, que ela (.) vive lá, e ela e ela disse que elas- elas fazem
isso mesmo (.) que é muito caso de (.) abuso (.) que vão pra lá e elas não tão
querendo se responsabilizar. Aí eu acho que é mais difícil, a psicológica. E (.)
também (.) eu não sei se é mais difícil de c- de curar, mas é o tipo de
violência que eu acho (.) muito, que a- a- a agressiva, que você deixa
marcas, né?, todo mundo vendo, e você- (.) é uma lesão, e quando você
- (.) quando você- puder se defender u- (.) se puder. Mas a (.) psicológica
não. Que eu acho que não pra se defender não, porque a- o camarada
come o seu juízo mesmo e- e (.) é (.) manipula mesmo as pessoas. [Pedro:
Uhm=] =Difícil até, e nessa direção assim (.) ele cria um vínculo emocional
(.) tão grande que a criança não sabe (.) a pessoa num- num sabe
diferenciar quem é o agr- a (.) que ele é que tá agredindo (.) num sabe
[Pedro: Uhum] Porque (.) é (.) a psicológica é muito difícil.
A participante traz elementos de sua trajetória desde a denúncia, relatando que a
Facho não quis se responsabilizar, pois deu um parecer que não era favorável ao seu caso,
79
fato que relatou no encontro anterior. Lúcia deseja reforçar o caráter de dificuldade que
acredita ser inerente à violência psicológica, que teria uma possibilidade menor de
identificação em comparação com outros tipos de violência, como a violência agressiva”,
que além de deixar marcas, poderia dar chances de defesa. Apresenta como garantia de
veracidade o depoimento da irmã que “vive , indicando sua irmã como alguém que tem
conhecimento do contexto daquela instituição. Potter (1998) chama esse fenômeno de
acreditação de categorias, no qual trazemos para o nosso discurso
pessoas/grupos/categorias que indiquem que aquilo que estamos argumentando deve ser
acreditado como verídico: “*acreditação de categorias é+ a ideia de que certas categorias de
pessoas, em determinados contextos, são tratadas como experientes
54
(p. 172). No caso,
sua irmã que está constantemente naquela instituição supostamente conhece sua realidade.
Discute ainda sobre elementos que coloca como sendo características da violência
psicológica, como a manipulação das pessoas e, por extensão, das crianças, que provocaria
certa confusão uma vez que haveria um “vínculo emocional” entre aquele que “tá
agredindo” e o que sofre a agressão. A descrição de que a violência psicológica pode causar
dependência entre vítima e agressor, bem como o termo vínculo emocional, é encontrada na
literatura (FURNISS, 1993) e pode ter sido aprendida pela participante através das
intervenções. Lúcia traz não a criança como vítima para ilustrar seu exemplo: “ele cria um
vínculo emocional (.) tão grande que a criança não sabe (.) a pessoa num- num sabe
diferenciar. O reparo no discurso da participante para estender que a pessoa e não a
criança não sabe diferenciar que essofrendo agressão, diz respeito a como ela passou a
ver os eventos que envolveram a percepção de que sua filha estava sofrendo abuso após as
intervenções diversas. Lúcia via-se confusa no entendimento dos fatos que aconteciam ao
seu redor e que ela suspeitava ser abuso, mas não tinha certeza e não queria acreditar que
aqueles fatos estavam acontecendo na sua casa. Relatou que seu ex-companheiro conseguia
contornar suas desconfianças e fazê-la acreditar que nada acontecia, fazendo com que
posteriormente a participante também se reconhecesse como vítima de violência através da
manipulação.
No seu relato, há a coexistência de repertórios antigos e repertórios novos para
descrever as consequências de um mesmo evento: “o camarada come seu juízo” e “manipula
54
No original: “la ideia de que ciertas categorías de personas, em determinados contextos, se tratan
como expertas”.
80
as pessoas”. O termo “comer o juízo” é comum na nossa cultura e diz respeito a algo que lhe
faz perder a razão e/ou enlouquecer. Potter (1998) chama repertórios interpretativos, os
conjuntos de termos relacionados sistematicamente que se empregam usualmente com
uma coerência gramatical e estilística, e que usualmente se organizam em torno de uma ou
mais metáforas fundamentais
55
(p. 151). Esse conceito foi primeiramente desenvolvido por
Gilbert e Mulkay (1984) para descrever como os cientistas utilizavam diferentes recursos ou
repertórios para construir versões de mundo diversas. Porém, as pessoas fazem isso
constantemente em suas interações sociais não sendo esse um fenômeno restrito aos
cientistas. Assim, no discurso de Lúcia, se apresentam repertórios que poderíamos chamar
de populares e institucionais. O primeiro diz respeito a termos e metáforas que a
participante dispunha anteriormente e que apresentam coerência gramatical e estilística”
da linguagem popular. o último, diz respeito a termos e metáforas aprendidos através da
frequência à instituição e seguem esse estilo. As instituições fornecem esses repertórios para
seus/suas frequentadores/as através das diferentes intervenções e materiais que dispõem,
tais como as cartilhas explicando o que é violência contra criança, violência doméstica, como
evitá-la, reconhecê-la, etc.
A caracterização que Lúcia faz ao descrever os eventos que tomam parte na violência
psicológica foi utilizada por ela no grupo anterior para relatar os fatos que ocorreram no
abuso de sua filha. Por exemplo, a questão de “que não deixa marcas” foi trazida pela
participante no momento em que narrava como descobriu que sua filha tinha sido abusada
novamente em um dia que seu ex-companheiro tinha ido à sua escola:
[...] Quando foi uma semana depois, eu descobri- ela me mostrou que ela
tinha sido abusada de novo. Que ele levou ela pro banheiro, ela gritando,
chorando e a professora não fez nada. Levou ela pro banheiro e passou o
pênis no- na axila, passou aqui, em todo canto (.) no- no- que não
deixa marcas, por que , quando foi uma semana depois, eu levei ela pro
IML de novo aí não deu nada (.) não deu nada [...]
Tentando confirmar se a participante usava o termo violência psicológica para nomear
aquilo que ela disse, no grupo anterior, ter vivenciado em relação ao abuso de sua filha, eu
questiono:
55
No original: “son conjuntos de términos relacionados sistemáticamente que se suelen emplear
com una coherencia gramatical y estilística, y que se suelen organizar entorno a uma o más
matáforas fundamentales”
81
Pedro: tu- tu tás falando mais uma coisa, tu tás dizendo que a violência
psicológica foi o que (.) tu tás vivenciando, vivenciou (.) e=
Lúcia:que é uma das piores, até o que a minha filha, ela (.) ela sofreu as
duas questões, né? [Jullyane: Uhum] A- a (.) a- a (.) a violência agressiva, a
(.) de apanhar, só que eu não via, nunca- nunca eu via. [Pedro: Uhum] E (.) a
psicológica. Eu não, né? porque (.) eu sem- eu sempre tinha (.) que eu
sempre disse: “se você tocar em mim, eu vou na delegacia” [Pedro: Uhum]
eu acho que ele tinha receio disso. E ela não, ela não tinha consciência
disso então eu acho que é a pior das da- (.) uma das piores formas de
violência, porque violência (.) é ruim, é- é péssimo, eu acho que não devia
existir.
A participante continua qualificando a violência, bem como suas características
correlacionadas, descrevendo outra forma de violência: “agressiva, a de apanhar. Cria assim
uma nova categoria (BILLIG, 2008) para contemplar as suas experiências ao conceito de
violência que está sendo negociado no grupo. Lúcia justifica dizendo que “nunca eu via” a
violência agressiva por que, em seu caso, apesar da participante dizer que sua filha sofria
violência física, não foi constatado no momento em que sua filha foi encaminhada ao IML
que esta tivesse sofrido alguma agressão. Porém, no grupo anterior ela relatou que seu ex-
companheiro agrediu sua filha, utilizando-se da narrativa de um momento em que ele teria,
em sua ausência, puxado os cabelos da filha e batido nela. Além disso, ele teria lhe dito a
seguinte frase no momento em que ela foi tirar a dúvida de sua suspeita: eu bato nela
mesmo e pronto”. No trecho destacado, ela relata um elemento que constrói a imagem de
seu ex-companheiro como alguém agressivo “Eu não, né? *...+ eu sempre disse: se você
tocar em mim, eu vou na delegacia’ para dar maior credibilidade à sua suspeita de que
tenham ocorrido agressões contra sua filha.
Billig (2008) sustenta que, ao argumentarmos, as características essenciais de nossa
retórica estão intimamente relacionadas com a justificação e a crítica. Por exemplo, nesse
trabalho argumentamos em favor de uma abordagem que não fragmente a violência
doméstica e que considere a complexidade dos diversos contextos em que surge, que é
critica um modo de vê-la como fragmentada e tipificada; e, nos justificamos demonstrando
aspectos desfavoráveis a essa fragmentação e tipificação. Dessa forma, qualquer retórica está
situada num contexto que pode tanto ser um contexto social dizendo respeito a dilemas
sociais mais amplos como um contexto imediato, em que as opiniões que estão sendo
justificadas incluem possíveis contra-opiniões que estão sendo criticadas implícita ou
explicitamente. Nesse sentido, a argumentação de Lúcia ao construir a imagem do seu ex-
82
companheiro como agressivo e dizendo que acontecia violência física contra sua filha, mas
ela nunca via, diz respeito à justificação de que não concorda com uma possível imagem que
tem na instituição de alguém que relatou algo que não aconteceu. Imagem que tenta
desconstruir a partir de uma contra-opinião à crítica que não sabemos ser explícita ou
implícita de que ela forneceu um relato inverídico dos fatos que envolveram o
reconhecimento da violência contra sua filha, uma vez que aquilo que alegou não conseguiu
ser “provado”. Assim, seu relato é organizado de forma não só a responder o contexto
imediato do grupo a pergunta o que é violência? , mas também criticar e justificar
contextos anteriores de descrença que ela viveu na instituição.
Percebendo a ausência de uma definição geral de violência no relato da participante,
um dos moderadores do grupo solicita diretamente:
Pedro: E tu tás (.) falando de formas de violência, né? Tu falou da
violência psicológica (.) tu falou da violência, como tu falou, a- agressiva,
né?, de bater. Mas, e violência? O que é violência pra tu?
Lúcia: Como assim (.) *“o que é violência”?
Pedro: [Tenta- (.) Adriana falou um pouco que violência é aquilo que vai de
encontro à pessoa (.) e aí- é- Camila também falou um pouco que violência
é tudo aquilo que, né?, que agride um pouco (.) que agride o outro, e tudo.
E ela até deu exemplos, falou a questão do preconceito, a questão das
religiões. Então pra tu, o que é violência? Se for nesse sentido assim mais (.)
amplo, vamos dizer assim. Tu dizer: “o que é violência pra- pra mim?”
Lúcia: É que (.) eu só quis completar o que Adriana disse eu concordo
plenamente, é o que vai de encontro à pessoa, que (.) machuca. Que
machuca.
Pedro: O que machuca?
Lúcia: É. Que machuca tanto fisicamente como emocionalmente.
Tal questionamento provavelmente confundiu a participante a partir do momento
que o possível desejo do moderador de que o discurso a ser trazido por ela englobasse
violência de uma forma mais ampla pareceu também questionar o conceito de violência que
ela estava argumentando. No momento em que Lúcia trouxe a violência de forma tipificada,
ela englobava também aspectos que falavam de violência de uma forma geral para a
participante, uma vez que era sua vivência da violência, que não foi captada com sucesso
pelo moderador. A intervenção pode ter tolhido a possibilidade do desenvolvimento dos
argumentos sobre violência de Lúcia, que pareceu escolher a identificação com o discurso de
83
Adriana como uma forma de fazer seu discurso entendido/aceito, concordando que
“violência é o que vai de encontro à pessoa” e que machuca tanto fisicamente como
emocionalmente”.
a introdução de um novo termo pela participante que seria o “machucar
emocionalmente” que a violência provoca, de caráter subjetivo e que não deixa marcas
(físicas). A caracterização da violência na fala de Adriana, descrevendo-a como algo que
você sente uma agressividade”, é semelhante ao seu relato por falar de violência de uma
perspectiva subjetiva. Tal subjetividade é ausente no discurso de Camila, que percorreu
outro caminho argumentativo para falar sobre violência. Podemos notar que Adriana e
Camila fizeram referência à violência a partir de atos que podem ser reconhecidos como tal
através de exemplos que ocorrem numa situação hipotética e que não as envolvia
diretamente, enquanto que Lúcia fala a partir de uma referência que lhe é familiar, trazendo
para o discurso um exemplo que foi por ela vivido.
6.2 A violência contra a criança
Neste sub-tópico analisaremos trechos de respostas que foram provocadas a partir do
questionamento do que seria violência contra a criança para as participantes. Logo após a
pergunta, as participantes começam a responder simultaneamente e suas falas se
confundiam. Adriana então delega a voz à Camila, e em seguida um fenômeno interessante
ocorre. Num grupo focal, o/a moderador/a pode utilizar-se do recurso de “fazer eco ao que
está sendo dito
56
com o objetivo de obter mais descrições dos participantes daquilo que
está sendo questionado (PUCHTA; POTTER, 2004). Porém, também aconteceu durante o
grupo da participante que tinha a voz no momento fazer eco a palavras, termos ou trechos
que alguém falou num momento imediatamente anterior seja sobrepondo sua fala ou não
na construção de seu argumento. Abaixo, podemos perceber como minha fala, que dizia
respeito à Adriana delegar a voz à Camila, foi utilizada para construir a resposta da
participante:
Adriana: Fala Camila, vai.
Pedro: Assim é covardia heh
56
O termo original utilizado por Puchta e Potter (2004) é “repeating receipts”, que, numa tradução
literal, seria algo como “repetir o que foi recebido”. Acreditamos que “fazer eco ao que foi dito”
capta melhor em português o sentido original.
84
Camila: Uma grande covardia, é que- como ela mesmo falou, de (.) um
adulto ((incompreensível)) de uma forma ou de outra sabe se defender [...]
Mas uma criança não. E assim, pra quem não tem (.) a (.) um entendimento
(.) um- num for, assim, um amigo de uma criança- até uma criança de dois
anos mesmo se você num- num mostrar que é amigo daquela criança, num
for como (.) como pai ou como mãe (.) porque tanto- ou um ou outro pode
(.) pode, é (.) passar dos limites (.) entre aspas. [Pedro: Ou o pai ou a mãe]
É. E (.) contra a criança é um- um absurdo (.) que eu vejo. É (.) o (.) meu
menino mesmo, ele (.) vocês viram como é que ele é. É uma criança
hiperativa, que isso a médica mesmo (.) falou, da Restaurão ((Hospital da
Restaurão)). Então o modo que e- (.) que eu encontrei, que no passar do
tempo aqui no ((ONG)), que (.) a (.) gritar não vai adiantar, vai assustar.
Então a forma que eu encontrei foi de tirar as coisas que ele mais gosta- que
ele mais gosta. Agora a gente criando uma gata, qualquer coisa eu
digo: olhe, você não vai brincar mais com a gata, você vai ficar no quarto.
e- o- eu boto mais ele de castigo (.) ele. Ou deixo ele não ver Pica-pau.
Agora uma violência contra criança é um (.) absurdo. Eu acho um absurdo
mesmo. [Pedro: Uhum=] =Que a criança não sabe se defender. [Pedro:
Uhum] Pelo menos essa é (.) minha opinião
Camila diz ser covardia a violência contra criança porque um adulto sabe se defender,
mas não uma criança. Portanto, seria absurdo um adulto usar de violência contra uma
criança. Sua fala provavelmente se correlaciona com o relato anterior de Lúcia, que disse
poder se defender das agressões de seu companheiro, mas não sua filha. Para desenvolver a
hipótese de que é absurdo utilizar violência contra uma criança, constrói a imagem de que
tem um filho de difícil trato, através da legitimação de uma pessoa experiente (POTTER,
1998): “É uma criança hiperativa, que a médica mesmo falou”; e, a partir dessa ideia, seu
discurso produz a imagem de si própria como alguém que teria um maior controle,
argumentando que o adulto deve encontrar outros meios de punição que não a violência.
Seu objetivo é demonstrar que mesmo em situações que seriam mais difíceis ter um filho
hiperativo não é justificável utilizar a violência. Mas, relata ter esse sido um novo modo de
lidar com a criança que aprendeu a partir da intervenção institucional em alternativa à
violência que cometia, deixando claro que antes não cometia violência física, e sim violência
psicológica: gritar não vai adiantar. Termina sua fala opondo-se à violência: Agora uma
violência contra criança é um (.) absurdo. Eu acho um absurdo mesmo [...] Que a criança não
sabe se defender.
Outro aspecto relevante de ser pontuado em sua fala é quando diz que tanto o pai
quanto a mãe pode “passar dos limites”. As participantes dessa pesquisa, bem como a
maioria dos/as cuidadores/as que frequentam a instituição, têm em seus casos de violência
doméstica um homem como principal agressor. Porém, na literatura é presente a mãe como
85
a principal praticante de violência contra seus filhos (ARAÚJO, 2002; DELFINO et al., 2005;
MENDONÇA, 2002; SAFFIOTI, 1999; 2007) e as oficinas e diversas intervenções institucionais
alertam para essas violências que podem estar sendo praticadas, mas não serem
reconhecidas como tal devido ao locus privilegiado da mãe como disciplinadora no ambiente
doméstico (MENDONÇA, 2002). Com relação a esse fenômeno, no primeiro encontro Zilda
descreve como sua sogra praticava violência contra seu filho e como a instituição a ajudou
intervindo nessa relação:
À medida em que ele ((pai do menino)) foi morar com a sogra, já me deixou
muito só, né? Porque fim de semana sim ele ficava muito (.) com o filho
dela, que era do outro casamento. ele num fica muito e traz porque ela
não gosta muito do menino. ela fica se sentindo com o menino. O
menino ((incompreensível)) com ela. dona Amanda ((assistente social))
chamou eu e ela aqui, entendeu? E ele. a gente veio, tudinho, ela
conversou com ele e até disse a ele: “se você quiser, você faz uma visita lá.
que ela não pode ficar ofendendo Elias ((filho)) (.) tem certas coisas que
ela não pode dizer. Que, aliás, ela fez assim: “bem empregado o que teu pai
fez contigo, porque ele sabia que ((incompreensível)) tu ia ser, por isso que
ele te queimou e fez tudo o que fez contigo. Quer dizer, tudo aquilo ali
agride ele verbalmente e em vez de melhorar, ele piora.
Nesse trecho, notamos que além de descrever a conduta violenta da sua sogra, ela
traz termos que qualificam como violência seus atos: ofender, agride verbalmente”, que
remetem ao domínio de um repertório sobre eventos que as pessoas praticam e que podem
ser discriminados como violência contra a criança.
Retomamos com a fala de Adriana, sobre o que seria violência contra criança:
Adriana: A violência contra criança, eu penso assim no meu sentido, que (.)
uma pessoa- um adulto que age contra criança é porque sabe que a criança
ela não sabe se defender. Sabe que a criança, ela assim (.) a gente (.) educa
ela pra sempre obedecer os adultos [...] Então quando o adulto ele violenta,
chega a violentar, chega a estuprar, de uma forma de outra ou assim
qualquer tipo de violência, então a criança ali ela é indefesa, né?, uma
criança que ela não pode se defender de encontro a um adulto, lógico, não
tem nem como. Uma criança pra um adulto ela não tem força. Tem foa
nenhuma. Então, por ela ser indefesa, por isso que o agressor age mais
com criança, porque eles não- não sabem como se defender e tudo que ele
mandar fazer a criança obedece. Que a criança, ela está assim, pra obedecer
as ordens dos adultos, não é?, ela está pra obedecer. Tanto da pessoa que
faz bem como da pessoa até que faz mal, que no caso, os agressores, né?
Que principalmente quando os agressor vai, é (.) violentar uma das crianças,
qualquer tipo de forma que ele faz, psicológica, física (.) mental, num sei.
Então ele tenta- impõe alguma coisa pra criança, o medo, né? Ele ó: “se
você não fizer isso, eu vou fazer isso, se você fizer isso, eu vou fazer aquilo”;
ent[ão ele coloca como que, né?
86
Camila: [Ou alguma coisa em troca também
Adriana: Em troca. Tanto o medo como também em troca, né? Diz: eu vou
te dar isso se você fizer isso, se você fizer isso pra mim eu vo-(.) então, tem
essas coisas também, então, por isso que eu acredito assim, que é errado,
né? No meu consentimento, por eu ser evangélica eu não concordo com
esse tipo de violência contra criança [...]
Adriana continua a argumentação anterior de Camila alegando que o adulto usa de
violência contra a criança porque esta seria incapaz de se defender sozinha. Acrescenta a
isso a teoria de que os agressores (pelo contexto parece estar falando especificamente das
agressões sexuais) agem mais frequentemente contra as crianças devido à obediência que
estas dispensam aos adultos. A afirmação de que obediência é complementada com o
discurso de que o adulto também impõe o medo ou oferece alguma coisa em troca. Aqui,
parece estar presente o discurso de uma criança que não tem chances de se defender, pois é
constantemente ameaçada, talvez tentando combater uma impressão de que seria apenas
através da obediência que as crianças se tornariam vítimas de violência, conforme parecia
implícito na sua frase anterior. Diz não concordar com “esse tipo de violência” contra criança,
pois é evangélica. É importante notar que, das três participantes desse grupo, Adriana é a
que traz mais forte o discurso da religião como fundamental em sua vida pessoal. Religião
que “lhe deu forças” para enfrentar a situação de violência contra sua filha e sua sobrinha.
A questão de que o agressor violenta a criança impondo o medo, aproveita sua
incapacidade de se defender ou esta se submete às agressões por obediência, parece ser
marcante para o reconhecimento do abuso como violência. As participantes não
desenvolvem a ideia de que a criança possa consentir com os assédios. Por exemplo, no
primeiro encontro, Karla descrevia que uma das crianças que seu marido “assediou” não teve
seu caso denunciado devido o que aconteceu foi na cama”, ou seja, seu discurso dava a
ideia de que a criança consentiu com o assédio, portanto não poderia efetuar a denúncia. E,
no segundo encontro, Lúcia narra da seguinte forma a experiência que ela e sua irmã tiveram
na infância e que só depois ela veio a aprender que eram abusos:
Lúcia: Até hoje, no meu caso, que foi minha irmã, que era mais velha do que
eu- até o apelido dela era malícia no começo (.) quando ela era
pequenininha, ela é um ano mais velha que eu. Eu disse a mainha (.)
mainha tava conversando, com ela, ela disse: “ó mamãe, aquele velho ali,
aquele (.) o avô de fulano, (.) quando a gente vai pra ele fica fazendo
assim querendo pegar aqui((aponta os seios)). ela disse a ela: “Não (.)
num mais não”. Isso ela conversando com minha mãe, a casa era de
quina, e tinha um bequinho pra essa outra casa que era justamente esse-
87
que tinha esse avô. E ele me chamando, e ele me chamando (.) e foi a forma
de defesa que eu achei foi essa (.) quando minha irmã falou com minha mãe
e eu vi que eu tava sendo agredida, né? Mas, eu ia.
Pedro: Antes tu não sabia que tava sendo [agredida?
Lúcia: [Não, ele me chamava eu ia (.) entendeu? Ele me chamava pra
brincar, né?, pra (.) e me enrolava [Pedro: Uhum] Aí, eu comecei quando ele
tava lá, ele- - mainha disse: é por isso que eu não quero você na casa dele
sem ninguém. foi quando- foi quando ele tava lá, era como se eu tivesse
visto o demônio. Oxe, corria pra casa (.) num queria nem falar com ele,
porque- o filho dele, era muito bom. Ele era legal que só, ele trabalhava na
Socimasa ((rede de supermercados que não existe mais)), tra- trazia
brinquedo pra gente, ficava fazendo brincadeira, as crianças
((incompreensível)). É abuso da inocência.
Nesse trecho, Lúcia coloca vários conceitos em sua narrativa que circulam em nossa
cultura. Em primeiro lugar, o apelido que descreve sua irmã (“malícia”) existe em alguns
discursos sobre as crianças que se envolvem em atos de teor sexual com pessoas mais
velhas. Nesses casos, a responsabilidade não recai sobre o adulto, mas sobre a criança que
deve ter alguma culpa por se envolver naquele tipo de relação nesse caso, ser maliciosa.
Em segundo lugar, que as crianças que se envolvem nesses atos sempre são seduzidas: ela só
ia lá porque a pessoa a chamava para brincar, a “enrolava” e seu filho era muito bom”, trazia
brinquedos para elas; era uma pessoa que abusava de suas inocências. Santos e Dell’agio
(2008) discutem que na literatura as crianças e adultos que se envolvem em “atividades
sexuais” são reconhecidas como vítimas de uma violência no caso, abuso sexual infantil
porque, devido ao período desenvolvimental em que se encontram, não poderiam
compreender tais atividades em sua totalidade e, portanto, não estariam aptas a concordar.
Assim, as situações de abuso envolveriam uma relação de dominação em que a criança não
teria condições de reagir por estar sob domínio daquele que abusa.
Quando questionada no grupo sobre o que achava ser violência contra criança, Lúcia
a definia como “abuso da inocência”, como destacado no trecho abaixo:
A violência contra criança (.) é abusar da (.) da inocência. Acho que tem essa
(.) assim (.) isso que (.) as meninas falaram (.) nu- num tem defesa, num tem
(.) é inocência. Uma criança, ela (.) você bate nela (.) daqui a pouco, ela
esquece. Uma- d- é- as crianças tão arengando, daqui a pouco se esquecem
tão juntas, né? é- ela é tão inocente que ela não vai ficar com aquela
raiva. É (.) a violência contra a criança é isso, é abusar da inocência. Acho
que (.) é assim que eu penso.
A fala de Lúcia concorda com as características desenvolvidas por Camila e Adriana
88
em relação à impossibilidade de defesa de uma criança contra um adulto, acrescentando ao
que foi dito antes por elas, a afirmação de que as crianças esquecem com facilidade as
agressões que lhes são dirigidas, não guardam ressentimentos. No seu discurso, essas
características da criança seriam decorrentes da inocência que é própria delas. Há na fala da
participante um conceito muito presente em nossa sociedade, o de que a infância seria a
época da inocência, ilustrado com um exemplo de como quando duas crianças brigam, elas
logo “se esquecem e tão juntas”.
A ideia da participante de que a criança é inocente, é coerente com os relatos que faz
de sua filha em outros momentos do grupo ao dizer que esta mantém vínculo emocional
com seu pai. Este elemento é exemplificado em um momento em que narra a ambiguidade
emocional que sua filha teve perante o pai em um momento em que ele foi visitá-la. Ela
descreveu que sua filha não queria chegar perto dele naquele momento, mas que em outros
momentos lhe diz que tem saudades do pai. Ela tem como objetivo exemplificar, através da
narrativa de eventos em que sua filha participou, que uma criança seria tão inocente que
manteria laços afetivos com aquele que lhe agrediu. Porém, essa não foi a única ideia
desenvolvida nos encontros sobre a existência de um vínculo emocional entre a criança e
aquele que a agrediu. Pontuamos (p. 65) que Karla fala sobre a sua filha sentir falta como
pai” daquele que a agrediu; e em outro momento do primeiro encontro, Zilda fala que
apesar das agressões que seu filho sofreu, ele sente falta do pai porque gosta muito dele,
como também relata perceber que o pai gosta muito do menino.
A partir da caracterização da criança como inocente, Jullyane explora o relato anterior
de Lúcia em que descrevia que uma criança vítima de violência psicológica não saberia
reconhecer aquele que comete violência como agressor e nem saberia que ele estaria
agredindo (p. 77). Jullyane desenvolve a ideia de que haveria a confusão para a criança, pois
não saberia discernir o que é violência e o que é carinho, uma vez que aquele adulto que a
violenta também é aquele que ela gosta e que ela se sente emocionalmente dependente.
Problematiza para o grupo transformando em questão o dilema da incapacidade de
diferenciação para a criança. Lúcia responde:
Eu acho isso uma covardia tremenda (.) né? Você pensar que- que vai ficar
tudo impune, que vai ficar tudo escondido (.) eu acho que isso é covardia.
Porque você é adulto (.) porque você tem algum problema, eu acho que
você tem que procurar um (.) tratamento e não violentar porque foi (.)
violentado (.) né? Eu acho isso
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Lúcia responde utilizando o argumento levantado inicialmente por Camila, de que a
violência contra criança é “uma covardia tremenda”, porém, num contexto diferente. A
covardia mencionada por Lúcia parece dizer respeito ao fato dos agressores ficarem
impunes” e escondidos” quando cometem seus atos, mencionando a questão de que eles
deveriam procurar “tratamento e não violentar porque foi violentado”, que provavelmente
diz respeito a algumas ideias sobre quem seria o agressor. Além de trazer a ideia
intergeracionalidade da violência, no qual quem violenta hoje foi violentado anteriormente,
fato relatado num momento posterior do segundo encontro e que teremos oportunidade de
discutir.
Em relação ao agressor, no primeiro encontro, algumas teorias sobre o agressor foram
levantadas pelas participantes, a maioria delas caracterizando-os como doentes, conforme
podemos notar nos trechos destacados abaixo:
Karla: [...] Eu não tenho ódio dele. Eu não vejo ele assim- mesmo ele sendo
meu marido eu disse isso pra ele. Que eles são pessoas doentes. (pausa
longa) Tanto moral quanto espiritual, eles são doentes. Porque às vezes a
gente tem que poupar aquela pessoa porque do jeito que foi com ele pode
acontecer com qualquer um de nós, nós num somos livres de nada desse
tipo [...]
Adriana: [...] Mas quando você vai passando um tempo, você vai superando
aquele trauma (.) você nem tem mais- tem hora que você faz assim, que
olha é uma pessoa doente” (.) num é? É uma pessoa doente,
desequilibrada, que tá precisando também de ajuda. [...]
Adriana: [...] A pessoa também diz que- porque ele tem esquizofrenia
[Jullyane: Aham=] Ele é- né?, esquizofrênico. Então hoje ele está internado
no hospital psiquiátrico, mas também é presoem Itamaracá. Então ele se
encontra nesse situação, porque ele era doente que não sabia- era
normal- aí você sabe, age normal, uma pessoa que é descendente de
branco toda- (.) né?, a população se dá bem- benquista, mas pode ser
doente= [Lúcia: =Eu também eu acho que é um doente.] [...]
Karla, que se declarou uma pessoa que segue a doutrina espírita, retrata o agressor
como doente tanto a partir da perspectiva moral quanto espiritual, falando que eles
deveriam ser poupados porque qualquer pessoa pode estar vulnerável a agir daquela forma.
Seu argumento se apoia na crença espírita de que estamos submetidos a influências
espirituais que nos levam a agir de determinada forma caso não estivermos atentos. Sendo
assim, precisaríamos ajudá-los por serem pessoas desequilibradas. Adriana nos dois
trechos destacados, e Lúcia na frase em que concorda com Adriana e no trecho anterior,
trazem o discurso que aquela pessoa que abusa sexualmente de uma criança como um
90
doente”. Este argumento está presente na literatura (DESLANDES, 1994; FURNISS, 1993;
GUERRA, 1998; HABIGZANG et al., 2005; SANTOS; DELL´AGLIO, 2008) que discute sobre as
características psicopatológicas dos agressores, seja caracterizando-os como pedófilos,
afirmando que estes também foram vítimas de violências físicas ou sexuais durante a
infância, ou como tendo praticado o abuso em decorrência de outros fatores que alteram
seus estados mentais”, tais como o uso de álcool ou outras drogas. A partir de meu
conhecimento sobre os temas tratados nas oficinas temáticas na instituição, posso afirmar
que estes são repertórios que as participantes aprenderam ao longo de diferentes
intervenções e que têm como objetivo instruí-las para compreender o porquê” dos abusos
ocorrerem. Além disso, servem para docilizar” possíveis manifestações de vingança ou
tentativas de “justiça com as próprias mãos”, fazendo com que aqueles/as cuidadores/as que
tiveram crianças vítimas de violência acreditem que a justiça tem capacidade de
responsabilizar os agressores apoiados no Estatuto da Criança e do Adolescente, que permite
puni-los.
Camila, após a fala de Lúcia, retoma a questão da capacidade da criança discernir
carinho e violência, abordada por Jullyane, fazendo referência à participação que teve em
atividades promovidas pela atual psicóloga da Instituição, quando ela chamava as mães pra
ficar aqui na sala e conversar um pouco”:
[...] Eu me lembro que ela ((a psicóloga)) falou, assim, q- que a criança, às
vezes fica confusa. Será que gosta, será que não gosta, porque tá batendo (.)
porque aconteceu. A criança também não sabe se aquilo, um exemplo, um
(.) uma criança de quatro, cinco anos, quando é alisada de uma forma
diferente, pra ela aquilo ali sendo uma- um alisado de carinho, mas, pro
adulto não. Tá sendo um ato, e (.) como é que eu posso falar (.) de monstru-
de monstro mesmo. Porque uma crianç- uma criança como meu menino (.)
c- um- um homem (.) que chegar e (.) passar algum tipo de- de (.) uma
violência sexual, mesmo, com a criança (.) tem uma- q- a palavra certa, tem
um tesão com uma criança de quatro, cinco e meses também a- é um
absurdo. a criança n- num- num tem ainda aquela consciência do (.) do
que um alisado com carinho (.) e um alisado com segundas intenções. A
criança o presta atenção nisso, mas el- ela (.) ela fica se perguntando
quando é espancada. Por que?
Nesse trecho, crianças e adultos são contrastados de tal forma a tornar mais
condenável a violência sexual. O adulto tem discernimento, intencionalidade, sabe o que faz,
consegue avaliar a natureza dos seus atos. na criança, na idade exemplificada pela
participante, quatro, cinco anos, essas qualidades estariam ausentes. A criança é retratada
como um ser inocente que, por não ter conhecimento de que aqueles atos seriam
91
carinhos/alisados com segundas intenções”, não poderia se defender ou compreender tal
situação, ficando então confusa”. E essa incapacidade de discernimento é que torna, no
argumento da participante, o adulto um “monstro”, sendo o desejo, o “tesão” deste por uma
criança um “absurdo”, que é semelhante àqueles argumentos discutidos na literatura
(SANTOS; DELL’ AGLIO, 2008).
Diferente dos discursos das outras participantes, Camila atribui desejo nesta relação
entre adulto e criança em suas palavras, tesão e não violência. uma ausência
sistemática de referências ao desejo dos adultos em relação às crianças no discurso das
outras participantes. Neste momento, ela desenvolve argumentos que tornam esse desejo do
adulto pela criança um ato absurdo, cometido por um monstro. Assim, o desejo só foi
mencionado no contexto em que o adulto pôde ser rechaçado e a criança inocentada por
não saber discernir carinho de violência, servindo para qualificar o agressor como alguém
que se aproveita dessa inocência da criança, argumento que também foi desenvolvido por
Lúcia.
Porém, a participante argumenta que a criança tem questionamentos quando é
espancada, percebendo como dois fatos contrastantes os “alisados” e o ato de ser espancada
pela mesma pessoa. Ela continua:
Porque eu- eu tenho a consciência dentro de mim, de que meu menino ele
sempre foi sorridente (.) ele. Como existe a (.) a dúvida, que ele foi abusado
também, é (.) eu vi como é que meu filho tava. Ele adorava o genitor dele.
Ele via de oito em oito dias quando eu podia. Mas ele sempre tava vendo o
genitor, que eu- a única coisa que eu queria do (.) genitor dele era um
acompanhamento, ele de longe, e não a gente junto. Um acompanhamento
que futuramente ele num venha a ser um- um (.) que ele não venha a usar
drogas.
É relevante notar a sua declaração de que havia uma relação de carinho entre seu
filho e seu ex-companheiro: “Ele adorava o genitor dele”. Porém, essa relação não existe
mais. Essa relação de carinho é diferente de como Zilda e Karla relataram num momento
anterior (cápitulo cinco), em que existe carinho mútuo entre pai e filho, ou a filha sente falta
do pai mesmo após os episódios de violência; ou ainda no relato de Lúcia, que afirma que
sua filha disse sentir saudades do pai quando foi questionada, mas que não quis lhe dizer em
outros momentos por razões que desconhece. Camila diz que o genitorvisitava seu filho
com certa frequência, justificando que era porque “a única coisa que eu queria do genitor
dele era um acompanhamento [...] um acompanhamento que futuramente ele não venha
92
*...+ a usar drogas”. No momento seguinte, a participante passa a apresentar um relato sobre
suas relações com pais e adultos de uma forma geral, para justificar a necessidade do
acompanhamento paterno:
Que- na- como eu fui criada de uma forma de (.) é, mulher conversa sexo (.)
com mulher (.) mu- é (.) menina conversa certas coisas com a mãe. Então-
hum (.) eu fui criada de uma forma assim, mas como (.) que no caso da
minha vó, que minha vó ela me criou assim. Mas o meu tio não, meu tio ele
sempre conversava comigo o que era drogas, como ele era po- (.) como ele
era policial ele sempre conversava o que era crack (.) o que era (.) o que era
pó que eu n- n- nem sei como é o nome, o nome, é (.) na delegacia. O que é
maconha. Painho ele sempre ex- sentava comigo e com minha irmã quando
a gente tinha mais ou menos oito, nove, dez anos, explicando o que é uma
doença sexualmente transmissível, que a gente tivesse cuidado, quando a
gente (.) fosse namorar com alguém, que a gente não se entregasse assim a
(.) de supitão, que primeiro a gente (.) parasse pra pensar se aquele rapaz
serv- por falar em meu tio, que eu chamo de pai, ele sempre conversou com
a gente sobre isso. Ele tinha o maior medo, é, que a gente andasse (.) a
gente andasse mais ou menos de sete, oito horas da noite (.) brincando na
rua mesmo, chegasse um homem, puxasse a gente, levasse a pra algum
canto e (.) estruprasse a gente. Minha não, minha tinha aquele certo
medo de, de a gente perder a virgindade. É, pra ela é importante uma
mulher que é, que ficará com a virgindade, mas, meu tio não.
No seu discurso, o tio-pai é posicionado como um homem que pode proteger dos
ataques sexuais e orientar sexualmente as mulheres que estejam sob sua guarda, e este é o
lugar que ela esperava que o genitor de seu filho ocupasse. Camila relata que a
mulher/menina deve conversar certas coisas” com a mãe, enquanto que outras devem ser
conversadas com o pai. É digna de nota a inconsistência existente no discurso da participante
acerca dos pares filha/mãe e filho/pai. No mesmo momento em que diz que “mulher
conversa sexo com mulher, diz que seu tio-pai conversava sobre outros assuntos, ficando
implícito que também sobre sexo, com ela e sua irmã. Ela continua:
E, como eu fui cr- eu ia muito pelassim, eu ia mais por minha avó do que
pelo meu tio. Aí o que eu queria do genitor do- do Otávio era exatamente
isso, que ele desse conselho, com- como era filho homem, então como é
filho homem, eu não vou ter, eu pensava assim, eu não vou ter a (.) a
proximidade, eu não vou ter jeito de f- de falar de uma coisa que eu não sei
o que é. Eu não vou explicar de uma forma que eu não sei o que é. Homem,
é- um pai, um filho, vai ter como- vai ser muito mais fácil. E n- o que eu
queria do genitor dele era isso. E não, não queria pensão, não queria
registro, não queria nada.
Nesse trecho de sua fala a participante ameniza a inconsistência que citamos
anteriormente. Apesar de retratar de maneira positiva o aconselhamento do tio-pai, ela
93
afirma que ia mais por minha avó do que pelo meu tio”. O relato seguinte que fala das
dificuldades em abordar certos temas com seu filho implicitamente justifica as suas
dificuldades em falar certas coisas com seu tio/pai. Nota-se nesse relato a distinção entre os
papeis masculinos e femininos na criação dos filhos. Parece não haver a demanda de carinho
por parte desse genitor, apenas um outro tipo de acompanhamento, que diria respeito à
benesse de seu filho ser homem e dever ser influenciado por um homem também (tal como
ela fora!).
Porém, logo em seguida, há um relato no qual essa ideia de que a mãe não é a pessoa
mais adequada aparece como que subvertida pela instituição e pelo que lá aprendeu:
Pedro: Isso tu diz, quando vocês ainda tavam [juntos, quando vocês...
Camila: [Não, quando a gente, quando eu tive Otávio e com- ele (.) me
abandonou quando eu engravidei (.) ele. E o que eu queria não era o
dinheiro. Eu queria- que dinheiro não importa, o que eu queria era pelo
menos (.) isso. foi quando surgiu aquele- os fatos todinho que eu contei
pra vocês ((fatos contados no primeiro encontro)) (.) e não acreditei. Através
daqui do ((ONG)) que eu aprendi que mulhe- que mãe sim tem que ser
amiga de filho, de filha, que deve se conversar sobre certas coisas q- que no
entendimento da criança, que ela possa entender- como meu menino
mesmo, eu arrumando o guarda-roupa, ele (.) viu, uma camisinha, fez:
mamãe, isso aqui é bola? eu fiz: não. Antigamente eu dizia (.) que era
bola. Antes da gente ter as palestras aqui. Não, isso aqui não é bola, isso
aqui é camisinha, pra botar na pitoquinha. Quando você tiver a idade de
Márcio, que é o rapaz que mora comigo, quando você tiver a idade de
Márcio, pra não pegar dodói.
É uma narrativa de mudança a partir da revelação de uma nova verdade. A instituição
teria trazido uma nova concepção que se estabeleceu de modo impositivo: eu aprendi que
*...+ mãe sim tem que ser amiga de filho”. Essa nova verdade produz um conjunto de novas
práticas, como a ilustrada com o exemplo de educação sexual (serventia e uso da camisinha)
que compreende uma questão que pareceria inadequada para a participante ou que esta se
sentiria inapta para tal numa situação anterior.
Segue-se um discurso em que Camila descreve um conjunto de práticas que seriam
adequadas às novas concepções aprendidas na instituição:
[...] Então, o (.) se uma mãe, se um pai não tem (.) não é amigo, de uma
criança (.) nu- num- vamos supor, um exemplo assim, é (.) uma mulher tem
um filho, e, uma filha, que é mais fácil. Tem uma filha, e o vizinho (.)
abusou. Mas essa mãe o é amiga (.) de sua filha, não passa confiança,
porque tem que ser assim, mãe e amiga. A mãe não passa confiança pra sua
filha, a filha é abusada (.) abusada, abusada, abusada. Quando a mãe vem
descobrir, é tarde demais. A menina possa com alguma doença, pode
94
tá com alg- até gvida mesmo. Como já aconteceu algum- a (.) um fato. E (.)
e a mãe diz: “por que que você não me disse?Provavelmente uma criança,
um adolescente vai dizer: não, você não é minha amiga. Você nunca sentou
e conversou comigo com- c- com certas coisas. [Pedro: Uhum] E (.) tem que
ser assim, a partir de pequenininho. De- eu sempre converso com meu
filho: olhe (.) quando acontecer alguma coisa com você, você me diga.
Pode num ser que eu resolva. Se vovó beliscar você, se vovó bater em você
pode me falar, que deixe que mamãe resolve, mamãe vai sentar e vai
conversar. Como eu fui, essa semana mesmo, eu fui comprar o pão (.) e
assim, é raramente eu deixar meu filho com- com meu esposo (.) é
raramente mesmo. Aí como tava chovendo, eu tive que deixar ele. Aí Otávio
tava pegando a gata, tava brincando de uma forma (.) tava brincando de
uma forma que ele não tava entendendo ainda (.) tal qual sai a gata a
miar. Aí (.) quando eu cheguei, ele tava de castigo. Aí eu perguntei: “por que
você de castigo?” Que o castigo ele tem o cantinho dele como a
Supernanny
57
(.) é (.) tem o cantinho dele lá. ele fez: papai botou. eu
fiz: por que botou? ele ficou calado. Eu disse: “Márcio, porque tu boto-
tu botasse o menino de castigo?Ele: pergunte a ele (.) pergunte a ele o
que foi que ele fez com a- com a gata”. Pou voltei, perguntei: o que foi que
você fez com a gata?Ele fez: ah, tava jogando ela pra cima e pra baixo
[Pedro: Uhum] eu fiz: “não se faz isso com gato. Se- o gato é de alisar,
brincar. Gato não é boneco pra ficar jogando pra cima e pra baixo, que ela
chora”. foi aos poucos que ele tá começando- que é a primeira vez que a
gente criando bicho dentro de casa. ele começando a entender. Eu
num (.) depois que eu casada com Márcio, até nele mesmo, eu fico (.)
explicando a ele (.) pra ele também ser- não ser aquele (.) padrasto. Mas
num- ser primeiramente amigo. eu acho assim, que (.) a mãe,
primeiramente de tudo, tem que ser amiga do filho. Acima de tudo. Amiga,
mãe. Pra criança abrir a- se abrir aber- se abrir pra mãe pra (.) pra qualquer
coisa [Pedro: Uhum] Então pelo menos eu (.) depois daqui do ((ONG)) que
eu tô pensando assim.
Quais os conceitos, normas e valores aprendidos na instituição de acordo com esse
longo relato?
a) a ideia de que mãe deve conversar com seu filho ou filha, criando e
estreitando laços de confiança, com o objetivo de haver maior reciprocidade
na relação e também um melhor conhecimento daquilo que pode estar
ocorrendo ao seu redor. Utiliza como exemplo um caso de abuso em que
essa falta de confiança e amizade pode inibir um cuidado e monitoramento e
ter piores consequências. Em seu relato a participante atribui culpabilidade
ao adulto responsável nesses casos: e a mãe diz: por que que você não me
57
Supernanny é um reality show criado na Inglaterra e que tem como objetivo de ser, para o público,
“uma importante fonte de aprendizado na difícil tarefa de educar crianças”. A versão brasileira deste
programa é exibida pelo Sistema Brasileiro de Televisão, SBT, sendo apresentado pela pedagoga
argentina radicada no Brasil, Cris Poli. (http://www.sbt.com.br/supernanny/oprograma/)
95
disse? Provavelmente uma criança, um adolescente vai dizer: não, você não
é minha amiga. Você nunca sentou e conversou comigo com- c- com certas
coisas”, reforçado em sua crença de que “mãe, primeiramente de tudo, tem
que ser amiga do filho”, objetivando uma situação confortável para que a
criança “se abrir pra mãe pra qualquer coisa”;
b) um cuidado com a criança baseado numa pedagogia que se contrapõe a
formas mais tradicionais de educar e que tem como princípio a educação
sem uso de violência. Utiliza essa nova pedagogia para legitimar formas
alternativas de punição que não utilizam violência física: “Que o castigo ele
já tem já o cantinho dele como a Supernanny (.) é (.) tem o cantinho dele lá”.
Ela se apoia em um discurso psicológico disseminado pelo programa de
televisão sobre como educar corretamente os filhos;
c) a introdução da referência masculina, através da figura de seu atual
companheiro, como alguém que deve ser amigo da criança e “não ser
aquele padrasto”. Aqui fica implícito um combate da participante à provável
teoria de que padrasto não deve se intrometer na vida da criança de sua
atual companheira por não ser seu filho/a ou de ser comum um padrasto
não efetivar laços de amizade com este/a.
Após a fala de Camila, os argumentos acerca da diferença entre carinho e violência
continuam em discussão. Adriana se pronuncia em seguida:
Camila: Eu não sei que (.) as colegas aqui (.) elas tem a (.) elas concordam
comigo.
Pedro: E vocês?
Adriana: Eu acho assim, que carinho não dói, não machuca, não é?, não
deixa nenhuma violência, né? Que eu acredito assim, que carinho é bom, eu
sei que todo mundo gosta. Não é? Tanto adulto como criança, mas não é
pra ser violento. E no caso da minha menina, na época que tav- que tava
sendo julgado (.) o processo, o pai dela dizia muito que fazia carinho, mas
nunca (.) dizia que estava violentando a criança. E (.) da forma que era
violência, é, assim, se ela foi (.) como foi dito, né?, que ela foi abusada (.) e
ela não chegou pra mim dizendo que era carinho, mas ele dizia que fazia
carinho. Mas um carinho é como eu disse, não deixa violência, né?, não dói,
não machuca, não é?, e não deixa marca nenhuma. Muito pelo contrário, é
muito bom, lógico! Quanto mais você faz carinho numa pessoa mais a gente
gosta. Como seres humanos a gente gosta disso, né? É uma necessidade
física. E no caso dele, ele morre dizendo que não teve, que foi carinho o
que fez na criança, e a gente sabe que carinho não é assim. Então, e- (.) eu
não concordo com esses tipos de carinho que os adultos dizem que fazem
96
com a criança e a gente sabe que não é (.) tornam sendo violência, não é?
De qualquer forma é violência e não carinho. Essa é minha opinião.
Logo de início, a participante deixa claro uma diferença entre violência e carinho: o
fato de que o carinho o dói nem deixa marcas. Esse conceito guia a análise que faz do caso
de sua filha, em que há, na fala da participante, um conflito entre a crença de que a sua filha
foi violentada/abusada e a afirmação do pai de que ele dizia que fazia era carinho”. Adriana
faz questão de falar da necessidade humana de carinho, dizendo ser esta “uma necessidade
física”, parecendo querer deixar evidente que não foi de forma alguma carinho o que o pai de
sua filha fez, pois “a gente sabe que carinho não é assim”, rejeitando a possibilidade de que
tenha havido apenas carinho. Existem dois trechos em seu discurso que nos chamam
atenção:
“Mas um carinho é como eu disse, não deixa violência, né?, não dói, não
machuca, não é?, e não deixa marca nenhuma”. O que a participante parece
chamar aqui de carinho, diz respeito exclusivamente à construção que
passou a ficar em voga na discussão: o limite entre o ato de alisar com
carinho” e alisar com segundas intenções”. Sabe-se que em nossa cultura
alguns eventos que teriam um caráter agressivo/violento e/ou que deixam
marcas poderiam ser reconhecidos como sendo formas de carinho criadas
numa relação. Numa relação de amizade entre homens, por exemplo, o
modo como dois amigos se esmurram no braço pode ser, e frequentemente
é, interpretado como uma manifestação desta amizade. Devemos considerar
também relações sexuais em que elementos que podem ser considerados
violentos, naquele contexto tornam-se parte do prazer e do jogo de sedução
dos/as parceiros/as envolvidos/as;
“Então, e- (.) eu não concordo com esses tipos de carinho que os adultos
dizem que fazem com a criança e a gente sabe que não é (.) tornam sendo
violência, não é? De qualquer forma é violência e não carinho”. Aqui a
organização do discurso da participante produz a ideia de que tipos de
carinho que se tornam violência, e termina por tornar indiferenciado aquilo
que ela quer diferenciar, produzindo uma certa ambiguidade que ela, logo
em seguida, procura eliminar ao afirmar que de qualquer forma é violência
e não carinho”.
97
Uma das moderadoras do grupo faz uma intervenção explorando as relações trazidas
por Adriana:
Jullyane: E quando é que deixa de ser carinho pra ser violência, assim... na
sua [opinião?
Adriana: [Quando dói, quando machuca, né? Quando (.) tem alguma reação
contrária, né? Daquilo que (.) por exemplo, se eu fizer carinho assim
((alisando o braço)) não dói e nem deixa marca. Mas a partir do momento
que a pessoa diz que faz carinho (.) né? (.) dando beliscão, cortando,
arranhando, isso pra mim já não é carinho, isso já é no sentido de violência,
né? E no caso dele ((ex-companheiro)) foi o que? Foi com- com o dedo, isso
o dedo (.) é (.) colocando na vagina de uma criança, isso num é carinho. Isso
aí já partindo pra violência, não é? Então no meu entendimento é isso aí.
No meu caso foi isso [Jullyane: Uhum] Ele dizia que fazia carinho, então,
carinho num é assim. Carinho pegar- colocar o dedo no- no- como ela disse,
no pipiu dela, isso não é carinho. Pra mim isso (.) violentando, né?=
[Jullyane: =Uhum=] =Na violência. Então pra mim, eu entendo isso
Podemos notar que a participante mantém o argumento de que o limite entre
carinho e violência estaria na dor física: “Quando dói, quando machuca, né?. o repúdio
de que tenha havido carinho no ato de colocar o dedo na vagina de uma criança, “Isso aí já tá
partindo pra violência, não é?, declaração que é precedida de argumentos referentes a atos
que provocam dor física dando beliscão, cortando, arranhando” para enfatizar
novamente a impossibilidade de que seja de forma alguma carinho. Há ausência no discurso
da participante de referências a “formas de carinho” que sejam violência e não
necessariamente provoquem dor física. Um dos moderadores questiona:
Pedro: E quando é um pouco como (.) é, até Lúcia tava explicando, que é
uma coisa que fica naquele limite, que é um carinho, que também não
machuca. Como é que (.) que você de repente acha que é uma coisa errada?
Que você falou, você disse não com- que com sua filha houve a questão
dele colocar o dedo [Adriana: Exatamente=] =Mas e quando é uma coisa
mais sup- por cima assim, mais superficial, que é uma coisa que [talvez nem
doa, nem machuque
Adriana: [Um alisamento, é (.) um alisamento ou pegando, né? Como diz, o
pega no seio, pega no bumbum. E pra mim é uma forma também de- de
violência, né?, violência ao pudor, né? E você sabe que não deixa marca.
Mesmo que você pegando no seio, no bumbum da criança, ou falando,
ou colocando aum vídeo, né?, pornô, uma revista, isso também é
violência, e não deixa marca nenhuma, isso? Pegar também no órgão
genital da (.) não da criança, mas ele pedir que a criança pegue no órgão
genital deles também, né?, também é violência= [Camila: =Ou mostrar,
né?=] =E mostrar também não deixa marcas, né? Essa não deixa marca- e
existe também uma forma de carinho (.) né? De pegar e fazer com que a
criança pegue no órgão genital, alise (.) né?, beije, cheirar- alguma coisa
assim, eles dizem que são carinho mas, não é. Isso não é carinho. Dessa
98
forma não é carinho. Pra mim não. Não sei a concepção delas duas, mas
carinho não é.
Adriana constrói novos argumentos e traz de forma conceitual, e com apropriação de
um vocabulário técnico “violência ao pudor formas de carinho que seriam violência e
não deixariam marcas, nomeando e descrevendo de maneira quase pedagógica carinhos (ou
pseudo-carinhos) que, em sua opinião, seriam violência. Permanece a ausência no discurso
das participantes de reconhecimento explícito da possibilidade de prazer dessas crianças e
desses adultos nesses atos, ainda que algumas partes do relato pareçam pressupor tal
possibilidade “uma forma de carinho *...+ de pegar e fazer com que a criança pegue no órgão
genital, alise *...+ beije, cheirar.
Lúcia relata em seguida atos que percebeu em sua filha, quando foi lhe fazer carinho:
Eu acho engraçado, porque (.) é (.) uma vez eu tava, depois do (.) Glorinha
eu acho que tinha uns três anos ainda, depois que Karina ((psicóloga)) me
ajudou. Aí eu (.) tava brincando com ela, aí peguei fui mexer assim na
barriguinha dela, né?, fazer cosquinha. ela pegou, levantou a calcinha (.)
e abriu as pernas. eu fiquei passada, né? “Meu Deus, o que é que eu
faço?” Eu disse: “não minha filha, mamãe não vai brincar com você assim
não”. prontamente ela pensou em outras coisas e (.) deixou a calcinha. É
isso que eu falando. Porque (.) ela não tava sabendo (.) e até hoje ela
quando vê o pai, ela corre (.) por alguma coisa que ele fez (incompreensível)
e ela corria, corria e até hoje ela corre pra se esconder. Mas ela parece (.)
isso ela faz principalmente com minha mãe, com minha mãe e com ele,
mas, é (.) ela corria tanto (.) dentro de casa, que ela escorregou e caiu no
chão [...]
A participante não fala explicitamente sobre a existência de ambiguidade ao relatar
que sua filha confundiu o carinho que estava lhe fazendo com a forma como seu ex-
companheiro a manipulava, mas podemos crer que esta ilustração diz respeito a uma
situação em que ela percebeu como pode ser sutil a diferença entre o alisado com carinho”
e o “alisado com segundas intenções”. Através de seu relato, sua filha não foi capaz de
discernir conforme esta é descrita e/ou como ela se comporta que a forma que o pai a
manipulava era violência. No primeiro encontro, Lúcia falou sobre comportamentos que
notou em sua filha e que remetiam a uma incapacidade da sua filha discernir que aquelas
formas de carinho seriam inadequadas, e que culminaram com a certeza de que seu ex-
companheiro a abusava (comentado no capítulo cinco). Neste relato é ainda mais tênue a
capacidade da criança discernir ou não se o modo como está sendo manipulada é algo que
lhe desagrada e que, parafraseando Adriana, não lhe causa uma reação contrária.
Chama atenção a forma como Lúcia diz ter contornado a situação, dizendo-lhe que
99
“mamãe não vai brincar assim com você não. Deste modo, Lúcia pode ter tentado reprimir
aquele comportamento através da forma que organiza seu discurso (BILLIG, 2004) falando
sutilmente da inadequação daquela brincadeira. Reconhece ainda que ela a criança não
sabia o que estava acontecendo quando tais atos ocorriam, reforçando a ideia de “inocência”
da criança, conforme dito anteriormente no grupo.
Ela constrói a imagem de uma filha que teria medo do pai e que “até hoje ela corre
pra se esconder” quando o vê, afirmando que isso se deve ao fato dele ter feito alguma coisa
com a criança. Porém, o desenvolvimento de seu argumento margem ao entendimento
de que esse era um ato corriqueiro, pois a criança também age dessa forma com sua mãe.
Notando essa ambiguidade, eu questiono:
Pedro: Corria [como?
Lúcia: [Corria de ficar-(.) do (.) da cozinha pra (.) da cozinha (.) quando ele
chega ela fica correndo pra se esconder, pra fazer aquela surpresa, sabe?
Mas eu noto que é medo. Porque ela correu de uma tal maneira que você
nem sabe- ela correndo pra se esconder de baixo da cama (.) que tanto é
que ela caiu no chão. Eu disse “venha aq- venha cá, vem (.) venha cá, é seu
pai, venha cá (.) venha cá ver (.) é (.) venha pra . foi que ela que (.) ela
veio toda desesperada que ela n- ela n- num quer chegar perto dele, mas
gosta dele, que ela diz que tem saudade dele mas num diz a mim. Eu disse:
“você tem saudade dele?” Aí ela disse: “tenho. Aí eu: porque você não diz a
mim?” Ela disse que “num sei. *...+
No relato de Lúcia os fatos parecem tomar características diversas e às vezes
contraditórias. Ela acredita que sua filha corre pra se esconder, “pra fazer aquela surpresa”,
mas que ela nota que isso seria medo, argumentando que a forma como ela correu é de
alguém que tinha medo. Notamos também um comportamento que poderia ser inadequado
de sua parte e que seria contraditório: ainda que acredite que a filha tem medo do pai,
insiste para que ela o veja. Há na literatura a percepção de ambiguidade, em alguns casos,
nos sentimentos das crianças com relação àqueles/as pais/mães que cometeram violência,
pois muitas vezes são figuras de referência de afeto, carinho e atenção (FURNISS, 1993; SILVA
et al., 2007). Não cabe aqui fazer inferências sobre o comportamento cotidiano da
participante com sua filha, mas em seu relato ela traz elementos que indicam uma possível
ambiguidade dela própria com a atribuição de limites entre carinho e violência ou de como
agir diante do fato de que aquele/a que lhe fornece carinho e atenção é o mesmo/a que
deve ser evitado/a.
Uma possível relação, que será mais bem explorada posteriormente, diz respeito ao
100
fato de que Lúcia e Adriana relataram e se reconheceram como vítimas de violência sexual
durante a infância. Foram experiências vivenciadas e significadas de maneiras distintas por
elas. Em comum, elas falam que o modo como significaram aqueles eventos que hoje são
nomeados violência sexual influenciou no reconhecimento e/ou ignorância de que suas filhas
estavam sendo vítimas.
6.3 Sobre a violência doméstica
Perceberemos que os relatos das participantes sobre a violência doméstica aqui
discutidos estarão em sua maior parte acompanhados de pequenas narrativas que, no geral,
focalizavam suas experiências pessoais e/ou de seus/suas filhos/as em situações cotidianas.
Nesse sentido, foram produzidos discursos que descrevem situações anteriores de violência
vividas por essas mulheres, geralmente na infância.
A discussão específica sobre violência doméstica começou a partir da minha pergunta
sobre o que elas achavam ser violência doméstica. A primeira participante a responder é
Adriana:
Violência doméstica eu acredito que é negligência. Negligência (.) das
pessoas da casa, a mãe, o pai, quem esao redor da criança (.) eu acho que
é negligência. Quem nunca bate, né? Porque (.) tem mãe que (.) deixa a
criança só, o pai abandona, né?, a criança e vai pra festa, vai pra farra. Deixa
a criança sozinha, a criança mexe no fogão, mexe em eletricidade (.)
muitas vezes acontece essas coisas, e (.) e- muitas vezes pode até acontecer
a mãe dentro de casa.
A participante traz para sua argumentação o termo negligência, comumente utilizado
no vocabulário técnico e recorrente na literatura sobre violência doméstica (AZEVEDO;
GUERRA, 2007; GUERRA, 2001). Na primeira frase grifada: Quem nunca bate, né?”, a
participante faz alusão ao fato de que bater pode ser uma violência doméstica mais comum,
banal, e não lhe lugar de destaque. Como pontuado num momento anterior, Billig (2008)
acredita que quando argumentamos não estamos apenas defendendo uma posição, mas
também estamos combatendo argumentos alternativos, e que isso faz parte do jogo retórico.
Assim, a participante traz a ideia de que o bater é comum, provavelmente se contrapondo ao
discurso institucional e psicológico sobre seus danos e evidenciando que a negligência
merece um lugar de destaque, pois pode ter consequências mais graves.
Em seguida, Adriana traz uma série de exemplos em que os responsáveis poderiam
estar sendo negligentes (segunda frase grifada) e adiciona que a negligência pode acontecer
101
mesmo com um responsável estando presente na casa. A participante afirma que negligência
não implica necessariamente abandono, ideia que começou a desenvolver na frase anterior
“Porque (.) tem mãe que (.) deixa a criança só, o pai abandona, né?. E, a partir daí, cria duas
categorias para estender o conceito de negligência: negligência ausente e negligência
presente. Adriana faz isso a partir do momento que o conceito que ela desenvolve de
negligência não conta de duas situações que ela quer enfatizar, o que leva à criação de
dois particulares, “ausente” e “presente”, e a categorização de cada um através de situações
que os envolvem. Na frase seguinte, Adriana continua seu objetivo de descrever a
negligência:
Porque criança pequena demais, muitas vezes, nós que estamos aqui- isso
aconteceu muito comigo. Estava com a menina dentro de casa, e (.) rápido
assim, ligeiro, um distramento, foi e (.) dedo no (.) né?, na tomada e
levou choque que foi bater longe. Novamente, outra vez (.) também. Com a
gente no pé. Então muitas vezes é negligência por parte da família, que
muitas vezes não ligam, não tão nem aí pela criança. [...]
Na fala anterior, Adriana comentava que há negligências que levariam a criança a ficar
e então, esta poderia envolver-se em acidentes (negligência ausente), e, neste trecho,
continua o argumento iniciado com a frase “muitas vezes pode até acontecer a mãe dentro
de casa”. Aqui, descreve fatos que aconteceriam com o pai/mãe estando em casa
(negligência presente). Após falar sobre diversas situações em que as crianças se envolvem
por negligência dos pais, e como ela tentava estar sempre atenta aos movimentos de sua
filha, relata:
[...] Mas, uma distração, ela se queimou, uma distração (.) ela levou choque,
uma distração ela caiu por cima da mesa. Então, exatamente, isso muitas
vezes acontece, por falta de nós mesmos. E muitas vezes acontece por [eu
- por a gente não tá, né? é (.) às vezes é acidente, [...]
Adriana argumenta sobre a negligência a partir de dois aspectos: os responsáveis
estarem em falta e no caso de um acidente. Assim, a participante consegue ampliar o
conceito de negligência através da categorização de fatos que a envolvem, tendo como
empreendimento se defender de uma possível negligência que tenha cometido e que se
alguma vez foi negligente, foi em casos nos quais era impossível intervir. Ideia
desenvolvida no encontro anterior, em que Adriana enfatizou que a violência que sua filha
sofreu aconteceu sem que ela tivesse possibilidade de intervir (pp. 66-68).
102
Observemos também como a participante repara seu discurso de modo a deixar o
exemplo mais próximo de uma generalidade: “E muitas vezes acontece por eu tá- por a gente
não tá, né?, destacando que este não é um caso particular dela. A participante poderia estar
querendo aproximar as outras participantes da vivência de serem mães com possibilidade de
se distrair e, por isso, acontecer algum acidente com seu/sua filho/a. Por exemplo, no extrato
anterior a participante re-elaborou a frase da seguinte forma: nós que estamos aqui- isso
aconteceu muito comigo, provocando o efeito de proximidade e factualidade,
demonstrando que seus exemplos eram reais e não hipotéticos. Potter (1998) toma o
conceito de posicionamento (footing) descrito por Goffman (1981) para explicar esse
fenômeno:
[Posicionamento] faz referência à gama de relações que falantes e escritores
mantêm com as descrições que comunicam. Por exemplo, as pessoas
podem fazer afirmações próprias ou podem comunicar afirmações alheias;
e quando comunicam afirmações, podem mostrar diversos graus de
distância em relação a o que comunicam
58
. (p. 159)
A fala de Adriana é interrompida por Camila (marcado pelo sinal de [ no final da frase
anterior), que diz:
Camila: [Às- às vezes (.) é a gente, realmente é a gente e às vezes não é.
Mais ou menos, com (.) assim (.) pra mim, é (.) é assim, geração por
gerão.
Pedro: Como assim geração por gerão?
Camila: Assim. O caso de Otávio ((seu filho)) foi o que as testemunha falou,
e chegou no meu ouvido (.) que foi o que o escrivão Quéops ((escrivão da
GPCA)) falou pra mim (.) que Kevin ((ex-marido)) falou assim: “Eu fui criado
na porrada, então vou criar (.) meu filho na porrada”. Isso sem num tiver (.)
limite- aí se você cria seu filho apanhando (.) ele cresce, seu filho (.) dá. E- é-
assim (.) eles acham que essa é a- o modo de educar (.) a criança. “Não, eu
fui educado apanhando, então- e s- sou gente, trabalhando, fazendo
faculdade, tô (.) tô (.) trabalhando no banco, num tô dependendo dos outros
(.) eu- eu sou assim. Então, vou bater no meu filho pro meu filho ser (.) ser
gente, num pra marginal, num pra usar drogas”. Eu acho assim. E é
um modo que passa (.) de geração em geração.
Camila argumenta que a violência doméstica é perpetuada de geração para geração,
exemplificando com o caso de seu ex-marido. Na literatura sobre violência doméstica, o
58
No original: “*…+ hace referencia a la gama de relaciones que hablantes y escritores mantienen com
las descripciones que comunican. Por ejemplos, las personas pueden hacer afirmaciones proprias o
pueden comunicar afirmaciones ajenas; y cuando comunican afirmaciones pueden mostrar diversos
grados de distancia em relación a lo que comunican”.
103
fenômeno que Camila nomeia como sendo a violência que passa de geração por geração”
costuma ser chamado de violência intergeracional. Esta diz respeito a como pais que utilizam
a punição contra seus filhos estariam implicitamente demonstrando que a violência seria
uma forma de resolver os conflitos familiares, desenvolvendo um modelo de relação familiar
em que homens e mulheres por não ter aprendido outros modelos de relação familiar
tendem a reproduzir a história de violência vivida na infância e adolescência (GOMES et al.,
2007).
Porém, é relevante notar que Camila interrompe a fala de Adriana e, ao fazê-lo,
retoma a questão do bater. Sua intervenção pode ser interpretada como uma discordância
da frase de Adriana “Quem nunca bate, né?. Lembremos que na trajetória de vida de
Camila, o bater/espancar é marcante, pois foi praticado contra sua primeira filha que veio a
falecer e contra seu segundo filho. Então Camila não esdescrevendo o que acredita ser
violência doméstica, mas está confrontando a fala de Adriana sobre o bater, na qual esse
aparece como algo banal, e dando-lhe a importância que acredita merecer.
Camila presentifica através do relato que escutou do escrivão um discurso de seu ex-
marido no momento em que estava na delegacia para argumentar sobre como as pessoas
perpetuam a violência de geração por geração. Traz também, em seguida, uma fala genérica
de como as pessoas podem banalizar a violência através da justificativa de que sofreram
violência e hoje “são gente”. A participante está combatendo uma teoria sobre a violência
que poderíamos chamar de popular e recorrente em nossa sociedade sobre o “apanhar para
ser gente”.
A participante continua relatando que a violência passa de geração por geração
porque as pessoas costumam acreditar que o bater tem uma finalidade educativa e
preparatória para a vida futura, em que reproduzem um discurso que poderia ser sintetizado
assim: eu apanhei e hoje sou gente, não dei pra coisa ruim”. Reforça a idéia da
intergeracionalidade da violência exemplificando que seu ex-companheiro passou por esse
tipo de educação e, por isso, irá reproduzi-la:
E, o (.) se o pai (.) o pai (.) na época com certeza ele apanhou (.) do pai dele,
e isso vai- vai passando por geração em geração [...] Se a gente passa coisa
ruim, a gente vai passar também coisa ruim.
Por se tratar de um grupo focal, certas características são inerentes a esse tipo de
interação. Por exemplo, abre espaço para que discursos sejam reformulados e/ou
104
confrontados pelo mesmo participante ou por outros (PUCHTA; POTTER, 2004). Nessa
dinâmica, após a fala de Camila, Adriana não combate o argumento de que a violência
passaria de geração para geração, mas organiza seu argumento para que ele leve à conclusão
de que “depende de cada um”. Ela inicia relatando como aprendeu sobre violência doméstica
na instituição:
Quando participei aqui- de oficinas aqui no ((ONG)), das oficinas. Em uma
das oficinas que a gente participou falava sobre isso, sobre a violência
doméstica. E uma das violências domésticas que muitos falam é de que
crianças, muitas vezes, elas são desobedientes. Quer dizer, a mãe uma
ordem, muitas vezes a criança ela não quer obedecer. E que mães assim-
que ela não sabe parar, conversar com a criança, imediatamente ela vai logo
partindo pra violência. uma das violências que tinha era a do ovo quente
que se colocava muito na boca da criança. E isso é uma violência doméstica
terrível. [...]
A participante não define aqui a violência doméstica, mas relata motivos que podem
justificar a ocorrência de casos de violência se não houver atenção por parte dos pais
(primeira frase grifada). Além disso, fala de modos de praticar a violência contra criança
(segunda frase grifada). Não acreditamos que esse seja um raciocínio errado por não haver
uma construção do tipo “a violência doméstica é..., porém, acreditamos que é esse o modo
que a participante utiliza para argumentar sobre o que acredita ser violência doméstica. Essa
é uma construção que não é ilógica ou inexata, mas é o modo que ela se utiliza para dar
sentido ao mundo (POTTER; WETHERELL, 1987).
É importante destacar o jogo de posicionamentos implícito entre Adriana e Camila ao
longo de todo o processo interativo aqui descrito. Referimo-nos aqui ao conceito de
posicionamento de Harré e van Langenhove (2003), que poderia ser resumido como o ato de
posicionar-se e posicionar a outros em um determinado local: dominante ou submisso,
autorizado ou desautorizado, confiante ou suspeitoso, etc. Tais posições podem ser
especificadas pela referência de como as contribuições de um falante são colocadas em
determinado polo do tema em questão e, às vezes, até mesmo do papel desempenhado por
cada um nessas contribuições. Nesse caso, poderíamos ter o seguinte esquema:
105
Adriana posiciona-se em relação ao bater
como banalidade, o que leva
Camila a destacar o bater como algo que perpetua
a violência doméstica, que por consequência
posiciona Adriana como alguém que perpetua a
violência porque banaliza o ato de bater. Adriana
por sua vez
posiciona-se como alguém que não passa a
violência para sua filha, saindo do local de alguém
que perpetua a violência.
Tais “reposicionamentos” de Adriana podem ser notados a seguir nos trechos
sublinhados em que ela exemplificava algumas práticas de violência contra criança. Nesses
trechos, ela se posiciona contra a utilização da violência para se ensinar uma criança e relata
algumas situações em que ela viveu violência doméstica:
[...] Atirava- botava um ovo lá (.) no fogo, fervia (.) quando o ovo tava
cozido, e a criança fizesse qualquer coisa de trela, alguma coisa de derrubar,
então ela chegava, mandava a criança abrir a boca e jogava o ovo dentro (.)
e mandava a criança fechar a boca. Isso é terrível (.) não é? Como a gente
vai ensinar uma criança dessa forma? Num tem como você ensinar isso, isso
não é forma de castigar uma criança (.) não é? Você tem que disciplinar,
você tem que conversar, mas dessa forma não aceito. E também palmadas
de (.) como também uma das- das oficinas ((ri)) era palmada com tan- com
aquelas colher de pau [Pedro: Uhum=] =Esquentava no fogo e ((barulho de
pancada)) na criança. E tanto assim como na boca, quando dizia palavrão.
Em uma das oficinas a gente viu isso (.) também era uma forma de violência
que- é uma exigência da família. Quer dizer, não tem como passar uma boa
educão. Uma família dessa ela precisa ser acompanhada
psicologicamente, que precisando (.) né? Porque o tem condição de
uma mãe educar uma criança e com alguma coisa quente queimar- queimar
com cigarro, né?, com cigarro vai e queima a criança, né? Então- puxa
cabelo, orelha, isso eu tinha muito quando era na minha infância, mas
jamais eu faço isso na minha criança (.) jamais- eu senti muita violência
quando eu era criança. Até meu olho foi furado, hoje em dia eu dou graças a
Deus por ter visão porque era pra eu ter perdido esse olho. Violência dentro
de- de casa. E hoje em dia eu não faço com minha filha, entendendo? É
de geração em gerão mas depende de você, né? A época que eu tô
vivendo agora eu não vou passar pra minha filha. O que fizeram comigo eu
não vou passar pra ela.
106
Podemos observar que ela descreve formas de se praticar violência doméstica e ao
mesmo tempo se vacina (POTTER, 1998) contra possíveis acusações de que ela pratica algum
desses atos, colocando-se fora do grupo de pessoas que praticariam estas formas de
violência e aproximando-se daquelas que estavam na posição de vítima quando elas
ocorriam. Adriana relata como viveu a violência em sua infância para tornar aquilo que diz
mais factível, o que lhe propriedade para afirmar que “É de geração em geração, mas
depende de você, né? A época que eu tô vivendo agora eu não vou passar pra minha filha. O
que fizeram comigo eu não vou passar pra ela. Posicionando-se, assim, como a pessoa que,
por ter vivenciado atos violentos em sua infância, e saber o quanto se sofre com isso, não
perpetuaria a violência que sofreu. Relata ainda que foi através das oficinas da instituição
que “a gente viu” esses outros exemplos, colocando-se mais próxima das outros
participantes na posição de quem aprendeu que tais formas de educação são errôneas,
utilizando o argumento de que uma família que educa desta forma “precisa ser
acompanhada psicologicamente”.
Para facilitar a análise, dividiremos a continuação do relato de Adriana em duas
partes, sendo a primeira um relato de um diálogo entre ela e sua filha e a segunda em que
desenvolve mais argumentos para fundamentar a afirmação de que não vai passar violência
para sua filha. A primeira:
Assim, de espancar- fui muito espancada- Sandra ((filha)) tava conversando
até comigo sobre isso: “mainha, quando tu era pequena, tu dava trabalho a
minha avó?“ ((risos)) Ela tava conversando comigo, e eu disse pra ela, eu
disse: “olha, às vezes eu dava um pouquinho de trabalho, muitas vezes meus
irmãos que faziam com que eu desse trabalho, né? Assim (.) eles faziam a
briga, meus irmãos faziam a confusão, e me jogavam no meio. nessa
confusão quem apanhava era eu”. Sobrava pro mais fraco, né?, dizem
que a corda quebra no lado mais fraco. Então, eu apanhava muito, eu
disse pra ela que eu levava puxão de cabelo, de orelha, que me admira ela
nunca ter crescido. Eu disse a ela: eu admiro que até hoje ela é desse
tamanhinho, mas era pra desse tamanho, imensa. Mas eu levava muito
puxavão de orelha, meus irmãos batiam- davam no meu rosto, davam nas
minhas costa, na minha perna, em todo canto. Num tinha- num escolhia o
local, onde achava o local eles batiam”. Ela: e assim, hoje em dia você tem
vontade de fazer isso em mim?” Eu disse: “Não. Não porque eu sei que isso
é uma violência, e eu não posso jamais bater. Se eu bater em você dessa
forma que eles me batiam, eu tava até na cadeia. Não posso bater dessa
forma”. ela pegou e falou assim- ela fez: eu acho que a senhora não era
muito coisa boa não, viu?, se você apanhava muito”. Eu digo: não- era
assim, porque seus- seus tios ((rindo)) faziam as coisas e me jogavam na
fogueira”. E ali só sobrava pra mim.
107
Aqui, Adriana relata as violências que sofreu na infância, através de um diálogo que
teve com sua filha. Devemos lembrar que seu discurso não relata sua infância, mas tem
também uma função: sair da posição que Camila lhe colocou. Não estamos aqui duvidando
que tal diálogo tenha acontecido, mas que a escolha de termos e imagens para ilustrá-lo na
situação do grupo focal provavelmente desempenha essa função. Ela levanta a teoria de que
apanhava principalmente por ser o “lado mais fraco” nas confusões em que os irmãos dela se
envolviam e a envolviam também, ficando sempre na condição de vítima das confusões,
nunca de causadora.
Mas é interessante notar como ela também desenvolve argumentos para dizer que
apanhava porque dava trabalho. Isto é evidenciado na fala da filha eu acho que a senhora
não era muito coisa boa não, viu?, se apanhava muito” e no momento em que diz sobrar
sempre para ela porque seus irmãos que lhe “jogavam na fogueira”.
Adriana argumenta implicitamente em favor de que uma criança desobediente (ou
que trabalho) mereça punição. Podemos perceber como esse mesmo modo de
argumentação aparece de forma discreta num discurso anterior da participante (p. 104): “E
uma das violências domésticas que muitos falam é de que crianças, muitas vezes, elas são
desobedientes. Quer dizer, a mãe uma ordem, muitas vezes a criança ela não quer
obedecer.
Parece-nos que Adriana quer articular a ideia de que situações em que a criança é
desobediente e que isso geralmente implica (ou deve implicar) em punição. Mas o
argumento do bater parece não ser o correto para ela, principalmente a partir do momento
em que Camila interveio em seu discurso. O que nos leva a segunda parte de sua fala, que
aqui é iniciado a partir de uma sobreposição de fala com Lúcia:
Lúcia:pau pra comer sabão...
Adriana: Era isso [mesmo e eu apanhava muito
Lúcia: [e pau pra saber que sabão não se come=
Adriana: verdade. E hoje em dia eu não faço aquilo, né?, que a minha
família fazia comigo. Muito pelo contrário. Eu converso com ela quando ela
faz alguma coisa errada, eu digo: “ó minha filha, errado (.) isso não é
certo, vamos sentar pra conversar. E ela vai entendendo, por mais que
você viu- que é até maiorzinha, ela tem até nove anos, né?, agora ela
entendendo tudo. No começo dava um pouco de trabalho, mas como a
gente tem acompanhamento aqui no ((ONG)) (.) na época era doutora
Bianca ((psicóloga)). Então ela me ensinava, olhe faz assim, converse, né?,
108
num vá bater. E com isso a gente vai aprendendo e vai (.) levando, né? E
hoje em dia já não tenho ((ri)) esse trabalho, né?, de passar o que eu passei.
Apesar de que é até como a gente tava conversando. Aí eu disse a ela: “não
se preocupe não porque isso não vai acontecer nunca com você” ((ri)).
Pronto, isso foi o que aconteceu comigo. Então, é uma forma assim de (.)
muitas vezes, é (.) da criança fazer alguma coisa e os pais, não só as mães,
que a gente tá falando primeiramente é nas mães, mas às vezes os próprios
pais também (.) até os próprios irmãos, dentro da própria casa, né?,
também cooperam pra isso, né?, ajudam. Porque- quando faz alguma
coisa na criança e também chega (.) e bate na criança, em vez de
conversar e- e (.) né?, sentar. Então eu acredito que a conversa, também,
ela resolve mais do que bater, né? Bater, eu acredito assim que (.) gera uma
criança violenta, gera uma criança com vários problemas, né?, e mais tarde-
é como ela falou, ela pode se tornar uma criança violenta mesmo, e criar
seus filhos (.) quando casar, tiver seu marido, a tendência é essa, né?, que
ela diz: ó, fizeram isso comigo, eu também vou fazer a mesma coisa”. Então
(.) certas coisas eu até converso com minha filha. Que ela tem nove anos,
mas ela já entende muitas coisa.
Na primeira e segunda frases grifadas, Adriana comenta que não reproduz a violência
que sofreu em sua infância com sua filha, dizendo ter aprendido através da instituição que o
ideal é conversar, chegando a advertir sua filha que nunca irá bater nela. Na terceira frase
grifada, a participante desenvolve que a violência doméstica é praticada por pais, mães e
irmãos/ãs, dizendo que toda essa categoria às vezes bate na criança ao invés de conversar.
Sendo os irmãos/ãs aqueles/as que aprendem com o/a pai/mãe que podem usar da violência
ao invés de sentar pra conversar sempre que houver conflitos.
Na última frase grifada, Adriana compactua em parte com a ideia de Camila sobre a
violência passar de geração para geração, ao falar que bater gera uma criança violenta [...]
com vários problemas”, que “pode se tornar uma criança violenta mesmo”, criando seus
futuros filhos da mesma forma. A participante faz uma paráfrase do discurso de Camila sobre
como uma pessoa que passa essa violência de geração em geração falaria, se aproximando e
concordando implicitamente com o que foi dito por Camila. No encontro anterior, Adriana
desenvolvia ideia semelhante no momento em que relatava que aprendeu através da igreja
que deveria mudar sua forma de pensar para ajudar sua filha, uma vez que os filhos são o
espelho dos pais e refletem seus comportamentos atuando da mesma forma. Eu então
questiono:
Pedro: E tu- (.) é, Camila falou um pouco que é uma coisa que é (.) de
gerão pra geração, tu falou que pode ser, mas também depende muito da
pessoa.
109
Adriana: É, depende de cada um, né?, exatamente, porque se bateram em
mim, eu vou fazer a mesma coisa (.) né? Descontar na minha filha, não.
Assim, meu pensamento é esse, eu jamais- eu não faço isso. A mesma coisa
eu penso- eu passo pra ela. Se você- o que aconteceu com você, jamais
passe para um dia você se casar, tiver seu filho, a sua filha, jamais você
passe. Então, nós também temos que criar nossos filhos também assim.
Falando, conversando, e como ele deve agir- pra falar assim. Que- depois
quando ele tiver maior ((ri)), casar, é com eles mesmo, né? Mas o meu, o
que eu posso fazer agora é agir dessa forma. Aconteceu isso, né?, dentro da
minha família [...]
A participante apresenta-se como alguém que não concorda com o bater e privilegia
a conversa na relação com sua filha. Além disso, ela também fala sobre o bater como algo
que seria descontar na minha filha” o que sofreu. Bater seria descontar, o que é bem
diferente de um bater que tem como propósito educar. Porém, são dignas de nota algumas
frases que aparecem em seu discurso que deixam implícito que ela pratica ou praticou o
bater, como quando ela explica que a psicóloga da instituição interveio e falou para ela que
não era para bater e sim conversar. Se ela não praticasse o bater, seria necessário uma
intervenção por parte da psicóloga dizendo que é necessário conversar e não bater? Seu
discurso parece ficar mais claro nas falas subsequentes, enquanto explicava como a violência
ainda era presente na sua família por parte de seus irmãos que batem em seus filhos. Diz que
eles, ao contrário dela, não mudaram suas concepções em relação ao bater, lançando
inclusive a teoria de que por causa disso, uma de suas sobrinhas é lésbica: “Batia, batia, hoje
em dia reclama que a menina gosta de mulher”; e que outro sobrinho “bebe (.) se droga,
fuma, e aquele negócio todo- briga dentro de casa, quer matar a irmã”.
A partir dos exemplos de seus irmãos que batiam em seus filhos, ela fala sobre os
procedimentos adequados para executar o bater:
*…+ Porque se a gente for bater- mas a gente tem que explicar o porquê se a
gente for bater na criança. Se a gente for- diz: olhe você tá aqui de castigo
porque aconteceu isso, isso, isso”. você tem que explicar, porque senão a
criança ela não entende. E na época, quando assim, tinha acontecido a
violência com a minha menina (.) eu o sabia- eu não conhecia nada, eu
batia nela (.) eu não sabia. Aí depois quando eu soube o que era, porque a
então eu não sabia o que tinha acontecido. Eu cheguei aqui no ((ONG)) por
quê? Eu disse: “ó, eu batia nela porque eu não sabia o que é que ela tava
dizendo. Só fazia bater e não parava pra falar com ela, pra conversar.foi
quando a doutora Bianca explicou como ela (.) que ela num b- quando botar
de castigo você conversa, para- a melhor forma é botar de castigo, sentada
num cantinho ali sozinha, tirar aquilo que ela mais gosta e conversar com
ela. Aí foi isso aí que eu comecei a conversar e até hoje a conversa- até hoje,
dando resultado. Então quando pretendo disciplinar coloca de castigo,
fica ali sentada, ela- [...]
110
A fala de Adriana nesse momento é confusa. Ela relata ao mesmo tempo sobre
castigo (o que não implica necessariamente em punição física) e sobre o bater. Inicia
justificando que o bater é aceitável desde que a criança saiba porque está apanhando. Relata
que batia em sua filha por não saber o que ela falava aqui ela se refere aos relatos que sua
filha fazia de que seu pai a tocava e que após chegar na instituição e saber o que houve
com sua filha é que ocorreram intervenções por parte da psicóloga da instituição sobre como
disciplinar sua filha sem bater, aplicando em seu lugar o castigo seguido de conversa.
Fica aqui claro que Adriana cometia num momento anterior à intervenção
institucional violência contra sua filha. Em seu discurso coexiste um repertório antigo sobre o
bater e um novo aprendido na instituição. Tal coexistência e a inabilidade de transitar entre
eles deixam frágil seu argumento de que a transmissão intergeracional da violência depende
de cada um. A imagem que Adriana começou a pintar de si para o grupo (e acreditamos que
para Camila em especial), de quem nunca tinha cometido violência contra sua filha, nesse
momento não se sustenta mais. A partir daí, Adriana toma um bom tempo do grupo com
relatos diversos em que poderia estar, de certa forma, tirando a atenção do fato de haver
uma contradição em seu discurso.
Notando a inconsistência em seu discurso, que ora argumenta a favor do bater, ora
não, eu questiono sobre a questão da palmada
59
, que em nossa sociedade muitas vezes é
aceita como uma punição leve:
Pedro: E- e tem (.) gente que fala como Camila tava (.) falando, tava
conversando, de que (.) é (.) você tem (.) eu- eu apanhei e não dei pra
marginal, eu apanhei e estou trabalhando”, né? “Eu apanhei e dei pra
gente, então eu acho que isso talvez seja o modo certo”, e tem (.) como tu
falando, que passou por essa mesma coisa, mas que como tu falou, hoje
tá usando droga, [né? Tá em outro caminho.
Adriana: [É, exatamente.
Pedro: Então (.) tem gente que diz u- um pouco assim, que “ah, uma
palmada não faz mal, às vezes bater- (.) uma palmada, é, educa, dá de
59
No Brasil a palmada o é proibida, apesar de haver campanhas que buscam a extinção de sua
prática, como a “Campanha Nacional Não Bata, Eduque” que, ironicamente, contou com a presença
de Xuxa Meneghel no lançamento da campanha em 15/06/2007
(http://www.naobataeduque.org.br/). Xuxa é conhecida como alguém que visivelmente empurrava
as crianças e/ou alterava facilmente sua voz no trato com elas, além de existirem relatos de que ela
também aplicava beliscões nas crianças que frequentavam seu programa Clube da Criança, na extinta
Rede Manchete de Televisão.
111
levinho, um tapinha” (.) né? Que é uma- essas outras formas que diz:
ah, mas éum tapa, não vai fazer nada”. Talvez não seja só, como se diz,
um bater pra espancar, mas um tapinha (.) leve, né? Tem gente que diz isso.
[Porque...
Adriana: [Tem um ditado aqui que diz assim, né? Quem bate não se lembra,
mas quem- quem- quem (.) quem bateu- quem apanhou, lembra pro resto
da vida, né? Que até hoje eu me lembro! Tá entendendo? Até hoje! Aí pega,
minha menina diz assim: mainha, como é que a senhora se lembra? A
senhora era pequena”. Eu disse a ela que a gente não esquece. Meus irmãos
esquecem, não se lembram que bateram tanto assim em mim. Mas você vê,
não es- entendendo? Não lembra, mas a gente lembra, fica aqui ó
((apontando a cabeça)), gravado. Então também a violência- da mesma
forma já aconteceu isso comigo. Olhe, no passado, ele não é tão antigo não,
muito antigo assim não ((risos)) No tempo, né?, alguns tempos assim.
Alguns tempos- alguns dias atrás, aconteceu isso comigo e até hoje eu
lembro. Então daqui a algum tempo, né?, a gente não sabe, essa tecnologia
muito avançada, né? E eu sei o que é que vai acontecer se eu espancar
muito a minha filha também, eu num sei (.) qué que vai entrar na mente
dela, num é? Então são essas coisas que eu tento fazer de tudo pra (.) num
espancando e sim conversando, o bom é conversar (.) né? Conversando
eu acredito que a gente chega no objetivo, no meu conceito. No caso dela
((aponta Camila)), é de gerão para geração. [...]
Aqui, eu utilizo dois recursos que são comumente utilizados em grupos focais: fazer
eco ao que foi dito e posicionar-se de forma distante daquilo que está sendo dito (PUCHTA;
POTTER, 2004). O recurso de fazer eco tem como objetivo obter mais informações do
mesmo participante ou de outros sobre o tema em questão. Inicio então fazendo eco aos
discursos de Camila e de Adriana sobre como as pessoas que passariam a violência para seus
filhos argumentariam a favor de um comportamento violento. Ecoa também o contraponto
no discurso de Adriana que acrescentou algumas consequências, para aqueles que foram
vítimas de violência, divergentes do eu apanhei e hoje sou gente, não dei pra coisa ruim”.
Depois, lança uma questão iniciada com a construção “tem gente que diz”, que tenta colocar
o moderador numa posição (footing) distante daquilo que vai ser dito posteriormente,
deixando parecer que aquele não é um argumento dele, mas de um coletivo anônimo, como
se ele não fizesse parte daquilo que está sendo dito. Esse recurso é comumente utilizado por
entrevistadores de televisão, que supostamente devem ter um posicionamento neutro
diante dos/as entrevistados/as (PUCHTA; POTTER, 2004; POTTER, 1998). Essa construção
retórica tem como objetivo fazer que as pessoas respondam de forma mais livre, não
parecendo que estão combatendo o moderador/entrevistador, mas um grupo de pessoas
que não está ali.
112
Me utilizando dessa estratégia, tento reconstruir nesse momento o discurso da
palmada como sendo uma forma de educação que não teria maiores danos por ser um
“bater leve” que não conferiria uma punição física severa. Adriana interrompe meus
argumentos e responde lançando mão de um ditado que diz que quem bateu não lembra,
mas quem apanhou lembra pro resto da vida. Em seguida envolve um diálogo que teve com
sua filha sobre como ela não esqueceu as vezes que apanhou e que, na mesma medida, seus
irmãos “não se lembram que batiam tanto assim” nela, para confirmar o ditado que utilizou
como argumento. A participante utiliza as perguntas da sua filha como uma estratégia
interessante de demonstrar que existem diálogos francos entre ela e a filha sobre a violência
que a participante sofreu. Diálogos que teriam caráter educativo, reforçando a imagem que
tenta passar de si como alguém que privilegia a conversa e não bate.
No fim desse trecho Adriana fala que com Camila é de geração para geração”, dando
a entender que continuaria com argumentos que reforçassem sua concepção de que
depende de cada um. Fato que se confirma a partir dos exemplos que ela passou a utilizar
em seguida em que a conversa teria um caráter pedagógico importante para que não seja
necessário bater:
*…+ No caso dela, é de gerão para gerão. E no meu caso foi assim, né- é-
eu tiro, porque assim, exemplo da minha família, né?, do meu irmão. Batia,
não falava- quando eu chegava em casa eu dizia: rapaz, conversa com eles.
“Que nada, quem tem que conversar não, quem manda aqui sou eu! Vai
cuidar da sua casa!” Eu peguei, saía- deixava. “Mande na sua casa, mande
na minha casa não! Na minha casa quem man- eu faço o que eu quero! Se
for- se for possível eu mato”. Eu disse: “você mata, mas também você vai
pro presídio. Não tem outro lugar pra você ir. Ele vai pro cemitério, você vai
pro presídio (.) não tem outro local”. Então ele espancava muito, e a gente
via. Criança com hematoma no rosto, tudinho, e a gente ficava assim ó (.)
sabe? Na época eu não sabia como resolver, lógico, né? Na época a gente
não sabia como dizia, se podia denunciar ou não e ficava muito temeroso.
Uma porque (.) é dentro do nosso próprio lares, né?, da nossa própria
família e a gente fica com receio, com medo (.) né?, do próprio pai, da
própria mãe como é que vai agir conosco. Mas depois, Deus permite que a
gente também passe (.) pra gente ter que (.) denunciar, né? Na época eu
disse a ele: ó, se eu soubesse, eu tinha te denunciado- porque na época eu
era mais jovem (.) eu tinha te denunciado”. E as crianças hoje (.) hoje são-
assim, um tem vinte e a outra tem dezessete (.) mas porém não obedece,
não tem limite. Eles fazem o que querem. [...] Hoje em dia ele se arrepende
muito (.) por bater. Eu converso com ele sobre isso, já conversei uma vez-
falei com ele: do que adiantou você bater e não conversar? Talvez se você
conversasse e não batesse talvez eles não estaria nessas situações em que
hoje (.) não estaria como você está, revoltado”, né? *…+ Aí, mas pelo menos
uma conversa, com a psicóloga pra saber como fazer, porque ele vive com a
113
mão na cabeça e não sabe como vai resolver, porque eles tão ficando
adultos, né? Um é adulto (.) né?, a outra também entrando, vai- vai
entrar na vida adulta e não quer mais obedecer. E é difícil, porque a gente
quer resolver, mas a gente não pode mais [Pedro: Uhum=] =Agora não tem
mais condição. Porque quando é criança é uma coisa, é você falar, eles
obedecem, mas a partir do momento que eles crescem eles num quer mais
obedecer. A não ser que você tenha uma boa educação quando criança, né?
Porque a base é quando eles tão pequenininho assim, né? Feito os nossos
que era tudo pequenininho. Porque depois que cresce, a gente- fica difícil,
né?, pra gente querer colocar as coisas no local, no lugar, e a gente não
consegue mais.
Aqui, Adriana coloca o irmão na posição daquele que não quer mudar uma conduta
violenta e se coloca na posição de alguém que está lhe disciplinando falando das
consequências extremas de possíveis atos violentos que ele venha a praticar contra seus
filhos. O discurso dela não a posiciona no local de uma pessoa hipócrita, que praticaria o
bater, mas que não era tão severo quanto o espancar de seu irmão, mas de alguém que
ainda oscila sobre esses conceitos e práticas e que foi doutrinada sobre os danos de uma
educação violenta. Tais contradições e conflitos existem na maioria das senão todas as
pessoas sobre diversos assuntos e fazem parte de nosso mundo social (POTTER; WETHERELL,
1987; WETHERELL; POTTER, 1992). Não devemos esquecer que Adriana está posicionando-se
como alguém que é contra o bater, pois fala a partir de um lugar específico. Além disso,
nesse momento tenta demonstrar que sua teoria de que depende de cada um” é válida,
uma vez que ela acredita ter rompido com essa intergeracionalidade da violência através da
adoção da conversa em detrimento do bater, conforme podemos observar na primeira parte
grifada.
Nesse relato, a participante argumenta sobre como tentou usar da conversa assim
como faz com sua filha para ensinar que a educação violenta não é aceitável. Fala ainda
como o bater não deu limites para os filhos do seu irmão, combatendo implicitamente uma
possível teoria de que o bater impõe respeito e limites. Coloca seu irmão no lugar de
alguém que seria favorecido por uma intervenção institucional com uma psicóloga para que
ele saiba como agir e resolver essa situação, não tendo uma conduta violenta com seus
filhos; Adriana relata com a propriedade de alguém que já esteve nesse lugar.
Argumenta ainda em favor de uma teoria de que para os filhos dele, que estão na
vida adulta ou entrando nela, seria mais difícil de impor obediência; que isso seria possível se
eles bem como os adultos de uma forma geral tivessem tido uma boa educação quando
114
criança. Parece que ela argumenta em favor de uma ideia de que a infância é um período
crítico que irá marcar as condutas posteriores, condutas que nos adultos seriam mais difíceis
de mudar.
Podemos observar esse fato na segunda parte grifada, no momento em que fala
sobre como será mais cil mudar tal conduta violenta com sua filha e os filhos das demais
participantes, uma vez que ainda estão pequenos. É interessante notar que Adriana afirma
que quando é criança é uma coisa, é você falar, eles obedecem” que conflita com o que
foi afirmado pela participante num momento anterior (p. 104): “Quer dizer, a mãe uma
ordem, muitas vezes a criança ela não quer obedecer. Tal conflito faz parte do jogo retórico
empreendido pela participante. No primeiro momento ela argumentava em favor de
situações em que a criança supostamente mereceria uma punição, mas que não é correto
agir dessa forma. Aqui, esse ponto de vista de que o bater não é necessário foi bastante
defendido pela participante, e ela precisa apenas dizer que as crianças respondem bem a
ordens sem uso de violência, além de estar posicionando-se distante de uma conduta
parecida com a do seu irmão.
Em seguida, Adriana empreende alguns relatos sobre como passa responsabilidades
para sua filha como forma de educação, continuando seu argumento de que a boa educação
deve vir de criança:
*…+ Então a gente tem que ensinar... de criança= *Pedro: =Uhum=] =porque
a partir do momento- quando cresce, eles não querem mais obedecer,
né? O bom é quando assim (.) é quando nessa idade, né? Que entende,
compreende- e com amor, né? Que também o bom é a gente também
brincar com nossos filhos *…+
Aqui seu argumento teve como objetivo continuar a pintar a imagem de uma boa
mãe, que passa educação através do diálogo com sua filha nesse período da infância, que
seria o período crítico para que as crianças compreendessem as coisas através do diálogo e
não pelo uso da violência. Tais argumentos da boa mãe que privilegia a educação continuam
nos relatos seguintes, mas não cabe citá-los aqui.
Devemos lembrar que um grupo focal tem como objetivo principal obter diferentes
posicionamentos sobre determinados tópicos de discussão (PUCHTA; POTTER, 2004). Eu
então direciono a fala para Lúcia, com objetivo de obter também sua opinião, uma vez que
Camila e Adriana já tinham falado sobre o tema e ela não tinha emitido opinião:
115
E- e você, Lúcia? O qué que tu acha, um pouco, do que tava comentando,
essa questão do bater, do não bater, do tapinha, né?, como dizem. Você
concorda com elas, discorda, o que é que você acha?
Lúcia inicia relatando de um modo que a entender que a vivência da violência,
bem como suas consequências, é relativa:
Eu sei que (.) eu preferia apanhar da minha mãe de que (.) uma conversa do
meu pai. Isso eu tenho certeza. Porque a pisa dela doía na hora e eu nem
me lembrava. minha irmã mais velha é traumatizada ((rindo)) [porque
minha mãe procurava os bro e as perna
Camila: [Não, minha filha, hoje-...
Lúcia: Pra que- e a pessoa com raiva, daqui pra que procure as perna
((risos)) num pode bater na cabeça nem em outro local. Eu acho que tem
passado metade da raiva (.) sei o. A gente corria- era muito assim (.) era
(.) limpava, limpava, limpava, né? E a gente (pausa longa) apitava, apitava, aí
meu pai quando dava, ficava aperreado. Trabalhava e se preocupava comigo
(.) por causa do meu jeito (.) e- mas ele tinha- a psicologia dela era bater e
(.) e mesmo assim (.) [Pedro: E- e quando tu diz que=] =num- num- num
fiquei traumatizada ((ri)) por causa disso não.
A participante relativiza o dano causado pela violência no caso, o bater afirmando
que preferia apanhar da mãe do que conversar como o pai; fazendo contraste no seu relato
entre sua irmã mais velha, que teria ficado traumatizada com o bater da mãe, enquanto que
ela não (frases grifadas). Lúcia não nega nem afirma que o apanhar é violento, mas a
impressão de que, para ela, a conversa do pai era muito mais impactante do que apanhar;
não nega que o pai também batia, mas que ele quando dava, ficava aperreado”, fazendo
parecer que essa não era uma prática que lhe agradava.
A partir da relação com as participantes e os jogos discursivos desenvolvidos no
grupo, acredito que, nas frases destacadas, Lúcia estaria argumentando contra os
argumentos desenvolvidos no grupo por Adriana e Camila sobre como é danoso apanhar
quando criança. Porém, a função de seu argumento não é dizer que isso que sofreu não era
violência, mas antes, reforçar que formas de violência que são mais danosas que outras e
que isso depende de como cada um vive essa violência. No seu caso uma conversava entre
ela e seu pai exercia um impacto maior do que apanhar da sua mãe, que tinha como
“psicologia” o bater.
Lúcia não se posiciona contra a violência de sua mãe, relatando que ela tinha cuidado
ao bater, prestando atenção em bater em locais no corpo que eram permitidos, evitando os
116
que poderiam provocar danos: a mãe “procurava os braço e as perna” e não poderia “bater
na cabeça nem em outro local”, pois os possíveis danos de se bater nesses locais fizessem
com que eles fossem evitados. A participante ainda constrói a frase com o objetivo de deixar
claro que o bater de sua mãe não era forte: “*...+ e a pessoa com raiva, daqui pra que procure
as perna ((risos)) num pode bater na cabeça nem em outro local. Eu acho que já tem passado
metade da raiva (.) sei não”. O lugar que a violência do bater tomou no grupo foi a de algo
desagradável como podemos perceber na manobra anterior de Adriana para fazer
diferença entre o bater leve e o espancar e se colocar fora das duas práticas fazendo com
que Lúcia construísse a violência que sofria de sua mãe não como espancamento, mas como
algo mais brando em que quando acontece “já tem passado metade da raiva”.
Abaixo, Lúcia continua a desenvolver os argumentos de que sua mãe batia com
cuidado e que a conversa do seu pai era mais impactante, no momento em que pergunto:
Pedro: E quando tu diz que preferia ela bater do que uma conversa do teu
pai. Como era a conversa do teu pai?
Lúcia: Porque era difícil ele chamar a gente atenção, muito difícil. Porque
tudo que ele pedia a gente a gente fazia, que ele era um pai muito presente.
Apesar da bebida, que ele bebia no final de semana, mas ele levava a gente
pra passear (.) tudinho, e ensinava a gente, mandava a gente ajudar mainha,
tudinho. Mas eu me lemb- eu me recordo que uma vez ele chegou pra mim,
eu sei que ele me chamou atenção, agora eu num lembro o que foi. É por
isso que eu preferia muito mais (.) a- a (.) a pisa dela- (.) que ela com a
sandália havaiana ((rindo)) era- num tem o solado? [Pedro: Uhm] Ela
procurava não bater com o solado, né?, pra num dar aquelas doença. Ela
era com o outro- a outra parte da sandália, e era com sandália havaiana,
num era com fio, com negócio de- de goiabeira, não, era tudo- era havaiana
e pá pá até se cansar ((ri)) e a gente corria e quem ela pegasse na frente,
né? ((rindo)), pros que conseguia sair, tudo bem. Mas eu me lem- fiquei
traumatizada por causa disso não. Então eu ficava ((incompreensível)) com
outra coisa ((rindo)) mas por causa disso, por causa de pisa não [Pedro:
Então aí=] negligência, né? É negligência. A violência doméstica e
também- e assim também de a- (.) né? É justamente a negligência o que eu
sofri, violência.
A participante relata que seu pai era presente “apesar da bebida”, “pintando a
imagem de um pai que era atencioso com ela e sua irmã, e diz como era raro ele chamar a
gente atenção”. Ela não relata momentos em que ele foi violento, mas tem uma lembrança
vaga de quando ele lhe chamou atenção, mas que não se recorda como aconteceu. Em
seguida, relata como era que sua mãe batia nela falando em tom de diversão seu tom era
de riso enquanto relatava e como sua mãe evitava coisas que seriam mais danosas, por
117
exemplo, a sola da sandália “pra num dar aquelas doença”, nem com fio (fio de eletricidade),
nem com vara de goiabeira.
Lúcia repete que não ficou traumatizada “por causa de pisa”, mas por outra coisa, que
ela chama de negligência. Nesse momento ela reforça o argumento que combate o que foi
posto em jogo por Camila e Adriana sobre o bater, e diz que não foi o bater que lhe deixou
traumatizada, mas antes, a negligência. Na literatura (ARAÚJO, 2002; AZEVEDO; GUERRA,
2007; GUERRA, 2001) a negligência é conceituada como uma omissão dos pais ou
responsáveis falham em prover necessidades físicas e emocionais de uma criança ou
adolescente, por exemplo, em alimentar, vestir e educar adequadamente. Aqui, Lúcia não
descreve o que chama de negligência, mas podemos acreditar que ela se refere ao termo
para descrever o comportamento de sua mãe com ela e sua irmã em contraste com o pai que
apesar da bebida” era atencioso.
Potter e Wheterell (1987) acreditam que construímos uma frase/relato/descrição
escolhendo os termos que mais se adequam ao argumento que queremos desenvolver e que
provocam um determinado efeito. Nesse sentido, Lúcia constrói objetivando mostrar que o
que ela viveu como violência doméstica foi negligência e que o apanhar não lhe causou o
mesmo impacto. Lúcia continua:
Mas, com painho num foi não. Agora o que eu sofri com painho foi a
bebida, né?, que fazia mainha sofrer, né? Fazia mais ela sofrer e a gente não
queria ver (.) a mãe da gente- pode ser o que for- e ela é uma mãe boa (.)
(pausa longa) é o jeito dela- ela apanhou muito. Eu sei que ela apanhou dos
irmãos feito ela ((Adriana)) falou. Apanhava na cabeça, né? Que ela
procurou não ser aquilo que ela- (.) apanhou na cabeça, apanhava na
cabeça, apanhava de todo jeito. Que o pai que era muito mesmo de bater (.)
então de s- se apanha. Já (.) eu num sofria assim- a- min- min- meu Deus do
céu, é uma sorte danada que minha violência é mais psicológica ((ri))
mesmo [Pedro: Uhum] Mas graças a Deus eu tive um pai (.) muito presente
e- e- ((incompreensível)) [Pedro: Uhum] Essas violência assim de- de
espancar (.) de apanhar, de- de jogar na- na parede, isso graças a Deus eu
num passei por isso não [...]
No trecho grifado, Lúcia retoma algumas características da violência descritas por
Camila e Adriana para significar sua vivência passada de violência. Podemos observar que
após pintar a imagem de que sua mãe era uma mãe boa, ela fala sobre a violência que sua
mãe cometia da maneira que Camila descrevia que a violência passaria entre as gerações: “é
o jeito dela- ela apanhou muito”; e como Adriana, também relata que sua mãe tentou mudar
de comportamento: “Que ela já procurou não ser aquilo que ela-. Há uma tensão no
118
discurso da participante que oscila entre os conceitos desenvolvidos por Camila e de
Adriana. Ela escolhe a descrição elaborada por Camila nesse momento, pois interrompe o
argumento semelhante ao de Adriana e retoma as descrições de eventos que evidenciam
que sua mãe apanhava do pai dela o que teria feito com que sua mãe tivesse uma conduta
violenta hoje. Lúcia também fala que sua mãe “apanhava na cabeça”, que de acordo com os
relatos já desenvolvidos pela participante, seria um local que não era permitido bater por ser
mais danoso. Talvez a participante queira desenvolver a ideia de que sua mãe tenha vindo a
reproduzir a violência por ter apanhado de forma danosa no passado.
Como evidenciamos em outro momento, no grupo focal existe uma mesma dinâmica
que acontece em outros grupos de conversa, neste caso, a adoção de
conceitos/ideias/experiências por outros participantes para significar eventos passados ou
servirem de recursos nos argumentos que estão sendo desenvolvidos pelo participante que
tem a voz no momento. Neste exemplo, Lúcia retoma conceitos/ideias/experiências tanto de
Camila quanto de Adriana para relatar eventos que lhe aconteceram, ressignificando-os de
uma forma que lhe é conveniente naquele momento e que seriam construídos de outra
forma se, por exemplo, ela tivesse sido a primeira a relatar sua experiência.
Ainda nesse trecho, Lúcia se refere à violência que acredita sofrer ultimamente e a
uma violência sofrida num momento anterior. No momento em que ela diz que “meu Deus
do céu, é uma sorte danada que minha violência é mais psicológica mesmo”, ela se refere à
violência que sofreu/sofre por parte de seu ex-companheiro, como se agradecesse o fato de
que ele não batia nela ou na sua filha; na mesma medida em que agradece não ter sofrido
violência de apanhar, espancar ou jogar na parede. A participante novamente posiciona o
bater de sua mãe como uma violência não danosa.
Jullyane nota que os relatos de Lúcia privilegiam a negligência como violência
doméstica e pergunta:
Jullyane: Então o que você tá falando assim, é- questão de apanhar da mãe
não era muito violento pra você, você achava mais violento as negligências
que você (.) [foram acontecendo com você, é isso?
Lúcia:(.) é.
Jullyane: E pra você violência doméstica seria mais negligências?
Lúcia: É (.) porque apanhar eu nem me- me lembro (.) eu nem ligava. Que a
gente se divertia mais quando apanhava ((rindo)) porque a gente saía
correndo (.) porque fazia uma besteira, comia o- o- o doce de leite, num é?,
119
o leite moça ((rindo)) saia quem foi?todo mundo saía correndo, era
uma diversão danada ((risos)) eu achava era engraçado. Mãe muito doida e
vendo a hora ela desesperada, e eu achava aquilo era engrado. Mas
assim, pra dentro de mim, porque ela num- eu era- minha irmã ((ri)) diz que
eu era meu filho meu mundo
60
(.) meu filho meu mundo, porque eu era
bem paradona, serona assim, mas eu- eu sabia que, eu me divertia com as
minhas coisas e (.) e pronto.
Na frase grifada, Lúcia relata o caráter de diversão que tinha o apanhar para ela,
coerente com o modo que ela descreveu como era apanhar da sua mãe num momento
anterior em tom de riso. Aqui podemos perceber novamente a descrição da experiência do
apanhar da mãe vivida pela participante como algo que ela não importância. De minha
experiência na infância, lembro de vários/as amigos/as reproduzirem essa ideia através de
uma frase que poderia ser generalizada assim: prefiro apanhar do que ficar de castigo, pois
apanhar dói na hora mas depois a gente esquece e pode voltar a brincar. Não temos como,
nem nos interessa, saber se existe para a participante uma lembrança “no íntimo” do
apanhar como algo ruim ou triste, no qual privilegiaríamos um sentimento interior e não
expresso e desmereceríamos aquele que foi expresso.
Segundo Edwards (1999) e Edwards e Potter (2005), coisas tais como pensamentos,
lembranças, memórias, são construídos através do discurso e não devem ser testados através
dos relatos dos participantes para estarmos certos de que eles estão fazendo uma descrição
acurada de suas vidas mentais. Antes, devemos nos debruçar na única coisa que nos é
acessível o discurso e analisar como as pessoas falam, relatam e descrevem seus
pensamentos, ideias e opiniões e quais efeitos provocam:
Se as pessoas as usam inconsistentemente, indexicalmente, retoricamente,
então é precisamente isso o que necessitamos estudar. É um dos princípios
fundacionais da análise do discurso que as variações em como conceitos e
versões são produzidas, por e para ocasiões particulares, são precisamente
a base na qual o discurso realiza ações
61
(EDWARDS, 1999, p. 2).
Nesse sentido, a participante buscava um efeito no seu discurso relatar a experiência do
apanhar como algo banal e construiu sua experiência dessa forma. O que não impede, por
60
“Meu filho, meu mundo”: Filme de 1979 que fala da estória de um casal que descobre que o filho
tem autismo e das estratégias e tentativas de ambos para tirá-lo dessa condição.
61
No original: “If people use them inconsistently, indexically, rhetorically, then that is precisely what
we need to study. It is one of the foundational principles of discourse analysis that variations in how
concepts and versions are produced, on and for particular occasions, are precisely the basis on which
discourse perform actions”.
120
exemplo, que numa outra situação ela construísse o mesmo relato privilegiando o apanhar
como algo que apesar de ser encarado como uma brincadeira lhe afetou profundamente.
A participante constrói sua imagem como uma pessoa “paradona”, utilizando como
exemplo a descrição que sua irmã fazia ao lhe comparar com o personagem autista do filme
Meu filho, meu mundo, exemplificando que ela tinha um comportamento “pra dentro”.
Comportamento que já foi sinalizado num momento anterior, quando Lúcia disse que seu pai
se preocupava por causa do meu jeito”. Lúcia além de se descrever como alguém que era
diferente e tinha a atenção do pai, pode estar passando a imagem de alguém que era
diferente e por isso não sofreu com a violência do apanhar. Provavelmente ela utiliza essa
descrição com o efeito de justificar sua maneira de pensar diferente das outras participantes
com relação ao bater. Lúcia continua:
Mas assim de apanhar- viol- violência doméstica- claro que tinha, né?, por
negligência, que eu sinto muito até hoje. É a violência (.) a negligência, né?
E aí eu vim aprender o que é o que a gente sofreu, sofreu. O que é violência
domés- é (.) negligência, que é um tipo de violência.
Observemos como nesse trecho ela relata os danos de “um tipo de violência” que era
o que mais incomodava a participante: a negligência. Sintetiza dizendo que para ela violência
doméstica é negligência e ao mesmo tempo negligência é um tipo de violência. Esse é seu
modo de argumentar que negligência é o que ela viveu e sentiu como violência doméstica e
que a negligência é um tipo de violência doméstica. no discurso da participante a tensão
de considerar o apanhar violência, que podemos observar em como ela reformula sua frase:
“Mas assim de apanhar- viol- violência doméstica- claro que tinha, né?, por negligência”. Sua
frase é re-elaborada de uma forma que deixar o apanhar fora da violência doméstica, sendo
apenas a negligência considerada violência doméstica.
A partir dos relatos e narrativas das três participantes, a violência doméstica é
conceituada a partir da experiência de cada uma delas no contato com a violência. Para cada
uma, foi privilegiado o discurso acerca daquilo que foi vivido e mais lhe causou impacto.
Adriana e Lúcia trouxeram relatos que compreenderam experiências que as acompanharam
desde a infância, narrando eventos significativos de suas infâncias e do evento de violência
mais recente que envolvia suas filhas. Camila, por sua vez, trouxe a experiência mais recente,
na qual não faz paralelo nem relata experiências de sua infância ou outras que não
estivessem relacionadas com a violência sofrida por seu filho e sua filha.
121
Camila não falou muito nesse momento, ainda que o pouco que relatou foi o
suficiente para posicionar Adriana num lugar desconfortável. Tal posicionamento gerou
extensos relatos sobre a experiência de Adriana com a violência que tinham como objetivo
tirá-la desse lugar. Lúcia respondeu se colocando num lugar distinto trazendo novas
contribuições e suas concepções sobre a violência doméstica para a conversa no grupo, além
de posicionar-se de forma distinta com relação ao bater/apanhar. Adriana e Lúcia, em
especial, falaram aqui sutilmente de mudanças de paradigma com relação à violência
doméstica e a ptica da violência através das intervenções na instituição. Esse tema, a
mudança de conceitos e práticas através da intervenção na ONG, será abordado no capítulo
seguinte.
7. Relações das cuidadoras com a instituição
Nos dois encontros as participantes relataram sobre as intervenções da instituição.
Alguns destes relatos diziam respeito ao papel da instituição em instruir as participantes
sobre a violência doméstica sob vários aspectos. Outros se referem a mudanças de atitude
62
provocadas por essas instruções/intervenções. Porém, não é à instituição que elas
atribuem um papel importante: algumas mudanças teriam sido produzidas por intervenções
diversas ao longo da trajetória das participantes, realizadas por outras instituições ou grupos
religiosos a partir da identificação da violência que seus/suas filhos/as estariam sofrendo.
Aqui, vamos nos deter nas mudanças que as participantes atribuem às intervenções
na ONG. Para tal, dividimos este capítulo em dois sub-picos que compreendem duas
características da instituição destacadas em seus relatos: a instituição como aquela que
proporcionou mudanças subjetivas e aquela que ofereceu o apoio de uma família. Este
último diz respeito ao modo como as participantes relataram sobre a importância da
instituição como aquela que acolheu e ofereceu apoio do mesmo modo que se espera de
uma família ideal.
7.1 A produção de mudanças subjetivas
63
Os relatos sobre as supostas mudanças proporcionadas pela instituição iniciam a
partir do questionamento de um dos moderadores:
Pedro: E vocês tão falando, né?, sobre negligência, é (.) violência
psicológica, né?, violência doméstica. E como- tu falou agora a gente
veio aprender o que é isso. Então isso- tudo isso que vocês hoje acham que
é violência, que vocês acham que é violência doméstica, que vocês acham
que é negligência (.) né? Antes vocês achavam isso, vocês sempre achavam
62
Estamos considerando o termo atitude a partir de uma perspectiva discursiva, como já mencionado
no capítulo quatro. Com isso queremos dizer que as atitudes não são entidades mentais estáticas,
mas antes, descrições e avaliações que as participantes fazem sobre si nas interações e a partir de
um contexto específico.
63
Devo acrescentar aqui que, em momento algum, consideramos subjetivo/subjetividade em
oposição a objetivo/objetividade. Antes, escolhemos esse termo na ausência de outro que
expressasse o sentido que desejamos: mudanças que as participantes dizem ter afetado seus modos
de agir/ser/significar/dar sentido ao mundo.
123
isso, ou foi uma coisa que (.) foi depois que vocês passaram a pensar sobre
isso, ver aquilo de uma outra forma...
As falas se confundem nessa hora e a primeira participante a ter a voz é Camila:
Assim, a- a partir do momento que a gente entra aqui no ((ONG)), a gente
começa a aprender muita- muitas coisas [Pedro: Uhum] O que a gente
pensava (.) do (.) do que aconteceu com a gente no passado, quando a
gente era criança, né?, pensava que era o certo. Mas quando a gente vem-
vem- entra no ((ONG)) e começa a participar das oficinas, né?, a gente
começa a pensar que (.) no que aconteceu e vê que não é certo. [Pedro: Vê
que não é certo?] É.
Camila fala sobre a reflexão provocada a partir da participação nas oficinas da
instituição. Fala da re-significação de experiências infantis que, na época, pareciam não
problemáticas, mas que, agora, são vistas sob uma nova luz. Devemos lembrar que Camila
não relatou eventos de sua infância no que diz respeito à violência, porém, relatou durante o
grupo situações que dão a entender que reavaliou alguns de seus paradigmas a partir da
participação nas atividades da instituição. As oficinas realizadas na instituição abrangem
vários temas que não a violência e talvez seja esse aprendizado que Camila esteja se
referindo. Podemos observar como Camila torna seus os argumentos da instituição, por
exemplo, nos trechos abaixo discutidos anteriormente, em que ela fala sobre mudanças
em suas concepções acerca do lugar de mãe na relação com os/as filhos/as:
[..] Através daqui do ((ONG)) que eu aprendi que mulhe- que mãe sim tem
que ser amiga de filho, de filha, que deve se conversar sobre certas coisas q-
que no entendimento da criança, que ela possa entender *…+
*…+ eu acho assim, que (.) a mãe, primeiramente de tudo, tem que ser
amiga do filho. Acima de tudo. Amiga, mãe. Pra criança abrir a- se abrir
aber- se abrir pra mãe pra (.) pra qualquer coisa [Pedro: Uhum] Então pelo
menos eu (.) depois daqui do ((ONG)) que eu tô pensando assim. [...]
[...] Então o modo que e- (.) que eu encontrei, que no passar do tempo aqui
no ((ONG)), que (.) a (.) gritar não vai adiantar, só vai assustar. [...]
Após o relato de Camila, Lúcia se pronuncia:
É dar nome aos bois, né? A gente passa pelaquilo e vai aprender aquilo que
foi ((ri))
Pedro: Passar por aquilo e depois vai aprender o que foi.
Lúcia: Exato. O que foi, o que aconteceu.
124
Jullyane: A partir do momento que você começa a saber o que é que
aquilo- o que é negligência, como você tava dizendo, né?
Lúcia: É, essa coisas eu nunca ouvi. Como mãe- (.) porque eu me sentia
muito responsável já- justamente- por essa (.) falta de mãe que eu tive, essa
negligência (.) é (.) eu tinha até dificuldade de amar minha mãe (.) antes de
Helena ((filha)) eu amava, mas agora eu tenho dificuldade com isso. Porque
eu procurei ser (.) assim, eu acho que, eu acho que o pai e a mãe
((incompreensível)) que a gente sofreu, não quer passar pros filhos. A
gente- e eu me- por isso que eu precisava de um profissional, de um
psicólogo, porque eu disse assim- teve uma hora que eu disse assim: nem
eu nem tu vai-(.) porque eu fiz é chorar. Eu antes do saber do abuso,
nem eu nem tu tem estrutura pra Helena, estruturaa- a- que eu me sentia
muito responsável, justamente por isso. Num queria ser negligente (.) com
ela, e pelo (.) por que eu passei, eu ia passar pra- pra ela- sim, porque isso
fica (.) [eu não sabia que estava bem.
No primeiro dos trechos destacados, Lúcia traz sua concepção sobre o que seria
negligência descrevendo a experiência, no caso a “falta de mãe, que teve. Ora, sabemos que
aqui ela está se referindo à falta de uma mãe que fosse atenciosa com ela e não à ausência
de sua mãe nos utilizando do desenvolvimento anterior de Adriana, essa seria uma
negligência presente. Nos trechos seguintes, a participante fala sobre não querer passar pros
filhos o que tinha sofrido anteriormente, o que é coerente com o que estava sendo discutido
por Adriana quando afirmava que depende de cada um passar a violência que sofreu. Seu
discurso é construído de uma maneira que dá a entender que ela foi uma pessoa que
enxergou os erros dos passados”: “eu me sentia muito responsável, justamente por isso, ou
seja, responsável por já ter sofrido isso e não queria passar a negligência que sofreu adiante.
Lúcia pode ter tido contato com o discurso segundo o qual não devemos passar para
os filhos o que sofremos na relação com os nossos pais desde um momento anterior a esse
grupo, mas o interessante de ser notado aqui é que ela passa a desempacotar essa ideia a
partir de termos e conceitos que foram postos em jogo no grupo, no qual a ideia de
intergeracionalidade da violência, trazido inicialmente por Camila, faz parte da construção de
seu argumento ao relatar a mudança que percebeu desde que passou a frequentar a
instituição. Ao mesmo tempo em que se posiciona num lugar próximo ao relatado por
Adriana, no caso, de alguém que não vai passar a violência adiante.
Chama-nos atenção o uso da expressão é dar nome aos bois”, que de uma maneira
geral quer dizer classificar ou catalogar algo. Nesse caso, Lúcia pode estar se referindo a
como, a partir da intervenção na instituição, aprendeu a nomear e provavelmente
125
ressignificar as experiências que viveu. No momento em que diz a gente passa pelaquilo e
vai aprender aquilo que foi”, afirma e reconhece com muita naturalidade e candidez o poder
de um certo discurso de definir experiências vagas, que nunca tinham sido objeto de
definição, como sendo experiências típicas de um certo domínio de realidade. Em outras
palavras, afirma o poder desse discurso e dessa instituição de constituir a realidade na qual
ela viverá. Este tipo de fenômeno é o que Hacking (1995, 1999) chama de looping effect, que
diz respeito às pessoas tenderem a se comportar e agir conforme o modo como alguns
fenômenos que vivem(ram)/expienciam(ram) tais como abuso sexual, esquizofrenia etc.
são (explicitamente) classificados dentro de um domínio de saber
64
. Tomamos a liberdade de
estender o conceito e acrescentar que as pessoas também tendem a relatar sobre si e suas
experiências sob esse fenômeno, como no caso de Lúcia que, a partir do momento que a
instituição deu “nome aos bois, tornou possível que ela construísse sua realidade de outra
forma. Essa atitude frente ao discurso institucional também está presente na fala de Camila
em expressões como “eu aprendi que mulhe- que mãe sim tem que ser amiga de filho”.
Em seguida, Camila volta a falar:
Aqui a gente aprendeu também (.) a gente num ensinar a criança ter (.)
medo, entre aspas, de pessoas desconhecida, mas ter também de gente (.)
conhecida. A gente não pode assim tá confiando (.) em todo mundo [Pedro:
Uhum] Num- num assim (.) des- desconfiar do vizinho, mas sim também da
família (.) pessoas. Eu mesmo vejo assim (.) certas (.) meu tio, minha tia, eu
vejo- eu vejo com outros olhos. Não com aqueles olhos: não, ele vai fazer.
Mas um olhar de atenção, pronto. A gent- a gente aprende aqui ter um
olhar de atenção (.) em certas coisas. E aqui a gente aprende muita coisa,
aqui no ((ONG)) [Pedro: Uhum] A gente aprende muita coisa mesmo.
Camila relata ter aprendido que não se deve ensinar a criança a ter medo apenas de
pessoas desconhecidas, mas de gente conhecida também. A instituição teria lhe ensinado
que a violência contra criança não acontece na relação com pessoas próximas ou
desconhecidas apenas, mas também dentro da família, teria lhe ensinado a direcionar um
olhar mais atento também para os mais próximos, para os familiares. Em nossa cultura, é
64
Não poderíamos deixar de mencionar que para Hacking (1995, 1999), o looping effect também
envolve movimentos de resistência por parte daqueles/as que são classificados, fazendo com que os
domínios de saber constantemente revisem suas classificações e descrições do fenômeno em
questão. Semelhante fenômeno é pontuado por Gergen (2008) como sendo uma característica da
psicologia ao descrever e intervir na sociedade. A sociedade se apropria e descreve seus
comportamentos a partir de conceitos fornecidos pela psicologia. Por sua vez, a psicologia se
apropria dessas novas formas de subjetividade disponíveis na sociedade e estabelece novas teorias
acerca dela.
126
muito presente a ideia de que os pais devem ensinar as crianças a não falar/ter contato com
estranhos com o fim de se protegerem de pessoas que possivelmente possam envolvê-las em
situações danosas. A participante então amplia essa ideia argumentando que não se deve
confiar em todo mundo” e que mesmo com pessoas conhecidas e com a família
supostamente um conjunto de pessoas que se protegem, dado seus laços sanguíneos e/ou
afetivos deve-se ter cuidado e atenção.
Hacking (1995), num estudo sobre a construção do conceito de abuso infantil (child
abuse), mostra como esse olhar atento para a própria família de que fala Camila é produto
de um percurso histórico caracterizado por um controle cada vez maior da família:
Antigamente, acreditava-se que os molestadores sexuais eram estranhos. Se
o molestador e a vítima se conheciam, este deveria ser um empregado
serviçal molestando a criança de seu empregador ou o mestre molestando
as crianças dos serviçais. Era permitido que perpetradores pudessem ser
cuidadores, pais adotivos, padrastos malvados, professores pervertidos e
padres. Molestamentos aconteciam através das fronteiras de classe e fora
dos laços sanguíneos. Mas bebês eram espancados na família! E
molestamentos dentro da família? Essas duas ideias, abuso intrafamiliar e
molestamento sexual, começaram a ser fundidas
65
(p. 62).
Depois da fala de Camila, Adriana, instigada por um dos moderadores, se pronuncia
pela primeira vez sobre o tema em questão:
Eu, assim, na minha concepção sempre achei que era assim, uma violência.
Porque (.) na época não sabia como agir, mas eu sempre senti que era
violência, porque, da forma que eles batiam, eu não sei porque se era
minha cor que não agradava ((ri)) porque, meus irmãos era- são tudo claro
da cor, são tudo branquinho (.) e somente eu que tenho a pele escura,
então eles chamavam muito eu de negra (.) e na época, né?, o racismo, né?,
tinha muito racismo. Eles diziam assim: “é, e ela mesmo, aquela negrinha,
foi ela mesmo”. Então, isso eu me sentia, muito assim, pra baixo,
entendendo? Se fosse nessa época de hoje, assim, que eu soubesse como
agir, que a gente não sabe, entendeu? Naquele tempo, naquela época, não
tinha esse Estatuto da Criança e do Adolescente, num é? E eu não sabia se
isso era negligência, sabia assim, que alguma coisa eles tavam fazendo que-
que batia muito- era constantemente, eu acho que quase todo dia eu
apanhava. Muitas vezes eu fazia coisas erradas e muitas vezes eu não podia
tocar em nada, era uma tarde que eu não poderia mexer em nada, tá
65
No original: “In the old days sex molesters were supposed to be strangers. If molester and victim
were acquainted, the former would be a household servant molesting the children of the employer
or the master molesting the children of the servants. It was allowed that perpetrators could be
caretakers, foster parents, wicked stepfathers, perverted schoolteachers, and priests. Molestation
occurred across class boundaries and outside the ties of blood. But babies were battered in the
family! What about molesting within the family? The two ideas, intrafamilial abuse and sexual
molestation, began to be fused”.
127
entendendo? Eu tinha que ficar ou no meu canto quietinha ou tinha que
ficar do lado de fora. Na minha casa eu não podia ficar, porque se eu
mexesse em qualquer coisa dos meus irmãos, das minhas irmã, da minha
mãe, do meu pai (.) era pau mesmo, não tinha esse negócio de ver, de
conversar não. *…+
Adriana diz que sempre achou que o que sofria na infância era violência: “na época
não sabia como agir, mas eu sempre senti que era violência”. Nós, quando crianças, podemos
nos relacionar com conceitos de violência de diversas formas: livros da escola, histórias em
quadrinhos, contos, fábulas, desenhos etc., e, às vezes, até mesmo por livros voltados para a
reflexão do tema em ambiente escolar
66
, o que não torna incoerente ou irreal o relato da
participante de que sempre sentiu que sofria violência. Além disso, poderíamos reduzir a
vivência da agressão como tendo no mínimo a depender do contexto dois polos: prazer e
dor (GERGEN, 2007b). Dessa forma, não seria necessário o contato com teorias e conceitos
sobre a violência para que Adriana tivesse chegado a essa conclusão, mas apenas a
capacidade de saber distinguir que aquilo que sentia era dor e que gostaria de evitá-la.
Gergen (2007b) argumenta que a agressão e aqui estenderei seu argumento para
englobar também a violência se produz discursivamente, através da linguagem (falada ou
não). O autor sustenta a ideia de que a agressão, considerando a linguagem como
construtora de realidades, é desempacotada e significada de acordo com uma série de
convenções e relações que se estabelecem sobre ela em um determinado contexto social,
argumentando que podemos elaborar um “núcleo estrutural da agressão
67
composto de
itens que formam uma rede de relações que a significam. Por exemplo: ser um ato voluntário
ou involuntário, provocar prazer ou dor, ser justificável ou não, ser merecido ou imerecido.
Adriana argumenta que batiam nela talvez porque ela era “negrinha” e os seus
irmãos não, e que na época tinha muito racismo e então ela era discriminada e apanhava. Ela
está refletindo e justificando a violência que sofria naquela época procurando os motivos
que fizeram com que apanhasse mais que seus irmãos. Como vimos, num momento anterior
(p. 106) ela relatou que certa vez contou para sua filha que apanhava dos irmãos porque era
o lado mais fraco”. Agora descreve que apanhava por ser negrinha e discriminada. Porém,
66
O livro Violência em debate (1997) organizado por Marcia Kuptas, por exemplo, é um deles.
67
O termo estrutura, nesse sentido, não se relaciona com os tipos de investigações estruturais
elaboradas por Levi-Strauss ou Lacan, por exemplo, mas é utilizado para informar o caráter
dominante de muitas convenções atuais e entendê-las a partir de um marco que compreendam
padrões discursivos em evolução (GERGEN, 2007b).
128
Adriana fala de castigos tanto merecidos como imerecidos, separando situações em que ela
mereceria castigo: “Muitas vezes eu fazia coisas erradas”; e situações em que não mereceria:
e muitas vezes eu não podia tocar em nada, era uma tarde que eu não poderia mexer em
nada, tá entendendo?. Encerra dizendo que naquela época, não tinha a alternativa que tem
hoje a que ela aprendeu na instituição de conversar, era pau mesmo”. Como afirma
Gergen (2007), o conhecimento das convenções culturais é libertador, “posto que ganhar
conhecimento sobre as bases convencionais da verdade aceita é eliminar a dependência de
tais convenções e convidar ao desenvolvimento criativo de alternativas
68
” (p. 137).
Não acreditamos que as intervenções institucionais e suas alternativas à violência
trilham sobre um caminho fácil nem necessariamente libertador. Conhecer as “bases
convencionais da verdade aceita” não implica numa quebra de grilhões daquele fenômeno
que passou a ser nomeado, classificado e explicado para as participantes. Antes, as
intervenções fazem parte de um caminho de tensões e conflitos entre os conceitos e práticas
com os quais as participantes estavam comprometidas e aqueles que estão sendo
aprendidos. Como podemos perceber ao longo dessa análise, as pessoas oscilaram entre
discursos sobre a violência em que o posicionamento a ser tomado foi estabelecido no jogo
discursivo em um complexo vai-e-vem de posicionamentos e reposicionamentos entre as
participantes. Tal movimento oscilatório provavelmente acontece nas relações sociais
cotidianas das participantes em relação a discursos sobre a violência. Ela continua:
*…+ Num sei se é porque também, é, na época deles, né?, de nossos pais,
não tinham conhecimento (.) né? Minha mãe não tinha estudo, meu pai era
analfabeto, minha mãe só estudou a a terceira série, não tinha esses
conhecimento como nós hoje temos, não é isso? [Pedro: Uhum] Então eles
batiam. Então, assim, num vou dizer, como eu disse e falei aqui, que eu
cresci uma criança revoltada. Mas da forma que eles batiam, se fosse nessa
época agora, eu poderia ser um adulto revoltado, né? Porque a violência era
de todo tipo, inclusive até violência mesmo das minhas próprias- é (.) dos
meus próprios cunhados, né? (.) que também me violentava. E é como eu
disse hoje à minha mãe- até tava comentando uma vez com ela- se eu fosse
denunciar, tinha denunciado a família toda [Jullyane: Uhum] Porque a
família todinha podia tá no presídio, porque todo mundo batia, inclusive até
os próprios cunhados (.) que também às vezes me violentava mesmo, assim,
assédio mesmo e pegava nos meus seios, eu não sabia. Era uma criança,
né?, assim quando comecei a aparecer o seio. Eles também, ficavam de
olho em mim, quando tudo isso também foi uma situação difícil. *…+
68
No original: “puesto que ganar conocimiento sobre las bases convencionales de la verdad aceptada
es eliminar la dependencia respecto a dichas convenciones e invitar al desarrollo creativo de
alternativas”.
129
A participante desenvolve argumentos que tentam construir uma relação entre a falta
de conhecimento de seus pais e o motivo para baterem nela, desenvolvendo a teoria de que
batiam nela por não conhecerem alternativas à violência para educar os/as filhos/as. Ora,
aqui a afirmação de Adriana segundo a qual passar para os/as filhos/as a violência que as
pessoas sofreram na infância depende de cada um” (p. 105-106) chega num impasse.
Parece-nos que apenas a partir do conhecimento de discursos alternativos àqueles que
fazem parte de nosso repertório torna-se possível o confronto que produz mudanças.
Adriana compactua com essa ideia ao longo de seus discursos no grupo, falando que para ela
só foi possível mudar o discurso acerca do bater e também deixar de praticá-lo a partir da
intervenção da instituição e a apropriação de alternativas à violência.
Narra como sua família tinha uma conduta violenta com ela, inclusive violentando-a
sexualmente. No discurso, Adriana se posiciona como alguém que não teria conhecimento
de que o que experienciava com sua família era violência: que também às vezes me
violentava mesmo, assim, assédio mesmo e pegava nos meus seios, eu não sabia. Era uma
criança, né?”. Continua a falar como através das intervenções institucionais, aprendeu a
significar aquelas experiências vividas na infância:
*…+ Agora, vim aprender mesmo, alguma coisa, foi depois que houve o
problema com a minha menina, foi quando eu vim pra cá (.) e o ((ONG))-
através, né?, da- da- das psicólogas, não só de Bianca mas também da
doutora Vanessa e da doutora (.) é, Maria, que tinha antes aqui (.) que ela
vem falar sobre essa negligência e também oficinas que nós fazemos aqui.
Eu não sei se Pedro se lembra, [ainda das oficinas, né?
Pedro: [Uhum
Adriana: Que eu acho também que ela ((olha para Lúcia)) fez conosco, [né?
Lúcia: [Fiz
Adriana: Camila não que é agora a pouco, né? Mas você fez algumas
oficinas e Pedro também tava presente em algumas oficinas. E foi a partir
desse momento que a gente foi aprendendo o que é negligência, né?, é,
violência doméstica, né?, vários tipos de violência eu vim aprender aqui.
Psicológica, que a gente também não sabia, né?, e realmente é- é- que não
deixa marcas, como foi falado, feito aqui, psicológica. Que até hoje eu me
lembro- não sou revoltada com a minha mãe, não sou revoltada com meus
pais, mas- com meus irmãos não. Mas fica na nossa mente, não é? [Pedro:
Uhum] E aí, é por isso que eu digo, isso (.) eu vim conhecer quando eu
cheguei aqui no ((ONG)), depois de tudo isso, num é? Mas eu não sou u-
uma pessoa revoltada do que aconteceu não. Muito pelo contrário. Eu
agradeço porque hoje eu viva, de e sei resolver o problema da
130
minha vida (.) né?
Adriana fala que veio aprender mesmo alguma coisa” após ter passado a
frequentar a instituição assim que descobriu a violência que a filha sofreu. Como a
participante menciona, e já foi dito num momento anterior, eu participei de algumas oficinas
promovidas na instituição, que compreendiam temas diversos e envolviam diferentes
profissionais. Descreve que a partir das oficinas aprendeu os conceitos sobre violência
doméstica e os “tipos de violência. Nesse momento, ela utiliza o conceito como foi
desenvolvido anteriormente por Lúcia para violência psicológica: “Psicológica *…+ que não
deixa marcas, como foi falado”; e se inclui como alguém que sofreu esse tipo de violência:
“Que até hoje eu me lembro *…+ fica na nossa mente, não é?. É interessante como ela
significa o que viveu dizendo que não é revoltada com os pais ou irmãos, e que “agradeço
porque hoje eu viva, de e sei resolver o problema da minha vida”. Em seu discurso,
Adriana descreve-se como alguém que aprendeu com as experiências que teve, como
alguém que perdoa seus pais e irmãos por saber que não poderiam fazer diferente por não
saberem existir discursos alternativos à violência.
A participante diz que também aprendeu com a instituição que não se pode contar
para qualquer pessoa o que aconteceu com seus/suas filhos/as, mas contar com pessoas (ou
instituições) que possam ajudar efetivamente. A instituição toma o lugar de local/pessoa”
confiável, como podemos observar nos relatos sobre o papel que a ONG em questão teve em
sua vida:
Adriana: [...] Porque na hora que eu mais precisei, o- ((incompreensível))
me abandonou. Então eu precisei muito. E aqui no ((ONG)) foi que eu achei,
assim, o calor humano, né? A gente encontra uma amizade, e todo mundo
aqui nos acolheu- quando uns apoia outros despreza (.) né? Pensa- no caso
de violência sexual, é (.) faz com que você saia do mundo, você não exista
mais, aquilo [acontece (.) né?
Lúcia:mentirosa
Adriana: Que você mente, ninguém acredita. Então aqui- a gente viu aqui o
calor humano [Pedro: Uhum] Calor de uma família (.) que nos apoia,
quando fora ninguém acredita, a gente aqui- acredita aqui conosco. A
gente vem, qualquer- qualquer problema lá fora a gente vem aqui conversa,
a gente sai daqui aliviado. Então, foi a partir daqui, do ((ONG)), que eu
comecei a conhecer esses tipos de violência, né? E o que acontecesse hoje
((rindo)) feito diz minha mãe, ela diz: a gente num mexe mais nem contigo,
porque se a gente mexer a gente sabe que tu já tás acobertada”.
131
((Lúcia ri alto))
Jullyane: Já tem o entendimento das coisas, né?=
Adriana: =Já tem o [entendimento
Camila: [As informações
Adriana: As informações. Então foi preciso eu falar, tá entendendo?, no caso
dela, né? Muitas vezes eu acho que não é bom falar, mas tem caso-
situações, que é preciso falar. No meu caso eu digo que eu precisei falar, e
até hoje ainda preciso.
Em seu relato, a ONG assume um papel de apoio e segurança e de capacitação.
Adriana desenvolve a ideia de que nos casos de violência sexual, as pessoas saem do mundo
e não existem mais. As crianças vítimas de violência sexual são muitas vezes percebidas como
frágeis, vindo a apresentar problemas de desenvolvimento, adaptativos, de maturação
sexual, distúrbios comportamentais e dificuldades na idade adulta (ADED et al., 2006;
ARAÚJO, 2002; AMAZARRAY; KOLLER, 1998; AZEVEDO; GUERRA, 2007; DESLANDES, 1994;
FURNISS, 1993; GUERRA, 2001; HABIGZANG et al., 2005; HACKING, 1995, 1999; MÉLLO,
2006; ALMEIDA PRADO; PEREIRA, 2008; ROUYER, 1997) o que pode exigir um esforço de
seus/suas cuidadores/as para compreender e lidar com a situação quando não dispõem de
um apoio, seja ele na comunidade, igreja, grupo religioso, família, instituições, órgãos
competentes etc.
Adriana relata que a instituição ofereceu apoio quando ninguém acreditava nela, ou
achava que era mentirosa, como acrescenta Lúcia que nesse momento está falando tanto do
caso de Adriana quanto do seu. Dependendo das pessoas a que as participantes recorreram
num primeiro momento, as respostas podem ter sido diversas, que envolviam desde o total
apoio ao total descrédito. Mesmo com as diversas estratégias de visibilidade (MÉLLO, 2006)
sobre a violência contra criança no Brasil, e em especial sobre o abuso sexual infantil que
em Pernambuco acontecem principalmente através das campanhas que acontecem na
Região Metropolitana do Recife e interior do estado, lideradas pelos órgãos que compõem a
Rede ARCA e outros que trabalham o tema através de ações de panfletagem,
desenvolvimento de cartilhas, oficinas, passeatas etc. , os relatos das participantes indicam
que tais estratégias podem não estar alcançando uma parcela da população. Para as
participantes nem sempre é fácil ou sabe-se de imediato qual o órgão competente a
procurar, o que exige idas e vindas para diversos órgãos em procura de ajuda, como vimos
132
nos seus relatos das trajetórias até a instituição.
A partir de então, o grupo entra na discussão sobre não se dever contar para todo
mundo o que aconteceu (a violência que seus/suas filhos/as sofreram). Aqui, Adriana diz que
“Muitas vezes eu acho que não é bom falar, mas que tem situações que são permitidas falar
para alguma pessoa, desde que ajude de alguma forma em suas questões. As participantes
começam a criar particularidades (BILLIG, 2008) sobre para quem e quando devem contar,
como por exemplo, quando precisarem de pessoas que sirvam de testemunha. Camila então
relata a particularidade que envolveu a situação em que precisou contar seu caso:
Como, é (.) como eu falei a semana passada- da (.) da morte da minha filha
(.) da- que minha filha teve (.) eu- foi uma das coisas que eu aprendi só.
Não, eu num vo- eu num vou contar- mainha diz que foi por vergonha.
Porque (.) eu fui (.) eu fui acusada (.) e depois de quatro meses- quatro
meses, a (.) eles viram que eu não tinha nada a ver. Que não tiveram provas
concretas. E (.) eu me isolei, fiz assim: “não, eu não vou contar porque não
vai adiantar eu contar pra alguém (.) num vão me ajudar. Aí foi quando eu
(.) corri atrás de uma pesso- de um (.) um profissional pra me ajudar, foi
quando teve terapia de grupo. Foi num- na Agamenon Magalhães, na
Policlínica que fica em Afogados ((bairro)). foi em terapia de grupo eu
comentei- eu conversei com a psicóloga, pensei que a psicóloga ia toda
semana, como eu tenho agora, ia ter aquele acompanhamento individual (.)
não, ela me encaminhou prum (.) em- em grupo. Aí nesse dia eu tava
grávida do meu menino de quatro meses, e tive uma briga com minha irmã,
que ela não aceitava que minha mãe- é (.) que eu tivesse dentro de casa.
Era pra minha mãe ter botado eu pra fora com barriga e tudo [Pedro:
Uhum] E eu ia final de semana na casa de mainha por causa que
também eu morava com meu tio. Aí foi quando num desespero, no calor do
desespero, no calor da briga, eu cheguei na sala e comentei o que
aconteceu com minha filha. E (.) fez assim, como a gente faz agora,
quando terminou, saiu, quando s- eu vi as costas, né? eu escutei
atrás: “ó, então foi- é (.) no caso foi essa menina aí, que foi pra Santa Luzia”
((Centro de Atendimento Socioeducativo Santa Luzia, destinado a
adolescentes infratoras)). Que na época, o nome é o Santa Luzia que tem,
né? Mas tem um nome específico, parece que é Fundac ((Fundação
Estadual da Criança e do Adolescente)) também, que a menina- (.) que tem.
“Que foi pra Fundac, num sei o que da Fundac”. Pronto, dali eu num fui
porque num- num me ajudou em nada, a psicóloga não me ajudou. eu
pou me isolei e num contei pra ninguém. Quando eu vim desabafar o que
aconteceu com a minha filha (.) foi- eu acho que é por causa disso que eu
tenho- o- (.) assim, o meu sentimento assim, às vezes é- é confuso [Pedro:
Uhum] É confuso. Eu num- eu acho assim, que ele é confuso. Que o- como
eu passei quatro anos guardando (.) guardando isso, eu vim contar pra
alguém, e esse alguém que venha m- que- que me ajudou (.) que foi Karen
da- que é assistente social do HR ((Hospital da Restaurão)), que ela
pou me ajudou (.) foi (.) da- e juntou com o caso de Otávio ((filho)), que eu
vi que assim, não, eu vou (.) eu vou segura= [Lúcia: =Amparada] Eu
vou amparada. foi- é- é (.) é isso que eu t- que eu querendo dizer.
133
Que a gente deve contar pra pessoas que possam nos ajudar=
A participante inicia seu relato pontuando que o que vai falar “foi uma das coisas que
aprendi só”, fazendo a introdução de que a narrativa que vai fazer nesse momento diz
respeito a reflexões anteriores à intervenção da instituição. Camila menciona que ficou
quatro meses presa por ter sido acusada de ter assassinado sua filha, mas que depois foi
liberada por que “não tiveram provas concretas”. Fala que se isolou porque achava que
ninguém poderia lhe ajudar caso contasse suas experiências e resolveu procurar ajuda
profissional.
Em seguida, Camila descreve com riqueza de detalhes os motivos que a levaram a
contar publicamente (na terapia de grupo) o que tinha acontecido com sua filha: tinha
brigado com a irmã e, “no calor do desespero”, contou. A participante fala sobre este
episódio em tom de frustração: era esperado suporte da psicóloga e das demais
participantes de sua terapia de grupo, porém, estas passaram a lhe apontar e a psicóloga foi
reconhecida como alguém que não lhe ofereceu ajuda. Este fato fez com que ela se isolasse
novamente. Diz que seu sentimento é confuso”, mas que após quatro anos guardando”
sem contar para ninguém o que aconteceu com sua filha teve a oportunidade de conhecer
alguém que lhe deu segurança e que lhe amparou (a assistente social do Hospital da
Restauração) após o caso de violência que seu filho sofreu.
Tais relatos têm por objetivo falar que não foi na ONG que ela encontrou apoio e
suporte, mas que antes esse foi um caminho que teve que percorrer, com acertos e erros, e
que algumas mudanças que as participantes acreditam ter acontecido a partir da instituição,
para ela aconteceram em um momento anterior. Nas produções discursivas sobre essa
questão, não houve manifestações explícitas de discordância, mas sim a adição e
categorização de mais situações em que fosse permitido ou não fosse permitido contar. Mas
existem as tensões entre os relatos ou o entendimento de que aquilo falado pela outra
pessoa pode ser entendido como discordância, como na continuação de Lúcia:
Lúcia: =Eu também concordo com isso (.) num é? Num - a gente num
falando aqui contra você não. Eu dizendo assim, a opinião que se tem (.)
um- um (.) um conselho até do ((ONG)) mesmo, mas que é um paralelo (.)
uma faca de dois gumes. Como é que (.) tá entendendo?
Jullyane: Às vezes a [pessoa
Lúcia: [Mas...
Jullyane: Tem com quem a gente contar, às vezes não, [a gente quer contar,
134
às vezes não
Lúcia: (.) e num se tem- violência doméstica, dizendo que é dentro
de casa, ninguém acredita
Pedro: [Uhum
Jullyane: [Uhum
Lúcia: A não ser você mesmo e que- seus familiares [Pedro: Uhum]
Ninguém vai querer testemunhar não- teve uma vizinha que “tu saía muito,
deixava ela com- com ele e eu escutava ela chorando”, mas ela vai dizer?
Principalmente que eu moro num (.) numa vila militar? [Pedro: Uhum] Acho
que ela até apanhar do marido apanha calada. Porque o marido dela puxou
a arma pra ela (.) e ele é bem quietinho, bem calminho [Pedro: Uhum] Aí (.)
tem esse pessoal (.) que num mentindo. Que diz- não, mas ela disse
que escutava muito ela chorando.
Lúcia elabora seu discurso cuidadosamente de modo a evitar um possível
desentendimento, deixando claro que concorda com Camila e não está falando contra ela.
Ela parece estender para a ONG o que foi relatado por Camila, no caso, a ideia de que até um
profissional especializado “um conselho” da ONG, no discurso de Lúcia pode não ser de
boa ajuda, pode ser “uma faca de dois gumes”. A participante parece estar se referindo
implicitamente a sua experiência na instituição, a qual deixou de frequentar sob a alegação
de que não estava sendo bem acolhida e nem bem orientada. Diz que ninguém acredita num
caso de violência doméstica, pois “já dizendo que é dentro de casa”, tomando uma peça-
chave do conceito de que é um tipo de violência que acontece dentro do espaço domiciliar
para obter outro efeito: dizer que por acontecer dentro de casa ninguém vê e nem
acredita, a não ser você mesmo”. Para reforçar esse argumento, traz para o relato uma
vizinha que, provavelmente após saber seu caso, teria falado que escutava a menina
chorando quando ela saía e deixava a filha com o pai, mas que não se manifestava sobre
isso.
No grupo focal as respostas muitas vezes foram amplas e tomaram rumos
inesperados, e os argumentos desenvolvidos de modo sofisticado e com riqueza de detalhes,
utilizando exemplos que ilustrassem o relato que desenvolviam. Por exemplo, no momento
em que discutiam em torno do dever ou não dever contar, cada participante quis dar sua
contribuição e relatar as histórias que envolveram esse dilema e como se posicionaram.
Dessa forma, Adriana, Lúcia e Camila constroem argumentos objetivando abranger as
situações particulares em que precisaram assumir determinado posicionamento contar ou
não contar tornando o conceito dinâmico. Poderíamos fazer um esquema dando vozes aos
135
posicionamentos que as participantes tomaram durante os jogos discursivos do dever ou
não dever contare que teriam uma face aproximadamente assim, a partir da contribuição
de cada uma:
Adriana: Contar não é bom, só quando é num caso que é preciso contar,
como no meu caso em que...
Camila: É. Não acho que se deve contar por contar, só quando é para
pessoas que possam ajudar.
Adriana: Concordo, em caso de necessidade.
Camila: Sim, e eu tive necessidade. Como quando...
Lúcia: Também concordo. Mas mesmo aquelas pessoas que deveríamos
contar podem não ajudar, e, além disso, no meu caso, uma pessoa que
sabia não me ajudou.
Camila: No meu caso, houve pessoas que souberam, mas não podiam me
ajudar.
Assim, todas as participantes falaram sobre o dever contar e os casos que envolvem o
dever contar, da mesma maneira que acrescentaram casos particulares a mais argumentos
sobre essa categoria. Foram realizados “argumentos sobre argumentos” (BILLIG, 2008) para
que a categoria deve-se contar quando” fosse estendida a um ponto que contemplasse as
diversas vivências das participantes e seus contatos com essa experiência. Billig (2008),
afirma que
[...] argumentos sobre argumentos não são necessariamente fora do
comum. Nossos oponentes em debate podem frequentemente opor-se à
maneira como classificamos seus argumentos e aquilo que achamos que
estamos fazendo pode ser questionado por nossos oponentes.
Consequentemente, podemos nos encontrar argumentando sobre os
argumentos e as mesmas estratégias argumentativas serão utilizadas.
que, nesse caso, o tema será outros argumentos. É claro, à medida que
esses argumentos vão se desenvolvendo, podemos esperar argumentos
sobre argumentos sobre argumentos. E assim por diante. Pode ser possível
construir um arcabouço analítico para esse tipo de situação, mas, em algum
momento a vertigem intelectual irá nos atingir (p. 236).
Nessa citação, o autor fala sobre disputas entre oponentes em debate, mas, seu
argumento cabe perfeitamente no que foi empreendido entre as participantes. No caso, o
uso de estratégias argumentativas que não necessariamente se opunham ao que foi dito pela
participante anterior, mas antes, acrescentavam relatos para que a categoria contemplasse
suas experiências particulares. Queremos argumentar que o grupo focal funcionou como um
espaço de discussão eficiente para os objetivos desta pesquisa, porém, destacamos que não
136
ocorreram muitas interferências entre as falas das participantes o que era esperado por
mim, uma vez que, de minha experiência, esperava que as participantes “atropelassem” as
falas umas das outras, como costumava acontecer em outros grupos que participei na
instituição. As participantes desenvolveram suas ideias a partir de vários repertórios e
lugares, negociando sobre várias questões que envolveram suas vivências de violência,
construindo conceitos amplos sobre a violência.
7.2 A instituição desempenhando o papel da família
Quando questionadas sobre o que a ONG representava para elas e qual a importância
desta desde o momento que as participantes passaram a frequentá-la, as respostas
qualificavam a instituição como o local que ofereceu o apoio de uma família. Adriana foi a
primeira participante a responder:
Muito importante, né? Ajudou bastante. Pra gente chegar até aqui teve que
ter uma ajuda, né?, um empurrão do ((ONG)). Porque se o ((ONG)) não
tivesse nos ajudado, talvez nenhuma de nós estávamos aqui superando o
que a gente passando, né?, passando- estamos superando hoje. Porque
no momento que aconteceu eu me desesperei. Não tive ninguém próximo
pra me socorrer, vou recorrer pra onde? Pra o Conselho Tutelar (.) na época.
No Conselho Tutelar eu encontrei- eu encontrei, né?, uma conselheira
muito boa, muito, sabe?, que me (.) amparou mesmo no momento que
tinha muito homem, tinha conselheiro, só tinha ela e eu disse: olhe, eu
num quero homem nenhum”. Porque eu já tava com trauma do marido, né?
[Pedro: Uhum] Eu quero falar com a conselheira, uma mulher. E nesse
dia, graças a Deus tinha uma mulher lá, né?, que é evangélica também.
eu cheguei, contei o meu problema pra ela, ela entendeu, foi quando ela
falou dessa instituição aqui, que era o ((ONG)). Que ela num poderia ajudar
muito, mas ela sabia que aqui ia ter o atendimento psicológico, ia ter ajuda
social (.) ia ter uma ajuda do setor jurídico. Então ela disse assim: eu vou
mandar você pra o melhor lugar que tem aqui... no- na nossa região. O
melhor lugar é o ((ONG)). Tem outros, mas como aqui é mais próximo”, eu
disse a ela que era o lugar mais próximo, ela falou vários locais- tem vários
locais, né? “Mas o ((ONG)) seria melhor pra você. eu vim. A partir do
momento que eu vim aqui eu gostei muito do atendimento, as pessoas
aqui, foram assim- apoiaram bastante, nos ajudaram (.) são pessoas
sinceras, são pessoas que acreditaram e até hoje acreditam no que
aconteceu, que dá-nos apoio quando a gente precisa, a qualquer hora a
qualquer momento estão dispostos a nos ajudar.
No discurso de Adriana, podemos perceber que constrói a chegada à ONG como o
local indicado para seus problemas e que ajudou todas elas a superar o que passaram. Em
primeiro lugar, relata como estabeleceu confiança com a conselheira que a encaminhou para
a ONG: foi uma conselheira (mulher) que a apoiou entre os vários conselheiros (homens) que
137
havia ali, e que isso foi importante uma vez que estava com trauma do marido; e, em
segundo lugar, esta conselheira era evangélica como ela. Para Adriana, como pontuamos
num momento anterior, a religião ocupa um lugar central em sua vida, então foi de
importância considerável a conselheira ser mulher e evangélica. No encontro anterior,
Adriana disse que só conseguia superar o que passou devido à igreja e ao grupo religioso que
frequenta e falava que é através de Deus que conseguiu superar o que aconteceu.
Naquele momento, era importante construir a imagem de pessoa religiosa, aqui, ela quer
enfatizar a importância que a instituição tem em sua vida, atribuindo à ONG a ajuda em
superar o que viveu.
A ONG, para a participante, satisfaz critérios estabelecidos durante o grupo para
exemplificar pessoas confiáveis, que “acreditam no que aconteceu” e que dão o apoio
necessário:
[...] Porque é bom você ter uma pessoa pra orientar, porque nesses casos às
vezes você não consegue, como foi falado agora, que a gente aqui tem que
procurar uma pessoa que sabe e conhece da área, a gente não pode
procurar qualquer pessoa [Pedro: Uhum] Num é? A gente tem que se
informar uma pessoa que entende. Então aqui eu gostei muito. É uma
família, como eu disse, uma família que apoia, né? Amorosa. Está pronta
pra nos ajudar, quando a gente não tem condições ela nos ajuda, né? [...]
Adriana traz para a sua argumentação o reconhecimento de eventos relacionados à situação
de violência que foram aprendidos durante sua frequência na ONG para descrever sua
importância:
[...] Porque, nós, nesse casos aqui, nós estamos sabendo. Quantos casos
tem por aí, né?, que pessoas não tem condição (.) de chegarem aqui (.) né?
Por loca- por situação financeira, e outros medo também. Porque muitas
vezes o agressor, ali na sua própria casa, ele ameaça (.) né? Porque eu
conheci uma menina que ela fazia parte da igreja, mas na época- faz muito
tempo atrás (.) e ela disse a mim, que o pai dela violentava, mas que se
ela dissesse pra alguém ele ia matar, ameaçando, e até hoje (.) ela- eu disse
a ela: eu vou te ajudar pra denunciar, vamo comigoe ela: não (.) não,
irmã, não (.). vou levar a senhora não porque ele- se ele souber que eu falei
pra senhora ele pode até matar a senhora”. E até hoje essa menina sumiu,
nunca mais essa menina, tava entrando na adolescência (.) e ela passou
uma situação muito difícil, né? Então são coisas assim que acontece-
aconteceu assim também com uma vizinha que eu conheço. E eu nu- num
cheguei a fazer ela vim não, ela foi até o Conselho Tutelar, do Conselho
Tutelar ela resolveu o problema dela e num chegou a vir para o ((ONG)) não,
e até hoje resolveu. Então, eu (.) acredito que aqui (.) eu acho que não tem
outro lugar melhor não, que eu conheça não, pra mim o ((ONG)) de
parabéns.
138
Seu relato é apropriado de conceitos sobre a situação das pessoas que são vítimas de
violência. Por exemplo, diz que algumas pessoas não têm condições, seja por situação
financeira ou medo. A participante deve ter aprendido durante as intervenções que a
situação financeira seria um fator impeditivo para que as pessoas procurem ajuda, uma vez
que para todas as participantes bem como para oblico que é atendido na instituição o
fornecimento de passagem para o transporte é bastante importante para garantir a
frequência ao atendimento. E descreve que o medo também é impeditivo, no caso, medo do
agressor que está em casa ameaçando aqueles/as que seriam suas vítimas. O termo
agressor, bem como o termo “violentava” que a participante utiliza em seu discurso,
tomam parte em seu argumento sobre a violência para falar de uma situação típica e
recorrente nos relatos de violência: o agressor que violenta e ameaça e a vítima que, por
medo, não denuncia. Utiliza um diálogo com uma pessoa próxima, mas que não tem nome,
para ilustrar como isso acontece. Para Potter (1998), tanto os detalhes como o uso de
pessoas próximas num relato, servem como estratégia de demonstrar veracidade naquilo
que está sendo dito.
Camila em seguida fala que para ela, a instituição é uma segunda família:
O ((ONG)) é a nossa segunda família, né?=
Adriana: =É, exatamente. É a segunda família que temos=
Camila: =A segunda família que a gente tem. A gente, assim (.) de uma certa
forma a gente pegou um carinho muito grande pelas pessoas daqui, que
trabalham. As pessoas que orientam a gente [Pedro: Uhum] Que
aconselham (.) que nos ajuda. Pronto, pra resumir, é uma segunda família.
Adriana: Que nos ajuda, né? E nos apoia, assim, dando ainda curso de
capacitação, né? Pra você aprender a lidar com a situação pela qual você
está passando, ou se tiver alguém, assim (.) nos ajudando assim pra gente
superar e quando acontecer com alguém que a gente conhece, a gente ter
palavras também pra ajudar, né? Que tem as situações assim, como eu
passo, não tinha ninguém pra me apoiar. Num tinha ninguém que chegasse
pra me incentivar, dissesse: ó, eu vou contigo, tu quer que eu vá?, né?,
qualquer coisa eu vou contigo” [Pedro: Uhum] Vim direto assim mesmo
com a cara e a coragem, arrastando a criança (.) e cheguei. E hoje e- eu sei
que eu tenho condições- hoje eu tenho condições suficientes pra se caso
acontecer e alguém precisar de uma opinião eu estarei pronta pra ajudar (.)
pra informar. Pra passar como eu passei e hoje em dia eu estou superando
(.) essa situação, que não é fácil, né? [...]
Camila compartilha do que foi relatado por Adriana, de que existem pessoas que
139
orientam, aconselham e ajudam e que poderiam ser consideradas uma segunda família. É
interessante notar que as participantes atribuem à instituição o lugar de segunda família
tendo como pano de fundo uma possível família ideal: uma família acolhedora, orientadora e
que ajuda. Nos dois encontros, os relatos de falta de apoio por parte da família foram
recorrentes. Durante os relatos de todas as participantes, a família não foi o lugar em que
encontraram apoio, mas antes, o lugar onde encontraram resistência e/ou descrédito. As
participantes projetam na instituição todos aqueles atributos que desejariam encontrar em
suas famílias no momento em que souberam que seus/suas filhos/as estavam sendo vítimas
de violência. Utilizamos aqui o termo projeção de acordo com Billig (2004) que revisita o
conceito a partir de uma perspectiva discursiva, em que argumenta que os mecanismos de
defesa entre eles a projeção são construídos e aprendidos nas relações sociais através
dos padrões discursivos que circulam em nossa cultura. Nesse sentido, as participantes
compartilham umas com as outras durante as oficinas e outros momentos de interação
discursos sobre o papel da instituição em suas vidas. Seria então bastante comum projetar na
instituição discursos sobre os atributos positivos que as participantes desejariam ter
encontrado em suas famílias e que a instituição desempenha de maneira satisfatória.
Em seguida, Adriana faz eco ao que Camila falou para introduzir que a instituição
também apoia fornecendo cursos de capacitação. Para Adriana, a instituição forneceu
condições suficientes” para que hoje ela tanto saiba lidar com a situação que vive como
estar disponível caso alguém precise. Porém, ela também fala de outros espaços em que
também conseguiu encontrar tal apoio nesse caso, a igreja e fala da importância da
interação com outras pessoas na luta para superar as dificuldades:
[...] Eu sei que assim- que eu- (.) um tempo, eu fiquei isolada, mas depois
assim, eu aceitei a Jesus, fui pra casa do- da igreja, eu me envolvi com
muitas pessoas, então eu num fiquei mais isolada. Porque conheci nova
família, novas pessoas, e conversando, não desse caso, lógico, que a gente
não vai tá, né?, conseguindo muita coisa com isso. Mas assim, por
dirigindo a ((incompreensível)) de um grupo grande, assim, de mulheres (.)
né? Muito enorme, são assim quase trinta mulheres que vão. Então ali,
através de- de revistas, de assuntos que colocam pra gente debater na sala,
aí a gente vai desenvolvendo, a mente vai clareando e muitas vezes esquece
até que tá sofrendo. [...]
A participante relata sua conversão e ida à igreja como saída do isolamento, que a
levou a se envolver com outras pessoas e que conheceu uma nova família. É interessante
que Adriana desenvolve uma descrição positiva sobre frequentar a igreja e o grupo que
140
dirige, porém, muda seu relato de modo a deixar claro que ela não está tão à vontade
naquele espaço (frase grifada), uma vez que foram poucos os locais/pessoas de confiança
que foram negociados no grupo como sendo permitidos para se falar do que sofreram. Ela
faz um parêntese para deixar claro que ela não conversava sobre seu caso, mas sobre
outras coisas que a levavam a esquecer seus sofrimentos.
Essa mesma ressalva pode ser notada no trecho abaixo, em que falava de um
momento em que frequentou uma oficina sobre violência promovida na Universidade
Católica de Pernambuco:
[...] Então pra mim foi muito bom, a gente aprendeu, a gente assim, fez
trabalhos e depois nós fomos apresentar o que a gente tinha entendido
concernente a essa situação. Aí, a gente- ficou um pouco mais fácil da gente
falar. Então, viver assim na sociedade também é muito bom, a gente não
pode ficar muito isolada porque também quanto mais a gente se isola é
pior, a gente fica doente, né? E a gente não vai ter condições de ajudar a
própria criança nossa, e não vai ter condições de ajudar ninguém que possa
precisar da nossa ajuda, e nem de se envolvendo- não contando nosso
caso, lógico, mas se a gente se envolver assim de tá- é como eu falei, de um
curso, a gente tem que tentar que fazer alguma atividade pra que a gente
não pare a nossa mente, né? Que a gente também não tem condições de
tornar- de forma que a gente venha a mais tarde a gente diga: poxa, foi
difícil aquela situação, mas eu superei, eu cheguei (.) né? Eu cheguei aqui,
tive ajuda, alguém me ajudou”. E, levantar a cabeça porque daqui pra
frente, é (.) os nossos filhos precisam da gente, que a gente tem que
numa situação de (.) espiritualmente boa pra que a gente possa também
tá partilhando pra eles [Pedro: Uhum=] Né? Que a gente precisa de- (.) e se
a gente não tiver segurança, a gente- com quem que a gente vai contar?
Porque (.) nossos filhos são o espelho, nós somos espelhos pra eles, né? [...]
Adriana retoma a necessidade de não se isolar, de “viver assim na sociedade”. No seu
discurso, a participação nesses espaços proporcionados após a frequência na instituição tem
grande importância. Em outro momento (p. 130), ela falou como as pessoas que são vítimas
de violência, principalmente violência sexual, “saiam do mundo” e “não existam mais”,
dando a entender então que a participação no grupo religioso, na instituição e em outros
espaços lhe proporcionaram uma “volta à sociedade” e um olhar pacificado para aquele
passado de isolamento. Em seu discurso, a questão de que passar pro/a filho/a o que passou
depende de cada um volta de outra forma, nesse caso, através da ideia desenvolvida no
primeiro encontro de que os filhos são o espelho dos pais, por isso deve-se estar bem para
passar coisas boas para eles, como ela relata na continuação:
[...] E quando a gente chora, qualquer situação que a gente sente, eles
141
também sentem. Porque a semana passada eu tava doente, e minha
menina chegou perto de mim “mainha, eucom tanta pena da senhora. A
senhora chorando eu vou chorar também”, eu fiz: “não chore não”,
((incompreensível)) comigo mesmo, entendendo? Então são essas coisas
que a gente também passa pros nossos filhos, né? E num vou dizer que a
gente não chora, lógico que a gente chora. Mas a gente também tem que
lidar com a população como ((incompreensível)) em sociedade. Eu vivo
meio- muito em sociedade e é por isso que eu acho que superei o que eu
estou passando hoje. Acontece que a minha situação- você pode até dizer
assim, a maioria da população não passou tudinho o que eu passei, né?
Como é o caso de Camila que eu acho o mais difícil [...]
A participante menciona o caso de Camila como sendo mais difícil, fazendo contraste
entre a violência sofrida por sua filha, que acredita ter sido difícil mesmo “todo mundo
dizendo” que foi só uma coisa superficial, com a violência sofrida pelos dois filhos de Camila.
Após comentar que as pessoas não entendem a dor que é ter um/a filho/a vítima de
violência até passar por ela, diz que foi a partir dessa vivência com sua filha que passou a
sentir e compreender a dor das outras pessoas. Apresenta-se como alguém que tem mais
experiência na instituição e fala que Camila vai passar pelo mesmo processo pelo qual ela
passou e que através da ajuda promovida pela instituição ela vai conseguir superar as
dificuldades:
[...] Enquanto no vizinho, tudo bem, né? Mas a partir do momento
que acontece comigo, a gente vai perceber que o vizinho sofreu o que eu
tô sofrendo, ele sofreu também. Mas vai sentir a dor da outra pessoa, que a
gente sente a dor de Camila, né?, porque teve o caso da criança. Mas
mesmo eu assim eu sei que Camila, com certeza ela tá levantando a cabeça,
descansando um pouco, o ((ONG)) também ajudando, e ela vai superar
tudo isso, porque (.) só Deus mesmo pra tirar, né?, do nosso coração.
Porque a gente não tem como falar, mas eu creio que ela também vai
superar o que hoje eu estou superando, o que eu estou a passar= [Jullyane:
=Uhum=] =Por tudo isso que eu tô passando- por isso que eu passando a
experiência que eu tive, né? (.) uma experiência. E eu acredito que a
gente com certeza um dia a gente vai superado tudo isso. Pode ter uns
dois séculos, mas a gente pode superar [Pedro: Uhum] Pode não esquecer,
mas superar a gente consegue superar, num é?
Eu questiono Lúcia sobre sua opinião em relação ao que está sendo discutido, e ela
responde:
Eu acho o ((ONG)) aqui, é um (.) não sei o que é família (.) mas- mas eu fui
muito bem acolhida aqui. É (.) pra mim, minha família é justamente o que o
((ONG)) me ajudou, me mostrou que são essas pessoas, são assim, são eles.
Que colocou meu cam- eu vinha mui- direto. Justamente porque eu não
tinha apoio da minha família. aperreava um pouco (.) cheguei até a sair
142
daqui (.) mas, (.) graças a Deus eu cheguei, voltei, tudinho- gosto muito
de Edvania ((assistente social)) que ela, assim, eu nunca mais a vi, né? Que
ela era muito receptiva com- aí conversou com as menin- acho que ela
conversou. eu cheguei, fiz uma gritaria, que eu cheguei depois,
conversei tudinho (.) num tava- num tava- num tava acreditando mais em
nada [Jullyane: Uhum] Mesmo porque (.) a gente fica assim (.) sem a- (.)
assim (.) o caso demorando, as pessoas não ajudam a gente e ficam
cobrando, a gente fica se cobrando e a gente não sabe porque- por causa da
morosidade, tudinho (.) que essas oficinas são boas por causa disso, que é
(.) é (.) a gente indo pra congresso, é bom por causa disso. eu vi que o c-
eu não podia ficar sem o ((ONG)), aí eu voltei atrás, entendesse? Pedi
desculpas a equipe, perguntei se eles me aceitavam de volta, tudinho. (.)
eu disse não, eu nu- eu posso ficar ((ri)) sem apoio, mas sem o ((ONG))
((rindo)) posso ficar sem a minha defensora pública, que eu tenho certeza
que eu posso ficar sem ela, porque quando- ela não estava quando eu
precisei [Jullyane: Uhum] Mas sem o ((ONG)) não, porque (.) é, foi a partir
do ((ONG)) que- foi- só o ofício que mandavam, e elas começavam a
querer andar direitinho [Pedro: Uhm=] =Aí as meninas que foi lá, que
num- num- num o- num (.) que ali em Abreu e Lima não podia ir, mas abriu
essa exceção (.) foram lá, tudinho. Foi por causa delas que (.) me ajudou
muito na questão judicial, na questão psicológica, e (.) é- é, o ((ONG)) é tudo
pra mim. Eu gosto muito de aqui, eu gosto muito de (.) foi um- abriu
um- um mundo novo, né?, um leque. Porque a gente aprende a lidar com
nossos filhos é aqui, com as oficinas, a gen- é- a gente não tem condições
financeiras, é- financeiras de indo e vindo (.) eles dão passagem, assim,
que outros cantos não faz isso, num vai lhe dar esse apoio. o pessoal- as
pessoas daqui nos atendem muito bem (.) é- é- são muito educados. Às
vezes, é o desespero da gente que (.) quer atrapalhar- é o desespero. Mas,
gras a Deus (.) é- é- eu me dei bem de novo com essa família- ((rindo)) e
foi só por um momentinho, viu?, eu nem saí, né?
A princípio, Lúcia relata uma particularidade e se posiciona de maneira diferente de
Camila e Adriana, dizendo que “não sei o que é família (.) mas- mas eu fui muito bem
acolhida aqui. Ao responder dessa forma, ela quer deixar claro que não tinha um conceito
prévio do que chamamos aqui de família ideal, conforme foi desenvolvido nos discursos de
Camila e Adriana. Seu discurso é construído de forma a dizer que “família” foi um conceito
que ela passou a desenvolver a partir da frequência na instituição e com o conhecimento e
apoio das pessoas que a compõem, uma vez que ela “não tinha apoio da minha família”
sendo “família” o conceito amplo desenvolvido principalmente por Adriana no momento
anterior. Ela menciona um episódio particular, que aconteceu na época em que eu era
estagiário na instituição, quando se desentendeu com a equipe e deixou de frequentar
aquele local mas depois resolveu “voltar atrás”. Logo em seguida diz que foi a partir das
oficinas e congressos promovidos pela instituição que ela entendeu que a demora
143
“morosidade”, demonstrando a apropriação de um jargão jurídico faz parte dos processos
jurídicos e justifica sua impaciência dizendo que haviam pessoas lhe cobrando resultado
sobre o caso de sua filha e também dizendo que ela mesma se cobrava. Ao final, tenta se
justificar e se defender relatando o motivo que a levou a sair de lá: Às vezes, é o desespero
da gente que (.) quer atrapalhar-, e que agora se dá bem novamente com essa família”.
A instituição se tornou o lugar/pessoa de maior importância para a participante
“posso ficar sem a minha defensora pública, que eu tenho certeza que posso ficar sem ela,
porque quando- ela não estava quando eu precisei além de se encaixar nos atributos
construídos no grupo como sendo o esperado de uma família ideal. Para a participante,
parece pesar as construções de Adriana e Camila sobre a instituição ser uma família/nova
família/segunda família, pois ela oscila entre concordar com elas e se posicionar como
alguém que não sabe o que família é:
Lúcia: E desde eu entendendo porque a demora, to entendendo que
tudo- que o ((ONG)) foi bom, que foi bom não, que foi o- o ideal. Sem ele eu
tava (.) perdida, né? Oxe (.) é- quando me disseram é uma fam- como eu
não conheço família, [assim (.) eu
Jullyane: [Mas é- é um lugar de acolhimento, né? De ajuda, de apoio
Lúcia: Meu- minha família é meu pai [Jullyane: Uhum] Meu pai e minha
filha. Meu pai faleceu e tenho minha filha, né? E (.) agora quando eu
aperreada eu converso com as meninas, penso no caso das meninas,
tudinho. é tão bom se ajudar, que elas (.) que fosse pra frente. No caso,
que tem outra aqui que (.) tava sem acreditar ontem, que ela até
afastada- a gente fica pensando, né?, que se afasta (.) né? É (.) mas aqui eu
converso tudo, é um, no caso meu, de informação (.) psicológica, de ajuda
psicológica e- e (.) e jurídica, e (.) informam- lhe mandam pra o lugar
certo aqui. Só ouvir (.) ouvir= [Jullyane: =De orientação, né?=] é.
Toma passagem, toma passagem de novo. Vá, tome. Vá agora, vá praquele
lugar. Agora também a gente tem que ser [Camila: Paciente, né?=] =Então
a gente s- tem que assim, agir= [Jullyane: =Uhum=] =Feito elas dizem, num-
num é a gente não, principalmente, é- vocês que tem que correndo
atrás [Pedro: Uhum] Né? Que a justiç- (.) mas ela serve pra todos. Eu acho
que sem o ((ONG)) eu num tava aguentando não. [...]
Parece incomodar a participante colocar a instituição no lugar de família e ela prefere
se posicionar de maneira distinta das outras participantes, em que ela acredita que a
instituição tenha todos esses atributos de uma família ideal que Adriana e Camila relataram,
mas que para ela “minha família é meu pai e minha filha”.
Tanto os relatos das três participantes nesse momento como algumas descrições
144
breves das demais participantes sobre as posições/orientações/apoio oferecidas pelos
profissionais da ONG no primeiro encontro falam sobre a importância da instituição. Foi esta
quem forneceu um espaço de ajuda e apoio na resolução de seus problemas que não foi
encontrado em suas famílias. Outro aspecto importante de ser enfatizado é o caráter
pedagógico que as intervenções institucionais têm para essas participantes, orientando-as
sobre como agir em diversas situações que precisaram enfrentar a partir das violências
sofridas por seus/suas filhos/as.
8. Considerações finais
Ao final da jornada que foi construir este trabalho, é difícil chamar de “finais” as
considerações que serão aqui realizadas. Espero que este trabalho seja o início de reflexões
que desejo aprofundar nos anos que virão. Foi elaborado de forma a compreender a
diversidade de discursos que são produzidos sobre a violência doméstica.
Quanto aos resultados da análise, acreditamos que alcançamos nossos objetivos de
forma satisfatória. Não buscamos aqui fazer reflexões amplas sobre o fenômeno da violência
doméstica, mas antes, discutir as estratégias que as participantes utilizaram para produzir e
argumentar sobre esse conceito. Da mesma forma, algumas das breves reflexões que foram
elaboradas durante a análise ajudaram a compreender a importância da intervenção
institucional com as cuidadoras para que elas se apropriassem desse conceito.
Através de seus relatos, podemos compreender exemplos de conceitos e práticas que
foram apropriadas pelas participantes a partir de repertórios sobre o fenômeno da violência
doméstica fornecidos pela instituição. Estes repertórios permitiram que elas passassem a
nomear e significar eventos recentes e antigos que antes não eram reconhecidos como
sendo violentos. Desde então, as participantes constroem seus passados a partir desses
novos referenciais, fato que discutimos durante as análises.
Sob uma perspectiva preventiva, é crucial notar que as crianças e adolescentes que
estão sob suas tutelas poderão ter um apoio mais bem adequado de acordo com os
repertórios que estas dispõem para dar sentido ao fenômeno da violência. Nesta instituição
que realiza intervenções com os/as cuidadores/as objetivando capacitá-los/las sobre este
tema, oferecendo conceitos e qualificações sobre o fenômeno, notamos como o acesso a
estes repertórios permitiram “enxergar” a realidade a partir de novos discursos. Porém, as
categorizações e definições não chegam de forma neutra para cada um/a deles/as. Durante
as análises, notamos que as participantes privilegiaram como “violência doméstica” aquilo
que elas viveram como violência contra si mesmas e contra seus/suas filhos/as e
escolheram subtipos específicos para qualificá-la.
É uma inquietação particular do autor que o fenômeno que é denominado “violência
doméstica” seja dividido em “caixinhas” ou tipos. Considerando os conceitos destes tipos
146
apresentados na literatura, como visto no capítulo dois, eles podem se entrelaçar no ato
violento: uma agressão física pode ser ao mesmo tempo negligência, violência psicológica e
violência sexual, por exemplo. E, muitas vezes, essa complexidade não é apresentada aos
cuidadores/as. Porém, reconhecemos a importância de utilizar categorizações e
particularizações, como afirma Billig (2008), a fim de englobar uma série de fenômenos que
possam ser nomeados “violência doméstica”, estendendo seu conceito e facilitando seu
reconhecimento e caracterização sob uma perspectiva acadêmica e jurídica. Da mesma
forma, assim que esses conceitos saem do papel” e fazem parte da linguagem em uso no
cotidiano, eles são reinventados e reconstruídos a partir da experiência daqueles que os
usam. Nesse sentido, os/as cuidadores/as realizaram categorizações e particularizações
sobre os conceitos que lhes foram apresentados com o objetivo de englobar suas vivências e
experiências pessoais.
Reconheço que ao mesmo tempo em que essas “caixinhas” podem não passar a
ideia, quando apresentadas aos/as cuidadores/as, de que a violência é um fenômeno
complexo e que todas essas categorizações podem interagir num mesmo ato, elas permitem
uma identificação e uma nomeação que constroem sentidos quase imediatos para aquilo
que seus/suas filhos/as sofreram. A partir de uma perspectiva discursiva, reconheço que
esta inquietação diz respeito a como eu autor gostaria de descrever o fenômeno da
violência doméstica. Porém, sob essa mesma perspectiva é impossível não admitir que,
independentemente de como o conceito seja categorizado e qualificado na literatura, nas
intervenções, materiais etc., as pessoas vão reutilizá-los no cotidiano produzindo discursos e
atribuindo sentidos à sua maneira, a depender de seus interesses e objetivos retóricos.
Outro aspecto relevante que gostaria de salientar é como a vivência da violência é
relativa. Abro aqui parênteses para falar a partir da minha experiência na instituição. No
período em que estagiei na instituição, realizei atendimentos com crianças, adolescentes e
cuidadores/as, tanto individualmente como em grupo, e participei e ajudei a ministrar
oficinas. Pude observar como as crianças vítimas de violência apresentavam alguns dos ditos
sintomas típicos, como muitas vezes não: eram crianças ativas, felizes, brincalhonas, enfim,
“típicas crianças” (utilizando-me convenientemente de uma categoria do senso comum);
estendo o mesmo argumento para os adolescentes. Na literatura, encontramos que as
crianças e adolescentes lidam melhor com a situação de violência quando encontram um
147
bom apoio ou se encaixam numa série de características que englobem o chamado “melhor
prognóstico” (ALMEIDA PRADO; PEREIRA, 2008).
Hacking (1995) argumenta que não é tão incomum encontrar crianças e adolescentes
que lidam bem com esta situação, uma vez que os estudos sobre violência contra criança
em especial o abuso sexual infantil eram feitos com crianças que apresentavam
sintomas. Ou seja, era comum encontrar na prática clínica crianças vítimas de abuso sexual
que eram assintomáticas, ainda que existissem algumas peculiaridades que se notavam,
como a sexualidade exacerbada. E haviam, segundo o autor, estudos que alertavam sobre a
existência desse fato. Como podemos observar a partir dos relatos analisados, a vivência da
violência é mais complexa do que uma catalogação de sintomas e nem todos reagem da
mesma forma, ou dão importância aos mesmos fatos. Muitas vezes, as perdas decorrentes
da violência exerciam um maior impacto sobre a criança/adolescente do que a violência
sofrida. Por exemplo, uma adolescente que atendi relatou que não foi ter sido violentada
por um vizinho que a deixava mais triste, e sim ter pedido a posição que tinha na sua igreja
de cantora principal no coro. Após engravidar em decorrência do abuso que sofreu, não
podia mais frequentar a igreja, nem participar do coro e muito menos poderia contar na
igreja o que lhe aconteceu. Das participantes da pesquisa, observamos que Lúcia não
atribuía importância ao bater da sua mãe, chegando a admitir que era divertido em alguns
momentos, e dizendo que a “conversa” de seu pai sim lhe causava impacto.
Nos relatos das participantes principalmente de Adriana e Lúcia a vivência da
violência é complexa e nem todas reagiram da mesma forma tanto ao enfrentar a violência
sofrida contra seus/suas filhos/as, como nos relatos das violências que sofreram na infância.
Como Adriana fala, “não sou uma pessoa revoltada do que aconteceu não”. Não estamos
supondo que não hajam conflitos e contradições em relação ao impacto maior ou menor da
violência que sofreram, sobre “realmente” não ter sido de grande importância o bater
sofrido na infância para o adulto hoje. Antes, estamos afirmando que construímos nossos
relatos sobre o mundo e sobre o que nos aconteceu em diversas situações objetivando
provocar determinado efeito para aquele que nos ouve. Como exemplos, notamos como
Lúcia descreveu o bater que sofreu como banal e sustentou essa posição em seu relato, já
Adriana tinha atribuído semelhante tom de banalidade ao bater, mas mudou de ideia após a
fala de Camila. Não podemos afirmar com certeza alguma que Adriana se posicionará de
agora em diante em relação ao bater como algo não-banal, mas, dependendo de que
148
objetivo almeje, e para quem fale, ela vai se posicionar em relação ao bater como um fato
banal ou condenável.
Nesse sentido, gostaria de deixar algumas reflexões para os/as possíveis leitores/as
que trabalham com o tema em questão. No acompanhamento psicoterápico, negociamos
novos repertórios para (re)significar os eventos que as crianças/adolescentes viveram como
sendo atos violentos. Da mesma forma, a intervenção com os/as cuidadores/as que estão
com a tutela da criança/adolescente é primordial para que eles/as forneçam o apoio
necessário durante este período. Esta é também uma forma de instruir estes/as
cuidadores/as sobre possíveis atos que eles/as cometem contra seus/suas filhos/as e que
possam ser reconhecidos como violentos a partir de uma perspectiva que preza pelos
direitos da criança. Garantindo assim a proteção da criança/adolescente não só contra
aquele cuidador/a que foi reconhecido como agressor, mas também contra possíveis atos
violentos daquele/a que está com sua tutela. Como observamos nos relatos das
participantes, a intervenção institucional foi crucial nesse quesito.
Por fim, uma última reflexão diz respeito à riqueza que percebemos na discussão em
grupo. Nos grupos focais realizados, notamos como esta é uma dinâmica que permitiu uma
interação bastante interessante entre as participantes, gerando maior variabilidade
discursiva. Tal variabilidade facilitou que vivências diferentes fossem categorizadas sobre um
mesmo fenômeno, bem como os conflitos que surgiram das categorizações destas
diferentes vivências permitiram que características da violência doméstica que as cuidadoras
produziam fossem repensados e reformulados a partir dos jogos de posicionamentos que
elas empreenderam. A partir dessa experiência, acreditamos que grupos focais sistemáticos
com cuidadores/as que têm filhos/as vítimas de violência e que são atendidos em
instituições podem favorecer bastante a reflexão sobre o fenômeno e garantir que uma
maior gama de eventos/atos que são considerados violentos sejam negociados e
reconhecidos como tal ou não.
Podemos afirmar que o discurso institucional exerce um poder disciplinador sobre as
participantes. Nos momentos da análise em que elas falam como passaram a atribuir
significado ao fenômeno da violência, as prescrições da instituição sobre como se comportar
com seus/suas filhos/as são apresentadas como incontestáveis. Em suas falas, elas não se
posicionam contrárias a essas prescrições de forma explícita e estão sempre delegando a
instituição o papel de quem lhes trouxe não um conjunto de argumentos e prescrições que
149
podem ser discutidos ou mesmo contestados, mas a verdade sobre como elas devem se
comportar na relação com seus/suas filhos/as. Por isso mesmo, o discurso institucional
favoreceu a (re)significação da experiência anterior e/ou recente desses/as cuidadores/as,
seja de suas próprias vivências ou daquelas que seus/suas filhos/as vivenciaram.
Como percebemos, fornecer novos repertórios é fornecer “armas poderosas” para
que a realidade seja construída nestes novos discursos. Porém, não devemos achar que
forneceremos com isso “uma verdade libertadora”, mas antes, que ajudaremos a trilhar um
novo caminho que não é isento de conflitos, dúvidas e perigos.
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APÊNDICES
APÊNDICE 1.
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Eu,______________________________________________________________,
R.G:_____________________, declaro, por meio deste termo, que concordei em ser
entrevistado(a) na pesquisa de campo intitulada Os sentidos da violência doméstica em jogos
discursivos de cuidadores/as de crianças que foram vítimas de abuso sexual” desenvolvida pelo
mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), Pedro Paulo Viana Figueiredo (RG: 5582611 SSP/PE), sob orientação do
Prof. Dr. Pedro de Oliveira Filho. Fui informado(a), ainda, de que poderei contatá-lo a qualquer
momento que julgar necessário no seguinte endereço: Rua Falcão de Lacerda, 141. Tejipió,
Recife PE (CEP: 50.930-010), ou através dos telefones (81) 9606.8084 / (81) 3251.5351 ou e-
mail pedro.vfigueiredo@gmail.com
Afirmo que aceitei participar por minha própria vontade, sem receber qualquer incentivo
financeiro e com a finalidade exclusiva de colaborar para o sucesso da pesquisa. Fui
informado(a) dos objetivos estritamente acadêmicos do estudo, que, em linhas gerais é analisar
os sentidos da violência doméstica em discursos de cuidadores/as de crianças que foram vítimas
de abuso sexual.
Fui também esclarecido(a) de que os usos das informações por mim oferecidas estão
submetidos às normas éticas destinadas à pesquisa envolvendo seres humanos, do Comitê de
Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco.
Minha colaboração se fará por meio de grupo focal, a ser gravado a partir da assinatura
desta autorização, onde será preservado o anonimato de todos os participantes. O acesso e a
análise dos dados coletados se farão apenas pelo pesquisador e seu orientador.
Estou ciente de que, caso eu tenha dúvida ou me sinta prejudicado(a), poderei contatar o
pesquisador responsável, ou seu orientador, ou ainda o Comitê de Ética em Pesquisa da
Universidade Federal de Pernambuco, que fica na Av. Prof. Moraes Rego, s/n. Cidade
Universitária, Recife PE (CEP: 50670-901), através do telefone (81) 2126.8588.
O pesquisador me ofertou uma cópia assinada deste Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido, conforme recomendações da Comitê de Ética em Pesquisa.
Fui ainda informado(a) que a pesquisa não envolve riscos ou danos à saúde, e de que
posso me retirar desse estudo a qualquer momento, sem prejuízos, sanções ou
constrangimentos. Sei que tenho o direito de determinar que sejam excluídas do material da
pesquisa informações que já tenham sido dadas.
Recife, ____ de _________________ de _____
Assinatura do(a) participante: _____________________________________________
Assinatura do(a) pesquisador(a): __________________________________________
Assinatura da testemunha: _______________________________________________
Assinatura da testemunha: _______________________________________________
APÊNDICE 2.
Roteiro do Grupo Focal Cuidadores/as
Data do Grupo: ___ / ___ / ___
Participantes: ___________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
Eu vou me apresentar e dizer qual o motivo para estarmos aqui hoje e, em seguida,
gostaria que vocês se apresentassem e me dissessem como chegaram nessa
instituição.
É a primeira vez que vocês vêm a um local que trata desta temática, da violência
contra criança?
Há quanto tempo vocês frequentam este local?
Vocês participaram, neste local, de algum grupo, oficina temática ou outra forma
de encontro, individual ou com outras pessoas? Poderiam falar sobre suas
experiências nesses encontros?
Se eu perguntasse se algo mudou em suas vidas desde que passaram a frequentar
este local, o que vocês me diriam?
Quando falo “violência contra crianças”, o que vocês poderiam me dizer sobre isso?
E sobre “violência doméstica”?
Vocês sempre acharam isso?
O que este local representa para vocês?
Há alguma coisa que não perguntei, mas, vocês gostariam de comentar ou fazer
alguma observação?
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