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Tiago Tresoldi
A teorização e a prática do romance histórico
em Os noivos, de Alessandro Manzoni
Rio Grande
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Tiago Tresoldi
A teorização e a prática do romance histórico
em Os noivos, de Alessandro Manzoni
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Mestrado em
História da Literatura da Universidade Fe-
deral do Rio Grande, como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre em Letras.
Orientador:
Prof. Dr. Carlos Alexandre Baumgarten
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Rio Grande
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Lembrando Stendhal, to the same Happy Few.
Agradecimentos
É realmente arriscado organizar uma lista de agradecimentos, sempre haverá quem
deveria ser lembrado em específico, e não entre os “demais”. Ainda assim, não posso
deixar de dar meus sinceros agradecimentos:
à Danieli, que esteve sempre ao meu lado;
a meu orientador, que com não menos tolerância conduziu esta dissertação apesar
de minhas constantes e recorrentes teimosias;
a meus pais, pelo apoio e pela insistência na conclusão desta;
a meus colegas de mestrado, como o Bruno, a Carolina, a Luciane, a Maria Chris-
tina, o Raul, o Samuel e principalmente a Diana pelas nossas longas discussões teóricas
que fizeram levar para frente as dissertações de um e de outro;
aos poucos professores que entenderam como por trás da obstinação de minhas
opiniões havia dúvidas e receios honestos pelo presente e futuro da discussão acadê-
mica da literatura: Antônio, Fornos e Rubelise;
a todos os demais que esqueci ou que certamente não gostariam de ver o nome
aqui, em público.
δένδρεσιν εὐκάρποις οὐδὲν πλέον
Resumo
Esta dissertação discute a teorização e a prática do romance histórico oitocentista
por Alessandro Manzoni (—), tanto em sua produção ensaística (em especial
Del romanzo storico, de ) quanto naquela literária em I promessi sposi [Os noivos]
(). Para isto, discuto a compreensão contemporânea de “romance histórico” a par-
tir dos entendimentos correntes quanto aos gêneros literários, buscando uma solução
na defesa do romance histórico como uma manifestação artística, geográfica e tempo-
ralmente particular de um modo narrativo sempre existente e necessário, que busca
conciliar o discurso percebido como histórico (de uma verdade correspondente à reali-
dade) com aquele percebido como ficcional (de uma verdade coerente à expectativa do
universo literário narrado); a conhecida crise deste gênero é assim analisada pela sua
relação com os debates contemporâneos sobre a historiografia, os quais, por sua vez,
dificultam uma clara separação entre histórico e ficcional. O romance de Manzoni é
deste modo inserido no jogo de forças entre compromissos históricos e ficcionais que,
neste entender, marcou sua prática artística desde a juventude, culminando na obra
aqui analisada: esta serviu-lhe ao mesmo tempo de laboratório para este gênero então
novo e de veículo para a expressão irônica, fruto de uma rígida ética ao mesmo tempo
iluminista e cristã que lhe era peculiar, desta capacidade de conciliar história e ficção.
Abstract
is dissertation discusses the theory and practice of the historical novel of the
eighteenth century by Alessandro Manzoni (—), both in his essays (in parti-
cular Del romanzo storico, ) and his novel I promessi sposi [e Betrothed] ().
us, I discuss the contemporary understanding of “historical novel” by the current
debates about literary genres, aiming for a solution with the defense of the historical
novel as a manifestation, artistically, geographically and temporally particular, of a
narrative mode whi always existed and has always been necessary, one that aims
to conciliate a discourse perceived as historical (related to a truth that corresponds to
reality) with one that is perceived as fictional (related to a truth that is consistent with
the expectations of the literary universe it narrates); the mu-publicized crisis of this
genre is thus considered by its relation to contemporary debates regarding historio-
graphy, whi, in turn, hinder a clear distinction between history and the fiction. In
this sense, Manzoni’s novel is taken as a subject of the struggle between historical and
fictional requirements whi, according to my view, marked his artistic efforts since
his youth, culminating in the novel in exam: it would have served him at the same time
as laboratory for this literary genre, at that time new, and as a vehicle for expressing
ironically, as a result of his peculiar Enlightenment and Christian ethics, its supposed
ability of combining history and fiction.
Sumário
Apresentação p.
Introdução p. 
. De Alessandro Manzoni e I promessi sposi . . . . . . . . . . . . . . . . p. 
Do romance histórico entre “história” e “ficção” p. 
. O “modo” narrativo do romance histórico . . . . . . . . . . . . . . . . p. 
. No panorama da historiografia atual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 
Manzoni e I promessi sposi p. 
. Percurso biobibliográfico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 
.. Infância e juventude . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 
.. O período parisiense . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 
.. Os hinos religiosos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 
.. A primeira tragédia histórica: Il Conte di Carmagnola . . . . p. 
.. A última experiência dramática: o Adeli . . . . . . . . . . . p. 
.. As odes políticas e a Pentecoste . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 
.. O romance sem idílio da Providência: I promessi sposi . . . . p. 
.. Final da vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 
. A teorização manzoniana sobre o romance histórico . . . . . . . . . . p. 
Epílogo p. 
Referências Bibliográficas p. 
Apêndice p. 
Nota sobre a tradução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 
Do romance histórico e, em geral, das obras que mesclam história e inven-
ção Primeira parte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 
Apresentação
Conhecer a tradição literária italiana é indispensável ao brasileiro que
respeite sua própria cultura […]. É, com tristeza, portanto, que se assiste
entre nós à investida contra aquela grande tradição literária, investida
que procede da obsessão por atender de imediato ao mercado editorial ou
profissional. (Pedro Garcez Ghirardi, Lírica Italiana Claúdio Manuel
da Costa
em conhecesse o delicado planejamento e a laboriosa prática que Alessandro
Manzoni costumava imprimir às suas obras, e através das quais esculpiu-se boa parte
da imagem pela qual é lembrado, não poderia deixar de se surpreender ao conhecer
os meandros da origem repentina e particular desta dissertação. em igualmente
conhecesse a reserva com que o público primeiro de Alessandro Manzoni, o italiano,
costuma afrontar tais obras, tão fixas no currículo literário a ponto de serem odiadas
pela maioria, da mesma forma ficaria perplexo com esta escolha, como lembrava An-
drea Camilleri, aparentemente «odiosa e tediosa».
Obrigado a decidir subitamente um novo tópico de pesquisa, após incontáveis im-
passes anteriores sobre o narrativa medieval de Chrétien de Troyes, a lírica de Safo e
o De Vulgari Eloquentia dantesco, minha primeira lembrança foi um volume que por
caminhos casuais, e em termos manzonianos talvez dissesse hoje “providenciais”, fora
parar em minhas mãos alguns dias antes e que repousava sobre minha mesa de traba-
lho desde a noite anterior. A memória apressou-se em apresentar esta como a única
alternativa viável, recusando-se em oferecer outras. Apesar das hesitações sobre as
possibilidades que aquele serioso volume de capa preta me reservaria, não parecia ha-
ver outro caminho e, assim, decidiu-se meu novo tópico de estudo: Manzoni, I promessi
sposi e o romance histórico.
Se o contato entre Manzoni e os autores anteriores é marginal, ao menos os qua-
tro se inseriam numa proposta pessoal que felizmente soube manter. Acostumado a
práticas provincialistas, tanto na grosseira exaltação de tudo quanto fosse percebido
como “local” quanto na ainda mais estúpida defesa incondicional e não ponderada de
tudo quanto supostamente seja “expressão do combate” a inimigos comuns, se tratava
¹ Ghirardi (, p. ).

de uma eleição não menos diferenciada em sua origem temporal e geográfica. Com
uma facilidade inesperada, Manzoni se acordava assim aos preceitos de um aluno que
sempre contestara o interesse quase exclusivo da crítica brasileira atual pelo contem-
porâneo e principalmente por tudo que seja estilística e nacionalmente exótico.
As justificativas acadêmicas para o estudo de Manzoni e de seu romance histórico,
I promessi sposi, recaem na relevância destes, mesmo frente ao aparentemente distante
sistema literário local, como expressão singular do nascimento do romance histórico
oitocentista, este que pode a bons motivos ser considerado o primeiro gênero literário
efetivamente moderno ou, querendo-se, mesmo pós-moderno. Nesta Apresentação,
terreno insólito da produção acadêmica pela exigência de uma informalidade censu-
rável no restante do texto, é porém necessário confessar as não poucas motivações
também pessoais para esta pesquisa. O tratar-se de uma das antonomásias da litera-
tura italiana, a passo par com a Commedia ou o Furioso, suscita-me inevitavelmente
um sentimento de afinidade no qual muita da crítica contemporânea perceberia, com
razão, um ato de afirmação identitária. Afinal, não é simplesmente uma obra italiana
do Oitocentos, e portanto não local ou contemporânea: além disto, o romance é ambi-
entado nas terras de minha infância, no mesmo panorama de planícies e coxilhas com
o Resegone ao fundo em que passei meus primeiros anos; retrata a mesma cultura da
qual ainda percebo sinais claros sob os calques da modernidade, da globalização, da
tecnologia de ponta e do inevitável suceder-se histórico, inclusive e talvez princi-
palmente em seus aspectos mais negativos. Até mesmo as cidadezinhas periféricas
pelas quais Renzo, o protagonista, foge após os tumultos de Milão são exatamente a
constelação de burgos da bassa Brianza onde nasci e vivi, e sem muito esforço epis-
temológico posso identificar em uma daquelas anônimas cidades pelas quais se passa
antes de egar a Gorgonzola a minha própria.
A isto soma-se um interesse afastado de um pragmatismo profissional nos estudos
limitadamente literários, pois esta abordagem supera a simples inclusão de um ponto
de vista historiográfico em sua coincidência entre a “invenção” e a “história” e reflete-
se em uma miríade de superfícies intelectuais, iluminando o interesse pelo romance
histórico. Antes de mais nada, se trata de um campo prático de aplicação de muitas
teorias literárias, historiográficas e filosóficas, uma institucionalização daquela «pro-
miscuidade intelectual» tão lembrada e pregada por Linda Huteon justamente em
seu conhecido estudo sobre o pós-modernismo, e que, em essência, não deixa de ser
um retorno aos bons tempos do homem enciclopédico tanto que não se pode ne-
gar um prazer do público e da crítica pelo romance histórico justamente por ser mais

difícil, com a superação da fronteira da ficção e a necessidade de diálogo com conheci-
mentos mais amplos, tornando-se um fator de distinção cultural entre seus praticantes.
Em acréscimo, este cruzamento das questões fundamentais da historiografia com toda
a base da teoria literária não se limita à literatura em si; pelo contrário, estende-se a
espaços esquecidos quando não excluídos, desde menores e paralelos, como histórias
em quadrinhos, até maciços culturais como filmes e séries televisivas, não raro nas su-
perproduções tão em voga que buscam cruzar o elemento histórico com o poético, o
efeito educativo com sua fundamental função de deleite.
É por isto que pude elaborar um discurso que, espero, tenha ultrapassado minha
simples revolta pelo abandono de estudos humanistas, clássicos, medievalistas, italia-
nistas ou o que fosse. Mesmo no intrincado contexto pessoal e profissional que deu
origem a esta dissertação, pecando repetidamente por interesse, oportunidade e pers-
pectivas quanto à conclusão, tentei justamente imprimir aquela metodologia de inves-
tigação e discussão a que aludia, em essência aquele proceder filológico que sempre
considerei mais propício a nosso campo de estudos. As lacunas e dúvidas do texto,
patentes ou toleráveis, são muito mais falhas de aplicação que consequências de pre-
missas imperfeitas: ao contrário, se ainda assim pôde surgir algo poético no sentido
mais primordial do termo, ultrapassando a mera apropriação e elaboração do discurso
de outros, meus agradecimentos cabem justamente aos modelos seculares de pesquisa
que nutriram esta metodologia e não às práticas mais astutas que, pela maioria numé-
rica, têm ditado nosso campo de estudos.
Uma prova literalmente formal deste cuidado é o deleite que tive na elaboração
da veste tipográfica para meu texto: talvez nada seja expressão maior da imediatez
e do pragmatismo das práticas investigativas acima lembradas que o pouco interesse,
quando não puro descaso, dos membros da Academia pela forma de suas produções.
Similar o discurso relativo às traduções: sempre que possível o texto é apresentado em
sua língua original e, à exceção dos poucos casos em que explicitamente se indica o
contrário, todas as traduções são de minha autoria. Fui advertido, com razão, que tal
prática poderia parecer uma soberba tentativa de demonstrar um profundíssimo conhe-
cimento linguístico, que além de tudo se julgaria capaz de fazer a menos de terceiros.
Cabe minha defesa: se pelo primeiro lado é mais um orgulho que uma soberba o colo-
car em prática anos de estudos de outras línguas (das quais tenho que lembrar o latim
e o grego que, ao menos em competências básicas, continuo considerando exigências
para qualquer estudioso da literatura ocidental), a escolha de traduzir cada passo é ao
contrário devida à vontade de mostrar explicitamente como cada um foi interpretado e

utilizado na elaboração de meu texto. Nunca poderia negar como as traduções de ter-
ceiros de autores consagrados e complexos como Aristóteles e Lukács foram essenciais
na compreensão de suas obras (exatamente como o fiz nas traduções publica-
das de outros textos, como de Safo, Luciano de Samósata, Dante e neste trabalho de
Manzoni), mas a citação direta poderia ocultar alguns aspectos de minha compreensão,
principalmente aqueles mais discutíveis, encontrando refúgio em passagens aceitas
(e indiscutivelmente melhor elaboradas) ao português.
É provável que todo autor, concluída a sua obra, a observe tomado por uma certa
tristeza pelas potencialidades não alcançadas: não aquelas que estariam à mão em um
mundo ideal, nem mesmo aquelas limitadas pelo contexto de produção, mas princi-
palmente aquelas que, no fundo, não passaram de escolhas de facilidade ou mesmo
indolência. É precisamente o sentimento com que vejo este texto e pelo qual resta-
me apenas confiar no indulto de seus leitores, na promessa de que as desilusões foram
confinadas, na maior medida possível, nestas palavras iniciais.

Introdução
Intelligo te frater alias in historia leges obseruandas putare, alias in
poemate. (Marcus Tullius Cicero)¹
Durante uma entrevista a Jean-Maurice de Montremy da qual nasceria uma sabo-
rosa e incomum biografia de tons testamentários, Jacques Le Goff, o principal vulga-
rizador das conquistas historiográficas do Novecentos, lembrava² como seu gosto pela
Idade Média surgira aos dez anos de idade ao encontrar o porqueiro Gurth e o bufão
Wamba naquela floresta que cobria «a maior parte das formosas colinas e vales que
se encontram entre Sheffield e a graciosa cidade de Doncaster»³. Ainda distantes suas
ressalvas adultas às falhas historiográficas de Walter Sco, como inverossimilhanças
contextuais em Rebecca e um retrato paternalista do Cœur-de-Lion, aquele romance
histórico pôde cativar o pequeno tolosino a ponto de lhe despertar um interesse pela
História da mesma forma que no século anterior o fizera entre seu público primeiro.
Público entre o qual logo se encontraria, após não poucas ressalvas iniciais e acompa-
nhado por uma perene desconfiança, o italiano Alessandro Manzoni, um antes serioso
autor de líricas e tragédias que na esteira daquele sucesso britânico comporia sua mais
famosa e importante obra, o romance histórico I promessi sposi (em português, Os noi-
vos).
Tanto aquela aventura dos últimos nobres saxões durante o século XII quanto este
conturbado noivado de camponeses lombardos do Seiscentos costumam ser classifica-
dos como “romances históricos”, e dificilmente se encontrará um elenco de textos deste
sub-gênero literário que não inclua a numerosa produção de Sco (especialmente as
Waverly Novels, entre as quais o acima lembrado Ivanhoe de ) e I promessi sposi
(concluído em -), acompanhados de outros títulos do mesmo prolífico período
do Oitocentos que se desenvolve, grosso modo, do Congresso de Viena () à Guerra
¹ «Entendo como tu, irmão, consideres serem umas as leis a observar na história, e outras na poesia.»
[Cicero (, p. )]
² Goff (, p. , -)
³ «the greater part of the beautiful hills and valleys whi lie between Sheffield and the pleasant
town of Doncaster» [Sco (, p. )]

Franco-Prussiana (-)⁴, como Notre-Dame de Paris de Victor Hugo (), A
Tale of Two Cities de Charles Diens () e Война и мир [Guerra e Paz] de Leo
Tolstoy (), durante o qual a busca por uma verdade histórica era progressiva, mas
não ordenadamente, substituída por um desejo de representação do “real” e do “au-
têntico, de uma diegese sucessivamente infiltrada por uma mímese verbal. Mas um
simples elenco de títulos ainda em voga seria incapaz de explicar o sucesso e a im-
portância deste marco cultural do Romantismo, e mesmo inadequado para investigar
suas motivações, seu surgimento e suas eventuais consequências, como a influência e a
relação com obras contemporâneas que, apesar de muito maiores ressalvas, ainda são
catalogadas como “romances históricos”.
Afinal, uma das poucas constantes deste gênero, nascido sem manifestos ou grupos
que o regulamentassem, é justamente o fato de ter sido desde sempre caracterizado por
uma «identidade literária incerta»⁵. As primeiras teorizações a seu respeito, entre as
quais destacamos um importante ensaio de Manzoni que será explorado neste trabalho,
costumavam vinculá-lo a tentativas de mediação entre os fatos históricos e o público,
com vocações não raro pedagógicas e mesmo catequéticas. Tentativas que em linha de
máxima se mantêm, como demonstra uma rápida consulta bibliográfica às teorizações
correntes, em seu duplo caminho literário e historiográfico esperançoso por satisfa-
zer a dupla natureza do gênero: se, pelo primeiro lado, parece inevitável lembrar de
György Lukács (não apenas por seu canônico Teoria do romance de , mas prin-
cipalmente pelo menos estudado O romance histórico de -, publicado apenas em
⁶), pelo segundo, é costumeiro remeter-se a uma difusa corrente de pensamento
historiográfico centrada, mas não resumida, em Hayden White e suas duas obras se-
minais, Metahistory () e Tropics of Discourse (). Em palavras excessivamente
pobres, tal linha contesta severamente a filosofia da história de linha rankeana e mais
precisamente a pretensão cientificista na prática historiográfica, focando-se no relato
da História como um distinto produto linguístico; assim, por negar uma existência
extra-linguística dos “fatos históricos” (que porém não devem ser confundidos, como
Seguida pelo colapso do Empire Français Seconde de Napoleão III, pela conclusão dos processos de
unificação da Alemanha e da Itália acompanhados do fortalecimento das demais identidades nacionais,
pelo fim da Pax Britannica (incluindo a dissolução da East India Company) em função da emergência de
um novo tipo de imperialismo e pela afirmação da assim amada “Segunda Revolução Industrial”, logo
escoltada por uma longa depressão de quase um quarto de século. Na literatura, como sabido, se assistiu
a um progressivo avanço de propostas real-naturalistas e simbolistas sobre as preferências românticas
(entre as quais, o romance histórico).
Ganeri (, p. )
Obra que, de forma surpreendente e incompreensível, parece ainda não ter merecido nenhuma
tradução ao português; o texto base que utilizei foi a tradução ao inglês por Hannah e Stanley Mitell
referida em bibliografia.

geralmente ocorre, com os eventos históricos”, reais mas potencialmente inatingíveis),
advoga-se que o mesmo ceticismo e método demonstrados pelas provas documentais
seja estendido tanto ao relato propriamente histórico como à contígua ficção historio-
gráfica, entre a qual se inseriria nosso gênero literário.
Se no caso deste pensador americano sua postura teórica é suficientemente com-
plexa e controversa para requerer uma mais pausada análise face a posturas teóricas
opostas, pois a existência pura e unicamente linguística do “fato” anularia as fronteiras
entre a narrativa histórica e a ficcional, no caso do crítico húngaro a base de seu pensa-
mento é simples e explicitada no primeiro parágrafo da obra citada, ao subtitulo de
Social and Historical Conditions for the Rise of the Historical Novel [Condições sociais
e históricas para o surgimento do romance histórico]. Apesar de sua exposição egar
a flertar com um irredutível determinismo histórico, que pode soar a um marxismo
intencionalmente leve e ingênuo, suas argumentações dificilmente serão contestáveis:
O romance histórico surgiu no início do século XIX, aproximadamente
à época do colapso de Napoleão (o Waverley de Sco é de ). Claro,
romances com temas históricos podem ser encontrados também nos sé-
culos XVII e XVIII, e, caso alguém se sentisse inclinado a tal, poder-se-ia
tratar adaptações medievais da história clássica ou de mitos como “pre-
cursoras” do romance histórico e, assim, retroceder ainda mais, à China
ou à Índia. Mas ninguém vai encontrar nada aqui que lance alguma luz
real sobre o fenômeno do romance histórico. Os amados romances
históricos do século XVII (Scudéry, Calpranède, etc.) são históricos ape-
nas quanto à sua escolha puramente externa de temas e trajes. Não
a psicologia das personagens, mas as maneiras descritas são exclusiva-
mente aquelas da própria época do escritor. E no mais famoso “romance
histórico do culo XVIII, o Castelo de Otranto de Walpole, a história é
igualmente tratada como mera vestimenta: são apenas as curiosidades
e estranhezas do milieu que interessam, e não uma imagem artistica-
mente fiel de uma época histórica concreta. O que falta no amado
romance histórico anterior a Sir Walter Sco é precisamente a especifi-
cidade histórica, isto é, a derivação da individualidade de caracteres da
peculiaridade histórica de sua época.⁷
«e historical novel arose at the beginning of the nineteenth century at about the time of Na-
poleon’s collapse (Sco’s Waverley appeared in ). Of course, novels with historical themes are to
be found in the seventeenth and eighteenth centuries, too, and, should one feel inclined, one can treat
medieval adaptations of classical history or myth as “precursors” of the historical novel and indeed go
ba still further to China or India. But one will find nothing here that sheds any real light on the phe-
nomenon of the historical novel. e so-called historical novels of the seventeenth century (Scudéry,
Calpranède, etc.) are historical only as regards their purely external oice of theme and costume. Not
only the psyology of the aracters, but the manners depicted are entirely those of the writer’s own
day. And in the most famous “historical novel” of the eighteenth century, Walpole’s Castle of Otranto,
history is likewise treated as mere costumery: it is only the curiosities and oddities of themilieu that
maer, not an artistically faithful image of a concrete historical epo. What is laing in the so-called
historical novel before Sir Walter Sco is precisely the specifically historical, that is, derivation of the
individuality of aracters from the historical peculiarity of their age.» [Lukács (, p. )]

Em uma talvez inesperada assimilação do entendimento viquiano de “história”, Lu-
kács prosseguia afirmando como somente a Revolução Francesa permitira aos homens
considerarem suas existências como historicamente vinculadas, e como somente a par-
tir desta mudança um romance efetivamente “histórico” pudesse ter vindo à luz. Esta
essência que ele identificava no romance histórico nos interessa especialmente por per-
mitir, em termos exclusivos, distinguir não apenas o romance fielmente histórico do
anterior apenas tematicamente histórico, mas também por separar o joio das imitações
do trigo dos autores acima lembrados, como Sco, Hugo, Diens, Tolstoy e Manzoni:
um romance histórico genuíno deve apresentar uma «imagem artisticamente fiel de
uma época histórica concreta», dada por uma «especificidade histórica» que não seja
uma mera «escolha puramente externa de temas». Um ponto de partida afastado de
estruturalismos simplistas e que revelava aquele que seria não apenas o vetor do livro
mas, de certa maneira, de toda compreensão lukácsiana da literatura moderna, mesmo
frente a suas conhecidas e súbitas inversões: a necessidade da existência de uma cons-
ciência autoral da vinculação histórica e dialética entre os sujeitos ficcionais, de um
lado, e suas épocas e condições, de outro.
Consequência imediata da posição de Lukács, principalmente quando aliada às pos-
teriores desconfianças historiográficas sobre a objetividade na narrativa histórica, é o
pouco ou nenhum espaço aparentemente facultado à existência de um romance histó-
rico externo àquela precisa colocação temporal e mesmo geográfica. Experiências an-
teriores teriam sido impossíveis porque não existira aquela peculiar percepção de vin-
culação histórica motivada pela Revolução Francesa e suas consequências; em épocas
sucessivas, incluindo o modernismo e o nosso pós-modernismo⁸, porque esta percep-
ção se teria esgotado, transformando-se em outras. Com efeito, o fato de o próprio
romance, não apenas histórico, ter perdido muitíssimo de seu ímpeto justamente na
concretização destas “mudanças perceptivas” pareceria confirmar tais limites com difí-
ceis refutações. Afinal, é de amplo reconhecimento como a inserção de uma obra neste
gênero maior se torne progressivamente conturbada e discutível ao prosseguir em dire-
ção ao presente, e a afinidade estrutural costuma resultar inversamente proporcional ao
valor estético (de forma que, quanto maior a semelhança formal entre uma obra con-
temporânea e aquelas, menor costuma ser seu valor artístico). Chegou-se mesmo ao
ponto de não poucos terem especulado a “morte” do romance, e particularmente do
O termo “pós-modernismo” é geralmente usado neste trabalho quase exclusivamente em seu sen-
tido cronológico de posterior ao modernismo ou, de forma menos apropriada, posterior à Segunda Guerra
Mundial. Em outras palavras, não implica necessariamente qualquer característica estilística, apesar de
comuns principalmente aos “romances históricos” desta época, que serão apontadas separadamente.

romance histórico⁹ como modelo literário, duvidando da possibilidade de experiências
contemporâneas ou, mutatis mutandis, apontando como o paradigma estabelecido por
aqueles primeiros romances esteja forçadamente desfigurado pelas experiências artís-
ticas e sociais posteriores.
Entretanto, em paralelo aos movimentos antes descritos, vê-se um crescente in-
teresse por narrativas que fundam o histórico e o ficcional, especialmente quando a
consideração se estende a narrativas não literárias¹⁰. Na contramão dos limites tem-
porais e geográficos de Lukács, este interesse parece justificado por um comentário
do grande crítico e teórico da literatura Northrop Frye que, ao analisar justamente
a produção de Sco por uma ótica à qual as elaborações a seguir são extremamente
devedoras, afirmou que o romance histórico constitui um “gênero intensificado nos
lugares e momentos de maiores mudanças históricas¹¹; poder-se-ia dizer, empregando
os aqui adequados termos da crítica marxista, potencializado no evento de substanciais
alterações ideológicas em algum grupo hegemônico ou, especialmente, no redimensi-
onamento ou substituição de um destes. Poderíamos certamente investigar os motivos
para esta atração, da autoafirmação à indagação sobre as próprias origens, passando
seria absurdo não lembrá-lo com a obra em análise, que não poucos italianos con-
sideram a primeira opera di regime pela própria construção, avaliação e alteração
da “História oficial”; contudo, ao buscar reconciliar esta postura com Lukács é mais
relevante apontar como o sucesso contemporâneo de autoria, crítica e público pareça
confirmar na atualidade uma qualidade dinâmica de alterações históricas, desacredi-
tando certas sedentárias teorias de «fim da história» inexplicavelmente ainda em voga.
É também neste sentido que se explica como a crítica tenha feito do romance histó-
rico um de seus campos de batalha prediletos para questionamentos literários, utilizado
suas múltiplas formas na investigação onto e epistemológica quanto à pluralidade de
possibilidades na simbiose entre “ficção” e “história” (cujas relações, adaptando cer-
A título de exemplo, veja-se Wyile (, pp. -) e principalmente Jameson ().
¹⁰ Apesar de se colocar muito além das possibilidades desta dissertação, é fundamental compreen-
der toda esta discussão pela possibilidade e interação de formas narrativas que não sejam unicamente
literárias ou mesmo nas quais o fator verbal seja inexistente; em especial, trata-se neste momento de
considerar, como farei no Epílogo deste trabalho, sobretudo as artes dramáticas lembrando aquelas que
teriam sido as primeiras palavras de Italo Calvino em suas lições americanas: «Tentarei explorar sobre-
tudo as características de minha formação italiana que mais me aproximam do espírito dessas palestras.
Por exemplo, é típico da literatura italiana compreender num único contexto cultural todas as ativida-
des artísticas, e é portanto perfeitamente natural que eu, escritor de fiction, inclua no mesmo discurso
poesia em versos e romance […]. Minhas reflexões sempre me levaram a considerar a literatura como
universal, sem distinções de língua e caráter nacional, e a considerar o passado em função do futuro;
[…] não saberia agir de outra forma.» [Calvino (, p. )]
¹¹ Ganeri (, pp. -)

tas exposições de Carlo Ginzburg¹², se constituem também pela constante relação de
diferenciação e assimilação com o “falso”) e, deste modo, de “verdade”. A raiz deste
debate, evidentemente relacionada à gravosa questão dos gêneros literários, textuais
e discursivos, é a raiz do entendimento do próprio romance histórico; explicitamente,
articula-se em três questionamentos: revelar qual seria o “estatuto de constituição” do
romance histórico tradicional (aquele que, como lembrado, é costumeiro fazer iniciar
em Sco e encerrar ao redor de , e do qual I promessi sposi é um dos principais
representantes), o que o diferenciaria de experiências anteriores afins e, sobretudo, se
existiria alguma continuidade com as narrativas contemporâneas que também fundem
“ficção e “história”, de modo especial quando estas são explicitamente apresentadas
como “romances históricos”.
Esperando abrir um caminho para investigações futuras, a discussão sobre estas
relações no complexo romance manzoniano, que além de nascer de um longo percurso
prático e teórico sobre a relação entre história e ficção o encerrava, está tramada sobre
a tese, herança de caminhos diversos e por vezes divergentes que levam a Ginzburg¹³,
Ganeri¹⁴ e Frye¹⁵, de que exista uma continuidade entre o grande romance histórico
oitocentista, o segundo romance histórico posterior a , com sua perspectiva diversa
e negativa, e as experiências contemporâneas que, como consueto no pós-modernismo,
costumam se focar em soluções «paródicas e polêmicas»¹⁶: todos seriam expressões de
um “modo” narrativo que funde, com formas e propósitos diversos para cada época e
autor, história e ficção. Apenas em aparência a defesa deste “modo” é uma refutação das
conclusões de Lukács. Ao contrário, ela confirma a peculiaridade do “grande romance”,
alcançando-a por um caminho diverso que tenta se abrir ao presente enquanto busca
uma abordagem diversa seja para as experiências anteriores como, tangencialmente,
para experiências não literárias.
Para sustentar esta posição, é evidentemente necessário que o estatuto de “romance
histórico, e mesmo de “romance, não seja mais assentado em aspectos exteriores e
“positivos” (ou, para provocar, estruturais”), como em parte ainda o era naquele O
romance histórico e talvez ainda o seja em setores da crítica: é suficiente pensar em
algumas das conhecidas exigências formais pregadas ao romance histórico tradicional,
quais traçar grandes painéis históricos, utilizar procedimentos típicos da escrita histo-
¹² Ginzburg ()
¹³ Ginzburg ()
¹⁴ Ganeri ()
¹⁵ Frye ()
¹⁶ Ganeri (, p. )

riográfica (especialmente daquela do primeiro Oitocentos) e centrar-se em personagens
fictícias que se movem no vazio permitido por personagens de fundo histórico coloca-
das em segundo plano ou, ao máximo, auxiliares às principais¹⁷. Apesar de geralmente
superadas as concepções de gênero como um conjunto de aspectos lógico-formais de
um texto ou digo, o romance histórico continua sendo em grande parte do discurso
crítico uma simples expressão, ou talvez uma “especialização ideológica”, do mais am-
plo e não melhor definido gênero do “romance.
Proponho em vista disto que, como mencionado anteriormente, a discussão do es-
tatuto de romance histórico se desenvolva na compreensão de quanto Ganeri apontava
sobre «mais que um gênero em sentido estrito, o romance histórico [poder] ser defi-
nido [como] um “modo” literário»¹⁸, assentando sua compreensão não mais em instá-
veis aspectos temáticos, formais e estruturais (que mesmo limitando-se a Sco flutuam
facilmente), mas em um particular «horizonte cognitivo e epistemológico»¹⁹ e, acres-
centaria, ontológico. Essencialmente, e mostrando minha dívida não apenas com toda
a crítica de base sociológica mas também com teóricos como Frye e Umberto Eco, pode-
mos dizer que são os diversos “pactos narrativos” entre autores e públicos a tornarem a
coincidência e a articulação entre “ficção e “história” distintas em cada narrativa; uma
postura que, no fundo, lembra as aflições do Manzoni teórico do romance histórico so-
bre a existência de diferentes consentimentos” para a narrativa ficcional e histórica.
Afinal, a narração que privilegia a história, ou mais apropriadamente a narração que
privilegia quanto é percebido como histórico, «impõe uma modalidade de escrita, tes-
temunhal e documentária, que é muito diversa daquela de outras modalidades, como,
por exemplo, a fantástica ou a lírica»²⁰. Não se trata absolutamente de defender que as
modalidades de narrativa histórica ou mesmo ficcional sejam constantes e invioláveis:
trata-se, sim, de defender que suas articulações tenham sempre sido diferentes, como
lembrado em cada época, autor e mesmo obra, devido aos diferentes entendimentos
e consentimentos desejados para a fusão entre “história” e “ficção” em consideração a
seus constituintes em forma pura.
Mesmo superando a simplista redução dos estatutos de gêneros literários a traços
estruturais, em verdade a alternativa de uma concepção de viés essencialmente soci-
ológico continua problemática por sua dificuldade em elaborar um quadro epistemo-
¹⁷ Baumgarten (out. )
¹⁸ «Più e un genere in senso streo, il romanzo storico potrebbe essere definito un “modo leera-
rio.» [Ganeri (, p. )]
¹⁹ Ganeri (, p. )
²⁰ «impone una modalità di scriura, testimoniale e documentaria, e è molto diversa da quella di
altre modalità, come, ad esempio, la fantastica o la lirica» [Ganeri (, p. )]

lógico capaz de abrigar outras obras resultantes do cruzamento entre ficção e história.
A proposta de um “modo” de narração ficcional e histórico serviria de complemento,
permitindo-nos não somente empregar os exemplos anteriores a Sco e Manzoni, mas
sobretudo concedendo a análise da gênese de suas obras em função da prática deste
“modo não exclusivamente literário e certamente não peculiar cronologicamente à
imediata derrota de Napoleão Bonaparte. Permissão que aqui se elevava a exigência,
na justa obrigatoriedade de lançar um olhar historiográfico a estes entes literários.
Cabe sempre precisar que estamos muito longe de um inédito olhar de historiogra-
fia literária, e em verdade é com extrema satisfação que podemos indicar uma ulterior
filiação e enorme dívida, ao grande filólogo Eri Auerba; afinal, como comentava
Ginzburg²¹, é um elemento muitas vezes esquecido quando não mesmo negado²² que
como indicado no próprio subtítulo (Dergestellte Wirklikeit in der abendlädisen Li-
teratur [A representação da realidade na literatura ocidental]) a obra capital do crítico
alemão, Mimesis, era essencialmente um estudo das representações literárias da reali-
dade em sua distinção com o “ficcional”, o “falso” e, no limite do possível, a “opinião.
Se em Auerba o suceder-se de diversas e incompatíveis concepções de realidade ega
a flertar com uma teleologia própria na apoteose de nomes como os de Virgina Woolf e
de Marcel Proust, não se deixa de reconhecer que as concepções mudam concomitan-
temente às suas expressões. Da mesma forma, as inegáveis fraturas que existem entre
o romance histórico oitocentista e as homônimas experiências anteriores e posteriores
não são decorrentes propriamente de suas diferenças formais, mas se estabelecem nas
concretizações do “modo” narrativo que mistura “ficção” e “história” a causa da insti-
tuição de práticas historiográficas de orientação científica e principalmente da diversa
finalidade que estes custosos amálgamas assumem. Lembrando como a curiosidade de
Scudéry cedera à investigação de Sco e Manzoni, Lukács tinha assim plena razão ao
afirmar que o romance histórico tenha se tornado possível por uma profunda mu-
dança, social e científica, da concepção histórica, assim como acerta ao encontrar um
importante ponto de inflexão em outra Revolução Francesa, aquela de .
É da mesma maneira que se explica a distância temática entre aqueles mesmos ro-
mances históricos do Setecentos, centrados nas experiências anedóticas de uma nobreza
recente ou de outras personagens indiscutivelmente “históricas”, e a posterior experi-
ência inicialmente medieval e barroca decorrente das desilusões revolucionárias. A
²¹ Ginzburg ()
²² Principalmente pela mais radical postura “pós-colonialista” que busca afirmar-se apontando em
Auerba, via Edward Said, sua ascendência.

concretização plena desta tendência talvez tenha sido a grande épica em prosa de Tols-
toy, de título não casualmente tomado de uma obra de Pierre-Joseph Proudhon, em seu
longo discurso de oposição à “teoria do grande homem” de omas Carlyle e, de certa
forma, àquele entendimento que se materializaria na noção de “autoridade carismática”
de Max Weber. Além de não afastar história e ficção mas complementá-las, no caso do
primeiro romance histórico a escolha temática era também um resultado da ansiedade
romântica pelo elemento popular e autêntico: esta não foi somente a causa da coleta de
fábulas pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, mas também da afirmação romanesca
de heróis populares anteriormente anônimos, que em I promessi sposi encontraríamos
com nome e sobrenome nos protagonistas Lorenzo Tramaglino e Lucia Mondella, um
fiador de seda e uma camponesa. Heróis populares ainda pobres e retratados sob um
olhar historiográfico quando a Itália sonhava uma unificação diversa nas primeiras dé-
cadas do Oitocentos (Manzoni iniciou sua obra nos anos ’), mas que logo se tornariam
literalmente miseráveis, pincelados realística e piedosamente, naquela saga que Victor
Hugo publica em  de alguns franceses vistos a partir da derrota em Waterloo do
“grande homem” () ou, tomando a cronologia de nosso gênero literário, logo após
aquela nova articulação entre ficção e história ir pela primeira vez às prensas ( Lu-
kács lembrava como, longe de ser uma casualidade, Waverley foi publicado no mesmo
período de -).
Assim, pretendo investigar como, para além do aspecto literário, tanto a prática de
Manzoni (principalmente seu romance I promessi sposi mas também seu caminho ante-
rior com a “tragédia histórica”) quanto sua teoria (essencialmente o ensaio Del romanzo
storico) ainda merecem atenção para além da simples documentação sobre a constitui-
ção e afirmação do romance histórico na primeira metade do Oitocentos. A leitura de
seu romance e de suas conclusões pessimistas quando ao futuro do gênero escancara a
porta de um laboratório para suas reflexões sobre a relação entre «invenzione» (consi-
derada uma parcela essencialmente humana e, de qualquer forma, artística) e «storia»
(entendida como relato honesto de dados factuais), na experiência das diferentes per-
cepções destas relações. Mais que material para debates de narratologia, os diferentes
níveis diegéticos da obra (as vozes internas de suas personagens, relatos secundários
destas internas ao universo narrado, um primeiro narrador, o autor do manuscrito do
Seiscentos que se interessa por uma trama adocicada, o amanuense oitocentista que
o copia confundindo-se com um autor implícito, este cético e mesmo cínico) instigam
aqui a reflexão sobre o romance histórico e seu ainda persistente sucesso.
Em suma, a hipótese que orienta as investigações deste trabalho é de que, susten-

tado por um subjacente modo narrativo que mistura ficção e história concretizável em
inúmeras formas, I promessi sposi se mantém como um romance histórico tipicamente
oitocentista ao mesmo tempo em que se diferencia significativamente dos demais de-
vido a uma prática que demonstrava a peculiar teorização sobre a arte literária de seu
autor. Será com base nesta consciência que a leitura do romance, que encerra com
descrença um longo percurso biobibliográfico na busca desta solução, a revelar certos
aspectos novos da obra e demonstrar algumas que podem ter sido grandes intuições do
autor.
. De Alessandro Manzoni e I promessi sposi
In Italy […] Sco found a successor who, though only in a single, iso-
lated work, nevertheless broadened his tendencies with superb origina-
lity, in some respects surpassing him. We refer, of course, to Manzoni’s
I promessi sposi (e Betrothed). Sco himself recognized Manzoni’s
greatness. When in Milan Manzoni told him that he was his pupil, Sco
replied that in that case Manzoni’s was his best work. (György Lu-
kács)²³
A vida de Alessandro Manzoni, autor de I promessi sposi, praticamente coincide
com o Romantismo, entre seu nascimento em , quatro anos antes do movimento
catalizador da Revolução Francesa, e a morte em , com a unificação italiana, ao
menos territorialmente, concluída. A coincidência é indiscutivelmente significativa,
apesar da independência que sua produção assumiu em relação ao movimento: a raiz
da prática manzoniana esteve na produção neoclássica do Setecentos, e seu percurso
seguiu, em linha maior, os ditames românticos, principalmente da esfera francesa, para
se encerrar numa versão mais teórica e ponderada que, comparando-a às práticas então
correntes, poderia ironicamente ser definida como um “Romantismo clássico”.
Afinal, a produção de Manzoni costuma ser submetida a uma divisão tripartida
à qual não cabe nenhuma ressalva. Em um primeiro momento, entre  e ,
dedicou-se a uma poesia rigidamente neoclássica na forma, mas que perdia em quali-
dade justamente por manifestar um conteúdo dissonante daquele, se assim pode ser
amado, “movimento em sua ênfase explícita por temas políticos e éticos da moder-
nidade. O segundo período, o mais produtivo e indiscutivelmente de maior qualidade
²³ «Na Itália […] Sco encontrou um sucessor que, apesar de ter escrito uma obra única e isolada,
ainda assim ampliou suas tendências com suprema originalidade, em certos aspectos ultrapassando-
o. Estamos nos referindo, obviamente, a I promessi sposi (Os noivos) de Manzoni. O próprio Sco
reconheceu a grandeza de Manzoni. ando em Milão Manzoni dissera-lhe ser um pupilo seu, Sco
respondeu que então Manzoni havia sido sua melhor obra.» [Lukács (, p. )]

artística, vai de  até , quando a adesão ao Romantismo e a uma peculiar forma
de Cristianismo se faz explícita; dele lembramos cinco poemas religiosos (os Inni sa-
cri, de -), duas tragédias históricas moldadas nas análogas experiências de área
alemã (o Il conte di Carmagnola de  e o Adeli de ), uma ode à morte de
Napoleão de grande sucesso internacional (o Il cinque maggio de ) e a primeira
edição, em língua “quase italiana”, de I promessi sposi em . É também o período
dos primeiros ensaios teóricos, como o Osservazioni sulla morale caolica (), um
prefácio ao Il conte di Carmagnola que quase se constitui em ensaio historiográfico, o
Discorso sopra alcuni punti della storia longobardica in Italia () que serve de pen-
dant à experiência dramática do Adeli, a importante e pública Lere à M. Chauvet
(-) de discurso teórico sobre o ideal romântico e o correlato Sul romanticismo
().
A última fase de sua produção inicia na publicação da primeira versão do romance,
que seria então submetido a um longo processo de revisão linguística durante o qual
amadureceria no autor uma exigência pela manutenção da “verdade que, em termos
práticos, se traduziu em um abandono da prática literária em favor da teorização sobre a
mesma. São assim deste período uma série de trabalhos teóricos de menor importância,
à exceção do demorado ensaio Del romanzo storico (-) no qual o autor discutia
sua própria experiência no campo do romance histórico e seu descrédito em relação ao
mesmo.
De qualquer modo, é I promessi sposi o motivo pelo qual Manzoni ainda merece
ser lembrado, com as demais obras inevitavelmente gravitando a seu redor. Consi-
derado o mais importante romance da literatura italiana e a obra mais representativa
do Risorgimento, o movimento nacionalista do seculo XIX que promoveu a unificação
política e cultural da Península, é um romance histórico ambientado na Lombardia do
início do Seiscentos (-, precisamente), durante a ocupação espanhola. Apre-
sentado como uma autêntica «história milanesa do culo XVII», agora «descoberta
e refeita», aludia evidentemente ao domínio austríaco sobre o norte da Itália à época
da publicação: é, a todos os efeitos, um dos melhores exemplos dos “romances histó-
ricos engajados”, nos quais a literatura era pensada como pressuposto para profundas
mudanças político-sociais de forte vinculação nacionalista.
Sua importância no sistema literário italiano é excepcional: além de ter se assentado
firmemente no patrimônio cultural nacional, com citações descontextualizadas, alusões
a personagens em ambientes de todo separados e inúmeras paródias e reelaborações,

merece ser considerado não apenas o primeiro romance histórico, mas o primeiro ro-
mance italiano segundo os coevos modelos franceses e ingleses. Além disto, constituiu
um marco na formação da própria língua italiana, com um papel talvez comparável
apenas ao da Commedia: não é exagero afirmar que, sem I promessi sposi, a língua
italiana moderna não teria se estabelecido precisamente na forma como a conhecemos.
Seu sucesso é devido não apenas à qualidade da trama e à lembrada importância
no sistema literário europeu e italiano, mas também ao fato de se colocar além da
mera imitação estilística do anterior exemplo scoiano: é neste sentido que deve ser
entendida a anedota de Lukács em epígrafe, inclusive sem comprovação documental.
Com efeito, a obra se coloca além da mera descrição histórica, evidenciando exatamente
aquilo que o teórico húngaro mais apreciava nos romances históricos. Ao narrar o
conturbado noivado de dois camponeses, entre vilões góticos e uma epidemia de peste
investigada com grande rigor historiográfico e narrada com uma maestria poética que
continua a impressionar, Manzoni reconstrói a Itália barroca do início do Seiscentos
ao articular habilmente a trama com os processos históricos investigados sem cair na
fácil paródia do tempo presente. Além disto, um leitor atento encontra com destreza e
vinculada à trama aparentemente simples uma subliminar discussão sobre o sentido da
História e a relação dos indivíduos com os eventos históricos dos quais tomam parte,
mesmo que passivamente. É neste reconhecimento reservado, nesta compreensão da
História pela supervisão de forças providenciais muito distantes das mais corriqueiras
expressões religiosas e na qual a força do livre-arbítrio humano se manifesta mesmo
entre os mais humildes, que talvez resida a diferença qualitativa da obra.
É exatamente por isto que as personagens principais são plenas e profundas, tanto
que a obra se constitui, sob outra ótica, como um duplo romance de formação (não ape-
nas o explícito percurso humano de Renzo, mas o menos evidente trajeto de uma Lucia
somente em aparência sublime e dócil). Mas I promessi sposi é também e principal-
mente uma expressão filosófica, resultado de um cristianismo profundo mas particular,
dominado por uma não menos peculiar compreensão da intromissão da Providência di-
vina na História e nos acontecimentos humanos. Afinal, a obra manzoniana é também
terreno da maldade e de diferentes formas de violência, de jogos de egoísmos, inclusive
dos protagonistas não necessariamente heroicos, cujas consequências sobre os outros e
sobre a História são frequentemente negativas e eventualmente desastrosas.
De qualquer modo, a trama não é aqui analisada minuciosamente na tediosa e
superficial exegese à qual podemos nos entregar mesmo involuntariamente com indes-

critível facilidade. Este trabalho foi elaborado sob a convicção de que uma dissertação
não deve, por assim pecar em qualidade, e nem pode substituir a leitura prévia da obra
tratada; ao contrário, implica a mesma como sua única verdadeira condição para dia-
logar com o leitor ao invés de ditar-lhes ininterruptamente sua sequência de opiniões.

Do romance histórico entre
“história” e “ficção”
A atenção aos gêneros literários pode hoje parecer um retorno vão ou
até mesmo anacrônico ao passado. Todos sabemos que os gêneros exis-
tiram: nos velhos e bons tempos do classicismo havia baladas, odes,
sonetos, tragédias e comédias; mas eles existem hoje? Até mesmo os
gêneros do Oitocentos, a poesia e o romance (e estes não são mais gê-
neros verdadeiros para nós), parecem ter desaparecido, pelo menos na
literatura “que importa”. (Tzvetan Todorov)¹
Seria pouco simplesmente dizer que o romance histórico é uma das formas literárias
que mais têm excitado autores, leitores e críticos ao longo das quatro últimas cadas.
Com uma velocidade inesperada, e num cuidado logo acompanhado pelo mercado edi-
torial, o romance histórico se transformou na pedra de toque das principais discussões
teóricas a respeito de arte, literatura e verdade, com cada diversa acepção condicio-
nando profundas implicações filosóficas e mesmo morais. Hoje, interessa não apenas
saber como a imaginação é empregada na compreensão da verdade passada, em óbvia
relação com a compreensão da presente, ou como os historiadores compreendem a fic-
ção histórica e o alcance de uma autenticidade na mesma: interessa, principalmente,
saber o que no passado é capaz de atrair o público com tamanho vigor, mesmo quando
seus efeitos não podem ser sentidos claramente no presente.
Como foi dito e por motivos que serão discutidos adiante, a visão contemporâ-
nea sobre o romance histórico costuma se referir, direta ou indiretamente, a Lukács. É
dele que são derivados alguns dos traços elencados e tidos por típicos, como a pa-
ródia da escrita historiográfica na narração de situações percebidas como “históricas”
(geralmente significando serem anteriores ao autor), a convivência entre personagens
históricas e fictícias (bem como entre eventos históricos e fictícios) e o permanente de-
¹ «L’aenzione ai generi leerari può sembrare oggi un ritorno vano o addiriura anacronistico al
passato. Tui sappiamo e i generi sono esistiti: nei veci buoni tempi del classicismo c’erano ballate,
odi, sonei, tragedie, e commedie; ma essi esistono oggi? Persino i generi dell’Oocento, la poesia o il
romanzo (e questi non sono più veri generi per noi), sembrano essere scomparsi, almeno nella leeratura
e conta” [Todorov (, p. )]

sejo, ditado pelas exigências de verossimilhança, de não contradizer mas unicamente
explicar e complementar o discurso historiográfico de referência.
Em particular, seguindo Lukács, o romance histórico passa a ser tido praticamente
como uma hipóstase da formação da consciência histórica moderna, cientificamente
direcionada por ter nascido da investigação historiográfica e ideologicamente causada
pela luta contra o absolutismo. O romance histórico e seus antecessores imediatos
(não formais, mas temáticos como La Henriade de Voltaire de , por ele explici-
tamente citado) seriam portanto alternativamente um fruto ou um gérmen revoluci-
onários empregados como armas, pois as lições históricas forneceriam os princípios
que ajudariam a estabelecer uma nova sociedade e ordem. À Revolução Francesa teria
cabido a concretização desta formação em duas diversas mas relacionadas áreas contra-
revolucionárias. Em termos civis, as guerras pós-revolucionárias teriam propiciado a
instituição do estado moderno mesmo fora da França, cujo primeiro e mais significa-
tivo aspecto, sempre segundo Lukács, teria sido a criação dos exércitos nacionais. Estes,
uma novidade absoluta em termos sociais, propiciaram a participação direta e indireta
de toda a sociedade no empenho militar e político, requisito para que a prática desta
“nova História” pudesse narrar situações que não envolvessem unicamente os “grandes
homens”.
A esses efeitos materiais deveriam ser encostados aqueles intelectuais, resposta a
uma corrente histórica de nomes como Leopold von Ranke e principalmente de Joseph-
Marie de Maistre, cujas defesas histórico-científicas da Restauração obrigaram os her-
deiros intelectuais do primeiro Iluminismo a ultrapassar definitivamente a prática me-
ramente cronológica, detraindo contextualmente os fatos dos eventos e fornecendo
uma nova compreensão histórica na qual a Revolução Francesa não fosse mais tra-
tada por episódio singular, mas por expressão de uma historicamente comum oposição
entre classes, naquele caso particular fomentada pela ascensão burguesa em paralelo
ao encerramento da regra feudal em um contexto intelectual, tecnológica e economi-
camente pronto a inaugurar a era moderna.
É nessa matriz ideológica que Lukács o surgimento do verdadeiro romance his-
tórico, assim justificando sua redução dos textos anteriores a simples projeções do con-
temporâneo. O precursor do novo retrato histórico fora Sco, que para indicar «a
desintegração das formas sociais arcaicas [na Escócia] frente à transformação capita-

lista»² não se limitou a «vestir personagens modernas em kilts»³, mas «traçou[-as] de
maneira tal que os vários detalhes de suas personalidades estavam ligados às condições
básicas de suas existências»⁴. Uma postura inovadora que exigiu mudanças também
formais, pois como lembra Herrnaphta
[e]sta mudança no conteúdo do romance exigiu mudanças também na
forma. Se por um lado os dramas históricos haviam geralmente se fo-
cado em “indivíduos mundialmente históricos” (pensemos nas histórias
de Shakespeare), os protagonistas de Sco eram frequentemente pes-
soas deveras afastadas dos centros do conflito histórico. Lukács argu-
menta que esta escolha permitiu a Sco investigar em detalhe todos os
lados das mudanças históricas, pois a escolha de uma figura fortemente
vinculada a qualquer facção da disputa implicaria uma redução da pro-
fundidade do retrato das facções opostas. Os protagonistas médios de
Sco, desimpedidos de qualquer responsabilidade histórica, podiam in-
teragir de maneira plausível com os diferentes lados, assim permitindo
que o romance alcançasse uma representação mais plena da totalidade
social.⁵
Representação plena da totalidade social que efetivamente constitui o telos lukác-
siano, mas cuja argúcia é insuficiente para subtrair-se ao grande obstáculo dela de-
corrente de não facultar a possibilidade de experiências posteriores, o que, de certa
maneira, se demonstra ironicamente anti-histórico ao deixar de explicar convincen-
temente as relações deste gênero com obras similares mas cronológica e socialmente
afastadas. De fato, apesar de justificar aquela nova forma, Lukács também agia se-
guindo ditames ideológicos aos quais se poderia apresentar sua própria acusação de
projetar o contemporâneo no passado: não apenas a divisão entre classes reproduzia
as falhas acomunadoras e binárias da Comintern stalinista, mas em resposta à preo-
cupação fascista (lembremos novamente que O romance histórico é de -) sua
visão buscava suscitar e justificar, em papel análogo ao da “boa burguesia” do início
do Oitocentos, as soluções pós-iluministas como demonstrado nas rápidas mas impor-
tantes palavras finais sobre os romances anti-fascistas, que não podem ser tomadas
² «the disintegration of araic social forms in the face of capitalist transformation» [Herrnaptha
()]
³ «dressing modern aracters in kilts» [Herrnaptha ()]
«drew his aracters in su a fashion that the various details of their personalities were linked
with the basic conditions of their existence.» [Herrnaptha ()]
«[t]his ange in the content of the novel necessitated anges in form as well. While the histo-
rical dramas oen focused on ‘world-historical individuals’ (think of Shakespeare’s histories), Sco’s
protagonists were oen persons rather removed from the centers of historical conflict. Lukács argues
that this oice allowed Sco to investigate all sides of historical ange with detail, where oosing a
figure closely linked with any faction of the struggle necessitated a reduction in depth of portrayal of the
opposing factions. Sco’s average protagonists, unburdened by historical responsibility, could plausibly
interact with different sides, and thus allow the novel to aain a fuller representation of social totality
[Herrnaptha ()]

como simples apêndice à argumentação inicial, mas que ao contrário são o verdadeiro
desfeo de sua argumentação. A identificação de um propósito instrumental naque-
las primeiras obras, que seria efetivamente estúpido negar, se transformava assim em
pilar na sustentação de novas narrativas por sua vez revolucionárias e igualmente ex-
pressão de uma inédita consciência histórica em vias de concretização. No fundo, é
uma maneira complementar de entender a sabida negação de Lukács à sua obra após
o fracasso da Revolução Húngara de  e principalmente após a reação soviética, in-
terpretada como demonstração definitiva de sua direção, tanto ao  francês quanto
especialmente àquele tecoeslovaco.
Mesmo nos casos em que estamos indiscutivelmente na presença de romances his-
tóricos frutos da romântica promoção de unidades nacionais, não podemos inocente-
mente apontar alguma direta relação de causalidade ou de mútua influência entre estes
pensamentos e sua forma artística. Trata-se de ideais parcialmente sobrepostos e o ro-
mance histórico, principalmente aquele de qualidade, geralmente veio à luz em grupos
que desejavam e propunham formas de unificação talvez ingênuas, mas certamente di-
versas daquelas de fato ocorridas. Em última instância, as unificações foram resolvidas
por empresários e políticos, não por letrados e poetas. É precisamente o caso de um ro-
mance nacionalista como I Promessi Sposi, não apenas etapa final do singular percurso
manzoniano, mas também do encontro entre uma herança iluminista e um particular,
por que não dizer único, entendimento religioso e moral.
Discurso similar poderia ser feito acerca de Sco: apesar de frequentemente pensar-
mos nele como um nacionalista escocês, a interpretação historiográfica em suas obras
e sua própria biografia sugerem uma acepção bem diversa. Tom Nairn lembra⁶ como
Sco qualificava a si próprio na forma de um «Valedictory Realist», para quem o fiel
retrato do passado através do método histórico não mirava a glorificação do mesmo
ou uma revolução no presente, mas, ao contrário, enfatizava a distância, quase se pro-
pondo, como a maior parte da historiografia medieval a quem sutilmente aludia, de
exemplum. Não que Sco não fosse, em sua alma, um convicto e orgulhoso Jacobino,
mas o autor que convencera um príncipe Stuart como George IV a retratar-se nas vestes
de um moderno Jacobite Highlander reconhecia expressamente os benefícios de perten-
cer à Union sem, nisto, observar qualquer contradição. Um sentimento, independente
das afiliações ideológicas de cada um, no qual encontramos um surpreendente sabor
atual.
Nairn (, p. )

Assim, a rigidez desta postura sociológica não se afasta o suficiente das lacunas da
antiga crítica biografista, pois simplesmente prolonga as relações de causa e consequên-
cia do particularismo de um autor, não de raro implícito, a um ainda menos definido
contexto de criação” que somente em críticas mais apuradas e obras bem documenta-
das alcança um “contexto de recepção. É por isto que tenho afirmado que a definição
de um estatuto para o romance histórico deve ser derivada das obras que se consi-
dere comporem o grupo, para não incorrer no falso de construções teóricas afastadas
da realidade e que reduzam as experiências anteriores e posteriores a meras especula-
ções e curiosidades. Desta forma, é válido amar em causa a enorme coleção de obras
anteriores a Sco, distantes temporal, geográfica e estilisticamente, e que contudo se
reconheciam como encontros de “história” e “ficção a ponto de em muitos casos se
intitularem explicitamente de historical novel, roman historique, novela historica e si-
milares⁷. Exatamente a fórmula pela qual obras como e Heart of Midlothian ()
seriam descritas por seus primeiros e entusiasmados críticos que assim as vinculavam
nominalmente a estas experiências anteriores.
Inclusive, é indiscutível o fato de Sco transparecer a experiência do gothic no-
vel que lhe era anterior e contemporâneo, assim como Manzoni o faria em grau ainda
maior em I promessi sposi (especialmente na figura de típico “sublime romântico do
Innominato), tanto que apontar incontestáveis diferenças formais e simbólicas entre as
Waverly Novels e as obras de Horace Walpole ou Ann Radcliffe não tem a facilidade
sugerida pelas teorizações mais velozes. Além disto, proceder a uma concreta com-
paração evidencia rapidamente como a distância entre o uso articulado de “história”
e “ficção em Sco e Manzoni não seja tão insuperável à luz das práticas historio-
gráficas atuais como supunham os defensores do primeiro: se a diferença entre suas
«image[ns] artisticamente fi[éis] de uma época histórica concreta» pareciam antes só-
lidas, hoje, reconheçamos, a prática historiográfica do feitor de Jedediah Cleishbotham⁸
é, aos olhares modernos, no mínimo ingênua.
Uma simples pesquisa bibliográfica aponta isto: além de Scudéry e Calpranède lembrados por Lu-
kács e Manzoni, posso citar, entre obras que reconheço ter apenas consultado eletronicamente, Don
Sebastian, King of Portugal: an Historical Novel in Four Parts de Ferrand Spence (), Il Conte Roggi-
ero: Romanzo storico de Anônimo (), La princesse de Gonsague: roman historique de Joseph Durey
de Sauroy Du Terrail (), Novela Historica de Conde Te[c]keli (assim mencionada em um catálogo
espanhol de ), Frédégonde et Brunéhaut: roman historique de Duesne Monvel (), Cléopatre,
Roman Historique de Gautier de Coste de La Calprenède (), e First Selers of Virginia: An His-
torical Novel de John Davis (-), Warwi Castle: An historical novel de Ms. Prie (), entre
incontáveis outras.
Nom de plume para o editor imaginário da série das quatro Tales of My Landlord de Sco (-
), apresentadas como uma série de narrativas históricas coletadas por um obscuro clérigo que se
opunha ao peso das Waverly Novels.

No caso específico da influência formal e temática do romance gótico no romance
histórico, mesmo mantendo fronteiras ainda rígidas entre os gêneros seria possível ex-
plicar a mesma com relativa facilidade simplesmente entendendo-a como uma impor-
tante e, tudo somado, previsível influência literária. Afinal, em paralelo com o romance
epistolar, a experiência da gothic novel era não apenas o modelo para a narrativa ro-
mântica de início do Oitocentos, mas era também o único verdadeiro equivalente dos
atuais best-sellers em termos de sucesso econômico fator que deve ter influenciado
não pouco as escolhas de Sco, que começou a escrever seus romances justamente para
aliviar suas dificuldades financeiras. Ainda assim, entendendo a semelhança como o
resultado de uma calculada influência, caberia investigar se sua quase universalidade
(como não apenas nos citados casos de Sco e Manzoni, mas mesmo em José de Alen-
car, cujo O Guarany, romance brasileiro, de , expira leituras góticas, entre seu
castelo inacessível e seu vilão italiano delicioso para posturas anti-católicas) se deva
unicamente a seu sucesso editorial. Torna-se ainda mais urgente considerar o público
e suas recepções das obras na discussão.
Afinal, seria injustificável, principalmente considerando o público deste trabalho,
não mencionar sequer de passagem a recepção contemporânea e latino-americana do
romance histórico, como exposto nas teorizações de tons talvez excessivamente pro-
vincialistas mas sempre válidas na análise do local de Seymour Menton⁹. De fato, ana-
lisado sob o fator local (apesar do Brasil sempre manter, em termos literários como em
praticamente todos os demais, uma continuidade intrincada com a América espanhola)
o romance histórico tomou caminhos particulares e geralmente distintivos, como na
contaminação de um grande filão pelo “realismo mágico” (por si um termo capaz de
uma antítese superior a “romance histórico”) ou nas recentes experiências que ressoam
o debate sobre a confiabilidade das vozes narrativas. São exemplos grande parte da
produção de Luiz Antônio de Assis Brasil, na qual a questão da identidade subordina
uma historicidade subjetiva, e o recente Leite derramado (), de Chico Buarque, um
refinado mas explícito desenvolvimento do narrador não confiável nas linhas da grande
tradição brasileira. Somem-se a estes o sucesso da literatura nacional e internacional ti-
picamente best-seller que incorre em não poucas críticas historiográficas precisamente
por disfarçar certa “ficção em “história”.
É portanto fundamental tratar não apenas da evolução do romance histórico, mas
de todas as narrativas contemporâneas que promovem alguma simbiose entre “ficção e
“história”, assim ultrapassando as compreensões mais tradicionais como a que restringe
Menton ()

I promessi sposi a uma doutrinação de pretensões nacionalistas. Em termos práticos,
não se trata de considerar apenas, para pisar no terreno seguro de obras canônicas, os
exemplos mais evidentes como a ironia erudita e pós-moderna de Umberto Eco em Il
nome della rosa () e Baudolino (), ou a prática interior de Marguerie Your-
cenar nos poemas em prosa do Feux () e no refinado Mémoires d’Hadrien (),
expressões diria indiscutíveis do encontro pós-moderno entre “história” e “ficção. Não
se trata nem mesmo de abordar exemplos menos imediatos como a hiperrealidade de
omas Pynon em Gravity’s Rainbow (), ou as validíssimas experiências de rea-
lismo mágico como Cien años de soledad () de Gabriel García Márquez. Trata-se,
sim, de ao menos perguntar-se qual seria a relação entre o romance histórico tradici-
onal e outros gêneros, a exemplo a “história alternativa” (frequentemente associada à
ficção científica, como o conto What If --- de Isaac Asimov de , ou às guerras do
Novecentos, como Fatherland de Robert Harris de ), a “história secreta” (como e
Day of the Jaal de Frederi Forsyth de  ou o best-seller dos leitores de um único
livro, e Da Vinci Code de Dan Brown de ), o “fantasy histórico” (como a série
War Between the Provinces de Harry Turtledove de - e mesmo o fenômeno lite-
rário do bruxinho Harry Poer de J. K. Rowling de -) e, a fortiori, mesmo as
deploráveis experiências literárias de negacionismo histórico relativas ao Holocausto
muitas destas, vale ressaltar, experiências que logo foram extrapoladas da narrativa
literária para a dramática onde este tipo de encontro tem se mostrado cada vez mais
presente. Seguindo por um caminho divergente, seria também possível considerar a
relação com obras que se propunham como elaborações futuras de um presente em
análise, feito a também britânica tradição de distopias (pense-se em Brave New World
de Aldous Huxley de  e principalmente em Nineteen Eighty-Four de George Orwell
de ).
Apesar de em não poucos destes casos as diferenças poderem ser retratadas como
simples estilemas, dispositivos literários, temas recorrentes ou mesmo nios de mer-
cado, restaria o estudo da diferença com aquela narrativa com a qual, desde seu sur-
gimento, o romance histórico se constitui essencialmente por relações de oposição e
diferenciação: a narrativa histórica de fato, composta segundo os métodos de pesquisa
historiográfica de cada época, principalmente quando dirigida a um público de não
especialistas.
Visto tudo, devemos lembrar que, principalmente ao adotarmos limites mais ou me-
nos rígidos como os de Lukács, nos encontramos no âmbito de um debate a posteriori,
em vista do qual uma limitada perspectiva histórica poderia fazer com que as acalo-

radas diatribes ocorridas dois séculos quanto ao romance histórico se reduzissem a
triviais discussões estéticas aparentemente concluídas e resolvidas em si próprias. Mas
se é verdade que uma disputa severa como a do Oitocentos relativa à própria existência
do romance soaria hoje anacrônica e, porque não, risível, é sempre importante lembrar
como naquele clima cultural o romance, e particularmente o romance histórico, consti-
tuiu o ponto focal de uma nova erelle ou, similarmente, uma continuação da querela
por excelência do início do Setecentos. Afinal, mais que centrar-se na superficial ob-
servância de normas universais, a disputa entre defensores e detratores do romance
histórico relacionava-se à finalidade de novas formas como aquele híbrido narrativo.
Neoclássicos e românticos costumavam salientar muito mais os aspectos ideológicos do
romance histórico do que sua singular identidade formal; opiniões que, originalmente
dirigidas a Sco, fizeram por reforçar esta tendência a causa do próprio debate, tanto
que o modelo do romance histórico, destinado a abrigar as mais diversas temáticas e
ideologias, tornou-se por definição um paradigma ainda mais aberto que o gênero mais
abrangente do “romance.
Um hibridismo, portanto, que implica a continuidade da discussão a respeito da
noção de “romance histórico” como um gênero literário, discussão que se mostra fru-
tífera por colocar-se além da simples crítica de valor (que sabe-se constituir sempre,
em última análise, a concretização de pré-conceitos de quem avalia) ao articular-se
cientificamente em terreno teórico e historiográfico. Afinal, não são mais possíveis,
assumindo-se que algum dia o tenham sido para o caso particular do romance histó-
rico, as empoeiradas abordagens normativas que buscam a revelação de sistematizações
estanques de maior ou menor rigidez, penalizando uma essência dos gêneros literários
hoje percebida como relativa e transitória de forma que a história dos próprios gêne-
ros, e por extensão a história da literatura, se transforma em uma perene distribuição
de constantes pela qual uma obra é essencialmente avaliada por sua maior ou menor
participação na definição de seu gênero, com especial detrimento para híbridos como o
nosso. Com efeito, as abordagens em voga entendem os gêneros como modelos abertos
a serem formulados para os momentos de produção e, particularmente, de recepção,
abrigando-se assim do risco da adoção de uma «hermenêutica substancialista» que bus-
que «individuar traços apriorísticos com funções regulamentárias»¹⁰.
Como exposto na Introdução, seguindo este princípio neste trabalho parte-se da
hipótese de que exista uma continuidade de gênero entre o primeiro romance histó-
rico e as análogas experiências contemporâneas. Em outras palavras, sustenta-se que
¹⁰ «individuare degli a priori con funzioni regolative [Ganeri (, p. )]

tal gênero não se tenha esgotado com a conclusão das aventuras nacionalistas da bur-
guesia industrial, mas sim que tenha se modificado em função de mudanças estilísti-
cas e principalmente de uma nova concepção de história e verdade, prolongando-se
mesmo ao presente onde as soluções, como lembrado por Ganeri, são tipicamente
pós-modernistas em seu gosto pela paródia e pela polêmica.
É evidente como a defesa deste tipo de continuidade não possa ser sustentada por
uma disposição tradicional de gêneros literários, por sermos forçados a lembrar da
mencionada «identidade literária incerta» que caracterizava o romance histórico em
seus inícios, um gênero híbrido sempre julgado «no meio do caminho entre literatura
e paraliteratura, entre o discurso político e propagandístico e aquele didático e didas-
cálico»¹¹. É necessário adotar uma postura alternativa que, apesar de ter iniciado a
ser formulada pela crítica científica ainda no Oitocentos, somente começou a mostrar
efetivo vigor a partir dos anos ’ do século passado.
Nesse sentido, ao invés de tomá-lo por um modelo feado, julgo necessário se-
guir a tendência atual de analisar o romance histórico como uma forma de expressão
peculiar, mas não única, de um suficientemente definido modo narrativo e, portanto,
literário. erendo apontar um único ponto de partida para esta concepção, apesar
de reconhecer diferenças profundas e não solucionáveis, devemos citar o quarto ensaio
de Northrop Frye em seu genial Anatomy of Criticism (), no qual discutia justa-
mente os gêneros literários. Dito em poucas palavras, trata-se de analisar a interação
entre um grupo de obras, geralmente afins, focando-se mais em seus aspectos cogni-
tivos e epistemológicos do que naqueles formais e temáticos: apesar de estes últimos
não serem excluídos do entendimento, sua análise é subordinada à dos primeiros não
tanto por considerá-los aspectos externos, mas por serem de âmbito mais propriamente
ecdótico, ou mesmo estético, do que crítico. Além do mais, em obras de um mesmo
gênero cronologicamente próximas o salto formal não é, via de regra, tão acentuado:
mantendo-se um público similar, a exigência da verossimilhança, sempre vigorosa em
qualquer aspecto de narrativa ficcional e particularmente literária, prevê modelos e
regras específicas na organização dos conteúdos: como foi lembrado, em última ins-
tância é o “pacto literário” estabelecido entre autor e leitor a distinguir, de maneira
não sempre inequívoca, entre a narração ficcional e a não ficcional, com a imediata
consequência de que, a recepção sendo realizada por um público diverso do original,
a percepção de ficcionalidade de um idêntico texto pode apresentar diferenças capazes
¹¹ «a metà strada tra la leeratura e la paraleeratura, tra il discorso politico e propagandistico e
quello didaico e didascalico.» [Ganeri (, p. )]

de subverter integralmente sua colocação num imaginário eixo entre “ficção e “não
ficção.
Da mesma forma, a análise por um particular “modo” narrativo em nosso caso
aquele que prevê o cruzamento da narrativa ficcional com a não ficcional em privi-
légio da primeira permite-nos não apenas seguir este gênero ao longo de suas três
principais fraturas (a crise da metade do Oitocentos, o advento do Modernismo e a
concorrência do Pós-modernismo) como também explicar de maneira espero satisfa-
tória, e complementar tanto à crítica romântica quanto à lukácsiana, o surgimento do
romance histórico na Europa Ocidental de início do Oitocentos e a forma, como recém
lembrado derivada do romance de inspiração gótica, que este assumiu. Ganeri lembra
como
se trata de um «modo» ligado por um lado ao desenvolvimento da ciên-
cia histórica e por outro às dinâmicas sócio-culturais vinculadas à as-
censão social da burguesia. Sob este perfil, a análise de György Lukács,
mesmo em muitos aspectos ultrapassada, revela-se incontestavelmente
ainda atual. […] A continuidade não é tão ou somente literária: é prin-
cipalmente filosófica e cultural. Se a questão da relação entre história e
invenção assumiu um papel central […], isto ocorreu porque a relação
entre ciência e literatura […] se modificou […].¹²
Dessa forma, a discussão acerca do romance histórico é obrigatoriamente uma dis-
cussão sobre a teoria e a prática dos gêneros literários, outro ponto de grandíssimo
interesse da Academia. Se, como dito, é pouco lembrar que o romance histórico ex-
cita público e crítica, ega a ser um lugar-comum a afirmação de que na narrativa
pós-moderna (que porém, é importante lembrá-lo, não inclui necessariamente toda a
produção contemporânea) os gêneros literários parecem ter perdido por completo e
em definitiva seus anteriores paradigmas de diferenciação e autonomia. É exatamente
a causa deste motivo, que pode ser resumido na hibridização dos gêneros anteriores
e em uma prática que costuma valorizar justamente a invasão de fronteiras, que a
identificação e a análise destas novas experiências requerem métodos alternativos de
categorização. Inclusive, de certa maneira o primeiro romance histórico, reconhecido
fundamentalmente em seu hibridismo tanto por defensores quanto detratores, não pas-
sava de um importante elemento indicativo desta mudança e a bom título poderia ser
¹² «si traa di un «modo» legato da un lato allo sviluppo della scienza storica e dall’altro alle dina-
mie socio-culturali legate all’ascesa sociale della borghesia. Soo questo profilo, l’analisi di György
Lukács, pur per molti aspei superata, si rivela incontestabilmente ancora auale. […] La continuità
non è tanto o solo leeraria: è soprauo filosofica e culturale. Se la questione del rapporto tra storia e
invenzione ha assunto un rilievo centrale […], ciò è accaduto peré la relazione tra scienza e leeratura
[…] si è modificata […].» [Ganeri (, p. )]

considerado o primeiro gênero efetivamente “pós-moderno. Sua investigação é assim
necessária para indiretamente responder a esta hipótese e principalmente para opinar
se o sucesso atual do romance histórico, tanto pelas novas produções como pelo in-
teresse e revisão dos modelos tradicionais, constitui um ressurgimento de um gênero
abandonado ou a adaptação às exigências atuais de um modelo sempre vivo e mutável,
caso no qual nosso particular “modo” narrativo seria potencialmente capaz de explicar
satisfatoriamente tais mudanças.
O núcleo da questão está, como apontado, no interesse pela teoria dos gêneros, hoje
um dos principais motores da historiografia e mesmo da crítica literária. O interesse pe-
los gêneros parece ser uma sequência de episódios intercalados por desinteresses e atu-
almente estamos presenciando a força de uma nova fase que tomou corpo em meados
dos anos ’, nascida no processo de oposição ao domínio pleno da crítica por parte das
várias vertentes estruturalistas precisamente durante seu auge (a célebre conferência de
Hans Robert Jauss na Universidade de Konstanz é de )¹³. Não deixa se ser interes-
sante como exatamente no momento de maior força do estruturalismo tenha se sentido
a necessidade de voltar a praticar uma historiografia literária que não se resumisse à
mera cronologia, na expressão de uma prática multidisciplinar que afetou mesmo as ci-
ências ditas “duras”. Vivia-se, afinal, o momento da afirmação também entre o grande
público de artes e pensamentos antes restritos, provocadores e vanguardistas, e hoje
imprecisamente acomunados sob a única e imprecisa etiqueta de “pós-modernismo”; a
causa desta afirmação era precisamente uma crise dos paradigmas cognitivos espaço-
temporais que foram potencializados e apressados pelas profundas mudanças sociais,
econômicas e populacionais daqueles anos.
No campo da teoria dos gêneros, o efeito prático desta revolução foi o citado en-
tendimento dos mesmos como uma questão de contextualização social da literatura no
momento de produção e, especialmente, de recepção da obra literária. Com o risco de
uma simplificação excessiva, seria possível julgá-lo como uma recusa às anteriores te-
orias de gênero, completamente substituídas mas das quais herdariam o antigo nome;
é exatamente neste sentido que Ganeri afirma como a própria noção de gênero esteja
no centro de uma disputa entre as teorias de tipo normativo e classifica-
tório, e as propostas de tipo pragmático e sociológico, ligadas à estética
¹³ Como lembra Ganeri, o maciço estruturalista fizera com que durante muito tempo a questão dos
gêneros literários fosse vista como secundária ou simplesmente superada, da mesma forma como ocor-
rera no âmbito das tendências críticas entre os anos ’ e ’, como o formalismo russo e em muito maior
medida o New Criticism, que apesar das diferenças coincidiam em uma suspeita por qualquer modelo
historiográfico totalizante, que no estruturalismo mais rigoroso praticamente se transformaria em uma
efetiva recusa à historiografia literária tout court.

da recepção, à sociologia da literatura e em geral a todas as orienta-
ções críticas que põem a atenção no momento social da recepção e no
público.¹⁴
Trata-se de uma abordagem difícil pois ao consenso teórico corresponde, mesmo
pela novidade, uma gama de abordagens práticas dissonantes, não havendo nem mesmo
uma sistematização das alternativas ou um acordo sobre o significado de sua termino-
logia básica. Há, contudo, uma consequência prática comum, que é o banimento, deri-
vado da compreensão de sua ineficácia e mesmo impossibilidade, da anterior postura
normativa. Em verdade, ainda fica em aberto uma discussão extensa sobre a efetiva
interpretação para a noção de “normativo”: se é realmente difícil entendê-la como um
«sistema controlado por normas codificadas», é todavia em certa medida aceitável uma
compreensão do mesmo qual «sistema de normas abstraídas de um grupo de textos se-
lecionado», que além de onipresente na historiografia literária (inicia em Aristóteles e
ega facilmente mesmo a aspectos de Lukács e da crítica sociológica dele derivada)
demonstra-se não raro mais eficiente que abordagens teoricamente sólidas mas de re-
alização bastante frágil.
Em sua introdução ao romance histórico na Itália, Ganeri lembrava também o im-
portante trabalho Beyond Genre [Para além do gênero] de Paul Hernadi que, partindo
de uma resenha dos sistemas de gêneros do Novecentos, se concentrava na discussão
das duas correntes mais comuns naquele início dos anos ’, nas quais a certeza da
necessidade de inovação era acompanhada pelas dúvidas sobre como esta deveria ser
efetuada: o sistema histórico-dialético derivado de Lukács, do qual podemos hoje ver
uma claríssima continuação em Frederi Jameson, e o sistema modal de Frye que,
com uma disposição ironicamente estruturalista, servia de pilar à teorização do pró-
prio Hernadi. Vistos hoje, se a influência do primeiro é ainda fortíssima, o legado do
segundo é muito menor apesar do furor na aclamação pública à época de sua primeira
divulgação. Tais propostas teóricas eram de qualquer maneira anteriores às motiva-
ções daquela revolução, servindo assim para preener a lacuna deixada pela recusa
do complexo estruturalista enquanto outras teorizações, mais adequadas na resposta
às dúvidas que haviam motivado o debate, tomavam forma durante a década. Destas,
vale lembrar em particular a obra Les genres du discours [Os gêneros do discurso] de
Tzvetan Todorov, publicada em  e que apresentava uma série de posturas e pro-
postas inovadoras, iniciando pelo título que substituía a anterior formula de “gêneros
¹⁴ «al centro di una disputa tra le teorie di tipo normativo e classificatorio, e le proposte di tipo prag-
matico e sociologico, legate all’estetica della ricezione, alla sociologia della leeratura e in generale a
tui gli orientamenti critici e pongono l’aenzione sul momento sociale della ricezione e sul pubblico.»
[Ganeri (, p. )]

literários” por um “gêneros do discurso” muito mais adequado em uma época na qual
se tornavam rotineiras não apenas as hibridizações entre os gêneros literários, mas
entre os vários meios artísticos e mesmo entre qualquer “texto”, aqui entendido em
senso lato como um produto discursivo. Mais que novas fórmulas linguísticas, o crí-
tico franco-búlgaro dava voz a uma corrente que defendia uma aproximação histórica
e empírica aos gêneros literários, similar àquela apresentada neste trabalho e oposta à
costumeira acepção lógico-normativa. Além disto, era um elemento praticamente iné-
dito o reconhecimento de que a reorganização dos gêneros literários no Romantismo
devia ser observada como um sinal da revolução nas expectativas de um “público” que
também mudara: os desafios da estética da recepção permitiam agora ver as mudan-
ças na recepção literária como a exigência de uma nova compreensão para os gêneros,
principalmente no caso de obras produzidas a partir daquele momento. Uma visão que
hoje pode soar patente, mas que mantinha o sabor revolucionário daquelas inovadoras
propostas alemãs de compreensão da literatura de meados dos anos ’.
O valor da estética da recepção se fez sentir também em outra importante obra,
com não poucos pontos de contato com a teorização de Todorov. Trata-se do Alteri-
dade e modernidade da literatura medieval (), no qual Jauss também colocava em
prática seus desafios da estética da recepção empregando os gêneros na forma de cate-
gorias funcionais para a interpretação da história literária; de fato, entendia-se mesmo
que mais de um sistema de gêneros fosse possível e válido, assim facultando diver-
sas interpretações das relações entre grupos de obras, seus sistemas e, evidentemente,
seu público. Nesse sentido, cabe retomar a citação lembrada por Ganeri na qual Jauss
respondia à noção crociana de alteridade de uma obra com as demais ao afirmar que
[a] obra literária é condicionada pela alteridade, ou seja, pela relação
com uma consciência e forma de compreensão diversa […]; é exata-
mente isto que revela a natureza gradual do fenômeno e a «legítima
transformabilidade» dos gêneros literários, desde que estejamos dispos-
tos a não conceber mais em modo substancialista o conceito clássico de
gênero literário. Isto exige que não se atribua aos «gêneros» literários
(que além do mais são hoje amados desta forma somente em sentido
metafórico) nenhuma outra universalidade senão aquela que se revela
na transformação de sua manifestação histórica. Com a validade atem-
poral assumida pelo conceito substancialista da poética clássica dos gê-
neros, não devem de maneira alguma serem menosprezados os aspectos
gerais e típicos de cada gênero que fazem com que um grupo de textos
se mostre pertencente a um mesmo grupo ou fortemente vinculados en-
tre si. […] Assim, os gêneros literários devem ser entendidos não como
genera (classes) em sentido lógico, mas grupos ou famílias históricas.¹⁵
¹⁵ «[l]’opera leeraria è condizionata dall’alterità, cioè dal rapporto con una coscienza e forma di

Esta percepção relativa à recepção das obras tem sido, cada vez mais, acompanhada
de um fazer sociológico para a compreensão do romance histórico, no qual além de um
certo pragmatismo derivado de Lukács, do romance histórico como forma de ultrapas-
sar os limites da historiografia, busca-se nestas obras a expressão polifônica de uma
sociedade igualmente multifacetada. O duplo caminho pela estética da recepção e pela
sociologia da literatura tem se mostrado extremamente benéfico, pois lida-se com po-
sições necessariamente complementares nas quais o aspecto mais teórico da primeira
pressupõe justamente a necessidade de uma vinculação de qualquer teorização à prática
da arte e da crítica. O aclamado “relativismo” pós-moderno é assim finalmente enten-
dido em sua efetiva dependência contextual e não no ingênuo laissez-faire teórico que
contamina boa parte das discussões.
Trata-se, com efeito, do diálogo adotado por este próprio trabalho, e é o que nos
justifica, na contramão do interesse inicial de Jauss, ao atribuir um grande valor não
apenas ao contexto da recepção de uma obra literária, mas também àquele de sua pro-
dução. Nisto talvez resida a real diferença desta proposta, para o qual trago em defesa
as palavras, lembradas por Ganeri, de outro importante nome daquela corrente, Eri
Köhler:
O grande significado da «Rezeptionsästhetik» não creio necessite ser
demonstrado. Me parece porém absolutamente necessário refletir sobre
as possibilidades de uma «estética da produção», orientada na direção
da sociologia da literatura. Neste sentido a diferença entre Jauss e mim
não nasce de uma contradição, mas sim de uma divisão do trabalho
no âmbito de uma estratégia convergente, o que não significa que se
compartilhem sempre as opiniões.¹⁶
Em suma, não se trata nem mesmo necessariamente de negar, a priori, uma qua-
lidade normativa dos gêneros literários ou do discurso em nome de uma abordagem
pragmática; trata-se sim, como lembrava o próprio Kohler, de negar aos estatutos dos
comprensione diversa (…) proprio questo rivela la natura graduale del fenomeno e la «legiima tras-
formabilità» dei generi leerari, a pao e si sia disposti a concepire non più in modo sostanzialistico
il conceo classico di genere leerario. esto riiede e non si aribuisca ai «generi» leerari (e
ormai del resto vanno iamati così solo in senso metaforico) nessun’altra universalità, se non quella e
appare nella trasformazione della loro manifestazione storica. Con la validità atemporale assunta dal
conceo sostanzialistico della poetica classica dei generi, non si devono in nessun modo soovalutare
gli aspei generali e tipici di ogni genere e fanno apparire un gruppo di testi come dello stesso tipo o
streamente collegati fra loro. (…) Dunque i generi leerari sono da intendere non come genera (classi)
in senso logico, ma come gruppi o famiglie storie.» [Jauss (, p. -)]
¹⁶ «Il grande significato della «Rezeptionsästhetik» non credo abbia bisogno di essere dimostrato.
Mi sembra invece assolutamente necessario rifleere sulle possibilità di un’«estetica della produzione»,
orientata verso la sociologia della leeratura. In questo senso la differenza tra Jauss e me non nasce da
una contraddizione, ma piuosto da una divisione del lavoro all’interno di una strategia convergente, il
e non vuol dire e si sia sempre della opinione.» [Bordoni (, p. )]

gêneros literários um valor substancialista, entendendo o conceito de gênero «não ante
rem, como um universal realístico-normativo, e nem mesmo post rem, em uma acep-
ção nominalista e classificatória, mas como existente in re»¹⁷. Uma afirmação que, para
além da valiosíssima contribuição intelectual, revela sua origem nas dúvidas da filoso-
fia medieval com a classificação dos universais; mais que buscar o ponto de encontro
com pensamentos antigos como os de Avicena e Aberlardo, faz-nos lembrar de como
a discussão acerca da estética da recepção tenha nascido, de maneira nada surpreen-
dente, no âmbito do estudo da literatura medieval. A este respeito, uma das terríveis
consequências dos movimentos anti-historiográficos da crítica do Novecentos foi jus-
tamente uma diminuição preocupante e, mais, angustiante do interesse pelas obras não
contemporâneas, cujo efeito prático é a débil conexão de qualquer perspectiva tempo-
ral estranha ao crítico se este não estiver mais do que somente familiarizado com um
elenco de títulos antigos.
É assim que, emulando Ganeri, que simplesmente reproduzia a boa prática inves-
tigativa de ditames filológicos, este trabalho partiu da certeza de que
a definição do estatuto de gênero é uma operação teórica vinculada a
uma precisa impostação historiográfica. O reconhecimento da interde-
pendência entre as definições teoréticas e as metodologias historiográ-
ficas implica a superação das velhas perspectivas normativas em favor
de perspectivas pragmáticas.¹⁸
Em suma, é por estes mesmos motivos que proponho uma investigação de I pro-
messi sposi por uma diferente acepção de gênero, na qual o romance histórico do pri-
meiro Oitocentos é uma importante concretização de um “modo” narrativo perene que
busca articular a narrativa histórica com a ficcional, no objetivo de complementar a
primeira, explicá-la ou opô-la a outras narrativas históricas. Isto pode ser feito pela
oportunidade única que temos de acompanhar o desenvolvimento seja do percurso li-
terário de Manzoni, marcado ao menos desde suas primeiras tragédias exatamente pelo
encontro entre história e ficção, seja do intelectual, pela existência do Del romanzo sto-
rico, um documento teórico único desta primeira época que nos permite acompanhar
seu romance como um verdadeiro laboratório experimental.
anto à obra, esta postura permite uma melhor apresentação da mesma, princi-
¹⁷ «non ante rem, come un universale realistico-normativo, e neppure post rem, in accezione nomi-
nalistica e classificatoria, ma come esistente in re [Ganeri (, p. )]
¹⁸ «la definizione dello statuto di un genere è un’operazione teorica connessa a una precisa imposta-
zione storiografica. Il riconoscimento dell’interdipendenza tra le definizioni teoretie e le metodologie
storiografie implica il superamento delle vecie prospeive normative a favore di prospeive prag-
matie.» [Ganeri (, p. )]

palmente a um público que não está acostumado a ela, como o brasileiro, e que não
poderia acompanhar a intensa investigação que tem sido realizada na Itália. anto
ao romance histórico em geral, os fundamentos teóricos para esta postura, que serão
apresentados a seguir, espero possam oferecer uma alternativa a ser considerada na
avaliação de qualquer narrativa que proponha este encontro entre o histórico e o ficci-
onal.
. O “modo” narrativo do romance histórico
εἴη γὰρ ἂν τὰ Ἡροδότου εἰς μέτρα τεθῆναι καὶ οὐδὲν ἧττον ἂν εἴη ἱστορία
τις μετὰ μέτρου ἄνευ μέτρων: ἀλλὰ τούτῳ διαφέρει, τῷ τὸν μὲν τὰ
γενόμενα λέγειν, τὸν δὲ οἷα ἂν γένοιτο. διὸ καὶ φιλοσοφώτερον καὶ
σπουδαιότερον ποίησις ἱστορίας ἐστίν: μὲν γὰρ ποίησις μᾶλλον τὰ
καθόλου, δ᾽ ἱστορία τὰ καθ᾽ ἕκαστον λέγει. (Aristóteles)¹⁹
Todo estudioso de literatura e narrativas em geral conhece a diferença traçada por
Aristóteles entre ἱστορíα [historía] e ποίησις [poíeesis]: a primeira é exposição de
quanto ocorreu (τὰ γενόμενα), a segunda de quanto poderia ocorrer (οἷα ἂν γένοιτο).
Ainda mais importante, sua Poética evidenciava como não era necessariamente o meio
ou qualquer outro aspecto exterior a definir se um relato fosse ficcional ou não ficcional,
exemplificando com um hipotético Heródoto posto em metro. Ao contrário, a diferença
entre a ἱστορíα e a ποίησις se estabelecia como uma diferença entre suas relações com
a verdade. Desta forma, além do “poeta” passar de feitor de versos a criador de tramas,
entende-se como a “história” possa mesmo soar menos verossímil que a “poesia”, pois
a verdade da primeira diz respeito à correspondência com a realidade, enquanto a da
segunda à coerência com nossa percepção acerca da mesma.
Este treo em epígrafe tem sido não poucas vezes citado como uma defesa avant
la lere das artes literárias e da capacidade imaginativa humana, até mesmo opondo-
as a um menos válido cientificismo da historiografia. Mas a postura de Aristóteles,
como sabemos, era organizativa e descritiva; seu propósito classificatório e não divi-
sório simplesmente ressaltava o importante fator da existência de duas formas básicas
para a narrativa. Esta classificação pode ser tomada, inclusive adaptando sua termi-
nologia a nossos fins específicos, como ponto de referência para certas constatações
¹⁹ «E de fato as obras de Heródoto poderiam ser postas em verso e ainda assim seriam um tipo de
história, escritas ou não escritas em metro. Esta é a verdadeira diferença, que uma fala do que ocorreu
e a outra do que pôde ocorrer. E por isto a ποίησις é mais filosófica e séria que a ἱστορία, pois a
ποίησις costuma se referir ao universal enquanto a ἱστορία discorre sobre o particular [Aristóteles
(, β)]

teóricas de âmbito narratológico que serão necessárias ao debate sobre o romance his-
tórico manzoniano. Afinal, o próprio Manzoni discutiu exatamente o treo em ques-
tão, apresentando-o como uma longa nota de rodapé em seu Del romanzo storico. Mas
Manzoni também sabia, como expôs Bermann, que no início do Oitocentos a vantagem
da poesia sobre a história como veículo para a transmissão de verdades universais,
havia diminuído quase ao ponto da nulidade: servira a Heródoto e Eurípedes, mas não
a Sismondi e a Sco.
É desta forma que nos convém iniciar conceituando “narrativa” como um dos qua-
tro modos retóricos fundamentais do discurso, junto à exposição, à “argumentação” e
à “descrição. Sua função é a apresentação ou representação de um grupo, geralmente
sequencial (mesmo quando desordenado cronológica e/ou logicamente), de fatos ficci-
onais e/ou não ficcionais na forma de eventos” por meio de alguma expressão comu-
nicativa, como a linguagem verbal, a música, a pintura ou a dramatização. De fato,
podemos identificar o “modo narrativo como sendo um conjunto de métodos utiliza-
dos por uma voz autoral para transmitir a um público uma “trama” (entendida como
um conjunto de eventos), no processo denominado “narração (do qual decorrem os
fatos).
Os quatro modos retóricos fundamentais acima lembrados são, evidentemente,
concepções abstratas de traços identificáveis nas mais diversas instâncias comunica-
tivas: seria no mínimo ingênuo imaginar práticas “puras” dos mesmos. Em particular,
entre as práticas vinculadas à narrativa a mais comum (e que mais nos interessa) é o
storytelling, o contar histórias”²⁰, que se distingue como característica fundamental
e universal da espécie humana²¹. Forma de comunicação essencialmente verbal, mas
aberta a outros canais de comunicação, possui no modo narrativo seu traço fundamen-
tal, com a constante acolhida dos demais modos, em particular da descrição.
Seria interessante avaliar as possibilidades de uma narrativa em linguagens não
humanas, principalmente vistas as recentes pesquisas em psicologia e sociologia de
primatas. Fato é que a narração humana é certamente distinta não apenas por sua ar-
ticulação linguística, mas principalmente por implicar, além de um objetivo integrado
²⁰ Muitos autores se referem ao storytelling como um ato exclusivo da narração preponderantemente
ficcional, e/ou uma concretização na qual o meio verbal não é necessariamente preponderante ou mesmo
fundamental; contudo, neste texto emprego o termo para me referir unicamente à comunicação de tipo
verbal preponderantemente narrativa. Desta forma, entram em minha acepção do termo desde comu-
nicações orais como piadas, relatos de viagem e narrações esportivas até comunicações escritas como
relatos históricos, narrativas ficcionais e treos de opiniões jurídicas.
²¹ Como é sabido, não poucos autores egam mesmo a considerar a participação, ativa e passiva, em
formas de storytelling como uma necessidade psicológica básica.

à comunicação, uma faculdade de compreensão temporal e uma consequente capaci-
dade de distanciamento dos fatos que justificadamente podemos considerar como ex-
clusivamente humanos. Um simples exercício intelectual pode nos demonstrar como,
intuitivamente, julgamos o domínio do modo narrativo por parte de uma criança, para
além do anterior uso linguístico efetivo, como um marco importante em sua evolução
intelectual (mesmo havendo confusões e diferenças em relação à compreensão adulta
dos momentos de enunciação, de referência e de ação de cada narrativa); além disto,
é o domínio da narração ficcional quando reconhecida como tal (e da qual a capaci-
dade consciente e intencional de inventar, eventualmente para o engano dos outros, é
provavelmente o primeiro aspecto) a representar seu aspecto mais social. Com efeito,
uma incapacidade de domínio e reconhecimento deste modo narrativo a partir de certa
idade seria provavelmente descrita como sinal de alguma deficiência na faculdade co-
municativa ou na interação social.
Outra prova da humanidade do modo narrativo é a lembrada abertura a formas
de expressão não verbais, e geralmente tidas por “artísticas”, como pintura, escultura
e representação cinemática. Análises quanto à narratologia nestes meios de expressão
e quanto à tradução entre meios, particularmente se o fator verbal é completamente
excluído, foram feitas e estariam muito além da proposta deste trabalho; entretanto,
podem ser eventualmente retomadas na discussão sobre o modo narrativo particular
que nos interessa, isto é, aquele que funde a narrativa ficcional com a não ficcional.
Afinal, mais que os princípios narratológicos traçados acima, interessa-nos princi-
palmente a distinção encontrada em Aristóteles entre a ἱστορíα, a narrativa “histó-
rica” ou “não ficcional”, e a ποίησις, a narrativa “ficcional”. É certo que também esta
distinção, como aquela entre os modos retóricos, não passa de uma abstração funcio-
nal impossível em estado puro”: não somente é impraticável imaginar uma narrativa
ficcional completamente afastada da realidade, mas a própria execução da narrativa
não ficcional, em senso lato da narrativa histórica, exige um específico operar poético
de seu autor, ao menos pela obrigatoriedade em se adaptar um grupo de eventos, cuja
transmissão seria intuitivamente mimética, a específicos meios diegéticos. É neste sen-
tido que, subvertendo ligeiramente a intenção original, podemos concluir como White
que «geralmente um elemento poético em toda a escrita histórica»²².
A concorrência de elementos históricos e poéticos em qualquer narrativa faz com
que a distinção entre ἱστορíα e ποίησις se coloque muito mais em um plano extratex-
²² A fórmula é apresenta por White, com variações, em praticamente toda sua obra; contudo, é ne-
cessário lembrar que White refere-se a um aspecto muito específico do fazer historiográfico.

tual, no qual as intenções e percepções de autores e leitores são cardeais, do que em
particulares elementos textuais e comunicativos. Se por um lado é inegável que exis-
tam traços mesmo formais típicos às duas propostas narrativas, estes são muito mais
ditames da conveniência e do costume de cada cultura narrativa do que consequências
da proposta narrativa adotada; prova disto são não apenas as conhecidas variações di-
atópicas e diacrônicas dos estilemas de cada grupo, mas principalmente o fato de ser
sempre possível, como veremos, mascarar uma narrativa ficcional de ἱστορíα e uma
não ficcional de ποίησις. Em seu Descrizione e citazione [Descrição e citação], após
lembrar como Émile Benveniste lançara mão indistintamente de narrativas históricas e
ficcionais em seu estudo sobre o verbo francês, Carlo Ginzburg resumia esta conclusão
brilhantemente ao indicar o ponto onde deveria ser centrado o interesse do historiador:
Afirmar que uma narração histórica se assemelha a uma narração in-
ventada é óbvio. Creio seja mais interessante perguntar-se porque per-
cebemos como reais os eventos narrados em um livro de história. Ge-
ralmente se trata de um resultado produzido por elementos tanto extra-
textuais quanto textuais. Vou me concentrar nestes últimos, buscando
ilustrar alguns procedimentos, ligados a convenções literárias, com os
quais historiadores antigos e historiadores modernos tentaram comu-
nicar aquele efeito de verdade que consideravam uma parte essencial
do trabalho ao qual se dispunham.²³
Contudo, o texto de Ginzburg se abria com uma interessante distinção entre as
relações de veridicidade nas narrativas, basilar em toda a teorização do autor em seu
diálogo com White e particularmente apropriada ao estudo do romance histórico. Afi-
nal, exatamente como percebera Manzoni no início do Oitocentos, se a binária divisão
aristotélica entre “verdadeiro e “possível” bastava ao estudo da tragédia, um meio de
narração mimético, podemos nos apropriar desta mais adequada divisão entre “verda-
deiro, “falso” e “fingido, para a qual Ginzburg toma como ponto de partida, citando
Sextus Empiricus, um obscuro gramático grego amado Asclepíades de Mirléia:
Sobre a história, esta pode ser verdadeira, falsa ou qual fosse verdadeira.
Verdadeira é aquela que trata de fatos que ocorreram, falsa aquela que
trata de ficções e mitos, qual fosse verdadeira aquela encontrada nas
comédias e mimos.²⁴
²³ «Affermare e una narrazione storica somiglia a una narrazione inventata è ovvio. Mi pare più
interessante iedersi peré percepiamo come reali gli eventi raccontati in un libro di storia. Di solito
si traa di un risultato prodoo da elementi sia extratestuali sia testuali. Mi soffermerò su questi ultimi,
cercando di illustrare alcuni procedimenti, legati a convenzioni leerarie, con cui storici antii e storici
moderni hanno cercato di comunicare quell’“effeo di verità” e consideravano parte essenziale del
compito e si prefiggevano [Ginzburg (, p. )]
²⁴ «Ex historia enim aliam quidem dicit esse veram, aliam vero falsam, aliam autem tanquam veram.
Et veram quidem, eam, quae versatur in rebus quae geruntur. Falsam autem, quae versatur in fingimentis
et fabulis. Tanquam veram autem, cuiusmodi est comedia et mimi.» [Ginzburg (, p. )]

Efetivamente, a caracterização humana do storytelling abre-o à possibilidade de
ser, seja em âmbito de produção quanto de recepção, verdadeiro ou não verdadeiro.
Se por um lado ἱστορíα mostra-se um termo capaz de abrigar toda a narrativa ver-
dadeira²⁵, por outro lado é impreciso e inadequado incluir toda compreensão narra-
tiva contemporânea quanto à ficção sob o exclusivo rótulo de ποίησις: a divisão que
proponho aqui, buscando facilitar o estudo do romance histórico, é tetrapartida entre
ἱστορíα, ποίησις, ψεῦδος [pséudos] e ἀπάτη [apatee]²⁶. Para nossos propósitos neste
texto, a primeira é o único modo narrativo correspondente à realidade²⁷; a segunda,
restringindo os originais âmbitos platônico e aristotélico, é o modo que se reconhece
como ficcional, cuja principal característica é a coerência mantida pela exigência de
verossimilhança²⁸. Tanto o terceiro quanto o quarto modos são essencialmente falsos,
mas o ψεῦδος é, nas linhas de Asclepíades, um falso que se reconhece como tal, sendo
portanto muito mais adequadamente compreendido como “fingido”, e cuja força ex-
pressiva decorre precisamente deste reconhecimento²⁹, ao passo que o quarto é o falso
que deseja ser recebido por verdadeiro, fazendo supor uma inexistente correspondência
com a realidade³⁰. A diferença entre as três abstrações ficcionais, principalmente entre
ποίησις e ψεῦδος, é não raro tênue, não somente pela impossibilidade, também neste
caso, de práticas puras de cada um, mas principalmente pelas diferentes posturas onto
e epistemológicas possíveis que, em linhas gerais, podem ser resumidas em teorias de
correspondência ou coerência à verdade, às quais se acrescentam, ao menos desde o
ceticismo grego que veremos na voz do Carneades citado em I promessi sposi, posturas
pragmatistas a partir de finais do Oitocentos pela concordância ou oposição à virada
epistemológica de Charles Sanders Peirce.
É importante precisar como justamente a abstração desses modos narrativos lhes
impede práticas constantes. Cada um desses modos, incluindo o “histórico”, necessita
em cada matriz cultural de formas peculiares de concretização em nome do convenci-
²⁵ Seria evidentemente possível uma divisão mais precisa, inclusive na crítica de quanto apresentado
por Asclepíades, mas não entra no âmbito deste projeto.
²⁶ O emprego de termos em grego clássico, mais que o desejo de filiar-se às primeiríssimas teorizações
a respeito, permite separar e evidenciar mais adequadamente dentro do discurso teórico os conceitos
aos quais me refiro, quando comparados ao uso de termos em português como “narrativa verdadeira”,
“falso ou “mentira”. A dificuldade terminológica, com efeito, continua sendo por estes motivos um
aspecto complicado de um comportamento científico à crítica literária em geral, e de modo particular
àquela do romance histórico.
²⁷ ἱστορíα informação, indagação; resultado de uma indagação, conhecimento; relação verbal do
que se investiga, história. Pereira ()
²⁸ ποίησις criação; ação; fabricação, confecção; arte da poesia; faculdade poética; poesia, poema;
criação legal por adoção, adoção. Pereira ()
²⁹ ψεῦδος mentira; erro; ficção poética; ação enganosa, ardil de guerra. Pereira ()
³⁰ ἀπάτη engano, cilada, fraude; astúcia, artimanha. Pereira ()

mento do leitor. Em nosso contexto, por exemplo, é comum que se tome por exigência
narrativa do modo histórico a representação não apenas de uma sequência ordenada,
cronológica ou logicamente, dos fatos narrados, mas também a indicação das possi-
bilidades de confirmação em terceiros dos mesmos fatos (entre as quais a citação é a
mais evidente) e uma geral imitação da prosa das ciências duras, que implicaria a dis-
tinção explícita das hipóteses e sugestões do autor³¹. O número de estruturas e traços
típicos para o modo “poético é amplo a ponto de impossibilitar o manejo adequado
neste espaço, mas devemos ao menos lembrar como, mesmo considerando o peso da
verossimilhança, a expectativa atual é de que no contemporâneo este seja reconheci-
velmente não verdadeiro: em outras palavras, uma narrativa ficcional que buscasse a
todo custo disfarçar-se por verdadeira soaria hoje uma ingênua e principalmente da-
tada pretensão, incapaz de fazer frente às expectativas contemporâneas para uma “boa”
literatura.
Nessa incapacidade do modo poético, abre-se o caminho para tratar dos dois outros
modos, o “pseudótico” e o “apatético”³². Para o primeiro, como para o modo poético,
exige-se que a narrativa se reconheça como não verdadeira. Mais que isto, e talvez
resida a real diferença, exige-se que tal reconhecimento seja implícito no primeiro e
explícito neste segundo caso: exemplos poderiam ser o romance histórico para aquele,
que deve deixar apenas subentendido não ser verdadeiro mesmo para não destruir a
interação entre “história” e “ficção, e a estilização sob forma de fábula infantil como
em Alice in the Wonderland (), Pinocio () ou em Animal Farm () no se-
gundo, onde são justamente o reconhecimento da natureza ficcional e a explicitação
dos elementos históricos a orientarem a recepção. Em ambos os modos, todavia, é co-
mum que se tenha de lidar, ao menos indiretamente, com alguma tradição cultural de
expressão no storytelling de fatos não verdadeiros³³. Finalmente, o último modo da fal-
sidade, que pouco nos interessa neste âmbito, parece apresentar a exigência universal
de ser formalmente idêntico ao histórico, buscando assim distinguir-se do “poético e
do “pseudótico”: é o modo que começa a ser efetivamente estudado durante o Renas-
³¹ Neste sentido, a produção de autores como White e E. H. Carr, apesar de datada, ainda constitui
nosso principal ponto de referência; da mesma forma, uma proposta de entendimento do storytelling
como diferentes modos narrativos acaba por valorizar as pós-modernas propostas alternativas de escrita
historiográfica, inclusive na adoção de meios não exclusivamente verbais.
³² Os nomes sugeridos são, intencionalmente, horríveis: trata-se de uma proposta provisória para
este estudo do romance histórico, e da mesma forma como o “pragmaticismo” de Peirce os nomes me
soaram suficientemente feios para me assegurar que ninguém os tomasse como emprestados em outras
discussões ou os vinculasse a posturas teóricas com as quais esta teoria se mostra incapaz de lidar.
³³ Afinal, como foi dito, toda apreciada narrativa pós-moderna costuma ser, em maior ou menor
medida, a expressão paródica de um grupo, de maior ou menor dimensões, de narrativas às quais se
refere implícita ou explicitamente.

cimento (pense-se em Lorenzo Valla em seu discurso sobre a Donatio Constantini), e
ao qual devemos agradecer por motivar o surgimento da filologia textual e da ecdótica.
Em suma, entre os modos narrativos apontados o “histórico” é o real, “poético”
e “pseudótico são fingidos e diferenciados no reconhecimento deste fingimento, e o
“apatético é falso. A diferença de reconhecimento entre “poético e “pseudótico”, em
particular, interessa-nos por dela decorrer que o primeiro não seja por estatuto ficcio-
nal, ou seja, que não é necessária uma ausência de correspondência com a realidade,
mas sim uma ausência de comprovação (textual, ou mesmo em potencial) da mesma.
Apesar de nos afastarmos da opinião de Aristóteles, continuamos entendendo como a
ποίησις expresse o potencial, mas admitindo como este possa ser uma realidade; visto
por outro lado, da exigência por parte do modo histórico, sob formas culturalmente
variáveis (que podem incluir mesmo a referência a um reservatório mitológico comum
ou a submissão a alguma auctoritas, expressões que nós tomaríamos por inviáveis na
comprovação da realidade), de uma comprovação externa dos eventos narrados pode-
mos deduzir como este seja possível somente quando tal comprovação exista; mas a
escrita da História, como reconhecido pelas mais diferentes ideologias historiográficas,
é um constante preenimento de lacunas entre os eventos comprováveis. O grande
papel do historiador, no fundo, é saber preener corretamente estas lacunas, ato que
se constitui precisamente como expressão do modo poético: a suposição bem funda-
mentada, aquela que é tida por mais provável ou, alternativamente, aquela que resulta
em fatos que melhor explicam os eventos históricos, é um dos melhores exemplos para
este entendimento de ποίησις e sua distinção de ψεῦδος.
Isto deveria explicitar como praticamente qualquer storytelling histórico e poético
seja necessariamente o privilégio de algum modo narrativo, especialmente quando a
necessidade de influenciar a recepção e as dificuldades de investigação impossibili-
tam uma narrativa puramente histórica. Se por um lado narrativas essencialmente
poéticas, nas quais o histórico é um mero elemento subordinado de coerência e veros-
similhança, podemos imaginar como sempre tenha sido necessária a qualquer cultura
humana uma prática adequada do cruzamento entre o histórico e o poético que privi-
legiasse o primeiro, como nos casos de um elevado número de lacunas a serem preen-
idas ou, de modo especial, quando se desejava criticar os fatos detraídos por outros
historiadores dos eventos históricos sem dispor de provas documentais em contrário,
sendo necessário valer-se retoricamente de suposições coerentes e adequadas ao con-
vencimento de um público do caráter não histórico daquelas. deve ser evidente como
o romance histórico está aqui sendo apresentado como uma particular concretização

desta prática, catapultado pela revolução onto e epistemológica aludida por Lukács.
Assim, o diferencial não se localiza tanto na existência ou menos de um modo
de encontro entre histórico e poético e mesmo pseudótico, pois este sempre existiu;
também não deve ser encontrado necessariamente nas diferentes concretizações dos
mesmos que abrem espaço a experiências individuais. Nosso elemento situa-se, sim,
na relação que autores e públicos mantém com a verdade, pois é esta que orienta a
forma deste modo de encontro, a ponto de poder mesmo declará-lo inútil e impossí-
vel, ou alternativamente anular suas fronteiras com a historiografia propriamente dita.
Trata-se da questão que orienta não apenas I promessi sposi, dificultada pela invasão
de um elemento religioso e portanto de fé. Antes de abordá-lo dentro do percurso de
formação de Manzoni, porém, cabe seguir brevemente na discussão sobre esta relação
com a verdade, principalmente frente a uma expressiva corrente historiográfica que,
relacionando-se indiretamente com as experiências do romance histórico, da mesma
forma mantém sérias dúvidas quanto suas fronteiras com a narrativa propriamente
“histórica”.
. No panorama da historiografia atual
A los quince minutos de caminar, doblamos por la izquierda. En el fondo
divisé una suerte de torre, coronada por una cúpula. Es el crematorio
- dijo alguien -. Adentro está la cámara letal. Dicen que la inventó un
filántropo cuyo nombre, creo, era Adolfo Hitler. (Borges)³⁴
Em um dos melhores contos de El libro de arena (), Borges tocava com sua
típica sutileza num ponto nevrálgico da historiografia contemporânea: a discussão so-
bre o nazismo e, especialmente, sobre o Holocausto. Uma alusão talvez duvidosa vista
sua pretensa demofobia, mas que nos interessa no cruzamento do discurso histórico e
ficcional que estamos descrevendo e que, como foi dito pouco, se qualifica essenci-
almente por sua relação com a verdade. Afinal, até que ponto esta trama borgeana se
afasta do relato historiográfico sobre aquela vergonha? E principalmente, face à exis-
tência de uma corrente assustadoramente crescente de negacionismo, em que ponto o
storytelling daquele grande autor argentino deixaria de ser uma “novela histórica”?
lembramos como Aristóteles dividira entre história e poesia, e como Manzoni
reconhecera que tal divisão era, mais que um princípio, o resultado obrigatório de uma
³⁴ «Depois de caminhar por quinze minutos, dobramos à esquerda. Ao fundo vi uma espécie de torre,
coroada por uma cúpula. É o crematório - disse alguém -. Dentro está a câmara letal. Dissem que a
inventou um filantropo cujo nome, creio, era Adolf Hitler [Borges ()]

sistematização retórica em uma época ainda carente de um pensamento historiográfico.
Afinal, somente em Cícero, o primeiro a descrever a história como um opus operatorium
com exigências específicas, as implicações retóricas da escrita historiográfica genuína
seriam reconhecidas. Como lembra Bermann,
entre as missões de Cícero estava o estabelecer para a retórica agora
alargada para englobar a história e mesmo a filosofia o status que
Aristóteles lhe negara. Mas a aptidão da história para transportar o
que é universal não seria percebida completamente até Agostinho, em
seu De civitate Dei, ser o primeiro a localizar os particulares da história
dentro de um esquema providencial cristão. Uma vez que a retórica
fora aceita como uma arte que afetava qualquer tipo de escrita, […]
o palco estava montado para a assimilação ativa […] da história e da
poesia desde a Renascença até a época de Manzoni. ³⁵
Efetivamente, não pouco da prática historiográfica, da época de Manzoni e da nossa,
é devida às elaborações renascentistas, de nomes como Petrarca, Coluccio Salutati e
Poggio Bracciolini. Pouca inovação havia em relação a Agostinho, e portanto a toda
a Idade Média, quanto à história percebida como a concretização de um grande dese-
nho divino; a novidade estava naquela relação sensacionalista de extensões por vezes
inéditas, e principalmente pela consciência sobre o papel linguístico da exposição. A
eloquência, que fora tratada por Dante retomando Virgílio e que Petrarca dissemi-
nara a toda a época em seu amor incondicional por Cícero, foi elevada em importância
a ponto de a retórica não mais ser um elemento da prática historiográfica: inverti-
das as relações, esta última era agora subscrita integralmente ao âmbito da primeira.
Em relação a Aristóteles, a nova “história” se aproximava até quase coincidir-se com
aquela ampla e não precisamente definida noção de “poesia”, modificando por com-
pleto o papel ao qual o público da narrativa historiográfica estava acostumado. Apesar
das diferenças formais, a todos os efeitos «a escrita se tornava história ou poesia de
acordo principalmente com a intenção do autor e a crença do público»³⁶.
A progressiva mas problemática coincidência entre história e poesia esteve longe de
uma linearidade e universalidade, mas se mostrava suficientemente resolvida em dois
autores italianos do Renascimento tardio, Lodovico Castelvetro e Torquato Tasso (autor
³⁵ «It was among Cicero’s missions to establish for rhetoric now enlarged to encompass history
and even philosophy the status that Aristotle denied it. But the aptitude of history for conveying
what is universal would not be fully realized until Augustine in his De civitate Dei first positioned the
particulars of history within a Christian providential seme. Once rethoric was accepted as an art
affecting all writing, […] the stage was set for the active asimilation […] of history and poetry from the
Renaissance to Manzoni’s own day [Bermann (, p. )]
³⁶ «writing becomes history or poetry largely according to the author’s intention and the audience’s
belief» [Bermann (, p. )]

daquele “proto-romance histórico” que foi a evolução entre a Gerusalemme liberata de
 e a Gerusalemme conquistata de ), que Manzoni não casualmente cita em
seu ensaio sobre o gênero. O primeiro o fazia ao argumentar que toda a poesia é,
invariavelmente, derivada de fatores reais ou verossímeis, e portanto históricos, de
forma que a poesia nunca deixaria de ser, de certa forma, uma mímese da história;
Tasso, ao contrário, distinguia ambas por ver na história o relato cru e objetivo dos
fatos, cabendo à poesia dar vida e interesse aos mesmos; egava inclusive ao ponto de,
alternativamente, reconhecer como “verdade apenas o comprovável por documentos
ou, inconciliavelmente, o que era recebido pelo público como verdade. De qualquer
modo, como lembra sempre Bermann, ambos os autores caros a Manzoni
egaram ao ponto de colocar a história e a poesia em um mesmo plano
ontológico desprovido de qualquer fronteira bem definida. Ao fazer
isto, apresentaram às categorias aristotélicas, e à hierarquia entre elas,
o mais direto desafio crítico até então proposto. ³⁷
Esboçava-se o caminho que continuaria após o Renascimento, entrando no Ilumi-
nismo e naquela prática historiográfica do Oitocentos à qual acenamos, em nomes
como Jacques Bénigne Bossuet, no qual mantinha-se deterministicamente o papel da
Providência divina privando o homem de seu livre arbítrio, Johann Gofried von Her-
der, em quem alternativamente atribuía-se todo fato histórico à mediada ação antro-
pológica, e principalmente aquele Giambaista Vico que tanto influenciaria a visão
manzoniana de história, que praticamente promovia a síntese entre a tese providencial
de Bossuet e a antítese da responsabilidade humana de Herder. Exatamente a opinião
histórica que, sem entrelinhas, é expressa tanto em I promessi sposi quanto no Del
romanzo storico, e para os quais entende-se como a mais comum análise acadêmica
deste gênero, geralmente centrada na crítica a uma historiografia que tem em Ranke
seu norte, é excessivamente incapaz na herança viquiana de Manzoni.
Este capítulo foi aberto assegurando-se que a abordagem mais comum na Academia
para o romance histórico é uma de cunho sociológico, derivada de Lukács. Trata-se,
contudo, de uma meia verdade: a sermos honestos, a abordagem sociológica predomina
somente nos casos em que nosso gênero é considerado e estudado como uma obra
literária, casos sempre mais raros pois a postura mais comum tem sido aquela de filiar-
se a uma corrente ao mesmo tempo cética e relativista da filosofia da história que remete
a Hayden White, capaz de dominar a discussão a ponto de ser impossível omiti-la.
³⁷ «went so far as to place history and poetry on the same ontological plane unmarked by a well-
defined. In so doing, they gave Aristotle’s categories, and the hierary between them, their most direct
critical allenge up to that time.» [Bermann (, p. )]

Uma síntese da proposta de White, tomada de sua própria obra, poderia ser a afir-
mação de que «há geralmente um elemento poético em toda escrita histórica»³⁸. Sua
extensão seria afirmar como a hipótese de White rejeita integralmente a ideia de que
seja possível apresentar e representar o passado da forma como este ocorreu não ape-
nas pelas limitações linguísticas e diegéticas, mas porque uma narrativa pressupõe o
relato de “fatos” dos quais os acontecimentos são desprovidos: qualquer interpretação
de um evento em fato, qualquer atribuição de significado para um acontecimento (e
nisto residiria o propósito da História) seria uma construção diegética que não existiu
na coisa em si. Longe de assim desmerecê-la ou julgá-la inválida, a história é ainda
assim subtraída de qualquer estatuto empírico, com a consequência de que a narrativa
historiográfica, a forma pela qual se concretiza, é muito mais análoga ao storytelling
literário que à típica prosa científica. Para efeitos práticos, as fronteiras objetivas entre
história e literatura são abolidas em seus estatutos, apesar de continuarem a existir na
recepção de cada uma. Em modo especial, no nosso caso do romance histórico que
frequentemente imita o discurso historiográfico, a fronteira parece desaparecer por
completo, principalmente quando este é tomado por seus leitores como um genuíno
discurso historiográfico, por vezes mesmo mais eficaz que o discurso historiográfico
tradicional.
Na prática, apesar de valorizar o método de investigação histórico separando-o ni-
tidamente de sua execução final, White deseja rejeitar as posturas que defendam qual-
quer objetivismo na representação narrativa da história; pelo mesmo motivo, busca
demonstrar, analisando as narrativas historiográficas por uma retórica de tropos que
em certos casos se resume a coincidências de estilemas, como toda e qualquer narrativa
historiográfica seja em última instância ideológica. De fato, em sua obra capital, Me-
tahistory, as “figuras de estilo” da crítica literária mais antiga são expandidas a linhas-
guia de uma análise do discurso, sob clara influência do correlato e coevo pensamento
da escola francesa: afinal, sua proposta exemplifica precisamente o pós-modernismo
filosófico cujo único ponto de referência talvez seja a desconfiança, que não necessari-
amente se traduz em falsificação, por qualquer metanarrativa.
É desta forma que White, para demonstrar a eficácia de sua teoria, aplica-a aos
maiores nomes da historiografia do Oitocentos ao entender a narrativa historiográfica
pela concorrência dos principais tropos linguísticos, dos quais o mais prolífico, mesmo
³⁸ «there is a generally poetic element in all historical writing»; trata-sde de mais uma fórmula que
White repete, com maiores ou menores variações, em praticamente toda sua produção deste meados dos
anos ’.

porque instintivamente o mais apropriado ao storytelling historiográfico, é a metáfora,
tanto que a narrativa histórica «pode ser avaliada unicamente nos termos da riqueza
das metáforas que regem sua seqüência de articulação»³⁹. Cada grande nome do fazer
histórico daquele século é assim observado sob a ótica de personificações especiais de
tropos, combinadas a particulares, e em última análise contextuais, objetivos morais,
éticos, ideológicos e políticos.
A influência desta postura nos estudos literários é frequentemente tomada como
corolário das intelectualizações de Paul Ricœur, de quem White reconhece explicita-
mente a influência ao afirmar que «a trama não é um componente unicamente das
histórias ficcionais e míticas; sendo da mesma forma crucial para a representação de
eventos históricos»⁴⁰. Tal continuação às teorizações de Ricœur não é porém imediata,
pois as dúvidas deste sobre a subjetividade na escrita histórica aprendidas nas exe-
gese bíblica, e que remontavam à práxis de Marc Blo e em particular à sua Apologie
pour l’histoire ou métier d’historien (, publicada em ) pronunciada no alto da
Segunda Guerra Mundial, mesmo compartilhando das premissas se encaixariam com
extrema dificuldade com a conclusão traçada por White de que
Para o historiador narrativo, o método histórico consiste em investigar
documentos para determinar qual é a história verdadeira ou mais plau-
sível que pode ser narrada sobre os eventos dos quais estes são evidên-
cias. Uma narrativa verdadeira […] é um produto do talento poético
do historiador […] mais que um resultado necessário da aplicação do
“método” histórico. A forma do discurso, a narrativa, não acrescenta
nada ao conteúdo da representação; ao contrário é um simulacro da
estrutura e dos processos dos eventos reais. E na medida em que esta
representação se assemelha aos eventos […] ela pode ser tomada como
um relato verdadeiro.⁴¹
White afirma assim que os historiadores de seu tempo, e estamos nos referindo ao
auge do estruturalismo também no campo historiográfico, relutavam em reconhecer a
narrativa histórica como uma «construção verbal», quase assumindo uma participação
do simulacro narrado nos eventos assim tidos por reais mesmo quando empiricamente
³⁹ «can be judged solely in terms of the riness of the metaphors whi govern its sequence of
articulation» [White (, p. )]
⁴⁰ «plot is not a structural component of fictional or mythical stories alone; it is crucial to the historical
representations of events as well» [White (, p. )]
⁴¹ «For the narrative historian, the historical method consists in investigating documents in order to
determine what is the true or most plausible story that can be told about the events of whi they are
evidence. A true narrative […] is less a product of the historian’s poetic talents […] than it is a necessary
result of a proper application of the historical “method”. e form of the discourse, the narrative, adds
nothing to the content of representation; rather it is a simulacrum of the structure and processes of real
events. And insofar as this representation resembles the events […] it can be taken as a true account.»
[White (, p. )]

inalcançáveis. Este reconhecimento seria necessário para extrair, de um conjunto de
fatos sem significados, uma história plausível, visto que qualquer conjunto de eventos
históricos casualmente reportados não poderia constituir, por si próprio, uma “histó-
ria”; os eventos poderiam, no máximo, servir de elementos que o historiador condensa
em fatos, dando um significado aos acontecimentos, geralmente provocado pela forma
como a relação entre os eventos (como omissão, subordinação, concomitância, con-
sequência) é apresentada. Lembra-se imediatamente da prática da narrativa ficcional,
e realmente as cnicas utilizadas para esta representação não são, formal e estrutu-
ralmente analisadas, diversas das esperadas em um romance ou drama. White ega
mesmo a afirmar que
[p]ara se qualificar como histórico, um evento deve ser suscetível a pelo
menos duas narrações de sua ocorrência. Se um mínimo de duas ver-
sões [diferentes] de um mesmo conjunto de eventos não puder ser ima-
ginado, não razão para o historiador tomar a autoridade de fornecer
uma narrativa verdadeira sobre o que realmente ocorreu. A autoridade
do historiador narrativo é a autoridade da própria realidade; o relato
histórico concede forma a esta realidade e assim a torna desejável pela
imposição sobre seus processos da coerência formal que somente as nar-
rativas possuem.⁴²
Apontando o valor da história na atribuição de um significado aos fatos, a mesma é
essencialmente reduzida a um discurso; além disto, e talvez o mais importante, implica-
se que apenas ela possa dar sentido aos mesmos ou, por outra luz, que não haja ne-
nhum significado intrínseco na realidade em si. Assim, é obviamente lícito perguntar-
se qual a diferença em valor, se é que esta existe, entre diferentes versões de um mesmo
evento, tido como um “conjunto de fatos”, principalmente no caso de testemunhos
conflitantes. É o caso do romance histórico, e White sempre reconheceu a dificuldade
ética das consequências de seu pensamento, ao afirmar, como lembra Pisani⁴³, que a
forma pela qual se deva representar cada particular situação histórica dependerá da ca-
pacidade do historiador em reportar narrativamente cada específico conjunto de even-
tos históricos do qual se deseje exprimir um significado particular. Contrastando-o,
poderíamos dizer que é a “adequação” de cada narrativa aos objetivos do historiador a
conferir-lhe um específico valor, e exatamente por isto é que do ponto de vista histori-
ográfico o romance histórico pode, alternativamente, ser visto ou com total descrédito
⁴² «[i]n order to qualify as historical, an event must be susceptible to at least two narrations of its
occurence. Unless at least two versions of the same set of events can be imagined, there is no reason
for the historian to take upon himself the authority of giving the true account of what really happened.
e authority of the historical narrative is the authority of reality itself; the historical account endows
this reality with form and thereby makes it desirable by the imposition upon its processes of the formal
coherency that only stories possess.» [White (, p. )]
⁴³ Pisani ()

(pois a intencional integração de elementos reconhecidamente ficcionais seria indica-
tiva de uma incapacidade poética do autor com os fatos à disposição), ou como uma
elevação sobre a narrativa historiográfica tradicional (pois a ficção poderia servir de
verossímil e portanto adequada articulação aos fatos históricos apresentados)⁴⁴.
O papel de principal opositor teórico a White logo coube a seu amigo Arnaldo Mo-
migliano, com a publicação de obras como e Rhetoric of History and the History
of Rhetoric: On Hayden White’s Tropes [A retórica da história e a história da retó-
rica: sobre os tropos de Hayden White] (). Após sua morte em , coube a outro
historiador italiano, Carlo Ginzburg, o bastão de uma oposição que se intensificaria
em Ociacci di legno () e se tornaria uma disputa explícita no recente Il filo e le
tracce (), rapidamente traduzido também ao português. Nesta coletânea de en-
saios, o historiador piemontês tomava as armas frente às propostas e, principalmente,
às derivações e apropriações indevidas do pensamento de White, acostando-as àquele
lembrado grande questionamento e campo de prova da historiografia contemporânea:
o debate sobre o Holocausto, principalmente a Shoah, e de modo especial a corrente
negacionista encabeçada por Robert Faurisson. Ginzburg, filho de um intelectual judeu
da Resistenza italiana morto sob tortura nazista em , não se intrometia no discurso
do negacionismo em si, simplesmente referindo-se a Pierre Vidal-Naquet e, com uma
eloquência sintética, dedicando seu principal ensaio a Primo Levi. Em discussão es-
tava, sim, a tomada deste embate historiográfico para avaliar os efeitos das propostas
de relativismo histórico das quais White é a mais conhecida e eficaz metonímia.
Investigando a genealogia do pensamento de White, que de forma talvez surpre-
endente se liga aos três grandes filósofos italianos do primeiro Novecentos (Gentile,
Gramsci e particularmente Croce), Ginzburg resumia as críticas a White em sua “des-
realização da realidade, portanto na destruição daquela que teoricamente seria a meta
da pesquisa histórica. As próprias afirmações de White em linha barthesiana, de que
o fato nunca teria uma existência além daquela linguística, abririam alas à manipu-
lação linguística do passado, criando-o, modificando-o ou negando-o. Ginzburg reco-
nhecia repetidamente como era evidente que White, assim como outros nomes a ele
relacionados quais Roland Barthes, Miel de Certeau e Miel Foucault, nunca parti-
ciparia de teses como as aberrações negacionistas de Faurisson; contudo, não deixava
de preocupar-se com o fato de que, muito mais do que responsáveis ou facultadoras,
⁴⁴ Selecionando um exemplo entre todos, poderíamos pensar na visão de Jacob Burhardt sobre
seu Rinascimento, que, apesar de contestável quando não patentemente ultrapassada na compreensão
hodierna, ainda hoje se demonstra extremamente eficaz em seu aspecto narrativo, em sua dotação de
significado, a ponto de continuar servido de modelo a muito storytelling historiográfico.

as teorias de campo historiográfico inauguradas em Metahistory debilitariam a ponto
de desconsiderá-las quaisquer contestações efetivas àquelas mesmas aberrações. Em
nosso interesse literário, as mesmas também diluem perigosamente, mesmo sem se
propor a tanto, as diferenças entre o romance histórico, principalmente em moldes lu-
kácsianos, e a narrativa historiográfica.
De fato, os dois tipos de narrativa estão, neste momento, mais próximos que nunca.
Anulando as diferenças, ou com as mesmas consequências advogando a impossibili-
dade de reconhecê-las, segundo Ginzburg a reductio ad absurdum das teorias de White
estaria, dada a necessidade de omissão de alguns fatos, ao menos os não alcançáveis
pelo historiador, na construção dos eventos, na escolha do que considerar documento e
da forma como interpretá-lo, assim oferecendo diversas narrativas “adequadas” e “váli-
das” e portanto toleráveis. Afinal, parafraseando suas últimas afirmações, deveríamos
reconhecer como na documentação histórica não haja, em si, elementos que nos indu-
zam a construir seu significado em um sentido ao invés de outro. Ginzburg representa
assim um grande filão de historiadores incapazes de admitir, como o faz White, que a
história exista apenas “dentro para não dizer “durante” uma narrativa, com fatos
e documentos sendo mudos de sentidos. É exatamente, como deixa entender o histori-
ador piemontês, a impossibilidade que se ergue na oposição a Faurisson, que por uma
diversa seleção de fatos busca apresentar narrativas “válidas” desacreditando documen-
tos que o contrariem; inclusive, o que ega a ser irônico em nosso caso, definindo como
“ficção historiográfica” narrativas contrárias como o Het Aterhuis [Diário] () de
Anne Franke e o Se questo è un uomo [Se isto é um homem] (também ) de Levi.
No fundo, trata-se de uma diferença nas concepções de “história”, e de maneira
subjacente de “verdade, das duas correntes. Se nomes como Ginzburg ou Le Goff ainda
mantém, quando consideradas as notáveis evoluções, o «wie es eigentli gewesen»
[mostrar o que realmente aconteceu] rankeano e seus ecos distantes do «ding an si»
de Kant, White servia de porta-voz à corrente oposta quando reafirmava, na introdução
a seu Forme di storia (), suas convicções sobre a finalidade da história:
Não considero que a “história” seja uma disciplina científica. […] Nem
mesmo considero que algum dia possa tornar-se uma ciência, ou que
deva empenhar-se neste sentido. […] O projeto de transformar a his-
tória […] em uma ciência […] teve como efeito subtrair ao “discurso
da história” sua função social originária de atribuir ao fato um signifi-
cado.⁴⁵
⁴⁵ «Non ritengo e la “storia” sia una disciplina scientifica […]. Neppure ritengo e possa mai
diventare una scienza, debba impegnarsi in questo senso. […] Il progeo di trasformare la storia […]

É obrigatório amar novamente a atenção sobre o ceticismo de White, e do pós-
modernismo sério em geral, que não se refere à realidade dos objetos tratados, mas à
capacidade, mesmo bem intencionada, de reproduzi-los e explicá-los. Não cabe aqui
analisar como o pensamento dos nomes mais importantes da teoria pós-moderna, que
em maior ou menor medida convergem em White, deu vias a uma comum síndrome
falso-solipsista de evidentes sintomas também no estudo do romance histórico, mesmo
lembrando o protagonismo dos “estudos culturais” na digestão destes e principalmente
de Jacques Derrida. Cabe, sim, evidenciar como não se pode traçar ingenuamente uma
linha de demarcação entre o nosso gênero e a narrativa historiográfica, mesmo quando,
em última análise, se compartilhe daquela espécie de monismo de Ginzburg e Le Goff:
antes de explorar as possibilidades de alcance, complementação e não contradição dos
fatos históricos sob forma diegética, deve-se reconhecer, como foi afirmado anterior-
mente, as próprias concepções de história e, por extensão, de verdade.
Concepções que, admitindo-se uma não contrariedade, orientam o discurso rela-
tivo ao romance histórico, exatamente como nesta proposta em que é considerado um
encontro entre, nas palavras de Manzoni, «história» e «invenção»: é precisamente ao
analisarmos seu percurso literário e sua reflexão acerca do romance histórico sob a
ótica deste mesmo encontro que podemos encontrar tanto opiniões sobre aquelas pri-
meiras experiências como implícitas perspectivas de análise mesmo para as narrativas
contemporâneas. Reflexão que exige ao menos uma breve discussão sobre o conceito
de verdade expresso pelo autor, espacialmente quando consideramos uma conhecida
passagem de seu romance, geralmente tido como simples comédia de costumes, na
compreensão de sua opinião sobre a possibilidade da história e da verdade serem al-
cançadas.
in una scienza […] ebbe come effeo di sorarre al “discorso della storia” la sua originaria funzione
sociale di aribuire al fao un significato.» [White (, p. )]

Manzoni e I promessi sposi
Da ragazzo, non lo nascondo, non sopportavo l’autore de I promessi
sposi. La leura e ci veniva propinata a scuola lo rendeva odioso, noi-
oso. Il Manzoni appariva come un baciapile, la critica leeraria ne ha
costruito per decenni e decenni una immagine stereotipata, agiografica,
rasserenante e pedagogica. Insomma, Manzoni veniva presentato come
un secione. Uno e in vita sua non ha mai sorriso. A quel punto
persino Leopardi, e se ne stava ad osservare la luna, mi era più sim-
patico. La colpa non era del Manzoni, ma della leura penitenziale e
penitenziaria, e ne veniva faa. (Andrea Camilleri)¹
No desacertado rumo que os estudos literários tomaram nos últimos cinquenta
anos, mesmo discutir a possibilidade de um acompanhamento biográfico da gênese
de uma obra costuma soar herético. Se ainda alguns núcleos onde em maior ou
menor medida a tradicional crítica biografista, evidentemente modificada para acom-
panhar a evolução do pensamento, ainda sobrevive (especialmente nos centros de uma
maior tradição filológica de linha lamanniana, basicamente Itália e Alemanha), no
Brasil os efeitos da crítica voraz ao autoral são mais profundos e impõem métodos de
pesquisa nos quais a recusa a qualquer biografismo, para além de uma postura inte-
lectual ou mesmo ideológica, se transformou em puro fetie. No fundo, a influência
daquela proposta barthesiana, acomunada portanto às correlatas propostas whiteanas
no campo historiográfico, ou talvez melhor dizendo sua má-compreendida elevação a
dogma acadêmico, é uma das principais responsáveis pela perda da perspectiva his-
tórica antes acusada, afetando gravemente também o estudo do romance histórico.
Impossibilitados de abarcar em seu discurso a enunciação e o autoral, e por extensão
considerável parte do contexto de criação, os críticos costumam se refugiar em um
eterno presente que, frequentemente, resulta na perda da perspectiva histórica e ge-
ográfica, na redução de tudo quanto analisado à perspectiva local, em termos espaciais
¹ «ando jovem, não o escondo, não suportava o autor de I promessi sposi. A leitura que a escola nos
fazia engolir o tornava odioso, tedioso. O Manzoni se mostrava um puritano, a crítica literária construiu
dele por décadas e décadas uma imagem estereotipada, hagiográfica, tranquilizante e pedagógica. Em
suma, Manzoni era apresentado como um cê-dê-efe. Alguém que nunca sorriu em vida. Daquele jeito
até mesmo o Leopardi, que ficava observando a lua, me era mais simpático. A culpa não era do Manzoni,
mas da leitura penitencial e penitenciária que dele se fazia.» [Fallica ()]

e culturais, e à presente, em termos temporais.
Demonstração clara desta tendência é o crescimento cancerígeno de propostas no-
minal e supostamente “comparadas” que, nota-se rapidamente, não passam de ordi-
nárias avaliações pessoais de experiências distantes, com grave prejuízo a qualquer
proposta diligente que infelizmente fica acomunada ao mesmo nome. Trata-se de uma
tendência muito criticada pelos estudos culturais”, os quais, mesmo partindo de
premissas pesadamente diversas daquelas que orientam este trabalho, também reco-
nheceram de imediato que tal característica não apenas invalidaria qualquer pressu-
posto seu (pois, em extremo, mesmo seus maiores cuidados como questões de identi-
dade, alteridade e diferenciação também seriam reduzidos a um único plano que en-
globasse “história” e “ficção”, fazendo com que um relato formalmente convincente
mas ideologicamente marcado não pudesse ser recusado), mas também abriria uma
grave faculdade que não apenas validaria posturas centralizadas existentes, como
o mal precisado “eurocentrismo, mas igualmente uma infinidade de posturas simi-
lares. Estas, não dispondo de um apoio na realidade pela ineficácia da opinião e do
contexto autoral e de produção, se descobririam facilmente justificadas sendo capazes
de, em termos concretos, anular toda a motivação ideológica que inegavelmente move
tal campo.
É assim de maneira um tanto surpreendente que, distante de compartilhar des-
sas posturas ideológicas, acompanho muitas teorizações pós-colonialistas, feministas
e culturalistas correntes na crítica àquela fórmula barthesiana da mort de l’auteur ou,
melhor dizendo, das leituras que transformaram aquela corrente de pensamento crítico
em um pirronismo moderno de consequências inquietantes. A proposta deste capítulo,
polpa deste trabalho, poderá soar diversa e mesmo provocatória, mas não passa de uma
tentativa de resposta em plano prático, e não apenas teórico, às negatividades acima:
se algum proveito couber neste tipo de edição, caberá ao leitor vinculá-la às mesmas
críticas.
. Percurso biobibliográfico
As mais importantes páginas de Natalino Sapegno sobre Manzoni lembravam aquela
elaboração poética de Manzoni que, na prática, constituíra o decálogo de sua prática in-
telectual: nunca trair «a Santa Verdade», vincular-se aos fatos e costumes de sua época
e, principalmente, sempre subordinar a poesia, entendida como a criação artística em

senso amplo, a um propósito ético. Afinal, em palavras que demonstravam uma bem
aprendida lição platônica, seria risível aquela opinião que busca a exaltação do ofício
poético como uma arte «necessária e sacra», enquanto não passa de uma prática de
empenho e disciplina a todos os efeitos menos essencial à sociedade que as ciências
físicas, agrárias ou jurídicas. Seu valor, e toda ciência deveria possuir um valor, esta-
ria justamente no propor e desenvolver os termos de uma “função social”. Entende-se
como
O rigor moralístico, junto à difidência obstinada com relação a qual-
quer forma de estética hedonista (mais que isto, com relação ao próprio
conceito, não importando como se busque exprimi-lo, da autonomia
da profissão literária), [sejam] uma constante no espírito de Manzoni;
não são uma consequência de sua [tardia] adesão ao catolicismo, mas a
precedem, e, enquanto contribuem em parte ao determiná-la, também
indicam seu endereço, seu valor e seus limites efetivos segundo uma
perspectiva não puramente psicológica e privada, mas histórica.²
Efetivamente, quando considerada a partir desta perspectiva, toda a atividade in-
telectual e estética de Manzoni, que assim se define como um caminho em direção à
apoteose do romance histórico, evoluindo dos primeiros e rígidos versos neoclassicis-
tas da juventude ao I Promessi sposi, se revela uma «progressiva conquista de um con-
teúdo verdadeiro, épico e dramático, resolvido na narração e na representação»³, que
ao mesmo tempo fora, como reconhecido pelo próprio autor, um progressivo “desliri-
camento. Naquela sua expressão profundamente particular de Romantismo, descia-se
do sublime ao terreno, do lírico ao histórico. Tratava-se de uma importante tomada de
posição no cenário cultural italiano da época, em vários aspectos similar ao português
e brasileiro coevos, de uma tradição humanística e elitista da prática literária ativa e
passiva, na conclusão por uma obra que, como foi lembrado, não representa uni-
camente o primeiro “romance histórico” da Itália, mas a todos os efeitos seu primeiro
“romance.
É desta forma que em Manzoni o progresso de uma primeira fase de profundo pes-
simismo, expressa na clara separação entre o aspecto humano e divino que sublinhava
a antítese entre a história terrestre, permeada de sangue, erros e lágrimas, e a justiça
² «Il rigore moralistico, insieme con la diffidenza ostinata verso ogni forma di estetica edonistica (anzi
verso il conceo stesso, comunque si tenda ad esprimerlo, dell’autonomia della professione leeraria),
sono una costante nello spirito del Manzoni; non conseguono alla sua adesione al caolicesimo, ma la
precedono, e, mentre concorrono in parte a determinarla, ne segnano ane l’indirizzo, il valore e i limiti
effeivi secondo una prospeiva non puramente psicologica e privata, ma storica.» [Sapegno (, p.
)]
³ «progressiva conquista di un contenuto vero, epico e drammatico, tuo risolto in racconto e rap-
presentazione» [Tellini (, p. )]

celestial de posteriores recompensas e punições, a uma final e mais ponderada fase de
otimismo, na qual a Providência divina autêntica expressão de auxílio ao livre ar-
bítrio e não de uma lógica mercantilista com o desconhecido interfere também em
nossos desígnios, corrigindo-lhes as penas e consolando-lhes as misérias. É o percurso
que culmina não apenas no romance em si, mas na evolução do primeiro e mais diretivo
Fermo e Lucia, o “rascunho” do romance, ao I promessi sposi. Ao mesmo tempo, como
afirma sempre Sapegno fazendo eco explícito a Francesco De Sanctis, tal percurso era
um
progresso da arte em sentido realista, uma abertura em direção a uma
visão mais serena e articulada das coisas, mais verdadeira pela qual o
real é reabsorvido no ideal, e portanto nos últimos resíduos autobiográ-
ficos e líricos do moralismo juvenil do escritor. Um progresso paralelo e
concomitante ao outro, pelos quais os modos intensos mas bastante du-
ros de um caracterizar e definir sintético e fugaz se dissolvem em uma
lenta e complexa análise psicológica, e a epopeia e o drama se trans-
formam em uma narrativa prolongada, conquistando um espaço mais
aberto e uma duração mais persuasiva.
Mudança nítida também em sua forma, não apenas pela passagem da prática lírica
e trágica a uma coerente ainda que indecisa aproximação da prosa, mas também em
termos propriamente linguísticos pela diminuição, que em Manzoni não se traduz em
exclusão, dos «módulos da retórica tradicional» e dos arcaísmos lexicais; em suma,
uma busca consciente e mesmo científica de um falar mais próximo ao natural e, dir-
se-ia, ao histórico. Talvez seja esta a principal explicação para a adoção deste gênero
então inédito, o único capaz de conciliar as exigências narrativas e ideológicas àquelas
expressivas enquanto apresentava a vantagem de lançar um abafado mas facilmente
perceptível grito contra aquela tradição empoeirada.
A pura exposição teórica e não encadeada destes fatores não seria capaz de trans-
mitir sua plena noção, principalmente quando dirigida a um público não acostumado a
Manzoni para quem este geralmente é, quando muito, um nome lembrado de alguma
antiga coletânea de romances oitocentistas. pode ser revelada acompanhando em
maior minúcia seu percurso, solução que por sua vez presta tributo não apenas àquela
prática filológica que tanto sinto falta no ambiente acadêmico mais circunstante, mas
também à tradição nacional de historiografia literária no qual esta obra se insere.
«progresso d’arte in senso realistico, apertura verso una visione delle cose più serena ed articolata,
più vera, per cui nel reale si riassorbe l’ideale, e cioè gli ultimi residui autobiografici e lirici del moralismo
giovanile dello scriore. Progresso parallelo e concomitante all’altro, per cui i modi intensi ma alquanto
duri di un caraerizzare e definire sintetico e lampeggiante si sciolgono in una lenta e complessa analisi
psicologica, e l’epopea e il dramma si mutano in un racconto disteso, conquistano un più aperto spazio
e una durata più persuasiva.» [Sapegno (, p. )]

.. Infância e juventude
Alessandro Manzoni nasce em Milão em de março de , filho do conde Pie-
tro Manzoni, de uma rica família nobre da região de Lecco onde seria ambientado I
promessi sposi, e Giulia Beccaria, filha do maior nome do Iluminismo italiano, aquele
jurista e criminalista Cesare Beccaria autor de Dei delii e delle pene [Dos delitos e das
penas] () e de quem o neto herdaria com orgulho a postura humanística.
Giulia havia se casado com Pietro Manzoni em , ela com vinte anos de idade
e ele com quarenta e seis. Desde os primeiros meses o matrimônio entre os dois foi
sofrido: mais que a diferença de idade, pesava a Giulia, um dos ícones do primeiro
feminismo italiano, a densa atmosfera da casa Manzoni, na convivência com suas sete
cunhadas solteiras e um cunhado de não menos extrema ortodoxia religiosa. Desejando
frequentar os salões da moda, ela logo se aproximaria da família Verri, amigos de seu
pai e também grandes nomes das Luzes italianas, e após um inicial interesse por Pietro
Verri, que havia negociado contratualmente seu casamento, apaixona-se pelo irmão
mais novo Giovanni, de quem temos comprovação documental ter sido o pai biológico
de Alessandro⁵.
Pietro Manzoni reconheceu o filho da esposa, mas a situação doméstica tornou-se
insuportável a ponto de Giulia pedir a separação legal em . A guarda de Alessan-
dro coube ao pai, como de lei, que porém sempre limitaria ao máximo os contatos com
aquele filho em quem via o retrato da falência de seu casamento e de uma mulher que
havia sido incapaz de conquistar. Assim, Alessandro foi logo entregue aos cuidados de
colégios internos, inicialmente entre os padres Somasi de Merate e Lugano e, logo
após, entre os Barnabiti de Milão. Dez anos durante os quais ele recebeu, junto a uma
boa educação clássica, principalmente uma educação ao pensamento católico, mas dos
quais sai com um espírito revoltado e rebelde, com tendências e intermitentes episó-
dios de profunda depressão que o acompanhariam por toda a vida. Não que se tratasse
de uma madura oposição ideológica, pois mais que revoltar-se com ou discordar do
conteúdo ministrado, Alessandro o considerava terrivelmente tedioso; sabe-se que seu
único conforto, e de certa maneira seu único estímulo intelectual, era a leitura não
autorizada dos grandes filósofos céticos do Setecentos, como os Enciclopedistas e es-
pecialmente aquele Voltaire cuja presença acompanharia seu pensamento teórico até
o final da vida. Era assim que durante a adolescência se firmava aquela sua postura
peculiar que, como lembra Bermann, religiosamente era anticlerical e deísta, filosofi-
Fumagalli ()

camente sensacionalista e poeticamente neoclássica.
Ademais, Alessandro fora praticamente abandonado por ambos os pais: além da
distante figura paterna que acabamos de lembrar, os contatos com a mãe foram mí-
nimos até o início da vida adulta. Giulia, após a separação e o adultério conhecidos
e comentados entre toda a alta sociedade lombarda, parte em  com o recém co-
nhecido Carlo Imbonati, um rico banqueiro da região, para Londres e Paris onde se
inseriria rapidamente no tão almejado ambiente dos salões graças à viva fama de seu
pai.
Assim, Alessandro completou os estudos nos primeiros anos do Oitocentos isolado
do pai mas na companhia de alguns hóspedes ilustres deste como Vincenzo Monti, Ugo
Foscolo e Vincenzo Cuoco. Seriam os três a inspirar-lhe a vontade da prática literária,
os quais inicialmente orientando-o na leitura, em particular, do grande poeta Giuseppe
Parini, crítico arguto da aristocracia, e de Viorio Alfieri, o tragediógrafo da oposição
à tirania e ao governo absolutista: em suma, dos dois únicos nomes originais que a
tradição literária italiana ainda tinha a apresentar, senão no campo da forma ao menos
naquele do conteúdo. De fato, em  Manzoni publica sua primeira obra, o poema
Del trionfo della libertà, no qual um rigor exageradamente classicista que buscava imi-
tar Monti não egava a obstruir por completo uma interessante crítica a toda forma
de tirania, destacando-se do catolicismo escolar, por certos ecos de Dante e, principal-
mente, pelo entusiasmo com a possibilidade de difusão dos valores que estavam sendo
disseminados pela Europa pela armada de Napoleão, figura ao mesmo tempo admi-
rada e vista com uma perplexidade que se expressaria magnificamente na ode adulta à
sua morte. Interessa-nos, principalmente, o fato de que nesta primeira obra “séria”
podemos encontrar aquele cuidado pelos socialmente oprimidos que se desenvolveria
fortemente no Adeli e que é, no fundo, um dos temas importantes de I promessi sposi.
A principal influência deste período é precisamente Cuoco, como Francesco Lo-
monaco exilado em Milão, e autor do Saggio sulla rivoluzione napoletana del 
(), do qual Manzoni aprende precisamente a força e a repressão do poder cons-
tituído na falida experiência partenopéia contra os Bourbons. Ainda mais relevante,
é aparentemente Cuoco quem aproxima Manzoni do pensamento do também napole-
tano Giambaista Vico acerca da história, em modo particular o Scienza nuova, que
nunca seria abandonado: exatamente como veríamos em I promessi sposi, que o pró-
prio autor definiria um «romanzo degli umili», para além das impostações filosóficas
e de prática historiográfica, a história passa a ser entendida seja como debate e análise

das condições e da colocação contextual dos povos, seja como um conjunto de even-
tos” do qual o verdadeiro protagonista é a “massa popular”. Foi neste momento que
a literatura se configurou definitivamente para o Manzoni tão apreciado por Lukács
como um instrumento para despertar os leitores às suas concretas necessidades éticas,
históricas e políticas, apesar de ainda se mostrar totalmente incapaz de concretizar tal
vontade, mesmo pela voluntária submissão ao único cânone que realmente conhecia,
o neoclássico.
A mesma tendência pode ser evidenciada dois anos depois, em , quando Man-
zoni elabora quatro Sermoni em estilo horaciano na sátira aos maus costumes de seu
tempo, após outras experiências neoclássicas (como o Cinzie Cime de , sob a clara
guia imitativa de Foscolo, ou o idílio Adda do mesmo , no qual o lago de Como que
serviria de cenário a seu romance era descrito nos mesmos traços poéticos). Manzoni
estava se transformando, a todos os efeitos, em um “autor engajado” para quem é obri-
gatório talhar a arte em instrumento de educação que se lance à mudança e à melhoria
da humanidade. Era uma lição aprendida também na leitura do recém falecido Parini e
de seu particularmente apreciado Il giorno (-), uma sátira genial à aristocracia
decadente na lição de e Rape of the Lo (-), de Alexander Pope.
O jovem Manzoni estava fascinado com aquela Milão de início de século que ex-
perimentava em primeira mão, mesmo por estar encontrando rápida e facilmente uma
plateia seleta. Ainda assim, não se demorou a deixar a cidade em  quando, ines-
peradamente, recebera uma carta da mãe: após anos de silêncio e sob o patrocínio de
Monti que fora seu hóspede em Paris, Giulia ama seu filho à capital francesa, talvez
com medo da solidão que antevia. De fato, poucos meses depois morria Carlo Imbonati,
deixando-a herdeira de uma rica fortuna, às vésperas da egada do filho que, mais do
que uma mãe, encontra uma mulher com quem se identifica veloz e completamente,
iniciando uma relação que psicologicamente poderia ser dita edípica. Além disto, se
a Milão do fim de sua adolescência se mostrara muito mais interessante que a pacata
Lecco da infância, na cosmopolita Paris Manzoni restaria estupefato com um mundo
inédito e inimaginável, entrando efetivamente na fase adulta de sua vida: acompa-
nhado pelo tardio mas fortíssimo laço afetivo materno, logo seria sujeito a profundas
mudanças pessoais, intelectuais e artísticas.

.. O período parisiense
Para consolar a mãe viúva, que se encaminhava a um período de profundo rigor e
dogmatismo católico orientada por uma imagem de Imbonati quase sacralizada, Man-
zoni publica em  seu Carme in morte di Carlo Imbonati, no qual traça uma espécie
de decálogo moral e ético ao qual se ateria por toda a vida e de onde Sapegno extrairia
a maior parte das “regras de vida” lembradas. Neste poema até certo ponto previ-
sível mas importantíssimo na compreensão de sua evolução artística, de traços ainda
classicistas mas no qual se sentia a preocupação de Manzoni por uma linguagem
mais prática e viva, Imbonati visita em sonho Alessandro, exprimindo-lhe estes ideais
humanos e literários voltados àquela análise do homem e de sua história que tanto mar-
cariam o discurso do I promessi sposi e, talvez principalmente, da Storia della colonna
infame. Demonstrando novamente a influência de Parini, naquele seu comovente tes-
tamento que é a ode La caduta (), nada é tido por pior à literatura e ao homem
que a produz do que esta ser não engajada ou, ainda mais grave, a submissão da arte,
instrumento potencial de mudança, ao poder ou à vaidade de terceiros, como o fazem
aqueles que reduzem a literatura a um «vergonhoso mercado de louvores»:
conservar a mão / pura e a mente […] / a santa Verdade / nunca trair:
nem nunca proferir verbo / que aplauda o vício, ou a virtude derida.⁶
Nos cinco anos da temporada parisiense, Manzoni começou a frequentar os salões
iluministas por intermédio da mãe, sentindo-se parte daquele ambiente intelectual sem
iguais e expandindo seu panorama cultural de maneira decisiva para sua futura prática
teórica e literária. O mais importante destes encontros, destinado a transformar-se em
uma amizade para toda a vida, é com o filólogo Claude Fauriel que, além de introduzir
Manzoni às novas perspectivas históricas, assumia, em posto secundário apenas à sua
então amante Madame de Staël, o papel de promotor francês das novas experiências
românticas que estavam se consolidando nas esferas alemã e britânica. Além disso,
Fauriel apresentou Manzoni ao grupo dos Idéologues, intelectuais contrários ao regime
napoleônico e ao governo que o antecedera por terem sufocado as liberdades inicial-
mente promovidas em . Orientado por esses intelectuais, como o filósofo Antoine
Destu de Tracy e o médico Pierre Jean Cabanis, Manzoni se abriu às experiências
europeias correntes, muito mais avançadas que a envelhecida prática italiana es-
sencialmente de imitações mal-traçadas, aprendendo em campo historiográfico a nova
«conservar la mano / pura e la mente […] / il santo Vero / mai non tradir: proferir mai verbo /
e plauda al vizio, o la virtù derida.» [Manzoni ()]

prática de que qualquer pesquisa histórica deveria ser conduzida com máximo escrú-
pulo e evitando extrair da mesma qualquer dedução sobre a qual não se tivesse absoluta
certeza. Não é difícil encontrar aqui, antes mesmo da experiência scoiana ainda des-
conhecida, aquela quase solenidade com que Manzoni trataria as fontes históricas em
suas tragédias primeiro, e em seu romance depois.
Apesar de não ser mais a Paris da filosofia iluminista ou do racionalismo cartesiano,
é importante lembrar que aquela ainda não era a mítica Paris do Romantismo: em
verdade, como Manzoni, se tratava de um ente em transformação no qual nenhum
elemento ainda havia se sobressaído na miríade de dúvidas e alternativas à disposição.
Na prática, como lembra sempre Bermann, eram os epígonos de Descartes a ainda
dirigir as discussões e os gostos daquela sociedade, traduzindo-se naquela conhecida
compreensão da natureza como uma ordem racional da qual a razão era o melhor
instrumento analítico. Natureza que incluía a História, para a qual Manzoni julgava
necessária uma língua «transparente, clara e precisa», que fosse em suma capaz de
«comunicar».
Dessa aproximação aos Idéologues, grupo heterogêneo cujo único verdadeiro ponto
comum era o sensacionalismo filosófico, Manzoni resulta influenciado não apenas no
campo intelectual, mas também naquele religioso. A insistência do grupo francês em
um intenso rigor moral, acompanhada pelo despertar religioso que vinha sendo experi-
mentado no início da época napoleônica, aproximava-o dos Jansenistas⁷, cuja percep-
ção religiosa e moral, ainda flertando com o herético a partir do referencial católico
mesmo após a reformulação após a condenação de meados do Seiscentos, foi muito
estudada na influência de nosso romance. De qualquer modo, é principalmente pela
mediação de Fauriel que Manzoni se aproxima não apenas dos grandes filósofos fran-
ceses do Seiscentos, como Jacques Bossuet e Blaise Pascal, e da produção intelectual das
O jansenismo se constituía ao mesmo tempo como um movimento religioso e uma teologia, nasci-
dos no contexto da Contra-Reforma e particularmente na esteira do Concílio de Trento (-). Em
essência, punha sua ênfase na existência do pecado original e na decorrentemente irremediável deprava-
ção humana, com a salvação sendo alcançada unicamente pela necessária graça divina e pela correlata
predestinação. Nascido dos escritos do teólogo holandês Cornelius Oo Jansen, constitui-se em um dos
principais movimentos internos da Igreja Católica entre o inhentos e o Setecentos, centrado princi-
palmente no conhecido convento de Port-Royal e nos autores a ele vinculados como Antoine Arnauld,
Pierre Nicole, Blaise Pascal e Jean Racine. Insistindo na justificação pela fé, mesmo sem a oposição à
reverência dos santos ou à confissão e à Comunhão características do pensamento protestante, foi con-
denado como herético por papa Inocêncio X em , sob motivação jesuítica, justamente pela negação
do papel do livre arbítrio na aceitação e no uso da graça, alegando que o papel de Deus na infusão da
graça é tamanho que não lhe caberia oposição e, na principal oposição à doutrina católica, que não exija
o consentimento humano. O papel do jansenismo na obra de Manzoni é detalhadamente discutido por
um grandíssimo número de autores, aqui sendo abordado tangencialmente na discussão a respeito do
papel da Providência em I promessi sposi.

Luzes, mas principalmente das novas ideias românticas com seu previsível embaraço
por aquela anterior prática bem-intencionada mas obsequiosa dos ditames neoclássi-
cos.
Com efeito, sua produção nesse período é válida unicamente na amostragem do
progresso entre as duas poéticas que marcam os extremos de sua vida. É o caso por
exemplo de um poema bastante tedioso mas de devido apreço em sua produção por
representar o encerramento da linha de pura imitação classicista enquanto traça ideias
sobre a função da arte que, sem grandes modificações, seriam aquelas publicadas cin-
quenta anos depois no ensaio que aqui analisamos. Trata-se do poema Urania (),
dedicado a Sophie, companheira de Fauriel, no qual o puro classicismo, esteticamente
montiano, se reduz a meros aspectos formais fortemente dissoantes do conteúdo⁸; afi-
nal, sua elaborada metáfora de Musas e Graças enviadas por Júpiter na função de con-
solação artística permitia antever a sucessiva conversão cristã, nos moldes daquela
apropriada desesperança jansenista, que logo o acudiria.
O período de fomento intelectual era acompanhado por um cada vez mais forte
laço materno, e Giulia logo se empenhou em encontrar uma nora. Após alguns con-
tatos infrutíferos, Manzoni é apresentado pela mãe a Enriea Blondel, filha de uma
rica família de banqueiros suíços. O caráter descrito como «doce e sensível» daquela
jovem de dezesseis anos se mostraria um contraponto de sucesso às neuroses de Man-
zoni, que logo após o casamento, em fevereiro de , entraria definitivamente na
fase adulta de sua vida, com a calma e a prática que lhe possibilitaram as engajadas
obras futuras. O novo núcleo familiar, interessantíssimo na tríplice força entre o neu-
rótico Alessandro e suas duas figuras femininas (diz-se que Enriea era tão discreta
e propensa a esconder-se quanto Giulia era teatral, tão ordenada e precisa quanto sua
sogra se entregava a uma desordem genial) é tão curioso que, ironicamente, foi tema
de mais de um romance histórico e participa em menor medida também desta trama
biobibliográfica.
Em dezembro de  nasce a primeira filha, Giulia como a avó, que ditava com
não pouco vigor o funcionamento da casa, batizada no ano seguinte na igreja janse-
nista de Meulan com rito católico como previsto pelo contrato matrimonial. A notícia
não é trivial, porque se por um lado Manzoni nutrira um sincero desinteresse pela re-
ligião, a família de uma Enriea, que agora se via obrigada a educar a filha segundo
Como o próprio Manzoni depois confessaria em carta a Fauriel (Manzoni (, p. IX)), «Non è
così e bisogna far versi; forse ne farò di peggiori, ma non ne farò mai più come quelli» [Não é assim
que versos devem ser feitos; talvez farei piores, mas não farei mais [versos] como aqueles].

o catequismo de Roma, era de religião calvinista. A influência da avó Giulia, cujo ca-
tolicismo estava atingindo um ápice de misticismo antes do afastamento completo e
quase blasfemo que tomaria no final da vida, provavelmente somou-se às dúvidas de
Enriea e às novas indagações de Manzoni, motivando o casal a uma conhecida e
ainda hoje não completamente explicada conversão católica. Tratando-se de Manzoni,
contudo, é de se admitir que tal conversão tenha sido uma ponderada escolha filosófica
e ideológica, possivelmente por encontrar em uma não somente religiosa a melhor
solução para as angústias existenciais que o escoltariam até o final da vida. Certo é, de
qualquer modo, que Manzoni sempre quis atribuir uma origem providencial à sua con-
versão, narrando o episódio de sua epifania: como depois confiaria a Stefano Stampa,
seu enteado, no dia de abril de , Alessandro e Enriea teriam se perdido entre
a multidão que celebrava o casamento de Napoleão e Maria Luisa da Áustria; apavo-
rado, ele teria se refugiado em uma igreja de Paris tomado de desespero, quando uma
ajuda providencial (uma das filhas, Vioria, diria que ele costumava comparar o mo-
mento à revelação a São Paulo no caminho para Damasco) o teria acalmado; saindo da
igreja, teria imediatamente encontrado Enriea e salva, despertando de seu sono
religioso.
De qualquer modo, o casal havia pedido em setembro do ano anterior ao papa Pio
VII que lhes concedesse a celebração do casamento, antes de ato unicamente civil, tam-
bém com rito católico. Relevante foi o papel do abade jansenista Eustaio Dègola que
conduziu o casal em uma rápida e intensa catequese a ponto de Enriea, para quem o
rigor do cristianismo jansenista certamente tranquilizava na lembrança da austeridade
calvinista, abjurar em favor do rito romano em maio daquele ano. Em Manzoni, para
quem a nova vida religiosa assumiu um papel mais intelectual do que a praticidade de
Enriea, a indiferença juvenil para as questões religiosas foi substituída sem detença
por aquele fervor que encontramos somente em convertidos, com reflexos imediatos em
sua produção intelectual e poética. De fato, as ânsias de Manzoni encontraram terreno
de fácil consolo no pessimismo jansenista logo sintetizado com a concepção viquiana
de história e com as lições literárias de Fauriel, resultando em um novo conceito no qual
o percurso humano se torna um conjunto irracional e inexplicável de fatos cuja única
motivação, inalcançável aos homens, é sua disciplina pela Providência divina. Surgia
uma teleologia da história peculiar, na qual o desenrolar positivo, mas não idílico, é
apanhado pelo exercício ético e comunitário de cada pessoa; mesmo sob a fidelidade
exigida, este não se escusava da ação pessoal movida pelo bom senso, por uma caritas
na qual reconhecemos seu principal componente católico e, como não poderia deixar

de ser vista sua descendência iluminista, pelo intelecto científico que assim se mostrava
o mais alto dom divino, ao mesmo tempo em que vinculava Manzoni à longa tradição
tomista que nunca deixara de ser expressiva no âmbito intelectual, e mesmo jurídico,
italiano afinal, por meio dela egamos mesmo a notar a influência de seu avô Ce-
sare. Além disso, a austeridade e a medida jansenistas não podiam deixar de agradar
a um Manzoni ainda carente de referências. À conversão logo se seguiu o retorno a
Milão, onde o papel de guia espiritual caberia a outro abade jansenista, Luigi Tosi, cujo
crédito sobre Manzoni egaria ao ponto de orientar sua primeira grande fratura com
a tradição literária italiana na composição de seus hinos religiosos.
É portanto evidente como ambas as conversões, tanto a inicial descoberta religiosa
de  quanto principalmente a revolução artística no salto de um Neoclassicismo
não dogmático a uma forma não menos peculiar de Romantismo, não se trataram de
viradas improvisas, e mesmo “providenciais”, como Manzoni propagandeara. Eram,
sim, principalmente na mais lenta e difícil adaptação no plano artístico, uma expressão
do ponderado mas indubitavelmente sincero resultado de um neurótico processo de
sistematização e conciliação de certas convicções intelectuais e morais que, a todos os
efeitos, são a única constante em sua vida (e que, de outra forma, em sua brevidade
explicam satisfatoriamente seu insucesso neoclássico). Como lembra Sapegno, são
o modo pelo qual Manzoni confirma o processo em curso na cultura
europeia contemporânea e nele se insere, conservando quanto possível
dos ditames ideais, críticos e polêmicos do século das Luzes. Enquanto
Leopardi, favorecido e impedido ao mesmo tempo por seu isolamento,
àquela cultura reage desenvolvendo com tenaz coerência sua batalha
contra todos os compromissos idealistas e as promessas ilusórias de um
otimismo banal, em nome de uma razão sempre solícita e desencan-
tada, Manzoni, que opera em um clima mais aberto e sensível a todas
as solicitações da civilização de seu tempo, em contato direto, e não
apenas livresco, com os movimentos mais progressivos e irrequietos da
cultura liberal francesa e alemã, mostra-se ao contrário mais disposto
a acolher e assimilar as tendências gerais do ambiente, apesar de sem-
pre em formas bastante pessoais e extremamente cautelosas, nos limites
nos quais estas não contradissessem sua fundamental educação raciona-
lista. A aceitação de uma norma religiosa foi para ele, ao menos em um
primeiro momento, principalmente uma forma para corrigir quanto de
abstrato, de feado, de intelectualista persistia em seu moralismo, de
reinscrevê-lo no esquema de uma sabedoria comum e popular, saindo
de seu isolamento para retornar ao núcleo de uma experiência asso-
ciada; não o induziu portanto a renegar obtusamente suas instâncias
humanitárias, mas sim o ajudou a descobrir e evidenciar o curso igua-
litário e democrático da doutrina evangélica.
«il modo con cui il Manzoni asseconda il processo in corso della cultura europea contemporanea e si

Nesse debate, Bermann lembra o crítico italiano Rocco Montano quando, certa-
mente dando seguimento às conhecidas análises religiosas de Francesco Ruffini sobre a
religiosidade manzoniana, relaciona nosso autor não apenas ao pensamento dos Idéo-
logues, mas o classifica explicitamente sob o tomismo recém lembrado, sublinhando o
compromisso de vida do autor com a lógica e a razão a serviço de uma cristã que
como em Dante nunca perderia uma expressiva força anticlerical. Justíssima descri-
ção, afinal o próprio Manzoni, em seu Osservazioni sulla morale caolica, professava
acreditar, filiando-se a Santo Anselmo e principalmente a São Tomás de Aquino, que
Deus dera a razão ao homem para que a usasse não apenas para honrar seu Criador,
mas também para direcionar seus imprevisíveis, poderíamos mesmo dizer capriosos,
sentimentos e opiniões.
Da mesma forma, sua adesão àquele Romantismo peculiar e mesmo incomum que
«excluía qualquer aventura da fantasia e desconfiava de todas as evasões e as licenças
do sentimento»¹⁰ era uma forma de dar roupagem moderna a um corpo que, na prá-
tica, permanecia firmemente vinculado à prática realista e fundamentalmente empírica,
quase “positivista”, do Seiscentos e, em maior medida, daquele Setecentos francês que
tanto apreciava. Antes de mais nada, a aproximação e a convivência de Manzoni com
o mundo romântico sempre foi fortemente mediada por sua preocupação por uma arte
“histórica” e “objetiva”, que se aproximasse da vida ao mesmo tempo em que lidava
com o presente ao tratar do passado. É uma postura diferente da opinião mais cor-
riqueira que costuma ser expressa sobre aquele movimento, ao pensar-se em nomes
como Hölderlin, Shelley, Byron e principalmente o também italiano, e diametralmente
oposto a Manzoni, Leopardi.
É neste contexto que nasceria aquele “romance histórico católico” tão imediata-
mente afastado não apenas do embasamento prático e ideológico de Sco, na escolha
inserisce in esso, conservando quanto più può del retaggio ideale, critico e polemico, del secolo dei lumi.
Mentre Leopardi, favorito e impedito al tempo stesso dal suo isolamento, a quella cultura reagisce svol-
gendo con strenua coerenza la sua baaglia contro tui i compromessi idealistici e le promesse illusorie
di un oimismo banale, nel nome di una ragione sempre vigile e disincantata; Manzoni, e opera in un
clima più aperto e sensibile a tue le sollecitazioni della civiltà del suo tempo, a contao direo, e non
soltanto libresco, con i movimenti più progrediti e irrequieti della cultura liberale francese e germanica,
si mostra invece più disposto ad accogliere ed assimilare le tendenze generali dell’ambiente, sebbene
sempre in forme alquanto personali ed estremamente caute, nel limiti in cui esse non contraddicono alla
sua fondamentale educazione razionalistica. L’acceazione di una norma religiosa è per lui, almeno in
un primo tempo, soprauo un mezzo per correggere quel e di astrao, di iuso, di intelleualistico
persisteva nel suo moralismo, riportarlo soo il segno di una saggezza comune e popolare, uscire dal
suo isolamento per rientrare nell’alveo di un’esperienza associata; non lo induce pertanto a rinnegare
ousamente le sue istanze umanitarie, invece l’aiuta a scoprire e meere in luce il filone egualitario e
democratico della dorina evangelica.» [Sapegno (, p. )]
¹⁰ «esclude ogni avventura della fantasia e diffida di tue le evasioni e le licenze del sentimento»
[Sapegno (, p. )]

desta forma peculiar pela qual Manzoni nunca mostrou excessiva confiança quanto
ao êxito mesmo tornando-se um dos principais nomes, mas distante também e princi-
palmente daquele renovado sentimento religioso, muitas vezes definido precisamente
como o catolicismo do Romantismo” de Chateaubriand, ou mesmo aquele espírito
romântico que frequentemente tendia ao gosto pelo mágico, pelo exótico, pela eva-
são fantástica. Basta pensar em como, mesmo reconhecendo em Sco o «Homero do
romance histórico», Manzoni desgostava do tratamento pouco historiográfico, timida-
mente conexo e não necessariamente submisso à realidade, que Sco reservava às suas
personagens efetivamente históricas, como o Cœur-de-Lion ou os antigos príncipes
escoceses. Manzoni era não apenas um autor, mas um historiador muito mais meticu-
loso que Sco, mesmo porque seus pontos de partida e egada eram suficientemente
diversos apesar de compartilhar boa parte do trajeto. Entre estes, estão certamente in-
cluídas as motivações que Manzoni tomava por religiosas, mas que nós provavelmente
julgaríamos como morais, e que também apresentavam uma profunda vinculação his-
tórica a uma Itália culos marcada pelo poder temporal da Igreja. É mais uma vez
Sapegno a entender com lucidez as motivações de Manzoni, ao afirmar como nele
as exigências do coração permanecem firmemente controladas e sub-
missas ao primado da razão. É mesmo lícito duvidar da legitimidade
da tese frequentemente aceita, segundo a qual Manzoni é considerado
o representante mais insigne da corrente moderada, católico-liberal, do
Risorgimento. […] Não se pode certamente dizer que ele aderira ple-
namente a uma doutrina neoguelfa; afastou sempre qualquer preten-
são eclesiástica por um governo temporal […]; permaneceu por muito
tempo obstinadamente fiel às suas convicções republicanas e somente
mais tarde, e com muitas reservas, submeteu-se a aceitar a solução mo-
nárquica e piemontesa em nome de uma exigência unitária; não rene-
gou, em sede política, seu anticlericalismo e, no plano da luta das ideias,
seu critério de tolerância liberal; até mesmo seu sentimento quanto à
história, pessimista e irônico, é mais voltairiano que romântico, e seu
conceito de política, antidemagógico e paternalista, nacional sem naci-
onalismo, é de genuína ascendência iluminística. ¹¹
Mas o salto dos versos neoclássicos ao romance histórico não poderia evidente-
¹¹ «le esigenze del cuore restano fermamente controllate e soomesse al primato della ragione. È
lecito persino dubitare della legiimità della tesi comunemente accolta, per cui si suol considerare il
nostro come il rappresentante più insigne della corrente moderata, caolico-liberale, del Risorgimento.
[…] Certo è e non si può dire e egli aderisse mai fino in fondo a una dorina neoguelfa; respinse
sempre ogni pretesa ecclesiastica di governo temporale, […]; rimase a lungo ostinatamente fedele alle
sue convinzioni repubblicane e soltanto tardi, e con molte riserve, si piegò ad acceare la soluzione
monarica e piemontese in omaggio a un’esigenza unitaria; non rinnegò mai, in sede politica, il suo
anticlericalismo e, sul piano della loa delle idee, il suo criterio di liberale tolleranza; perfino il suo senti-
mento della storia, pessimistico e ironico, è più volterriano e romantico, e il suo conceo della politica,
antidemagogico e paternalistico, nazionale senza nazionalismo, è di siea ascendenza illuministica.»
[Sapegno (, p. )]

mente ter sido tão imediato, principalmente frente à esboçada personalidade de
Manzoni. Era-lhe necessário um verdeiro caminho de formação literária, capaz de
permitir aquele lembrado “desliricamento” nas sucessivas etapas, entremeadas por
alguns parênteses artísticos, dos poemas religiosos e das tragédias históricas.
.. Os hinos religiosos
É graças aos hinos religiosos de Manzoni que podemos entrar no concretamente
relevante de sua produção bibliográfica: se as lembradas obras de juventude mostra-
vam indícios dos caminhos futuros, eram sempre a produção de um autor ainda muito
incerto sobre sua trajetória, que se limitava a emoldurar lampejos criativos dentro a
seguras imitações estilísticas. É uma situação que muda por completo no desenho dos
hinos religiosos, sugerido quando não gentilmente ordenado por Tosi, nos quais onde
não apenas se revoluciona a forma, especialmente linguística, mas principalmente onde
as dúvidas filosóficas conduzem a arte com força tão expressiva e inesperada a ponto
de deixar o projeto inacabado.
Mas para falar na poesia religiosa de Manzoni é antes necessário aludir novamente
àquele complexo capítulo da cultura europeia de início Oitocentos, parte integrante da
difusão do movimento romântico, dedicado a um despertar religioso em geral e ca-
tólico em específico, bem como a um por vários aspectos inédito universo de valores
que se afirmava pelo declínio do racionalismo iluminista e principalmente pela desi-
lusão sucessiva à Revolução Francesa. A atenção aos motivos religiosos demarcava o
início de um movimento de sucesso peculiar principalmente à intelectualidade italiana
que promoveria a unificação do país e dentro do qual o participante Manzoni não podia
abrir mão de uma ânsia sim democrática e renovadora como ensinada pelo Iluminismo,
mas contemporaneamente mediada e mesmo identificada com os princípios evangéli-
cos. Advertia-se aquela necessidade, sucessivamente cristalizada em I promessi sposi,
de uma razão que ordenasse um mundo caótico que a renegava.
Uma escolha peculiar, pois, oposta a um racionalismo puro, apontava nas falhas da
Revolução exatamente a ausência de um motivo social e religioso que a degeneraria
ou em uma oclocracia ou em um novo baronato. Não podia contudo ser confundida
de maneira alguma com uma série de movimentos religiosos e morais quais o Sanfe-
dismo que, no fundo, não passavam de forças contra-revolucionárias na defesa de um
renovado absolutismo teocrático. Igualmente, o catolicismo manzoniano não deve ser
confundido ou tomado como uma expressão pessoal ou local daquele catolicismo es-

tetizante do lembrado Chateubriand, que em plano nada teórico soube fundir-se à
perfeição com o regime napoleônico da França pós-revolucionária.
Ao contrário, a de Manzoni não se afastava por completo daquele ideal classicista
da revolta anti-clerical da juventude. Sua era essencialmente uma no homem,
celebrada principalmente pela constante capacidade de renascimento e regeneração,
de forma que fosse possível comunicar a todos, considerada a função da língua não
apenas literária, a necessidade de adesão a uma liturgia coletiva que, muito mais do
que regrada cerimônia exterior, constituía-se em regra de vida. Uma proposta poética
desse gênero seria inovadora mesmo mantendo dentro de certos limites os aspectos
exteriores da lição neoclássica, e Manzoni mostrava-se ciente disso como expunha em
sua carta a Fauriel de  de abril de .
Afinal, mesmo frente a um autor como Manzoni que dificilmente seria adepto de
experimentalismos vanguardistas, a manutenção do conteúdo exterior não prescindia
de uma reinvenção da linguagem que comportava bem mais que uma recusa ao me-
canicismo retórico neoclássico, e igualmente não se tratava unicamente de uma con-
sequência do esgotamento das anteriores expressões pessoais frente à revolução de sua
doutrina religiosa. Sua escolha era efetivamente um movimento catártico, e assim
Manzoni elege como objetivo de sua celebração os hinos sagrados, em sua constituição
exultante que permitiria uma verdadeira ascensão ao plano espiritual na promoção,
nunca será lembrado em excesso, de um efeito concreto. Os versos da adolescência,
sem a motivação de um programa específico além da fama e da satisfação pessoal, se-
riam logo recusados quando Manzoni, como sabemos por um autógrafo, organiza um
programa metódico que previa uma suite que enfeitasse as doze principais festas do
ano religioso: o Natal, a Epifania, a Paixão, a Ressureição, a Ascenção, a Pentecostes,
o Corpus Christi, a Cátedra de São Pedro, a Assunção, o Nome de Maria, o Todos os
santos e os Mortos.
Um programa talvez excessivamente ambicioso muito mais nas exigências artís-
ticas do que na sua extensão, e de fato incompleto: Manzoni concluiu apenas cinco
poemas, quatro entre  e  e um quinto e muito importante em sua trajetória (a
Pentecostes) em . Nascidos, segundo a propaganda do próprio autor, da conver-
são ao catolicismo onde sua poesia efetivamente iniciaria, são caracterizados por uma
«progressiva humanização do transcendente»¹², inclusive graças ao tortuoso caminho
escolhido pelo autor: inicia-se com Risurrezione (abril-junho ), Il Nome di Maria
¹² Tellini (, p. )

(novembro -abril ), Natale (julho -setembro ) e La Passione (março
-outubro ). O ímpeto de redação diminui e se encerra após a longa elaboração
do Pentecoste (-), que vêm às prensas após as experiências, e a fama, pelas
odes políticas e pelas tragédias históricas. Um início tão intenso para um tão rápido
abandono revela não apenas a intensidade desta intuição inicial, mas sobretudo o fato
que os Inni devem ser considerados o verdadeiro ponto de encerramento da estação
juvenil, a entrada da fase adulta. Constituem a experiência derradeira do adolescente
que se faz adulto, uma inspiração que, apesar de transitória, assume um papel influ-
ente na trajetória posterior do autor e na interpretação de suas obras (principalmente
quanto ao tão discutido papel da religião em I promessi sposi). Aliada a experiências
biográficas, a força motriz desta intuição poderia se concluir rapidamente, e temos
a lamentar não ter gerado mais frutos.
Ponto comum a estes hinos é a surpresa do autor frente a contemporaneidade dos
eventos sagrados, que talvez somente o suceder temporal permita compreender mais
integralmente; contemporaneidade que deriva, logo se aprende, da permanência sólida
de um quê eterno na constante mobilidade do tempo e da sociedade humana. É as-
sim que a mensagem evangélica, aliada a tradições populares que o autor certamente
reconhecia apócrifas, se intensifica e se consome rapidamente no ardor de uma parti-
cipação pessoal nos eventos que, por momentos, faz de seus hinos peças oratórias hoje
cansativas. Mas é uma fadiga necessária: a inebriação do sentimento religioso não
estaria destinada, como dissemos, a uma harmonia espiritual concluída em si própria,
mas deveria servir de ímpeto cristão para que o crente passasse a uma análise dialética
e empírica da realidade.
De qualquer modo, as experiências deste falso aprendiz lírico estariam destinadas a
não se concluir: mais do que a escolha de motivos religiosos, o viés pelos quais seriam
abordados obrigavam Manzoni a se afastar fortemente da tradição recente, adotada
na juventude, de nomes quais Alfieri, Monti e mesmo Foscolo em quem se podia
antever aquela versão tipicamente romântica do misticismo religioso. O esmero e a
solenidade neoclássicos se mostrariam inadequados para acomodar a efusão emocional
e mesmo conceitual que o autor propunha, consequentemente jogando por terra toda
uma tradição poética europeia e principalmente italiana que, a bem dizer, remonta a
Petrarca: o poeta introspectivo, pausado, minucioso e até, como negá-lo, elitista. Tellini
apontou perfeitamente como se tratava de um «[s]intomático início lírico-antilírico de
um artista destinado, em futuro, a desliricizar-se»¹³.
¹³ Tellini (, p. )

A consequência desse processo foi uma oposição ruidosa aos empoeirados rimá-
rios sagrados, principalmente italianos, como por exemplo Venerdì Santo (, mas
ainda em grande voga à época) de Giuseppe Olivi, este também expressão de uma festa
religiosa e escrito no mesmo metro neoclássico da análoga Passione manzoniana. A
sintonia de nosso autor com o Romantismo logo lhe rendeu fãs, o mais importante en-
tre estes Goethe, de quem logo aprenderia a liturgia da tragédia histórica, mas talvez
mais nos valha citar a oposição feita por Giuseppe Salvagnoli Marei em seu Intorno
gl’Inni Sacri di Alessandro Manzoni. Dubbi. [A respeito dos Hinos Sagrados de Ales-
sandro Manzoni. Dúvidas.] () que, reconhecendo-lhe a inovação, condenava suas
«metáforas tortas e ousadas e o modo de fazer poesia […] completamente novo» que
nada tinha da «índole da italiana poesia»¹⁴.
.. A primeira tragédia histórica: Il Conte di Carmagnola
Apesar do valor dos hinos religiosos no reconhecimento inicial da poética adulta
de Manzoni, é em suas posteriores tragédias históricas que a relação entre história e
ficção se faz de fato presente e não é de se duvidar que I promessi sposi tenha nascido da
motivação em solucionar, além das questões relativas às odes políticas, principalmente
as dúvidas causadas pela redação do Il Conte di Carmagnola e do Adeli, bem como
do abandonado Spartaco.
Manzoni começa a se ocupar de sua primeira tragédia, Il conte di Carmagnola, em
 de janeiro de , no mesmo mês em que o artigo de M.me de Staël Sulla maniera
e l’utilità delle traduzioni, em que convidava os autores italianos a prestar atenção ao
que se passava além dos Alpes, é publicado em Milão na Biblioteca italiana, a única
revista literária de filiação romântica naquele ambiente cultural.
Manzoni acolhe o convite para o ingresso no Romantismo, escolhendo para campo
de prova justamente o âmbito teatral, possivelmente em função de uma crise ex-
cessiva na composição dos Inni, certamente consciente de sua potencial inovação em
campo italiano.
Além da Staël, foi fundamental na redação do Carmagnola o constante contato
com Fauriel, que gradualmente introduzia Manzoni nas questões do teatro moderno;
não apenas a Drammaturgia d’Amburgo (-) de Lessing, que propunha um te-
atro livre das amarras aristotélicas, ou as discussões de Siller e Goethe em âmbito
¹⁴ «metafore storte e ardite e il modo di poetare […] tuo nuovo […] indole dell’italiana poesia»
[Tellini (, p. )]

dramático, mas principalmente o Cours de lierature dramatique de Slegel (;
traduzido ao francês em  e ao italiano em ), o verdadeiro manifesto da nova
arte dramática oferecida pelo Romantismo. Aliou-se também, e um leitor ávido pode-
ria buscar com satisfação seus resquícios, a leitura de Shakespeare especialmente as
peças “históricas” como Julius Cæsar e King Lear na tradução francesa de Letourner.
Manzoni tinha de fazer frente à recusa de uma tradição iluminista, como as conhe-
cidas oposições de Rousseau, que condenava a arte dramática justamente pela cumpli-
cidade e identificação entre espectador e personagens. A solução, em sua típica síntese
entre Iluminismo lombardo e catolicismo jansenista, esteve justamente na representa-
ção de fatos históricos sob uma viva e explícita ética cristã, criando um distanciamento
suficiente entre público e espetáculo para que a cumplicidade e a identificação fossem
substituídas por comoção e explícita alteridade; distância que se essencialmente pela
verdade histórica fruto de uma sincera prática historiográfica.
Como sabemos por uma de suas tantas cartas a Fauriel, Manzoni logo percebera a
originalidade de sua proposta, principalmente em área italiana. Opondo-se à típica e
ainda viva tragédia alferiana, da busca pelo sublime nas paixões do herói invariavel-
mente protagonista, Manzoni adotava as lições de Lessing propondo uma trama com
uma fratura explícita nas unidades de tempo e lugar. Não era mais necessária uma
participação plena e imediata, uma cumplicidade do espectador, pois recusava-se jus-
tamente aquele efeito de rápida sucessão da unidade temporal (que permitia abranger a
ação por completo, sem incluir terceiros ou ocultar momentos de transição) identificada
por inteiro pelo espectador em um lugar único e portanto real e imóvel. Cabe lembrar
Aristóteles, de como em muitos casos a encenação não se trata de uma representação
de algo, mas de uma nova verificação acerca do mesmo.
Manzoni poderia recusar essas premissas, pois sua ânsia era pela exposição de
uma realidade histórica, que sabia não ser constante em tempo e espaço, e da relação do
herói com a mesma, esta sim mediada por um quê de universal que se revelaria perene
justamente pelos fundamentos éticos serem continuamente os mesmos. Tornava-se
necessário esconder sem negar alguns eventos e pensamentos, mostrando-os entre-
laçados e indissolúveis, em uma representação da dificuldade empírica das escolhas do
próprio espectador. Uma dramaturgia nova, que se baseia no movimento em ritmos
sincopados, e na qual, como Manzoni expõe na interessante Prefazione à própria tragé-
dia, o respeito da unidade tão pregada pelo neoclassicismo tornaria impossível alcançar
os objetivos desejados.

Afinal, a escolha de Manzoni não se em uma função de recusa às unidades aris-
totélicas por pura ideologia: é sim uma consequência obrigatória de sua mudança de
alvo. Se anteriormente se objetivava a sintonia e a participação emotiva do especta-
dor, no caso do teatro cristão e histórico (e portanto empírico e racional) de Manzoni,
desejava-se uma avaliação ponderada que somente poderia ser obtida por um afasta-
mento entre público e trama. Como dito, “classicista” e não “clássica”, pois no fundo
Manzoni aceita a interpretação de Slegel quanto aos coros do drama gregos, não con-
siderando mais sua existência como uma materialização da subjetividade do poeta, mas
sim tendo-os como uma meditação coletiva, e portanto não raro dissonante, dos fatos
representados.
Outra mudança significativa, indicativa do caminho que seria tomado com I
promessi sposi, é o fato de o drama ter de derivar explicitamente de fontes históricas:
neste caso, principalmente o volume VIII () da Histoire des republiques italiennes
au Moyen Âge, de Sismonde de Sismondi (no qual o conde de Carmagnola é descrito
como um «grand homme» de caráter «superbe et impetueux»), além de outras fontes
como a Storia di Milano () do tio biológico Pietro Verri e a Vite degli eccellenti
Italiani () de Francesco Lomonaco. Da mesma forma, interessa a procura por uma
nova linguagem expressiva e meticulosamente investigada como verossímil não apenas
pela ambientação trágica, mas também pelos termos de realidade histórica. É assim
que em relação às tragédias de Alfieri o metro se faz menos polido e mais natural, com
construções muito mais prosaicas e mesmo lances de oralidade não literária.
Em verdade pouco nos importa que a historiografia contemporânea, ao contrário
de Manzoni e de Sismondi, considere Carmagnola culpado, ou o fato de que o resultado
linguístico final é variavelmente convincente em seus saltos entre falsa coloquialidade
e tradição lírica, bem como na luta entre um vocabulário de sabor mas não de na-
tureza arcaico e suas necessidade melodramáticas. Importa-nos, sim, a luta do herói
entre moral e política, o abuso do Estado e as escolhas éticas das personagens, em uma
representação que não busca identificar passado e presente, mas ponderar sobre a per-
sistência das situações. Exatamente por isto, ao contrário de outros heróis trágicos,
representa-se o drama na cena e não na consciência do herói, que se sustenta em seus
princípios éticos sem perceber claramente o elemento trágico da situação. Com efeito,
muito mais que a personagem título, o grande protagonista trágico é o amigo de Car-
magnola, Marco, em quem efetivamente reside a essência trágica na traição da amizade
em nome de ideais supostamente maiores, ao abandonar o protagonista a seu próprio
destino.

O Carmagnola é uma obra talvez insólita, talvez ainda não suficientemente polida,
mas de uma vitalidade que a lírica neoclássica e mesmo os Inni haviam sido incapazes
de alcançar. É um teatro em todos os sentidos moderno, e brilhante, em seu contexto,
pela busca de uma síntese honesta entre a verdade histórica e a ficcional, entre o esta-
belecimento de uma verdade correspondente na primeira e uma coerente na segunda.
Artisticamente, Manzoni começava a se preocupar com os empecilhos de ter pro-
tagonistas de uma forte vinculação histórica que seu orgulho iluminista se mostrava
incapaz de trair; processo que se acentuaria no Adeli indicando o rumo daquela
solução literária do romance histórico. Intelectualmente, no Carmagnola Manzoni al-
cança, como não havia conseguido completamente nos Inni, aquela desejada separação
entre céu e terra que não desculpava a pouca atenção à última. É o que se percebe cla-
ramente na conclusão ao mesmo tempo de morte e verdade do protagonista. Como
lembra Tellini,
[o] ditado da lírica sacra reaflora no ritmo do tempo profano, com uma
gradualidade interna que converte a ode histórica em hino religioso,
de forma a confirmar a metamorfose do Carmagnola que de um belige-
rante herói de ventura se transforma finalmente, de maneira dramática,
em paladino da fé. Mas não se seca o sangue derramado, não se feam
as feridas que restam como resultado da inocência ofendida, atributo
incancelável de uma situação histórica trazida à cena como “paixão e
martírio de vítimas que não podem ser culpadas. ¹⁵
Vítimas que não podem ser culpadas e às quais caberia desfeo muito melhor ela-
borado na segunda tragédia histórica, o Adeli, na qual o elemento individual não
apenas representa com mais intensidade, mas se associa definitivamente ao elemento
comum e popular no qual a história do indivíduo, mais que metáfora, se torna meto-
nímia daquela de seu grupo.
.. A última experiência dramática: o Adeli
A redação do Adeli se em , na conclusão daquele admirável biênio da
produção manzoniana: em  Manzoni escrevera não as grandes odes políticas
que lhe trariam o maior sucesso internacional (Marzo  e Cinque Maggio), mas
¹⁵ «Il deato della lirica sacra riaffiora nel ritmo del tempo profano, con un’interna gradualità e
converte l’ode storica in inno religioso, da assecondare la metamorfosi del Carmagnola e da belli-
gerante eroe di ventura si trasforma infine, drammaticamente, in paladino della fede. Ma non si asciuga
il sangue versato, non si rimarginano le ferite e restano quale corredo dell’innocenza oltraggiata, at-
tributo incancellabile di una vicenda storica portata sulla scena come “passione” e martirio di viime
incolpevoli.» [Tellini (, p. )]

também iniciara o Fermo e Lucia, broto daquilo que se tornaria o romance I promessi
sposi. No mesmo , além deste segundo drama histórico, seria concluída, após cinco
árduos anos de revisões e dúvidas, a redação do Pentecoste, resultando em uma lírica
significativamente diferente dos Inni anteriores.
A trama da nova tragédia é ainda anterior à do Il Conte di Carmagnola: estamos
em -, época da derrocada da dinastia longobarda no norte da Itália, represen-
tada pelo rei Desiderio e pelos filhos Adeli e Ermengarda. Ao contrário da primeira
tragédia, na qual o conde tivera de lutar com uma ética cristã contra a maldade das
instituições humanas, a política in extremis, no Adeli o elemento trágico se faz mais
pessoal e interior, e portanto menos acessível ao público na potencialização das linhas
inauguradas na outra tragédia. Afinal, Adeli é obrigado pelo respeito paterno a obe-
decer ao pai na iniciativa de uma guerra da qual discorda porque, além de atacar a
Igreja, move-se por uma disputa na qual considera seu pai a parte torta. Da mesma
forma, também sua irmã Ermengarda se consome entre a raiva e o orgulho da esposa
repudiada junto ao amor que ainda prova por Carlos Magno.
Nos coros, aos quais como antes aludi Manzoni atribui a função de expressão do
coletivo, releva-se a diferença de um combate que não é mais profissional e entre ir-
mãos, como no Carmagnola, mas propriamente étnico entre os Longobardos destinados
à dissolução e os Francos extenuados pela contínua mara invasória. Mas se mantém
a piedade cristã tanto para vencedores como vencidos que sobretudo se mescla à pre-
ocupação do fator étnico recém descrito: o Adeli é afinal uma das primeiras obras
a lançar um olhar piedoso aos latinos, povo antes potente mas agora submisso e que
serve de barganha a outros (um motivo que se repetiria no drama italiano, basta pen-
sar no coral dos escravos judeus em Nabucco de ). Ademais, o interesse político
e prático pela unidade da Itália que representa, e que tomaria ainda mais força no I
promessi sposi, não é em nada casual.
Artisticamente é interessante ver como a experiência do Carmagnola amadurece
no Adeli em plano formal e de sentido: a estrutura dramática é muito melhor organi-
zada e a expressão linguística acompanha com maior eficácia os registros expressivos
necessários. Se por um lado isso significa uma linguagem por vezes excessivamente
áulica e literária, como no acusativo à grega da famosa descrição de Ermengarda no
«Sparsa le trecce morbide / Sull’affannoso peo», a distância temporal e linguística do
fato narrado permitiu a Manzoni uma maior liberdade e um melhor jogo estilístico da
linguagem.

Interessam-nos muito mais, porém, as reflexões teóricas e historiográficas de Man-
zoni no Discorso sur alcuni punti della storia longobardica in Italia (sempre ), que,
também recuperando o mencionado cuidado com os Latinos dominados, insiste na ne-
cessidade de deslocar o foco da historiografia dos feitos das grandes personagens à
vida dos anônimos e dos vencidos. Logo na introdução este documento da gestação de
I promessi sposi, afirmava em sua não pouco contorta sintaxe teórica como
uma série de fatos materiais e exteriores, por assim dizer, mesmo se
fosse livre de erros e dúvidas, não é ainda a história, nem uma matéria
suficiente para formar o conceito dramático de um acontecimento his-
tórico. As circunstâncias das leis, dos costumes, das opiniões nas quais
se encontravam as personagens operantes; seus objetivos e suas incli-
nações; a justiça, ou a injustiça daqueles e destas, independentemente
das convenções humanas, segundo ou contra as quais operaram; os de-
sejos, os temores, os sofrimentos, o estado geral do imenso número de
homens que não tiveram parte ativa naquele acontecimento, mas que
sentiram seus efeitos; [estes] são os dados necessários para poder jul-
gar corretamente. A partir da leitura atenta e replicada dos documen-
tos que podem servir para fazer conhecer o pedaço da história sobre o
qual se baseou esta tragédia, resultou ao autor um conceito oposto, em
muitos dos pontos recém mencionados, àquilo que tiveram e deixaram
historiadores de renome. Por quanto devesse ser, e fosse, difidente de
seu juízo, e propenso a acreditar [como fosse] mais ponderado o destes,
não pôde porém receber o fardo das opiniões, as quais, examinadas em
detalhe, ainda mais contrárias à evidência lhe pareceram. Portanto o
espírito histórico do drama é em muitos pontos completamente contrá-
rio àquilo que se obtém, por assim dizer, das mais respeitadas histórias
modernas, e em consequência contrário às opiniões da maior parte dos
leitores.¹⁶
É fácil reconhecer como estavam prestes a nascer os heróis anônimos que povoam
seu romance histórico. Em particular, se afirmariam aqueles heróis anônimos de uma
Itália dominada que tanto desgostava, e que para buscar sua unidade precisaria reco-
¹⁶ «una serie di fai materiali ed esteriori, per dir così, foss’ane nea d’errori e di dubbi, non è
ancora la storia, una materia bastante a formare il conceo drammatico d’un avvenimento storico.
Le circostanze di leggi, di consuetudini, d’opinioni, in cui si sono trovati i personaggi operanti; i loro fini
e le loro inclinazioni; la giustizia, o l’ingiustizia di quelli e di queste, indipendentemente dalle conven-
zioni umane, secondo o contro le quali hanno operato; i desideri, i timori, i patimenti, lo stato generale
dell’immenso numero d’uomini e non ebbero parte aiva in quell’avvenimento, ma e ne provaron
gli effei; questo ed altre cose d’uguale, cioè di molta importanza, non si manifestano per lo più ne’
fai stessi; e sono però i dati necessari, per giudicarne reamente. Dalla leura aenta e replicata de’
documenti e posson servire a far conoscere il pezzo di storia su cui è fondata questa tragedia, è risul-
tato all’autore un conceo opposto, in molti de’ punti accennati or ora, a quello e ne hanno avuto e
lasciato storici d’alto grido. Per quanto dovesse essere, e fosse, diffidente del suo giudizio, e propenso
a credere più ragionato il loro, non ha però potuto ricevere il giogo d’opinioni, le quali, più esaminato,
più gli sono parse contrarie all’evidenza. indi lo spirito storico del dramma è in molti punti affao
opposto a quello e esce, per dir così, dalle più riputate storie moderne, e per conseguenza all’opinione
del più de’ leori.» [Manzoni (, p. )]

nhecer sua condição de vencida ao longo da História, reconhecendo a importância dos
sofrimentos de cada um, mesmo que anônimo:
e se as pesquisas mais filosóficas, e as mais precisas sobre o estado
da população italiana durante o domínio dos longobardos, conduzissem
obrigatoriamente ao desespero por conhecê-lo, esta única demonstra-
ção seria uma das mais graves e mais fecundas de pensamento que a
história pode oferecer. Uma imensa multidão de homens, uma série de
gerações, que passa sobre a terra, sobre a sua terra, sem ser observada,
sem deixar um vestígio, é um triste mas portentoso fenômeno: e os
motivos de tamanho silêncio podem abrir espaço a investigações ainda
mais importantes do que muitas descobertas de fato.¹⁷
.. As odes políticas e a Pentecoste
Como acenado, tomaram a frente do Adeli duas famosas odes políticas de Man-
zoni, Marzo  e Il Cinque Maggio. A primeira era uma expressão lírica do sonho de
um início de unificação da Península sob o comando do reino sabaudo, que em pouco
mais de um mês assumiu o papel de derrotado até as Cinque Giornate vinte e sete anos
depois; válida artisticamente, interessa-nos sobretudo por fazer eco aos coros do Adel-
i por ultrapassar, mesmo em uma luta na qual povos «combaono per diferendere /
o riconquistare / una patria», o contexto histórico em nome de uma concepção cristã
de existência.
Mais interessante, tanto artisticamente quanto pelo valor biográfico, é Il Cinque
Maggio, ode composta rapidamente pelo autor ao saber do falecimento de Napoleão
em de maio do mesmo ano: recusada pela censura austríaca, a ode é copiada e rapida-
mente se difunde em toda a Europa, sendo lida por Vieusseaux em Florença, Lamartine
na França e Goethe em Weimar, que no ano seguinte publica uma tradução alemã que
assegura o nome de Manzoni entre as discussões poéticas continentais.
Se Marzo  confirma o espírito do coral visto em Adeli, de certa forma Il
Cinque Maggio faz eco à impostação moral do Il Conte di Carmagnola: no máximo de
um ideal cristão, a vida é decifrada apenas a poucos momentos da morte. O imperador
¹⁷ «Che se le ricere le più filosofie, e le più accurate su lo stato della popolazione italiana durante
il dominio de’ Longobardi, non potessero condurre e alla disperazione di conoscerlo, questa sola di-
mostrazione sarebbe una delle più gravi e delle più feconde di pensiero e possa offrire la storia. Una
immensa moltitudine d’uomini, una serie di generazioni, e passa su la terra, su la sua terra, inosser-
vata, senza lasciarvi un vestigio, è un tristo ma portentoso fenomeno; e le cagioni di un tanto silenzio
possono dar luogo ad indagini ancor più importanti, e molte scoperte di fao.» [Manzoni (, p. )]

que fora terror da Europa é retratado sempre como opressor, mas não mais na condição
de vencedor. Sua soberba é punida no exílio atlântico, no ansioso desespero de quem
perdeu. Em especial, é o contexto histórico que toma agora frente ao aspecto interior.
No fundo, Il Cinque Maggio não deixa de ser um corolário à conclusão do Pentecoste
que, como lembrado, se somente no ano seguinte. Esta última, finalizada quando o
projeto do Fermo e Lucia se adiantava, é o melhor documento sobre o pensamento
religioso de Manzoni. Analisando os vários esboços para a Pentecoste com relação à
sua versão definitiva, e uma análise ecdótica desta evolução seria interessantíssima na
compreensão da formação de tal entendimento, a ritualidade litúrgica dos quatro pri-
meiros hinos diminui consideravelmente em sacralidade a cada revisão, e mesmo o
formalismo racionalista é vertido em uma contemplação mais desinteressada dos efei-
tos da fé. É assim que a Pentecoste se emenda ao I promessi sposi que vinha nascendo:
a religião cessa definitivamente de ser uma obrigação divina ou uma necessidade em
vistas do Além, postura que aliás seria claramente criticada no romance, mas passa a
ser uma forma de compreensão e vivência da realidade, uma expressão do embate ético
diário que deixa de ver em ditames catequéticos um modelo a ser seguido, ao contrário
encontrando um ponto comum em todas as experiências, grandes e pequenas, pessoais
e sociais. Uma concepção religiosa nas linhas do melhor Romantismo, mas que obvia-
mente se via exausta pelo limite da lírica e mesmo do drama, principalmente quando,
formalmente, ainda não havia em âmbito social e de qualquer modo seria impensá-
vel para Manzoni a aceitação para formas tão diferentes. A única alternativa seria a
adoção de uma forma nova de expressão que, não surpreendentemente, era inédita na
Itália: o romance seria o único gênero capaz de consentir uma evolução progressiva do
pensamento, capaz de dar ao leitor o tempo suficiente para deduzir a proposta do autor
com aquela mesma dose de empiricismo e de humanismo que derivara de seu avô.
.. O romance sem idílio da Providência: I promessi sposi
É precisamente este olhar sobre o trajeto operativo de Manzoni, particularmente na
gênese de I promessi sposi naquele inigualável ano de  que aliava os movimentos
políticos ao auge crítico de sua “tragédia histórica”, que permite compreender o interes-
sante funcionamento do romance, no qual a trama é ao mesmo tempo simples, quando
não banal e previsível, mas complexa na evolução das personagens e na participação de
suas inteligências e experiências anteriores no grande retrato histórico dado pela obra.
Tudo potenciado por uma nada inócua interferência de um autor falsamente ingênuo.

Aquilo que Lukács havia identificado na solução scoiana para o romance histó-
rico, a lembrada participação de personagens não famosas cujas limitadas vincula-
ções históricas permitiam explorar toda a realidade retratada, vale particularmente em
I promessi sposi em sua evolução a partir das tragédias históricas. Se nestas últimas
eram retratados em primeiro plano fatos e personagens reais, ou que ao menos eram
obrigados a manter tal vinculação com um olhar historiográfico sobre os mesmos no
que poderíamos definir “rigidez documentária”, o fator poético sendo reduzido à in-
venção de suas consciências que não sem motivos se acosta às propostas de White, no
caso do romance personagens e fatos históricos tornam-se um pano de fundo que evi-
dencia seus equivalentes ficcionais, conciliando assim a verdade correspondente dos
primeiros a uma mais fácil e mais artística verdade coerente dos segundos. De fato,
Manzoni descobre imediatamente e com surpresa uma facilidade inédita na minúcia
descritiva que lhe é aberta sem violar o verdadeiro histórico, movendo suas persona-
gens no vazio constantemente deixado pela pesquisa historiográfica, principalmente
no tocante às personagens alternas que tanto lhe eram caras. É uma dúplice vantagem:
pode-se explorar os fatores históricos esquecidos pela grande historiografia, como a
prepotência dos poderosos, ao mesmo tempo em que as lições da mesma investigação
permitem uma obra muito mais verossímil e costurada em sua simbiose entre história
e ficção de quanto o fossem não apenas aqueles romances históricos do século anterior,
que efetivamente pouco se importavam com a correspondência histórica, mas também
com as recém concluídas tragédias históricas nas quais todas as vozes humanas eram,
de qualquer modo, “verdadeiras”. Uma liberdade de ação que abriu caminho a uma
fina elaboração e uma liberdade de tal forma desmedida que, anos após, seria causa
exatamente das aflições do mesmo Manzoni teórico.
É esta faculdade plena que permite ao autor passar de um mero relator de fatos a um
pluripotente demiurgo, e é exatamente por isto que aquela história que vinha nascendo
se tratava de uma Storia milanese del secolo XVII que, como explicitado pelo narrador,
havia sido «scoperta e rifaa». Na verdade, é assim que se fazem sentir com maior
força os ecos jansenistas, pois ao caótico desenrolar histórico era finalmente dado um
sentido, da mesma forma como o final tipicamente trágico do Carmagnola e do Adeli
se voltava a um ledo final que, porém, como não poderia deixar de ser em um romance
deste tipo, era de qualquer modo simples e mesmo trivial: é para isto que podemos
adotar aquela genial fórmula de Ezio Raimondi de defini-lo um “romance sem idílio”¹⁸.
O importante material de pesquisa filológica deixado por Manzoni é útil ao revelar
¹⁸ Raimondi ()

em detalhes como ele próprio fora inicialmente surpreendido por esta liberdade que,
mesmo se antevista teoricamente, abriu com uma facilidade provavelmente inesperada
seus caminhos. Com efeito, a primeira redação do romance, então intitulado Fermo e
Lucia, é redigida entre abril de  e setembro de  em manuscritos que trazem tra-
ços patentes da ânsia laboratorial que acompanhou Manzoni nas inúmeras inversões,
incertezas sobre os caminhos a tomar e mesmo surpresas sobre as faculdades ofereci-
das. Um projeto que de certa maneira foi elaborado velozmente e que ia abrigando na
polifonia do romance inúmeras posturas de um autor que devia estar antevendo estar
frente à obra de sua vida: afinal, aquela primeira redação, que alguns hoje apreciam de
maneira superior àquela final, começava a se constituir como uma summa de todo seu
pensamento, rapidamente demonstrando-lhe como após a conclusão seria necessário
um cuidadoso processo de revisão. E efetivamente esta se mostrou mais longa que a
própria redação, empenhando-o até o ano de  quando a primeira edição da obra,
conhecida exatamente por Ventiseana e agora com o título de I promessi sposi, foi
publicada em Milão em  de junho.
Na passagem do Fermo e Lucia a I promessi sposi Manzoni preocupou-se profun-
damente não somente com a estrutura do romance, muito mais elaborada e polida
na versão final (ou, poderíamos dizê-lo com certa provocação à época retratada, mais
“barroca”), mas principalmente com a disposição linguística e a interferência histó-
rica e narrativa na trama. Afinal, se o Fermo e Lucia era um acúmulo nem sempre
habilmente costurado de ingredientes heterogêneos que enveredavam por caminhos
diversos frequentemente inconclusos, em I promessi sposi as arestas foram aparadas e
todas as superfícies polidas, numa operação que se constituiu muito mais na redução
do elemento “não histórico”, como a interferência excessiva do narrador, ou na substi-
tuição por elementos realisticamente mais convenientes. É assim que, de certa maneira
aproximando-se da proposta de uma multifacetada mas sempre única linha narrativa
(na qual o fundamental, como dissemos, era a história dos dois noivos separados, e
onde os elementos históricos ensinados pela erudição entravam como auxiliares pois
o romance agora se propunha a explicar aquela época complementando e não simples-
mente substituindo a história), a maior parte das narrações acessórias foram cortadas,
expandindo-se, mesmo em termos líricos, a profundidade de quanto fora relatado.
É assim que evoluía a cinematográfica abertura do romance ou o «addio ai monti» de
Lucia, ao mesmo tempo em que, para tomar os dois exemplos mais salientes, eram sub-
traídas as notas sobre as questões linguísticas (expandindo-se contudo a consideração
sobre o uso da língua como instrumento de dominação sobre os humildes) e princi-

palmente as páginas efetivamente mais historiográficas, sobre os processos milaneses
contra os untores, resumidas em poucos parágrafos no I promessi sposi mas que, a par-
tir da primeira versão no Fermo e Lucia, se transformariam naquela obra singular que
é a Storia della colonna infame.
Ainda assim, a principal diferença entre aquela obra publicada em  e o Fermo e
Lucia (inicialmente destinado somente à opinião privada de poucos e próximos amigos)
que fora seu gérmen é o fato de que, como lembra Tellini,
a voz do narrador que fala em primeira pessoa se objetiviza em um
romance que anima a própria substância conceitual nas figuras da nar-
ração. A presença do narrador-diretor é dissimulada por trás das câ-
meras, a ponto de tornar interna às situações a perspectiva que as orga-
niza. Não é a urgência do juízo declarado e do ensaísmo explícito, mas
um quadro que se resolve em escolhas narrativas autônomas. Muda
também o tom da ironia: não mais acre, mas ao mesmo tempo severa
e compreensiva; não mais agressiva mas pensativa, tanto que termina
por envolver também a primeira pessoa do autor.¹⁹
Consequentemente, mudava também o efeito provocado pela diversa narração de
uma trama que, a bem ver, é essencialmente idêntica entre as duas obras. A grande
arte de Manzoni esteve no executar aquela difícil tarefa que é o objetivo de todo grande
artista, literário ou não, no manter, ou mesmo evidenciar, sua postura ideológica sem
pronunciá-la diretamente, mas mediando-a pela transferência da mesma ao material
artístico, impregnando-o com a mesma. Continuando na exposição de Tellini, podemos
facilmente dizer como
o Fermo e Lucia é um romance que toma o leitor pela mão e lhe mos-
tra suas próprias aves interpretativas [, enquanto] I promessi sposi é
um romance que requer a colaboração ativa do leitor e lhe sugere uma
pluralidade de aves interpretativas. A narração se desfaz da ênfase
de um colorido por vezes oleográfico, para adquirir uma mais alusiva
polivalência de significados. Ao claro-escuro denso, muitas vezes pro-
nunciado em voz alta e dissonante, se substitui a técnica do sfumato
que mascara as tintas vivas demais, suprime as notas graves, remove
os particulares mais crus: não para esmaecer a matiz de contestação
mas para transformá-la, atenuando a magniloquência, em mais firme e
persuasiva.²⁰
¹⁹ «la voce del narratore e parla in prima persona si oggeivizza in un romanzo e anima la propria
sostanza conceuale nelle figure del racconto. La presenza del narratore-regista è dissimulata dietro le
quinte, da rendere interna alle situazioni la prospeiva e le organizza. Non l’urgenza del giudizio
diiarato e del saggismo esplicito, ma un quadro risolto in autonome scelte narrative. Muta ane
il tono dell’ironia: non acre, ma insieme severa e comprensiva; non aggressiva ma pensosa, tanto e
finisce con il coinvolgere ane la prima persona dell’autore.» [Tellini (, p. )]
²⁰ «[i]l Fermo e Lucia è un romanzo e tiene per mano il leore e gli esibisce le proprie iavi in-

A passagem do Fermo e Lucia à Ventiseana não concluiu, porém, o caminho de re-
visão em direção à versão final do romance: após aquela profunda mudança estrutural,
semântica e estilística, era ainda necessária, pelo papel que Manzoni esperava pudesse
ser revestido por sua narração dentro da literatura e da cultura italiana, uma não me-
nos árdua revisão linguística: trata-se da tão proclamada «risciacquatura in Arno», ou
seja, no reenxaguar e assim limpar aquele acúmulo de construções linguísticas em uma
postura linguística unitária e baseada no rio que saciara Dante, Boccaccio e Petrarca
bem como, por extensão, também Ariosto e Tasso. O início deste processo, que de ma-
neira admirável conseguiu efetivamente se limitar a intervenções linguísticas, começou
em , dois meses após a publicação da Ventiseana, quando Manzoni colocou em
prática a idéia formulada ainda durante as primeiras páginas do Fermo e Lucia de se
mudar para Florença onde a obra seria adequada ao uso linguístico culto e médio da
cidade²¹.
Um trabalho que de qualquer maneira se mostraria ainda mais lento que a primeira
e segunda redação do romance, e que à época da publicação, quando a história de Renzo
e Lucia era o maior sucesso editorial da Itália, não seria imediatamente apreciado
da forma como merecia. De fato, como costumeiro na produção de Manzoni, após o
entusiasmo dos primeiros meses, problemas pessoais e a dificuldade da própria opera-
ção fizeram com que esta fosse levada a término somente -, com a publicação
final da edição revisada apenas em .
Mas ao tratar do romance histórico interessa-nos principalmente o valor da obra
neste percurso de formação de Manzoni, quase um Bildungsroman iluminista, e parti-
cularmente em sua crise poética de , de forma a compreender mais profundamente
não apenas a gestação, mas a própria forma como o romance foi concretizado. Afinal,
no final de janeiro daquele mesmo ano Manzoni discutia em sua carta a Fauriel sobre
o Ivanhoe de Sco e a «réparation» que lhe parecia devida ao mesmo após uma nova
leitura, com um estado de ânimo muito mais justo do estado morboso da primeira en-
tre os salões parisienses. Talvez mesmo esta doença inicial tenha sido metafórica, e
Manzoni não deixaria de apreciar uma leitura nestas linhas, mas o fato é que na nova
terpretative. I Promessi sposi sono un romanzo e domanda la collaborazione aiva del leore e gli
suggerisce una pluralità di iavi interpretative. Il racconto depone l’enfasi di una coloritura talvolta
oleografica, per acquistare una più allusiva polivalenza di significati. Al iaroscuro denso, spesso gri-
dato e dissonante, si sostituisce la tecnica della sfumatura e vela le tinte troppo accese, elide le note
grevi, espunge i particolari più crudi: non per stemperare l’accensione contestativa ma per renderla,
smorzando la magniloquenza, più ferma e più persuasa.» [Tellini (, p. )]
²¹ Os motivos de Manzoni são referidos à questione della lingua e infelizmente demasiados longos e
complexos para expor no limite desta dissertação.

experiência vivenciava-se um salto entre as duas fases poéticas: as tragédias históricas
eram protagonizadas por pessoas e fatos reais, cabendo à invenção alguma interação
e a investigação de suas consciências; no romance tomavam a frente protagonistas e
fatos inventados, enquanto se cedia à verdade histórica a gestão das personagens co-
laterais, o pano de fundo da vivência histórica. Não que a verdade histórica, como o
fora em suas tragédias e como se podia ler em seus textos teóricos, não continu-
asse a ser o vetor indiscutível do romance, mas seu protagonismo era agora substituído
por uma função auxiliar de conceder à trama os requisitos de verossimilhança neces-
sários não apenas para dar credibilidade à invenção, mas principalmente para propor
com eficácia uma nova postura de interpretação da própria verdade. Era nesta prática
que Manzoni efetivamente superava seu mestre Sco, com um plano funcional que
se mostra particularmente válido ainda hoje, quando a experiência pós-modernista no
romance histórico parece estar tomando uma perspectiva de ligeira mas clara descen-
dência, destinando-se à resolução em si própria em maior ou menor tempo.
O salto de Manzoni se traduziu também em uma prática historiograficamente mais
responsável, pela arbitrária escolha das formas, modos e tempos de interação. Mas
se tratava também, como lhe seria caro, de uma prática mais responsável do ponto
de vista cristão, pois uma participação divina podia ser explicitada sem alterar-se ou
reinterpretar-se a história oficial, e principalmente sem apresentar um bem-estar con-
clusivo, ou mesmo um idílio conciliatório, como a única forma possível ou aceitável
para um final, se não propriamente positivo, ao menos não negativo. Como lembra
Tellini que tanto orienta este entendimento,
[o] deslocamento de perspectiva eleva o autor a demiurgo não contras-
tado, a autêntica “providência” de seu mundo criado em seu romance, e
assim lhe permite reescrever uma História milanesa do século XVII efe-
tivamente “descoberta e refeita” a seu bel prazer: para [assim] superar
a crueldade trágica da história verdadeira, para dar um sentido cons-
trutivo ao caos de uma realidade humana desagregada e informe, para
projetar com uma apaixonada aposta agonística um mundo diferente e
melhor. ²²
Neste aspecto, Tellini apenas confirmava quanto foi rapidamente percebido pela crí-
tica italiana em relação à obra. Como lembrado, naquela tradição literária, e exemplo
claro é a oposição às personagens, mais que históricas, “importantes” das tragédias do
²² «Lo spostamento di prospeiva promuove l’autore a incontrastato demiurgo, ad autentica “provvi-
denza” del suo mondo romanzesco, e gli consente perciò di riscrivere una Storia milanese del secolo XVII
davvero “scoperta e rifaa” a proprio piacimento: per superare la crudeltà tragica della storia vera, per
dare senso costruivo al caos di una realtà umana disgregata e informe, per progeare con appassionata
scommessa agonistica un mondo diverso e migliore.» [Tellini (, p. )]

próprio Manzoni, centrar uma narração sobre a dignidade humana em um fiador de
seda e uma camponesa soou aos olhares coevos um «comportamento paradoxal e de-
plorável»²³ no qual se elevava para além da medida do bom tom a polêmica antifeudal
do iluminismo lombardo, ainda por cima sublinhado, de maneira ora irônica, ora de
desprezo, por uma inesperada piedade por aqueles humildes que, de qualquer modo, se
revelava não apenas justificada, mas a única alternativa decente para uma ética cristã.
O próprio Sapegno sempre evidenciou, inegavelmente em relação às suas próprias
convicções político-ideológicas, como este «fermento polêmico» não pode absoluta-
mente ser considerado um elemento «secundário, marginal ou episódico» da obra, ou
ainda pior como uma «arbitrária e incômoda intromissão da ideologia religiosa do es-
critor» em uma narração que de tais notas poderia fazer a menos. Ao contrário, ele
participa de
toda a estrutura do livro e de cada particular seu; nele convergem e se
compõem fantasia e sentimento, invenção e reflexão, entram em acordo,
em um ritmo alterno, temperando-se mutuamente, os momentos e os
tons humorísticos e cômicos e aqueles trágicos eloquentes ou solenes.
Um igual impulso de alta e litigiosa tensão moral inspira a vivaz comé-
dia de uma personagem como don Abbonio, e, em um plano diametral-
mente diverso, a psicologia sutil, penetrante, intransigentemente reve-
ladora de Gertrude; anima a agitada, insistente descrição, toda em ave
irônica, dos tumultos milaneses e a dramática representação da miséria
e da peste. O moralismo juvenil do escritor, traduzindo-se em uma alta
e severa concepção religiosa, reconhece a si próprio neste momento e se
articula em uma matéria de outra maneira muito rica e concreta, sem
contudo nunca perder seu rigor e sua força de batalha. E aquela religi-
osidade, que desde o princípio foi e ainda é para muitos leitores motivo
de escândalo, de desconfiança e de tenaz antipatia, […] demonstra-se
em sua forma real, na história da criação poética, externa e acima à
ideologia particular do escritor, [como] o instrumento de uma inter-
pretação crítica, extraordinariamente nova e ativa naquele momento e
naquela sociedade[.] ²⁴
²³ «aeggiamento paradossale e deprecabile» [Sapegno (, p. )]
²⁴ «tua la struura del libro e ogni particolare; in esso convergono e si compongono fantasia e sen-
timento, invenzione e riflessione, si accordano, in un ritmo alterno, temperandosi a vicenda, i momenti
e i toni umoristici e comici e quelli tragici eloquenti o solenni. Un medesimo impulso di alta e combat-
tiva tensione morale ispira la vivacissima commedia del personaggio di don Abbondio, e, su un piano
diametralmente diverso, la psicologia soile, penetrante, spietatamente rivelatrice di Gertrude; anima
la mossa, incalzante descrizione, tua in iave ironica, dei tumulti milanesi e la drammatica rappre-
sentazione della carestia e della peste. Il moralismo giovanile dello scriore, traducendosi in una alta e
severa concezione religiosa, si riconosce ora e si articola in una materia ben altrimenti ricca e concreta,
ma senza perder nulla del suo rigore e della sua forza baagliera. E quella religiosità, e è stata fin dal
principio ed è tuora per molti leori ragione di scandalo, di diffidenza e di tenace antipatia, […] appare
per quello e veramente è, nella storia della creazione poetica, al di fuori e al di sopra dell’ideologia
particolare dello scriore, lo strumento di un’interpretazione critica, straordinariamente nuova e aiva
in quel tempo e in quella società[.].» [Sapegno (, p. )]

A eleição de personagens menores a protagonistas também exige uma diversa res-
posta terrena à maldade, que apenas superficialmente pode lembrar aquele estoicismo
que o bárbaro Adeli parecia ter herdado das Τὰ εἰς ἑαυτόν [Meditações] (séc. II d.C.),
de Marco Aurélio, certamente lembradas por Manzoni: ao contrário, os abusos não são
mais recompensados apenas no Além, mas exigem uma vontade, um esforço terreno de
oposição não conformista aos mesmos. De certa forma, e mesmo tendo presente a inter-
pretação que estas mesmas personagens fazem dos eventos históricos, o romance que
parece transcrito de uma narração em primeira pessoa e oral (provavelmente Renzo
que teria narrado sua aventura ao anônimo do Seiscentos, que a modificara com o
mesmo prazer dos escritores de cartas lembrados na trama pelo intelectual oitocentista)
é egoísta ao dar um valor maior e predominante àquele pano-de-fundo popular sobre o
retrato histórico ao qual pertence. Os trâmites «políticos, diplomáticos e bélicos», para
recuperar a afortunada expressão de Sapegno, são adendos do narrador Oitocentista
que deseja saciar sua própria fome historiográfica; mas a fisionomia daquela época é
dada pela participação pessoal e pequena das personagens e de suas minúcias narra-
tivas. Método de retrato que não é necessariamente negativo: ao contrário, é neste
tipo de narração, que segue o caminho da introspecção pessoal que somente o romance
como super-gênero literário foi capaz de alcançar, que mesmo os fatores históricos re-
almente importantes, como o domínio espanhol, a fome e a consequente revolta em
Milão ou a peste, perdem aquele olhar abstrato, aparentemente objetivo e desinteres-
sado, da historiografia “tradicional”, penetrando na trama agora literária como fatores
de modificação na vida das pessoas, principalmente os mais desafortunados a quem
cabe um aceitar ou um contornar, mas nunca um rejeitar, na única maneira pela qual
participam efetivamente da “história” tornando-se, como lhes é de direito, “históricas”.
Exatamente por este motivo Manzoni se afasta de um aparente coitadismo em sua
obra, fazendo com que aquela representação complexa e principalmente honesta de
uma sequência histórica não possa abrir mão das personagens grandes e importan-
tes, em última análise daquele mesmo tipo de elite que fora protagonista no Adeli
e, efetivamente, em toda a historiografia. Mas pela diferente ótica sua função é agora
subordinada e seu valor somente se revela quando cruzam suas linhas narrativas com
aquelas dos humildes que servem de protagonistas. Como lembra sempre Sapegno,
antes de enveredar por uma interpretação do papel da Providência no romance extre-
mamente comum e da qual, como se verá, discordo, talvez somente nestes casos
seja lícito falar de um resíduo não resolvido de intenções moralísticas.
[…] Mas quanto às outras personagens, […] trata-se exatamente daque-

las nas quais o fermento polêmico opera mais diretamente e de forma
mais nítida, seja quando encaram os aspectos ridículos, soberbos, arte-
fatos, barrocos, as formas vazias de uma sociedade pomposa e pedante;
seja quando protagonizam os malvados, os violentos que ignoram o
temor de Deus, os excluídos para os quais é praticamente impossível
qualquer redenção, imersos na lama de sua vildade, de sua abjeção, de
seus delitos: e aqui a polêmica estimula, e não atrapalha, a liberdade da
fantasia, o horror e o desprezo se transformam em perplexidade dramá-
tica e ajudam a penetrar mais profundamente, onde a imponência do
mal é percebida em termos de tragédia, permeada comoção, resgatada
pela piedade do poeta (a história de Gertrude, a morte de don Rodrigo),
e o cômico não mostra nada de pequeno ou caricatural, ao contrário se
espalha em páginas luminosas, que estão entre as mais hilárias, cordiais
e humanas do romance (don Abbondio, don Ferrante, donna Prassede).
²⁵
Tal mediação de forças aparentemente antitéticas se resolve em um dinamismo que,
no fundo, é o mesmo que havia sido expresso na Pentecoste, e também aqui Manzoni
não se engana ao alcançar um “idílio similar apenas por caminhos diversos. É assim
que o final da trama se afasta do poético e do pseudótico aproximando-se do histórico,
abandonando a consolação tipicamente fabulística da reparação de todos os danos e
da recuperação de uma ordem inicial em favor de uma verossímil continuação na qual
Renzo e Lucia, que sem a intromissão dos poderosos haveriam sido esquecidos pela
História, se destinam a uma pacata e novamente irrelevante vivência. É portanto ver-
dade que o romance se conclui nas linhas de uma telenovela, com os malvados punidos
ou convertidos e os bonzinhos em nova e ordenada situação; mas é também verdade
que o responsável por este final não é o narrador que está recuperando uma historio-
grafia antiga, mas sim aquele anônimo amanuense que é o autor desta trama. Tanto
é verdade que aquele Manzoni narrador é o primeiro a desconfiar da conclusão edi-
ficante e açucarada da trama, resumindo em poucas palavras e dando seu parecer
sobre a expectativa a construída da narração enquanto ria do fato que Lucia fosse feia
um final que no manuscrito original deveria ser mais longo, mais idílico e mais me-
lífluo. Tellini lembra como, naquela Introdução tão essencial à compreensão da obra,
²⁵ «è lecito parlare di un residuo irrisolto di intenzioni moralistie. […] Ma quanto agli altri perso-
naggi, […] sono proprio quelli in cui il lievito polemico opera più direamente e in modo più palese,
sia e incarnino gli aspei ridicoli, tronfi, artefai, baroci, le forme vuote di una civiltà pomposa e
puntigliosa; o sia e impersonino i malvagi; i violenti e ignorano il timor di Dio, gli esclusi per i quali
è presso e impossibile ogni redenzione, prostrati nel fango della loro viltà, della loro abiezione, dei
loro delii; e qui la polemica stimola, e non impaccia, la libertà della fantasia, l’orrore o il disprezzo si
mutano in drammatica perplessità e aiutano a penetrare più a fondo, onde la grandezza del male è sentita
in termini di tragedia, investita dalla commozione, riscaata dalla pietà del poeta (storia di Gertrude,
morte di don Rodrigo), e il comico non ha nulla di piccolo e di caricaturale, anzi si distende in pagine
luminose, e son tra le più ilari e cordiali ed umane del romanzo (don Abbondio, don Ferrante, donna
Prassede).» [Sapegno (, p. )]

o mesmo narrador havia por três vezes seguidas definido a história que narraria como
«bella», «[c]omo para dizer bonita demais, inverossimilmente pintada de rosa»²⁶.
Assim, desenvolvendo o mesmo crítico, I promessi sposi tem a aparência de uma
trama bela e quase banal, de um romancezinho de escritor principiante, mas é em ver-
dade uma contra-trama repleta de venenos²⁷. O anônimo seiscentista é o responsável
pela primeira, enquanto o narrador, com suas dúvidas sistemáticas pela história quanto
pela veridicidade do narrado, é quem se responsabiliza pela segunda. Não que este seja
um pessimista ou mesmo um ateu, ao contrário, mas a lógica empírica que herdava
de Manzoni não lhe permitia iludir-se frente uma Itália na qual, duzentos anos depois,
continuava a identificar os mesmos impulsos, os mesmos erros, as mesmas persona-
gens. Nisto nasce a força do romance, em «sua tensão dinâmica entre a esperança e
o desencanto: o sutil bifrontismo de uma obra ao mesmo tempo fácil e difícil, doce e
amarga, cordial e severa, límpida e complicada»²⁸.
É no fundo um jogo que se traduz não apenas no identificar o que é “história” e o
que é “invenção”, que como lembraria uma das vozes no Del romanzo storico é o fator
constante dos romances históricos, mas também no ponderar sobre o que pertence
à trama e o que à contra-trama. A própria Introdução não é uma premissa à obra
que possa dar indícios, mas sim parte integrante deste vaivém no momento em que o
narrador, que condena o documento original temática e formalmente, em seu idioma
oblíquo, dispõe-se “mesmo assim” a uma reprodução sob diferente forma que, é óbvio,
não se trata de reprodução mas ao máximo de imitação.
²⁶ «Come dire troppo bella, inverosimilmente colorata di rosa.» [Tellini (, p. )]
²⁷A discussão acerca de uma oposição entre “trama” e “contra-trama” será recorrente nas próximas
páginas, e expressa minha compreensão de uma característica de I promessi sposi reconhecida, e even-
tualmente criticada, desde suas primeiras resenhas: trata-se, como será desenvolvido, do fato de que à
mais superficial “trama” narrada (a história do casamento conturbado de dois noivos, dada pelo cruza-
mento de personagens aparentemente pouco desenvolvidas e resumidas na caracterização de “boas” ou
“malvadas”) soma-se uma quase obrigatória leitura do universo narrado por meio do cinismo do “vul-
garizador” do Oitocentos que deseja confundir-se com o autor Alessandro Manzoni. Não encontrei, em
âmbito narratológico, um termo comum e aceito para indicar esta “segunda linha narrativa” (que, é im-
portante lembrar, não se trata de uma diversa fábula, mas de uma diversa interpretação da mesma dada
justamente por sua específica organização tramática pela voz narrativa) além das costumeiras figuras
retóricas clássicas como a antífrase e, essencialmente, a ironia. Tellini, um dos autores principais no
fundamento de minha interpretação, emprega vários termos para se referir a esta característica, sendo
o mais comum o italiano contrafavola [contra-fábula], mas tal uso se opõe diretamente ao entendi-
mento mais difundido no Brasil, em última instância devido ao Formalismo russo e especialmente a
Boris Tomashevsky, para “fábula” e “trama”, a primeira sendo a sequência de eventos de uma narração
considerados em sua sucessão temporal de acordo com uma ordem causal e a segunda o modo, escolhido
pelo autor, de apresentar e organizar a narração destes mesmos eventos. O termo aqui empregado nasce
da conciliação entre a solução morfológica de Tellini e a terminologia narratológica corrente.
²⁸ «la sua tensione dinamica tra la speranza e il disincanto: il soile bifrontismo di un’opera insieme
facile e difficile, dolce e amara, affabile e severa, limpida e complicata.» [Tellini (, p. )]

O narrador, que a todos os efeitos e apesar de qualquer oposição narratológica é
Manzoni, não escapa de sua dupla influência iluminística e cristã ao se postar contrá-
rio àquele determinismo demonstrado pelo anônimo do Seiscentos que nos subtrai o
livre arbítrio. É a oposição de mais fácil verificação na obra: enquanto o original firma
todos os acontecimentos negativos da trama, inclusive aqueles históricos, como per-
turbações involuntárias e obrigatórias de uma ordem inviolável, como por exemplo a
peste, o narrador moderno intromete-se²⁹ sustentado pela razão e por sua investigação
histórica, da qual cita explicitamente fontes reais, na atribuição das culpas principal-
mente aos homens. É precisamente o caso da peste: embora no original componha
um indominável flagelo superior, mesmo para depois assumir uma função positiva no
restabelecimento da ordem inicial, a voz narrativa exterior e que literalmente “passa
a limpo a trama original, investiga com uma sanha rankeana os documentos histó-
ricos para demonstrar como a culpa havia sido muito mais dos homens que não se
mobilizaram contra ela mesmo avisados pela experiência e pela ciência. Não difere o
evento da Storia della colonna infame: se Manzoni efetivamente teve razão ao extraí-la
de sua narração maior por dissonar do elemento romanesco, a independência daquela
experiência narrativa ainda é, como veremos depois, viva a ponto de ultrapassar certas
dúvidas correntes relativas ao romance histórico.
A maior comprovação disto seja talvez o tão discutido papel no enredo, entre trama
e contra-trama, da Providência Divina, que muito críticos, principalmente antigamente
e sobretudo no âmbito de um catolicismo que se supõe ortodoxo, egaram mesmo a
considerar a verdadeira protagonista da obra. Esta posição é insustentável, mas da
mesma forma não se pode negar que a trama pode, de fato, ser resumida nas várias
invocações à Providência divina; contudo, «na trama fabulística, que é dirigida em
sua corrida de obstáculos em direção ao final feliz, as personagens invocam frequente-
mente e com prazer a Providência. Mas a nomeiam sempre em vão ou em uma acepção
indireta e de qualquer modo redutiva, quando não blasfema»³⁰.
Entre outros momentos, por exemplo, Renzo se confia à Providência antes de egar
à osteria (cap. XIV), para depois evocá-la mais duas vezes a um auditório que considera
seu pão roubado. O mesmo Renzo antes de egar a outra osteria, a de Gorgonzola, e
na beira do Adda (cap. XVI e XVII), pontilhando seu pensamento com louvores inte-
resseiros. Mas é principalmente na última osteria (sempre cap. XVII) , em território
²⁹Mas, cabe lembrar novamente, em medida muito menor de quanto o fizera no Fermo e Lucia.
³⁰ «Nella trama favolistica, e va spedita nella sua corsa a ostacoli verso il lieto fine, i personaggi si
appellano spesso e volentieri alla Provvidenza. Ma la nominano sempre invano, o in accezione gergale
o comunque riduiva, quando non blasfema.» [Tellini (, p. )]

vêneto, que sua relação com a Providência mostra-se inequívoca: ao sair do local, ele
entrega a um pedinte o pouco dinheiro que lhe restara, delegando o ato à benevolên-
cia divina. Gesto que, como decifra o narrador com aquele delicado sarcasmo típico
de Manzoni, mais que bondoso ou mesmo interessado, é incrivelmente oportunístico:
Renzo é incapaz de se subtrair àquela religiosidade mercantilista tão corriqueira, e na
qual Manzoni não podia ver mais que uma degeneração do Cristianismo, na qual se
instaura com o transcendente uma relação quase contratual típica de culturas de troca.
Na prática, a uma ajuda subentende-se uma recompensa, que no desenrolar da trama
realmente parece se concretizar para a satisfação de seu autor: o caminho até o primo
Bortolo, em direção àquela que seria sua terra de emigração, é tranquilo, plácido, e do
parente recebe promessas de um futuro estável e de uma ajuda monetária na qual reco-
nhece, com plena satisfação, a contraparte da Providência naquele peculiar escambo.
Esta particular noção de ação da Providência, que não passa de uma extensão das
relações de força existentes no mundo real, é não raro a concretização de uma forma
de violência. Talvez não seja evidente a partir dos pontos de vista singulares de cada
personagem da trama, mas é manifesta pela ótica afastada e global do narrador em sua
contra-trama. Não exemplo melhor que o voto de virgindade feito por Lucia durante
sua aflição no castelo do Innominato, e principalmente sua racionalização quando ela
se encontra na casa do alfaiate (cap. XXIV), passado o risco e o medo que a haviam
motivado. Como lembra sempre Tellini, neste momento Lucia
está angustiada pela memória do voto que reaflora improvisadamente
e a deixa abatida, mas [logo] se assusta com seu arrependimento e
confirma a promessa. Mais que isto, [ela] na distância de Renzo
uma disposição calculada pela Providência e imagina, a cândida Lucia,
que aquele seja o momento de encarregar-se de fazer com que também
Renzo se conforme. Os desenhos divinos se subordinam aos tortuosos
manejos de uma consciência tão meiga quanto exigente. O voto tradu-
ziu a ansiosa e supersticiosa religiosidade de Lucia em um ato de ini-
bição sacrificial que é também um ato de involuntária mas igualmente
culpável violência sobre Renzo o que observa imediatamente padre
Cristoforo no cap. XXXVI) e a Providência é invocada como interme-
diária de um abuso. ³¹
Não menos interessante é a acepção de Providência nas personagens negativas ou
³¹ «è angosciata dalla memoria del voto e riaffiora all’improvviso e la lascia costernata, ma si spa-
venta del suo pentimento e conferma la promessa. Vede anzi nella lontananza di Renzo una calcolata
disposizione della Provvidenza e immagina, la candida Lucia, e si debba ora prendere l’incarico di fare
in modo e ane Renzo si rassegni. I disegni divini soostanno ai tortuosi maneggi di una coscienza
mite quanto esigente. Il voto ha tradoo la trepida e superstiziosa religiosità di Lucia in un ao di ini-
bizione sacrificale e è ane ao di involontaria ma ugualmente colpevole violenza verso Renzo (lo
osserva subito padre Cristoforo nel cap. XXXVI) e la Provvidenza è invocata come intermediaria di un
sopruso.» [Tellini (, p. )]

neutras como don Abbondio que, ao saber da morte de don Rodrigo (cap. XXXVIII),
agradece aos céus pelo envio providencial daquela peste cuja única função, ao que se
entende, era salvar-lhe a pele com o tributo de algumas tensões e temores. Ao mesmo
tempo, é sob uma ótica ainda mais sacrílega que a Providência é retratada nas palavras
de um “não humilde” como don Gonzalo, o governador espanhol de Milão, quando é
informado (cap. XXVIII) sobre a peste trazida pelos lansquenetes. A utilidade política
é ponderada como mais valiosa que as perdas humanas invariavelmente decorrentes, e
além de tudo lavam-se as mãos atribuindo à mediação, quando não mesmo à vontade,
divina a irresponsabilidade política na qual efetivamente residia a causa.
Por isto muito mais que um romance de Providência, como muito foi lido por aquela
piegas interpretação católica que Manzoni odiaria e que Camilleri acusava, ou uma his-
tória adocicada de bibliotecas para moças, I Promessi sposi veste a máscara de sua trama
inocente sobre personagens discutíveis e por isto humanas e verossímeis, as quais par-
ticipam da religiosidade, o maior e talvez único denominador social, de uma maneira
parcial e interesseira, e de qualquer modo valendo-se de uma Providência «dogmática
e mecanicista», como uma ajuda que intervém do externo o desejo de um deus ex
maina «para defender com entusiasmo o final feliz, seu próprio final feliz»³². A opo-
sição a esta prática da trama de lançar mão egoisticamente de seus desígnios, e na qual
reside o o verdadeiro componente “histórico” daquele “romance histórico”, é eviden-
temente dada pela contra-trama daquele narrador serioso e sarcástico, mas também
preocupado, que ao contrário nunca a nomeia em vão. Afinal,
[e]m seu estranhamento de consciência crítica, ele rejeita o idílio eva-
sivo da Providência e ao mesmo tempo rejeita o uso instrumental de
uma Providência tranquilizante e resolutiva, não menos fabulosa e não
menos desconfiável da fábula romancesca. São os protagonistas, e não o
narrador, a interpretar os acontecimentos como um benéfico dom pro-
videncial. A antifábula de I Promessi sposi, com seu aparente final feliz,
pressupõe uma Providência problemática e imperscrutável que deixa
sua marca na responsabilidade ética do indivíduo. Esta não é um con-
ceito de categoria e metafísico, mas sim humano. Muda com o mudar
das culturas e das situações, com o diferente emprego da racionalidade
por parte de cada um: mas de qualquer modo transforma o abstrato
ser social em uma “pessoa”. […] O papel [desta moral] não é de fim,
mas sim de instrumento, que torna ainda mais penetrante e intensa a
análise psicológica e favorece a busca pelo natural, pelo concreto, pelo
verdadeiro, na escolha dos objetos e do modo de representá-los.³³
³² «dogmatica e meccanicistica, come un soccorso e interviene dall’esterno a perorare il lieto fine,
il loro lieto fine.» [Tellini (, p. )]
³³ «Nel suo straniamento di coscienza critica, egli rifiuta l’idillio evasivo della Provvidenza e al tempo
stesso rifiuta l’uso strumentale di una Provvidenza tranquillizzante e risolutiva, non meno favolosa e

A força da adoção do romance histórico aparece assim na manipulação agora ilu-
soriamente divina da trama, como supõe o seiscentista de um período, por assim dizer,
“pré-histórico, que também se engana em suas ideias sobre religião, ética e mesmo em
seu cientificismo imberbe que, no terreno de uma industrialização crescente, ega a
se tornar ridículo. São as personagens em movimento a manipular aquela trama, e por
extensão a história, inclusive nos momentos de inconsciência e nos quais se revelam
incapazes de antever as consequências de suas ações, que estão inseridas naquilo que
Tellini definiria como «sofismas» de seus desejos e de suas paixões.
Portanto, a força de I promessi sposi não está unicamente na profunda polifonia,
pessoal, diafásica e diastrática, esboçada pela linguagem das personagens, mas também
no fato de que cada uma destas expressões adquire ao menos duas opostas valias no
jogo romanesco entre trama e contra-trama. É uma constante violência entre o que
é (ou, em nosso universo literário, foi) dito e subentendido no manuscrito original,
que por sua vez reportaria fatos reais, e quanto retomado pelo texto oitocentista, na
expressão precisamente de multifacetadas formas da violência, não apenas explícitas de
superiores sobre inferiores, e certamente não unicamente corporal, mas principalmente
daquelas mais implícitas e ambíguas.
É nesse sentido de violência que podemos compreender, no fundo, toda a força mo-
triz da narração: como dito, é particular por ser a revelação da história de dois pobres
camponeses que, de outra maneira, teriam sido definitivamente esquecidos pela me-
mória. Afinal, a partida para a série ininterrupta de violências que pontilha o romance
é o primeiro e quase infantil abuso de Don Rodrigo, sua “aposta” sobre um «casamento
que não se deve fazer» que turbilhona, do alto de seu posto de comando, as vidas que
se destinavam a serem simples, pacatas e lineares daqueles dois noivos, fator que se
agrava quando, ao sabermos da pouca beleza de Lucia, finalmente se entende que seu
ímpeto era puro despeito e não mera atração sexual.
É um jogo de consequências: a aposta de Don Rodrigo se transforma na coação
pela força física dos bravi, à qual se segue o abuso de poder e de domínio da língua do
non meno inaendibile della fable romanzesca. Sono i protagonisti, non il narratore, a interpretare
le vicende come benefico dono provvidenziale. L’antifavola dei Promessi sposi, con il suo apparente
lieto fine, presuppone una Provvidenza problematica e imperscrutabile e lascia il proprio segno nella
responsabilità etica dell’individuo. esta non è conceo categoriale e metafisico, bensì umano. Muta
con il mutare delle culture e delle situazioni, con il vario impiego della razionalità da parte di ciascuno:
ma trasforma in ogni caso l’astrao essere sociale in “persona”. […] La sua funzione [di questa morale]
è, non di fine, bensì di strumento, e fa più penetrante ed intensa l’analisi psicologica e asseconda
la ricerca del naturale, del concreto, del vero, nella scelta degli oggei e nel modo di rappresentarli.»
[Tellini (, p. )]

violentado don Abbondio sobre Renzo. Este ainda sofre um ulterior abuso, por parte do
advogado Azzeccagarbugli como o prelado representa aqueles serviçais que talvez mais
nos provoquem indignação por servirem de instrumentos abusivos entre os poderosos
e os oprimidos, e que talvez por isso sejam figuras mais vivas do que os protagonistas.
Lembrando as palavras de Alberto Moravia que, mesmo referindo-se ao elemento local
italiano, assumem um valor universal na compreensão destas interações narrativas,
após ter sido […] um dos maiores livros de nossa literatura, I promessi
sposi está se encaminhando a tornar-se, de uma maneira que teria sur-
preendido seu próprio autor, o espelho da Itália contemporânea. De
fato, o romance de Manzoni reflete uma Itália que, com algumas vari-
antes não essenciais, poderia ser aquela de hoje: a religião de I promessi
sposi se assemelha, em muitos aspectos, àquela da Itália moderna; a so-
ciedade que nele é descrita não é tão diferente da nossa; os vícios que
nele se condenam e as virtudes que se favorecem são os mesmos ví-
cios que nos afligem, as mesmas virtudes que pensamos seja bom nos
aconselharmos. ³⁴
Vícios e virtudes que, em um moralista da estirpe de Manzoni, não se limitavam
unicamente à voz dos poderosos; o reconhecimento dos erros e imperfeições presentes
naquele grupo social ao qual, em última instância, o autor pertencia não lhe impede
de apontar as falhas, em ocasiões ainda mais graves por serem frequentemente auto-
lesivas, de outros. É assim que deve ser entendida a maquinação do famoso capítulo
VIII, do casamento forçado pelo engano, as páginas mais rápidas do romance, onde se
desenvolve em paralelo seja a violência rude dos bravi de Don Rodrigo, seja a astú-
cia mal-sucedida dos camponeses, da qual é importante destacar como, novamente, o
papel de Lucia está bem longe da submissão alienada que lhe foi atribuída. Sempre
Tellini lembra como neste ponto o narrador, que em outros momentos cruciais da trama
costuma ser bastante sibilino, se permite pausar a narração para expor com suficien-
tes detalhes o tipo de engano que aquela ação, para os noivos plenamente justificável,
escondia:
No meio dessa balbúrdia, não podemos deixar de deter-nos um instante
e fazer uma reflexão. Renzo, que fazia barulho de noite em casa alheia,
que ali se introduzira sorrateiramente e mantinha o próprio dono da
casa assediado num quarto, tem toda a aparência de um opressor; e
³⁴ «dopo essere stato […] uno dei più grandi libri della nostra leeratura, I promessi sposi stanno
avviandosi a diventare, in una maniera e avrebbe meravigliato lo stesso autore, lo specio dell’Italia
contemporanea. Il romanzo del Manzoni riflee, infai, un’Italia e, con alcune varianti non essenziali,
potrebbe essere quella di oggi: la religione dei Promessi sposi rassomiglia, per molti aspei, a quella
dell’Italia moderna; la società e vi è descria non è tanto diversa dalla nostra; i vizi e vi sono
condannati e le virtù e vi sono additate sono gli stessi vizi da cui siamo afflii, le stesse virtù e si
crede di doverci consigliare.» [Manzoni ()]

no entanto, no final das contas, era ele o oprimido. Dom Abbondio, co-
lhido de surpresa, posto em fuga, apavorado, enquanto atendia tranqui-
lamente aos seus negócios, pareceria a vítima; todavia, na realidade, era
ele quem cometia uma injustiça. Assim é frequentemente o mundo…
quero dizer, assim era no século dezessete. ³⁵
Não nos é necessário elencar todas as violências que compõem o tecido na obra, da
advertência que soa a maldição de padre Cristoforo a Don Rodrigo ao hermetismo do
citado Azzeccagarbugli, substituindo a leitura da obra. Mas é todavia necessário tra-
zer ao menos de duas outras violências cruciais no cruzamento da urdidura histórica
com a trama ficcional. A primeira é a peste, que longe de ser uma violência natural ou
mesmo divina, como a maioria das personagens entende, se lembrou ser um fruto
violento da incapacidade de uma classe dirigente que não se deixa iluminar pela diplo-
macia primeiro e pela ciência depois. Ignorância que, de qualquer modo, novamente
não é exclusiva da classe dirigente, ao contrário: se a egada da peste em Milão é cau-
sada pela ignorância, o comportamento destrutivo da população se havia mostrado
claramente nos saques às padarias, para os quais também Renzo buscava uma raciona-
lização que os justificasse. Era uma manifestação clara de uma “cegueira moral” que
Manzoni também entende, mas por seu lado nunca justifica. Por igual ótica devem ser
vistos os monai que recolhem e assaltam os cadáveres naqueles capítulos tão apre-
ciados por Edgar Allan Poe e no núcleo da bela Storia della colonna infame, em seu
retrato de um povo impaciente por culpados e que se perverte no comportamento de
um populao vil e assustadoramente humano. Não apenas peca, mas cede à «infâmia»
de vangloriar-se de suas culpas.
Contudo, a violência mais horrenda é a manipulação psicológica do “romance den-
tro ao romance de Gertrude. Apesar desta ser uma das passagens mais envenenadas
do romance, o egoísmo do príncipe espanhol não consegue esconder sua comoção ho-
nesta no momento em que a filha resolve fazer os votos monásticos; no carinho que
imediatamente lhe demonstra não deixamos de ver, estupefatos, uma das afeições mais
sinceras da obra quando mesmo um “poderoso se descobre violentado por uma prática
cultural cega à qual não pode se subtrair.
Em suma, cabe fazer eco ao final da exposição interpretativa de Tellini, segundo o
qual
³⁵ «In mezzo a questo serra serra, non possiam lasciar di fermarci un momento a fare una riflessione.
Renzo, e strepitava di noe in casa altrui, e vi s’era introdoo di soppiao, e teneva il padrone stesso
assediato in una stanza, ha tua l’apparenza d’un oppressore; eppure, alla fin de’ conti, era l’oppresso.
Don Abbondio, sorpreso, messo in fuga, spaventato, mentre aendeva tranquillamente a’ fai suoi,
parrebbe la viima; eppure, in realtà, era lui e faceva un sopruso. Così va spesso il mondo… voglio
dire, così andava nel secolo decimo seimo.» [Manzoni (, p. )]

[a] humanidade que Manzoni examina é um emaranhado escuro de im-
pulsos e desejos que não afloram à luz da consciência, um confuso no-
velo de paixões de êxitos imprevisíveis. Mas o narrador não favorece
o fascínio estetizante do não conhecível, o gosto pelo mistério. Deles
extrai a ambiguidade fugaz, com angústia, estupor e misericórdia. Da
intrincada gama da violência o romancista investiga as origens e as mo-
tivações secretas, que sempre nascem na ausência da responsabilidade
moral, no sono da razão. Ao espetáculo das violências o constante
contraponto da necessidade de entender, da revane de quem deseja
entender o porquê de ter acontecido o que aconteceu: trata-se de um
empenho em não conformar-se com a negatividade do viver. […] I Pro-
messi sposi não são a epopeia da Providência, nem da esperança con-
fiante na segura epifania da justiça. Talvez se peque de menor aproxi-
mação caso se desenhe a trama e contra-trama de Renzo e Lucia como
o romance da consciência investigadora, do dever paciente de resistir
ao movimento da “irracionalidade humana, como conquista de uma
salvação sempre instável, a ser merecida dia após dia. ³⁶
É neste entendimento que se explica I promessi sposi de forma muito diversa de
uma tradicional “imitação ao modelo scoiano. Em um Manzoni que sempre descon-
fiou da capacidade do romance histórico, sua adoção, ultrapassando o plano formal
e linguístico, assume um valor particularmente moderno, mesmo contemporâneo, em
relação à prática de Sco para quem, muitas vezes nos esquecemos, o romance histó-
rico fora primeiramente uma bem sucedida e quase ocasional cash cow, uma vaca a ser
ordenhada até a última gota de leite por um autor que antes passara por sérias priva-
ções econômicas. Mas para Manzoni o sucesso financeiro e mesmo a fama significavam
pouco.
Ao contrário, nele o gênero do romance histórico (ao qual se seguiu a lembrada
análise e revisão da forma linguística) se torna uma tentativa, logo dada por incapaz,
de exprimir esta novidade de conteúdo. Trata-se de sua grande lição para qualquer
experiência corrente, bem como uma forma de entender porque a mera imitação dos
modelos do Oitocentos, como podemos facilmente perceber, é extremamente eficaz
como solução de entretenimento e mesmo de “arte pela arte, mas deixa sempre um
³⁶ « L’umanità e Manzoni scruta è un buio groviglio di impulsi e di desideri non affiorati alla luce
della coscienza, una confusa matassa di passioni dagli esiti imprevedibili. Ma il narratore non asseconda
il fascino estetizzante dell’inconoscibile, il gusto del mistero. Ne rileva l’ambiguità sfuggente, con an-
goscia, stupore e misericordia. Dell’intricata gamma della violenza il romanziere indaga le origini e le
motivazioni segrete, e scaano sempre in assenza della responsabilità morale, nel sonno della ragi-
one. Lo speacolo delle violenze è costantemente contrappuntato dal bisogno di capire, dalla rivincita
di i vuole rendersi conto del peré sia potuto accadere ciò e è accaduto: si traa di un impegno a
non rassegnarsi alla negatività del vivere. […] I Promessi sposi non sono l’epopea della Provvidenza,
della speranza confidente nella sicura epifania della giustizia. Si pecca forse di minore approssimazione
se si designa la favola-controfavola di Renzo e di Lucia come il romanzo della coscienza investigante,
del dovere paziente di resistere all’onda dell’“irragione” umana, come conquista di una salvezza sempre
instabile, da meritarsi giorno per giorno.» [Tellini (, p. )]

sabor de ausência de contemporaneidade, de efeito e consequência em nossas vidas. É
uma lição que está longe de ser exaurida, e da qual retomo brevemente a análise no
Epílogo deste trabalho, junto à defesa desta disposição de estudar não apenas o “como,
mas principalmente o “porquê” dos fenômenos literários.
.. Final da vida
A vida de Manzoni após a publicação da versão de - de I promessi sposi é
bastante interessante, mas pouco útil à nossa análise. Basta, a título informativo, saber
que a uma cada vez maior participação política se acompanhou um esgotamento total
da prática artística (seu romance é, literalmente, a conclusão de sua carreira) e algu-
mas poucas experiências teóricas. Entre estas, as únicas verdadeiramente necessárias
de lembrar são o Dell’invenzione, sobre o papel da criação nas obras literárias, e princi-
palmente o ensaio Del romanzo storico, analisado na próxima seção e que neste trabalho
apresento aquela que, até onde sei, constitui sua primeira tradução ao português.
De qualquer modo, cabe lembrar que  se encerra a publicação daquela defini-
tiva versão do romance, a amada arantana, acompanhada em apêndice pela Stora
della colonna infame. Os custos da publicação ficam a cargo do autor, e o êxito é de tal
maneira desastroso a ponto de nunca se recuperar economicamente de tal empresa: a
versão anterior circulava amplamente mesmo em cópias não autorizadas (Manzoni
foi um dos primeiros autores a mover e vencer processos por direitos autorais de uma
obra literária, outro fator que o coloca indiscutivelmente na esfera moderna da litera-
tura) e a procura pela luxuosa nova edição foi mínima. As primeiras representações
teatrais de suas tragédias também estiveram longe de alcançar o sucesso esperado, e
as mortes de Fauriel (em ) e de vários familiares em um curto arco de tempo pa-
recem assentar definitivamente seu pessimismo e sua solidão, tornando-se cada vez
mais propenso a ataques neuróticos. Em de janeiro de , aparentemente durante
um destes ataques, tropeça na saída de uma igreja reportando um grave traumatismo
craniano; após quase cinco meses de agonia, expira em sua casa na presença dos dois
únicos filhos ainda vivos dos nove que vira nascer. No aniversário da morte celebra-se
uma missa solene que, para todos os efeitos, estabelece o autor como um dos primeiros
heróis da recém unificada nação italiana.

. A teorização manzoniana sobre o romance histórico
Como disse Sandra Bermann, a primeira tradutora do ensaio ao inglês, a motivação
para traduzir Del romanzo storico é simples: aquele de Manzoni é reconhecidamente
o mais importante ensaio do século XIX sobre o romance histórico. Além disto, é um
exemplo raro de um comentário crítico, e neste caso difidente quando não detrimental,
de um autor em relação à sua obra, coroando com um final inesperado (quase podería-
mos amá-lo de “anti-clímax”) o percurso inicialmente otimista do autor em direção
a uma articulação entre a verdade histórica e a poética (ou eventualmente, conforme
apontado no capítulo anterior, uma verdade pseudótica).
O Del romanzo storico é diferente dos anteriores ensaios de Manzoni por uma me-
nor qualificação como teoria literária que, exatamente por se afastar do imediato de sua
época, faz dele a mais válida de suas discussões teóricas. Contudo, aqueles mesmos tex-
tos, nas discussões sobre a melhor estrutura para a tragédia histórica, nas inadequações
ao moderno das unidades clássicas ou na definição do Romantismo, são um documento
importante não somente do percurso do autor, mas do quase licencioso caráter de res-
posta que o último ensaio assume ao justificar a prática do romance histórico. É, por
exemplo, essencial saber como Manzoni, na Lere à M. Chauvet, distinguia a escrita
histórica da poética, aqui excluída nossa noção de pseudótica por ele nunca praticada,
por meio de uma sutil diferenciação de campos, cabendo ao historiador a história, o
“fato, e ao poeta os interstícios da história no qual encontrava o de todo o drama
romântico.
Não menos importante é lembrar como Manzoni se associava explicitamente ao Ro-
mantismo, ou ao menos ao seu Romantismo, na carta a outro crítico, Cesare D’Azeglio,
publicada sob o título de Sul romanticismo. Nesta, o movimento era definido pela re-
jeição às unidades clássicas, por serem empiricamente inaceitáveis, às mitologias, por
sua «idolatria das paixões», e à prática da pura imitação, pois afirmava que todo grande
autor sempre se distinguira precisamente por sua originalidade em relação ao sistema
literário no qual se inscrevia. Ainda mais importante era sua defesa do único ponto
comum a toda a produção romântica: o fato de identificar na “verdade, possivelmente
desconhecida, a fonte para um prazer «nobre e duradouro». Contudo, lembrava Man-
zoni, a “verdade não residia apenas na correspondência com o mundo fenomenológico,
mas podia ser encontrada, como evidenciado tipograficamente, até mesmo na fábula.
Era sobre estes alicerces que seriam erguidos o Fermo e Lucia e o I promessi sposi.

Mas o longo processo de redação, que além de tudo se encerrava no início daquele
que seria o período mais sombrio de sua vida, sujeitou-o a não poucas dúvidas sobre
a possibilidade do romance histórico, particularmente com a proliferação e decadência
qualitativa do gênero entre  e .
A prova da crescente angústia de Manzoni com esta forma artística é precisamente o
Del romanzo storico, que ao mesmo tempo constitui um julgamento e um elogio fúnebre
do gênero. Julgamento que ocorre de maneira talvez inesperada, pois, adiantando em
cem anos algumas das que seriam as preocupações centrais da Estética de Recepção,
Manzoni amava em causa o leitor como poucas vezes fora feito, em seu papel não
apenas de receptor da obra literária em si mas como parte ativa da discussão artística.
É assim que após a referência inicial a Cícero, no conhecido diálogo De legibus entre
intus e Marcus acerca do problema da diferenciação entre a verdade histórica e
a poesia, o leitor é posto na condição de espectador de um debate sobre o romance
histórico para, tão rápida quanto sutilmente, tornar-se testemunha e finalmente juiz
das possibilidades e das dúvidas de um Manzoni teórico que, e não se tratava de um
mero artifício retórico, estava distante do Manzoni autor de I promessi sposi. Sua
modernidade não está unicamente no entregar o fardo do julgamento ao leitor, mas
principalmente no fato de por si reconhecer a constante a que tenho aludido de
um encontro entre o “histórico” e o “ficcional”. Pede-se assim ao leitor que julgue
não apenas a legitimidade do romance histórico em geral (e daquele manzoniano em
particular), mas de todos seus ancestrais literários, cada qual segundo os padrões e as
exigências de seus contextos específicos.
O ensaio é dividido em duas partes e se abre com a exposição das duas principais, e
antagônicas, críticas ao romance histórico: por um lado, o fato de que segundo alguns
leitores falharia em sua proposta de instruir, por não distinguir clara ou suficientemente
entre o que é histórico e o que é inventado, resolvendo-se efetivamente em uma confu-
são, quando não em um embuste. Por outro lado e para outros leitores, é negativo o fato
de que a mesma distinção, insuficiente para os primeiros, seja todavia excessiva, elimi-
nando assim aquela «unidade narrativa fundamental ao prazer estético» por pontilhar
o texto de indícios sobre quanto seria fruto de documentos históricos, e quanto fruto
da invenção do autor. De maneira talvez surpreendente, Manzoni não busca uma con-
ciliação, mas ao contrário reconhece a validade de cada crítica antes de encontrar no
relato puramente historiográfico, livre mesmo de especulações e admissões de dúvidas,
a única fonte desejável de conhecimento histórico, afinal ao somar as críticas

a condenação é total, pois apesar do gênero ter iniciado em boa imi-
tação horaciana dispondo-se a instruir e deleitar seus leitores, no final
se mostra incapaz de ambos. O romance histórico é em última análise
“somente uma espécie de um gênero falso que inclui todas as composi-
ções que tentam misturar história e invenção”. Como qualquer espécie
defeituosa, não é destinado a uma longa vida; o fato de ser “a mais
moderna, […] refinada e engenhosa” destas espécies não tem nenhuma
consequência. ³⁷
A alternativa, a única forma de conciliar história e invenção, aqui entendida como
o elemento poético e pessoal de cada escritor, é a própria História. A solução para
este aparente paradoxo está na distinção que Manzoni traça dentro da “história” en-
tre a “narrativa histórica”, por um lado, e a “narrativa verossímil”, por outro. Mesmo
descontando-se a incerteza sobre a pesquisa histórica ensinada pelo Novecentos, que
se tomada radicalmente invalidaria a maior parte do discurso de Manzoni em poucas
palavras, sua postura é interessante por adiantar alguns parâmetros narratológicos e
discursivos que ainda continuam intensivamente explorados. Mais do que uma possi-
bilidade para se comprovar sua eficácia, o que se deduz no discurso de Manzoni é que
a diferença entre o histórico e o verossímil é uma diferença de pontos de referência
de autor e público: a narrativa histórica é uma narrativa abstrata, lapidar, em terceira
pessoa, com a aparência de um discurso escrito por ninguém e para ninguém; a narra-
tiva verossímil é a narrativa direta, eventualmente dialética, de um autor, geralmente
implícito, a um público, nem sempre bem definido. Referindo-se a este jogo entre o
histórico e o verossímil, Bermann lembra como Manzoni considera
tal interação menos como uma questão de análise objetiva e linguística
e mais de integridade filosófica. Em sua visão, as formas retóricas são
legítimas somente quando correspondem precisamente a seus respecti-
vos planos de verdade ou um fato verificável ou uma essência ideal.
³⁸
O romance histórico é condenado não por sua louvável proposta de integrar instru-
ção e deleite, mas por sua incapacidade de alcançar qualquer um dos objetivos. Decorre
um elogio à prática de alguns historiadores, como Vico, Voltaire, Muratori, ierry e
Fauriel, que souberam conciliar de maneira muito mais eficaz o histórico e o verossímil
³⁷ «Taking the criticisms together, the condemnation is total, for while the genre may have set out
in good Horatian fashion to instruct and delight its readers, in the end it can do neither. e historical
novel ultimately is “but a species of a false genre whi includes all compositions that try to mix history
and invention. Like all su flawed species, it does not have long to live; the fact that it is “the most
modern […] refined and ingenious” among them is of no consequence. » [Bermann (, p. )]
³⁸ «su interplay to be less a question of objective, linguistic analysis than of philosophical integrity.
In his view, rhetorical forms are only legitimate when they correspond precisely to their respective
planes of truth either verifiable fact or ideal essence. » [Bermann (, p. )]

por meio de um cuidadoso uso da linguagem, resultando de uma honestidade que não
sacrificava a unidade ao deleite.
Nessa característica da boa historiografia reside a diferença com o romance histó-
rico, no qual Manzoni analisa os componentes histórico e verossímil em bem diversa
luz: sua estratégia retórica real é diversa da oficial, pois apesar da aparente historici-
dade o romance histórico permanece sendo, no fundo, apenas invenção. Era na prática
uma prévia da opinião que Lukács teve sobre os romances anteriores a Sco (como o
Scudéry que também Manzoni cita), e que portanto lhe permitia antever os caminhos
futuros do gênero do romance, pois
[n]a medida em que Manzoni observava as numerosas traduções e imi-
tações de Walter Sco, podia notar como em larga medida história e
invenção estavam operando juntas sob um manto de histoire, de uma
forma que, a partir de uma perspectiva contemporânea, parecia prefigu-
rar habilmente a objetividade do grande romance realista que o seguiria.
³⁹
Mas Manzoni também reconhecia como esta dificuldade não era exclusiva do ro-
mance histórico que precisamente pela presença de uma história de motivação cientí-
fica talvez mais se aproximasse de resolvê-la, apesar de ainda se mostrar incapaz. É
assim que à analise sincrônica do romance histórico de sua época, em especial à ca-
pacidade de conciliação do I promessi sposi, segue-se uma segunda parte de análise
diacrônica deste tipo de encontro, como foi dito uma história da literatura sui generis
na qual o romance histórico é apenas uma etapa da longa tradição narrativa iniciada
nas épicas populares e orais como as de Homero.
É precisamente no exemplo histórico do passado que reside a preocupação da ética
liberal-cristã de Manzoni. Certamente referindo-se ao exemplo do romance histórico,
lembrava como gregos e romanos haviam distinguido facilmente entre história e inven-
ção, mas se mostraram sempre incapazes de reconhecer o elemento verdadeiro e o não
verdadeiro no encontro entre história e poesia. Lembrando o Vico do Scienza nuova e
adiantando o ceticismo pós-moderno pela metanarrativa historiográfica, preocupava-
se com o fato de o público tornar-se facilmente manipulável pela simples imitação
formal do discurso histórico com conteúdo ficcional. A inovação residiria na entrada
da “época histórica”, na qual a épica, em formas diversas, havia se esgotado; afinal,
³⁹ «As Manzoni looked about him at the numerous translations and imitations of Walter Sco, he
could see that for long stretes, history and invention were operating together under the cloak of his-
toire, in a way that, from a twentieth-century perspective, seemed nicely to prefigure the objectivity of
the great realistic novel to follow. » [Bermann (, p. )]

o leitor moderno se diferenciava do antigo, e pagão, por ser dotado de um criticismo
histórico que busca nos fatos passados a verdade.
A conclusão é de que o romance histórico, do qual esperava apesar de tudo que
I promessi sposi permanecesse como demonstração para o futuro, estava em situação
igual ou mesmo pior à da épica homérica, do romance medieval à la Chrétien de Troyes
ou da épica renascentista de Cervantes e Tasso. Todas as acusações referentes ao gênero
eram justas e fundadas, e não se podia mais alegar em defesa a ingenuidade dos tem-
pos “não históricos” anteriores. O papel que sucessivamente coubera a estas diferentes
formas narrativas, efetivamente constantes nos propósitos mas progressivamente mais
ineficazes, seria num futuro imediato revestido por alguma forma nova ainda desco-
nhecida, mas certamente vinculada à prática historiográfica. O surgimento do romance
real-naturalista, que começava a dar os primeiros passos justamente naquela época que
presenciara a lembrada Revolução de , se colocaria como prova desta transfor-
mação.
Manzoni certamente acertou ao prever a decadência da forma do romance histórico
tradicional, como o de Sco ou o seu. Mas também enganou-se, evidentemente, na sua
cega pela força da narrativa histórica e no domínio da razão humana, principalmente
se acompanhada por uma renovada crença religiosa, na resolução dos problemas da
humanidade. De certa forma, ega a ser estranho esta postura, ultimamente otimista,
frente a uma biografia que se dificultava e de certa forma antecipava aquela dor, aquele
mal pós-romântico que, em maior ou menor medida, ainda hoje nos acompanha (Les
fleurs du mal e seu significativo ennui é de , apenas sete anos após a publicação de
Del romanzo storico). Ao mesmo tempo, são justamente as formas da recepção deste
ensaio ao longo de um século e meio a evidenciarem com maior força os caminhos
que o cruzamento entre “história” e “invenção, seja explicitamente denominado de
“romance histórico” ou não, tomou.
Afinal, o interesse e as opiniões a respeito de Manzoni e de sua obra mudaram
profundamente desde a publicação de I promessi sposi, sendo um processo ainda mais
complexo se considerarmos os primeiros efeitos que a obra, ainda sob o título de Fermo
e Lucia, teve em seu próprio autor. Se, como lembrava Sapegno, a resposta imediata
fora uma quase ovação que logo transformou o romance em parâmetro para quase to-
das as experiências de literatura em prosa italiana (e portanto não somente o romance
histórico, mas mesmo todo o romance e toda narrativa ficcional, inclusive no plano
puramente ficcional ou, como disse anteriormente, “pseudótico”), em nomes como Ce-

sare Cantù, Massimo D’Azeglio e Tommaso Grossi, verso o final do século as profundas
modificações sociais e científicas bem como políticas em uma Itália finalmente uni-
ficada que acompanharam e provocaram a fadiga do Romantismo fizeram com que
fossem lançados à experiência manzoniana, e ao romance histórico em geral, olhares
mais de honesto desinteresse que de engajada dúvida.
Na Itália em particular, a experiência fascista motivaria, algumas décadas depois,
um novo interesse pela obra que, além de ter servido por um século como modelo de
língua não apenas literária, podia ser facilmente assimilada à busca nacionalista e até
mesmo ao discurso político pedagógico, populista e demagógico. O uso fascista foi
de qualquer maneira superficial e secundário a uma corrente de resistência durante
o imediato pós-guerra que, mesmo reconhecendo as lembradas afinidades políticas
de Manzoni, também avaliava na obra seu espírito investigativo e a madrugada de
uma nova forma de consciência individual: exatamente por serem peças historicamente
verossímeis sobre um tabuleiro barroco (a trama se passa, cabe lembrar, a inícios do
Seiscentos), suas personagens são ainda “vivas”.
Não precisamente igual é o discurso em relação ao Del Romanzo Storico e com-
pletamente diverso aquele que se refere à Storia della Colonna Infame: se I promessi
Sposi tem, tudo somado, um papel no cânone dos romances europeus do Oitocentos,
mesmo que restrito, seu ensaio e aquela singular experiência narrativa, elementos de
uma tríade obrigatória na compreensão deste debate, são praticamente desconhecidos
até mesmo na Itália. É porém precisamente pela pouca atenção dirigida que merecem,
talvez mais que o romance, nosso interesse. O segundo, ao qual infelizmente devemos
dedicar menor espaço, é bem lembrado por Bermann:
Na época de Manzoni, a obra provocou uma revolta, originada mais por
um desgosto ativo que por expectativas não cumpridas. Não é surpresa
que tenha inspirado pouco em termos de imitação. Mas neste caso, o
tempo pode ter aplicado uma de suas frequentes trapaças na opinião
crítica, pois o século vinte testemunhou desenvolvimentos literários
precisamente na direção que a Storia della Colonna Infame apontava.
O vasto potencial deste modelo narrativo seria explorado muitos anos
após a morte de Manzoni, e com grande sucesso, por autores tão diver-
sos como André Gide, Truman Capote, Leonardo Sciascia e Aleksandr
Solzhenitsyn, o qual definiu seu Arquipélago Gulag precisamente como
«um ensaio de investigação narrativa». Não evidências suficientes
para apontar a Storia como uma fonte destas experiências posteriores,
mas ela certamente os prefigura admiravelmente.⁴⁰
⁴⁰ «In Manzoni’s day, the work produced an outcry, born less of active dislike than disappointed
expectations. Not surprisingly, it inspired lile by way of imitation. But in this case, time may have

anto ao ensaio em questão, a mesma Bernmann lembra como também em fun-
ção do renovado interesse pelo romance histórico nas últimas cadas tenha se desen-
volvido um movimento de redescoberta do mesmo. Redescoberta pois durante muito
tempo, a única exceção sendo talvez Lukács, a crítica inclusive e principalmente ita-
liana havia se desinteressado por este, tornando-o uma simples refutação do próprio
Manzoni a sua obra, causada pelo emudecimento de sua inspiração poética, conforme
afirmava em pesadas palavras De Sanctis:
Este novo Tasso, ao avaliar posteriormente sua ideia, seu propósito, sua
maneira e seu resultado, em um momento em que sua força poética en-
fraquecera, quando o crítico havia conquistado o artista, amou em
questão todo o tema e publicou seu ensaio Sobre o romance histórico;
neste ele tentou demonstrar que a aprovação que havia recebido era
o produto de uma moda, que I promessi sposi estava destinado a de-
saparecer como os romances de Scudéry e, assim ele disse, [também]
os de Walter Sco. Na condição de crítico ele disse: «desaprovo meu
romance».⁴¹
Interpretação não injustificada, afinal as vozes discordantes da primeira parte do
ensaio, ao discutirem sobre vagos exemplos de romance histórico, debatem precisa-
mente, é fácil reconhecê-lo, acerca da experiência manzoniana. O próprio Manzoni,
mesmo não sendo nunca explicitamente nomeado, é o autor em questão e o romance
de que se trata é I promessi sposi, de maneira que seu ensaio não passava, no fundo, de
uma resposta a todas as críticas que sua maior e última obra literária havia recebido.
Eram, no fundo, as mesma críticas que ainda hoje são traçadas a qualquer encontro
entre “história” e “ficção” na voz do primeiro acusador ao nosso gênero:
O objetivo deste trabalho era apresentar-me, de uma forma nova e es-
pecial, uma história mais rica, mais variada, mais refinada que aquela
encontrada nas obras que normalmente trazem este nome, e como por
antonomásia. A história que esperávamos não era uma narração cro-
nológica unicamente de fatos políticos e militares e, excepcionalmente,
played one of its frequent tris on critical judgement, for the twentieth century has witnessed literary
developments in precisely the direction to whi the Storia della Colonna Infame pointed. e vast
potential of su narrative model would be explored in the longs years since Manzoni’s death, and with
great popularity, by writers as diverse as André Gide, Truman Capote, Leonardo Sciascia, and Aleksandr
Solzhenitsyn, the laer by calling his Gulag Aripelago precisely “an essay of narrative inquiry”. ere
is insufficient evidence to call the Storia a source of this laer efforts, but it does strikingly prefigure
them.» [Bermann (, p. )]
⁴¹ «is new Tasso, in thinking over his idea, his purpose, his manner, and his result, at a time when
his poetic power weakened, when the critic conquered the artist, called the whole thing into question
and published his essay On the Historical Novel; there he tried to demonstrate that the approval it had
received was the product of a vogue, that I promessi sposi was destined to disappear like the novels of
Scudéry and, so he said, of Walter Sco. As critic, he said, “I disapprove of my novel” [Bermann (,
p. )]

de algum acontecimento extraordinário de outro gênero; era sim uma
representação mais abrangente das condições da humanidade em uma
época e em um lugar naturalmente mais circunscritos que aqueles sobre
os quais geralmente se distendem os trabalhos de história. […] Dito isto,
desde quando o confundir é um meio para fazer conhecer? Conhecer é
acreditar, e para poder acreditar, […] é necessário precisamente que se
possa distinguir. […] Instrução e deleite eram os dois intuitos do autor;
mas, justamente por estarem tão ligados, quando não alcançava um,
escapava-lhe também o outro; e assim o leitor não se sente deleitado,
exatamente por não se perceber instruído.⁴²
Fala à qual replicava imediatamente com outra voz de sua auto-crítica, aquela que
contestava o romance histórico justamente por não sempre conseguir confundir com-
pletamente entre história e ficção, fazendo com que o interesse do leitor se volte ins-
tintivamente à classificação de cada elemento do texto em uma das duas categorias,
igualmente reduzindo o deleite que deveria ser típico da arte:
al é […] a forma essencial do romance histórico? A narração; e o
que se pode imaginar de mais contrário à unidade […] que o serem al-
gumas destas coisas apresentadas como verdadeiras, e outras como […]
invenção? […] Autor, estais tirando de vossa narração sua única razão
de ser, substituindo aquilo que seus diferentes materiais possuem de
homogêneo, de comum, por aquilo que possuem de repugnante, de in-
conciliável. Dizendo-me expressamente […] que tal coisa é verdadeira,
me obrigais a refletir […] como as anteriores não o eram, e que as se-
guintes também não o serão. […] Eis que esta ilusão [=da unidade do
conjunto] que é o esforço e o prêmio da arte, aquela ilusão tão difícil de
se produzir e de se manter, o próprio autor a destrói, no momento em
que tenta produzi-la!⁴³
Reconhecendo a validade de ambas, Manzoni respondia à primeira voz afirmando
que uma distinção completa e explícita entre o verdadeiro e o inventado era não im-
⁴² «L’intento del vostro lavoro era di meermi davanti agli oci, in una forma nuova e speciale,
una storia più ricca, più varia, più compite di quella e si trova nell’opere a cui si questo nome più
comunemente, e come per antonomasia. La storia e aspeiamo da voi non è un racconto cronologico
di soli fai politici e militari e, per eccezione, di quale avvenimento straordinario d’altro genere; ma
una rappresentazione più generale dello stato dell’umanità in un tempo, in un luogo, naturalmente più
circoscrio di quello in cui si distendono ordinariamente i lavori della storia. […] Posto ciò, quando mai
il confondere è stato un mezzo di far conoscere? Conoscere è credere, e per poter credere, […] bisogna
appunto ’io possa distinguere. […] Istruzione e dileo erano i vostri due intenti; ma sono appunto così
legati, e, quando non arrivate l’uno, vi sfugge ane l’altro; e il vostro leore non si sente dileato,
appunto peré non si trova istruito.» [Varoi (, p. )]
⁴³ «al è […] la forma essenziale del romanzo storico? Il racconto; e cosa si può immaginare di
più contrario all’unità […] e l’essere alcune di queste parte presentate come vere, e altre come […]
invenzione? […] Voi levate al vostro racconto la sua unica ragion d’essere, sostituendo a ciò e i diversi
suoi materiali hanno d’omogeneo, di comune, ciò e hanno di repugnante, d’inconciliabile. Dicendomi
espressamente […] e la tal cosa è di fao, mi forzate a riflee […] e l’antecedenti non lo erano, e
le susseguenti non lo saranno. […] ell’illusione [=dell’unità dell’insieme] e è lo sforzo e il premio
dell’arte, quell’illusione così difficile a prodursi e a mantenersi, la distruggete voi medesimo, nell’ao di
produrla!» [Varoi (, p. )]

possível, por via da própria exigência de verossimilhança, mas mesmo impraticável no
âmbito textual do romance. À segunda, rebatia que estava se exigindo uma homogenei-
dade não apenas inexistente, mas impossível precisamente por aqueles “consentimen-
tos” específicos que são típicos da literatura que nunca pode efetivamente afastar-se
do histórico para residir na pura ficção. O autor de I promessi sposi prossegue mos-
trando um certo ceticismo para com o romance histórico exatamente em vista destas
duas oposições válidas e antagônicas, indicando também perplexidade pelo fato que
o romance de Sco” (mas evidentemente se referia de modo particular ao seu) não
apenas fazia muito sucesso mas por, quando bem feito, resultar em uma obra efetiva-
mente “artística”. Era assim que Manzoni egava àquela conclusão que não se afasta
da nossa, de que o romance histórico era uma concretização desta mistura de “história”
e “ficção” que vinha desde Homero e que em sua precisa colocação espaço-temporal se
concretizara naquela forma destinada a desaparecer, ou talvez melhor a transformar-
se, exatamente em vista das dificuldades com os “consentimentos” histórico e artístico
que se alteravam por vias de uma História progressivamente mais rígida e cientificista
e por uma arte gradualmente mais simbólica e etérea.
É evidente que era fácil ler nestas opiniões uma desistência, uma negação de sua
própria obra. Mas como lembra a autora norte-americana, a aflição de Manzoni era es-
sencialmente retórica, não artística, no desejo de o romance histórico apresentar verda-
des obtidas com métodos historiográficos com precisas finalidades sociopolíticas. Um
discurso contemporâneo, como vimos, no «problema retórico perene» de conciliar os
modos histórico e poético, e mesmo aquele pseudótico.
Afinal, a construção linguística da verdade, entre as possibilidades não exclusivas
de uma “verdade coerente” e de uma “correspondente, é o foco destas discussões, nas
quais se impõe a visão estruturalista e pós-estruturalista do texto literário como um
imenso reservatório de potenciais interpretações, diversas e mesmo conflitantes; a ver-
dade linguística seria incapaz de corresponder a algo externo e nem mesmo deveria se
referir à intencionalidade do autor, estabelecendo-se unicamente durante o processo,
pessoal e subjetivo, da significação. É exatamente esta origem do significado, que dia-
loga mas não depende de algo externo ao sistema do texto onde nasce, que impossibi-
litaria não apenas a visão de história de Sco e Manzoni mas, partindo de White, todo
“fato, segundo a lição barthesiana de que este nunca tem uma existência além daquela
linguística. Em seu ensaio Manzoni duvidava da capacidade e dos motivos do romance
histórico no “refletir” a realidade, mas em Barthes esta dúvida a entende como ilusão
porque, de maneira inversa, seria a narração linguística a criar” a realidade.

Como lembra sempre Bernmann, é indiscutível que a solução pós-estruturalista, e
não precisamos nem mesmo alcançar extremos como Derrida, resolva o problema que
Manzoni enfrentava no início de seu ensaio: se este se equilibrava nas dúvidas sobre a
diferenciação entre o discurso histórico e o inventado, é suficiente reduzir ambos a um
mesmo plano retórico onde ilusoriamente se encontrem as diferenças, assim solucio-
nando os dilemas éticos do gênero e, por consequência, mesmo aqueles estéticos. Mas é
ainda mais óbvio como Manzoni, em sua dúplice qualificação iluminística e cristã, não
teria jamais aceito uma solução deste tipo que mesmo hoje está longe de ser unânime.
De fato, esta
se sustenta naquele tipo de nominalismo linguístico que ele rejeitava
e que, poderíamos até mesmo dizer, temia religiosamente […]. [Afi-
nal, tal nominalismo] reduz a construções linguísticas criadas [unica-
mente] pelo homem, e portanto ao arbitrário, qualquer coisa que possa
de outra maneira ser entendida como verdade, incluindo nisto aspectos
e verdades que Manzoni considerava invioláveis. Se o pensamento es-
truturalista e desconstrucionista consegue assim tornar discutível uma
questão estreita, Manzoni indubitavelmente consideraria que ela abre
um inteiro abismo ético e epistemológico.⁴⁴
Assim, muito mais que apenas a discussão acerca de um obscuro ensaio do Oito-
centos, Manzoni pode ser tomado como um dos porta-vozes de uma grande corrente
oposta à linha Barthes-Derrida que se mostra ela também insatisfeita com este «abismo
epistemológico» e, como deve estar claro, à qual me filio. Não se trata de apontar
as pesadas críticas em sua direção, das quais devem ser lembrados ao menos Foucault,
John Searle e Jürgen Habermas, mas de procurar entender como dialogaria com esta,
mesmo se tratando certamente de uma áspera diatriba, Manzoni; podemos conjecturar,
além do mencionado Ginzburg, opiniões análogas às de Wayne Booth e Ricœur.
O que subjaz a todas estas opiniões é a diferença na concepção da “qualidade sis-
temática” da linguagem narrativa: poética para Barthes e Derrida, referencial para
Manzoni e Ricouer. Com efeito, a reflexão deste último, que como Manzoni também
se vinculava a anteriores e incisivas expectativas religiosas e a uma prática exegética,
se centrava na diferenciação entres os tipos de discurso e de modo particular entre
os tipos de verdade. Seria possível descrevê-la como uma profunda elaboração filosó-
fica daquela intuição manzoniana sobre os convencimentos” adequados ao discurso
⁴⁴ «rests upon just the sort of linguistic nominalism that he rejected and, one might say, feared reli-
giously […]. It reduces to man-made linguistic constructs, and therefore to the arbitrary, anything that
might otherwise pass for truth, including there things Manzoni held to be inviolable. If structuralist and
deconstructionist reasoning thus manages to make moot one narrow question, Manzoni would doubtless
find that it opens an entire ethical as well as epistemological abyss.» [Bermann (, p. )]

histórico e àquele poético; a diferença é que se Ricoeur agia segundo uma prática de
sistematização em última análise estrutural e “fria”, mesmo para distinguir-se da forte
vinculação ideológica dos autores das propostas contrárias, Manzoni era “fervoroso
em sua orientação ética e religiosa em direção à história e à realidade. Neste sentido,
devemos defini-lo um “autor engajado”, com o desejo nunca escondido de que sua
produção servisse de instrumento para mudanças sociais e políticas; não por acaso o
ímpeto também revolucionário, e por sua vez também um tanto ingênuo, de Lukács o
apreciaria tanto, a despeito das notáveis divergências filosóficas entre aquele membro
de uma aristocracia quase burguesa e aquela voz da crítica literária marxista.
A centralidade da história nas discussões de ambos não é contudo similar: se esta
é o verdadeiro eixo do pensamento lukácsiano, não somente pelo primeiro idealismo
hegeliano, depois revisado em linha marxista, mas também na compreensão para todos
os efeitos neo-kantiana da coisa em si de nomes quais Ernst Cassirer e Max Weber que
desembocaria na mesma postura sociológica antipositivista, ele nunca discute detalha-
damente a relação da escrita historiográfica com aquela poética. Trata-se precisamente
daquela relação que preocuparia o primeiro, lembrando seus ensinamentos do primeiro
romantismo alemão de nomes como Siller e Slegel de onde extrairia sua díade que,
a bem ver, outra coisa não é que o interesse romântico entre o fato objetivo e a intenção
subjetiva, com um grande privilégio desta última.
Mesmo a caracterização de “História” não difere exclusivamente entre os dois: seja
para Lukács seja para o Manzoni de quem se alimentava, e pelos mesmos motivos de
mudança social e política, a História era essencialmente uma força dinâmica e não es-
tática. Também por isto, ao contrário de algumas interpretações que se difundem no
estudo do romance histórico, como Manzoni, Lukács não podia compartilhar de uma
separação nem mesmo teórica entre o mundo objetivo da história e aquele subjetivo
da invenção: afinal, a história é o parâmetro segundo o qual se deve orientar a nar-
ração, mesmo se o interesse é puramente artístico no predomínio do modo narrativo
pseudótico. Também em função disto, encontramos um ulterior ponto de contato na
preferência de ambos pela literatura mais objetiva e menos subjetiva. Afinal, os dois
também repetem a intuição romântica que encontrava na épica a origem do romance,
e Lukács em particular explica suas mudanças segundo as diferentes matrizes culturais
acenadas, em movimentos dialéticos que, apesar de sustentados por premissas bem
diferentes, não se afasta excessivamente nem da explicação viquiana de Manzoni so-
bre a evolução a partir da épica, nem de nossa proposta de diferentes concretizações,
também contextualmente vinculadas, de uma particular simbiose narrativa.

E é assim que egamos ao grande denominador comum entre os dois pensadores;
o fato que o romance seja a evolução da épica em uma época, aquela moderna, na qual
a consciência de unicidade e participação na história não permitem mais uma abor-
dagem totalizadora do mundo, apesar de o romance frequentemente não abrir mão de
sua característica vontade de representação total. Embora Lukács parta de uma simples
compreensão dialética e cabe sempre lembrar que seu Teoria do Romance é uma obra
muito mais hegeliana que o Sobre o Romance Histórico de ditames mais marxistas e
Manzoni de uma dicotomia aristotélica ou, porque não, de um racionalismo católico,
ambos se revelam céticos sobre as possibilidades futuras do romance, em particular
aquele histórico, pela sua essencial natureza bipartida e problemática. Se Manzoni en-
contra uma solução, mesmo sem convencer completamente nem a si próprio, a partir
dos consentimentos” que preanunciam os “pactos narrativos” da crítica moderna, Lu-
kács compreende o romance como uma tensão entre o desejo e a ineficácia da mímese
efetiva da realidade⁴⁵, cuja síntese é a ironia representativa não apenas do romance,
mas de toda a era moderna. É o que afirma Pedro Brum Santos ao dizer que
[d]esse modo, a ironia, entendida como o recurso que mantém a distân-
cia entre o prosaísmo biográfico do escritor e sua criação, cumpre um
papel redentor. Cabe-lhe a função de redimir o romance do paradigma
do factual e do historiográfico, instituindo-lhe uma qualificação de ca-
ráter artístico e, com isso, possibilitando que entre seus dados narrativos
desvelem-se conteúdos de feições essenciais.⁴⁶
Praticamente supérfluo dizer que a despeito daquele ponto em comum notáveis
diferenças entre as duas propostas. Em Manzoni, que havia escrito I promessi sposi sob
a ótica de um otimismo dirigido ao futuro ainda em nada abandonado à época de seu
ensaio, a essência problemática do romance histórico era um sinal quase apostólico de
uma prática literária ainda não concreta mas próxima, que se anunciava positivamente
também a causa da novidade absoluta para o homem moderno de poder, e mesmo ter
de, conciliar a verdade histórica e a subjetiva.
Nessa renovação herdada de uma prática iluminística pela qual aquele Augustin
ierry, tão apreciado por Manzoni e tão criticado por Barthes ao tomá-lo por me-
tonímia da ilusão oitocentista da verdade histórica, aliada a uma necessária verdade
religiosa e subjetiva que, em poucas palavras, se traduzia não somente em ditames mo-
rais, mas também e especialmente na ética literária. Da sua parte, ao contrário, um
Lukács inserido nas mais escuras fases fascistas da Segunda Guerra e direcionado pela
⁴⁵ É a mesma posição que, em forma muito mais otimista, Auerba explorou em sua obra.
⁴⁶ Santos (, p. )

Frente Popular de clara orientação stalinista não podia mais que tentar conformar-se
com aquela dúplice e não solucionável natureza, da qual podia somente obter algumas
lições.
No fundo, voltamos ao diálogo sobre a verdade, que se Manzoni podia superar gra-
ças a uma talvez mais moral que religiosa, a Lukács não era permitido escapar, tanto
por sua forte inclinação ideológica, quanto pelo protagonismo de alguns dos maiores
absurdos daquela mesma História.
É precisamente este aspecto de uma não necessariamente religiosa que melhor
explica as divergências entre o Manzoni teórico e Lukács, e em seguida suas convergên-
cias contrárias à virada barthesiana. O vetor fundamental do pensamento de Manzoni
é uma honesta e profundíssima no livre arbítrio humano, mesmo frente às exigên-
cias da História e de uma representação eficaz e verossímil da mesma. Isto não significa
absolutamente que o elemento histórico seja descuidado, aliás: se as personagens de I
promessi sposi têm plena liberdade de escolha, o condicionamento e a consciência so-
ciopolítica eram tão fortes que seriam julgados por Lukács de mais amplo respiro que
qualquer tentativa anterior neste sentido.
Mas se o objetivo de Lukács, ou pelo menos sua proposta, com relação ao romance
histórico é, em suma, programático, mesmo dada a lembrada possibilidade de uma
continuidade desta em ave antifascista, aquilo que Manzoni deixa entender é mais
uma expressão estética provocada por um programa fortemente vinculado: uma dife-
rença aparentemente tênue, mas importante, inclusive pelo referencial contemporâneo,
pela liberdade de composição e interpretação.
O texto é apresentado em tradução ao português em apêndice a este trabalho. Sua
tradução seguiu, enormemente, as notas explicativas, a prática e os objetivos de Ber-
mann em sua tradução para o inglês, a ponto de nada haver a acrescentar além de suas
notas sobre aquela tradução:
Apesar de traduções de prosa italiana do culo XIX poderem soar pi-
torescas e tortuosas aos ouvidos [brasileiros do século XXI], o original
de Manzoni ressoa com um vigor e uma ironia que ainda são atraentes
como o eram mais de cem anos, e [assim] tentei capturar algo desta
complexa energia. […] Em vários pontos Manzoni cita textos latinos e,
em um caso, em provençais na língua original. Seus leitores, educados
de maneira mais clássica, não precisavam de traduções. Mas a maio-
ria dos leitores [brasileiros] precisa, e tentando comunicar diretamente
com o público de hoje da mesma forma como Manzoni fizera com o
seu, deixei o texto original em língua estrangeira no corpo da tradução

mas ofereci uma versão [em português] nas notas de rodapé. ⁴⁷
⁴⁷ «Although translations of nineteenth-century Italian prose can sound quaint and convoluted to
twentieth-century American ears, Manzoni’s original rings with a vigor and irony that are as appealing
now as they were over one hundred years ago, and I have tried to capture something of this complex
energy. […] At many points Manzoni quotes Latin and, in one case, Provençal texts in the original
language. His readers, brought up on more classical fare, did not need translations. But most American
readers do, and in an aempt to communicate as directly with the public today as Manzoni did with his
own, I have le the original foreign-language text in the body of the work but offer an English version
in the footnotes.» [Bermann (, p. )]

Epílogo
Rara temporum felicitate ubi sentire quæ uelis et quæ dicere licet. (Pu-
blius Cornelius Tacitus)¹
Non deve fermarsi l’huomo in una sola cosa, peré allora divien mao:
bisogna aver mille cose, una confusione nella testa. (Johann Wolfgang
von Goethe)²
Lamentei-me mais de uma vez sobre os limites, especialmente de espaço, que este
trabalho apresentava para tratar do romance histórico e de I promessi sposi em parti-
cular. É efetivamente difícil abarcar todo o universo de relações que se abrem a este
gênero quando passa a ser entendido, como foi exposto, como uma concretização espe-
cífica de um “modo narrativo existente desde sempre que busca conciliar a “história”
com a “poesia”, as exigências de uma verdade “correspondente com uma coerente,
o desejo de instruir com aquele de deleitar. Dificuldade que se expande ainda mais
quando, como pontilhei de alusões, a discussão hoje em dia não poderia se limitar
somente à história da literatura, mas deveria englobar, pelas nossas especificidades
contemporâneas, ao menos também as artes dramáticas.
Entre os inúmeros exemplos a este respeito, dois escolhidos praticamente ao acaso
por serem do mesmo ano de . O primeiro é a série televisiva Rome (HBO e BBC),
um grande sucesso internacional sobre a transição da República ao Império no culo
I, com eventos como a invasão de César à Gália, a morte de Marco Antônio e ascensão
do primeiro Augusto: a trama era articulada nas vidas de dois soldados romanos semi-
ficcionais, Lucius Vorenus e Titus Pullo (citados respectivamente no De Bello Gallico
e Commentarii de Bello Civili de Júlio César), cujas vidas se cruzavam com os gran-
des eventos e personagens descritos exatamente segundo a lição scoiana. O grande
sucesso da série foi explicado por seu produtor, Bruno Heller, e pelo consultor histo-
riográfico, Jonathan Stamp, respectivamente como um «balanço entre as expectativas
¹ «A rara felicidade dos tempos, quando podemos pensar o que queremos e expressar o que pensa-
mos.» [Tacitus (, I.)]
² «Não deve o homem limitar-se a uma coisa, porque assim enlouquece: é necessário ter mil coisas,
uma confusão em mente. [em italiano no original]» [Goethe (, p. )]

do público dadas por representações anteriores com uma abordagem naturalística» e
como um «direcionamento verso a “autenticidade” e não verso a “exatidão” documentá-
ria», principalmente opondo-se àquela visão hollywoodiana de filmes como Gladiator
(). Propostas que porém não se subtraíram a críticas políticas que viam naquela
Roma oligárquica e lasciva uma expressão dos autores sobre a contemporaneidade oci-
dental e, particularmente, sobre aquela norte-americana.
No mesmo sentido se coloca o filme Marie Antoinee de Sofia Coppola sobre a
homônima rainha francesa. Face às críticas de deviações históricas extremas, como
uma massiva vaia na estreia no Festival de Cannes do mesmo ano, a diretora sem-
pre afirmou em suas entrevistas que sua interpretação altamente estilizada era uma
alternativa moderna para a humanização neste específico meio de expressão das figu-
ras históricas participantes. As liberdades artísticas com o material não se focariam,
portanto, nos “fatos” históricos (particularmente relevante se por isto era entendida a
noção whiteana de “fato”) por não se tratarem de lições de história, mas de uma in-
terpretação apesar de sempre documentada diversa para um tema que, era de se
esperar, seria conhecido.
Correndo o risco de entoar uma cantilena, creio necessário insistir como nenhuma
discussão pode hoje ser eficaz sem uma observação de espectro diacrônico (no qual
toda a história literária, não apenas ocidental, deve ser considerada) e diamésico (no
qual, para o contemporâneo, é imprescindível a compreensão de artes paralelas como o
cinema e as histórias em quadrinhos), bem como evidentemente das costumeiras con-
siderações de ordem diafásica, diastrática e diatópica. Trata-se de uma consequência
obrigatória da substituição dos “gêneros literários” por “gêneros discursivos”, e a única
maneira de compreender exaustivamente o fenômeno do romance histórico como ex-
pressão deste meio entre a “história” e a “ficção” em um período de constante diluição
das fronteiras discursivas de todo tipo de comunicação humana nos quais os estudos
sérios de literatura estão assustadoramente se resumindo a um restrito e isolado erudi-
tismo em parte afastado do meio acadêmico.
No caso de nosso romance em particular, espero ter deixado evidente meu enten-
dimento sobre o que é realmente I promessi sposi, e sob qual forma sua importân-
cia e seu significado devam ser entendidos. É inegável, como foi lembrado no início
deste discurso, que ocupem um ponto de destaque no querido sistema literário italiano,
igualando-se em importância à Commedia, ao Decameron, às Rime e ao Orlando exa-
tamente por representar uma quebra em uma tradição feita estéril precisamente como

ocorre com qualquer efetiva obra-prima. O pouco interesse e a falta de atenção a esta
literatura tão rica poderiam porém, como de fato ocorre, relegar a obra, esquecendo-a
como mais um dos tantos romances históricos do Oitocentos, mas ainda assim sua ino-
vação desta vez estendida não apenas ao elemento nacional, mas a todo o sistema
dos romances históricos consegue resgatar para o ingênuo interesse puramente local
um lugar de destaque. Lembro aquele grande leitor da obra, o Tellini tão citado neste
trabalho, que a lembra como uma grande obra de poesia, «cuja validade se mede em
relação ao espaço do horizonte cultural e a seu comportamento para compreender e
modificar a complexa realidade de uma época e de uma sociedade determinadas».³
Talvez seja o que Manzoni nos deixou de indício em um dos treos mais conhe-
cidos e apreciados de nossa obra, o incipit do oitavo capítulo, pelos ares de comédia
dos erros que o casamento forçado logo assume e pela zombaria à figura de don Ab-
bondio, serviçal por vezes involuntário dos abusos de poderosos. Um sucesso tal que
o nome “carneade tornou-se em italiano um vocábulo para designar “pessoas pouco
conhecidas”, e o treo é geralmente entendido como uma excelente mas conclusa ca-
racterização daquela personagem.
A escolha de Manzoni em citar este filósofo obscuro em específico certamente não
se justifica somente por seu nome altissonante, como deixa intuir o costume do autor
em limar à exaustão suas obras. Longe de querer propor que o romance possua uma
clara “ave de interpretação, não podemos deixar de intuir esta citação súbita como
intencional e nos permite desenvolver o tópico da verdade, particularmente em relação
ao romance histórico e à história, de uma forma nova. Afinal, e numa relação evidente
com a compreensão do discurso histórico, além de alegar que dois objetos podem ser
iguais, ou ao menos provocar impressões idênticas e indistinguíveis, a principal con-
tribuição de Carneades foi responder ao contra-argumento dos estoicos em defesa das
impressões cognitivas: alegavam que, se realmente não houvesse nenhuma possibili-
dade de garantir como cognitiva uma impressão, os homens seriam privados de toda e
qualquer base para a ação e a investigação. Carneades encontrou sua solução alegando
a existência, que depois seria tomada como única, de impressões “prováveis” (do termo
latino “probabilis” usado por Cícero, que talvez não seja a melhor tradução para o origi-
nal grego πιθανός, “persuasivo, atraente, crível”). Em suma, mesmo seguindo a linha
cética de que nada pode ser admitido como critério absoluto de verdade, Carneades
³ «la cui validità si commisura, come è proprio del capolavori, in rapporto all’ampiezza dell’orizzonte
culturale e alla sua aitudine a comprendere e a modificare la complessa realtà di un’epoca e di una
civiltà determinata.» [Tellini (, p. )]

sustentava a impossibilidade de se suspender o juízo sobre todas as coisas. Isto porque
haveria uma diferença entre o não evidente e o não compreensível: apesar de todas as
coisas serem, em última instância, incompreensíveis, nem todas seriam não evidentes.
Salvando assim a compreensão e a existência dos fenômenos, Carneades pôde então
elaborar um critério de que se algo não pudesse ser dado como absolutamente verda-
deiro, poderia sempre ser tido como provável.
De fato, quanto a este critério de verdade reconhecia que nenhuma representação
sensível podia ser capaz de garantir, por si própria, estar de acordo com os fatos. e
algo seja verdade é possível, mas não é possível garantir que o seja, como comprova-
vam exatamente as primeiras alegações dos céticos como loucura e sonho, ou nossa
incapacidade de distinguir entre dois ovos e dois gêmeos idênticos. O conceito de ver-
dade a que Manzoni parece aludir na compreensão de seu romance histórico, e que não
deixa de ser relativo à distinção entre “autenticidade” e “exatidão” acima lembrada, se-
ria portanto “persuasivo porque o caráter de persuasividade da representação não se
refere à relação entre a sensação e o objeto, mas entre o objeto e sua percepção; afinal,
o único acesso possível ao objeto é exatamente por meio de suas percepções.
O que marcaria então uma representação persuasiva? Carneades listava três: a
evidência, pois em condições de pouca visibilidade não é adequado confiar na visão; o
não ser contradita por outras representações e o concurso de outras representações que
a apoiem; o exame e o controle de cada representação em seus vários aspectos, como
um juiz que julga. Estes determinam em sucessão o grau crescente de persuasividade de
uma representação e é com base neles que um filósofo cético deve orientar sua postura.
Carneades é assim o fundador do amado probabilismo, que teve grande simpatia de
Cícero: em suma, é verdade que a realidade não pode ser conhecida, mas podemos
sempre estabelecer graus de conhecimento das probabilidades: em outras palavras,
apesar de nunca egarmos ao extremo, podemos julgar algo como mais ou menos real
(ou, em outras palavras, que é mais provável, dado o que conhecemos, que algo seja
do real do que não o seja). No fundo é uma continuação da eterna oposição metafísica
e cética de Platão e Aristóteles: afinal, podemos bem dizer que se para o primeiro o
verossímil é, tudo somado, equivalente ao falso, para Aristóteles aquela potencialidade
de real permite apontar para o real e assim buscar atingi-lo.
Trata-se da discussão acerca da verdade que Manzoni parece tentar solucionar na
prática com a eleição do romance histórico como veículo de transmissão, e na teoria
pela escolha da guia filosófica cristã, de orientação tomista e sob mediação ao mesmo

tempo jansenista e de um Iluminismo que se encaminhava mais à descrença sobre a
capacidade humana do que ao Positivismo. É uma compreensão que expande sur-
preendentemente os horizontes deste romance que, como lembrado, pode à primeira
vista parecer banal e repetitivo, quando não mesmo fraco. No articulado e dissimulado
jogo entre trama e contra-trama, Manzoni estabeleceu seu laboratório intelectual re-
servando as melhores pérolas aos leitores que fossem capazes de buscá-las, mas não se
recusando a uma estilização sempre agradável do modelo desejado para o puro deleite.
No fundo, não deixava de ser a mesma proposta que recebera em seus ensinamentos
religiosos, seja da infância e adolescência, seja da idade adulta.
Por isso mais do que a uma católica, Manzoni se aproxima de uma moral cristã; ao
leitor resta somente o adivinhar quais seriam as «centenas de outras coisas» que Renzo
em suas últimas falas afirma convictamente ter aprendido, por mais que se entenda
facilmente como na transcrição daquelas palavras se esconda, pela última vez, a carga
irônica do narrador em relação à “doutrina” de uma personagem a quem ama apesar
dos defeitos e manias. Parece, afinal, que o Manzoni narrador oitocentista responde ao
noivo agora casado pela voz de Lucia, a qual observa «sorridente» como os problemas,
no fundo, haviam sido eles próprios a provocá-los e não alguma mão oculta, divina,
histórica ou narrativa. Nem importa mais a dúvida que permanece sobre a primeira
interação da cândida e delicada Lucia com o perverso e malvado Don Rodrigo, que de-
vemos com classe deixar no silêncio; é na perplexidade de Renzo, que se finalmente
obrigado a admitir que a dor no mundo é inexplicável, que encontramos o diferencial
do romance. Uma particular teodiceia dos humildes que se resolve na admissão de
nossa incapacidade e na crença de que a permaneça como único conforto para o de
outra maneira inexplicável caminho da vida humana. Não sabemos quem realmente
expressa esta opinião, se Renzo ou Manzoni, principalmente frente a uma trama que,
vista à distância, pode ser fonte de bem pouco otimismo. Mas o valor historiográfico, e
mesmo literalmente “histórico”, de investigação, da trama pode iluminar o significado
de uma obra tão difícil e, por isto, dissimulada como I promessi sposi: é no sentimento
cristão de irmandade, no sofrimento compartilhado e nas manas recorrentes de nos-
sas consciências, que se entende um “discurso secreto” do romance maravilhosamente
articulado pela necessidade de uma moral em último grau sensacionalista como o era
aquela filosofia que Manzoni aprendera nos salões parisienses, centrada, em última
instância, também nos sentidos e em sua assimilação empírica.
A conformação, a renúncia, a passividade que o romance parece pregar na confi-
ança cega das personagens por uma Providência de quem seriam os favoritos é exata-

mente o alvo da diatriba manzoniana: a força da trama é a inquietação pela dificuldade
da compreensão da verdade, não somente histórica, que não serve de desculpa para a
indolência, é a angústia pela contradição entre prática e teoria que não se restringe à
história dos grandes homens, mas ega como adverte aquele fingido narrador
aos «ínfimos» da «escala do mundo». É por isto que não cabe senão discordar de todas
as corriqueiras interpretações açucaradas do romance, concordando em linhas gerais
com as leituras de Tellini, Sapegno e Raimondi de que o segredo resida no caminho
de historiador, de investigador, dado pelo «estupor dolente da memória [de Renzo e
Lucia] de pessoas perdidas sobre a terra, que não possuem nem mesmo um patrão»⁴.
O romance de Manzoni é histórico não em sua remissão a pesados alfarrábios de
dados, nomes e citações que são sempre falsificáveis e interpretados; ele é sim histórico
no sentido mais profundo de uma inclinação e de uma ética histórica, investigativa,
que não se conforma com a ignorância mesmo no reconhecimento de sua perene in-
capacidade. É o ponto que acomuna todas as personagens, das quais apenas os noivos
protagonistas parecem, em motivos, maneiras e medidas forçadamente diferentes dos
nossos e daqueles das outras personagens, se subtrair. É em especial Renzo, o grande
protagonista e, entende-se, o narrador primeiro desta “história” a nos liderar neste sen-
tido; afinal, onde parece terminar a sua investigação, começa finalmente a nossa.
«[…] nello stupore dolente della loro memoria di gente perduta sulla terra e non ha ane un
padrone» [Raimondi (, p. )]

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Apêndice
Nota sobre a tradução
A tradução aqui apresentada refere-se à primeira parte do referido ensaio de Ales-
sandro Manzoni. Os motivos para não incluir, neste momento, a tradução da segunda
parte são vários, indo da difícil sintaxe de Manzoni à dificuldade de suas alusões não
sempre evidentes mesmo para quem conhece mais profundamente a literatura itali-
ana. Mas o motivo principal é o comprimento e a menor relação com quanto discutido
na dissertação da qual esta tradução é apresentada em apêndice: além de ser excessi-
vamente longa para os limites aqui impostos, a segunda parte do ensaio de Manzoni
constitui, essencialmente, uma demonstração com exemplos tomados da literatura la-
tina e italiana do que foi exposto, no plano teórico, na primeira parte. É esta a que
mais nos interessa e que é discutida no presente trabalho, pois a segunda parte, mesmo
válida na demonstração de seu pensamento, se afasta excessivamente da proposta de
estudo do romance histórico em geral e de I promessi sposi em específico, constituindo
uma verdadeira história da literatura sui generis.
É intenção do autor e de seu orientador a publicação de uma tradução completa e
mais “compita” (ou seja “refinada”, como definiria Manzoni) no futuro imediato, acom-
panhada de uma necessária apresentação escrita especificamente para este ensaio e de
uma cuidadosa lista de notas que explique ao leitor brasileiro as referências literárias
e culturais que Manzoni tomava por evidentes e quase banais.
Do romance histórico e, em geral, das obras que
mesclam história e invenção Primeira parte
ADVERTÊNCIA
O autor estaria em grande dificuldade se tivesse de afirmar que as opiniões expostas
no Discurso a seguir estejam de acordo com a Carta que o antecede¹.
¹ N.d.T.: Manzoni referia-se à Leera a Monsieur Chauvet, que na edição definitiva das Opere varie

Pode apenas dizer que, se mudou de opinião, não foi para voltar atrás. Se este
avançar tenha sido uma evolução em direção à verdade, ou um início no erro, será o
leitor discreto a julgá-lo, caso lhe pareça que a matéria e o trabalho possam merecer
um juízo qualquer.
PRIMEIRA PARTE
O romance histórico é objeto de duas críticas diferentes, aliás diretamente opostas;
e visto estas se referirem não a algo de acessório, mas à própria essência deste tipo de
obra, expô-las e examiná-las parece-nos uma boa maneira, senão a melhor, de entrar,
sem preâmbulos, no cerne do argumento.
Assim, alguns se lamentam que, neste ou naquele romance histórico, nesta ou na-
quela parte de um certo romance histórico, a verdade positiva não esteja bem diferen-
ciada das coisas inventadas e que, por consequência, não se um dos mais essenciais
efeitos deste tipo de obra, ou seja, aquele de oferecer uma representação verdadeira da
história.
Para esclarecer quanta razão possam ter, será necessário dizer algo além de quanto
dizem; sem contudo dizer algo que não esteja implícito e subentendido em quanto
dizem. Assim, imaginamos não estar fazendo nada além de desenvolver os motivos
lógicos desta sua queixa, fazendo-os falar desta forma ao paciente, quero dizer ao autor:
“O objetivo deste trabalho era apresentar-me, de uma forma nova e especial, uma
história mais rica, mais variada, mais refinada que aquela encontrada nas obras que
normalmente trazem este nome, e como por antonomásia. A história que esperávamos
não era uma narração cronológica unicamente de fatos políticos e militares e, excep-
cionalmente, de algum acontecimento extraordinário de outro gênero; era sim uma
representação mais abrangente das condições da humanidade em uma época e em um
lugar naturalmente mais circunscritos que aqueles sobre os quais geralmente se disten-
dem os trabalhos de história, no sentido mais corrente do vocábulo. Entre este trabalho
e aqueles existe, de certo modo, a mesma diferença que entre um mapa geográfico,
no qual são indicadas as cadeias de montanhas, os rios, as cidades, as vilas, as estradas
principais de uma vasta região, e um mapa topográfico no qual, além de tudo isto mais
particularizado (refiro-me ao tanto que pode caber no espaço muito mais reduzido de
cidade), são assinaladas também as elevações menores e os desníveis ainda menos per-
ceptíveis do terreno, os córregos, os canais, os vilarejos, as casas isoladas, as trilhas.
Costumes, opiniões, sejam gerais sejam particulares a esta ou aquela classe de homens;
() vinha imediatamente antes destes Discorso.

as consequências privadas dos grandes acontecimentos públicos aos quais se ama
mais propriamente de históricos, e das leis ou das vontades dos poderosos, qualquer
seja a maneira como são manifestadas; em suma, tudo quanto uma sociedade teve de
mais característico, em todas as condições da vida e nas relações de uma com as outras,
em uma dada época, é isto que o autor se propunha fazer conhecer, no limite de quanto
ele próprio alcançou por meio de diligentes pesquisas. E o deleite que se propunha pro-
duzir é aquele que nasce naturalmente do adquirir um conhecimento deste tipo, e do
adquiri-lo por meio de uma representação, direi assim, animada, e em ato.
“Dito isto, desde quando o confundir é um meio para fazer conhecer? Conhecer
é acreditar, e para poder acreditar, quando sabemos que daquela representação nem
tudo é igualmente verdadeiro, é necessário precisamente que se possa distinguir. Mas
se espera que a realidade seja apreendida sem fornecer o meio de reconhecê-la preci-
samente enquanto realidade? Por que então desejou-se que a estas realidades coubesse
uma parte extensa e principal da obra? Por que aquela caracterização de ‘histórico’,
aplicada para distinguir e, ao mesmo tempo, seduzir? Afinal, sabe-se perfeitamente
que um interesse tão vivo e poderoso quanto especial pelo ato de aprender o que
realmente ocorreu, e como realmente se deu. E após ter encaminhado e excitado a cu-
riosidade do leitor por tal objeto, pode-se imaginar satisfazê-la ao apresentar algo que
poderia ser aquilo, mas também poderia ser um fruto da invenção do autor?
“E note-se como, ao fazer esta crítica, tece-se ao mesmo tempo um cumprimento:
discute-se com um escritor que sabe escolher bem seus argumentos e manejá-los bem.
Caso se tratasse de um romance tedioso, repleto de ações ordinárias, possíveis em
qualquer época, e portanto notáveis em época alguma, o leitor fearia o livro sem
preocupar-se com nada mais. Mas justamente pelo fato da ação, da personagem, da
circunstância, do modo e das consequências que são apresentadas atraírem e mante-
rem fortemente sua atenção, nasce nele um desejo mais vivo, mais inquieto e, acres-
cento, mais racional de saber se nestes se deva enxergar uma manifestação real da
humanidade, da natureza, da Providência, ou somente uma possibilidade ditosamente
encontrada pelo autor. ando alguém com fama de zombeteiro nos narra uma no-
vidade interessante, a tomamos por verdadeira? Nos satisfazemos? Pois o autor (no
momento em que escreve um romance, é claro) parece-se com este, ou seja, com al-
guém que narra igualmente o verdadeiro e o falso; e se não permite que se distinga um
do outro, deixa o leitor como o deixaria aquele.
“Instrução e deleite eram os dois intuitos do autor; mas, justamente por estarem tão

ligados, quando não alcançava um, escapava-lhe também o outro; e assim o leitor não
se sente deleitado, exatamente por não se perceber instruído.
Poderiam certamente dizê-lo de melhor forma; mas mesmo dizendo-o assim, é pre-
ciso confessar que têm razão.
Porém outros, como dissemos no início, que desejariam exatamente o oposto.
Ao contrário destes últimos, lamentam-se que, neste ou naquele romance histórico,
nesta ou naquela parte de um certo romance histórico, o autor distinga expressamente
a verdade positiva da invenção: coisa que, dizem, destrói a unidade que é a condição
vital deste como de qualquer outro trabalho artístico. Observemos em maior detalhe
sobre o que se fundamenta esta outra queixa.
“al é parece-me que queiram dizer a forma essencial do romance histórico?
A narração. E o que podemos imaginar de mais contrário à unidade, à continuidade
da impressão de uma narração, ao nexo, à cooperação, ao coniurat amice de cada uma
das partes no produzir um efeito total, do que o ser algumas destas partes apresentadas
como verdadeiras, e outras como produto da invenção? Estas últimas, se o autor souber
inventar com habilidade, serão em todo similares àquelas, à exceção exatamente do
serem verdadeiras, à exceção daquela qualidade especial, incomunicável, das coisas
reais. Ao manifestar esta qualidade naquelas que a possuem, o autor priva sua narração
de sua única razão de ser, substituindo àquilo que seus diferentes materiais possuem
de homogêneo, de comum, quanto possuem de repugnante, de inconciliável. Dizendo
expressamente ao leitor, ou fazendo-o compreender por um expediente qualquer, que
tal coisa é um fato, obriga-o a refletir (e o que importa se esta não era sua intenção?)
que as anteriores não o eram, que as seguintes também não o serão; que àquela convém
o consentimento que se à verdade positiva, e que às demais convém somente aquele
outro consentimento, de gênero completamente diverso, que se ao verossímil, e
portanto que a forma narrativa, aplicada igualmente tanto a umas quanto a outras, é
para algumas a forma característica e natural, para outras uma forma convencional e
artificial: o que significa uma forma contraditória para o conjunto.
“Não podemos imaginar uma contradição mais estranha. Mesmo o autor considera
esta unidade, esta homogeneidade do conjunto, algo importantíssimo, pois, apesar de
tudo, utiliza todos seus artifícios para obtê-la. Ele também faz de tudo para merecer
aquele louvor de Horácio pelo autor da Odisseia:
E mente assim, com o falso o verdadeiro
sabe de tal maneira entrelaçar, que corresponde
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sempre ao princípio o meio, ao meio o final.
escolhendo do real e do possível os elementos que melhor entrem em acordo. E com
qual objetivo senão aquele de que a mente do leitor, subjugada, carregada pela arte,
possa, diremos assim, aceitar como uma coisa única aquelas que lhe são apresentadas?
Mas o autor desfez seu próprio trabalho, separando na matéria aquilo que havia reunido
na forma! Aquela ilusão que é o esforço e o prêmio da arte, aquela ilusão tão difícil
de produzir e manter, ele próprio a destrói, no ato de produzi-la! Não percebe que
uma repugnância entre a concepção e a execução? e com alguns pedaços de cobre
e alguns pedaços de estanho, dispostos lado a lado, não se faz uma estátua de bronze?”
E a estes o que responderemos? Na verdade, não creio possa dizer outra coisa além
de que estão com a razão.
Um meu amigo, de querida e honrada memória, narrava uma cena curiosa que pre-
senciara na casa de um juiz-de-paz em Milão, muitos anos atrás. Encontrara-o entre
dois litigantes, um dos quais defendia com fervor sua causa e, quando este terminara,
o juiz lhe disse: tens razão. Mas senhor juiz, disse prontamente o outro, também devo
ser ouvido, antes de se decidir. É a plena verdade, respondeu o juiz, por favor fale,
que escutarei atentamente. Então aquele se pôs com ainda mais empenho a fazer valer
sua causa, e saiu-se tão bem que o juiz lhe disse: também tens razão. Ao lado estava
um menino de sete ou oito anos, o qual, brincando calmamente com não sei qual bo-
neco, não deixara de prestar atenção ao contraditório, e àquela altura, levantando um
rostinho estupefato, mas não sem um certo quê de autoridade, exclamou: mas papai!
É impossível que os dois tenham razão! Também tens razão, lhe disse o juiz. Como
tudo tenha terminado, ou o amigo não o dizia, ou escapou-me da mente; mas é de se
imaginar que o juiz tenha conciliado todas suas respostas, demonstrando tanto a Fu-
lano quanto a Beltrano que, se tinham razão por um lado, estavam errados por outro.
Assim faremos nós também. E o faremos em parte com as próprias argumentações dos
dois adversários, mas para obter uma decorrência diferente tanto daquela de uns como
daquela de outros.
ando vocês, diremos aos primeiros, pedem que o autor de um romance histórico
vos faça distinguir em sua obra o que realmente houve de quanto é sua invenção, cer-
tamente não pensam se existe uma maneira de vos satisfazer. Vocês lhe prescrevem o
impossível, nada menos. E para se convencerem, é suficiente prestar atenção por um
momento em como estas coisas devam estar mescladas, para que possam fazer parte
de uma única narração. Para circunstanciar, por exemplo, os acontecimentos históri-

cos com os quais tenha enlaçado sua ação ideal (e de certo se estará de acordo de que
em um romance histórico devam figurar acontecimentos históricos), o autor deverá
reunir circunstâncias reais, colhidas da história ou de documentos de qualquer gênero
(pois o quê poderia ser mais adequado para representar aqueles acontecimentos em
sua forma verdadeira e, direi assim, individual?) e circunstâncias verossímeis, inven-
tadas por ele (porque deseja-se que seja dada não uma mera e nua história, mas algo
de mais rico, de mais refinado; deseja-se que devolva de certo modo o sangue àquela
carcaça que é, em tão grande parte, a história). Pelos mesmos motivos, às personagens
históricas (e satisfazem-se os que encontram em um romance histórico personagens
históricas) fará dizer e fazer tanto coisas que realmente fizeram e disseram, quanto coi-
sas por ele imaginadas como convenientes a seus caráteres, durante aquelas partes da
ação ideal nas quais lhe foi proveitoso fazê-las intervir. E reciprocamente, nos fatos
por ele inventados, naturalmente inserirá tanto circunstâncias igualmente inventadas
como circunstâncias tomadas de fatos reais daquela época e daquele lugar; pois qual
seria o meio mais natural para fazê-las ações que pudessem ter ocorrido naquela época,
naquele lugar? Assim às suas personagens ideais caberão palavras e ações igualmente
ideais, junto a palavras e ações que descubra terem sido ditas e feitas por homens da-
quela época e daquele lugar: e satisfeito em tornar mais verossímeis suas idealizações
com elementos próprios do verdadeiro. Isto é suficiente para mostrar como ele não po-
deria estabelecer entre tais coisas a distinção que lhe se pede, ou melhor, não poderia
tentar estabelecê-la sem fragmentar a narração não digo às vezes, mas a cada momento,
mais vezes em uma mesma página, não poucas vezes a cada enunciado, para dizer: isto
é positivo, obtido de memórias dignas de fé; isto é invenção minha, mas deduzido de
fatos positivos; estas palavras foram realmente pronunciadas pela personagem à qual
as atribuo, mas em uma diferente ocasião, em circunstâncias que não cabem em meu
romance; estas outras, que coloco na boca de uma personagem imaginária, foram re-
almente ditas por um homem real, ou seja, eram discursos que corriam de boca em
boca; e assim por diante. Chamaríamos uma obra deste tipo de romance? Ou talvez
mereceria um outro nome qualquer? Melhor ainda, pode-se conceber uma obra deste
tipo?
Talvez me direis que não se pensava em pedir tanto. E acredito nisto; mas aqui é
necessário estudar não apenas o que vossas palavras exprimem diretamente, mas tam-
bém o que implicam em termos lógicos. e sejam muitos ou poucos os casos nos
quais vocês gostariam que o autor distinguisse o que de real em sua narração; que
fosse um único caso; por que desejar isto? Por um caprio? Certamente não, mas por
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uma razão excelente: porque a realidade, quando não é representada de maneira que
se faça reconhecer como tal, não instrui nem satisfaz. Trata-se por ventura de uma
razão particular àqueles casos, ou àquele único caso? Pelo contrário: é, por sua própria
natureza, uma razão geral, comum a todos os casos similares. Se portanto viessem ou-
tros a se lamentar de sentir o mesmo efeito de desprazer em treos diferentes da obra,
não mereceriam suas lamentações a mesma satisfação que é dada às vossas? Vocês têm
de concordar, porque estariam fundamentadas sobre aquela mesma razão: a exigên-
cia da realidade. Vejam portanto como, impondo ao romance histórico de distinguir a
realidade aqui ou ali, está se impondo, em substância, que a distinga em tudo: coisa
impossível, como demonstrei, ou melhor como fiz observar.
E agora o que pode ser dito aos outros.
Distinguir em um romance histórico entre a realidade e a invenção destruiria, em
vossa opinião, a homogeneidade da impressão, a unidade do consentimento. Mas, por
favor, como se poderia destruir algo que não existe? Não se entende que esta distinção
se encontra entre os elementos necessários e, direi assim, na matéria prima deste tipo de
obra? ando, por exemplo, o Homero do romance histórico faz entrar em Waverley
o príncipe Edward com seu desembarque na Escócia; em outra obra, permite a Mary
Stuart fugir do castelo de Lo Leven; em outra, retrata a estada do rei da França Luís
XI em Plessis-les-Tours; em outra ainda, envia Ricardo Coração-de-Leão em expedição
à Terra Santa e assim por diante, não faz nada por sua parte para advertir que se trata de
pessoas reais e fatos reais. São eles próprios que se apresentam com esta qualidade; são
eles que requerem absolutamente, e inevitavelmente obtém, aquele consentimento sui
generis, exclusivo, incomunicável, que se àquilo que é entendido como coisa de fato:
consentimento que amarei de histórico, para opô-lo ao outro, igualmente sui generis,
exclusivo, incomunicável, que se àquilo que é entendido como meramente verossí-
mil, e que amarei de consentimento poético. Aliás, o mal estava feito antes mesmo
de aquelas personagens entrarem em cena. Ao tomar em mãos um romance histórico,
o leitor sabe perfeitamente que nele encontrará facta atque infecta coisas ocorridas
e coisas inventadas, ou seja, dois objetos diferentes dos dois diferentes, aliás opostos,
consentimentos. E vocês acusam o autor de provocar tal discórdia, prescrevendo-lhe
de manter no desenrolar da obra uma unidade que havia sido suprimida pelo título!
Talvez vocês também me dirão que estou exagerando vossas pretensões, que o ha-
ver em alguma coisa certos inconvenientes inevitáveis não é razão para acrescentar-lhe
outros; que se aquela homogeneidade de consentimento desejada pela arte não pode
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ser obtida por inteiro, sua diminuição seria porém um dano gratuito; que, com aquelas
advertências expressas, ou com o fazer compreender que tal ou tal outra coisa são po-
sitivamente verdadeiras, o autor provoca consentimentos históricos, opostos ao intuito
da arte, em ocasiões nas quais talvez não surgiriam.
Pode ser; mas o que poderia surgir em seu lugar? Duas únicas coisas, ou seja, ou
uma ou outra de duas coisas, cada uma igualmente oposta ao intuito da arte: ou o
engano, ou a dúvida.
Reconheço que poderia acontecer de um leitor, sem ser advertido de que a coisa
narrada havia realmente ocorrido, tomasse a mesma por uma bela invenção poética,
e a teria apreciado como tal. Mas é por acaso a isto que a arte aspira? Seria um belo
esforço, na verdade, uma bela operação da arte aquela que consistisse não no idealizar
coisas verossímeis, mas no fazer ignorar que as coisas por ela apresentadas são reais!
E belo efeito da arte aquele que fosse dependente de uma ignorância acidental! Afi-
nal, se no ato no qual o leitor estivesse fruindo a suposta invenção poética egasse
alguém e lhe dissesse: sabias que é um fato positivo, obtido do documento tal, o pobre
homem seria transportado violentamente dos espaços da poesia ao campo da história.
A arte é arte enquanto produz não um efeito qualquer, mas um efeito definitivo. E,
entendida desta forma, não é apenas sensata, mas é também profunda aquela máxima
de que apenas o verdadeiro é belo; afinal o verossímil (matéria da arte) manifestado e
percebido como verossímil é uma verdade, de fato diversa, aliás diversíssima, do real,
mas uma verdade contemplada pela mente para sempre ou, para dizê-lo com mais pre-
cisão, irrevogavelmente: é um objeto que pode sim ser tomado de quem o contempla
pelo esquecimento, mas que não pode ser destruído pelo desengano. Nada pode fa-
zer com que uma bela forma humana, idealizada por um escultor, deixe de ser um
verossímil belo: e quando uma estátua material, na qual estivesse executada, viesse a
desaparecer, desapareceria com esta o conhecimento acidental daquele verossímil, mas
não, certamente, sua incorruptível entidade. Se alguém, vendo de longe e na penumbra
um homem ereto e imóvel no alto de um edifício, entre algumas estátuas, tomasse este
também por estátua, diríamos ser isto um efeito da arte?
A outra coisa que poderia ocorrer seria o leitor, advertido não pelo autor de que
uma ou outra coisa, a qual excita particularmente sua atenção, é coisa de fato, mas ad-
vertido pela natureza ou, melhor, pelo assunto da obra de que pode muito bem ser coisa
de fato, ficar em dúvida, hesitar; e certamente sem culpa de sua parte, como contra sua
vontade. Consentir, consentir rapidamente, facilmente, plenamente, é o desejo de todo
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leitor, à exceção dos que leem para criticar. E consente-se com prazer tanto ao pura-
mente verossímil quanto ao verdadeiro positivo: mas com consentimentos diferentes,
aliás opostos: e, acrescento eu, com uma condição igual em ambos os casos, ou seja,
que a mente reconheça no objeto que contempla uma ou outra essência, para poder
conceder-lhe um ou outro consentimento. Dissimulando a realidade da coisa narrada,
o autor teria conseguido, de acordo com este desejo, impedir um consentimento his-
tórico, mas ao mesmo tempo privado o leitor do meio para conceder qualquer outro.
Efeito contrário, este também, por quanto se possa afirmar, ao intuito da arte; afinal, o
que de mais contrário à unidade, à homogeneidade do consentimento que a ausência
dele próprio?
E é precisamente para prevenir seja o engano de que falei acima seja este hesitar,
para não sujeitar o leitor a uma miserável pilhéria ou para servir a um possível desejo
seu, para não deixar sem resposta uma sua velada interrogação, que um autor pode
ser, neste ou naquele caso, tentado fortemente e como induzido a distinguir expressa-
mente a realidade: é porque adverte quanto falta à coisa representada, faltando-lhe a
manifestação de uma qualidade deste tipo. Não digo que o faça bem; não nego que rea-
lize algo direta e manifestamente contrário à unidade da obra: digo que o permitir-lhe
realizá-lo não serviria para alcançar esta unidade. Porta-se como o pobre maître Jac-
ques criado por Molière, que se apresenta ora com o avental de cozinheiro, ora com a
farda de coeiro porque Avaro, seu patrão, quer que desempenhe ambas as profissões
e ele aceitou tal condição.
Recapitulando todos estes prós e contras, parece-nos poder concluir que têm razão
uns, no querer que a verdade histórica seja sempre representada como tal, e outros, no
querer que uma narração produza consentimentos homogêneos, mas que estão errados
tanto uns quanto outros no esperar este ou aquele efeito de um romance histórico,
pois o primeiro é incompatível com sua forma, que é a narrativa, e o segundo com
seus materiais, que são heterogêneos. Pedem coisas justas, coisas indispensáveis; mas
pedem-nas a quem não pode dá-las.
Mas se fosse assim, dirão agora, seria em essência o romance histórico a estar errado
em todos os sentidos.
Esta é precisamente nossa tese. eríamos demonstrar, e acreditamos tê-lo de-
monstrado, que se trata de um gênero no qual resulta impossível quanto lhe é ne-
cessário; no qual não se pode conciliar duas condições essenciais, e não se pode nem
mesmo satisfazer uma única, sendo inevitável neste uma confusão repugnante da ma-

téria e uma distinção repugnante à forma do gênero, na qual devem entrar a história e
a fábula, sem que se possa nem estabelecer nem indicar em qual proporção e em qual
relação devam entrar; um gênero, em suma, para o qual não uma maneira correta
de realizá-lo, pois seu assunto é intrinsecamente contraditório. Pede-se-lhe muito; mas
muito em relação a que? À sua possibilidade? Plena verdade, mas isto demonstra exa-
tamente o vício radical de seu assunto, pois, em relação às coisas, pedir ao verdadeiro
de fato que seja reconhecível e pedir a uma narração que produza consentimentos ho-
mogêneos seria pedir precisamente quanto necessário. São duas coisas incompatíveis,
mas onde? No romance histórico? Também plena verdade: mas pior para o romance
histórico porque, em si, feitas precisamente para se acompanharem. E se fosse necessá-
rio exibir as provas de uma tal verdade, as encontraríamos de imediato naquele gênero
de obras que o romance histórico imita e confunde, ou seja, a história. Afinal, esta
se propõe narrar fatos reais e produzir por este meio um consentimento homogêneo,
aquele que se concede à verdade positiva.
Mas, alguém poderá opor a esta altura, este consentimento homogêneo consegue
ser obtido a partir da história? Esta produz uma série de consentimentos decididos e
racionais? Ou não deixa frequentemente enganados os que acreditam com facilidade
e duvidosos os que são inclinados a refletir? E independentemente da vontade de en-
ganar, quais são as histórias compostas por homens nas quais podemos ter certeza de
não encontrar nada além da verdade pura e distinta?
É claro, responderemos, não faltam na história falsidades, aliás mentiras mesmo.
Mas é culpa do historiador, e não da condição do gênero. ando a respeito de um
historiador se diz que ele adorne as coisas, que nelas faça um pastie de fatos e inven-
ções, que não se sabe em que acreditar de quanto diz, entende-se imputar-lhe algo de
que dispunha meios para evitar. E de fato o meio havia, tão seguro quanto fácil; afinal,
algo de mais fácil do que o abster-se de inventar? Reflitam se o autor de um ro-
mance histórico possa empregar este meio, para evitar, quanto à sua responsabilidade,
de enganar o leitor.
É igualmente certo que mesmo do historiador mais consciente, mais diligente, não
se obterá, via de regra, toda a verdade que se pode desejar, nem tão pura quanto se possa
desejar. Mas aqui também não é culpa da arte: é defeito da matéria. Para que uma arte
seja boa e racional, não se requer que seja adequada a obter inteira e perfeitamente seu
objetivo: não artes deste tipo. Arte boa e racional é aquela que, propondo-se um
objetivo sensato, emprega os meios mais adequados para obtê-lo até onde possível, os

meios que seriam empregados para obtê-lo por inteiro, nos limites das faculdades hu-
manas, quando houvesse a matéria correspondente. anto aos fatos reais, ao estado
da humanidade em certas épocas, em certos lugares, é possível adquirir e transmitir
um conhecimento não perfeito, mas efetivo: e é isto que se propõe a história (refiro-me
sempre à história em boas mãos). Não ega onde gostaria; mas não se coloca volunta-
riamente atrás de um único passo. Não supera, em sua maioria, todas as dificuldades;
mas se resguarda com cuidado de criar outra qualquer. A história também nos deixa
às vezes na dúvida; mas apenas quando ela mesma assim se encontra. Aliás (porque,
a quem está no caminho correto, tudo vêm a propósito), a história se serve também da
dúvida. Não apenas a confessa abertamente, mas, nestes casos, a promove, a sustenta,
busca substituí-la às falsas persuasões. Nos faz duvidar porque quis que duvidásse-
mos; não como o romance histórico, por ter excitado a consentir, privando com isto
de quanto era necessário para determinar o consentimento. Na dúvida provocada pela
história, o espírito repousa, não pela conclusão de seu desejo, mas pelo limite de suas
possibilidades: nos satisfazemos, direi assim, como em um ato relativamente final, no
único ato bom que lhe seja dado realizar. Ao contrário, na dúvida excitada pelo ro-
mance histórico o espírito se inquieta, porque na matéria que lhe é apresentada a
possibilidade de um ato ulterior, do qual ao mesmo tempo lhe é criado o desejo e sub-
traído o meio. Creio não haja algum autor de romances históricos, ou mesmo de um
único romance histórico, a quem não tenha ocorrido de alguma vez ser questionado se
tal personagem, se tal fato, se tal circunstância fosse coisa verdadeira ou de sua inven-
ção. E creio igualmente que terá dito a si próprio: Ah, traidor! Sob a forma de uma
pergunta inocente me teces uma crítica venenosa: no fundo protestas que o livro te
deixou, aliás te obrigou a puxar o autor a teu lado. Sei bem que é mérito para um livro
suscitar a vontade de saber mais sobre aquilo que ensina; mas este é um caso diverso.
As coisas que desejas saber são coisas de que te falei; me pedes não para acrescentar,
mas para desfazer.
Não será sem propósito observar que mesmo do verossímil a história pode em al-
gumas ocasiões se servir, e sem inconveniência, desde que o faça da maneira correta,
ou seja, expondo-o em sua forma característica e distinguindo-o assim do real. E pode
fazê-lo sem que se ofenda a unidade da narração, pela simplíssima razão de que o ve-
rossímil não toma parte na mesma. É proposto, motivado, discutido, e não narrado
em igualdade ao positivo e junto ao positivo, como no romance histórico. E não
nem mesmo o perigo de que se ofenda a unidade da obra, pois qual o elo mais natu-
ral, qual a continuidade mais natural, por assim dizer, que aquela encontrada entre

a cognição e a indução? ando a mente recebe a notícia de um positivo que excite
com vivacidade sua atenção, mas uma notícia lacunosa em partes essenciais ou impor-
tantes, é naturalmente inclinada a voltar-se às coisas ideais que tenham com aquele
positivo uma relação geral de possibilidade concomitante e uma relação especial de
causa, efeito, meio, modo ou de importante concomitância, que deviam ter as coisas
reais das quais não nos restaram vestígios. É uma parte da miséria humana o não poder
conhecer senão parte do que houve, mesmo em seu pequeno mundo, e é uma parte de
sua nobreza e de sua força o poder conjecturar para além de quanto pode saber. A
história, quando recorre ao verossímil, não faz nada além de favorecer ou excitar uma
tal tendência. Cessa então, por um momento, de narrar, porque a narração não é, na-
quele caso, o melhor instrumento, e ao contrário emprega aquele da indução: e desta
maneira, fazendo o que requerem os diferentes princípios das coisas, também faz o que
convém a seu novo intento. De fato, para que se possa reconhecer aquela relação entre
o positivo narrado e o verossímil proposto é precisamente uma condição necessária que
estes apresentem-se distintos. A história faz, de certa forma, como quem, ao desenhar
o mapa de uma cidade, acrescenta, em cores diferentes, estradas, praças e edifícios pla-
nejados; e ao apresentar distintas das partes que existem aquelas que poderiam existir,
faz com que se possa pensá-las reunidas. A história, digo, abandona então a narração,
mas para aproximar-se, da única maneira possível, daquilo que é o objetivo de sua
narração. Conjecturando e narrando, tem sempre em vista o real: ali se encontra sua
unidade. Mas o que visa, ou melhor, como se forma a unidade do romance histórico,
que erra entre dois focos diversos?
Seja-nos permitido prevenir aqui uma outra objeção, ainda menos fundamentada,
mas também de ser esperada porque nunca falta em ocasiões similares a esta. Está se
tratando a respeito do romance histórico, poderão nos dizer, mas está sendo comparado
à história, esquecendo-se que são dois gêneros de obras que possuem dois diversos
intuitos, em parte realmente similares, mas em parte completamente diferentes.
É fácil notar como uma tal objeção se fundamenta apenas sobre uma petição de
princípio. É claro, se o romance histórico tivesse um seu intuito, em maior ou menor
grau diverso daquele da história mas igualmente lógico, seria uma extravagância opor-
lhe o intuito e as leis da história. Mas a questão é justamente se o romance histórico
possui um próprio intuito lógico, e portanto alcançável; e se pode, por consequência,
possuir certas leis particulares, ordenadas de acordo com este intuito. O intuito de
uma arte é condicionado por sua matéria, ou por cada uma das matérias que emprega,
e ter estudado quais sejam as condições congênitas e necessárias de uma matéria, em
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uma arte qualquer, é tê-lo estudado para todas as artes existentes e possíveis que dese-
jem servir-se da mesma matéria. Visto o romance histórico tomar como parte de sua
matéria aquela que é a matéria característica e natural da história, é necessário que,
em relação a esta parte, seja comparado à mesma. Não é a causa do título, nem da
forma, nem do assunto de uma obra que com relação à verdade histórica não se possa
fazer nada de bom à exceção de representá-la o mais distintamente possível; é a causa
da natureza da verdade histórica. A alquimia também tinha um seu intuito, em parte
diferente daquele da química: não lhe faltava nada além alcançá-lo, e esta também
supunha que deveriam existir os meios adequados para aquele intuito: não lhe faltava
nada além de encontrá-los. E nada foi mais oportuno que opor-lhe as experiências e os
raciocínios da química, visto que ambas trabalhavam com metais. E pense-se a como
teria soado estranho se a primeira tivesse respondido: isto pode servir para a química,
mas eu me amo alquimia.
O romance histórico não tem um seu intuito próprio e ao mesmo tempo lógico, mas
imita dois destes, como indiquei. É claro, nesta proposição representar, por meio de
uma ação inventada, o estado da humanidade em uma época passada e histórica
uma unidade verbal e aparente. Mas aquilo que seria necessário para constituir
sua unidade racional, me refiro à correspondência de um tal meio a um tal objetivo,
é gratuita e falsamente suposto. O meio, o único meio de que alguém dispõe para re-
presentar o estado da humanidade, como tudo quanto pode ser representável por meio
da palavra, é o de transmitir o conceito que conseguiu formar, com diferentes graus
de certeza ou de probabilidade que pôde encontrar nas diferentes coisas, com as limi-
tações, com as deficiências que encontrou nestas, ou melhor, na cognição atualmente
possível destas; é, em suma, de repetir aos outros as últimas e vitoriosas palavras que,
no momento mais feliz da observação, alegrou-se em poder dizer a si mesmo. E é o
meio do qual se vale a história: pois, por história, entendo aqui não somente a nar-
ração cronológica de algumas categorias de fatos humanos, mas qualquer exposição
ordenada e sistemática de fatos humanos. É esta, digo, a história que pretendo opor ao
romance histórico; e teríamos razão em opô-la mesmo quando nesta não fosse mais que
uma possibilidade. Afinal, além do mais, quem não sabe que muitos trabalhos deste
gênero, alguns louvados com plena razão? Trabalhos cujo objetivo é exatamente fazer
conhecer não apenas o percurso político de uma parte da humanidade em uma dada
época, mas também seu modo de ser, sob aspectos diversos e, mais ou menos, múltiplos.
Por acaso alguém imagina que, em especial neste ramo, a história tenha ficado aquém
de quanto um tal intuito pudesse exigir, de quanto os materiais pesquisados e observa-
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dos com uma finalidade mais ampla e mais filosófica pudessem oferecer? e tenha
transcurado o ocupar-se de certos fatos, ou de categorias inteiras de fatos, dos quais não
percebia a importância? e não tenha desejado analisar certas relações, certas depen-
dências recíprocas de certos fatos, que havia sim reunido, e depois referido, mas como
estranhos uns aos outros porque, à primeira vista, assim podem parecer? Xinguem-na,
mas confiem nela, pois é a única que pode reparar suas omissões. E por acaso al-
guém que, estudando em particular esta possibilidade de realizar algo melhor quanto
a um ou outro momento do passado histórico, se disponha a uma nova pesquisa? Pa-
rabéns! Macte animo! Vasculhe nos documentos de qualquer tipo que ainda restam e
que consiga encontrar; faça, quero dizer, com que se tornem documentos também ou-
tros escritos, cujos autores nunca imaginariam que colocavam no papel um documento
para o futuro, escolha, descarte, reúna, confronte, deduza e induza; podemos garantir
que conseguirá formar sobre aquele momento histórico conceitos muito mais especiais,
mais decididos, mais inteiros, mais sinceros do que aqueles que possuía até então. Mas
o que significa isto tudo, senão conceitos mais obrigatórios?
Porque se, ao invés de tratar o leitor como trata a si mesmo, ao invés de apre-
sentar aos outros intelectos, intacta e genuína, a imagem que, em recompensa às suas
pesquisas e às suas meditações, surgiu ao seu próprio, esconde-a para fragmentá-la às
escondidas e fazer, com os pedaços desta e com uma matéria de natureza completa-
mente diversa, algo de mais e de melhor; se, para rendê-la mais animada, quer fazê-la
viver duas vidas diferentes; se toma por meio o que era um objetivo; então a razão das
coisas, que nada sabe destes projetos, e está acostumada a manter suas obrigações, e
com grande pontualidade, seus empenhos, mas não aqueles dos outros, não apenas não
permite que de uma tal mistura resulte uma representação mais refinada de um estado
real da humanidade, mas nem mesmo aquela menos particularizada que poderia resul-
tar de um retrato sincero das coisas reais. Porque o positivo não existe, com relação à
mente, senão enquanto conhecido; e não é conhecido senão quando se possa distingui-
lo daquilo que não é, e portanto o engrandecê-lo com o verossímil não é mais, enquanto
ao efeito de representá-lo, que um reduzi-lo a menos, fazendo-o em parte desaparecer.
Ouvi dizer (coisa antiga e verdadeira esta também) de um homem, mais parcimonioso
do que astuto, que imaginara poder dobrar a quantidade de óleo das lamparinas adici-
onando uma igual quantidade de água. Sabia perfeitamente que, ao ser simplesmente
versada, esta afundaria e o óleo voltaria à tona; mas pensou que, se pudesse assimilá-
los misturando-os e batendo-os com força, obteria um líquido único, e teria alcançado
seu intuito. Bate, bate, conseguiu obter um não sei que de enodoado e maculado que
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fluía em conjunto e enia a lamparina. Mas era uma coisa a mais, não óleo a mais;
aliás, quanto ao efeito de iluminar, era muito menos. E o amigo entendeu-o quando
quis acender o lume.
Conservei para o final a objeção mais severa e inevitável: o fato. Todas estas,
parece-me ouvir, podem ser belas teorias; mas o fato as joga ladeira abaixo. É possível
apontar, entre as obras modernas e antigas, muitas obras que sejam mais lidas, e com
maior prazer e admiração, do que os romances históricos de um certo Walter Sco?
Pretende-se demonstrar, com este ou aquele argumento, que não poderiam produzir
um tal efeito. Mas o produzem.
Objeção, contudo, severa somente em aparência, pois toda sua força repousa em
um equívoco, ou seja, no amar-se de fato algo que se está fazendo. e aqueles
romances tenham agradado, e não sem grandes porquês, é um fato inegável, mas é um
fato daqueles romances, não o fato do romance histórico: que além disso este tipo de
obra continue a agradar, e portanto a ser cultivado, é a questão e não o fato. Nesta,
como em muitas outras coisas, o fato de uma época não é certamente garantia dos fatos
futuros; e os exemplos de opiniões de uma idade cassados por uma outra são excessivos
e evocados com tanta frequência para ser desnecessário prolongar sua lista. Pois se,
evocando-os tantas vezes e com tanta compaixão, não prestamos a atenção devida ao
perigo de criar novas opiniões, é porque nas correntes parece-nos de ver algo de mais
maduro, de mais ilustre, de definitivo. Não de que maravilhar-se: são as nossas.
Para sentir compaixão pelas opiniões dos tempos passados somos a posteridade, o que
não é pouco; para confiarmos nas nossas somos o culo, o que não é de menos.
Entre aqueles exemplos conhecidíssimos, que nos seja porém permitido citar um
que apresenta uma importante analogia com o nosso argumento. al fama maior
daquela que tiveram os romances histórico-heroico-eróticos (não saberia como amá-
los com um único nome) de M.elle Scudéry e alguns de seus antecessores e sucessores
menos famosos? E não estamos tratando de um país ou de um culo rude, pois era
a França de Luís XIV. É suficiente o testemunho de Boileau, o qual, no discurso em
prefácio ao diálogo onde zomba daqueles romances, confessa que «sendo jovem quando
estavam mais em voga, os tinha lido com grande admiração, como os liam todos, e os
havia considerado obras-primas da língua francesa».
Ainda mais que uma injustiça, seria certamente uma extravagância colocar estas
obras ao par daquelas de Walter Sco. Mas apesar de toda a distância existente não
apenas entre este e aqueles autores, mas entre os dois tipos de obras, existe entre estas,
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como indiquei, uma analogia, ou melhor, uma identidade importante: serem igual-
mente romances nos quais toma parte a história. E não seja dito que, naqueles pri-
meiros, a história era inserida apenas por pretexto e quase por acota; que ninguém
prestava atenção à história ao ler aqueles estranhos episódios de amores indomáveis
e platônicos e aquelas dissertações e disputas sobre o amor, ainda mais estranhas que
os episódios. Suponha-se por um momento que M.elle Scudéry, naquela sua Clélie tão
lida e ainda lembrada algumas vezes, tivesse dado o nome de Virgínia à mulher ultra-
jada por Sexto Tarquínio; que tivesse feito de Porsena um rei da Macedônia ou mesmo
da Gália Cisalpina; que, para fugir do acampamento inimigo, tivesse feito a heroína
do título jogar-se em um rio como o Eufrates ou mesmo o Po; e se pense em como
isto teria soado estranho àqueles leitores, por sinal tão tolerantes. Não era uma inteira
e absoluta indiferença destes pela vericidade da história inserida naquelas obras: era
sim, e somente, uma tolerância muito maior daquela que hoje é possível. Eles também
prestavam atenção à história, ao ler: e como não poderiam, visto a desejavam? Porque,
digo, o público aceitava, e com muito gosto, obras nas quais a história entrava como
uma parte essencial, fornecendo-lhes as condições fundamentais não apenas de lugar e
época, mas de fatos e de pessoas; é necessário admitir que naquelas obras se desejava a
história. E não se podia desejá-la sem prestar-lhe atenção. Apenas se prestava menos
atenção de quanto se faz hoje.
Agora, como nasceu uma tal diferença? Surgiu por completo e imediatamente? Não
foi assim, nem poderia ter sido. Aquela tolerância se atenuou gradualmente: desejou-
se cada vez mais história, e nisto uma maior quantidade de circunstâncias históricas.
E pretendo discorrer não apenas com relação àquela efêmera e capriosíssima série
de obras, mas com relação a qualquer tipo de obra que una história e invenção, da
mesma forma como entendo discorrer não acerca de uma evolução regularmente con-
tínua, de uma tendência unânime, mas de uma evolução efetiva do conjunto, de uma
tendência prevalente, abstraindo-me acerca daquelas interrupções temporárias e da-
queles acidentais passos para trás que encontramos em qualquer percurso de ideias e
fatos. A tolerância, digo, se atenuou no público e, parte em consequência disto, parte
independentemente disto, mas sempre pelo mesmo motivo, atenuou-se a audácia nos
escritores. Certas vezes foi o público (e naturalmente incluo neste, como parte impor-
tante, os críticos profissionais) que, demonstrando ou pelas críticas ou pelo desprezo
de não poder mais tolerar tamanho grau e tamanha forma de alteração da história,
obrigou os escritores a aumentá-la, e com maior aparato de circunstâncias históricas;
foram algumas vezes os escritores que, ou meditando em abstrato sobre sua arte ou
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advertindo, no ato prático da composição, com mais força que em seus antecessores
ou mesmo em seus contemporâneos, a importância e a conexão da verdade histórica,
encontraram alguma nova maneira de aumentar o papel desta em suas obras. E cada
uma destas evoluções especiais, seja na teoria, seja na prática, de (como acontece
para todo expediente a um problema que, em dado momento, seja o mais evidente)
ser considerada satisfatória. Mas após algum tempo o desejo pela verdade histórica,
desejo sempre crescente por motivos independentes da arte e acrescidos, relativamente
a esta, por aquelas próprias modificações, faz advertir novos problemas e buscar novos
expedientes. Cada uma daquelas sucessivas satisfações foram um fato; nenhuma, o
fato: cada uma daquelas modificações foram um passo; nenhuma foi, nem poderia ter
sido, a meta alcançada. Afinal (continuemos assim) qual poderia ser a meta na estrada
da verdade histórica, a não ser a inteira (em termos relativos, é evidente) e pura ver-
dade histórica? Nas coisas formadas por partes coerentes, cada melhoria de uma parte
qualquer serve a tornar mais sólido o conjunto; naquelas compostas por elementos
contrários e incompatíveis, a melhoria conduz à destruição.
E com isto iremos declarar expressamente (coisa que, ademais, estava implícita em
tudo quanto dito até momento) que, opondo ao romance histórico a contradição inata
de seu assunto e, por consequência, sua incapacidade de receber uma forma satisfatória
e estável, não pretendemos em momento algum opor-lhe um vício que lhe fosse par-
ticular, concordando com aqueles que o amaram e amam de gênero falso, gênero
espúrio. Esta opinião inclui uma suposição a nosso ver completamente errônea, ou
seja, de que a maneira de combinar com proveito a história e a invenção tivesse sido
encontrada e fosse praticada, e que o romance histórico a teria desgastado. Não se trata
de um gênero falso, mas de um exemplar de um gênero falso, que é aquele que com-
preende todas as obras onde se mescle história e invenção, qualquer seja sua forma. E
acrescentamos que, por ser o mais novo exemplar desta espécie, parece-nos ser o mais
refinado, o resultado mais engenhoso para vencer a dificuldade, se esta pudesse ser
vencida.
Sem dúvida todos reconhecerão que, para poder expressar uma opinião elaborada
sobre o romance histórico, era necessário adentrar esta questão. Mas, é claro, estamos
longe de imaginar a opinião que expressamos sobre este ponto sendo aceita tão facil-
mente. Portanto, tentaremos justificá-la, comparando o assunto do romance histórico
àquele da epopeia e da tragédia, indicando as variações ocorridas na teoria e na prática
destas duas principais e mais ilustres formas do gênero, no tocante a sua relação com a
história. Variações que puderam ser demonstradas (quem não o sabe? em poderia
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esquecê-lo?) por esplêndidos e perenes monumentos do engenho, porque o engenho
grava uma forma durável mesmo às coisas que, por si próprias, não teriam razão para
durar; mas variações estimuladas por uma razão muito poderosa, pois a beleza sem-
pre percebida e a autoridade sempre viva daqueles monumentos não foram suficientes,
em tempo algum, para obstaculizar seu percurso. Monumentos forjados não apenas
por mãos magistrais, mas em parte também por instrumentos que perderam sua ido-
neidade, parece que digam aos que mais e melhor os observam: admira-me, e faças
diferente.
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