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UNIVERSIDADE
ESTADUAL DE LONDRINA
SERAFINA FERREIRA MACHADO
A RAIVA NA LITERATURA:
UMA LEITURA DE AS MULHERES DE
TIJUCOPAPO
LONDRINA
2010
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SERAFINA FERREIRA MACHADO
A RAIVA NA LITERATURA:
UMA LEITURA DE AS MULHERES DE TIJUCOPAPO
Tese de Doutorado apresentada ao Curso
de pós-Graduação em Letras, da
Universidade Estadual de Londrina, como
requisito parcial para obtenção do título de
Doutor.
Orientadora: Profª. Dra. Gizêlda Melo do
Nascimento
LONDRINA
2010
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SERAFINA FERREIRA MACHADO
A RAIVA NA LITERATURA:
Uma leitura de As mulheres de Tijucopapo
Tese de Doutorado apresentada ao Curso
de pós-graduação em Letras, da
Universidade Estadual de Londrina, como
requisito parcial para obtenção do título de
Doutor.
Orientadora: Profª. Dra. Gizêlda Melo do
Nascimento
COMISSÃO EXAMINADORA
____________________________________
Profª. Dra. Gizêlda Melo do Nascimento
(Orientadora)
Universidade Estadual de Londrina
____________________________________
Profª. Dra. Tania Regina Oliveira Ramos
Universidade Federal de Santa Catarina
____________________________________
Profª. Dra. Cleide Antonia Rapucci
Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho, UNESP
____________________________________
Profª. Dra. Marta Dantas da Silva
Universidade Estadual de Londrina
____________________________________
Profª. Dra. Regina Célia dos Santos Alves
Universidade Estadual de Londrina
Londrina, 22 de Novembro de 2010.
Dedico este trabalho para
Minha mãe, Angelina.
Minha irmã, Marluz.
AGRADECIMENTOS
A tese foi feita, é certo, de muitas horas de leitura, dias passados em
bibliotecas, longas conversas com colegas, professores e especialistas. Mas ela
resulta também do contanto com amigos e simples conhecidos, bem como de
situações vividas. De uns e outras se foi acumulando uma experiência de vida,
recheada de certezas que se tornam dúvidas, de ilusões que se esfumam, de
sucessos que gratificam. A todo esse mundo que se dilui no tempo e se confunde na
memória deixo o meu reconhecimento.
Agradeço a Deus, pela fortaleza nos momentos de desânimo e discernimento
para trabalhar com o meu tema.
Sinceros agradecimentos a professora Gizelda Melo do Nascimento, uma das
responsáveis por esse trabalho, que aceitou ser a orientadora do projeto. Com rara
sensibilidade, ela soube associar à exigência de rigor científico sua paciência e
sabedoria, me deu, vigilante, grande espaço e liberdade. Foram de extrema
importância as longas conversas, conselhos, direções. Mais que uma orientadora, foi
para mim um exemplo de Professora e Amiga.
Agradeço à minha família pelo apoio e incentivo durante a realização deste
trabalho.
Agradeço ao coordenador do Programa de Pós-Graduação Prof. Dr. Frederico
Augusto Garcia Fernandes e aos demais professores do Programa de Pós-
Graduação em Letras da UEL.
Aos antigos mestres que me estimularam à leitura de obras literárias: Neusa
Ceciliato de Carvalho, Luiz Carlos Simon, Loreda Límoli. São pessoas que
colaboraram direta ou indiretamente no processo de construção desta tese.
Ao Prof. Dr. Sérgio Paulo Adolfo, meu professor desde a graduação, por ter
despertado meu interesse pelas questões afro-brasileiras, o que me levou a
conhecer a escritora Marilene Felinto e por sua instigante arguição e estímulo ao
meu trabalho.
À Profa. Dra. Marta Dantas, que me ofereceu, também durante o exame de
qualificação, muitas sugestões, exemplos e críticas fundamentais à reelaboração e
aprumo da abordagem que eu vinha fazendo de meu tema. Agradeço pelas
excelentes sugestões oferecidas, mesmo se algumas delas não pude (ou soube)
aproveitar devidamente.
Ao amigo Dejair Dionísio pelos constantes apoios, o que sempre me motivou
a continuar o meu trabalho e pela elaboração do meu Résumé.
Ao amigo Marcos, companheiro querido, por partilhar comigo todo o processo
de produção da tese, desde o projeto de pesquisa, sendo minha mais importante
fonte de apoio intelectual e afetivo, sem os quais certamente esta tese não chegaria
ao fim.
À CAPES do Ministério da Educação por ter me concedido a bolsa para a
realização do Doutorado.
A todos agradeço, profundamente, e dedico o resultado do trabalho.
MAR BRAVO
Mar que ouvi sempre cantar murmúrios
Na doce queixa das elegias,
Como se fosses, nas tardes frias
De tons purpúreos,
A voz das minhas melancolias.
Com que delícia neste infortúnio,
Com que selvagem, profundo gozo,
Hoje te vejo bater raivoso,
Na maré-cheia de novilúnio,
Mar rumoroso!
Com que amargura mordes a areia,
Cuspindo a baba da acre salsugem,
No torvelinho de ondas que rugem
Na maré-cheia,
Mar de sargaços e de amarugem!
As minhas cóleras homicidas,
Meus velhos ódios de iconoclasta,
Quedam-se absortos diante da vasta,
Pérfida vaga que tudo arrasta,
Mar que intimidas!
Em tuas ondas precipitadas,
Onde flamejam lampejos ruivos,
Gemem sereias despedaçadas.
Em longos uivos
Multiplicados pelas quebradas.
Mar que arremetes, mar que não cansas,
Mar de blasfémias e de vinganças,
Como te invejo! Dentro em meu peito
Eu trago um pântano insatisfeito
De corrompidas desesperanças!...
(Manuel Bandeira)
MACHADO, Serafina Ferreira. A raiva na literatura: Uma leitura de As mulheres
de Tijucopapo. 2010. Tese (Doutorado em Letras) Universidade Estadual de
Londrina, Londrina, 2010.
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo uma análise do romance As mulheres de
Tijucopapo, de Marilene Felinto, centrada na questão da raiva, observando este
sentimento como uma forma de comunicação que revela importantes informações
sobre os obstáculos opressivos encontrados pelas pessoas, sinalizando a
necessidade de mudança. Através de um diálogo com as teorias de Lowen (1997),
Spelman (1989), Thomas (1993), e outros, demonstraremos que este sentimento
influencia a vida da protagonista Rísia, tornando-se a grande temática da obra. A
presença da raiva no romance permite a aplicação do sentimento ao universo
linguístico do texto e à própria condição existencial da narradora. Destacaremos, na
obra, uma linguagem metafórica, sendo que as metáforas da raiva permitem
verificar como estas construções carregadas de projeções universais traduzem
fatores culturais e contextuais em sua convencionalização lexical. Esta análise
metafórica será fundamentada pelos teóricos Lakoff e Johnson (2002), Lakoff e
Kovecses (1987), Kovecses (1999, 2000). Observaremos, também, a raiva como
base de uma estética. Baseando-se nos estudos de Theodor Adorno (1988)
demonstraremos que a tensão da obra é reveladora de uma tensão externa. Ou
seja, a realidade conflitiva e tensa, não pode formular-se somente em nível temático,
mas, igualmente em âmbito formal. Desta forma, o romance se estrutura tal qual um
labirinto revelador do caos interior da protagonista; caos que se reflete na estrutura
da obra, marcada pela completa dissolução de categorias tradicionais como espaço,
tempo da narrativa, personagens. Acima de tudo, a raiva, no romance, pode ser
entendida como forma de empoderamento, como transgressão e transformação de
uma realidade social, traduzindo o objetivo da protagonista Rísia em descobrir-se,
de (re)tecer sua identidade.
PALAVRAS-CHAVE: Raiva. Movimento. Estética. Mulher. Identidade. Transgressão.
MACHADO, Serafina Ferreira. The anger in the literature: A Women of
Tijucopapo reading. 2010. Theory (Doctorate in Letters) Universidade Estadual
de Londrina, Londrina, 2010.
ABSTRACT
The present work has as objective an analysis of the novel The women of
Tijucopapo, of Marilene Felinto, centered in the subject of the rage, observing this
feeling as a communication form that reveals important information on the oppressive
obstacles found by the people, signaling the change need. Through a dialogue with
the theories of Lowen (1997), Spelman (1989), Thomas (1993), and other, we will
demonstrate that this feeling influences the protagonist's life Rísia, becoming the
great theme of the work. The presence of the rage in the novel allows the application
of the feeling to the linguistic universe of the text and the narrator's own existential
condition. We will highlight, in the work, a metaphorical language, and the
metaphors of the rage allow verifying as these constructions loaded of universal
projections translate cultural and contextual factors in its lexical conventionalization.
This metaphorical analysis will be based by theoretical Lakoff and Johnson (2002),
Lakoff and Kovecses (1987), Kovecses (1999, 2000). We will observe, also, the rage
as base of aesthetics. Basing on Theodor Adorno's studies (1988) we will
demonstrate that the tension of the work is developing of an external tension. In
other words, the conflictive and tense reality, it cannot only be formulated in thematic
level, but, equally in formal extent. This way, the novel is structured just like a maze
that it reveals the protagonist's interior chaos; chaos that is reflected in the structure
of the work, marked by the complete dissolution of traditional categories as space,
time of the narrative, characters. Above all, the rage, in the romance, it can be
understood as empowerment form, as transgression and transformation of a social
reality, translating the protagonist's objective Rísia in discovering herself, in (re)
weaving her identity.
Key words: Angry. Movement. Aesthetic. Woman. Identity.Transgression
MACHADO, Serafina Ferreira. La colère dans la littérature: une lecture des
Femmes de Tijucopapo. 2010. Théorie (Doctorat dans Lettres) Universidade
Estadual de Londrina, Londrina 2010.
RÉSUMÉ
Le travail présent a comme une analyse objective du roman les femmes de
Tijucopapo, de Marilene Felinto, centré dans le sujet de la colère, observant ce
sentiment comme une forme de communication qui révèle des informations
importantes sur les obstacles oppressants trouvés par les gens(le peuple), signalant
le besoin de changement. Par un dialogue avec les théories de Lowen (1997),
Spelman (1989), Thomas (1993) et d'autre, nous démontrerons que ce sentiment
influence la vie du protagoniste Rísia, le devenir le grandthème du travail. La
présence de la colère dans le roman permet la l'application du sentiment à l'univers
linguistique du texte et de la propre condition existentielle du narrateur. Nous
mettrons en évidence, dans le travail, une langue métaphorique et les métaphores
de la colère permettent de vérifier comme ces constructions chargées de projections
universelles traduisent des facteurs culturels et contextuels dans son
convencionalizacion lexical. Cette analyse métaphorique sera basée par Lakoff
théorique et Johnson (2002), Lakoff et Kovecses (1987), Kovecses (1999 2000).
Nous observerons, aussi, la colère comme la base d'une esthétique. Le basant sur
les études de Theodor Adorno (1988) nous démontrerons que la tension du travail se
développe d'une tension externe. Autrement dit, la réalité conflitive et le temps, il ne
peut pas seulement être formulé dans le niveau thématique, mais, également dans la
mesure formelle. Cette voie, le roman est structuré comme un labyrinthe de
développement du chaos intérieur du protagoniste; le chaos qui est reflété dans la
structure du travail, marqué par la dissolution complète de catégories traditionnelles
comme l'espace, le temps du récit, des personnages. Par dessus tout, la colère,
dans le roman, il peut être compris comme la forme de le pouvoir, comme la
transgression et la transformation d'une réalité sociale, traduisant l'objectif du
protagoniste Rísia dans sur découverte, de (re)tissant sa identité.
CLÉ MOTS : Colère; Mouvement; Esthétique; Femme; Identité; Transgression.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11
1. Silêncios Coletivos, Vozes Coletivas: a apropriação da raiva ...............................20
1.1. Raiva: uma resposta do ego ................................................................. 23
1.2. Raiva: um tesouro roubado .................................................................. 28
1.3. Tradução literária da raiva .................................................................... 40
2. Marilene Felinto: a escrita em riste ...................................................................... 51
2.1. A escrita como representação do eu .................................................. .51
2.2. Escrita em riste ..................................................................................... 60
2.3. Línguas selvagens não podem ser domadas: Mulher, identidade e
raiva ..................................................................................................................
.... 77
3. A construção da narrativa da raiva em As Mulheres de Tijucopapo ....................
91
3.1. As mulheres de Tijucopapo: temática e estrutura .................................
94
3.2. O discurso metafórico de Rísia ........................................................... 121
4. Dentro do labirinto: a raiva como base de uma estética .................................... 140
4.1. O sujeito em As mulheres de Tijucopapo: trauma e aniquilação ........ 146
4.2. Estética da raiva: o percurso no labirinto existencial …..................... 160
5. Identidade que (re)volta: raiva como transgressão e transformação …............. 183
5.1. Em busca da identidade, em busca de voz …................................... 184
5.2. Mulheres guerreiras: Mulheres de Tijucopapo …................................ 199
5.3. A raiva como transgressão e transformação...................................... 213
Considerações finais .......... ................................................................................... 232
Referências bibliográficas ...................................................................................... 239
INTRODUÇÃO
Em relação à mulher, não é difícil constatar que na história literária, sobretudo
no contexto americano, mais especificamente o brasileiro, perpassa um discurso sobre
“o outro”, no qual se institui uma diferença confundida e assumida como desigualdade e
inferioridade. Esses discursos criam representações nutridas por estigmas e
preconceitos que permeiam os diversos segmentos sociais, além de reproduzir
estereótipos que a inferiorizam e subjugam, através de qualitativos imbuídos de
imagens de subalternidade, inferioridade. Estas conceitualizações desqualificadoras de
mulher, na literatura, tinham o objetivo de que estas aceitassem uma “estética da
renúncia”, para, usando as palavras de Fanon (1983: 51), “fugir à sua individualidade,
(...) aniquilar este seu ser”. Silenciada, à mulher restaria acatar, na ordem simbólica, um
tipo domesticado de comportamento fixo, estereotipado.
Não dúvidas que a condição feminina se reflete na escrita literária, ou seja,
a literatura contracena com o social e o político, revelando a revolta diante da situação
vigente, o desejo de emancipação e a transgressão à ordem instituída. Na literatura
escrita por mulheres, por vezes, a história individual de cada uma das protagonistas
enreda-se à história coletiva do país. de se considerar, portanto, que existe uma
presença resistente de escritoras que elaboram outra representação de si, de suas
histórias e do universo que as circundam. Ressignificam, pois, histórias e vivências,
bem como tecem afirmativamente uma escrita de si e uma auto-representação. O
resultado destas práticas é a busca por outras centralidades e por des-hierarquização
de saberes e do processo de elaboração artística. Suas obras, portanto, nos levam a
pensar que se trata de uma criação artística cuja intenção seria provocar abalos no
cânone literário, descolonizando a identidade autoral.
A literatura feminina, desta forma, aparece como um espaço privilegiado para o
exercício do autoconhecimento e para a (re)construção de uma imagem positiva da
mulher, criando mudanças profundas na identidade e no uso da voz.
11
Assim, um dos focos desta pesquisa será a observação do descontentamento e
a denúncia do culto da domesticação e da submissão que ligaram a identidade feminina
a uma linguagem servil.
Antes, no entanto, é preciso ressaltar que a não-domesticação, a não
submissão, – aqui representadas pelo ato de falar, por uma “língua incontrolável”, para
usarmos o termo de Martha CUTTER (1999) que se tornaram forças de instabilidade
social, foram duramente punidas por estereotipias, de maneira a criticar e controlar
esta imagem subversiva. Tais comportamentos culturais levam-nos a concluir que a
“voz” da mulher foi temida porque reflete um uso efetivo da língua, uma língua difícil de
ser controlada.
A raiva representa uma das vertentes desta voz-requisição, como voz
libertadora: uma forma de entrar na arena do interdito. Assim, no discurso feminino, é
possível verificar a exigência da voz e como a mulher transcreve sua maneira de
pensar, de se auto-apresentar, (re)construindo sua identidade.
Expor a raiva foi, pois, um dos passos decisivo na (des)construção do conceito
tradicional de mulher; o que nos permite pensar o sentimento de raiva, transcrito e
tornado letra no corpo da escrita. Desta forma, como ferramentas de análise ou
possibilidades teóricas de abordagens, a nossa proposta é considerar, ao longo da
pesquisa, os seguintes pilares: gênero, singularidade, imaginário sociocultural,
voz/silêncio, opressão, violência e identidade.
Através dos testemunhos narrativos podem-se reconhecer as cicatrizes das
discriminações sobre a mulher. Assim sendo, a exposição dos sentimentos através da
fala permite perceber a individualidade; o que derruba a idéia da existência fixa,
estereotipada, e revela a existência de mulheres, com suas diferentes posições de
enunciação.
Pelo poder que a palavra enunciada, anunciada e impressa possui, as
mulheres têm conseguido nomear seus mal-estares através de metonímias, metáforas
ou mesmo corporalmente, utilizando uma linguagem, em alguns momentos, mesclada
pelo sentimento da raiva. Para tanto, elas têm buscado tanto as palavras como o
silêncio para poderem exprimi-los, exercendo assim seu direito à voz.
12
Tal enunciação, embora estejamos denominando como uma expressão da
raiva, da violência, não deseja medir forças com o logos, mas tenta escapar às
trapaças que propõem a inscrição do feminino dentro da dinâmica do mesmo, do
único, do igual, maniqueisticamente. A partir desta questão, buscaremos investigar a
narrativa que deseja escapar das representações inferiorizantes (que nada fazem além
de manifestar a aceitação submissa aos padrões culturais das significações
dominantes).
Nesse sentido, o mal-estar, a raiva presente no discurso feminino, são as
passagens metafóricas da escrita feminina, tal como o bordado, que cresce ao
(re)tecer-se nos entremeios dos furos dos tecidos. Interessante pensar que, na esfera
mítica, no que concerne à relação entre a mulher e a tessitura, mitos que se
destacam pela evidência que o fiar, o bordar, o tecer e o costurar são utilizados pelas
figuras femininas como um meio de determinar destinos de outras figuras, da
humanidade, ou do seu próprio futuro. Entre esses mitos, destacamos os de Penélope
1
,
Aracne
2
, Ariadne
3
, Parcas (ou Moiras)
4
e o de Filomela
5
. Em todos estes exemplos, a
mulher borda ou tece não apenas como distração, para ocupar um tempo livre ou
porque essa é a única opção que lhe resta. O trabalho por ela produzido é um meio que
1
Quando Ulisses parte para a guerra de Tróia, pede a Penélope que não se case enquanto ele não voltar. Durante três anos, consegue esquivar-se
aos pretendentes, afirmando que se decidiria por um deles quando terminasse de tecer uma mortalha para Laertes, pai de Ulisses. Penélope tece
durante o dia, e à noite desmancha o trabalho, nunca terminando-o. Espera por Ulisses por vinte anos, tornando-se o símbolo da fidelidade conjugal,
no dizer de Brandão (1991, p. 256). Ver também o verbete “Penélope”, de Denise Dummith, em BERND, Zilá (org.). Dicionário de figuras e mitos
literários das Américas. Porto Alegre: Tomo Editorial/Editora da Universidade, 2007. p. 512-518.
2
Aracne também está ligada à arte de tecer e bordar, responsável por belas tapeçarias que retratam os amores dos deuses. Vangloria-se de serem
seus trabalhos superiores aos de Minerva (Atenas), por isso, audaciosa, desafia-a para uma disputa. Irritada com a superioridade da mortal, a Deusa
lhe golpeia a cabeça com a lançadeira. Aracne não quer sobreviver a esta afronta: enforca-se. Minerva a metamorfoseia em aranha, que continua a fiar
e a tecer por toda a eternidade. (BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Volume II. Petrópolis: Vozes, 1987)
3 Apaixonada por Teseu, quando este vai a Creta para lutar contra o Minotauro, Ariadne dá ao herói ateniense um novelo de fio que lhe possibilita sair
do labirinto.
4
As Parcas (nome latino das Moiras) recebem nomes que correspondem às suas funções: Cloto, a fiandeira, tece o fio da vida de todos os seres
humanos, desde o nascimento; Láquesis, a fixadora, determina-lhe o tamanho e enrola o fio, estabelecendo a qualidade de vida que cabe a cada um;
Átropos, a irremovível, corta-o, quando a vida que representa chega ao fim. Deusas do Destino, elas presidem os três momentos culminantes da vida:
o nascimento, o matrimônio e a morte. São representadas como velhas ou, mais freqüentemente, como mulheres adultas de aspecto severo.
(BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Volume II. Petrópolis: Vozes, 1987)
5 Filomela é filha do rei de Atenas e irmã de Procne, casada com Tereu, rei da Trácia. Apaixonado por Filomela, Tereu violenta-a e, em seguida, corta-
lhe a língua, para que ela não o delate. A jovem, por meio de um bordado, revela o acontecido. Procne, revoltada, mata Ítis, o filho que nascera de sua
união com Tereu; cose-o e serve-o ao marido. Quando este toma conhecimento do crime, sai em perseguição das duas irmãs. Alcança-as em Dáulis,
na Fócida. Os deuses, invocados pelas jovens, transformam Filomela em rouxinol e Procne em andorinha. (BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia
Grega. Volume II. Petrópolis: Vozes, 1987)
13
carrega sua atitude ou vontade de expressão e de comunicação com o mundo, ainda
que seja através do ato violento de furar o tecido: uma agressividade necessária para
inserir novos sentidos e visões. A escrita, da mesma forma que o bordado, é uma
atividade de re(inscrição), de (re)tecer sentidos e significados construídos a partir da
subjetividade feminina. A escrita das mulheres, neste sentido, pode ser considerada
como o tecido epidérmico, uma vez que a palavra tecido tem a mesma raiz etimológica
de texto. Ao mesmo tempo, este ato de (re)escrever se compara ao bordado - que,
etimologicamente, origina-se do verbo bordar (borda, margem, extremidade) o que
sugere uma escrita que, ao contrário de cobrir, coloca em relevo, sugere o lugar do
outro. Escrita que busca dar visibilidade, bordeando o espaço feminino. No ato de
escrever (tecer-bordar(ear), o corpo-texto se constitui suporte, ou seja, é a folha em
branco, mas também é letra. Letra sobre a superfície de uma página que é a imagem
do próprio e dos diversos corpos-textos do feminino. Corpos ainda considerados
menores, estando à margem do cânone institucional, reconhecido como modelo
literário.
A ação de bordar nos faz lembrar o expressionismo alemão, mais
especificamente a técnica de xilogravura, onde a imagem é produzida escavando-se a
matéria sólida, resistente; depois se espalha tinta sobre o relevo da figura e, finalmente,
imprime-se em papel. A imagem conserva os traços destas operações manuais (atos
de violência contra a matéria) na escassez parcimoniosa do signo, na rigidez e
angulosidade das linhas. Sob esta ação rude e agressiva da técnica, surge a obra de
arte.
Utilizando uma linguagem agressiva, ácida, questionadora, violenta, muitas
escritoras vêm exigindo um repensar do cânone literário através de uma literatura não
mais comportada ou submissa, através de uma literatura da raiva. Observa-se um
processo de criação cujo ato de violência traduz o objetivo de fazer arte, de gerar uma
escrita ressignificada.
Ao se propor o conhecimento de uma “Literatura da raiva”, observaremos que
esta sempre esteve presente, como uma energia motivadora, influenciando a escrita.
Basta pensar nos versos de Ilíada, de Homero: “Canta, Oh deuses, a raiva de Peleus,
filho de Aquiles”. A raiva foi, pode-se verificar, a energia de muitas lendas gregas,
14
épicas e também de muitos dramas trágicos. Sem esta paixão não teríamos a batalha
entre Aquiles e Menelau, não teríamos um Prometeu, nem um Édipo. A concepção da
agressividade divina serve para validar o poder da raiva na literatura, sendo que a
influência deste sentimento pode ser notada em poetas como Dante, Miltom, Blake,
Pound, Lawrence. O poeta russo Mandelstam exclama: “Literatura da raiva! Sem você,
como eu poderia ter provado o sal da terra?”. No entanto, quando uma mulher
manifesta sua indignação, tal sentimento passa a ser considerado um incômodo, um
aborrecimento. Esta atitude servirá, muitas das vezes, como álibi para comprovar o
discurso de que a mulher seria essencialmente histérica. Contudo, por ser uma forma
de auto-afirmação, a indignação deve ser reconhecida na escritura da resistência, pois,
como veremos, esta indignação traça um processo para a (re)construção da
identidade. No interior da expressão do sentimento de raiva, deste não conformismo, há
uma rejeição aos modelos que fixaram o feminino como apêndices da sociedade,
reservando-lhes, nas palavras de Miriam Alves (1985), o “estendal de seu
esquecimento”, possibilitando, pois, o (re)conhecimento de outra tradução literária
deste segmento social. Desta forma, no aprofundamento das literaturas femininas,
pode-se reconhecer não a raiva “histérica” de seres descontrolados, irracionais, mas
sim uma raiva consciente, como símbolo e sintoma de uma cobrança por voz e imagem
históricas ressignificadas.
Assim, abordaremos a ruptura das imagens de conformismo, submissão,
enfocando a angústia e agressividade na obra de Marilene Felinto que atua num eixo
desconstrutor, corrosivo, ao lançar mão da palavra para insinuar uma escrita
comprometida com o social, mas que ao mesmo tempo não abre mão da estética do
texto. O que se verifica, acima de tudo, é o tom de resistência e rejeição em relação à
condição histórica feminina. E o tom de raiva que perpassa sua obra de estréia, As
mulheres de Tijucopapo, leva-nos a considerar que a emoção que acompanha os
primeiros passos para a libertação é, em muitos casos, a raiva. Através do exercício da
raiva se ganha força. Além disso, a raiva significa também uma experiência de troca. A
princípio, configurada como o esforço para entendermos a situação das mulheres numa
coletividade e, em seguida como exteriorização dos próprios sentimentos. Ao longo do
15
romance, observamos que controlada, dirigida, mas acima de tudo, apaixonada, a raiva
move-se do pessoal para o político e se torna uma força que orienta o destino.
A proposta de pesquisar a raiva no discurso de Marilene Felinto permite
perceber o testemunho de uma vivência, como também, uma literatura de caráter
eminentemente político, em que a escritura transforma-se em voz coletiva, voz que se
propõe a desvelar as formas de violência que marcaram e/ou ainda marcam as
relações entre homens e mulheres.
Ao focalizar a raiva neste romance pretendemos investigar a capacidade deste
sentimento de se tornar uma fonte poderosa de energia que serve ao crescimento e à
mudança.
Partindo destes pressupostos, no capítulo 1, Silêncios coletivos, vozes
coletivas: a apropriação da raiva, será focada a apropriação deste sentimento como
uma forma de resposta às violências físicas e ideológicas. Serão investigados os
conceitos de raiva, observando a emoção geradora que provem deste sentimento e
como este serve de pilar para a análise da produção feminina. Ou seja, durante a
exposição procurar-se-á identificar as fontes da raiva e analisar como a raiva assume
uma expressão literária, podendo ser usada como um paradigma para a compreensão
das maneiras pelas quais as mulheres, em momentos históricos diferentes,
responderam às diversas formas de opressão através da criação literária. De acordo
com GRASSO (2002) tomar a raiva como um fulcro analítico, permite desenhar uma
história da literatura feminina onde se reconhece a complexidade inventiva e travessias
de limites raciais.
Ao buscar o significado literário da raiva, espera-se não demonstrar a
importância do paradigma de raiva para a compreensão do período atual, mas também
para outros momentos históricos. Assim sendo, o objetivo que se pretende alcançar é
a definição de bases para uma “revisão”, no intuito de adentrar o texto literário com
olhos renovados
No capítulo 2, Marilene Felinto: uma escrita em riste, observaremos que Felinto
privilegia uma escrita de si, mas sua prosa é superior ao discurso autobiográfico, pois a
escritora não tem como prioridade contar sua vida, mas elaborar um texto artístico, no
qual sua vida é uma matéria contingente. Demonstraremos que, em sua obra, a dor, a
16
raiva e o movimento aparecem intimamente ligados. Perceberemos que a reflexão
sobre qualquer um desses aspectos leva necessariamente a um projeto de construção
literária que visa a invenção permanente. Para Felinto, a linguagem é instrumento de
busca e rebelião: um instrumento de adequação metafísica, na medida em que se
entrega fielmente a conquista da realidade. Um instrumento que se lança na esfera do
mito, de volta à origem mágica, na medida em que propõe uma reintegração do homem
na totalidade. Verificaremos que, de modo geral, Felinto coloca a linguagem sob o crivo
de uma crítica demolidora, como condição fundamental para a revelação da realidade
O capítulo 3, A construção da narrativa da raiva em As mulheres de
Tijucopapo, representa uma viagem rumo ao primeiro romance de Marilene Felinto. O
capítulo constitui uma análise narratológica, em que se põe em evidência o uso da
raiva. Ao longo deste capítulo, vamos demonstrando como a raiva aparece como
grande temática da obra, podendo ser reconhecida na atitude da protagonista, em seu
relacionamento com os pais, na escola, em sua vida diária. O objetivo é destacar cenas
de agressividade que evidenciam a presença deste sentimento. Ainda neste capítulo,
apresentamos uma análise das construções metafóricas presentes na obra, com o
objetivo de abordar a linguagem literária utilizada na caracterização da raiva. Esta
análise será fundamentada pelos teóricos Lakoff e Johnson (2002), Lakoff e Kovecses
(1987), Kovecses (1999, 2000), dando ênfase à leitura das emoções e sentimentos
através da demonstração das metáforas de contentores. Estas pesquisas demonstram,
também, a importância do corpo humano nas teorias da linguagem e do sentido. Esse
enfoque de base neurobiológica não implica, no entanto, a exclusão ou
secundarização dos fatores interacionais, sociais e culturais no uso e na construção da
linguagem. Como postula Kovecses (1999), as metáforas devem ser concebidas,
simultaneamente, como fenômenos linguisticos, sociais, culturais, conceituais e
neurais; sua universalidade e variedade dependem da base neuro-corporal e da
experiência sociocultural dos usuários da linguagem. Ao observar as metáforas da
raiva no romance, queremos verificar como estas construções carregadas de projeções
universais traduzem fatores culturais e contextuais em sua convencionalização lexical.
Continuando está linha de investigação em torno de As mulheres de
Tijucopapo, no capítulo 4, Dentro do labirinto: a raiva como base de uma estética,
17
procuraremos entender a raiva como um labirinto, pois este sentimento sugere que nos
encontramos à frente de um processo de transformação que, ao preço de uma
experiência fatigante, conduz a narradora ao centro de si, onde ela, sozinha diante da
própria realidade interior, intenta adquirir a Consciência Fundamental para alcançar a
própria identidade. Rísia, a protagonista, em virtude dos traumas da infância, feridas
que não cicatrizam nem mesmo diante da maturidade, tem sua subjetividade
aniquilada, fragmentada. Este caos interior se reflete na estrutura da obra, através da
subversão da estrutura narrativa, marcada pela completa dissolução de categorias
tradicionais como espaço, tempo da narrativa, personagens. Há, ainda, a quebra da
linearidade, fragmentação, interrupções. A estrutura narrativa, como veremos, adquire
uma estrutura circular, labiríntica, sugerindo o percurso da narradora, um caminho que
se enreda, se complica, se fragmenta em uma série de ilusões e caminhos enganosos
que não oferecem mais a certeza de chegar ao centro e, uma vez chegado, não
permite mais a certeza de encontrar a saída. O labirinto se torna, então, o lugar da
perdição, do erro, do mistério, da aventura, da descoberta, em que as coordenadas de
tempo e espaço desaparecem para ceder lugar ao “acaso”, transformando o mundo
ulterior em um caos sem sentido possível. Todas as certezas diminuem; os
conhecimentos adquiridos parecem encontrar-se em crise.
Tal estado de choque determina a fragmentação de uma personalidade não
mais desejada. A narradora se interroga sobre a sua origem, por isso seu percurso
pode ser visto como uma pesquisa sobre a sua identidade pessoal, a fim de determinar
para onde se dirigir. Descobre, assim, as dificuldades consequentes que deve resolver;
e, portanto, deve individualizar e estabilizar o centro, o seu interior, a fim de recompor
a sua unidade perdida.
O labirinto é a via que conduz ao interior de si próprio, que não pode ser
alcançado pela consciência se não depois de uma longa caminhada (a espiral). Uma
longa caminhada, necessária para domar o monstro interior, os sentimentos de raiva
acumulados. Representa, portanto, uma profunda reflexão pessoal, uma metáfora da
procura de Rísia, a partir da qual o crescimento humano e a posse de uma linguagem
individual são possíveis.
18
Finalmente, no quinto capítulo, Identidade que (re) volta: A raiva como
transgressão e transformação, observaremos que a raiva, no romance, pode ser usada
como forma de empoderamento, como transgressão e transformação de uma realidade
social, traduzindo o objetivo da protagonista Rísia em descobrir-se, de (re)tecer sua
identidade.
É preciso verificar como as imagens que acompanham a expressão do
sentimento de raiva são ressignificadas, bordando uma identidade. O romance
representa, assim, de forma incisiva, a luta do sujeito na reconstrução de uma
identidade essencialmente fragmentada. Nessa perspectiva, põe em evidência aquilo
que Hall (2002, p. 39) define como identificações à luz da modernidade tardia. Para o
teórico em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de
identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não tanto
da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta
de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das
quais imaginamos ser vistos por outros.
É preciso entender a (re)volta de Rísia, o espaço de Tijucopapo, a busca da
história de sua mãe, Adelaide, como via possível para buscar o começo da sua própria
história, vingar a sua dignidade perdida e reencontrar-se com o “eu” de sua infância.
Estaremos diante, portanto, de um percurso em busca de si, em busca de uma
identificação, de um preenchimento.
Neste processo chegaremos com Rísia a Tijucopapo que é um bairro pobre do
Recife, um lugar geográfico, um lugar histórico, e, sobretudo, um lugar símbolo da
resistência feminina.
CAPÍTULO 1: SILÊNCIOS COLETIVOS, VOZES
COLETIVAS: A APROPRIAÇÃO DA RAIVA
19
[...] mulheres de toda sorte e toda
sorte de mulheres no nosso mundo de
homens. Mas, do que pouca gente sabe é
que há duas categorias antagônicas de
mulheres cujo conhecimento é da maior
utilidade, de vez que pode ser
determinante na relação desses dois
sexos que eu, num dia feliz, chamei de
“inimigos inseparáveis”. São as mulheres
“ácidas” e as mulheres “básicas”,
qualificação esta tirada à designação
coletiva de compostos químicos que, no
primeiro caso, são hidrogenados, de
sabor azedo; e no segundo, resultam da
união dos óxidos com a água e devolvem
à tintura do tornassol, previamente
avermelhada pelos ácidos, sua primitiva
cor azul.
(Vinicius de MORAIS. Química Orgânica)
Em “Química Orgânica”, da obra Para Viver Um Grande amor, de 1962,
Vinícius de Moraes aborda uma questão fundamental: as mulheres são diferentes,
reagem de maneiras diversas num “mundo de homens”.
Interessante notar que esta obra, composta após a publicação de “Garota de
Ipanema” – ícone da mulher moderna e emancipada (sobretudo em relação ao corpo)
demonstra que, embora o autor tenha criado, ao lado de Jobim, uma representação da
Nova Mulher, ainda resta em suas obras resquícios de uma formação patriarcal. Assim,
em plenos anos 60 do século XX, dentre o universo de possibilidades, ainda a
valorização da mulher “básica”, que aceita os preceitos masculinos e a condição de
subordinada: “resultam da união dos óxidos com a água e devolvem à tintura do
tornassol, previamente avermelhada pelos ácidos, sua primitiva cor azul”. A cor azul, é
preciso lembrar, simboliza a lealdade, a fidelidade, a personalidade e sutileza,
tranquilidade, compreensão, ou seja, traduz características valorizadas em uma mulher:
a não-reação diante do controle masculino.
20
A mulher que deve ser rejeitada, pelo seu “sabor azedo”, parece se referir à
mulher contestadora ou, em outros termos, a mulher que encontra no sentimento de
raiva uma ferramenta política vital. A acidez, o gosto azedo desta mulher resulta do
desejo de perspectivas novas e da compreensão da condição humilhante a que foi
submetida. O texto de Vinícius de Moraes, nesse sentido, dialoga com a luta feminina,
denunciando o fato de que ainda se mantém uma visão enclausuradora do feminino.
A história da humanidade ao longo dos séculos demonstra, como exposto por
Jane Marcus (1978), que a raiva e a indignação são duas emoções que, quando
expressas pelos oprimidos, provocam hostilidade naqueles que detêm domínio de uma
determinada realidade. A justificativa para esta atitude pode ser retomada das palavras
de Albert Camus, ao abordar a noção de uma resignação necessária para que uma
situação absurda vigore. Assim, para se defenderem da inimizade, as mulheres
aprenderam estrategicamente a esconder sua raiva, mas o protesto permaneceu, a
espera de um momento oportuno.
Os lamentos e descontentamentos, formas de protesto comumente associados
ao impotente - mulheres, crianças e criados - são demonstrações da raiva do oprimido
e da sobrevivência deste sentimento na forma de discurso indireto. É uma prova de que
o silêncio, além de denunciar uma violência imposta, também suscita na vítima, uma
reação violenta. Como não nos deixa esquecer Morris West, “A vingança, la vendetta,
é filha do silêncio” e, devemos acrescentar, recebe um novo nome, como veremos
adiante: justiça.
Os estudos de Linda Grasso apontam que as mulheres - através de textos,
falas, manifestos e ações diretas - liberaram o sentimento de raiva de conotações
pejorativas, tais como medo, destruição e masculinidade; ao mesmo tempo,
ressignificaram-no como coragem, crescimento e irmandade. Consequentemente,
reconheceram a relação entre a raiva e a consciência política coletiva, uma vez que
este sentimento poderia ser utilizado como uma fonte de energia que serve ao
progresso e à mudança, percebendo, a partir de então, a capacidade transformadora
de cada mulher.
O sentimento de raiva exige atenção, pois impele a perspicácia, arte e ação, ao
expor conhecimentos enterrados, falas silenciadas. A raiva está intimamente ligada à
21
questão de identidade, histórias apagadas, manifestações revolucionárias, como fica
claro no poema “CUIDADO! HÁ NAVALHAS” de Miriam Alves:
As palavras de concessões
são navalhas
retalham minha pele
diluem meus sentimentos
soltam-nos ao ar
feito partículas poluidoras
não diluídas
Palavras de concessões
são mordaças
aveludam os sons do passado
ensurdecem sentimentos
forçam minha negação
pressionam o meu ser
Navalhas querem podar
nas veias
o jorro das emoções
ligando-as nos tubos de mentiras virulentas
As navalhas das concessões
quebrar-se-ão, quebrar-se-ão
no fio lento
da minha dura vivência. (Alves: 1985, p. 27)
O poema de Miriam Alves denuncia a existência de um obstáculo, real ou
suposto, e contra qual o eu lírico se revolta: palavras de concessões, palavras que
retalham, diluem sentimentos. Há a denúncia da permanência de vozes-navalhas que
primam pela manutenção da imagem do outro como “mal”, como “partículas poluidoras
não diluídas”.
Como palavras de concessões, querem o outro amordaçado, calado, enquanto
“aveludam”, tornam suave uma história de negação forçada, de emoções podadas. O
contraste permanece através das palavras de concessões, e mais do que manter este
contraste, prega-se o apagamento de uma memória coletiva, considerada como um
dado irrelevante, que deve ser ensurdecida ou substituída por mentiras virulentas. Mas,
estas palavras de concessões quebrar-se-ão através do fio-palavra de uma dura
vivência, revelando um ser que resiste, que mantém seu fio histórico.
22
2.1. Raiva: uma resposta do ego
A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
do nosso líquido lembradiço
em cada gota
que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a redefinição
de nossa milenar resistência.
(Conceição Evaristo.)
Nisi Orbe sine Irae ( Não Mundo sem Ira
6
), define Emilio Mira Y Lopez
(1956). E, desenvolvendo suas reflexões, acrescenta que realmente, desde que a terra
começou a girar e nela se agitaram as primeiras formas vivas, medo e ira, unidos em
estranho concubinato, apresentam suas formas. Nem mesmo Deus escapou a seus
efeitos e várias passagens ilustram esta chamada “cólera divina”, como Sodoma e
Gomorra, o Mar Vermelho. No capítulo 26 do Levítico (versículos 16 a 18), Deus assim
ameaça: “Eu também farei convosco isto: vos enviarei terror, exaltação e febre que vos
consumam os olhos e destruam vossas almas”.
6
Para Lopez (1956), os tipos e os graus de intensidade de manifestação da Ira, por ser ela diretamente
proveniente do Medo, têm sempre algo dele em suas entranhas. Quando é mínima a presença do
Medo, a Ira apresenta-se na sua mais pura e intensa manifestação: em forma de raiva ou fúria.
Quando é máxima, interioriza-se e o ser adquire a palidez mortal do Rancor. Quando se estratifica, ou
torna-se crônica, “a Ira em conserva”, adquire a loucura do Ódio. Manifesta-se desde sua forma mais
leve, como um sentimento de exaltação atinge graus mais intensos como o da Raiva e chega ao limite
da Fúria. O que diferencia o grau de intensidade são a potência da ofensiva e o nível de controle da
conduta individual, ou seja, o desenvolvimento moral e psicológico do indivíduo. Na intensidade de
Irritação, por exemplo, não nos detemos num justo limite da ofensiva. nos damos satisfeitos
quando a reação o foi mais violenta e nociva do que o motivo da irritação. Na Raiva a Ira se apodera
por completo da direção da conduta individual e, na Fúria o sujeito não perde o controle de seus
atos, mas inclusive a consciência ou percepção dos mesmos. O Ódio é a “ira em conserva”, ou seja,
uma atitude iracunda (irada, enfurecida, raivosa) que se estratifica, quando a Ira não é totalmente
descarregada ou satisfeita, pela insuficiente descarga de seus impulsos destrutivos. O Ressentimento
é gerado pelo Ódio, quando as ações necessárias para objetivar sua manifestação não são possíveis
(covardia, inferioridade, incapacidade etc). Para este trabalho, seguindo as definições de Jung ([1928]
1984) e Ballone (2002), utilizaremos os termos raiva, cólera, ira fúria, furor e zanga como sinônimos
de uma mesma emoção.
23
De acordo com os estudos de Lopez, a ira é fruto do medo, pois “não se pode
sentir a ira sem antes haver sentido medo”. Desta forma, percebe-se que somente
quando surge um obstáculo, quando algo atinge o nosso Eu e, de algum modo, o limita
ou menospreza, isto é, ao nos vermos limitados, entorpecidos ou fracassados em
nosso propósito vigente é que sentimos acender-se a chispa da cólera”. Assim sendo,
a “ira é a expressão do protesto vital contra aquele [o medo], já que pretende expulsar o
mal-estar letal, descarregando-o para o exterior”. Resumindo, a ira apresenta-se como
uma intenção defensiva contra o medo insipiente.
Alexander Lowen (1995) corrobora este estudo ao defender a ideia de que um
indivíduo incapaz de ficar com raiva torna-se trancado numa posição de medo. Para
Lowen, as duas emoções são antitéticas e exclusivas; quando se está com raiva, não
se sente medo, e vice-versa. De qualquer forma, Expressar a raiva alivia o medo,
assim como chorar alivia a tristeza”. Sua conclusão é de que “o indivíduo que não
consegue ficar com raiva não está agindo por escolha, mas por medo”.
Segundo Lopez, aliado ao medo, outro ingrediente fundamental da raiva: a
ambição humana, o desejo de conquistar o poder. Em outras palavras, a ânsia de
domínio, de afirmação e de expansão do Ser, constitui-se um elemento fundamental
para a Ira. Enfim, as demandas que nos convidam para uma vida de poder são
enormes. Tudo o que está além de nós e é mais do que aquilo que podemos ter, gera
em nós o desejo de poder. A demanda disto tudo é conseguir o que queremos a
qualquer preço. Por isso, conclui Lopes Por ambicionar demais, aspirar a ter tanto
quer dizer, a valer tanto é o homem vítima de maiores temores e medos que os
demais animais. E por isso, também, é o mais irascível que todos eles juntos”.
Uma vez que a raiva faz parte da psicologia humana, cumpre entender as
imagens em torno deste sentimento. Primeiramente, vale lembrar que muitos dos
conceitos que a sociedade tem sobre a raiva foram herdados de fontes bíblicas e
clássicas. Assim, destacam-se as visões negativas da raiva como destrutividade, mal,
um pecado capital e mortal, um obstáculo contra a comunhão mística com o divino.
Pesquisas atuais sobre a relação entre gênero e raiva, feita por psicólogos
americanos, apoiam duas conclusões principais. Alguns investigadores acreditam que
o gênero não exerce nenhuma influência na frequência ou habilidade para expressar a
24
raiva; ou seja, homens e mulheres apresentam o mesmo grau de dificuldade ou de
facilidade para comunicar a raiva. No entanto, Ane Campbell (apud FISCHER, 1999)
demonstra que ainda predomina, entre os investigadores, a visão de que as mulheres
têm mais dificuldade que os homens na expressão deste sentimento e atribuem a
causa à sua socialização. De acordo com Campbell, as mulheres foram encorajadas a
reprimir a raiva e outras emoções consideradas negativas. Por outro lado, se elas
expressam a raiva, a sociedade aponta como razões a sua inferioridade moral,
intelectual e fisiológica, resquícios de uma formação conservadora e patriarcalista.
Nestes termos, uma mulher raivosa traduziria um sinal de fraqueza; o que confirmaria
a sua inferioridade inata e a sua necessidade de submeter-se à autoridade masculina.
Uma pessoa brava, de qualquer sexo, rende-se a paixões que normalmente são
mantidas em cheque, mas que para os homens são consideradas apenas uma falta
momentânea de autodomínio, enquanto que para as mulheres, significa uma falha de
caráter mais sério.
Como será possível comprovar posteriormente na análise de As mulheres de
Tijucopapo, de Marilene Felinto, outros fatores além do gênero, notavelmente outras
relações de poder, podem causar um impacto no direito de uma pessoa expressar a
raiva e controlar sua interpretação. Porém, neste momento, é preciso verificar algumas
causas de o porquê as mulheres se enfurecerem.
Linda Grasso, (2002) elenca algumas suposições, retiradas de estudos de
psicólogos, religiosos e pesquisadores: primeiro, a raiva feminina é evidência de uma
natureza inferior e, consequentemente, toda expressão de raiva confirma esta visão. A
raiva, assim sendo, é uma lembrança constante da presumida inferioridade das
mulheres com repercussões para além do âmbito emocional, vindo reforçar suposições
sobre a sua moral e suas limitações físicas e intelectuais. Assim, uma mulher que opta
por expressar a raiva tem que defender, ao mesmo tempo, o seu caráter e a raiva. A
segunda suposição defende que a ligação entre raiva e inferioridade foi usada para
desqualificar a mulher detentora de um “discurso”, uma voz” autorizada, evitando,
desta forma, a legitimidade da raiva feminina ao definir este sentimento como prova de
fraqueza natural.
25
Finalmente, uma terceira suposição, apoiada por ideologias religiosas e
sociais, defende a crença na condição subalterna das mulheres e a sua necessidade
de controle masculino, caracterizando a raiva feminina como um ato de resistência ou
rebelião contra a autoridade e ordem de seu tutor. É possível encontrar, nos textos
literários, a raiva feminina, frequentemente, atrelada à perspectiva do desafio à
autoridade patriarcal - uma recusa do lugar a ela destinado e ao dever de obediência.
Desta forma, defendendo os interesses patriarcais e a condição dependente da mulher,
considerou-se a raiva como prova de fraqueza inata, que esta mulher resiste,
irracionalmente, às posições estabelecidas por hierarquias divinas, naturais e sociais.
Uma mulher brava deve estar, por conseguinte, preparada para desafiar à autoridade
masculina; autoridade que a raiva implicitamente questiona.
Aristóteles e São Tomas de Aquino concordam sobre a necessidade de sujeitar
as emoções incontroláveis à restrição da razão. Como sugere a analogia do
cavalo/cavaleiro, o fim desejado é o domínio das paixões, seja por supressão ou
liberação controlada, e não a sujeição.
Gwynne Kennedy (2000), em Just Anger: Representing Women's Anger in
Early Modern England, aborda que no início do século XX, era comum encontrar
algumas analogias do cavaleiro/cavalo para se referir ao sentimento da raiva. As
analogias surgem como forma de controlar aquilo que era considerado inferior, inclusive
as emoções das esposas e mulheres em geral. Em Henrique VIII, de William
Shakespeare, é possível encontrar a definição do sentimento da raiva como "[um]
cavalo cheio de calor" (1.1.133). Neste sentido, as mulheres devem, primeiramente,
educar a raiva para depois usá-la, da mesma forma como os homens colocam rédeas
nos seus cavalos antes de montá-los.
Kennedy questiona teorias que, ao tratar dos deveres das esposas virtuosas,
comparam uma boa esposa a "um cavalo domado”, que será como uma “sela” para o
seu “cavaleiro". Assim, um marido que deixa a esposa fazer o que deseja, iguala-se
ao cavaleiro que monta sem uma rédea. Suas conclusões levam a crer que os ataques
e as defesas contra a natureza feminina, frequentemente, invocam a figura do cavalo
livre de selas e rédeas, cuja raiva revela sua natureza imperfeita, selvagem. O uso da
analogia cavaleiro/cavalo serve para validar a superioridade masculina em relação às
26
mulheres, ao mesmo tempo em que naturaliza esta visão e exige um autocontrole
emocional feminino. A análise de analogias demonstra que o discurso sobre as
emoções, não raramente, traz em seu bojo o discurso sobre relações de gênero. Desta
forma, este estudo, especificamente, focaliza as representações de raiva que surgem
associadas à “noção da inferioridade” das mulheres em relação aos homens.
Na realidade, liberar as paixões torna-se um sinal de fraqueza ou degeneração
para os homens. Seguindo a visão clássica, os gêneros do discurso julgavam as
emoções como sendo um caráter feminino e a razão e o intelecto como masculinos.
Como resultado, a emoção excessiva, essencialmente feminina, é considerada
inadequada aos homens, afeminando-o. Este sentimento aparece, por exemplo, em
Antônio e Cleópatra, quando William Shakespeare constrói e problematiza várias
oposições de gênero, inclusive emocionais. Cleópatra representa o estereótipo da
racionalidade de uma mulher brava, que consegue controlar bem as emoções diante
das notícias do matrimônio de Antônio e Otávia:
“CHARMIAN - Boa senhora, não percais a calma. Esse homem é inocente.
CLEÓPATRA - O raio atinge a muitos inocentes. Que o Nilo trague o Egito e se
transformem em serpes todas as criaturas dóceis. Chama de novo o escravo,
que eu não mordo, conquanto esteja louca. Traze-o logo. (cena V p.51).
Ainda que furiosa e extremamente enciumada, Cleópatra reconhece, no
entanto, que sua violência era imprópria. Como explica, “Estas mãos se envilecem por
baterem em quem me é inferior; pois sou eu própria que contra mim invento esses
motivos. (cena V p.51)”. Por outro lado, ciúme e raiva conduzirão, posteriormente, um
Antônio descontrolado, sem um momento de autocorreção. A manipulação abusiva de
Antônio ao mensageiro de César, Thidias, exemplifica a sua fraqueza política, quando
perde o autocontrole, e (do ponto de vista de César) afeminina-se. (3.13.85-153).
Antônio e Cleópatra, assim sendo, constitui um exemplo perfeito de uma
tradução literária da emoção da raiva. Esta obra demonstra que a sensibilidade
emocional representa uma manifestação de nosso ego, de nossa constituição como
pessoas. É o nosso comportamento emocional que nos diferencia uns dos outros.
27
2.2. Raiva: um tesouro roubado
Vigiarei minha conduta
para não pecar com a língua
Manterei uma mordaça na minha boca
[...]
Emudeço, não abro a boca,
porque és tu que atuas. (Salmo 39 (38),
2; 10)
As mulheres, muito mais que os homens, escreveram sobre seus próprios
sentimentos. Mas, no rol de sentimentos sobre o que poderiam escrever não deveria
incluir a raiva e a amargura. Assim, estrategicamente adotaram em suas obras, o amor
e a condolência; sentimentos vistos como virtudes, sobretudo para as mulheres do
século dezenove. Como bem esclarece Ivia Alves (1999), a mulher na sociedade
burguesa era impedida, entre outras limitações, de demonstrar seus sentimentos, sua
emoção:
Esse controle do comportamento da mulher estava diretamente articulado à sua
atuação no espaço doméstico e à vida familiar. Ultrapassar essas fronteiras
reguladoras obrigou a mulher a ter consciência de sua condição e a buscar
suas estratégias para burlar ou ampliar o seu espaço de atuação (ALVES,
1999, p.107)
Embora fossem usadas noções de maior sentimentalismo moral para autorizar
as intervenções literárias e políticas, a base do poder feminino foi circunscrita
severamente, porque a gama de emoções que elas poderiam expressar,
aceitavelmente, estava limitada a ordens culturais correspondendo, segundo Alves, ao
período de repressão dos sentimentos na era vitoriana. Assim, enquanto os
sentimentos de alegria, amor, condolência e reverência foram encorajados, porque
considerados essenciais ao papel doméstico das mulheres como esposa e mãe, os
sentimentos de descontentamento, desaprovação, vingança e ódio foram considerados
território exclusivo dos homens. Expressar estes sentimentos “masculinizados”,
28
publicamente, significaria arruinar a base da feminilidade. Assim, as mulheres viram-se
forçadas a atuar através da base de um poder que não incluía o potencial da raiva e da
desaprovação estridente. Nas palavras de Alves,
O receio das escritoras de penetrar em territórios delimitados ao homem
obrigava-as a escrever paratextos capazes de mostrar sua ausência de
intenção de ameaçar. Para isso, essas escritoras constituíram estratégias que
podiam ser lidas como posições de humildade, embora, atualmente, possam
ser interpretadas radicalmente ao inverso, ou melhor, podem ser tomadas
como plataformas de estratégias a fim de penetrar sutilmente no espaço
público e aí permanecer. (ALVES, 1999, p.109)
Esta tática foi usada por Maria Firmina dos Reis
7
, quando da publicação de
Úrsula, em 1859. Era uma forma para se proteger de uma crítica severa ou adversa,
que a vida de uma mulher, e de maneira acentuada uma mulher negra, tinha suas
bases fundadas no silêncio.
A autora apresenta-se como uma romancista de educação acanhada, induzindo
a crítica e o blico leitor a acreditar que nada poderia haver na obra que atentasse
contra os costumes, normas ou valores da sociedade a qual pertencia. Esta foi a
estratégia utilizada para publicar um romance como Úrsula, cujo tema da opressão é o
elo de todos os personagens; uma tentativa de promover a circulação de um discurso
destoante dentro de uma sociedade estratificada, tipificadora dos indivíduos a partir do
sexo, da cor, da genealogia, como forma legitimadora do locus que cada um deve
ocupar.
Nesse momento, pela primeira vez em um romance brasileiro é dado o direito à
voz para que uma negra conte ao leitor, através de sua memória, outra perspectiva da
história da escravidão.
7
Com uma produção literária de denúncia da escravidão e dando voz ao negro escravo, Maria Firmina dos Reis, contemporânea de José de
Alencar e Castro Alves, foi desconsiderada durante mais de um século pela historiografia literária canônica. Apenas agora, no século XXI, mereceu
melhor tratamento, através de um trabalho editorial do organizador Eduardo de Assis Duarte, que valoriza o romance, e realiza cuidadosa
atualização do texto a partir do cotejo com as primeiras edições. A 'tradução' para o português contemporâneo limitou-se ao plano vocabular, a fim
de conservar a pontuação original e o estilo muito próprio da escritora. Outro ponto a destacar é o posfácio acurado estudo crítico, que vem
acrescentar dados novos à análise das obras. Assim, o leitor contemporâneo tem a oportunidade de conhecer melhor essa história oculta que o
texto literário vem iluminar, e também acrescentar uma nova escritora ao panteão das letras nacionais.
29
O capítulo “A preta Suzana” revela, assim, explicitamente a situação do negro
escravo no Brasil e sua triste história como exilado de sua terra natal. A apresentação
desta personagem implica no questionamento da “inferioridade natural” dos negros, tão
propalada pela visão ocidental. A africana lamenta sua dor ao contar a Túlio sua
chegada ao Brasil e como isso tudo ocorreu. Narra, segundo o ponto de vista do
escravizado, a situação dos navios negreiros e como os prisioneiros eram tão
maltratados. O fato destaca, portanto, o evento histórico da diáspora negra vivida pelos
personagens arrancados de suas terras e famílias para cumprir no exílio a prisão
representada pelo trabalho forçado:
Tranquila no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente de meu
país, e louca de prazer a essa hora matinal, em que tudo respira amor, eu
corria (...) e aí com minhas jovens companheiras, brincando alegres...
divagávamos em busca das mil conchinhas (...) mas tarde deram-me em
matrimônio a um homem, que amei ... e com penhor dessa união veio uma filha,
que era minha vida, as minhas ambições... E esse país de minhas afeições, e
esse esposo querido, essa filha tão extremamente amada, ah
Túlio! Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! tudo, tudo até a própria
liberdade! Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e o inhame e o
mendubim eram em abundância em nossas roças. (...) Ainda não tinha vencido
cem braças de caminho, quando um assobio, que repercutiu nas matas, me
veio orientar acerca do perigo iminente... E logo dois homens apareceram, e me
amarraram com cordas. Era uma prisioneira era uma escrava! Foi embalde
que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os
bárbaros sorriam-se de minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. (...)
Quando me arrancaram daqueles lugares, onde tudo me ficava pátria,
esposo, mãe e filha, e liberdade... Meteram-me a mim e a mais trezentos
companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um
navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é
necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias
brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé
para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como animais ferozes
das nossas matas que se levam para recreio dos potentados da Europa. Dava-
nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida e ainda mais
porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de
alimento e de água (...) Muitos não deixavam chegar esse último extremos
davam-se a morte. Nos últimos dias não houve mais alimento. Os mais
insofridos entraram a vozear. Grande Deus! Da escotilha lançaram sobre nós
água e breu fervendo, que escaldou-nos e veio dar a morte aos cabeças do
motim. (REIS, 2004. p. 115)
A autora denuncia a forma animalesca com que os negros eram tirados da
África, de sua gente: ao contar sua captura, Susana chama os homens que a
aprisionaram de “bárbaros”. Maria Firmina dos Reis adota postura ideologicamente
30
favorável ao negro, visto que, no Brasil, o colonizador europeu classificava a raça negra
como povo pertencente a uma sub-raça bárbara, na intenção de colocá-la como
primitiva. Só que o bárbaro é, claramente, o homem que comete barbárie, denominação
que na verdade aplicava-se mais ao procedimento europeu.
De acordo com Eduardo Assis Duarte, nesse ponto da narrativa está presente o
sujeito de rememoração, no qual o eu individual deságua em um nós coletivo. É o
discurso político que denuncia em narrativa literária a barbárie da empresa da
escravidão, dando ao homem branco e senhorial o adjetivo de incivilizado.
Legitimada pela força que o testemunho promove, a personagem torna-se a
porta-voz da escravidão e especialmente da mulher negra, na medida em que emerge
das margens do romance, tal qual sua autora afro-descendente emerge das margens
da sociedade maranhense, e conta a sua história da escravidão.
Percebe-se a tentativa de uma evolução feminina: de caladas, no passado,
para, no presente, se tornarem narradoras da história da raça, através da denúncia dos
discursos racial e de gênero que funcionaram trans-historicamente para negar-lhes o
reconhecimento.
De acordo com Grasso, ao enfrentar um dilema entre aceitar uma ordem de
silenciamento e castração do eu, ou manifestar sua emoção, as mulheres inventaram
modos para expressar a raiva, o descontentamento diante da exclusão. Criaram, pois,
uma arte da raiva considerada sofisticada e politicamente significante. Através de uma
máscara de sentimentalismo moral, elas manipularam as ideologias convencionais de
feminilidade para escrever sobre o descontentamento pessoal e a injustiça pública e, no
processo, apresentaram as suas próprias versões de si e da comunidade.
No contexto do século dezenove, a raiva feminina é o lado perigoso, ousado, o
"outro" da domesticação; o lado que nos ajuda a melhor entender como uma tradição
histórica do descontentamento literário emerge e desenvolve-se pelo período.
A supressão da raiva feminina tornou-se central para a identidade da classe
burguesa, para a identidade pessoal e nacional. Segundo Grasso, a identidade da
classe-média foi moldada de acordo com o modelo de sociedade vitoriana, em que o lar
torna-se o centro da moral cristã. Este período ficou bastante conhecido pela rígida
repressão das práticas sexuais, acompanhadas de intensa valorização da vida familiar.
31
O domínio masculino para a construção da identidade da classe media,
habitada por mulheres “sem raiva”, serviu a funções políticas importantes. Nestes
termos, as mulheres passaram a representar a incorporação literal da casa, e a nação,
investida na figura do pater famílias, deveria reter-lhe qualquer “caráter masculino”.
Como bem define Rocha-Coutinho:
[...] a Eva pecadora cede docemente seu lugar à santificada Maria. Ou seja, a
mulher não é mais identificada à serpente de Gênesis, ou uma criatura sábia,
astuta e diabólica que é preciso “por na linha” - como os tantos milhões de
mulheres (as bruxas) que durante quatro séculos (XV XVIII), foram
queimadas pela Inquisição simplesmente pelo crime de serem mulheres
orgásticas e possuírem um saber próprio -, mas transforma-se em um ser doce
e sensato, de quem se espera comedimento e indulgência. Como assinala
Bardinter (1985), “a curiosa, ambiciosa, audaciosa, metamorfoseia-se numa
criatura modesta e ponderada, cujas ambições não ultrapassam os limites do
lar” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p.36)
Assim, difundia-se a ideia de que o destino de uma sociedade virtuosa
dependia do comportamento das mulheres e de suas habilidades para censurar os
sentimentos de raiva, o que se tornou um dever cívico. Esta ideologia não só assegurou
o silêncio de mulheres descontentes, mas reservou, também, a raiva e sua expressão
para o uso dos que detinham o poder, criando uma hierarquia emocional baseada no
gênero, raça e classe.
Numa cultura predominantemente cristã, a raiva foi considerada um poder
divino, a última prerrogativa patriarcal, sendo associada à justiça, destruição e
transformação. A retórica da raiva, assim, infundiu os discursos revolucionário,
evangélico e abolicionista.
Consequentemente, neste período em que as mulheres eram supostamente as
guardiãs da paz, amor e harmonia familiar, sua escrita deveria vir associada mais ao
orvalho do que a um raio. Como resultado, a retórica da raiva teve um elenco
definitivamente masculino. Para usar a raiva, para que reconhecessem a sua visão da
nação e a sua luta pela igualdade de gênero e racial, as mulheres tiveram que,
primeiramente, combater o poder e autoridade absolutamente masculinos.
32
Além da influência silenciosa, exercida no lar, o envolvimento em movimentos
abolicionistas foi uma das maneiras encontradas para interferir na realidade política e
mostrar indignação diante das injustiças praticadas pela sociedade patriarcal. Ao tratar
da realidade americana, fica implícito no argumento de Angelina Grimké que as
mulheres tinham o direito de intervir em debates sobre a escravidão, que eram seres
morais
8
, ou seja, que tinham iguais direitos a responder às injustiças, ainda que fossem
através do sentimento de raiva.
Todos os seres morais têm os mesmos direitos e deveres, independente de eles
serem masculinos ou femininos. A negação de nosso dever para agir, é uma
negação de nosso direito para agir; e se não temos direito de agir, então que
sejamos denominadas como 'as escravas brancas do Norte' pois, como nossos
irmãos, temos que marcar nossos lábios com o silêncio e desespero"
9
.
Insistindo que as mulheres livres descerrassem os lábios fechados e
resistissem, Grimké (1989) mostra-se convicta de que a responsabilidade moral
transcende as diferenças de gênero. Ao afirmar que as mulheres tinham igual direito
para determinar as instituições práticas e o caráter moral da nação, Grimké interpreta a
raiva feminina como um dever patriótico.
A supressão da raiva feminina era essencial ao homem branco, da classe-
média, no projeto de construção de sentido de nação. Para que os cidadãos fossem
socializados corretamente, a raiva tinha que ser excluída do coração da mãe. Lydia
Maria Child (1992) instrui sobre a importância de as crianças, a mesmo quando
bebês, não serem espectadoras da raiva, ou qualquer paixão má, isto porque a
segurança e prosperidade da república dependiam das crianças. De acordo com Child,
8
Nas palavras de Ferrer & Álvarez (2003) “o ser humano é um ser moral”. Eles apontam que a moralidade começa quando as pessoas compreendem
que algumas condutas são obrigatórias ou inaceitáveis precisamente pelo efeito que têm sobre os outros e, por conseguinte, na sobrevivência do
próprio grupo social. De acordo com estes psicólogos, no cerne de toda a vida moral estão a responsabilidade, racionalidade, autonomia, envolvimento
político. Ou seja, a moralidade equivale a capacidade de dar a lei a si mesmo. Desta forma, a vida moral está vinculada à liberdade, sendo que sem ela
não atos morais. Quando a ação é limitada ou anulada, perde-se o caráter de moralidade. (FERRER, Jorge José & ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para
fundamentar a bioética. Teorias e paradigmas teóricos na bioética contemporânea. Tradução de Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2003)
9
All moral beings have essentially the same rights and duties, whether they be male or female. … The denial of our duty to act, is a bold denial of our
right to act; and if we have no right to act, then may we well be termed ‘the white slaves of the North'—for, like our brethren in bonds, we must seal our
lips in silence and despair”.
33
as crianças vinham do céu, com as almas cheias de inocência e paz; e, na medida do
possível, a influência de uma mãe não deveria interferir ou influenciar estes anjos. Era
especialmente importante que as mães mantivessem o espírito em tranquilidade e
pureza, para que o seu estado não afetasse seu filho.
A associação da criança ao estado psíquico de uma mãe, para a "segurança e
prosperidade" da nação, indica como questões aparentemente privadas, domésticas
reverberaram com significados públicos nas primeiras décadas do século dezenove.
Assim, ao procurar um contexto político no qual as virtudes femininas pudessem
coexistir confortavelmente com a virtude cívica, considerada como o cimento da
República, criou-se a noção do que poderia ser chamado "Maternidade Republicana". A
Mãe Republicana integrou os valores políticos na vida doméstica. Dedicada à criação
de cidadãos masculinos imbuídos de espírito público, ela garantiu a infusão da virtude
na República. Era como o soldado na defesa da nação: ele, entregando-se a morte; ela,
reproduzindo e mantendo a vida. Ele, atuando no espaço público; ela, no espaço
estritamente privado.
Eliminar a raiva feminina tornou-se, pois, uma ideia fixa. Como repositório de
virtude e como canal primário para esta virtude, à mãe republicana foi exigido
comportamento modelar a todo o momento. A primeira regra e a mais importante de
todas, de acordo com Child, era que uma mãe governasse os próprios sentimentos e
mantivesse o coração e a consciência puros.
As mulheres eram consideradas as guardiãs da virtude cívica e dos valores
cristãos, sendo o seu comportamento determinante para o destino da experiência
republicana. Assim, suprimir a raiva adquiria consequências decididamente políticas,
uma vez que era confiado às mulheres o privilégio de estender ao mundo a influência
santificada do seu caráter. Como o sucesso da República dependia da “bondade,
paciência e amor femininos”, viciar-se em uma “paixão má”, como a raiva, significava
cometer uma traição à pátria.
De acordo com Grasso, a raiva despertava o temor porque acreditava-se que
este sentimento pudesse interferir potencialmente no desenvolvimento de um governo
racional. A crença era de que esta emoção desgovernada colocaria em risco o ideal
republicano; igualmente, a raiva poderia criar o caos nas esferas pública e privada.
34
Vigiar contra os males desta emoção era o resultado da nova ideologia da
domesticação que glorificou a família como um refúgio sagrado.
Como comentamos, o significado da raiva pode ser retirado de duas fontes
distintas: a bíblia e as filosofias clássicas. Estas fontes buscam oferecer respostas à
questão de a raiva ser ou não moralmente justificada, e nesses casos, em que
circunstâncias. Predominava a ideia de que a raiva humana era uma "paixão"
tremendamente poderosa, complexa, capaz de causar dor e destruição. quando os
homens controlavam-na pelo exercício da razão, conseguiam enfurecer-se sem deixar
de proteger a santidade das leis morais de Deus, apoiando uma comunidade social
justa.
As palavras da Bíblia e de seus estudiosos tornaram-se basilares para a
moralidade da raiva. Como um dos sete pecados mortais, a raiva era frequentemente
condenada, como comprova várias passagens do Velho Testamento, como as que
enfatizam a conexão entre raiva e irracionalidade: “Obio é cauto e evita o mal, mas
o insensato é impetuoso e confiante. Quem é irascível comete desatinos, e o homem
intrigante é odioso”. (Prov. 14:16-17) e “não sejas precipitado em encolerizar-te,
porque a cólera se aloja no peito do insensato” (Ecl. 7:9). O livro de Provérbios,
igualmente, adverte que a raiva feminina é particularmente insuportável, e alerta aos
homens que uma melhor alternativa é viver na selva do que com “uma mulher briguenta
e de mau gênio” (21:19). Também é preferível viver em um espaço minúsculo do que
em uma casa enorme com uma mulher que briga o tempo todo (Prov. 21:9 e 25:24).
Estes provérbios frequentemente são citados em discussões sobre a raiva feminina, em
que a mulher indesejável quase sempre é descrita como brava.
No entanto, as palavras bíblicas não condenam completamente a raiva e esta
era, também, retratada positivamente. Deus e Cristo ficam bravos; o livro dos Salmos
exibe a raiva íntegra e forte contra os inimigos de Deus, e os profetas do Velho
Testamento são elogiados pelo zelo religioso que possuem.
São Thomas de Aquino define a raiva como uma emoção "de contestação",
mas distinta de outras emoções (esperança, desespero, medo e ousadia), pois a raiva
não possui nenhum sentimento contrário (1a.2ae.46.1). A razão, de acordo com
Aquino, é que a raiva sozinha envolve várias emoções como a esperança e o ódio.
35
Neste sentimento, uma busca por vingança que envolve duas direções - a da
esperança (de vingança) e do ódio (das pessoas ofendidas). Ou seja, a raiva se define
como um sentimento dual. Aquino, ainda, acredita que raiva pode ser motivada pela
razão e, assim, pode ter consequências benéficas.
Contudo, não se pode esquecer que a raiva constitui uma emoção e todas as
emoções são, em essência, impulsos para agir, planos instantâneos para lidar com a
vida em sua constante evolução. A própria raiz da palavra emoção é movere, "mover-
se" em latim, mais o prefixo "e-", para denotar "afastar-se", indicando que uma
tendência para agir está implícita em toda emoção. Que as emoções levam a ações é
mais óbvio observando-se animais ou crianças; nos adultos "civilizados"
encontramos tantas vezes a grande anomalia no reino animal: emoções - impulsos
arraigados para agir - divorciadas de uma reação óbvia.
O senso de autodomínio, de poder aguentar as tempestades emocionais que
trazem as desgraças da sorte sem ser "escravo da paixão", tem sido louvado como
uma virtude desde os tempos de Platão. A palavra grega antiga para isso era
sopbrosyne, atenção e inteligência na condução da própria vida; um equilíbrio e
sabedoria temperados.
Os romanos e a primitiva igreja cristã chamavam isso de temperantia,
temperança, a contenção dos excessos emocionais. O objetivo é o equilíbrio, não a
eliminação das emoções: todo sentimento tem seu valor e sentido. Uma vida sem
paixão seria um aborrecido deserto de neutralidade, cortado e isolado da riqueza da
própria vida.
A raiva, assim, como emoção, constitui parte essencial do sujeito. Nas palavras
de Aristóteles, a raiva é o desejo misturado com dor; anseio por vingança contra uma
ofensa óbvia de si mesmo ou de dependentes, uma ofensa que é inominável. No
entanto, fica o desafio: ter apenas a raiva certa, o sentimento proporcional à
circunstância, porque, quando as emoções são abafadas demais, fazem surgir o
embotamento e a distância; quando descontroladas, extremas e persistentes, tornam-
se patológicas, como na depressão paralisante, na ansiedade esmagadora, na raiva
demente e na agitação maníaca. Mas, na maioria das vezes, nossa ira sai,
justificadamente, do controle
36
A raiva, de acordo com Aristóteles, jamais é sem motivo. São Tomás de Aquino
reitera esta visão, ao defender que a vingança a um dano, como guia para a razão, é
um empenho "louvável." Por outro lado, quando o vingar for contra a ordem da razão, é
"vicioso" e pouco ético. O castigo deve ser administrado a quem merece, dado em
doses conforme o crime e como procedimento legal legítimo, com a finalidade de
corrigir a falta e manter a justiça
10
.
Como energia natural e selvagem, vinculada aos aspectos sociais, a expressão
da raiva, deveria ser represada para que não afrontasse o poder masculino. Neste
sentido, as questões de gênero tornaram masculinos os aspectos positivos da raiva e
fizeram crer que as questões negativas era uma responsabilidade feminina.
A ideologia de gênero aplicada à raiva também sustentou e intensificou o
privilégio emocional dos homens brancos. Como Carol Zisowitz Stearns e Peter N.
Stearns (1986) notam, embora os escritores de manuais domésticos acreditassem que
a raiva era perigosa e rompente e devesse ser evitada, constantemente, justificavam o
sentimento de raiva manifestado por homens brancos, especialmente no espaço
competitivo do trabalho. Ao mesmo tempo em que literatura depreciou qualquer sinal de
raiva feminina, aconselhou os homens brancos a canalizar sua raiva em direção à
uma ação útil. Com o avanço da industrialização, Stearns e Stearns apontam o
surgimento da cultura vitoriana que desenvolveu uma ambiguidade nova em relação à
raiva. A mensagem básica era simples, entretanto suas ramificações demonstravam-se
potencialmente complexas: a raiva representaria uma emoção ruim dentro da casa,
mas, uma emoção vital no mundo do trabalho e na política. As mulheres poderiam
enfurecer, de acordo com os seus papéis domésticos (por exemplo, para manter o
controle dos criados), mas os homens tinham a tarefa desafiadora de restringir a raiva
dentro de casa, ao mesmo tempo que poderiam utilizar seu potencial para esporear
ações necessárias para a competição ou justiça social.
Propagou-se como ideal de raiva uma heroica renúncia a si mesmo e uma
grande devoção religiosa, aderindo assim ao código de restrição emocional da classe-
média. Este código foi a máscara usada pelas mulheres contra a sua expulsão do
mundo de lazer, poder e privilégio que a sua condição de classe poderia conferir.
10
Aristóteles, Arte poética e arte retórica, seção 6, 2.2., p. 142; Aristóteles, Ética a Nicômaco, II.7, p. 41–42; São. Tomas de Aquino, Suma
Teológica, Vol. 44 (2a2ae. 155–70), artigo 2 e 57.
37
0 comportamento emocional das mulheres tornava-se, assim, fundamental
para os ideais da classe-média, não apenas nos Estados Unidos, mas também no
Brasil. A este respeito, Margareth Rago (1987: 74-78), relata que a participação social
combativa das mulheres, em meados do século XIX, era reprimida pelo discurso
masculino e moralizador dos médicos e sanitaristas, que procuravam persuadir
“cientificamente” a mulher de que o amor materno era um sentimento inato, puro e
sagrado e, portanto, aceito.
Grasso (2002), por outro lado, recolhe os pronunciamentos de Samuel Cornish,
ministro presbiteriano e editor do Diário da Liberdade, em que ele reconhece que as
mulheres deveriam, realmente, sentir a emoção da raiva. No entanto, Cornish advertia
que era particularmente necessário que elas adquirissem comando de seus
temperamentos. Nas palavras do ministro, um homem, em uma paixão furiosa, era
considerado terrível aos seus inimigos; mas, uma mulher raivosa atingia a todos que a
cercavam.
A implicação dos postulados de Cornish é que, em certas circunstâncias, a
raiva, cuidadosamente controlada e expressa de maneira apropriada, era aceitável.
Questionava-se apenas aquela que ameaçava a respeitabilidade, autocontrole e,
consequentemente, a hegemonia masculina.
Constata-se então que, embora as mulheres tenham adquirido sucesso na
reivindicação por seus direitos, no século XIX, inclusive o direito de expressar a raiva,
no imaginário público e até mesmo na consciência de algumas mulheres, a raiva
permanecia como um direito "varonil", um modo de expressão masculino.
Neste sentido, a raiva, que vinha associada à ordem masculina, trazia o ideário
de racionalidade; a raiva tirânica e irracional era associada às mulheres. Entendia-se,
pois, que a raiva masculina preservava e edificava a nação; a raiva feminina a
comprometia, na medida em que desmascarava as injustiças de gênero e raça.
Enquanto os homens usavam a raiva para preservar as características
diferenciadas do país e restabelecer sua integridade moral, as mulheres protegiam as
suas famílias e comunidades dos males destrutivos da raiva. Em nome da execução
deste dever patriótico, as mulheres tiveram, porém, que perder a sua liberdade
psíquica: foi exigido que as mulheres brancas eliminassem a raiva de suas vidas
38
emocionais; foi exigido que as mulheres negras perdoassem os seus opressores e
canalizassem sua raiva pessoal na raiva coletiva da raça. Como resultado, estas
expectativas afetaram a emoção e a criação literária de mulheres brancas e negras.
As prescrições contra a expressão da raiva dificultaram, às vezes
impossibilitaram, a muitas mulheres, reconhecer que os seus sentimentos de decepção
representavam, na realidade, os seus sentimentos de raiva. A instrução para a
domesticação tornou-se o mais alto ideal de vida oferecido às mulheres, reservando-
lhes um frequente desapontamento, resultado da exclusão, reprovação, desajuste
social. Algumas mulheres responderam à marginalização interiorizando a proibição
contra a expressão da raiva e negando este sentimento. Outras reconheceram a raiva,
mas, assiduamente, tentaram esconder sua presença. Estas reações nutriram o
desenvolvimento de uma cultura emocional que foi caracterizada pela repressão,
segredo e o sufocamento psíquico femininos. Embora elas não pudessem erradicar o
descontentamento, aprenderam a mantê-lo sob controle. Supressão era o remédio.
A raiva feminina diante da exclusão das promessas democráticas de liberdade,
independência e igualdade modela profundamente a cultura literária feminina. Mas, a
proibição abriu-se para a expressão. As ideologias de gênero da raiva tiveram impacto
no tom, temas e formas que a imaginação literária feminina assumiu, independente dos
fatores que motivaram as mulheres a escrever.
Se as escritoras negam a raiva, exaltando as vantagens do estado circunscrito
ao lar como sinais de virtude, ou expressa esta raiva através de uma máscara, com
metonímias e metáforas, elas estão respondendo a uma cultura que as exclui dos
direitos inalienáveis de cidadania democrática, inclusive o direito para protestar através
da raiva contra a injustiça da sua exclusão.
A expressão coletiva do descontentamento feminino, no entanto, teve como
resposta o desprezo de críticos hostis ao advento do movimento de direitos femininos
no século XX, como uma estratégia de deslegitimização. A implicação não residia
apenas no fato de que as "mulheres amarguradas" representavam anomalias
anticonvencionais, mas também que o seu "descontentamento doméstico" não tinha
nenhuma validade. Pelo contrário, era "insignificante", "pessoal", não merecedor de
consideração pública. Nas observações de Jean Baker Miller (1991: p. 4-9), os grupos
39
dominantes frequentemente usaram esta estratégia de deslegitimização para obrigar,
manter e obscurecer relações de poder desiguais. Uma vez que a articulação do
descontentamento do subordinado ameaçava a hegemonia daqueles que detinham o
poder, as tentativas de silenciamento indicavam uma forma de negar a existência
daquele que estava sendo subjugado. Aquele que estava no controle insistia que o
protesto enfurecido do subalterno manifestava algo incompreensível, anormal, não
comprovado. Assim, consideradas como exceção à norma, as ativistas femininas
foram desprezadas, porque a sua presença, como também a sua retórica, ousou
desafiar a noção santificada de que as mulheres eram amáveis, suaves, mães
sacrificadas, filhas e esposas para quem a raiva era uma emoção estranha.
Nesta vertente, expressar a raiva na escrita equivale, para uma escritora, a
expor o seu descontentamento em público, como forma pensar sobre a exclusão, para,
finalmente, propor a eliminação da margem.
2.3. TRADUÇÃO LITERÁRIA DA RAIVA
Transformei-me independentemente de
minha consciência e quando abri os olhos
o veneno circulava irremediavelmente no
meu sangue, antigo no seu poder.
(Clarice Lispector)
O estudo da raiva apresenta-se como um reforço para o movimento feminista,
pois o sentimento de descontentamento centraliza injustiças de gênero e racial. Assim,
a premissa fundamental desta tese é que a raiva pode ser um princípio organizador da
história literária feminina.
Os estudos feministas interdisciplinares, produzidos nos últimos trinta anos
permitem localizar a raiva feminina e sua expressão nos textos literários. As teorias
psicológicas, as análises dos historiadores da cultura e política femininas, e as
40
aproximações dos críticos literários com a criação literária nos auxiliam a reconhecer a
raiva e suas manifestações, averiguar suas causas emocionais, sociais e econômicas.
Além disso, a teoria elucidada pelos linguistas Zoltan Kovecses e George Lakoff nos
autoriza a ver que os léxicos sobre a raiva, empregados pelas escritoras, podem ser
facilmente reconhecíveis, porque constitui fenômenos da cultura ocidental passíveis de
serem verificados desde a antiguidade.
Kovecses e Lakoff formularam a teoria popular da raiva depois de perceberem
que linguagens convencionais tais como "Ela estava espumando"; "Você faz meu
sangue ferver"; "Ela está soltando fumaça"; "Quando eu lhe falei, ela explodiu” tinham
pontos em comum. Eles concluem que uma organização conceitual coerente em
torno de todas estas expressões e, muitas destas, possuem uma natureza metafórica e
metonímica. A ideia central é de que as pessoas percebem os efeitos fisiológicos da
raiva - como calor de corpo aumentado, pressão interna aumentando (pressão
sanguínea, pressão muscular), agitação - e usam essas percepções para nomear,
descrever e expressar a própria emoção. Como demonstraremos ao longo desta
pesquisa, duas das metáforas da raiva tornaram-se mais comuns: a raiva como dor e
como enfurecimento de um animal perigoso que reage ao ser ameaçado.
O paradigma da raiva comprova que da mesma maneira que sinais físicos
que denunciam a presença deste sentimento, também sinais textuais que permitem
visualizá-lo, tais como o choro, a desvalorização dos homens, a loucura, a doença, os
atos de sacrifício, os tons de súplicas, os motivos de cativeiro, a morte, a fome.
Reconhecer estes gestos em contextos ideológicos dos quais as mulheres são
banidas, ocupando esferas desiguais no espaço público fornecem pistas de como as
mulheres respondem a opressão e exclusão; suas próprias e a dos outros com quem
se identificam: o escravizado, o impotente e o economicamente desprovido.
O tema da raiva é central em algumas obras literárias de autoria feminina,
porque a relação das escritoras com este sentimento e sua expressão determinam os
dispositivos artísticos que elas empregam, assim como também o tipo de história que
elas narram. A raiva reprimida, é possível notar, teve efeitos significativos em suas
criações literárias. Na análise de Grasso, a proibição deste sentimento está relacionada
integralmente à articulação de voz nas narrativas femininas. Como foram proibidas de
41
se enfurecerem, as mulheres não encontram nenhuma voz com a qual pudessem
reclamar publicamente, refugiando-se na depressão ou loucura. Ao mesmo tempo,
porém, como aponta Fischer, as mulheres usaram a raiva historicamente para criar um
tipo de arte. Em suas palavras, a raiva tornou-se uma fonte de energia criativa para as
escritoras, provendo o ímpeto, o assunto e estimulando a criatividade de seus
trabalhos.
A crítica literária feminista, amparada nas perspectivas possibilitadas pela raiva,
expôs os modos pelos quais a percepção sobre diferença sexual afetou
implacavelmente as escritoras e seus textos. Kate Millet, em Política Sexual lamentou
a separação entre gêneros na literatura, a regra de funcionamento que dita que sempre
deve haver duas literaturas, da mesma forma como dois banheiros públicos, um
para os homens e um para mulheres, e lastimou a "crítica fálica" que esta separação
gerou. Analisando as "políticas sexuais" de domínio masculino, presentes nos textos
dos escritores, ela demonstrou como as descrições literárias revelavam noções
misóginas de presumida superioridade masculina e documentou a trajetória histórica do
patriarcalismo. Discerniu, além disso, o que acontece quando se ensina as mulheres a
ler autores masculinos que desvalorizavam o seu gênero e experiências: a leitora vê-
se obrigada a participar de uma experiência da qual é explicitamente excluída; pedem-
lhe que se identifique com uma identidade que se define em oposição a ela; em
resumo, exigem-lhe que se identifique contra ela mesma.
Atenta à necessidade de uma (re)visão, a crítica literária feminina olha para trás
com olhos renovados, adentra o texto com um novo direcionamento, uma nova maneira
de ler os textos e escrever a história literária. O primeiro ato da crítica feminista, Grasso
aponta, deve ser o de tornar-se resistência, opondo-se à opressão. Esta recusa em
consentir, afirma a estudiosa, representa um passo necessário para começar o
processo de exorcizar a ideologia masculina implantada em cada mulher.
As mulheres, negras e brancas, foram deserdadas. Seus ritos, suas vozes
articuladas, seus "espaços simbólicos" raramente foram reconhecidos. As diferenças
entre masculino e feminino, construídas historicamente, e a suposição de que essas
diferenças tornam as mulheres inerentemente inferiores aproximam, ainda mais, os
42
homens de uma onipotência, justificando, igualmente, a ausência feminina dos registros
escritos.
Exclusão, ausência, invisibilidade, perda. Estas palavras guardaram
justificativas para um posicionamento revolucionário. Assim, nos séculos dezenove e
vinte, as ativistas intelectuais feministas viram-se motivadas a usar a raiva para expor,
explicar, condenar e reimaginar uma paisagem literária diferente. Neste sentido, o que
as críticas feministas negras e brancas compartilhavam era a própria raiva contra a
exclusão de suas temáticas, representação e ausência de identidade. A cobrança por
justiça, por meio de um empenho racialmente harmonioso, coletivo, uniu mulheres
negras e brancas na tarefa monumental de reescrever a história literária através de
uma perspectiva feminista.
A escrita da raiva continua o projeto de recuperar a raiva feminina como tema.
Ao mesmo tempo, propõe-se o seu uso como base de uma estética, com potencial para
transformar a escrita da história literária. Os trabalhos de ativistas feministas,
psicólogos, sociólogos e filósofos são fontes para a formulação do paradigma da raiva e
guia para a investigação da raiva na literatura feminina. Mais central é a ideia de que a
raiva pode ser uma afirmação de vida, pois é uma proteção do “eu”, uma resposta
emocional a uma violação injusta de si mesmo e da comunidade. Assim, no contexto
deste estudo, são relacionadas expressões de raiva que se conectam com questões
de poder e justiça.
Especificamente, pode-se considerar a raiva como uma emoção criada para
nos proteger contra ameaças físicas para nossa sobrevivência, defendendo-nos contra
ataques; uma emoção de desafio, pois desafia o poder do atacante, afirmando igual
desejo de reivindicação. Além disso, a raiva é uma emoção que força o confronto,
demonstrando o seu potencial para romper relações de poder existentes.
As mulheres que expressam publicamente a raiva, diante da injustiça de
gênero, tornam-se ameaçadoras, nota a psicoterapeuta Harriet Lerner (1985), porque
elas desafiam arranjos de gênero e a naturalização das relações de poder desiguais.
Se as mulheres sentirem culpa, depressão e dúvida, as relações de poder existentes
permanecem inalteradas, porque seus descontentamentos permanecem interiorizados,
mantendo as mulheres em um estado de paralisia, sem a possibilidade de modificar a
43
condição de subordinada a elas imposta; o que representa uma autodestruição. Mas,
quando elas reconhecem e dirigem a raiva a suas reais causas, conseguem mudar e
desafiar as estruturas de poder. Como Lerner e outros sugerem, a raiva,
inevitavelmente, causa conflito e pode conduzir à rebelião, transformação e, a
mesmo, a uma reestruturação revolucionária dos arranjos sociais. A revolução
acontece quando a raiva-aflição é transmutada na raiva-determinação para provocar
mudança, afirma Barbara Deming (1984). Enquanto a raiva-aflição é medrosa e
assassina, a raiva-determinação para provocar mudança é corajosa, representando
uma afirmação de vida.
A distinção de Deming entre uma raiva corrosiva que busca a destruição e uma
raiva geradora, diligente que concentra todas as energias da pessoa na luta para
alcançar a justiça social, é uma formulação essencial ao paradigma da raiva. A raiva
sem justa causa e disciplina pode resultar em medo, conflito e desunião; o que é letal
ao indivíduo e à comunidade. Porém, Audre Lorde (1984) e outros teóricos demonstram
que raiva nomeada, compreendida e dirigida à raiz das queixas, nutre o crescimento, a
aliança e uma reconcepção radical do eu, do mundo e da política. A raiva deve servir à
mudança e não à destruição, declara Lorde em um ensaio que explora este perigoso
tema no movimento feminista. Nas palavras de Lorde, o incômodo e o senso de perda
devem ser vistos como forma de crescimento. (p.131)
Outros estudos sobre a raiva corroboram a convicção de Lorde de que a raiva
pode ser uma fonte criativa e positiva para a perspicácia pessoal e política. A raiva
pode ser potencialmente construtiva e, também, criativa, embora possua a capacidade
notória para a destrutibilidade, para a violência e para o mal. O psicólogo clínico
Stephen A. Diamond (1996), em Anger, Madness and the Daimonic: The Psychological
Genesis of Violence, Evil, and Creativity, explica que a integração entre a raiva
consciente e a psique aliviarão nossa cultura da raiva violenta. Quando o sentimento da
raiva é visto como algo endiabrado, abominável, difamado, impulso puramente
patológico, negativo e desprovido de uma real qualidade redentora, a maioria das
pessoas suprime, reprime, ou nega a raiva que demonstra as sementes más da
psicopatologia, ódio e violência. Mas quando reconhecemos a capacidade da raiva
tanto para a destruição como para a criatividade e a utilizamos construtivamente,
44
Diamond assegura que a raiva e a ira - forma mais extrema de raiva podem servir de
estímulo, animando, transformando a criatividade e, até mesmo, a força espiritual. O
filósofo Milhaven (1989) concorda com esta visão, acreditando em um sentimento de
raiva "construtivo", para alcançar "melhoria" e "libertação". De acordo com sua visão, a
raiva construtiva quer a destruição como um instrumento. Quer destruir obstáculos
ou opressão como forma de atingir sua meta construtora: uma mudança para uma
liberdade melhor ou maior. (p.63, 65)
O fato é que a raiva constitui-se uma forma de comunicação e revela
importantes informações sobre os obstáculos opressivos que as pessoas encontram,
sinalizando a necessidade de mudança. Há, pois, um telégrafo de raiva, uma
mensagem de que um problema, que o “eu” ou a comunidade estão em perigo.
Quando os indivíduos ou grupos forem capazes de decodificar a mensagem,
localizando, nomeando e analisando a fonte do problema, eles poderão usar a
informação e a energia que a raiva possui, alterando relações humanas e combatendo
o poder opressivo. Mas, a raiva não comunica aos indivíduos apenas informações
sobre os seus sentimentos e o que os causam; quando expressa publicamente,
também comunica informações culturais. Expressões públicas de raiva informam uma
cultura maior que o indivíduo ou um grupo: é o coletivo que está buscando atenção,
respeito e igualdade de direitos e privilégios, legitimando queixas que permaneceram
inarticuladas, suprimidas. Igualmente significantes, as expressões de raiva pública
permitem perceber os valores dos indivíduos ou grupos, o que querem proteger e o que
esperam atingir.
Justiça é certamente um desses valores. Grasso assegura que a expressão da
raiva, em sua perseguição, é análoga ao drama da sala de tribunal. A pessoa brava, ou
o grupo, assume o papel de juiz em uma tentativa que sujeita o comportamento e ações
de malfeitores ao escrutínio público. O que se percebe é que a raiva envolve
julgamentos sobre o que constitui injustiça, que veículos de expressão são apropriados
e que remédios são mais efetivos. Ou seja, é uma emoção moral que faz um papel
essencial no controle pessoal, social e cívico. A raiva é o fundamento emocional da
ordem civil em sua forma moral, a capacidade para afrontar a moral pela qual a
sociedade defende suas tradições e valores sagrados, aponta o sociólogo Peter Lyman
45
(1981). Se aquela ordem civil se esforça para ser democrática, a raiva das pessoas
oprimidas, dirigida às fontes da injustiça, torna-se uma afirmação do desafio pela
igualdade, uma reivindicação pela definição da lei moral e pela garantia de sua
execução.
A expressão da raiva, expõe Elizabeth V. Spelman (1989), representa um ato
de insubordinação porque a pessoa brava age como se tivesse direito para julgar
aqueles que detêm maior poder da mesma forma como estes lhe julgam. Outra forma
de a raiva combater relações desiguais, Spelman observa, está no clamor das pessoas
oprimidas por justiça, o que inclui um desejo de vingança. A "raiva vingativa é boa",
Spelman argumenta,
porque é uma estocada elementar de nosso ego para estar com os outros como
igual, em poder e desejos. Nosso desejo de fazer os outros sofrerem por nos
fazer sofrer, é o reflexo de nosso desejo por igualdade de poder e liberdade
pessoal. Por mais corrosiva que seja a nossa raiva e por mais brutal que sejam
os nossos atos, há nestas ações o desejo de tratar os outros como iguais
11
.
Duas suposições ressaltam-se destas premissas: primeiro, que a pessoa com
raiva, de maneira racional e correta, deseja satisfação, prazer, correção; e em
segundo, que a pessoa com raiva, de maneira racional e correta, possui o poder para
fazer julgamentos do seu próprio comportamento e do comportamento dos outros.
Ambas as suposições, historicamente, não foram aplicadas às mulheres. As
ideologias de gênero, que classificam o sacrifício e a abnegação como virtudes
femininas, desaprovam o senso de autoridade feminina para este fim. Este fenômeno
conduz à conclusão de que, para as mulheres, a expressão da raiva e a reivindicação
de uma identidade autônoma devem estar integralmente unidas. Antes de uma mulher
poder reconhecer a sua raiva, ela tem que reconhecer que ela possui uma identidade.
Quando as mulheres reconhecem que sentem raiva e efetivamente lançam mão da
raiva, a própria posição de cada uma esclarece-se, ao mesmo tempo em que permite
11
because it is an elemental lunge of our self to be with others as their equal in power and will. Our wanting to make others suffer for making us suffer
is our wanting to make ourselves equal to them in personal power and freedom. However blind be our rage and however brutal and inhuman be the
act we in our rage strain to do, we are straining to be by that act, with the other person as equal persons”. (Spelman. “Anger and Insubordination”
269).
46
romper relações de poder desiguais. Elas alcançam o poder e a independência
pessoal. Isto acontece porque a raiva demanda mudança e força um confronto não
com a pessoa ou situação com quem a pessoa esta lutando, mas também com o ego.
Nas palavras de Harriet Lerner (1985), a "dor da raiva" conserva a mesma integridade
do ego.
Realmente, um dos pontos centrais que as ativistas feministas, psicólogos,
filósofos e sociólogos enfatizam é que a habilidade para sentir e expressar a raiva
requer respeito e amor pelo próprio ego da pessoa e da comunidade. A raiva é "um tipo
de amor" pelo ego, comunidade, J. Giles Milhaven (1989) define, porque a pessoa
resiste ao que mutila o ser humano e impede o estabelecimento da justiça social. Para
que um indivíduo ou grupo de pessoas reconheça que elas sentem raiva e acreditem
que esses sentimentos são justos, elas têm que acreditar que o ego e a comunidade
são valiosos, que estão defendendo um valor. Devem também acreditar que possuem o
direito, habilidade e poder de julgar.
A supressão histórica da raiva das mulheres brancas e negras foi autorizada
por uma proliferação de ideias que têm no centro a noção de que raiva é prerrogativa
exclusiva dos homens brancos em poder.
Grasso (2002) nota que o papel principal da raiva é sua função controladora.
Com sua força e sua ameaça de vingança, a raiva ajuda a regular nossas relações
sociais cotidianas: nas disputas de família, nas disputas sociais, nas discordâncias
empresariais, onde quer que a lei oficial seja muito incômoda, imprópria, ou indisponível
(o que é a maior parte do tempo). Grasso aborda questões centrais: em uma cultura
estratificada por arranjos de poder hierárquicos, a raiva é controlada por quem? As
pessoas que detêm o poder para definir a raiva e estabelecer as regras para seu
funcionamento e expressão social são as mesmas que controlam os que têm menor
poder? Também são eles quem usa a raiva para intimidar, ameaçar, e silenciar a raiva
dos que desafiam a hegemonia?
Os estudos feministas elucidam este fenômeno. Em uma das primeiras
análises sobre a importância da raiva na liberação da luta feminina, observa-se, de
acordo com Fischer, que a tentativa de controle e supressão da raiva feminina é nociva
a sua identidade, porque nega à mulher a expressão franca da raiva saudável, nega a
47
igualdade dela com os homens. Enquanto os homens podem expressar verbalmente e
expor fisicamente a raiva, tabus contra a expressão da raiva feminina obrigaram as
mulheres a atitude de negar, expressar indiretamente ou alimentar silenciosamente até
que a raiva se tornasse cinzas de um ressentimento amargo ou se transformasse em
uma força pressurizada; uma raiva tão incontrolável que o homem ou a sociedade a
julgasse como irracional. Ampliando a análise, também enfatiza a ideia de alguém ter
controle sobre as definições e interpretações da raiva e sua expressão. Um dos modos
principais pelo qual a dominação é mantida em vigor, Fischer afirma, é convencer as
mulheres que se elas sentem raiva, amargura e ressentimento, estão expressando um
sinal de inferioridade, doença, falta de virtude ou falta de feminilidade. Descarta-se,
pois, a raiva como expressão de uma condição desigual. Elizabeth Spelman (1989) lista
outros modos de negar aos grupos subordinados a possibilidade de pensar em sua
situação: a negação da educação básica, a disponibilidade de drogas, álcool e outros
tóxicos que induzem para inércia ou loucura. Nestes exemplos, a supressão de raiva
configura-se como a supressão de protesto público.
Quando estas táticas alcançam êxito, quando as ideologias de subordinação e
inferiorização são interiorizadas, a expressão da raiva, que é negada, se manifesta
através de outras formas. Ao contrariar o ego e comunidade, a raiva não-expressa e
não-reconhecida pode resultar em depressão, ódio e doença. Além disso, a raiva sem
objetivo apropriado pode exacerbar conflitos e conduzir à violência. Ataque, culpa,
lamentação, infortúnio, choro, imposição do silêncio ao “eu”, podem ser sinais de um
descontentamento não identificado que não está sendo dirigido e expresso. Expressões
indiretas e deslocadas de raiva são especialmente prevalecentes nas relações de poder
desiguais, porque neste contexto elas constituem uma forma de proteção contra a
ameaça de vingança.
Mediante tal necessidade de reverter as desigualdades, as mulheres se
deslocam do universal fixo, estereotipado, para diferentes posições de enunciações e
escolhas. Assim, podemos pensar o discurso feminino, segundo nos propõe Cecília
Secreto (1997: 154) sobre a enunciação feminina:
48
1. Un espácio de poder.
2. Una práctica social transformadora.
3. Una producción de significación que permite la posibilidad de pensar la
dimensión política de la subjetividad.
4. Una producción e imposición de sentido que operan por eficácia simbólica
en la subjetividad de los actores sociales.
5. Una práctica desarticuladora del sistema opresivo.
6. Una nominación del malestar.
A escrita feminina, portanto, equivale a um confronto com o mundo, uma forma
de desarticular o sistema opressivo e, através deste ato, transformar a subjetividade de
cada mulher.
Entender os modos como as mulheres criaram historicamente um discurso
público da raiva, em momentos em que a raiva não era considerada como feminina,
permite uma avaliação de como elas criaram, historicamente, as condições necessárias
para efetuar a mudança social. Desenvolvendo um vocabulário público para expressar
o descontentamento na literatura, as mulheres deram vida a uma linguagem pela qual a
história de sua indagação e reivindicação por justiça pôde ser conhecida e
compartilhada. Quando se identifica a fonte da raiva feminina, como as mulheres
expressam a raiva e se os constrangimentos que elas encontram ainda são operantes,
obtêm-se informações culturais sobre suas práticas artísticas e a sobre a história da
opressão racial e de gênero. A escrita feminina permite perceber como as mulheres em
momentos históricos diferentes escreveram com o objetivo de alcançar a liberdade e a
justiça. A escrita e o texto femininos, de igual forma, evidenciam a luta para alcançar
igualdade e liberdade. Esta evidência pode ser comprovada de forma contundente na
obra de Marilene Felinto, e, de modo destacado em seu primeiro romance: As mulheres
de Tijucopapo.
49
50
Capitulo 2: Marilene Felinto: a escrita em riste
[...] em mim, não existe absoluto, nem
ausência de absoluto, porque não conheci
nunca elemento distinto do eu.
(Lima Barreto)
2.1. A literatura como representação do eu
“Eu, o autor deste livro, estou sendo tomado
por mil demônios que escrevem dentro de
mim. Essa necessidade de fluir, ah, jamais
parar de fluir”.
(Clarice Lispector)
Marilene Felinto nasceu em Recife em 1957 e com onze anos muda-se com a
família para São Paulo. Esta mudança marca sua visão de mundo, transformando-a.
Como a própria escritora define, o trauma desta migração deixa fissuras que
reverberam no contexto de sua produção literária:
[...] existem pessoas que escrevem por terem sofrido um trauma na vida. E é o
meu caso. Os artistas em geral, ou uma parte deles, na minha opinião,
passaram por um trauma na vida e tiveram de optar por esse caminho para
não enlouquecer. Tiveram de elaborar a sua loucura via arte. (Felinto, 2001:
32)
Um dos maiores traumas vem a ser sua condição de retirante, geradora de
inúmeros preconceitos: “Percebi que estava no meu país, mas que não falava a mesma
língua, e na escola eu e meus irmãos nos sentávamos num muro passando horas a
51
treinar o sotaque de São Paulo até perdermos completamente o do nordeste” (Felinto,
2005).
Esta questão do trauma como algo a impulsionar a escrita permite-nos pensar a
literatura de Marilene Felinto como uma “literatura da urgência”, tal como esta foi
definida por Luciana Hidalgo (2008: 183):
A literatura da urgência estrutura-se numa espécie de desdobramento da
escrita de si, realizada sob estado de emergência. (...) Derivado do latim
urgentia, alude a uma literatura que se faz necessária, em caráter emergencial,
criada exclusivamente para fazer frente a uma situação determinada. O termo
urgência remete ao sinônimo emergência, que possui ampla significação:
situação crítica; acontecimento perigoso ou fortuito; incidente grave: situação
mórbida inesperada e que requer tratamento imediato. (Hidalgo, 2008:
181):
As palavras de Felinto revelam que a sua literatura surgiu da urgência de si, em
busca de uma forma de expressão literária que urgia e se estabelecia como antídoto
contra os diversos males sofridos; como forma de compreensão da própria realidade e
como sobrevivência/resistência diante da opressão social. O trauma da infância
desencadeia sentimentos–limites, tais como angustia e raiva, o que leva a escritora a
um constante questionar da existência como um todo. Através de uma realidade
inventada, Marilene procura superar os problemas, enfrenta aquilo que a faz sofrer,
fortalece-se através de uma escrita que também se transforma em salvação. Loucura
ou escrita? eis os caminhos que Felinto visualizou. Escolheu a escrita: sua saída
emergencial, sua forma de desabafar, expiar as angustias, sarar os traumas.
Dentro da produção felinteana, a diferenciação pela língua, que remete à
condição do estrangeiro, torna-se uma forte marca. E é a partir do reconhecimento
desta condição que Marilene identifica como escritora: “meu caminho [...] é de solidão
maior ainda no continente deste país gigante, onde eu não sou nada além de uma
eterna imigrante em busca de uma língua própria” (Felinto, 2005).
Observamos o quanto de autobiográfico na literatura de Felinto. Hidalgo
(2008, p.91) lembra-nos que a palavra autor origina-se do latim auctore, que significa
“causa principal, a origem de”. Felinto comprova estes sentidos através de sua obra,
52
utilizando o eu como alicerce da escrita, produzindo uma narrativa que tem em si
mesma a causa principal. O eu transborda através dos romances, fazendo com que a
existência de Marilene reflita-se através de sua produção. Certamente uma das
maneiras de se entender a obra literária é vê-la como resultado de uma mescla dos
diferentes eventos com as quais ela mantém contato. Isso leva Antônio Cândido a
considerar que a análise estética de um texto literário não ignora os fatores externos à
literatura, pois estes também a influenciam sendo eles a realidade humana, psíquica
e social do escritor (cf. CÂNDIDO, 2000: 33) –, o que corrobora a ideia de que a
“literatura está profunda e inequivocadamente enraizada na realidade e na vida
humanas” (VILLANUEVA, 1991: 97).
Neste sentido, o primeiro aspecto a se observar na produção felintiana aponta
para relação literatura-vida.
[...] quando publiquei meu primeiro livro, um romance que conta uma história
fictícia mas que é a minha história pessoal, de uma mulher que veio do
Nordeste para São Paulo etc, é um livro que tem um tom de revolta e de uma
indignação absurdas, que envolvem minha família. Quer dizer, pessoas
conhecidas, minha mãe ficou uma semana sem falar comigo, minha me
proibiu de pisar na casa dela um ano. (Felinto, 2001: 33)
Marilene, nesta entrevista, confessa a influência de sua vida no fazer literário:
uma ficção autobiográfica, cujas tramas narram suas próprias experiências, dores,
aprendizados. Um romance autobiográfico representa, via de regra, um desvelamento
do sujeito ao mundo, permitindo que se tenha, a partir dela, acesso à individualidade do
sujeito que se revela. Simultaneamente a isso, é apresentado um panorama geral
daquilo que o rodeia. Leia-se o que registra Cândido ao analisar a poética
autobiográfica de Drummond:
A experiência pessoal se confunde com a observação do mundo e a
autobiografia se torna heterobiografia, história simultânea dos outros e da
sociedade; sem sacrificar o cunho individual, filtro de tudo, o Narrador poético
dá existência ao mundo de Minas no começo do século (1989: 56).
53
Da mesma forma que Cândido visualizou a experiência pessoal de Drummond
em suas obras, pode-se detectar na leitura das obras felinteana alguma reminiscência
que aponte para a Pernambuco, estado natal de Marilene Felinto, ou São Paulo, a
cidade em que cresceu. É possível notar como estes ambientes são significativos na
infância e como ficam guardados na memória; importância que figura na diegese. O
espaço não é descrito como um simples vazio que se enche pela presença da
protagonista, da palavra ou das coisas desimportantes. O espaço, ao lado da
experiência pessoal, é a principal realidade, ponto central de cada narrativa. Por meio
da experiência, da memória de fatos vividos, os lugares vão se configurando, a
hierarquia espacial é alcançada a partir da inserção da protagonista no meio
circundante; nada é preestabelecido por circunstância outra senão seu apego e
admiração, como se percebe no texto abaixo:
Eu estou em Pedra Branca agora. Pulando dos rochedos no rio de Pedra
Branca. A cachoeira se joga na minha frente, cristalina e brusca como ela é. Eu
vim a cavalo banhar-me no rio. O cavalo está amarrado na árvore, esguio,
calmo. Daqui dessa pedra eu vejo Pedra Branca todinha. As colinas são suaves
e verdes, poucas casas ocupam-nas espaçadamente. A presença da mata é
verde-escura onde cantam todos os pássaros e os sapos coaxam de noite.
Pedra Branca. jaqueiras margeando o caminho todo que traz ao e agora é
época de caju. Os cajueiros balançam carregados ao vento. cheiros,
fruticheiros insinuando-se no ar. (MT: p.143)
12
Na descrição apaixonada que Rísia faz de Pedra Branca, podemos perceber a
saudade que Marilene Felinto sempre confessou sentir de Recife. As suas
protagonistas, portanto, através da memória, reconstituem o espaço da infância,
espaço de convívio com a natureza, em oposição à dureza da cidade: “tenho medo das
línguas de asfalto que cobrem as ruas da cidade grande e dura. [...] A cidade nem ao
menos me esmaga apenas me joga na cara sua face de concreto”, desabafa a
protagonista de Obsceno Abandono: amor e perda (OA: p. 14).
12
A partir daqui as obras de Marilene Felinto serão identificadas por suas siglas: MT (As mulheres de Tijucopapo), OA (Obsceno abandono), LEG (O
lago encantado de Grongonzo).
54
Hidalgo (2008) ao discorrer sobre a obra Cemitério dos vivos, de Lima Barreto,
considera que nesta a escrita de si
13
foi maquiada para se tornar uma literatura de si
14
,
onde a verdade surgia com mais transparência e liberdade. De igual forma, na obra de
Marilene Felinto o eu ganha um “filtro romanesco” com a finalidade de extrair um “eu
sem filtro”, próximo da verdade pessoal, autônoma. Ou seja, na narrativa felintiana, as
obras parecem condensar uma verdade encenada e uma espécie de reflexo da
realidade no universo ficcional.
Numa de suas afirmações surpreendentes, Borges (1991) sustentava que toda
a literatura é autobiográfica. Neste sentido, a literatura seria o registro, como também a
leitura, do percurso realizado pelo Homem em sua aventura no mundo.
A ficção autobiográfica representa, portanto, uma narrativa sobre si como
forma de expressão subjetiva, de afirmação perante si próprio e perante os outros.
Assim, podemos imaginar que a pessoa Marilene foi pretexto para que a persona da
escritora, em sua pluralidade, pudesse triunfar.
Marilene faz uma releitura de si mesma, acreditando que escrever equivale a
mostrar-se, fazendo-se ver e fazendo aparecer a própria face diante do outro. Nesse
sentido, os personagens são reflexos de Marilene. Através de seus personagens a
autora pode olhar o próprio interior, como forma de se inscrever e ao mesmo tempo
estabelecer uma reciprocidade, pois seus personagens a completam. Como ela mesma
admite:
O que aparece no meu texto sou eu, o meu jeito de pensar, a minha opção
político-ideológica. Sou indignada, revoltada. Tudo isso aparece ali
sinceramente. Não consigo mentir quando escrevo, não consigo pousar de
escritora, de jornalista, ou ser absolutamente neutra como um grande jornalista
deve ser. (Felinto, 2001: 31)
13
Escrita íntima e abrangente, ancorada em matéria bruta, primária, no que há de instintivo e menos elaborado do
sujeito. O autor por sua identificação com o narrador e com o protagonista assume a responsabilidade pelos atos
de fala do narrador e pelas afirmações feitas sobre o protagonista. Relato em forma de diário.
14
Literatura auto referente , maquiada, filtrada e esteticamente mais aprimorada. O autor usa personagens
ficcionais para falar de si mesmo.
55
Neste sentido, Marilene Felinto faz o que os estudiosos chamam de revista a si
mesmo. Sobre esta questão, Hidalgo (2008: p.116) transcreve o pensamento de
Lejeune (1996): O leitor é assim convidado a ler os romances não como ficções
remetendo a uma verdade da ‘natureza humana’, mas também como fantasmas
reveladores do indivíduo. Eu classificaria esta forma indireta de pacto autobiográfico
como pacto fantasmático”. Marilene parece criar fantasmas, autoreflexos, esmiuçando a
própria verdade, expondo angustias, traumas, ideais. Em suas palavras: “sempre
escrevo sobre mim mesma, acredito na literatura escrita com paixão a partir do
ponto de vista de alguém que conheceu aquilo sobre o que está escrevendo”. (Felinto:
2001, 35). Suas protagonistas seriam, pois, máscaras, suporte que irá refletir a própria
autora, sua forma de reflexão; transformando-a em inspetora de si mesma, pronta a
aferir as faltas comuns e a reativar as regras de comportamento como pessoa e como
intelectual.
Rocha (1977), complementando, observa no texto autobiográfico, pela escritura
de um eu, uma aproximação com o mito de Narciso:
A narração autobiográfica pode ser concebida como a variante literária do
mito de Narciso e a representação do amor-próprio encarnado no narrador-
personagem. Este último constitui o centro em volta do qual gravitam todas as
outras personagens, o que provoca um desequilíbrio radical na balança dos
actantes. Assim, da opção autobiográfica resulta geralmente uma importante
consequência: a narrativa apresenta, na maioria dos casos, um protagonista
contínuo e uma série de figuras secundárias votadas à descontinuidade
(ROCHA, 1977: 72).
Marilene Felinto expressa seu complexo de Narciso através da criação literária,
pois, ao mesmo tempo em que revela o seu trabalho criativo, expõe-se como criadora,
revelando também como se o processo de procura por uma escrita que não traduz
apenas sons ou letras, mas a própria ideia. Isso realça seu papel de pesquisadora da
linguagem.
Num retorno constante às raízes da natureza convertida em linguagem que
deseja se naturalizar -, a escritora tem um duplo desejo: restaurar essa primeiridade da
56
palavra e também transgredi-la. Nesse sentido, descrever o banal constitui uma
primeira manifestação dessa transgressão, como se pode perceber no trecho abaixo:
[...] quando eu era menina e me punha horas inteiras a perseguir e percorrer o
caminho de gosma brilhosa que as lesmas iam deixando pelo quintal da casa,
pelos muros, pelas paredes. Até que eu achava a lesma toda protegida dentro
do seu caracol e matava a pedradas, a pisões e pontapés. Não sei por que
aquele prazer perverso. Depois eu me achava ruim, a pior menina das
redondezas: e me imaginava a mulher grande e monstruosa que um dia eu
me tornaria. (OA: p.36)
Aproveitando pequenos fatos e imagens da infância, a protagonista vai
transgredindo os estereótipos de criança angelical, para justificar seu próprio processo
de metamorfose.
Em entrevista ao Caderno Mais, Marilene revela a influência da infância em sua
arte:
Acho que a infância de todo mundo influencia no trabalho, principalmente no
de uma pessoa que escreve ficção. Então, sou de uma família pobre, minha
infância em Recife foi especialmente pobre, e levei muito essa experiência
para narrativa de ficção, principalmente. E essa coisa de escrever começou
logo que chegamos em São Paulo. Escrevia cartas com saudades de Recife,
principalmente para minha família, amigos... (Felinto, 2001: 30)
Nessa tarefa de despertar a própria infância, Marilene traz para a escrita
literária as lembranças cujos significados primordiais marcaram rupturas e
descobrimentos. É então presentificada a infância através das “travessuras”, das
descobertas e curiosidades, dos desejos, do ambiente familiar e escolar. A idade adulta
é relegada a segundo plano, na medida em que é justamente esse o ponto de fuga, o
período que se deseja burlar, de modo que essa etapa prefigura como referência
dêitica para remissão à infância e não como tempo que ambienta a narração, como se
pode observar na confissão de Rísia: “Pois não posso desrespeitar a criança que
existe dentro de mim. Que está sentada num trono.” (MT: p.114)
A infância para onde as protagonistas retornam, no entanto, não é uma infância
feliz, mas sim uma infância traumática. Traumas que precisam ser recuperados,
57
entendidos para, enfim, serem superados: “Quero compor uma ária que recomponha a
minha ira e a faça calma criança amada.” (MT: p.119)
De maneira significante, o protestantismo da primeira infância assume
importância muito grande na caracterização da primeira protagonista de Felinto. Rísia
explicita o moralismo e a cólera que autora e suas protagonistas lançam sobre o
mundo.
A assembleia de Deus é sinal da miséria material e espiritual da infância de
Felinto, que se reflete em Rísia, também nordestina, humilde, protestante e suburbana.
A contradição de ter de acreditar obrigatoriamente na bondade quando a penúria à
volta é o resultado mais patente da maldade apenas se amplia com a mudança da
família para São Paulo, pois a pobreza continua e nega até mesmo o sonho de
prosperidade que move o migrante.
O adulto, assim, é trazido à cena apenas para que saia à procura de sua
infância, e, assim, restaurar a sua vida através desse elo perdido.
Tem-se, no universo adulto, uma continuidade daquilo que se iniciou na
infância. Desse modo, Marilene utiliza uma linguagem livre de limitações, o que remete
à linguagem infantil; linguagem esta que descarrega as palavras quase que em jatos
que não se submetem às regras. apenas o desejo de comunicar, de falar o que é
desejável, sem as preocupações formais. A escrita, então, remete à fala e a reproduz
livremente.
Sobre a escrita de Marilene Felinto, é interessante pensar no próprio
posicionamento da escritora diante do ato de escrever.
Escritores são pessoas que num determinado momento da vida sofreram
algum tipo de trauma que as levou a ter essa compulsão pela literatura, pela
criação de um mundo paralelo ao mundo real. Preferia não ter que escrever,
mas é como se eu não tivesse direito a essa opção. Escrever é um atrapalho.
Escritores são pessoas doentes. (Felinto: 1997).
As palavras de Felinto não podem ser entendidas como uma tentativa de “fuga
da realidade” através da escrita, afinal suas obras procuram reproduzir a realidade
58
humana em suas complexidades. Sua experiência narrativa traduz uma tentativa de
organizar o caos interior, as ideias que estão confusas em sua mente, para, desta
forma, recriar a realidade, projetando nela desejos, sonhos e frustrações. A escrita,
como mundo paralelo, traduz sua forma de exercitar a capacidade de reconstruir,
reinterpretar e refazer histórias pessoais através de uma viagem interior como
verdadeira experiência de si, para se compreender como elemento de uma coletividade
e inserida socialmente. O sentido da escrita reside no fato de que através da auto-
narrativa o sujeito reflete sobre si próprio, sobre sua vida e sobre as relações que
estabelece.
Outra questão significativa é que, como escritora, a ilusão de um controle
sobre o destino dos personagens, da história em si. Uma forma de sentir-se segura,
sem estar solitária, como podemos perceber no trecho abaixo:
Escrevo porque desde cedo precisei encontrar uma companhia mais segura do
que a companhia humana, um lugar mais seguro do que as cidades. Talvez
minha solidão fosse maior do que eu poderia suportar sem uma ‘terceira
perna’, como se diz. (Felinto: 1998)
A escrita traduz, pois, sua forma de se entender, se conhecer e se completar
como pessoa. Escrever sobre si mesma significa, assim, atravessar a distância que a
separa dos outros indivíduos, estranhos ou familiares. A escrita autobiográfica, ao
mesmo tempo em que expõe a autora como um ser individual, possibilita a sua
conexão ao resto do mundo, amenizando o sentimento de solidão.
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2.2. Escrita em riste
O ódio, a inveja e o desejo de vingança
têm, poder-se-ia dizer, o sono mais
ligeiro que o amor. O menor sopro os
desperta, enquanto que o amor e a
amizade continuam tranquilamente a
dormir, mesmo sob o trovão e os
relâmpagos.
(Arthur Schnitzler)
A estreia literária de Marilene Felinto acontece na década de 1980 com As
mulheres de Tijucopapo, traduzido para o inglês pela Editora da Universidade de
Nebraska. Com este primeiro romance, escrito com apenas 22 anos, ganha o Prêmio
da União Brasileira dos Escritores e o Prêmio Jabuti. Em 1987, lança O lago encantado
de Grogonzo. Em 1991, publica o livro de contos Postcard (1991). Em 2001, publica
uma seleção de crônicas publicadas na Folha de São Paulo: Jornalisticamente
incorreto e, em 2002, Obsceno abandono: amor e perda um texto visceral sobre a
solidão feminina.
No início da década de 1990 foi convidada para escrever na Folha de São
Paulo, onde começou resenhando, para a Revista Folha, literatura brasileira e
estrangeira, e também fez crítica de cinema, teatro e televisão. Escreveu na Folhinha
textos destinados às crianças e sobre literatura infantil. Depois migrou para o “Caderno
Cotidiano” no qual escreveu diariamente até 2001 quando passou a ser colaboradora
da revista Caros Amigos onde ainda escreve.
As crônicas no “Caderno Cotidiano” provocaram enorme rebuliço. Algumas
motivaram processos, mas grande parte da repercussão aprova sua originalidade e
coragem no trato com determinados temas espinhosos. Enfim, Marilene escreve
diferentes tipos de textos em diferentes tons sobre os mais variados assuntos com um
estilo e uma visão desestabilizadora, questionadora e polêmica, numa voz dissonante e
afiada.
60
Sua postura polêmica, como escritora e jornalista, pode ser percebida, por
exemplo, quando nega um pertencimento regional e étnico:
Até porque nem me acho muito nordestina mais, me acho tão misturada, não
me acho nada. Nem nordestina, nem negra, nem branca, não sou nada, nada
exatamente. Não levanto nenhuma bandeira, não milito no movimento negro,
não militaria, não choramingo pelo Nordeste, muito pelo contrário. (Felinto,
2001: 32)
A negação categórica ao pertencimento regional, no entanto, não impede uma
produção literária carregada de sotaque nordestino. A influência de vocabulários
nordestinos aparece no título das duas primeiras obras, podendo ser encontrado
também no interior das narrativas. Em relação a um comprometimento racial, a
resposta de Marilene evoca, segundo Márcia Cavendish Wanderley (2009), a
multiplicidade de diferenciações que operam na constituição do “eu” mestiço brasileiro.
Aliás, suas respostas sobre pertencimento regional e étnico indicam um mesmo
sentimento: uma indefinição a respeito da própria identidade que é comum aos
indivíduos de sociedades pós-modernas e globalizadas e que talvez seja ainda maior
nas sociedades globalizadas e “mestiças”. Marilene exteriorizou essa insegurança no
conto “Muslim/Woman”, do livro Postcard, quando, a protagonista, ao narrar a sensação
de não ser vista pelo marido, descobre-se como um ser invisível e sem identidade. Esta
sensação de invisibilidade justificava-se apenas no fato de o marido não vê-la como
ela gostaria de ser vista. Da mesma forma, pode-se conceber que ela não aceita a
auto-imagem refletida no olhar do outro. A questão que parecia apenas uma
reclamação feminista, nas palavras de Wanderley, abre-se em leque mais amplo em
relação à sensação narrada, no seu caso de mulher mestiça e nordestina. Trata-se de
um sujeito histórico triplamente subalterno. Na verdade é essa auto-imagem que a
perturba. Ela não se como gostaria de se ver, não se assume enquanto tal, embora
queira ser vista. E esta vaidade é externada quando olha suas pernas refletidas no
assoalho brilhante do aeroporto.
61
Marilene demonstra um olhar narcísico, embora confesse que sua auto-
imagem, desde a infância espoliada, sempre a desagradou. Esta questão pode ser
percebida na leitura de As mulheres de Tijucopapo e, mesmo no conto,
“Muslim/Woman”, onde a narradora admite que “desde menina eu me criei abrigos,
inventei guaritas e trincheiras”(p.27). Por isso, numa necessidade de proteção, apela
para a invisibilidade e para a indefinição.
Apesar de, através da protagonista Rísia, expor sua preocupação com as
origens raciais e de se sentir orgulhosa em assumi-las: “Às vezes eu me olho no
espelho e me digo que venho de índios e negro, gente escura e me sinto como uma
árvore, me sinto raiz, mandioca saindo da terra”, logo em seguida retorna à vaguesa
das indefinições: “Depois me lembro que não sou nada, que sou uma pessoa com ódio,
quase Severina Podre, lunática, enluarada, aluada, em estado de porre sem nunca ter
bebido”. (MT: p.50)
Wanderley considera que esta subjetividade indecisa e perturbada é fruto da
subalternidade e espoliação, marcas que gostaria de apagar substituindo-as pelo vazio
sobre o qual escreveria sua história e poderia inscrever uma identidade nova. Uma
angústia que contrasta com a certeza tranquila e feliz da muslin (“a viúva negra que
existe em todas as mulheres”) conformada a seu papel. Com ela a personagem
narradora de “Muslim/Woman” mantém contato rápido (só pelo olhar), mas, intenso e
repousante, em passagem por um aeroporto da África. E ali recupera pelo menos uma
das que acredita ser sua identidade: a de ser mulher para um homem.
Segundo Wanderley, embora isto aconteça na “Africa” e a muslin seja uma
viúva “negra” em sentido figurado, as palavras não sinalizam para uma possível
referência a questões raciais. A auto-indefinição da autora parece ser maior do que a
provocada pela mestiçagem: apresenta determinantes mais amplos, localizados nas
condições de gênero e classe e no antigo complexo de inferioridade regional.
No entanto, uma resposta de Marilene a uma pergunta perturbadora, em
entrevista para a revista Caros Amigos, sobre sua adesão ao movimento negro, leva-
nos às seguintes reflexões, elencadas por Wanderley: por que deixar-se catalogar por
um rótulo, mordendo a isca do politicamente correto? Será que numa sociedade
moderna e múltipla como esta em que vivemos, imputar o sentido do pertencimento a
62
apenas uma raiz é uma tarefa possível? Ainda que esta seja uma raiz racial e étnica?
Esta pode ser uma das razões de sua resposta indefinida à questão, uma vez que
Marilene representa uma mulher moderna, habitante de uma das cidades do Brasil
onde a globalização e pós-modernidade, com todas as suas consequências,
penetraram. Mas aquela não foi uma resposta ou uma solução válida para ela própria.
Temos consciência disto ao examinarmos suas criações, que se desenvolvem
ficcionalmente em torno de suas origens raciais, étnicas, regionais e de gênero. Este é
um problema pensado pela autora em profundidade. Ás vezes com desagrado, quase
como se procurasse escondê-la de si mesma, outras com um prazer traduzido em um
lirismo agreste: “Hoje fez uma noite de raríssimo luar melado de luz porque o sol
queimara fogo o dia todo. A cor do céu estava negra. Minha cor estava negra”.(MT:
152-53)
A resposta indefinida de Marilene não deve, portanto, ser vista como uma
recusa da autora em relação ao grupo étnico ou uma tentativa de afastamento em
relação a uma ascendência negra ou a segmentos majoritariamente discriminados tais
como nordestinos ou afro-descendentes. E muito menos como uma atitude
determinada pela ideia de branqueamento ou alienação vinculada à diluição
miscigenadora. Seu discurso, tanto ficcional como jornalísticos, defende a igualdade. A
marca da diferença racial mobiliza uma estrutura de deslocamentos constantes,
inscrevendo no corpo de suas personagens a escrita profunda da exclusão, a ferida
sempre aberta do abismo entre as pessoas, determinada pela diferença racial ou de
classe. Seu discurso ficcional traduz o desejo de independência da cultura negra ou
mestiça, diante de formas canônicas rígidas. Ao mesmo tempo, sua resposta indefinida
em relação a sua etnia é uma resposta pós-moderna em um mundo onde as
identidades se diluem à mercê de tantas influências e de tantas invasões. Num
período de questionamentos de qual seria realmente a nossa cara, de brasileiro/a hoje
e de quem sou eu, Marilene responde: “nem nordestina, nem negra, nem branca, não
sou nada, nada exatamente”.
Mas, ao longo de sua obra, suas persongens-disfarces, em auto-retrato
demolidor, se revelam como preta, pobre, migrante nordestina, magra, silenciada, em
suma, mulheres “sem nada”, mulheres originadas do “nada”. Na realidade, cremos que
63
nenhuma outra escritora, com exceção de Carolina de Jesus, carregou tantos
estereótipos negativos. Tantas marcas de “estigmas” socialmente desvantajosas. Mas é
também diferente em outra coisa: é uma escritora erudita que não tem medo de usar as
chamadas palavras baixas. Assume o primitivismo da linguagem assim como o dos
sentimentos: ódio, raiva, crueldade, baixeza e ímpetos assassinos misturados a auto-
comiseração e a carência de amor e afeto, todos enovelados em Rísia e Deisi,
personagens que derrubam o mito da infância feliz, da criança ingênua que nada
percebe.
Marilene, formada em português e inglês pela Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, também se movimenta com
agilidade em mais de uma língua: “Vou ver se a carta pode ser em inglês. Em inglês
sairia mais fácil, lugares e nomes mais sonoros de casa e gentes em inglês, coisa
de filme de cinema” (MT, p. 9), diz a protagonista Rísia em sua partida de volta para
Tijucopapo, tentando esconder-se em outra língua. Tal como sua personagem, Felinto
demonstra ser uma escritora de muitos recursos. Sua produção ficcional, iniciada sob o
ímpeto da linguagem áspera e tosca, tanto substantiva quanto formalmente, irá
atenuar-se no livro seguinte, Postcard, onde se percebe uma escrita domada e
desinteressada da vingança individual e social como condutora do fluxo narrativo. As
personagens femininas não são amazonas ou donzelas guerreiras, mas mulheres
perplexas diante da própria “feminilidade” e fragilizadas pelo mundo e pelo amor de um
homem.
Um exemplo de mulher fragilizada pode ser encontrado no conto
“Muslim/woman”, onde a protagonista encontra repouso no imperceptível, mas
intenso, contato estabelecido com Adama, absorvendo a tranquila força que emana de
sua condição feminina conformada.
Podemos apontar, assim, como temática contundente em seu primeiro romance
e, que de maneira significativa aparecerá nas crônicas, a atitude da escritora que,
quando pressionada, revela a raiva incontida. Esta atitude combativa e violenta tornou-
se marca de sua atividade como cronista da Folha de São Paulo e de outras
publicações. Mas, a violências de suas palavras se justifica, pois carregam o peso da
violência social, como podemos constatar no texto de estréia na revista Caros Amigos:
64
Então, deixar a grande imprensa depois de uma década escrevendo na
Folha de S.Paulo como quem salta de um trem em movimento. Com a
sensação de que sou pobre e discriminada como um daqueles andarilhos
americanos que, na Grande Depressão econômica dos anos 30, percorriam os
Estados Unidos escondidos nos vagões dos trens de carga, em busca de
emprego, de Oklahoma para a Califórnia ou não sei onde. De repente,
descobriram-me ali clandestina que eu sempre fora –, adormecida sobre
um monte de feno, dentro do vagão fechado. Antes que me punissem, pulei do
trem em movimento, um único saco nas costas, à Woody Guthrie e outros
vagabundos, a divisar o horizonte sem futuro em que imperam os poderosos
poderes: o capital, a imprensa, a publicidade. 'I got disgusted with the whole
sissified and nervous rules of censorship on all my songs and ballads, and
drove off down the road (...) again.' 'Eu andava aborrecido com todas
aquelas regras efeminadas e nervosas de censura de todas as minhas
canções e baladas, e então caí na estrada de novo', escreveu, certa vez, o
revolucionário compositor folk Woody Guthrie (1912-1967) sobre sua
crescente desilusão com a indústria da rádio e do entretenimento de Nova
York. Saltei do trem em movimento. Tem algo de suicida e epigramático no
salto, mas eu 'não creio em outra coisa senão na ação', como dizia Ralph
Ellison. Não olhei para trás. A locomotiva seguiu adiante, sem descarrilar
está claro –, ribombando desembestada trilho afora, devorando seu curso,
metro após metro, o assobio do apito furando meus ouvidos, a vibração dos
pistons esmagando tudo pela frente. A imprensa burguesa me tirou a
palavra como se me tirasse uma espécie de cidadania para me
transformar numa mulher invisível, tão invisível quanto o personagem do
Homem Invisível de Ralph Ellison, um dos grandes escritores da
Depressão e da discriminação racial norte-americana. Mas se enganam,
como dizia Ellison (1914-1994) aqueles que supõem que, 'por ser invisível e
morar numa toca', eu esteja morta. Não estou nem morta nem 'em estado de
animação suspensa'."
Felinto, neste texto, faz um resgate de teorias sobre burguesia e proletariado
(referências ao marxismo, socialismo, lutas políticas de esquerda), além de apontar a
presença da descriminação feminina, da descriminação social, geradores de
invisibilidade e de uma sensação de desajuste, de clandestinidade. De igual forma,
dialogando com o compositor folk Woody Guthie, Felinto traz para a sua escrita o
espírito de contestação, revolta, inconformismo, desejo de mudança e de revolução.
Também significativa será a fala de Ralph Ellison, que incorporada ao discurso
felinteano, demonstra graves problemas sociais como a opressão, a descriminação. Por
outro lado, o discurso de Ellison aponta para a necessidade de contestação e atitude,
para a conquista de uma verdadeira reestruturação social. Os referenciais de outros
autores citados, de uma maneira geral, demonstram uma postura contestadora diante
65
de algumas situações vigentes, e confirmam a tendência felinteana de defesa dos
injustiçados socialmente, das minorias, dos “mais fracos”.
Notamos que a linguagem de Felinto se impõe, seja no sentido de provocar
críticas ou admiração. E a própria escritora tem consciência da polêmica que causaria
sua agressividade linguística. Em suas palavras: [...] não me encaixo no conjunto de
posturas e regras” (Felinto: 2000). Gizêlda Melo do Nascimento complementa esta
visão sobre a escrita felinteana com a seguinte definição:
Portadora de uma escrita ágil e ríspida, configurada em períodos curtos e
cortantes, em declarações contundentes e inesperadas, Marilene Felinto
escreve como quem afiasse garras preparando-se para uma grande luta cuja
arena é seu próprio texto, de onde o verbo se insurge arranhando, com
palavras ásperas, nossas confortáveis convicções. E é, sobretudo, através da
construção de suas personagens femininas que procura provocar uma
inadequação rebelada ao mundo. E são destemidas, quase insolentes, as
personagens femininas de sua obra [...] como forma de desafio a nossas
(im)ponderáveis crenças. (NASCIMENTO:s/d )
A violência jornalística de Marilene explode em crônicas (na Folha de São
Paulo) que foram reunidas em livro com título explicativo de seu desassombro diante de
convenções: Jornalisticamente Incorreto. Provocaram indignações e contra-ataques
diretos. Mas não era novidade. A violência explodira antes, em seu primeiro
romance, As mulheres de Tijucopapo.
Chamado de “travessia” por Eliane Diógenes, a narrativa é uma viagem de
volta à terra da mãe de Rísia (Tijucopapo), movida pelo desejo de “resgatar o principio
da agonia, para, então compreendê-la”.(MT: p.175). Neste resgate e busca de
origem e identidade femininas, Marilene usa o território mítico, mas também histórico do
Arraial de Tijucopapo (comunidade pernambucana habitada por mulheres corajosas
que baniram o invasor holandês), confundindo-o com o espaço das amazonas,
mulheres guerreiras que viviam em bandos numa aliança feminina radical. Mulheres
independentes, para quem os homens eram tidos apenas como reprodutores. Este é o
modelo seguido pela autora nesta nova vida simbolizada no mito de Tijucopapo. Em
suma,
66
Ao ciclo universal da donzela guerreira, de que é herdeira a literatura brasileira
em personagens como D. Guidinha do Poço (Manuel de Oliveira Paiva), Luzia
Homem (Domingos Olímpio) e Diadorim (Guimarães Rosa), parece pertencer
Marilene Felinto com sua “Rísia”, que é também “mulher amazona”, pois
deseja reunir-se à sua tribo de mulheres de Tijucopapo. Com essa dupla força,
a de mulher amazona e a da coragem das mulheres de Tijucopapo, Rísia tenta
resgatar as imagens vilipendiadas da mãe e outras mulheres submetidas ao
dano do poder masculino e do poder econômico, e entregar-se, como a donzela
guerreira Joana Darc, “por uma causa justa”. (Wanderley: 2009, p.123)
A escrita de Felinto, portanto, apresenta o mundo em estado de guerra, tendo
como alvo a hipocrisia com que as pessoas se relacionam e a injustiça que impõem
umas às outras. Os personagens parecem viver uma guerra pessoal, como demonstra
a narradora Rísia: Me disseram que vivo em de guerra. Em de guerra. E vivo
mesmo, e acrescento que vivo em batalha, em bombardeio, em choque. E vou
conseguir sossegar quando matar um” (MT: p.63).
Rísia é uma guerreira da intimidade e em fantasia, desforrando-se do inimigo
por meio de confrontos que forja mentalmente. Deisi, protagonista de O lago encantado
de Grongonzo, também concebe uma batalha com os ex-amigos, em seguida com seus
primeiros professores. Entretanto sua referência à guerra de verdade é cheia de
hesitação e, se tem algum valor, certamente não é documental:
Sendo que a guerra é outra agora, minha senhora. Por exemplo: por que
nunca me explicou o fato de a escola superior ser a de guerra? Que lá,
somente lá, é onde .... Onde o quê? Pois eu até hoje não sei. Mas imagino que
seja onde se planeja a guerra outra onde vai sobrar, nem um dedinho
sequer anular de seu e meu .... (LEG: 1987, 134).
No conto “O Ronco da Abelha”, de Postcard, temos também uma batalha
metafórica em que os adversários não precisam de farda para se identificar. A origem e
o papel social determinam o lado a que cada pertence. Quando o narrador fala em
“matadouro de homens”, não se refere a um campo de batalha militar, mas sim à
67
orquestração civil que levou seu amigo de infância a um sinistro desgarramento. O
inimigo são os abastados da província, que merecem toda a vociferação e cujo ponto
de vista sequer conta.
Observa-se, assim, que o olhar que Felinto partilha e empresta a seus
protagonistas é um olhar tão destruidor que relativiza a diferença entre a experiência de
guerra. Os protagonistas optam pelo caminho da rebelião permanente, pela constância
do inconformismo e da não-aceitação das soluções parciais. Assim, mesmo em
período de aparente paz, fulminam o que veem com um olhar guerreiro, armado de
desprezo, moralismo e rancor.
Neste sentido, a prosa de Felinto contém uma carga demolidora, capaz de
quebrar a rotina, a mesmice, de rebentar o ramerrão asfixiante que envolve a
sociedade para, desta forma, desmascarar o mundo, revelar o real através do
estilhaçamento da realidade injusta, sufocante. Suas cenas raramente surgem inteiras
e mais parecem escombros. Seu vocabulário alterna pompa com belicismo e
obscenidade. Os temas nunca são explícitos, tampouco desenvolvidos linearmente,
mas se impõe pela insistência com que emergem ao longo da narrativa. É assim que a
expressão “afinidades fuleiras” atravessa o enredo de O lago encantado de
Grongonzo, colocando as relações humanas na berlinda e orientando continuamente
quanto ao eixo principal do romance.
A escrita em riste de Felinto equivale a uma prosa apontada para as injustiças
sociais. Com o dedo apontado, sua ficção compromete-se com a realidade e dor
humanas, realizando esteticamente uma reação contra a opressão, transformando o
momento histórico em arte. Elabora, pois, uma literatura da urgência.
Freire (1987), em Pedagogia do oprimido, esclarece que o indivíduo, em sua
vida pessoal e social, encontra obstáculos, barreiras que precisam ser vencidas. A
essas barreiras ele chama de "situações-limites". A literatura da urgência, tal como
colocado por Hidalgo (2008), representa uma forma de enfrentar estas situações-
limites, o que demonstra a percepção crítica da história. A pessoa precisa agir,
desafiando este momento para, desta maneira, resolver os problemas da sociedade
em que vive.
68
As situações-limites, assim, são entendidas como aquelas que cobram por
transformação no contexto local, pois a vigência destas dificulta a concretização dos
sonhos, desejos e necessidades coletivas. É que segundo Paulo Freire, as “situações
limites” não são justificativas para a estagnação da luta social, nem podem ser
percebidas como geradoras de impossibilidades, mas, ao contrário, representam a
motivação necessária para a mudança, reforçando o sentido de esperança. Ainda de
acordo com o estudioso:
(...) em suas relações com o mundo e com os outros, os homens ultrapassam
as “situações limites”, que não devem ser tomadas como barreiras insuperáveis
[...]. No momento mesmo em que os homens as apreendem como freios, em
que elas se configuram como obstáculos à sua libertação, se transformam em
“percebidos destacados” em sua “visão de fundo”. Revelam-se assim, como
realmente são: dimensões concretas e históricas de uma dada realidade.
Dimensões desafiadoras dos homens (...) (FREIRE, 1987:90).
Para isso, faz-se necessário separar-se epistemologicamente, distanciar-se
daquilo que o "incomoda", com a finalidade de entender esta situação na sua
profundidade, na sua essência. Como este problema foi "percebido" e "destacado" da
própria realidade cotidiana, Freire nomeia-o de "percebido-destacado", ou seja, aquilo
que não pode e não deve permanecer como tal e, por isso, passa a ser um tema-
problema a ser enfrentado e, acima de tudo, discutido e superado.
Freire o nome de "atos-limites" às ações necessárias para romper as
"situações-limites". Atos que se dirigem, então, à superação e à negação da
passividade, da aceitação incontestável e conformada da violência, implicando dessa
forma uma postura decidida frente ao mundo. A literatura da urgência demonstra o
desejo de romper a barreira das "situações-limites". Desta forma, resolve os obstáculos
à liberdade dos oprimidos através da ação com reflexão, transpondo "fronteiras”,
libertando-se.
Ao utilizar a literatura como forma de enfrentar uma situação-limite, ao escrever
pela emergência de algo, Marilene Felinto pratica uma literatura engajada. Sartre, em
Que é a literatura?, define o engajamento literário enquanto fenômeno essencialmente
69
ligado à consciência do escritor em reconhecer-se como parte do mundo. Esta
consciência motiva aquele a uma reação, com o claro objetivo de modificar os
problemas opressivos, o "percebido-destacado”. Sartre esclarece que um escritor é
mediador por excelência, e o seu engajamento é a mediação. Através deste
engajamento, a realidade é revelada, possibilitando que a consciência crítica do leitor
seja despertada. Sartre (1993, p. 21) argumenta que a palavra implica ação e que o
mundo revelado por meio da literatura tenciona mudança social. Segundo ele, o escritor
desvenda o mundo e, especialmente, a realidade humana, a fim de que cada um
assuma responsabilidades sociais.
Para Sartre, a literatura engajada, ainda que circunscrita a um domínio
localizado e temporário, renuncia a ela mesma como um fim específico, rumo a uma
ação universal. Com efeito, o engajamento literário reporta-se à consciência do modo
como a obra urge, porque baseada na causa da participação social. Este aspecto
assegura historicidade à escrita literária, não pelo conteúdo, mas também pelas
escolhas formais. E o escritor, como elucida Sartre (1993, p. 22), não se constitui por
ter dito alguma coisa, “mas por haver decidido dizê-las de determinado modo”. Em
consonância com as proposições sartrianas, Theodor Adorno, anteriormente
mencionado, esclarece que a forma é também portadora de sentido, participando do
engajamento literário. Para o teórico, as obras de arte apresentam uma ligação com a
realidade exterior, sendo que “A ponta que a arte volta para a sociedade é, por seu
turno, algo de social” (ADORNO, 1988, p. 46) e que a relação da obra com o dado
social é mediada pela realização formal, uma vez que a penetração dos fatores
externos é incorporada ao plano estético. Observa-se, portanto, que adquire valor a
obra de arte que trabalha esteticamente, em sua própria estrutura, os dados externos.
Voltando-se para o oprimido, Felinto encaminha seu projeto de “dizer o outro”,
destacando determinadas situações, que apontam para uma sociedade regida por um
sistema hierárquico rígido, autoritário, opressivo, que fragmenta o ser humano, levando-
o à submissão e à mudez, o que desperta o desejo de viver em espaço outro, onde os
princípios promovam da realização autêntica do eu individual.
70
Marilene Felinto demonstra preocupação com seu compromisso de denúncia,
sabendo do efeito que isso poderia ter na consciência do leitor, como podemos
perceber nas palavras do narrador de O lago encantado de Grongonzo:
Quando ela percebia que os acontecimentos se forçavam nas palavras e que,
pois, ela parecia estar narrando ali pedaços de história de um pedaço de sua
vida, enchia-se de pausas, esticava-se preguiçosa, deitava por cima dele.
Como se os acontecimentos em si não importassem a ela; importasse
somente o que sobrava deles, restos de um incêndio cuja causa, sempre
menor, não interessava. Interessava antes o fogo, ou o que havia no fogo de
tão avassalador e irremediável. (LEG: 1987, 97)
Percebemos, assim, que a prosa de Marilene Felinto não se encaixa no
conjunto de regras e posturas socialmente aceitas. Gizelda Melo do Nascimento, por
exemplo, menciona que a escritura felinteana traz a marca da não-adequação à
organização do mundo, uma consciência de uma situação-limite. Consequentemente,
expõe a pesquisadora, dois grandes temas podem ser depreendidos de sua obra: o da
negação e o da desagregação.
Ao negar a família como instituição, ao renegar a imagem materna como
representação, as personagens de Marilene Felinto o além de simples
denúncia de um incômodo dentro da ordem estabelecida. Destroçando imagens
tão caras, partem em busca da descoberta de si mesmas para, a partir de
então, recompondo-se, tentar organizar uma nova ordem. (NASCIMENTO,
s/d)
O engajamento estético faz com que a escritora deseje expressar-se
livremente, ainda que sua linguagem em riste coloque o dedo na ferida ao denunciar
os absurdos e misérias sociais. Esta atitude da escritora permitirá a percepção de que
“Toda sua produção é perpassada por uma agressividade que oscila entre a raiva e o
sentido de impotência diante das circunstâncias da vida” (COELHO, 2002: p.469).
Como ela mesma admite na obra Jornalisticamente Incorreto:
71
Sei que minha raiva é a coisa mais valiosa que tenho – embora nem eu mesma
goste dela. É meu sentimento mais primitivo e verdadeiro é dali que tiro força
e vida, eu que não almejo em nenhum instante a elegância dos escritos
comportados, adequados. Não tenho qualquer justificativa para publicar este
livro, senão porque esses escritos nasceram da minha raiva [...](Felinto: 2001,
18)
Isto sentimos ao ler As mulheres de Tijucopapo pela primeira vez. A raiva
explodindo como pólvora e o desejo de vingança. Marilene sabe como usar essa raiva
para provocar no leitor o mesmo sentimento de estranhamento em relação ao mundo
vivido por suas personagens e o desconforto da voz que o descreve: o desconforto
racial, misturado a outras circunstâncias humilhantes.
Também em O lago encantado de Grongonzo uma genealogia da
crueldade, escrita brutal composta de palavras “que até matam as pessoas”, de dedos
amputados na fábrica (“as marcas de violência estavam conformes na pele e pronto”,
p.45), de traições e de sexos perfurados. Estas marcas da escrita felinteana ficam
claras no trecho a seguir:
Mas faltava a arma em riste de V, ou de Y, que fosse. Com a arma em riste de
V, vencia-se na certa. Agora o lápis? Fazia palavras, apenas. Que até matavam
pessoas palavras matam também e ela sabia mas era luta sofisticada tão
civil que até dava pena (LEG: p.48)
Observa-se que o lápis é a transfiguração possível da arma da infância: o
bodoque
15
, e as letras-armas representam ideogramas motivados, ou seja, conseguem
imitar em sua forma gráfica as coisas que designam. A linguagem parece feita de
coisas, onde a crueldade da escrita transcreve a crueldade anônima e ancestral das
máximas da avó: “Eu te piso, eu te repiso, eu te reduzo a granito” (LEG: p.30). A
narrativa desenha o regresso, desta vez à Grongonzo “do tempo do onça”, lugar da
15 Arma conhecida, também, como estilingue. Configura uma arma primitiva, utilizada para lançar pedras ou outros pequenos projéteis. Outros
nomes no Brasil: atiradeira, baladeira, cetra ou setra. O bodoque, ou badogue, constitui um atirador de projéteis, com formato de arco, semelhante ao
arco de flecha.
72
infância da protagonista Deisi e, através desta viagem, desmascara as violências
sociais.
No romance O lago encantado de Grongonzo, Deisi abandona a metrópole
como vítima de uma traição levada a cabo por seu namorado e a melhor amiga. Em
formação, origem e visão, esta protagonista se assemelha bastante a Rísia e à própria
Felinto. Porém, o olhar de Rísia se atém a aspectos mais amplos da realidade,
enquanto o olhar de Deisi focaliza quase que exclusivamente os nós existenciais. O
desengano é o mesmo, contudo Deisi vive do soldo de um oficial da Marinha, condição
incompatível com a de porta-voz de revanches sociais. No entanto, sua mornidão é
constantemente sacudida pelas erupções resultantes do descortinar de sua vida, das
limitações do marido e volubilidade dos amigos que a visitarão os mesmos que as
traíram.
Como Rísia, Deisi sofre tanto com a traição que passa a ver toda a
humanidade como causadora de dores semelhantes. Assim, o deslocamento entre o
acontecimento específico e a regra geral não é gratuito, mas baseado num motivo que
repercute em profundidade. Este dado é fundamental à compreensão da consistência
das protagonistas de Felinto, que possuem menos fatos e mais sentimentos. Estes são
poderosos o suficiente para provocar atitudes arrebatadoras, como a decisão de Deisi,
de fixar residência no interior, como pacata esposa de um homem pacato e delicado,
que tenta entender sua raiva e ouve, como explicação:
Mas eu não me sinto traída. Pelo menos não da forma cristã ... E nem se
trata de perdoar ou não perdoar por cristianismo também. É assim: se me
sentir traída, é somente como os ratos devem sentir na ratoeira. Mais fatal
assim, entende? Você pode imaginar o choque de um rato pego na ratoeira?
Pois é isto. Como se tivesse descoberto tarde demais, e por puro amor, que
deveria ter sido esperta na mesma medida em que as pessoas são. Mas eu
detesto gente esperta... (LEG, p.115)
O caso particular da traição não a leva somente a uma atitude impensada, mas
também a uma crítica ampla sobre o comportamento humano desonesto das pessoas,
quase todas seduzidas pela capacidade de ludibriar. Por isso, diante destas traições,
73
Deisi confessa: “— Nunca entendi se meu recurso devia ser o da pura ironia, o da
tristeza séria, ou o da simples revolta. Para ser puramente irônica, precisa-se de força,
uma força diferente que não tenho” (LEG: p.114). O recurso que Felinto empresta a
suas protagonistas, cientes de suas fraquezas, será, sem dúvida, uma tristeza
profunda, uma certeza da violência sofrida e o desejo de um “dia d da desforra” (LEG:
p.114).
Os textos de Felinto, como podemos notar, possuem corpo, vertem sangue e
bile, não podem ser declamados em salões. Desprovidos de poses, sem alçapões,
inimigos da retórica, são quase sempre um grito, um esgar de bicho sob lâmina. Nasce
de muita ira o que escreve esta pernambucana, mas o melhor de sua raiva é o objetivo
reestruturador, como voz dos que não sabem ou não podem falar
A maneira como trabalha com a linguagem, exposta a partir da emoção, faz
com que Marcelo Coelho sintetize seu estilo como: “Uma inteligência e um estilo
arrasadores” (Coelho, M: 1991, 118)
Depreende-se dos textos kantinianos que a inteligência e o estilo se
manifestam de forma combinada, mas se associam originalmente a faculdades
distintas, quais sejam, o entendimento e a emoção.
Os acontecimentos narrados ao longo da produção felinteana, ainda que
fragmentados, revelam como os personagens são atingidos no corpo e no coração.
Por isso, as palavras em riste, ao longo das narrativas, traduzem o desejo de
incomodar, para, desta forma, reduzir o infortúnio. Comprova-se, assim, o estilo
emocional de Marilene Felinto, que nada tem de sentimental, no sentido de transmitir
ou provocar o choro. Ocorre, isto sim, a dissolução do afeto do observador, cujo olhar
fulminante se desloca entre pessoas e coisas de maneira inquieta.
O estilo emotivo de Felinto não utiliza integralmente o que surge à mente, mas
tão somente aquilo que enriquece os temas dos romances, contos, crônicas. Não se
trata de reproduzir todos os fatos lembrados, mas apenas aqueles que justifiquem o
pessimismo, sua raiva e satisfaça sua necessidade de contar o que aconteceu a partir
de uma ótica particular, propositalmente diferente das demais, principalmente as
partilhadas pelos jornais.
74
Através deste estilo de escrita, Felinto cria enredos que fogem da falsa
impressão de integridade e apresenta a realidade humana em escombros. Aliás, um de
seus legados à literatura é exatamente dinamitar a camada superficial que a escrita
pode formar para acobertar o rebuliço da vida. Para revelá-la em fragmentos e
erupções, Felinto lança mão de vários recursos que veremos ao longo desta pesquisa,
tais como a incompletude das frases, as reticências, as repetições, etc.
A imaginação utiliza as quedas e tentativas de recuperação para imprimir um
ritmo jazzístico à narrativa, que se revela propícia ao improviso e às recorrências.
Certos trechos são repisados várias vezes, impedindo que o leitor se esqueça. No rol
das repetições podemos encontrar as referências às mutilações e achaques, que são
utilizados como argumentos de defesa e instrumento de luta.
Em relação aos protagonistas, podemos afirmar que estes limitam suas
descrições àquilo que presenciam, narram apenas as cenas que testemunham e
evitam colocar-se no ponto vista das demais personagens. São narradores que desde
a infância demonstram uma verdadeira atração pelos cataclismos. Assim, mente e
realidade à volta se imitam na produção de desastres ou usando as palavras da
narradora Rísia, de “esculhambações” o que torna a vida desagradável, mas
enriquece sobremaneira o estilo emotivo.
Através de personagens agressivos, raivosos, descortina-se a realidade num
aproveitamento literário da crueza e da desesperança, aspectos que encontram uma
correspondência perfeita na forma inclemente e estilhaçada com que Marilene Felinto
escreve ou reescreve a história feminina. Através de uma escrita que privilegia o
movimento, demonstra a valorização da liberdade para viver, sentir, escrever. A
metáfora aparece, nessa linha de pensamento, como expressão do sentimento, um
passo dado para outra forma de ser: através da participação. Sua escrita, portanto,
expressa, por meio da imagem metafórica, a transposição de sua angústia pessoal. E
a raiva, como foi exposto no primeiro capítulo, será uma forma de recuperar a unidade
perdida e ser pleno. Por isso, suas narrativas iniciam de forma caótica e sem sentido,
e vai reintegrando os fragmentos no todo. Dispersão de letras ou de guerrilheiros, com
o objetivo paradoxal de transposição do fragmentário para a unidade.
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A dor, a raiva e o movimento aparecem intimamente ligados no bojo da prosa
de Felinto. A reflexão sobre qualquer um desses aspectos leva necessariamente a um
projeto de construção literária que visa à invenção permanente. inventando sempre
pode a linguagem literária adequar-se à busca transcendente que lhe dá sentido.
Para Felinto, a linguagem é instrumento de busca e rebelião: um instrumento
de adequação metafísica, uma vez que se entrega fielmente a conquista da realidade.
Um instrumento que se lança na esfera do mito, de volta à origem mágica, na medida
em que propõe uma reintegração do homem na totalidade.
Fundada numa relação do homem com o mundo, seu horizonte é o horizonte
da expressão humana. Se o que lhe propõe é a plenitude do ser, se se quer o
absoluto, é dever dela ser fiel ao seu tema, mesmo que para isso tenha que se
autodestruir. A destruição é o desafio extremo à sua eficácia. É preciso aceitar o risco
e inventar sempre, abandonando-se ao convite do caos.
É preciso uma posição rebelde, que se mostra mais fértil que o conformismo
redundante. De modo geral, Felinto coloca a linguagem sob o crivo de uma crítica
demolidora, como condição fundamental para a revelação da realidade. É como se
estivéssemos diante de uma consciência dividida entre a necessidade de dizer para
ser pleno e a falsidade do dizer que, no entanto, representa uma atração irresistível.
Felinto sempre está pronta a dar testemunho da oscilação dramática e dilaceradora em
que vive o artista contemporâneo. A ânsia da entrega à realidade total, a sede de ser
plenamente, defronta com o abismo dualista no plano da linguagem, em virtude da
ruptura entre a palavra e o mundo.
A verdade é que a obra felinteana cada vez mais se abre para a “impureza” do
mundo, se torna mais permeável a toda atitude espiritual que lhe seja afim, disponível
para toda forma de inconformismo diante da realidade aparente. Toda a revolta
humana entra no jogo da invenção textual, como se a folha branca do papel
substituísse o muro, deixando-se marcar pelo mundo, transmitindo seu inconformismo.
É a vibração do desejo de ver vivificada a arte da palavra nos próprios corpos dos
homens imersos na vida.
76
2.3. Línguas selvagens não podem ser domadas: Mulher, identidade e raiva
Não gosto de lágrimas, ainda em olhos de
mulheres, sejam ou não bonitas; são
confissões de fraqueza, e eu nasci com
tédio aos fracos. Ao cabo, as mulheres
são menos fracas que os homens,ou
mais pacientes, mais capazes de sofrer a
dor e a adversidade... (Machado de
Assis)
Marilene Felinto, com sua prosa de denúncia, sua linguagem agressiva,
raivosa, trabalha frequentemente com a questão da visibilidade. Em Postcard (1991),
por exemplo, esta questão pode ser considerada elemento estruturador da trama de
várias narrativas, como no conto “Muslim:Woman” que narra o encontro casual de
duas mulheres de culturas bem diferentes uma ocidental e outra oriental num
aeroporto africano. A narradora dialoga com o leitor, colocando-o a par de sua crise
interior. Nesta viagem, ao lado do marido Eduardo, segundo Elódia Xavier, descobre o
que suspeitava: é um ser invisível, sem identidade. O marido não a como ela
deseja ser vista, não reconhece sua existência.
Para Xavier, o uso constante do verbo “ver”, logo no início do conto, aponta
para a questão da visibilidade da mulher enquanto sujeito, que agora começa a ser
construída.
Estava fazendo tudo tão ao contrário do que eu esperava que ele fizesse que
aquilo ia aos poucos anulando minha existência, numa prova cabal de que ele
não me via; e de que, se eu quisesse ser vista, precisava me mostrar. Mas
como isso eu não faria por ninguém no mundo, nem faria por mim, quem
quisesse que me visse, se quisesse me ver. (Postcard, p.13) (grifos nossos)
As recordações da infância revelam a timidez de uma criança, sempre
buscando se esconder, se proteger, ainda que fosse através do ataque. “Desde menina
eu me criei abrigos, inventei guaritas e trincheiras...” (Postcard, p.14). A partir destes
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gestos podemos perceber sua insegurança em se ver exposta. Este receio da
exposição fica claro quando anda pelos salões brilhantes do aeroporto, carregando
uma mala cujas rodinhas faziam um barulho desagradável. Podemos notar, juntamente
com Elódia Xavier, uma aparente contradição: a busca de esconderijos versus a
necessidade de ser vista, reconhecida: tensão estruturadora de toda a narrativa.
Segundo Xavier, a mulher “livre e liberada” sente-se insegura ao se expor: “a lâmina do
chão exibiu minhas pernas morenas, quiçá minha roupa íntima e branca, sob minha
saia curta demais talvez para aquele aeroporto estrangeiro” (Postcard, p.14). Por isso
ela vai, secretamente, invejar a segurança proporcionada pelos trajes da muçulmana,
coberta da cabeça aos pés. O confronto das duas mulheres põe em evidência as
enormes diferenças culturais: “a mulher muçulmana toda coberta de preto, de cima a
baixo, a mulher que de visível tinha os olhos, ainda que por trás de uma leve gaza
de véu preto.”(p.16)
Na visão de Xavier, o marido é o elemento detonador da crise existencial da
protagonista; por outro lado o encontro com a muçulmana proporciona outra dimensão
ao conflito. A narradora observa a mulher segura e tranquila, de identidade bem
definida, cujo nome aparece até mesmo na própria mala (ela se chama Adama Acsa
Shariff) e que a protagonista imagina “com a meia dúzia de filhos que ela devia ter em
algum lugar do mundo, ao norte de não sei que montanhas povoadas de mesquitas sob
um sol escaldante” (Postcard, p,18). Essa tem uma importância fundamental no
desfecho narrativo. A narradora, sentindo-se observada pela muçulmana, acolhe
carinhosamente o marido, ela que pensara em se separar dele.
Esqueci-me de Adama por um instante e pulei no pescoço dele, beijando-o
duas vezes no rosto. Ou talvez eu nem tenha me esquecido de Adama, e
tenha na verdade desejado mostrar a ela que naquele momento eu aceitava,
quase resignada, não saber por que eu tinha me casado justamente com ele,
que nem sempre me via.(Postcard, p.18)
Xavier considera que a narradora supera a crise “naquele momento”,
demonstrando certa “resignação”, o que, sem dúvida, revela a influência da resignação
78
muçulmana. Ao acolher o marido, percebe o “lindo sorriso” da mulher oriental; sorriso
que representa uma forma de aprovação a este gesto da narradora.
Prosseguindo a análise deste conto, Xavier, aponta o corpo escondido da
muçulmana como símbolo da cultura repressora que a mulher ocidental em crise
interpreta como proteção e segurança; enquanto a invisibilidade da protagonista
significa sua inexistência como sujeito. Ser vista, para ela, é uma forma de auto-
afirmação, o que seu status de mulher “livre e liberada” não lhe garante. O conto
denunciaria, portanto, a inexistência da mulher como sujeito do próprio destino, através
da apresentação de duas figuras diferentes: a protagonista desejosa de ser vista como
sujeito de seu destino e a mulher muçulmana, marcada pela resignação. Mas é esta
mulher que permitirá que a narradora olhe para si mesma, se descubra, para assim,
organizar uma nova ordem onde ela possa ser enxergada.
Outra personagem significante pode ser encontrada em Obsceno Abandono,
romance narrado em primeira pessoa, que pode ser lido como um extenso, enraivecido
e desesperado monólogo de uma mulher abandonada. No entanto, não há na narrativa
um autopiedoso lamento de vítima. Como costuma acontecer na literatura de Marilene,
a protagonista se defende atacando. “No dia seguinte, ou eu armava uma vingança
contra Valmir ou adoecia, tinha uma febre como tive numas férias.” (OA: p.25). Como
esclarece a lembrança de um livro cujo título e autoria não se recorda, a narradora
demonstra que faz parte de sua humanidade a vingança contra aquele que a fez
sofrer:
“[...] Ao ofendido, preterido, uma coisa fica clara, de uma maneira tão
penetrante como quanto as dores agudas iluminam o nosso corpo. Ele
compreende que no íntimo do amor obcecado, que disso nada sabe e nada
deve saber, vive a exigência de quem não está obcecado. Ele sofreu uma
injustiça; daí ele deriva a reivindicação do direito e, ao mesmo tempo, tem que
rejeitá-la, pois o que ele deseja pode vir da liberdade. Nesse apuro, o
repudiado torna-se um homem”. (OA: p.14)
A narrativa é um mergulho no que de visceral nas relações humanas. a
representação da humanidade, a busca pelo equilíbrio humano diante de tantas dores
79
agudas, feridas, chagas incuráveis. Representa um inventário implacável das
pequenas e grandes vilezas que vêm à tona quando há uma irregularidade de ritmos e
expectativas entre dois amantes.
Obsceno abandono (2002), de maneira resumida, alude à situação de uma
mulher rejeitada pelo outro do seu afeto. A protagonista faz de sua dor um processo
contra o mundo dos homens, especialmente daquele que a rejeitou para continuar ao
lado da “esposa legítima”, ainda que leve uma vida medíocre. Por isso, a narradora
intenta vingar-se deste homem que a abandonou.
O segredo é não se emocionar não se emocionar nunca, não revelar aos
outros o que você está sentindo. [...] Ou então matar [...] Uma pessoa não pode
enfiar seu sexo, seu dedo, seu membro no sexo da outra e depois ir embora!
Vagina é talho aberto: eu sou um sangue, Charles, seu idiota. É uma questão
de se rebelar: Pois eu quero que você morra, Charles. Para que passei cinco
anos da minha vida nisso? Saio sem nada uma mão na frente, outra atrás. É
uma questão de chamar a isto de obscenidade: uma pessoa não pode enfiar a
língua profundamente no sexo da outra um dia (inaugurando gostos,
despertando sensações, provocando arrepios de pura vida) e desaparecer
depois [...] Eu quero que você vá pro inferno, Charles. De todas as pessoas que
não me quiseram, você foi a pior (OA: p.30-31)
A imagem da vingança contra homem amado, caso queiramos fazer uma
cartografia desse desejo, é antiga. Basta lembrarmos a história de amor e traição, raiva
e vingança na tragédia Medéia de Eurípides (480 - 406 a.C.), uma reflexão sobre a
condição de uma mulher, aviltada depois de sacrificar tudo em nome de uma paixão. É
interessante notar, igualmente, que as três fúrias (as Erínias) da mitologia grega, eram
representadas por mulheres, virgens aladas vestidas como caçadoras, com chicotes,
foices e tochas que habitavam o mundo subterrâneo e retornavam à terra para reforçar
as pragas e punir atos anti-sociais. Eram elas: Tisífona (a vingança contra os
assassinos), Megera (o ciúme) e Alecto (a raiva contínua).
Na literatura feminina contemporânea, estes exemplos de mulheres fortes
podem ser percebidas em personagens que, abandonadas, não reagem como
mulheres submetidas a uma ordem. Conseguem separar o ato de amar e o ato de
80
reivindicar, de buscar os seus direitos. Desejam ter suas vontades reconhecidas, ainda
que isto represente o desejo de ser amada pelo homem que não as quiseram, que as
rejeitaram. Um aspecto positivo nessa representação é a forma consciente como essas
personagens agem, ou seja, longe de terem apenas insights significativos tal como a
personagem Macabéia de A hora da estrela - ou de agirem em conformidade com a
ordem estabelecida, as personagens aqui em discussão revelam uma clara
consciência do papel que exercem na sociedade, reivindicando seu lugar nas estruturas
sociais.
O que percebemos é que, de maneira mais frequente, a escrita feminina tem se
demonstrado agressiva, inclemente, expondo uma forte carga de ferocidade linguística.
As mulheres enfrentam os sujeitos masculinos e, como seguindo um projeto de criação
ou sustentação de uma autonomia, parecem se vingar dos seus antigos opressores. É
o que vemos no conto “Aqui se faz, aqui se paga”, contido em Falo de Mulher de Ivana
Leite:
Ele não tinha esse direito. Não depois de tudo que vivemos juntos. Um dia
namora comigo, me leva ao cinema, jura eterno amor, no outro diz que não
quer mais saber de mim? E as promessas, os beijos, as juras de amor? Não,
isso não se faz, não se brinca assim com mulher. Um belo dia ele toca a
campainha, senta-se a minha frente [...] diz que [...] estava tudo terminado [...]
eu virei bicho [...] resolvi dar um tempo [...] como se não bastasse, ainda teve a
cara de pau de me dizer que namoro é coisa que se termina todo dia [...],
quando me apontou a porta da rua [...] essa vai ter troco [...] dois, três dias de
novo fui de novo à sua casa [...] comecei a chutar a porta [...] no jardim havia
uma primavera que arranquei com raiz e tudo. Quem disse que primavera não
serve pra matar um homem? Taquei a primavera na janela, com toda força.
Machuquei minha mão inteira nos espinhos, virou um sangue só. Depois
passei a mão suja de sangue na parede branca da casa e manchei tudo de
vermelho, de propósito. A primavera não o matou. Ficou lá, enroscada na
grade de proteção, toda torta como eu. Mas os vizinhos saberão que aqui mora
um homem capaz de fazer uma coisa dessas com uma mulher. (LEITE: 2002,
p.53-55)
O conto expõe a história de uma mulher que é surpreendida com o fim do seu
namoro. Ao invés de levar a vida adiante, a personagem se revolta com a situação por
sentir-se injustiçada por tudo o que ofereceu, como podemos observar no trecho a
81
seguir: “Você está pensando que eu sou o quê para ser deixada assim?” ( LEITE, p.
53).
A personagem, neste conto, assume-se como mulher tradicional, aquela que
fica presa aos relacionamentos amorosos e que compartilha da visão de que os
relacionamentos amorosos, tais como o casamento, são uniões indissolúveis, numa
expressa dependência afetiva.
Antonio Silva (2009) acredita que, embora haja em toda a narrativa a
demonstração da dependência afetiva dessa mulher em relação ao homem de quem
gosta, outra face de seu comportamento se revela, de modo a ser possível perceber a
construção de um outro modelo de mulher que surge no final do século XX e início do
século XXI: é a mulher transitória ou em processo de redimensionamento. Ela admite a
fraqueza de pertencer psiquicamente ao outro, mas, ao mesmo tempo, não corrobora
as atitudes sob a antiga ordem, em que o homem exerce total controle de sua vida.
Observamos que a personagem se comporta não como quem “quer a todo custo” o
objeto de prazer, como se estivéssemos diante de um sujeito portador de traços
obsessivos. Segundo Silva, na luta por manter uma postura coerente com o ideal de
“mulher sujeito de si”, independente, coloca o comportamento masculino sob um
rigoroso processo de avaliação e ousa desafiá-lo, enfrentando o homem que a rejeitou
no espaço dele. Os palavrões, a exposição pública de uma relação íntima soa como
uma vingança porque concentra forças no não enfrentamento do outro, que se
esconde, que não sai de dentro de casa para enfrentar a mulher que tanto maltratou. A
sua vingança não reside no fato de tê-lo matado, porque não o conseguiu. Consiste em
sair do seu antigo posto de somente amante e desmascarar o homem de quem gosta,
mas que a faz sofrer.
Outro aspecto relevante, apontado por Silva, é que ela quer matá-lo, mas “a
primavera” não tem porte suficiente para tal fim. A imagem da primavera permite
lembrar o conto “O búfalo” de Clarice Lispector. Percebe-se neste texto de Lispector,
dentre vários aspectos, a problemática da solidão e do ódio. Neste conto, a
personagem rejeitada pelo homem que ama, busca odiar este que a feriu, por isso, vai
ao zoológico, desejando ter acesso à aprendizagem do ódio. Acreditando que tal
aprendizagem se dará por meio da observação da maneira como os animais
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relacionam-se. Em sua visão, da mesma forma que o amor, o ódio é aprendido e
vivenciado na convivência com outros seres. A lógica da personagem é a de que entre
os chamados irracionais haveria uma violência gratuita e instintual, uma espécie de
pulsão da existência dos bichos, que determinaria o ódio entre eles. Todavia, quando
adentra o zoológico, percebe que os animais estão todos enamorados porque é
primavera: Mas era primavera. Até o leão lambeu a testa glabra da leoa. Os dois
animais louros. A mulher desviou os olhos da jaula [...]” (1998, p.126). A personagem
mostra admiração ao se deparar com tal fato. “Mas isso é amor, é amor de novo”. A
personagem parece se revoltar ao ver um ato de amor praticado por um animal que,
segundo ela, deveria ser solitário e odioso. A mulher observa, ainda, outros animais
para ver se neles ela encontraria a si mesma ou "aprenderia" a odiar. Ao final da
narrativa, se encontra com o búfalo e, olhando diretamente em seus olhos, ela encontra
um ser solitário, com o qual parece identificar-se. “E os olhos do búfalo, os olhos
olharam seus olhos. E uma palidez tão funda foi trocada que a mulher se entorpeceu
dormente”. A personagem, como podemos perceber, promove, com essa busca, um
encontro metafórico com o objeto de desejo na imagem do búfalo, que título ao
conto.
Ainda em Falo de mulher dois escritos servem como exemplo para discutir a
“impotência” do homem diante das aventuras emancipatórias dessas mulheres. São
eles: “Foda-se, meu bem e “Receita para comer o homem amado”.
“Receita para comer o homem amado” é o conto de abertura da obra Falo de
mulher. Um conto extremamente curto, que ensina a receita contra a opressão
feminina:
Pegue o homem que te maltrata, estenda-o sobre a tábua de bife e comece a
sová-lo pelas costas. Depois pique bem picadinho e jogue na gordura quente.
Acrescente os olhos e a cebola. Mexa devagar até tudo ficar dourado. A língua,
cortada em minúsculos pedaços, deve ser colocada em seguida, assim como
as mãos, os pés e o cheiro verde. Quando o refogado exalar o odor dos que
ardem no inferno, jogue água fervente até amolecer o coração. Empane o pinto
no ovo e na farinha de rosca e sirva como aperitivo. Devore tudo com talher de
prata, limpe a boca com guardanapo de linho e arrote com vontade, pra que
isso não se repita nunca mais. (Leite, 2002, p. 13)
83
Como um conto de abertura do livro, serve para apresentar os demais, para dar
uma ideia do que virá em sequência. A estrutura do texto é de uma receita culinária, o
que nos remete imediatamente ao universo doméstico tão vinculado à figura feminina
em nossa sociedade. outros pontos a se ressaltar: o título, “Receita para comer o
homem amado”, também trabalha com uma ambiguidade simples. Os recursos estão
todos interligados: a aproximação entre os instintos alimentar e sexual é evidente. Silva
faz-nos lembrar que, na linguagem coloquial, “comer” é um verbo que indica ação
sexual de um homem sobre uma mulher. . Ou seja, o homem é aquele que come, que
domina, que fica por cima. A mulher representa a que se deixa comer, submissa,
inferior, a que fica por baixo. Aqui, entretanto, quem vai comer é a narradora. Há,
portanto, uma inversão da expressão machista “comer mulher” ainda cultivada
pelo imaginário coletivo masculino que tem, quase na mesma proporção, adeptos no
gênero feminino. A expressão comer alguém, culturalmente enraizada no repertório do
imaginário coletivo do brasileiro, lembra-nos Silva, carrega consigo o estigma
depreciativo do verbo comer por estar associado a uma relação predatória
antiquíssima, que remonta bases primitivas e falocêntricas das sociedades, a uma ação
impetrada sobre e contra a mulher que é comida ou “coberta” pelo homem (no
imaginário coletivo das relações homoeróticas a expressão conserva o mesmo teor
negativo, sendo atribuído valor positivo ao predador, ao que come, ao sujeito ativo, e
uma interpretação erroneamente “grosseira” ao sujeito paciente desta relação, “aquele
que se deixa comer”).
Nesse sentido, podemos dizer que em “Receita para comer o homem amado”
inverte a antiga lógica, pois a mulher é o sujeito, o elemento ativo na relação. Silva traz
o estudo de Sócrates Nolasco (2006), que, na obra O primeiro sexo e outras mentiras
sobre o segundo, analisa a expressão “comer” do ponto de vista da antropologia
cultural e considera que razões para acreditar na mulher como “ativa”, dando um
novo olhar para as “mentiras sobre o segundo sexo”. Evidencia, em sua leitura, que “na
relação boca/vagina-pênis, é a porção rachada, fendida, aberta que absorve
literalmente o alimento: não apenas o pênis, que é introduzido e consumido pela
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‘vagina dentada’, mas também o próprio líquido espermático é absorvido pela vagina-
útero para o feminino engendrar uma vida”.
Segundo Silva, a expressão comer, neste sentido, ganha um significado mais
violento ou agressivo ao ser utilizada pela mulher, do que quando proferida pela boca
do homem. Duas razões justificam esta agressividade: primeiro, porque o valor
semântico do ato predatório e canibalesco foi questionado e rediscutido ao longo da
história e, em segundo lugar, porque quando usada pelo homem, a lógica instaurada,
por já ser lugar comum, não soa estranha aos ouvintes ou interlocutores. Ao ser usada
na pulsão verbal de uma mulher, o valor semântico da expressão é recuperado num
tempo e num espaço diferenciados, logo a força elocutiva e seu valor semântico
adquirem posturas atualizadoras. Igualmente, a lógica do ato, por ser estranha aos
interlocutores, tanto para homens quanto para mulheres, parece instaurar outra norma,
numa proporção inversa ao uso da mesma expressão por sujeitos pertencentes a
gêneros diferentes. A expressão ganha novo sentido ou se atualiza porque funciona
através da transgressão, da violência da linguagem, num extremo ato de simplificação
de uma estrutura ideal comum: “o feitiço virou-se contra o feiticeiro”, ou seja, a
expressão de valor cultural negativa usada por homens para se referir às mulheres é,
agora, usada numa proporção inversa.
no outro escrito, “Foda-se, meu bem”, quinto conto de Falo de mulher, nos
desperta outra leitura. A história também aborda a crueldade que resulta de uma
vingança qualquer. Mas, ao contrário do conto anterior, Ivana não se utiliza, aqui, do
humor, para dar o seu recado. O primeiro parágrafo nos diz:
Esperar pela morte de Paulo, vê-lo nesta cama sem chance alguma está sendo
terrível pra mim. Quando cochilo tenho pesadelos horríveis e acordo com o
coração disparado. Paulo está em coma dias, não mais sinal de vida.
Quantas vezes desejei que ele morresse de morte sofrida, destas bem
doloridas, mas eis que quando chega a hora, quem mais sofre sou eu. Qual de
nós merecia castigo tão grande? (p. 23)
Na visão de Silva, já no título, temos numa frase tão simples uma complexidade
cultural sendo dessemiotizada ao ressiginificar atores “legais” para falar determinados
85
textos e/ou palavras. Temos, nesse título, o verbo pronominal foder-se cujo sentido
linguístico-cultural figura em uma espécie de “campo minado”, pois funciona,
principalmente em momentos de extrema tensão do sujeito, como uma interjeição
“pornográfica” ou de agressivo aspecto erótico, acompanhado do vocativo “meu bem”,
que figura semanticamente no lado oposto do verbo pronominal, pois a
expressão/vocativo “meu bem”, quando não ironicamente, é sempre utilizada no Brasil
com um sentido positivo, carinhoso, terno.
A narradora desse escrito, em tom que mistura lamento e objetividade, conta-
nos sobre seu relacionamento com Paulo que, “sempre bebeu além da conta. Me batia,
me xingava, uma vez furou meu pescoço com canivete. Quando engravidei, jurou
mudar de vida, procurar emprego [...] com barrigão de oito meses, eu tinha de sair
correndo atrás de ajuda dos vizinhos. Um dia não voltei mais”.(Leite, p.23). Tempo mais
tarde, quando já tinha criado a filha com Rubens, seu atual companheiro, encontra o pai
biológico de sua filha em estado deplorável: Paulo mendigava e estava à beira da
morte. Enquanto ela enriquece, ele vira mendigo. A primeira conclusão parte de uma
estereotipificação: o homem não se desenvolve socialmente sem uma mulher ao seu
lado.
A tensão do escrito, porém, inicia-se quando, percebendo que o ex-
companheiro morria e ela culpava-se por não lhe dizer detalhes da gravidez, cogita
falar para ele da filha que outro educou. Segundo Antonio Silva (2009), a técnica
narrativa narração em primeira pessoa engana, momentaneamente, o leitor, que é
induzido, também momentaneamente, a acreditar que ela contará ao seu ex-
companheiro que ele é pai de uma filha: “encontrei-o deitado sobre uma maca no meio
do corredor. Apertei-lhe a mão e prometi não deixá-lo nunca mais”. Ficamos, como
leitores comprazidos em vê-la na iminência de revelar o fato ao moribundo. Tal é a
nossa surpresa quando, no último parágrafo, lemos a seguinte fala: “Tento reconhecê-
lo neste homem de barba feita e banho tomado que morre aos poucos ao meu lado,
mas não consigo. De vez em quando, chego perto pra ver se ele respira. Em casa
pensam que estou na praia, preferi não contar nada a ninguém. Uma única vez ele me
perguntou sobre o filho que eu esperava. Disse-lhe que abortei”. (LEITE: p.24). De
acordo com Silva,
86
A resposta que à pergunta do ex-marido fecha o escrito, literalmente
abortando um plano nascido de uma compaixão perante o outro em seu leito de
morte. A vingança dessa mulher é forte a ponto de, mesmo em face da
morte/impotência do outro, não ser capaz de perdoar atos antigos e de omitir
uma verdade que, segundo o imaginário cristão, poderia ser fonte de alguma
transformação benéfica na hora da morte. Diante da morte do ex-companheiro,
matou a relação, matou as lembranças, matou no outro o sonho do filho um dia
gestado. Para o moribundo, morreu junto com ele a possibilidade de expansão
e sobrevivência pelo sémen(te). (SILVA: 2009, p.60)
A atitude da mulher se configura como uma vingança contra o
homem/patriarcalismo. Esta desforra contra a opressão masculina se estabelece em
outros escritos de Ao homem que não me quis, também de Ivana Leite. “El choclo”, por
exemplo, conta-nos a curtíssima história de Mercedes:
Mercedes colocou o vestido de cetim, pintou de carmesim os lábios e entrou na
escola de tango num gesto grená. Às três da tarde voltou para casa, matou com
sete facadas o marido que dormia (ele não tinha bigode) e voltou para exercitar
a lição número um. (LEITE: p.20)
Esse é o conto na íntegra. Curto como o trajeto percorrido até a ação
impetrada contra o marido. Neste conto, fatos, objetos, pessoas e palavras parecem
ser uma coisa só. Para esta mulher, a faca simboliza seu insight, sua disposição e sua
capacidade de eliminar aquilo que não faz parte de sua opção de vida, de criar finais
nítidos e abrir novos começos. O vermelho que envolve todo o conto encarna a
lembrança de uma consciência selvagem, da união com a vida instintiva natural. O
tango que Mercedez começa a aprender é sua forma de demonstrar aos outros que
encontrou seus próprios caminhos.
O “tango”, introduzido no enredo, qualifica o gesto de Mercedez como
transgressor. Este ritmo nasceu do século XIX, configurando uma mistura de ritmos,
entre os quais o candomblé, uma dança de escravos, proveniente dos subúrbios de
Buenos Aires. Inicialmente, este ritmo era dançado por dois homens. Interessante
87
colocar que a dança era considerada como “imoral”, sendo que somente prostitutas, e
no início nem elas, aceitavam participar desses bailes. A origem do tango liga-se aos
eventos sócio-históricos da Argentina. No final do século XIX, o país recebeu muitos
migrantes, sendo que 50% da sua população passaram a ser formada por
estrangeiros. Destes, 70% eram homens, que se concentravam, em sua maioria, na
capital, espaço que recebia também migração interna, essa também majoritariamente
masculina. Buenos Aires representava, portanto, o destino de todos os migrantes, uma
vez que era o único grande centro urbano em um país agrícola, ambiente aglutinador
devido a presença do porto, que oferecia empregos para uma mão de obra pouco
especializada e flutuante. Essa população sem raízes, saudosa de suas pátrias,
separada de suas famílias, homens tentando “fazer a América”, sozinhos, iniciaram a
dança do tango. Durante a política de Juan Domingo Perón, a Argentina (e de maneira
acentuada Buenos Aires) passou por um processo de industrialização e modernização,
mas o tango, a “alma portenha”, resistiu aos diversos processos de mudanças.
As características do tango, como música de prostíbulos, são evidentes. Mas o
tango representa, sobretudo, tristeza; tristeza que marca os grandes centros urbanos,
tristeza por causa da perspectiva perdida no meio da opulenta Buenos Aires criada pelo
porto, o mesmo porto em torno do qual florescia a miséria. (Faraco: 1998, p. 112)
Dessa forma, o tango trará a violência própria de populações pobres e
marginalizadas, bem como das paixões impossíveis. Assim, transgressivo e
movimentando-se entre a vida e a morte, o tango ilustra bem o gesto forte da
protagonista. A escolha deste gênero – fatalista, incisivo e de grande carga dramática -
traduz a dramaticidade do ato, com uma economia de recursos linguísticos.
Feitas estas digressões, podemos concluir que as mulheres que optam pela
não dependência às estruturas arcaicas do patriarcado, nas obras acima apontadas,
passam por dois estágios básicos de existência: o primeiro é a vingança contra o
sistema/discurso que as oprimiu, lançando sobre o homem um “esporro”
comportamental que varia desde a busca pela igualdade de tratamento no interior do lar
até o ato mais violento, que culmina com o assassinato do marido/companheiro. Há,
pois, um campo aberto de lutas. O segundo estágio diz respeito à solidão. Todas as
personagens que violaram o código das relações de gênero pautadas em pressupostos
88
de base patriarcal/falocêntrica, sem exceção, sentem o “sabor” da solidão invadir-lhes o
ser, mesmo estando com outro companheiro ao lado.
Todas estas mulheres, acima citadas, revelam-se capazes de expressar seu
sentimento de raiva diante dos relacionamentos, traduzindo um inconformismo
agressivo. Estas dialogam com Rísia, de As mulheres de Tijucopapo, que diante da
interrupção temporária de sua fala, numa espécie de mudez imposta, assume, como
bandeira, um relato doloroso, mas ao mesmo tempo, irado, contra o abandono de
Jonas, contra as violências sofridas, contra a opressão da cidade.
A vida destas mulheres configura emblemas da violência, onde elas convivem
com a exclusão e respondem de forma violenta, como comenta Elódia Xavier, a
respeito de Rísia:
Aqui, a violência é a mola propulsora que leva a personagem a fazer a
revolução, juntando-se às mulheres guerreiras de Tijucopapo. A própria
linguagem está impregnada de semas violentos, como expressão de uma
subjetividade amarga, que busca na luta o resgate da dignidade perdida.
(XAVIER, 2007, p. 120)
A violenta resposta de Rísia às agressões sofridas, ameaçando revolução e
ataques, encena de diferentes formas o corpo como um campo de batalha de que fala
Arlindo Barbeitos (1997) e também o corpo colonizado, discutido por Gloria Anzaldúa
(2005) e Chandra Mohanty. (2003). Mas esse corpo representa, acima de tudo, uma
fala, um discurso. Como assinalou Donna Haraway,(1994, 253) "estamos
dolorosamente conscientes do que significa ter um corpo historicamente constituído":
"Nossos corpos, nós mesmas: os corpos são mapas de poder e identidade".
(HARAWAY, 1994, p. 281). Recusando a "colonialidade do poder", de que fala Walter
Mignolo, (2003) as protagonistas das narrativas se negam a serem cindidas, corpos
colonizados falados por outros.
Por isso, desejam falar de sua experiência, desejam, como em uma arena,
entrar na disputa de significado, representando-se a si mesmas. Em defesa deste ideal,
movimentam-se, pegam a estrada, rejeitam a fixidez, partem, voltam, buscam. A
89
questão identitária que está posta nessa demanda é vital para cada uma delas. Rísia
recupera sua origem nessa procura por outro lugar, e sua identidade se faz no próprio
movimento. Sua condição de passagem e transitoriedade, a busca incessante que a
impele de um a outro lugar, talvez possa ser identificada à condição dos exilados. As
referências fixas e o sentido da origem se perdem; por isso a necessidade vital da
mudança e do movimento como uma constante que desestabiliza e une os fragmentos
de sua identidade.
Sair do espaço fechado do lar representa para cada uma das personagens
citadas a busca daquilo por que mais anseiam: o espaço da rua que, ainda que
frustrante, agressivo, brutal, promete a liberdade de uma incessante busca, que apenas
se inicia no ato de sair.
Rísia arrisca-se nesta experiência nômade, alimentada pelo desejo de voltar
para casa, a mítica casa materna representada por Tijucopapo. Um exílio que lhe
proporcionará a vivência do que Said define como algo paradoxal, pois, de um lado,
haverá a dor de "uma fratura incurável" e, de outro, a liberdade existencial de quem
"atravessa fronteiras, rompe barreiras do pensamento e da experiência" (2003, p. 58).
Tal experiência de liberdade pode ser interpretada, por um lado, como o objeto de
desejo que move a personagem Rísia, do princípio ao fim da narrativa, fazendo dela
uma mulher guerreira, que ultrapassa as prescrições que historicamente fixou as
mulheres no espaço doméstico, numa tentativa de dominá-las, domá-las, como cavalos
com rédeas, para utilizarmos a metáfora de Gwynne Kennedy (2000), citada no
primeiro capítulo.
Em nome da liberdade, do desejo de atravessar fronteiras, as personagens
felinteanas se movimentam, muitas vezes elas erram, se perdem, mas, sempre,
recomeçam. Traduz, assim, um modo particularmente feminista de ler e interpretar o
mundo. Desta forma, procura-se traduzir discursos que interfiram em seus contextos;
um discurso que representa, com guerra ou sem ela, uma espécie de luta política
contemporânea, em que se deslocam e subvertem lugares de poder. A partir destes
gestos, elas reinventam seu pertencimento, reinscrevem a identidade, sem perder a
liberdade.
90
CAPÍTULO 3: A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA DA
RAIVA EM AS MULHERES DE TIJUCOPAPO
Um livro precisa do leitor, mais do que o
leitor imagina.
Talvez seja o livro a mais solitária das
existências materiais.
Este, que se constrói num caminho de
aparente excessivo egoismo, precisa do
leitor que acredite na raiva como uma
possibilidade amorosa; e que tenha
paciência de atravessar com ele este
caminho cheio de pedras.
Do contrário, ele não serve para nada.
(Marilene Felinto : O lago encantado de
Grongonzo)
Em 1980, com a publicação do primeiro romance de Marilene Felinto, As
mulheres de Tijucopapo, surge a personagem Rísia. Mal nasce e irrompe em
movimento, deixando São Paulo rumo a Tijucopapo, terra natal de sua mãe, para
assumir suas raízes nordestinas e resgatar a dignidade perdida.
Rísia nos é apresentada num solavanco, por assim dizer, que surpreende pelo
atrevimento com que interpela o leitor ao começar a contar sua história: Vão à merda
das minhas lombrigas, papai e mamãe, vocês que se intrigam e me intrigam nas suas
intrigas me fazendo chorar tanto assim. Vão aos meus oxiúros, às minhas giárdias...”
(MT: p.12). No primeiro capítulo, pois, determina o tom de revolta de sua narrativa,
despejando toda sua raiva nos progenitores.
91
Proveniente de uma família pobre de Pernambuco, Rísia migra no Natal de
1969 para São Paulo. Na capital paulista, vai morar com a família num hotel velho que
se transformou numa espécie de cortiço.
Em São Paulo, a menina ganha uma bolsa de estudos em uma escola
particular onde convive com meninas gordas e rosadas que estalavam beijos no rosto
de Dona Penha” (MT: p.70), a professora. Nesse ambiente, percebe sua diferença: ela
era a menina que “tinha cambitos finos”, “cabelo duro” e que “nunca beijaria ninguém”
(MT: p.70). Nessa fase de sua vida, no entanto, é que ela se diferencia dos seus
familiares: estudou, se formou e aprendeu uma outra língua, ao contrário de seus
irmãos. Melhor capacitada, passa a trabalhar e a ganhar mais que todos dentro da
casa, sustentando a família. Porém, não ganha o respeito esperado de seus parentes;
os irmãos nunca deixavam comida para ela, o pai sempre vasculhando seu armário.
Num determinado momento de sua vida, que não pode mais suportar tais
desrespeitos e sai de casa. A contradição entre um passado pobre e um presente bem
sucedido, porém, vai acompanhá-la por toda a narrativa. Ela sofre em saber que,
enquanto voa num avião da Varig, sua família e Nema, a amiga de infância, nunca
tenham alcançado o mesmo. Lembra-se, constantemente, de sua mãe a dizer-lhe na
infância pobre: “pensa que o céu é perto?” (MT: p.96). O tom da pergunta era quase
uma afirmação que o céu (espaço metafórico da prosperidade) estava distante de sua
realidade. Ela, porém, constata que sua mãe estava errada: o céu era perto.
Abandonada pelo homem amado, ela inicia uma série de reflexões que a levam
a rememorar outros abandonos sofridos, marcando-a a ponto de fazê-la oscilar entre
desamparo, dor e raiva. Desamparo que a motiva a ir em busca de sua identidade e
origem. Com isso, ao retornar a Tijucopapo, local onde sua mãe nasceu, defronta-se
com todas as contradições de sua vida: a infância pobre em contraste com o presente
bem sucedido; conhecer outra língua, desejar se expressar em inglês, mas, às vezes,
impotente, emudecida, preferindo grunhir a falar.
O afastamento de Jonas, portanto, coloca-a em movimento. Rísia se põe a falar
e seu discurso chega a outros espaços. Apesar de a narrativa se passar nessa viagem
mítica de volta a Tijucopapo, esse espaço aberto possibilita que a voz de Rísia seja
92
ouvida, seja pública. Suas angústias e contradições dialogam sempre com seu leitor
que, dentro da narrativa, é seu companheiro de viagem.
A complexidade da personagem Rísia é fruto da também complexa tessitura do
texto de Felinto. Sua escritura se fundamenta num discurso fragmentado e, por assim
dizer, espiralado; as ações vão e voltam na narrativa, tocando-se e entrecruzando-se,
mostrando o turbulento fluxo das memórias de Rísia.
Consequentemente, o desenvolvimento de sua obra imita uma escrita
labiríntica: não como seguir reto devido à ausência da linearidade; sucessivos
fragmentos se entrecortam, improvisando aberturas diversas, iniciando o paradoxal
movimento de perder-se para, através deste ato, conhecer-se melhor, sair do curso
preestabelecido e experienciar.
O discurso-trajeto espiralado, tal qual um traço sinuoso, simboliza a dúvida e a
incerteza, assim como a contemplação desbravadora do percurso traçado. Desta
maneira, as várias dúvidas, incertas, tal como aparecem na escrita de Felinto, mantém
o conteúdo da narrativa em estado velado, numa constante repetição, experienciando
todas as hipóteses ainda que não guardem relações diretas com o mistério. O incerto
configura aquilo que não pode ser esclarecido sem o risco de ser destruído e, por isso,
é o que não apresenta um fim.
Destarte, a espiral permite uma imagem com a qual podemos fazer analogias
com a escrita felinteana, pois representa uma metáfora do movimento inacabado do
mundo. De maneira semelhante, a escrita, a espiral aponta para uma etapa anterior ao
começo e posterior ao fim.
Podemos dizer que este discurso espiralado em As mulheres de Tijucopapo
objetiva traduzir o movimento de Rísia, gerador de uma sensação de não fechamento,
infinitude, de obra aberta; que não acaba. A chegada até Tijucopapo, podemos
perceber, não significa o fim da narrativa, mas sim uma possibilidade de recomeço,
agora com as forças refeitas, com suas raízes reintegradas, enfim, pronta para a luta.
Resumida a obra, a fim de acompanharmos este percurso de Rísia, teceremos
uma leitura crítica do romance, centrada em dois eixos de investigação: 1. a temática e
estrutura da obra e 2. a linguagem metafórica.
93
3.1. As mulheres de Tijucopapo: temática e estrutura
Os dias foram correndo e ela desejava
achar-se mais. Chamava-se agora
fortemente e não lhe bastava respirar. A
felicidade apagava-a, apagava-a...
queria sentir-se de novo, mesmo com
dor. Mas submergia cada vez mais.
Amanhã, adiava, amanhã vou-me ver. O
novo dia porém perpassava pela sua
superfície, leve como uma tarde de estio,
mal franzindo seus nervos. (Clarice
Lispector. Perto do coração selvagem)
As mulheres de Tijucopapo constitui um livro repleto de signos que nos
remetem à raiva e à dor, o embate entre a vida e a morte, problemáticas que sempre
inquietaram a humanidade, explodindo em gritos que ecoam por toda a narrativa.
Embora as dicotomias estejam sempre presentes, não há, em As mulheres de
Tijucopapo, pólos contrários: vida e morte, amor e ódio, formam uma moeda. A
narradora, sobre que nos deteremos mais adiante, protesta contra as violências da
existência, o abandono, a falsidade, a traição, o silêncio e a pobreza; não aceita as
artimanhas impostas pela civilização moderna, da qual decorre uma vida falsa,
desprovida de uma experiência autêntica. Entretanto, se se expõe que a vida é uma
farsa, também se afirma que é preciso mentir para suportar a inutilidade da vida e
reprimir o sonho que existe no mais recôndito de cada ser humano, desejoso de que
não lhe caia a máscara.
Na meticulosa construção do texto, Marilene Felinto harmoniza uma variedade
de estéticas e tendências, algumas das quais estão entre as conhecidas vanguardas
européias, com destaque para a vertente expressionista, que se infiltra não apenas na
forma, mas também no conteúdo literário: a protagonista sofre intensamente, palmilha
toda a narrativa como a purgar os defeitos e a tentar recomeçar a viver, sempre aos
gritos, plasticamente aproximando-se da tela de Edvard Munch. O desespero
lancinante que se experimenta ao olhar O Grito, pintado em 1893, aproxima-se, em
94
tema e em técnica, da miséria, da dor e do sofrimento que se multiplicam pelo texto
felintiano.
O Grito, 1893.
A explosão da emoção e a retratação do sentimento por meio da deformação
visual da imagem, em que a dramaticidade (e, em certa medida, a tragicidade) avulta,
aproximam o texto de Marilene Felinto e a tela de Munch.
A obra de Munch e o texto de Felinto permitem inferir um mundo que se pode
revelar em total aniquilamento. Da mesma forma, observa-se a própria esperança de
que a rebelião reconhecida no desespero e na manifestação extremada da
indignação, do desconforto, da exclamação de um sonoro “Chega!” - coloque em
evidência uma condição humana abalada e prejudicada por um tempo em que homens
e mulheres, sem dúvidas, convivem sob tempos sombrios. As cores da obra de Munch,
cores vivas, fortes, talvez partilhem da convicção de que os tempos, embora
claramente submersos em trevas, possam abrilhantar-se, vivificar-se, ganhar novos
contornos, novas formas. É como se pudéssemos colocar Rísia nesta tela, visto que
95
ambas as obras permitem a sugestão da emoção expressionista, da dor expressa
através do grito. Dor presente não nos personagens, da tela e do romance, mas
também nos espaços em que circulam. É, talvez, por essa característica que nos
identificamos tanto com estes personagens, podendo sentir suas dores e gritos.
Projetamo-nos no quadro e passamos a ver o mundo torto, disforme e isso nos afeta
diretamente e participamos quase interativamente da obra. Ao mesmo tempo,
percorremos, com Rísia, sua caminhada numa estrada de lama e solidão, ao sol do
meio dia, lembrando dilacerações e dores. Em ambas as obras a procura por outro
tempo/espaço que dependerá do grito, do rebelar e das ações que dele emanarem,
como em eterno devir e também como um processo que se recria constantemente.
Estas características permitem perceber o aspecto expressionista das obras,
uma vez que a tentativa de apresentar uma experiência emocional em sua forma
mais constrangedora. No expressionismo, não a preocupação com o modo como a
realidade aparece, mas sim com sua natureza interna e com as emoções despertadas
pelo tema. Em nome deste objetivo, frequentemente o tema é exagerado e distorcido,
ou mesmo alterado, o que acentua a experiência emocional em seu mais intenso e
concentrado aspecto.
Os pintores expressionistas partilhavam a concepção estética de que a imagem
representada deveria estar impregnada pelas emoções do artista. Com efeito, para
diluir as fronteiras entre a subjetividade e a exterioridade, o expressionismo defendia a
proposta de um contato imediato com o “real”. A partir deste ato, os resultados das
imagens pictóricas expressavam certa ambiguidade, pois, ao mesmo tempo em que o
pintor pretendia olhar a realidade sem a presença de qualquer canal mediador, a
imagem resultante não conseguia manter a objetividade e a nitidez, uma vez que havia
a interferência das emoções neste gesto pictórico.
A pintura, portanto, não busca simplesmente a representação, a tradução, mas
a própria expressão da realidade e, como tal, traz em si todos aqueles elementos
atuantes e modificadores na relação sujeito/objeto. Giulio Carlo Argan, historiador da
arte, comenta sobre esse conflito decorrente da relação imediata entre sujeito e objeto
nos seguintes termos: “Para os artistas da Brücke a solução é um romantismo
entendido como condição profunda, existencial do ser humano: a ânsia de possuir a
96
realidade e a angústia de ser arrastado e possuído pela realidade que se aborda”
(ARGAN, 1992: 228).
Consequentemente, no expressionismo, a relação entre o pintor e a realidade
retratada sofre uma transformação profunda. A abordagem direta do real, proposta por
esses artistas, ao contrário do que havia sido explorado até então, não apenas admite
como também pressupõe a presença da subjetividade e da emoção no ato pictórico,
porque o artista expressionista não pretende apenas retratar o real; ele deseja se
misturar a ele, contaminá-lo com suas emoções e com sua própria subjetividade. Por
esse motivo, as pinturas expressionistas, muitas vezes, adquirem um aspecto soturno,
ou rude, ou mesmo quase caricatural, impregnadas pelos fantasmas de uma civilização
que pretende anular quaisquer vestígios de uma existência “outra” que não se ajustem
perfeitamente ao ideal por ela proposto. As emoções passam a interferir no gesto
pictórico, comprometendo a objetividade da representação e gerando, dessa maneira, a
deformação da imagem. Trata-se, portanto, de uma subversão da idéia cartesiana de
consciência, segundo a qual o sujeito que pensa tem acesso à realidade de uma forma
distanciada e analítica, sem misturar-se a ela.
As deformações, assim como o aspecto grotesco, representadas na pintura
expressionista representam, também, um contexto histórico no qual a modernidade
configura uma ameaça à sensibilidade e à liberdade criadora, contexto em que
predominam a instabilidade e a ansiedade diante de um grande número de
transformações vividas pela sociedade. Dessa maneira, a estética e as temáticas
expressionistas, ao imprimirem uma modificação intensa nos modos de perceber e
representar a realidade circundante, suscitam o questionamento dos valores e das
transformações da sensibilidade e do comportamento humano que vinham sendo
levados a cabo pela modernidade e pelo progresso tecnológico.
Aliada a esta estética expressionista, é preciso pensar a “técnica”: palavra-
chave na construção de As mulheres de Tijucopapo, romance que, verdadeiramente,
exige visitações, novas leituras, para que possamos absorver e compreender ao
máximo possível o texto e o projeto estético a ele subjacente. É preciso compreender o
romance como peça de arte (conscientemente construída) e algumas passagens do
romance parecem confirmar essa ideia, dando-nos a impressão de que seu discurso
97
fragmentado, frequentemente “labiríntico”, espiralado, venha a ser uma das artimanhas
da autora, que muitas vezes se detém em esmiuçar o cotidiano sofrido de Rísia-
criança, que imprime certa ambientação ao livro, ou em enveredar por reflexões
existenciais.
Assim, a complexidade de Rísia é fruto da também complexa tessitura do texto
de Felinto. Sua escrita se fundamenta num discurso fragmentado e, por assim dizer, em
forma de espiral; os eventos vão e voltam na narrativa, tocando-se e entrecruzando-se,
mostrando o turbulento fluxo das memórias da personagem-protagonista.
Consequentemente, a narrativa vai se desconstruindo, ganha em dor e em
desfiguração. Ou seja, torna-se obscura, dolorosa, hesitante, como se fosse arrancada
aos pedaços duma alma espezinhada. Rísia tal qual Dionísio dilacerado, busca uma
identidade, uma forma de afirmar a própria vida. Ela inicia um trajeto, marcado por
lembranças da dor, da morte, mas em busca de uma nova vida. Observa-se, pois, ao
longo da narrativa, a ordem, a desordem, o mergulho no caos e a reorganização,
simbolizando o processo de morte e renascimento da protagonista.
Para reforçar esta relação com Dionísio, podemos relembrar as constantes
quedas, mencionadas pela protagonista ao longo do romance. A chegada à Tijucopapo,
por exemplo, se dá de maneira incerta: Rísia desmaia duas vezes, por duas vezes cai –
sua vida sendo estruturada por quedas em sono profundo. Estas imagens da queda
traduzem os esforços da narradora e a sua necessidade inerente de reerguer-se,
ascender. O homem no mundo corresponde à noção de queda, separação, divisão. Se
utilizarmos os termos heideggerianos, diremos que estar-no-mundo é o dasein
16
. Este
se caracteriza pela possibilidade de levantar-se, quando movido pela angustia, pelo
questionamento. A recuperação de si mesmo traz a marca da autenticidade, como
movimento de busca do ser.
16
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.
98
É interessante reforçar que a literatura de Felinto traz em seu bojo a
problemática da vida e sua dependência em relação ao abandono, à traição e ao
fingimento; temas centrais no livro, que se apresentam como um “discurso obsessivo”,
enraivecido: “O que me dói nas safadezas, o porquê sofro ao encontrá-las, é porque
venho de um mundo tão safado de pai e mãe, de Lita, de tia... Que o meu mundo eu
quero consertado. Que foi por descobrir e lidar muito cedo com a safadeza dos homens
que perdi a confiança na dignidade deles” (MT: p.114).
Como se pode perceber, através deste trecho, no romance um tom
confessional, de prospecção, marcando dia-a-dia a peleja entre a dor e o sonho, entre a
vida e a morte, entre memória e prospecção; entretanto, chama-nos a atenção outra
oposição que se estabelece no texto da obra, mas com sentidos muito equivalentes: a
chuva, arquilexema da lágrima, da angústia e da tristeza como sentimento “pluvial”,
constante, que encharca, mas que ao mesmo tempo, empurra a protagonista como a
um barquinho a procura de um lugar distante da melancolia; e o sol do meio-dia, que
remete à dor de sua mãe: a dor que se torna a herança de Rísia:
Quando dava meio-dia, hora de minha escola, mamãe se metia a fazer tranças
no meu cabelo chorando de dor de cabeça. As lágrimas escorriam por seu rosto
e as tranças se dependuravam pesadas por minhas costas. Mamãe chorava.
Às vezes era alto. Ela dizia da dor de cabeça. Mas para mim era papai. Eu
sabia que era. Ela chorava as minhas tranças e eu ia para a escola como
uma enforcada se derretendo em brilhantina. Nunca mais pude gostar de
tranças. Nunca mais quero meio-dia a hora de minha escola. (MT: p.32)
Nessas palavras de Rísia é importante observar o sentido que adquire as
“tranças”. No enredo, o penteado que a mãe fazia para a menina ir à escola representa
o próprio movimento de construção da tapeçaria narrativa. Da mesma forma que a mãe
trança os fios de cabelos, formando nós, o enredo trança os fios de seus episódios num
dolorido e raivoso. Em seu percurso para a escola, Rísia percebe que o desenho
destes fios, destes nós, envolvem todos os seus ressentimentos de forma tão firme que
se tornam uma espécie de corda, a lhe enforcar: “Ela chorava as minhas tranças e
eu ia para a escola como uma enforcada”.
99
Rísia, pois, trança uma narrativa de avanços e recuos, com momentos de
brevidade e confusão, numa sucessão de vazios e tragédias caladas, ausentes. Fala
sobre perdas irremediáveis, paralisantes, de sofrimentos a lhe enforcar, sufocar,
marcando toda a sua vida: “Nunca mais pude gostar de tranças”. Um desgosto que
explicita que suas tranças, ao meio-dia, simbolizam a condenação, a rejeição da
condição feminina, constantemente violentada.
Durante a jornada que compõem os 33 capítulos do romance, o sol do meio-
dia aparecerá constantemente a marcar o estado de “insolação”, da mesma forma, a
chuva, representando a tristeza constante. Assim, estes tempos metereológicos
explicitados podem se aproximar muito mais de um artifício que, abarcando o
sentimento, tem como função opor morte e vida, sonho de liberdade e imobilidade,
todos faces de uma mesma totalidade.
Não é possível negar que o romance tenha um tom de teatralização, de
representação. O teatro, ou melhor, o drama, entra na composição do texto de Marilene
Felinto como componente estilístico e como tema. Assim, a concepção do mundo como
um ‘teatro universal’ parece exercer uma forte atração sobre o imaginário felintiano,
atravessando toda a sua obra. Mais uma vez, uma passagem do livro parece
comprovar estas cogitações:
Por quantos Manjopi não passei até que eu pudesse ser como hoje sou
capaz de arranjar uma cara que aguente uma festa de filhas de sargento. No
fim é essa merda que se consegue, essa merda duma cara que aguente.
Porque senão vira-se bicho. É preciso ir à festas, as mais diversas, para que
não se vire bicho. E eu, como me cago de medo da margem, eu arranjo cara
as mais diversas para piquiniques de festas as mais diversas (MT: p.100).
Estamos diante da essência do teatro. As mulheres de Tijucopapo, como
narrativa, inegavelmente um romance, mas, englobando o drama na construção de seu
texto. Uma de suas marcas aparece no trecho anterior, através da revelação das
diversas máscaras (cara que aguente) que a protagonista precisa utilizar para,
estrategicamente, manter o convívio social, ocultando seu sentimento “cruel”, capaz de
100
transformá-la em bicho. Explicita-se, portanto, uma tentativa de controle de seus atos,
de seus sentimentos.
Outro dado relevante, na obra, é a ausência de continuidade, que pode ser lida
como fruto da experiência estética de Marilene Felinto, e deve ser assim interpretada
porque joga para o leitor a responsabilidade de ligar os fatos que se estabelecem.
Outra peculiaridade do estilo da autora, merecedor de destaque, é a estratégia
da repetição de que se utiliza para a composição do texto que, além de permitir um
melhor encadeamento das ideias abstratas abordadas no livro, sugere-nos o martelar
da própria consciência da narradora que passa a questionar a própria origem, assim
como a origem das mulheres de sua família. Seu questionamento repetitivo remete à
negação, à revolta e ao desejo de buscar uma origem outra, que fosse mais forte:
Uma paisagem revolucionária de mulheres guerreiras. Eram mulheres que não
eram minha mãe. Essas mulheres, que não eram minha mãe, tinham a sina
das que desembestam mundo adentro escanchadas em seus cavalos,
amazonas defendendo-se não se sabe bem do quê, se sabe que do amor.
se sabe que do amor as fez sofrer. se sabe que do amor as fez traídas.
Mulheres na defesa da causa justa. (MT: p. 180-181)
Caminhar rumo a Tijucopapo é, pois, significativo para demonstrar sua recusa
ao estado de inércia de sua vida e da vida das mulheres traídas e traidoras, dadas,
flácidas, como sua mãe e sua tia, cuja resignação oculta a impossibilidade de todo
afeto. Rísia precisa se mover: “Estou indo em caminho de milhares de milhas para
Tijucopapo. Não vou ficar emperrada por uma ponte. Vou atravessar” (MT: p.104). As
palavras de Rísia apontam a ausência, em seu caminho, de uma ponte, construção que
permite a passagem sobre um determinado obstáculo que a narradora precisa transpor.
Sua advertência (não vou ficar emperrada), no entanto, demonstra a tentativa de
fortalecimento e a crença em sua capacidade de transpor as barreiras paralisantes. Se
por um lado o vocábulo “emperrada” traz a ideia de imobilidade, incapacidade, sua fala
demonstra a energia da superação: “Vou atravessar”.
Significativo, também, neste trecho, é o verbo “desembestar” (aparece no
romance também como adjetivo, desembestada) que pode ser lido de duas formas. A
101
primeira leitura exige ver o verbo como o ato de deixar de ser ingênuos, manipulados,
“bestas”. As palavras de Rísia nos autorizam esta leitura:
Nós somos um bando de bestas guiadas por um bando de bestas. Nós somos
bestas. Nada mais para ser feito. Somos bestas teleguiadas, controladas,
massificadas, espiadas, vigiadas, enquadradas, enxadrezadas na prisão da rua.
Uma penca de bestas. Uma renca de bestas mansas. (MT: p.125)
Rísia percebe o sistema opressivo, massificador, castrador, em que ela e
outros se encontram. Por isso, é preciso uma tomada de consciência, é preciso
“desembestar”: “Somos não. So-mos-não. E soluço. So-mos-não. So-mos-não”. (MT:
p.125)
A narradora reconhece que precisa se mover contra esta situação
enclausuradora, deseja ser livre. Esta negação em ser controlada, remete a um outro
sentido possível da palavra desembestar: o ato de correr em disparada. Rísia anseia
por se movimentar de forma dinâmica e descontrolada, entregando-se à liberdade total
e irrestrita. Opta, pois, por uma nova forma de vida: incontrolável.
Esta questão do trânsito, do movimento, do nomadismo, tão presente na obra,
engloba uma das características da pós-modernidade. Sobre este fenômeno,
Featherstone expressa :
Existe, na literatura sobre o pós-modernismo, uma tendência a criticar conceitos
de identidade fixa [...] Eles são criticados por se apoiar ou procurar estabelecer
categorias universais, identidades unificadas e modelos sistêmicos. Em
contraste com essa rigidez e inflexibilidade, na qual a teoria procura falar sobre
todos e em todos os lugares, as teorias pós-modernas enfatizam nossos
horizontes limitados e a integridade de todas as variedades do conhecimento
local. Nesse contexto, oferece particular interesse o uso frequente de metáforas
do movimento e da marginalidade. Existem referências à viagem, ao
nomadismo, à migração, ao cruzamento de fronteiras. O nomadismo e a
migração são encarados não apenas como características da condição global
contemporânea, mas como fundamentais para a linguagem.[...] O nômade
tornou-se uma categoria importante nesse tipo de literatura sobre os estudos
culturais. (FHEATHERSTONE, 1997, p. 174.)
As características pós-modernas de errância e deslocamento estão presentes
em As mulheres de Tijucopapo. Podemos localizar no texto de Felinto a errância como
102
deslocamento físico, à qual virá se sobrepor a dimensão interior e ontológica da
errância como busca de alhures, viagem existencial imprevisível em torno de si mesmo,
migrância, deriva.
Pode-se pensar, também, em “errância” e “escrita”, em que a errância configura
uma metáfora da escrita literária, arqueologia da palavra sempre ausente e inacessível,
viagem em busca de dizer o indizível; errância enquanto metáfora do ato de
descentramento próprio da criação artística.
A viagem, cujo objetivo é reconhecer-se e reconhecer a fonte de sua raiva, faz
com que Rísia traga para a trama outras personagens. no primeiro capítulo do
romance, a narradora apresenta-nos uma importante personagem para a sua
constituição ou indefinição como sujeito: a sua mãe, grande enigma (O resto, mistério,
nem ela sabe), uma das responsáveis por a personagem precisar ficar o tempo todo
tentando driblar a morte e a raiva: “Se houver uma guerra, a culpa é dela” (MT: p. 19).
O rancor em relação à mãe é constante na narrativa: “Mamãe me cansava de
indiferença, mamãe era uma merda” (MT: p. 34). Raiva e rancor levam a protagonista a
rejeitar veementemente sua mãe como modelo identitário, como vimos em trechos
anteriormente citados.
No artigo “A solidão das mães-meninas-sem-mãe: uma leitura de As Mulheres
de Tijucopapo de Marilene Felinto”, Lélia Almeida (2006) nomeia esta conflituosa
relação entre mãe e filha como matrofobia, ou seja a representação de uma filha
que rejeita veementemente sua mãe como modelo identitário. No artigo, Lélia cita
Adrienne Rich, uma das teóricas mais importantes sobre o assunto,
[...] La matrofobia, como la ha denominado la poeta Lynn Sukenick, no es sólo
el miedo a la propia madre o a la maternidad, sino a ‘convertirse en la propia
madre’. Miles de hijas consideran que sus madres, que han ejemplarizado la
resignación y el autodesprecio de los que las hijas están luchando por
liberarse, han sido las transmisoras forzosas de las restricciones y
degradaciones características de la existencia femenina. Es mucho más fácil
rechazar y odiar abiertamente a la madre que ver, más allá, las fuerza que
sobre ella actúan. Pero en un odio a la madre que llegue al extremo de la
matrofobia, puede subyacer una fuerza de atracción hacia ella, un terror de que
si se baja la guardia, se produzca la identificación completa con ella. Una
adolescente puede vivir en guerra com la madre, pero usar sus perfumes y
vestidos. Su manera de llevar su propia casa, una vez abandonado el hogar
familiar, puede ser la negación del estilo de su madre: no hacer nunca las
camas o dejar los platos sin lavar; es decir, un reverso inconsciente de la casa
103
inmaculada propia de una mujer de cuya órbita necesita salir. (RICH, Adrienne.
Nacemos de mujer: la maternidad como experiencia e institución. Madrid:
Ediciones Cátedra, 1976, p.339. apud ALMEIDA, 1996)
[…] La matrofobia se puede considerar la escisión femenina del yo, el deseo de
expiar de una vez por todas la esclavitud de nuestras madres, y convertirnos en
seres libres. La madre representa la víctima que hay en nosostras, a la mujer
sin libertad, a la mártir. Nuestras personalidades parecen mancharse y
superponerse peligrosamente a la de nuestra madre. (RICH, Adrienne.
Nacemos de mujer: la maternidad como experiencia e institución. Madrid:
Ediciones Cátedra, 1976, p.340.apud ALMEIDA, 1996)
As palavras de Rich são claras ao demonstrar que o grande problema nas
relações matrofóbicas, não é o medo da mãe ou da maternidade, mas sim, o medo de
converter-se na própria mãe. Rejeita-se o modelo de mulher submissa, resignada. É
este modelo que representa a mãe de Rísia, por isso a narradora nutre por ela o
desprezo, repudia este símbolo de restrição e degradação, e sugere, em diversas
passagens que tudo o que se origina dela é morte.
Rich, no entanto, aponta que na matrofobia, as personagens preferem
desprezar abertamente a mãe a ver as forças que atuam sobre ela. O vínculo entre
mãe e filha pareceria estar sempre entre dois caminhos que se bifurcam entre a
independência e a dependência, entre a valorização do modelo materno e a repulsa a
este mesmo modelo.
As mulheres não querem parecer-se com suas mães a quem o mundo público
do trabalho ou da livre expressão de sua sexualidade foi vetada, rejeitam
veementemente este modelo depois das grandes conquistas relacionadas à
anticoncepção, ao direito de poder estudar, escolher uma profissão, ter ou não ter
filhos. Ambicionam a liberdade. Por outro lado, querem parecer-se com suas mães ao
desejarem viver a experiência da maternidade, no entanto, sem as pressões e
estereótipos que degradam as mulheres.
As mulheres encontram-se numa encruzilhada entre um caminho cheio de
conquistas e outro cheio de repetições. Atrás das dificuldades que aparecem como
sintomas nos comportamentos que se repetem estão, sem dúvidas, as dificuldades que
as mulheres têm de relacionar-se com suas mães e como desejam tê-las ou não como
modelos.
104
No relato de Rísia, reconhecemos uma total incomunicabilidade entre mãe e
filha (“Mamãe nunca me abraçava”, p.34), uma relação desastrosa para as duas, mas
que é libertadora quando o vínculo se desfaz ou arrefece. Esgotado o primeiro
momento, em que a revolta ou a raiva, as frustrações, os sentimentos de impotência e
desvalorização são expressados por Rísia em relação a sua mãe, sua narrativa toma
outro rumo: a busca de uma outra genealogia, a busca de um modelo.
(...) Minha mãe tinha perdido todos os contatos com o verdadeiro de si mesma.
O último originário de mamãe se apagou com os raios da lua na noite de luar
em que ela foi dada. Tudo de mamãe é adotado e adotivo. Minha mãe não tem
origens, minha mãe não é de verdade. Eu não sei se minha mãe nasceu. (MT:
p.34)
Nesse exemplo podemos localizar a questão do “desenraizamento”. Simone
Weil (1909-1943), ao tratar do desenraizamento em outro contexto (situação do
operariado francês no período anterior a Segunda Grande Guerra), esclarece que o
enraizamento “é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma
humana” (p.43) e, que os desenraizados “não teriam senão dois comportamentos
possíveis: ou caem numa inércia da alma quase equivalente à morte, [...] ou se jogam
numa atividade que tende sempre a desenraizar, frequentemente pelos métodos mais
violentos, aqueles que ainda não o estão ou não o estão senão em parte” (p.46-47). No
caso específico do romance, Rísia demonstra uma vida: “Eu não sei se minha mãe
nasceu”. O desenraizamento desta personagem, portanto, é tão visível que sua inércia,
seu não-nascimento, equivale à morte.
Igualmente, Rísia revela que a mãe não possuía raízes e, consequentemente,
não tinha uma origem definida: “Tudo de mamãe é adotado e adotivo”. A mãe é
descrita como uma espécie em extinção; o que demonstra que Rísia não possui um
modelo onde se espelhar. Há, portanto, a falta da própria continuidade do ser, a
ausência de suas raízes. Consequentemente, Rísia e a mãe estão impedidas de se
projetarem em direção à identidade, estão exiladas de si mesma. Por isso, a narradora
nega a sua existência na origem materna, na tentativa de evitar a reduplicação de uma
vida sem origem, a repetição indefinida da vida como “roseira sem flor”.
105
A narradora não se conforma com a atitude de submissão e distanciamento de
sua mãe. Se ela realmente nasceu em Tijucopapo, reduto de grandes e valorosas
guerreiras, onde ocultou sua força e coragem? É através de um discurso contra o
domínio patriarcal que a narradora revela de forma mais clara a revolta contra a figura
materna: “Pois a cada mês que se esticava mais aquele bucho, contraía-se a cara
amargurada de mamãe” (MT: p.28); e contra a servidão:
Mamãe usou um vestido vermelho de linho, tubinho que ficou roto nessa
gravidez. estava mamãe de vestido vermelho batendo roupas no tanque,
torcendo e estendendo na campina a quarar. Mamãe grávida era o meu
suplício, os meus nove meses. Haveria uma guerra. Eu brincava pelo quintal à
sombra daquele desgosto de mamãe, daquele fastio dela. Mas os pés-de-fruta-
pão, a mangueira e o abacateiro davam sombra também, outra sombra que
mamãe deveria ver. Mamãe não via nada. O bucho subia-lhe à altura dos olhos.
E naquele bucho tinha de tudo: Tinha os filhos, nós, que ela tivera, tinha o
marido dela, a mãe dela, a vida. A vida no bucho dela (...) E quando a sombra
de mamãe era demais para mim, pois eu via tudo demais, eu montava numa
daquelas árvores e passava horas à sombra dos galhos que não eram os de
mamãe. (MT: p. 31)
Uma das palavras que merece destaque neste trecho é “sombra”. A utilização
dessa expressão no discurso serve para construir e afirmar a figura materna
negativamente: “a sombra daquele desgosto de mamãe” e “a sombra de mamãe era
demais para mim”. No primeiro caso reflete um dos defeitos daquela que perdeu a
origem e perdeu-se de si mesma, gerando apenas desgosto em “não existir”, tornando-
se um espectro. no segundo caso, temos a sombra que atormenta e persegue a
narradora, ameaçando-a com uma realidade que ela não deseja: a “matrofobia”, o
medo de converter-se na mãe. A personagem compara também a “sombra” das árvores
em seu quintal com a sombra da mãe: a primeira sombra, das árvores, amparava e
protegia, ao passo que a sombra da mãe amedrontava.
A não-descendência na mãe e a passividade dessa personagem fazem
germinar em Rísia a revolta e o ódio: “mamãe era uma merda” (MT: p.24), “Mamãe foi
quem me deu a vida e a morte. Já morri tanto” (MT: p. 32). Vida e morte, no contexto da
obra, constituem metáforas que remetem a sentimentos de alegria e raiva. Para
comprovar esta concepção, basta pensar nas palavras da narradora, ao associar a
alegria de brincar como o ato de viver: Mas uma hora eu parei de brincar. Parar de
106
brincar é parar de viver. Eu parei de brincar muitas vezes por causa de mamãe” (MT:
p.32). Ser proibida de brincar é uma violação à sua infância, uma violência que atinge a
sua identidade como pessoa e, como resultado, gera o sentimento de raiva: “as
pessoas tinham a mania de puxar pelo meu braço nas brincadeiras, para me lembrar
que fora não se brinca e, portanto se morria. As pessoas vinham me lembrar da
morte, a mim, que adorava a vida” (p.33). É preciso mencionar, também, que a rua
aparece como um espaço interditado, proibido. Um espaço em que Rísia não pode
revelar sua alegria de viver.
Ademais, para reforçar o sentimento que nutre pela figura materna, a narradora
utiliza-se de uma metáfora: “Mamãe era galhos; roseira sem flor, seca, esturricada”
(p.32)
Em Chevalier e Gheerbrant (1999: p.437), a flor é apresentada como símbolo
realização sem defeito. Simboliza a taça da vida, a alma, o coração e o amor.
São João da Cruz faz da flor a imagem das virtudes da alma, e do ramalhete
que as reúne, a imagem da perfeição espiritual. Para Novallis a flor é o simbolo
do amor e da harmonia que caracterizam a natureza primordial; a flor
identifica-se ao simbolismo da infância e, de certo modo, ao estado edênico.
A figura materna, tal como a flor, deveria ser sinônimo de segurança, abrigo,
calor, ternura. A comparação da narradora evidencia que a mãe poderia ter sido roseira
em flor, assumido o papel de portadora das virtudes da alma ou, ainda, a
materialização da perfeição psicológica e material. Porém, como uma mulher que
perdeu suas raízes torna-se como roseira sem flor, encontra-se ligada ao não
florescimento das virtudes e do amor, por isso, transforma-se na imagem da
submissão, da indiferença e, principalmente, na imagem de um sentimento seco,
esturricado: o rancor, herança de Rísia.
Além disso, é preciso destacar, nas palavras de Chevalier e Gheerbrant as
palavras “natureza primordial”, infância” e “edênico” que remetem a noção de origem:
uma origem seca, esturricada, um paraíso perdido.
Por isso, durante o percurso narrativo, são negadas insistentemente não
somente a figura materna, mas as figuras femininas, de maneira geral. A narradora
107
divide as personagens femininas em dois grupos distintos: as que cometem a traição e
as que se sujeitam ao silêncio e à resignação. As que cometem traição têm o sufixo
“Ana” no nome. São por exemplo, as mulheres que se apresentam como rival da
narradora, quer seja relacionando-se com o seu pai, quer seja no decorrer da existência
de Rísia:
As mulheres de meu pai, as amantes, se chamavam Analice. Depois eu tive
uma rival chamada Diana e depois eu conheci uma mulher casada que tinha
um amante essa mulher era Babiana – e depois eu ainda tive uma outra rival
chamada Estefânia. Se há uma coisa que eu não suporto é traição (MT: p.22)
Ana, no hebreu, significa cheia de graça e predisposição para a vida, e ainda
boas escolhas, quer seja nos estudos, quer na profissão, quer no amor. Ana, ainda, no
árabe, quer dizer “eu”. No romance, no entanto, as “Anas” representam imagens
negativas, vinculadas ao ato de trair. Comprova-se, pois, que as mulheres que povoam
a infância de Rísia remetem a uma graça perdida, escolhas violentadas, um “eu” traído.
Diante dessas imagens de traições, acontece uma comparação destas
mulheres traidoras com Eva, mulher transgressora que, desobedecendo as ordens de
Deus, conhece o bem e o mal, toma conhecimento da culpa e lança toda a humanidade
ao sofrimento. Sua traição a Deus também acarreta a perda do paraíso e, a partir desse
instante, todas as ações humanas seriam responsabilidades do próprio homem. Essas
mulheres são nomeadas pela narradora de “Anas”, as Evas que propagam a dor e a
traição: “Pois se eu pudesse trocava todos os nomes de Ana por Eva a pecadora.
Todas as Anas são umas traidoras. Capemo-las. Expulsemo-las do paraíso” (p.22-23).
Rísia, diante do texto bíblico, demonstra um posicionamento questionador/transgressor
ao associar o nome Ana (tão caro aos valores judaicos) à Eva (aquela que os mesmos
judaicos condenam).
Dentro de seu universo, apenas uma mulher que se chama Naninha, casada
com irmão Jorge, construiu uma vida sem traições. A narradora afirma: “irmã Naninha
é a única mulher chamada Ana cujo nome não vem me lembrar traições” (MT: p.22).
Define-se, portanto, uma das vertentes de sua busca: “eu precisava mostrar a vida de
irmão Jorge e irmã Naninha [...] quero mostrar uma vida sem traições” (MT: p.22).
108
É dessa família que temos outra personagem que merece destaque, Nema,
filha de Jorge e Naninha, que se configura como exemplo de feminilidade, força,
decisão e retidão de caráter:
Meu orgulho era você. Você era alta, bonita, jogando volei. [...] Você era
corajosa. Você era assim: se era possível que você fosse, então eu seria. Um
dia eu seria. Então era possível. Devo dizer agora, depois de tantos esses
anos, que eu te amava. Que eu te amava embora minha palavra fosse a do
ódio. Pois uma vez você me disse:
- Você só diz que odeia. (MT: p. 71-72)
Observe que Rísia usa o futuro subjuntivo, pois quer indicar uma ação
hipotética, condicional. A ação da protagonista torna-se dependente e só se efetiva se a
condicionante (se Nema fosse) vier a ocorrer. A ação desta personagem pode
acontecer na dependência.
O uso do subjuntivo, portanto, demonstra uma incerteza em relação ao futuro.
uma motivação, criada a partir da amiga Nema, mas não garantias. Por isso,
Rísia diz ”eu seria” e não “eu serei”.
Mas, Nema muda-se com sua família, tornando-se a grande procura de Rísia.
Nema, a do único abraço, Nema que no grego significa “fio”: esperança de Rísia amar e
de ser amada.
Outra personagem que merece destaque é “Luciana”, colega de Rísia na
escola, quando ela ainda era menina. A relação que a narradora-personagem
estabelece com Luciana é de ódio e distanciamento, como se constata no excerto a
seguir:
Eu não gostava de Luciana. Eu não suportava a cara dela. Mas ela não, insistia.
Eu não sabia direito por quê. Ela me rondava na hora do recreio. Ela tinha um
fascínio por mim. Ela quis entrar para o meu grupo, eu disse não. (...) Luciana
era somente uma dócil que gostava de mim. E gostava assim, por nada.
Gostava por mim mesma (MT: p. 36-37)
O ódio de Rísia, por Luciana não se origina de uma traição propriamente dita,
embora a personagem também tenha “Ana” no nome. O sentimento surge como forma
de rejeição ao que esta personagem representava: “era somente uma dócil”. Uma
109
docilidade negativizada, pois se relaciona com a passividade que Rísia repudiava na
mãe.
Rísia, forçada pela professora a responder uma carta de Luciana, em que esta
pedia para ser sua amiga, responde de forma violentíssima:
Luciana,
Eu odeio você. Luciana, não me escreva mais cartas. Luciana, eu não gosto de
você. Pare de ficar me medindo com esse olho de peixe morto. Eu não suporto
a sua cara. Não me persiga no recreio. Não quero você no meu grupo porque
você é muito molenga. Você não sabe brincar. Você é tola e fuxiqueira, viu?
(MT: p.28)
Esta carta para Luciana equivale a um crime, primeira revelação à Rísia de sua
própria crueldade. Primeira oportunidade de demonstrar que não gostava de alguém e
que ela aproveita com requinte, consciente da natureza vicária do sistema de desconto
e vingança: “[...] porque eu queria era descontar em Luciana o que tinham me feito em
não me abraçar, mamãe, papai, Lita” (MT: p.29). A vingança diz respeito a um mal
maior e anterior. Por isso, na maturidade, Rísia revela o desejo de falar com Luciana:
Alo! Luciana? Olá Luciana. Sou eu, Rísia. Rísia. É, olhe, ligo para dizer-lhe que
sei que você é feliz e gosto disso. Você é feliz, não é? Pois é, eu sabia. Olhe, e
quero dizer-lhe que conforme eu mereço, sou infeliz. Quero que você goste de
sabe que sou infeliz. Fui tão cruel com você. Um beijo, Luciana. Adeus. (MT:
p.41-42)
O primeiro sentimento pela personagem Luciana é de ódio, porque, segundo a
narradora, ela era apenas uma “dócil”. O substantivo próprio Luciana vem do Latim e
significa “luz”, clareza; opunha-se naturalmente à narradora que estava desde a mais
tenra idade na incerteza, à procura de sua identidade. Rísia não deseja o carinho de
Luciana, não sabe amar, por isso, nega a inércia que define esta personagem, pois,
como ela mesma afirma, “Estava acostumada com as asperezas da alma” (MT: p.26).
Como se pode perceber, a maioria das mulheres, na narrativa, não possuem
uma identidade formada, são “irracionais” e “perdidas” num mundo em que o equilíbrio
e a igualdade não se fazem conhecer. Deve-se, assim, ressaltar que estas figuras
110
femininas encontram-se marcadas pela submissão ao poder patriarcal. Por isso, Rísia,
em seus questionamentos, renega quase todos os modelos femininos apresentados.
Não quer ser Eva (Ana) e carregar a culpa por conhecer o mundo e sua dualidade,
também não quer ser como a mãe, a submissa. Ela deseja mais, anseia pela liberdade
irrestrita: “eu precisava ter o controle do mundo” e “Me dava uma revolta que eu tinha
vontade de partir para vingá-los” (MT: p.116).
Rísia não sucumbiu à subjugação e, assim, desejou ardentemente que sua
palavra e seus desejos fossem valorados. Para conquistá-los, foge para Tijucopapo,
reduto de mulheres guerreiras.
Eu vim e o caminho foi árduo. Eu fugi muitas vezes. Fugi como égua que não
quer ser presa no curral. Mas fugi também ao me deparar, equina, com a vasta
campina diante dos meus olhos. Mas lembranças atormentadoras me
cutucavam o rabo a me dizer da necessidade de eu fazer o meu próprio
caminho (MT: p.145)
A narradora deseja assumir plenamente a condição de “ser livre”. Essa ideia
de liberdade é garantida através do desejo de ser égua, que se une, novamente, ao
sentido expresso no vocábulo “desembestar”. Dessa forma, assume que é criada a
partir da terra: “O fato é que aqui vou eu, mulher sozinha pela estrada. [...] Aqui vou eu
na minha trilha de terra” (MT: p.78).
De acordo com Chevalier e Gheebrant (1999: 878-880), a terra corresponde ao
princípio passivo, opondo-se ao céu, princípio ativo, princípio masculino da
manifestação. A terra, substância universal, matéria que o Criador utiliza para moldar o
homem, simboliza a função maternal, fonte do ser e protetora contra qualquer força de
destruição. É também identificada como símbolo de fecundidade e regeneração. Os
autores citam que algumas nações africanas têm o hábito de comer a terra que significa
identificação do indivíduo com a mãe. Alguns grupos africanos, também, quando
querem regenerar-se espiritualmente, retornam à terra natal, ao lugar que foi berço de
seus ancestrais, renovando, assim, as energias. Rísia percebe o princípio passivo de
sua origem, a submissão das mulheres que conhece. Um dos sentidos de terra,
passível de ser associado à cultura africana, pode ser percebido em suas ações, pois
111
na mais tenra infância, identificava-se com a terra, como se intuísse que dela havia sido
gerada:
Me vem barro na boca, gosto vermelho, cuspo farinha, os dentes rangem. Eu
tinha cinco anos e comia terra [...] sem que nada me impedisse, porém de
correr em disparada no outro dia e deslizar de cima a baixo o morro de terra,
me embolando, comendo, cuspindo [...] E eu fazia de terra e despejava na
cabeça. Eu saia de lá, fim de tarde, cinzenta como um calunga de caminhão,
satisfeita, alimentada, e sabendo que se papai me pegasse era uma pisa (MT:
p. 20)
Portanto, representa-se, na narrativa, um contexto de liberdade e de purificação
através do ato de comer e banhar-se da terra. Ressalte-se que Tijucopapo, segundo o
Dicionário Larousse Cultural, significa barro, lodo. É este o espaço procurado por Rísia
que, no decorrer da narrativa, substitui o elemento terra pela lama: “E vou confessar a
lama que sou feita” (MT: p. 118).
Sou feita de lama imunda. O meu choro. Era uma vez, no onde a praia vira
lama, Tijucopapo, nasceu minha mãe. Eu sou feita de lama que é negra de terra
[...] sou eu com minha sina de lama, eu que saí bicho da lama, tapuru, onde a
praia encontra a lama (MT: p. 79)
A lama carrega um alto valor simbólico. Segundo o Dicionário de Símbolos
(1999: 534-535), representa a matéria primordial e fecunda da qual o homem foi
extraído, conforme a tradição bíblica. Ela resulta da união entre a água - princípio
dinâmico das mutações e das transformações -, e a terra, princípio matricial e receptivo.
A terra como ponto de partida para a composição da lama, enfatiza o
nascimento de uma evolução. Mas, se tomarmos como ponto inicial a água, com sua
pureza original, a lama representará uma involução, a degradação. Daí o fato de a lama
ou o lodo, simbolicamente, identificar-se com a escória da sociedade.
A voz narrativa elege a terra como ponto inicial, assim, deve-se considerar a
terra vivificada pela água, pois a narradora come terra, derruba de terra na cabeça,
sai da terra e caminha por uma trilha de terra. Por conseguinte, pode-se delinear que a
viagem solitária de Rísia sempre esteve marcada pela terra, elemento da natureza. A
narradora procura suas raízes para que possa recobrar suas energias a partir da terra
112
natal (território) de sua mãe, Tijucopapo. A narradora busca sua identidade e, ao
assumir metaforicamente que é oriunda da lama, demonstra que está em
transformação.
Importante observar que as mulheres, na narrativa, quase sempre, encarnam
tristes esboços de defeitos, sobre os quais a Rísia se debruça e inicia sua narração,
misturada aos questionamentos de sua própria vida:
Eu mentindo assim descaradamente, eu criando meus sonhos para satisfazer
aquelas mulheres traídas, perdidas, dadas, grávidas, adotadas, não
verdadeiras, mulheres de mentira, prostitutas que, como minha mãe, dormiam
com meu pai de noite tendo sido surradas por ele de manhã. Minha mãe era
uma prostituta. Grande merda. Como Lita da goiabeira. Como tia, a derrotada.
(MT: p. 179).
Como foi exposto, a narradora apresenta, não raras vezes, as mulheres como
abstrações; e as ações que desenvolvem, mesmo que minimamente, no percurso da
narrativa, parecem servir para fixar-lhes os conceitos atribuídos pela narradora: não é
simplesmente a Analice que imaginamos em cena, mas a própria traição; não
pensamos na tia, que se tornara alcoólatra, mas na degradação humana que dela
emana; não estamos diante de Luciana, mas do ódio que Rísia nutre por ela; Não
estamos diante de Dona Penha, que em hebraico significa montanha, mas sim, da
distância intransponível entre a criança negra e a professora; não estamos diante da
mãe, mas da própria indefinição de tudo, da necessidade de buscar respostas.
Personagens que contribuem para que se forme toda a atmosfera de As mulheres de
Tijucopapo como um delírio, uma cortina por meio da qual se entrevê o real, ou o que a
narradora quer que vejamos de uma reinvenção metafísica do real: “Atrás de mim um
véu de todos os pensamentos, das sensações desgostosas e amargas” (p.179).
É preciso pontuar, igualmente, que uma das noções capitais de As mulheres
de Tijucopapo, que lhe conferem um traço de romance moderno é o modo como
Marilene Felinto organizou a cronologia, constantemente fragmentada, repleta de
digressões; o que traduz um efeito de desagregação do texto, de desajuste, de
desordenamento. Uma narrativa pacientemente montada, como um grande mosaico em
que as peças que se vão encaixando não seguem uma ordem definida: várias
113
formas de se iniciar e de se concluir a montagem de um quebra-cabeça. Através da
mente labiríntica de Rísia, a narrativa vai sendo conhecida e, nesta, presente, passado
e sonhos se misturam - são narrados ao mesmo tempo. Esta situação nos demonstra
uma variedade de memória e de lugares, enquanto vemos a narradora entrando e
saindo de Poti, Recife e São Paulo; indo e vindo entre a idade da infância e da
maturidade, revivendo amor e ódio. Os momentos repetem-se constantemente, por
vezes se confundem e nos confundem, denunciando o labirinto emocional que prende a
personagem, sua dificuldade de mover-se: “Eu estou ensolarada e labiríntica (MT:
p.110).
Diante do espaço indefinido da narrativa, das personagens que se multiplicam
entre abstrações, figurações e caricaturas, de uma cronologia que parece não se
encadear logicamente, podemos imaginar que As mulheres de Tijucopapo não
configura a história de um mundo real, mas de um mundo pré-concebido (ou concebido
apenas no plano das ideias) que, de algum modo, mantém uma relação com o mundo
real ao lhe salientar os defeitos e as feridas. Por meio de um incessante rememorar do
passado, da infância, uma postura avaliativa da narradora. A partir dessa atitude, a
protagonista tentará transformar o presente, embasada na retrospecção e amparada na
reflexão:
É com grande dor de cabeça que hoje vou pelo mundo. Meio dia é a pior hora.
Eu fui a médicos e médicos. Minha dor de cabeça é da vida. E começou com o
nascimento de minha mãe. E se estende hoje a todas as partes minha. Desse
meu corpo que vai. Que vai ver se renasce em Tijucopapo onde mamãe nasceu
(MT: p.36)
A narradora conta-nos a sua história e, assim, a conhecer de sua existência
aquilo que seleciona para reflexão. Abrem-se brechas no seu discurso, presente e
passado misturam-se compondo uma sinfonia reflexiva. Além disso, solicita, por meio
de seu discurso, o trabalho interativo do leitor, para que este construa o significado da
narrativa, num diálogo constante: É isso que me sobra? Na hora da dor confessar?”
(MT: p.75), “Vou contar uma coisa”. (MT: p.77)
114
Assim, para a narradora, que se debate entre essa vida-simulacro e a vida-
verdadeira, o universo é estabelecido em ecos, no plano das ideias, como esclarece
Platão em A República
17
, o que minimiza, ainda mais, a necessidade de um pacto de
verossimilhança. Ao contrário, a leitura da obra se torna viável quando o leitor
percebe o jogo do narrador e rompe o pacto; quando deixa de ver o romance como
uma recriação do real e passa a perceber nele a narrativa da busca pela origem, a
viagem a Tijucopapo, misturada com um plano de conceitos e de ideias que, apesar de
se apresentarem como metáforas da realidade, não precisam coadunar-se com os
preceitos desta.
Assim sendo, Rísia deve ser pensada como uma personagem que se detém
nas tentativas de realização de seu desejo (sonho) livrar-se da herança de mulheres
fracas, imobilizadas pelo sistema e, através deste ato, renascer a partir do
conhecimento de experiências diversas, de uma genealogia de mulheres guerreiras.
Visto desta forma, imprime-se ao texto uma direção: a da revolução possível a partir do
sonho, do ideal de transformar-se: “Desse meu corpo que vai. Que vai ver se renasce
em Tijucopapo onde mamãe nasceu” (MT: p.36).
Nesta viagem-procura de Rísia, ganha destaque a pouco esclarecida origem
materna, cuja existência a própria narradora põe em xeque ao afirmar: “Minha mãe não
tem origens, minha mãe não é de verdade. Eu não sei se minha mãe nasceu” (MT:
p.47). A protagonista precisa desvendar este mistério e, desta forma, encontrar uma
forma de suprimir a morte, a história de mulheres imóveis “que puseram na minha conta
o que não cabia na conta delas”, perseguidas por seguidas traições que não souberam
17
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...
115
vingar. Ou seja, Rísia deseja descobrir a verdade de sua origem na terra onde supõe
que sua mãe nasceu.
O sonho de Rísia consiste em vencer a morte, representada na raiva
acumulada, para, assim, recomeçar a vida e aproveitá-la como um momento
verdadeiro, em oposição à simulação que se instala na rua de Poti e São Paulo,
metonímias do mundo.
O valor mimético da literatura, difundido pela estética realista é, ao mesmo
tempo, negado e aceito na obra em análise. É negado porque a autora parece destacar
ao longo de todo o corpo da obra que se trata de um devaneio, de uma imaginação
vaporosa que se utiliza de espaços e personagens “ambiguamente simbólicos” em sua
construção; por outro lado, podemos dizer que é aceito porque, ao se utilizar da técnica
da encenação dramática, transforma As mulheres de Tijucopapo em palco, fundindo em
cada personagem às problemáticas da verossimilhança e da representação. Se
pensarmos detidamente, o sonho tem essa dupla característica: a de ser uma
encenação de algo possível, um esboço, um desejo que necessita ser concretizado;
como também, muitas vezes, de ser o momento em que o impossível vem à tona, em
que a verossimilhança deixa de ser pré-requisito e se propõe um mergulho nas
imagens que se desdobram à nossa frente. Rísia nos sonhos a possibilidade de
aguentar a dor da vida real:
E agora eu preciso inventar o sonho que vou sonhar amanhã. Amanhar eu vou
sonhar com...[...] Vou fazer isso ao meio-dia, minha pior hora, vou ficar horas
inteiras assim nesse meu sonho. O meio-dia vai passar desapercebido. Esses
sonhos me aliviam. Nesses sonhos eu viajo para longe. Eu viajo, eu crio
verdadeiras histórias (MT: p.93)
Quando se muda para São Paulo e tem a sua convivência local interrompida,
devido à necessidade de seus familiares saírem para outro lugar, depara-se com um
processo de expropriação, em que se lançada numa procura infinita. Arrancada de
si mesma, precisa, ardentemente, inventar sonhos: “Sabe quando foi que primeiro eu
sonhei? Quando era 1969 e eu pisei em São Paulo. nessa cidade eu passei a
inventar sonhos” (MT: p.94).
116
O desejo de retornar a viver e amar como mulher, de retornar à vida livre para
poder aproveitá-la como vida verdadeira e não mais como vida-simulacro não é
possível em São Paulo. Resta, à narradora, exprimir a consciência da necessidade de
transformação da condição feminina por meio da revolução, em um outro espaço, a
princípio sonhado, idealizado. Assim, Rísia vai-se aproximando cada vez mais de
Tijucopapo, descobrindo que suas raízes estão fortemente fincadas nesta terra,
símbolo da realidade desejada.
Marilene Felinto leva ao extremo sua experiência estética de esfacelamento da
narrativa, da construção em mosaico. Desta forma, quando a narradora-protagonista
reflete sobre o passado, o tempo ainda consegue garantir alguma lógica e sucessão
temporal. Porém, quando pousa no presente ou pensa no futuro, essa lógica se esvai.
A ruína de As mulheres de Tijucopapo vai além da paralisia do tempo, da
estrutura fragmentada do romance ou da presença contínua da revolução e de seus
efeitos. Não se trata da ruína de um tempo passado, mas uma ruína que se pereniza
em função da incapacidade de ter o controle do mundo:
Para não sofrer eu precisava ter o controle do mundo: que não acontecesse
isso nem aquilo porque eu não aguentava, que se eliminassem tais e tais
porque fizeram tanto e tanto que doera em mim; que não se repetissem atos
como aquele e aquele outro porque me haviam tocado bem na ferida (eu sou
uma mulher ferida); então, degolassem fulano, espancassem sicrano,
matassem. As minhas diretrizes (MT: p.116)
A incapacidade de controlar as ações de seu cotidiano trunca as ações de
Rísia, ferem-na intensamente. Por isso, a protagonista deseja o caos completo, para
que todo o mundo a volta também sinta as dores que a dilaceram.
Neste sentido, a cor cinza, como presença recorrente na narrativa, expressará
a intensidade dos sentimentos humanos, a desesperança, o cenário de ruínas
materiais, culturais e psicológicas. Sua utilização nos evoca as pinceladas, as manchas
e os excessos de tinta e de cores presentes na pintura expressionista, uma
característica do romance de Felinto, como apontamos. Vertidos sobre as frases, o
cinza cor que conota a morte e a destruição impregna toda a imagem literária:
117
pessoas, casas, objetos perdem seus contornos, sua individualidade, e desaparecem,
amalgamados. A presença desta cor sugere a contaminação e a indistinção entre o
universo interior da narradora e o mundo exterior, conforme podemos observar nas
seguinte imagem: “Cinza meu Deus, essa morte” (MT: p.83), o que remete a um
componente aniquilador e destrutivo da experiência.
A cor cinza, muitas vezes, associa-se a sentimentos negativos, configurados
por densas e escuras nuvens cinza, nevoeiro, fumaça. Em diversas culturas, esta cor
liga-se à tristeza e a temas fúnebres. A associação entre tristeza e a cor traz a
imagem da infância, quando aglomerações de nuvens em épocas de chuva costumam
manter a maioria das crianças enclausuradas em suas casas, impedido-as de sair e
brincar. A cor do céu, então, associa-se às reminiscências desagradáveis, solidão,
felicidades impedidas e, sendo assim, o sentido fixa-se na história do indivíduo;
negatividade que o acompanha até o momento da sua morte. Os dias de chuva,
lembremos, representam para Rísia um sentimento-choro. E ela, aprisionada em sua
casa, se perguntava: “Para onde iam aqueles barcos que eu não podia ir? Eu tinha que
ficar na janela protegida da chuva, senão papai me dava uma pisa
18
(MT: p.60). Sem
respostas, “chorava a minha fraqueza na janela em dias de chuva forte.” (MT: p.61)
A cor cinza também sugere aspectos fúnebres, lembrando os pequenos
pedaços carbonizados que sobram de tudo aquilo que é consumido e destruído pelo
fogo, representando o desaparecimento da matéria. Desta mentalidade, muito
provavelmente, vem o costume de certos povos de queimar os corpos ou objetos de
seus entes falecidos, acreditando que o material possa abstrair-se e, desta forma,
acompanhar o espírito. O cinza, também, representa a lembrança constante da morte,
pois como é pronunciado nos rituais cristãos: "Tu és pó e ao pó retornarás".
Rísia percebe as ruínas de si, um sentimento cinza, de não-poder, de não-falar,
a sensação de não-ser. Assim, a palavra “cinza”, no horizonte do sujeito, constrói uma
imagem de aniquilamento, como resíduos da destruição que ocorre à sua volta.
Por isso, Rísia precisa (re)construir o tecido vital da narrativa, deseja que seus
filhos sejam arquitetos, capazes de construir, de conduzir a reordenação do espaço
devastado, da própria conduta vacilante e inerte da narradora-protagonista, que se
18
A palavra “pisa” comprova a nordestinidade, sendo entendida como surras.
118
perde em meio ao caos: “É assim nesses pensamentos de ser que me enrosco e
preciso parar pois que perdi o fio” (MT: p.118). É a ruína que está presente na
degradação dos personagens que perambulam pela obra-memória — a mãe, a tia, Lita,
Analice e na demonstração de que o homem perdeu seu centro ordenador. É como
se enxergássemos Risia à deriva em um de seus barquinhos, construídos em momento
de dor, na tentativa de fugir de tal realidade. Deriva é a palavra de ordem, a mesma
deriva que nos leva por caminhos sinuosos pelo texto de Marilene Felinto, através de
Rísia: “Eu, sempre que estive em plena chuva, eu tive um sentimento me empurrando
como barquinho para lugares longínquos que é como um lugar onde nunca fui e preciso
ir para me afastar dessa melancolia toda molhada que me escorrega em poças d'água”
(MT: p.59).
Em relação a este trecho, é preciso ressaltar um outro universo semântico
extremamente presente na escrita de Marilene Felinto que confere à imagem uma
nítida evocação das representações presentes na pintura expressionista. As imagens
da água, assim como as imagens ensolaradas, insolaradas e cinzas, denotam uma
espécie de ofuscamento do real, dando-lhe um aspecto ora diluído, ora turvo, fato esse
que as aproxima, mais uma vez, das manchas e da aparência sombria presentes nas
pinturas expressionistas.
A experiência estética de Marilene Felinto constitui um inovador processo de
“autodestruição criadora”, em que a construção do livro é regida pelo princípio da
montagem e da desordem.
Esta estética permite ver no romance uma noção de literatura vinculada a uma
práxis, como uma máquina para criar experiências. Ou seja, você não a obra para
ver como a realidade é, mas para experimentar esta realidade. É nesse sentido que
podemos falar do teor político na literatura, e nas artes como um todo; seu
compromisso não é dizer o que é o mundo, mas intervir nele. Como? Permitindo
vivências, experimentos de realidades que podem transformar o leitor/espectador em
algo outro, visto o mesmo ter a possibilidade de sair dessa experiência transformado,
pois, ao se ler um texto, criam-se certos comportamentos, certas formas de agir, não
pela temática (o que teria um aspecto meramente informativo), mas pelo experimentado
119
no processo de leitura, uma vez que s, leitores/espectadores, também funcionamos
como máquinas, agimos/intervimos no mundo.
Nesse sentido, pode-se entender As mulheres de Tijucopapo como um locus
que permite experimentar sensações diversas. O que a literatura busca não é
representar a realidade, mas produzir efeitos e sensações de realidade. Estes efeitos
não existem no texto enquanto algo dado (representatividade), mas ocorrem durante o
processo de interação do texto com o leitor que, visto anteriormente, deve ser um leitor
disposto a interagir, a operar e ser operado pela engrenagem textual.
O leitor é chamado a participar ininterruptamente do processo construtivo do
discurso:
Agora preciso me comportar. Imagine que agora sou comportada. (MT: p.23)
Eu faltava rir. Porque, reparem: eu me lembro que na casa de Lita tinha um
pé de goiabeira. (MT: p.25)
Porque ódio, menino, é fogo (MT: p.34)
É isso que me sobra? Na hora da dor confessar? (MT: p.75)
Vou contar uma coisa. (MT: p.77)
Os trechos comprovam que é para os leitores que a narradora vai confessar
sua caminhada, as suas dores e o motivo de sua revolta. O diálogo com o leitor se dá,
principalmente, por conta da impossibilidade de linearidade da narrativa. Não se
consegue passar mais de uma página sem que uma ruptura se evidencie, seja um
personagem entrando/fundindo-se em outro, seja um discurso entrecortando-
se/apropriando-se/emaranhando-se com outro etc., tudo em um jorro discursivo
ineterrupto. Cabe ao leitor, inscrito no processo discursivo, organizar o discurso da
narradora, estabelecendo um diálogo em construção.
120
3.2. O discurso metafórico de Rísia
Sei então o que é o presente, esse tempo
difícil: um simples pedaço de angústia. A
ausência dura, preciso suportá-la. Vou
então manipulá-la: transformar o tempo
em vaivém, produzir ritmo, abrir o palco
da linguagem (a linguagem nasce da
ausência...) Essa encenação linguística
afasta a morte do outro... (Barthes.
Fragmentos de um discurso amoroso)
As mulheres de Tijucopapo constrói-se como uma encenação linguística, onde
a linguagem nasce da ausência, da morte ou abandono. A palavra existe, no romance,
para justificar a ausência, daí seu caráter extremamente doloroso. A narrativa é
prolongada, o tempo transforma-se em vaivém, ou seja, a narração não chega ao fim,
ao contrário, retorna ao início do percurso: Rísia, através de uma carta, comunica à
mãe que está voltando para São Paulo.
É preciso pontuar que, ao longo de seu percurso, a linguagem de Rísia mostra-
se agressiva, evidenciando o sentimento de raiva, como resposta às diversas
violências.
Entender esta linguagem, permeada de metáforas, permite-nos compreender a
busca da protagonista, ao mesmo tempo em que põe em relevo a experiência estética
da escrita do romance. Estas metáforas permitem, mais uma vez, a articulação entre a
escrita em questão e os ideais sobre os quais se estabelece a arte expressionista. Em
relação à função das imagens metafóricas no âmbito dessa estética, França afirma que:
Na arte expressionista a imagem não é, ela se faz e a ação que a faz a
materializa, ato com o valor simbólico de representação de um momento
expressivo da cultura. o se trata de uma linguagem para manifestar as
imagens, mas uma matéria que se torna imagem e que se manifesta muitas
vezes como deformação ou distorção do objeto. (FRANÇA, 2002: 129)
121
A princípio, deve-se compreender que numa tradição que remonta a Aristóteles,
a metáfora foi estudada nos mais variados domínios da investigação humana, sob uma
ótica estritamente linguística. As diferentes abordagens a definiam como uma figura de
estilo que caracterizava a linguagem literária e poética, advindo desta visão a sua
exclusiva finalidade estética e demarcação em relação à linguagem cotidiana.
Lakoff e Johnson mostram, no estudo Metáforas da vida cotidiana (2002), que a
metáfora não configura apenas um artifício literário, representando, antes, uma função
fundamental no sistema conceitual e, consequentemente, na linguagem cotidiana. De
fato, “o nosso pensamento é predominantemente metafórico por operar nos conceitos,
também eles metafóricos, sistematicamente organizados e refletidos na língua de uma
maneira coerente” (Batoréo, 2000 [1996]: 151).
A obra The Poetics of Mind (1994), de Gibbs, mostra-nos que a estrutura da
cognição humana apresenta-se como um mosaico estruturado por vários processos
poéticos e que a metáfora, em particular, constitui um dos esquemas básicos na
conceitualização das experiências que emergem da nossa interação com o mundo
exterior. Em outras palavras, o homem recorre a metáforas porque o seu sistema
conceitual é em grande parte estruturado de forma metafórica.
Na sua essência, a metáfora constitui um mecanismo conceitual e cognitivo que
permite explicar uma coisa de forma diferente, tomando como ponto de partida a nossa
experiência corporal para, assim, categorizar entidades e eventos mais abstratos.
Consequentemente, este mecanismo caracteriza-se pela relação entre dois domínios
conceituais diferentes transferem-se elementos de um domínio mais concreto para
outro mais abstrato e novas experiências são entendidas na sua integração a
conhecimentos anteriores.
A metáfora e a metonímia conceituais estão muitas vezes interligadas
19
, fato
que se evidencia, sobretudo, no nível das emoções:
Um dos domínios em que a interação metáfora-metonímia é particularmente
frequente é o das categorias de emoção. Nos seus importantes estudos sobre a
linguagem das emoções, Kovecses (1986, 1988, 1990) e Lakoff (1987: 380-
415) concluem que na conceitualização dos sentimentos e das emoções
19 Barcelona (1997) coloca-se em uma posição que demonstra o extremo da questão, ao afirmar que todas as metáforas dependem de uma
metonímia conceitual.
122
funcionam um princípio metonímico geral de tipo causa-efeito, pelo qual a ira, a
tristeza, o medo, a alegria, o amor e outras emoções são referidas por sintomas
fisiológicos correspondentes […], e várias metáforas conceituais
desencadeadas por estas metonímias fisiológicas […] (Silva 1997: 77-78)
Como se observou, a metonímia consiste num processo conceitual, à
semelhança da metáfora. O que sucede neste caso é que uma determinada entidade
ou evento são conceitualizados em função de um aspecto específico do mesmo
domínio, ou seja, como afirma Abrantes (2002: 108), “a relação entre os dois aspectos
envolvidos na conceitualização é uma relação de proximidade ou de contiguidade, que
não se restringe ao nível linguístico”.
Lakoff & Johnson (2002) descrevem três tipos de metáforas conceituais:
estruturais, orientacionais e ontológicas
20
. Nosso interesse, nessa pesquisa, são as
Metáforas Ontológicas, que têm por base a nossa experiência com objetos e
substâncias físicas, através das quais explicamos noções abstratas, como eventos,
emoções e ideias.
Na metáfora “o corpo é um contêiner de emoções”, por exemplo, o ser humano
é conceitualizado como um “contentor” e o seu estado fisiológico e mental, como a
“raiva”, é percebido como “conteúdo”
21
. É nesse sentido que podemos pensar a
personagem Rísia como um contentor, pois a raiva mexe com todo o corpo desta
protagonista:
Meu estômago se revolve todo. (MT: p50).
Hoje estou tomada por um asco ao mundo, uma ânsia inerente a mim; é
ela manifestar-se como hoje e todos os cheiros me fazem pior. (MT: p.111)
Como definir esse meu sentimento senão como vindo do alto cume de
mim, o meu céu, para bater grossas, no fundo de mim, o meu poço? (MT:
p.59)
[...] eu posso lhes dar um lugar por onde escorram no meu rosto, e assim
eu as faço chorar em mim. (MT: 61)
20
Metáforas Estruturais, que consistem na estruturação metafórica de um conceito em termos de outro, que se projeta sobre aquele. Como exemplos
temos as metáforas TEMPO É DINHEIRO, O AMOR É UMA VIAGEM ou UM DEBATE É UMA BATALHA. Metáforas Orientacionais, através das
quais se parte da nossa orientação corporal no espaço (cima-baixo, dentro-fora, frente-atrás), o queorigem a metáforas como BOM É EM CIMA,
MAU É EM BAIXO, associadas a domínios tão díspares como as relações de poder ou as emoções
21 Cf. Lakoff & Johnson (2002: 25-33).
123
[...] brotam da altitude que são os meus olhos e sou incapaz de cavoucar a
terra que elas procuram. (MT: p.159)
Certos momentos meus são confusos. Momentos duma raiva que guardo do
mundo todo, eu que vou aqui por um caminho árido de babaçus e mocambos.
Será que não se pode dividir as pessoas em felizardas e desgraçadas? (MT:
p.101)
As duas primeiras citações são significativas para compreender a emoção de
Risia. Diante de situações que lhe induzem ao sentimento de raiva, é comum localizar a
repulsa, a ânsia de vômitos, como que querendo colocar para fora seu sentimento
colérico. Os demais trechos também exemplificam a presença da raiva no corpo, de
forma profunda, cavoucando a alma, germinando em forma de lágrimas. O último é
exemplar: a raiva está guardada no corpo.
Outra metáfora comum, no romance, é a da raiva como calor, como fogo. Esta
metáfora tem uma base experimental ou empírica fundada em nossa fisiologia, pois um
dos sintomas fisiológicos da raiva é a elevação da temperatura da pele. Este “efeito
termogênico” representa uma medida do fluxo sanguíneo na periferia do corpo durante
a experiência da raiva e justifica a ligação entre a emoção e calor. Essa concepção,
portanto, não é arbitrária, uma vez que a raiva é sentida como calor.
A caracterização da raiva como fogo consegue, igualmente, reproduzir um
número de traços semânticos que são sugeridos pelo fogo, tais como: um estado
marcado pela energia intensa e vigorosa; ausência de restrição e incontrolabilidade;
capacidade de subverter um estado de normalidade e equilíbrio; potencial para
destrutividade, com perigo para aqueles que se encontram diretamente envolvidos com
essa energia.
Kovecses e Lakoff apontam as analogias entre o domínio-fonte do fogo e
domínio-alvo da raiva. A primeira analogia é a de que o fogo é a raiva. É o que
percebemos nas palavras de Rísia, quando comenta com o leitor: “Porque ódio,
menino, ódio é fogo (MT: p. 34); e “canto o inferno de tudo que existe. Olhe eu aqui,
o cão, o tinindo, o gato preto” (MT: p.90).
Uma segunda anologia, possível de ser localizada na obra, sugere que a causa
do fogo é a causa da raiva. Por isso, a narradora pode dizer: As pessoas, menino, são
124
fogo do inferno. Dos quintos do inferno. As pessoas me esculhambam, sei disso”
(MT: p.34).
Por fim, outra analogia permite pensar na relação entre o perigo que o fogo
representa para as coisas que se encontram perto dele e o perigo que a manifestação
da raiva representa para as outras pessoas. Verificamos essa relação no desejo de
destruição presente no discurso de Rísia:
Amanhã, logo em seguida a ele, vou sonhar que o mundo é o inferno e está
em chamas. O mundo pegando fogo. A revolução. O incêndio cósmico. O
juizo final. Eu vou pular de espanto e excitamento. Eu vou sair nua como uma
doida, de olhos aboticados, um sorriso idiota, gritando à multidão que se
incendeie e aos destroços incendiados desse mundo. _Queime, desgraça!
Vira carvão, desgraça! Acaba, some, desgraça! Vai de vez, desgraça! p. 94
No caso da raiva, o “conteúdo” pode extravasar os limites do “contentor”. Esta
metáfora traz a ideia do calor sendo aplicado aos fluidos. A idéia central, aqui
empregada, é que a emoção representa uma substância dentro de um contêiner e que
o corpo representa um contêiner para as emoções. Podemos, no romance, localizar
esta metáfora da raiva exercendo pressão sobre o contentor, ou seja, exemplos de
como as pressões internas expõem a narradora a um estado limite de paciência, como
por exemplo: “Eu sentei bufando” (p. 161)
O verbo “bufar”, que possui conexão com locomotivas a vapor, permite,
metaforicamente, imaginar este veículo como a psique humana, que se configura como
um "caldeirão de pressões que exigem a sua liberação" (Thomas, 1993, p.143). De
acordo com Weiner apud Thomas (1993, p. 25-26), a metáfora da quina é
discernível nas explicações sobre comportamento humano feitas por Freud. A máquina
está dotada com uma quantidade fixa de energia; se energia for gasta em uma
determinada função, outras ficam sem energia o suficiente. A metáfora da hidráulica é
evidente em condições como catexis (encher) e catarse (fluxo, liberar). A raiva, de
acordo com o modelo hidráulico, nos permite pensar em uma pessoa cheia de raiva
que precisa colocar a raiva para fora. A raiva não liberada torna-se insalubre, por isso
deve ser descarregada de alguma maneira. Embora o próprio Freud não recomende
nenhuma catarse para a administração da raiva e da agressão, outros estudiosos
dentro da tradição psicodinâmica aconselham.
125
O estágio subsequente da concepção da raiva como um fluido quente dentro de
um contêiner é a da sua livre manifestação; o fluido extravasa. As palavras que ilustram
este estágio sugerem que a raiva se manifesta independentemente da vontade da
pessoa; ela tem força própria. E, uma vez que inexiste a noção de controle sobre a
raiva, ela simplesmente transborda, livremente e sem qualquer forma de restrição ou
impedimento: “Era um daqueles dias em que uma infância era tão pesada para mim
que eu estava a ponto de vomitá-la” (MT: p.170).
Em As Mulheres de Tijucopapo podemos entender o ato de vomitar como o ato
de exteriorização da raiva. Na passagem: “Hoje acordei com imenso asco pelo mundo”
(MT: p. 111), fica a impressão de desgosto profundo em relação às pessoas que a
cercam, ou diante de determinadas situações. Por vezes, este desgosto extrapola a
interioridade da personagem, que vomita sua raiva. Observa-se o poder de inovação
semântica, através do discurso metafórico, sendo que a escritora atribui uma espécie
de complemento de sentido à linguagem corrente.
Risia demonstra, ainda, um estágio culminante da raiva como fluido quente
dentro de um contêiner: a ideia da explosão: “quando eu estava para sair de casa eu
estava esperando explodir. Explodiu no dia em que papai mexeu no meu
armário”. (MT: p.121).
Ao se aquecer um gás em um recipiente, a energia térmica fornecida
transforma-se em energia cinética das moléculas gasosas, que aumentam suas
velocidades como também a pressão exercida pelo gás nas paredes do recipiente. Ao
aumentar-se o movimento caótico das moléculas gasosas a desordem no interior do
sistema – aumenta-se a entropia do sistema. A força da pressão crescente que o fluído
quente (raiva intensa) exerce sobre um contêiner que se encontra vedado (raiva
reprimida) é muito mais forte que a capacidade do contêiner (da pessoa) em controlá-la
ou reprimi-la, e, assim, o contêiner explode, o que simboliza a manifestação aberta,
repentina e intensa da raiva, com perda de controle. A ruptura do contêiner sugere
perigo tanto para a pessoa que manifesta a raiva - o contêiner - como para aqueles que
porventura se encontrem por perto. Esta questão fica clara em: “me expõe aos mais
perigosos perigos, delitos, crimes” (MT: p.118).
126
Outra maneira de referir-se ao sentimento da raiva é através da comparação
com “descarga elétrica”:
Havia dias em que eu acordava tão desesperada como o que é elétrico. Uma
descarga elétrica, um curto-circuito, alta voltagem. Coisa que parecia
impossível de a vida aguentar uma descarga elétrica paralisa, choca, é mais
próxima da morte do que da vida. Havia dias assim em que não podia brincar.
Meu brinquedos se incendiaram eletrocutados. Eu tinha vontade de mandar
papai e mamãe pra mais profunda merda. (MT: p. 170)
A descarga ocorre no momento em que as cargas atingem energia suficiente
para superar a rigidez dielétrica do ar, de forma explosiva, luminosa e violenta.
Importante dizer que todos os sentimentos e emoções vêm do cérebro, que comanda
uma tempestade de hormônios no nosso sistema. Segundo o ocultismo, a emoção
iguala-se a uma energia elétrica que se irradia do homem por todos os lados, formando
assim, um corpo magnético chamado por alguns de aura. Assim, a raiva tem que ser
descarregada, desafogada: “eu era uma descarga de ânsias” (MT: p.170).
Também a noção de “peso” conecta-se ao sentimento da raiva, trazendo em si
sentidos metafóricos, tais como incômodo, mal-estar, fardo, opressão,
responsabilidade, dor. Todas estas definições possibilitam caracterizar a dificuldade de
“carregar” dentro de si o sentimento raivoso, ao mesmo tempo em que enfatiza a
necessidade de expressá-lo para aliviar o peso:
Era um daqueles dias em que uma infância era tão pesada para mim que eu
estava a ponto de vomitá-la. (MT: p.170)
Mamãe, por exemplo, jogava o peso de sua gravidez de mundo nas minhas
mãos. (MT: p.98)
No Natal de 1964 acontecia que mamãe pesava e me pesava. (MT: p.28)
Igualmente, sobressai-se o significado de raiva como “agitação”. Através deste
recurso metonímico, tem-se o efeito da emoção representando a própria emoção, de
acordo com o conceito apontado por Kovecses (2000) de que “distúrbio emocional é
agitação física”.
127
Tanto que fui calada no ônibus, a viagem toda, me mordendo de raiva de
Luciana [...] (MT: p.99)
Meu coração disparou em batidas quando eu percebi a grande possibilidade de
aquela ser, então, Analice [...] Meu coração disparou por mamãe. Houve um
rápido bate boca: (MT: p.54)
Eu tentei segurar mamãe, meu coração esculhambando, tranças
enforcando-me a garganta num que desatou num choro, afinal, um choro
de como nunca, um choro de como o quê. E minha força de valentia? Eu não
matara Analice. (MT:p. 55)
Minha maior impaciência era que um acontecimento pudesse vir depois do
outro. (MT: p. 169)
Me vem barro na boca, gosto vermelho, cuspo farinha, os dentes rangem
(MT: p. 35)
Meu coração disparou como um relógio despertando zero hora, o encontro
marcado entre o dia e a noite (MT:p. 54)
[...] me sacolejam em soluços e eu acabo sendo o barco que oscila [...] (MT:
p.59)
O que se nota, através do comportamento de Risia, é que a agitação
permeia a atmosfera que circunda a pessoa em sofrimento. Verifica-se que, nos
momentos de raiva, ela sente-se invadida pelo sentimento da agitação, cria-se
dentro dela uma teno interior.
que se colocar, ainda, que o vocábulo agitação traz em si os sentidos
de revolta, rebelião, perturbação, inquietação, tumulto, rebuliço. Todas estas
definições corroboram a imagem da raiva como um sentimento que leva o indivíduo
a movimentar-se, a reagir, a atacar. Em virtude disso, a imagem do dente é tão
significativa, pois mostra o corpo preparado para a defesa e para o ataque: “os
dentes rangem”.
O sentimento de raiva também pode ser visto como força social. Nesta
metáfora, duas imagens (pessoa e emoção) correspondem a cada uma das duas
forças: a força superior simboliza a emoção e a força inferior corresponde à pessoa.
Esta metáfora, assim, designa a pessoa que é governada pela emoção, não pela
razão. O aspecto emocional, nesse sentido, corresponde a algo ou alguém socialmente
superior, a quem o outro, inferior, se submete e obedece, pois lhe dita regras de
comportamento e ações. Nas palavras de Kovecses: “A força social do superior
128
corresponde ao controle que a emoção exerce sobre a pessoa. O efeito social do
superior sobre a pessoa é o efeito emocional da emoção sobre a pessoa”
(Kovecses:2000, p. 70-71)
Mas é a minha raiva que me faz resistir. (MT: p.108
Não sei direito porque vou aqui afora, talvez por minha crueldade. (MT: p.40)
Eu sempre estive em plena chuva, eu tive um sentimento me empurrando
como um barquinho para lugares onde nunca fui e preciso ir para me afastar
dessa melancolia molhada que me escorrega os pés em poça d'água. (MT:
p.59)
E o meu sofrimento não perdoa. (MT: p. 68)
uma visão geral, que se refletirá na linguagem metafórica, de que aquele
que comete um ato ofensivo, entendido como injusto, causando raiva, desgosto, incorre
em um débito, torna-se devedor de uma conta. É a mesma noção defendida por São
Tomas de Aquino e Aristóteles, vistos no segundo capítulo, de que a raiva constitui a
busca por justiça, ou seja, a cobrança de um débito.
A noção de débito se configura a partir da noção de dívida, das relações de
débito e crédito, compra e venda.
A responsabilidade em relação a uma dívida está ligada à representação e ao
sentimento de prometer, de responder por algo perante alguém, de garantir-se a si
mesmo, em relação a uma obrigação, ou seja, implica manter, na memória, a palavra
empenhada.
Ao deixar de cumprir uma obrigação, ou seja, não se responsabilizar pela
palavra empenhada, lesa-se o direito do credor, produzindo um dano, uma ruptura do
equilíbrio primordial.
A balança da justiça, neste caso, pende para o lado da injustiça, e se
estabilizará por intermédio do pagamento do débito, ou seja mediante um ato de
retribuição ou vingança que a parte ofendida entenda como equivalente ou de igual
magnitude.
129
Todas as sociedades que alcançaram um grau consideravelmente de cultura e
civilização carregam necessariamente um potencial de impulsos anti-sociais de maus
instintos recalcados. Como estes não podem ser erradicados, permanecem em estado
de latência. Repassados em seu curso natural para o exterior, pressionam no sentido
de exigir satisfação substitutiva, como alívio da tensão e do sofrimento causados pela
repressão. Tais forças hostis estão sempre como que a procura de canais subterrâneos
de escoamento. Ora, a interpretação moral da consciência do dever constitui uma
forma de aliviar o sofrimento acusado pela pressão dos maus instintos.
A interpretação moral da consciência do dever inverte a direção natural da
descarga dos impulsos hostis e com isso libera um campo para a satisfação da vontade
de causar dor: a via substitutiva por excelência vai consistir em fazer sofrer o próprio
devedor. Dessa maneira os maus instintos podem ser exercidos sem impedimento. O
sofrimento vivo, causado por um devedor-culpado, deve ser extinto, e a forma de
aliviar essa dor será através da imposição do suplício à pessoa que lhe fez sofrer.
Esta noção de débito fica clara nas palavras de Rísia:
Eu saí de minha casa porque meu salário era o mais alto e meus irmãos ainda
não deixavam comida para mim, e o filho-da-puta do meu pai ainda ousava
mexer no meu armário e cometer o crime de levantar a mão contra a face que
eu nunca lhe ofereci, a minha face. Vou para Tijucopapo saber por que meu pai
gostava tanto de dar em mim. (MT: p.122)
[...] mas descontei. Descontei xingando a mãe. Mãe é a coisa que mais toca.
Eu desconto sempre na mãe desses safados (MT: p.23)
Isto de querer descontar – porque eu queria descontar em Luciana (MT: p.40)
Vim fazer a revolução que derrube, não o meu guaraná no balcão, mas os
culpados por todo o desamor que eu sofri e por toda a pobreza em que vivi
(MT: p. 146)
Porque várias vezes na vida, desconto com ódio [...] (MT: p.40)
Pois que a causa de minha esculhambação está na safadeza cometida pelas
pessoas (MT: p. 114)
Eu prometi que me vingaria de minha irmã mais tarde. Eu fiquei ainda mais
melancólica e amarga (MT: p. 169)
Eu me vingaria de minha irmã. E de tarde eu desfilaria orgulhosa de mim na
minha roupa de gala (MT: p. 174)
Quando elas perguntaram se eu matara Analice eu disse que sim, de tanto
depositarem em mim a incapacidade delas para matar (MT: 178)
130
Eu desconto com pedras (MT: p. 32)
Eu me calo até o momento do meu sofrimento. Pois que por ele alguém é
responsável. Pois que é por ele que grito (MT: p. 114)
No primeiro trecho podemos perceber um gesto cristão às avessas. A
ideologia cristã prega o pero, a aceitação da vexão, como vimos no catulo 1,
como forma de afastar o sentimento de raiva. sia, porém, assume durante toda a
obra a sua incapacidade de perdoar. Por isso, ela nega o gesto de Jesus de
oferecer a outra face para que outro, tomado de violência, a agrida fisicamente.
nos exemplos, de maneira geral, a busca da estabilização através da
cobrança de um débito, ou seja, mediante o ato de retribuão, vingança ou justiça.
Observa-se, igualmente, que essa conta”, o sentimento de ofensa, pode se
acumular paulatinamente, por meio de sucessivas ofensas. O interessante é que, na
impossibilidade de fazer o ofensor pagar, uma outra pessoa pode vir a pagar essa
conta: A lama que era da conta delas e que elas resolveram r na minha. Elas
puseram na minha conta o que o cabia na conta delas (MT: p.178).
A intensidade da raiva também é definida através da noção de força. Por vezes,
esta noção equivale ao próprio sentimento ou a incapacidade do ser humano diante da
emoção.
Minha força, minha ânsia de vingança, o que tenho a descontar, não me leva
tão longe assim, a uma foto minha sob os dizeres de 'procura-se, parricida',
papai. (MT: p.55)
Sorte sua eu não ter força suficiente para me transformar numa marginal que
matou você. Eu só tenho a força dum fraco. Sou fina e frágil. (MT: p.55)
E eu chorei a minha fraqueza na janela em dias de chuva forte. (MT: p.61)
Ao se definir a raiva como uma força, uma energia ou como um ente com quem
convivemos, que se encontra próximo de nós, mais provavelmente dentro de nós,
personificamo-la, damos-lhe a capacidade de, em certas situações, ter autonomia para
guiar-se por vontade própria, dominando-
nos. ....................................................................................................................................
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Esse fantástico exemplo de equilíbrio emocional, proporcionado pela atitude de
Maximus, pode nos ajudar a entender que a raiva é um sentimento normal e até
desejado, desde que não seja desproporcional à causa, nem descontrolado, pois então
poderá provocar desastres irreparáveis. A raiva é um oponente a nos pressionar, mas a
pressão, necessita estar sob controle, pois pode provocar fissuras.
Tentativas de controlar a pressão da raiva podem ser encontradas nas ações
da personagem Rísia:
um homem, um filho e uma casinha branca poderão, senão extinguir, pelo
menos domar esse poder em mim. E (vou até falar baixo) esse é o
mesmíssimo poder que me torna capaz de virar uma prostituta, uma
homossexual, uma louca, uma bêbada, uma bandida, uma marginal. (MT: p.24)
Eu conheci que minha crueldade tinha o tamanho da de Severino. Eu teria de
domá-la para não ser bicho. (MT: p.41)
132
Eu teria de domar minha crueldade antes que eu matasse uma pessoa como
Luciana. Antes que eu amargasse de vez uma docilidade como a de Luciana.
(MT: p.41)
Agora preciso me comportar. (MT: p.23)
Além da palavra “comportar”, usada para expressar a necessidade de controle
dos sentimentos de raiva, a personagem Rísia ainda utiliza, constantemente, o
vocábulo “domar”, o que traz a conotação da raiva como própria a um animal selvagem,
irracional.
Sandra P. Thomas (1993, p.27) apresenta o estudo de Carl Jung que aborda
como a consciência facilmente sucumbe às influências inconscientes. Sob forte
influência da emoção, Jung acredita que o ego e o inconsciente podem mudar de
lugares. Desta forma, ele definiu as emoções como reações instintivas, involuntárias
que transtornam a ordem racional da consciência pelas suas explosões elementares.
Como estados que simplesmente acontecem, Jung ainda definiu-as como "a intrusão
de uma personalidade inconsciente".
O que se percebe nas falas de Rísia é a convicção de que a raiva deve ser
controlada, para que, assim, possa aproveitar-se de sua energia de maneira positiva,
sem causar fissuras irreparáveis ao ego.
Nas metáforas presentes no discurso de Rísia, é possível localizar algumas
construções enraizadas na vida cotidiana e que denunciam formas de desautorizar a
expressão da raiva, principalmente a feminina, como vimos em capítulo anterior. Uma
dessas formas foi associá-la à insanidade ou histeria. É interessante que no inglês o
termo “raiva” (angry) é polissêmico, significando "louco" e "bravo". No português,
"louco" e "enloquecer" referem-se apenas à loucura, não caracterizando a raiva. No
entanto, a loucura liga-se, metaforicamente, ao sentimento de raiva, como se percebe
através do discurso de Rísia
Era a Poti, a vila-lua onde nasci e nasciam essas coisas doidas como tia. (MT:
p.46)
[...] tia sempre teve um espírito assim, rebelde, selvagem, livre, de menina que
aprendeu a fumar cedo, e fumar naqueles confins da Poti, e logo ela, filha de
mãe crente [...] Tia era um escândalo. (MT: p.53)
133
A tia é apenas um dos exemplos da linhagem de Rísia: uma linhagem de
mulheres que precisam ser controladas, “domadas”. Também de si mesma,
reconhecerá, constantemente, o comportamento insano:
Depois me lembro que não sou nada. Que sou uma pessoa com ódio, quase
Severina Podre, lunática, enluarada, aluada, em estado de porre sem nunca ter
bebido. E bebida me lembra tia. Aí eu me retiro do espelho e sei que sou uma
pessoa atacada por lembranças atormentadas. (MT: p.50)
Várias vezes até, por essa época, eu tive sonhos com papai pendurado nos
ganchos da ser vendido: lombo, bucho, tripas, rabo. Eu era sanguinária. (MT:
54)
Eu era doida. Eu sou doida. (MT: p.48)
Tive de vir embora para não endoidecer. p.45
A ideia que se transmite é a de que as mulheres são acometidas por várias
formas de sofrimento mental em maior número que os homens as mulheres são um
pouco doidas, os homens menos” não por causa de qualquer fragilidade intrínseca,
mas porque sobre elas pesa uma quantidade maior de pressões. Em uma sociedade
patriarcal, construída sobre o silenciamento do “outro”, os espaços de expressão
pessoal reservados às mulheres são escassos e restritos. Assim, não chega a ser
surpresa que tantos personagens dentro da ficção de autoria feminina enlouqueçam de
alguma maneira, em alguma medida. As palavras de Rísia, reveladoras de lembranças
atormentadoras, enloquecedoras, é a consciência de que a realidade familiar e social
atingia de alguma forma o seu comportamento.
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É preciso observar outra fala de Rísia, significativa para compreender esta
relação entre raiva, loucura e gênero: “as mulheres são um pouco doidas e que os
homens um pouco menos” (MT: p. 25). Nesta passagem denuncia-se a loucura como
uma das formas de explicitar a injustiça e a irracionalidade de uma sociedade que
divide e hierarquiza seus membros de acordo com seu gênero, isto porque o aparato
ideológico utilizado através da história para reprimir a mulher tem como objetivo
principal garantir ao patriarca uma linhagem legítima.
A metáfora que vincula raiva à loucura, na escrita feminina, aponta, pois, para
uma fraturada identidade feminina e é uma forma de expressar sentimentos menos
aceitos, especialmente nas mulheres: raiva, ressentimento, desejo.
Ainda no tocante ao aspecto de controle sobre a raiva, existe uma outra
metáfora apontada por Kovecses (2000): a raiva como comportamento de um animal
perigoso, um perigo para as pessoas que rodeiam a pessoa tomada pela raiva.
Ao ligar o sentimento da raiva à imagem de animal selvagem, agressivo,
exprime-se a idéia de que a raiva gera reações instintivas, impulsos primitivos, de
animais, ou seja, que o comportamento humano, em momentos coléricos, é, no fundo,
descontrolado .
Eu passava sempre como um bicho feroz quieto. (MT: p.41)
[...] urrando como bicho” (MT: p. 41)
Eu teria de domá-la para não ser bicho. (MT: p.141)
135
[...] uma selvagem doméstica. (MT: p.46)
Quando eu me lembro sou uma pessoa de lembranças endiabradas me
cutucando o rabo de égua que não sou [...] (MT: p.50)
No inverno, quando os montes de arei e a terra vermelha da rua viravam lama,
eu pegava patacas e atirava nos muros com raiva de mamãe. Eu queria ser
uma égua para poder atirar com os pés. (MT: p. 67)
Eu viraria qualquer bicho que quisesse. (MT: p.69)
Mas, se eu vejo que certas pessoas são tão mais felizes que outras... se
pessoas virando bicho porque não festas... não festas ... se
meninas padecendo sem cara pra piqueniques em Manjopi... meninos
virando bicho, como não? É justo? (MT: p.101)
Ah, se pelo menos eu pudesse falar em língua estrangeira. Ah, se eu pudesse
somente grunhir. Ah se eu pudesse ser um bicho. Se eu pudesse ser um
bicho eu seria uma égua, uma égua que saísse em disparada arrancando
patacas de lama da campina encharcada ou fazendo poeira do barro seco das
serras. (MT: p.49)
Nas palavras de Rísia pode-se perceber ações governadas pelo instinto
selvagem dos bichos. Instinto [do latim instinctu] pode ser definido como 1.
Tendência natural; aptidão inata. 2. Força de origem biológica, própria do homem e dos
animais superiores, que atua de modo inconsciente, espontâneo, automático,
independente de aprendizado. 3. Espécie de inteligência rudimentar que dirige os seres
vivos em suas ações, à revelia de sua vontade e no interesse de sua conservação.
uma força inata, a força da raiva, que a protagonista precisa dominar para
não se tornar, completamente, bicho: Eu teria de domá-la para não ser bicho”.
A identificação entre o sentimento de raiva e um animal perigoso é tão grande
que Rísia revela o desejo de ser bicho, “Eu viraria qualquer bicho que quisesse”. E para
comprovar o comportamento raivoso, deve-se lembrar que a personagem se fixa no
comportamento dos animais: “grunhir”, “dar patacas”, “urrar”.
Destaca-se o desejo de ser égua. Ah se eu pudesse ser um bicho. Se eu
pudesse ser um bicho eu seria uma égua, uma égua que saísse em disparada
arrancando patacas de lama da campina encharcada ou fazendo poeira do barro seco
das serras”. No romance, ser égua traduz o sentimento de estar viva, posto que o
animal exprime o fluxo da vida que não criamos, mas que nos carrega no exercício de
136
nossa vida. Nas mitologias céltica e romana, os equinos vêm associados a deusa-mãe
Epona, sendo que podemos encontrar associações entre a imagem do cavalo e da
mãe, muitas vezes vista como o cavalinho da criança, que, primitivamente, ela
costumava carregar seu filho às costas. Portanto, o cavalo representa um arquétipo
maternal. De igual forma, este animal pode simbolizar ímpeto de desejos e impulsos
instintivos que motivam o homem. É interessante dizer que em seus comportamentos
sociais, os cavalos são perceptivos, agem devido ao medo, fome e emoção. O que
determina a personalidade e o medo de um equino são experiências transmitidas pela
mãe. Passam uma impressão de bravos, perigosos e não confiáveis, mas o apenas
sensíveis e medrosos. Da mesma forma, a personagem criada por Marilene Felinto tem
sua personalidade moldada no abandono, na desvalia, na solidão e na raiva em relação
à figura materna: “No inverno, quando os montes de areia e a terra vermelha da rua
viravam lama, eu pegava patacas e atirava nos muros com raiva de mamãe. Eu
queria ser uma égua para poder atirar com os pés” (MT: p. 67).
Todas estas metáforas constituem elementos simbólicos através dos quais a
narradora (re) pensa a sua identidade, voltada o exclusivamente para a sua
intimidade, mas que se plasmam no mundo exterior através de si.
Como se pode perceber, a sugestão de descontentamento, dor, raiva, envolve
toda a obra, através de metáforas, marcando a vida da protagonista e a paisagem em
que ela desfila sua angústia. Neste contexto, o discurso metafórico não atua como
mero entertainer formal, e transforma-se em sinônimo de criação e revelação do ser,
transparecendo a desenvoltura criativa e imaginativa, o jogo linguístico através do qual
Rísia (re) interpreta a realidade.
No entanto, é preciso ressaltar que Risia apresenta-se como uma pessoa
raivosa, mas também como uma pessoa dolorida. Raiva e dor caminham lado a lado
durante todo o romance, confundindo-se e gerando consequências, como se pode
verificar no trecho abaixo:
Estou morro não morro. Andei quinhentas mil milhas chorando de morte e
medo. E de raiva de não saber quem me fez isso. Estou saindo para
perguntar, para descobrir. Não vou perguntar. Vou descobrir. Vou conseguir.
(MT: p. 45)
137
A dor é tão intensa que gera um estado de agonia, prenúncios da morte. Uma
raiva dolorosa que caracteriza a própria personagem: “Nema, eles me fizeram dolorida
como só a dor pode ser. Eu sou uma dor, Nema” (MT: p.71).
Meu sentimento muitas vezes é assim de chuva, molhado, pingado. Sentimento
chorado, lágrimas espessas sobre a natureza que me parece tão cruel desse
mundo que não se lava, que nem chuva lava. Pois, se chovesse fora, eu
olhando da janela, como definir esse meu sentimento senão como vindo do alto
cume de mim, o meu céu, para bater, gotas grossas, no fundo de mim, o meu
poço? (MT: 41).
De acordo com Alexander Lowen, a dor emocional é geralmente mais difícil de
admitir e tolerar do que a dor física, pois a última é localizada, a primeira é difusa.
Sentimos a dor emocional em nosso corpo todo, em nosso ser. Para Lowen, a dor
emocional é sempre a perda de amor. Ser ferido fisicamente por alguém com quem não
se tem ligação emocional resulta apenas em dor física. A pessoa pode ser ferida
fisicamente pelo corpo todo, mas a dor não é sentida profundamente, como acontece
com a dor emocional. Quando uma ligação amorosa rompe-se (o que acontece
constantemente na vida de Rísia), somos arrancados de uma fonte de excitação
prazerosa e de vida. O organismo inteiro se contrai, inclusive o coração. uma
sensação de que a própria vida está ameaçada; o que induz a um sentimento de medo:
“Andei quinhentas mil milhas chorando de morte e medo”.
O ódio de Rísia representa uma dor forte, por causa de uma ferida tão
profunda que envolve todo o seu ser no desamor, às vezes tirando-lhe o bom senso e
o equilíbrio.
Nema, agora é começo dum novo ano e eu preciso dizer que odeio porque
senão eu morro. Nema, eu preciso dizer que odeio porque o amor faz de mim
uma dor que me enlouquece. (MT: p.72)
O entardecer é o desembocar de todas as ausências. É o vento soprando
saudade e dores. (MT: p.77)
A dor emocional é descarregada pelo choro, que alivia o estado de contração
crônica do corpo. Lowen adverte que para ser eficiente, o choro deve ser tão profundo
quanto a dor. Este ato energiza o corpo e permite que Rísia perceba a própria raiva:
138
Eu chorava como nunca.
Varias vezes eu chorei como nunca. (MT: p.26)
Hoje eu sou uma agoniada e ninguém me aguenta. Sou em estado de porre
sem nunca ter bebido. (MT: p.33)
Dor e ódio trazem, como resultado, um sentimento de incapacidade para o
amor. Na relação com a mãe, reconhece-se, por exemplo, ressentimento, mágoa:
“Mamãe não me abraçava” (MT: p.34). Na verdade, magoa” constitui dor presente,
permanente, persistente, que deixa a pessoa em estado de sofrimento emocional.
“Ressentimento” representa dor emocional que cria todo um estado de tristeza e de
desgosto, de agressividade e mau humor: “Eu estava acostumada com aspereza da
alma” (MT: p. 37).
Ao fim deste capitulo fica claro que a linguagem de Rísia, dolorida e
enraivecida, frequentemente fragmenta-se, condensa-se, desloca-se, cruza-se,
demonstrando as lacunas, hesitações, desconfianças. A organização linguística parece
refletir a própria desconexão mental da protagonista. O pensamento dela se define pela
incapacidade de estabelecer nexos entre a vida bem sucedida e o vazio de si. Rísia,
assim, aposta nas palavras, no falar, no recontar a história mal contada, ainda que por
palavras tortas, para escapar da loucura, para não se tornar bicho. Para a narradora, é
fundamental transformar em palavras o vulcão de emoções para tentar domá-las,
originando, desta forma, uma linguagem corrosiva que ressalta aos olhos num estilo
impiedoso, enraivecido, ácido.
139
CAPÍTULO 4: DENTRO DO LABIRINTO: A RAIVA
COMO BASE DE UMA ESTÉTICA
Não haverá nunca uma porta. Estás
dentro
E o alcácer abarca o universo
E não tem nem anverso nem reverso
Nem externo muro nem secreto centro.
Não esperes que o rigor de teu caminho
Que teimosamente se bifurca em outro,
Que obstinadamente se bifurca em outro,
Tenha fim. É de ferro teu destino
Como teu juiz. Não aguardes a investida
Do touro que é um homem e cuja
estranha
Forma plural dá horror à maranha
De interminável pedra entretecida.
Não existe. Nada esperes. Nem sequer
No negro crepúsculo a fera.
(Labirinto - Jorge Luís Borges, In: Elogio
da sombra)
Lukács defendeu o romance como o produto de um mundo fragmentado, um
mundo em que o interior não somente existe como também está em máximo conflito
com o exterior” (apud EMERSON, 2002, p. 159). É este conflito entre interior e exterior
que permite reconhecer a força geradora das emoções.
Vigotsky em Psicologia da Arte (1998) alerta para o quanto a Arte - conjunto de
instrumentos simbólicos que induz as emoções - retém e reevoca as emoções,
provocando o desenvolvimento tanto do pensamento como da vida afetiva. Alerta,
também, que a arte, criadora de cenários, ao ser revivida pelo expectador, transmite às
pessoas experiências de outros, assim como de tradições históricas.
A percepção da arte é um processo ativo, que incorpora momentos motores
(ritmo), experiência emotiva, atividade imaginativa e operações de pensamento. Em
140
sua linguagem aberta, complexa, ambígua, a arte possibilita ao sujeito que a
experimenta a vivência de sentidos pessoais, emoções e sentimentos.
Através destas concepções podemos perceber que uma ligação entre a
emoção e a atividade criadora. No caso específico desta pesquisa, acreditamos na
relação entre raiva e literatura, em que a raiva configura-se como a causa espiritual
para o efeito que é a criação artístico-literária.
Como pudemos constatar no capítulo 1, o sentimento de raiva pode ser
entendido como sinal de uma violação e consequente desejo de justiça. Visto desta
forma, este sentimento revela uma sensação de injustiça primordial que oprime o
indivíduo e gera nele um potencial artístico. Assim sendo, a raiva se mostra não como
um elemento que produz inércia, mas, como algo que exige do iracundo a necessidade
de comunicar-se, gerando um elemento que provoca uma atividade: a expressão
artística.
Estamos diante de um processo dionisíaco: a obra representa o resultado de
uma situação emocional depressiva /raivosa (o mundo interior em ruínas); o mundo
interior, emocional, se transforma em arte: fatores emocionais da personalidade do
autor são articulados em um dado momento e num determinado contexto, levando-o ou
compelindo-o ao processo de criação literária. Este momento de criação, portanto,
implica uma capacidade de transmutação de experiências e sentimentos; alimenta-se
das condições que dão acesso ao sentir da beleza.
Verifica-se, por conseguinte, que a raiva pode ser um elemento que provoca o
surgimento do sujeito-poético - entidade artística e essencialmente humana, no sentido
de trazer uma visão espiritual de humanidade - que constrói a obra literária. Este
sujeito-poético, como um ser espiritual criado pelo autor, expressa-se através da obra
produzida. Vemos, por diversas vezes, a figura de Marilene Felinto através de Rísia, o
que nos permite concluir que Felinto, através da criação literária, cria-se a si própria, faz
de sua existência obra para poder ver-se debaixo de si mesma, sentindo uma amazona
lutar dentro de si. A autora passa a ser o “ser criado”, transforma-se em produto de sua
escrita.
141
Vê-se, então, nesta pesquisa, a arte como expressão dessa insatisfação
profunda causada pela violência, o que exige a criação de uma entidade que comunica
sentimentos e dores, refletindo, direta ou indiretamente, a raiva.
A raiva pode evocar sentimentos de vergonha diante de outras pessoas que
vêem este sentimento como algo negativo, mas, ao mesmo tempo, deve-se ressaltar a
presença de um traço quase oposto, de um intenso desejo de comunicabilidade, que
encontra satisfação no desmascaramento de si mesmo. Daí deduzir que quase todas
as narrativas são o itinerário da perda e busca de reencontro de uma integridade
violada. Essa perda, como ficou exposto anteriormente, provocará a raiva. A
insatisfação pela incompletude impulsionará para o “desmascaramento de si”. É a
própria construção literária.
A partir desse momento acredita-se em uma paz interior, que virá com o
retorno da completude. A impressão que a pessoa raivosa tem do mundo é que tudo é
injustiça, sofrimento, dor, sentimentos que se exacerbarão num vazio e descrença
profundos.
Outro ponto importante é o fato de este modelo não ser prescritivo; é, antes
disso, a descrição de um processo que acreditamos ser fundamental para a criação
literária. É a expressão, mediante símbolos, de sentimentos que refletem a
complexidade do sujeito humano, como apontou Julia Kristeva:
A criação literária é esta aventura do corpo e dos signos, que dá testemunho do
afeto; da tristeza, como marca da separação e como início da dimensão do
simbólico; da alegria, como marca do triunfo que me instala no universo do
artifício e do símbolo, que tento fazer corresponder ao ximo às minhas
experiências da realidade. Mas esse testemunho, a criação literária o produz
num material bem diferente do humor. Ela transpõe o afeto nos ritmos, nos
signos, nas formas. (KRISTEVA,1989, p.28)
A definição que se estabelece aqui é a de Literatura como resultado de
transposição, para o mundo dos símbolos e dos signos, dos sentimentos do homem no
estar-no-mundo. Dir-se-ia que o sujeito-poético, o narrador, é uma testemunha da
precariedade do humano em sua complexa vivência no mundo.
142
Marilene Felinto elevou o sentimento de raiva ao fundamento de uma vida sem
perspectivas, por isso necessitada de mudanças. Em As mulheres de Tijucopapo, a
raiva é algo imanente e inteiramente presente no decorrer do enredo, como já pudemos
constatar. Rísia representa, de forma concreta, a raiva; um processo de
questionamentos e autoconhecimento que leva a descoberta da dor, transmutada sob a
forma artística.
Rísia é uma criança nordestina que vai para São Paulo e nesta cidade continua
agredida por uma sociedade machista e opressora. Crescendo sem afeto, acostuma-
se com a “aspereza de alma”, refletindo em seu comportamento o mesmo “desamor”
que sempre recebeu.
Rísia é “vazia”. Ao lançar mão desta palavra pretendemos enfatizar a presença,
na personagem, de um vazio interior, a falta de amor, um oco fundamental que
provinha de toda sua existência.
O homem contemporâneo é fruto desse mal-estar. Um nascer para a morte. E o
peso dessa condição sugaria toda possibilidade de ação. Risia, assim como o homem
da atualidade, é vazia e sente o mesmo vazio primordial, um vazio extremamente
opressivo. Já não há um elemento de sustentação ideológica que possa salvá-la dessa
profunda nulidade. Ela descobre que o ser é nada: “Nessa cidade de onde saio, essa
cidade tão enorme de prédios e pessoas e carros e lixo passando e vida de cidade, as
pessoas são jeitos perdidos”. (MT: p.94)
Esse sentimento de um ser perdido desemboca na sensação de incompetência:
“Mas em São Paulo, o que é que se quer, Nema? Eu perguntei a eles. Ninguém
pode, ninguém quer. Lá não chove, não tem areia, não tem pitomba. Lá se eu quiser eu
não posso, Nema”. (MT: p.75).
Neste trecho anterior, nota-se um conflito entre os desejos querer e poder. O
querer representa a vontade, os desejos que movem a narradora; o poder, a realização
de seus anseios. Rísia, constantemente, esbarra na incapacidade de realização: em
São Paulo sente-se de mãos atadas, incapaz de realizar qualquer ação: o binômio
querer e poder não se concretiza.
A descoberta da nulidade existencial, a limitação de suas ações, provoca o
questionamento de si mesma enquanto uma identidade; surge, então, a pergunta que é
143
o cerne do problema existencial do homem desde Platão: Quem sou eu? Qual é minha
origem?
O homem precisa encontrar sua identidade. Essa busca é árdua e cansativa,
uma vez que há em cada ser humano o medo de se encontrar consigo mesmo:
mas olhava-me no espelho em busca de algum rastro de como é que as
pessoas estavam me vendo. É que não sabia se aguentava as pessoas me
vendo, Nema. Queria ver como estava sendo vista. Eram visões e visagens
minhas. Tive de sair. Tive. É como se estivesse no limiar das coisas, Nema. Eu
me olho e sinto o medo em que me vejo. (MT: p.68)
nestas palavras de Rísia outro conflito: ser/parecer. Ela se olha no espelho
e não reconhece uma imagem real, sem deformações; ela enxerga visões e
visagens, fragmentos de seu interior. O homem, pois, é fragmentado e essa
fragmentação perpassa toda uma visão de mundo. Como existir sem ter conhecimento
de quem sou eu?
Nesse sentido, o sonho, como foi exposto, emerge como necessidade vital
para a sobrevivência no mundo. O sonho transforma-se em uma máscara que esconde
os medos do homem, perdido em suas agonias: “Que faço, pergunto eu agora, que
faço das horas de minha vida, então, se elas são todas de tribulação?” (MT: p.69)
A vida nesse mundo de sonhos parece máscara, onde a pergunta, de difícil
resposta, gera no sujeito-poético a necessidade de voltar-se para si, para que em sua
introspecção possa descobrir-se. Um mundo cercado de dúvidas e incertezas, que cria
no indivíduo um desconforto no existir, um incômodo em ser a pessoa que pergunta e
não têm respostas, um desconforto de estar-no-mundo: “Não quero mais ninguém, nem
o mundo” (MT: p. 85) e “E tento me dar uma resposta para ser mais fácil ir”. (MT: p.68)
O mal-estar gerado pela pergunta sem resposta provocará um desconforto
cruel entre o sujeito e o mundo. É o que explica o narrador Rodrigo S. M., de A hora da
Estrela: “Se tivesse a tolice de se perguntar ‘quem sou eu?’ cairia estatelada e em
cheio no chão. É que quem sou eu?’ provoca necessidade. E como satisfazer a
necessidade? Quem se indaga é incompleto.” (LISPECTOR: 1998, p.15).
Rísia, em sua incompletude, é um sujeito em constante estranhamento em
relação ao existir. Esse estranhamento reflete-se sobre si como decepção em relação à
144
realidade que a cerca. É, então, tomada por uma dor profunda, uma aversão à
realidade imposta, uma raiva que impulsiona o desejo de “revolução”: “Vou-me embora
pintar a revolução”. (MT: p.130)
A protagonista, então, busca nas palavras, no recontar a história, uma forma de
escapar do passado de dor, mágoas, loucura, para não urrar como o “menino cão”, seu
vizinho da infância, para não “relinchar como uma égua”. Ela percebe que é
fundamental transformar as emoções em palavras. Sua narrativa é a busca por si
mesma. Um questionar o mundo para encontrar em si a complexa relação sujeito-
identidade. Com o ego destroçado, sente que não possui um lugar no mundo. É um
ser deslocado, perdido e confuso em meio às interrogações do viver na
contemporaneidade.
Esse processo faz com que Rísia perca a ligação com o divino. não tem fé.
Deus não existe: “Deus às vezes me parece um monstro, produto mistura mágica do
caldeirão fervente duma bruxa para nos amedrontar. Não sei se Deus existe. Sou mais
pro não. Acredito mais em fantasmas e bruxas”. (p.110) O discurso de Rísia, a respeito
de Deus, também se torna raivoso: “Meu Deus, por que você não vem pra Terra? Olhe,
seja um mágico e me esse homem de volta. logo, me dê. Ora, o senhor faz
mágica de merda. Suas mágicas saem todas ao contrário. Em vez de amor sai morte
de sua cartola negra”. (MT: p.86)
Retomando o conceito de Kristeva sobre “uma carência congênita”, vê-se em
Rísia a descoberta da carência, a falta de um objeto de amor: “Era uma vez, certa vez,
perdi o amor de um homem e pus-me num caminho de milhares de milhas chorando de
morte e medo. Eu chorava como nunca. Eu chorava como o quê”. (MT: p.83) A
carência moverá o processo de busca, a necessidade de complementação.
Rísia não sabe quem é e, por isso, será preciso mergulhar em si mesma para
descobrir-se. Neste sentido, podemos perceber na criação de Felinto as condições da
existência, ao mesmo tempo em que acena para o fato de a escrita, a narrativa, ser um
dos passos para a descoberta do eu.
145
4.1. O sujeito em As mulheres de Tijucopapo: trauma e aniquilação
Se uma cobra (coisa rara) devora a si
própria, será que em seu lugar fica um
vácuo do tamanho de uma cobra?
(István Örkény)
Theodor Adorno (1988, p.11), em Teoria estética, reserva a parte inicial para
instalar uma discussão acerca das relações entre arte, sociedade e estética. O filósofo
afirma que as noções relativas à arte foram abaladas à medida que “a sociedade se
tornava menos humana”. Existiriam, a partir de seu ponto de vista, vínculos entre a
barbárie a que a sociedade está submetida e as produções artístico-culturais. Nesse
sentido, o pensador germânico atenta para o fato de, num certo sentido, as obras de
arte serem cópias da realidade vivida. Tal posicionamento se reforça porquanto o autor
expõe a premissa de que mesmo os textos mais elevados adotam uma posição
determinada em relação à sociedade, “ao mesmo tempo em que se subtrai ao seu
sortilégio, não de uma vez por todas, mas sempre concretamente e de modo
inconscientemente polêmico contra a sua situação a respeito do momento histórico”
(ADORNO,1988, p.16).
Os aludidos traços mencionados por Adorno remetem para uma passagem
importante do seu texto no qual formula a ideia de que “os antagonismos não
resolvidos da realidade retornam às obras de arte como os problemas imanentes de
sua forma”. (ADORNO,1988, p.16) Em outros termos, há a representação de uma
realidade conflitiva e tensa, que não pode formular-se somente em nível temático, mas,
em âmbito formal. uma relação dialética entre o texto literário e o contexto social,
sendo que as condições sob as quais se estrutura esse último tornam-se determinantes
para as formas específicas de apresentação estética. De acordo com Adorno (1988,
p.16), a tensão da obra é significativa na relação com a tensão externa. Portanto,
segundo o crítico, uma homologia entre a “estrutura das obras e a estrutura social”.
(ADORNO,1988, p. 20)
No mesmo sentido, em “A história como trauma”, Márcio Seligmann-Silva
(1999) desenvolve uma apurada discussão conceitual sobre o tema do Holocausto e a
146
sua relação com as formas de representação estética. Nesse artigo, o crítico destaca
que a experiência moderna está repleta de choques, de embates com o perigo. Como
decorrência da mencionada noção de realidade enquanto acúmulo de catástrofe, o
estudioso frisa que o caráter universal da linguagem é posto em questão tanto quanto a
possibilidade de uma intuição imediata dessa realidade.
Centrado mais especificamente no evento de Shoah
22
, o ensaísta chama a
atenção para os problemas e para as dificuldades de um historiador em representar
este evento. Nesse sentido, Seligmann-Silva comenta que o historiador de Shoah fica
preso a um duplo mandamento contraditório: “por um lado, a necessidade de escrever
sobre esse evento e, por outro lado, a consciência da impossibilidade de cumprir essa
tarefa por falta de um aparato conceitual à altura do evento, ou seja, sob o qual ele
poderia ser subsumido”. (SELIGMANN-SILVA, 1999, p.112)
A dificuldade ou mesmo impossibilidade de representação de um
acontecimento que transcende a capacidade humana de imaginação não se restringe
somente ao historiador. Assim como os artistas em geral, os poetas e os romancistas
também se veem ameaçados pelo desafio de absorver e atribuir legitimidade ao evento.
Conforme o autor, existiria uma cisão entre a linguagem e o evento, que seria
impossível “recobrir o vivido (o real) com o verbal”. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.46)
Seligmann observa que essa incapacidade de recepção de um evento que vai
além dos limites da percepção humana e que se torna algo sem forma concorre, numa
perspectiva psicanalítica, para a questão do trauma
23
. O estudioso ressalta que esse
22
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção. Letras: literatura, violência e direitos humanos,
Santa Maria. n. 16, p.09-37, jan/jun., 1998. Neste ensaio Seligmann elabora uma distinção entre os vocábulos Holocausto e Shoah. O autor explica
que o primeiro deriva do grego holocaustum. Essa palavra significaria queimar totalmente e era empregada para denominar o sacrifício ritual
marcado pela imolação não apenas entre os judeus. No pós-guerra, esse termo passou a ser empregado para designar o assassinato dos judeus
europeus nos campos de concentração nazistas. Assim, o crítico destaca que essa denominação não teria sido aceita por muitos estudiosos do
tema e pela maioria dos judeus, pois esses últimos negam que aquele morticínio possa ter sido considerado um sacrifício e muito menos reduzido
a um fenômeno a mais na linha ascendente da história. Daí, frisa o ensaísta, a opção pelo termo hebraico Shoah ou Shoa, que quer dizer
catástrofe, destruição, aniquilamento (p.16)
23
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147
problema – justamente por problematizar a possibilidade de um acesso direto ao real –
torna-se um problema estético de representação.
Nesses termos, a experiência do Holocausto vincular-se-ia ao conceito de
catástrofe
24
. A forma radical de extermínio envolveu um impacto intensamente violento
que, na tentativa de representá-lo em moldes tradicionais, estaria reduzindo-o a um
objeto de representação com estatuto de experiência assimilável. A gravidade do
problema, no entanto, não permite que se assimile uma experiência como esta sem
sofrer o seu impacto, e ter abalado as bases do pensamento humano, dedicado à
acomodação dos elementos em lógicas lineares. Portanto, representar a experiência da
catástrofe, em proporções tais como a história do século XX demonstrou, implicaria
uma renúncia dos modos convencionais de representação, pois estes seriam incapazes
de preservar a singularidade da experiência e a perplexidade que deve acompanhá-la.
Assim, o questionamento dirigido ao estatuto da linguagem, dos modos de
representação e das formas artísticas tradicionais está ligado a uma perspectiva de
renovação da expressão.
Compreendendo a literatura como produção constituída historicamente, e não
como objeto fechado em si mesmo, podemos formular a hipótese de que a enorme
carga de violência que caracterizou a história brasileira tenha implicações nas obras
literárias.
Podemos formular, com base em pesquisas recentes sobre o assunto
25
, a
hipótese de que a violência tem um impacto traumático sobre a sociedade, de tal modo
que esta não consegue ter, com relação a si mesma, a autoconsciência necessária
para superação dos efeitos da agressão. Por exemplo, o cotidiano da escravidão teve
um efeito de trivialização da possibilidade de agredir, mutilar e matar, que era
24
s.f. Grande desgraça, acontecimento funesto, calamidade.
Fim lastimoso.
Na Literatura significa acontecimento decisivo que leva ao final de uma tragédia.
(Do Gr. Katastrophe). A catástrofe é, na lógica da tragédia clássica, o evento ou os eventos dolorosos e funestos que
acontecem em cena,
correspondendo a ferimentos ou mortes .
25
cf. GINZBURG, Jaime. A violência constitutiva: notas sobre autoritarismo e literatura no Brasil. Letras, Santa Maria, n.18/19, p.121-144, jan/dez,
1999, p.132-133; MARCO, V. A Literatura de Testemunho e a Violência de Estado. In Lua Nova, 62, 2004, pp. 45-68.; MENDES, L. A. Memórias
de um Sobrevivente. São Paulo: Cia das Letras, 2001.; RAGO, L. M.; GIMENES, R. Narrar o passado, repensar a história. Campinas, SP:
Unicamp, IFCH, 2000.; BRESCIANI, S.; NAXARA, M. (Orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas, SP:
Ed. UNICAMP, 2001.
148
fundamentada em argumentos econômicos e políticos. O fato de ter ocorrido a
abolição, em termos institucionais, não impediu que no campo das práticas cotidianas
essa trivialização tenha deixado como herança fortes marcas, e que os argumentos em
seu favor encontrem reforço no pensamento conservador.
Esse problema se tornou fundamental para a literatura brasileira. Em termos
estéticos, encontramos muitos casos de “antagonismos formais”, usando aqui a
expressão adorniana, que determinam exigências interpretativas complexas para o
leitor. Por antagonismos formais devemos entender situações de incorporação à forma
artística de um impasse, de uma negatividade constitutiva, em que a forma de uma
obra, em termos estilísticos e historiográficos, entra em confronto com as tendências
hegemônicas de produção cultural, bem como com os valores ideológicos dominantes.
Deste modo os conflitos e lutas sociais ecoam e deixam marcas nas obras.
Podemos dizer que se formula uma crítica da violência nessas obras não
apenas pela tematização, mas pelos modos como se relacionam tema e forma. Graças
às perspectivas críticas adotadas, elas rompem com os discursos hegemônicos,
ideológicos, políticos e científicos, capazes de legitimar a guerra, sustentar o
patriarcado e defender o autoritarismo.
Como ilustração destes antagonismos formais, podemos pensar em Quatro
olhos, romance Renato Pompeu, publicado em 1976. A obra aborda a questão da
repressão, mesclando lembranças do passado, ficção e estilo de crônica. O enredo, em
suma, aborda os acontecimentos na vida do protagonista, que nome ao romance,
que tem o apartamento invadido pela polícia que tentava capturar sua mulher,
professora universitária e militante revolucionária que, no entanto, consegue fugir. A
polícia, na ocasião, vasculha a residência e confisca um livro, que ele
disciplinadamente havia escrito. Como a mulher e o livro eram seus únicos elos com a
realidade e como ele fora proibido de continuar a escrever, desenvolve completo
alheamento diante da realidade, sendo internado em uma clínica psiquiátrica. Ao se
reabilitar, busca reconstituir o trabalho original, entretanto, conclui que determinada
proeza seria impossível, pois percebe que não se lembra dos fatos nele contido.
A questão do esquecimento problematiza a própria concepção de identidade do
protagonista que, dilacerado, não consegue unir o passado e o presente. Assim, sua
149
luta a fim de reconstituir o livro original, representa uma luta para superar o
esquecimento e para reconstruir a própria história e identidade.
O impacto da Ditadura Militar, neste romance, pode ser notado através de um
discurso narrativo fragmentado. Nele, observam-se vaivens temporais, descontinuidade
temática e imagens aparentemente ilógicas. É elaborada, ficcionalmente, a noção de
uma concepção humana precária. Assim, a presença de um discurso descontínuo e
fragmentado é decorrente da própria problematização do sujeito, que não consegue
atingir a sua integridade.
Considerando-se os pressupostos teóricos desenvolvidos por Theodor Adorno,
o caráter problemático do narrador decorre do fato de que a segurança da consciência
em relação às suas referências de organização da realidade foi abalada. Em outros
termos, ele perde as referências, tornando-se um narrador precário, incerto e inseguro
quanto às possibilidades de sua própria consciência pensar e representar o real. Além
disso, o sujeito duvida da substancialidade do que está narrando. Estes elementos
sugerem a instabilidade das coisas no mundo, abrindo horizontes impensáveis para a
relação da sua consciência em relação a esse mundo. Ou seja, a desordem inerente às
vivências se manifesta como instabilidade no controle do pensamento e no sentir do
protagonista, algo que se reflete no processo de narração.
Outras obras como Zero (1975), de Ignácio Loyola Brandão, A Festa ( 1976),
de Ivan Ângelo, Reflexos de baile (1977), de Antonio Callado, também apresentaram
enredos fragmentados, caóticos, cuja desordem exemplifica a incorporação estética
das tensões sociais, os traumas de períodos historicamente violentos.
Desemaranhando as tessituras do trauma na sociedade contemporânea,
notamos sua referência na dor e na ameaça de morte. Atualmente, o trauma se
constitui, segundo a linguagem técnica da psicanálise, como patologias do narcisismo
[...] porque tomam forma naquele lugar onde o eu se viu violentado e ameaçado
com a possibilidade de interrupção do fluxo da vida que constitui sua base
narcísica. A etiologia dessas patologias não se encontra no campo da
sexualidade tem como referência a dor e a ameaça de morte. Aqui, as
intensidades vividas são de tal ordem que o aparato psíquico se inundado,
precisando de recursos “urgentes” para sanar a dor psíquica. (MAIA, 2003, p.
69)
150
Marilene Felinto, como vimos anteriormente, revela como o trauma influencia a
sua escrita. Produzindo uma obra que podemos considerar, como dito, uma
literatura da urgência, ela escreve para superar os problemas existentes, escreve para
fugir da loucura e da morte. Consequentemente, a autora torna-se, ao mesmo tempo,
sobrevivente e testemunha de algum tipo de violência, de alguma forma de desilusão.
Com letras-armas, ela produz uma literatura que desafia, mas antes, uma literatura que
revela o esforço do próprio ser humano para manter-se em meio ao caos.
Em 1987, Robert Jay Lifton, ao se debruçar sobre o estudo dos sobreviventes
de Hiroshima e do Vietnã, assim escrevia: “sem igualar de forma alguma a vida
corriqueira à experiência do holocausto, nós todos temos internamente algo do
Sobrevivente e da testemunha” (Lifton: 1989, p. 335). Estas palavras refletem o
momento geopolítico da época, preocupado com as possibilidades de um bombardeio
atômico devido ao armamento nuclear e suas consequências o advento de um
trauma psíquico em escala mundial [massive psychic trauma] que tal evento poderia
gerar. Ao mesmo tempo, estas palavras demonstram o quanto as experiências de cada
um podem marcar profundamente a constituição do ser como pessoa.
A experiência traumática desnuda-se no plano histórico através das guerras,
batalhas, genocídios, catástrofes naturais (terremotos, enchentes etc.), e despe-se no
plano individual através da violência física (tortura, espancamento, estupro etc.) e
psicológica. Não esqueçamos que trauma, na língua grega, significa ferida:
[...] a história do trauma é a história de um choque violento, mas também de um
desencontro com o real [...]. A incapacidade de simbolizar o choque o acaso
que surge com a face da morte e do inimaginável determina a repetição e a
constante 'posteridade', ou seja, a volta après-coup da cena”. (Seligmann-Silva,
2003, p. 48-49)
Qualquer um que tencione escrever uma possível história do trauma estará
debruçando-se em histórias de feridas que não cicatrizaram, de desencontros com o
real, pois estar ferido representa um desencontro com a realidade. Uma pessoa ferida
transforma-se em uma pessoa partida, machucada, cindida, ou seja, há um
desencontro entre duas partes que perderam o contato entre si.
151
O traumatizado está sempre repetindo a cena violenta do evento traumático: “a
compulsão à repetição também rememora do passado experiências que não incluem
possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo longo tempo, trouxeram
satisfação [...]”. (Sigmund Freud, 1920, p. 31) O testemunho seria assim, “a narração
não tanto desses fatos violentos, mas da resistência à compreensão dos mesmos. A
linguagem tenta cercar e dar limites àquilo que não foi submetido a uma forma no ato
da sua recepção”. (Márcio Seligmann-Silva, 2003, p. 48-49). Por mais dolorosa, difícil (e
muitas vezes impossível) que seja a rememoração da experiência traumática, ela é
necessária por dois motivos: um pessoal, outro político.
Primeiro, para o sobrevivente, narrar ajuda a cicatrizar uma ferida que ainda
teima em sangrar. Segundo, também o testemunho (não por acaso o termo ter,
também, validade jurídica) é um ato político: aquele que testemunha a catástrofe luta
para manter viva a memória coletiva contra a “violência inútil”. (Primo Levi. 1990, p. 63-
76) Testemunhar significa, ao mesmo tempo, enlutar os mortos, os que não
sobreviveram, tencionando com isso evitar que uma nova catástrofe se repita, ameaça
sempre latente como é prova o século XX. Assim, o “real” a que se refere o testemunho
dos Sobreviventes é a realidade de uma experiência traumática.
Nesse sentido, a escrita surge como uma das saídas, afirma Jean-Paul
Sartre
26
, que alguns indivíduos encontram para suportar as situações de desespero,
uma luta que um(a) escritor(a), aquele que narra, faz de si mesmo para não ser
esmagado pelas tensões da sociedade vigente. Uma luta que Marilene assumiu para
não ser esmagada pelas fatalidades. Sua saída contra a agressão social; sua forma de
reinventar-se através de seus personagens; reescrevendo sua história como
“libertação”. Através de sua “literatura da urgência”, procurou legitimar o próprio eu,
26
Jean-Paul Sartre, analisando a obra de Jean Genet (1910-1986), afirma que sua obra, mais do que meras obscenidades como aparenta à
primeira vista, é uma espécie de martírio que o autor encontrou como saída. Se o homem honesto, isto é, o homem comum da sociedade
estabelecida, projeta o mal nos difamados (e nesse caso em se tratando de um ladrão, pederasta e traidor) e os sufoca com as suas acusações e
proibições, a sua obra é uma vingança do difamado para com essa sociedade. Fazendo um “mau uso da linguagem”, ele se vinga do homem
honesto no ato da leitura através de personagens emergidos do seu universo, do mundo das prisões, da prostituição e do roubo. Através de Genet
e sua obra pretendeu Sartre “afirmar que só a liberdade pode tornar inteligível uma pessoa em sua totalidade, mostrar essa liberdade em luta com
o destino primeiro, esmagado por suas fatalidades, depois, voltando-se para elas, digerindo-as pouco a pouco provar que o gênio não é um
Dom, mas a saída que se inventa nos casos desesperados, descobrir a escolha que um escritor faz de si mesmo, da sua vida e do sentido do
universo, até na estrutura das suas imagens e na particularidade dos seus gostos, traçar detalhadamente a história de uma libertação: foi isso que
desejei.” Sartre. Saint Genet. Ator e Mártir, 2002, p. 546.
152
realizar os próprios ideais. Por isto, encontramos, por vezes, um tom de ajuste de
contas, com excessiva redundância de si e do tema da raiva.
Por causa deste processo de transfiguração do trauma em arte, temos que nos
voltar para outra direção, descer as orelhas à boca do Sobrevivente e ouvir o que ele
tem a dizer. Hans Mayer, ao analisar os excluídos no interior do campo da história da
literatura, conclui que o mundo dos marginalizados acaba criando e obedecendo a leis
próprias deste mesmo universo, construído à margem da sociedade estabelecida que
os repele. Refletindo sobre a posição da mulher, do homossexual e do judeu no
imaginário literário europeu como marginalizados existenciais, o autor distingue as
fronteiras transpostas por esses das dos marginalizados intencionais:
[...] é preciso fazer distinção entre a transgressão de fronteiras intencional e a
existencial. Aquele que ultrapassa a fronteira está fora. Poderíamos chamar
titanismo ao que é empreendido consciente e voluntariamente em espírito de
rebelião, à maneira de Prometeu. Selado com sangue, como no pacto diabólico
de Fausto. Obediente às vozes, como em Joana d’Arc. Mas que dizer, se o
passo para margem e para fora tiver sido imposto pelo nascimento: pelo sexo, a
origem ou as peculiaridades psicossomáticas? Então a própria existência é uma
fronteira a ultrapassar.( MAYER, 1989, p. 17.)
Por isso, a riqueza da linguagem literária avança suas investigações sobre o
terreno da transgressão, sobre as leis próprias que regem esse universo transgressor.
Rísia, por exemplo, narra para fugir da marginalidade existencial, em outros termos, de
estar “fora” o por escolha, mas por não ter tido a liberdade de escolha. A
protagonista percebe a proximidade da temida margem e, por isso, precisa encontrar
uma forma de atravessar a ponte para não enlouquecer, para não perder totalmente a
sua subjetividade em meio a tamanha dor: “Não vou ficar emperrada por uma ponte.
Vou atravessar”. Assim, sua angústia é a reação primitiva ao desamparo no trauma,
reação que é imediatamente reproduzida como sinal de socorro na situação perigosa.
Esta sensação é constante na vida de Rísia: “Trazia uma angústia qualquer, essa vida”.
(MT: p.125)
Aliás, o conceito de trauma conota uma condenação, ligando-se a aspectos
dessubjetivantes (negativos) do evento traumático, mas ele também pode ter um
153
aspecto positivo, pode ser subjetivante e é isso que alguns psicanalistas
contemporâneos como Sándor Ferenczi vem enfatizando
27
.
Como talhar os afetos brutos, afetos que não ganharam forma no momento em
que vieram à tona? Dissemos que a origem etimológica da palavra trauma vem de
ferida; mas num dicionário italiano aparece um outro significado, de raiz indo-européia,
para o termo: trauma também significa suplantar, passar através. (Freud, 1920, p. 24) A
catástrofe (e sua etimologia grega aponta para a ambivalência de significados como
crise/solução, grave perturbação/desatar nós) tem como principal efeito uma
dificuldade, uma paralisia dos processos de simbolização, acarretando consequências
extremamente dolorosas. O trauma, no entanto, não é uma patologia em si mesmo,
“mas por sua impossibilidade de inscrição psíquica, devido à recusa (Verleugnung) do
meio ambiente em reconhecer o ocorrido”. (Freud, 1920, p. 26-27) É por esse
reconhecimento que luta o Sobrevivente, o reconhecimento de torná-lo lembrança
através do testemunho e, com isso, tentar esquecer a dor, sem esquecer o significado
político e ético da catástrofe para a sociedade e gerações vindouras.
Assim sendo, as narrativas de traumas são fontes reveladoras de uma vivência
individual e de uma experiência social, isto é, de uma trajetória. Importante também é
pensar que o conceito de raiva, como vimos no capítulo 1, remete a um trauma, uma
ferida que, por não cicatrizar-se, impossibilita o esquecimento. Por isso a validade de
uma narrativa da raiva como testemunho de uma experiência traumática.
Voltando a atenção para o romance As mulheres de Tijucopapo, podemos
localizar uma narrativa de memória: a memória de uma infância marcada pela violência,
pelo abandono, pela dor e, consequentemente, pela raiva. O efeito da violência na
protagonista é devastador, indizível. Rísia passa a maior parte da infância gaga,
emblema de sua incapacidade de dizer suas dores, que se tornam cicatrizes não
curadas. A personagem expõe-se como um ser traumatizado que armazenou imensa
quantidade de pesar e raiva diante de sua inocência violentada; feridas que a
acompanham até a idade adulta: “Eu sou uma dor” (MT: p.71)
Knobloch (1994, p.96) refere-se ao sofrimento psíquico relacionado ao trauma:
27
cf. FERENCZI, S. A criança mal-acolhida e sua pulsão de morte. In Psicanálise IV. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
154
O trauma, segundo Ferenczi, é o problema da dor, da dor vinculada à
experiência de morte, dor-morte. Dor é a impossibilidade de representação. O
sujeito fica impactado pela presença da morte, ele está em "presença" da
morte. Insisto na expressão "em presença", pois não atua o contraste
passado-presente-futuro, está-se diante de uma experiência bruta (de um
excesso) que não foi temporalizada, ou seja, não teríamos uma
temporalidade historicizada
Rísia está no limite da dor e por isso, diz repetidamente: “Estou morro não
morro” (MT: p.53). Praticamente sufocada em seu “sentimento pluvial” (MT: p.59), ela
não consegue alcançar uma linguagem una. Assim, ao longo do romance, percebe-se,
através de um discurso fragmentado, a dificuldade desta protagonista em representar
os fatos e os próprios sentimentos. Ferenczi aponta a fragmentação como uma forma
de suportar o impacto da violência, da dor. O individuo teria, desta forma, a
possibilidade de diminuir o sofrimento para, desta forma, se restabelecer. No início, a
consciência, tal como estava estabelecida antes, é destruída. Se este ato não for o
suficiente para cessar a dor, a própria vida é destruída. A fragmentação, portanto,
representaria a experiência tumultuada da narradora diante de seu contexto familiar e
social.
Esta fragmentação reforça mais uma vez os traços expressionistas do
romance, pois, de acordo com Berman (1986, p.13), o expressionismo revela, de
maneira insofismável, a fragmentação a que chegou o homem dos tempos modernos, o
qual, dissolvido na horda, é movido, a um tempo, pelo “desejo de mudanças [...] e
pelo terror da vida que se desfaz aos pedaços”.
Nesta vertente, pode-se perceber que em As mulheres de Tijucopapo, o
sentimento de raiva explode em fragmentos, estilhaços e ruínas, como a dizer o
indizível, como a representar ou dar legitimidade a uma dor que transcende a
capacidade humana de representação.
Theodor Adorno atribui à arte um poder de sensibilização. Como vimos
anteriormente, para o autor, a linguagem revela-se impotente ou incapaz de manifestar
o caráter traumático de certas experiências históricas. Devido ao caráter reificado da
comunicação, um impedimento da tradução de experiências limites para o plano
linguístico. Entretanto, observa ele, apenas a arte seria capaz de aludir ao inominado,
porque usa o recurso metafórico; recurso este que circula em toda a obra felintiana,
155
como anteriormente exposto, no capítulo 3. As contribuições da estética, neste
particular, seriam importantes, pois elas não se reduziriam à esfera de competência dos
sons de uma língua, mas levariam em conta inclusive o mutismo das obras de artes
plásticas.
Desta forma, toda a estrutura de As mulheres de Tijucopapo apresenta o
esforço de revelar o que não pode ser nomeado, ou seja, o irrepresentável e o indizível,
enfatizando, assim, através de uma representação estética fragmentada, um indivíduo
problemático.
No que tange à fragmentação, Benjamin (1984, p.230) afirma que a tendência
da linguagem é o fracionamento. A motivação para tal estado de coisa encontra-se nas
circunstâncias externas. Segundo o crítico, quando a confrontação se torna colérica e
violenta, os fragmentos linguísticos se amontoam”, evocando a impressão do estilhaço
e do caótico.
Assim, pode-se entender o caráter destrutivo, que estilhaça a totalidade
ilusória, através da montagem, do rompimento da continuidade da narrativa, como uma
forma de dar acesso à verdadeira experiência. Em outras palavras, a raiva, a violência
e a destruição são mimetizadas de maneira a fazer verter do seu cerne uma dimensão
redentora.
O espaço narrativo explode em violência, contorce-se em convulsões agônicas
de agressividade explícita no cotidiano da protagonista, no meio onde circula, na
repressão política, na casa dos pais, na escola. Enfim, imersa numa realidade caótica,
a protagonista se coloca em procura, num labirinto de incertezas, revelando uma
essência problemática.
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Nesse sentido, a ideia de trajeto num labirinto se torna mais contundente,
evidenciando as incertezas e o desespero da narradora. Seus constantes
questionamentos de para onde aquele caminho iria levá-la traduz, na verdade, a dúvida
do homem contemporâneo de para onde tal período o estaria conduzindo. De todo
modo, aqui, a busca da protagonista por sentido para a sua experiência e para suas
incertezas são compreensíveis, levando-se em conta as incongruências e as injustiças
da vida social.
Marilene Felinto elabora suas representações da condição humana acentuando
seu caráter problemático e agônico, considerando que no contexto histórico brasileiro a
constituição da subjetividade é atingida pela opressão sistemática da estrutura social de
formação autoritária. Assim, Rísia toca no limiar da loucura, e isso é feito de um modo
que é possível vislumbrar as marcas de um contexto opressor e difícil, em que as
possibilidades de emancipação e liberdade são limitadas e questionadas. Como sujeito
agredido pela violência constitutiva, a protagonista é induzida a internalizar as
estruturas autoritárias, cruéis e, por conseguinte, a reproduzi-las porque o destino
“está traçado na testa dela e no destino nosso, meu e dela” (MT: p.19)
157
Ao longo da narrativa, por exemplo, as datas de 1964 e 1969 são mencionadas:
a “Revolução”, quando seu guaraná fica pela metade no balcão, e o período da ida
para São Paulo; da mesma forma, 1935 é apenas mencionado como a data do
nascimento de sua mãe. Estas datas, no entanto, remetem a importantes eventos na
história brasileira. O ano de 1964 marca a instituição da ditadura militar. A sociedade
passou a sofrer as consequências de um regime arbitrário, autoritário e repressivo,
quando a liberdade de expressão passou a ser intensamente combatida pelo governo,
os direitos individuais foram suprimidos sob o respaldo da Lei de Segurança Nacional,
ao passo que o cidadão brasileiro ficou à mercê dos desmandos do Regime Militar. Da
mesma forma, em 1969, a Junta Militar escolhe o novo presidente: o general Emílio
Garrastazu Medici. Seu governo é considerado o mais duro e repressivo do período,
conhecido como " anos de chumbo ". A repressão à luta armada cresce e uma severa
política de censura é colocada em execução. Em relação a 1935, ano que antecede a
ditadura de Vargas, pode-se dizer que um clima de repressão e denúncia marca este
período, historicamente reconhecido como o "ano da Intentona Comunista", quando
após uma tentativa de golpe, os integrantes da Aliança Nacional Libertadora -ANL-
foram presos e torturados pela Policia Política dirigida por Filinto Müller.
Embora estas datas traumáticas na e para a história, sociedade e política
brasileiras não sejam um componente social explícito na obra, podemos ler nas
referências de Rísia e nas entrelinhas um desconforto diante da repressão exercida em
todas as esferas sociais e culturais. Assim, estas várias revoluções são correlacionadas
a momentos de vida e morte que se fixam na memória da menina: o nascimento da
mãe, o natal de 1964, o natal de 1969; a mãe “dada”, a morte de Natanael, a ida para
São Paulo. Tijucopapo, assim, é o espaço a ser alcançado ao final de uma busca
labiríntica; é um desejo de exercício da liberdade, projeto de restauração de energias
abafadas por um complô mantido por diversos agentes repressores, prova de
resistência contra o instituído, possível, naturalmente, por uma nova linguagem que
subverta, também, as ordens do seu próprio sistema de representação.
O percurso de vida de Rísia, desta forma, é modificado constantemente e isso
acontece porque a sua vida está cercada de brutalidade. A existência dessa violência
constante justificaria a intensificação de uma violenta força racionalizada, ou seja, uma
158
situação social caótica motivaria o aparecimento de certa prática de selvageria. O
desejo de matar que Risia faz questão de revelar e a ausência dos pedidos de desculpa
correspondem a uma atitude catártica: Rísia é vitima da frieza, da secura, do desamor,
logo, é compreensível a manifestação de seus atos socialmente desaprovados.
O que merece ser notado, porém, é que seja qual for a forma de violência
abstraída pelo corpo, ela não é de ordem puramente biológica, ou seja, não se resume
à aplicação de uma certa força física sobre um ser humano. O corpo está diretamente
mergulhado num campo político, logo, investido de relações de poder e de dominação.
Todo castigo aplicado num sujeito é portador de elementos que traduzem um
determinado arranjo social, nesse caso, calcado no autoritarismo. Vale dizer, ainda, se
um indivíduo é vítima de determinada brutalidade, é porque ostenta um comportamento
que não encontra paralelo na estrutura social tal qual é requerida pela elite dominante.
Assim, Rísia confessa:
os meus dias todos da vida toda desde menina tiveram metade de suas
horas (doze horas cada dia) de traição à minha mãe: do doce que comi
escondido na cozinha à pílula que tomei toda noite, na cama dum hotel. Sou
uma traidora mamãe, me enforque” (MT: p. 96)
Através deste trecho podemos compreender o quanto a relação com a mãe é
traumática. Por não aceitar a forma de agir de sua mãe, Rísia procura, a todo instante
se opor a ela. Transgredir este sistema opressivo que desencadeia a perpetuação das
condições de dominação em que vivem, a mãe e ela, representa sua forma de curar
suas feridas ou, ao menos, impedir que estes eventos traumáticos continuem como
realidade do dia-a-dia. Ao fazer tudo o que não lhe é permitido, a narradora está
dizendo que os limites são demais e que os espaços e ações que representam
liberdade precisam ser aproveitados com a máxima intensidade.
4.2. Estética da raiva: o percurso no labirinto existencial
E quando tudo parecia a esmo
159
E nesses descaminhos me perdia
Encontrei muitas vezes a mim mesmo...
Eu temo é uma traição do instinto
Que me liberte, por acaso, um dia
Deste velho e encantado labirinto
(Mário Quintana, Baú de Espantos, 1986)
Diante do trauma, da ferida não cicatrizada, Rísia inicia sua viagem: seu
percurso dentro do labirinto. Esta imagem surge como um complexo emaranhado de
possibilidades que têm a função de refugiar o ser violado; o ser que não encontra
motivação em seu espaço, em sua história, e que procura caminhos paralelos. Assim, o
labirinto deve, ao mesmo tempo, “permitir o acesso ao centro por uma espécie de
viagem iniciatória, e proibi-lo àqueles que não são qualificados. [...] Trata-se, portanto,
de uma figuração de provas discriminatórias, de iniciação anteriores ao
encaminhamento na direção do centro escondido”. (CHEVALIER & GHEERBRANT,
2000, 531)
A raiva em As mulheres de Tijucopapo pode ser pensada como o próprio
labirinto em que se encontra Rísia: sua forma de se autoconhecer, sua consciência dos
abusos físicos e morais, sua forma de falar/denunciar. Assim, este sentimento não é
apenas resultado de um estado de desequilíbrio emocional, mas é, sobretudo,
resistência diante da crise que se processa na contemporaneidade, seja por ameaças
em relação à linguagem, ao contato com o outro ou com o próprio eu. Sendo a raiva um
sintoma crucial de desconforto, ela se apresenta também como a única via de acesso
possível para se dramatizar escolhas, rupturas e apontar possíveis caminhos.
Nesse sentido, por que a raiva contida no romance de Felinto pode ser uma
forma de resistência diante da coisificação do mundo? Por que esta escritura
dilacerada, feita dos escombros da linguagem, pode servir como alegoria de uma
humanidade que também presencia as ruínas de uma natureza silenciada pelo
totalitarismo da 'razão'?
Tentando alcançar a palavra, a pessoa enraivecida constantemente esbarra no
silêncio. Diante da ameaça da mudez, a narrativa da raiva pretende desdobrar as asas,
livre; mas o poder da repressão sempre a atrai para baixo. A linguagem se pode
fazer retratando este sentimento de raiva ambíguo, dito de outra forma, através de
160
paradoxos e oximoros: o silêncio inicial leva Rísia ao desespero e o desespero a leva a
procura de terra firme, um espaço que lhe ofereça suporte, que lhe ofereça a vida não-
morte. É a busca de algo que se perdeu, busca através da palavra, da linguagem.
Por conseguinte, recuperar a linguagem submersa na mudez é a salvação. O
desconforto advindo de tal mudez representa uma resistência à morte. Desta forma, a
raiva é regeneradora. É ela que propicia vidência e iluminação, atributos responsáveis
pela transformação da angústia, proveniente de uma atitude passiva, em atitude ativa
transformadora.
Neste percurso de transformação e resistência, surge uma estrutura-labirinto,
que é um símbolo antigo e universal. A complexidade de um labirinto representa
confusão ou falta de direção. Como uma metáfora da vida, ele simboliza a escolha
necessária a fim de alcançar a segurança do centro, (ou do lado de fora). Na mitologia
grega, o labirinto era a casa do Minotauro, derrotado por Teseu que encontrou a saída
graças ao fio mágico de Ariadne. Em comum com a mandala e a alquimia, em uma
analogia religiosa, a passagem pelo labirinto simboliza uma jornada espiritual na busca
pela união com o absoluto. Visto pelo viés psicológico, o labirinto pode representar a
confusão e a contradição do inconsciente. A chegada ao centro significa
autoconhecimento.
O labirinto-raiva de Rísia representa suas confusões e contradições, mas
também, seu processo de autoconhecimento em sua difícil busca por identidade. Neste
sentido, o labirinto torna-se uma efetiva representação metafórica da condição humana
neste novo milênio, marcado por rápidas transformações sociais, tecnológicas e
ecológicas que transformam o futuro humano em uma incerteza absoluta. A civilização
move-se constantemente em velocidade cada vez maior, mas parece incapaz de
especificar um objetivo e direção. O homem contemporâneo, portanto, movimenta-se
como dentro de um labirinto, cego e mudo, provável vítima do monstro que espera por
ele no fim da jornada. Sua caminhada representa, assim, a desorientação, incerteza,
angústia e solidão humanas.
O mito do labirinto possui também significados positivos, representando a
vitória da vida sobre a morte, e como rota de melhora espiritual, nossa transição como
161
pessoas espiritualmente melhores. O labirinto representa o mistério o qual Rísia
poderá decifrá-lo seguindo seu caminho sinuoso.
Neste contexto, a atitude de empreender uma viagem, ainda que dentro de um
labirinto, encena o caráter ativo, ao mesmo tempo que provoca a desestabilização da
continuidade temporal e geográfica. A narrativa em busca infinita por uma origem que
está nela mesma, os paradoxos que se tocam sem jamais se anularem, os silêncios
entrecruzados por uma verborragia sem conta, a solidez que se liquefaz em ondas
contínuas e repetitivas, toda esta viagem que a palavra empreende pelo curso do rio-
folha faz da linguagem felintiana um reflexo do momento de crise e desestruturação do
fim de um século. É mais do que apenas um reflexo, é resistência e emancipação.
A viagem de Rísia, além de uma incursão para Tijucopapo, metaforiza a volta
para dentro de si. De acordo com Lacan (apud Ferrara, 1999, p. 19), a necessidade de
deslocar-se, muitas vezes, tem um caráter existencial e psicanalítico, visto que o sujeito
se auto-descobre no confronto com outro.
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É esta viagem, este deslocamento-conhecimento que permite que a Rísia
raivosa desvicie o seu olhar e procure a essência de um novo ver. Porque neste
162
trajeto, iluminam-se espaços outros, vistos pela primeira vez. O deslocamento revela a
necessidade de ruptura com o velho, aliado ao desejo de criar o novo.
A narrativa, como fora apontado, inicia-se com Rísia prestes a partir, após
ter sido abandonada pelo homem amado. Indispensável dizer o quão abalada encontra-
se. Sentimentos confusos, uma imensa raiva. A necessidade de partir acontece após
perceber o desmoronamento do ser. Tudo se torna confuso, uma suspensão do
tempo e dos espaços, num mergulho profundo da protagonista dentro dela mesma. Ao
querer partir, busca algo que se perdeu na lembrança, ou que ainda não existiu. A
viagem de Rísia significa uma tentativa de ligação entre estes dois pólos passado e
futuro - uma ponte que ela terá que construir para poder superar o passado de
submissão que se coloca como sina das mulheres de sua linhagem.
Entretanto, esta fuga de São Paulo, assim como da infância, não significa uma
ruptura com o passado, uma vez que Rísia o traz sempre à tona no presente. Mas, esta
infância constantemente retomada, demonstra que ela terá que se transformar, recriar-
se com o que tem e com o que irá conhecer. É aludindo constantemente à infância
que a raivosa e dolorida Rísia vai preparar o seu olhar para a descoberta de uma nova
linguagem, uma nova forma de vida. As experiências da infância nos ensinam que a
quebra da continuidade temporal é salutar para uma visão inovadora da história.
Conforme Olgária Matos,
[...] toda a infância é quebra da continuidade temporal, pois coloca entre épocas
da vida uma camada de experiências que esquecemos, mas cuja intensidade
foi tal que a fulgurância de uma recordação fragmentária é suficiente para
reabrir nosso acesso à história”. (MATOS 1993, p. 62-63)
É por isso que os fragmentos da memória infantil foram para Benjamin tão
decisivos. Segundo ele, o acesso a estes resíduos, remanescentes de uma época em
que o tempo ainda era descontínuo, se pela memória involuntária ou sonho. Daí
a importância de viver o passado com a intensidade de um sonho, experimentando o
presente como o mundo da vigília.
163
Para Rísia, a busca de sua identidade, de sua origem, não se realizará sem o
caminho de volta para o que se era: “Tudo aconteceu mesmo num tempo de menina”.
(MT: p.138)
Retomar o residual e o descontínuo do passado permite que Rísia perceba a
estrutura opressiva, a secura dos relacionamentos, a raiva diante da violência. Este
momento de reconhecimento-recusa é necessário para recriar o seu futuro, num
processo de “perlaboração”, termo este que, no sentido freudiano, significa a “ruptura
do círculo mítico da repetição e de uma maneira emancipada de lidar com o passado a
partir das necessidades do presente, o que se através da superação das
resistências”. (Bole, 1994, p.411) Segundo Bole (1994, p.420), “a resistência a ser
superada é a do hábito, que é um eterno 'repetir' do ato primordial; o brilho da
descoberta que lhe é próprio se tornou irreconhecível no lusco-fusco do sempre igual”.
Para que a perlaboração ocorra, segundo Benjamin, é necessário fundir a memória
individual com a coletiva e eliminar a saudade e nostalgia, o que efetivamente ocorre
com Rísia. Ela não olha para o passado com a saudade de um tempo perfeito ou de
uma infância feliz: “Sou uma pessoa atacada por lembranças atormentadoras” (MT:
p.136). Ela olha para trás com a consciência de um sujeito adulto, que precisa se
transformar: “Pois eu posso transformar o mundo a lápis de cera”. (MT: p.138 ) E, para
a transformação, para a reconfiguração de novos caminhos, é necessário a superação
da “redundância”, do eterno repetir quelugar ao perlaborar. Esse processo se dá no
limiar entre a recordação do passado e a percepção do presente, o que ocorre
sintomaticamente no despertar de Rísia para um novo caminho que não reproduza
mais o ciclo de vida das mulheres de sua linhagem: mulheres traídas, traidoras, “dadas”
e silenciadas.
É precisamente ligando estes dois extremos temporais, do tempo que passou
com o futuro incerto, que Rísia irá empreender a viagem rumo a Tijucopapo. Viagem
para além do espaço e do tempo. Viagem que indica a possibilidade de vitória, de
conquista e afirmação do Eu pela protagonista, a superação como forma de vencer a
morte: renascimento.
Neste trajeto de volta, em busca de si, os elos entre futuro e o passado, como
elementos simbólicos da viagem que será empreendida e a infância que se perdeu, são
164
religados. Vida e morte fundem-se nesta visão fulgurante de memória, onde o tempo
perdeu sua continuidade, e o espaço, sua dimensão geográfica. O deslocamento tem
como finalidade a volta ao ponto anterior à partida, onde tudo é passível de
ressignificação: Mamãe, eu cheguei a Tijucopapo, o lugar que você não honrou.
Cheguei depois da inconsciência de uma queda. Estou indo de volta pela BR que leva e
traz carros de São Paulo mas o alvo é a Avenida Paulista”. (MT: p.185) A viagem de
Rísia, assim, é uma forma de ressignificar sua genealogia e, a sua memória,
desencadeada neste percurso, serve para plurissignificar o que ela é.
Esta viagem labiríntica, torturante e torturosa, estava no subconsciente de
Rísia: onde a sua memória de infância não encontrava o amor em seu ambiente
familiar; onde herdou sua raiva do mundo. A obra, assim, é toda feita destes jogos: de
espaços geográficos familiares que, muitas vezes, se organizam de forma
desordenada, caótica. Desta forma, evidencia-se o valor da memória. Em primeira
instância, porque a memória é a saída apontada pela mitologia: o fio de Ariadne permite
que Perseo memorize o caminho de volta - portanto simboliza um fio de memória. Este
fio, construído de um material desconhecido, ao mesmo tempo aponta para um futuro
(porque supõe uma escolha) e para o passado (porque supõe um relembrar dos passos
do herói grego). Abre-se, de repente uma multiplicidade de caminhos, a pluralidade
vertiginosa dos possíveis. A primeira tensão que o labirinto põe em cena é, por
conseguinte, aquela do um e do múltiplo. Na ida e na volta, o fio mágico de Ariadne
indica o único caminho a percorrer. (BRUNEL, 1997, p. 556) Ao mesmo tempo em que
Teseu tem a liberdade de escolher vários “futuros” na ida, a volta aponta uma saída:
a memória do caminho que leva diretamente à Ariadne. De igual forma, Rísia tem
uma opção em sua volta: o encontro com as mulheres guerreiras, sua verdadeira
origem.
A gênese mítica da construção do labirinto está ligada à desorientação e ao
sofrimento. A estrutura foi inventada pelo arquiteto Dédalo para encerrar o Minotauro,
fruto da união proibida entre a rainha Parsifae e um touro branco, um presente de
Poseidon ao rei Minos. Mas a construção era também um desafio: uma vez que alguém
entrasse, teria que encontrar meios de sair. Gerava desorientação porque supunha
165
escolhas entre caminhos muito semelhantes entre si. Suscitava sofrimento porque
alimentava a angústia do encontro iminente com a fera que habitava o centro.
No fundo, o labirinto é uma espécie de prisão, a céu aberto, construída
pacientemente por um arquiteto. E o labirinto, no romance, está, também, diretamente
relacionado à estrutura circular do tempo: “É a prisão num tempo circular que define o
labirinto: não sucessividade, dilui-se a ideia de um processo desencadeado em
direção a um objetivo, nem continuidade e, sim, retorno a uma situação primeira”.
(FIGUEIREDO, 1997, p. 114) Assim, temos em As mulheres de Tijucopapo um tempo
do eterno retorno, da repetição, das espirais e do infinito: um tempo insuportável:
“Tempo. Tempo. Tempo. É com o tempo mesmo que eu não aguento. Não suporto o
tempo” (MT: p. 86)
Na narrativa, Rísia, perdida como Teseu no complexo labirinto de palavras, não
encontra uma Ariadne que lhe mostre a saída. O lugar de chegada é o mesmo da
partida, o espaço da morte é muito próximo ao da vida. E aí voltamos à imagem de que
dentro do labirinto o sofrimento e, portanto, raiva. Suas palavras nos dão a idéia
deste sentimento confuso que envolve a sua viagem:
É difícil acreditar que serei capaz de ir até o fim. Pouca gente foi. E isso torna
tudo mais árduo. Além de que, essa pouca gente que foi não deixou passos,
uma trilha feita. Mas nenhuma trilha feita me serviria também. Devo abrir a
cortes minha própria linha na mata, devo fazê-la eu só. Trilha nenhuma outra
me serviria. E isso torna muito mais árduo. (MT: p.130)
O trecho anterior é circular, de forma a enfatizar a dificuldade da viagem
labiríntica. Da mesma forma, esta circularidade da narrativa representa o percurso
encalacrado da narradora. Assim, não compreendendo o mundo à sua volta, Rísia
fecha-se em reflexões que são enunciadas à personagem Nema e ao leitor. Como se
pode ver, os capítulos se voltam para o leitor, é dele o julgamento que se aguarda. O
leitor e Nema avultam no texto como o judicativo, o juiz, e estrategicamente, a
narradora coloca-se como uma pessoa que está sendo julgada. Entretanto, esta ré,
pelo seu relato, apresenta sua própria defesa, posicionando-se como vítima do meio e
das circunstâncias sociais em que vive: “Meu braço guarda todas as marcas vermelhas
166
de dedos” (MT: p. 82), “Ainda tentam me definir, os filhos da mãe. Sem sequer me
conhecerem” (MT: p. 32)
O romance resgata o ideal de todo adulto: encontrar uma saída para a
opressão vivenciada ao longo da vida. O tema é consistente, a abordagem coerente
com o percurso labiríntico que a protagonista realiza.
As mulheres de Tijucopapo, também, explora os arquétipos literários,
subvertendo os conceitos habituais do leitor. Desse modo, o centro urbano representa
o labirinto sem saída que substitui a noção convencionalmente sinalizada que se
costuma ter com relação a esse tipo de localidade. O labirinto como estrutura
arquetípica conduz o homem ao interior de si mesmo a fim de adquirir, pela
consciência, depois de longos desvios ou de uma intensa concentração, uma intuição
final em que tudo se simplifica por uma espécie de iluminação. Quanto mais difícil a
viagem, mais numerosos e árduos os obstáculos, mais o adepto se transforma e, no
curso desta iniciação itinerante, surge um novo ser. Esta transformação pode ser
notada em Rísia: “Meu começo ficou para trás serras e serras” (MT: p.138).
Conforme Campbell (1997, p.41-43), a procura é sempre motivada por uma deficiência
simbólica, e aquilo que é revelado sempre estivera presente no coração do herói ou do
grupo heróico: “uma paisagem revolucionária de mulheres guerreiras”. (MT: p.180)
Assim, o deslocamento de Risia e a incursão pelo espaço urbano, através dos
meandros de suas reminiscências, representa o desejo dessa personagem de obtenção
de um saber que lhe conferisse a revelação: o poder do conhecimento, ou seja, do
caminho que conduz à saída. assim ela poderia deixar de andar em círculos: “eu
andando por debaixo numa ilha cercada de carros por todos os lados” (MT: p.138).
Entretanto, esse saber é paradoxal, marcado pela ausência, ou seja, pela detecção de
que não consenso quanto aos valores e julgamentos sociais no espaço urbano.
Desse modo, permanecer nesse espaço representa andar em círculos sem qualquer
perspectiva futura: “lá é tudo dissonância”. (MT: p.128) Ainda a respeito de São Paulo,
acrescenta:
Era sempre tão doloroso passar por tanta entrada e por tanta saída, era
labiríntico, eu me perdia, eu chorava. São Paulo é muito grande, tem prédios de
milhares de andares invadindo o céu, tem avenidas infinitas, posso me perder
facilmente lá, estou exposta a todos os perigos. (MT: p. 116)
167
E, sair deste labirinto não é fácil, pois significa arriscar-se por meio da fuga que
pode levar à morte: “estou morro não morro” (MT: p.108).
A narrativa de Felinto explora recursos expressivos no tratamento dado ao
tema da raiva, por isso sua abordagem é relevante para a formação do leitor, porque o
leva a refletir acerca da impotência do ser humano diante das opressões sociais. Os
recursos linguísticos utilizados permitem uma desautomatização da linguagem,
justamente pelos efeitos de sentido inovadores que se pode obter por meio da leitura. A
própria organização formal dos capítulos, solicita do leitor uma leitura em círculos que
sempre remetem ao labirinto. Assim, o leitor tem uma experiência próxima às
vivenciadas na diegese pela protagonista.
O discurso da narradora, embora mantenha o estado de tensão constante na
narrativa, pela contenção, impede que o texto tenha um fechamento, uma solução,
levando assim o leitor a refletir e a buscar caminhos interpretativos que o liberte do
labirinto psicológico em que se enredado. Pode-se deduzir que a preocupação
estética presente na linguagem, no enredo, na estruturação da obra, traduz o objetivo
de ampliação das referências estéticas, culturais e éticas do leitor.
O tratamento literário da configuração discursiva de Rísia, a sequência
narrativa e a organização temporal propicia ao leitor revisão de seus conceitos prévios
em relação a narrativas lineares com final feliz e narrador observador. A abordagem do
tema, que solicita a interação com o leitor, estrategicamente o prende até o final da
leitura. Como a narradora não é conhecedora onisciente e controladora, ela relativiza
seu lugar no relato. Seu discurso caracteriza-se pelo paradoxo, pela preterição e pela
hipérbole e enfraquece os pressupostos ideológicos que estão por trás daquilo que tem
sido aceito como universal e trans-histórico em nossa cultura: a noção humanista do
homem como um sujeito coerente e contínuo. Rísia, enquanto personagem,
caracteriza-se por comportamentos paradoxais, muitas vezes entra em conflito com o
que as pessoas acreditam, desejando ser bicho, outras, com o que ela mesma pensa a
seu próprio respeito. Ela confessa: “É assim nesses pensamentos de ser que me
enrosco e preciso parar pois que perdi o fio” (MT: p.118). Revela, pois, um labirinto
168
existencial, um sentimento labiríntico que a mantém suspensa numa espécie de tensão
entre o real e o idealizado.
A simbologia do labirinto, assim, pode ser reconhecida na subversão da
estrutura narrativa, marcada pela completa dissolução de categorias tradicionais como
espaço, tempo da narrativa, personagens. Não há, neste sentido, uma personagem
central a monopolizar a ação das outras personagens secundárias. Rísia, que
vem mutilada pela falta de uma origem que a identifique. Rísia, com um rancor em
relação a quase todos que a rodeiam e que, nas palavras de Carmen Sevilla Gonçalves
dos Santos (2005), encarna uma contradição, desvelada em seu próprio nome, que
vem de riso [Do lat. risu.], cujo dicionário Aurélio Buarque de Holanda traz três
significados: 1. Ato ou efeito de rir; risada; 2. Alegria, contentamento, satisfação. 3.
Coisa ridícula. [Cf. rizo, do v. rizar]. Rísia zomba de sua própria existência. Ela tem um
nome que remete à felicidade, embora ela seja triste, raivosa e agressiva. Mas também
seu nome remete ao ridículo do que há no ser humano: seu nome é em si uma ironia.
outros personagens, mas é impossível delineá-los em sentido estrito, uma
vez que são puro reflexos da raiva que constitui ou destitui a identidade da
protagonista.
Tendo em vista que a discussão dos conceitos de escrita do tempo e da história
avulta como ponto nevrálgico desta produção felintiana, é possível pensar que o tempo
é um verdadeiro personagem em As Mulheres de Tijucopapo, pois se apresenta
“concreto”, concretamente vivido pela narradora. O tempo da infância transforma Rísia,
ele é um verdadeiro personagem, com ações fundamentais no enredo. Assim sendo,
predomina, na obra, o tempo psicológico, visto que a narradora segue o fluxo de seu
pensamento. Neste sentido, podemos conceber que os labirintos de Marilene Felinto
são mais temporais que espaciais, redes que nos embaraçam, confundidos que
ficamos pelo efeito de repetição e fragmentação.
O espaço gira entre São Paulo e Recife, através da memória labiríntica. Mas, o
espaço aparentemente tem importância secundária, uma vez que a narrativa concentra-
se no espaço mental de Rísia. Herman Lima manifesta-se a esse respeito: “[...] o
enredo, o assunto, o incidente, foram deixando de ser significativos, para a ênfase do
transitório, dos reflexos psicológicos, da ambivalência do passado e do presente,
169
tumultuando a vida e o ambiente em que se movem os personagens” (LIMA,1986: 61).
O tempo parece ser o da infância, mas incerto, é o agora, é o tempo que dura o
pensamento uma vez que este é capaz de comportar o drama da história inteira.
Assim, num vertiginoso fluxo de consciência, Rísia narra sua história: presente,
passado e esperança de futuro, tudo ao mesmo tempo, misturando memórias atuais e
passadas; lugares conhecidos. Através da memória, ela entra e sai de Poti, Recife e
São Paulo, transformando em uma única coisa a infância e a adultez, o amor e o ódio.
Os momentos, como apontamos, se repetem, confundem, denunciando-nos o
labirinto emocional que prende a personagem, sua dificuldade de manter um trajeto
linear: Eu estou ensolarada e labirintítica. É que estou próxima de Recife e Recife me
confunde toda. Recife está sempre morrendo de alucinação” (MT:110). “Quando você
morreu eu não te perdôo pois você preferiu se morrer de mim a ficar comigo”; “Quando
você morreu, um dia eu ainda te telefono” (MT: 61); “No dia que você morreu eu te
imagino vivo [...]” (MT:60). Como podemos notar, a história toda é um monólogo sem
começo nem fim, um contínuo denso de experiência existencial, que a narradora
executa diante de um outro ausente. E a ausência é, precisamente, a marca deste livro.
Ausência de um eu completo, de um lugar definido, de um tempo, de um outro: “muitas
vezes os contatos eram impossíveis [...] os contatos ficavam difíceis” (MT: p.127).
Ausência e ruínas. E ao contemplar as ruínas de uma atualidade
desconfortável, este sujeito procurará criar uma ordem mais adequada às suas
aspirações. Por isso Rísia pode ser vista como uma revolucionária, uma vez que, a
partir de uma experiência solitária acena transformações na condição social feminina.
Entretanto, para além do caos e do silêncio, é preciso mostrar que a iminência
do mutismo faz a narrativa felintiana não se finalizar, mas voltar ao começo, ou ficar
aberta para que não se esgote a possibilidade de falar. Ou seja, a extremidade do fim
não se anula na extremidade do começo para formar um círculo mortal escorpiônico, e
sim, uma retoma a outra, num movimento de um circulo inacabado, de uma espiral,
uma vez que há um ponto de fuga: o retorno.
Embora a narrativa, muitas vezes, pretenda retomar o começo para dizer tudo
da mesma forma, há deslocamento, há releitura do velho, uma reconfiguração do novo.
Por exemplo, embora o círculo vicioso da estrutura patriarcal não se destrua
170
completamente, ele é submetido a um processo permanente de corrosão e dialogismo.
Como resultado, temos uma ambivalência raivosa expressa nesta aparente dicotomia
entre a mudez e a palavra, o fim e o começo. Dicotomias, vale lembrar, que não se
anulam por serem opostas, mas se somam para criar uma nova linguagem. Linguagem
dialética e corrosiva.
Davi Arrigucci Jr (1995), ao analisar a escritura de Julio Cortázar, revela que a
narrativa deste escritor, muitas vezes, beira a destruição ou silêncio. Este “itinerário
labiríntico” que a obra de Cortázar percorre representa uma tentativa de ir além dos
limites da linguagem, entregando-se ao caos e à constante improvisação. A
perseguição por novas formas de expressão, segundo Arrigucci, acaba levando o
escritor a questionar o ato de escrever, inserindo assim uma poética dentro do próprio
texto ficcional:
A exigência de se atingir o que as palavras não podem dizer acaba por exigir
também a tematização do próprio ato de narrar, ou melhor, da sua
possibilidade. É como se a narrativa se tornasse uma narrativa em busca de
sua essência, centrando-se sobre si mesma. A narrativa de uma busca se faz
uma busca da narrativa. Ao tematizar uma busca essencial, tematiza-se a si
própria. (ARRIGUCCI JR, 1995, p.23-24).
Este ensaio literário de Arrigucci poderia estar tratando da escritura felintiana,
uma vez que esta se aproxima de alguns aspectos da obra de Cortázar. Em As
mulheres de Tijucopapo podemos encontrar este aspecto aparentemente circular,
escorpiônico, uma vez que o texto oscila, sempre, entre dois pólos: silêncio e palavra,
amor e raiva, infância e adultez.
Há, pois, a constatação de que é preciso dizer o indizível com palavras que
contornem o silêncio. Por isso, precisa negar o lugar-comum da linguagem, caso
contrário seria a própria mudez. Construir uma nova linguagem é a sua busca: uma
busca sedutora e que faz a narradora viver e viviver”. Desta forma, um ponto
importante na obra é a sua configuração como obra de origem, como busca incessante
que nunca se concretiza plenamente, mas que realiza a obra através das
aproximações. É nesse processo infinito que observamos Marilene Felinto tecer e
destecer seu texto num contínuo entrelaçamento de paradoxos. Barquinho oscilando no
fluxo e refluxo da maré feita de um sentimento-chuva.
171
Chegar a Tijucopapo é ultrapassar a infância, ao mesmo tempo em que se volta
para ela: “Por quantos Manjopi não passei até que eu pudesse ser como hoje sou” (MT:
p.100), “Uma infância não preenche espaço algum, ela não cabe, ela se espalha no
que sou até hoje, no que vou ser sempre” (MT: p.98)
É neste percurso de retorno, em que a narradora se deslocará entre dois
opostos (a dureza do sentimento e a leveza da esperança), que se fará a linguagem.
Uma linguagem molhada, chorada, feita de picos e declives. Linguagem labiríntica da
procura de uma força e liberdade de égua.
O percurso de Rísia para Tijucopapo pode ser observado como uma metáfora
da mulher que toma a dianteira de sua vida, que viaja em novas conquistas e em
permanentes transformações, a ponto de recusar a ser roseira sem flor, seca,
esturricada, como a mãe. Seu caminho labiríntico corresponde aos vários caminhos
possíveis para a mudança: caminhos difíceis, confusos, mas que se concretiza na
chuva-choro que fecunda o solo fértil do papel. Trata-se de um ritual de iniciação na
escrita que é tanto uma recusa ao definitivo quanto uma afirmação de mudanças
constantes.
Neste encontro de si, vislumbra-se também uma linguagem cheia de antíteses
e sinestesias, que produzem imagens paradoxais ou oximoros figura de linguagem
em que se combinam palavras de sentidos opostos, que parecem excluir-se
mutuamente, mas que, no contexto, reforçam a expressão de descompasso com o
mundo: “Eu só tenho a força dum fraco” (MT: p.55), “sangue de alma” (MT: p.75), “Amei
homens na escuridão morna das noites” (MT: p.95), “nas festas doces sofrimentos
cortando corações como o meu”. (MT: p.118)
Este recurso estilístico cria uma sensação de vazio, uma ausência terrível que
consome a narradora, uma falta que nem ela mesma consegue definir: “E o mar
estronda mas eu queria que fosse aqui dentro de mim. E que eu engolisse ondas
d'água para esse vazio, oco, seco” (MT: p.84).
De igual maneira, muitas são as passagens, ao longo da narrativa, em que,
semanticamente, as frases ficam incompletas, deixando o leitor em estado de
estranhamento permanente:
172
Antes que eu me fruste: as mulheres de.” (MT: p.79)
Pois eu amava esse homem e, de repente...” (MT: p.81)
e mandá-lo à...” (MT: p.86)
nem que eu...” (MT: p.113)
porque havia rancores, porque... (MT: p.105)
como pode um homem... (MT: p.107)
entre os meus sonhos... (MT: p.112)
só porque defendo alguns princípios eles acham que... (MT: p.109)
para acreditar, para cair na ilusão de. (MT: p.109)
Quando eu estava para sair de casa, sair de vez e enveredar por esse caminho
que se faz a minha. (MT: p.121)
Ana sar (1999) também define a técnica como um dos pontos fortes de As
mulheres de Tijucopapo:
Tudo é turvo neste excesso, diz a autora. Com muita garra Marilene tem a
coragem de escrever disto que é turvo. Mas sem hermetismo algum. O
resultado é uma narrativa em ziguezague, construída toda em desníveis, numa
dicção muito oral, atravessada de balbucios, repetições, interrupções,
associações súbitas, falas de tonalidade infantil. (Cesar, 1999: 249)
Observa-se que uma das novidades da obra de Marilene Felinto está na sua
incomum dicção. Rísia é, durante grande parte de sua vida, gaga, muda, porque lhe
desautorizam a própria fala a forma pernambucana de se comunicar teve de ser
suprimida por outra, a paulista. Essa supressão deixou-lhe fissuras, traumas, que
aparecem na sua forma de expressão linguística, toda atravessada, como bem marcou
Cesar, por repetições e interrupções que são balanceadas com momentos de
desabafos irados e cheios de ressentimentos. Esse isomorfismo entre as condições de
vida da personagem e o modo de construção do discurso na narrativa é muito bem
elaborado.
Para Araujo (2006) esta narrativa em primeira pessoa tem constantemente a
perspectiva de um diálogo, como falas reprimidas, falas que a personagem queria
pronunciar ou para a mãe, ou para Nema, ou para Luciana e assim vai. É o que ficou
173
engasgado e oprimido, que através da escrita ganha expressão. Sai do jeito que tem de
sair: com raiva, rancor, ódio, agressividade.
Rísia toma para si a palavra e abre o verbo contra tudo e todos que a fizeram
assombrada por lembranças de sofrimentos e dores. Sua voz inflamada é o grito
necessário porque sua vida são tormentos. O discurso da narrativa, assim sendo, é um
trajeto de sonho, de intervalo de pensamentos, marcado pelo desabafo, pela
externalização das angústias, dos sentimentos de inferioridades e das falas que, como
uma carta-desconto, ela queria enviar para a mãe, para a melhor amiga, para a inimiga,
para todos os que a intrigavam.
Araujo aponta, ainda, que a dicção da narradora é toda construída por uma
forte oralidade que tem muito a ver com a questão linguística que se reflete na
construção da narrativa. É o que se percebe na já mencionada gagueira que pode estar
ligada aos processos de repetições de trechos inteiros. A oralidade tem raiz no tom de
diálogo, na forma dessa prometida carta que nunca é escrita, mas que não sai do
horizonte de perspectiva da narradora:
Mas que eu odiei meu pai, odiei. Isso sim. Até o ponto de incorporar esse ódio
todo que me atrapalha. Porque ódio, menino, ódio é fogo. (MT: p. 32)
Acho que ainda posso amar. Ainda posso amar. Não quero morrer, Nema.
Peiote, Nema. Nemaaaaaaaaaa... (MT: p. 69-70)
Mamãe, eu estava esperando chegar para passar a carta para o inglês e
enviar. Mamãe, essa carta, uma carta para Luciana? Eu não me arrependi. (MT:
p. 186)
Segundo Santos (2005), em As mulheres de Tijucopapo, a narrativa de Rísia é
uma trajetória, ou melhor, a trajetória é a narrativa. Isso porque a busca da origem
no barro, na lama da lendária Tijucopapo, o lugar das mulheres que não eram como
sua mãe, e é também a invenção de uma origem que em tudo seja contrária àquela
sua.
Rísia, a personagem principal, foge de São Paulo para buscar Tijucopapo, e
caminha sonhando pela imensidão da mata, um caminho de pensamentos, um caminho
que é a escrita do romance. Ela repete que tudo parece estar acontecendo num
intervalo de fantasia e sonho e, quanto à revolução, Rísia sempre se refere a ela como
174
pintada a giz de cera. Nas duas passagens abaixo, fortes indícios daquilo que
Araújo (2006) chama de trajeto-narrativa:
Eu não tenho mais esse começo que acho que tenho. Meu começo se perdeu
serras para trás, não vou iniciar ninguém em nada. Não sei iniciar. sei
terminar. Mas é muito difícil chegar ao fim também. Sei que do começo não me
resta mais nada e que devo prender todas as esperanças ao final. Seria fácil se
eu não estivesse exatamente no meio, na metade. De que me adianta evitar?
Isto é uma estrada de ninguém e por onde vou a 250 mil milhas. E estou aqui
porque não mais pude telefonar. Porque não mais pude falar. (MT: p. 81)
Mas eu não tomei peiote. E hoje nem peiote nem salmo 91 nem porra nenhuma
para acreditar, para não cair na ilusão de . Nada, a não ser uma paisagem que
vou pintando a lápis de cera num papel em branco. Minha caixa de vinte e
quatro lápis coloridos. Minha ilusão. Minha revolução de cera. (MT: p. 109)
Para Araujo o “aqui” a que a personagem se refere está profundamente ligado
ao espaço do texto no qual o desabafo de ressentimentos está caminhando ao lado da
tentativa de criação de uma ilusão consoladora. Ou seja, o “aqui” é o texto que ela
escreve. Ela foge da realidade através e pela escrita da narrativa, ela foge de São
Paulo porque perdeu o amor de um homem, foge por um caminho de sonhos e para
uma origem encantada que a redima de sua difícil e enraizada infância e da dor de ter
perdido o grande amor. Em determinado momento, Rísia se pergunta se este
expediente não é falso e covarde, ao que responde de imediato “não”, e cai logo em
seus ressentimentos e no desejo de consertá-los:
Em Tijucopapo, com o homem que eu encontrar, parece menos perigoso. Mas,
será falso? Será covarde? Não. .... A palavra safadeza foi mamãe que inventou.
Mas eu sucumbo e confesso que terei de me cercar de uma casa e paredes
brancas para não voar de déu em déu como fiapo ou pena de pássaro.[...] O
que me dói nas safadezas, o porquê sofro ao encontrá-las., é porque venho de
um mundo tão safado de pai e mãe, de Lita, de tia... Que o meu mundo eu
quero consertado. Que foi por descobrir e lidar muito cedo com a safadeza dos
homens que perdi a confiança na dignidade deles (MT: p. 113-114).
175
A narrativa de As Mulheres de Tijucopapo, também, com uma técnica
inovadora, apresenta, na visão de Santos (2005) três tipos de mescla: linguagem,
forma e ficção/história. No primeiro tipo, encontramos uma mescla de linguagem
coloquial com uma linguagem mais rebuscada. Verificamos isto em trechos como:
“traçado na testa dela” (MT: 12), ao invés de “na sua testa” ou “Cheiro de quê, vindo
assim de baixo das saias daquela mulher? Eu disse cheiro de porra e mistura de
mênstruo marrom que devia ser o daquela mulher” (MT: 14); ou frases iniciadas com
próclise, contradizendo as regras da boa redação como: “Me vem barro na boca” (MT:
12). Ou ainda frases contendo cacofonias como: “Lá tinha uma ladeira de barro” (MT:
16).
Também se o uso de termos tidos como chulos: cagava lombriga, bexiga
lixa, cara de cu, espalhados em vários trechos da obra. Estes termos ou expressões
convivendo lado a lado com verbos flexionados em um tempo que usamos na
linguagem formal e construções mais elaboradas como em: “Eu me agachara a pegar
algo no chão...”, “Tive de ir-me embora e estou...” (MT: 22), “Todas as Anas são
umas traidoras. Capemo-las. Expulsemo-las do paraíso” (MT: 23). Ao usar este tipo de
linguagem, Felinto denuncia a incapacidade de a linguagem tida como civilizada dar
conta da experiência dos marginalizados, ao mesmo tempo que devolve a emoção ao
discurso escrito, através da fala da gente simples.
No que diz respeito à forma, Santos (2005) observa-se que a narrativa é
mesclada por trechos que ora se constituem carta à Nema, ora são trechos que falam
sobre Nema, mas não endereçados a ela, ou ainda trechos em que a carta é
completamente esquecida.
A interface ficção/história constitui uma terceira mescla. Além da referência às
mulheres guerreiras de Tijucopapo e a Lampião, que são retirados de seu tempo
histórico e inseridos em seu tempo ficcional, Marilene Felinto faz referência à revolução
de 64, como já mencionamos anteriormente.
Era 1964 e naquele ano, um dia tal, não posso me esquecer que estava com
Ruth na cidade, tomando um guaraná inteiro, primeira vez que eu tomava um
guaraná inteiro, Ruth comprara, pois que naquele solão de março, um guaraná
gelado pra mim, outro pra ela, quando súbito estouraria ali, no meio de nós, a
Revolução. Larguei o guaraná em metade no balcão do bar, Ruth me puxando
176
espavorida pela mão, lojas fechando, soldado por todo lado, cachorros, sirenes,
bombas. [...] ‘Mas o que foi?’, eu perguntei. ‘A Revolução!, a Revolução,
menina.’ [...] Revolução meu guaraná em cima do balcão, minha casa sem
televisão (MT: p. 27).
De forma geral, a linguagem usada faz menção à origem “nordestina”, no
momento em que encontramos vocábulos típicos desta região e alguns bem
especificamente pernambucanos, como: bucho, peixeira, mangar, toitiço, abestalhada,
desembestada, calunga, muxoxo, pisa, esculhambação, fastio, aperreada, cocó,
cabrita.
Esta miscelânea na obra em pauta sem qualquer tipo de hierarquização entre
os diversos elementos, entre outros fatores, a aponta como narrativa híbrida, utilizando-
nos deste termo da forma como trabalhada na introdução do livro de Bernd (1998).
A sensação que fica é que o romance As mulheres de Tijucopapo faz parte de
toda uma dinâmica que é a da metafísica da interrogação em que a escrita ensaística e
memorialística são elevadas ao estatuto de uma escrita problemática, através da qual
se procura penetrar nas brumas da condição humana, em seus sentimentos diante do
mundo. Neste sentido, a metáfora permanece como elo entre dois mundos,
transformando o texto numa entidade viva, dinâmica, fecunda e aberta a qualquer (des)
leitura.
O tratamento dado à linguagem, através das metáforas, impressiona pela fusão
entre a ordem e o caos: onomatopeias, gestos e palavras consideradas de baixo calão
aglutinam-se para demonstrar a alternância entre uma condição de vida realizada, feliz
e a reduzida possibilidade de amor das personagens, esmagadas pela agressividade,
pela secura que as acompanham como algo hereditário.
Nesta vertente, a linguagem recatada, casta - símbolo do feminino, como
demonstrado no primeiro capítulo - que colaborou para a (des)sensibilização frente à
confusão de sentimentos que as "coisas" e situações despertam, é deixada de lado e a
protagonista assume uma linguagem obscena, transgressora, por rebelar-se contra o
engessamento emocional promovido pelo que se convencionou chamar de "bons
costumes".
Observamos que Felinto aborda o escândalo social brasileiro através de
imagens e palavras escabrosas. Se dizer que comia terra choca, defecar vermes é
177
fechar o ciclo da degradação. Descrever essa dura realidade de forma razoavelmente
cortês - como acabamos de fazer - passa a impressão de que é fácil resolvê-la,
provocada pela promessa de acomodação que os vocábulos ditos civilizados parecem
trazer em si mesmos. É exatamente o contrário do que desperta a descrição feita pela
autora, que usa palavras da mesma camada social que Risia. A utilização do
vocabulário típico de quem vive por baixo parece manter desamparados os
personagens. Ao dar voz aos marginalizados, Felinto evita que sua insuportável
existência se revista de um verniz tranquilizador.
Em As mulheres de Tijucopapo, assim sendo, sobressai uma linguagem
obscena, que se presta a promover a liberação da agressividade, às vezes
representando ela mesma a agressão. Se considerarmos as ideias de Sigmund Freud
em "O Mal Estar na Civilização" , somos levados a supor que foi e ainda é necessário
certo esforço para controlarmos nossos impulsos agressivos em direção aos outros
seres humanos. O primeiro ato civilizatório teria ocorrido quando, em vez de responder
ao impulso de eliminar fisicamente alguém que o tenha desagradado, o ser humano
pré-histórico xingou aquele outro. O impulso de agredir fisicamente o outro foi
convertido em palavras agressivas.
O discurso de Rísia, neste sentido, converte o desejo de agressão física em
uma agressão verbal:
À merda das minhas lombrigas, papai e mamãe, aos meus oxiúros, às minhas
giárdias.” Eu desfilaria orgulhosa ao som da fanfarra, o bumbo estrondando tum
dum na frente. Tum dum, tum dum, tum dum. À merda, à bosta, ao cocô em
bolotes. As cornetas p prá prá afinando a marcha: Eu batendo o muito
firme. À merda, à bosta, ao cocô em bolotes. Os pratos estalando. Tudo
brilhando, cintilando. E eu me sentindo orgulhosa. E eu me esquecendo que
não beijara o rosto de Dona Penha no fracasso que fora Manjopi; me
esquecendo que precisava de Libânia, me esquecendo que papai era um
merda, que mamãe não me abraçara, que Papai Noel tinha outras mulheres e
por isso eu não ganhava meias com pompons, que... (MT: p. 174).
Algo que vem à mente diante desta linguagem é o que foi dito por Marx e
Engels, que "a linguagem aparece com a carência, com a necessidade dos
intercâmbios com os outros homens". O ato de falar indica que algo nos falta. À Rísia,
vale ressaltar, falta amor, o que a torna um ser incompleto, necessitando recorrer à
178
uma linguagem agressiva, a única com que teve contato em toda a sua vida: Eu
estava acostumada era com a aspereza de alma”.
A linguagem utilizada por Rísia aparece de forma pouco convencional,
privilegiando a expressão coloquial, em que os palavrões se fazem presentes, como
podemos ver em: “Tia traiu mamãe e isso é uma merda. Uma merda porque... Isso é
uma merda porque eu amava tia” (p. 46).
Esta linguagem repleta de palavras de baixo calão permite perceber a idéia de
solavancos em que se encontra a narradora, indicando, ao mesmo tempo, a sua
tentativa de se livrar do estresse e da cólera. Assim, o fluxo livre desta linguagem,
socialmente recusada, pode ser um sintoma não de hostilidade ou de uma patologia
social, e sim da busca por harmonia e tranquilidade.
Por esta razão, a fim de expressar sua emoção, constantemente podemos
perceber Rísia utilizando-se de palavras ofensivas, xingamentos, “palavrões”.
Xingamento, segundo o Houaiss (2001), é o “ato ou efeito de xingar” (p. 2897),
sendo xingar considerado como o “agredir por meio de palavras insultuosas, injuriosas;
ofender; descompor; destratar; afrontar” (p. 2897). A palavra tem origem no grupo
africano da etnia dos bantos. Podemos perceber no cerne da sua definição, dois
elementos importantes: a) de um lado, o falar mal deve ser considerado como ato; b)
este ato tem a intenção (de seu autor) de ofender, machucar outra pessoa.
O primeiro elemento aponta para a necessidade de qualificarmos o xingamento
como ato de fala que produz efeitos. Isto é, contando com a contribuição da filosofia da
linguagem ordinária, sobretudo de Austin (1990), podemos afirmar que o xingar
significa um proferimento de determinadas palavras que, quando pronunciadas (e
atendendo a certos pré-requisitos), realiza um ato. No caso, o xingamento e a própria
ofensa ao ouvinte. O segundo elemento põe em cheque a violência operada por este
proferimento que visa a machucar o outro, violentá-lo.
O xingamento, como vimos, representa valores da sociedade na qual ele
aparece (no nosso caso, patriarcado capitalista), e mostra, justamente pelo caráter de
ofensa que contém, as regras e valores apregoados por essa sociedade. Além disso, o
xingar constitui ato de fala que não apenas repete esses valores, mas os reafirma. Em
outras palavras, independentemente da consciência do falante ao proferi-los, os
179
xingamentos veiculam uma prática baseada nos valores atribuídos aos diferentes
gêneros. Aqui, juntamente com Susan Bordo (1997), podemos afirmar que a prática
vem antes da crença.
Segundo Arango (1991), toda cultura preservou tabus que permaneceram,
sobretudo, na presença da interdição de certas palavras. Esses termos são os
palavrões. Neles, o que importa nem é tanto o referente denotado, mas o sentido da
palavra. Para Arango, essas são as palavras-tabu de nosso mundo civilizado. Grande
parte dos xingamentos são constituídos de palavrões como termos privilegiados no
ato de xingar. É o que vemos no discurso de Risia:
E os safados ainda me apedrejam na rua. (MT: p.109)
Filhos-da-puta. Todos. Os que , todos, me fizeram ter que sair. Filhos da puta.
p. 81
Ainda tentam me definir, os filhos da mãe. (MT: p.32)
Jonas, foda-se. (MT: p.108)
Eu subira no tamborete. Atrás de mim estendia-se uma longa placa de cimento
que cobria a fossa, a plena merda onde eu tinha sonhos de que papai se
afogasse. (MT: p. 173)
Isso não é porra nenhuma de somente mais uma história. (MT: p.104)
Depois, quando o sol brilhou meio-dia fazendo as sombras dos corpos, eu
mandei tudo à merda e me ergui para seguir eu precisava resistir. (MT:
p.108)
Devia ter morrido de vez, desgraça. (MT: p.108)
Risia utiliza-se muito do verbo praguejar:
Preciso praguejar contra essas safadezas que me atenazam a vida, contra
esses muxicões que me lascam no braço sem observarem que meu braço é
fino, fraco e frágil. Meu braço guarda todas as marcas vermelhas de dedos. p.
(MT: 82)
Deus como eu praguejo! (MT: p.90)
Cabe, pois, fazer uma distinção entre praguejar e xingar. Muitas pessoas usam
essas duas palavras indistintamente. Alguns especialistas em idiomas, porém, as
180
diferenciam da seguinte forma: xingar envolve o uso de palavras profanas ou nomes de
divindades para dar mais força e crença a uma frase ou opinião. No entanto, equivale a
agredir verbalmente com palavras depreciativas. Praguejar tem um alvo específico e
deseja causar algum mal. Assim, ao praguejar amaldiçoa-se. Deseja-se que algo de
ruim ocorra a algo ou alguém.
Seja através de xingamentos ou pragas, os episódios onde são possíveis a
localização do sentimento de Rísia são evidentes:
Eu tinha o salário mais alto. E isso era ruim porque eu passava a odiá-los.
(MT: p.123)
Saí porque não me dava bem. Não me conformava com a infelicidade. Trazia
uma angústia qualquer, essa vida. (MT: p. 125)
Quando chegou a televisão na minha rua eu já era uma menina completamente
enraivecida. (MT: p. 129)
O que me espanta é somente minha crueldade. (MT: p. 38)
É muito ruim ser pobre você tem vontade de matar o seu pai, você não ama
a sua mãe. (MT: p. 123)
[...] É muito ruim ser pobre. Você passa a odiar seus irmãos porque eles não
deixam comida para você e porque você dorme no mesmo quarto onde eles
chegam para dormir fazendo zoada. (MT: p. 123)
Esqueceria que um dia sentei na mesa dum bar e feri um homem. (MT: p. 49)
Que raiva que houve um homem que se morreu de mim. Que ódio. (MT:
p.126)
Nas festas há doces sofrimentos cortando corações como o meu. (MT: p.118)
Todas estas marcas da linguagem felintiana produzem uma narrativa
abertamente problemática, que convida o leitor ao questionamento e ao trabalho crítico,
etapa preliminar de todo engajamento. Ou seja, incorpora-se a tensão política à sua
própria linguagem, ao invés de apenas descrevê-la de modo mágico ou naturalista.
Vale lembrar que para Aristóteles a política é a “arte” de tornar a vida possível, através
de um processo de voltar-se para a própria vida a fim de indagar a condição humana
(apud Britto: 2003, p.111). De acordo com Britto, ao compreender a arte desta maneira,
damos a ela uma dimensão estética e também uma dimensão ética.
181
As Mulheres de Tijucopapo supõem uma dimensão ético-politica, no sentido de
que é uma arte que se propõe a pensar e discutir a condição do humano, como ação
social, promovendo a visão/identificação de valores e comportamentos humanos
dignos, necessários para a própria condição humana.
182
CAPÍTULO 5: IDENTIDADE QUE (RE)VOLTA: A RAIVA
COMO TRANSGRESSÃO E TRANSFORMAÇÃO
Pois que eu também sei ser cruel, pois
que não estou nesta vida para agradar a
ninguém, pelo contrário, eu vou sozinha,
como sempre fui.
O meu destino sou eu com todas as
minhas imperfeições, andando pela rua
feito um manco [...]
É desta “eu”, é deste sangue que preciso
me lembrar sempre, que preciso nunca
me esquecer de recuperar, de levar
comigo como única coisa possuída,
como único fardo a carregar.
(Felinto, Marilene. Obsceno Abandono)
A partir da viagem solitária de Rísia, tomamos conhecimento de sua memória
sofrida, sua busca por origens regionais, pela identidade cultural e pela (re)construção
de uma identidade pessoal. Toda a sua interrogação sobre a identidade contribui para
sua reconstrução na medida em que, ao evocar o passado, o presente lhe novo
sentido.
Estruturalmente, portanto, As mulheres de Tijucopapo desempenham a figura
de um círculo aberto, tendo como eixo o ponto limite onde o percurso, a (re)volta, se
encontra com sua origem, um se transformando em outro.
Através deste romance-trajeto, ou como romance-carta, onde vários
destinatários são interpelados, sobretudo a amiga Nema e a mãe, Rísia vai construindo
o seu discurso como um indivíduo em deslocamento, um indivíduo que volta em busca
de si, de um indivíduo que se revolta em busca de seu “eu”.
183
5.1. Em busca da identidade, em busca da voz
Ressuscito palavras que não pronunciei
por medo, jogo-as como pedras para
dentro do oceano, grito-as em
assembléia geral. Dispo-me das
máscaras: atiro-as ao fundo e emerjo.
Uma a uma e são minhas várias peles
que arranco dolorosamente. (Patricia
Bins)
Identidade é uma temática essencialmente complexa e tem como objetivo
responder a questão “Quem sou eu?”. Para se obter uma resposta, deve-se pensar em
individual/social, eu/outro, aqui/lá, estabilidade/transformação, singularidade/totalidade,
igualdade/diferença, num contínuo jogo dialético. O homem, neste início de século,
busca responder a questão “Quem sou eu?” para, desta forma, identificar-se na
sociedade em que vive. Os principais problemas, no entanto, são as várias
transformações que sua identidade cultural sofreu ao longo dos anos. Hoje, o homem,
visto como um ser com uma identidade híbrida, vive sob o signo da pós-modernidade.
O sujeito pós-moderno, conceptualizado não tem uma identidade fixa, essencial
ou permanente. A identidade torna-se uma ``celebração móvel'': formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. (HALL,
1998, 12, 13).
Antônio Ciampa vai empregar o termo metamorfose para expressar o
movimento contínuo de personagens que ora se conservam, ora se sucedem, ora
coexistem, ora se alternam, apesar da aparência de totalidade que a identidade evoca.
(1987 apud Jacques 1998:163). Depreende-se deste pensamento de Ciampa que a
identidade está sempre em processo: metamorfoseamo-nos constantemente num
contexto social reciprocamente permeável às influências.
Neste contexto, Hall ao discorrer sobre identidades culturais afirma: “À medida
em que as culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências externas, é difícil
184
conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem
enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural” (Hall 2002:74).
Essa problemática da falta de identidade acontece, principalmente, pelo fato de
o indivíduo não conseguir viver mais na sociedade como um ser pleno, como na
concepção dos iluministas, unificado desde o seu nascimento até a sua morte, ou como
um sujeito sociológico, possuidor de uma essência que o identificaria no mundo, mas
que poderia ser modificada quando em contato com o mundo exterior. Atualmente ele
vive um novo estágio de identificação, sendo um sujeito pós-moderno, sem identidade
fixa, nascido da diversidade de culturas do mundo globalizado, tendo sua identidade
construída e reconstruída permanentemente ao longo de sua existência.
As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão
em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo
moderno. A assim chamada “crise de identidade'' é vista como parte de um
processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e
processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de
referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.
(HALL, 1998, 7).
Nessa nova sociedade, o homem não faz mais parte de um organismo uno, ele
é projetado de forma fragmentada. Transforma-se, assim, em um híbrido cultural,
sendo obrigado a assumir várias identidades, dentro de um ambiente que é totalmente
provisório e variável; estando sujeito a formações e transformações contínuas em
relação às formas em que os sistemas culturais o condicionam.
Os problemas, ou melhor, dizendo, as crises no processo de
compreensão/construção da identidade aumentam quando pensamos em sujeitos
inseridos em determinadas situações, como por exemplo, a violência física e/ou
psicológica e o deslocamento para um outro espaço.
Ao expor a raiva, por exemplo, Rísia utiliza algumas expressões que captam a
irritação gerada por algum tipo de mal ou aflição física, ou ainda, por uma agressão
física ou psicológica - causas da raiva.
As violências cometidas pelo pai aparecem constantemente nos relatos de
Rísia; denúncias contra agressões físicas e abandono: “papai gostava tanto de dar em
mim” (MT: p.63) e “Você nunca estava, papai. Papai tinha outras mulheres e nunca
185
estava” (MT: p.176). Como resultado, a saúde, a segurança, a harmonia e a dignidade
da personagem ficaram ameaçadas, houve graves danos à saúde física e mental, o
que representou, como veremos posteriormente, um obstáculo ao desenvolvimento
pessoal e social como indivíduo. As “pisas” aparecem de maneira mais intensa e
constante, causando dor e sofrimento; depois, rejeição e raiva.
Há ainda que pensar que as constantes violências psicológicas causam dano à
auto-estima, à identidade ou ao desenvolvimento pessoal. Inclui ameaças,
humilhações, agressões verbais, cobranças de comportamento, discriminação etc. A
violência psicológica, consistindo em um comportamento agressivo não-físico, rejeita,
deprecia ou desrespeita a vítima e, sendo a mais silenciosa entre as formas de
violência, não deixa marcas visíveis. Essa forma de violência traz consequências na
vida da pessoa, como problemas de ajustamento, agressividade e temperamento difícil,
ansiedade, depressão, disfunções sexuais e transtornos de alimentação. Rísia convive
num ambiente de alta violência psicológica, manifestada principalmente na falta de
carinho, de atenção, de desrespeito a seu espaço e, até mesmo, como vimos, de
agressões físicas. Como consequência, a personagem tem o espírito alterado a tal
ponto que a alegria se torna um sentimento estranho, numa espécie de esvaziamento
de si: “Eu, um buraco, um oco, um seco, um vazio” (MT: p.83).
Em relação à migração, é preciso destacar que ao se deslocar, de um
determinado espaço para outro, sem conhecer os costumes de cada região, o migrante
pode encontrar um “lugar de enunciação” e, assim, formar uma identidade, garantindo,
portanto, sua existência. Alguns, no entanto, não gozam da mesma sorte: oscilando
entre vários lugares de enunciação, tornam-se seres com identidades culturais diversas
e terminam a vida numa espécie de não-lugar ou não-existência. A imagem da
migração pode ser reconhecida nas palavras de Rísia:
Conheci pessoas que viajaram para lugares onde se falasse inglês porque
nos filmes falava-se inglês assim, e parecia outra vida, e parecia que seria
melhor e mais bonito. Mas era tudo ilusório. Elas foram, então, procurar essa
vida que não havia. Um perigo. Porque elas não acharam nunca. Não acharam
mesmo. E voltaram sem vida nenhuma. A vida daqui elas tinham perdido
também. E voltaram sem a de lá, que não tinham achado. (MT: p.130)
186
A memória da protagonista revela o desejo, muitas vezes, ilusório de uma vida
melhor, desejo que acompanha o migrante. É a escolha contra a miséria e a pobreza
da vida que em seu espaço de origem. Migrar é, em última instância, dizer não à
situação em que se vive, é tomar o destino pelas próprias mãos, resgatar sonhos e
esperanças de vida melhor ou mesmo diferente.
Neste processo de migração, de desenraizamento e de busca de enraizamento,
estes migrantes veem suas múltiplas raízes se partirem ao perderem sua paisagem
natal, a terra, as águas, as matas, a casa, os vizinhos, as festas, a sua maneira de
vestir, de se comportar. Segundo Cavalcanti (2002), o desenraizamento configura-se
como o desencontro do ser naquilo que lhe é dado tradicionalmente como substancial
para pertencer a um grupo social. Por outro lado o enraizamento, considerado como
uma das mais difíceis necessidades do ser humano a ser definida, é, ao mesmo tempo,
a mais importante e a mais desconhecida. Cada “indivíduo tem uma raiz por sua
participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos
certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro” (Weil, 1979, p.137).
Mas, além disso, os indivíduos encontram também dentro de sua própria cultura,
espaços diferenciados aos quais se articulam, constroem e reconstroem referências de
uma forma permanente tanto para si como para o outro.
O que percebemos, através do pensamento anterior da narradora, é que o
encontro com uma nova realidade certamente provoca uma desterritorialização dos
processos simbólicos, rompendo, muitas vezes, as ideologias organizadas pelos
sistemas culturais com novas ressignificações e redimensionamento dos objetos,
coisas e comportamentos e isso tudo, certamente, imbricado de conflitos. Ao partir, este
migrante saiu de um universo que recebeu como herança ao nascer e que, agora, se
confronta com o que é lhe dado neste momento. O que ocorre é, pois, um duplo
processo inserido neste ato de sair e de chegar, pois, ao mesmo tempo em que
expressa as ilusões daqueles que saem, expressa também o sofrimento daqueles que
atravessam a fronteira do desconhecido. É a partir de então que se impõe uma nova
necessidade, ou seja, mudar o modo de ver o mundo interno e o mundo externo dando
espaço para o surgimento de novos valores que lhe orientarão e lhe permitirão
187
organizar-se no novo ambiente. Neste preciso momento, no entanto, muitos não
encontram os novos valores e se perdem completamente.
Rísia, apesar de todas as contradições que esboça, é uma migrante que
venceu em São Paulo. Ela vem para São Paulo, “a rica”, ainda criança, com a família.
Foram morar no fundo de um hotel do Brás. O primeiro choque é o da queda na
qualidade de vida. O preço da maçã:
Nem mesmo a maçã. A maça que se dizia haver em São Paulo como no
paraíso. Nem a maçã eu provaria. Em Recife não havia maçã para pobre.
nas oferendas do Passarás que a gente brincava. Maça ou pêra? Nema...
Recife, a das frutas duras. A das macaúbas e pitombas. Mas São Paulo jamais
seria o paraíso dos panfletos que distribuíam sobre ela na coitada Recife
(MT: p. 105).
Depois de dois anos em São Paulo, o pai foi preso por contrabando. A
qualidade de vida cai de modo impressionante, as possibilidades de renda ou são
muito baixas ou estão ligadas a atos ilícitos. Mas Rísia, que cresceu em São Paulo,
está em outro patamar de migração. Ela pode desenvolver sua inteligência (era muito
inteligente mesmo, tirava cem), e, assim que começou a trabalhar, ganhava o
salário mais alto da casa. Mesmo assim, ainda se sente muito diferente de seus
amigos:
Eu saí de São Paulo porque houve um homem que se morreu de mim e porque
eu morava no subúrbio enquanto todos os meus amigos estavam bem
estabelecidos no Higienópolis Paulista. Então, muitas vezes o contato era
impossível porque eu não tinha telefone. ... O Higienópolis paulista é onde se
bebem guaranás inteiros. E onde estão as pessoas que leram os livros que
eu li. (MT: p. 126-127)
Nesse ponto de aguçada compreensão de sua classe social, a narradora
discute a questão da classe social dos leitores, dos consumidores de literatura. A
conclusão a que Rísia chega é a de que quem lê pertence, no mínimo, à classe média:
E é isso que me dana. É saber que quem vai ler os livros que lerei não é Nema
Nema não fala Inglês não é Ilsa, a empregada doméstica, não é sequer
minha mãe, não é muito menos o esmoler na ponte. É essa gente que discutirá
a goles de coca-cola inteira no Higienópolis paulista. (MT: p. 127 )
188
A situação financeira de Rísia melhora e todas as suas anotações estão postas
sob a perspectiva de um momento presente, como se pode comprovar em “hoje eu
viajo nos aviões da Varig” (MT: p.47), frase recorrente na narrativa. Nesse sentido,
Rísia se torna uma aspirante à classe média de São Paulo. Por outro lado, a revolução
que ela pinta é contra São Paulo, de onde ela sai, como fica explícito na frase,
também recorrente, “Vou-me embora”. Revela, assim, que embora tenha conquistado
oportunidades em São Paulo, ela é um exemplo de desterritorização, pois em suas
palavras: “São Paulo era de um jeito que não é o meu” (MT: p.113).
Historicamente, a identidade significa a ancoragem de valores que estabilizam
o indivíduo de uma determinada sociedade, isto é, um porto seguro no qual se pode
aportar para melhor se ver como um sujeito íntegro, estável dentro de seu mundo
social.
No entanto, em São Paulo Rísia está em luta para não ficar na margem, pois
como ela mesma define: “Ser marginal é para quem pode” (MT: 36). Em São Paulo há
falta de um porto de ancoragem, ela não encontra o sentimento de pertencimento. Por
isso, o desabafo é constante: Eu odeio São Paulo” (MT:47), “Aqui parece que não se
morre, Nema. Aqui parece que se dói muito”. (MT: 50). “Mas em São Paulo, o que é
que se quer. não chove, não tem areia, não tem pitomba. Lá, se eu quiser eu não
posso, Nema”. (MT: 53). A cidade fraturou mais ainda a identidade de Rísia. A
fragmentação foi tanta que a obrigou a tentar recuperar suas raízes, o porto de sua
história, a identidade social e individual no caminho de volta a Tijucopapo. Por isso, ela
precisa migrar novamente, voltar para a terra de origem materna, para, assim,
recompor-se:
Agora quero compor uma ária que recomponha a minha caminhada pela
estrada. Quero compor uma ária que saia música fina como as cordas do
violão. Uma ária história da minha passagem da estrada para essa mata. Da
minha andada pela mata [...] Uma ária que seja minha partida à minha
chegada. Quero recompor uma ária que recomponha a minha retirada pela
estrada e da estrada para o campo, esse, onde quero encontrar as flores que
pintarei na paisagem com lápis de cera, na carta à minha mãe. [...] Quero
compor uma ária de amor que ecoe nas cavernas dessa montanha onde eu
estou (MT: p.119)
189
Ao tentar recompor-se, a narradora encontra uma forma de se expressar que
ao mesmo tempo revela e vela: a música, com sua linguagem figurada. Apropria-se de
outra forma de expressão, estendendo seus domínios, desenvolvendo seu potencial.
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Na obra podemos entender identidades culturais da forma como apresentada em Hall
(2002:8): “aqueles aspectos de nossas identidades que surgem do nosso
‘pertencimento’ a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e, acima de tudo,
nacionais”.
O grito revolucionário de Rísia parece querer reforçar a voz das minorias,
principalmente das mulheres postas à margem. Por isso ela abandona São Paulo,
família, amigos com o objetivo de anular seu passado oprimido, almejando um futuro
em que tudo termine bem. Está em busca de uma identidade contrária a ordem social
implantada, a engrenagem patriarcal. Assim, ela põe-se em movimento, viaja pelo
espaço físico e temporal, querendo descobrir sua origem e, a partir dela, renascer.
A protagonista, consciente dos papéis de gêneros reservados aos homens e às
mulheres de seu convívio, objetiva desconstruir o modelo patriarcal, uma vez que
percebe a alienação da mãe: “Mamãe não via nada. O bucho subia-lhe à altura dos
olhos” (p.31). Em via oposta à traçada pela mãe, ela se propõe a sair pela estrada para
resgatar sentimentos e a sua individualidade enquanto sujeito da/na sua história: “Pois
eu posso transformar o mundo a lápis de cera. Vou pintar uma revolução” (MT: p. 62).
Nesta busca e resgate de si, a auto-afirmação e re-criação de uma identidade vivida
pela protagonista passam por um processo de afirmação e redefinição identitária,
processo esse que envolve um trabalho inovador com a linguagem, e a expressão
erótica do sujeito feminino.
A busca da identidade, no entanto, é um processo marcado por contradições.
Por exemplo, a casa de paredes brancas é um elemento recorrente na narrativa. Essa
190
imagem da casinha branca está ligada à representação da família tradicional que ora é
rejeitada ora é almejada. Essa antinomia em relação ao casamento explica-se pelo fato
de Rísia ter sofrido muito com o casamento de seus pais; o que a leva a rejeitar a
situação por não querer repeti-la, mas por outro lado ela sonha com um marido e filho
na casinha branca:
Talvez esteja indo para me casar. Porque esse poder que tenho de matar me
apavora. um homem, um filho e uma casinha branca poderão, senão
extinguir, pelo menos domar esse poder em mim. [...] Serei sempre uma
voluntária à guerra até que se mate em mim esse poder meu para qualquer
coisa do resto que não seja uma mulher casada numa casinha branca. (p. 24)
Outra cena significativa para perceber as contradições do feminino é a questão
da sedução. Quando próximo do final da narrativa, Rísia percebe que precisa de um
homem, ela usa a intrigante expressão, mas hoje meu corpo precisou de um homem.
[...] eu queria ser seduzida” (MT: p.152). O ponto de vista da narradora sugere que o
homem é o sujeito no ato da sedução, o que revela uma visão tradicional em relação à
conquista amorosa. Ao mesmo tempo em que rejeita a possibilidade da casinha branca,
sonha com ela. Ao mesmo tempo em que afirma que o homem é sempre de menos, é
dele que depende para ser seduzida. E esse homem é Lampião.
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Lampião, por outro lado, é um símbolo de luta contra as instituições opressoras.
Assim, a inserção de Lampião na revolução contra São Paulo tem a ver com a idéia de
191
revolta, luta armada contra instituições que não solucionam os problemas da exclusão
social.
O medo da margem, é preciso reforçar, constitui uma questão fundamental na
construção de uma identidade, pois faz com que Rísia volte-se para o lado do
tradicional, daquelas condutas aceitas por todos, embora se sinta quebrada por essas
cobranças que ela mesma se impõe.
E (vou até falar baixo) esse é o mesmíssimo poder que me torna capaz de virar
uma prostituta, uma homossexual, uma louca, uma bêbada, uma bandida, uma
marginal. E, não, eu não sou de aguentar a margem da vida. Na margem sou
fio que se quebra. Na margem ficam os fortes. Sou fraca, fina e frágil. (MT:
p.24)
A personagem, que se identifica como neta de avó negra e aíndio, preta de
cabelo duro, confessa o medo da margem. Rísia discute a prostituição, a
homossexualidade e em outras repetidas vezes a classe social. É recorrente em sua
fala o ódio por ter sido pobre, gaga e quase muda.
Na realidade, Marilene Felinto tece uma obra em que a narrativa em primeira
pessoa objetiva legitimar uma voz. Voz que, além de fonte de denúncia contra uma
organização de gênero hegemônica e patriarcal, fosse também um alerta para o fato de
a mesma não operar sem resistências.
Esta procura por uma voz, embrenhada na estrada que leva à construção de
uma identidade singular, possibilita alargar a representação do feminino, exercendo a
capacidade de criar para a protagonista feminina um enredo outro que aqueles
sancionados pela sociedade patriarcal.
Esse recurso estético em que a voz do sujeito feminino assume a voz da
narrativa é, necessariamente, uma estética ideológica do texto, subvertendo a lógica
narrativa. Desta forma, podemos reconhecer um narrador autodiegético feminino que é
por si subversivo, uma vez que a mulher está narrando, ao invés de ser narrada.
Recusa, portanto, a cultura centrada em valores masculinos, os “discursos da
feminilidade”, nos quais as mulheres seguem destinos à sombra dos homens,
cumprindo as expectativas deles em relação a elas. A narradora autodiegética, ao
contrário, cria espaço necessário ao desenvolvimento de outro tipo de enredo para as
192
protagonistas femininas. Como ela expõe: “lembranças atormentadoras me cutucavam
o rabo a me dizer da necessidade de eu fazer o meu próprio caminho” (Mt: p. 145).
Este narrador autodiegético feminino revela o impasse entre os ideais da
feminilidade (uma construção do discurso masculino), em que as mulheres ocupam
uma posição de objeto de uma produção discursiva e, em sentido contrário, a posição
de sujeitos de suas histórias. Nesse sentido, faz-se necessário espaço e
empoderamento da voz, pois como aponta Constância Duarte (2002, p.176) “a
linguagem tem o poder de construir e não apenas expressar significados”.
Rísia percebe a condição desigual das mulheres de seu círculo familiar, cuja
posição é de renúncia ao direito da fala, ao direito de serem detentoras de um
“discurso”, umavoz” autorizada. Ao perceber estas mulheres invisíveis e silenciadas,
a protagonista sente-se impulsionada a resolver este impasse.
O discurso irado de Rísia revela sua procura em fugir das representações de
feminilidade e, consequentemente, busca uma identidade que possa ser entendida e
aceita, ainda que esta identidade esteja deslocada dos padrões sociais pré-
estabelecidos. Desta forma, sua voz é lançada para um círculo ex-cêntrico
28
, para a
assustadora margem, de onde ela protesta: “não, eu não sou de aguentar a margem
da vida. Na margem sou fio que se quebra. Na margem ficam os fortes. Sou fraca,
fina e frágil. Mas, se eu fosse homem ou se o permitissem às mulheres, eu iria à
guerra” (MT: p. 24). Aponta, pois, para um movimento de abertura de fronteiras, de
ocupação dos espaços antes restritos apenas aos homens, de integração das
diferenças.
É na condição de ex-cêntrica que Rísia deseja construir uma identidade. Nesta
trajetória, o leitor pode acompanhar o centro mimético da narrativa e percebe que este
é a própria consciência de Risia que justapõe fragmentos de lembranças, sentimentos e
imagens de acontecimentos remotos ou mais recentes.
Esse mecanismo de justaposição representa um procedimento cuja função é
delinear a identidade que Rísia tanto busca. No decorrer de toda a narrativa, o recurso
da evocação da memória provoca um texto em que é possível percebê-la como um
indivíduo construído e reproduzido na e a partir das relações sociais, fundadas no tripé
28
Termo utilizado por Linda Hutcheon para designar aquilo ou aquele que está fora do centro ao qual aspira, mas que lhe é negado.
193
classe-etnia-gênero. Portanto, é preciso considerar que Rísia é um sujeito ltiplo, ou
seja, complexo e contraditoriamente multifacetado.
Nessa linha, Lauretis (1994) defende que o sujeito contemporâneo é múltiplo e
contraditório, constituindo-se não na experiência de relações de sexo, mas também
nas de raça e classe. Na proposta desta autora, os sujeitos são constituídos em suas
relações com um campo social heterogêneo, e instituem a partir da linguagem e de
representações culturais que expressam “possibilidades hierarquizadas” de gênero,
classe e etnia, preexistentes aos sujeitos.
Na direção do pensamento de Lauretis, reconhece-se Rísia como ser social em
processo de intersecção, necessariamente mutável, entre códigos ideológicos vigentes
e sua história pessoal. Entende-se, portanto, o porquê de ela estar em permanente
processo de construção/desconstrução/reconstrução subjetiva. Assim, na tessitura das
lembranças revividas, a protagonista costura com as ideias do presente a experiência
do pretérito. Nesse encontro de passado e presente, funda um lugar para reflexão,
onde a evocação dos fatos traumáticos da infância funcionam como meio de libertação
e decifração como sujeito em busca do sentido de ser mulher.
Rememorar, recapitular, refazer seu percurso existencial significa para Rísia
inventariar suas dores, se não para compreendê-las, pelo menos para vingá-las na
reconstrução de um eu verdadeiro e consciente de si. Ela parece, desta forma, convidar
para uma maior reflexão sobre a cultura dominante e, ao mesmo tempo, abre
possibilidades para reconstruir-se como sujeito. O seu discurso revolucionário,
revoltado, busca uma identidade que possa ser entendida e aceita; uma identidade
como mulher-sujeito de sua história.
Resgatar a memória a fim de preencher seu vazio existencial faz com que Rísia
resgate sua origem étnica, através de um exercício de reflexão: “pobres mulheres como
mamãe, que eram dadas numa noite de luar, por minha vó, uma negra pesada, e que
depois seriam mulheres sem mãe nem irmãos, desgarradas, mulheres tão sem nada,
mulheres tão de nada” (MT: p. 47).
A expressão que a protagonista utiliza para caracterizar a a negra é
reveladora da condição da mulher afro-descendente, colocada à margem da sociedade.
falamos anteriormente da noção de peso, para exemplificarmos a raiva como um
194
sentimento que cresce tão vertiginosamente a ponto de o portador do sentimento o
conseguir carregá-lo. Novamente a metáfora de peso aparece como forma de
representar a condição de mulher negra como um acúmulo de lutas, indignações,
avanços, discriminações e um conflito constante entre a negação e a afirmação de suas
origens étnico-raciais. A avó, no entanto, não consegue carregar este peso de ser
negra, recusando a continuação de sua linhagem. Por isso, a mãe de Rísia seria dada,
teria o seu elo de origem rompido, faria parte de um grupo de “mulheres tão sem nada,
mulheres tão de nada”.
Claro está que a discriminação de um grupo contribui para desenvolver
sentimentos de auto-desvalorização, insegurança, desesperança, falta de auto-estima e
de confiança. Consequentemente, a história de vida de uma pessoa é perpassada por
valores, ideologias, preconceitos e estereótipos absorvidos ao longo do seu
desenvolvimento. As lembranças de Rísia permitem perceber que a questão étnica é
uma das causas do abalo identitário por ela sofrido. É o que fica demonstrado na
excursão realizada quando de infância para Manjopi: “reflexo dos meus complexos”
(MT: p.99). A narradora percebe-se deslocada, percebe-se diferente das outras
crianças:
Aquele não era o meu ambiente. Eu era incapaz sequer de abrir a boa. Se eu
abrisse gaguejaria e seria a vergonha total. Eu era pobre. Eu me sentia feia.
Eu era tão magrela na frente das meninas. [...] Em Manjopi eu soube de minha
diferença. [...] Eu tinha cabelo duro. (MT: p.99 -100).
A narradora, como podemos perceber, descreve a cena dolorosa da descoberta
de sua diferença. A diferença racial, sutilmente inscrita no texto, é complementada por
uma série de outras diferenças que incluem a questão de classe sem, no entanto,
confundir-se com ela. A condição de pobreza é parcialmente responsável pela cena de
exclusão. O cabelo duro opõe-se aos cabelos lisos das colegas. Este representa um
traço expressivo, forte, transformado, como vimos anteriormente, em “corda duma
forca”, instrumento, portanto de morte, ainda que disfarçado pela brilhantina aplicada
pela mãe.
195
Embora Rísia frequente uma escola particular, na condição de bolsista, isto não
faz com que ela se integre efetivamente neste ambiente. Verificamos este fato,
sobretudo, através da professora da turma, dona Penha:
Eu era bolsista na minha classe de meninas gordas rosadas que estalavam
beijos no rosto de Dona Penha. Aquela intimidade toda com Dona Penha [...]
em Manjopi fiquei horas inteiras de um piquenique imaginando como seria
beijar o rosto bonito de Dona Penha. Dona Penha era elegante, alva, fina
(p100). As meninas, as filhas dos sargentos, as gordas e rosadas, brincavam
juvenis e vinham correndo estalar beijos nas faces de Dona Penha. Eu fiquei,
Manjopi inteiro, na vontade. Fiquei na vontade de brincar e beijar e de beijar o
rosto de Dona Penha. Fiquei num canto até que acabasse o piquenique (MT: p.
100).
Como comentamos anteriormente, Penha, significa montanha: um trauma
que Rísia sente dificuldade de superar. A diferença de Rísia, pobre e negra, numa
classe de meninas ricas, gordas e rosadas é responsável por um isolamento. Ela não
consegue se integrar naquele grupo, fica à margem, tem a infância negada ao não
poder brincar, não poder interagir com os outros.
Este complexo seguirá a narradora ao longo de sua vida, pois as Penhas-
Montanhas continuam a se erguer em seu caminho. É o que ela denuncia:
Nós homens somos muito menores que as montanhas. Não dúvida. As
montanhas aqui são rochas negras monstruosas. [...] Uma montanha é cheia de
fendas imponentes ameaçando o que sou um corpo frágil de homem nenor
que a montanha. O homem é menor que uma montanha. Não dúvida. Estar
aos pés de uma montanha acaba com as possibilidades que eu teria de pensar
sobre mim mesma, me reconhecer e saber ir. (MT: p.120).
Diante da infância vilipendiada, Rísia se como sujeito “descentrado,
resultando nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas do sujeito
pós-moderno” (HALL, 2001). Estas características ficam claras em suas reflexões:
Às vezes eu me olho no espelho e me digo que venho de índios e negros,
gente escura, e me sinto como uma árvore, me sinto raiz, mandioca saindo da
terra. Depois me lembro que não sou nada. Que sou uma pessoa com ódio,
196
quase Severina Podre, lunática, enluarada, aluada, em estado de porre sem
nunca ter bebido. (MT: p.50).
Rísia é uma pessoa com ódio e isto faz com que ela viva no extremo de ser e
não ser. Por isso, precisa dizer o indizível com palavras que contornem o silêncio; é a
urgência da linguagem uma linguagem labiríntica, feita de picos e declives, de
caminhos perigosos numa mata fechada. Linguagem que vai ao interior da protagonista
apenas para adquirir vulto e novamente poder emergir com a força de uma “égua”.
Linguagem raivosa, porque se alimenta do abismo, da violência da dor para alcançar o
topo, cheio de flores: “Não sei direito por que vou aqui afora, talvez por minha
crueldade. Quero ver flores”. (MT: p.40)
Em incessante conflito com a linguagem, a protagonista demonstra momentos
de gagueira, de mudez, fruto do descentramento que a obrigou a substituir sua
linguagem pernambucana pela linguagem paulista. Mas, a mudez e gagueira revelam
ainda momentos em que não pôde expressar a raiva e, consequentemente, ficou
trancada numa posição de medo, imobilizada:
No dia da segunda esculhambação de mim mesma, o dia em que não matei
Analice, amanheci gaga. E durante muito tempo em menina fui gaga e magra. A
história de minha gagueira é longa e triste. É muito ruim ser pobre porque pode-
se súbito ser um gago ou um magro. [...] Quando mamãe nos contou sobre
papai e tia, eu fiquei gaga de novo. Agora eu não gaguejo mais, agora eu
emudeço de vez ou falo direto em linguá estrangeira. Ou vou-me embora. Mas,
não poder falar, ser gaga, é um verdadeiro corte, é o sinal mesmo da ruptura, é
o espanto maior de todos. Ser gaga, então me calava muito. Eu fui uma
verdadeira muda (MT: p.57).
Rísia fala-nos do trauma de uma infância silenciada, em que ela não existia:
seu corte em relação ao mundo. Nesse sentido, Tzvetan Todorov registra: “Se perco
meu lugar de enunciação, não posso mais falar. Eu o falo, logo não existo”.
(TODOROV, 1999: 21) Falar, pois, significa expressar-se e expressar-se representa o
existir, definir-se pelo menos temporariamente. Por isso, Rísia relata: “Saí porque
quase perco a fala na grande cidade” (MT: p.55). “Tive de vir embora para não
endoidecer” (MT: p.32).
197
A sua gagueira aparece na própria narrativa, em muitos trechos, como por
exemplo quando repete o conectivo “e” ou quando, narrando uma determinada cena,
repete palavras, frases. Podemos ver esta dificuldade com a vocalização de forma
explícita em passagens como:
Ah, se estivesse em mim não falar sobre nada. Eu queria poder me calar por
dias e mais dias. Ah, se pelo menos eu pudesse falar em língua estrangeira.
Ah, se eu pudesse somente grunhir. Ah, se eu pudesse ser um bicho. Se eu
pudesse ser um bicho eu seria uma égua, uma égua que saísse em disparada
arrancando patacas de lama da campina encharcada ou fazendo poeira de
barro seco das serras (MT: p.35).
O ato de falar, como se percebe, é problemático, ora escasso, ora truncado, ora
excessivo, ora labiríntico, mas quase sempre raivoso, agressivo.
Entender a raiva acumulada, pesada, voltando ao começo para adquirir fôlego
e aí sim ultrapassá-la: eis o movimento incessante de Rísia. Movimento que tem a força
de uma “égua” que, embora forte, não consegue se comunicar na mesma linguagem
das pessoas:
Inglês é de um material estrangeiro que me fascina e me separa dessa
proximidade toda de enviar uma carta de mim na língua de minhas pessoas, a
minha língua. Não quero que saibam de mim assim, tão proximamente. Quero
que não me entendam. Inglês me dá distância. (MT: p. 90-91)
A protagonista consegue tatear uma nova linguagem depois de enfrentar a
morte (real ou simbólica):
Quando você morreu eu vou fazer uma elegia. [...] Quando você morreu eu
desembesto campina afora como égua acuada. E, ironia, eu corro de novo a
liberdade das minhas pernas de égua. Não quero mais o mundo e ninguém. Eu
balanço o corpo, sacudo a crina, abano o rabo. O campo é verde e infinito. Eu
assim me salvo. De estar num campo onde é infinito e você não é limite.
(MT: p. 84)
após ter passado pela extrema negatividade do abandono e da morte é que
Rísia converte seu mutismo e sua gagueira em potencialidade criadora. Por isso, se a
raiva e a dor são emblemas do espaço limite, são também o de metamorfose: “Nesse
dia, o dia em que eu me refizera” (MT: p. 184)
198
Por isso, a busca da identidade deve ser, também, a busca da voz, da palavra,
da auto-expressão: palavra raivosa que se representa na página no embalo de um fluxo
de ódio-amor. A linguagem é, na narrativa, a única possibilidade de conter a dissolução
integral do ser. Enunciar-se, tendo em vista a gagueira, o silêncio em que Rísia se
encontra, pressupõe reinventar-se, criar-se e recriar-se, na travessia de um rio-chuva.
O silêncio de Rísia significa, pois, desejo, porque o desejo representa falta.
Desejo de criar, de viver diante da perpétua morte, desejo de uma linguagem que se
faz nova pelo aproveitamento dos escombros, de um silêncio que quer falar. É
fundamental, pois, transformar em palavras as mais bravias emoções para, desta
forma, tentar domá-las. Na travessia da narrativa, Rísia vara o silêncio, conquistando o
direito à palavra e à vida.
5.2. Mulheres guerreiras: Mulheres de Tijucopapo
Eu era a dona da situação, a coragem
era minha, a vida era minha, quando eu
crescesse seria uma grande mulher, uma
mulher monstruosa, dessas mulheres
grandes e monstruosas como os cavalos
de corrida. (Marilene Felinto. Obsceno
abandono)
A narrativa de Marilene Felinto recupera uma parte da história brasileira, em
que as mulheres tiveram participação decisiva: a Batalha das Trincheiras, hoje
conhecida como “a epopeia das heroínas de Tijucopapo”. Celso Sávio (2006) explica
que os holandeses sem acesso a alimentos e sofrendo a falta de vitamina C que
provocava escorbuto, resolveram atacar a vila. Tijucopapo estava desguarnecida. Era
um imenso celeiro de mandioca, hortaliças, verduras e principalmente caju, que serviria
para amenizar a moléstia que atacava os soldados. Estima-se ter ocorrido pelo menos
três investidas. Na primeira, 80 soldados chegaram pelo rio Megaó em barcos a remo e
foram expulsos pelo cabo da milícia Zenóbio Chiole e 30 de seus homens. A fome
obrigou os invasores a atacar novamente pouco tempo depois, agora com maior
número de soldados, e saíram abastecidos. Com o sucesso, planejaram novo saque.
199
Simularam ataques ao sul e rumaram para o norte. Apenas 100 homens se
encontravam no lugarejo. O major Agostinho Nunes, ao tomar conhecimento do ataque
iminente, mandou chamar o guerrilheiro Mateus Fernandes e seus homens, que se
encontravam escondidos na floresta, para defender o território.
As mulheres que retornavam da pesca de siris e ostras do rio Megaó e outras
que se dedicavam ao bordado e à renda para auxiliar nas despesas da casa também
foram chamadas para a luta. Maria Camarão, com um crucifixo em uma das mãos e
uma espada na outra, incentivava outras a se armarem com pedaços de pau, pedras,
chuços e facões. A principal arma, no entanto, foram os tachos com água fervente
misturada a pimenta. Os 600 soldados, portando armas de fogo e machados para abrir
fendas nos tapumes, recuaram por não resistir ao “refresco”. Quando Mateus
Fernandes e seu grupo chegaram ao local, os invasores bateram em retirada,
assustados, julgando ter chegado reforço.
De acordo com Sávio, o feito das bravas de Tijucopapo é reconhecido pelo
Exército Brasileiro como a primeira batalha no Brasil com a participação coletiva de
mulheres.
A batalha destas heroínas é encenada anualmente, desde 1993. O objetivo, ao
mostrar esta história de superação e heroísmo, é defender que o mito destas heroínas
continua a ecoar na luta cotidiana das tijucupapenses e das mulheres de hoje.
Rísia, como pernambucana, é uma guerreira adormecida, desejosa de acordar
para a sua realidade de força e coragem. Em São Paulo, ela sente que o recomeço
é possível na terra prometida: Tijucopapo.
No interior do discurso narrativo, o espaço de Tijucopapo acentua a fala da
narradora, e a imagem de mulheres escanchadas em seus cavalos, denominadas
amazonas, sugere a possibilidade de se estabelecer as relações entre o universo
simbólico, mitológico e histórico como o universo da escritura:
Mulheres como minha mãe trazem a sina das que se desembestam mundo
adentro escanchadas em seus cavalos, amazonas, defendendo-se não se sabe
de quê, se sabe que do amor. se sabe que do amor. se sabe que do
200
amor que as fez sofrer [...] São amazonas a cavalo vindo fazer marca no
Tijucopapo, lá onde tudo é lamaçal. (MT: p. 80)
É a coragem destas amazonas que nos permite perceber claramente uma
metáfora: a raiva como uma guerra, uma guerra interior e exterior. E a própria
narradora assume, em seu discurso: “Minhas histórias eram de batalhas por uma causa
justa” (MT: p. 163). Em nome da justiça, Rísia precisa sair de São Paulo, pois
Tijucopapo é um lugar de motim” (MT: p.183).
Ao longo da narrativa Rísia, diversas vezes, enuncia seu ideal: Minha
revolução de cera”. (MT: p.109). Neste objetivo observamos claramente o desejo de
transformar-se, uma identidade ainda em construção. A palavra (r)evolução, assim, no
contexto da narração, demonstra a necessidade de ruptura com o sistema patriarcal,
tendo em vista a formação de outro, mais justo. Por isso, ela assume: “Destas regiões
que são agrestes, eu vou descer em batalha, em marcha, em desfile de muito orgulho
por uma causa justa” (MT: p. 185)
Ao enfatizar a revolução - “Vou pintando uma revolução em cores de cera!”
(MT: p.94) -, Rísia ilumina um ideal coletivo, pois a revolução se constitui numa ruptura
necessariamente "explosiva" com vista ao projeto de transformação radical da
organização da sociedade, portanto, um projeto comum a todas as pessoas. A violência
do processo revolucionário pode ser notada nas palavras da narradora:
Eu acho que mataria metade do mundo, eu proporia guerra a quem quer que
topasse guerrear, eu enlouqueceria de vez. (MT: p.116)
Me disseram que eu vivo é em guerra. Em de guerra. E vivo mesmo, e
acrescento que vivo em batalha, em bombardeio, em choque. Eu vou
sossegar quando matar um [...] (MT: p. 24)
É como encontrei a guerra. Caso haja destruição, é porque uma
guerra... (MT: p. 185)
Nos trechos acima observa-se Rísia calculando uma ruptura drástica e
explosiva, ao mesmo tempo que projeta um tempo futuro de transformação radical da
sociedade onde todas as questões políticas e sociais seriam totalmente resolvidas.
201
Apenas quando esta transformação social ocorrer, Rísia poderá conceber a ideia de
paz: “Serei sempre voluntária a guerra até que se mate em mim esse poder para
qualquer coisa do resto que não seja uma mulher casada numa casinha branca” (MT:
p.24)
Tendo em vista o espírito revolucionário, uma das maneiras de Rísia expressar
a intensidade de seu sentimento de raiva será, como vimos, metaforicamente, por
intermédio da noção de força.
Minha força, minha ânsia de vingança, o que tenho a descontar, não me leva
tão longe assim, a uma foto minha sob os dizeres de 'procura-se, parricida',
papai. (MT: p.55)
Ainda que Rísia sinta-se, por vezes, sem força suficiente para sua “revolução”
(“Sorte sua eu não ter força suficiente para me transformar numa marginal que matou
você. Eu tenho a força dum fraco. Sou fina e frágil” p.55, “E eu chorei a minha
fraqueza na janela em dias de chuva forte” p.61), ela assenta esta perspectiva em um
espírito de revolta, ou seja, "como retorno-virada-deslocamento-mudança [...] a
possibilidade de questionar seu próprio ser, de buscar-se a si mesmo (se quaerere;
quaestio mihi factus sum) é dada por esta atitude ao "retorno", que é simultaneamente
rememoração, interrogação e pensamento" (KRISTEVA, op.cit., p.101).
A volta para Tijucopapo estabelece, pois, um diálogo com o mito das
Amazonas, no intuito de se conhecer:
Sou escorregadia. Todas as ideias, todos os dias, me remetem às mulheres de
Tijucopapo. Num sacolejo, num sopapo que não adianta mais, não adianta
mais. Num estremecimento que, tivesse eu chegado lá, montaria cavalos e
sairia desembestada ao encontro de uma explicação que talvez esteja no onde
a praia encontra a lama, o negro tijuco. Donde vieram essas mulheres assim,
minha herança, mulheres da matéria do tijuco, cabelos grossos arrastando pela
crina do cavalo, escanchada no lombo do bicho sem sela, amazonas. [...] As
mulheres de Tijucopapo: ferradura. As mulheres de Tijucopapo: é como fica tão
pouco de tudo, e é como fica tão tudo a ponto de ser herança. As mulheres de
Tijucopapo: sou eu com minha sina de lama, eu que saí, bicho da lama, tapuru,
onde a praia encontra a lama. (MT: p.79-80).
202
É possível considerar que todas as ideias unem a narradora às mulheres de
Tijucopapo e ao desejo de montar cavalos e sair desembestada pelo mundo, ao
encontro da explicação. Encontrar tais mulheres, para a narradora, seria encontrar a
própria identidade, transformando sua vivência cotidiana, transpondo seus conceitos e
limites.
A respeito das amazonas, Brunel (1997) ressalta que os gregos afirmavam que
essas mulheres teriam existido em um ou mais povoados em épocas remotas, e a
imagem que eles criaram a respeito dessa figura feminina continua presente no
imaginário coletivo do homem contemporâneo:
Para os gregos, as Amazonas eram antes de tudo “bárbaras”, no sentido que
emprestavam a essa palavra: elas ignoravam o que constitui a qualidade
preeminente da polis, ou melhor, elas transgrediam as suas leis. [...] para quase
todos os comentaristas elas eram guerreiras que combatiam a cavalo e
armadas com arco: para maior desembaraço no manejo deste, elas queimavam
o seio direito daí o nome de Amazonas (a-mazôn: em seio). O prestígio
bastante confuso dessas criaturas que transgridem nossas categorias sexuais
jamais se extinguiu, na medida que a mulher foi sempre sentida como o Outro,
depositária de poderes que, normalmente, não se lhes atribuiria. (Brunel, 1997:
744-745)
Campbell (1997), por sua vez, avalia os mitos como um caminho por onde
trilham energias cosmogônicas que se diluem nas manifestações culturais do homem.
“As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico,
descobertas fundamentais da ciência e da tecnologia e os próprios sonhos que nos
povoam o sono, surgem do círculo básico e mágico do mito” (CAMPBELL,1997: 15).
Assim, pode-se inferir que os símbolos mitológicos resultam da psique humana
e carregam em seu bojo o poder da fonte criadora, que é por meio dos mitos que se
encontra a explicação de problemas que se apresentam à humanidade de forma direta.
Logo, todos os mitos estão ligados à psique humana e são manifestações culturais da
necessidade universal de compreender realidades sociais, cosmológicas e espirituais.
Bakhtin afirma que a personagem mitológica interessa enquanto ponto de vista
exclusivo em relação a si mesma e à realidade a sua volta (2002: 46). A partir do que
203
fora colocado pelo teórico, podemos considerar o diálogo que a narradora estabelece
com o mito das Amazonas como uma tentativa de compreender sua realidade social,
cosmológica e espiritual, isto é, sua relação com o mundo e consigo mesma: “Vou para
Tijucopapo atravessando pontes onde descubro talvez não ser possível dividir em
justos e injustos, em ricos e pobres. Onde caio numa relatividade tamanha que parece
que perco a vontade de continuar” (MT: p. 104).
Além disso, as heroínas Amazonas, que se apresentam por meio das narrativas
míticas, tornam-se modelo para a narradora que necessita vencer barreiras e
ultrapassar suas limitações; servem de inspiração para o renovar da alma de Rísia, que
busca se transformar a partir do auto-descobrimento. Os caminhos trilhados pela
narradora advêm de uma necessidade, isto é, de uma crise individual. Logo, a
caminhada equivale ao processo de gestação, que culminará com o seu renascimento.
Essa apropriação do mito, configurado no ato de Rísia, desvela uma metáfora
da sua potência espiritual e indica o caminho de volta para dentro de si mesma.
Campbell afirma:
A mitologia tem muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias de
iniciação, quando você passa da infância para a responsabilidade do adulto [...]
Todos esses rituais são ritos mitológicos. Todos têm a ver com o novo papel
que você passa a desempenhar, com o processo de atirar fora o que é velho
para voltar com o novo, assumindo uma função responsável (CAMPBELL:
1997, 12).
Rísia procura em suas memórias as mulheres de Tijucopapo, intimamente
ligada ao mito das Amazonas. Desta forma, busca compreender a sua realidade social
e espiritual, deseja encontrar-se com as mulheres viris, com as heroínas míticas e,
assim, aproximar-se do modelo que permita uma identificação transformadora. Essa
procura encontra-se alinhavada no simbolismo da peregrinação espiritual, uma espécie
de viagem solitária que a narradora assume, reiteradamente, durante a narrativa, ao
sair de São Paulo rumo a Tijucopapo, em Pernambuco:
Tive de ir me embora e estou, a não sei quantas milhas do caminho que me
levará de volta a Tijucopapo (MT:p. 22)
204
Vou ter que ver porque minha mãe nasceu em Tijucopapo. E caso haja uma
guerra, a culpa é dela. MT: p.24)
Esta ligação entre Rísia e as Amazonas, como vimos, justifica as constantes
metáforas que remetem ao desejo da protagonista em ser égua: neste ideal fundem-se
força, juventude e liberdade. O cavalo e o feminino égua representam uma das formas
simbólicas mais puras da natureza instintiva. Representa a energia que apóia o ego
consciente sem que esse perceba, a energia que gera o fluxo da vida e que dirige
nossa atenção para as coisas, influenciando nossas ações através de uma motivação.
O cavaleiro, nesta perspectiva, equivale ao ego, enquanto que o cavalo simboliza a
nossa energia instintiva e animal.
O cavalo pode denotar um sentido de liberdade, podendo, também, ser
identificado por suas emoções descontroladas, o que, como vimos no capitulo 1, liga-
se fortemente ao conceito de mulher insubmissa ao seu marido. Cavalgar um cavalo
descontrolado significa ser levado por suas paixões. E é o que vemos em As mulheres
de Tijucopapo: Rísia almejando ser égua aspira ao viver intensamente a sua emoção,
sem ninguém para freá-la. Ao mesmo tempo, em sua ânsia, revela que a raiva domina-
a: “o que me empurra é a raiva” (MT: 140); trata-se então de um sentimento instintivo e
sem controle.
O cavalo apresenta muitas características humanas, como a fertilidade,
fidelidade, sensitividade, força, egoísmo, raiva, estupidez e vaidade. Na Psicologia, de
acordo com Carl Gustav Jung, pode ser o inconsciente, o lado subumano. Sua figura
está fortemente associada com muitos aspectos da guerra, especialmente na tradição
grega. Rísia também evidencia esta ligação com a guerra, por isso, enfatiza que “Mas
se eu fosse homem, ou se permitissem às mulheres, eu iria à guerra” (MT: p.24). Nesse
sentido, Rísia não poderia ter escolhido outro animal para representar sua
personalidade: “Eu estava, pois, em plena guerra” (MT: p.161).
Por outro lado, cavalo e cavaleiro juntos representam o movimento harmônico
da natureza. É este o verdadeiro propósito de Rísia em sua procura pelas amazonas de
Tijucopapo. Rísia ambiciona participar desta harmonia: se por um lado, fixa o seu
desejo no animal, ou seja, apenas no instinto, no aspecto emocional, por outro lado,
205
deseja encontrar uma linhagem de mulheres que tomem as rédeas de suas vida e
emoção.
Em São Paulo, Rísia não consegue comandar a sua vida, o que a fazia sentir
um ódio ao modo de vida desta cidade: “Eu odeio São Paulo” (MT: p.68). Seu desejo de
ir para Tijucopapo surge porque em São Paulo todo o mundo é sozinho e todas as
histórias estão perdidas (MT: p. 94), “em São Paulo eu quase perdi a fala” ( MT: p.115)
ou porque eram ilusórias as telas de cinema nos fins-de-semana (Mt: p.128), ou
“porque se eu quisesse eu não podia” (MT: p.137), ou porque “no centro da cidade
de São Paulo havia concreto armado contra mim” (MT: p.138), ou “porque eu me
achava uma apedrejada” (MT: p.140).
Outro motivo forte é a perda do amor. Daí parecer que todos os laços afetivos
estão rompidos e a personagem está literalmente solta no intervalo de pensamentos,
escolhendo sonhos para sonhar, pintando a revolução, andando sozinha pela estrada,
exposta a todos os perigos: “Nema, é assim que faço agora, aqui, para aguentar o
meio-dia. Sabe quando foi que primeiro sonhei? Quando era 1969 e eu pisei em São
Paulo. Lá nessa cidade eu passei a inventar sonhos. Passei a precisar que o mundo se
acabasse.” ( MT: p. 94 ).
Rísia precisa emendar os laços rompidos, precisa se recompor, por isso vai
atrás das mulheres que “não eram sua mãe”: as mulheres de Tijucopapo. Vai ver
porque era pobre, porque o pai batia nela; enfim, vai consertar seu mundo num
intervalo de pensamentos e fantasias.
Quanto mais perto de Tijucopapo, mais onírico vai se tornando o texto, se
afastando do real. Como afirma Louis Aragon, “a mais profunda emoção do ser tem
todas as possibilidades de se expressar apenas com a aproximação do fantástico, no
ponto onde a razão humana perde seu controle”. (Aragon apud Duplessis, 1956, p. 34)
Tijucopapo é este espaço de sonho, idealizado, tradutor de um sentimento guerreiro; o
que se percebe através dos diálogos cinematográficos:
- Arreie, mocinha. Voltaram eles com as espingardas.
- Eu tenho que ir...
Arreie (MT: p.164).
206
Estes diálogos, presentes no final da trama, são feitos à moda dos filmes de
cinema, artificiais, saídos das mentiras e dos pensamentos da narradora que quer seu
mundo consertado, nem que seja através da guerra, da revolução, da (re)volta.
Nesta mistura de sonhos e memória, a imagem dos “macacos bélicos” um
sentido maior ao quadro que Rísia vai pintando, ao mesmo tempo em que demonstra
as atividades do inconsciente. A psicanálise interpreta o macaco como uma "caricatura
do ego" e de "tudo aquilo que o homem deve evitar em si". Flertando com temas
políticos e fantásticos, a narrativa revela uma essência maior em resposta ao momento
tumultuoso vivido por Rísia.
O aparecimento de macacos bélicos instala uma atmosfera de suspense,
causando estranhamento pelo irreal e pelo inverossímil, levando a narração, antes
calcada numa realidade concreta ao absurdo. Afinal, “Se o fantástico se opõe ao real,
será fantástico o que for “criado pelo espírito, pela fantasia” [...] um espírito que “faz
existir” o que coloca [...]” (HELD, 1980, p. 23).
Mas, macacos? Seriam macacos mesmo aqueles homens? Macacos eram os
que eu inventava nas histórias a meus irmãos. Macacos bélicos que viviam em
constantes batalhas contra as cobras da floresta. Meus macacos não eram
bandidos. Minhas histórias eram de batalhas por uma causa justa. Meus
macacos eram de brinquedo e invenção (MT: p.163).
No imaginário cristão, o macaco representa a imagem do homem degradado
por seus vícios e, sobretudo, pela vaidade. A cena, assim sendo, pode ser interpretada
como a atmosfera opressora das mulheres que Rísia conhecia e a própria opressão,
diante da dominação patriarcal. Aparentemente, os macacos representam o embate
entre uma Rísia perdida em uma infância silenciada e o espaço transgressor de
Tijucopapo.
Interessante mencionar que os macacos podem ser diretamente ligados ao
mito de Lampião, recuperado pela narradora Rísia. Para combater o Cangaço,
importante fenômeno social ocorrido em meados do século XIX ao início do século XX,
o Poder Público criou as “volantes”. Nestas forças policiais, os seus integrantes se
disfarçavam de cangaceiros, tentando descobrir os esconderijos destes homens que
207
desafiavam a lei. Logo, ficava bem difícil saber ao certo quem era quem. Eram
apelidados de macaco pelos cangaceiros.
Hernani Donato (1996), em Dicionário das Batalhas Brasileiras, nos informa
sobre a ferocidade da repressão policial, não menos violenta que a própria ação dos
cangaceiros. De acordo com Donato os fuzilamentos de cangaceiros, ainda que
pegados vivos, a prática de cortar-lhes a cabeça constituíam formas de advertência.
Esta menção, na narrativa, aos macacos e a figura de Lampião denota marcas
do imaginário nordestino. Da mesma forma que a polícia se opôs aos cangaceiros,
reprimindo-os, os macacos bélicos se opõem ao projeto de Rísia: sua entrada em
Tijucopapo.
Ouvindo os barulhos da revolução, quase chegando a Tijucopapo, a narradora
faz um balanço do que narra. Rísia joga suspeição sobre si mesma. E, além disso,
hesita frente à revolução que ela mesma pintou. Araujo (2006) acredita que essa
hesitação vem do fato de o romance estar armado de contradições, especialmente no
que se refere ao feminino e à classe social. Ou seja, ser mulher, para Rísia, é
permanecer em constante luta, pois há o choque da tradição na qual foi criada e o
questionamento dessa tradição que ronda seu espírito. Consequentemente, as
contradições a marcam profundamente. Contradições que podem ser percebidas
através da força do ressentimento e ódio que movem Rísia, ao lado de uma grande
fragilidade:
Eu galopei sem olhar para trás. Não sei se acreditava. Não sei se acreditava
que as coisas aconteciam num intervalo de fantasias. Eu continuava
insolarada? Mas o ar cheirava a pólvora eu ouvia zunidos de bombas. Tudo
acontecia mesmo num intervalo de pensamentos e sonhos. Eu sempre dissera
que seria uma voluntária à guerra até que se matasse em mim esse poder meu
para qualquer coisa do resto que não fosse uma mulher casada numa casinha
branca. Mas daí até uma guerra.... [...] Eu me perdera completamente. Meu
começo ficara para trás serras e serras. [...] Eu saíra de casa por vários
motivos, mas daí uma guerra?
Uma guerra?
Quem é que roubara meu plano? (MT: p.158-159)
208
De repente, quando acorda de uma queda, Rísia já está em Tijucopapo. Por um
trajeto que lhe custou nove meses. Uma gestação da qual ela mesma nasceu.
Ao falar em gestação, vale resgatar a questão da náusea, constantemente
referenciada ao longo da narrativa. A ânsia de vômito, as náuseas representam, como
observamos, uma alusão ao sentimento de raiva, sentimento guardado e que deseja
extravasar os limites do corpo de Rísia. A narradora tem consciência dos males a ela
feitos, de sua condição social e familiar. Esta conscientização lhe torna sensível ao que
vê:
Hoje acordei com imenso asco pelo mundo. Meu estômago se revolvia todo e
não pude aceitar o café que me ofereceram no mocambo. [...] Hoje estou
tomada por um imenso asco ao mundo. uma ânsia de vômito inerente em
mim; é ela manifestar-se como hoje e todos os cheiros me fazem pior. Não
posso com cheiro de nada. Não posso com presença de nenhum pelos galhos
das árvores ou cruzando a minha frente. Hoje todos os bichos são gambás.
Esterco. Os cheiros do mundo” (MT: p.11).
O que observamos agora, no trecho acima, é que a busca por si, pela origem,
faz com que náuseas subam-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e
abandonada. Por isso, podemos entender a narrativa como uma travessia de nove
meses, um parto às avessas. Um parto narrado através de uma carta, de um
telefonema, do grito. Um parto pela boca, como acontece com a protagonista Gisela,
em A asa esquerda do anjo
29
. Sabemos assim da chegada de uma menina e de suas
29
O romance A asa esquerda do anjo, de Lya Luft. foi publicado em 1981. Desde o início do romance Gisela afirma reiteradamente que um parto está
prestes a acontecer, embora revele nunca ter entregado seu corpo a ninguém. Ao rememorar sua infância, ainda menina, Gisela pressente, sem
entender, que algo sinistro está a se formar em seu ventre. No início do segundo capítulo, no fragmento que remete à vida adulta, o ventre de Gisela
está em crescimento, ela sente “as vibrações do animal aprisionado”. Está resoluta: precisa se libertar. no terceiro, intitulado As sementes, Gisela
busca em sua memória o episódio no qual acredita ter sido realizada a fecundação: está na praia, absorta, brincando na areia, sentindo um prazer
imenso ao mexer no proibido, pois sempre a proibiam de pegar em coisas sujas, tais como terra, areia, capim, bichos. Entretanto, naquele instante
ninguém parecia notar sua travessura e ela aproveitava o momento. É quando surge, de repente, Frau Wolf a recriminando em alemão, mandando que
se lavar, pois a areia está cheia de vermezinhos que não se vê. Essa imagem aterroriza Gisela, ela sente-se “invadida por milhares de vermes
nojentos que se agitam, estou irremediavelmente imunda. (...) À noite meu corpo comicha, sensações estranhas no sexo, no ventre, estou
contaminada. Vou morrer” (p. 48). Gisela naturalmente não morrera, mas uma dúvida paira em sua vida dali em diante: estaria realmente limpa? Gisela
acredita que a semente tenha se instalado nessa ocasião.No sexto capítulo, intitulado O parto, Gisela conta que havia se passado três dias e três
noites que tentava se convencer de que o verme era apenas uma imaginação, mas o sente ali dentro. Ela toma coragem e, com muito esforço, como
num parto, ele vem, enche-lhe a boca, rasteja na sua língua e, num espasmo de vômito, consegue expeli-lo. Está livre do verme que agora toma o leite
que Gisela derramou no cinzeiro. Gisela o vê, é enorme, está enrodilhado, tem duas pontas iguais e por uma delas sorve calmamente o leite. Ao
209
intenções. Uma menina que se transforma - no vazio da queda, na solidão irremediável
de ser no mundo - em mãe dela mesma. Há, pois, o nascimento de um novo ser, a
formação de uma nova realidade, um ritual de transformação e renascimento. Rísia
nasceu de sua nova origem. Nasceu das mentiras inventadas por ela para salvar as
mulheres traídas e sem origem como sua mãe:
Eu mentindo assim descaradamente, eu criando meus sonhos para satisfazer
aquelas mulheres traídas, perdidas, dadas, grávidas, adotadas, não
verdadeiras, mulheres de mentira, prostitutas que, como minha mãe, dormiam
com meu pai de noite tendo sido surradas por ele de manhã. Minha mãe era
uma prostituta. Como Lita na goiabeira. Como tia, a bêbada derrotada. (MT: p.
178-179)
Além do símbolo da gestação, a narradora identifica o momento como natal e
natal na narrativa é sempre um símbolo de mudança: no natal de 64 sua mãe pariu
Ismael morto, no natal de 69 ela foi para São Paulo e, agora, neste natal em
Tijucopapo, ela renasce, se reinventa, a partir das mulheres de Tijucopapo:
Eram umas mulheres que eu vira nascer, podia ser. podiam ser. Naquele
meu livro, um livro de escola, um livro com uma figura vermelha a lápis de cera,
era? Uma paisagem? Uma paisagem revolucionária de mulheres guerreiras.
Eram mulheres que não eram minha mãe. Essas mulheres, que não eram
minha mãe, tinham a sina das que desembestam mundo adentro escanchadas
em seus cavalos, amazonas defendendo-se não se sabe bem do quê, se
sabe que do amor. se sabe que do amor as fez sofrer. se sabe que do
amor as fez traídas. Mulheres na defesa da causa justa. (MT: p.180)
A chegada a Tijucopapo, numa mistura de fantasias e realidade, obriga o leitor
a buscar um sentido real, tentando desvendar os fatos que se mostram sobrenaturais.
O leitor se transforma em “detetive” instintivamente, pois ao tomar contato com o texto
terminar sua refeição, o habitante de Gisela ainda está faminto, vira e lhe encara. Nesse momento, pelos pensamentos de Gisela percorre o
questionamento: “Minha identidade – qual a minha identidade? Ele vai me fitar, sem olhos, sem nariz, sem feições. Sem identidade como eu qual é
meu nome? Onde fica meu lugar? Como se deve amar? Neve ou fogo?” e a seguinte frase conclui o romance: “No cemitério, na entrada do Jazigo, a
asa esquerda do Anjo se fende um pouco mais” (p. 109).
210
ele vai naturalmente direcionando suas conclusões para uma das possíveis explicações
para o fato. Isto é, o fantástico nos obriga a tomar uma posição: acreditar ou não. De
qualquer forma, a ilusão que Rísia inventa, a realidade que ela narra, é compensatória
da dura análise de seus pensamentos e da lembrança de todas as sensações ruins de
miséria e humilhação que ela experimentou na vida, especialmente as da infância
marcada pelo desamor. E é esse desamor-cicatriz que faz com que ela, ao fazer um
balanço de sua vida, não se arrependa de sua postura: “Eu não me arrependi” (MT: p.
186), pois, “os culpados são papai e mamãe”. Ao mesmo tempo, ela percebe: “A culpa
não é só de vocês” (MT: p. 186).
As constatações acima evidenciam um momento de lucidez, em que Rísia
ultrapassa seus sentimentos de ódio aos pais para tentar compreendê-los a partir de
uma análise mais ampla da questão. Assim, ela percebe a culpa na diferença entre a
situação econômica de Recife, a coitada, e São Paulo, a rica:
A paisagem que eu trouxe pintada na folha em branco virou a de uma
revolução. Vim fazer a revolução que derrube, não o meu guaraná no balcão,
mas os culpados por todo esse desamor que eu sofri e por toda a pobreza que
vivi. Vou dizer aos miseráveis trabalhadores da usina que eles são uns
desgraçados infelizes porque há festas de luzes acontecendo em São Paulo. E
que, se eles quisessem, tomariam um guaraná inteiro porque lá em São Paulo a
vida continua acontecendo aos goles, aos gotos e arrotos. E aos filhos dos
trabalhadores eu vou dizer que os culpados de eles levarem pisas porque
comem terra e cagam lombrigas não são seus pais não. Eu sei quem são. E às
mulheres dos trabalhadores, vou dizer que, caso elas sejam traídas e os
maridos dêem nelas, os culpados não são bem os maridos, eu sei quem são. É
que em São Paulo, mulheres cosméticas acontecendo pelas festas e
usando óculos escuros na direção dos carros em largas avenidas iluminadas
as amantes. (MT: p. 146).
Aqui a questão individual é ultrapassada para um plano social no qual ela
identifica as diferenças brutais, grosso modo, entre o norte e o sul, pois a migração em
busca da melhoria se reverte, ao contrário, em uma brutal queda na qualidade de vida.
Vimos, por exemplo, que dois anos depois de Rísia ter se mudado para São Paulo, seu
211
pai é preso por contrabando. Ou seja, um homem trabalhador é transformado, pela
miséria, num criminoso.
Rísia, também, durante sua viagem-trajetória, faz-nos observar a parte mais
pobre do interior do Nordeste, edificado por mocambos e submerso na penúria:
Outra noite fiquei no mocambo duns xavantes que a toda hora me faziam
lembrá-los, papai, mamãe e os meninos. Era uma longa família de muitos
meninos pirralhos e buchudos de quilos de lombriga na barriga. Eram uns doze.
O mocambo vinha bagaceira de porta a porta. Eram pobres pobres pobres e os
filhos formavam uma longa fileira de efes: Francisco, Francischio, Francisca,
Francisval, Fransérgio, Fátima, Fábio, Fransilvia, Fransonia, etc., etc. (MT: p.
122 )
No entanto, o que o Rísia quer mostrar é a condição de miséria de quem não
possui outra opção de moradia, que sentem fome. É exemplo daquilo que estava
desmantelado na vida e precisa ser consertado pela narrativa, através da narração:
uma narração revoltada. Ao trazer a imagem destes mocambos, Rísia considera justa
a sua revolução idealizada desde a infância, pintada a giz de cera. E o alvo é a
segregadora São Paulo.
No último capítulo do romance, Rísia decide amar de novo, amar Lampião e
segui-lo junto com as mulheres de Tijucopapo pelo caminho da BR em direção a São
Paulo, para lutar por uma causa justa.
O romance constitui uma trajetória rumo a um novo o amor e a companhia das
mulheres fortes e guerreiras. É o final de filme de cinema que Rísia queria para sua
vida:
O que eu fiz foi um pensamento. As mulheres de Tijucopapo eram, enfim, como
eu fazendo sombra no chão, meio dia de sol de fogo, caminho da BR. (MT: p.
188)
É isso mesmo mamãe. Eu quero que minha vida tenha um final de filme de
cinema em outra língua, em língua inglesa. Eu quero que tudo me termine bem.
(MT: p.184 e 188)
212
A chegada a Tijucopapo é, pois, o seu final de filme de cinema, é o momento
em que ela pode ultrapassar a infância e, assim, assumir: Eu sou maior de idade e de
identidade” (MT: p. 164), num processo pleno de identificação e maturidade.
5.3. A raiva como transgressão e transformação
Um dia virá em que todo o meu
sofrimento será criação, nascimento, eu
romperei todos os nãos que existem
dentro de mim, provarei a mim mesma
que nada a temer, [...] eu serei forte
como a alma de um animal... (Clarice
Lispector: Perto do Coração Selvagem)
Transgredir, porém, os meus próprios
limites me fascinou de repente. E foi
quando pensei em escrever sobre a
realidade que essa me ultrapassa.
Qualquer que seja o quer dizer
‘realidade’(Clarice Lispector: Hora da
Estrela)
Para Marilena Chauí (1982:15), o discurso de Rísia, em As Mulheres de
Tijucopapo, “conta a conquista de si pela conquista dolorosa da palavra. Enfurecida e
amedrontada, a personagem começa a falar, temendo ficar exposta na carne viva de
seu verbo”. Na contra-capa da segunda edição, o crítico José Maria Cançado
complementa:
É justamente porque é a arte dos que não atravessam o mundo com seus
poderes, antifilistina por excelência, a arte dos que nada podem conquistar
senão as suas próprias vidas, é justamente por isso, porque é uma espécie de
apoteose da solidão, que a prosa de Marilene Felinto leva consigo todas as
mulheres do mundo. Como elas todas as personagens de Marilene Felinto
estão metidas numa operação secreta para transformar a terra.
213
O discurso de Rísia, como se pode notar, é marcado pela solidão, pelo
abandono, mas, acima de tudo, pelo desejo de transformação. Assim, encontramos, no
discurso, um tom contundente e sem meias-palavras. Por isso, Rísia anuncia: Andei
quinhentas mil milhas chorando de morte e medo. E de raiva de não saber quem me
fez isso. Estou saindo para perguntar, para descobrir. Não vou perguntar. Vou
descobrir. Vou conseguir” (MT: p. 35).
Ao longo do romance delineiam-se as causas de toda a raiva da protagonista,
que nasceu em Poti, uma vila próxima a Recife e, ainda criança migra com a família,
num pau-de-arara, para São Paulo:
Desgraça. Em 1969, Natal, nós nos retiramos das praias ainda maravilhosas de
Boa Viagem. Boa viagem da incendiada e alagada Recife de entre-rios. Da
Recife coitada. Nós batemos em retirada no meio de porcos e galinhas e
pedaços de tapioca amanhecida, entre catabios e sacolejos de um pau-de-
arara, para um hotel imundo no Brás de São Paulo enquanto papai, o louco,
alugava um porão qualquer onde nos socar. [...] Mas São Paulo jamais seria o
paraíso dos panfletos que distribuíam sobre ela na coitada Recife (MT: p. 73).
Sua origem vai se desenhando, construindo-se. Origem mestiça: neta de uma
negra com um índio; filha de um pai ateu com uma mãe protestante; pobre e
completamente marcada pela falta de amor dos pais. O amor inexistiu na família, o pai
tinha outras mulheres e dava surras em Rísia; a mãe, uma mulher completamente
amargurada pelos sofrimentos que a vida lhe impôs, como confirmamos no exemplo:
Mamãe era galhos; roseira sem flor, seca, esturricada” (MT: p.22) e “Mamãe nunca
me abraçava. Mamãe me secava de indiferença, mamãe era uma merda”. (MT: p.24).
Ainda assim, a mãe representa: o fio partido de uma origem que Rísia precisa
recuperar. Por isso, ela assume um compromisso: “Vou ter que ver por que minha mãe
nasceu lá em Tijucopapo. E, caso haja uma guerra, a culpa é dela” (MT: p.17).
Expressar o mundo dos que a cercam é uma forma de recuperar uma
identidade perdida e romper com uma existência massificadora. Sobretudo, este gesto
visa a entender a identidade coletiva através da diferença, da herança marginal como
as mulheres da família. Assim, Rísia narra:
214
Era a Poti, a vila-lua onde eu nasci e onde nasciam essas mulheres doidas
como tia, ou essas pobres mulheres como mamãe, que eram dadas numa noite
de luar, por minha avó, uma negra pesada, e que depois seriam mulheres sem
mãe nem irmãos, desgarradas, mulheres tão sem nada, mulheres tão de nada.
Era a Poti, e minha mãe era filha adotiva de irmã Lurdes, a mãe de tia. Minha
mãe tinha perdido todos os contatos com o verdadeiro de si mesma. O último
originário de mamãe se apagou com os raios da lua na noite de luar em que ela
foi dada. Tudo de mamãe é adotado e adotivo. Minha mãe não tem origens,
minha mãe não é de verdade. Eu não sei se minha mãe nasceu (MT: p. 34).
Difícil busca de recuperação de uma identidade coletiva que perpassa a sua
diferenciação individual. Os jogos semelhança/diferença, individual/social, eu/outro, são
configurados nos momentos em que Rísia encontra-se diante de pontos de
identificação que a posicionam dentro e entre múltiplos espaços fronteiriços.
Um tom intimista, portanto, se conjuga ao tom épico delineando um narrador
dilacerado, mas heroico, prestes a entrar numa guerra, transformando suas feridas em
arma social para combater os opressores e os culpados de sua vida miserável, cheia
de cortes, dolorida: “vim fazer a revolução que derrube, não o meu guaraná no balcão,
mas os culpados por todo o desamor que sofri e por toda a pobreza que vivi”. (MT: p.
68)
Esta voz épica, corajosa, carregada de tom social, dialoga constantemente com
a voz dolorida, em um embate que incendeia nossa protagonista, nutrindo-a de uma
força impulsionadora, conduzindo-a para um caminho desconhecido, mas seu: o lugar
do motim.
Pulsão de vida e morte. O narrador dilacerado, ante as suas dores sociais
morre continuamente de si e se transmuta em um narrador coletivo de quem nos fala
Ronaldo Costa Fernandes:
[...] quando o narrador, que vinha contando de forma pessoal e subjetiva uma
história, passa a narrar do ponto de vista do grupo [...] De agora em diante
existe um ranço épico: quando o eu apaga-se frente a uma multidão. O nós
narrativo pode ser também uma afirmação da negatividade – somos nós porque
me abandonei a uma ausência de mim mesmo, não me reconheço como
215
indivíduo mas como membro de um grupo, de uma gang, de uma corporação. E
minha voz não é mais a minha voz, mas minha voz é o alto-falante de um
coletivo. (Fernandes, 1996, p.56)
O navio perdido encontra porto seguro quando volta para o grupo. Em
Tijucopapo, ao lado de mulheres fortes, ela se transforma na companheira de Lampião,
Maria Bonita ou em uma destemida amazona que pretende invadir a Avenida Paulista,
em busca das luzes que brilham neste espaço, para dependurá-las nos postes
apagados nas ruas da infância de seus irmãos, de Nema, dos “severinos podres” que
vagueiam sua infância.
A protagonista, no limite de si, nega o passado, revelando um comportamento
de não-aceitação que trunca a linguagem e se reflete em um momento presente
marcado por tristeza e raiva. A própria narrativa enche-se de significado, de dor, de
corte, de perda. Rísia expressa sua tristeza de forma agressiva, meio enlouquecida.
Uma agressividade que remonta às faltas acumuladas durante toda a vida. Uma
agressividade que é sua forma de sofrer. Fala, então, de um lugar psíquico que oscila
entre lucidez e insanidade: “Me disseram que eu vivo é em guerra. Em de guerra.
[...] E vou conseguir sossegar quando matar um. É que quando eu era pequena
alimentei durante todo o tempo a ideia de matar meu pai. Não matei. Não o matarei
mais. Mas ficou a vontade, essa de matar um” (MT:16). A absorção latente da
agressividade também pode ser localizada no trecho que segue:
Depois papai chegava e eu preparava minha cara de assassina para matá-lo.
Eu o fuzilava com um olhar de quem grita, espada em riste: —Papai! O que foi
que você fez com mamãe para ela estar com esse bucho e essa cara de cu?
[...] mais tarde eu descobriria que minha atinha sido mesmo puta, e que
meu pai tinha ficado, portanto, esse ódio que o fazia um homem não pai, não
marido. Papai era um homem sem amor (MT: p.20-21).
Ou ainda em: “Eu preciso dizer que odeio porque o amor faz de mim uma dor
que enlouquece” (MT: 51). Rísia, portanto, sabe que sua recomposição poderá
acontecer a partir do momento que reconhecer seus sentimentos. Nestes termos, a
216
raiva, o expressar-se através da raiva, constitui-se num ato essencial de sobrevivência.
Como observou Jane Marcus (1978: 70), no artigo “Arte da indignação”, “Só quando
as chamas de nosso ódio tiverem se extinguido é que o ar ficará limpo para nossas
filhas. Elas poderão escrever a alegria, a liberdade somente depois de termos escrito a
raiva”. Da mesma forma, Rísia expressa: Quero compor uma ária que recomponha a
minha ira e a faça calma criança amada. Quero compor uma ária de amor que ecoe nas
cavernas dessa montanha onde estou”. (MT: p.119). Por isso, a infância perdida
transforma-se em revolução: “A paisagem que eu trouxe pintada na folha em branco
virou uma revolução. Vim fazer a revolução que derrube, não o meu guaraná no balcão,
mas os culpados por todo o desamor que eu sofri e por toda a pobreza em que vivi”.
( MT: p.187)
A agressividade de Rísia, portanto, deve ser vista de uma forma positiva.
Retomando as palavras de Alexander Lowen, “A emoção da raiva é parte da função
mais ampla da agressão, que literalmente significa 'mover-se na direção de'. Agressão
é o oposto de regressão, que significa 'mover-se para trás'. Em psicologia, é o oposto
de passividade, que denota uma atitude de ficar imóvel ou esperando” (LOWEN, 1997,
p. 29). A raiva de Rísia em relação ao seu ambiente familiar, sua condição de vida, as
constantes traições faz com que ela mova-se contra isso, na tentativa de se tornar
melhor: “Tive de vir-me embora para não endoidecer. É incrível como as coisas podem
endoidecer” (MT: p. 58).
Rísia apresenta-se como uma pessoa extremamente agressiva, reflexo da
agonia de seu dia-a-dia: “Eu vivi muito à sombra da agonia de algumas pessoas. Hoje
eu sou uma agoniada e ninguém me aguenta. Sou em estado de porre sem nunca ter
bebido” (MT: p.33). Como consequência, ela não suportava gestos de carinho. “Eu
estava acostumada era com a aspereza de alma” (MT: p. 37). Quando Luciana, uma
colega da escola, ainda na infância começou a demonstrar seu carinho por Rísia, ela
não entendeu, não aceitou, não soube lidar: “[...] E sabia gostar e ser dócil. E veio a
mim como quem gosta mesmo, assim, dizendo: Eu gosto. E eu não suportei. Não
suportei. Não suportei” (MT: p.26).
Não suportar o amor é reflexo da falta deste sentimento em sua vida. Aliás,
essa questão da secura nos relacionamentos vem delineada na epígrafe que abre o
217
livro, referência a Graciliano: “a culpa foi minha, ou antes, a culpa foi dessa vida
agreste, que me deu uma alma agreste” (MT: p.5). A agressividade, pois, desenvolveu-
se como um padrão neurótico de comportamento, uma forma de sobrevivência num
espaço sem carinho, sem abraço. Rísia assumiu a “aspereza de alma” como se isto
fosse a essência de sua própria vida. Ser áspera e cruel com as pessoas se tornou tão
entranhado que Rísia vivia a crueldade como se fosse sua própria natureza.
Eu conheci que minha crueldade tinha o tamanho da de Severino. Eu teria de
domá-la para não ser bicho. Para poder brincar e liderar meu grupo (...) Eu teria
de domar minha crueldade antes que eu matasse uma pessoa como Luciana.
Antes que eu amargasse de vez uma docilidade como a de Luciana (MT: p.41).
É preciso dizer, entretanto, que temos, em Rísia adulta, uma segunda natureza.
A primeira é a da criança a espera de um abraço, de carinho, amor; mas esta natureza
se perde e parece irrecuperável. Pode-se então deduzir que a crueldade de Rísia
reflete a perda de sua integridade. E a raiva, abertamente declarada, surge como uma
forma de recuperar e proteger a integridade física e psicológica abalada pela dor. Como
a própria protagonista assevera, é pelo seu sofrimento que ela grita (MT: p.114).
É através da raiva que Rísia percebe padrões de identificação e rejeição, traça
caminhos para recuperar o “eu” dilacerado pela dor. É a agressividade deste
sentimento que move Rísia: “Mas é a minha raiva que me faz resistir” (MT: p.108). Em
relação à agressividade, Lowen aponta que:
Podemos nos mover na direção de uma outra pessoa por amor ou raiva.
Ambas as ações são agressivas e ambas são positivas para o indivíduo.
Geralmente, não ficamos com raiva de pessoas que nada significam para nós
ou que não nos tenham ferido. Se elas simplesmente forem negativas, nós a
evitaremos. Quando ficamos com raiva de pessoas que nos são importantes, é
para restaurar um relacionamento positivo com elas (LOWEN, 1997,p.86-87).
É através da agressividade que flagramos Rísia em seus lampejos de
identificação com o outro. Primeiramente, através da identificação pela diferença: Eu
me apaixonei pela história dela, além de que diante dela eu me sentia sadia, jovem e
218
pura, nova em folha” (MT: p.14). Em relação a uma colega da escola, admite: “Eu
gostava de Libânia porque ela era tão limpa e bonita, porque os cadernos dela eram
limpos e a letra bonita, e o cabelo dela era liso e o meu crespo, e, e Libânia tinha uma
calma que eu não tinha. Era como se eu quisesse ser um pouco Libânia. Eu queria ser
como Libânia” (MT: p.27). Se por um lado observamos Rísia identificando-se com o
outro pela diferença, também encontramos a identificação através da recusa: “O que
me dói nas safadezas, o porquê sofro ao encontrá-las, é porque venho de um mundo
tão safado de pai e mãe, de Lita, de tia... Que o meu mundo eu quero consertado”.
(MT: p.80).
É em nome de sua recusa em conceber um “mundo safado”, um mundo de
mulheres silenciadas que Rísia revela seu imenso rancor contra o próprio pai, que
representa uma sociedade na qual a mulher é relegada à obediência e à servidão: a
sociedade patriarcal, tradutora não apenas de opressão, mas sobretudo, mudez.
Pode-se constatar, nas teias dialógicas desenvolvidas pela narradora, a
tentativa de anular tal realidade, a partir do enfraquecimento do discurso autoritário, na
qual se encontra profundamente submersa: “É que quando eu era pequena, alimentei
durante todo o tempo a idéia de matar meu pai”(p.16); Papai tinha outras mulheres
e não se interessava por nós” (p19); Papai seu filho da puta...” (p.20); Mas que eu
odiei meu pai, odiei. Isso sim. Até o ponto de incorporar esse ódio que me atrapalha”.
(p. 21); “(...) a uma foto minha sob os dizeres de procura-se parricida”, papai. Sorte
sua. Sorte sua eu não ter força suficiente para me transformar numa marginal que
matou você”(p.39); “(...) Eu odiava papai” (p.45).
Esse pai tão odiado que durante a narrativa se encontra na posição de algoz,
representa uma ordem opressora, onde a atitude do macho dentro da família é a de
transmissor de uma ideologia que venha coadunar-se às necessidades da sociedade
na qual se encontra inserido.
Entretanto, no discurso persuasivo da narradora, não encontramos marcas da
submissão, mas sim os traços da revolta que envolve a personagem, como se
comprova nos trechos: eu odiei meu pai”, “procura-se parricida” e Papai seu filho da
puta”. Deve-se entender que todo esse rancor e revolta assumem uma dimensão que
219
se amplia no decorrer da narrativa, porque o ódio que sente em relação à figura paterna
significa a sua não sujeição à ideologia que esse personagem representa.
Marilena Chauí (1994) define ideologia como um mascaramento da realidade
social, que permite a legitimação da exploração e da dominação. Um dos meios
propagadores da ideologia dominante, de acordo com Chauí, é a Igreja. Desvenda-se,
a partir do discurso religioso, a formação das personagens femininas. Portanto, o
universo de dominação ampara-se na religiosidade, orientando os caminhos a serem
traçados pelas mulheres: caminhos de silêncio, submissão e tragicidade. Em As
mulheres de Tijucopapo, a personagem da mãe
30
, como nos referimos, é retratada
como submissa e silenciosa, cumpridora do papel destinado à mulher, primordialmente,
o da maternidade e da subserviência: “Ismael seria o sexto filho de mamãe” (MT: p. 19).
Rísia coloca-se contra esse processo ideológico, disseminado pelo discurso
patriarcal religioso. Ela se faz enquanto ser individual, distanciando-se da imagem
feminina criada pelos homens. Seu posicionamento vai ao encontro das palavras de
Muraro: “Até hoje a história foi feita pelo homem e para o homem. E um mundo assim
feito é um mundo desequilibrado e, portanto, condenado” (MURARO, 1971, p. 17). A
condenação fica clara na guerra que Rísia declara: “Minhas histórias eram de batalhas
por uma causa justa”. (MT: p. 163). Assim, seu discurso se constrói como transgressão
contra a autoridade que leva à dominação social, bem como contra a legitimação da
inferioridade feminina. A narradora rebela-se quebrando, por meio da linguagem, o
discurso opressor, a partir do qual foi educada, negando, insistentemente, a herança de
mulher submissa.
Como mulher decidida, estabelece com o Antigo Testamento um diálogo
marcadamente irônico, pois não aceita a tradição religiosa de que a mulher originou-se
da costela de Adão. A personagem assume, portanto, ser feita de lama, tal qual o
homem. Assim, ela reivindica igualdade, renegando a dependência da mulher em
relação ao homem.
30 Interessante de nota é perceber que a personagem mãe, em encontro com Analice, a amante do pai, apresenta-se pelo nome de Adelaide, que
significa pessoa de linhagem nobre, dinâmica e com grande sabedoria. Ironicamente, a mãe era destituída de nobreza e importância, além de
imobilizada e silenciada por sua condição de mulher: “mamãe era uma coitada, dada, flácida, apática” (MT: p.32)
220
O discurso religioso também se presentifica na narrativa através do Salmo 91,
no questionamento de como suportar sua realidade cotidiana cruel e dilacerante, ferida
aberta ao sol, tão diferente da proposta ideal contida nas Escrituras. Nesse momento
de suas reflexões, a narradora avalia que conseguirá apenas através do “Peiote, Nema.
Para fugir dessas coisas. Que eu devia ter tomado mas que nunca tomei. Não me
conformo de ter sido tão burra. Passei a metade de minha adolescência lendo o Salmo
91”. (MT: p. 105 )
Este salmo representa a meditação sobre as bases e as consequências da
confiança em Deus. De acordo com este Salmo, aquele que confia em Deus
receberá proteção contra as traições dos homens; as desgraças e a peste poderão
abater-lhe, mas este será salvo. Viver sob a sua proteção inspira, pois, total segurança.
A promessa que encontramos nas Escrituras Sagradas é a de que DEUS afasta os
desastres e perigos: "Você fez de DEUS o seu protetor e do Altíssimo o seu defensor;
por isso nenhum desastre o ferirá, e nenhum mal chegará perto da sua casa. DEUS
mandará que os seus anjos cuidem de você para protegê-lo em todos os momentos da
sua vida." (Salmo 91:9-11)
Rísia, no entanto, percebe que as promessas presentes neste salmo são
negadas a cada dia de sua existência, na casa, na escola, em Manjopi, em Recife, em
São Paulo. Sua indignação consigo mesma, por “ter sido tão burra”, revela um
ressentimento por ter sido abandonada por Deus.
Eu queria habitar no esconderijo do altíssimo e descansar à sombra do
Onipotente e dizer ao Senhor que Ele era meu refúgio e o meu baluarte – O em
que eu confiava. Queria que ele me livrasse do laço do passarinheiro e da
peste perniciosa e que me cobrisse com suas penas, que sob suas asas eu
estivesse seguro, que suas verdade fosse pavês e escudo. Que com Ele, eu
não me assustasse de terror noturno, nem da seta que voa de dia, nem da
peste que se propaga nas trevas, nem da mortandade que assola. (MT: 108-
109)
O uso de futuro do pretérito do indicativo - “queria”, - exprime, no caso em
análise, a incapacidade da narradora de acreditar, demonstra uma irrealidade. A
narradora demonstra através do tempo verbal -”queria”, “era”, que passou boa parte de
sua existência acreditando na mensagem do Salmo, na crença de que estava protegida
por Deus. Entretanto, sua realidade é a de quem carrega a dor do mundo, corpo
221
machucado por profundas feridas, diante de uma promessa ineficaz. Por isso, conclui:
“O salmo 91 é uma grande tolice”. (MT: p.109)
A narradora repensa o discurso cristão contido no Salmo e abandona as ilusões
e o casulo existencial em que julgava estar protegida, para ingressar num mundo de
reflexão gerenciado pela realidade e só compreendido pela ciência: “As respostas estão
na ciência”. (MT: p. 117) A ilusão do passado e sua tentativa de aproximar-se de Deus
por meio do Salmo deterioraram-se, pois não a impediriam de cair no abismo.
Vítima de diversas “quedas” e sem a proteção de Deus, a narradora demonstra
toda a sua ira, parodia o discurso bíblico, especificamente o de Jesus e, assumindo a
função de juiz do cotidiano, julga e, não se sentindo pecadora, atira pedras:
Uma vez eu ia andando pela rua em São Paulo e gritaram em mim:
_ Moralista! Lá vai o Salmo. Salmo andante!
Eu virei uma pedrada na canela de um:
_ Moralista é a mãe! (MT: p.58)
Outra passagem, de grande importância, demonstra a incapacidade de perdoar
da narradora e remete ao Novo Testamento, estabelecendo mais uma vez uma relação
oposta ao discurso bíblico, pois Rísia alimenta o rancor e Jesus o perdão. Por isso, ela
diz: “O filho da puta de meu pai ainda ousava mexer no meu armário e cometer o crime
de levantar a mão contra a face que eu nunca lhe ofereci, a minha face”. (MT: )
Em Êxodo 20:12 há uma importante lei a ser obedecida: “Honrarás teu pai e tua
mãe, para que se prolonguem os teus dias sobre a terra, que o Senhor, teu Deus, te
dará”. A posição da voz narrativa, em As mulheres de Tijucopapo, difere dos preceitos
morais e religiosos, pois, para ela, o pai é “um filho da puta”, isto é, a voz narrativa se
coloca contra o discurso autoritário do pai e, também, contra as palavras bíblicas. É,
portanto, por meio da linguagem livre, que se rompe com o poder da palavra sagrada.
Similarmente, as palavras de Rísia possuem um forte tom questionador em
relação ao perdão: aqui, a narradora não se sente capaz de oferecer nenhuma das
faces, assume que é vingativa e não aceita represálias. O advérbio “nunca” reforça o
questionamento: quem teria dado o direito à violência a que esse pai se permite? O seu
poder de mando advém da autoridade patriarcal-religiosa, por isso, é contra esse
discurso que a narradora se rebela. No reduto de mulheres guerreiras ela buscará a
222
resposta de o porquê “papai gostava de dar em mim” e, também, a força necessária
para se libertar destas violências.
Vemos claramente, ao longo da narrativa, os pontos de identificação, de sutura,
embora instáveis, num constante processo de identificação e recusa, como podemos
localizar no trecho:
Eu sou pobre de pai e mãe. Pobre, pobre. [...] Eu caminho pela ponte e
esmoleres margeando meu caminho. E ladrões e prostitutas. Não me
identifico portanto. E me identifico. Eu os fito sem me achar na pupila dos olhos
deles. E me acho Eles não refletem, eles não são espelhos claros e límpidos.
Eu me vejo (MT: p.103).
Percurso da dor, da volta para si; uma procura enlouquecida pelo self:
“Desse meu corpo que vai. Que vai ver se renasce em Tijucopapo onde nasceu
mamãe” (MT: p. 36). Outras vezes, uma recusa de compreender-se e ser definida:
“Jamais vou admitir que me definam” (MT: p.23). Ou seja, a narradora recusa estar
encerrada em definições, pois definir - de acordo com a ideia iluminista de pessoa una
e concluída - significa estereotipar, fixar a identidade, impedir a transformação do self.
Numa acepção geral, entende-se por self aquilo que define a pessoa na sua
individualidade e subjetividade, isto é, a sua essência, o cerne de sua personalidade.
Como afirma Damásio a consciência de si, ou o self
São mecanismos cerebrais objetivos que elaboram a subjetividade da mente
consciente a partir de cartografias sensoriais. Tal como a cartografia sensorial
mais fundamental identifica os estados do organismo e se manifesta sob a
forma de sentimentos, o sentimento de si no ato de conhecimento traduz-se por
um sentimento particular, o sentimento da interação de um organismo e de um
objeto (p.9 )
Rísia, no nevoeiro de si, procura apalpar algo que seja uma essência, e
reconhecer-se.
Nesse percurso de revisita ao self, encontramos a personagem sempre em
estados fronteiriços, em estado de indagação: “Eu desde sou perdida, uma pessoa
perdida que não se parece, que se retira somente. Eu... (MT: p.98). nas palavras
223
de Rísia a percepção de uma espécie de perda de sentido de si, o que Hall denomina
de “crise de identidade”. Identidade vista como parte de um processo mais amplo de
mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades
modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma
ancoragem estável no mundo social. Sobre isso, ele explica:
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma
fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada
uma das quais poderíamos nos identificar” (Hall, 2002: 13)
Até mesmo a própria estrutura da narrativa já denuncia as rupturas, os cortes, a
limiaridade da existência de Rísia: “Eu sou feita de lama imunda. O meu choro. Era
uma vez, no onde a praia vira lama, Tijucopapo, nasceu minha mãe. Eu sou feita de
lama que é negra de terra”. (MT: 55-56).
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Como define Penna (1995, p. 237), Rísia busca o lugar da lama onde a mãe
nasceu. Ou seja, ao contrário da genealogia masculina que remonta a uma linhagem
patrilinear, - tendo como fio condutor o patrimônio (o nome do pai) como índice da
propriedade, de bens ou características atribuídas a uma família ou raça, onde se inclui,
dentre os bens familiares, as mulheres o que se busca é a fonte da resistência
feminina. O nascimento da mãe, no entanto, contém de imediato um paradoxo: a mãe
não sabe de seu próprio nascimento, encontra-se estranhamente ausente dele,
224
marcada por uma alienação absoluta de si mesma, deixando em Rísia, como foi
anteriormente trabalhado, a sensação de a mãe não ter nunca nascido: “Tudo em
mamãe é adotado e adotivo. Minha mãe não tem origens, minha mãe não é de
verdade. Eu não sei se minha mãe nasceu” (MT: p.35)
Na origem, a origem falta, o “último originário de mamãe” é pura distância
apagada; o que caracteriza esta origem é a falta de si mesma. Na genealogia materna
a doação, a adoção é a matriz de uma estrutura de orfandade. Por isso, a necessidade
de busca da terra-mãe, a busca por uma reescritura da origem. A realidade da falta
radical justifica a necessidade de recriação de tudo, a produção de uma realidade
outra. A terra originária que aqui se inventa, a qual se retorna, é naturalmente diferente,
mas extremamente eficaz em seu desligamento revolucionário da limitação da
existência.
Nesta volta a Tijucopapo, a raiva é componente essencial, pois revela valores,
permite visualizar objetivos. Os processos emocionais, de acordo com Katheen Fischer
(1999) são tão importantes quanto os aspectos físicos. Eles revelam nossas
necessidades internas, valias, prioridades, além de evidenciar questões tais como
“Quem sou?”, “O que valorizo?”, “O que desejo?”, “O que devo fazer diante de
determinada situação?”
A mãe representa a uma das grandes fontes da raiva de Rísia, por ser imagem
do “regresso”, no sentido de “mover se para trás”, como percebe Lowen. A mãe
caracteriza a passividade do ser traído, sendo símbolo do que Rísia rejeita. Apesar de
tudo, a e é parte da origem. Em seu processo de auto-descoberta, a mãe afigura
como bússola que lhe dará a verdadeira direção. Ela precisa entender como e porque
do comportamento de sua progenitora para que o seu próprio comportamento possa
ser transformado.
Localizamos, ao longo da narrativa, marcas profundas de uma vida/morte. Toda
a vida de Rísia foi uma constante morte de si. Por isso sua confusão psicológica, seu
estado de porre, a sensação de margem, o esgotamento que a coloca no limite, sem
forças.
Diante das tantas violências sofridas, devemos reforçar-lhe a voz: “É justo? O
que pode ser considerado justo” (MT: p.103). Sua raiva é justa? Temos o costume de
225
etiquetar os sentimentos, de forma maniqueista, como bom ou ruim, positivo ou
negativo, justo ou injusto. Ao fazer isto, estamos lhes atribuindo qualidades morais.
Dentro de tal esquema, a raiva é julgada inevitavelmente como algo errado. Na
realidade, ela está no topo dos sete pecados capitais, logo após o orgulho. Moldado por
este julgamento, impomos para nós mesmos que não devemos ficar bravos. Lutamos
contra nossos próprios sentimentos. A partir do momento que a raiva é vista como
pecado, deixamos de enxergar as qualidades e o poder que vêm de seu
reconhecimento e capacidade de integração.
A raiva é uma paixão vital, cheia de energia e pode, como foi exposto, ser
usada de maneira construtiva ou destrutiva; ela pode, além disso, abastecer as ações
para dar a vida ou para causar a morte. No entanto, escolher não sentir a raiva, não
significa escolher o lado positivo.
Através da raiva, o corpo fornece informações vitais para o self, para o outro.
Ignorar ou negar a mensagem deste sentimento suspende nossa capacidade de amar.
Ficamos presos à amargura e perdemos a capacidade de nos conhecer. A voz raivosa,
assim, surge como forma de conhecimento, para remover a causa da angústia e
reconquistar um sentimento positivo em seu corpo. “Nema, agora é começo dum ano
outro e eu preciso dizer que odeio porque senão eu morro. Nema, eu preciso dizer que
odeio porque o amor faz de mim uma dor que me enlouquece” (MT: p.72). É preciso
recuperar sua ligação afetiva com as pessoas que são importantes em sua vida. Se
esta ligação não pode ser restabelecida, a pessoa permanece num estado de
contração, incapaz de se abrir e ir em busca de contato. Seu amor fica congelado;
transformado em ódio. Se o ódio é expresso, o gelo é quebrado e o fluxo do sentimento
positivo é recuperado, afirma Lowen.
Há ainda uma questão importante em relação ao relacionamento com o outro: o
relacionamento saudável, de acordo com Lowen, baseia-se em liberdade e igualdade.
O desejo de ser bicho, de grunhir, revela o desejo de ser livre, como uma égua em
disparada, desembestada. Liberdade denota o direito de expressar livremente os
próprios desejos e necessidades; igualdade significa que cada pessoa está no
relacionamento por si mesma, e não para servir ao outro. Em diversas ocasiões Rísia
revela a insatisfação, a falta de liberdade e espaço:
226
Saí porque não havia um lugar sequer que me coubesse. [...] Saí porque quase
perco a fala na grande cidade. Porque na minha casa, dia de domingo, era
coisa de louco. Era o dia da mudez. As pessoas todas estavam em casa, o dia
de folga. Pois era exatamente o dia em que a mudez era flagrada. As pessoas,
dia de domingo, não mais se falavam em minha casa. (MT: p. 78)
Papai fique sabendo que aqui sou eu quem tem um salário tão alto quanto o
seu salário. Que eu sou quem eu quiser ser. Que você não existe desde os
meus cinco anos de idade. Que, se é como autoridade que você deseja existir,
saiba que você é um merda pura. Que eu já sou maior de idade e que chegou a
hora de você saber que seu lugar é no inferno. Nunca mais se atreva a mexer
no meu armário, ouviu bem? Ou eu mato você. Papai, eu ainda mato você!
Papai me deu dois tabefes no toitiço e eu caí meio desmaiada. Quando acordei
havia alguns restos de lágrimas nos meus olhos, uma tristeza se formando
inteira. Eu teria que ir. Não permitiria que batessem na mulher que sou. (MT: p.
121-22)
A atitude do pai é tida como algo inaceitável, absurdo aos olhos de Rísia. Para
Albert Camus, o absurdo não está nem no homem nem no mundo, mas na relação do
homem com o mundo. O absurdo está exatamente no fato de o indivíduo, de repente,
se ver atirado, e ter que viver, num mundo que lhe é absolutamente estranho,
contraditório, complicado, indecifrável e tantas vezes irracional. Essa condição absurda
do homem torna-o um autêntico estrangeiro, ou seja, alguém exilado num mundo
desconhecido e inóspito.
Rísia percebe o absurdo de sua situação: “E depois, que absurdo são as
minhas ideias. Os meus desejos são um absurdo”. (MT: p.117). De acordo com Camus,
“a absurdidade perfeita tenta ser muda”. Daí por que o filósofo conclui também que o
absurdo nasce justamente dos apelos humanos diante do silêncio despropositado do
mundo. E, com efeito, se bem observada a circunstância existencial de Rísia, o que se
constata é justamente esse silêncio do mundo nos instantes em que sua vida aparenta-
se como sem sentido. Uma sensação de estar exilada num universo que não é o seu,
um “sentimento de vazio” ou da ausência de sentido para o destino humano, quiçá a
própria “náusea” de que nos falava Jean-Paul Sartre
31
. Por isso, Rísia precisa falar,
31
Esse romance, escrito em 1938, em forma de um diário, revela os sentimentos de repugnância do personagem Roquentin, em relação ao mundo
material inclusive pela consciência de seu próprio corpo. O romance contem em suas páginas grande parte das posições filosóficas que Sartre
continuaria depois a desenvolver. Seu herói, Antoine Roquentin, desocupado, duvidoso de si mesmo, vive sozinho, sem amigos, sem amante, nada lhe
importando, nem os outros homens, nem ele mesmo, descobre, na vida monótona de Bouville, o mistério metafísico do Ser: o mundo não tem
227
ainda que suas palavras sejam agressivas, inaceitáveis para o senso-comum, pois,
como ensina Camus: “Falar repara” (p.19). A narradora, assim, utiliza uma fala
carregada de revolta para consertar o seu mundo. Na visão de Camus
o movimento de revolta apóia-se ao mesmo tempo na recusa categórica de
uma intromissão julgada intolerável e na certeza confusa de um direito efetivo
ou, mais exatamente, na impressão do revoltado de que ele 'tem direito de...'
[...] De certa maneira, ele contrapõe à ordem que o oprime uma espécie de
direito a não ser oprimido além daquilo que pode admitir. (CAMUS, p.25)
Risia não consegue admitir a intromissão em seu espaço, os irmãos em
zoada pelo quarto, devorando toda a comida; o não-reconhecimento de que ela tinha o
maior salário da casa; o pai sempre ausente, cheio de amantes; a mãe grávida de
desamor, sem abraço: traumas e dores. Ela sabe e diz: 'o meu sofrimento não perdoa”
(MT: p.114).
A raiva de Rísia exemplifica um processo de clarificação, no sentido de dar ao
homem a nitidez de sua posição no mundo. É a partir deste abalo da raiva que a
protagonista se pensa. A raiva revela-lhe toda a angústia existencial, angústia esta que
decorre da consciência de que a vida precisa ser consertada, é preciso uma nova forma
de vida.
Por isso, tenta ultrapassar a montanha de silêncio, acredita nas palavras, no
falar, no recontar suas agonias, suas mágoas, para, assim, tentar compreendê-las.
Além disso, como expõe Camus: “A revolta clama, ela exige, ela quer que o escândalo
termine [...] Sua preocupação é transformar. Mas transformar é agir [...]”. Desta forma,
Rísia se enraivece, (re)volta: “Me dava uma revolta que eu tinha vontade de partir para
vingá-los.” (MT: p.185).
Vamos fincar bandeira. Nós vamos em busca da justiça das luzes e, caso haja
destruição, é porque nós viemos de regiões assim, agrestes, de asperezas de
nenhuma razão de existir e é absurdo que exista. "Tudo é gratuito, a jardim, esta cidade, e eu mesmo; quando acontece da gente se dar conta disso,
isso atinge a cabeça e tudo começa a flutuar; eis a náusea". Um movimento negativo de esvaziamento pode ser observado em “A Náusea” através do
personagem central. A náusea, como um processo de nadificação e isolamento, vai aos poucos tomando Roquentin através de um estranhamento
profundo. Tal estranhamento irá se radicalizar até tornar-se um estranhamento de si mesmo, situação que irá culminar na descoberta de que ele
próprio é a náusea - é a existência que se faz presente se pondo em jogo. (SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.)
228
alma, de docilidade nenhuma, de nenhum beijo e nenhum abraço, de tiquinhos
de comida na cuia e de lombrigas na barriga, e de sede, mamãe, de insolação e
forca no caminho para a escola, de não saber mais da própria vontade de não
saber se íamos à escola ou se fazíamos alguma coisa da vida (MT: p.135).
A revolta de Rísia é traduzida na narrativa através de capítulos iniciais mais
curtos, agressivos, compostos por frases curtas e duras, diferentemente do que vai
ocorrer na última terça parte do livro: os capítulos tornam-se menos pensamentos e
mais ação; aparecem mais diálogos e também são mais longos; outros personagens
aparecem e Rísia torna-se mais mansa e calma.
É que ela encontrara um novo amor e o amor, segundo ela, é capaz de
refazer alguém. Rísia encontra-se com Lampião e termina em Tijucopapo, preparando-
se juntamente com as mulheres depara descer a BR e fazer a revolução na Avenida
Paulista.
Rísia precisa consertar o seu mundo porque não se sente existindo, sendo.
Nenhum lugar parece cabê-la, porque ela sequer cabe dentro de si própria. Cenas de
raiva, labirínticas, desta forma, metaforizam a busca da identidade pessoal,
perpassando as raízes, as origens mais coletivas e sociais do indivíduo. Quando busca
a si mesma, encontra-se o outro, pois diante do outro, podemos nos identificar, pela
semelhança e diferença. A identidade individual marca-se, pois, pela pertença do
sujeito em uma determinada cultura.
É preciso ratificar, igualmente, que Rísia busca, em sua trajetória, romper os
limites que a aprisiona em uma situação de dor, de ódio. Por isso, sua voz pode ser
a de revolta. “Preciso praguejar contra essas safadezas que me atenazam a vida,
contra esses muxicões que me lascam no braço sem observarem que meu braço é fino,
fraco e frágil. Meu braço guarda todas as marcas vermelhas dedos” (MT: p. 82). A dor
da infância permanece em seu interior, fica guardada em seu corpo; sufoca-a, deixa-a
ensolarada, insolarada, labiríntica. Camus, em O Homem Revoltado, nos bem a
ideia de como isso se processa, “O ressentimento é muito bem definido por Scheler
como uma auto-intoxicação, a secreção nefasta, em vaso lacrado, de uma impotência
prolongada. A revolta, pelo contrário, fratura o ser e o ajuda a transbordar”.
229
Rísia transborda através da carta, escrita durante toda a narrativa e que ela
gostaria de ter escrito em inglês, porque lembraria um final feliz de filme americano. Ela
responde à pergunta feita pela mãe, constatando que “o céu, portanto, era perto,
mamãe” (MT: p.136). Isso pode não significar um “happy end”, mas, sem dúvida,
aponta para uma possibilidade de mudança.
O que eu fiz foi um pensamento. As mulheres de Tijucopapo eram, enfim, como
eu fazendo sombra no chão, meio dia de sol de fogo, caminho da BR. É isso
mesmo mamãe. Eu quero que minha vida tenha um final de filme de cinema em
outra língua, em língua inglesa. Eu quero que tudo me termine bem. (MT:
p.137).
A ironia contida na referência ao final de filme em língua inglesa não
desconstrói a vontade firme da narradora de que tudo lhe termine bem: uma forma de
se livrar da dor, dos múltiplos abandonos. Seu corpo, feito de lama (“E vou confessar a
lama de que sou feita”, p.83), renasce ao contato de suas raízes nordestinas e se refaz
no propósito de vingar sua herança sofrida representada, sobretudo, pela figura
materna. A história das mulheres guerreiras de Tijucopapo, portanto, serve de
inspiração para que se reverta o quadro da subalternidade, de submissão.
Foi preciso que ela enfrentasse um abismo inteiro, caísse uma queda imensa, a
“queda de maior indignidade” para se juntar a estas mulheres guerreiras, para
conquistar a própria essência.
A queda, o abismo percorrido “num tempo de nove meses”, representam o
percurso existencial da narradora, que resulta na morte de uma identidade que não lhe
cabia e, paradoxalmente, no seu (re)nascimento, através da (re)volta: “Eu, essa minha
retirada, esse meu jeito de ser” (Mt: p.182).
Lembremos de Dionísio “deus em oposição aos titãs; o deus das emoções; o
deus mais reprimido da cultura ocidental; o deus das mulheres, do vinho, da tragédia e
o deus que possui uma forte conexão com a morte” (López-Pedraza, 2002, p. 9). As
mulheres de Tijucopapo nos traz a imagem deste deus com toda sua integridade, toda
sua força criadora e contestatória, o que nos permite caracterizar todo o enredo
seguido por Rísia como um fator de equilibração psicossocial, que permite ao homem
230
individual a introspecção, entrando em contato com seu subsolo arquetípico, se
autoexaminando e reelaborando sua existência. É possível identificar na obra uma
importante ação de Dionísio, aquela que leva o sujeito a um estado de embriaguez,
para uma viagem interior que promove a contraparte da loucura (a raiva também é
comparada com a loucura): a libertação e a recriação de si; o renascimento.
Rísia se pergunta: “Quem nasceria de mim?” (Mt: p.182).
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O retorno de Rísia à cidade mítica nordestina de Tijucopapo, “à terra onde
minha mãe nasceu”, pátria de uma antiga linhagem de mulheres guerreiras, fortes ao
contrário de todas as mulheres do presente, fracas e oprimidas como a mãe retraça,
em direção contrária, o caminho do êxodo rural que ocorrera em sua infância, quando
saíra com a família de Recife para São Paulo. A origem deslocada (exílio) é buscada ao
mesmo tempo em que deferida pelo relato que ao se aproximar parece distanciar-se
do ponto de chegada (e repartida). O percurso em direção à origem, tensionado pela
narrativa, determina, paralelamente, uma genealogia do nascimento (relembremos que
o significado de tijuco, em Tijucopapo, origina-se do tupi, “lama”): “vou confessar a
lama de que sou feita” (MT: p.85). A volta para Tijucopapo consiste, pois, num
renascimento, no ponto de encontro entre o passado e o futuro “encontro de praia e
lama” (MT: p.127) – retorno a uma origem que é carência, sofrimento e dor; mas, acima
de tudo, retomada do caminho com as mulheres de Tijucopapo partindo para São Paulo
e vingando a longa indigência materna. A repetição do êxodo rural, com o sentido
alterado é o que redime o passado, convertendo-o em expedição destruidora e
vingativa; diferente da revolução de 64, que derrubou o seu guaraná, mas uma
231
revolução capaz de acenar a força feminina na reconstrução do próprio caminho,
através da (re)volta.
232
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O importante é continuar a revolução,
seguir transformando o extraordinário em
cotidiano, não perder de vista o
significado histórico do momento
(Marilene Felinto)
A premissa desta tese foi a de que a raiva feminina deve tornar-se um campo
de investigação literário e político, como uma forma de localizar as fontes múltiplas da
opressão, analisar o seu funcionamento e tentar erradicá-la. Quando a raiva feminina é
reconhecida, evitamos o destino de Rísia-criança: não nos refugiamos na loucura e
imobilidade, não temos roubados a voz e o direito de participar da comunidade; pelo
contrário, reconhecemos nosso valor e nos fortalecemos pela raiva. Assim, pode-se,
publicamente, protestar contra as injustiças miríades que imobilizam a vida das
mulheres: o domínio masculino, a discriminação racial, a falta de poder sobre o próprio
corpo e sobre recursos econômicos, a desvalorização intelectual e a violência
doméstica. A raiva feminina perturba o patriarcalismo.
Em “A Imaginação Feminina”, um dos primeiros estudos sobre a literatura
feminina, publicado durante o advento do feminismo, Patricia Mayer Spacks (1972) nota
que as feministas do século XX, assim como as do século dezenove, se enfureceram
diante das limitações impostas a elas, mas, de acordo com a estudiosa, as
consequências literárias nunca poderão ser avaliadas completamente. Mais de 35 anos
depois, está na hora de modificar o julgamento de Spacks. Como procuramos mostrar
ao longo deste estudo, é possível avaliar as consequências literárias da raiva feminina,
desde que se observe a raiva como experiência de vida e, também, como base de uma
estética. Aplicando o paradigma da raiva aos períodos históricos, ilumina-se a arte da
raiva feminina, praticada como forma de expressar o descontentamento diante da
233
supressão histórica de suas culturas. As escritoras, ao longo de sua trajetória literária,
inventaram estratégias, conscientes ou não, para revelar a grande negociação que lhes
foi exigida a fim de responder às suas injustiças. Por isso, falaram através de uma voz
masculina, assumiram uma identidade masculina, empregaram a ironia, defenderam
um caráter infantil. Suprimiram, muitas vezes, a própria raiva para, através deste ato,
ter uma forma de deixar um registro histórico de suas opressões, assim como dos
sonhos de liberdade. Este registro precisa se resgatado, pois representa parte de nossa
memória histórica. Se ele é obscurecido ou apagado, afundaremos mais uma vez na
sufocante areia movediça da imobilidade.
O processo para aprender a expressar-se através da raiva tem uma história e
esta história coincide com a luta feminina por espaço e liberdade. Uma confluência de
forças possibilitou às mulheres expressarem suas raivas através de uma variedade de
máscaras, entre as quais podemos citar a virtude moral como um princípio de
manipulação, o discurso de afronta moral, a retidão do discurso religioso, a luta pelo
voto, a escrita literária.
A elevação da consciência começa com a reivindicação por espaço público e
linguagem política diante de sentimentos privados e tristezas pessoais, aponta Peter
Lyman (1981). As mulheres do século dezenove reivindicaram um espaço público na
esfera literária, e comunicaram os seus sentimentos privados, tristezas pessoais, e
mascararam a raiva vulcânica através de suas literaturas.
Fazendo uso do romance doméstico, as mulheres poderiam comunicar-se entre
si. Mas, elas também relacionaram suas experiências psíquicas e materiais em
narrativas de escravo, autobiografias, romances históricos, falas, contos e poesia. Para
as mulheres, a leitura e escritura equivaliam a um crescimento de consciência.
A raiva que liberta, Teresa Bernardez (1988) define, é a resposta consciente
sobre injustiças sofridas, perdas e queixas suprimidas; é a negação do silêncio e o
desafio às proibições impostas. A raiva que liberta envolve amor-próprio e consciência
da responsabilidade de fazer escolhas. Este sentimento permite ligações com o
passado, a recuperação de recordações dolorosas, aflições e perdas, ao mesmo tempo
em que avalia a cumplicidade da pessoa em sua própria submissão e reconstrução do
futuro. A história da raiva feminina, na literatura, elucida injustiças sofridas, a própria
234
cumplicidade da mulher em sua submissão e também a responsabilidade de outros:
perdas e queixas que fazem parte de nossa existência coletiva. Quando reescrevemos
esta história, recuperamos recordações dolorosas como também inscrições de luta.
Igualmente, asseguramos que a história feminina transforme a raiva em arte: uma arte
que representa uma parte permanente da história. Transcrever a história feminina,
pensando na raiva, na expressão do descontentamento, é fazer uma literatura da
urgência: uma literatura esteticamente engajada.
A partir do “conteúdo estético”, o romance As mulheres de Tijucopapo, como
obra de arte, mantém relações com a realidade sócio-histórica, visto que “O momento
histórico é constitutivo nas obras de arte” (Adorno, 1988, p. 207). Discorrendo sobre
problemas de estética e suas relações com o social, Theodor Adorno (1988) chamou
atenção para os episódios históricos das catástrofes e afirmou a existência de vínculos
entre as experiências de barbárie do século XX e as produções artístico-culturais
(música, teatro, literatura). Essas relações, mediatizadas através da forma, para
alcançar efeito ativo e crítico, devem abster-se da objetividade e da organização lógica
e linear, pois a arte que se baseia nesses traços não chega à essência nem alcança
sua condição social de modo satisfatório. Nesse sentido, o filósofo destaca que “Quanto
mais o trabalho social contido na obra de arte se objetiva e plenamente se organiza,
tanto mais soa a oco e se torna estranha a si mesma” (1988, p. 119).
Esta união entre estética e conteúdo social pode ser reconhecida no romance
de Felinto, pois a raiva que domina a narrativa traduz um estado mental espiralado, o
que recusa a objetividade e o discurso contínuo. A dicção da protagonista, Rísia,
primeira narradora migrante nordestina, é marcada pela violência da raiva, pelos
sentimentos brutos que são interiorizados, por vezes, exteriorizados e por uma
oralidade truncada, construída pelo viés do diálogo que a narrativa institui. Através da
narrativa criou-se um espaço para as ilusões consoladoras. É pela narração que
acontece a vocalização de falas que a narradora não pode dizer à mãe, à amiga Nema
(principal interlocutora no texto) ou à Luciana.
Tanto o enredo, quanto a própria estrutura revelam a presença da agonia e da
raiva diante de um contexto social marcado pela violência, crise da história,
desrealização, desubstancialização do sujeito. Ou seja, apresentou-se um universo
235
evoluído e caótico, sem limites entre civilização e barbárie, onde extremos convivem
num mesmo espaço e num tempo em que o ser humano perdeu o valor da própria
identidade. Como resultado, através de uma união perfeita entre o social e a estética
formal, a ambientação da obra mostra-se indefinida, desordenada, labiríntica, confusa.
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A fragmentação temática e estética da obra permite a percepção de um
processo coeso, no sentido de que as estratégias do fragmento colaboram para uma
visão crítico-social que se esconde por trás do caos: os capítulos sinalizam um ritmo
que traduz uma perspectiva amparada na possibilidade de chocar o leitor, incitando-o à
reflexão, inclusive porque a dispersão das cenas e a descontinuidade discursiva
impedem uma atitude passiva e tranqüila do leitor diante da matéria narrativa.
A fragmentação da narrativa, igualmente, revela um esvaziamento da
protagonista, que vai acumulando perdas, abandonos e impotências até atingir o limite
da insignificação, se torna um “oco”, um “vazio”. Uma despotencialização que se projeta
na angústia, na desorientação, na necessidade de reconstrução da identidade
estilhaçada. Enfim, uma narrativa das desventuras de um sujeito minimizado, que após
a perda do amor, sai em busca da força que não possui, em busca de um referencial de
transgressão.
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A raiva não desaparece com a chegada em Tijucopapo, mas se transforma.
Assim como as dez mulheres-sapos são substituídas por outras dez, mas estas, as
mulheres amazonas, figuras da revolução, a raiva desta protagonista fragilizada é
substituída pela força, uma outra herança. Os cabelos de crina de cavalo contrastam
com os cabelos de forca com brilhantina, que tentavam escamotear a diferença na
infância em Manjopi. Sua raiva se transforma na raiva de uma mulher-amazona, mulher
metamorfoseada em cavalo, pronta para vingar o sofrimento e a traição.
Tudo acontece num intervalo de fantasia e sonho, no qual as visões
contraditórias de feminilidade que Rísia vive são harmonizadas e ultrapassadas.
Resta dizer que ao longo deste trabalho, procuramos demonstrar que a
literatura possui contato estreito com a realidade. Contato que, ao mesmo tempo, oscila
entre a dependência e a rebeldia. Isso implica na aceitação do princípio segundo o qual
a arte apresenta, como uma de suas funções, o desejo de mudança. Tem-se, então,
uma posição que remete a Aristóteles, que defendeu na Poética, a arte como imitação
da realidade e como aprendizado. Nesse sentido, a incapacidade humana de aceitar as
violências e traumas da existência acentua as angústias do homem e a literatura surge
como uma representação do inconformismo, pois ela reflete a vida e sobre a vida.
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