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UNIVERSIDADEFEDERALDORIOGRANDE
PROGRAMADEPÓS-GRADUAÇÃOEMLETRAS
MESTRADOEMHISTÓRIADALITERATURA
CristinaFuentesHamerski
OSCRIMESDARUADOARVOREDO
VersõesesubversõesemCãesdaProvínciaeCanibais:paixãoemortenaruado
Arvoredo
RIOGRANDE
2010
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CristinaFuentesHamerski
OSCRIMESDARUADOARVOREDO
VersõesesubversõesemCãesdaProvínciaeCanibais:paixãoemortenaruado
Arvoredo
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras – Mestrado em História da
LiteraturadaUniversidadeFederaldoRioGrande–
FURG,comorequisitoparcialparaobtençãodograu
deMestreemLetras
Orientadora:Prof.ªDr.ªNubiaJacquesHanciau
RIOGRANDE
2010
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CristinaFuentesHamerski
OSCRIMESDARUADOARVOREDO
VersõesesubversõesemCãesdaProvínciaeCanibais:paixãoemortenaruadoArvoredo
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre, pelo Programa de Pós-
Graduação em História da Literatura da Universidade
FederaldoRioGrande
BANCAEXAMINADORA
Profª.Drª.NubiaTourrucôoJacquesHanciau(FURG)–Orientadora
Profª.Drª.SylvieDion(FURG)
Profª.Drª.SimonePereiraSchmidt(UFSC)
AGRADECIMENTOS
Agradeçosinceramentepelarealizaçãodestetrabalho:
- aos meus pais, Waldomiro e Rosangela, meus exemplos, pelo assíduo
acompanhamentoeincentivoatudooquevenhorealizando.Pelosmomentosdemuitoamor,
carinhoecompreensãoeprincipalmentepelamaneiracomofuieducadaepelosvaloresque
tragocomigo;
-aomeuirmão,Daniel,pedaçodemim,portornarminhavidamaisfeliz,mefazendo
sorrirnosmomentosemqueestavaexausta;
-aomeuesposo,Juliano,pormeapoiarincondicionalmenteemefazersentiramada
todososdias;
- aos meus amigos, em particular, a Iara, por estar sempre disposta a ajudar neste
momento,pelointeressedemonstradopormeutrabalho;
- ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em História da Literatura, que
muitocontribuiuparaminhaformaçãoprofissional.Emparticular,àprofessoraSylvieDion,
porcedergentilmenteartigosteóricos,bemcomooutrosdocumentosquecontribuíramparao
estudoeasustentaçãodestadissertação;
-àCapes,poroportunizaraminhabolsadeestudos;
- à literatura, por servir como terapia, me levando a desvendar sentimentos, a me
conhecermelhore,acimadetudo,pordiferenciarmeuolharemrelaçãoaomundo;
- agradeço em especial à professora e orientadora Nubia Hanciau, pela orientação
seguraecrítica,quemuitocontribuiuparaminhaformaçãotantoprofissionalcomopessoal.

SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 7
1“OSCRIMESDARUADOARVOREDO”:VERSÕESHISTÓRICAS,
JORNALÍSTICASELENDÁRIAS 14
1.1OMAIORCRIMEDATERRA:DÉCIOFREITAS
14
1.2NARRATIVASJORNALÍSTICAS:“NOCALORDOMOMENTO”
28
1.3PROCESSOCRIMINAL1070
37
1.4ALENDADOSCRIMESDARUADOARVOREDO
48
2“OSCRIMESDARUADOARVOREDO”:VERSÕESESUBVERSÕESEM
NARRATIVASFICCIONAIS 55
2.1HISTÓRIAVS.LITERATURA
55
2.2ONOVOROMANCEHISTÓRICO:CONTEXTUALIZAÇÃOHISTÓRICA
59
2.3LITERATURAEHISTÓRIAEMCÃESDAPROVÍNCIA
68
2.4LITERATURAEHISTÓRIAEMCANIBAIS
78
2.5OCASODOCANIBALISMOEMCÃESDAPROVÍNCIAEEMCANIBAIS
87
2.6SUBVERSÃOÀNARRATIVAOFICIALEMCÃESDAPROVÍNCIAEEM
CANIBAIS
94
CONSIDERAÇÕESFINAIS 114
REFERÊNCIAS 118

RESUMO
Quem diriaquenapequena eprovinciana PortoAlegre, capital doRioGrandedo Sul,em
plenoanode1863,JoséRamoseCatarinaPalse,casalaparentementecomum,residentena
então rua do Arvoredo (hoje rua Coronel Fernando Machado), seria responsável por
exterminar friamenteváriaspessoas?Eparapiorar,acreditava-sequeusaramascarnesdas
vítimasparafabricarlinguiçasecomercializá-lasparaapopulaçãolocal.Mastãointeressante
quantoosdetalhesdessefatobizarrosãoasconstantestransformaçõespelasquaispassamas
inúmerasreapropriaçõesereescriturasaolongodosanosarespeitodessescrimes,chegando
finalmenteacontradizer
emmuitosaspectosahistória“oficial”.Esteéocasodosromances
CãesdaProvíncia(1987),deLuizAntôniodeAssisBrasil,eCanibais:paixãoemortenarua
doArvoredo(2004),deDavidCoimbra,quefornecemduasexpressivasversõessobreofato.
Considerandoesseeventomacabro presentenamemória coletivadosporto-alegrenses,esta
pesquisatemporobjetivoverificardequeformaosombrioepisódiodenominado“Oscrimes
da rua do Arvoredo” é trabalhado nas narrativas ficcionais referenciadas, estabelecendo
relaçõesdahistóriacomaliteratura.
ABSTRACT
WhowouldimaginethatinasmallandprovincialPortoAlegre,RioGrandedoSulcapital
city, in the exactly year of 1863, Jose Ramos and Catarina Palse, an apparently ordinary
couple, livingon the – so called– Arvoredo Street(currentlyknown as Coronel Fernando
Machado), were responsiblefor, coldly, exterminatingmanypeople. And, to make matters
worse,itisbelievedthattheyusedthefleshfromtheirvictims’bodiestomakesausagesand
soldthemamongthelocals.However,asinterestingastheintriguingdetailsofthisbizarre
fact,aretheconstanttransformationswhichalltheseveralreappropriationsandrewritesof
thesecrimeshavebeensubmittedtoalongtheyears,reachingthepointwheretheybecome
controversialinmanyaspectstothe“official”story.ItseemstobethecaseofthenovelsCães
daProvíncia(1987),byLuizAntoniodeAssisBrasil,andCanibais:paixãoemortenarua
do Arvoredo (2004),by David Coimbra, which deliver two expressive versions of what
happened.Takingintoconsiderationthismacabreevent,whichstillinthecollectivememory
ofpeoplefromPortoAlegre,thisstudyhasasitsmainpurposetoverifyhowthedarkepisode
named “The crimes of the Arvoredo Street” is seen in the referenced fictional narratives,
consideringtherelationshipbetweenhistoryandliterature.
INTRODUÇÃO
Comoantecedentesdestetrabalhodissertativoconsideroqueoprojetodepesquisaea
disciplinaintituladosLiteraturaeHistória
1
foramdecisivosnaescolhadaabordagemparaesta
dissertação.EntraremcontatocomconceitoseconhecimentosrelativosaocampodaHistória,
atéentãodesconhecidos,compreenderumpoucomelhoranaturezadosdiscursosficcionale
histórico, bem como analisar os pontos de contato e de distanciamento entre esses dois
camposdosaberestãoentreasmotivaçõesdaminhaescolhaenabasedointeressecadavez
maior em estudar as relações da história com a literatura e as possibilidades de interação
entresessesdoiscamposdoconhecimento.
DuranteasaulasdareferidadisciplinafizaleituradolivrointituladoCanibais:paixão
emortenaruadoArvoredo
2
,deDavidCoimbra,publicadoem2004,queretomaumsombrio
episódio conhecido como os crimes da rua do Arvoredo”, ocorrido em Porto Alegre, em
meadosdoséculoXIX.
Já possuía vago conhecimento acerca desse episódio, considerado quase uma lenda
urbana,emqueummoradordaruadoArvoredo,entre1863e1864,naentãopequenacapital
gaúcha, mata e esquarteja várias pessoas. Não bastasse esse fato macabro, acredita-se que
usouacarnedasvítimasparafabricarlinguiçaevendê-laem“seuaçougue”.
ApósaleituradeCanibais,narrativaquerecuperaoepisódioquefazpartedahistória
da Porto Alegre oitocentista e ficcionaliza figuras históricas de existência comprovada, a
saber,JoséRamosesuacompanheiraecúmplice,CatarinaPalse,senti-meinstigadaabuscar
outros textos e a realizar leituras mais aprofundadas e críticas sobre os referidos crimes,
passandoacogitarapossibilidadedetrabalharcomessaobraemminhadissertação.
AoprocurararespeitodoassuntonoslivrosdehistóriaencontreiOmaiorcrimeda
terra: o açougue humanoda rua do Arvoredo
3
, do historiador gaúchoDécio Freitas, cujo
foco de trabalho são os supracitados crimes. Ao dar continuidade às pesquisas, encontrei
tambémosegundodeumtotaldetrêsprocessoscriminaisinstauradoscontraJoséRamoseos
demais envolvidos nos assassinatos. À medida que a pesquisa e as leituras avançavam,
 
1
 Projeto Literatura e História, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Nubia Jacques Hanciau, do Programa de Pós-
GraduaçãoemLetras,MestradoemHistóriadaLiteraturadaUniversidadeFederaldoRioGrande;edisciplina
LiteraturaeHistória,ministradapelamesmaprofessora.
2
COIMBRA,David.Canibais:paixãoemortenaRuadoArvoredo.PortoAlegre:L&PM,2008.Valeressaltar
quenodecorrerdestetrabalhoseráutilizadoapenasotermoCanibaisparareferir-seàobradeD.Coimbra.
3
FREITAS, Décio.O maior crime da terra: oaçouguehumano da Rua do Arvoredo – PortoAlegre(1863–
1864). Porto Alegre: Sulina, 1996. Com intuito de “separar a história e a lenda dos crimes de José Ramos”
(1996, p. 19), D. Freitas faz minucioso trabalho de pesquisa sobre o ocorrido, analisa documentos da época,
jornaiseprocessosarespeitodoepisódiomacabro.
emboraaindanãoestivessedefinidaaabordagemqueseriacontempladanaanálisedocorpus
ficcional, cada vez maior tornava-se o interesse pelo tema e a decisão de aprofundar as
pesquisasarespeitodaquelesinstigantescrimes.
AleituradoromanceCãesdaProvíncia
4
,deLuizAntoniodeAssisBrasil,lançado
em 1987, impõe-se nesse momento. Embora os crimes não sejam o tema principal nessa
narrativaquetratafundamentalmentedafiguradodramaturgoQorpo-Santoesuaconturbada
históriadevida,oromancedeAssisBrasilapresentaincontornávelabordagemarespeitodos
crimes,porissonãopoderiaserdesconsiderado,passandoacomporigualmenteocorpusde
análise.
Entãofoitomadaadecisãodeinvestigar,emCãesdaProvínciaeemCanibais,deque
forma o episódio é trabalhado. E surgiu a idéia de observar de que maneira o passado é
revisitado nas duas narrativas, quais recursos estratégicos os autores empregam para
ficcionalizarofatonopresente.
Aindaemrelaçãoaocorpusescolhidoparaanálise,tantoesdaProvíncia,deAssis
Brasil, quanto Canibais, de David Coimbra, o obras baseadas, ressalvadas as suas
particularidades, no sombrio episódio do passado porto-alegrense, constituindo duas
instigantes leituras a respeito dos fatos. São elas as duas narrativas de ficção mais longas
sobre o acontecido de que se tem conhecimento. Além disso, elas vão perfeitamente ao
encontrodapropostainicial,aqueladeestudarasrelaçõesdaliteraturacomahistória.
Dito isto, acrescento que, como baliza contrastiva aos antecedentes da escolha do
corpusficcionalesuasrelaçõesmaisimportantes,serãoconsultadasasinformaçõescontidas
nosegundoprocessocriminal,bemcomoaquelasencontradasemOmaiorcrimedaterra
5
.
 
4
BRASIL, Assis. Cães da Província. 8. ed.. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999. Em 1987, Assis Brasil
defende, perante banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, sua tese de
doutorado,oromanceCãesdaProvíncia,queganharianoanoseguinteoPrêmioLiterárioNacional.
5
EmrelaçãoaoensaiohistóricoOmaiorcrimedaterra,deD.Freitas,CláudioPereiraElmiremsuatesede
doutorado,Ahistóriadevorada:norastrodoscrimesdaruadoArvoredo,defendidanoanode2003naUFRGS
–noanoseguintepublicadacomolivro,sobomesmotítulo–alémdeestudarosdiferentesmomentosemquese
deu a apropriação discursiva dos acontecimentos referentes aos crimes da rua do Arvoredo, se empenha em
mostraraprecariedadedatesedeD.Freitasreferenteaocasodocanibalismo.Elmiranalisacomoesseautorse
vale,paraademonstraçãodesuasideias,doapoioemdocumentosquesóeleconsultou,queninguémviueque,
depois da escrita do livro, foram perdidos. Além dessas questões, também não desconsideraremos que todo
discursoéideologicamentemarcadopelaseleçãoqueohistoriadorrealizadosfatospresentesnarealidade.Essa
seleçãocriaumsegundosentido,algoquejánãocorrespondeinteiramenteàrealidadeobservada,poisésabido
queosujeitodesempenhapapelativo noconhecimentohistóricoea objetividadedesseconhecimentosempre
contém uma dose de subjetividade. Caso contrário, esse “conhecimento produzido seria sobre-humano”
(SCHAFF, 1983, p. 12). Levando em consideração esses fatores, no decorrer deste trabalho dissertativo
apontaremosos pontos frágeis da obrade D. Freitas. No entanto,as informaçõescontidas no referidoensaio
serão tomadas como históricas e como baliza contrastiva para análise das narrativas ficcionais em Cães da
Província,deAssisBrasileemCanibais:paixãoemortenaruadoArvoredo,deDavidCoimbra.Acreditamos
que otrabalhodeD.Freitas constitui,assimcomo o processo criminale as narrativas jornalísticasda época,
importanteleiturasobreoepisódioefatoressencialparaareconstituiçãodosfatos.
Paralelamente,recorrer-se-á,quandopertinente,àsnarrativasjornalísticasdaépoca.Paraisso,
seráfeitooentrecruzamentodasnotíciasfornecidas,comointuitoderecomporosfatosesua
construçãono“calordomomento”.Asinformaçõescontidasnessasnarrativas,acrescidasda
peça jurídica e do trabalho de Décio Freitas, além de sustentar a análise e auxiliar no
contraponto, no contraste e no levantamento das possíveis relações com as narrativas
ficcionais,serãoconsideradas“aversãooficialhistóricadosfatos”.
Já em relação ao tema escolhido, justifico sua relevância por meio de alguns
argumentosprincipais,desenvolvidosaseguir.Masantes,éimportanteapontarqueoscrimes
daruadoArvoredosecaracterizamcomoeventoinsignificanteemenorsepostosaoladode
“fatoshistóricosconsagrados”dahistóriadoRioGrandedoSuldoséculoXIX,entreelesa
RevoluçãoFarroupilha(1835-1845)eaGuerradoParaguai(1864-1870).
Os crimes de assassinato dos quais foram acusados José Ramos e Catarina Palse
6
,
casal aparentemente comum,que moravaem PortoAlegrena entãoruado Arvoredo,hoje
CoronelFernandoMachado,nãoconstituemum“fatohistóricoevidente”,deacordocomas
concepçõesdoséculoXIX.Mas,comosesabedesdepelomenososurgimentodosAnnalese
das contribuições da nova história, a história não é apenas aquela dos “grandes fatos”; a
micro-história
7
vemreforçaressascontribuições,cujaspropostasdesenvolvem-seduranteos
anos 70 do século XX, a partir das obras e das considerações teóricas de um grupo de
historiadores
8
,entreosquaisnotadamenteCarloGinzburgeGiovanniLevi.
Levando em consideração as contribuições da micro-história, os crimes da rua do
Arvoredo, aparentemente irrelevantes, ocorridos em meados do século XIX, na pequena
cidadedosuldomundo,representamumtemapassíveldeseranalisadoeestudado.Pretende-
seporintermédiodotrabalhodissertativoevidenciaresseepisódioquefazpartedahistóriado
Rio Grande do Sul, notadamente por meio de narrativas ficcionais, mas que foi negado e
 
6
Emrelaçãoao sobrenomedeCatarina,optamosporadotarnodecorrerdotrabalhoagrafiautilizadaporD.
CoimbraeporD.Freitas,“Palse”,emvezde“Palsen”,grafiautilizadaporAssisBrasilemCãesdaProvíncia.O
mesmosepodedizeremrelaçãoaosobrenomedochefe depolíciaresponsávelpelainvestigaçãodoscrimes.
Optamos pela grafia utilizada pelos mesmos escritores, Callado”, em vez de “Calado”, utilizada por Assis
Brasil–excetoemreferênciasàspersonagensdeCãesdaProvíncia.
7
 De acordo com Ronaldo Vainfas, em Os protagonistas anônimos da história: micro-história, os micro-
historiadores “combatiam a história somente preocupada com os fatos singulares, sobretudo os de natureza
política,diplomáticaemilitar.Combatiamigualmenteumahistóriaque,sepretendendocientífica,objetivavaa
verdade dos fatos, mediante a análise de documentos verdadeiros e autênticos [...]. Combatiam, enfim, uma
históriaquesefurtavaaodiálogocomasdemaisCiênciasHumanas,aantropologia,apsicologia,alinguística,a
geografia,aeconomiae,sobretudo,asociologia”(2002,p.16-17).
8
A atenção dos micro-historiadores volta-se para os pequenos eventos, deixando de lado a grande história
trabalhada pela historiografiadoséculoXIX. Observa-setambém grande esforçoporparte dos estudiosos da
micro-históriaemreconstruiravidacotidianadeumpovoqualquerdesprovidodearquivosedepersonalidades
ilustres.Ederecuperarahistóriaanônimavividalongedoscentrosdopoder,renegadapelahistoriografiaoficial
(GINZBURG,2007,p.251).
silenciado pela história tradicional por parecer insignificante quando posto ao lado dos
“grandesacontecimentos”doséculoXIX.
Apesar disso, os crimes da rua do Arvoredo representam um tema importante na
históriadoRioGrandedoSul,pois,alémdasuspeitadeoshabitantesdacidadeteremsido
transformados em involuntários canibais, o trágico episódio servirá para alimentar o
antigermanismo presente no Rio Grande do Sul no período. O fato de Catarina Palse ser
alemãedeo ougue,antesdeRamos, tersidodepropriedade dotambémalemão Carlos
Gottlieb Claussner, desperta a animosidade racial latente da cidade. O trágico episódio
tambémgerouumincidentediplomático,transformandooscrimesemumaquestãodeEstado
paraoImpério.
Comisso,PortoAlegre,palcodonefastoepisódio,naépocacompoucomaisdevinte
milhabitantes,aindasemnenhumarepresentatividadeeconômicaepolítica,ganhadestaque
emjornaisestrangeiros.Decertaformaoacontecimentocontribuiigualmenteparaalimentar
oantigermanismoemoutrospaíses.
Segundo D. Freitas, inclusive Charles Darwin teria escrito um artigo acerca do
episódioocorridonacapitalgaúcha.Em1868,ocientistateriarecebidonotícias–nãosesabe
se pormeio de jornais ingleses ou porinformações do cônsul inglês em Porto Alegre – e
escrito um comentário. Como podemos perceber, o acontecimento adquire contornos
complexos,queserãotrazidosàluzeexploradosnodecorrerdestadissertação.
Alémdisso,podemosafirmarqueoacontecimentoreveste-sedeextremapertinênciae
relevanteobjetohistoriográficoseforlevadoemconsideraçãooprocessodeficcionalização
porquepassouaolongodequase150anos.Comprova-seque,emborasetratedeum“fato”,
ocorridomaisde cemanos, oscrimesdaruadoArvoredoaindasãotemadepalpitante
atualidade, pois o caso continua despertando interesse em vários campos: jornalístico,
televisivo,literárioeartístico.Agravuraqueilustraacapadestadissertação
9
,deautoriade
Rodrigo Pecci, expressa o perene interesse pelos crimes. O desenhista faz o seguinte
comentário: “Há uns três anos, voltou-se a discutir essa lenda. Já morei na Fernando
Machado,semprepassavapertodolocaldoscrimes.Nagravura,mostroacenadoassassinato
[...]”(ZEROHORA,11mar.2010,p.3).Vê-sequeatéhojeamentedoserialkillercontinua
intrigando. Ocaso decanibalismo está presentena memória coletiva dos porto-alegrenses.
Contribuem para isso os diversos discursos produzidos a partir do episódio. O historiador
CláudioPereiraElmirchamaaatençãoparaaquestão:
 
9
PECCI,Rodrigo.Oscrimesda ruadoArvoredo,2010.1 gravura,metal,18x24cm gravura.Disponívelem:
<http://aconteceemportoalegre.blogspot.com/2010/03/grupo-aflexa-lanca-trabalho-no-shopping.html>.
Seexisteumpreceitoclássico,nahistória,segundooqualumdosrequisitos
paraaereçãodedeterminadoacontecimentoemfatohistóricoéjustamentea
notabilidadelogradapelo feito, os crimes da rua do Arvoredo alcançam tal
categorização não exatamente pela grandeza do ato nefasto praticado, mas,
bem mais, pelas representações que se operam a partir do mesmo,
caracterizadas, na estilização de que são portadoras, por um perigoso
afastamentodo“acontecido”queesnaorigemdessesdiscursos(2004,p.30).
Infere-sedaspalavrasdeC.ElmirqueoscrimesdaruadoArvoredoseconformaram,
enquanto fato histórico, em lugares e momentos diversos. As reapropriações sucessivas e
diferentes leituras do acontecido, em diferentes lugares e épocas, é o que lhe garante
notabilidadeecontribuiparaquenãosejaesquecido.
Nessaperspectiva,asmetasaseremalcançadasnestetrabalhodissertativosão:
1. RecomporahistóriadoscrimesdaruadoArvoredosegundoaversãoencontradaem
O maior crime da terra, de Décio Freitas, no processo criminal n.º 1070 e nas
narrativasjornalísticas.
2. SepararalendaeahistóriadoscrimesdaruadoArvoredo.
3. ObservarospontosdecontatoededistanciamentoentreLiteraturaeHistória.
4. Percorrer a trajetória do novo romance histórico e avaliar em que medida Cães da
Província,deAssisBrasil,eCanibais:paixãoemortenaruadoArvoredo,deDavid
Coimbra,encontram-seestruturadosdentrodonovosubgênero.
5. Analisaroepisódio“OscrimesdaruadoArvoredo”nasnarrativasficcionaisCãesda
Província e Canibais: paixão e morte na rua do Arvoredo, bem como o
entrecruzamentoentreliteraturaehistóriapresentenosromances.
6. EstudardequeformaCãesdaProvínciaeCanibaistrabalhamcomosupostocasode
canibalismoenvolvendooscrimes.
7. Avaliar em que medida Cães da Província e Canibais encontram-se estruturados
dentrodomodelo dametaficção historiográfica,proposto por Linda Hutcheon, bem
como analisar a subversão dos romances selecionados ao modelo tradicional
denominado“romancehistórico”.
8. Estudar as estratégias narrativas utilizadas pelos autores para subversão da versão
oficial que se conhece sobre os fatos, narrada por Décio Freitas, encontrada no
processocriminalenasnarrativasjornalísticas.
9. Apontar as subversões à narrativa oficial em Cães da Província e em Canibais e
levantarasnovasversõesdosfatospresentesnasnarrativasficcionais.
“OsTemposMudaram”
Amantes,poetas
Cientistas,estetas
Ostemposmudaram.
Mulheresdiscretas
Escribaspatetas
Ostemposmudaram.
Nadaécomoantes
Aluajánãotemamantes
Nemluar.
Voar,voar
Voltarnotempo
Remexernacinzadosegredo
VerdenovoaRuadoArvoredo
Esonhar.
Oscrimes
Ocastigo
Sentença
Prisão
Históriasempremalcontada
Almaperturbada
Ilusão.
Acasa
Oalçapão
Opoço
Oporão...
Memóriaqueficouguardada
Lendaarrebatada
Paixão.
GRECCO,s/d,apudELMIR,2004,p.92.
1. “OS CRIMES DA RUA DO ARVOREDO”: VERSÕES HISTÓRICAS,
JORNALÍSTICASELENDÁRIAS
1.1OMAIORCRIMEDATERRA:DÉCIOFREITAS
OinteressedeDécioFreitaspeloscrimesdaruadoArvoredosurgiuduranteosanos
40.Nesseperíodo,ErnestoCorrea,diretordoDiáriodeNotícias,visandoasuperaratiragem
do jornal Correio do Povo, designou a D. Freitas a tarefa de pesquisar alguns “crimes
célebres” ocorridos em Porto Alegre, para, em seguida, promover a novelização
sensacionalista dos fatos e editá-los sob forma de folhetim. O primeiro folhetim tratou
exatamentesobreoscrimesdeJoséRamoserecebeuotítulodeOaçouguehumanodarua
doArvoredo
10
.
Apósváriosanos,D.Freitasretomasuaspesquisassobreoassuntoeaspublicasob
formadeensaiohistórico
11
.Agoracomintuitodesepararahistóriaealendanoscrimesde
JoséRamos,ohistoriadorreproduzemOmaiorcrimedaterra:oaçouguehumanodaruado
Arvoredo,publicaçãode1996,oqueelepôderecuperardahistóriasobretaisfatos.
Issoposto,passemosàhistóriadoscrimesdaruadoArvoredo,segundoaversãodeD.
Freitas, encontrada em O maior crime da terra
12
; também recorreremos à importante
 
10
VeraesserespeitoojornalDiáriodeNotícias,PortoAlegre,dezembrode1948:“OouguehumanodaRua
doArvoredo”,folhetimdivididoemonzecapítulos.Oprimeirocapítulo,intituladoMisteriososdesaparecimentos
em1864,éapresentadonodia9dedezembro,eoúltimo,sobotítuloAlendaeoscrimesdeJoséRamos,nodia
23dedezembro,sobaautoriadeMaurícioMachado,pseudônimoutilizadoporD.Freitas.
11
As motivações que contribuíram para que D. Freitas retomasse suas pesquisas sobre os crimes estão
associadas à notícia do desaparecimento dos processos referentes ao caso. Segundo o historiador, a justiça
instauroucontraJoséRamostrêsprocessoscriminais,emtrêsvolumesseparados.Oprimeiroprocessoversou
sobre oassassinato do português Januário e seu caixeiro. O segundo se deteve no assassinato doougueiro
CarlosClaussner, e oterceirotraziaemseu bojo ocaso dalinguiçafeitadecarnehumana(1996,p. 17). Os
outros dois que versam sobre os assassinatos de Januário e seu caixeiro e os seis assassinatos ligados à
fabricaçãodelinguiçacomcarnehumanadesapareceramporcompleto,lançandoaocasocertaaurademistérioe
despertandomaiorcuriosidade.OjornalZeroHoradodiade16/6/1992,frenteaodesaparecimentomisterioso
dosdocumentosdoscrimesdaruadoArvoredodoArquivoHistóricodoEstado,questiona:“comooprocesso
do açougue humano da rua do Arvoredo passou de um arquivo para outro, numa transferência, no mínimo
irregular, eninguémsabia?Eumacerteza: odiaemque aprovíncia foicanibalcontinua assombrandoPorto
Alegremaisdecemanosdepois”(p.34).Defato,nãosesabequandotaisprocessosdesapareceramdoArquivo
Públicoenãosetemcertezasedefatoexistiuoprocessoreferenteaocasodalinguiçadecarnedegente.D.
Freitas (1996) afirma que esse processo ainda se encontrava no Arquivo Público em 1948, ano em que foi
fotocopiadopelohistoriador.
12
DiferentementedapropostadeD.FreitasnaelaboraçãodeOmaiorcrimedaterra,cujotextocomeçacoma
descriçãodamortedeJoséRamos,portantopelofim,optou-seporapresentarosfatosnumalinhacronológica,a
fim de torná-los mais claros para o leitor. A narrativa de D. Freitas sobre os crimes da rua do Arvoredo é
dividida emdoze partes, seguida de uma “Informação bibliográfica” ao final. Não existem seções distintas e
nomeadasnotexto,Introdução”e“Conclusão”.C.Elmir(2004)chamaaatençãoparaessefato.Segundoele,
parecehaverdeliberadopropósitodeseconstruiruma“narrativaúnica”,comomenornúmerodecortespossível
entreasunidadesquea integram.Emalguns momentosdaleitura, fica-secoma impressãodeque a divisão
propostacumpreopapeldedarfôlegoaoleitorparacontinuaraexecutarsuafunçãodedescobertadatrama.
contribuição de outros documentos históricos, expostos a seu tempo, com o objetivo de
recomporaversãohistóricadosfatos.
OscrimesdaruadoArvoredoperpetradosemPortoAlegrenosanosde1863e1864
contaram, além da participação de José Ramos e de sua companheira-cúmplice, Catarina
Palse,indubitavelmenteosmaioresresponsáveispeladesditadenovevítimas,tambémcomo
auxílio ecumplicidadedo ougueiroalemão Carlos Gottlieb Claussner,quemaistardese
torna uma das vítimas de José Ramos; do ferreiro alemão Henrique Rithmann, mais
conhecido por“ocorcunda”,e deCarlosRathmann
13
, quedesempenhamtarefasauxiliares,
masdamesmaformaespantosamenteperversas.Trata-se,pois,deumasociedadecriminosa
elaboradaporcincocomparsas.Comoeporqueestescriminosostãoatípicosseconhecerame
seenquadrilharamnomedíocreburgosulino,sãofatosquenãosesabe.
Noentanto,atravésdaleituradeOmaiorcrimedaterra,podemosinferirqueumadas
explicaçõesemotivaçõesparaoscrimesdeJoséRamosedeCatarinaPalsepodeserextraída
da história de vida particular de cada um deles. Ambos têm em comum acontecimentos
trágicosemsuasvidas.EmrelaçãoaJoséRamos,quandocriança,setemoseguinte:
Seupai,ManoelRamos,nasceunaprovínciadeSãoPedroenoinícioserviu
numesquadrãodecavalariadoexércitodeBentoGonçalves.Masdesertoue
fugiuparaSantaCatarina,ondecasoucomumaíndia,MariadaConceição,e
seestabeleceucomvendadesecosemolhadosnailhadoDesterro.Aínasce
JoséRamos,omaisvelhodostrêsfilhoshomens.Nosserões,opaicontaos
feitos da guerra, que José ouve atentamente. Pede ao pai que conte, sem-
númerodevezes,ascargasdecavalariaemquesedavaotoquede“degolar”,
insistindo para que ele dê os detalhes sobre o modo de praticar a degola
(FREITAS,1996,p.23-24).
Entende-se da passagem acima que desde a infância José Ramos demonstra grande
interesse a respeito dos feitos da guerra contados por seu pai, em especial pelo modo de
praticaradegola.Alémdisso,Ramos,najuventude,torna-separricida:“[...]umdia,járapaz,
saiemdefesadamãe,espancadapelopaibêbado.Nalutaentreosdois,Josélançamãode
uma faca e fere gravemente o pai, que morre dois dias depois. O parricida foge para a
provínciadeSãoPedro”(FREITAS,1996,p.24).
   
Segundo essa estrutura de exposição, o se tem, de imediato, a possibilidade de vislumbrar o roteiro a ser
seguidopelanarrativa.Elasupõe,aocontrário,umprocessodeapropriaçãopaulatinadahistória,quesedásem
oconhecimentopréviodaquiloqueseráoprópriolance.
13
Aemigraçãonãofoiumsucessoparatodososalemãeseháentreelesalgunsreduzidosàmarginalidade.Esse
é o caso de Carlos Rathmann, que aos 61 anos não tem ocupação ou morada fixas. Alcoólatra inveterado,
perambuladebotequimembotequim,filandobebida.Nessemomento,vivenaCascata,defavor,noranchode
umachácara.
D. Freitas, de certa forma, também explica o comportamento transgressor de José
Ramos pelo reconhecimento do ethos de animalidade e de violência constitutivo do ser
humanodemaneirageral(ELMIR,2004).Emoutraspalavras,eledefineaanimalidadecomo
“anaturezaessencialeimutáveldohomem”.Talafirmaçãoficaevidentenoexcertoaseguir:
Francamente,nãovejoocasodeJoséRamoscomoumaformapatológicade
manifestação da animalidade humana, visto que corresponde à natureza
essencialeimutáveldohomem,comoatestaoquadrosangrento,devastadore
caóticodestefimdemilênio,nasruasdascidadesenosconflitosbélicos.O
conceito de patológico não tem nada de científico, já que as diversas
disciplinas psicológicas não projetam luz capaz de explicar e prever estas
orgiashomicidas.Oqueahistóriadacivilizaçãoe,particularmente,docrime,
testemunhamforadedúvida,équeofenômenopodesemanifestaremtodos
osindivíduos,todosospovos,todosossistemassociais,semqueninguémou
nenhuma instituição sejam capazes de prevê-lo e, muito menos, impedi-lo
(FREITAS,1996,p.18-19).
Oautoracreditatambémqueoimpulso,amotivaçãodaviolênciahomicidadeve-seao
imenso e fantástico prazer proporcionado pelo poder de matar, de dispor da vida de outro
homem.Aindasegundoele,nochamadolatrocínio,avantagemeconômicaéapenaseventual
e, como o demonstra a história criminala exemplo tem-se a história dos crimesdeJosé
Ramos,queobtinhacompensaçõesmateriaisnadamaisdoquemodestas:
Ramosreúneasroupas eosobjetos pessoaisdasvítimas e guarda-osnuma
caixa,noquarto.Sempreguardoucuidadosamenteaspertençaspessoaisdas
vítimas,nãoasvendendoouusando.Sãocomorelíquias.Àsvezes,abreuma
dascaixas,retiraaspeçaseficalongotempoaolhá-las(FREITAS,1996,p.43).
O fim reservado para os objetos roubados por seu algoz afasta a hipótese de que
Ramosmatavaestritamentepararoubar.Ninguémteráamenordúvidadequeelesentiaum
imensoprazeremmatar,umprazeraindamaiordoqueoproporcionadopelaarte,queamava
apaixonadamente”(FREITAS,1996p.13-14).
AfiguratrágicadeCatarinaPalseimpõe-senestemomento,poisnaleituradeOmaior
crime da terra subentende-se também que é a sua sombria história familiar que fornece
elementosparaacompreensãodeseucondenávelcomportamento:
NasceunaHungria,masetnicamenteéalemã.Faziapartedaminoriaalemãda
Transilvânia pioneira no povoamento do território que viria constituir a
Hungria.Seupaieraumartesão-sapateironumaaldeiamuitopobre;alémde
Catarina, teve outros dois filhos. A tragédia começa quando, em 1848,
Kossuth promove a revolução húngara contra o domínio austríaco. No ano
seguinte, a Rússia invade a Hungria, a fim de ajudar a Áustria a sufocar a
revolta,deacordocomasestipulaçõesdoTratadodeViena.NaTransilvânia,
os russos não poupam atrocidades. Ao ocupar a aldeia, massacram os
habitantes, matando os pais e os irmãos de Catarina. Ela é estuprada pela
soldadesca,queadeixa semimorta.Tementão12 anos(FREITAS,1996 p.
36-37).
Antes de explanarmos sobre os primeiros crimes cometidos por José Ramos, é de
grande valia falarmos brevemente também sobre Carlos Claussner
14
, “peça chave na
engrenagem criminosa de José Ramos”, pois é do açougueiro alemão que parte a idéia de
transformaracarnedasvítimasemlinguiçaafimdefazerdesaparecer“literalmente”ocorpo
do delito. Em junho de 1863, Claussner conhece José Ramos e ambos imediatamente se
tornam amigos. Desde então, com grande frequência Claussner é convidado para jantar na
casadeRamos.DepoisqueCarlosGottliebClaussnerofereceuaJoséRamosagarantiada
impunidade,sugerindo-lhefazerlinguiçacomacarnedosmortos,providênciaquefariasumir
qualquertipodeprovadoshomicídios,“ochacalsaiuàcaçadevítimas”(FREITAS,1996,p.
111),dandoinícioàsériedeassassinatos.
JoséRamos,mestiço-claro,altoeforte,aos26anoscomeçaapraticarseusprimeiros
crimes. O largo do Paraíso – região do atual Mercado e da Praça XV de Novembro –
constitui-se emprincipal campo de caçadeRamos. O assassino busca pessoas do interior,
principalmenteanegóciosnacidade.Quandosepensaempsicopatia,normalmentenosvemà
mente um indivíduo truculento, compoucos atrativos; ou até mesmo acreditamos queseja
facilmente possível reconhecer um assassino sem pestanejar, mas, ao contrário do que se
pensa, nem sempre isso ocorre. O assassino da rua do Arvoredo, por exemplo, segundo
relatos,“seriacapazdeseduzirodemônio,diráopadreportuguêsAurelianoDias”(FREITAS,
1996, p. 26). Certamente, Ramos valia-se da boa aparência e das boas maneiras que
encantavamatodos,paraseaproximardesuasvítimas:
Veste-seimpecavelmente,suasbotasestãosemprebemlustradas;ocavaloé
bemaperado.Possuirazoávelinstrução,emboranãosesaibacomoadquiriu.
Além do português, fala e escreve alemão. Gosta de ler, e suas leituras
prediletas são a poesia e a Bíblia, massua grande paixão é a música, que
procuraouvirondequerqueatoquem.Quasetodasasmanhãs,vaiàmissana
matriz e quase sempre comunga. Fanático por limpeza, detesta a obscena
sujeiradacidade(FREITAS,1996,p.26).
 
14
 Carlos Gottlieb Claussner nasceu em Markersdorf, Saxônia, em 1828, filho de João Gottlieb Frederico
Claussner. Antes de emigrar para o Brasil, Carlos exerce profissão de tecedor de meias. Em maio de 1861
embarcaparaoBrasil.JáemPortoAlegre,assimquechegaàcidadeseestabelececomumaçouguenaruada
Ponte–atualruaRiachuelo–pertodosfundosdaIgrejadasDores(OSCRIMESDARUADOARVOREDO,
1993).
Adescriçãodosprimeirosseisassassinatos,segundoaversãopropostaporD.Freitas
15
,
serveparasustentaratesedafabricaçãodalinguiçacomcarnedasvítimasedocanibalismo
involuntário pela população de Porto Alegre. A ordem dos primeiros assassinatos é a
seguinte: primeiramente Ramos mata uma colona alemã de Santa Cruz, chamada Luísa –
nuncasesoubetodooseunome–,que,segundoconsta,estavaemPortoAlegreparavender
uma grande partida de charutos. Ramos a conhece numa casa de pasto do Mercado e a
convidaparacearemsuacasananoiteseguinte.Emseguida,Ramosdirige-separaoaçougue
daruadaPonte,ondeconfabulacomClaussnereHenrique,ocorcunda.Nessamesmanoite,
os dois comparsas transportam para a rua do Arvoredo dois baús de madeira, trazidos da
Alemanha por Claussner, um maior e outro menor, que mais tarde será utilizado para
transportarocorpodeLuísaatéoaçougue
16
.Nanoitede2dejunhode1863avítimavaiatéa
casadeRamos.
Emdadomomento,Ramosvaiàcozinha,voltaempunhandoummachado;fende-lhea
cabeçadealtoabaixoeemseguidaadegola.ArrastaocadáverdeLuisaparaoporãoeaío
esquarteja,colocandoospedaçosnosdoisbaús.ComaajudadeClaussnereHenriqueosbaús
sãotransportadosparaoouguedaruadaPonte.Claussnerimediatamentepõeosàobra,
napresençadeRamoseHenrique:
O açougueiro desossa a carne e a mói numa pequena máquina. Tempera a
carnecomsal, pimentae outrasespeciarias.Pegatripassecas,intatasesem
furos,eataumadaspontascombarbante.Napontaqueficouaberta,coloca
umcanudo,atravésdoqualintroduzoguisado.Quandoatripaestácheia,ata
a segunda extremidade com um barbante. Com uma agulha, faz pequenos
furosnalingüiça,afimdeverificarseficoualgumar.Issofeito,penduraa
lingüiçanumarameestendidonosfundosdoaçougue.Nopátiodoaçougue,
osossossãoincineradoseascinzasjogadasnoGuaíba(FREITAS,1996p.
113-114).
 
15
AreconstituiçãodascircunstânciasdasseismortesrelatadasporD.Freitaséfeitaatravésdodepoimentodado
porCatarinaaochefedepolíciaGervásioCampelloemoutubrode1868.Segundooautor,estedepoimentoteria
sidodadoapósumaconfissãodeculpaporescritofeitaporCatarina,emabrilde1868,quefazchegaràsmãos
do referido chefe de polícia um caderno, em um dialeto alemão. D. Freitas reproduz trechos de um e outro
documento(aconfissãodeculpaporescritoeodepoimentoposteriormentedado),deixandoentenderqueambos
fazempartedoprocessoposteriormentecontraJoséRamos.
16
Em contrapartida, as informações contidas nos autos do processo e o depoimento da testemunha Gustavo
Adolfo EduardoKoboldt não autorizam a afirmação categórica de que Luísatenha sido assassinada por José
Ramos.Noprocessocriminalaqueseteveacesso,arespeitodacolonaalemãquefiguraentreasvítimasdeJosé
Ramos,decujoscorposseriamanufaturadalinguiçadecarnehumana,constaapenasqueemtornodetrêsmeses
antesdadescobertadosassassinatosveiodeSantaCruz umaalemã,cujonomeointerrogadonãosabia,para
venderumaporçãodecharutos.Segundoatestemunha,essamulherteriafeitoalgumascompras,pago,eo
teriarecebidoosobjetosquecomprara;edepoisdisso,teriadesaparecidosemdespedir-sedeninguém,e,por
essefato,depoisdedescobertososcrimesdeJoséRamos,entreosalemãesterianascidoadesconfiançadeque
tambémessamulhertivessesidoporeleassassinada(OSCRIMESDARUADOARVOREDO,1993,p.23).
Duas noites depois damorte de Luísa é assassinadoum colono de Nova Petrópolis
chamado Afonso,queveio à capital afim de fazercompras para sieparaoutroscolonos.
Comopassardotempo,maisduasvítimassurgem:Schmitt,comerciantedeSãoLeopoldo,e
Winkler,comerciantedoRiodeJaneiro–ambosatraídosporCatarinaPalse.
Emmeadosdejulhode1863,Ramoscometeoquintoassassinato.Destavez,avítima
éumalemãodeSantaCatarina,cujonomenãosesabe,ummarujoqueeleconhecenuma
casadejogoequeconvidaparacearemsuacasa.Ramosprocedecomoodecostume.
Asextavítimaéassassinadanocomeçodeagosto.Trata-sedeumalemãochamado
Hans Fritsche, residente em Montevidéu. Ramos conta com o auxílio de Henrique, para
arrastaravítimaatéacasa,ondeFritscheédegolado.
DeacordocomaversãodeOmaiorcrimedaterra,emtodososseisprimeiroscasos,
oscorposdasvítimasforamtransformadosemlingüiças,vendidasporClaussneramandode
José Ramos e a baixo preço, para as autoridades da cidade. Como não pode matar os
poderosos, vinga-se deles, induzindo-os à prática que infringe um sacrossanto interdito
observadoportodososanimais,istoé,nãocomeroutrosdamesmaespécie:
Mata para afirmar sua superioridade e sua força sobre as pessoas que
despreza. Escolhe suas vítimas segundo sua fraquezae sua vulnerabilidade.
Mas também mata para manifestar seu desafiador desprezo pelos que se
consideramsuperioresemaisfortesporquetêmpoder,conformeseverápelo
empenhodeofereceralingüiçadecarnehumanaàsautoridadesdaprovíncia
(FREITAS,1996,p.35).
Repentinamente termina a amizade entre José Ramos e Carlos Claussner, e este se
tornaumadasvítimasfatais.Issoporque,comopassardotempo,ClaussnercomunicaaJosé
Ramosqueestavacansadodaquiloetemiaqueahistóriaganhasseoconhecimentodetodos;
diztambém quenãoparticipariamaisdoscrimesequeestavapensandoemmudar-separa
Montevidéu.Apartirdisso,oaçougueiroéameadoporRamos.Claussner,porsuavez,ameaça
contartudoàpolícia.Nãotevetempodefazê-lo,pois,nanoitede2desetembrode1863,
RamoseRathmannmontamacavalonaruadoArvoredoesedirigemparao
açougue, levando o facão e a machadinha. Ramos possui a chave e entra,
deixandoRathmanndoladodefora.Claussneréatacadoenquantodorme.O
machadolhefende acabeçadealto a baixo. AindaviveenquantoRamoso
degolacomofacãodedoiscabos.Atocontínuo,Ramospassaaesquartejaro
cadáver,metodicamente,comoéseucostume(FREITAS,1996,p.77).
Ospedaçosdavítimaealgunsdeseuspertencessãotransportadosdentrodosbaúspor
doisescravos-de-ganhoatéaruadoArvoredo.Nopátio,Ramosenterraosdespojos.Nosdias
que seguem, Ramos gasta de forma abundante o dinheiro roubado da casa de Claussner,
dizendoatodosquehaviaganhonaloteria.Espalhaaomesmotempoquecomprouoaçougue
deClaussnerefazquestãodeexibirumreciboquecomprovaatransação,quemaistardese
comprovaráserfalso.Paraumcomercianteportuguês,vizinhoeamigodeClaussner,Ramos
disse queClaussnerhaviase retiradoparaa colônia deNovaPetrópolis.A outraspessoas,
RamosdiráqueClaussnerviajouparaMontevidéu.Oaçougueirodefatofalavaultimamente
em mudar-se para a Banda Oriental, mas seus conhecidos estranharam que não tenha se
despedido
17
.
Sentindo-se inseguro desde a morte de seu parceiro, em setembro de 1863, José
Ramos permanece por sete meses sem matar, o que decide fazer somente em meados de
marçode1864,quandoconheceoportuguêsJoséLuisdeCaldasQuintella
18
nacasadeLuís
AntônioRodriguesPríncipe,seufiadornacasadaruadoArvoredo.Ramosaproxima-sede
QuintellasobopretextodepossuirumaletradePríncipeeconvidaavítimaparairatéasua
casa na rua do Arvoredo a fim de mostrar o documento
19
. Quintella diz-lhe que isso era
mentira, pois haviaummêsqueele mesmo,Ramos,lhe dissera quesenegara aemprestar
dinheiroaPríncipe.
Noentanto,osesabeaocertoporquerazão,orapazdecideiratéacasadeRamos
paraaveriguar.Nodiacombinado,aochegaràcasadeJoséRamos,Quintellaérecebidopor
Catarina,quelhedizqueRamoshaviasaídomasnãosedemoraria.Quandoestáparaentrar
nacasa,avistaporumajanelaumhomemquepareceescutareespreitar,cujafisionomialheé
desconhecida–maistardesesaberáquesetratavadeHenrique,ocorcunda(OSCRIMESDA
RUA DO ARVOREDO, 1993, p. 23). Quintella não identifica o homem, mas intui o
significado de toda a cena e decide ir embora. Foi sua salvação, pois, conforme se soube
 
17
EstareconstituiçãoquesepodefazerdoassassinatodeClaussnerestánabasedeinformaçõesdispersasdos
processoseparticularmentedaconfissãoqueCatarinafazem1868,quatroanosapósadescobertadoscrimes
(FREITAS,1996,p.79).
18
JoséLuisdeCaldasQuintellaveioaPortoAlegreafimdearrecadaroespóliodeseusdoisirmãos,Manuele
Antônio,padeirosàruadeBragança,assassinadosdentrodecasaporseusescravosDelfino,SilvestreeCamilo,
fugidosparalugarincerto.LuisAntônioRodriguesPríncipefiguraentreosdevedoresdosirmãosassassinadose
Quintellaexigepagamentoimediato,sobpenadeprotestoefalência.
19
Quandomaistardeforouvidopela polícia, LuizAntonioRodriguesPríncipenegarácategoricamente dever
qualquer quantia a José Ramos. Comprova-se que é falsa a alegação de Ramos de que possuía uma letra de
Príncipe. Inclusive o jornal Mercantil de 22/04/1864 publica uma nota a pedido de Príncipe desmentindo a
notíciadequeelehaviapassadoumaletraemseunomeaJoséRamos.Apesardetudo,transparecequehavia
bastante intimidade entre os dois; não é sem motivo que Príncipe se tornou fiador de Ramos. Sabe-se que
PríncipeautorizaaproprietáriadacasadaruadoArvoredoafornecerachavedaresidênciaaJoséRamos,nodia
11dejulhode1863,sobsuaresponsabilidadepelaquantiadequatorzemilréispormês(OSCRIMESDARUA
DOARVOREDO,1993,p.67).
depois
20
, José Ramos estava no interior da residência, ao que tudo indica,à esperade que
entrasse,paramatá-lo.
Podemos considerar a possibilidade de que a ida de Quintella à casa da rua do
Arvoredotivesseointuitomaiordefazersondagens,poishaviarumoressobreacumplicidade
e participação de JoséRamos noassassinato dos irmãos
21
de Quintella. A polícia, quando
investigaosdoisúltimosassassinatosdeRamos,emabrilde1864,fazindagaçõessobreuma
possívelligaçãoentreeleeostrêsescravosqueassassinaramosdoispadeirosportuguesesna
ruadaBragança,emjunhode1863.MasosupostoenvolvimentodeRamosnasmortesdos
doispadeirosnãoécomprovado.
ApósafracassadatentativacontraQuintella,Ramoslança-senumestadodeprofunda
prostração. Esse estado de ânimo muda quando sua amante Catarina Palse lhe sugere que
mateocomercianteportuguêsJanuárioMartinsRamosdaSilva.Emumasexta-feira,15de
abril,Ramosvaià tavernadeJanuárioparalhefalardeumótimonegócioenvolvendoum
carregamento de milho a preço baixo e, após, convida-o para jantar à rua do Arvoredo,
convitequefoiaceito.
Duranteotrajetoàcasaondeocorreriaojantar,JoséRamoseocomercianteportuguês
passamporJoséInáciodeSouzaÁvila,umdoscaixeirosdeste.JanuáriochamaJoséelhediz
queseoprocurarempormotivourgente,deveavisá-lonacasadeRamos.Duranteojantar
Ramosvaiaoquarto,voltaàvarandaempunhandoummachadoeatacaJanuárioalimesmo
navaranda.Emseguida,
Arrastaocadáverparaoporãoeodespecompletamente.OrdenaaCatarina
quelimpeosangue,montaacavaloesaiembuscadocaixeiroJosé.Encontra-
senatavernadaruadaIgreja,ediz-lhequeJanuáriomandarachamá-loàcasa
daruadoArvoredo.Segue-osumcãozinhopretocomumamalhaquevaida
garganta ao ventre. Pertence ao Januário, mas afeiçoou-se ao menino. [...]
Oferece-lhecaféepão;depoisconvida-oasentar-senosofá.Entranoquartoe
volta com o machado. [...] Depois de degolado,o corpo é arrastado parao
porão.Quandovoltaàsala,Ramosouvedoladodeforadacasaumgemido
dolorosodecão.Juntoàportaobichogemeearranhaamadeira.Agarradoe
levadoparaoporão,édegolado(FREITAS,1996,p.42-43).
Em todos os assassinatos, José Ramos segue sempre o mesmo método. Num
movimentorápido,fendeacabeçadavítima,dealtoabaixo,eemseguidaadegola.Após
 
20
AinformaçãodequeJoséRamosseencontravanaresidêncianahoraemqueQuintellaesteveasuaprocuraé
fornecidaporCatarinano depoimentoque dáaochefe depolíciaDárioCallado(OSCRIMES DARUA DO
ARVOREDO,1993,p.14).
21
OjornalMercantilde20/04/1864comentaoboatoque“percorria”acidade:asupostacumplicidadedeJosé
RamosnamortedosirmãosdeQuintella.Issopermitepensarque,aoterouvidorumoressobreacumplicidade
deRamosnoassassinatodeseusirmãos,QuintellateriaidofazersondagensnacasadaruadoArvoredo.
esquartejar os dois corpos, joga as postas sangrentas num poço abandonado no tio,
cobrindo-ocomlixoegalhosverdes.
Apóscadamorte,Ramostambémcumpreomesmoritualobsessivo:
Senta-seàmesa,recitaumsalmodaBíbliaecomesofregamenteoquelheé
servido por Catarina. Se escanhoa e toma um banho. Estes banhos que se
seguemaosassassinatos,sempresãodemorados.Nuncaficanatinamenosde
umahora.Veste-selentaecaprichosamente:camisadeseda,sobrecasacade
pano preto, colete de casimira e alfinete na gravata. Perfuma-se
abundantemente,mais queo habitual [...]O agentedaviolênciae damorte
senteumapaixonadointeressepelaarte.Atravésdesta,eleseespiritualiza;o
homemrecobraseusdireitossobreochacal.Faz-setransportaratéoteatroSão
Pedro[...]QuandonãoháespetáculonoSãoPedro,vaiaovelhoteatrinhoda
ruadeBragança[...]Amúsicacomove-oatéaslágrimas(FREITAS,1996,p.
45-47).
Os crimes do casal começam a vir à tona desde o desaparecimento do português
Januário e seu caixeiro, pois a partir desses dois últimos assassinatos, começa-se a se
desvendar a trama. Ramos comete seus sete primeiros assassinatos à noite, protegido pela
semiescuridão.Dificilmentevizinhosoupassantesidentificariamasvítimasquandoentravam
na casa escura da rua do Arvoredo: “A partir de 1864, o criminoso rompe seu padrão
compulsivo e passa agir de dia. Asimprudências que comete no caso de Januário são o
gritantes, durante várias horas circula pela cidade na companhia de sua futura vítima”
(FREITAS,1996,p.40).Osvizinhosinformamàpolíciaque,nodiaanterior,Januárioeo
meninoforamvistosnacompanhiadeRamos.
Nodiaseguinte,JoséRamosrecebeumaintimaçãoparacomparecerimediatamenteà
presençadochefedepolícia.Oacusadoadmiteaochefedepolícia,DárioRafaelCallado,que
estevecomocomercianteportuguêseseucaixeiro,masalegaqueambosembarcaramemum
lanchão parao Caí. Seusargumentos nãoconvencem Calladoe, a partirdisso, oassassino
passa aservigiadoatéser presonooutro dia. Calladoseapresentanamanhã dasegunda-
feira,18deabrilde1864,àruadoArvoredo,paraprocederaumaapreensãonacasadocasal.
No interior da casa as manchas de sangue o evidentes. No porão da cozinha são
achadosdoismachados,bemcomoumaserra.Sãoapreendidosriosobjetosquedepoisse
revelarãoprovasdecisivas,entreeles,achavedatavernadeJanuário,encontradanomeiode
umasmoitas.SobordensdeCallado,osdoisgalésqueacompanhavamacomitivapolicialsão
postosaescavarnotioeencontramosrestosdetrêscorpos.Doisdelessãoidentificados
comosendodeJanuárioeseucaixeiro.Ochefedepolícianãoconsegueidentificaraquem
pertencemosrestosdoterceirocorpoencontrado:
Dequeméocadáverencontradonasduascovasdopátio?Ramos,Catarinae
Senhorinha
22
declaramquenãosabem.Inútilinsistir:nãotêmidéiadequem
possaser.OchefedePolíciamandareconduzirostrêsàprisãoeintensificaas
investigações sobre a identidade do desconhecido. Ao entardecer, surge a
hipótesedequeosrestoscadavéricosdasduascovassejamdeCarlosGottlieb
Claussner
23
, oaçougueiro darua da Ponte, desaparecido desde setembro do
anoanterior(FREITAS,1996,p.52).
Após a descoberta dos cadáveres no quintal da casa de Ramos, dadas as inegáveis
evidências do crime, tornou-se inevitável que as autoridades competentes tomassem uma
resoluçãoadequadaparaocaso.JoséRamoseCatarinaPalsesãopresoseconduzidosparaa
delegacia. Pressionado pela opinião pública, Callado imprime excepcional importância ao
inquérito
24
,ouvindoemquatrodiasosacusadosetodasastestemunhas,presidindooprocesso
judicialnacondiçãodedoutorjuizdedireitoechefedepolícia
25
.
Osinterrogatóriosacontecemnosdias18a22deabrilde1864
26
.Primeirointerroga-
se Catarina Palse. Sua estratégia consiste em admitir aquilo que não pode ser negado: a
autoria de José Ramos no assassinato das pessoas cujos cadáveres foram encontrados no
quintal.Tentaatenuarasuaresponsabilidade,alegandoquefoimeraespectadora.Masestá,
sobretudo, interessada em evitar que venham à tona os crimes de 1863; como se sabe, a
acusadaatraiuatéacasadaruadoArvoredopelomenosduasdasvítimas.
 
22
A escravaque atendiapeloapelidode Senhorinha morava na casa de Ramos. Ali pernoitavae comia;nos
intervalosdoseutrabalhodelavadeira,trabalhavanacasa,emboranãofossesuaescrava.Também,maistarde,é
interrogada pela polícia.Após prestar depoimento,Senhorinhaéliberada,pois seconstataqueela oestava
envolvidanosassassinatos.
23
Nodecorrerdodia,asinvestigaçõesreforçamasuposiçãodequeosrestosencontradosnoporãopertenciam
aoougueiroClaussner.AmigosidentificaramcomodoaçougueiroobjetosencontradosnacasadeRamos.A
comprovaçãovemdosdicoslegistasJoaquimPedroSoareseManuelPereiradaSilvaUbatuba,que,mesmo
atestando em seu laudo a completa decomposição do cadáver, observam um brinco de ouro preso aos restos
mortais da vítima. O prussiano João Tehse, amigo de Claussner, faz a identificação cabal, afirmando que o
amigousavaumbrincodeouronaorelhaesquerda(FREITAS,1996,p.75).
24
ValeressaltarquedasprimeirasdiligênciasfeitasnacasadaruadoArvoredoaojulgamentofoitudomuito
rápido.Em relatórioà Corte, opresidente daProvíncia,JoãoMarcelino,gabará apronta eeficienteaçãoda
polícia”.Mas,deacordocomD.Freitas,essamesmaeficiênciacontrastacomadisplicênciapolicialnocasodas
outras vítimas. Os parentes destas comunicaram seus desaparecimentos à polícia; inclusive o cônsul alemão
pediuprovidências,mas não hánotíciadequalquerdiligênciapolicial(FREITAS,1996,p.48).Dessaforma,
pode-seassociaraagilidadedapolícianocaso,apartirdasuspeitadodesaparecimentodosdoisportugueses:
Januárioeseucaixeiro.
25
Édegrandevaliachamaraatençãoparaoexercíciosimultâneoousucessivodasfunçõesdechefedepolíciae
dejuizdedireito,emmeadosdoséculoXIX.Talpráticaeraautorizadapelaleiemalgumasprovíncias,comono
RioGrandedoSul,ondeeramescassasaspessoascomformaçãojurídica.Ainstruçãodoinquéritopolicialé
feitapeloprópriochefedepolíciaDárioCallado.NocasodoscrimesdeJoséRamos,oexercícioconcomitante
dasfunçõesdechefedepolíciaejuizdedireitopermiteaCalladoevitarquesurjamrevelaçõesconstrangedoras
sobreseusvínculosfuncionaisepessoaiscomocriminoso,jáqueesteserviacomoinformante.
26
Éimportantelembrarqueosacusadosnessaocasiãosãointerrogadosarespeitodostrêscorposencontradosna
casadaruadoArvoredo:odeJanuário,seucaixeiroeodeClaussner.
Em seguida Callado interroga José Ramos. O interrogatório deste será pobre em
resultados. Apesar das evidências mais clamorosas, ele negará tudo sistematicamente,
sustentandoversõesinverossímeis.Nessaocasião,Ramosinsinuaqueosassassinatosforam
obradeCatarinaeHenrique,ocorcunda.
Aosermencionado,Henriquetambéméchamadoparaprestardepoimento.Henrique
teveparticipaçãonasseisprimeirasmortes.AoserquestionadosobreClaussner,negahavê-lo
sequerconhecido,despistandoqualquersuspeita.Dessaforma,ochefedepolíciamanda-oem
paz,livredesuspeitas.Nessemesmodia,alémdeoutraspessoas,taiscomoamigosevizinhos
deClaussneredeRamos
27
,é ouvidaSenhorinha.Suasdeclaraçõescomprometemaversão
através da qual Catarina procurou isentar-se de envolvimento nos assassinatos. Também
Carlos Rathmann, apesar de seu envolvimento no crime de Claussner, sai-se bem no
interrogatório.
Duranteointerrogatóriodosacusados,oscomerciantesalemãesfechamasportasdos
seusestabelecimentos,porprecaução,poiscorriamnotíciasdequeocomercianteportuguês
Januárioeseucaixeiroteriamsidoexecutadosporimigrantesdeorigemgermânica.Talfato
podeserexplicadoatravésdastensasrelaçõesentreascomunidadesluso-brasileirasealemã.
Osjulgamentospelojúrisãomarcadosparaosdias12e13deagostode1864.São
realizadosnaCâmaradeVereadores
28
.Nodia12,JoséRamoseCatarinaPalsesãojulgados
pelo assassinato de Januário e seu caixeiro. Ele é condenado à pena de morte na forca.
Catarina,porsuavez,comocúmplice,a13anose4mesesdeprisão,comtrabalho.
Maistarde,sabe-sequeapenademortedeRamosécomutadaparaprisãoperpétua,
com trabalho
29
. De acordo com D. Freitas, no período em que os crimes ocorreram,
determinava a leique,quandohouvessecondenaçãoàmorte, ojuiz devia apelar ex-officio
paraainstânciasuperioreoréupodiaprotestarpornovojulgamento,oqualinvariavelmente
serealizava.Houve,portanto,umsegundojulgamento,cujadecisãoédesconhecida.Nãose
sabeseessacomutaçãoresultoudedecisãodosegundojúrioudegraçadoImperador.Esse
 
27
ComparecemparadeporoprussianoGustavãoAdolfoEduardoKoboldteonegocianteportuguêsJoséLuisde
Caldas,AugustoKarim,onegocianteportuguêsLuisAntonioRodriguesPríncipe,JoãoGabrielVonkerkovee
sua esposa, a prussiana Isabel Bossing – anos depois, ela terá papel importante na revelação dos crimes da
linguiçadecarnehumana–basicamenteessaspessoasconfirmamtudoquantoseapura,masnãodizemtudoo
quesabem.AnosdepoissedescobriráqueavizinhançajásuspeitavadasmonstruosidadespraticadasporJosé
Ramoseseuscomparsasemmeadosde1863,masomedolhes“selaoslábios”(FREITAS,1996,p.88).
28
O interesse pela sentença foi realçado pela presença de importantes personalidades, entre elas o tribuno
SilveiraMartins,ojornalistaCarlosvonKoseritzeoescritorCaldreeFião.
29
Sabe-setambémqueocasoaseguirpermiteaRamosamenizarascondiçõesdesuaprisão.Elecompartilhaa
celacomummulatochamadoJoaquim,proprietáriodeumescravo,valendo-sedosseusserviçosparafazera
limpeza da cela e outros serviços mais que competem ao acusado. Ramos receberá privilégios na cadeia,
compartilhará da comida dos guardas. Tanto no interior do presídio como fora dele, é escalado para
supervisionarotrabalhodosdemaispresos.
fatoéusadocomoumdosargumentosporD.Freitasquesustentamaposiçãodequehouve
apagamentodeliberadodosacontecimentosdaruadoArvoredodamemóriadacidade.
Nodia13deagostode1864,JoséRamoseCarlosRathmannsãojulgadospelamorte
deCarlosClaussner.JoséRamosécondenadoa14anoseummêsdeprisãocomtrabalhoea
pagarumamultade150milréis,importânciaresultantedeumaavaliaçãojudicialdosobjetos
epertencesdeClaussnerfurtadosdoaçougue.QuantoaCarlosRathmann,eleéabsolvidopor
unanimidade,poisoprópriopromotorconsideramuitofrágeisasprovascontraele.Catarina,
por sua vez, é deixada de fora, pois o juiz tem a faculdade de absolver o acusado sem
julgamentopelojúri.
JoséRamoseCatarinaPalsepassamacumprirapenanopresídionasproximidadesda
PraçadaHarmonia.Sabe-sequesãopermitidosencontrosesporádicosentreocasal.Masa
partirde1866,Catarinaserecusaanovosencontros.Emabrilde1868
30
,Catarina,segundoa
versão de D. Freitas, teria feito chegar até as mãos do novo chefe de polícia, Gervásio
Campello,substitutodeDárioCallado,“umcaderno,noqualhá54folhasescritasalápis,em
dialetoalemão”(FREITAS,1996,p.104).
Emagostode1868,aautoridadepedeaointérpreteJúlioHenriqueKnorrquetraduza
otextodocaderno.Trata-sedeumtextoqueconciliacitaçõesdaBíbliacomrevelaçõessobre
oscrimes.Emoutubro,CampellorecebeCatarina
31
,quedesejacontartodaaverdadesobreos
crimes, motivada pelo relacionamento de amizade e religioso que mantinha com Isabel
Kerhkove. Catarinaconta aCampello oenvolvimento deRamoscomCarlosClaussnerea
maneiraqueencontraramdeimpedirqueosassassinatosviessemaserprovados.Paraisso,as
vítimas seriam esquartejadas e suas carnes usadas para fazer lingüiça, de modo que os
cadáveresdesapareceriamenunca sepoderiaprovarnada.Catarinarelataascircunstâncias
dasmortesdasseisvítimasdeJoséRamosem1863,decujoscorposforamfeitaslinguiçasa
seremconsumidaspelapopulaçãodePortoAlegre,emespecialpelasautoridadesdaregião,
 
30
AinformaçãofornecidaporD.FreitasdequeCatarina,emabrildoanode1868,fazchegaratéasmãosdo
chefedepolíciaGervásioCampelloosupostocadernocomsuasconfissões,emaistarde,emagostodomesmo
ano, Campello teria pedido a tradução do conteúdo do caderno, é duvidosa, pois consta no quadro de
correspondênciaentrepresidentesdaProvínciaechefesdepolíciadoRioGrandedoSulnadécadade1860,que
Gervásio Campello foi nomeado e tomou posse do cargo noano de 1865 e teria se exonerado no dia 06 de
novembrode1867,removidoparaSantaCatarina.Portanto,umanoantesdadataemque,segundoD.Freitas,
CampelloteriarecebidoocadernocomasconfissõesdeCatarina,ochefedepolíciajáestavatrabalhandofora
do Rio Grande do Sul. Ficou em seu lugar Belarmino Peregrino da Gama e Mello, nomeado no dia 6 de
novembrode1867eexoneradoemjunhooujulhode1868,eeste,porsuavez,foisubstituídoporJoãoCoelho
Bastos,quepermaneceuentre29deagostode1868e20deagostode1870.Essesdadosnospermitempensar
que D.Freitas possivelmente se tenha equivocado quanto ao nome do chefe de polícia que teria recebido os
escritosdeCatarina(ANEXO12,apudELMIR,2008,p.282).
31
OnovodepoimentodeCatarinaPalseéreconstituídoatravésdolivrodememóriasdeFranciscoJoséFurtado,
chamado Minhas viagens pelo Brasil (Recife, 1891). Furtado, magistrado maranhense, teria assistido ao
interrogatório(FREITAS,1996,p.136).
que involuntariamente teriam praticado o canibalismo. Conta-lhe sobre a cumplicidade de
HenriqueRithmannedeCarlosRathmannnoscrimes.AfirmaaindaqueJoséRamoseseus
comparsaseramcanibaisconscientes,poisemtodososcasosprovaramalinguiçaantes de
colocá-laàvenda,inclusiveelaprópriatambémteriaconsumidoalinguiçadecarnedegente.
Elaconfessaseuenvolvimentodiretoempelomenosduasmortes,deSchmitteWinckler,os
homensqueatraiunobecodoCéu.Suacumplicidademilitanteseconstituitambémnofatode
instigareanimarRamosacometerosassassinatos.Depoisexpõeasrazõesdoassassinatode
CarlosClaussner.
José Ramos e Henrique Rithmann são chamados para prestar novo depoimento.
Ramosnegatudo.Henrique,ocorcunda,porsuavez,confirmatudooquedisseraCatarina.
Nessa ocasião, échamada também para serouvidaIsabel Kerhkove, queafirmano ano de
1863 ter sido confidente de Catarina, que lhe contou os crimes de José Ramos. Campello
resolveouviralgunsalemãesquejáhaviamprestadotestemunhoem1864:“paraespantode
Campello,todosadmitemqueem1863tinhamouvidofalarnosassassinatosenafabricação
de lingüiça de carne humana, mas o tinham certeza e temiam fazer acusação falsa”
(FREITAS,1996,p.123).Édecausarestranhezaque,apesardaparticipaçãodeRathmann
noscrimesde1863,oacusadonãotenhasidochamadonovamente,assimcomoosdemais,
paraprestarnovodepoimento.
Terminadasasinquirições,ochefedepolíciahesitasobreopróximopassoadarno
inquérito,frenteàsituaçãodenãosepoderpreverqualseriaareaçãodosmoradoresdacidade
quando soubessem que de fato teriam consumido carne humana feita pelas mãos de
açougueiro alemão. “As conseqüências seriam imprevisíveis, e na hipótese mais favorável,
criar-se-ia um clima de persistente hostilidade aos imigrantes, desestimulando a política
imigratória que o governo imperial desenvolvia com excelentes resultados econômicos”
(FREITAS, 1996, p. 125). Em prolda ordempública, ochefe depolícia, noexercício das
funçõesdejuizdedireito,decide,então,que,emboraasconfissõesfossemconvincentes,não
bastariampara suprira falta docorpodedelito.Dessaforma,impõe-se a impronúncia dos
acusados.
Em1877,cumpridaintegralmentesuapena,Catarinaépostaemliberdade,quandojá
tinha41anosdeidade.Foradaprisão,elaévistanasruasdePortoAlegre,cancerosa
32
.No
anode1877,CatarinavaivivernaSantaCasa,ondeprestaráserviçoscomofaxineira.Noano
 
32
AquilesPortoAlegre,emHistóriasdePortoAlegre,afirma:“porvoltade1884,euencontreiCatharina,mais
deumavez,comumgrosseirochapéudepalhanacabeçaechinelossemmeias,atravessandoasruasdacidade
[...]. Estava cancerosa e apresentava um aspecto repugnante, ao ponto de eu nunca poder explicar com que
atrativosaquelamulherfatal,compromessasdeamor,feztantasvítimas!”(1940,p.183).
de1891,CatarinamorreeéenterradacomoindigentenocemitériodaSantaCasa.Quantoà
situaçãodeHenrique,ocorcunda,nadasesaberá.
JoséRamos,porsuavez,em1879contraipneumoniaeéinternadonaSantaCasa
33
.
Depois,mesmocuradodadoença,continuavivendonohospital.Torna-sebenquistoentreos
médicos eadministradores, ea certa altura trabalha como auxiliar de enfermagem. Ramos
tambémmorre
34
naSantaCasa,emdeagostode1893,completamentecegoeleproso.Seu
crâniofoiconservadopelosmédicosparaposterioresestudos.
 
33
DeacordocomC.Elmir(2004),aleituradoslivrosderegistrosdaSantaCasaapontaparapelomenosoito
internaçõesdeJoséRamosnaquele hospital, oquevaiaoencontrodaversãodeD.Freitasdequea partirde
determinadomomentooapenadopassouamorarnaSantaCasa.Contudo,adescriçãofeitaporoutrojornalpor
ocasiãodesuaprisão,em18deabrilde1864,jáapontaafragilidadedesuasaúde:Esteéumhomemdecara
oval,facespálidasecadavéricas,olhosfelidos[sic],narizaquilinoerecurvado,barbanegraecabelostambém
negros.Éhomemmuitodoente,alto,masdecorpofranzino”(MERCANTIL,19abr.1864,p.2).
34
O Almanaque Literário eEstatísticodoRio Grande doSul para 1897 (ver p.67) noticia a mortede José
Ramosnaenfermariadacadeiacivil,diferentedaversãodeD.Freitas,dequeserianaSantaCasa.Adatada
mortereferidafontetambémnãoconferecomaindicadapelohistoriadorD.Freitas.
1.2NARRATIVASJORNALÍSTICAS:“NOCALORDOMOMENTO”
Veio-seasaberdoocorridocertamentedebocaemboca,antesmesmodeasnotícias
serem transformadas em texto. Isso porque estamos na Porto Alegre do século XIX, com
pouco mais de20 mil habitantes.Todosdeviam se conheceretambémconstruir,pelo que
viam e ouviam a respeito dos crimes da rua do Arvoredo, a sua própria versão dos fatos.
Entretanto,osprimeirosmeiosresponsáveisporconstruirofatoemnarrativaepormanteros
leitoresinformadossobreosúltimosacontecimentosquesacudiramacidadesãoosjornaisda
época,taiscomooMercantil,oDeutscheZeitung,oDiógenes,entreoutros.
Aseguirentrecruzaremosasnotíciasdessesjornais,afimderecomporcomoosfatos
foram construídos “no calor do momento”. O primeiro jornal a noticiar a descoberta dos
crimes perpetrados por José Ramos é o Mercantil de 19 de maio de 1864, que relata em
primeiramãooocorrido:“OntemapopulaçãodePortoAlegrepassouodiasobapressãodeum
horrívelacontecimento.Perpetrara-seumcrimerevestidodehorrorosascircunstâncias”(p.2).
JáoDeutscheZeitung,jornaldacidadepublicadoemalemão
35
,umdiadepois,fornece
detalhesimportantesaosleitores:
Em nossa pacata Porto Alegre os habitantes tornaram-se testemunhas de
crimes nunca vistos. Um antigo policial da corporação local de nome José
Ramos, descendente de alemães e oriundo de Sta. Catharina, tirou de uma
maneiraterrívelavidadeduaspessoasnasexta-feiradia17(?)[sic]deabril.
Ele soube atrair suas vítimas para sua casa, uma após a outra, quando as
convidou para uma refeição amigável e as assassinou de forma assombrosa
(20abr.1864,p.3).
Masantesdetrazermosàluzcomoosfatossãonoticiadosnasnarrativasjornalísticas
daépocaemqueoscrimesforamcometidos,éimportanteobservarmosquetudopareciater
começadocomasuspeitadodesaparecimentodeJanuárioedoseucaixeiroJoséIgnáciode
SouzaÁvila.Osvizinhosestranhamofatodeaportadoarmazémdotaverneiroestarfechada
o dia inteiro. O fato aparentemente corriqueiro nos dias de hoje, desperta suspeitas e
desencadeia a ação policial. O Deutsche Zeitung noticia a entrada da polícia no
estabelecimento: “Entretanto, nenhum vestígio foi encontrado, a não ser que a gaveta do
dinheiro estava vazia. Depois de muito perguntar aqui e ali, o chefe de polícia ouviu que
Ramosfoioúltimoaterestadolá”(20abr.1864,p.3).
 
35
Periódicodestinadoaosleitoresdeorigemgermânicanacidade,vistoquenãoerampoucas,dadooprocesso
deimigraçãoemcurso.
Intimadoa depor, Ramosalega que nãoconhece muito bem Januário e que o teria
apenasacompanhadoatéoembarqueemumlanchãoquepartiraparaoCaí.Issoexplicariao
fato de o estabelecimento estar fechado e a vizinhança ter visto Januário passar com o
suspeito.Ochefedepolícia,porsuavez,entendeoportunisticamentequeRamosnãoestava
envolvido no desaparecimento de Januário e do seu caixeiro e decide liberá-lo.
Oportunisticamenteporque,comobemsalientaoDeutscheZeitung(20abr.1864),osuspeito
éumantigopolicialdacorporação.Masnãoédeconhecimentopúblicoque,mesmoafastado,
presta serviços ao chefe de polícia como informante. A atitude de Callado de liberar o
suspeitoprovavelmenteestejaassociadaaodesejodeevitarquevenhaàtonaoseupróprio
envolvimentocomocriminoso.
Entretanto,oMercantiltraznovosfatosaocasoquecomprometemainda maisJosé
Ramos,comoaintroduçãodeumatestemunha-chaveparaadescobertaqueseseguirá–um
vizinho de Januário: “Antonio José Pereira afirma ter ouvido por diversas vezes a Ramos
convidar Januário para jantar” (19 abr. 1864, p. 2). A partir de então as suspeitas recaem
novamente sobre Ramos, e a Dário Callado não resta outra saída a não ser reiniciar as
averiguações.
Natardededomingo,amandodochefedepolícia,osubdelegadoAntonioCaetano
Machado Pinto, acompanhado do inspetor José Antonio de Sousa Ribeiro Júnior e da
testemunha, dirige-se até a casa de José Ramos a fim de fazer uma busca, “visto haver
desconfiança de que Januário se ocultava aí fugindo de credores” (MERCANTIL, 19 abr.
1864,p.2).Entretanto,o queencontraporlá podesercomparadoaumacenadefilmede
terror:“começando-seacavarsaíramàflordaterraalgunsossoshumanos[...]Noporãoda
casaforamencontradososossosputrefatosdeumcadávereossamentahumana.oeram,
porém,oscorposdosqueprocurava”(id.,ibid.,p.2).Havia,noentanto,noquintalumpoço,
queosuspeitorepentinamenteentulharaesobreoqualconvergiamasdesconfianças:
Às primeiras enxadadas começaram a aparecer pedaços de carne humana e
pouco depois dois cadáveres reconhecidos como serem de Januário e do
menino; e do cãozinho que o acompanhava. [...] Os corpos achavam-se
literalmenteesquartejadostendoacabeçaseparada docorpo e estedividido
em muitas partes. A bengala, os sapatos, o chapéu de Januário foram
encontrados em diversaspartes da casa,bem como os sapatos e chapéu do
menino.Encontraram-se,alémdisso,duasmachadinhas,umaserra,cordase
umamachadinhanovaaindaembrulhadaempapelpardo(id.,ibid.,p.2).
A partir dessa descoberta aterradora, comprova-se que o caso era muito mais
complexo do que seesperava. Constata-se que se tratava de crimes em série. Januário e o
caixeironãoeramasúnicasvítimas.Haviaumterceirocadáver,aindanãoidentificado,em
estadoavançadodedecomposição,indicandoqueocorreraoutrocrimeantesdoassassinatode
JanuárioedocaixeiroJosé.
ODeutscheZeitungespeculaahipótesedeoassassinotertidocúmplices:“Éprovável
quenãotenharealizadoestesatossozinho.Elevivecomumamoçaemconcubinatoeesta
devetê-loajudado;talvez,inclusive,outros”(20abr.1864,p.3).Noentanto,sómesmocom
odecorrerdasinvestigaçõesedosinterrogatórioséquealgunsdetalhesdatramaescabrosa
sãotrazidosàluzdodia.
Catarina éaprimeiraa serinterrogada pelochefedepolícia.É importantedizer, a
respeito dessa mulher enigmática, que não há qualquer descrição que confirme a tradição
arraigadanoimagináriosocialsegundoaqualelaserialoiraepossuidoradegrandebeleza
física. Segundo o Mercantil, “Catarina é uma mulher alta, de cabelos negros, falando
regularmenteoportuguês,defeiçõesvulgaresejáfanadasparaaidadedevinteeoitoanos
quedizter”
36
(19abr.1864,p.2).
Nodepoimentoàpolícia,Catarinamostra-sedispostaaajudar,respondendoatodasas
perguntascomenergiae coragem, diráo Mercantil (19abr.1864). A posturade colaborar
com as investigações não passava de uma tática para ludibriar a polícia, de diminuir as
suspeitassobreseuenvolvimentonoscrimeseassimincriminarJoséRamos.Palseafirmaque
estavapresentequandoo“marido”trouxeraparacasa,primeiroJanuário,depoisocaixeiro.
Entretanto,paradefender-sedaresponsabilidadedoscrimes,declaranãoterpresenciadoos
assassinatos. Desculpa-se por não ter denunciado às autoridades os crimes cometidos por
Ramos,alegandosentirmedodocompanheiro.
Noentanto,oMercantiltrazumfatoquelevantaasuspeitadequeCatarinaoera
tãoinocentecomoaparentava.OjornalnoticiaquePalseduranteoseudepoimentoconfessa
aochefedepolíciaque,enquantoRamosperpetravaasmorteseoesquartejamento,elateria
presenciado“essaselvagemoperaçãodeumajanela”(19abr.1864,p.2).
Ora,seCatarinadiznãoterestadopresenteduranteosassassinatos,alegandoqueno
momentodamortedotaverneirosaíraparadarágua àsgalinhas,enocaso dogaroto,fora
buscar água para o mate, como assistira a tudo de uma janela? Certamente o leitor que
acompanhava atento o desenrolar do assombroso caso através dos jornais percebe que
Catarinaestavafaltandocomaverdadeequetentavanãoserincriminada.
 
36
OensaiodeD.FreitastambémfazmençãoàfaltadebelezadeCatarina.Segundooautor,Jean-PierreCaillois,
ateriavistonotribunaleregistradoemsuasmemóriasumaimpressãoquecontradizatradiçãopopular:afirma
queCatarinaPalseerainteiramentedesprovidadedotessicose,porserbaixaeobesa,malsepoderiaacreditar
quedespertasseatração(1996,p.37).
OdepoimentodalavadeiraSenhorinha,tambémmoradoranacasadoassassino,éem
tudo comprometedor para Catarina e também para Ramos
.
Declara nada ter visto, pois na
noite que se perpetrou o crime fora fechada em seu quarto por Palse e achara-se
impossibilitadadesair.Essedetalheapontaparaaculpabilidade,oenvolvimentodeCatarina
noscrimes.Alémdisso,elaafirmatervistonasaladacasadeJoséRamosumhomemvelho,
e também ter visto horas depois a patroa limpar as manchas de sangue da escada, dirá o
Mercantil(19abr.1864).
AsediçõesposterioresdoMercantil,alémdedeixarclaroqueCatarinaénomínimo
cúmplice nos crimes, acrescentam mais alguns pormenores à trama. O leitor fica a par de
alguns detalhes, como, por exemplo, o modo pelo qual se deu a morte de Januário e do
meninoJosé.EmbasadonosrelatosdeCatarina,ojornalnoticia:
Achavam-seàmesajantandoJanuárioeRamosquandofoiaquelevítimade
umamachadadaqueoassassinolhedescarregoudadireitaparaaesquerda,e
queentalhouomachadonocrâniodeJanuário.Quandoomeninotomavaele
matesentadonosofádasalaquandoRamosque seachavaaoladodeu-lhe
duascanivetadassobreocoraçãoearrastou-oparaoquartosobreacamaonde
deu-lheumgolpedemachadoquelhetirouavidadetodo(22abr.1864,p.2).
Ao interrogatório de Catarina sucedeu o de Ramos. No texto jornalístico, Ramos é
assim descrito: Esteé um homem de cara oval,faces pálidas e cadavéricas, olhosfelidos
[sic], nariz aquilino e recurvado, barba negra e cabelos também negros. É homem muito
doente, alto, mas corpo franzino” (MERCANTIL, 19 abr. 1864, p. 2). Mas, pelo visto, a
fragilidadeeseuestadodebilitadodescritopelojornal nãoécapazdelheconteroespírito
homicida.Nointerrogatório,foramnumerosasascontradiçõesemqueJoséRamoscaiu,mas
“comseudescaramento”(id.,ibid.,p.2)habitualencastela-seemumanegativacontínua:
DepoisdeterdeclaradoqueestiveracomJanuárionasexta-feiraúltima,disse
que o o via há mais de dois meses; que não sabia do modo por que os
cadáveresforampararno poço,equesó Catarina eHenrique,umcorcunda
que morava com eles, poderiam saber, pois estivera ausente decasa toda a
tardedesexta-feira(id.,ibid.,p.2).
Henrique,mencionadoporRamos,tambéméchamadoparadepor.Masodepoimento
é sucinto. Henrique alega que ignora as circunstâncias dos crimes e que morara por um
períodonacasadeJoséRamos,masantesdeoscrimesacontecerem.Confessa,entretanto,
quenodiadocrime,coincidentemente,foraatéacasadaruadoArvoredodeixarumajapona
paraCatarinareformar.
Sobre o suposto envolvimento de Henrique nos crimes, o Deutsche Zeitung, antes
mesmodeterminaremasinvestigaçõespoliciais,seempenharáemafirmarcategoricamente
queeleéinocente.Ojornallamentaráemriasdesuasediçõesofatodeosuspeitotersido
conduzidocomasmãosamarradasàscostasatéàdelegacia.Cogitaráapossibilidadedeque
“Ramostambémotenhaescolhidocomovítima,poisHenriquetinhaalgumdinheiro,cercade
aproximadamentequinhentosmil-réisemprestados”(27abr.1864,p.3).Aindasegundoesse
jornal,RamossugeriuaHenriquequelevantasseessasomaecomprasse,comele,umavenda:
“Équasecertoque,umaveztendoodinheiroemos,RamosteriadespachadoHenrique
paraooutromundo”(idem,p.3).
AatitudedoDeutscheZeitungeminocentarHenriquepodeestarassociadaaofatode
oacusadoseralemão,poisojornaleravoltadoparapúblicoetnicamentedefinido,oalemão.
Entretanto, é oportuno lembrar que Henrique Rithmann, cujo “rosto é sombrio e
impenetrável”(MERCANTIL,19abr.1864p.2),éumdospersonagenssinistrosnahistória
doscrimesdaruadoArvoredo,massósesaberádissoalgunsanosdepois.
Enquantoisso,oMercantil,porsuavez,avançanosfatos:noticiaaidentificaçãodo
cadáver da terceira vítima encontrada nos porões da casa como sendo o corpo de Carlos
Claussner, desaparecido em setembro do ano anterior. A identidade do cadáver foi
reconhecidaporváriastestemunhas,pormeiodediversosobjetosencontrados,entreosquais,
roupas,papéisassinadosporeleeumbrincoqueusava(20abr.1864).
ODeutscheZeitungtambémcomentaadescobertadocorpodeClaussner.Alémdas
característicasmencionadasnoMercantil,ojornalalemãoacrescentacomofatorimportante
parareconhecimentodocorpoofatodeavítimaterumapernaqueeraumpoucomaiscurta
queaoutra”(23abr.1864,p.3).
ÉnoMercantilde20deabrilde1864queaparecepelaprimeiravezaidentificaçãode
José Ramos como açougueiro. A partir disso, o açougue passa a ser mencionado como
negócio. Até então, o que era sugerido nesse jornal é que Ramos havia tido um súbito
enriquecimento,comprovávelorigemnoroubodasvítimas.Ojornaltambémrelataque,após
o desaparecimento de Claussner, Ramos tomou posse do açougue e divulga pela cidade a
notíciadequeocompraradopróprioClaussnerequeesteseretiraraparaBuenosAires.
Interrogada a propósito da morte de Claussner, Catarina afirma desconhecer as
circunstânciasemqueocorreuatalmorte.Noentanto,dizlembrarque“naépocaasdiversas
peças defatoe outros objetosforam trazidospeloassassinoparacasa” (MERCANTIL, 21
abr.1864,p.2).Mas,segundoosrelatosdeDeutscheZeitung,CatarinateriaacusadoRamos
deseroúnicoautordocrime(23abr.1864).
OexameaqueseprocedenosrestosdeClaussnerconstataqueoaçougueiroteriasido
mortocomdoisgolpesdemachadonacabeçaedepoiscortadoempedaços,assimcomoas
demaisvítimas.
OMercantiltambémrelataque,quanto“aoassassinatodeKlausen[sic],pareceque
foipraticadoforadecasae,depoisdecortadoocorpo,levadoparacasa,ondefoienterrado.
AsmanchasdesangueaindaexistentesnascaixasquepertenceramaKlausenautorizamesta
suposição,poisCatarinaaesterespeitonadadiz,vistonãotersidotestemunha”(22abr.1864,
p.2).
Noentanto,éimportanteressaltarquenãohánaspáginasdoMercantiletampoucono
DeutscheZeitung,osjornaisquevinhamacompanhandoenoticiandodepertoocaso,uma
ligaçãoentreosassassinatoseavendadacarneàpopulação.ODiógenes,porém,éoprimeiro
jornalaqueseteveacesso,amencionarapalavracanibalismo,aosereferiraosassassinatos
deJanuárioeseucaixeiro,cometidosporJoséRamoseseuscúmplices:“Umdessescrimes
sem nome, um ato de verdadeiro canibalismo, acaba de serperpetrado no centro de nossa
cidade;revestidodetodasasferozescircunstânciasquesepudessemimaginar”(24abr.1864,
p.1).Entretanto,nodecorrerdanotíciaaexpressão“canibalismo”nãoserepete,epoderia
estarsereferindoaumatodeselvageriaenadamais.
Quempoderiaesclarecersehouveounãoafabricaçãodelinguiçacomcarnedegenteou
seriamosenvolvidosnoscrimes.Entretanto,JoséRamosemtodososinterrogariospersisteem
seu sistemadenegativas.O Deutsche noticiaque “Ramos continua negando, mas já caiu em
contradiçõesduranteointerrogatórioedeuobraçoatorcer”(07maio1864,p.3).Informaçãoum
tantoduvidosa,poissesabeatravésdoprocessocriminal,examinadoaseguir,queRamosnunca
chegaaconfessaroscrimes.Catarina,porsuavez,continuaasustentarasrevelaçõesquefezà
polícia.EHenriqueanegarsuaparticipaçãonocrime,diráoMercantil(26abr.1864,p.1).
Dessaforma,ointerrogatóriodosacusadosnãoresulta,atéondesetemconhecimento
atravésdasnarrativasjornalísticas,emmaisnada: “Anãosero quejá sedescobriu:queo
mesmo [José Ramos] é o único autor e que Catarina é sua auxiliar, pois assistiu aos
assassinatosdeJanuárioedorapazelavouosrastrosdesangue.Porisso,estámoralmente
enquadradadentrodamesmacategoriadoassassinato”,diráoDeutsche(07maio1864,p.3).
Algunsindivíduosqueforamdetidosparainvestigaçõespoliciaissãosoltos,comoéo
caso,deCarlosRathmann.ApesardoseuenvolvimentonamortedeCarlosClaussner,pouco
se fala sobre ele nos jornais. Inclusive Henrique Rithmann, como esperava o Deutsche, é
inocentadopelochefedepolíciaenemsequerédenunciadopelopromotornosdoisprimeiros
inquéritosinstaurados.
RamoseCatarinasãopronunciadose,segundoasestimativasdojornalalemão,
Devem,após o encontro do tribunal dojúri, aguardar suasentença. (O Art.
271doCódigoCriminaldetermina:Separapraticarroubo,ouseduranteoato
houvermorte,penademorteno[grau]máximo,castigoperpétuoemgalésno
[grau]médioepenadevinteanosnograumenor)(21maio1864,p.3).
Outropontorelevanteobservadonasnarrativasjornalísticaséorelatodoconflitoentre
a população que acompanhava o caso e as tropas policiais. O incidente é fartamente
comentadopelosdiversosjornaisdaépoca.ODeutscheZeitungnoticiaquenoprimeirodia
deinterrogatóriodocriminosoedesuaconcubinaocorreuumgrandeescândalo:
Umamassadepessoasaglomerou-seemfrenteàcasado chefedepolíciae
exigiuaentregadoassassinoparapraticarajustiçapopular.Asituaçãofoitão
longequeamassamostrousuaviolênciapormeiodolançamentodepedrase
garrafas quebradas. Entretanto, foi dispersa pelas tropas que foram
convocadaseconduziramoditocriminosoparaacadeia.Infelizmentehouve
feridos,tantonamassaquantoentreatropa.Comenta-seinclusivequeumdos
feridosjáteriamorrido(23abril1864,p.3).
O Mercantil lamenta a atitude da população e lamenta mais ainda “a energia da
autoridadenocumprimentodeseusdeveres,comoaparteativaquetomouapopulaçãoporto-
alegrense,quelavrouumsolenedetãosanguináriapáginaemumlugarondeapazotaviana
reinava”(19abril1864,p.2).
NorelatórioaospresidentesdaProvíncia,diráochefedepolíciaDárioCalladoqueas
praças “a ninguém ofenderam, por se ter ordenado pontaria alta”
37
. Entretanto, nas suas
memórias,ocônsulCailloisforneceversãodiferente:
A multidão se compunha de caixeiros de comerciantes portugueses, de
pessoashabitualmentedesocupadasemesmodealgunsescravos.Suacólera
eramuitograndeeaparentavamnãotermedodossoldados.Oschoquesforam
violentosenaalturadopaláciopresidencialmorreramduaspessoas,umadas
quais,ummarujofluvialeaoutraumpreto
38
.
ODiógenes,porsuavez,posiciona-seafavordeDárioCalladoeexaltaasuaatitude.
Segundoessejornal,aochefedepolícianãosobraria outraopçãoanãoser tentarcontera
agressãoporpartedopovo,quesetornavaaindamaisacentuadanasproximidadesdacadeia.
Ainda segundo a versão jornalística, Callado estava apenas tentando cumprir o seu dever,
 
37
Veraesserespeito:OSCRIMESDARUADOARVOREDO,1993,p.93.
38
Veraesserespeito:FREITAS,1996,p.70.
dandoaocriminosoaproteçãoeainviolabilidadequelhegarantealei.Ojornalargumenta
que“nãosemandoufazerviolênciaaopovo,equeessespoucoscasosdeferimentosachama
suanaturalexplicaçãonanecessidadequetinhamossoldadosdedefender-se”(24abr.1864,
p.2).Nessaocasião,aforçateriaprovadoaindamaisasuadisciplinaenãoteriademonstrado
nenhumempenhoemmolestaropovo,disparandoalgunstirosapenasparaintimidar.“OSr.
Dr.DárioRafaelCalladoteriaapagadoastradiçõesdesuagloriosacarreira
39
namagistratura,
seoutrohouvessesidooseuprocedimento”(id.,ibid.,p.2).
Podemossublinharquearevoltaporpartedapopulaçãoestáassociadaaofatodeos
envolvidosnoscrimesseremdeorigemalemã.ODeutscheZeitungreferendaainformaçãode
que o assassino era descendente de alemães (20 abr. 1864). Com o desenrolar dos fatos,
intensifica-se a suspeita da presença de mais alemães envolvidos nos crimes. Inclusive,
muitos alemães comparecem no tecer da narrativa, a circular em torno das vítimas ou do
próprioassassino,queseautoapresentoucomodescendentedealemães.HenriqueRithmann
não falava português, só lia e escrevia em alemão. O alemão Carlos Rathmann também
morara por um período na casa de José Ramos. Deduz-se, então, que Ramos e Catarina
deviamentenderefalaroalemãoequeteriamlaçosestreitoscomosalemães.
Osjornaisconsideramtambém,entreasmotivaçõesparaamanifestaçãoviolentada
população, a impressão horrorosa causada pelo assassinato duplo de uma criança e de um
velhoeofatodeserdeconhecimentopúblicoabrutalidadecomqueJoséRamosatacavaas
vítimas.DiráoMercantil:“Ashorrorosascircunstânciasdocrimesetinhamespalhado,eo
horroreindignaçãotransbordavam”:
Quando fez dele vítimas um velho e uma criança. O requinte de malvadez
tocoua seu augenessa fera comforma humana.A impavidezno crimeera
extrema; depois de matar sua vítimas para roubá-las ainda as trucidava e
esquartejavaparamelhoresconderasprovasdeseusfeitos(MERCANTIL,19
abr.1864,p.2).
Ainda sobressaltavam ainda mais os ânimos da população os rumores de que José
Ramos cometera outros crimes. Em relação essas suspeitas, o Mercantil noticia que
novamenteéfeitaaescavaçãodoporãoedoquintaldacasadaruadoArvoredoondemorava
Ramos, “mas nenhuma outra prova do crime se achou além daquelas que constavam, o
 
39
JáemOmaiorcrimedaterraconstaqueomagistradonordestinoenviadopelaCorteparachefiarapolícia
provincial era alvo de muitas críticas. O orador mais eloquente e temível da província, deputado Silveira
Martins, denuncia prisõesilegais,espancamentosde presose irregularidadesadministrativas:“Callado manda
prenderumhomemsóporqueassobiouduranteumespetáculonooPedro[...].Negrosopodemcaminhar
nacalçada,eaosurpreenderumnaruadoRosário,Calladolhedávozdeprisãoemandadar-lhe25açoitesque
oinutilizamparaotrabalhodurantemuitotempo”(FREITAS,1996,p.55).
assassinato de Januário e omenino”. Inclusive “as outras casas em que Ramos morou em
épocasanterioressãotambémexaminadas,massemresultadoalgum”(26abr.1864,p.1).
Nessesentido,nãoháreferêncianoMercantilenosoutrosjornaisaqueseteveacesso,ao
fato de ser relatado posteriormente em algumas narrativas
40
terem sidos descobertos mais
corposnascasas,emespecialnachácaradePetrópolisondeRamosviveraantesdeterido
morarnaruadoArvoredo.
 
40
Veraesserespeito:DIÁRIODENOTÍCIAS,15dez.1948,p.11.
1.3PROCESSOCRIMINAL1070
Aredescobertadoprocesson.º1070
41
levouoArquivoHistóricoaresolverpublicar
noanode1993oseutextonaíntegra,bemcomooutrosdocumentosjornalísticosqueforam
anexadosaosautos
42
,numlivrodenominadoOscrimesdaruadoArvoredo.Ainiciativade
divulgaroconteúdodeumdosprocessoscriminaisarespeitodoscrimescometidosporJosé
Ramostorna-sedesumaimportância,poispermiteoacessoàsfontesprimárias
43
,fornecendo
elementos essenciais para análise crítica de informações veiculadas nas diversas narrativas
oraiseescritasproduzidassobretaiscrimesnodecorrerdequase150anos.Permiteaindaa
reconstituição dos fatos, embasada na argumentação e nas provas arroladas, possibilitando
que o leitor, no desenvolvimento dos fatos, se transporte à Porto Alegre de 1864 e, num
exercíciodeimaginação,sejaco-partícipedosescabrososeventos.
Asinformaçõescontidasnapeçajurídica,assimcomootrabalhodeD.Freitaseas
narrativas jornalísticas, sustentarão a análise dissertativa e auxiliarão no contraponto, no
contraste e no levantamento das possíveis relações com as narrativas ficcionais Cães da
ProvínciaeCanibais:paixãoemortenaruadoArvoredo,focoprincipaldestetrabalho.A
seguirapresenta-seoconteúdodoreferidoprocesso.
OsegundoprocessodácontadasprimeirasdiligênciasrealizadaspelochefedePolícia
DárioRafaelCalladonacasadeJoséRamos,àruadoArvoredo,quandorecebeuadenúncia
do desaparecimento de Januário e seu caixeiro, José Inácio
44
. A respeito das mortes de
 
41
Em 1992, Roger Kiltensen, ao pesquisar no Arquivo blico do Estado para sua tese de doutorado – um
trabalhosobreasclassespopulareseaconstruçãosocialdeideiasemPortoAlegreentre1846e1893,defendido
em agostode 1997 na Universityof Wisconsin-Madison (ELMIR, 2004, p. 165) – consultando um maço de
processosdoJúrireferenteaoanode1864,constatouqueosautosreferentesaocasohaviamdesaparecido.No
seu lugar, o pesquisador deparou-se com a autorização por escrito, datada de 30 de julho de 1964, de um
funcionáriodainstituiçãochamadoJoãoCarlosFonseca,permitindoaoutrofuncionário,VictorinoJoséMichel
Filho,verocalhamaçoquedescreviaoscrimescometidosporJoséRamos(ZEROHORA,14jun.1992).Essa
descobertainvoluntáriaacarretouumasériedeinvestigaçõesentreosórgãosdaSecretariadaCultura,asquais
revelaram que um dos processos, o de número 1070, que trata do assassinato de Claussner, achava-se sob a
guardadoArquivoHistóricodoEstado,pelomenosdesde1972(ELMIR,2004,p.165).
42
Apresentam-seanexadosjuntoaoprocessocriminalreferenteaoscrimesdaruadoArvoredoalgumaspeças
documentaisnãointegrantesdosautos:AlmanaqueLiterárioeEstatísticopara1897,AnuárioIndicadordoRio
GrandedoSul,HistóriaPopulardePortoAlegre,deAquilesPortoAlegre,eojornalODiógenesde24deabril
de1864.
43
Quando o Arquivo Histórico publica esse documento, está implícito que o processo é fidedigno, que ele
passoupelocrivodacríticaexternadotestemunho.Noentanto,valeressaltarquenãoestamosdesconsiderando,
éclaro,entreoutrosfatores,quetalpeçajurídicaéumdiscurso,commenorgraudesubjetividade,masainda
assimumdiscurso.
44
O jornalista Coruja Filho (1962) escreveu: “na manhã de 15 de abril de 1864, os vizinhos de Januário,
proprietário de um estabelecimento de secos e molhados, surpreenderam-se ao verem que o armazém estava
fechado, assim permanecendo durante todo o dia. Dessa forma, levam o fato à polícia, o delegado Antônio
CaetanoMachadoPintoprocedeàsprimeirasaveriguações,vindoasaberqueJanuário,poucosdiasantes,teria
sido visto na rua, em companhia de José Ramos.
Às 17 horas, foi a autoridade à casa de Ramos, à rua do
Arvoredo,investigar.O delegado,procurandofalaraRamos,dissequerer obteralgumasinformaçõessobre o
Januárioedocaixeiro,constaapenasointerrogatórioaqueforamsubmetidosJoséRamos,
Catarina Palse, Senhorinha –escrava de ganho –, Henrique Rithmann,Carlos Rathmann e
outrosconhecidosdocasaledasvítimas.Tudomaisoquesegue,ésobreoassassinatode
Carlos Claussner:interrogatóriodeacusados, inquirição detestemunhas,perícias, instrução
judicialefinalmentejulgamentodosréusJoséRamoseCarlosRathmann.
Noprocessocriminalconstaquenabuscaenaexumaçãoocorridasnodia18deabril
de1864 nacasadeJoséRamos,foramdescobertosnopátioda residênciaos cadáveres de
Januário,docaixeiroeumnão-identificadoemavançadoestadodeputrefação:
Após da remoção de alguma terra, apareceram ossos das extremidades
inferioresedabaciadecorpohumano;prosseguindootrabalhodeescavação,
nofundodeumacovacomtrêspalmosdecomprimentoedoisdelargurafoi
descobertoorestodeumcadáverhumanoaindaenvoltoemroupa,porémem
avançadoestadodeputrefação[...].Noquintal,emumpoçocobertodelixoe
ramos verdes foram descobertos dois cadáveres, um de adulto e outro de
menor,partidosempedaços;estandoascabeçasseparadasdostroncos,estes
mutilados e separados das extremidades, algumas das quais estão também
mutiladas;ambososcadáverespareciamenterradosdepouco[...]Ambosos
cadáveres estavam envoltos em roupas, e pelas pessoas presentes foram
reconhecidoscomoosdeJanuárioMartinsRamosdaSilvaeJoséIgnáciode
SouzaÁvila.Dentrodomesmopoçofoiencontradomortoumpequenocãode
pelopreto[...]reconhecidocomopertencenteaJanuário
45
.
Afimdeencontrarmaisprovasparaosatoscriminosos,asinvestigaçõesprosseguem
pelosdiversoscômodosdacasa.Sãoencontrados,entreoutrosobjetossuspeitos,achaveda
vendadeJanuário,umparde botinas decriança,doisbaús,maistarde identificadoscomo
pertencentesaCarlosClaussner,doisrelógiosdeouro,entreoutrosobjetosdevalor,objetos
incomunsparaumhomemdepoucaspossesesemprofissãodefinida.Mashaviaprovasmais
importantesecomprometedoras:
Nacamanaparteexteriordotravesseiro,juntoaospés,haviatrêsnódoasde
sanguecomode mão suja que ali passou; sobre a mesma cama,que estava
feita, um rodapé de cassa manchado de sangue, porém mal lavado; no
assoalho em frente à porta uma larga nódoa de sangue coalhado, com
especialidadeembaixodacama[...].Nopassadiçoporbaixodaescada,dentro
de um cesto entre outros objetos, uma escova e um trapo manchados de
sangueaindavivo.Noporãodacozinhaencontram-sedoismachadosdecabo
curto,umdecabomaiscompridoeumaserra(CRA,1993,p.13).
   
misteriosodesaparecimentodocomerciante.Responde-lhe Ramos,com ummodogrosseiro,que nadasabiaa
respeito,negandoterandadoemcompanhiadopobretaverneiro”(p.96-97).Odelegadoinsistenointerrogatório
eRamoscaiemcontradiçõescomprometedoras,daíapolíciatomaainiciativadefazerumabuscanacasa.
45
OSCRIMESDARUADOARVOREDO[Transcriçãodoprocesso-crimedenº.1070].PortoAlegre:Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul, Escola Superior de Teologia, 1993, p. 13. Doravante esta referência será
indicadapelasiglaCRA,seguidadoanoedarespectivapaginação.
OautodeperguntasfeitasaCatarinaPalse
46
arespeitodasmortesdeJanuárioedo
caixeiroeoseudepoimentonodiadaapreensãonacasasãobastanteesclarecedoresquantoà
formacomquese sucederam osassassinatos das vítimas,masnão revelamtoda a verdade
sobre os crimes. Catarina afirma que na sexta-feira do crime esteve em sua residência
Januário, proprietário de um estabelecimento na rua da Igreja, convidado por Ramos para
jantar.Seriamquatrohorasquandoainterrogadadeclaratersaídoparadaráguaàsgalinhas,
e,quandovoltou,achouocomerciantecaídonochão.Depoisdisso,Ramosoteriaagarradoe
arrastado parao porão.Ohomemtinhadoisferimentosnacabeça, sangravamuito e ainda
estavavivo (
CRA,
1993,p.14).DeclaraaindaqueJoséRamos, depoisdeterdepositadoo
corpo do comerciante no porão, já morto, saiu e voltou trazendo consigo um menino – o
caixeirodeJanuário–;osdoissentaram-seàmesaepuseram-seacomer.Maistarde,Catarina
diztersaídoparafalarcoma pretaSenhorinha,perguntar-lhese tinhaáguaparaomatee,
quando voltou para a sala, encontrou Ramos arrastando o corpo do menino, já morto. O
garototambémtinhaduasgrandesferidasnacabeça.
Ao ser questionadasobreo local emqueJoséRamos depositara os dois cadáveres,
Catarinarespondeque,depoisdecortar osdoiscorposem pedaços,Ramososterialevado
para o quintal e os atirado em um poço e coberto com areia. A tudo isso Catarina teria
assistidodajaneladavaranda.Àperguntasobreaquempertenciaocachorropretoenterrado
na mesmacovado homem e domenino,Catarina afirmaqueerade Januário,queo havia
trazidoconsigo.JoséRamosteriamatadooanimalànoite(
CRA
,1993,p.14).
AinterrogadarevelaqueoinstrumentoutilizadoporRamosnoscrimesteriasidoum
dos machados apreendidos na casa (
CRA,
1993, p. 14). Dário Callado mostra-lhe vários
objetos,queelaidentificacomopertencentesàsvítimas.Nessemomento,pelaprimeiravez,
Catarina cai em contradição. Diz reconhecer os botins que lhe foram apresentados, como
pertencentesaomeninoassassinadoporRamos.AfirmaqueestavanavarandaquandoJosé
Ramososatirouládebaixoequenãosabiaqueelemataraogarototambém.Essadeclaração
nãocoincidecomaanterior,dequeencontrouomeninomortonasaladepoisqueforafalar
comSenhorinha.Aoserquestionadasobreisso,Palsediznãoterseexplicadobem.Estavana
 
46
Inquiridapelapolícia,CatarinaPalsedizter27anos,sersolteira,filhadeHubertoPalse,naturaldaHungria,
trabalharcomoengomadeiraeosaberlernemescrever(CRA,1993,p.14).Noentanto,sabe-sedepoisque
Palse seria osobrenome do marido falecido e o de seu pai. Declarando-se solteira, Catarina é referida no
processo como amásia de José Ramos. Portanto, não pertencia ao que se convencionava chamar a "ordem
formalmenteestabelecida".Logo,nãoapresentavaoqueseentendiaporboaconduta,impressãoestaagravada
pordeclaraçõessuas,noandardoprocesso,dequecostumavasairànoitedecasaequeumadasvezesvoltara
depoisdameia-noite,fatoestranho,poisnenhumamulherrespeitávelsearriscava,em1864,aandarànoitee
serrotuladacomoprostituta.
varanda,foifalarcomSenhorinhae,navolta,teriaouvidoumgemidodogarotoebarulhode
algumacoisacaindo,láembaixo,noporão.FoientãoqueRamosatirouosbotinsdomeninoe
apareceuarrastandoocorpo.
Frente ao que foi exposto, observamos no discurso da interrogada algumas
contradiçõeseomissõesemsuaconfissão,poiserapordemaisingênuaaexplicaçãodeque,
quando Ramos perpetrava os dois crimes da tarde de sexta-feira, ela estava ausente.
Percebemos aestratégiadeCatarinadetentar atenuarsuaculpabilidade,alegandoquefora
meraespectadoradoscrimeseconfirmandoapenasaautoriadeJoséRamosnoassassinatode
Januárioedeseucaixeiro,cujoscadáveresforamencontradosnoquintal.
Noentanto,odepoimentodaescravaqueatendiapeloapelidodeSenhorinha,também
moradoradacasadarua doArvoredo,comprometea versãoatravésda qualPalseprocurou
isentar-se do envolvimento nos assassinatos, trazendo novos e relevantes elementos para a
elucidaçãodocaso.SenhorinhaconfirmatervistoJanuáriosentadonosofádasalacomJosé
Ramos.Depoisdisso,teriasaídoparalavarroupase,aovoltar,nãoviramaisoproprietárioda
venda,esimencontrouCatarinalavandoaescadamanchadadesangue.Quandoelaperguntara
dequemeraosangue,apatroalheteriarespondidoqueeradeumagalinhaqueRamoshavia
matadoejogadopelajanela,demodoespalharasanguepelacasa.Maistarde,Senhorinhaavista
ummeninosentadonoso.Aoretornaràcasa,nãoovêmais(
CRA,
1993,p.19).
Outro indício que aponta para o envolvimento e a cumplicidade de Catarina nos
crimes éo fatode elater trancadoaporta dacozinha eaoutra domeio dacasaque dava
acesso à sala. Provavelmente tenhafeito issopara que Ramos terminasse deesquartejaras
vítimasquemataranaqueledia.Dessaforma,alavadeiraopodiasairnemparaoquintal,
nemparaarua.Palse,aoabrirasportasnosábado,teriajustificadosuaatitudedizendoqueo
meninoqueSenhorinhaviranasalaandavafugidodospaiseJoséRamosotinhaidolevarde
voltaparasuafamília,porissoforanecessáriofecharasportasparaqueogarotonãofugisse
novamente(
CRA,
1993,p.19).ParaapolíciaCatarinadaráoutraversão;diráqueissonão
temnadaavercomoscrimescometidosporRamos,equefechouaportadevidoàfumaçado
mocotóqueSenhorinhapreparavanaquelaocasião(id.,ibid.,p.20).
LevandoemconsideraçãoosindíciosqueapontamparaoenvolvimentodeCatarina
noscrimes,édecausarestranhezaquesuapenatenhasidoatenuada,poissesabequeem12
deagostode1864ocasalécondenadopelasmortesdeJanuárioedogaroto,JoséInácio.Ela
écondenadaaograudio, ouseja,apenastrezeanosequatromesesdeprisão,enquanto
Ramosécondenadoàmortenamesmasessão,sentençaquemaistardeserácomutadapara
prisãoperpétuacomtrabalho.Maisestranhoainda,éofatodePalsenemsequerserindiciada
pela morte de Carlos Claussner, fato que será também questionado por José Ramos, mais
tarde,quandoforjulgadopeloassassinatodoaçougueiro.
Já a respeito do cadáver desconhecido em estado avançado de decomposição,
Catarinaafirmadesconhecer,poiselaeRamosestavammorandonacasaapenashaviasete
meses.Nodecorrerdodiadaexumaçãonacasadocasal,surgeahipótesedequeosrestos
cadavéricospertenceriamaCarlosClaussner,estabelecidocomumaçougue,desaparecidoem
princípiosdomêsdesetembrode1863.Oresultadodoexamedessesrestosmortais,expresso
em27deabrilde1864,apontaqueacausadamortenãoteriasidonaturalesimdecorrentede
lesões ósseas no crânio, fraturas aparentemente produzidas por instrumento cortante e
contundentecomoummachado(
CRA,
1993,p.46),talvezomesmoqueJoséRamostenha
utilizadoparamatarJanuário,ocaixeiroeasdemaisvítimasem1863.
Aindasegundooexamepericial,osrestoshumanospertenciamaumsóindivíduo,do
gênero masculino e maior de trinta anos. De acordo com os peritos, osossos examinados
tinhammaisdeseismesesemenosdeumanodesepultamento,coincidindocomomêsde
desaparecimentodeClaussner,setembrode1863.Aoanalisarocrânio,peloscaracteresdos
cabelos,queeramcastanhos,finos,corredioselongos,julgavamqueoindivíduoseriadaraça
caucasiana,característicasqueconferemcomasdoougueiro.Masrealmentedecisivopara
aidentificaçãodeClaussnerfoisaberque
[...]osossosprópriosdonarizsãograndeseapresentamumadepressãoparao
ladoesquerdo[...]nota-se,sobreasfossastemporais,eapófisesmastóidesna
sortedemembranaquefacilmentesedespedaça,restosprováveisdapeleedo
planomuscularquerevesteestaregião:coladoaestamembrananota-seum
brincodeourodeformacircular(CRA,1993,p.46-48).
Astestemunhaschamadas paraprestardepoimentoconfirmamqueCarlosClaussner
possuíaessestraçosespeciais.Aprimeiratestemunhaeamigodavítima,CarlosSchimdt
47
,
confirmaodefeitononariznoladoesquerdo,devidoàcirurgiaqueClaussnerteriafeitopara
retiradadeumpostema.Inclusivenopassaportedavítimaconstamtaiscaracterísticas:além
deumacicatriznoolhoesquerdoatéaboca,possuíaonarizumpoucotorto(
CRA,
1993,p.
34). Schimdt ratifica ainda que o açougueiro usava um brinco de ouro na orelha. Essas
evidênciaslevamapolíciaaconcluirqueocorpoencontradonopátiodeJoséRamoserade
Claussner.
 
47
Carlos Schimdt conhece Carlos Claussner por terem sido companheiros no mesmo açougue, durante oito
meses,noanode1862,eapartirdaíteriamsetornadoamigos(CRA,1993,p.51).
O desaparecimento de Claussner não causou suspeita, segundo declararam as
testemunhas,pordizerele,muitasvezes,quepretendiaretirar-separaMontevidéu.Frederico
João,segundatestemunhachamadaparadepor,dizaochefedepolíciaqueClaussnerhavia
expressado que desejava ir para Montevidéu ou Buenos Aires, mas antes disso precisava
juntardinheiro.Dias depois,aocomprarcarnenoougue,parasuasurpresa,láencontrou
José Ramos e Rathmann; ao perguntar por Claussner, Ramos teria respondido que o
açougueiro havia ido para a Colônia de Petrópolis e depois desse dia nunca mais tivera
notíciassuas.
Entretanto, a informação fornecida por Ramos demonstra-se sem fundamento, pois
foram apreendidos em sua casa diversos objetos pertencentes a Claussner e de seu uso
habitual, dos quais não se separaria mesmo empreendendo longa viagem. Ao serem
apresentados os objetosencontrados nacasa da rua do Arvoredo a Schimdt, a testemunha
reconhececomosendodeClaussnerosdoisbaúsverdes,eafirmaaindaqueavítimanobaú
maior guardava roupas e no outro papéis e coisas miúdas. Outros objetos também são
reconhecidoscomopertencentesaoaçougueiro,entreeles
Umpaletódepano,trêscoletesdelãverde,unsaventaisdealgodãoazuleum
travesseiro,colarinhosepeitosdecamisa,umatampadecaixadecartãoeum
mapaeacaixademetalpararelógio,esendoquebradooseloemostradoo
relógio contido na mesma caixa, reconheceu também como pertencentes a
Claussnerorelógioeocordãodecabelo[...](CRA,1993,p.52).
Ao ser dadoo direito ao réu de contestar,José Ramos nega serem de Claussner os
objetos reconhecidos pelas testemunhas. Tais pertences teriam sido comprados de colonos
alemães havia mais de um ano e meio. Ramos ainda declara ter comprado o açougue de
Claussner e que teria levado para casa somenteosobjetos queencontrara abandonados no
açougue, dentre eles, os dois baús reconhecidos pelas pessoas interrogadascomo sendo do
açougueiro. Schimdt, ao observar a assinatura do recibo que supostamente Claussner teria
assinadopassandoseuaçougueaJoséRamos,dizàpolíciaquenãolhepareceaassinaturado
amigo,poiseleescreviasemprecomcaracteresalemães.
O que vai ser decisivopara provar a falsificação do recibo será o auto de exame e
corpo de delito entregue à Justiça em 9 de maio de 1864, pelos peritos Georg Pfeiffer e
Rodolfo Appenzeller. Tal exame concluirá que o comprovante “parece ser falsificado pela
mãodeJoséRamos”,poisconstataramqueonomedeClaussnernorecibosedistinguepor
erros, pois consta “Carlos Klausen”, enquanto o verdadeiro nome, segundo certidão de
batismo,era“CarlosGottliebClaussner”.Aomesmotempo,aletraeaassinaturanorecibo
“têmtodaasemelhançacomasdopunhodeJoséRamos”(CRA,1993,p.63).Ofatodeo
comprovantetersidofalsificadoconstitui-seemdadofundamentalnaformaçãodeculpade
RamospelamortedeCarlosClaussner.Aoserquestionadoarespeitodaescritadoreciboo
réunegaaacusaçãodeterfalsificadotaldocumento,assegurandoquefoiopróprioClaussner
quelheentregouoreciboquandolhevendeuoestabelecimento(id,ibid.,p.66).
Nesse ínterim, Catarina era pressionada pelo chefe de polícia para que confessasse
comosedeuamortedeCarlosClaussnereosmotivosquelevaramoamanteacometertal
ato.Masapressãoserápobreemresultados,poisPalsealegaráquesequerconheceraavítima
eratificaráapenasoqueochefedepolíciajásabia:Ramosvendeucarnenoestabelecimento
deClaussnerporalgumtempo.
Outro fator relevante que consta no processo criminal é que, ao tempo do crime
cometidocontraCarlosClaussner,ouCarlosRathmanneracompanheirodeJoséRamos,
residiam juntos, juntos estiveram no açougue e juntos removeram os objetos pessoais do
estabelecimento.Rathmannfoi vistonodia subsequenteao desaparecimentodo açougueiro
emcompanhia de Ramos, pela sétima testemunha a depor, Carlos Lorenz, queafirmou ter
presenciadoRathmannservindocomoajudantedeJoséRamosnoaçouguedaruadaPonte,
depoisqueestesupostamenteohaviacompradodeClaussner(
CRA,
1993,p.60).
Dessaforma,osindíciosapontamparaqueodelitodeJoséRamoscometidocontrao
açougueiro também alcance, pelo menos na qualidade de cúmplice, o acusado Carlos
Rathmann, nascircunstâncias de moraresteao tempo do crime com Ramos,conforme ele
mesmo confessou, e por ter sido visto junto com Ramos no dia subsequente ao
desaparecimento de Claussner. Sobre o motivo de estar em companhia de José Ramos no
açougue,Rathmannrespondeque:
Tendo-lheJoséRamosditoqueClaussnersehaviaretiradoparaMontevidéu,
pediuaelerespondentequefosseparaoaçougueafimdevendercarneem
suas ausências, o que ele respondente fez durante dois dias, isto no ano
passado[...],findososdoisdiasoalemãoFetternãoquismaisfornecercarne
aoJoséRamos,esteresolveufecharoaçougueemudarostrastespara sua
casa(CRA,1993,p.64).
O réu nega a suspeita de ser sócio ou caixeiro de Ramos, apenas reafirmando que
ajudounoaçougueporalgunsdias,quandoestelhedissequeotinhacompradodeClaussner.
No entanto, as suspeitas sobre o envolvimento de Rathmann no crime são agravadas pelo
depoimento de Joaquim Antonio Machado da Roza, sexta testemunha chamada para ser
ouvida,querevela:
Havia oito meses ou dez meses o réu Carlos Rathmann lhe entregou para
amolarumfacãodedoiscaboseumamachadinhadeaçougue,eletestemunha
amoloueentregouaomesmoréu;nodiaseguinteoréuJoséRamosveioter
comeletestemunhaeperguntou-lhesetinhafeitoaqueleserviçoeporquanto,
oqueeletestemunhaexplicou-lhe(CRA,1993,p.58).
Depois de tomados todos os depoimentos das testemunhas e frente às inúmeras
evidênciasqueapontamparaaculpabilidadedeJoséRamos,em15dejulhode1864eleé
acusadodeassassinato.Recaem-lheasseguintesacusações:teriaemprincípiodesetembrode
1863,naruadaPonte,matadoClaussneremsuaresidência.Depoisdetercometidoamorte,
teria tirado para si por meio de violência todos os efeitos que encontrara na casa do
açougueiro,partedosquaisforamapreendidosnaresidênciadoréu.Alémdisso,foiacusado
detercometidoocrimecompremeditação,havendodecorridomaisdevinteequatrohoras
entreodesígnioeaação.Inclusiveteriarealizadoocrimecomabusodeconfiançaneleposta,
ecomissoempreendidoodelitocomsurpresa.Edepoisdisso,teriaoréufabricadoeassinado
o recibo, cuja falsidade foi reconhecida pelo exame pericial, para atribuí-lo a Claussner e
dessemodojustificaraaquisiçãoquefaziadoaçougueemaisobjetosdavítima.
Já o réu Carlos Rathmann é acusado de ter concorrido diretamente para que José
Ramos perpetrasse o crime. Frente a essas acusações, foi pedida a condenação de Ramos,
segundoocódigocriminal,aograumáximo,bemcomoacondenaçãodeRathmannnograu
médioeparaqueassimfossemjulgados
48
(CRA,
1993,p.72).Valechamaraatençãoparao
fatodeque Rathmanné acusadosomenteparacumprirprotocolos, poisserá absolvidopor
unanimidadedosdelitosdosquaisestavasendopronunciado.
Astestemunhassãonotificadas
49
paradepornasessãodojúriiniciadaem8deagosto.
Foram sorteados quarenta e oito jurados para participar da sessão. Averiguou-se estarem
presentestrintaeseispessoasàsessão(
CRA,
1993,p.79).Destas,dozeforamsorteadasna
hora
50
,apósaimpugnaçãodedoisjuradospelapromotoriaedeoutrosseispelosréus.
 
48
Quantoàqualificaçãodosréusantesdojulgamento,constaqueJoséRamosdisseserfilhodeManoelRamose
deMariadaConceição,ter26anos,sersolteiro,nãoterprofissão,serbrasileiro,ternascidoemSantaCatarinae
saberlereescrever.JáCarlosRathmanninformouserfilhodeMelliorRathmanneCatharinaRathmann,ter61
anos,sercasado,seleirodeprofissãoedenacionalidadealemã.Sabendolereescrever,nasceunoDucadode
Essem,emKassel(CRA,1993p.49-50).RamoseRathmanndeclaramserpobresenãoterquemosdefendesse;
assim,oJuiz nomeiacomo defensordo primeiroaFranciscoXavierdaCunha,edosegundo,aJoãoPereira
Maciel,queaceitaramanomeação(id.,ibid.,p.79).
49
Foramnotificados:CarlosLorenz,CarlosSchmidt,JoãoErmanoAdolfoTehse,JoãoHugoTehse,Antonio
Fernandes da Silva, Frederico João, Antonio Lehmann, Joaquim, menor, filho de João Antonio Machado da
Rosa(CRA,1993,p.77).
50
FoimandadoaomenorDelfinoJoséNunesquetirasseascédulascadaumaporsuavez,easlesseaomesmo
tempoemqueeramextraídas.Saíramsorteadosparacomporojúriosseguintesnomes:CandidodeAlbuquerque
NoautodointerrogatóriodeJoséRamosnodiadojulgamento,constam,entreoutros
questionamentos,seoréusabiaomotivopeloqualestavasendoacusadoeseprecisavade
algumesclarecimentoaesserespeito;Ramosrespondeardilosamente
[...] que ele sabe que é pelo fato de acharem no porão de sua casa os
fragmentos de um esqueleto que se supõe ser de Claussner, mas que ele
respondente é vitima de indícios sem que haja uma prova convincente a
respeitodesuacriminalidade,sendoque muitoseadmiraquea ré Catarina
Palsenãotenhasidoinduzidanopresenteprocesso,sendoelaquegovernavaa
casaemquecomelemoravae,admitindoalidiversaspessoas,équempodia
saber como se passaram esses fatos e dar uma explicação razoável, e que
quanto a este crime e ao outro por que jáfoi condenadoele respondente é
inocente, assim como também é pelo presente crime aquele que hoje
comparececomoseucúmplice(CRA,1993,p.82).
Em vários momentos do interrogatório observamos nas respostas de José Ramos a
tentativaderetirardesiaculpapeloscrimesetambémderesponsabilizarCatarina.Afirma
quequandochegouemcasaestavasuamulhercomHenrique,quelámoravahaviacercade
três semanas, sugerindo que quem poderia saber a esse respeito seriam os dois. Ao ser
questionadosobreasmanchasdesanguenacasaenolençoldeumadascamas,Ramossugere
também que Palse seria a pessoa mais indicada a responder, pois era ela que cuidava da
limpezadacasaedaroupasuja.
Henrique Rithmann, que também fora ouvido pela polícia, ardiloso, consegue
despistar qualquer suspeita
51
. Ao ser questionado sobre Claussner, nega tê-lo sequer
conhecido;afirmadesconhecerascircunstânciasdaprisãodeJoséRamos,apenassabiaque
haviamencontradonaresidênciadentrodeumpoço,carne,masqueseriadeboi,equeessa
informação obtivera de vizinhos de Ramos (
CRA,
1993, p. 18). Depois de tomar seu
depoimento,ochefedepolíciaentendequeHenriquenãoestavaenvolvidonoassassinatodo
açougueiroemanda-oempaz,livredequalquersuspeita.
Ramos se mostrará extremamente dissimulado e calculista ao responder aos
questionamentosdochefedepolícia,masmuitasvezessustentarádeclaraçõesinverossímeise
contraditórias,entreelasofatodeosabercomoocorpodeClaussnerfoipararnoporãode
suacasa.IssoporqueaalegaçãodeignorânciaoferecidaporJoséRamossobreaprocedência
   
FernandesGama,ManuelIgnácioRodrigues,LuizJosédaFontouraPalmeiro,FranciscoFerreiraJardimBrasão,
Domingos de Almeida e Oliveira, Luís Beltrão de Miranda e Castro, José Maria de Andrade, João Dias de
Castro,JoãoJoséFerreira,FranciscodePaulaSoares,AntoniodeLimaPintoeJoséGonçalvesMendesFerreira
(CRA,1993,p.80).
51
Henrique confirma queresidiuna casa daruadoArvoredoporalgunsdias,aconvitede JoséRamos,mas
ressalvaquenoperíododoassassinatodeJanuárioedeseucaixeironãoestavamaismorandonacasadeRamos,
equenodiadostaiscrimesforapelapartedamanhãatéaresidênciadocasaldeixarumajaponaparaCatarina
consertarenodecorrerdodianãohaviasaídodohotel(CRA,1993,p.18).
docorpoencontradoemsuacasaereconhecidocomodoaçougueiroérebatida,poisotempo
de permanência desse cadáver na terra atestado pela perícia coincide com período da
residênciadoacusadonacasa.
Jáo réuCarlosRathmann,aoserquestionadose teriaalgoadeclararousepossuía
provasquejustificassemoumotivassemsuainocência,responde:
QuenãotevepartealgumanosfatoscriminososqueseatribuemaJoséRamos
sobreodesaparecimentodeClaussner,equepormoraremcasadaquelepor
ocasião do desaparecimento deste (a quem supunha ter partido para
Montevidéu em uma viagem por lhe dizer Ramos) foi por dois dias partir
carnenoaçougueemqueRamostinhaficado,aseupedido,e comodepois
dessesdoisdiaso alemãoFetter não quisessemaisfiar carne aRamos este
resolveufecharoaçougueelevarosutensíliosparacasa,cujotransporteele
auxiliou, mais que o fez sempre na melhor boa fé como em serviço que
prestariasempreaqualquerconhecido(CRA,1993,p.83).
De conformidadecoma decisão dojúri,oréu JoséRamos,no dia 13de agosto de
1864,comosesabe,écondenadoàpenadequatorzeanoseummêsdeprisãocomtrabalhoe
amultadedozeemeioporcentododanocausadocomafalsidade,pagospelomesmoàcusta
emproporçãodevida.
Noentanto,nãosepodedeixardeestranharafaltadeunanimidadedosjuradosquanto
àculpadeRamosnamortedeCarlosClaussner(10/2).Comoregra,nãoflagrantenesses
crimes e isso permite a negação da autoria, negação que suscitará dúvidas nos julgadores
quantoaoenvolvimentodounamortedoaçougueiro,apesardetodasasprovasarroladase
queincriminavamJoséRamos.
Observamos também certa incoerência na votação de alguns quesitos, como por
exemplo,seJoséRamosteriatiradoparasi,pormeiodeviolência,todososefeitosqueachou
na residênciadavítima. Ora, hámeio mais violento do que matar e esquartejar Claussner,
levarseucorpoempedaçosdentrodobaúdaprópriavítimaetodososobjetosdevalorque
encontrou nacasa eaindafalsificarorecibo coma finalidadedejustificaraaquisiçãoque
faziadoaçougue?Paragrandesurpresa,ojúri,comquaseunanimidadedevotos(11/1),não
acreditou que José Ramos tenha tirado para si por meio de violência os pertences do
açougueiro.
MaissurpreendenteaindaéofatodeCarlosRathmannserabsolvidoporunanimidade
pelojúri.Emboraváriosindíciosapontassemparaoseuenvolvimentonoscrimes,entreeleso
fato de morar na casa de Ramos no período do crime, estar com ele no açougue
imediatamenteapósodesaparecimentodeClaussnere,segundotestemunhas,tersolicitadoa
amolaçãodeumfacãodedoiscaboseumamachadinhadoaçougue,amandodeJoséRamos,
ojúrientendeuporsuainocência.
Éimportanteatentartambémparaofatodeque,dasoitotestemunhasinquiridasno
Sumário,pelomenosseiseramimigrantesalemãeseprotestantes(CarlosSchmidt,Frederico
João, João Hugo Tehse, João Herman Adolfo Tehse, Carlos Lorenz e Antonio Lehmann).
Cabe destacar ainda a presença de certa imprecisão na formulação das perguntas às
testemunhaseatémesmocertograudeinduçãodeinocêncianaprópriaformapelaquaiselas
eramformuladasoudirigidasàspessoasinterrogadas.Nessesentido,podemoscitarumadas
perguntas feitas à testemunha João Hugo Tehse, questionado se nada ouvira dizer contra
CarlosRathmann(CRA,1993,p.56).Talvezessesfatorestenhamfavorecidoaabsolviçãodo
alemão Rathmann, ou seja, o fato de a maioria das pessoas ouvidas serem alemães assim
como o réu e a forma como foi conduzido o inquérito no que dizia respeito ao seu
envolvimentonoscrimes.
1.4ALENDADOSCRIMESDARUADOARVOREDO
Frente ao exposto no processo criminal, comprovam-se muitas lacunas e mistérios
envolvendooscrimesdaruadoArvoredo;aabsolviçãoporunanimidadedeCarlosRathmann
éapenasumdeles.HátambémcontrovérsiasquantoàsuspeitadeJoséRamosterfabricado
linguiçacomcarnedegente;todososdocumentosdisponíveisautorizamaafirmação,embora
nãomuitocategórica,dequefoiforjadaumalenda.QuernoprocessoinstauradocontraJosé
Ramos e Carlos Rathmann, analisado, quer nos relatórios de investigações policiais e nos
jornaisdaépoca
52
aqueseteveacesso,oencontramosreferênciasàquelefato.Noentanto,
O maior crime da terra, de D. Freitas,contém alusões ao sinistro encaminhamento que
Ramosteriadadoaoscadáveresdesuasvítimas,sustentandoatesedofabricodelinguiçade
carnehumana.
EmrelaçãoaoensaiodeD.Freitas,éinteressantelembrarqueoscrimesemquerefere
essa situação seriam aqueles seis ocorridos em 1863, descritos pelo autor. Assim, ficam
excluídos os outros três pelos quais Ramos respondeu processo, isto é, os assassinatos de
Januário,do caixeiro ede Claussner,cujosrestos mortais foram encontrados noquintal da
casadaruadoArvoredo.Mesmoporque,entreasossadasencontradas,váriasestavamcomos
restos em decomposição, a exalar forte cheiro. Ora, se o destino dos cadáveres fosse
realmenteatransformaçãoemlinguiça,osossosdeveriamestarlimpos.Noentanto,nãose
temconhecimentoarespeitodoscorposdassupostasseispessoasassassinadasporRamose
seuscomparsas.Nãohánenhumregistrooudocumentoquecomproveouatesteaexistência
dessasvítimas.Excetooprocessoreferenteàsseismortes,ouseja,aocasodalinguiçafeita
com carne humana, do qual D. Freitas, no decorrerde seu ensaio histórico, afirma possuir
fotocópia
53
.
Entretanto,oquecausacertaestranhezaéqueemnenhummomentooautorfazusode
tais fontes no decorrer do seu trabalho, preferindo valer-se de informações fornecidas por
outrosmeios:pelodiplomatafrancêsJean-PierreCaillois,expressasnolivroMemoiresd’un
diplomate, e pelo livro de memórias de Francisco José Furtado, intitulado Minhas viagens
peloBrasil(Recife,1891).EsseéumdosargumentoscomqueC.Elmirsustentaatesedeque
Omaiorcrimedaterra,deD.Freitas,éumanarrativaficcional.
 
52
ExcetoojornalODiógenes,de24/04/1864,queéoprimeiroamencionaraexpressãocanibalismo,comojá
foimencionado,nodecorrerdorelatoessapalavranãoserepete.
53
Veraesserespeito:FREITAS,1996,p.94.
DeacordocomC.Elmir,oprojetodeD.Freitasde“separarahistóriaealendanos
crimes de José Ramos” (FREITAS, 1996, p. 19) acaba por não se realizar de fato. As
memórias do diplomata francês Caillois constituem, na narrativa e, especialmente, na
recuperaçãodasinformaçõessobreofabricodalinguiçaeocanibalismo,importante“fonte
de consulta”. Segundo C. Elmir, na documentação consular disponível junto ao Arquivo
HistóricodoRioGrandedoSul,constaumlivroderegistrodarepresentaçãoestrangeirana
Província, no qual o aparece o nome do referido diplomata. Tampouco em nenhum
momentoD.FreitasfazregistrodaspáginasdeondeextraiuaspassagensdotextodeCaillois,
embora delas faça citações diretas. Em relação às informações extraídas do livro Minhas
viagens pelo Brasil, do magistrado maranhense Francisco José Furtado, a situação não é
diferente. Este teria acompanhado o depoimento de Catarina, em 1868, e registrado suas
impressões no referidolivro.D. Freitasfaz mençãoariascitações desseautor, mas sem
mencionaraspáginas.
Nãosepodedeixardelevaremconsideraçãoaindaofatodequemuitoscomponentes
nahistóriadoscrimesdaruadoArvoredoautorizamapensarqueocasodalinguiçahumana
não passa deumaboa lenda
.
Nessaperspectiva,osversosfinais do poemaemepígrafe na
abertura docapítulorevelamtoda asuaimportância:Memóriaque ficouguardada/Lenda
arrebatada/Paixão
”.
Paramelhornosaproximarmosdalenda,cabetrazeradefiniçãodeBertrandBergeron
naobraAuroyaumedelégende,baseando-senasleisdeVanGennep:
A relação oral (pontual e temporal) livre (da qual nem as palavras nem a
informaçãopertencematradiçãoapriori),feitaporumnarrador(elepodeser
tanto uma testemunha direta quanto um elo na cadeia de transmissão)
deficiente(nãopossuidordetodososdadosdoqueconta)enãoespecializado
(qualquerumpodesefazervetordeumalenda)deumacontecimento(ouseja,
um fenômeno fundador) localizado (inscrito na geografia), personalizado
(referenteasereshistóricos,emoposiçãoaseresmíticos),situadonotempo
(identificávelnotempocronológico,emoposiçãoaotemponãohistóricodo
mito e do conto), com temas unificados (cuja coesão narrativa é forte),
dependentedosobrenaturalmodal(pertencenteaodomíniodofazercrer/faire
croire),oquefazdalendaumanarrativadecrençaquerequeracumplicidade
formal de um ouvinte, o qual a completará por sua própria convicção. Tal
definiçãofazdetodalendaoralareminiscênciaverbaldeumacontecimento
parasempreinacessível
54
.
 
54
CitaçãoextraídadeBertrandBergeron:Noreinodalenda(p.43).Aíntegradotexto,emtraduçãodeSylvie
DioneDanielideQuadros,estáempreparaçãoparaserpublicadanosCadernosdeTraduçãodoPPG-Letrasda
FURG,n.6.SérieTraduções.Foramselecionadosparatraduçãoosprimeirosquatrocapítulosde:BERGERON,
Bertrand.Auroyaumedelalégende.Chicoutimi:JCL,1988:Dialogueavecl’invisible,Lephénomènenaturelde
la croyance, Le surnaturel réel e La légende: description et définition, nos quais o autor se concentra na
elaboraçãodeumadefiniçãodalenda,analisando-acomofenômenosocialeliterário.
Tratando-sedelenda, oepisódiotambém podeserlido dessaforma,pois oscrimes
cometidosporJoséRamos,naentãoprovínciadeSãoPedro,entre1863e1864,possuemo
tempoacontecidobemdatado–em18deabrilde1864foramdescobertosnacasadoacusado
corposemestadodeavançadoputrefação–oqueoferecelocalizaçãocronológicasuficiente
pararesgatarseucontextosócio-histórico,aumentandoaimpressãodequeanarrativaadere
aoreal.ConformeB.Bergeron,quandoessasquatroleisexternassãorespeitadas,podemos
tercertezadequepossuímosumanarrativaaindapróximadocursodesuaformação,oque
acresceconsideravelmentesuacredibilidade.
Ao direcionarmos nossas atenções para os aspectos internos,colocando a ênfase na
próprianarrativadoscrimesenosprocedimentosqueelareúneparageraracrençanecessária
à transmissão, podemos sublinhar: que torna crível e plausível a construção da lenda dos
crimes da rua do Arvoredo é o fato de serem conhecimento público alguns pormenores a
respeitodaquelescrimes.Podemoscitarcomoexemploofatodeconstarnoprocessocriminal
odepoimentodatestemunhaAntonioFernandesdaSilva,queafirmaterpresenciadoemuma
manhãdesetembrode1863sairdoaçougueacaixamaiorpertencenteaClaussner,carregada
pordoisnegros(CRA,1993,p.57).Jáoutrasnarrativasdarãocontornosmaisdramáticosa
esse fato
55
, entre elas a versão de Maurício Machado em O açougue humano da rua do
Arvoredo
56
:
Aesteseoutrosdesaparecimentosmisteriosos,associava-seofatodetersido
visto Ramos, por várias vezes, quando carregava, auxiliado por um alemão
corcunda,duasgrandesefortescaixasdemadeira,desuacasaparaoaçougue
daruadaPonte.CertaocasiãoemqueRamoseoCorcunda,ànoite,faziam
aquelecarregamento,umapessoanotouqueascaixasdeixavamescorrerum
fiodesangue(p.8).
Outros momentos que podem estar associados à construção da lenda do fabrico de
linguiçadecarnehumanaéofatodeseremdeconhecimentopúblicoosprocedimentosde
José Ramos ao matar as vítimas: primeiro desferia um golpe de machado, em seguida as
degolavaedepoisasesquartejava–procedimentosqueseassemelhariamaoabatedeanimais.
Ofatodesercapazdeatosdetamanhacrueldadeeinsanidade,eapósosúltimosassassinatos,
irtrabalharnoaçouguedaruadaPonte,fornecesubsídiosparaacriaçãodalenda.Paramaior
reforçoaessahipótese,toma-se,porexemplo,adescriçãodeClaussnerfeitaporD.Freitas:
“Açougueiros sempre provocam mal-estar e medo: empunhando afiadíssimos instrumentos
 
55
Veraesserespeitotambém:FREITAS,1996,p.112-116.
56
DIÁRIODENOTÍCIAS,09dez.1948,p.8.
cortantes, esquartejam e retalham carne: seus aventais vivem manchados de sangue”
(FREITAS,1996,p.77).
Além disso,comoaumento dacriminalidade,PortoAlegrepassaafornecerespaço
frutífero para a criação de lendas. Conforme Sylvie Dion, em A lenda urbana: um gênero
narrativodegrandemobilidadecultural(2008),alendacontemporâneanoscolocaemalerta
contratodososperigosquenosespreitam,refleteosmedosatuaiseasangústiasdacidadee
davidamoderna.QuandoaprovínciadeSãoPedrotorna-secidade,em1822,paralelamente
aoaumentopopulacionalaumentatambémainsegurançaeomedodaviolênciaurbana.No
período do assombrosoepisódio,acidade com mais de 20 mil habitantes já é considerada
perigosaànoite(SPALDING,1967).OscrimesdaruadoArvoredo,ocorridosentre1863e
1864,vêmacentuarainsegurançaeomedoentreapopulação.
Jean-Bruno Renard (2002, apud DION, 2008, p. 10), ao reagrupar os temas
encontradoscommaisfrequêncianaslendasurbanas,classificaosmedoseasangústiasque
elas veiculam. Há primeiramente as lendas que dizem respeito às novas tecnologias,
vinculadasaosefeitosdanososdecertosaparelhos,taiscomofornodemicroondasetelefones
celulares.Anaturezaselvageméoutrotemaqueseencontranaslendasmodernasequeestá
frequentemente ligado à aparição de bestas selvagens na cidade. Este, do ponto de vista
metafórico, não deixa de ter validade aqui, pois José Ramos é associado nas diversas
reapropriaçõesdoscrimesaumserdiabólico,bestialemonstruoso
57
.Porfim,apartequenos
interessaestáassociadaàslendasquedizemrespeitoaosestrangeiros.
Associadoa estaclassificação podeestaroutro ponto propício àmatéria-primacom
quesecrioualendadofabricodelingüiça decarnehumana.OfatodeCatarinaPalseeo
próprioassassinoJoséRamossedizeremdescendentesdealemãese,comodesenrolardos
fatos,surgira suspeitade envolvimentodeoutrosalemãesnoscrimes(Carlos Rathmann e
HenriqueRithmann),podetercontribuídopara“alimentar”oimagináriosocialemtornodo
episódio.
Retomam-se as múltiplas questões étnicas se a misturarem nos crimes da rua do
Arvoredo, que, enfocando a presença alemã na cidade, encontra a suaexpressão maior de
hostilidade.Osportuguesesdaeliteolhavamcomdesconfiançaparaoscolonosalemães,que,
quarentaanosantes,tinhamseestabelecidonovaledoriodosSinosedepoisseespalhado
paraoutrasregiões,inclusiveparaadistanteTorres,nolitoralnorte.Oslusosdesprezavamos
imigrantesquesepunhamelesprópriosalavraraterra,alevantarassuascasas,eporisso
 
57
Veraesserespeito:ÚLTIMAHORA,07mar.1964,p.10-11.
eram chamados pelos fidalgos portugueses de “negros de cabelos loiros”. Esse ódio se
intensificou com a questão Christie, em 1861
58
. Por esse preconceito racial, os imigrantes
alemães se acoitavam em suas próprias colônias e mantinham-se distantes da língua
portuguesaedasociedadeporto-alegrense.
A aversão contra o estrangeiro é crescente no Rio Grande doSul, pois a figura do
outrosemprecausamal-estaremedo;taissentimentossejustificam,poistudooquenosé
diferentecausaestranhezaetemor.S.Dionchamaaatençãoparaaseguinteconstatação:“a
figuraonipresentedoestrangeiro,domarginal,dodesviante,éumaameaçaconstante”(2008,
p. 12), por isso deve ser contida. Quando desaparece o português Januário da Silva,
proprietáriodoestabelecimentodaruadaPonte,assuspeitasrecaemlogosobreosescravose
emseguidasobreosalemães.Issoporque“asacusaçõesracistasexenófobas,querepousam
sobreo medodadiferença,portamsempresobrequatrodomínios,acomida,aviolência,a
sexualidadeeoterritório,queoaquelesqueumasociedaderegulamentamais”(RENARD,
2002,apudDION,2008, p.10). Paraa populaçãodePorto Alegre,Ramoséumassassino
alemão,estrangeiro,infiltradoentreoshabitanteslocais,queveiodelongeparadesestabilizar
eperturbaraordemeosossegodacidadeatravésdepráticasamorais,taiscomocanibalismo,
violênciaeperversãosexual.
ConformeaindaS.Dion,
A lenda é sempre a narrativa de alguma transgressão, de uma ação que
consiste em desobedecer, em violar o proibido, em ultrapassar os limites
habitualmentepermitidosetolerados.Discursodeprevençãoedeadvertência
nascidodanecessidadedelimitaronormaldoanormal,amoraldoimoral.Os
transgressores,peloantimodeloquerepresentam,colaboramparaanormaea
coerênciadogrupodepertença(2008,p.3).
Porfim,associamosàconstruçãodalendaofatodeque,àmedidaqueotempoavança
eoacontecimentovaificandomaisdistante,maiselepassaaassemelhar-seatrechosdeum
romancedeterror,nosquaisoconhecimentodospormenoresdoepisódiosuscitanoleitorno
mínimoassombro,terroremedo.Alémdisso,emtalsubgênero,assimcomonoepisódiodos
referidoscrimes,hápresençadeumafiguramarginalizadaesemescrúpulos,quetrazemsia
almamalignaeescuracomoopróprioinferno
59
.Nodesenrolardotempo,JoséRamosperdea
aparência frágil e debilitada descrita pelos jornais da época e, a partir das diversas
 
58
Paradetalhesdesseconflitoentreluso-brasileirosealemães,ver:FREITAS,1996,p.71-73.
59
Informação disponível em <http://web03.unicentro.br/especializacao/Revista_Pos/P%C3%A1ginas/
4%20Edi%C3%A7%C3%A3o/Lingua/PDF/9-Ed4_LL-MedoMor.pdf>.
reapropriações dos crimes, assume expressões satânicas e passa a ser descrito como um
monstro,umabesta-fera.
SandraPesavento,emOssetepecadosdacapital,chamaaatençãoparaessaquestão:
“Algo propiciava o enriquecimento da trama, para além da distância cada vez maior no
tempo. Algo deveria ter sido murmurado ou insinuado, para que fosse retrabalhado pelo
imagináriosocial.Estenãoépurailusãooufantasia,bemosabemos,poistemsempreoreal
comoreferente,comosendoumfioterra”(2008,p.60).Masparecedifícildatarcomprecisão
omomentoemquesurgiuasuspeitadafabricaçãodelingüiçacomcarnedegente,pois,como
jáfoidito aqui, asfontesdaépoca não mencionamcategoricamente tal fato, e,comotoda
lenda,elaseapresentasemautor.
Lendaounão,ocasodalinguiçahumanaganhouforçaetemvividoconservadona
memória da população por gerações. De pais a filhos, a história tem sido contada e
enriquecida com novos detalhes imaginários, que a aproximam da crônica intitulada Os
monstros
60
,deAryVeigaSanhudo:
Poucomaisdasoitohoras,numafriamanhãdoinvernode1888,começoua
seaglomeraremtornodumavelhamendigaemaltrapilha,[...]umgrupode
gentecuriosa[...].Avelhaandrajosaestavaestendidanacalçada,tendoparte
dobustoesqueléticoeacabeçahorrenda,apoiadanaparededoprédio,que,
nestaconjuntura,servia-lhedetravesseiro[...]Emtornodabocaasquerosae
semi-aberta,sangrentasmanchasescuraseputrefatas,deixavamaparecerdois
ou três dentes cariados enegrecidos que bem atestavam os últimos estágios
dum estado canceroso da desgraçada mulher [...] Eis então que chega um
velho homem,vasta barba branca aparada, envergando apurado trajenegro,
arredou a multidão e empurrando o chapéu miserável da mendiga com a
bengala,disse:FinalmenteaCatarinamorreu![...]EstaéadiabólicaCatarina,
doRamis,atalque,deparceriacomomarido,atraiaospseudos[sic]amantes
paradelesfazeremlingüiça(1961,p.146).
Oexcertoacima,alémdeservirparaexemplificaroacolhimentodahistóriadofabrico
delinguiçadecarnehumana,assumetambémfeiçãonitidamenteficcionalaorelataratriste
mortedeCatarina
61
.HánotóriaconvergênciaentreadescriçãofornecidaporSanhudoeaque
 
60
OdocumentárioproduzidopelaPUC-RSintituladoSombrasdeumpassado,dirigidoporJoaraPippi,Mariana
Mondini e Mariana Timm, disponível em: <
http://www.youtube.com/watch?v=FtXqITp30dU>, também se
constituiembomexemplodecomoaimaginaçãopopularacrescidadeartifícioscomofantasia,aoconservara
lembrança daqueles crimes, envolveu-os não raro em véus de lenda. Nesse documentário são entrevistados
moradores,em2008,dobairroondeaconteceramoscrimesháquase150anos.Muitosdelesacreditamqueo
assassinoeraumpadeiroquematavacriançasparafazerlinguiça.
61
Vale ressaltar que há disparidade quanto à data do falecimento de Catarina Palse. A crônica de Sanhudo
localizasuamorteem1888.D.Freitas(1996,p.133),porsuavez,afirmaqueelamorreuem1891.
fez Aquiles de Porto Alegre ao encontrar Palse no ano de 1884: “estava cancerosa e
apresentavaaspectorepugnante”(PORTOALEGRE,1940,p.185).
Oacolhimentodahistóriadofabricodelingüiçadecarnedegentesefazpresentena
memória popular e na maioria das reapropriações dos crimes, porque crer é a atividade
primeiradoespíritohumano,semaqualnenhumaaprendizagemseriapossível.Alémdisso,é
um dom natural de nossa sensibilidade. Nenhuma sociedade sobreviveria se baseasse na
desconfiançarecíprocaentreseusmembros.Adúvidasóvemdepois,precedidapeloreferido
dom,poderíamosdizer.Duvidarimplicaqueacreditemosinicialmentenaprópriadúvida,que
acreditemosnaspalavrasqueaexprimem;semissoaprópriaidéiadadúvidasedissiparia.
Somente podemos duvidar daquilo que acreditamos, do que sabemos, ou do que nos
propomoscrerenospareceinacreditável.Ohomemestáirremediavelmentepresoaouniverso
dacrençamesmoquandoachaquepodecolocá-laemquestão(BERGERON,1988).
2. “OS CRIMES DA RUA DO ARVOREDO”: VERSÕES E SUBVERSÕES EM
NARRATIVASFICCIONAIS
2.1HISTÓRIAVS.LITERATURA
AsdiversasnarrativasproduzidasapartirdoscrimesdaruadoArvoredo
62
,bemcomo
asmúltiplasversõesdosacontecimentos,seconstituememmeiopossívelparaageraçãode
conhecimentodecomoosfatossederam,fazemamediaçãoquepermitechegaraopassado,
voltaraele“comaprecariedadeeariquezaquelheséconstitutiva”(ELMIR,2004,p.177).
EstamosfalandoaquinasnarrativasficcionaisCãesdaProvínciaeCanibais:paixãoemorte
na rua do Arvoredo, pois, além de constituíremduas instigantes e importantesleituras dos
fatos, ocupam lugar central, assim como o ensaio de D. Freitas, o processo criminal e as
narrativasjornalísticas,pararecuperarepreservaramemóriadaquelesepisódios.Issoporque
nos tempos atuais parece fora de dúvida que história e literatura são narrativas, discursos,
construçõeshumanas,sistemasdesignificaçãopelosquaisdamossentidoaopassadoapartir
desta “ficção” a que chamamos presente. Nessa perspectiva epistemológica ligam-se o
literárioeohistórico
63
.
Podemos consideraraliteraturae a história como leituras possíveisdarecriação do
“real”,umavezqueosdiscursosnãoapenasrepresentam,mastambéminstituemarealidadee
 
62
AlémdasdiversasnarrativasproduzidasapartirdoscrimesdaruadoArvoredoaquimencionadas,ointeresse
volta e se revela em diversos meios de expressão. Em 1964, exatamente quando os crimes de José Ramos
completavam cem anos, o jornal Última Hora publicou a série em quadrinhos, em 22 edições, Crimes que
abalaram oRio Grande,cujoprimeiroepisódiofoiexatamenteO açouguemacabrodaruadoArvoredo.No
finaldadécadade1990,foiencenadanoTeatroSãoPedro,emPortoAlegre,apeçateatralOscrimesdaRuado
Arvoredo,escritaporHérculesGrecco,sobdireçãodeCamilodeLélis.Em1995,foiproduzidoofilmedecurta-
metragemOcasodolinguiceiro,comdireçãodeFlaviaSeligmaneroteirodeFranciscoRibeiro.Premiadono
concurso Resgate do cinema Brasileiro, a filmagem ocorreu na cidade gaúcha de Triunfo.Em 1997, Sandra
PesaventopublicouemParisoartigoCatarinaComeGente:l’imaginairedelafemmedevantlecrime(Porto
Alegre, XIXe. Siècle), resultado de um seminário apresentado na capital francesa noano anterior. Em 2000,
MoacyrScliarpublicapelaeditoraRecordolivroPortodeHistórias:mistériosecrepúsculosdePortoAlegre,
emqueumcapítuloédedicadoaoscrimesdaruadoArvoredo.Em27/07/2006aTVGlobo,noprogramaLinha
Direta Justiça, relembrou aqueles crimes; o episódio teve a participação de Natália Lage, que atuou como
CatarinaPalse,edeRicardoPetraglia,nopapeldoserialkillerJoséRamos.Em2008,foiencenadaapeçade
teatro Como carne, dirigidapor Andrei Moscheto, baseadanostextoAçougue,canibais elingüiça, deEdson
Bueno,enolivroOmaiorcrimedaterra,deDécioFreitas.
63
Sehojeocruzamentoentrehistóriaeliteraturaestánaordemdodia,pelocontrário,houvemomentosemque
taistermosnemsequerexistiamnaacepçãoemqueosentendemos.Emoutros,nãoexistiamfronteirasdefinidas
entre literatura e história. Também ocorreram intervalos em que as fronteiras se fecharam, estabelecendo-se
limites definidos entre o que seria ficcional e oque seria histórico(BURKE, 1997). No que diz respeito ao
estudo desse tema sempre instigante, é importante ressalvar que o temos a pretensão de explorar todos os
pontos que compreendem tal relação, dada a complexidade e a abrangência do tema, e sim objetivamos dar
continuidadeàdiscussãosobre assemelhançasediferençasesobreos pontosdecontatoe dedistanciamento
entreosdoiscamposdosaber,ecomisso,consequentemente,contribuirparamanteracesoodiálogoeodebate
sobreoassunto.
instauram imaginários. Na narrativa histórica e literária, tanto o historiador quanto o
ficcionistarecriamopassadoqueanarrativatrazdevoltaaopresente.
Masoquepodesignificarotermo“real”aplicadoaos“conteúdos”daliteraturaeda
história?ParaPerrone-MoysésemAcriaçãodotextoliterário,“Alinguagemtemumafunção
referencialeumapretensãorepresentativa.Entretanto,omundocriadopelalinguagemnunca
está totalmente adequado ao real. Narrar uma história, mesmo que ela tenha realmente
ocorrido,éreinventá-la”(1990,p.92).
Alémdisso,paraS.PesaventoemDiscursohistóricoenarrativaliterária(1998),os
materiaisdetrabalhodohistoriador–documentos,arquivos,entreoutros–sãoelespróprios
representação do algo que foi. A operação histórica consiste, então, em reapresentar o
representado ou reimaginar o imaginado, o que parece atenuar a dicotomia documento/
fato/verdadeversusficção/imaginário.
Contudo,segundoamesmaautoraemLeiturascruzadas,o“textohistóricocomporta
aficção,desdequeotomenasuaacepçãodeescolha,seleção,recorte,montagem,atividades
quesearticulamàcapacidadedaimaginaçãocriadoradeconstruiropassadoerepresentá-lo”
(PESAVENTO, 2000, p. 39). Todo discurso é ideologicamente marcado pela seleção que
tantoahistóriaquantoaficçãorealizamdosfatospresentesnarealidade.Essaseleçãocriaum
segundo sentido, algo que já o corresponde inteiramente com a realidade observada,
determinandoquehistóriaeficçãotenhamumaexistênciapuramentelinguística,cujoefeitoé
umailusãodoreal:
O historiador realiza uma rarefação do referencial, criando uma espécie de
malha larga, perfeitamente tecida, mas que envolve espaços de
obscurecimentooudereduçãodosfactos.Desteângulo,parecelegítimodizer
que a História se apresenta como parente próximo da ficção, dado que, ao
rarefazer o referencial, procede a omissões, portanto a modificações,
estabelecendoassimcomosacontecimentosrelaçõesquesãonovasnamedida
emqueincompletasseestabeleceram(SARAMAGO,1990,p.20).
Vale ressaltar, o historiador tem de ser um escolhedor de fatos. Isso se deve à
incapacidadedeseabarcar “tudo” e tambémemnome de razões políticaseem função de
estratégiasideológicas,necessáriasparajustificarasuahistória.Masdevemosconcordarque
o historiador ao fazer a seleção, o recorte, deixa muitos fatos importantes de fora. Nesse
sentido,ohistoriadorsurge,assimcomooficcionista,como“criadordeummundooutro,ele
é aquele que vai decidir o que do passado é importante e o que do passado não merece
atenção”(SARAMAGO,1990,p.18).
Aaproximaçãoentrehistóriaeliteraturatambémseefetivaaoatentarmosparaofato
de que,assim comoo discurso histórico,o literáriooéoutracoisa senãoumaconstante
interrogaçãodostempospassados,emnomedosproblemas,dascuriosidades,dasindagações
edasangústiascomquenosrodeiaecercaotempopresente.
Tantodopontodevistadahistóriaquantodaliteratura,asduasáreasdosaberotão
somenteexpressõesdamesmainquietaçãodoshomens.Assimcomonahistória,naliteratura
é“precisamenteaconsciênciaintensíssima,quasedolorosa,dopresentequelevaoromancista
aolharnadireçãodopassado,nãocomorefúgio,mascomoalgoradicalmentenecessárioaos
homensdehojeparaqueelespossamconhecer-semelhor”(SARAMAGO,1990,p.20).
LindaHutcheon,porsuavez,aotratardospontosdeintersecçãoentreasduasformas,diz:
[...]asduasobtêmsuasforçasapartirdaverossimilhança,maisdoqueapartir
de qualquer verdade objetiva; as duas o identificadas como construtos
lingüísticos,altamenteconvencionalizadasemsuasformasnarrativas,enada
transparentesemtermosdelinguagemouestrutura;eparecemserigualmente
intertextuais, desenvolvendo os textos do passado com sua própria
textualidadecomplexa(1991,p.141).
Entretanto,sealiteraturaeahistóriaconvergemnessesaspectoseprincipalmenteno
sentidodequesãorepresentaçõesdoreal”,aomesmotempoemqueoinstituem,épreciso
reconhecer certas linhas divisórias entre os dois discursos. Há diferentes procedimentos e
métodosnessa“artederepresentar”.PaulRicoeur(1995)apontaorecursoaosdocumentos
comomarcadistintivaentrehistóriaeficção.
Averdadehistóricaserámensuradapelasuacredibilidade,veracidade,atestadapelos
fatosselecionadosepelapesquisadocumental.Jáaverdadeliteráriacaminhacomaliberdade
construtiva e com a imaginação ampla do autor, provocando uma mobilidade de leitura
diferente do discurso histórico. Não se trata de a história alimentar a ficção, mas de uma
verdadediferentedaquelahistórica,outraformadecaptaroreal,emqueoslimitesdacriação
edafantasiasãomuitomaisamplos.
É de grande valia salientar também que não será pela presença da história que a
narrativaliteráriaperderáseuestatutodeficção.Aocontrário,aimaginaçãosenutredoreal
recontextualizando os acontecimentos e atribuindo-lhes novos significados. Da mesma
maneira,oimaginárionãoconstituibarreiraànarrativahistórica,nemelaseanulacomsua
intromissão.Dessaforma,literaturaehistórianãoperdemsuascaracterísticasessenciais,ou
seja,nãoháanulaçãototaldodocumentáriooudoimaginário,nemtotalmisturadosdois.
Defato,aliteraturaocarregaa pesadaherançadoarquivo, marcaconstitutivada
história na medida em que ela ambiciona constituir um conhecimento verídico. Embora a
nova história tenha abdicado da pretensão de querer recompor a verdade sobre o “real
acontecido”,suaproduçãoestásubmetidaàcomprovação,oqueimplicacertosprocedimentos
naseleçãodefontesenabuscadecoerêncianacomposiçãodoenredooudeciframentoda
intrigaapartirdosdadosselecionados,osquaissãoditadosporcritériosdecientificidade.A
narrativaliterária/ficcionaltomacomopontodepartidaumconjuntodeinformações,apartir
doqualcompõeseucontextodereferência,intertextualizandoinclusiveaprópriahistória.
Mas,comodizaindaP.Ricoeur(1995),aliteraturasepermitetrilharoutroscaminhos
referenciais, guiados pela estética e pela poesia. No ato de copiar a realidade e criar um
sentidodeverossimilhança,anarrativaficcional,carecendodereferentes,assinalacomênfase
o simulacro de uma realidade imaginada, o que revela maneiras diferentes de tratar a
linguagem,distintasmodalidadesdeleituraquetentamprovocarumarelaçãomaisliberadano
tratamento das pistas ouindícios do passado. Esse fator converge para uma narrativa mais
“saborosa”einstiganteaosolhosdoleitor.
Nãosepodecompararaverdadeficcionalcomahistórica,porqueelascaminhampor
metodologiasdistintas.Entretanto,nãosepodedeixardeaproximá-las,tendoemvistaquea
literaturaeahistóriareconfiguramumtempopassadonacomposiçãonarrativa.
Adistinção entreliteraturaehistóriaoestánaquiloqueambas perseguem– pois
tanto a moderna historiografia quanto a literatura partilham o mesmo ideal, o de buscar
entenderahumanidade–,masnosmodosdeinvestigar,dedarcontadetaisobjetivos.
Assim,podemosconcluirestasreflexõesqueembasamasnarrativasaquitrabalhadas,
dizendoqueossignosdahistória,aoseremretomadospelaliteratura,têmseussignificados
ampliadoseredimensionados.Odiscursodahistória,porsepretendercientífico,buscaimpor
aunivocidade,tentaoperarumfechamentodesentidos.Aliteratura,aocontrário,lançamão
daambiguidade,colocaasmetáforaspararirdosconceitos,dasuapretensãodeúnicolugar
daverdade.Asimagenssendocolocadasaserviçodaimaginaçãoeodopensamento,talvez
consigam dizer melhor o “real”, no que ele tem de complexo, múltiplo e... não dizível”
(SOARES,s/d,p.10).
2.2ONOVOROMANCEHISTÓRICO:CONTEXTUALIZAÇÃOHISTÓRICA
Nofinal doséculoXX, há entreosescritoresde ficção umcrescenteinteressepela
temática histórica; daí surgiram os novos romances históricos. A relação entre literatura e
históriapassaaservisívelpormeiodoentrelaçamentodosgênerosapartirdaficcionalização
e da reescritura do passado. A inclusão não só de acontecimentos, mas também de
personagens históricos no enredo de narrativas ficcionais tem se tornado uma tendência
constantenaliteraturacontemporânea,principalmentenosnovosromanceshistóricos.Trata-
se de tendência universal, que, no entanto, tem especial relevância nas literaturas latino-
americanas.
O corpus ficcional proposto para análise expressa esse espírito. Tanto Cães da
Província(1987),deLuizAntoniodeAssisBrasil,quantoCanibais:paixãoemortenaruado
Arvoredo (2004), de David Coimbra, salvo as respectivas particularidades, reconstituem e
reproduzem os assassinatos cometidos por José Ramos e sua companheira e cúmplice
Catarina Palse em meados do século XIX, na cidade de Porto Alegre. Nesses romances
evidenciamos também a presença de figuras de existência comprovada transformadas em
personagensficcionaisnatramadosautoresgaúchos.
Natentativadeentenderasrazõesdessatendência,recorremosàfaladoescritorIsaías
Pessotti.Elemesmoescritordessamodalidadederomance,acreditaqueumadasexplicações
paraosucessoeditorialdosromanceshistóricoscontemporâneossejao“turismotemporal”
(1994,p.6).Comoaindarestampoucoslugaresdesconhecidos,ohomem/amulheratualtenta
saciar sua sede do exótico em viagens temporais realizadas através da leitura. Daí a
proliferação de livros de biografias, memórias, romances históricos, narrativas históricas
romanceadas,todoscaracterizadoscomogêneroshíbridosrelacionadoscomahistória.
Similar ponto de vista é compartilhado pelo historiador Peter Burke, para quem o
interesseporromanceshistóricosestariaassociadoaointeressepelopassado:umturismono
tempo”(1994,p.6),umgostopeloexótico,porviagenssemsairdapoltronaaperíodosea
lugaresremotos.
A interação entre literatura e história observada em grande parte das narrativas
ficcionaisatuaise presente nosromances selecionados temse mostradobenéfica, porque o
discursoliteráriotemdemonstradomaiorêxitosecomparadoamuitostratadosdehistória,na
reflexão sobre suas estruturas e suas relações com o contexto. Esse fator está associado à
percepção mais completa da realidade, pelo fato de a “literatura tolerar as contradições, a
riqueza e a polissemia em que se traduz a complexidade social e sociológica dos povos e
indivíduos”(AINSA,1996,p.10).
O discurso literário tem provado maior eficiência na expressão da complexidade
histórica,muitasvezessimplificada,quandonãorefletidadeformaredutoraemaniqueístano
discurso histórico. A literatura tem ido mais além, ao verbalizar e simbolizar fatos e
problemasquenemsempreseconscientizamouexpressamabertamenteemoutrosgêneros.
SemelhanteidéiaécompartilhadapelapesquisadoraNubiaJacquesHanciau,notexto
“Confluênciasentreosdiscursoshistóricoeficcional”.Elaacreditaqueoefeitodafusãoentre
literatura e história é importante para o entendimento dos acontecimentos:
“o
cruzamento
dessassignificaçõesapresenta-se,nos moldesda arte,em possibilidadedecriarum espaço
capazdesimularaverdadedavidasocialdemodobemmaisconvincenteeesclarecedordo
quepodeseralcançadonosrelatosfactuais”(2001,p.73).
A fim de traçarmos a trajetória do romance histórico contemporâneo e refletirmos
sobreastransformaçõesquesofreunopassardotempo,énecessárioretomarmosasraízesdo
subgênero: o romance histórico clássico, que surge no século XIX, na Europa, numa
atmosferadeprofundastransformaçõessociais,políticaseeconômicas.Oromancehistórico
tradicional,analisadopor Georg Lukácsem Lanovela histórica, tem sua origem ligada às
obras do escocês Walter Scott. Antes da produção de Scott, conforme Lukács, houve
romances que exploravam a temática histórica, mas sem uma representação artística que
penetrasse na essênciadeum período históricoefetivo. A forma inovadora do romancede
Walter Scott se impôs a partir de certos condicionamentos histórico-sociais, tais fatores,
segundoLukács,marcamocontextoemqueviveuecomeçaproduziroautordeIvanhoé
64
,
constituindo o solo em que foram construídas as bases para o surgimento do romance
históricotradicional.Aseguirexplicitamosbrevementetaisfatores.
Primeiro,édesumarelevânciaatentarparaofatodequefaltariaaoromanceanteriora
Scottavisãoclaradopassadocomopré-históriadopresente.Emoutraspalavras,faltavaa
ideiadequecadamomentonavidadeumgrupooudeumanaçãoécondicionadoporum
passado.AfilosofiadahistóriadeWalterScottestariaassociadaaosentidodehistória”que
aparececomaRevoluçãoFrancesa.Pode-sedizerqueénessecontextoqueseconsolida,pela
 
64
Ascaracterísticasdaformaclássicadoromancehistórico,napropostadeLukács,cujomodeloéWalterScott,
emntesesão:oromancehistóricoautênticonarraahistóriacomocrise,penetrandonaessênciadaépoca,de
umperíodohistóricoconcreto,ressaltandoasforçassociaisemdisputa.Ospersonagensdessetipoderomance
sãoconstruídoscomotiposhistórico-sociais,havendosempreumresgatedahumanidade;oheróisurgeapartir
dacrise,daessênciamesmadosacontecimentos,paradepoisserevelarmedianoeprosaico”.Destaquenesses
romancesparaafidelidadehistóricaquesetraduzatravésdalinguagemedaprópriapsicologiadaspersonagens
(LUKÁCS,1996,p.15-28).
primeiravez,aideiadehistóriacomo“experiênciademassas”.Ouseja,ahistóriapassaaser
vistacomoprocessoqueterminaporintervirnocotidianodecadaindivíduo.
AintensificaçãodohistoricismotambémtemsuasraízesnasituaçãodaAlemanhanos
momentosfinaisdaIlustração.Ointuitodeanaçãoalemãreagiràfragmentaçãopolíticae
econômicadopaís,queimportavadaFrançaseusmeiosdeexpressãoculturaiseideológicos,
conduzàbuscapelosintelectuaiseartistasdopassado,oretornoàhistóriacomoformade
identificaradecadênciaeagrandezadopaísemoutrostempos,eassimtraçarofuturo.
Outro fator importante para a crescente consciência histórica é a consolidação do
sentimento nacionalista, produto das conquistas da Revolução Francesa e das guerras
napoleônicas.Nessecontexto,cresceoconhecimentopelosindivíduosdospaíseseuropeus,
da história da nação, e surge um novo sentido da guerra, associado à possibilidade de
desenvolvimentodopaís.
Entretanto, a consciência da historicidade terá seu ponto culminante, conforme
Lukács,comoperíodoposterioràquedadeNapoleão,odaRestauração.Emboraoprincípio
da historicidade que predomina seja considerado pseudo-histórico, prevalecerá, a partir de
então, a profunda percepção da história como fonte de entendimento do presente e de
resolução dos conflitos presentes. Assim, a constituição das bases do romance histórico
tradicional é marcada porum contexto de profunda fé historicista e pela busca de grandes
reinterpretaçõesdopassado.
OteóricovenezuelanoAlexisMárquezRodríguez(1991),aoreverosfundamentosde
Lukács, aponta quatro características essenciais que permitem a definição de determinada
obra como romance histórico em sua vertente tradicional, ou seja, condizente ao modelo
scottiano.
Oprimeirodessespontosbásicos,deacordocomRodríguez,correspondeaoqueseria
o“panodefundo”doromance,quefuncionacomocenárioparaacontinuidadedoenredo.É
importante salientarmos que em virtude do romance histórico tradicional ter a função de
transmitirconhecimentossobre a história, o pano de fundo deveria ser constituído por um
rigorosocaráterhistórico,baseadonosdiscursosoficiaisquepossuemautoridadesobreoque
éencaradocomohistória“real”.
Asegundacaracterísticadoromancehistóricoclássicodizrespeitoaoqueéencenado
nesse“pano defundo”histórico.Nelesãoinseridososeventosquedãoverossimilhançaàs
ações ficcionais e às personagens criadas pelo escritor, cujas ações constituem o primeiro
planodanarrativaeseufocoprincipal.Aspersonagenspuramenteficcionaissãoelaboradas
detalmodoquesuasações,hábitosecostumessãocoerenteseseencaixamideologicamente
no período histórico retratado, combinação esta que também auxilia a estabelecer a
verossimilhança,poisseevitaqualquerdistorçãoouquebraentreoplanoficcionaleo“real”
oudeextraçãohistórica.
Além disso, colocada como terceira característica do romance tradicional está a
presençadeumdramaamorosonoprimeiroplanodanarrativa.Valedestacarquetaldrama
deve ter, de preferência, o sentido romântico do cavaleiro medieval e da dama idealizada,
perspectivaquesedesenvolvedurantetodaatramadoromance.
Aúltimacaracterísticaapontadapeloautorserefereaoplanodevisualizaçãodecada
umdoselementosconstituintesdaobra:atramacentralprotagonizadapelosheróisfictíciose
o“panodefundo”noqualatuam personagensdeextraçãohistóricaemumperíodo“real”.
Rodríguezressaltaqueesseplanosecundáriopossuigranderelevância,poisestárelacionadoà
constituição daobracomo um todoorgânico, já que é a partir desse contexto no qual são
evidenciadosfatostidoscomoreais”queseinstauraa“atmosferamoraldorelato”.Desse
“panodefundo”surgea“lição”aserapreendidapelasociedadenaqualdeterminadoromance
históricoseinsere.
Entretanto, na atualidade, tal paradigma já foi superado em seus traços específicos.
Hojenãohámaisespaçoparaoromancehistóricoemsuavertentetradicional.Issoporque
as transformações verificadas no romance histórico seguiram uma tendência de
desenvolvimentoideológicoemquesemodificamosobjetivosefundamentações,revelando
diferentes pontos de vista e reflexões sobre os registros históricos, e consequentemente
apontamparaoiníciodeumaconsciênciadoslimitessobreoconhecimentodopassadoedo
registro historiográfico como discurso, logo podendo ser influenciado e, por assim dizer,
manipulado,segundointeressesdedeterminadogruposocial.
Épertinentemencionarmosaindaqueoromancehistórico,alémdeintegraroelenco
das grandes narrativas de consolidação do sentimento nacional, ao mesmo tempo também
proporcionoualegitimaçãodoimpulsouniversalizantedoOcidente:
Numa época em que os vínculos e as organizações mais antigas que unem
internamente as sociedades pré-modernas estavam começando a ceder, e
aumentavam as pressões sociais de administrar numerosos territórios
ultramarinosegrandeserecenteseleitoradosnacionais,aselitesdirigentesda
Europa sentiram claramente a necessidade de projetar seu poder sobre o
passado,dando-lheumahistóriaeumalegitimidadequesópodiamadvirda
tradiçãoedalongevidade(SAID,1995,p.47).
A partir disso, a Europa torna-se, na reflexão filosófica eurocêntrica, o centro da
históriamundial:“OséculoXIXfoiomomentodeconstruçãodatradiçãoeuropéia,ouseja,
deconstruçãodeimagensdeumpassadoprivilegiadoquefundamentasseasatitudesculturais
do presente e lançasse as bases de uma autoridade das nações do continente europeu”
(FIGUEIREDO,1998,p.480).Eéesseotimismoeurocêntricoquepresideosurgimentodo
romancehistóricoclássico.
O culo XX, por sua vez, se encarregou de abalar progressivamente tal otimismo.
Comissooromancehistóricovaisofrertransformações,perderovigorquelheadvinhada
crença na possibilidade de figuração realista do passado, como passo decisivo para a
compreensãoeresoluçãodosconflitosdopresente,eperdendoanadialéticainternaque
garanteorganicamenteoprocessodeevolução.
Entretanto,éimportanteassinalarque,quandoaféhistoricistasofreseusabalosmais
intensos,aimagemdaEuropacomoberçodacivilizaçãojáestásuficientementeconsolidada
não só entre os europeus, mas também entre os povos colonizados. Isto é, as grandes
narrativasgestadaspelasnaçõeseuropéiashaviamconsolidadoumaidentidadeextraídade
umatradiçãosupostamentecontínua.
A temporalidade moderna, guiada pela lógica de encadeamento entre passado,
presente efuturo,esbarravacomnossa irrupçãoabruptano mundo ocidental,com a difícil
relaçãocomopassadoecomaimpressãodequeofuturosemprenosescapava.Ésomentea
partirdemeadosdoséculoXXe,sobretudo,naAméricaHispânicaquesetentaráconstruir
umaficçãonarrativaquebuscariaconstruirumanovavisãodahistória,maiscompatívelcom
arealidadelatino-americana.Apartirdisso,vamosencontrarumromancehistóricocapazde
elaborarcriticamenteanossarelaçãocomatemporalidadeocidentalmoderna:
Otemposentidocomoprogressoéumainvençãodacivilizaçãoocidentalea
regulou, implicando a idéia de que os homens avançam, mais ou menos
depressa, numa direção definida e desejável. Para os latino-americanos,
entretanto,foisemprecomplicadoumavezquenossatrajetóriaémarcadapor
fracassos, recuos, abortos de projetos, que ao serem retomados nos dão a
impressãodevoltaraopontodepartida(FIGUEIREDO,1994,p.27).
Estamos nos referindo àquela que talvez seja a mais expressiva transformação do
gênero: a sua constituição de novo romance histórico latino-americano – essa inovadora
corrente de romances históricos dentro do contexto latino-americano, que, entre outras
propostas,buscamreverdeformacrítica
65
ascertezasuniversalizantesdocolonizador.Sobre
essa questão Leandor Konder
66
 chama muito bem a atenção: “a criação ficcional latino-
americana tem o poder de questionar os critérios preestabelecidos e os padrões europeus
ossificadosquenostêmsidoimpostos,muitasvezes,de‘razão’e‘ciência’”.
Osurgimentodessamodalidadedeu-se,entreoutrasmotivações,emvirtudedoanseio
dos povos mestiços americanos em perscrutar o passado como modo de desmascarar a
HistóriaoficialecolocaremevidênciaaexploraçãofísicaeculturalquesedeunasAméricas.
E acima de tudo, dispostos a narrar sua contribuição na constituição das identidades das
nações modernas, contribuição essa renegada e silenciada pelos discursos oficiais. Desde
então,buscaram-senovosrumosparaaficção,noanseiodedefinirnossaculturanocontexto
ocidentalenossituarfaceaosrumosdahistória.
Ainauguraçãodessemodelocrítico, deacordocomSeymourMentonem Lanueva
novelahistórica(1993),associa-seàpublicaçãodoromanceElreinodeestemundo,deAlejo
Carpentier,publicadoem1949,obra que,segundoMenton,representa“elpuntodepartida
paraelaugedelaNuevaNovelaHistórica”(1993,p.31)apartirdadécadade70.
Fazempartedessainovadoracorrente,alémdascontribuiçõesdeAlejoCarpentier,as
deCarlosFuentes,GabrielGarcíaMárquez,AugustoRoaBastos,entreoutros,queprocuram
abordar a multitemporalidade que nos caracteriza. A fim de contemplar nossa realidade
multifacetada,háadiluiçãodoscontornosentrelendaehistória,problematizandoodiscurso
racionalista e suas categorias tidas como “puras”. No lugar do tempo retilíneo, a
simultaneidadetemporal,otempocircular,otempomíticoouamisturadeváriasconcepções
dotempo.Escreve-seumaanti-históriaquedenunciaasfaláciasdahistóriadosvencedores.
Problematiza-seaenunciaçãocomointuitoderelativizarasverdadestidascomoabsolutase
universais.
No Brasil, é também no mesmo período que começam a despontar os primeiros
romances que tratam deevidenciar o caráter problemático do conhecimento histórico. Tais
romancesabordam,emparticular,olegadodaproduçãohistoriográficabrasileira,osfatospor
elanarrados,assimcomoaquelesepisódiosquealiteraturaexplorou,emespecíficoasobras
de viés marcadamente histórico. As constantes especulações do romance brasileiro das
 
65
Essa releitura crítica da história tem sido possível, dentre outros fatores, devido à emergência de várias
transformaçõesnoseuâmbito.Taismudançasestãoligadasàsconquistasdanovahistória.Anovahistória,que,
paramuitos,estáintimamenteassociadaàchamadaÉcoledesAnnales,agrupadaemtornodarevistaAnnales:
economies, societés, civilisations, fundada em 1929 por Lucien Febre e Marc Bloch, é definida pelo
aparecimentodenovosproblemas,denovosmétodosquerenovaramdomíniostradicionaisdahistória.Istoé,a
histórianovasurgecomoreaçãodeliberadacontrao“paradigma”tradicionaldoséculoXIX.Veraesserespeito:
BURKE,1992,p.8-37;LEGOFF,1998,p.25-64.
66
Veraesserespeitooprefácioem:FIGUEIREDO,1994,p.13-14.
últimasdécadassobreopassadohistóriconacionaltêmseconcentradobasicamenteemtrilhar
doiscaminhos.DeacordocomCarlosAlexandreBaumgarten,emOnovoromancehistórico
brasileiro,“porumlado,situam-seaquelasnarrativasquesedetêmnarevisãoereinterpretação
dos fatos integrantes do discurso da História oficial do Brasil, de outro, aquelas obras que
investemnareleituradopercursodahistoriografialiterárianacional”(2001,p.77).
Emboraasdemarcaçõessejamcontestáveis,écomoromanceGalvez,Imperadordo
Acre (1975), de Márcio Souza, que o romance histórico brasileiro tem as suas fronteiras
redefinidas.Acrítica
67
tendealocalizá-locomooprimeiroamostrar-seafinadocomoquede
maisrecentepodiaserencontradonaatmosferadoromancehistóricolatino-americano.
A partir do novo romance histórico, a nova forma de narrativa passou a utilizar-se
deliberadamente das técnicas da ficção para, sem aspirar à objetividade na apresentação,
estabelecer vínculo auto-reflexivo com omundo real por meio do leitor, diferenciando-se,
assim,doromancehistóricotradicional.Estelimitava-seapenasareafirmaroqueaHistória
oficial registrara, promovendo ligação entre os fatos históricos e suas possíveis
consequências à sociedade, ao passo que o novo romance histórico tem como propósito o
questionamento e aproblematizaçãocomrelação àsversõesadmitidaspelahistória,epara
issolançamãodeestratégiascomometaficção,intertextualidade,paródia,ironia,entreoutras.
Nessaperspectiva,onovoromancehistóriconãopodeserconfundidocomoromance
históricotradicional,analisadoporGeorgLukácsemLanovelahistórica.Ascaracterísticas
do romance históricotradicional serãosuperadas por um conjunto de seisprincipais traços
típicos,apontadosporMenton,que,jánoséculoXX,odemarcarão.
Antesdeapontarmosasprincipaiscaracterísticasquediferemosnovosromancesdas
produçõesanteriores,éimportantesalientarmos,conformeS.Menton,quetaistraçospodem
apareceremmaioroumenorintensidadenasobras–nãoénecessárioquetodosseencontrem
numamesmaobraparaqueestaseconstituaemumnovoromancehistórico.
AprimeiracaracterísticadestacadaporMenton(1993)refere-seàreproduçãodecerto
período histórico somado à apresentação de algumas ideias filosóficas, associada à
impossibilidadedeconheceraverdadehistórica,seucaráterimprevisível.Asegundaconsiste
na consciente distorção da história através de omissões, deformações e anacronismos. A
terceira corresponde à ficcionalização de personagens da história como protagonistas das
narrativas. A quarta característica destaca a presença da metaficção, artifício em que o
narradorrecorreacomentáriosereflexõessobreseupróprio relato. Anaturezaintertextual
 
67
Veraesserespeito:BAUMGARTEN,2000,p.168-177.
aparece como quinta característica, obrigando à leitura da linguagem poética pelo menos
como dupla, constituindo um diálogo explícito com outras obras literárias precedentes ou
outrosdiscursos.Porfim,oempregodosconceitosbakhtinianos,taiscomoodialogismo,a
carnavalização,aparódiaeaheteroglosia,aparececomosextacaracterística.
Tais estratégias vão ao encontro do que Linda Hutcheon preferiu chamar de
metaficção historiográfica. Em Poética do pós-modernismo, Hutcheon faz uma síntese do
paradigma do romance histórico do século XIX, destacando as mudanças radicais nessa
narrativapós-moderna,colocadasemcolchetespelaautoracomintuitodedarênfaseàssuas
novascaracterísticas.Conformeaautora,nametaficçãohistoriográfica
Os personagens [nunca] constituem uma descrição microcósmica dos tipos
sociais representativos; enfrentam complicações e conflitos que abrangem
importantestendências[não]nodesenvolvimentohistórico[nãoimportaqual
o sentido disso, mas na trama narrativa, muitas vezes atribuível a outros
intertextos]; uma ou mais figuras da história do mundo entram no mundo
fictício,dandoumaaurade legitimaçãoextratextual àsgeneralizaçõese aos
julgamentos do texto [que são imediatamente atacados e questionados pela
revelaçãodaverdadeiraidentidadeintertextual,enãoextratextual,dasfontes
dessalegitimação];aconclusão[nunca]reafirma[mascontesta]alegitimidade
deumanormaquetransformaoconflito socialepolíticonumdebatemoral
(1991,p.159).
Isso porque nas narrativas pós-modernas há a consciência de que não se pode
reconstituir o passado em sua integridade. E por isso, a metaficção historiográfica não
pretendeapresentarverdadesabsolutas,muitomenossimplesmentereviveroureconstituiros
fatos, e sim lançar-se ao público leitor objetivando acima de tudo presentificar, encenar e
dramatizaroseventosnarradospormeiodotrabalhodeverdadesrelativas.
Ametaficção historiográficarecusaapretensãodoestatutodeverdadeadotadopela
maioriadosdiscursoshistóricos.Talnegaçãoébaseadanoargumentodequetantoahistória
quantoaficçãoodiscursos.Alémdisso,partindodopressupostodequeopassadonosé
acessívelpormeiodesuatextualização,anarrativapós-moderna,segundoHutcheon,éaquela
cujacaracterísticanãoaspiraacontaraverdade,esimaperguntardequeméaverdade.
Dessaforma,ametaficçãohistoriográficaacreditanãoexistirnenhumaverdadeeterna
queseverifiqueouunifique,esimapenasaauto-referênciadofato.Noentanto,essavisão
nãonegaqueopassado“real”tenhaexistido;apenascondicionaaformadeconhecê-lo,oque
sópodeserfeito pormeiodevestígios. Porisso,écomumnametaficção historiográficaa
aberta e consciente falsificação da história em narrativas que alteram o curso dos
acontecimentosestabelecidospelainvestigaçãohistórica.
Asmudançasapontadasestãoassociadas,dentreoutrosfatores,àcriseepistemológica
daprópriahistóriacomodisciplina.Edevem-seaindaaoprópriodiscursohistoriográficoque
setemrelativizadoeabertonasúltimasdécadasaumainterdisciplinaridadequetranscendeas
fronteirasdoconhecimentohistóricotradicional(AINSA,1995,p.12).Ahistóriadehojeé
variávelemsuasmetamorfoses,émultifacetada,tornandodifícilreduzi-laaumasótendência
edelimitá-laaqualquerconceitoquenãosejaplural.
Dessa abertura interdisciplinar a primeira beneficiada tem sido a narrativa,
especialmente o romance, gênero “mestiço” por excelência, onde tradicionalmente se
entrecruzam formas muito diversas de conhecimento. Tais transformações no campo da
história,alémdecontribuirparaarenovaçãodoromancehistórico,tambémtêmcoadjuvado
paraatransgressãodafronteiraentreLiteraturaeHistória.
Embora existampontos que separam os dois campos do conhecimento, Literatura e
História mostram-se mais próximas do que distantes: ambas possuem a narrativa como
mesma base,daqual brota umariede características tambémcomunsàs duas áreas.Por
isso, podemos afirmar que a ciência representada pela História e a arte representada pela
Literaturaandamdemãosjuntas”,tornandoalinhadivisóriaqueseparaumadaoutracada
vezmenosnítida.
Percorremosbrevementeatrajetóriadoromancehistóricocontemporâneocomintuito
deavaliaremquemedidaCãesdaProvíncia,deAssisBrasil,eCanibais:paixãoemortena
ruadoArvoredo,deDavidCoimbra,encontram-seestruturadosdentrodonovosubgênero.E
em que proporção, nos romances selecionados, a metaficção historiográfica, proposta por
Hutcheon,subverteomodelotradicionaldenominado“romancehistórico”.
2.3LITERATURAEHISTÓRIAEMCÃESDAPROVÍNCIA
LuizAntonio deAssisBrasil
68
éum dosromancistasbrasileirosmaisreverenciados
pelo público e premiados pela crítica contemporânea. Elogiado por Alfredo Bosi, em sua
História concisadaliteraturabrasileira
69
,os trabalhosdoescritorgaúchoforamobjeto de
estudos e citações em obras de, entre outros, Regina Zilbermann, Volnyr Santos, Flávio
LoureiroChaves,esãotambémfocodediversostrabalhosacadêmicos,incluindodissertações
demestradoetesesdedoutorado.
Cães da Província está entre os romances mais importantes do autor. Lançado em
1987, rendeu-lhe o Prêmio Literário Nacional, do Instituto Nacional doLivro.Primeiro há
queconsiderar queoromancefoisubmetidoaexamediferente.Antesdeaspáginasserem
manuseadaspelosleitores,tornando-seobradegrandeprestígioliterário,foramanalisadaspor
bancaexaminadora
70
.IssoporqueesdaProvínciafoiapresentadocomotesededoutorado
emTeoriadaLiteraturanoProgramadePós-GraduaçãoemLetrasdaPontifíciaUniversidade
CatólicadoRioGrandedoSulnomesmoanodesuapublicaçãocomolivro.Foiumadefesa
de tese inédita no círculo acadêmico do estado; até então só havia um precedente na
UniversidadeFederaldoRiodeJaneiro,quetambémaceitouumaobraartísticaparaconferir
graudedoutorado,procedimentocomumempaísescomoosEstadosUnidoseoCanadá.
Notadamente, com poucas exceções, as obras de Assis Brasil estão situadas num
passadobastanteremotodoRioGrandedeSul
71
,oquepermiteamuitoscríticosassociarem
sua produção literária ao gênero romance histórico. Em Cães da Província, percebemos o
mesmo processo. O palco da trama é a Porto Alegre do século XIX. O autor recupera
acontecimentos e personagens da história da capital gaúcha oitocentista para a criação da
 
68
LuizAntoniodeAssis Brasil,autordedezesseisromances,nasceunoanode1945,emPortoAlegre, onde
resideatualmente.FormadoemDireito,édoutoremLetraspelaPontifíciaUniversidadeCatólicadoRioGrande
doSulepós-doutoremLiteraturaAçorianapelaUniversidadedosAçores.Paralelamenteàcarreiradeescritor,
mantém suas aulas na PUCRS, no Programa de Pós-Graduação em Letras. É ministrante e coordenador da
Oficina de Criação Literária, desde 1985, na mesma universidade. Essas informações estão disponíveis em
<
www.laab.com.br>.
69
Veraesserespeito:BOSI,2006,p.436.
70
AbancaeracompostapelosdoutoresemLiteratura:DonaldoSchüler,CremildaMedina,JuanJoséMouriño
Mosquera,DiletaSilveiraMartinseElvoClemente(DIÁRIODOSUL,13ago.1987,p.11).
71
Ementrevista,oescritorconfessaquesesentemelhorescrevendotextosarespeitodopassado:“pareceque
tenho maior liberdade criativa escrevendo sobre o passado, ou cujas ações se desenvolvam no passado. Ou
tambémpodeserumaidéiafantasiosadequeasemoçõeshumanaserammaisdramáticas”.Trechodeentrevista
extraído da resenhacrítica “Subversão eentendimentona obra dearte literária:aescrita de Luiz Antonio de
AssisBrasil”,deMariaHelenadeMouraArias,presentenapáginaeletrônicadoescritor.Tambémpresentena
tesededoutoradoOhomemqueenganouaProvínciaouasperipéciasdeQorpo-Santo:umaleituradeCãesda
Província,damesmaautora.
matériaficcional.Masnãoàmaneiradoromancehistóricotradicional,poisolivromostra-se
muitomaisafinadocomonovoromancehistórico.
Diferentedoromancehistóricoclássico,emqueosacontecimentoshistóricosserviam
apenasdepanodefundonaobra,podemosdizerqueanarrativaficcionaldeAssisBrasilvai
afundonoanode1864,períodoemquedoisassuntos“sacudiram”acidadedePortoAlegre
oitocentista,asaber:osescabrososcrimesdaruadoArvoredoeaconturbadahistóriadevida
doescritorJoséJoaquimdeCamposLeão,autodenominadoQorpo-Santo.
Ao oposto dos romances históricos tradicionais em que figuras históricas eram
relegadas a papéis secundários e só existiam para dar veracidade à obra, no romance em
estudo,ocasalJoséRamoseCatarinaPalse,juntamentecomochefedepolíciaDárioCallado
–esseemespecialenvolvidonostrêsnúcleosnarrativos–,assumempapeldeevidênciana
narrativa.EafiguradodramaturgoQorpo-Santoopapeldeprotagonistadatrama.
ArespeitodeQorpo-Santo,AssisBrasilemCãesdaProvínciarecriaoimaginárioda
época em que viveu esse homem controvertido, considerado atualmente um dos maiores
dramaturgosgaúchosdoséculoXIX,masridicularizadoemarginalizadoemvida,inclusive
foialvodeprocessodeinterdiçãojudicialporloucura,impetradopelaprópriaesposa.
JoséJoaquimdeCamposLeãonasceunacidadedeTriunfo.Planejavaumareforma
ortográficadalínguaportuguesaque,segundoele,simplificariaaescritaeliminandoalgumas
letras desnecessárias. Mais adiante se autodenominou Qorpo-Santo, já em função da sua
peculiarescrita.Oapelidovemdodesejomalogradoderompercomas“relaçõesnaturais”,de
apartar-sedo“mundodasmulheres”(CÉSAR,1969,p.11-14).Somam-seaesseconjuntode
ideias, lendas e pequenas histórias, algumas delas retratadas na narrativa de Cães da
Província,acercadocomportamentoexcêntricodeQorpo-Santo.Porexemplo:emcertafase
desuavidaeleteriatrancadocompregostodasasjanelaseportasdopisotérreodesuacasa,
àqualpassouateracesso somenteatravés dasjanelase sacadasdo andar superior, como
auxíliodeumaescada.
Com base nas ações e hábitos pouco convencionais e os escritos polêmicos do
dramaturgo,suaesposa,D.InáciadeCamposLeão,solicitouaseparaçãomatrimonial,bem
comoainterdiçãodosbensdefamília,oqueocorreucomexplícitoapoiodetodaasociedade;
afinal,processarQorpo-Santocomoloucoeraummeiodeneutralizaroperigodesuasideias
ofensivas e revolucionárias. Acusado, humilhado, vítima do sarcasmo de seus
contemporâneos e declarado inapto – por decisão judicial – para administrar seus bens,
Qorpo-Santo refugiou-se completamente naatividade literária. Escreveu a Enciclopédia ou
seis meses de uma enfermidade, em que reúne provérbios de sua autoria, comentários em
forma de crônicas, poemas e peças teatrais, o mais importante de sua produção febril e
polêmica. “Qorpo Santo foi interditado por possuir inteligência superior, muito acima da
mediocridade do seu tempo. Não encontrou espaço para expressar sua genialidade. O que
aconteceufoiumchoqueentreestasduasforças”(CORREIODOPOVO,15mar.1987,p.7).
“Eraumhomemdeabsolutavanguarda,opoderiaserentendidopelasociedadedaépoca:
consideradoloucoporuns,normalporoutros”(JORNALDOBRASIL,26mar.1988,p.12),
comentaAssisBrasilementrevistas.
Embora seja notória a ênfase nos acontecimentos que “constituíram” o cotidiano
particulardeQorpo-Santo,protagonistadanarrativaevínculopeloqualAssisBrasilatinge
um de seus fins maiores, a crítica social à burguesia porto-alegrense do século XIX, a
personagem não é o único foco dramático do livro Cães da Província. Com intuito de
justificar algumas situações, reforçar a verossimilhança e acríticadecunhosocial, oautor
mescla os sucessivos e macabros assassinatos praticados por José Ramos, que
concomitantementeàinterdiçãodeQorpo-Santo,tambémforammotivodeescândaloàépoca.
Dessaforma,emboraoscrimesdaruadoArvoredonãosejamotemaprincipalemCãesda
Província,acabamganhandodestaqueerelevo.Issoporqueoautorosexploratantasvezes,
quepassamaconstituirfatoressencialparaodesenrolardatrama,formandoumdosnúcleos
maisdramáticosdolivro,bemcomoimportanteeinstiganteleiturasobreosfatos.
Valeressaltarmosque,vinculadoaonúcleonarrativoquetratadoscrimesdaruado
ArvoredoedaspersonagensJoséRamos,CatarinaPalseneochefedepolíciaDárioCaladoe
aoqueversasobreoprocessodeinterdiçãododramaturgo,emquesedestacamopolêmico
artista
72
,suaesposaInáciaMariaeocriadoJuvêncio,ahistóriatambémseestruturaemtorno
deumterceironúcleo,associadoàtemáticadoadultério,tendocomopersonagensEusébio,
suamulherLucréciaeocriadoJoséCanga.
 
72
 Assis Brasil tem a ideia de escrever uma ficção sobre o controvertido Qorpo-Santo desde as primeiras
montagens de suas peças, na década de 60, quando ele foi praticamente redescoberto pelo diretor Aníbal
DanascenoFerreira.Atéentãoogêniohaviasidomenosprezadopelosromânticos,ignoradopelosparnasianose
esquecidopelosmodernistas,e,comoresultadodisso,seustextosforamconsumidosdeformaimplacávelpela
injúria do tempo, não alcançando, assim, um lugar de destaque na historiografia literária brasileira. O jornal
CorreiodoPovochamaaatençãoparaaredescobertadeQorpo-Santo:“Apartirde1966,comamontagemdas
principaispeçasdeQorpo-Santo,noClubedeCultura,sua obrapassouaserconhecidaemtodoopaís.Com
direçãodeAntônioCarlosSenna,tendoaparticipaçãodiretadojornalistaAníbalDamascenoFerreira,estava
completaaprofeciafeitapelopróprioJoséJoaquimdeCampos Leão”(15 mar.1987,p.7).SegundoQorpo-
Santo, tudo o que escrevia só seria compreendido um século depois. A época foi importante também para
trabalhodeGuilherminoCésar,reunindoemobraúnicaostextosteatraisdeQorpo-Santo.Parasabermaissobre
odramaturgo,alémdostrabalhosreferidos,indicamos:Umqorposantonaprovíncia:daHistóriaàFicção,de
AndréMena–dissertaçãoapresentadaem2003aoCursodePós-GraduaçãoemLetras–LiteraturaBrasileirae
TeoriaLiterária–daUniversidadeFederaldeSantaCatarina.
Oautorfazoscilaranarrativaemalgunsmomentos,alternandoequilibradamenteno
tratamentoparticularizadodeumaououtrasituação
73
.
AssisBrasilabreseuromancecomadescriçãodoespaçodacapitaldaprovínciado
Rio Grande do Sul, considerada por muitos uma das mais bem-sucedidas reconstituições
históricas já feitas sobre a cidade de Porto Alegre da segunda metade do século XIX”
(ELMIR,2004,p.137):
Vive-sebememabril,quandoosardoresamainameaindanãocomeçaramas
ondas gélidas: o céu ganha uma bela cor de chá, e os entardeceres são
luminososetodoopovoseanima,osnegóciosreiniciam.Éomelhorperíodo,
aspessoasaténembrigam.Cessamasdisputas,todossedeixamtomarpelo
encantamento da natureza que assim compensa os habitantes por terem
suportado tantas inclemências. [...] A cidade viceja sua afortunada vida
(ASSISBRASIL,1999,p.17-18).
Apósretratarapaisagemporto-alegrenseoitocentistaeapresentaropanodefundoda
trama, Assis Brasildesvela um mundo que, soba aparência de burgopacato,encerrava as
maisfantásticashistóriasdecrimes,adultérios,incestosecrueldades.Entreelasestequeédos
maisfamososcasospoliciaisquePortoAlegreconheceu:oscrimesdaruadoArvoredo:“Não
sepodeimaginarquejustonesteperíodoacidadefoiviolentadaporacontecimentosterríveis,
jamaispresenciadosecujamemória nuncaseapagará.Justoquandotodosficamassimtão
alegres.Éumapena,porqueomerecíamostantadesonraeinfortúnio”(ASSISBRASIL,
1999,p.18).
ApesardasensaçãodequenacidadedePortoAlegretudoaconteciadomesmojeito,
comoporexemplo,os“verõestórridoseabafados”,os“invernosdegretarosbioseazular
asmãos”(ASSISBRASIL,1999,p.17),osinevitáveisapelidos,acidadefoiassombradapor
acontecimentosjamaisesperados:oscrimesdeJoséRamos.
Embora alguns fenômenos se repitam de forma cíclica, já no capítulo inaugural o
discursodonarradorcontémaideiadequeessarepetiçãoéaparente,poissemprepodemos
ser surpreendidos pelo imprevisto e pelo acaso. E esse fato faz com que não tenhamos o
conhecimentoporinteirodahistória,concepçãoquefundamentaanarrativa;tambémpodeser
presenciadaatravésdametaficção,estratégiarecorrenteemCãesdaProvíncia.Aperspectiva
metaficcionalencontraespaço
74
nasfrequentesintervençõesdonarrador,que,alémdetecer
 
73
Embora a narrativa seja composta por esses três núcleos narrativos, nossas atenções irão voltar-se
prioritariamenteparaonúcleoquedizrespeitoaoscrimesdaruadoArvoredo,focodestetrabalho.
74
Ametaficçãoseverificanãosomentenasfrequentesintervençõesdonarrador,mastambémnainserçãodeum
escritorprotagonistanatrama,namedidaemqueapersonagemQorpo-Santosepropõediscutiratrajetóriada
comentários e reflexões a respeito do próprio método empregado, também reconhece os
limiteseospoderesdo“relato”oudaescritadopassado–recenteouremoto(HUTCHEON,
1991, p. 155). Mostra-se consciente de que a história não é previsível, e, assim como a
realidadefactual,sãoambasinatingíveis:“Tremenda,ah,tremendaalutaentreoqueseaspira
eoqueserepresenta”(ASSISBRASIL,1999,p.58).
Frenteaisso,nãoestamosdiantedeumnarradorpretensiosoeautoritário,alguémque
dominaamplamenteeporcompletoaquilosobreoqueversamosenunciados,esimdeum
narradorafinadocomosprincípiosdametaficçãohistoriográfica:
Asmetaficçõeshistoriográficasparecemprivilegiarduasformasdenarração,
queproblematizamtodaanoçãodesubjetividade:osmúltiplospontosdevista
ouumnarradordeclaradamenteonipotente.Noentanto,nãoencontramosum
indivíduo confiante em sua capacidade de conhecer o passado com um
mínimodecerteza.Issonãoéumatranscendênciaemrelaçãoàhistória,mas
simumainserçãoproblematizadadasubjetividadenahistória(HUTCHEON,
1991,p.156).
Nessa atmosfera, a história dos crimes de José Ramose Catarina Palse aparece em
algunsmomentosajustadadeformaharmônicaàficção.Acomeçarpeloníveltemporal:teria
sidoemumasexta-feira,15deabrilde1864,queJoséRamos,porsugestãodesuaamante
CatarinaPalse,decidemataroportuguêsJanuárioMartinsRamosdaSilva,quepossuíauma
tavernanocentrodePortoAlegre.Assimcomonavida“real”,étambémnosdeabrilque
ocrimefoicometidonaficção.
Onarradoroniscientelamentaque ocomeçodeumabrillindotenha sidoofuscado
pelos crimes da rua do Arvoredo. De forma filosófica reflete sobre os funestos
acontecimentos:
Ah,cidade,muitotensapagar,quetefizeramsofreracontecimentosassimtão
escabrososnesteabrildesfalecente,nãomerecestanto![...]Mesmoquetodo
CéuetodaTerraeoImpériointeiroclamassemapodridãodosteuscostumes,
não merecias tanta punição e opróbrio. Ninguém, nem o mais diabólico
demônio, nem Solano Lopez, iria planear fatos tão embrutecedores e
degradantes,paramanchareternamenteteunome,PortoAlegretãovalorosae
leal(ASSISBRASIL,1999,p.71).
Outras semelhanças existem tantona versão admitidapela história quantona versão
exibidanaficção.Assim,damesmaformananarrativahistórica,oscrimesdocasalcomeçama
viràtonadesdeodesaparecimentodoportuguêsJanuárioedeseucaixeiro,poisapartirdesses
   
criaçãoliteráriaeexplicitar,atravésdaescriturade suaprópriaprodução,preocupaçõesdaqueles queaelase
dedicam.
doisúltimosassassinatoséquesedesvendaatrama;antesdessefato:“ninguémpossuiprovas
denada,oupelomenospossuía,atémeadosdoabriloutonal”(ASSISBRASIL,1999,p.39).
Em sintonia com a história oficial, no romance a polícia havia conferido aos
desaparecimentospoucaimportância:“bem,étudogentesemqualidade:umacolonadeSanta
Cruzqueveiovendercharutos,ofilhodeumverdureirobadoemaisumaouduaspessoas
dasquaisháasuspeitadedesaparecimento.Sósuspeita”(ASSISBRASIL,1999,p.63).No
entanto,umanotíciachegaaocais,desconcertandoatéosmaiscéticos,atéosqueacreditavam
que tudo não passava de grande mentira: Agora desaparecera alguém grosso e graúdo, um
comerciante:JanuárioRamosdaSilvaetambémseucriadoecachorro”(id.,ibid.,p.41).
Nahistóriaenaliteratura,ao desaparecerum comerciante português ocasotomou
outro rumo. Pressionado pela opinião blica, Calado passou a imprimir excepcional
importânciaaoinquérito,saindodeumimobilismoquejácausavasuspeita.
Umadasteoriasmaisfortesquepredominavanomomentoeraadequeocriminoso
haveriadeserumtalJoséRamos,estabelecidonoaçouguenaruadaPonteecomcasade
moradianaruadoArvoredo.Issoporquealguémafirmavatervistooaçougueiro,“altashoras
da noite, transportando, auxiliado por um alemão corcunda, desde a sua casa na rua do
Arvoredo atéo estabelecimento na rua da Ponte, um caixãopesadíssimo, de onde pingava
sangue” (ASSIS BRASIL, 1999, p. 42). Mas, ao ser intimado pelo chefe de polícia, José
Ramos,comodesembaraçoquelheerapeculiar,negavataisacusações,saindobememtodas
asrespostas.Tinhaálibisparatudo,protestavaejuravainocência,convencendoDárioCalado.
Históriaeficçãosefundemigualmentenosentimentodeinsatisfaçãoqueseapossou
dapopulaçãoqueacompanhavacomolharatentotodoodepoimentodoacusado,emvirtude
dasualiberação,fatorquecontribuiuparaexaltaraindamaisosânimosjátãosobressaltados.
Calado sentia-se no dever de acalmar a situação. Não tinha outra escolha, “precisava dar
satisfação aos parentes do desaparecido e à cidadania da cidade que clamava por suas
providências”(ASSISBRASIL,1999,p.62).Pararestabelecerapaznacidade,teriadeiraté
àcasadaruadoArvoredo,averiguarassuspeitas.
EmCãesdaProvíncia,adescriçãodachegadadapolícianacasadoacusadoocorre
quase fielmente, com poucos desvios, à versão histórica considerada oficial. Dário Calado
reúnecomitivanuncavistaemPortoAlegre:
Emduascarruagensbotou escrivães, oficiaisdejustiça,policiaisarmados e
ajudantes[...],edirige-seàruadoArvoredo.Mandavirapédoiscondenados
àsgalésparaosserviçosmaisordinários,comoderrubarparedesou–enisso
nãoacredita–desenterrarcadáveres.Mesmoporqueasinformaçõesquelhe
dáodelegadonãooconvencem,dequeontemestevenacasadeJoséRamose
láencontrouvestígiosdeossosnoporão.Issosãoossosderês,dizodoutor
Calado(ASSISBRASIL,1999,p.66).
Semelhançastambémpodemserevidenciadasnoqueconcerneàbuscaeàexumação,
em18deabrilde1864,nacasadoacusado.Nessaocasiãosãoencontradasdiversasprovas
quecomprometemJoséRamoseCatarinaPalse:
– Umcrânio. Anote aí: um crânio – dita o doutor Calado ao escrivão, mal
acreditando que todas suas suspeitas se confirmaram, desenterraram tíbias,
úmeros,costelas,espinhaços,quesaemdaterradoporãocomexclamaçõesde
assombrodopovo[...]chegandoláfora,vêumagrandeaglomeraçãojuntoao
poço e, antes que possa tomar pé no que acontece, mostram-lhe postas
ensangüentadas de gente, são pés, braços, mãos eoutros membros deitados
sobreumalona(ASSISBRASIL,1999p.68-69).
Tantonoplanodaliteraturaquantonoplanodahistória,asnarrativasdãocontadeque
duranteaescavaçãonotiodacasadaruadoArvoredoforamdescobertososcadáveresde
Januário,docaixeiroeumcorpoemavançadoestadodeputrefação:
O delegado não parece atingido pela tétrica exposição; com minúcia vai
descrevendo:–Aquiloqueosenhorvêéumtórax,aliaspernaseacabeça,já
conseguimosformarumcorpointeiro,oqueachadisto?–Ereconheceramo
infeliz?–ÉocaixeirodeJanuário.[...]Lentamente,puxadasporcordasem
cujaspontashaviamatadoganchosdeferro,sobemmaispartesdeumgrande
corpo de homem, violáceas e fétidas. É o Januário, alguém diz. – E o
cachorro? – pergunta o doutor Calado, arrependendo-se logo. – Já foi
desenterradotambém–informa-lheodelegado(ASSISBRASIL,1999,p.69).
Duranteabuscanointeriordaresidência,anarrativadeAssisBrasilseaproximada
narrativa histórica. O chefe de polícia, ao olhar para as tábuas do assoalho, procurando
concentrar-se na sua missão, sente-se desconcertado, pois revelam-se mais provas que
incriminamocasal:
Há uma grande mancha vermelha no chão e que não se desfizera mesmo
depoisdaevidênciademuitaslavadas[...]vaiconstatando,háváriasmanchas
de sangue no quarto, no corredor, mas seu olho experiente indica umas
manchasmaisnovas,outrasmaisantigas.Vendoumasbotasdesparelhadasa
umcanto,perguntaaquempertence(ASSISBRASIL,1999p.67-68).
Fatos reais e ficcionais se unem também no suposto diálogo que revela a tentativa
inútil dos culpados em livrar-se da acusação de assassinato, mesmo quando as marcas de
sangue visíveis em diversos cômodos da casa insistiam em incriminá-los. As versões
inverossímeissustentadaspelosacusadoseasestratégiasparaseisentaremdaculpapodem
ser observadas na literatura e na história. Da mesma maneira que na versão admitidapelo
discurso oficial, em Cães da Província é expresso o argumento utilizado por Ramos na
tentativa de esquivar-se das acusações: “O que é isto? – pergunta o chefe de polícia ao
acusado.JoséRamosnãosedáporachado,dizqueésanguedeumagalinhamalmortaque
vieradopátio,largandosangueportodaacasa”(ASSISBRASIL,1999,p.67-68).
Emambososdiscursosapopulaçãoacompanhavaaflitatodaabuscaeapreensãona
casa deJosé Ramos. Assimcomo a versão admitida pela história, tambémno romance há
mençãoàfracassadatentativadehomicídiodeRamoscontraJoséLuisdeCaldasQuintella,
em que as pessoas sentiam-se de certa forma consoladas pelo fato de entre os mortos
Quintellanãoestar.
Quanto àcaracterizaçãoda personagem feminina, emCãesda ProvínciaCatarinaé
possuidorade“furiosabeleza”(ASSISBRASIL,1999,p.42),quedespertavaaatençãodos
homenscasadoseociúmedasesposas.Asdistintassenhoras,comintuitodetirarabelamulher
decena,torciamparaqueelafossecondenada,talvezmaisdoqueopróprioJoRamos:
APalsen!Dizemassoberbasmatronasaseusmaridos,comosevingandode
tantoolhogrossoqueelespunhamsobreamulherdeJoséRamos.APalsen
nãoébrasileira!Exclamavamcomoexplicação.Éfilhadehúngaros!Alguns
se aliviam; afinal, só estrangeiro pode ser tão facinoroso. O brasileiro José
Ramosdeixara-selevarpelosardisdamulher,aestrangeiramaleva(1999,p.72).
No excerto acima, assim como na versão histórica, é feita referênciaà procedência
húngara de Catarina. Dessa passagem também podemos inferir o repúdio, a aversão aos
estrangeiros,tãopresentenoRioGrandedoSuldoséculoXIX.
As relações entre as comunidades alemã e luso-brasileira sempre foram um tanto
tensas em função de vários fatores. Primeiro devido à “questão inglesa” ou à “questão
Christie”,emvirtudedasdiferençasculturais.Osalemãespertenciamaoutraetnia,falavam
outra língua e muitos professavam outra religião em vez da católica. Além disso, sua
acentuada ética no trabalho contrastava com a ociosidade que a escravidão implantou no
Brasil,ouseja,osluso-brasileirosdesprezavamosalemãesporqueestestrabalhavamcomas
mãos,“talqualosnegros”.
Por outro lado, era inegável que a província recebera um forte impulso econômico
graçasàscolôniasalemãseque,emPortoAlegre,apopulaçãodemaisde15%dealemães
faziaforteconcorrênciaaocomérciodosluso-brasileiros,fatoqueequilibravaasituação.No
entanto,asrelaçõesentreasduasetniastornaram-semaissensíveisquandooscrimesdeJosé
Ramos vieram à tona, o que ocorreu por dois motivos principais: Ramos falava alemão e
todos os seus cúmplices eram de origem germânica, o que fez aumentar a discriminação
generalizada. Apartirdeentão,germaniza-seonomedocriminoso.Ramosétransformado
emRamisouRams.Emdocumentosejornaisdaépoca,atribui-seessesobrenomeaocabeça
doscrimes
75
.
Fatos ficcionaistambémse atrelamà descriçãohistórica doincidente provocado na
cidade em função dos assassinatos. Em Cães da Província a comoção ante os crimes é
referidaapósatãoesperadaconfissãodeCatarinaPalsen.Caladovaiatéajanelafalarcoma
populaçãoqueaguardavadoladodeforadadelegaciaempunhandopedrasepedaçosdepaus.
Noentanto,anotíciadaconfissão,aoinvésdeacalmarosânimos,osincendeiaaindamais:
A multidão, friccionada pela astenia das últimas palavras, reacende-se, os
impropériosvarejamoarcomoprojéteis.Gritampelascabeçasdoscriminosos
[...].Nummomentodetrégua,queserveparadarmaissolenidadeàhora,uma
voz se levanta: – Cuide, doutor Dário Calado, cuide muito bem dos seus
presos.Éumaameaçacarregadadeódio,avozcoletivaespojando-senoódio
acumulado.Algoquetambémsedirigeaele,chefedePolícia,quedeixouas
coisas chegarem neste ponto. Tem sua parcela de culpa, e treme por isso
(ASSISBRASIL,1999,p.192).
A confissão de Catarina acontece após a descoberta das autoridades de mais três
corpos enterrados em uma chácara em Petrópolis. Dário Calado, na última tentativa de
conseguiraconfissãodocasal,diz:
–Escutemvocês–dizaocasal,repetindooquejádisseradezenasdevezes.–
Sãoagora seis as vítimas:o açougueiro Klausen,o comerciante Januário, o
caixeiro,ehojemaisestes três,que só podem seracolona Luisa,o colono
Adolfoemaisumquenãosesabequemé.Todososindícios,todasasprovas,
tudoconduzàconvicçãodequeforamvocês.Porquenãoconfessalogo?[...]
–Trêsnegrosdisseramquehádoismeseslevaramcaixotesqueexalavamum
cheironauseabundodesdeacasadevocêsatéachácaradePetrópolis,eláos
deixaram com José Ramos, que esperava com uma pá. Depois, há o
depoimento do corcunda Henrique, que afirma ter levado, dentro de uma
caixa,um corpoque enterraram no porão. Oque mais precisamos?(ASSIS
BRASIL,1999,p.189-190).
Após ouvir tais argumentos do chefe de polícia, Catarina cede à pressão e decide
contar tudo.Palsenrevelaos homicídiosqueJoséRamosteriapraticado,todos seguindoo
obsessivoeidênticoritual:comumgolpedemachadonomeiodatesta,eoraaspessoas
morriam no momento, ora custavam um pouco, e neste caso uma segunda machadada
 
75
Veraesserespeito:“OcasodoaçougueiroRams”,emOAnuárioIndicadordoRioGrandedoSul,1924,5ª
série,p.97-99.
separavaacabeçadocorpo”(ASSISBRASIL,1999,p.190).Relatatambémalgunsnomes
dessassupostasvítimas.Aacusadanarracomfluidez,reconstituidiálogosentresieomarido,
entre o marido e as vítimas. Por meio dela, fica-se sabendo ainda que os incautos eram
trazidosparadentrodecasagraçasàlábiaaltamentepersuasivadeJoséRamos,paragrande
decepçãodasmulheresenciumadasquedepositavamtodaaculpadoscrimesemCatarina.
OperfildeJoséRamoseraconhecidoporserumgrandeconquistadordemulheres;
elesabiatambém“enredarasconversasnumaroda,costumavapagargirosdebebida,enunca
estavasó”(ASSISBRASIL,1999,p.42).Oassassinovalia-sedaboaconversaparacolher
nashospedariasoscandidatosaosacrifício.Dava-lhescomidaebebidaeoslevava-ospara
casa,“atéquechegavaomomentoemqueohomicidaiaparaointeriordacasaesurgiana
salacomoinstrumentomortale,semumapalavra,desferiaogolpe”(id.,ibid.,p.190-191).
Assimforamcometidostodososcrimes.
Noromance,assimcomona versãohistórica,háreferênciaaofato deosjornaisda
cidadeteremsilenciadosobreoscrimes.Talatitudeevidenciaodesejodeesquecereabafaro
caso,aintençãodeliberadadeapagá-lodamemóriadosporto-alegrenses:
Masosjornaishoje nadafalamdo acontecido[...].Lê-setudo: carreirasno
Passo d’Areia, vapores que chegam da Corte, leilões de comerciantes
quebrados,anúncios de escravosfugidos,quedado ministério,portariasdos
chefetes,tudo.Sóomaioracontecimentosilenciam[...].Emuitocalvirgemjá
deveestarpreparadaparasejogarsobreocaixão,nãosópelahigienepública,
masparaquetambémtenhaoefeitodedesfazeramemóriadocrime,doqual
todos, embora não dizendo, alimentam sua parte de culpa; coisa estranha a
almahumana,merecedoradetratados,quemsabeumdia?(ASSISBRASIL,
1999,p.83-84).
ComaconfissãodeCatarina,oinquéritoéencerrado,eosdoisseresquetalveznem
pertençamànaturezahumana”(ASSISBRASIL,1999,p.192)sãolevadosparaaprisão.E
dessa forma, a história dos crimes da rua do Arvoredo, que por tanto tempo escureceu os
límpidoscéusdaProvíncia,encaminha-separaofinal.
2.4LITERATURAEHISTÓRIAEMCANIBAIS
DavidCoimbra
76
éumdoscolunistasmaisconhecidosdeZeroHora,jornalgaúchode
amplacirculação.Transformousuacolunaesportivaemverdadeirajanelaparaomundo,ao
narrarhistóriasque,dealgumamaneirarelacionadasaoesporte,falam,emúltimainstância,
dacondiçãohumana.Eassim,pormeiodesuasnarrativascurtasconquistouimensopúblico
queoacompanhanojornaleemlivros.
Canibais:paixãoemortenaruadoArvoredo,lançadoem2004,marcanovafasena
vidadoescritor,emqueelealçavoopartindoparaumaficçãomaislonga.Oseuprimeiro
romance sensibilizou Moacyr Scliar, que chama a atenção para o fato de que todas as
qualidadesexibidas porD.Coimbrana narrativa curtaestãodeigualmaneira alipresentes
apaixonandooleitor.Scliarconsideraolivrouma“belaobradanovaficçãogaúcha,queé,
porsuavez,pontoaltodanovaficçãobrasileira”
77
.
Canibais,deD.Coimbra,podeserconsideradoromancehistórico,pois“corresponde
àquelasexperiênciasquetêmporobjetivoexplícitoaintençãodepromoverumaapropriação
defatoshistóricosdefinidoresdeumafasedaHistóriadedeterminadacomunidadehumana”
(BAUMGARTEN,2000,p.169).
Em linguagem ágil, convincente, que conjuga de maneira precisa a comunicação
jornalística com o voo ficcional, em Canibais o autor recupera e ficcionaliza em tempo
recenteosombrioepisódiodoscrimesdaruadoArvoredo.Ocenáriodatramaéamesma
Capital, Porto Alegre, ainda em formação: “escravos fugidos, imigrantes, desgarrados,
bandidosdetodotiposeatocaiavamemcadacantopenumbrosodasestreitasemalcheirosas
ruasdaCapital”(COIMBRA,2008,p.9).
Mais do que retomar o episódio sombrio da história de Porto Alegre, aqui
personalidadesreaisotransformadasempersonagensficcionais.Entretanto,diferentemente
doromancehistóricoclássicoemquetaispersonagensatuavamsomentenopanodefundoem
umperíodoreal,nanarrativaficcionaldeD.Coimbra,personagensdeexistênciacomprovada
ganhamdestaque.Asaber:JoséRamoseCatarinaPalse,assimcomoochefedepolíciaDário
 
76
David Coimbra nasceu em Porto Alegre, em 1962. Formou-se em jornalismo pela PUCRS em 1984.
Atualmente trabalha como repórter e editor de esportes e crônicas do jornal Zero Hora, da capital gaúcha.
Canibais:paixãoemortenaruadoArvoredo(2004)éoseuprimeiroromance;seguidodeoutraspublicações:
Jogo de damas; Mulheres!; Pistoleiros também mandam flores; Cris, a fera & outras mulheres de arrepiar.
Entre os prêmios que ganhou como escritor, estão: Prêmio Açorianos, Prêmio Habitasul
, Prêmio Érico
Veríssimo.
77
VeraesserespeitooprefácioemCOIMBRA,2008,p.5.
Callado, a prostituta e vidente Bronze e outras figuras que existiram e fizeram parte da
históriadacidade.
Outracaracterísticamarcantenoromance:ahistóriasedesenvolveemepisódios,cada
umdosquaisacabaemsituaçãodesuspense,gerandonoleitoracuriosidadeeaexpectativa
da leitura do episódio seguinte. As oscilações das histórias, bem como as peripécias
interpostasaolongodanarrativa,cumpremafunçãododesejadoretardamento,aumentandoo
suspense, ao mesmo tempo em que atuam visando “à desautomatização dos hábitos
perceptivos do leitor” (BORDINI, 1991, p. 23). Isso nos leva a pensar que tal estratégia
tambémpodeserassociadaoucompreendidacomoefeitodotemponecessárioparacapturar
do leitor as razões ou os argumentos que estãona base daconstrução da intrigaproposta.
Dessaforma,oqueprecisaserditodeveserreveladoaospoucos.
Fica evidente na narrativa a influência do livro de D. Freitas, bem como algumas
informaçõesfornecidaspeloprocessocriminalepelasnarrativasjornalísticasdaépoca.Ofato
narrado pela história aproxima-se da narrativa ficcional em várias ocasiões. A iniciar pelo
relato da trágica história de vida de Catarina Palse. Assim como na versão histórica, em
Canibaisháreferênciaàperdabrutaletraumáticadeseuspaiseirmãosnaguerra,bemcomo
hámençãoaofatodeela,aindacriança,tersidoviolentada,naTransilvânia,pelossoldados
russos:
A chegada dos russos mudou tudo. Aquele dia se tornou brumoso em sua
lembrança.Asoldadescaarrombandoasportasdascasasdaaldeia,destruindo
o que encontravapelafrente. De repente,estavam dentroda sua casa.Seus
paiseseus irmãossumiramnumanuvemde violência,depunhosfechados,
solasdebotas,baionetascaladas.Catarinafoiarrastadaparaoquarto.Teveas
roupas arrancadas. Gritava e gritava, implorava por piedade. Os soldados a
estupraram,umdepoisdooutro,metodicamente[...](COIMBRA,2008,p.139).
Tantonoplanodahistóriaquantonodaficção,hámençãodequeapósessafatalidade
Catarinavagavasozinhapelasruas,atéconhecerocardadordelãPeterPalse,comquemse
casa.OcasalresolveemigrarparaoBrasildevidoàmiséria.QuandoasituaçãodeCatarina
começavaadarsinaisdemelhora,outradesgraçaaatinge:“Duranteaviagem,Peteratirou
umacordacurtaporcimadeumaporta,subiuemumbanquinhoeseenforcou”(COIMBRA,
2008 p. 139-140). Catarinajamais descobriráa razão que levou seu atormentado marido a
suprimiraprópriavida.ChegaàProvínciade SãoPedrosozinhaetemposdepoisconhece
JoséRamos.
Assim como Catarina, José Ramos também vivera acontecimentos trágicos. Na
história ena literaturaé relatadoofato deRamos,najuventude,aindaquando moravaem
SantaCatarina,ter-setornadoparricida.Emumanoite,jáadolescente,saiemdefesadesua
mãe,agredidapelopai,Manuel,alcoólatra:“Ofilhodeudemãonumafacadechurrascoe
enfiou quinze centímetros da lâmina afiada no corpo do pai” (COIMBRA, 2008, p. 147).
Passadosdoisdiasopaimorre.JoséfogeparaaProvínciadeSãoPedro.
Desde a infância José Ramos demonstrava tendência e gosto à violência. Quer no
planodahistória,quernoplanodaficção,háreferênciadeque,aindamenino,manifestava
grandeinteresseerespeitoaosfeitosdaguerranarradosporseupai,emespecialaomodode
praticar a degola. À noite, Manoel contava histórias da guerra para os meninos: “José se
encantava com as descrições dos inimigos capturados, pedia que o pai as repetisse e, ao
dormir,sonhacomas cenasdesangueecrueldade”(COIMBRA,2008,p. 147).Natrama,
semprequematavaalguémlembrava-sedeseupai:Deviaserexatamenteassimqueovelho
fazianaGuerradosFarrapos”(id.,ibid.,p.22).
LiteraturaehistóriatambémsefundemnadescriçãodavidadeRamosemPortoAlegre.
Por aqui sua vida não foi menos atribulada. Assim como na versão histórica, na trama, ao
chegaràProvínciasentapraçacomosoldadodapolícia.Torna-sehomemdeconfiançadochefe
depolíciaDárioCallado
78
.AcarreiradeRamostrilhavaporumcaminholadeiraacima,atéque
“eledeparoucomDomingosJosédaCosta,océlebreCampara”(COIMBRA,2008,p.48).
Anarrativaficcionalseaproximadahistórianadescriçãodainvestidacontraavida
do preso Domingos José da Costa, mais conhecido como Campara, o Robin Hood dos
Pampas. Campara, filho de um coronel muito bem conceituado, pratica assaltos em várias
regiõesdaProvíncia.Torna-secélebreporroubardericosedistribuiroprodutodossaques
entre os pobres. Nunca matou ou feriu alguém. Nos assaltos, vale-se da astúcia, da sua
extraordináriaforçasicaedoprestígiodeseunome.PresoemSantaMaria,fogedacadeia,
masemnovembrode1862épresonovamenteemVacaria.Paramaiorsegurança,trancafiam-
nonopresídiodePorto Alegre,ondeécolocadosozinhoemumacela.Paraseuazar,José
Ramosentranacela,algema-oetentadegolá-lo,sobpretextodequeosurpreenderaquando
tentavafugir(FREITAS,1996).Éprovável queumadasmotivações paraqueJosé Ramos
cometatalatotenhasidoainvejaquesentiadoprisioneiro:“umfora-da-lei,umladrãovulgar,
eraamadopelopovo.Porqueaquilo?”(COIMBRA,2008,p.153).Umanoiteemqueestava
 
78
Valelembrar,DárioCallado eraconhecido comoumhomemfacilmenteirritável,violentoedeescrúpulos
maleáveis.Poressesfatores,éalvodemuitascríticas.Naépocajornaisoposicionistasdenunciamoscrimeseas
infâmias dos agentes dos chefes de polícia, entre os quais Callado se enquadra, tais como prisões ilegais,
espancamentosdepresoseirregularidadesadministrativas(FREITAS,1996,p.55).
só, cuidando da cadeia, Ramos decidiu conhecer o preso: “Tomou oscabelos de Campara
comamãocanhota,derrubando-odocatre,colocando-odejoelhosnochãodacela.Puxoua
cabeçaparatrás,comofaziamosdegoladoresnaGuerradosFarrapos,preparou-separalhe
rasgarumtalhodeorelhaaorelha”(id.,ibid.,p.155),masfoisurpreendidopordoispoliciais.
RamosébanidodaForça,mascontinuaprestandoalgunsserviçosparaochefedepolícia.
Canibaistambémécalcadonasuspeitanuncacomprovadadofabricoeconsumodas
“linguiçasdecarnedegente”.Apósmataresupostamentefabricarlinguiçacomosrestosdas
vítimas, José Ramos dedica-se ao obsessivo ritual: banha-se demoradamente, veste-se
caprichosamenteeperfuma-seabundantemente,mais queohabitual” (COIMBRA,2008p.
53-54).Ramossedestacapelaabundânciadoperfumeeporisso,durantemuitotemposerá
chamadode“MonstroPerfumado”(FREITAS,1996,p.45)naregião.Feitoisso,oassassino
vaiaoteatroSãoPedro.QuandonãoháespetáculonoSãoPedro,vaiaovelhoteatrinhodarua
deBragança,paraseespiritualizar.Éumapaixonadoporarteepormúsica:
Dequandoemquando,saíadecasavestidocomosefosseopróprioCondeD’Eu,
quemesesatráscontraíranúpciascomaprincesaIsabel.Eiaaosespetáculos
doTheatroSãoPedro.Àspeças,aosconcertosdeflautaeharpa,àsoperas.
Ramoseraloucopormúsica.Diziaqueamúsicaopurificava.Faziaquestão
de ir ao São Pedro, sobretudo depois de executar um de seus bois
(COIMBRA,2008,p.138).
Entretanto,nemmesmoaarteécapazdeconterseucomportamentotransgressor.Os
instintosanimaissobrevivemesubjazemnaordemcivilizadaqueohomemcriounatentativa
deelevar-seacimadosoutrosanimais.Asociedadeprocuracontrolarosinstintosbásicosde
animalidade, ao passo que a religião e a arte representam um esforço de espiritualização,
transcendendo a animalidade. Mediante a criação de uma ordem moral, o homem tentaria
diferenciar-sedomundoanimalnão-humano.Mastodaahistóriahumanaatestao fracasso
destas tentativas; a exemplo, a condenação do homicídio, mas, ao mesmo tempo, dada a
irrefreabilidadedosinstintos,ohomemnuncadeixoudelegitimá-lo,emcertascircunstâncias.
Sabe-sequeseautorizaohomicídioindividual,emnomedaleioudoestadodenecessidade.
Tambémsetemohomicídiocometidocoletivamente,aoqualseemprestaumsentidomoral,
emnomedapátria,dareligião,dopovo(FREITAS,1996).
Todosessesexemplostraduzemaincontrolávelbestialidadehumanaecomprovama
tesedequeconstantementeohomemrecainoestadodenaturezaanimal(id.,ibid.).Logo,os
crimesdaruadoArvoredosóchocamesoaminverossímeisporquesetendeaesqueceracrua
verdadedequeoserhumanoé,essencialmente,umanimal,incontestavelmentesuperioraos
outrosanimais,mas,aindaassim,omaiscapazdoqueelesdetranscenderaanimalidade:
“háumchacaladormecidoemcadahomem”(id.,ibid.,p.12).
Uma das motivações para o impulso homicida do acusado pode estar também
associadaao prazerquesentiaaodisporda vidade outrohomem.Ramossentiaprazerem
matar, afirmação comprovada pelo fim reservado aos objetos roubados por seu algoz. Ele
reúne os pertences das vítimas cuidadosamente, não os vendendo ou usando. São como
relíquiasparaoassassino,fatoqueafastaahipótesedequematavaestritamentepararoubar.
Noromanceessaquestãoficaexplícita:
O chefe de polícia Dário Rafael Callado encontrou evidências de que pelo
menos dez homens foram assassinados e, posteriormente, esquartejados no
porãodacasanúmero27daruadoArvoredo,habitadapelosinquilinosJosé
Ramose CatarinaPalse.Tais indícios foramfornecidos pelos pertencesdas
vítimas,que Ramos guardava como suvenir no grande baú do porão, e por
ossos humanos parcialmente corroídos, descobertos num tonel de ácido no
quintal(COIMBRA,2008,p.255).
Além disso, matava com intuito de firmar sua superioridade e sua força sobre as
pessoasquedesprezava,assimcomoparamanifestarseudesprezopelosqueseconsideravam
superioresemaisfortes,graçasaopoder.Daíoempenhodeofereceraslinguiçasdecarne
humana às autoridades da província. “Sentia prazer em ver os habitantes de Porto Alegre
comendounsaosoutroseaindaelogiandoosabordalingüiça,sobretudoabastados,agente
daaltaclasse,ospolíticos,ospadres”(id.,ibid.,p.137).Comonãopodematarospoderosos,
vinga-sedeles,vendendooalimento.
NodepoimentodeCatarinaquatroanosapósacondenaçãodocasal,inferimosqueo
sentidoparaoscrimesestádado,segundoquerfazercreraversãonarradapelahistóriadesde
ainfânciadeJoséRamos–aoouvirfalardashistóriasdedegolacontadaspelopai–,edesde
aprimeiramocidadedeCatarina–aoperderdeformatrágicaetraumáticaospaiseirmãosna
guerrae,emespecial,aotersido,elaprópria,violentadapelossoldadosrussosaosdozeanos
deidade.DizCatarinaàpolíciaqueJoséRamosTeriaquematarmuitaspessoas.Osmortos
não precisavam de dinheiro ou riqueza, enquanto que nós dois tínhamos o direito a isso
devidoaosnossossofrimentos”(FREITAS,1996,p.107).Elmir(2004)chamamuitobema
atençãoparaofatodesepoderconsiderar,atécertoponto,queseconstróiaquioargumento
dequeosassassinatospraticadosporRamosfuncionavam,napercepçãodeCatarina,como
umsentimentocatárticoafimdesanarasdoresqueambostraziamdeexperiênciasdevida
traumáticas. Catarina estabelecerá deliberadamente ligação entre os males que sofrera na
infânciaeoscrimespraticadosporJoséRamoscomseuconsentimento.Amesmafelicidade
deleemmatareraasuaaosaberdasmortes:“saberquetodaaquelachamadagentedebemda
cidadecomeriacarnehumanaesetransformariaemcaniballhedavaenormeprazer.Ramos
finalmente se vingavadetodas as privações que havia passado emsuavida” (COIMBRA,
2008,p.156).
Acrescenta-se às motivações dos crimes a sinistra história da casa da rua do
Arvoredo
79
. “Tudo conspira para o cometimento dos crimes. Não fosse a ‘alma’ do casal,
seriao‘espírito’instaladonolugardesuavidaemcomum”(ELMIR,2004,p.129).Acasa
ondeocasalpassaaviveremmeadosde1863eondeoscrimessãoperpetradoscarregao
estigmadeamaldiçoada,poisalinonúmero27,emjaneirode1853,umtaverneiroquenela
residiafoidegoladopordoisassaltantes.Esseassassinatoconstitui-senoprimeirolatrocínio
dahistóriadePortoAlegre.EmCanibais,nocapítulointitulado“Eraacasadosassassinos”,
essefatoéexpressoatravésdafaladonarrador:
OsapateiroWaltersabiaqueacasaemqueseusvizinhosRamoseCatarina
moravam era amaldiçoada. Ali, no número 27 da rua do Arvoredo, o
portuguêsManoelJoséTavareshaviasidoassassinado,dezinvernosatrás–o
primeiro latrocínio da história de Porto Alegre, prova irrefutável de que a
cidadecomeçavaacrescer(COIMBRA,2008,p.40).
Dário Calado, por sua vez, depois de descobrir, na casa do casal, os pertences das
vítimas,oscorposeofimquetiveram,ficaentresatisfeitoepreocupado.Satisfeitoporque
issoresolveriaocasodosdesaparecimentosmisteriosos.Preocupadoporqueocriminosoera
um de seus informantes assalariados. Para o chefe de polícia, o ideal seria que o caso
permanecesseemsigiloabsoluto.
No romance também é expresso o desejo de abafar o caso da linguiça de carne
humana.Nahistória,frenteàsituaçãodenãopoderpreverqualseriaareaçãodosmoradores
dacidadequandosoubessemquedefatoteriamconsumidocarnehumanafeitapelasosde
açougueiro alemão, o chefe de polícia em exercício
80
tenta abafar o caso, através da
impronúnciadosacusados.EmCanibaisessedesejoéexpresso:
DárioCalladocompreendeudeimediatoqueahistóriadalingüiçafeitacom
carne de gente era incendiária. Aquilo transformava quase que a população
inteira em antropófaga. A lingüiça era uma das preferências gastronômicas
dos porto-alegrenses. [...]. Aquele caso lhe traria muitos problemas, tinha
 
79
ValeressaltarquehojenãohácertezaquantoaolocalexatodaantigacasadaruadoArvoredo.
80
Éimportantesublinharque,segundoD.Freitas(1996),naocasiãodosupostonovodepoimentodeCatarina,
em1868,estavaemexercícioochefedepolíciaGervásioCampello,substitutodeDárioCalado.
plenaconvicção.Precisavaabafarpelomenosapartequesereferiaàlingüiça
(COIMBRA,2008,p.256).
As tentativas de esconder os crimes não impediram que a divulgação dos fatos
chegasse ao público. O chefe de polícia sabia de antemão que seria impossível guardar
segredo, pois havia muitas pessoas envolvidas: “o sapateiro, o anspeçada, as famílias dos
desaparecidos”. Além disso: “aquela velhota, a tal Honestina, ela não saía de perto”
(COIMBRA, 2008, p. 255). No romance, é por meio da sempre atenta Dona Honestina,
fofoqueiradacidade,“anotíciaseespalhacomarapidezdalocomotivaBaronesa,quehádez
anos ligava a Baía de Guanabara a Petrópolis [...]. Em questão de horas, a cidade toda
comentavaosassassinatoseoqueforafeitodoscorpos”(id.,ibid.,p.256).
Anotíciaéresponsávelporacentuar-seoantigermanismonoRioGrandedoSuldo
século XIX. O fato de Catarina Palse ser alemã e o ougue, antes de Ramos, ter sido
propriedadedeumalemãodespertaaanimosidaderaciallatentenacidade,quandooscrimes
vêmàtona:
O Palácio do Governo foi cercado por popularesque exigiamprovidências,
sem,noentanto,especificaroqueasautoridadespoderiamfazer.Erarevolta
emestadopuro.Aspessoastalvezquisessemqueapolíciadesmentisseaquela
história escatológica. E queriam, sobretudo, encontrar um culpado no qual
pudessem descarregar sua indignação. Gritavam que os alemães eram
assassinos,queeramcanibais.Ochefedepolíciaprecisouusartodaaforça
policialparaconteramanifestação(COIMBRA,2008,p.257).
OantigermanismopodeserigualmentepresenciadonopadeiroAntunes.Voltaemeia,
ele repetia sua tese acerca dos efeitos da imigração germânica no país. Em uma de suas
conversashabituais,pelamanhã,comoamigoWalter,Antunescomenta:
–Seiquevocêmesmoéalemão,quesuamãeeraalemã,quesuamulherera
alemã, Walter. Mas vocês são diferentes. Sua mulher com certeza era
diferente. A maioria das alemãs é pérfida. É perigosa! Desconfio delas.
Desconfie delas também, Walter. Essas loiras vão transformar a província
numaterradecornosirremediáveis![...]EssaCatarinaédessalaia.Podeser
linda,podeserfascinante,maséperigosa.Elanãoécomoasalemãsdasua
família. Ela é uma dessas alemãs do Mal, que estão infestando a província
(COIMBRA,2008,p.49).
O cônsul da Prússia convoca uma reunião consular
81
a fim de discutir a situação.
Receosodequetumultospopularesponhamemriscoaintegridadefísicaeaspropriedades
dos imigrantes, ele forma uma comissão com os demais cônsules e vai ao Presidente da
Província pedir garantia de segurança para os estrangeiros. A comissão fica especialmente
preocupada com os rumores de que imigrantes alemães “comem carne humana, como os
índios”(FREITAS,1996,p.71).
Os crimes de José Ramos provocam, assim, um incidente diplomático, cuja
repercussão alcança até o jornal uruguaio El Oriental, que noticia: “As autoridades da
provínciadeSãoPedrodoRioGrandedoSuldescobriramqueosalemães,motivadospela
avareza,matampessoasparafazerevenderlinguiçadesuacarne.Sirvadeadvertênciapara
queogovernoorientaltragasobvigilânciaessesestrangeiros”(FREITAS,1996,p.128).
Oantigermanismopodeserigualmenteobservadoatravésdanotíciadojornalfrancês
LeTemps
82
,sobotítulo“Omaiorcrimedaterra”:
OmundocivilizadoestremecedehorroraosaberquenoImpériodoBrasilse
pratica o canibalismo. Na cidade de Porto Alegre [...], um grupo alemão
assassinouseispessoasecomsuacarnefabricoulinguiça,vendendo-aaopúblico,
que a comeu despreocupadamente. Tem-se aí mais uma prova da barbárie
germânicaquehojeinquietaaFrançaeaEuropa(FREITAS,1996,p.128).
A negação dos crimes da rua do Arvoredo em benefício da “memória da cidade”
estariadiretamenteassociadaàsupostafabricaçãodelinguiçadecarnehumana
83
.Noromance,
aquestãoéexpressaatravésdosentimentoqueseapoderoudapopulaçãodacidade:
Aquelahistóriarapidamentesetransformouemtabuparaosporto-alegrenses.
QuandoumforasteiroperguntavaseeraverdadequeexistiaemPortoAlegre
 
81
Afora outros cônsules germânicos, comparecem os da Argentina, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha,
Estados Unidos, França, Holanda, Rússia, Suécia, Suíça e Uruguai, além de alguns comerciantes germânicos
(FREITAS,1996,p.128).
82
 O antigermanismo do jornal francês se explica num momento em que a guerra franco-prussiana já era
iminente.
83
SegundoD.Freitas(1996),anegaçãodessacaracterísticaespecíficadoscrimesestariavinculadaaocaráter
traumáticoqueseuconhecimentopoderiaacarretarjuntoàpopulaçãodacidade.Oautorassociaessanegação
ao
desaparecimentodosprocessosreferentesaoscrimesdaruadoArvoredo,emespecialoqueversousobreocaso
dalinguiçacomcarne humana,àtentativa e o desejo generalizadodacidadedeesconderos pormenores dos
crimespraticadosporJoséRamos,assimcomocertoempenhoemnegaroestigmadocanibalismoquecercoua
capitaldospampas.Alémdosdesaparecimentosdosprocessosreferentesaoscrimes,quesustentamaposição
“de que houve um apagamento deliberado dos acontecimentos da rua do Arvoredo da memória da cidade”,
outrosfatoscolaboramparaideiadenegação,entreeles,ogolpejudicialparasubtrairaojulgamentopelojúrio
casodalinguiçadecarne
humanaeensejaraabsolviçãoliminardosacusadospelojuizsingular.Osilênciodos
jornais locais da época e dos cronistas da cidade, salvo Aquiles Porto Alegre, que registra a fabricação da
linguiçadecarnehumana,e,emúltimolugar,masnãomenosexpressivo,aspressõessofridaspeloDiáriode
Notícias,em1948,paraqueomencionasseaquestãodalinguiçadecarnehumana,representamanegaçãodo
episódio.
um açougue que vendia linguiça feita com carne humana, os cidadãos
mudavam de assunto, debochavam, juravam que aquilo não passava de
folclore(
COIMBRA,
2008,p.257).
Assim, devoltaaosseuslares,ressentidos,frustrados,osmoradoresdesencadearam
umprocessocoletivoesilenciosodeassimilaçãodocaso.Comosetodaacidadehouvesse
entrado em um acordo mudo, ninguém mais falava no caso da rua do Arvoredo. E dessa
maneira,ahistóriadosescabrososcrimesseencaminhaparaofinal,nanarrativadeCanibais.
2.5OCASODOCANIBALISMOEMCÃESDAPROVÍNCIAEEMCANIBAIS
Embora ocanibalismoseja repudiado porquestões éticasemoraiscontemporâneas,
tornando-setabuemnossaculturaetemaindigesto,eleaindaestápresentenasociedadesob
diferentes formas e variantes. Esporadicamente, a ação isolada de alguns serials killers e
psicopatasfazessetemaviràtonanovamente.Casosdecanibalismoaparecemnonoticiário
de tempos em tempos, indicandoquea prática é mais frequente do queousamos pensar
84
.
Alémdisso,quandoohomemnãopodepraticarocanibalismonosentidoliteral,eleopratica
no sentido metafórico, na luta pela vida. No convívio em sociedade é comum a prática de
condutasqueferemaéticaeamoral.Natentativadeficaremevidência,muitasvezes,ohomem
“devoraooutro”,pormeiodetrapaçaseboicotes,ignorandoorespeitoaopróximo.Muitos
associam como forma de canibalismo a transubstanciação, prática adotada em geral pela
IgrejaCatólica
85
.Osdefensoresdessaideiaalegamquenamissacome-seacarnedeCristoe
nãoumsímbolodacarnedeCristo;bebe-seosanguedeCristoenãoumsímbolodesangue
de Cristo. Então, segundo esse pensamento, a transubstanciação seria mais uma forma de
canibalismo. Na literatura também se faz presente, constituindo marca da construção da
identidade
86
. Na perspectiva canibalesca, Affonso Romano de Sant’Anna trabalha o tema
principalmente no que concerne às relações entre o homem branco e a mulher negra ou
mulata: caçá-la/comê-la/devorá-la constituem aspectos reveladores de um esquema
representativodasrelaçõeseróticasinter-raciaisqueosescritoresbrasileirosdesenvolveram
por mimetismo de neocolonizado”
87
. Dessa forma, pode-se dizer que “o canibalismo
representaalémdoqueeleé.Trata-sedeumsignosemovente,umsignificantesuscetívelde
recobrirossignificadosmaisdiversos”(LESTRINGANT,1997,p.110).
Com relação ao possível caso de canibalismo envolvendo os crimes, em Cães da
Província algumas informações são modificadas e atenuadas. As suspeitas do fabrico de
linguiçadecarnehumanaacontecemnodecorrerdatramadeformabastantecomedida.No
romance não se tem a confissão dos acusados em relação a esse caso, e o narrador deixa
entenderquetudonãopassavadelenda
88
:
 
84
Veraesserespeito:ZEROHORA,11fev.2009;ATARDE,2nov.1997.
85
Informaçãodisponívelem:<http://cristaldo.blogspot.com/2009/02/preconceito-contra-kulinas-palavra.html>.
86
Veraesserespeito:ALMEIDA,2002,p.278.
87
Veraesserespeito:oprimeirocapítulodeOcanibalismoamoroso(1984),deAffonsoRomanodeSant'Anna.
88
Emrelaçãoaessaquestão,osepodedeixardeconcordarcomonarradordeCãesdaProvíncia:hámuitos
componentesnahistóriadoscrimesdaruadoArvoredoqueautorizamapensar:ocasodalinguiçahumananão
passadeumaboalenda,talcomojáexplicitadonocapítulo1,p.48-54,ofato,porexemplo,deoutrasnarrativas
daremcontornosmaisdramáticosaotestemunhodeAntonioFernandesdaSilva;ofatodeserdeconhecimento
Foram-setambémassuspeitasdetodoshaveremcomidocarnehumana,pois
os criminosos afirmaram nunca terem feito lingüiça com os restos de suas
vítimas – e neste ponto o verazes, ou melhor, não resta outra alternativa
senão dar-lhes crédito, pois qualquer suspeita nesse sentido seria horrenda.
Alguns,é certo, mantêma fantasia, ou por espíritodesagregadorou porque
sabemqueosmitosfazempartedequalquernaçãocivilizadoraeébomque
Porto Alegre não se apresente como uma cidade sem passado (ASSIS
BRASIL,1999,p.191).
Em nenhum momento na narrativa de Assis Brasil há referência ao fato de as
autoridadesdePortoAlegreteremexperimentadoasupostalinguiçafabricadanoaçougue.O
romance se limita apenas à alusão ao canibalismo, sem ser objetivo com relação a isso,
porquanto“aficçãopós-modernasugerequereescreverourepensaropassadonaficçãoena
história é – em ambos os casos – revelá-lo ao presente, impedi-lo de ser conclusivo e
teleológico” (HUTCHEON, 1991, p. 146-147). Romances pós-modernos como Cães da
Província “afirmam abertamente que só existem verdades no plural, e jamais uma só
Verdade”(id.,ibid.,p.146-147).
JáemCanibais,
quandosão descobertososcrimes asevidênciasapontam parauma
trama sinistra: “Tudo indicava que os cadáveres haviam sido descarnados, desossados,
convertidos em linguiça e vendidos no ougue instalado no pátio frontal da casa”
(COIMBRA,2008,p.256).Aoanalisarasnarrativashistóricaseficcionaisproduzidassobre
oepisódiodoscrimesdaruadoArvoredo,Elmir(2004)afirmaqueserealizouhistoricamente
umaapropriaçãodessescrimesnateseda“linguiçadecarnehumana”.
Na trama, na maioria das vezes, o estoque de linguiça do ougue de Ramos era
produtodasaçõesnoturnasdesuamulher,queutilizavaosseusbelosatributosparaatrairos
mais desavisados até a casa. Além disso, é Catarina, muitas vezes, que instiga e anima o
amásioamatar–especialmentequandofoivítimaoaçougueiroCarlosClaussner.
ApartirdamortedeClaussner,Ramoscometeumasériedeassassinatos,semprecom
aajudamilitantedesuacompanheiraecúmplice.Oassassinoutilizaomesmométodopara
matar: num movimento rápido, fende a cabeça da vítima, de alto a baixo, eem seguida a
degola:“Ramosusoupelaprimeiravezomachado,seguidodadegolaafacão.Umfimrápido
epreciso”(COIMBRA,2008,p.156).“ParaosumiçodeClaussner,Ramosdeuadesculpa
que ele se mudara o Uruguai” (id., ibid., p. 157). Explicação perfeita, pois sabe-se que o
próprio Claussner comentara pelacidade que tinha vontadede se mudar para Montevidéu.
   
públicoaformapelaqualJoséRamosmatavaasvítimas;ofato,deapósosúltimosassassinatos,eleirtrabalhar
noaçouguedaruadaPonte.Taisfatorespodemterfornecidosubsídiosparaacriaçãodalendasobretaiscrimes.
Assimcomonavida“real”,apósmatarClaussner,JoséRamos,porsuavez,tomapossedo
açougueesetornaoaçougueirodaregião.
Aquestãodecomodarsumiçonocadáverdoaçougueiroéqueoinspiraapreparara
linguiça. Ramos havia esquartejado a vítima e pensava na maneira de se livrar das partes,
quandolhevemaideiadetransformá-lasemlinguiça.Oscadáveresdesapareceriamenunca
sepoderiaprovarnada.mençãodequevinhamtodosàprocuradalinguiçaespecial.O
assassinoofereciaoalimentoàspessoas,queolevavamparacasae,parasuagrandesurpresa,
voltavam ao açougue, comentando a delícia que era a linguiça, perguntando onde eram
criadososporcosabatidosparaconfeccioná-la:
Vinhagentedetodasasclasses,doclero,daadministraçãomunicipal,vinha
gentedelonge,doCaminhodoMeio,daAzenha,vinhamtodosàprocurada
lingüiça especial feita por Ramos. Mesmo com o estoque regularmente
reposto, às custas das andanças noturnas de Catarina, às vezes não havia
lingüiçaquechegasse(COIMBRA,2008,p.54).
Tambémérelatadonoromancetodooprocessodefabricaçãodalinguiçatãofamosa
na cidadee apreciada portodas asclasses. Ramostornara-seperitona operação. Exercia-a
com o método e rapidez. Conhecia cada nervo mais duro, cada feixe longo ou curto de
músculoshumanos.Sabiaondecortar,ondeperfurar,fazerumaincisão,ondehaveriamaior
resistênciaaocutelo,ondeserianecessáriaumafacaserrilhada:
Quando se compreendia como o corpo humano era construído, ficava mais
fácil. As partes se encaixavam. Ou se desencaixavam. Só se precisava ter
cuidadoparaencontrarolocalondeserrar,ondefurar.Desossartambémnão
eracomplicado,umavezqueseprestasseatençãonaformacomoosmúsculos
seestendiamenospequenosligamentosentreumaseçãoeoutra(COIMBRA,
2008,p.53).
Depoisdematareesquartejarasvítimas,aindatinhamuitotrabalhopelafrente:“teria
de picar a carne bem picadinha, temperá-la e, finalmente, socá-la no saco feito com as
própriastripasdomorto”(COIMBRA,2008p.53-54).Assimerafeitaalinguiçaespecial”,
produtodoaçouguequefaziaenormesucessoentreosmoradoresdePortoAlegre.
Àmedidaqueanarrativaavança,operfildeRamosedeCatarinaficacadavezmais
nítido.Anaturezaanimaldocasalvemàtona.Paraisso,onarradorseempenhaemempregar
expressõestaiscomo“animalselvagem”,“fera”,assimcomoaçõesanimalescas,aosereferir
àspersonagens:“Catarinaacavalou-senele,ronronando”(COIMBRA,2008,p.16).“Vamos!
–rosnouRamos”(id.,ibid.,p.58).
Oautorpreenchecomficçãoaintimidadedocasal,CatarinaeRamos,daqualpouco
sabemosatravésdosrelatosfactuais.Simulacomopoderiatersidoamente,avida,oconvívio
earelaçãodessecasal.Portrásdaaparênciacomum,JoséRamos“freqüentementeportava-se
feitoumdaquelesfamososdândisdeLondres”(COIMBRA,2008,p.38).Ela,porsuavez,
“pareciaumamulherdireita”(id.,ibid.,p.10),masescondiaosmaisobscurossegredos.
A complexidade do ser humano, suas contradições e ambiguidades são focalizadas.
Por meio de Ramos, por exemplo, ficamos sabendo de seu comportamento paradoxal: é
tomadoporprazereciúmeaomesmotempo,quandovêsuamulheremrelaçõesíntimascom
outroshomens:
Umsentimentodúbiooassaltou:deveriadeixarqueeleconsumasseoatocom
Catarina? A idéia era excitante [...]. Mas, ao mesmo tempo, teve ciúme.
Catarina poderia gostar, e ele, Ramos não tinha como competir com o
anspeçada.[...]Não!Ramosnãopermitiriaqueelausufruíssedaqueleprazer.
Que, depois, ficasse comparando os dois. Ia acabar com o soldado agora
mesmo.Teveganasdeabrirasportasdoarmáriodeparemparesaltarsobre
Brasiliano.Masseriaumaimprudência.Oidealeraatacá-lopelascostas,com
segurança, como o planejado. Não, Ramos o permitiria que o ciúme lhe
roubassearazão.Teriacalma(COIMBRA,2008,p.235).
Jáocomportamentotransgressor,aperturbaçãomental,astarasevíciosdeCatarina
nosremetemàspersonagensfemininasdeNelsonRodrigues.Talcomonodramarodriguiano,
emCanibaisaspsicopatologiashumanastambémsãoexploradas.Catarinanoencontrocom
Walterdeixatransparecertodooseudescontrole,sualoucuraesuafúria.Walter,porsuavez,
sente-seassustadocomasensualidadefuriosadeCatarina:
Catarinaresfolegava.Olhava-ocomosolhosflamejantes.Apoiouaspalmas
das mãos na mesa. Impulsionou-se. Sentou no tampo [...] Abriu bem as
pernas.Elaabriuaindamaisaspernas.–Desgraçado!–berrou.–Desgraçado!
[...] – Eu sei o que você quer, desgraçado! As pernas bem abertas. Bem
abertas.Umanimalselvagem,umafera.[...]Elasejogouparatrás,deitouas
costasnotampodamesa,arfando.Agarrouasbordascomasmãos.Eracomo
se quisesse ser sacrificada. Balançava a cabeça para um lado e para outro,
muitovermelha.– Nããããããõ! [...]– Aquilo de novo!Não!Aquilodenovo!
Nãããããããõ!(COIMBRA,2008,p.245).

Aanimalizaçãodocasalsefaznecessária,poisanarrativadeD.Coimbraécalcadana
tese do canibalismo e vai ao encontro da imagem que pretende passar de que Ramos e
Catarinasãocanibais.
As práticas canibais ou antropofágicas são tão antigas quanto a humanidade,
constituindoumhábitoexistenteaolongodahistória.Dentresuasváriasformas,JoséRamos
praticaaquelaquenãoéperdoada,nemmesmojustificada:matareconsumiracarnecomo
perversão.Eleconsumiaacarnedasvítimasantesdecolocá-laàvenda.Catarina,porsuavez,
asdevoravanosentidometafórico,todavezqueaslevavaparaacamaantesdeentregá-lasao
amásio. Tais traços selvagens e animalescos do casal são semelhantes ao perfil do canibal
traçado pela Antiguidade. Segundo Lestringant (1997), o canibalédescrito, nesse período,
como criatura abominável, que nem pertencia por completo à humanidade. Cinocéfalos:
homens-cães,queurravamelatiamemvezdefalar.
Para a passagem do cinocéfalo ao canibal foi necessária uma revolução de
pensamento, no decorrer de um longo século de descobrimentos e interpretações. Os
primeirostestemunhosmaisdetalhadossobrecanibalismoprocedemdoscontatoscoloniais,
quandoosconquistadoresnãotinhamassumidoaindaocontroledaspopulações.Sãoelesos
responsáveis por legitimar o caráter pejorativo e repulsivo desse ato. Reprimida pelos
governadoresemissionários,apráticachegouàdocumentaçãoquasesemprecomopráticade
umpassadomaisoumenostico,ou,maisfrequentemente,atribuídaaoutros,comoíndice
debarbárieentreosinimigosouinferiorese,nãoraro,peçadepropagandaquejustificavaa
suadominação.Dessaforma,ocanibalismofoicomfrequênciaopretextoparalegalizaras
agressões, perseguições e escravidão. Cristóvão Colombo é o primeiro a introduzir a
expressão,quandoemcontatocomogrupoindígenaarawak.Naverdade,otextodeColombo
apenasapresentaonomehorrendo“canibal”.ApartirdaorigemcomColomboomitodos
canibaispercorrerávárioscaminhos
89
.
Um dos poucos a questionar o estereótipo negativo conferido ao canibalismo é o
escritor francês Michel de Montaigne, ainda no século XVI. Essa postura fica evidente no
livro intitulado Ensaios, de 1580 (dois volumes) e 1588 (terceirovolume), em especial no
capítulo “Dos canibais”, pertencente ao primeiro volume, que interessa em particular ao
Brasil, pois trata exclusivamente dos índios brasileiros tamoios, subgrupo dos tupinambás.
Montaigne transforma a figura repugnante, que é oantropófago das Américas, emmodelo
positivo:
Nãovejonadadebárbaro ouselvagemno quedizemdaquelespovos;e,na
verdade,cadaqualconsiderabárbarooquenãosepraticaemsuaterra[...].A
essagentechamamosselvagens,comodenominamosselvagensosfrutosquea
naturezaproduzsemintervençãodohomem.Noentantoaosoutros,àqueles
que alteramos por processos de cultura e cujo desenvolvimento natural
modificamos,équedeveríamosaplicaroepíteto[...].Nãomepareceexcessivo
julgarbárbarostaisatosdecrueldade,masqueofatodecondenartaisdefeitos
 
89
Veraesserespeito:LESTRINGANT,1997.
nãonosleveàcegueiraacercadosnossos.Estimoqueémaisbárbarocomer
um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um
corpoentresuplíciosetormentoseoqueimaraospoucos,ouentregá-loacães
eporcos,apretextodedevoçãoefé,comonãosomenteolemosmasvimos
ocorrer entre vizinhosnossos conterrâneos; e isso, em verdade, ébem mais
grave do que assar e comer um homem previamente executado.
(MONTAIGNE,1987,p.259-262).
MasantesMontaignedefendereescreversobreapráticadosíndiosbrasileiros,abaía
deGuanabarajátinhasidofrancesa,entre1555e1560,comainstalaçãodaFrançaAntártica.
Essa experiência levou à publicação de dois dos primeiros livros sobre o Brasil:
SingularidadesdaFrançaAntártica(1557),dofradeecosmográfoAndréThevet,eHistória
deumaviagemfeitaàterradoBrasil(1578),dopastorprotestanteJeandeLéry
90
.Tantopara
Thevet quanto paraLéryo canibalismoseria umcasodevingança,ouseja,ostupinambás
comiamacarnedosseusprisioneirosparavingar-seenãoparaalimentar-se.
Thevet, ao referir-se sobre o canibalismo dos tupinambás, além de afirmar que tal
práticaéassuntodevingançaequeoatonãoestáassociadoaoapetitecegodospraticantesao
devorarseupróximonafaltadeoutroalimento,tambémreferetimidamente,semsermuito
explícito,oparentescoentreamaneiradoselvagemeasmaneiraspoucocaridosasdosquese
dizemcivilizadosecristãos.
Léry,porsuavez,seráoresponsávelporclareareaprofundarasideiasdeThevet.Em
suareleituradocanibalismo,elencaráumasériedeexemplossangrentoseviolentosdevários
períodosdahistória.Evocarátambémocanibalismofiguradodosagiotaseexploradoresdos
pobres,retomaráaantropofagiadasguerrascivis,comintuitodemostrarqueocanibalismo
está presente em todas as outras partes, “até no seio da comunidade reformada”
(LESTRINGANT,1997,p.112).Entrepretensoscristãos,ocanibalismoseexpressariaatravés
domistériodatransubstanciação.Enãosomenteentreosmaisbárbarosdentreosrbaros,
assimcomoseacreditava.
Montaigne,porsuavez,completaareabilitaçãoiniciadaporLéryvinteanosantese
porThevetmaisrecentemente,elegitimaatesedocanibalismofundadosobreavingançaea
honra,construídaporseuspredecessores.Apartirdeentãoocanibalnãosuscitarámaistanto
horror,afastandoassimumpoucodoestigmapejorativo,vampirescoemonstruosoassociado
aessaprática.Noentanto,aimagempositivadocanibalelaboradaporMontaigneeporseus
antecessores degrada-se no finaldo século XVIII e, sobretudo, no século XIX, no período
 
90
SegundoLestringant(1997),foinesseslivrosqueMontaignecolheuagrandemaioriadasinformaçõessobre
ostupinambás,emboraeledigaqueasobtevedeumempregadoseu,ex-marinheirodaexpediçãodeNicolasde
Villegagnon,ofundadordaFrançaAntártica.
romântico,marcandosuadecadência.AversãosemultiplicaránaEuropainteiraeganharáem
carga imaginária. Nas primeiras imagens do canibal na literatura, suas incursões são
entendidascomocaçaaogadohumano,seguidaderápidoabateoudomesticação.Aprática
canibalescaamericanaganharácontornosimaginários,fictícios,queaaproximamaomodelo
culinárioeuropeu,comosougueirosdaEuropa.Omitodocanibalnaversãoeuropéiaserá
acrescidodeumasériedemitemase preenchidodeelementosdiferentes.Apareceránesses
escritosqueoscanibaisamericanosseparavamoscortesdecarnes,salgavam,conservavame
suspendiam no teto de choças, depois os assavam em espetos, da mesma maneira como
fazemosascarnesanimais.Assimrecriadaspeloimaginárioeuropeu,ascozinhascanibaisda
Américaeramassociadasàimagemdoaçougueiroquecortacabeçascomumamachadinha.
Aolongodoséculo serãodescritosos horrorescanibais,imensasgrelhas sobreasquaisse
assavamcrianças,mulheres.
A imagem horrorosa traçada na Europa, séculos mais tarde, do canibal como
açougueirocomaventalensanguentadoecomummachadonao,arraigadanoimaginário
social,podeigualmenteserobservadaemCanibais.Ramosédesenhadocomoabesta-fera”
(COIMBRA, 2008, p. 82), figura diabólica, aterradora e monstruosa, a representação do
própriocanibaleuropeu:“Eoenormevultodeumhomemsaiudasombra[...].Eraavisão
mais horrenda de sua vida. Tinha bem uns dois metros de altura. Vestia um avental
ensangüentado.Levavanasmãosummachadoenorme[...]Eraoprópriomalqueoencarava”
(id.,ibid.,p.20).
Vê-sequeomesmofatoé abordadoereinterpretadodemaneirasdistintasnasduas
reapropriaçõesdoscrimes.EmCanibais,Coimbraoptapeloinvestimentodeliberadonocaso
decanibalismoedafabricaçãodalinguiçacomcarnedegente.EmCãesdaProvíncia,Assis
Brasilpreferenãoserconclusivoemrelaçãoaosupostocaso.Talfatoépermitido,poisaarte
pós-moderna aponta para a incapacidade de acesso diretamente ao real, uma vez que o
passado só existeatravés do texto – texto que ao mesmo tempo nos remete à realidade e,
também,nosdistanciadela,quesetrataapenasdoolharindividualemdireçãoaopassado.
Porissoé comumapresençade ummundodeprovisoriedade eindefinição,decorrenteda
ambiguidadepresentenessasobras:“Maisdoqueambígua,aartepós-modernaéduplicadae
contraditória”(HUTCHEON,1991,p.158).
2.6SUBVERSÕESÀNARRATIVAOFICIALEMCÃESDAPROVÍNCIAEEMCANIBAIS
Aliteraturaseproduzporumconstantediálogodetextos,porretomadas,empréstimos
etrocas.Aliteraturacomparadanãosóadmite,mastemcomprovadoissoapartirdoestudo
das relações entre diferentes literaturas nacionais, autores e obras: “a literatura nasce da
literatura;cada obra nova é uma continuação, por consentimento ou contestação dasobras
anteriores,dosgênerosetemasjáexistentes”(PERRONE-MOYSÉS,1990,p.94).Escrever
é,pois,dialogarcomaliteraturaanteriorecomacontemporânea.
RetomandoaspropostasdeMikhailBakhtin,JuliaKristevaemApalavra,odiálogoe
oromancedenominouteoriadaintertextualidadeaestratégiapicadaprosadeficçãoatual,
segundoaqualtodotextoseconstróicomomosaicosdecitações,todotextoéaabsorçãoe
transformações deum outro texto; eleéuma escritura-réplica (funçãoe negação) de outro
(dosoutros)texto(s)”(KRISTEVA,1974,p.62).Conformeaescritora,apalavraliterárianão
éumponto (um sentidofixo), mas cruzamento de superfícies textuais,diálogode diversas
escrituras, do escritor, do destinatário (ou do personagem), do contexto cultural atual ou
anterior(id.,ibid.,p.62).Entretanto,oobjetivodoestudodeintertextualidadeéexaminarde
quemodoocorreessaproduçãodonovotexto,osprocessosderapto,absorçãoeintegraçãode
elementosalheiosnacriaçãodaobranova.
EmCãesdaProvíncia,emboraahistóriadoscrimesdeJoséRamoseCatarinaPalse
apareçaemalgunsmomentosajustadadeformaharmônicaàficção,onarradorrende-se,na
maior parte da narrativa, ao poder da imaginação: “Mas larguemos este [sic] óculos-de-
alcance e invoquemos a imaginação, que é a mais poderosa das lentes” (ASSIS BRASIL,
1999,p.90).Assim,oautorcriaumenredoque,comacréscimos,omissõesemediadopelas
váriastécnicascaracterísticasdofazerliterário,subverteaversãooficialdahistória,narrada
por D. Freitas, encontrada no processo criminal e nas narrativas jornalísticas. A inserção
dessesfatoresvaiaoencontrodoparadigmadametaficçãohistoriográfica,emqueésempre
possível alteraraordemda história consoanteo enredoescolhido paracontá-la.Ou seja, é
semprepossívelescreverumaoutrahistóriaparaummesmoargumento.
O ponto máximo da subversão à versão oficial que se conhece sobre os fatos é o
entrelaçamento entre os assassinatos de José Ramos e a história de vida de Qorpo-Santo.
Apesar de a história não permitir estabelecer qualquer vínculo entre o dramaturgo e o
assassino,nãoobstanteteremvividonamesmacidadeenomesmotempo,AssisBrasil,no
mundo da imaginação, aproxima esses dois homens que, por razões e meios distintos,
perderam-se.Torna-semesmoassimpossíveleverossímilesseencontro,dopontodevistada
ficção.
Talmediaçãosedáatravésdonúcleomaisardilosoeficcionaldanarrativa.Ouseja,a
história do bem-sucedido comerciante Eusébio e sua mulher Lucrécia é que serve de elo
articuladordosdemais.Qorpo-Santo,comintuitodeajudaroamigo,vítimadainfidelidadede
Lucrécia, que o havia abandonado para viver nas imediações de Viamão com o queijeiro
Raimundo,oaconselhaadarparteàpolíciadodesaparecimentodesuaesposa.Napetição
entregue a Dário Calado, consta que a mulher ficara louca e se fora para os ladosde São
Leopoldo. Adenúncia do sumiço de Lucrécia ao chefe de polícia não tinha a intenção de
encontrar a mulher, na verdade era uma estratégia para que ela viesse a constar entre os
desaparecidosdacidade.
AtramaganhacontornosaindamaisdramáticosquandoQorpo-Santo,aoacompanhar
abuscaeaexumaçãofeitapelochefedepolícianacasadeJoséRamostemumaengenhosa
ideia: identificar como sendo de Lucrécia um corpo de mulher, sem a cabeça, encontrado
entreasváriasossamentasdesenterradasdopátiodacasadoacusado.Eusébio,emcompanhia
doamigo,certificando-sedequerealmentenãoforaachadaapeçavitalparaaidentificação
davítima,procuraochefedepolíciaparafazeroreconhecimentodocadáverdamulhercomo
sendoocorpodeLucrécia,suaesposadesaparecida.
Aoleroromance,aprimeiraimpressãoquesetemédequeexisteintertextualidadeno
queconcerneàmortedessamulhereasvítimasdeJoséRamos.Noentanto,aocontráriodo
queparece,atravésdosautosdebuscaeexumaçãonacasadoacusadonãoconstaoregistro
doachamentodeumcorpodemulher,muitomenosnascircunstânciasdescritasnanarrativa
ficcional:semacabeça.Essefatoé,portanto,umacriaçãodentrodacriação,ouseja,ficção
dentro da ficção. Esse assassinato deve ser atribuído a José Ramos no plano estritamente
ficcional.Éprovávelqueessasejaumafalsapistaoferecidapeloautor,espéciedejogoem
queoleitoréconvidadoaparticipar,característicapeculiardasnarrativaspós-modernas.
Nanarrativaficcional,Qorpo-Santoutiliza-sedeumdosacontecimentos“ocorridos”–
os corpos encontrados no quintal da casa de Ramos – para solucionar o caso particular de
Eusébio.Odramaturgoencontranessafarsaapossibilidadedetambémpôrempráticasuas
qualidadesliterárias.Vale-se,assim,dofatoparaelaborarumapeçacalcadana“realidade”.
AssisBrasilutilizaoscrimesdaruadoArvoredoparatambémtornarpossíveldentrodatrama
oepisódioqueinspirouQorpo-SantoaescreverapeçaOhomemqueenganouaprovíncia,
concretizandoassimoencontroficcionaldasduaspersonagenshistóricasnanarrativa.
Essefatoépossívelporqueaverdade”doautorserátrabalhadatextualmenteatravés
daverdadedaspersonagens,aqualterátantaimportânciaquantoahistórica.Aquiestamos
nosreferindoàcoerênciainterna, ouseja,oquesedizprecisafazersentido,nemqueseja
apenas no âmbito próprio do discurso a enunciá-lo, uma das premissas da metaficção
historiográfica:
Onarradorpós-modernoéoquetransmiteuma“sabedoria”queédecorrência
daobservaçãodeumavivênciaalheiaaele,vistoqueaaçãoquenarranãofoi
tecida na substância viva da sua existência. Nesse sentido, ele é o puro
ficcionista, pois tem de dar “autenticidade” a uma ação que, por não ter
respaldo da vivência, estaria desprovida de autenticidade. Esta advém da
verossimilhança que é produto da gicainterna do relato. O narrador pós-
moderno sabe que o “real” e o “autêntico” são construções de linguagem
(SANTIAGO,1989,p.79).
AssisBrasilvale-sedesseencontroficcionalentreosdoiscasoshistóricos–oscrimes
perpetrados por José Ramos e o processo de interdição de Qorpo-Santo – para mostrar e
investigar toda a loucura coletiva que se instaurou naquele momento. Ou seja, como
contrapontoà“loucurapessoal”dodramaturgo,oautormostraacomoçãonacidadeanteos
escabrosos crimes. Nas ruas, as mesmas pessoas que empurravam Qorpo-Santo para o
hospícioviviamperplexaseatônitascommedodosassassinatos.
Alémdisso,comoocriminosoera“açougueiro”eacreditava-sequefazialinguiçade
carne de gente, esses fatores acabaram ocasionando verdadeiro surto de terror entre a
população,de tal maneira queaspessoassesentiammal,ficavam doentes porcogitar que
haviam consumidoatallinguiça. Tinham a necessidade decolocaraculpaemalguém,de
preferência em Qorpo-Santo, aquele que se atreveu a revolveros pilares da “decência”. O
encontro verifica-se mais uma vez entre os dois casos históricos. É quando o dramaturgo
passa,decertamaneira,aserobodeexpiatórioemumaprovínciaaterrorizadapelosúltimos
acontecimentos:
Agora, entretanto, sob a comoção de tantos acontecimentos lutuosos, a
sociedadequeriasuaparte,eemboahorasaudavaainterdiçãoqueamulher
lhemovia[...]Asociedadeinteirapediaaojuizquedecretasseaincapacidade
pretendida,emaisosânimosseexaltaramquandosesoubequeoaçougueiroe
a Palsen mantinham-se naquela posição arrogante de quem nada confessa,
quandotodossabemquesãoculpados(ASSISBRASIL,1999,p.120).
EmCanibais,podemosperceberomesmoprocesso.Seoenredodanarrativaficcional
temadocumentaçãohistóricacomopontodepartida,nãoatemcomopontodechegada.Ou
seja, “os crimes da rua do Arvoredo” comparecem em algumas ocasiões combinados de
maneiraharmônicaàficção,respeitandoalgunspontosdeacordocomaversãohistórica.No
entanto,apesardaestreitarelaçãocomosfatoshistóricos,nãoháapretensãodeseremrelatos
históricos tradicionais. Identificam-se alguns pontos principais que subvertem a história
oficial.EmCanibaisdepoisdainvestigaçãohistóricaentraemjogoacapacidadecriadorado
romancista, que adentra profundamente na história para afastar-se dela como bem lhe
aprouver, fiel à lei da literatura, que consiste na invenção, criação de uma para-realidade.
“Nunca antes o romance histórico havia permitido ao romancista tanta liberdade de
imaginação”,observarquezRodríguez(1991,p.44).Enãocabeanósperguntarmosse
issoépossível:tudooénaesferadaliteratura.
OpontoximodasubversãoàversãooficialestánofatodeCatarinaretornarcomo
autorajuntocomRamos.Diferentedahistóriaoficial,emqueelateveparticipaçãodiretaem
apenasduasmortese,namaioriadasvezes,seateveaopapeldecúmplice,emCanibaiselaé,
naverdade,aprincipalculpadadetudo. ElatemRamos,o “monstro”,aosseuss:“Com
Catarina,Ramosingressounummundocompletamentenovo.Ummundodeperigo,deprazer
e tambémde dor” (COIMBRA, 2008, p. 156). “Foi fácil fazê-lo se apaixonar. Depois, foi
aindamaisfácilinstigá-loamatarClaussneretomaroaçougue”(id.,ibid.,p.137).Taisfatos
levamoleitoraquestionarqualdasduaspersonagenséamaismonstruosa.
Alémdisso,éCatarina,comváriasartimanhas,entreelasasedução,quematraíaas
pessoasà casa,ondeseriammortasporRamos.Elaé muitomaisdo queabelaamantede
Ramos, elaé“umacaçadora dehomens” (COIMBRA, 2008,p.9). Comrequintesdeuma
históriaquemesclaohorroreasedução,onarradoradescrevecomoaresponsávelporatrair
os incautos com requebros e sorrisos provocadores: “Sexo. Era o que Duarte queria. Suas
virilhasformigavamdedesejoquandoeleolhavaparaCatarinaondulandoasancasemsua
direção.Jamaisviramulhertãolinda”(id.,ibid.,p.9).
O poder de sedução, atributo das mulheres, a fazer os homens perderem a sua
capacidaderacional,revela-sejuntoàconcepçãopreconceituosaqueimperanodecorrerdos
tempos: a mulher movida por sentimentos e afeições, por instintos de natureza animal; o
homem, pela racionalidade. Deixando à solta, sem controle, esse traço identificador do
feminino,vaiapontarparaamulhercapazdeprivarohomemdesuaracionalidadeedesviá-lo
deumacondutaregradaeordeira.
Duarte tem a sua racionalidade comprometida quando se depara com a sedutora
Catarina,fisgadoassimqueaviucaminhando”(COIMBRA,2008,p.9).Pensaemabordá-
la, mas logo se acovarda. Acha improvável que tivesse uma chance: “Trabalhava numa
camisaria, ganhava pouco, era solteiro, e um solteiro que ganhasse pouco na época,
enfrentariaproblemasnomercadodosexodacidade.Sócomescravasoumeretrizes,nunca
umafêmeadeslumbrantecomoCatarina”(id.,ibid.,p.10).
Apesar de todosesses sinais,e deter a certeza de queaexuberante mulher ose
interessariafacilmenteporele,nãoconsegueresistiràseduçãodabelaeadentranoescuroe
sombriojardimdaamaldiçoadacasadaruadoArvoredo.Eacabasendoassassinado.
Dentretodasaspersonagens,Walteréquemmaistemaracionalidadeabaladaquando
conheceasedutoraloira.“Walteremtudotentavaserracional”(COIMBRA,2008,p.35).Ele
permite que os sentimentos que nutria por Catarina pautassem suas decisões. A primeira
insensatezcometidaéquandodecideinvadiracasa,ànoite,comintuitodedescobrirdeonde
partiamosgritosquehámuitoassustavamosmoradoresdaruadoArvoredo:
Walter nunca fizera algo semelhante. Sempre fora um comportado, um
respeitador dos limites alheios. Nunca furtara nada nem colocara material
inferiornoscalçadosqueconsertava,nuncatraírasuamulher,nuncasubornara
nenhum funcionário do Império. Invadir a propriedade de um vizinho,
penetrarclandestinamenteemsuacasa,assediarsuamulhercasada,tudoisso
eranovidadeparaeleeeratudomuitoinsensato(COIMBRA,2008,p.77).
Apiorinsensatezcometidaéquandoosapateiro,enfeitiçadoporCatarina,motivado
pelacertezadequeelaqueriamudar,decideirasuaprocuranaArgentina,apesardetodosos
obstáculos:adistânciaatéooutropaís,aguerraquepossivelmenteencontrarianocaminhoe
mesmotendovivenciadoacontecimentosquenomínimocolocavamemxequeaconduta,o
caráter,asanidadementaldeCatarina.Ela,porsuavez,aindanainfância,descobreopoder
que exercia sobre os homens e que desconcertou Walter. Quando foi violentada pela
soldadescarussa,ela
[...]percebeu,também,quehaviasobrevividograçasasuabeleza,aoprazer
quepodiaproporcionaraosmachos.Issolhedeuumasensaçãodepoder,de
prazer,deorgulho,até.[...]Catarinacompreendeuqueosexoeraseugrande
trunfo. E que precisava de um homem para seguir em frente (COIMBRA,
2008,p.139).
Assim, desde cedo começa a manipulá-los, usá-los e descartá-los segundo suas
necessidades. Casa-se, aos dezessete anos, com o cardador de lã Peter Palse, pois vê a
possibilidade de melhorar a vida. Mas não o suficiente, não o quanto desejava, por isso
convenceomaridoaemigrarparaoBrasil.Duranteaviagem,Peterseenforca.Talvezele
não estivesse pronto parasupriras exigências damulher. Eassimjá antecipa o inevitável.
ProvavelmenteCatarinaodescartariaassimquechegassemaodestino.
HouveoutroshomensantesdeRamos,entreelesClaussner.Catarinahaviaficadocom
ele por causa do açougue, que rendia bom lucro e poderia garantir-lhe um futuro sem as
atribulaçõesdeseupassadodoloroso.Masoaçougueirotambémjánãoserviamais,quando
começouaacharquepoderiatomardecisõesporela.
Nenhum homem, porém, tivera tanto ímpeto e tanta energia comoJoséRamos. Ao
conhecê-lo,Catarinavêneleumhomemdecidido.Umforte.Ramosforapoliciale,peloque
elacompreendia,aindatinhaligaçõescomochefedepolícia.Issootornavaohomemmais
poderosoqueelaconheceraatéentão.Alémdisso,estavaacostumadoasubmeterosoutrosà
suavontade.Paraarrematar,eleeradestituídodequalquerbarreirafeitadeescrúpulos.Nada
queCatarinapropusessepareciaescandalizá-lo.
Mastantoímpetoeenergiaagorasetornavaminconvenientes.“Deviaselivrardele”
(COIMBRA,2008,p.140).Aquelanoiteseriaaúltimaqueatrairiacarneparaoaçouguede
Ramos. Prometera isso a si mesma. Havia se fartado do desgraçado. Ele estava fora de
controle”(id.,ibid.,p.135).
Subverte-seahistóriaoficialcomodesejodeCatarinaabandonarRamosantesmesmo
deoscrimesdocasalviremàtona.Diferentementedaversãohistórica,emque,mesmoapósa
prisão do casal, ela se manteve “fiel” a Ramos até 1866, quando, motivada pelo
relacionamento de amizade e religioso que mantinha com Isabel Kerhkove, resolve contar
todaaverdadesobreoscrimes,cortandoassimdevezaligaçãocomele.
Na fião, farta de Ramos, Catarina decide abandoná-lo. Reforça-se a trama com o
trianguloamorosocriadoentreJoséRamos,CatarinaeWalter.NesteCatarinavêapossibilidade
demudança:“Com Walter,ela poderiaconstruirumlar, umafamília, poderiadar-lhesfilhos,
viverumavidanormal.Waltereraseufuturoesuaredenção”(COIMBRA,2008,p.140).
Valedizerqueoacréscimodessahistóriadepaixãonãosegueosmoldesdoromance
histórico tradicional. O sentido romântico do cavaleiro medieval e da dama idealizada é
subvertido.EmCanibais,Walteréumsapateiro,masassumefeiçõesdeheróinodecorrerda
narrativaeseapaixonaperdidamenteporCatarina.Noentanto,elaestálongedeseradama
idealizada presente naqueles romances. Catarina apenas vê em Walter a possibilidade de
abandonarRamos,eousasomenteparaessefim.Sabiacomomanipularoshomens.Sabia
comodeixá-losloucos”(COIMBRA,2008,p.192).Edescartaosapateiroantesmesmode
começaremorelacionamento.
Beleza é também um dos fatores determinantes utilizados por Catarina para atrair e
desconcertarasvítimas.AquilesPortoAlegre,emcrônicapublicadanadécadade20,comenta:
A beleza da mulher é quase sempre fatal, porque, como os abismos, atrai,
fascinaos olhoscautosouincautosquenelapousam.Alémdisso,amulher
belaestasempreexpostaaumainfinidadedeperigos,deatentados,porquehá
certoshomensqueperdemacabeçaquandoencontramumabeleza.Todavia,
ohomeméqueésempreavítima,porqueéelequepraticatodasasloucuras
paraaconquistadamulherqueoenfeitiçou(1923,p.142).
IdentificadapelomesmoAquilesPortoAlegre,cronistadacidade,comoapeça-chave
paraaefetivaçãodosassassinatosdaquelesdestinadosavirarlinguiça,diferentedosrelatos
oficiaisemqueconstaqueelapossuíacabelosnegros,feiçõesvulgaresefanadasparaa
idadequediziater,Catarinaécaracterizadacomoloira,olhosclarosebonita:
Ocabeloloiro,esvoaçante,deviasersuaveaotoque.Oslábioscarnudos,mas
ao mesmo tempo despretensiosos. Os olhos... azuis ou verdes? Verde-
azulados, decidiu Duarte. Uma mulher de boa altura, quase um metro e
setenta,esguia,seguradesi,pelojeitoqueandava(COIMBRA,2008,p.9).
Catarinanãopoderiaserdeoutrojeito.Issoporqueoscabelosloiros,desdeaIdade
Média são associados à pureza, à beleza das princesas dos contos de fadas. Algumas das
heroínas da literatura brasileira, entre elas Cecília, de O Guarani, de José de Alencar, era
moçameiga,suave,loira,linda,dedocesolhosazuis.
Asmorenas,porsuavez, sãoidentificadascomopecado oucoma maldade.Neste
caso, cabenovamenteaalusão ao romancedeAlencar, emqueIzabeléo oposto deCeci,
moçamorenaede sorrisoprovocador, associadaà sensualidade.ABronze,personagem de
Canibais, tem os cabelos escuros e a pele morena, identificados com o pecado e com a
sensualidade: “[...] era a Bronze, a mais famosa puta da cidade. Diziam que era feiticeira
também.Queencantavaohomemquequisesse”(COIMBRA,2008,p.170).“ABronzeera
diferentedaloira.ABronzeeratodarigidezesexo,purosexo”.“Catarinaeramaisdelicada,
maismacia”(id.,ibid.,p.230).
AatuaçãodeCatarinaeasdiversasreapropriaçõesdoscrimesmudamseuperfil.S.
Pesavento
91
observaque, comopassardo tempo,secompunham assim,as peçasdeuma
 
91
S.Pesavento,emCatarinaCome-Gente:lingüiça,sedução&imaginário,trabalhounabuscadarecuperação
doimaginárioconstruídosobreoscrimesdaruadoArvoredoeaformacomotodasasversõesacumuladasdo
incidente apontam para determinadas linhas básicas de estrutura da história a compor um enredo retido pela
históriasocial,quebasicamentepodeserexpressoassim:1)oscrimesdaruadoArvoredoenvolvemumasérie
de homicídios e a fabricação de linguiça de carne humana; 2) os culpadoseram alemães; 3) José Ramos ou
históriaqueseapresentavacomcadavezmaisdetalhes,enriquecendoatramaereforçando
umcertoestereótipodofeminino,condenadopelosocial”(2008,p.59).Ahistoriadorachama
muitobemaatençãoparaofatodeque“Catharinaassimcomparececomoumaencarnaçãode
Lilith,oarquétipodamulhertentadora,demônioeserpente,bruxaefeiticeira,comosereiaa
arrastaroshomensparaaperdição”(id.,ibid.,p.65).Elaprecisaserbelaeloira,paraseduzir
eprivarohomemdesuarazão.Torna-seopivotdatramaeseconsagracomooestereótipo
demámulher,oudosperigosdofeminino”(id.,ibid.,p.65).
A retomada dessa memória é trabalhada por vários escritores. Mas é através das
crônicas de Aquiles Porto Alegre que o imaginário social dos crimes da rua do Arvoredo
alcançou a versão definitiva. Em especial o imaginário sobre Catarina. É ao cronista que
devemosafixaçãodoseuperfildefemmefatale,coadjuvantedoassassino:
[...] com requebros, sorrisos provocadores, seduzia e atraía à sua casa os
incautos. Prelibando deliciosas horas de amor, a vítima, à hora combinada,
corriaparaasuaaventura.Entravanacasafatal[...]aoserconduzidadasala
paraoutro compartimento,o soalho, subitamente,desaparecia sob seus pés:
eraumalçapãoqueseabria.Odesgraçadotombavanolúgubreporão,onde
Ramis[sic],quejáoesperava,prostrava-ocomumgolpedemachadinhana
cabeça.Emseguidasaqueavaavítima–dinheiro,jóias,roupas,calçado,tudo
lhetirava–eiamostraràsuacúmplice,quesorria,vaidosadasuaforçade
sedução,oprodutodaféria(1940,p.183).
Apartirdocronistaarepresentaçãoestavafeitaeconsolidada.Catarinaassumelugar
dedestaquenamemóriasocialdacidadee,acadareapropriaçãofeita,maisumelementoera
acrescido.Em 1961, na crônica Os monstros, deAry Veiga Sanhudo, Catarinapassaa ter
olhos azuis, é comparada a uma santa, às vezes a uma bruxa. Em 1964, uma história em
quadrinhos, publicada no jornal Última Hora, consagra a figura de Catarina como
personagemprincipaldasucessãodoscrimes:comseurostobonitoerequebrosprovocantes,
elaserviadeiscaparaatrairoshomens.Apartirdessestrabalhos,Catarinaseenquadrano
estereótipodamulherlascivaeindutoradocrimes,devoradoradehomens,sedutora,femme
fatalenoséculoXIX.
Asubversãoeaproblematizaçãodahistóriaconsideradaoficialsobreosfatostambém
se concretiza através da intertextualidade nas narrativas ficcionais analisadas. A natureza
intertextual obriga à leitura da linguagem poética pelo menos como dupla, constituindo
diálogoexplícitocomoutrasobrasliteráriasprecedentesououtrosdiscursos,expressandoo
   
Ramiseraummonstroassassino,maueastucioso;4)suamulher,CatarinaPalse,foiagrandefiguracoadjuvante
quepossibilitouoshomicídios,atravésdesuasartesdesedução(2008,p.80-81).
que L. Hutcheon chama de “a inevitável intertextualidade de nosso conhecimento sobre o
passado”(1991,p.67).Aindasegundoela,aintertextualidadepós-modernaéamanifestação
formaldeumdesejodereduziradistânciaentreopassadoeopresentedoleitoretambémde
reescreveropassadodentrodeumnovocontexto(id.,ibid.,p.157).
Essa estratégia é explorada em Cães da Província
92
, onde a conturbada história de
Qorpo-Santoe oscrimesdeJoséRamossãofocalizados.Emrelaçãoaoscrimesdaruado
Arvoredo,oromancista,paraanimaratrama,buscouelementosemoutrostextos,inserindo
fragmentosdatragédiaqueabalouacidadedePortoAlegreemseuromance,taiscomoas
cenasdebuscaeapreensãonacasadeJoséRamos,todooaparatopolicialmontadonaépoca,
aidentificaçãodoscadáveres,oincidenteentreapopulaçãoeastropaspoliciais,entreoutros
pontos extraídos do discurso oficial dahistória, demonstrados neste capítulo (p. 68-78). O
narradordeCãesdaProvínciaadvertequeapalavraérepetitiva;cópias,plágios,paráfrasese
intertextos:
[...] o quedirá que não tenha sido dito há milênios, por Ésquilo, Sófocles,
Eurípedes?Asplatéiasdomundoestãocansadas,bocejantesdetantoouvirem
asneiras,cópias de cópias,qualquer espectadorpode adivinhar em qualquer
teatro o que acontecerá com todos os personagens dos dramas e fingem
surpresaeenternecerem-secomosfinaissabidoseconsabidos,umafarsa.O
desfastio das platéias ainda não sensibilizou os autores que se metem, dias
apósdia,aescreverasmesmascoisas(ASSISBRASIL,1999,p.58).
Além disso,évisíveloforte diálogo, principalmente entre ofolhetimde D. Freitas
intitulado “O açougue humano da rua do Arvoredo”, publicado em 1948 no Diário de
Notícias,eanarrativadeAssisBrasil
93
.AlgumaspassagensdeCãesdaProvínciasãobem
próximasdasdofolhetim,entreelasamençãodoachamentodemaistrêscorposnachácara
de Petrópolis, que evidencia um dos maiores exemplos de ficcionalização na história dos
crimes. Lê-se no folhetim: “Uma diligência à chácara de Petrópolis levou a polícia à
 
92
ApresençadeoutrostextosnolivrodeAssisBrasiltambémpodeserverificadaquandoonarradorfazusoda
linguagemedetrechosdaobradoprotagonistaQorpo-Santo.Aintertextualidadeétambémestabelecidacomas
peçasdeQorpo-Santo,porexemplo,aolongodo diálogoentreos doisalienistas– Joaquim Pedroe Landall,
porquantoJoaquimPedrosolidificaseusargumentosdeabsolviçãopromovendoaanálisedeobrasdoacusado,
taiscomo:UmcredordaFazendaNacionaleAseparaçãodedoisesposos,sendoqueestaúltimadeixouoDr.
Landellabismado:Amanteshomens?”perguntouomédico;sim,quevivemcomomaridoemulher,namais
santapaz”,respondeu-lheocolega(1999,p.204).HátambémmençãoàspeçasAsrelaçõesnaturais,Hojesou
um;eamanhãoutro,àsquaisofeitasinúmerasreferênciasaolongodotexto,alémdemuitasalusõesatítulos
enomesdeautoresepersonagensligadosounãoàdramaturgiauniversal,taiscomoVoltaire(p.20),Romeue
Julieta(p.56),Marx(p.217).
93
AssisBrasilementrevistaesclareceasrazõesdosagradecimentosaD.Freitas,emseuromance,porceder
subsídiosinestimáveisaoepisódiodoscrimesdaruadoArvoredo”(1999,p.261),mençãoaumasériedeartigos
queD.Freitaslheteriaemprestadoporocasiãodaredaçãodesuatesededoutorado,essencialmentematerialque
nutriuoromancistaparadarvidaàhistóriadoscrimesemseuromance.
descobertadetrêscovas:numa,encontraramumaossada;emoutra,emadiantadoestadode
putrefação,osrestosdamulherdeSantaCruz;e,naterceira,osrestosputrefatosdocolonode
NovaPetrópolis”(DIÁRIODENOTÍTICAS,15dez.1948,p.11).
AssisBrasiltambémfazreferênciaaessascircunstâncias:
Nunca ninguém diria que esta cidade rebrilhante ao sol dourado do outono
pudesseaindaassistiraoutrosacontecimentospenosos;quandopareciaqueos
limites do ódio estavam demarcados, bastando apenas a confissão cabal de
José Ramos e o definitivo laudo de interdição do louco-geral, eis que a
autoridadedescobremaiscorposenterradosemumachácaradePetrópolis,em
númerode três,todos vítimas do açougueiro e de suaestrangeira mulher, e
queaindanãoestavamcomputadosentreosdesaparecidos(1999,p.180).
OutrapassagemsemelhanteàversãodofolhetiméamençãoemAssisBrasilaofato
de alguém ter visto José Ramos à noite transportando um caixão, auxiliado pelo alemão
corcunda,desuacasadaruadoArvoredoatéoseuestabelecimentonaruadaPonte:“Alguém
sabiadetudo,tinhavistoJoséRamos,altashorasdanoite,transportando,auxiliadoporum
alemãocorcunda,desdesuacasadaruadoArvoredoatéseuestabelecimentonaruadaPonte,
oquê?umcaixãopesadíssimo,negroesujo,deondepingavasangue[...](ASSISBRASIL,
1999,p.42).
ReferênciaidênticaànarrativadeMaurícioMachado:
Aesteseoutrosdesaparecimentosmisteriosos,associava-seofatodetersido
vistoRamos,porváriasvezes,quandocarregava,auxiliandoporumalemão
corcunda,duasgrandesefortescaixasdemadeira,desuacasaparaoaçougue
daruadaPonte.CertaocasiãoemqueRamoseoCorcunda,ànoite,faziam
aquelecarregamento,umapessoanotouqueascaixasdeixavamescorrerum
fiodesangue(DIÁRIODENOTÍCIAS,9dez.1948,p.8).
Assim como em Cães da Província, em Canibais a intertextualidade também é
aspectorecorrente,emváriosníveis.NoromanceháintertextohistóricocomOmaiorcrime
daterra,deD.Freitas,aoincorporarorelatodatrágicahistóriadevidadeCatarinaPalseede
José Ramos, adeliberadaligação entre osmalesque ela sofrera nainfânciae oscrimes,a
suspeitanuncacomprovadadofabricoeconsumodas“linguiçasdecarnedegente”,odesejo
de abafar o caso da linguiça de carne humana, o conflito entre a população e as tropas
policiais, entre outros, explicitados nesse capítulo (p. 79-87), proporcionando explícito
diálogoentreasduasnarrativas.Noposfáciodeseulivro,D.Coimbraafirma:Ninguémme
ajudou tanto quantoo professorDécioFreitas[...]. Fui aoapartamentode Décio [...], para
conversar com ele sobre os crimes da rua do Arvoredo e sobre a história da cidade.
Entrevistei-odiversasvezes.Liseuslivros.Umdeles,OmaiorcrimedaTerra[...],serviu-me
comoreferênciamaiorparaescreverestahistóriadeficção”(2008,p.262).“Naverdade,uma
obraliteráriajánãopodeserconsideradaoriginal;seofosse,nãopoderiatersentidoparaoleitor.
Éapenascomopartedediscursosanterioresquequalquer texto obtémsentidoeimportância”
(HUTCHEON,1991,p.66).
EmCanibaishátambémointertextocultural:relatosdelendasdoRioGrandedoSul.
“Aoentardecerdecadadia,osmoradoresdascidadesdaProvínciasereuniamnascalçadasa
tomar chimarrão e para se distrair contavam histórias de terror, tais como as da voz
misteriosa” (COIMBRA, 2008,p. 149);os casosdaMão Preta(p.150);o famoso casoda
serpentequemamavaleitehumano(p.150).Entreestas,poucaseramtãoapreciadasquantoa
doCampara,ojusticeirodosoprimidos,oRobinHooddosPampas(p.153).
É evidente a presença de intertexto literário. Há menção ao pioneiro da literatura
gaúcha:“WalteradmiravaesseCaldreeFião,intelectualvigoroso,autordoprimeiroromance
escrito na província de São Pedro, o ótimo A divina pastora, publicado em 1847”
(COIMBRA,2008,p.92).HátambémreferênciaaoescritorManuelAntôniodeAlmeida.A
naturezaintertextualrevela-seatravésdorecursodacitatividade.Ouseja,aincorporaçãode
citaçõesliteraisdepoemasdeMachadodeAssis,publicadosnolivroCrisálidas.Nopoema
“Erro”,oeu-líricosedespededequemnãofoioamorqueelequeria:“Erro,Erroéteu,para
amar-tedeviasserenãocomoeras[...]”(COIMBRA,2008,p.93).DamesmaformaWalter
gostaria que seu amor por Catarina fosse passageiro como o do poeta fluminense, o que
certamentelhepoupariadoreseincomodações.
Maisadiante,nocapítulointitulado“ElaaEsperança.EleoDesengano”(COIMBRA,
2008,p.204),háreferênciaaoutropoemadeMachado.Onarradorexpõeosofrimentode
WalterfrenteàfaltadenotíciasdeCatarina.AoleropoemaemqueMachadoversasobreo
encontro da Esperança com o Desengano, Walter sente-se ainda mais angustiado: “o
Desenganoentrandonolarcompassoufano”(id.,ibid.,p.207).
Nofinal,novamenteotítulodolivrodeD.Freitasvolta,napassagememqueWaltere
BrasilianolamentamosacontecimentosdaruadoArvoredoeotraumacausadonapopulação
ao saber que foram transformados, por um período, em canibais inconscientes:Devorar a
própria espécie, o maior dos interditos. Nada pode ser mais monstruoso. É o maior dos
crimes.OmaiorcrimedaTerra”(COIMBRA,2008,p.260).
SegundoLuizFiorin,“aintertextualidadeéoprocessodeincorporaçãode umtexto
emoutro,sejaparareproduzirosentidoincorporado,sejaparatransformá-lo”(2003,p.30).
Canibaisseenquadranasegundaacepção.Ouseja,aooptarpelaalusãoaotítulodolivrode
D. Freitas e a outros textos, ao mesmo tempo em que traz para o seu fragmentos desses
discursos, reconstróio discurso original para remontar outro,subvertendoa história oficial
doscrimes.
Essasubversãopodesertambémpresenciadanoqueconcerneàpersonagemficcional
Emiliana,criadadocasalequefazpensarnaescravaSenhorinha,moradoranacasadaruado
Arvoredo no período em que os crimes ocorreram. No entanto, no romance a escrava de
ganhoébemmaisjovemeassumepapeldeheroína,desvendandooscrimesdeJoséRamos,e
porissoacabapagandocomaprópriavida.
OmesmoocorrenapassagememqueEmilianaéobrigadaporRamosadepositarseu
filho na roda dos enjeitados, fato que faz pensar no depoimento de Catarina a Gervásio
Campelloem1868,noqualconfessaqueteveumafilha,de“paidesconhecido”,quandoelae
RamosviviamnaruadosPecadosMortais,daqualsedesfeznarodadosexpostosdaSanta
Casa. Estranhamente, sabe-se que Ramos é padrinho de pelo menos sete filhos de casais
alemãesquemoravamnavizinhança.Quandosabedonascimentodeumacriança,visitaos
pais,nacompanhiadeCatarina,eseofereceparapadrinho.
OintertextoemCanibaismanifesta-sepreponderantementenorecursoàparódia.Ao
teorizararespeitodaparódia emsuaobraQuestõesdeliteraturae deestética: ateoria do
romance,M.Bakhtindestacaopapeldodialogismonaconstruçãodaparódia,cujoresultado
chama de “híbrido premeditado”. Com isso, refere-se à inseparabilidade da essência da
paródiaque,aomesmotempoemquedialogapropositalmentecomotextoparodiado,nãose
confunde com ele (1998, p. 389). Embora existam passagens com pouco afastamento dos
textosdeorigem,namaioriadasvezeselasoseconfundemcomeles.Oquecontribuipara
queissoocorraéapresençadaironia,recursorecorrente,quepermiteodiálogoe,aomesmo
tempo,asubversão aostextos deorigem. Onarrador vale-sedesseartifícioquandoRamos
cogitaoutraspossibilidadesdeexpandirseusnegócios:
[...] no armáriopensavaque não tiveratempode esquartejar e descarnar os
corposdeAntunesedeEmiliana,temiaqueempoucotemponãoservissem
maisparaalingüiça.Previamuitotrabalhoparaospróximosdias:Emiliana,
Antunes,Brasilianoe,emseguida,osapateiroWalter.Quatrocorpos.Poderia
salgá-lose transformá-losemcharque.Umnovoproduto de sucessodoseu
açougue,ocharqueespecial(COIMBRA,2008,p.236).
Aironiacomoestratégiadesubversãovê-sequandooescritornomeiaJanuárioofiel
cãozinhopretodeBrasiliano,personagemficcionalcomonomedeumadasvítimasreaisde
JoséRamos.Alémdisso,oanimalfazpensarnocãopretoencontradoenterradojuntamente
comosrestosmortaisdeJanuárioedeseucaixeironopátiodacasadaruadoArvoredo,fato
queproblematizamaisumavezarelaçãoentrehistóriaeficção.Nasdiferentesreapropriações
a respeito dos crimes, o cão ganha contornos de herói
94
. Em Canibais, não é diferente.
Januário fareja e pressente o mal toda vezque passa na frente da casa. E, na tentativa de
proteger seu dono, late ferozmente quando encontra Catarina. D. Coimbra acrescenta
ironicamente um novo fato aos crimes, com a engenhosa ideia de Catarina: “O cachorro
tambémteriadeserliquidado.Quegostoteriaalingüiçadecarnedecachorro?Bem,issoela
não tentaria descobrir. Ia sugerir que Ramos mandasse a lingüiça da carne do cachorro de
presenteparaomajorCâmara[...]”(COIMBRA,2008,p.228).
OmesmopodeserobservadoemCãesdaProvíncia.Apesardehaverpassagensno
romancecompoucodeslocamentododiscursooficialedofolhetimpublicadonoDiáriode
Notícias,nãosetratadeparafrasearostextosdeorigem,esimpode-seenquadraraqualidade
dessa intertextualidade bem mais no âmbito da paródia. Em Cães da Província, ao se
apropriardeumsupostooriginal,aomesmotempoemquedialogacomareferênciaexterna
aoseutextonãoseconfundecom ele,pois onarradorgaranteacriticidadeconstitutivada
paródia,pormeiodaironia:
–Demanhã,naturalmente,osenhorquerastorradas.
– Com uma fritada de chouriço – completa Qorpo-Santo, rindo e batendo
palmas.OuvocêtambémachaquetodososchouriçosdePortoAlegresão
feitosdecarnehumana?
Inespertofazosinal-da-cruz,apavorado.
–Meusenhor!Nãocaçoecomessabarbaridade[...](ASSIS,BRASIL,1999,
p.47).
QuandoAssisBrasilcriticaaburguesiaporto-alegrensedoséculoXIX,oolharirônico
eafortecríticadirecionadaàsociedadedaépocaressaltamnafaladodramaturgo,nasessão
quecorrespondeaoiníciodoprocessoquedeclararáQorpo-Santoloucoemdefinitivo:
Loucos são todos vocês – grita Qorpo-Santo. Não passam de cães desta
Província,prontosafarejarecomercarnehumana. CãesdaProvíncia, sim!
Como se não bastasse a mesquinhez e a falta de espírito, não admitem
ninguém que lhes seja superior [...]. Atenção, burocratas e comerciantes!
Antes de procurarem resolver os crimes meramente achando os criminosos,
antes de jogarem toda a culpa das insanidades desta Província em meus
ombros, seria mais útil resolverem os pequenos homicídios diários,
perpetrados nos lares, os desejos insatisfeitos dos coronéis, das esposas
ardorosas que procuram à noite seus maridos nos leitos desabitados, dos
 
94
Veraesserespeito:ÚLTIMAHORA,25fev.1964,p.10-11.
padres que têm seu sangue fervendo ao sentir os perfumes femininos
invadindoasgradesdos confessionários,dasmoças daalta-rodaquedevem
mantera castidade até que um brutoquelhesdão pormarido asdesvirgine
semomenorcarinho[...](ASSISBRASIL,1999,p.130).
Maisadiante,anarrativasegueretratando,sempreironicamente,oscrimesdaruado
Arvoredo.Qorpo-Santo,aodenunciarahipocrisiapresentenasociedade,interpelaráojúri:
Agoradigam:dequevale saberseforamounãoJoséRamose aPalsenos
autoresdamortes?Acasoissovairessuscitarosmortos?Edequevaleretirar
aumhomemacapacidadedeadministrarseusbensesuapessoa,seopior,a
mais negra miséria, permanece enlameando os pés desta sociedade
envelhecida, formada por cidadãos envelhecidos, governada por velhos
caquéticosedesnaturados?JoséRamoseaPalsenapenaspuseramemprática
oquetalvezmuitosdaquidesejariamfazer,assimcomoteriamvontadedeser
comoeu,quefaçooquequeroenãomesujeitoaessascadeiasmorais.Mas
querem um preço a tanta ousadia? Torturem José Ramos e anulem-me a
personalidade.TalvezassimaProvínciaseaquiete(ASSISBRASIL,1999,p.
130).
L.Hutcheon,emUmateoriadaparódia(1989),aoaprofundarsuareflexãorespeito
dopapeldaironia
95
paraaconstituiçãodaparódia,sugerequeohomemocidentalmoderno
tem a necessidade de afirmar o seu lugar na difusa tradição cultural que o cerca; essa
necessidade o leva a buscar deliberadamente a incorporação do velho ao novo, em um
processo dedesconstrução ereconstruçãopormeiodosrecursosestilísticosencontradosna
ironiaenainversão.
L.Hutcheon,emTeoriaepolíticadaironia,vêaironiacomoestratégiadiscursivaque
se efetiva ao nível da linguagem ou da forma e que sugere além do que é apresentado
explicitamente.Trata-sedeumajogadainterpretativaeintencional:“elanãoéuminstrumento
retórico estático a ser utilizado, mas nasce nas relações entre significados e também entre
pessoaseemissõese,àsvezes,entreintençõeseinterpretações[...].Éacriaçãoouinferênciade
 
95
Anoçãodeironiaé,emgeral,muitovaga.Brevepesquisasobreotemamostraqueoconceitovariaquase
tanto quanto o os estudiosos do assunto. São muitas definições, muitas distinções e muitas variedades
conceituais. De acordo com D. C. Muecke emAnalyses de l’ironie. Poétique, o conceito de ironia é, por
diferentesrazões,instável,amorfoevago.oéprecisodizerhojeoquesedirianosséculosprecedentes;ele
nãosignificaamesmacoisanesteounaquelepaís,naruaenabiblioteca,paraumhistoriadoreparaumcrítico
literário(1978,p.478).Aironiapodevariarconformeolugarondeocorre,ocontextonoqualestáinserida,de
acordocomosparticipantesenvolvidosnoatocomunicativo,comaépocaemqueseestá,entreoutrosfatores
condicionantes.Porisso,nestetrabalhodissertativo, evitou-setentardelimitar umúnicoconceito,podendo-se
afirmarqueaironiaéumfenômenoabertoamúltiplasinterpretações,nenhumadasquaisdeveserconsiderada
correta,poisconvivemcomopartesquesãodesuaestrutura,ouseja,aironiaeliminaaestabilidadedosentido
daspalavrasepermiteinúmerossentidosi(ni)magináveis.
significadoemacréscimoaoqueseafirma–comoumaatitudeparacomoditoeonãodito”
(2002,p.30).
A ironia revela-se quando o/aautor/a escolhe as situações ea linguagem, jogo que
pratica nos dois campos, para rir das condições de vida que produzem sofrimento, das
relações com o sexo oposto e dos finais que nem sempre são felizes. Humor e ironia
caminham juntos. Podem ser diferenciados pelo tom: a ironia confere muitas vezes a
impressãodefriezaeintelectualidade;ohumorémaiscaloroso,nãohesitandoemzombarde
simesmoeemironizarquemironiza.Entretanto,ambosvãoalémdeseussentidosevidentes
eexigemqueleitores(ouespectadores,quandosetratadecinema)semostremcapazesde
extrapolar”esejam“superioresaosensocomum”.
Para ser considerada ironia, ela deve ser produzida como tal por seu autor e
interpretadapelodestinatárioporele“escolhido”.Nosromanceshistóricoscontemporâneosé
exigidadoleitorumafunçãomuitomaisativadiantedotexto,jáqueeleprecisaposicionar-
se,dialogar,preencherlacunas,emitiropiniõesaoserdesafiado:“aironianãoéironiaatéque
sejainterpretadacomotalpelomenosporquemteveaintençãodefazeraironia,senãopelo
destinatárioemmira.Alguématribuiaironia,alguémfazaironiaacontecer”(HUTCHEON,
2002,p.22).JáGeorgeMinoismanifestaque“ohumortemnecessidadedecontraste:éum
duploolharsobreosacontecimentosesobreavida;umsimplesolharsóvêasaparênciase
produz, de maneira inevitável, tolice ou fanatismo, ou, mais freqüentemente, os dois ao
mesmo tempo” (2003, p. 305). Minoisacrescenta quehouve generalização dohumor e da
ironia no século XX. Tornaram-se democráticos e reafirmam-se como condutas que
evidenciam impotência, mas que permitem ultrapassar o absurdo do mundo, dos seres
humanose,consequentemente,dasociedade.
A respeito do humor – outra estratégia utilizada pelos autores
96
 para subverter a
históriaoficial–suapresençanãofuncionasimplesmentecomoelementoestilísticodotexto,
mascaminhaemíntimarelaçãoestruturalcomanarrativa,e,dessaforma,corrompeofato
histórico.EmCanibaislê-se:
Aquela velhota, a tal Honestina, ela não saía de perto, ela acompanhou as
diligências,eladesceuaoporão,tapouonarizcomamãoencarquilhadaefez
um ó de espanto à vista dos cadáveres e de todo o sangue, ela assistiu às
buscas no pátio, ela deu depoimentos, fez comentários, perguntou tudo a
 
96
Emboranãoestejaentreosnossosobjetivosanalisaroestilodosescritores,nãopodemosdeixardechamara
atençãoparaessaquestão.AssisBrasilémaisirônico,maissutilaorevisitaroepisódioeseprestamenosao
riso,emborahajapassagenscombastantehumor.D.Coimbra,porsuavez,émaisirreverente,vale-semaisdo
humor.Suaescritaémais“temperada”emrelaçãoaofeminino.
todos,seimiscuiuemcadadesvãodocaso,nofinaljáestavadandopalpite
paraochefedepolícia.Nãohaviacomoafastá-la.Eelafalava.Ah,comoela
falava(COIMBRA,2008,p.255-256).
EmCãesdaProvíncia,oDr.DárioCaladovêoquepareciaserumamanhãtranquila
de trabalho se dissipar ao deparar-se com as múltiplas folhas do processo envolvendo o
desaparecimentodeJanuário:
Contente,cruzaoolharpeloprocessoque estásobrea secretária, e pronto!
[destaquedoautor]–vai-setodaaalegria.Sãoosautosdodesaparecimento
do Januário, do seu caixeiro e do cachorro. Por que sempre mencionam o
cachorro? No que ajuda saber que o cachorro sumiu junto? No entanto,
semprequefalamnoJanuárioenocaixeiro,lávem:ocachorro!Seboparao
cachorro!(ASSISBRASIL,1999,p.61).
Há modificação e distorção em Cães da Província nos nomes de algumas das
personagens,acomeçarpelosobrenomedeCatarina.AssisBrasilusaagrafiaPalsen,quando
na verdade há referência no processo criminal de que o sobrenome é Palse
97
. A mesma
distorçãopodeserobservadanagrafiadosobrenomedoalemãoCarlosGottlieb.Nanarrativa
ficcional o escritor faz alusão ao açougueiro utilizando a grafia Klausen, quando se sabe
através da certidão de batismo
98
que seu último nome é Claussner. Assim, a narrativa
ficcional afina-se com os preceitos da metaficção historiográfica, em que “certos detalhes
históricos conhecidos são deliberadamente falsificados para ressaltar as possíveis falhas
mnemônicas da história registrada e o constante potencial para o erro proposital ou
inadvertido”(HUTCHEON,1991,p.152).
Emrelaçãoaodesfechodoscrimes,nanarrativaficcionalháaconscientedistorçãode
algumas informações, através doacréscimo de um fatornovoao episódio, que não condiz
comosfatos“reais”,distorçãoquepodeserobservada,porexemplo,naúltimareferênciaaos
crimesnoromance:
Acasadoaçougueirofoiarrasadapelamunicipalidadesobopretextofútil,eo
açougue apareceu ardendo numa noite de sábado, quando as gentes todas
 
97
Noprocessocriminalconstaque,aos dezoitodeabril de1864,nasecretariadepolíciaondeseachavaem
exercíciocomochefedepolíciaDárioRafaelCallado,compareceuCatarinaPalse,devinteeseteanosdeidade,
solteira,filhadeHubertoPalse,naturaldaHungria,residentenaruadoArvoredodestacidade,engomadeira,não
sabelernemescrever(CRA,1993,p.14).
98
AescolhadonomeKlausenporAssisBrasilrelaciona-secoma grafiaqueestánoreciboqueJoséRamos
exibia comprovando a compra do açougue de Carlos Claussner. Carlos Klausen foi a grafia utilizada na
assinatura do documento de venda do açougue, forjada em recibo por José Ramos, segundo constatado pela
perícia.Veraesserespeito:CRA,1993,p.40e62-63.
estavamdançandoesoltandofoguetesnumdostantosarraiaisdacidadeenão
havianinguémparaacudir(ASSISBRASIL,1999,p.234).
Esseepisódiolevaàaproximaçãoaos rituaisgregosde purificação. Nelesocontato
com a água é fundamental. Acrescea issoaindaa prática da fumigação para afastar maus
cheiros,umaformaprimitivadedesinfecção.Possivelmenteapalavragregapara“purificar”é
derivada da palavra semita para “fumigar” – uma vez que o fogoconsome e destrói tudo,
incluindocoisasdesagradáveiseindigestas,tudopurificando
99
.
Semelhante ideia é trabalhada por Gaston Bachelard em A psicanálise do fogo, ao
buscar“asbasessensíveisdoprincípioquepretendequeofogopurificatudo”(1999,p.150).
Elechegaàconclusãodequeumadasrazõesmaisimportantesdavalorizaçãodofogoéa
desodorização. “O odor é umaqualidade primitiva, imperiosa, que se impõe pela presença
mais hipócrita ou importuna. Ele realmente viola nossa intimidade. O fogo purifica tudo,
porquesuprimeodoresnauseabundos”(id.,p.150-151).Umasegundafacetadoprincípiode
purificação pelo fogo é o fato de que ele “separa as matérias e aniquila as impurezas
materiais.Ditodeoutromodo,oquepassoupelaprovadofogoganhouemhomogeneidade,
portanto em pureza” (idem, p. 151-152). Caberia aproximar também o fogo agrícola que
purificaospousios:Ofogonãoapenasdestróiaervainútil,comoenriqueceaterra”(idem,
p. 152). O fogo, segundo G. Bachelard, além “tudo purificar”, reúne também as ideias da
supressãodeummaledaproduçãodeumbem.
Levando em consideração as simbologias do fogoaqui expostas, o acréscimo desse
elementoficcionalnolivro–“oaçougueapareceuardendo”–remeteparaoaludidodesejode
purificaçãodacidadee“queima”damemória.Sóassimacapitaldenometãofestivopoderia
tentarsedesfazerdesuarecordaçãoagélidalembrançadoscrimesdaruadoArvoredo.
JáemCanibaisasubversãoàversãoconsideradaoficialocorrepormeiodoacréscimo
decontornosmaisdramáticosàsmortesdasvítimas.PrimeiroavítimaéatraídaporCatarina
atéacasa.Chegandolá,élevadaatéoquarto,ondeirásefartar“nascarnesrijasebrancas”
(COIMBRA, 2008, p. 17) da exuberante mulher, enquanto Ramos aprecia tudo de um
compartimentosecreto.Após,éservidoumgrandebanquete.Emseguida,Catarinabatecom
ogarfonocopo,comosechamasseumacriada,eavítimaésugada”porumalçapão.Por
fim,otrabalhopesadoficaporcontadeRamos,queterádematar,esquartejaretransformara
carne da vítima nas “deliciosas” linguiças vendidas no açougue e tão apreciadas pela
populaçãodaregião.
 
99
Informaçãodisponívelem:<http://poesiatext.1accesshost.com/antropologia1.htm>.
Há consciente distorção da história no desfecho da personagem José Ramos. Vale
lembrar que na versão histórica, após o descobrimento dos assassinatos, Ramos é preso.
Algumtempodepois,porestarenfermo,éinternadonaSantaCasadePortoAlegre.Mesmo
depoisdesuarecuperaçãocontinuarávivendoporlácomoauxiliardeenfermagem.Somente
algunsanosdepoisvemafalecer.EmCanibais,ohomicidamorre.Eisacena:
Ramosjáhaviadesencadeadoomovimentoparalheracharocrânioaomeio.
MasaíRamosvacilou.Omachadoficoususpensoporummomento,atéque
asmãosdogiganteamoleceram.Soltaram-nodevagar.Omachadodesabouno
assoalhocomoestrondo.Osolhosdomonstrosetornaramvidrados.Eleabriu
aboca,comosefossefalaralgo,masemitiuapenasumsomseco,dedor[...]
Eruiu.Essaapalavra:ruiu.Ocorpoenormedoaçougueirodesabousobrea
cama,debruços.Emseulugar,atrásdele,apareceuWalter,comomartelode
ferroaindalevantadoeensangüentado(COIMBRA,2008,p.238).
QuantoaodesfechodeCatarina,nahistória,apóstercumpridoapena,elaépostaem
liberdade.Temposdepoismorrerácancerosaeseráenterradacomoindigente.Naficção,por
suavez,elaconseguefugiremumacarruagem,aoquetudoindica,paraaArgentina,saindo
impuneaoscrimes.Apolícia“nãoachousequerrastrosdaloiraCatarinaPalse”(COIMBRA,
2008,p.258).
Em Canibais, a presença da carnavalização também deve ser sublinhada, como
elemento de subversão. Lembramos aqui que esse recurso figura entre as estratégias
recorrentes do novo romance histórico, demonstrado no início deste capítulo, Já em M.
Bakhtinoconceitodecarnavalizaçãoestáagregadoaodeparódia,postoqueeleconsideraa
festadocarnavalcomoograuximodeinversãodoprocessocultural.Conformeoteórico,
a carnavalização engloba quatro categorias que se inter-relacionam e que, em conjunto, a
constroem: inversão, excentricidades, familiarização e profanação – a principal tônica é a
inversão. As restrições, as leis e proibições, que sustentam o sistema e a ordem da vida
comum,istoé,extracarnavalesca,revogam-seduranteocarnaval:“revogam-se,antesdetudo,
o sistema hierárquico de todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta,
etc.” (2000, p.123). No carnaval tudo o que é determinado pela desigualdade social/
hierárquicaeporqualqueroutraespéciededesigualdadeentrehomensemulhereséabolido.
Ainda,nocarnavalomundoécolocadoaoavessopelasuspensãodasleis,dasproibiçõese
dasrestriçõesdavidacotidianaaceitascomonormas:
O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e
espectadores.Nocarnavaltodososparticipantessãoativos,todosparticipam
da ação carnavalesca. Não se contempla e, em termos rigorosos, nem se
representa,masvive-senele,evive-seconformeassuasleisenquantoessas
vigoram,ou seja, vive-se uma vida carnavalesca.Esta é a vidadesviadada
vidahabitual,emcerto sentidouma“vidaàsavessas”,ummundo invertido
(BAKHTIN,1999,p.122).
Essa vida desviada, a que se refere M. Bakhtin, vê-se na atuação da personagem
CatarinaPalse.EmCanibais,excentricidadeseescândalospontuamsuavida,frutosdeuma
conduta promíscua e sem pudores. A personagemnão apresenta o quese entende porboa
conduta,agravadaporsairànoitedecasaembuscadevítimasparaJoséRamos.Estamosno
anode1864. Nenhumamulherrespeitávelseatreveriaaumaaventuradessassemcorrero
riscodeserconfundidacomumaprostituta.Tambémmantinharelaçõessexuaiscomtodasas
vítimasantesdeentregá-lasaomarido:“[...]sentiaprazeremseentregaràluxúriadogadode
Ramos”(COIMBRA,2008,p.138).Éasubversãototalcontraqualquertipodeconvenção,
namedidaemqueocarnavalpropõeumanovaordem,queéadesordem.Nessesentido,tal
comportamento vai ao encontro do perfil básico da femme fatale, de que se falou
anteriormente,capazdeviraromundopeloavesso.
Além disso, o romance assume uma forma carnavalizada que se manifesta também
através do foco na sexualidade. De acordo com S. Menton, o conceito de carnavalização
desenvolvido por M. Bakhtin prevalece no novo romance histórico através dos exageros
humorísticosedaênfasenasfunçõesdocorpo(1993,p.44),cujascaracterísticaspodemser
presenciadas no romance através da descrição da potência sexual de Brasiliano de forma
bastantecômica:

–Alapucha!Alapucha!Brasilianolivrou-serapidamentedasroupasese
postou de pé. Queria que ela admirasse seu membro duro feito uma lança
farrapa, imponente feito o edifício Malakoff. Pois era justamente isso que
tinhanomeiodaspernas:umaarranhacéu!(COIMBRA,2008,p.233).

Catarina comprova os exagerados dotes físicos de Brasiliano, dotes que em outros
temposhaviamimpressionadoatéasrameirasmaisexperientescomquemoanspeçadahavia
serelacionado:
Catarinaimpressionou-secomotamanho dotroçoqueBrasilianocarregava
fincadonavirilha.Jáviramuitodissonavida,masaquele,defato,podiaser
considerado fora dos parâmetros. Maior até que o de Ramos. Um homem
realmentebemprovidopelaMãeNatureza(COIMBRA,2008,p.234).
Portanto, as estratégias narrativas observadas nos romances analisados, tais como
intertextualidade,paródia,ironia,humor,sãorecursosquepermitemaoromancepós-moderno
inserire,nasequência,subverteroquefoidito,aguçandoacriticidadedoleitorepermitindo
queelealcanceoíntimodanarrativa.Seuselementossãocombinadosdeformaqueoleitor
saibaqueaquiloqueselênãoéreal,maséaceitocomosefosse,porqueoefeitoorairônico,
orapoético,ausentenodiscursohistórico,tornaissopossível.
CONSIDERAÇÕESFINAIS
Aolongodesta pesquisaverificamos queoscrimes da ruadoArvoredogranjearam
notoriedade não propriamente pelos atos de barbárie que constituíam, mas sim por terem
desestabilizado e perturbado consideravelmente a ordem e o sossego de Porto Alegre em
meadosdoséculoXIX.Oeventoganhadestaqueemereceestudotambémporestarassociado
aquestõesétnicas.Por trásdos sentimentosdepavorque tomoucontada cidadefrenteao
conhecimentodasmortes,escondia-seconsiderávelindignaçãopelofatodeosenvolvidosnos
crimesseremdeorigemalemã.Oepisódioacentuoudemaneiraexpressivaahostilidadeaos
imigrantes alemães e alterou os ânimos da população, gerando grande conflito entre os
populareseastropaspoliciais,naocasiãoemqueosacusadosforamconduzidosàcadeia.
Esse incidente foi amplamente comentado e discutido nos jornais da época, inclusive
noticiadoemperiódicosestrangeiros,contribuindoparaampliaroantigermanismoemoutros
países.
OscrimesdaruadoArvoredotambémprovocarampreocupaçãonomeiodiplomático.
Cônsulesgermânicosedeoutrospaíses,preocupadoscomasmanifestaçõesviolentascontra
osalemães,reuniram-seafimdeestabelecermedidasquezelassempelaintegridadefísicae
moral dos alemães aqui instalados. A situação torna-se também questão de Estado, pois a
agressão contra a comunidade alemã poderia desestimular a política imigratória que o
governoimperialseempenhavaempromover.
Além disso,sublinha-seoprocessodeficcionalizaçãopor quepassouoepisódioao
longodequase150anos,cujointeressemaiorestáassociadoàpolêmicaversãodafabricação
delinguiçacomcarnedegente.Ocanibalismo,muitasvezesomitidooudisfarçado,élacuna
quasesempreaserpreenchidapelosarquivosoupelaimaginação,eumdosfatoresessenciais
que compõem a fascinante história, aguçando sempre a curiosidade e o interesse pela
narrativa, que aborda, durante todas essas décadas, a questão na perspectiva de diversos
gênerosnarrativoseatéempoesia,aexemplodaepígrafedeaberturadestadissertação.
Objetivamos,com este trabalho, trazerà luz esse notável tema dahistóriado nosso
estado–observadoporváriosângulos,notadamentepormeiodasnarrativasficcionais.Para
isso, investigamos de que forma é trabalhado nas obras de ficção Cães da Província e
Canibais.Analisamosoentrecruzamentoentreliteraturaehistória,tãopresentenasnarrativas
ficcionais selecionadas, com intuito de verificar como esses romances se reapropriam das
informações presentes na versão considerada oficial, narrada por D. Freitas, encontrada na
peça jurídica e nas narrativas jornalísticas. Maisdo que isso, almejamosverificar como as
informações históricas foram incorporadas e subvertidas pelos romances selecionados,
imprimindoassimleituraseversõesdistintasarespeitodoepisódio.Issoporquenoexercício
daintertextualidadeas“fontes”deixamdeinteressarporelasmesmas,masinteressampara
quesepossaverificarcomoforamusadasetransformadas:“Asinfluênciasosereduzema
umfenômeno simples derecepçãopassiva, massão um confronto produtivocomoOutro,
sem que se estabeleçam hierarquias valorativas em termos de anterioridade-posteridade,
originalidade-imitação”(PERRONE-MOYSÉS,1990,p.94).
Concluímos que, embora a história dos crimes cometidos por José Ramos e sua
companheira e cúmplice Catarina Palse apareça em alguns momentos ajustada de forma
harmônicaàficção,emCãesdaProvínciaeemCanibaisarevisitaçãoaopassadoocorre,na
maior parte das vezes, por intermédio da subversão à versão considerada oficial. Aliás,
observamosqueissoéconstantenasdiversasreapropriaçõesdoepisódiofeitasaolongodos
anos. Ao estudarmos mais profundamente sobre o assunto, constatamos que, a cada
reapropriação,oepisódioganhouformaeacréscimoscomoumahistóriaemtransformação,
quesemodificaaolongodotempo.Ouseja,háumfatohistóricocomoreferente,masacada
ponto,eàmedidaqueotempopassa,acrescenta-seumfatonovo.
Assim,seasnarrativasdeAssisBrasileD.Coimbravalem-sedodiscursohistórico,
por meio da voz do narrador dos romances e pela linguagem elas se deformam, graças a
alguns recursos narrativos que levam a história contada naqueles textos para além das
fronteirasda“verdade”.Porisso,nãosetratademeracópia;gera-seumnovoprodutoapartir
deumargumentosemelhante.EdessenovoprodutoemergeoespaçoemCãesdaProvíncia
paraoencontronomundodaimaginaçãodosdoisacontecimentoshistóricosqueabalarama
pacatacidadedePortoAlegre:oscrimesperpetradosporJoséRamoseaconturbadahistória
devidadeQorpo-Santo,ocasionandoopontoximodasubversãoàversãooficialquese
conhecedessescrimes.Aoproporoencontroficcionalnoentrelaçamentodessesdoiscasos,
Assis Brasil alarga o horizonte do mundo em que viveu José Ramos e Catarina Palse,
ampliandotambémoespaçoabarcadopeloseuolharirônicoecríticoarespeitodasociedade
burguesaporto-alegrensedoséculoXIX.EmCanibaiscria-seoespaçoparaCatarinaassumir
papel determinante nosescabrososcrimes:decúmplice elapassaa protagonista, levandoa
subversão à versão oficial ao seu ponto máximo. No romance de D. Coimbra ela é
transformada em mulher sedutora, envolvente, manipuladora, contribuindo para reforçar o
estereótipodofemininocondenadopelosocial.
OscrimesdaruadoArvoredo,nasnarrativasficcionais,abremespaçoparaalgumas
situaçõesnovasdentrodatrama.CãesdaProvínciafavoreceasoluçãodocasodeEusébioea
escritadapeçaintituladaOhomemqueenganouaProvíncia,moteparatrazeràluzatragédia
pessoal de cada um, através da investigaçãodacomoção que se apossoudacidade. Já em
Canibais,incorpora-seahistóriadepaixãodeWalterporCatarina,quefuncionanoromance
comotramaparalelaaoscrimes,permitindoquepaixãoemortecaminhemjuntas.Issosóé
possível porque a literatura trabalha não apenas com o acontecido, mas também com o
possível acontecimento. Os documentos históricos irrefutáveis do passado real são
aproveitados pela ficção, nutrindo ainda mais a polêmica diluição das fronteiras entre
literaturaehistória.
Comtaisacréscimosesubversões,osreferidosromances,alémdeproblematizarem
osdocumentosdopassado,proporcionamareleituracríticadahistóriaditaoficial
,
rompendo
comomodeloderomancehistóricotradicional,aquelepraticadoporWalterScottnoséculo
XIX. Cães da Província e Canibais enquadram-se no novo romance histórico por
constituíremdoisexemplaresromanescosplenamenteinseridosnanovamodalidadedeobra
ficcional de cunho histórico, que a partir do século XX despontou e permanece na cena
literária.
AsobrasselecionadastambémseencontramplenamenteinseridasnomodeloqueL.
Hutcheon chamou de metaficção historiográfica, ao priorizar a autorreferencialidade. No
corpusficcionalestãopresentesadiscussãodoqueéumtextoliterário,suasrelaçõescoma
história e a visão da própria história enquanto construção discursiva. Mais do que isso,
evidenciamosumanarrativainovadora,comadesconstruçãopropositaleconscientedotexto,
por meio de frequentes usos de ironia, humore demais estratégias narrativas, entre elas a
metaficção, a intertextualidade, a paródia, a carnavalização. Assis Brasil e D. Coimbra
ampliam ocampo daspossibilidades interpretativasa respeito dos fatosabordados. É para
essaquestãoqueametaficçãohistoriográficachamanossaatenção:arelativizaçãodetudoo
quefoipormuitotempoconsideradoverdadeincontestávelequeserevelapassíveldeoutras
interpretações,deoutrosolhares.Averdadeéplural,porqueéconstruídadiscursivamentea
partirdavariedadedeolharesedevozes.
Apesardeoepisódiosertrabalhadodeformadistintanasduasnarrativasficcionais,
emCãesdaProvínciaháoempenhodoautoremrecuperaroacontecimentohistóricoeos
elementosquecompõemasinistratrama.JáemCanibais,ofocorecaimuitomaisnatentativa
de recompor a história de vida do casal do que no episódio em si. Além dessas e outras
especificidades, que pretendemos ter trazido à luz nesta dissertação, ambos os romances
empenham-se e esforçam-se em capturar e reapresentar o real”, oferecendo-nos duas
instiganteseempolgantesversõesarespeitodoepisódiodaruadoArvoredo.Issoporquea
ficção é uma forma de saber como tantas outras. Na verdade, é discurso tão digno de
credibilidadecomoqualqueroutro, poisela operaumaleituradoreal, porvezes maisbem
feitaeverossímildoqueoschamadosdiscursosverídicoseobjetivosemcirculação.
REFERÊNCIAS
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delaCasadelasAméricas,n.202,p.9-18,ene.-mayo1996.
ALMEIDA,MariaFerreirade.Tornar-seoutro:oToposcanibalnaliteraturabrasileira.São
Paulo:Annablume,2002.
ANDERSON,Perry.Trajetosdeumaformaliterária.NovosEstudos.CEBRAP,SãoPaulo,n.
77,p.205-220,mar.2007.
ARIAS, Maria Helena de Moura. Ohomem que enganou a província ou asperipécias de
Qorpo-Santo: uma leitura de Cães da Província. São Paulo, 2008. Tese [Doutorado em
Letras]–FaculdadedeCiênciaeLetras.
ASSISBRASIL,LuizAntoniode.CãesdaProvíncia.8.ed.PortoAlegre:MercadoAberto,
1999.
_____.Históriaeliteratura.In:MASINA,Lea;APPEL,Mirna(Orgs.).Ageraçãode30no
RioGrandedoSul.PortoAlegre:Ed.daUniversidade,2000.p.257-261.
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Fontes,1999.
BAKHTIN, Mikhail.Aculturapopular naIdadeMédia e noRenascimento: ocontextode
FrançoisRabelais.SãoPaulo:Hucitec,1999.
_____.ProblemasdapoéticadeDostoievski.Trad.PauloBezerra.RiodeJaneiro:Forense
Universitária,2000.
_____.Dapré-históriadodiscursoromanesco.In:_____.Questõesdeliteraturaedeestética:
ateoriadoromance.4.ed.Trad.F.Bernardinetalli.SãoPaulo:EDUSP,1998.
BAUMGARTEN, Carlos Alexandre. O novo romance histórico brasileiro. Via Atlântica,
UniversidadedeSãoPaulo,DepartamentodeLetrasClássicaseVernáculas,n.4,p.168-177,
2000.
BERGERON,Bertrand.Auroyaumedelalégende.Chicoutimi:JCL,1988.
BORDINI,MariadaGlória.Narratividade,modoliterárioegêneronarrativoemOMandarim
deEçadeQueirós.LetrasdeHoje,PortoAlegre,PUCRS,v.26,n.1,p.21-47,mar.1991.
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BURKE,Peter.Abertura:anovahistória,seupassadoeseufuturo.In:BURKE,Peter(Org.).
Aescritadahistória:novasperspectivas.Trad.MagdaLopes.SãoPaulo:Ed.UNESP,1992,
p.8-37.
_____.Ainvençãodahistória.FolhadeSãoPaulo,11set.1994,p.6.
_____. As fronteiras instáveis entre história e ficção. In: AGUIAR, Flávio et al. (Orgs.).
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comédias.PortoAlegre:UFRGS,1969.p.11-67.
COIMBRA, David. Canibais: paixão e morte na Rua do Arvoredo. Porto Alegre: L&PM,
2008.
CORUJA FILHO. Datas rio-grandenses. Porto Alegre: Divisão de Cultura; Livraria do
Globo,1962,p.96-97.
DION,Sylvie.Alendaurbana:umgêneronarrativodegrandemobilidadecultural.Boitatá,
Londrina,GTdeLiteraturaOralePopulardaANPOLL,n.6,ago.-dez.2008.
DURAND,Gilbert.Camposdoimaginário.Lisboa:InstitutoPiaget,1996.
ELMIR,C.P.Ahistóriadevorada:norastrodoscrimesdaRuadoArvoredo.PortoAlegre:
Escritos,2004.
FIGUEIREDO,VeraFollain.Daalegriaedaangústiadediluirfronteiras:oromancehistórico
hojenaAméricaLatina.In:CÂNONESECONTEXTOS:anaisdo5º.CongressoABRALIC.
RiodeJaneiro:ABRALIC,1998.v.1,p.479-486.
_____. Da profecia ao labirinto: imagens da história na ficção latino-americana
contemporânea.RiodeJaneiro:Imago;UERJ,1994.
FIORIN,JoséLuiz.Linguagemeideologia.SãoPaulo:Ática,2000.
_____. Polifonia textual e discursiva. In: BARROS, Diana de L. P.; FIORIN, José Luiz.
(Org.).Dialogismo,polifoniaeintertextualidade.SãoPaulo:Edusp,2003.
FOUCAULT,Michel.Aspalavraseascoisas.SãoPaulo:MartinsFontes,1999.
FREITAS, Décio. Omaior crime daterra:oaçougue humanodaRuado Arvoredo: Porto
Alegre(1863–1864).PortoAlegre:Sulina,1996.
GINZBURG,Carlos.Ofioeosrastros:verdadeiro,falso,fictício.SãoPaulo:Companhiadas
Letras,2007.p.251.
HANCIAU,Nubia.Confluênciasentreodiscursohistóricoeficcional.In:_____.Afeiticeira,
personagemhistóricaemtrêsescritorasdaAméricafrancesa.Tese(DoutoradoemLiteratura
Comparada).UniversidadeFederaldoRioGrandedoSul,2001.p.107-116.
KRISTEVA,Julia.Apalavra,odiálogoeoromance:introduçãoàsemanálise.SãoPaulo:
Perspectiva,1974.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro:
Imago,1991.
_____.Teoriaepolíticadaironia.BeloHorizonte:Ed.daUFMG,2002.
_____.Umateoriadaparódia.Lisboa:Edições70,1989.
LEGOFF,Jacques.Ahistórianova.In:_____.Ahistórianova.SãoPaulo:MartinsFontes,
1998,p.25-64.
LESTRINGANT, Frank.O canibal:grandezaedecadência.Brasília:Ed.daUnB;Hucitec,
1997.
LUKÁCS,Georg.Lanovelahistórica.México:EdicionesEra,1996.
MÁRQUEZ RODRÍGUEZ, A. Evolución y alcances del concepto de novela histórica. In:
_____.Historiayficciónenlanovelavenezolana.Caracas:MonteÁvila,1991.p.15-54.
MENNA, André. Um qorpo santo na província: da história à ficção. Florianópolis, 2003.
Dissertação[MestradoemLiteratura]–UniversidadeFederaldeSantaCatarina.
MENTON, Seymor. La nuevanovela históricade la América Latina, 1979-1992. México:
FondodeCulturaEconómica,1993.
MINOIS,Georg.Históriadorisoedoescárnio.SãoPaulo:Unesp.2003.
MONTAIGNE,MichelEyquemde.Doscanibais.In:_____.Ensaios:livroI.Brasília:Ed.da
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MUECKE,D.C.Analysesdel’ironie.Poétique,Paris,Seuil,n.36,p.478-494,1978.
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PESAVENTO, Sandra Jatahy. Catarina come-gente: lingüiça, sedução & imaginário. In:
_____.Ossetepecadosdacapital.SãoPaulo:Hucitec,2008.p.23-89.
_____. Leituras cruzadas: diálogos da história com a literatura. Porto Alegre: Ed. da
Universidade,2000.
_____.Contribuiçõesdaliteraturaedahistóriaparaaconstruçãodocidadão:aabordagemda
identidade nacional. In: LEENHARDT, Jacques; PESAVENTO, Sandra Jatahy (Orgs.).
Discursohistóricoenarrativaliterária.SãoPaulo:Ed.daUnicamp,1998.
PESSOTI,Isaías.Vantagensdoturismotemporal.FolhadeSãoPaulo,11set.1994,p.6-6.
PERRONE-MOYSÉS,Leyla.Acriaçãodotextoliterário.In:_____.Floresdaescrivaninha:
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MERCANTIL,PortoAlegre,ano16,n.85,20abr.1864,p.2,apudELMIR,2004,p.265-
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MERCANTIL,PortoAlegre,ano16,n.86,21abr.1864,p.2,apudELMIR,2004,p.267.
MERCANTIL,PortoAlegre,ano16,n.87,22abr.1864,p.2,apudELMIR,2004,p.268.
MERCANTIL,PortoAlegre,ano16,n.90,26abr.1864,p.1,apudELMIR,2004,p.269.
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