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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A LIBERDADE ARTÍSTICA DE NIETZSCHE
CLARISSA AYRES MENDES
OURO PRETO
2010
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CLARISSA AYRES MENDES
A LIBERDADE ARTÍSTICA DE NIETZSCHE
Dissertação apresentada ao mestrado em estética
e filosofia da arte da universidade federal de
Ouro Preto como requisito parcial para a
obtenção do título de mestre em filosofia.
Área de concentração: estética e filosofia da arte
Orientador: Prof. Dr. Olímpio Pimenta Neto
OURO PRETO
2010
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Catalogação: sisbin@sisbin.ufop.br
S586l Mendes, Clarissa Ayres.
A liberdade artística de Nietzsche [manuscrito] / Clarissa Ayres
Mendes. - 2010.
108f.
Orientador: Prof. Dr. Olímpio José Pimenta Neto.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto.
Instituto de Filosofia Artes e Cultura.
Área de concentração: Estética e Filosofia da Arte.
1. Liberdade - Filosofia - Teses. 2. Filosofia ale - Teses.
3. Estética - Teses. I. Universidade Federal de Ouro Preto. II. Título.
4
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA:
MESTRADO EM ESTÉTICA E FILOSOFIA DA ARTE
Dissertação intitulada “A Liberdade Artística de Nietzsche, de autoria da
mestranda Clarissa Ayres Mendes, apresentada à banca examinadora constituída pelos
seguintes professores:
____________________________________________________
Prof.Dr. Olimpio José Pimenta Neto - Orientador- UFOP
___________________________________________________
Profa.Dra. Cintia Vieira da Silva - UFOP
____________________________________________________
Profa. Dra. Fernanda Bulhões de Carvalho - UFRN
Ouro Preto, 10 de dezembro de 2010.
5
Agradecimentos
Agradeço a minha família e amigos pelo
companheirismo, e compreensão. Agradeço ao
professor Olimpio, não pela orientação, mas pela
paciência e contribuição ao longo de minha formação.
Agradeço também a CAPES, e ao mestrado da UFOP.
6
Resumo:
O presente trabalho pretende abarcar a proposta de liberdade nietzschiana, que
se revela estética e não moral, como pensava toda a tradição filosófica até Nietzsche.
Para tanto, fez-se necessário percorrer os caminhos propostos por Nietzsche. Tendo
como fio condutor o senso histórico, avaliamos as principais intenções de Nietzsche.
Em primeiro lugar, pretendemos demonstrar que existem possibilidades de remontar o
surgimento dos valores morais baseadas em pontos de vista específicos, ou seja,
Nietzsche explora a idéia de interpretação na criação dos valores morais, e pretende
apontar para características especificas de certos tipos de homem e sociedades, que
privilegiaram determinadas interpretações. Com isto em mente, aliamo-nos à tarefa
inicial de destruição de certezas nas quais se fundamentam os valores morais. Depois do
trabalho com o martelo, podemos e necessitamos da criação. Nietzsche tenta devolver
ao homem a sua condição e consciência de sua condição de criador. Neste sentido,
temos a liberdade em termos nietzschianos como aliada. A liberdade proposta aqui,
correlata ao fazer artístico, aparece como a perspectiva inerente ao homem que se sente
apto e disponível para a criação, que passa a encarar a necessidade e a liberdade com
um sentido de equivalência, destruindo assim, a oposição destes dois conceitos.
Palavras chave: Moral, liberdade, criação, necessidade.
Abstract:
This work intends to explain a nietzschian’s freedom proposal; which is esthetic,
not moral proposal as it was thought all the philosophic tradition until Nietzsche. For
that, it was required to go through the proposed ways by Nietzsche. Taking in
consideration the historical sense we evaluated the most important Nietzsche’s
intentions. First of all, we intend to demonstrate that there are possibilities of raising the
appearances of the moral values based on specific points of views, in other words,
Nietzsche explores the idea of interpretation in the creation of moral values. He intends
to point to specific characteristics of some kinds of men and societies that favoured
certain interpretations. Taking this in consideration, we ally to the initial task of
destroying certainties in which the moral values are based. After the hammer work, we
can and we need of the creation. Nietzsche intends to give back to men their condition
and conscience of being a creator. In this sense, we have the nietzschian’s freedom as
associated. The freedom that we propose correlated to the artistic method, appears as
inherent perspective to the man who feels himself capable and available to the creation
who starts to face the necessity and the freedom with the sense of equivalence, thus
destroying the opposition of these two concepts.
Key words: Moral, freedom, creation, necessity.
7
Sumário
Introdução......................................................................................................................... 8
Capítulo I: O problema da liberdade moral: esclarecimentos acerca da construção dos
valores morais................................................................................................................. 14
1.1 O sentido histórico e a crítica ao valor dos valores.................................................. 14
1.2 Crepusculo dos Ídolos: os quatro grandes erros....................................................... 23
1.3 Genealogia da Moral: “ Primeira Dissertação”: bem e mal como resultado de
avaliações particulares.................................................................................................... 31
1.4 Moral de senhores e moral de escravos, os tipos ativo e reativo.............................. 39
1.5 Moral aristocrática, moral sacerdotal e rebelião escrava na moral........................... 42
Capítulo II memória e cultura: o refinamento das exigências morais e seus produtos. . 46
2.1 Culpa, castigo e ressentimento, como terreno de surgimento da má consciência.... 56
2.2 Niilismo e liberdade ................................................................................................. 65
Capítulo III A liberdade Artística e a Moral Afirmativa................................................ 73
3. Morte de Deus: um legado......................................................................................... 73
3.1 Liberdade e Necessidade: oposição no ressentimento ou equivalência no amor fati84
3.2 A Liberdade Artística: a soberania da criação.......................................................... 88
4. Considerações finais................................................................................................. 101
Referências bibliográficas ............................................................................................ 106
8
Introdução
Contrário à noção de liberdade posta pela tradição, que diz que o homem é
dotado de livre arbítrio para que possa comportar a responsabilidade ou a culpabilidade
pelo cumprimento ou não de normas, Nietzsche apresenta uma interpretação artística
deste conceito: livre é aquele que acata o jogo das forças do mundo, o jogo da repetição
e suas configurações ação que possibilita e exige sempre a criação de novas
avaliações e, portanto, de novos valores. Tal criação é fruto da celebração da
necessidade — é a expressão do ‘sim’ sagrado à vida, ao devir.
A concepção de livre arbítrio a ser criticada surge de um desejo de autonomia,
que pretende colocar os homens como sendo completamente independentes da natureza
e totalmente responsáveis por seus afetos. É a ilusão de que a vontade humana poderia
impor-se à mobilidade do devir e à sua força. Este livre arbítrio é um atributo falso para
convencer o homem de que ele seja a causa de tudo o que diz respeito a sua conduta.
Por essa perspectiva, a liberdade é colocada na categoria do contrassenso, do pseudos,
pois considera o homem livre para torná-lo servo de determinações e imperativos. O
livre arbítrio, posto pela moral e religião, surge do ressentimento em relação à natureza
e passa a implicar uma total rejeição das pulsões de vida o que inclui os instintos
próprios do homem. Nesta perspectiva, a liberdade tem um sentido coercitivo, é apenas
“liberdade para obedecer”.
Além disso, a aceitação dos imperativos da liberdade servil depende da ligação
que o homem faz de si com um mundo transcendente, ou seja, é necessária a crença em
um “além-mundo”, em um “mundo outro” que torne plausível a negação de toda esta
vida. Para que este conceito normativo de liberdade tenha sua força, é preciso que este
lugar exista, e, para tanto, acaba por ser inventado. Com isto, vida passa a ser o lugar de
expiar a culpa pelo passado em nome da redenção no futuro, da outra vida.
Como condição da admissão da liberdade nos termos morais acima esboçados,
os refinamentos dos conceitos de substância, de sujeito, e, de causalidade, acabam por
atribuir ao homem, em última instância, a culpa pelo que há de inexorável, ou inevitável
na existência, como o sofrimento e a morte. Guiado pelo ressentimento e o martírio de
sua consciência, a visão que o homem adestrado pela moral possui do mundo é de
rejeição, de revolta. Por tal revolta, ele acaba elegendo como inimigos a existência, o
9
mundo. Como se esse mundo, essa vida fossem apenas o lugar do sofrimento, da
expiação de uma suposta culpa.
Com estas idéias em mãos, detemo-nos na argumentação presente em
Genealogia da Moral
1
livro em que se esclarecem os mecanismos de passagem da
natureza, entendida como estado de liberdade primitivo, à cultura, tanto como forma de
socialização do homem como de domesticação. Domesticação que precisa operar a
moldagem da consciência pela imposição de costumes, pela fixação de certos
acontecimentos na memória. Inicialmente, foi preciso criar no homem, a capacidade de
cumprir promessas, de assumir contratos, para a vida em sociedade. A obediência acaba
sendo ensinada a este recente homem social. No entanto, ocorre também a inversão da
noção de obediência, que se desvia para a regra a que se obedece. Contudo, importa
considerar que regras e leis se impõem a partir de interesses específicos de
determinados grupos. As inversões que pretendemos examinar demonstram de que
forma determinados conceitos foram introduzidos como absolutos por um tipo de moral
que se quis pertinente até agora. Assim ocorre com os conceitos de culpa, pecado,
responsabilidade e liberdade.
É possível explicitar, associando à leitura da obra referida o estudo de passagens
de Crepúsculo dos Ídolos
2
, de Gaia Ciência
3
·, e de Ecce Homo
4
, o caráter ficcional ou
parcial da liberdade moral, bem como sua origem psicológica. A esse respeito, o
filósofo pretende determinar quem fala em liberdade e porque fala. Para tanto, assinala
como os ressentidos criaram o ideal ascético para dissimular fraqueza e impor
dominação sobre os fortes. A indagação sobre qual impulso determina esse ideal de
liberdade como forma de engano é levada às ultimas conseqüências no Crepúsculo dos
Ídolos, em conexão com o que o autor chama de quatro grandes erros.
Nietzsche caracteriza inicialmente a liberdade como um conceito vazio,
acrescentando que sua grande influência na tradição filosófica e religiosa ocorre porque
é em torno dele que se articula a tese de autonomia do homem. Para ele, trata-se de
1
NIETZSCHE, F. trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Cia das letras, 1998. Todas as referências a
essa obra serão indicadas pelas iniciais “GM”, seguidas da indicação de capítulo e parágrafo, e serão
feitas no corpo do texto
2
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo Cesar de Souza: Cia das Letras, 2006. Todas as
referências a esta obra serão feitas pelas iniciais “CI” seguidas do livro e do parágrafo.
3
NIETZSCHE, F. Trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2001.Todas as referências a
esta obra serão feitas pelas iniciais GC seguidas do parágrafo.
4
NIETZSCHE, F. Ecce Hommo, trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2008. As
extemporâneas, § 1. As referências a esta obra serão feitas pelas inicias “EH” seguidas do livro e
parágrafo.
10
entender os interesses que levaram à geração desta doutrina em determinadas
sociedades. O método genealógico será o caminho adequado para mostrar a procedência
do conceito de liberdade, para elucidar as razões pelas quais teve enorme importância na
prescrição e escolha da atitude dos homens diante da vida.
Quanto à questão moral, do mesmo modo pretende-se investigar as condições
históricas do surgimento dos valores morais. É preciso estabelecer um parâmetro para
avaliar os valores, ou seja, é preciso determinar o valor dos valores. Para Nietzsche é
importante conhecer os grupos que afirmam os valores morais e a forma pela qual se
expressam, pois uma comunhão entre a indagação da origem dos valores e os modos
como são transmitidos.
Nietzsche, tendo a moral como um texto a ser decifrado, traduz os ideais morais
a partir de suas motivações corporais, desvelando quais os afetos e interesses que se
compuseram para gerá-los. Nosso filósofo condena o tipo de mentira sobre a qual a
moral se edifica. Tais ideais tornaram turvas as investigações filosóficas, pois desde
sempre ignorou-se que tais conceitos surgiram a partir de interesses de determinados
grupos e sociedades, desviando a pesquisa em direção à sua justificação.
Essa miopia da filosofia, notadamente em questões morais, nunca tocou nas
feridas provocadas pela crença no caráter absoluto da verdade, passando apenas a
afirmá-lo ou justificá-lo. No entanto, a genealogia das consciências proposta por
Nietzsche demonstra as condições de formação de tais conceitos, afastando de uma vez
por todas a possibilidade de serem acatados incondicionalmente como valores
necessários e imutáveis.
A partir de tais distinções, pretendemos apresentar uma reelaboração da questão
da liberdade, transpondo-a para o campo estético. É sob esta perspectiva que a
liberdade pode ser um ponto de vista adotado pelos homens em seu caráter de criação,
como afirmação do mundo, como um sim sagrado à necessidade, e não como oposição a
ela. Como afirmação direta da existência, sem afetos que exigem a justificação da vida,
a liberdade passa a ser aliada do devir, mesmo em seu caráter mais extremo.
Para ordenar nossa compreensão do tema dividimos a pesquisa e a dissertação
em três partes. Em primeiro lugar, avançamos a investigação sobre o valor atribuído aos
valores morais, tendo como ponto de partida os valores bem e mal, cujo surgimento
evidencia seu enraizamento em formas particulares, e não universais, de situação diante
da existência. Recorrendo ao “senso histórico”, espécie de sexto sentido do homem
moderno Nietzsche demonstra que os valores tidos como absolutos, na realidade são
11
frutos do modo de valorar de determinados homens, em determinada época, que apenas
se destacaram, ou se difundiram mais que outras perspectivas de valoração. Para tanto,
demonstra a oposição entre o modo nobre e o modo vulgar de valorar.
Com isso, Nietzsche prossegue a investigação dos tipos de sociedades e também
de organismos responsáveis pela criação dos conceitos acatados pela moral tradicional,
além de descrever o modo como falam sobre tais conceitos e valores, quais discursos
utilizam a fim de os firmarem como instrumentos de coerção. Portanto, o primeiro
capítulo de nossa dissertação procura restituir as linhas principais da reconstrução
genealógica nietzschiana, demonstrando as condições sociais e fisiológicas de
surgimento dos valores morais tradicionais. A fim de suplementar essa abordagem do
tema, recorremos ao estudo dos chamados quatro grandes erros, presentes no
Crepúsculo dos Ídolos, para tentar decifrar a moral como o texto que é.
Após estabelecer quem são estes que falam em moral, e quais são seus modos
respectivos de tratá-la, podemos lançar-nos a relacionar os principais conceitos morais à
criação e difusão de um tipo de liberdade correlata à responsabilidade moral. Nesse
momento, dirigimos nossa atenção aos conceitos de culpa e castigo, demonstrando que
esses sentimentos derivam primeiramente de um impulso humano, que tende a firmar
comparações e medidas, patenteando a aplicação de castigos, sempre que alguém se
sinta prejudicado. Assim, retomamos a idéia de castigo aplicado àquele que não cumpre
um trato, ou promessa. Isto se liga ao modo como Nietzsche investiga o surgimento da
cultura, da vida social, diretamente relacionadas à instituição da promessa, possível a
partir do momento em que o homem passa a ser capaz de fixar certos acontecimentos na
memória, sendo, com isso, capaz de responder por si, mesmo que o tempo passe.
No entanto, em Genealogia da Moral, Nietzsche esclarece o aparecimento de
uma doença na humanidade provocada pela internalização dos instintos mais básicos,
como o de crueldade, e o direito de aplicação do castigo. A institucionalização do
direito ao castigo antes atribuído ao homem, de maneira individual, acaba corrompendo
a consciência, o que a torna instrumento de tortura no homem, pelo próprio homem.
Cria-se assim, a idéia de consciência correlata à alma, o espelho em que irão se refletir
os conceitos religiosos de pecado, de culpa, e salvação em um além mundo.
Por tudo isso, ainda o segundo capítulo de nossa dissertação, se dedica ao
surgimento da chamada má-consciência. Tentamos demonstrar de que forma o
ressentimento torna sofisticadas as idéias de sofrimento e culpa latentes no homem
socializado. Com o mesmo método genealógico, descortinam-se os refinamentos morais
12
e religiosos como explicação para o sofrimento que o homem sente diante dessa vida. A
manutenção das consciências doentes e manipuláveis vincula-se aos conceitos atrelados
aos “quatro erros”, pressupondo a existência de um sujeito autônomo, guiado por uma
vontade absolutamente livre. Somos impelidos a questionar a ciência e suas bases na
busca pela verdade, com isso, começam a ruir as edificações conceituais da metafísica, e
das demais formulações decorrentes dela.
Chegamos, nesta etapa, a tocar num dos assuntos mais polemizados por
Nietzsche: o niilismo. Temos de um lado, a falta de sentido percebida no mundo como
impulso para a própria ciência. No entanto, o mesmo motor que gera a necessidade da
ciência, acaba por colocá-la em questão. É esta falta de sentido que Nietzsche procura
identificar na modernidade.
Tendo então, os ideais esvaziados do sentido metafísico que antes os garantiam,
o homem pode mergulhar em profundo desencanto em relação à possibilidade de
conhecimento, e de uma vida feliz. Deste modo ocorre uma condenação da própria
existência, como algo que apenas provoca sofrimento e insatisfação
Percebemos, até este ponto, que num primeiro momento, Nietzsche empenha-se
em trabalhar com seu martelo, destruindo as bases dos ideais cristãos e morais de
felicidade e de forma de ser para o homem. Após a destruição, e a identificação do
niilismo como conseqüência do esvaziamento de sentido no mundo e na existência,
temos o terreno preparado, temos novamente o espaço necessário para a criação de
novas formas de avaliar, e de encarar a vida, inclusive em seu aspecto absurdo. No
terceiro capítulo da dissertação pretende-se abarcar a proposta de um modo afirmativo
de encarar a existência e celebrá-la novamente.
Somos direcionados, então, para certas virtudes, ou qualidades inerentes ao tipo
específico de homem capaz de assumir novamente a função de criador. Neste momento,
no entanto, a criação deve ser consciente, intencional, mesmo que de acordo com a
necessidade e o limite de ação humana.
Trata-se de honestidade consigo e com o mundo, significa saber-se jogador,
conhecer as regras, e, de acordo com elas, regalar-se com o perigo, enfrentar a falta de
sentido, e empenhar-se no exercício de perspectivas avaliadoras, que dão status artístico
à existência individual, sem com isso ir de encontro com a resistência social. Pela
perspectiva artística que Nietzsche inaugura, a disponibilidade criadora equivale
necessidade e liberdade, de forma que a criação, a celebração da função de doador de
13
sentido exalta a necessidade, pois em tal posição, sente-se plenamente de acordo com o
mundo, e com o devir a que tudo e todos estamos submetidos.
14
Capítulo I: O problema da liberdade moral: esclarecimentos acerca do caráter
ficcional dos valores morais.
As covas
“O bicho,
quando quer fugir dos outros,
faz um buraco na terra.
O homem,
Para fugir de si, fez um buraco no céu.”
(Mario Quintana)
Tendo em mente o que foi esboçado anteriormente, podemos identificar o
conceito de liberdade na obra de Nietzsche, mesmo que de forma não sistemática, como
um forte instrumento de poder, sendo, portanto, utilizado em seu caráter coercitivo e
normativo pelos moralistas e sacerdotes. Inicialmente, a liberdade apresenta-se inserida
nos discursos prescritivos, como a qualidade que se atribui ao homem para enquadrá-lo
em um sistema normativo para ser julgado e compensado ou castigado. O sacerdote, o
metafísico e o moralista usam este conceito para impô-lo ao ‘rebanho’, para exigir-lhe a
submissão às suas ordens, para fortalecer seu direito de ser juiz e carrasco dos fiéis.”
5
No entanto, sabe-se que a liberdade não é um conceito isolado, mas faz parte de
um corpus de noções que sustentam o controle moral e religioso. Para tanto,
procuraremos investigar a crítica nietzschiana às doutrinas moral e religiosa. Para essa
tarefa colocam-se em suspeita as condições de surgimento e proliferação dos conceitos
bem e mal, e responsabilidade, o que nos permite circunscrever o tipo de liberdade
possível quando acatados os valores tradicionais. Para tal intenção do nosso filósofo da
suspeita, é requerido um questionamento profundo sobre o valor dos valores essenciais
para as doutrinas de liberdade moral, religiosa e metafísica.
1.1 O sentido histórico e a crítica ao valor dos valores
Para apresentar uma análise sólida da liberdade, é necessário descobrir quem
fala e por que fala em liberdade, e como a criação do conceito atrela-se diretamente a
5
BARRENECHEA, M. A. Nietzsche e a Liberdade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000,
pp. 19-20
15
interesses concretos para sua utilização. Faz-se importante saber qual afeto gerou essa
noção para passar a questionar seu poder coercitivo. Para isso, Nietzsche demonstra que
a liberdade não é um ‘atributo espiritual’. Constitui um instrumento de poder sacerdotal,
que pode ser tornado ineficaz a partir da crítica genealógica.
O acatamento dos valores morais é um sintoma, segundo Nietzsche, da falta de
um questionamento dotado de senso histórico. Parte importante do método adotado por
Nietzsche para a investigação da moral é promovida por tal senso. Para explicitar a
relevância de tal senso para Nietzsche, lança-se mão da Segunda Consideração
Intempestiva
6
, escrito da juventude dedicado inteiramente a pensar as formas seguras de
conhecimento possíveis e determinadas relações que se estabelecem entre o homem e a
história, bem como pretende denunciar as formas prejudiciais destas relações. A
importância desta investigação primeiramente se evidencia por ser o modelo de sua
crítica à modernidade. Isto porque se trata de uma crítica que pretende dialogar com a
tradição de maneira diversa dos critérios modernos de investigação filosófica. Intenta
com seus escritos, encarar como mal entendidos todos os conceitos e certezas dos quais
se orgulham seus contemporâneos, por isso escreve com a intenção de que seus escritos
sejam extemporâneos.
A segunda extemporânea (1874) traz à luz o que há de perigoso,
de corrosivo e contaminador da vida em nossa maneira de fazer
ciência: a vida enferma desse desumanizado engenhoso e
maquinismo (...). A finalidade se perde, a cultura o meio, o
moderno cultivo da ciência, barbariza... Neste ensaio, o ‘sentido
histórico’ de que tanto se orgulha este século foi pela primeira
vez reconhecido como doença, como típico sinal de declínio.
7
Ser extemporâneo, para Nietzsche significa, mais que estar contra o seu tempo,
pensar sobre o seu tempo a favor do tempo futuro. Marton
8
aponta dois pontos
fundamentais das extemporâneas de Nietzsche: em primeiro lugar o combate, e em
segundo a distância. Sobre este último aspecto, faremos esclarecimentos mais precisos
ao longo de nossa dissertação.
Quanto à idéia de combate, no caso da segunda extemporânea, as “armas” de
Nietzsche estão apontadas para a falta de história na filosofia, e para a necessidade de se
apurar o senso histórico dos filósofos, e denuncia ao mesmo tempo o excesso de história
6
NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
7
EH, As extemporâneas, § 1.
8
Marton, Scarlet. Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. 2ª Ed. – São Paulo: Discurso
Editorial e Editora Inijuí, 2001.
16
que faz padecer o pensamento vigente no século XIX. Para nosso filósofo, o homem
necessita da história por ser ambicioso, por seu prazer em venerar e conservar, e ainda
por sofrer e sentir necessidade de libertação do passado. Em relação a estas três
necessidades, nomeia respectivos tipos de história, que aparecem a serviço de cada uma
das inclinações humanas, ou como formas de decadência. Segundo Marton, “É por não
sentir-se à vontade com o que ocorre a sua volta que pode ‘transtrocar perspectivas’; é
por causar-lhe estranheza o desenrolar dos acontecimentos que poderá vir a transvalorar
valores.”
9
Nietzsche ressalta uma relação com o passado que pode nos libertar dele a partir
de uma apropriação. A relação saudável com o passado indica o que Nietzsche chamou
de “força plástica”. Pontualmente por este motivo, Nietzsche toma como modelo a
cultura grega anterior à intervenção do racionalismo socrático, tanto pela capacidade de
criar uma forma de vida própria e original, quanto por saberem manter uma relação com
o passado que pudesse vir a tornar mais frutífero o futuro. Este recorte, no entanto, não
pretende eleger a civilização helênica como modelo a ser imitado na modernidade, mas,
pretende apresentar uma interpretação honesta que possa servir como uma espécie de
libertação do conhecimento da juventude de seu tempo. Busca, na história e na cultura
grega, elementos essenciais para o surgimento de uma configuração autêntica dos
costumes que contenha uma mistura de formas estrangeiras e o legado dos antepassados
de modo presente e de certa forma harmonioso.
Percebe-se, então, que a capacidade de apropriação do passado é elemento
central para o exercício da “força plástica”, requerida por uma vida saudável. Também a
permanência de tal saúde necessita de uma atmosfera a – histórica. Um posicionamento
a - histórico pressupõe o distanciamento e a suspensão do tempo. Neste intervalo
encontra-se o espaço necessário para a criação, ou seja, para que o novo possa surgir é
preciso que se coloquem em suspensão certos aspectos do passado. Quando um povo
faz uso deste instinto criador, volta-se para o futuro toda vez que o passado a impede de
crescer. Por essa necessidade de expandir-se, o homem que possui esta “força plástica”
pode amadurecer uma imagem de futuro de forma próspera. Para Nietzsche, o princípio
que une passado e futuro, que orienta o momento de crescer e promover a atmosfera
propícia para o amadurecimento de uma imagem para o futuro é a própria vida. A vida,
ela mesma, é, pois, instinto criador, que orienta e impele a expansão. Pois a vida exige
9
Marton, S. Extravagâncias, ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. p. 30.
17
um intervalo a-histórico para sua renovação, este intervalo é a própria condição de
criação. Por este mesmo ponto de vista, a cultura pode manifestar seu caráter estético,
modelando e ressignificando o texto originário da natureza.
O reconhecimento do caráter estético da própria necessidade promove a
representação a partir de um instinto de vivificação, mostrando-se como meio de elevar
e aperfeiçoar a natureza através da arte, da criação. Outra evidência importante para a
relevância do sentido histórico, em e para Nietzsche, está na tentativa de colocar a
história em seu lugar, utilizando-a a favor da experiência e não como enfraquecimento
da vida. Em Cavalcanti temos que:
“Segundo Andler, Nietzsche compreende a memória como forma
de adaptação que marcou a superioridade dos homens sobre os
animais. Se tal memória é um recurso da vida, o sentido histórico,
como forma da memória, pode orientar os impasses humanos em
sua existência presente. Tanto a história pode ser útil ao presente,
fortalecendo as crenças ou libertando a vida dos antigos obstáculos,
como pode impelir ao futuro a partir de seus ensinamentos.
(Andler, C. Nietzsche sa vie et sa pensée, 1958, vol. 1, pp.513-
516)”
10
Utilizando como parâmetro as noções de vantagem e desvantagem, Nietzsche
propõe três tipos de história e aponta seus benefícios e riscos: a história monumental, a
história antiquária e a história crítica, e aponta as consequências de cada uma delas para
prosperidade ou degeneração de uma civilização.
Um dos tipos de história mencionado na Segunda Extemporânea é a história
monumental: a história dos gloriosos momentos do passado, em que para Nietzsche está
fundada a crença na humanidade:
“Que os grandes momentos na luta dos indivíduos formem uma
corrente, que como uma cadeia de montanhas ligue a espécie
humana através dos milênios, que para mim, o fato de o ápice de
um momento já muito passado esteja vivo, claro e grandioso
este é o pensamento fundamental de uma crença em uma
humanidade, pensamento que se expressa pela exigência de uma
história monumental.”
11
10
CAVALCANTI, Anna Hartmann. Nietzsche e a história. In: “O que nos faz pensar”, Cadernos do
Departamento de Filosofia da PUC-RJ, Rio de Janeiro, 1989. p. 31.
11
NIETZSCHE, F. Segunda Consideração Intempestiva. p 19.
18
Tal tipo de história marca grandes eventos e os mantêm vivos na memória do
presente. Diz respeito, por isso, ao homem ativo e poderoso um tipo de homem que
não considera o passado um tesouro intocável. A história monumental pode estar a
favor da vida, quando percebida como força de transformação da práxis no presente,
permitindo que se vislumbre uma forma de vida mais elevada. A história monumental é
útil àquele que deve entrar em batalha grandiosa, que encontra inspiração em grandes
feitos passados, pois é uma forma de mitificação do passado, que procura enaltecer tudo
o que de grandioso nele. A utilização positiva da história monumental é o
encorajamento, pois aproxima uma suposta necessidade atual de um grande feito do
passado.
Contrário a esta possibilidade de utilização positiva da história monumental está
o uso do passado como forma de comparação com o futuro. Esta comparação
enfraquece a diversidade de motivos que engendram um acontecimento,
desconsiderando-se assim as causas. Ao retirar as relações entre causa e efeito, elimina-
se a qualidade que possui a história de não se repetir em meio ao “jogo de dados do
acaso”.
O risco da má utilização da história monumental está em tornar eterno todo ato
grandioso. A partir daí, tudo o que não é considerado grandioso pode impedir de viver
aquilo que seria grandioso.
De maneira saudável, a arte torna-se um instrumento para transformar este tipo
de história em supra-histórica, isto é, que pode servir para sofisticar as ões em favor
da vida. Por outro lado, lutar contra este caráter de aprendizado da história monumental,
impede que a arte se torne monumental, não deixando, segundo as palavras de
Nietzsche, que o monumental venha à tona. Segundo Foucault
12
esta é uma tentativa de
colocar, no presente, as máscaras do passado, eliminando a relação causal existente na
história enquanto devir. É desvantajosa, portanto, sempre que desvalorizar o novo por
comparação com as ações do passado tornadas “monumentos”.
a história antiquária ou tradicionalista, como o próprio termo sugere, é aquela
que mantém viva, preserva e venera as experiências de gerações passadas a fim de que
as gerações futuras tomem conhecimento dessas ações, de modo que tem também a
função de manter os momentos de glória, os momentos de atividade criativa do passado.
Por essa perspectiva a história tradicionalista está subordinada à história monumental.
12
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979
19
Pode, então, servir à vida na mesma medida em que conecta as gerações aos seus
hábitos e condições originais. Valoriza o que de familiar, de íntimo na cultura. É útil
no sentido de manter uma civilização em seu lugar de origem, pois valoriza esse lugar.
É a história que se utiliza de um conservadorismo, para imprimir valor à singularidade
de uma cultura, de determinada civilização. Sempre que as regras da tradição são
preservadas e repetidas participamos da história tradicionalista. O conservadorismo, em
certa dose pode ser útil, se estiver a favor de uma força afirmadora, mas em excesso
pode repelir de forma radical tudo o que é novo, estrangeiro. Em excesso, reage
veementemente contra o que poderia se manifestar como forma de criação que possa
prestar auxílio na realização de atos no presente. Este tipo de história pode, portanto,
levar um povo a dissolver seu passado em conhecimento, de maneira abstrata. A
tradição pode tornar-se uma chave essencial para a criação do futuro, desde que não seja
uma forma de conservação da vida, e sim de geração. O excesso de veneração à tradição
pode ameaçar a força criativa, conquistadora que se venera no passado, invalidando com
isso, qualquer possibilidade de que se acrescente algo de grandioso no futuro. Ficam
garantidas apenas a conservação e cristalização do passado.
A história crítica, por sua vez, surge como reação a tais momentos que se
cristalizam e impedem a insurgência do novo. Age de tempos em tempos, sempre que se
fizer necessária, sempre que o passado aparecer como obstáculo para a vida e para a
reorganização da cultura, pois, conforme dito anteriormente, além da ambição, do
prazer em venerar e conservar, o homem precisa também em determinados momentos,
libertar-se do passado. Essa libertação é propiciada pela destruição do passado, sempre
que ele aparecer como empecilho ao futuro. Transforma, de certo modo, todo o passado
conservado novamente em monumento, devolvendo e potencializando o instinto criador
na cultura. Sua utilidade está em destruir o passado, projetando no futuro uma idéia de
passado desejável. Por esse aspecto, impele a ação criadora, pois se utiliza do
esquecimento e opera pela reformulação do passado. A história crítica, em sua
configuração nociva, pode promover o rompimento total com a tradição, o que acarreta
uma ruptura das raízes, até que não se possa mais ultrapassar ou retomar a grandeza do
passado nem mesmo seu legado precioso de exuberância e vigor aventureiro úteis para a
vida. Nota-se então, como a lembrança, ou seu excesso pode representar uma doença
pela perspectiva histórica. Pode-se notar, mesmo nesse escrito da juventude, a atenção
que Nietzsche dedica-se a pensar as relações entre esquecimento e memória, e como
podem ser vantajosas ou nocivas à vida em seu aspecto criador. Em outras obras, como
20
Genealogia da Moral e Crepúsculo dos Ídolos e Aurora
13
, os temas serão desenvolvidos
e aliados à sua tarefa crítica.
Por um lado, o esquecimento é ferramenta importante para a manutenção da
saúde do homem e de um povo. Deve, no entanto ser suspenso sempre que servir para
esconder a gama de injustiças operadas na história:
Trata-se sempre de um processo muito perigoso, a saber, muito
perigoso para a própria vida: e homens ou épocas, que servem desta
maneira à vida, ao julgarem e aniquilarem um passado, são sempre
homens e épocas perigosos e arriscados.
14
Em seu aspecto desvantajoso, a história crítica pode criar a ilusão de que o
presente está imune aos erros ou mal entendidos do passado. Segundo Guéron,
A história crítica em excesso, no entanto, pode ser também
sintoma dessa época carregada de erudição, carregada, de uma
forma geral, de um excesso de história, e que constitui uma das
grandes críticas que Nietzsche faz ao século XIX, à ciência, à
ciência da história em particular e também à filosofia.
15
Para tanto, deve-se viver o instante, circunscrever esse horizonte e esquecer a
história tal como concebida pelos historiadores racionalistas ou teleológicos, agindo
como o animal que se esquece de um fato no instante seguinte. Para tais historiadores, a
racionalidade a todo custo deve ser a direção para o conhecimento seguro, a ciência,
desta forma, é colocada em nome do progresso e impulsionada pelo valor superior da
objetividade. Com isto, pretende-se julgar os sentidos supostamente existentes por trás
de todo acontecimento. Com esta crença na racionalidade a todo custo, o homem julga-
se tanto mais justo quanto mais objetivo e, portanto superior aos seus antepassados. Tal
objetividade exacerbada, tenta tornar estáticas a vida e a história, a fim de subordiná-las
à razão e à objetividade. É nestes termos que crítica de Nietzsche, enquanto
extemporâneo, se direciona ao excesso de história de sua época. Para Fernandes,
Esta perspectiva, somente, seria capaz de expor, de trazer à luz o
sentido mesmo do historicismo que vigia nos meios acadêmicos
no final do século XIX, pois então a história tinha se radicalizado
a ponto de pretender ser o sentido mais fundamental de toda
realidade e considerava que todo real, além de ser condicionado
13
NIETZSCHE, F. Aurora. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2004. Todas as
referências a esta obra serão feitas por “A” seguida do número do livro e parágrafo.
14
Nietzsche, F. Segunda Consideração Intempestiva, p. 30
15
GUÉRON, R. Como Nietzsche compreende “história” e a descrição do “século da história”, in A
fidelidade à terra, arte natureza e política. Assim falou Nietzsche IV. p. 131.
21
pela vigência do devir em seu nível de natureza, era
condicionado, no seu conhecimento e acesso ao homem, pelas
condições históricas da própria humanidade que o conhecia. Toda
realização humana era relativizada pelo devir constante das
circunstâncias históricas que a condicionavam e nas quais
somente tinham um sentido.
16
No entanto, a possibilidade de conhecimento se distancia quanto mais tentamos
estancar o movimento, condicionando todos os acontecimentos. Na modernidade, o
domínio a natureza pela racionalidade se em nome da objetividade. É com o artifício
da razão acima de tudo que o homem moderno pretende dominar a natureza. Não há, no
entanto, como formar cultura sem qualquer forma de apropriação e de transformação da
natureza. A memória serve para lembrar o homem das regras úteis a esta apropriação. O
esquecimento, entretanto, faz com que a consciência se desenvolva sem excesso de
memória permitindo inclusive o aprimoramento dos procedimentos empregados.
Para explicar tal relação do homem com a memória e o esquecimento Nietzsche
afirma: “Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como creem os
superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido...”.
17
O
esquecimento, porém, pode também ser encarado como reativo, pois pode se estabelecer
como verdade a partir da aceitação de ilusões, o que torna o homem socializado e
domesticado quanto aos seus instintos mais básicos. Para despertar uma suscetibilidade,
imposta à força nos processos culturais, uma disposição para a identidade com o outro,
o esquecimento deve se mostrar como imprescindível e passivo diante da necessidade
de que os valores morais sejam totalmente absorvidos e acatados sem ressalvas.
Temos, no entanto, no processo genealógico, uma perspectiva do esquecimento
enquanto força ativa, que pode ser a forma de superação dos efeitos causados pela
instituição de um tipo de memória, causadora do ressentimento, também cultivada no
homem. Nestes termos, o esquecer é uma força ativa que decide fechar temporariamente
as portas e janelas da consciência, a fim de que tal ou tal evento não penetre no
organismo de forma perturbadora, o que tornaria a consciência reativa e ressentida. Se,
por um lado, no tipo fraco, o esquecimento aparece com este caráter inercial, como um
sintoma de rebanho, por outro, no tipo forte, “o esquecimento se expressa enquanto uma
16
FERNADES, Marcos. O Nascimento da Tragédia a partir da Segunda consideração intempestiva de
Nietzsche: a inauguração de um novo sentido de história. Revista trágica primeiro semestre de 2008. nº1,
pp 61.
17
GM, Primeira Dissertação §1.
22
força inibidora ativa que permite ao homem viver o instante presente”
18
. O
esquecimento pode ser tomado como um mecanismo de saúde, sendo necessário no
encontro com o novo.
Tais indagações a respeito da história estendem-se à crítica nietzschiana à moral,
que, para nosso filósofo, as investigações acerca da moral não foram capazes de
questionar, de maneira satisfatória, os erros cometidos na interpretação dos valores
morais e seus desdobramentos ao longo do processo histórico no qual se
desenvolveram.
Segundo Foucault as investigações a respeito da história aparecem como uma
tentativa de esconder o passado e estancar o movimento.
“Fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do
conhecimento não será, portanto, partir em busca de sua "origem",
negligenciando como inacessíveis todos os episódios da história;
será, ao contrário, se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos
começos; prestar uma atenção escrupulosa à sua derrisória
maldade; esperar vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, com o
rosto do outro; não ter pudor de ir procurá-las lá onde elas estão.
(...) O genealogista necessita da história para conjurar a quimera da
origem, um pouco como o bom filósofo necessita do médico para
conjurar a sombra da alma. É preciso saber reconhecer os
acontecimentos da história, seus abalos, suas surpresas, as
vacilantes vitórias, as derrotas mal digeridas, que dão conta dos
atavismos e das hereditariedades; da mesma forma que é preciso
saber diagnosticar as doenças do corpo, os estados de fraqueza e de
energia, suas rachaduras e suas resistências para avaliar o que é um
discurso filosófico. A história, com suas intensidades, seus
desfalecimentos, seus furores secretos, suas grandes agitações
febris como suas síncopes, é o próprio corpo do devir.
19
18
Idem, ibidem.
19
Idem, Ibidem, pp. 15-33.
23
1.2 Crepúsculo dos Ídolos: os quatro grandes erros
Os imperativos morais e religiosos baseados principalmente na crença irrestrita no
sujeito como causa absoluta podem ser apontados como responsáveis pelo medo
introduzido no homem. O medo, posteriormente à criação da memória, coloca-se como
motor das ações humanas. Para invalidar os imperativos morais Nietzsche investiga as
bases da formulação das qualidades atribuídas ao sujeito, e a liberdade que se mostra
como possibilidade para tal formulação de homem. Desvelando os verdadeiros afetos e
interesses que geraram os ideais morais, nosso filósofo acaba por condenar o tipo de
mentira sobre a qual a moral se edifica.
A este respeito, a crítica ao valor dos valores, no prólogo de Aurora, aparece
como tema de ataque para a investigação nietzschiana acerca da moral. Com base no
método genealógico, é possível apontar “quem fala”, que tipos de organismo
engendraram as interpretações dos valores. A genealogia inclui na conta as forças, os
instintos e motivos fisiológicos subjacentes à moral. Tal tarefa é protagonizada pelo
filósofo que, na figura da toupeira, encontra seu método, para “descer às profundezas”,
“cavar e solapar” os conceitos morais. Por outro lado, a tarefa que se impõe é de
também determinar “como falam” estes que dizem compreender de tal forma a conduta
humana. Esta é tarefa do filólogo, que se dispõe a “ler bem”, “com profundidade”, ser
capaz de desvendar as armadilhas da linguagem, empregadas para a interpretação moral
da liberdade.
20
Partindo da idéia de que, para a moral, livre é aquele que age de acordo com a
própria vontade, esta é vista como uma faculdade do sujeito para agir livremente de
forma independente. Com tal constatação, somos impelidos a investigar as noções de
sujeito, substância, causas e efeitos, presentes, de forma clara, nos quatro grandes erros
formulados no Crepúsculo dos Ídolos. De forma direta, o filósofo apresenta os motivos
que levaram o homem a viver uma vida pautada pela negação dos instintos, a uma
liberdade entendida pelo sentido negativo, ou seja, a liberdade que pressupõe a total
responsabilidade do agente, para com isso poder puni-lo caso tenha agido de modo
inesperado ou não recomendado pela moral.
20
cf. A, prólogo §1
24
A formulação negativa da liberdade limita-se apenas a questionar a liberdade
moral, pois está subordinada aos quatro grandes erros. Estes erros enunciam as
possíveis condições que favoreceram a imposição e submissão à pseudoliberdade,
construída pela tradição moral, metafísica e religiosa. As interpretações da tradição
moral supõem que o homem se conhece de modo claro e absoluto e, da mesma forma,
compreende as ações dos outros. Por tal interpretação, todos os processos e movimentos
interiores que precedem uma ação poderiam ser calculados facilmente. O agente moral
seria portador de autonomia para realizar qualquer ação, sendo, portanto, livre,
responsável pelas conseqüências de sua conduta. A moral pressupõe que qualquer
homem tem conhecimento pleno de como deve agir e de quais meios dispõe pra isso. A
idéia de universalidade presente na moral é determinada por uma pretensa transparência
dos atos próprios e alheios. A unidade e a transparência interiores que se manifestam no
agente moral implicam numa série de problemas para a compreensão da conduta
humana. Por isso, surge a necessidade de uma crítica que se estenda à noção de sujeito
enquanto possuidor de identidade interna causadora das ações. Para tanto,
concentraremos nossa atenção na passagem referida de Crepúsculo dos Ídolos na qual o
filósofo condensa sua reflexão sobre o ponto.
O primeiro dos erros tratados por Nietzsche diz respeito à confusão entre causa
e conseqüência. Este erro, para o nosso filósofo, leva o nome de religião e moral.
Isto porque a moral e a religião baseiam-se em imperativos, criam juízos para a
imposição de certas ações. Os juízos morais, porém, apenas “fabulam” comentários
superficiais sobre a ação instintiva que se opera como impulso da conduta, pois a
compreensão interior dos mecanismos presentes no agente permanece intocada. Como
exemplo da confusão de causa e conseqüência presente na doutrina moral, Nietzsche
critica a idéia de felicidade como efeito da virtude: propõe que a virtude seja efeito da
felicidade, não o oposto como querem os imperativos morais e cristãos. O “tu deves agir
assim para ser feliz” é a afirmação do imperativo de que a virtude encaminha para a
felicidade. No entanto, para Nietzsche o sujeito carrega uma ordem manifesta
fisiologicamente como impulso para a ação, para a relação com coisas e pessoas. Assim,
a virtude de um homem é efeito de sua felicidade.
Do mesmo modo os imperativos morais afirmam que o vício e o luxo são causas
da ruína, mas, pela perspectiva da “transvaloração dos valores” nietzschiana, a ruína dos
instintos leva ao vício e ao luxo. Assim, um erro, ou a própria ruína de uma estirpe, em
25
qualquer sentido, é conseqüência da degeneração dos instintos. O erro já é o próprio fim
e não o início de uma degeneração. Ocorre quando não se tem mais segurança de
instinto, quando não se reconhece uma precariedade fisiológica que se manifesta
anteriormente ao erro. O erro é, portanto, uma forma de degeneração da vontade. Com
isso, Nietzsche aproxima a idéia de erro ao “ruim. O “bom”, por conseguinte, seria
instinto gerador da idéia oposta de “ruim”. “Tudo bom é instinto e, portanto, leve,
necessário, livre. O esforço é uma objeção, o deus se diferencia tipicamente do herói (na
minha linguagem: pés ligeiros são o primeiro atributo da divindade).
21
. Demonstra-se
desta forma o primeiro dos erros apontados por Nietzsche: o erro da confusão entre
causa e conseqüência.
Estreitamente ligado ao primeiro dos erros, temos a crença na precisão dos
cálculos operados para determinar a causalidade. Os homens acreditam que conhecem a
causa de algo a partir de fatos interiores, que colocam a “vontade”, o espírito” e,
posteriormente, “o sujeito” como causa. Esta certeza em relação à vontade como causa
primeira da ação, configura-se como o segundo dos erros aquele que atribui
causalidade, ou melhor, falsa causalidade. Este erro ocorre apenas quando a causalidade
da vontade aparece como um dado afirmado, ou seja, quando se tem a completa
ilusão de que a força humana tem o poder de estancar a mobilidade do devir. Deste
modo, o espírito, como causa, é confundido com realidade, e torna-se ainda a medida de
todas as coisas — “é denominado Deus”
22
. Fazendo uso do método filológico,
Nietzsche pretende demonstrar que os conceitos de “alma”, “espírito”, “sujeito”, “eu”
não passam de excessos gramaticais. Tais conceitos apresentam uma equivalência, pois
todos eles remeteriam a um pretenso substrato atemporal do homem. Eles surgem como
uma espécie de comandante inteligente das atividades orgânicas, pensando no sujeito
como um ser liberto das forças do mundo e de sua coerção. Posteriormente, os conceitos
de “alma” e “espírito”, por exemplo, impõem-se como prova da suposta origem
superior, incorpórea do ser humano, desligando o homem de suas raízes na terra,
enquanto animal, tentando torná-lo divino, supraterreno. Para Nietzsche, segundo
Barrenechea:
“O homem está situado no mesmo patamar que os outros
integrantes da natureza, não nada que demonstre sua
superioridade, tampouco motivos para atribuir-lhe uma
21
CI, os quatro grandes erros, §2.
22
Idem, Ibidem, §3
26
‘essência’ eterna, nascida no ‘outro mundo’. Assim, os conceitos de
alma e espírito representam apenas um excesso verbal, uma fala
arbitrária que deve ser contestada categoricamente. Tais noções
podem ser aproveitadas como metáforas – como usos da linguagem
consagrados pelo hábito, como uma forma convencional e figurada
de ser referir à conduta humana. O espírito é ‘apenas uma imagem
poética’.”
23
De acordo com o comentador, Nietzsche nega que a “unidade interna” do
homem possa ser representada pelos conceitos de consciência ou razão, pois apresentam
uma estabilidade, e são utilizados a fim de expressar a luta psíquica que se opera
interiormente no homem. Luta esta que se mostra alheia a qualquer tipo de unificação.
Para Nietzsche, os processos conscientes ou racionais, operam segundo
exigências de um devir orgânico que é protagonista efetivo da produção dos signos da
linguagem e da própria ação. Ainda segundo Barrenechea:
“As noções de consciência ou razão, na interpretação nietzschiana,
não afirmam qualquer identidade subjetiva, aludem à totalidade
corporal, ao jogo coletivo de instintos em confronto. Assim quando
falamos de consciência’ ou de ‘razão’ estamos aludindo a forças
orgânicas que chegam à representação por meio de signos.
24
Percebemos, mais uma vez, que Nietzsche opera a investigação dos valores
postos para balizar a ação moral a partir de inversões nos modos habituais de valorar as
ações e, portanto, de pensar o homem. Ainda no que concerne às indagações sobre as
características da noção de sujeito em Nietzsche, Barrenechea sugere a investigação das
idéias de espontaneidade e razão, subentendidas na noção de sujeito a que se dirige a
crítica. Segundo a hipótese proposta por ele, estas duas idéias adjacentes à noção moral
de sujeito têm papel privilegiado na investigação nietzschiana. Diferencia, para tanto, o
“ser”, do sujeito gramatical, do “ser” do sujeito humano e aponta uma relação entre as
duas concepções. Nas palavras de Barrenechea, esse sujeito antropomórfico, entendido
como uma presença permanente, uma ‘entidade’ capaz de agir no mundo e ser
responsável pelos eventos” mostra-se como importante alvo de análise para a
determinação da origem da idéia de identidade pessoal atemporal atribuída ao sujeito, a
despeito da diversidade de estados e manifestações presentes na experiência cotidiana
25
.
Nietzsche demonstra que há uma tentativa de reorganização interior por parte dos
homens para sanar suas necessidade práticas e prever ações. Quando Nietzsche afirma
23
Barrenechea, M. Nietzsche e a liberdade. p 54
24
Idem, Ibidem
25
Idem, Ibidem
27
uma unidade essencial, refere-se a uma “identidade subjetiva na multiplicidade dos
processos vivenciados”. Mas, “a repetição e frequência de determinados estados levam-
no a acreditar que um fundo comum, uma unidade que organiza e sustenta a
diversidade anímica.”
26
Para Nietzsche, existe a crença em uma unidade que abrangeria todos os
diversos acontecimentos e momentos vividos. Tal crença promove um sentimento de
realidade”, que é apenas fruto da repetição de procedimentos e estados análogos, o que
“leva a substancializar a suposta unidade subjetiva. Esta ‘entificação’ do ‘mundo
interno’ tem como decorrência a crença no sujeito ou na ‘substância-eu’”
27
. Por esta
vertente de interpretação, a identidade do ‘eu’ aparece como característica fundamental
do sujeito. Manter uma identidade do sujeito em meio a diferentes acontecimentos, ou
sua permanência ao longo do tempo, cria a ilusão de que ele seja algo permanente e
único. O sujeito possui também características de espontaneidade e finalidade, pois,
sente e age no mundo. E mesmo que o mundo lhe pareça hostil, com a crença na
vontade humana como principal causadora das ações, o homem se sente portador de
uma vontade livre. Por esta via, o sujeito mostra-se como “agente livre”, agindo
segundo suas próprias intenções e finalidades, sendo então o ator e o responsável por
seus atos. É nesta suposta função da vontade enquanto produtora das ações que se fixa a
liberdade moral. No entanto, Nietzsche aponta-nos este erro, esta confusão,
esclarecendo como a vontade, como causa, surge a partir de uma superstição, de uma
crença fantasiosa e reconfortante para alguns tipos de consciência. Deste modo,
desmitifica-se também a crença no livre-arbítrio, conceito que aparece como
consequência do acatamento dos três primeiros grandes erros como parâmetros para
pensar o homem, a conduta humana e suas possibilidades. Tal autonomia da vontade,
portanto, não passa de uma mentira, pois, ignora os inúmeros processos orgânicos e
inorgânicos que operam na produção da vontade, do desejo. Em outras palavras –
desejo, vontade, são afetos, gerados por estados fisiológicos e psicológicos que os
determinam, ou seja, motivos ou finalidades são produtos de uma ‘totalidade orgânica’.
Ao contrário de uma identidade anímica, o homem possui uma unidade fisiológica.
Essa crença em questões de causalidade estende-se à identificação de
sentimentos pessoais, nos quais também operam, de maneira equivocada, os elementos
tidos como pertinentes ao sujeito. Deste modo, defrontamo-nos com o terceiro dos erros
26
Idem, Ibidem.
27
Idem, Ibidem.
28
apontados por Nietzsche: erro que comete aquele que pretende encontrar razões
fundantes do modo como nos sentimos. Isto porque se admite estar bem ou mal após
tornar-se consciente desses estados, ou seja, se lhes é dada uma interpretação causal, um
motivo, que, por fim, afasta qualquer investigação da causa real, conforme citado
anteriormente. Este impulso causal é, por sua vez, condicionado e provocado pelo
medo, o que implica na afirmação de que todo erro é covardia. Por conseguinte, até a
atitude de remontar, decifrar os fatos, tem por ambição tranqüilizar e satisfazer, pois
alguma ou qualquer explicação parece ser melhor do que nenhuma. É o medo o motivo
que nos leva a excluir o novo, o não vivido. Para explicar qualquer evento, como, por
exemplo, sentimentos agradáveis ou desagradáveis, lançamos mão de uma seleção de
explicações privilegiadas, as quais eliminam a possibilidade de sentir o que é novo ou
estranho. É justamente, na tentativa de explicar o porquê de nos sentirmos de tal ou tal
maneira que a moral e a religião inscrevem-se inteiramente na psicologia do erro.
Nesta direção, ainda segundo Nietzsche, até uma boa digestão pode ser
confundida com a confiança em Deus. Em cada caso, são confundidos efeito e causa, ou
a verdade é confundida com o efeito do que se acredita como verdadeiro, ou até mesmo,
um estado de consciência confunde-se com a causalidade deste estado. Há uma tentativa
de organizar a dinâmica do devir aos moldes de uma racionalidade quase mecânica, com
o que se cria um universo ficcional de permanências e identidades para a compreensão
simplificada das coisas por parte da inteligência humana. Tal inteligência sempre
investiga tendo em mente uma causa eficiente, um agente e um autor, um culpado.
Procura também encontrar motivos e intenções. Nietzsche assinala que este
comportamento diante do desconhecido é um sintoma de medo, pelo recurso a uma
espécie de instinto causal, somos impelidos a acreditar num motivo, numa causa
qualquer para um evento novo. Esta explicação, quando acatada, promove um
sentimento de poder, de apropriação daquilo que antes nos afligia.
E, finalmente, como consequência desastrosa e útil para a obediência, o quarto
grande erro o erro do livre arbítrio: “(...) o mais famigerado artifício dos teólogos que
há, com o objetivo de fazer a humanidade responsável no sentido deles, isto é, torná-la
deles dependente (...)”
28
. Se os homens foram considerados livres para serem julgados e
punidos, a consequência é que toda a ação tem de ser desejada e temos de nos tornar
conscientes dela. A intencionalidade é mostrada como uma superfície que reveste as
28
CI, Os Quatro Grandes Erros, § 7
29
ações humanas é apenas sintoma ou representação das intenções. A crença no livre-
arbítrio, ou em uma liberdade subjetiva em termos morais, depende do acatamento da
capacidade causal da vontade. Esta crença é derivada do prazer gerado pela sensação de
que se podem impor os desejos ao devir, tal como explicitados no terceiro dos erros.
Este prazer é devido à “superação” do medo diante do desconhecido, o qual, neste
aspecto, configura-se como a complexidade das forças profundas que engendram
motivos e acontecimentos. O que Nietzsche pretende combater, então, para com isso
derrubar os ideais de liberdade moral, são os fundamentos das crenças que acabam por
simplificar a relação do homem com as forças terrestres, de modo que elas possam ser
totalmente conhecidas e colocadas sob responsabilidade humana. Mesmo sendo uma
ficção, o caráter causal da intenção do sujeito mostra-se, até agora, como instrumento de
persuasão e imposição de normas morais.
Podemos entrever na elucidação dos quatro grandes erros, que todo
conhecimento vem, antes de tudo, carregado de impulsos e afetos próprios. Esta
afirmação caracteriza a idéia de perspectiva como caráter fundamental da filosofia
nietzschiana. Torna-se claro, até este ponto, de que forma os quatro grandes erros
expostos por Nietzsche, aplicam-se ao valor comum de pensar e agir conforme os ideais
enganadores de busca pela verdade, à tentativa de imortalizar a alma, e à idéia de
liberdade possível para o homem, em detrimento de seus instintos.
“Não se deve coisificar erroneamente a ‘causa’ e ‘efeito’, como
fazem os pesquisadores da natureza (e quem, assim como eles,
atualmente ‘naturaliza’ no pensar –), conforme a tacanhez
mecanicista dominante, que faz espremer e sacudir a causa, até que
‘produza efeito’; deve-se utilizar a ‘causa’, ‘o efeito’, somente como
puros conceitos, isto é, como ficções convencionais para fins de
designação, de entendimento, não de explicação. No ‘em si’ não
existem laços causais’, ‘necessidade’, ‘não –liberdade psicológica’,
ali não segue ‘o efeito à causa’, não rege nenhuma lei’. Somos nós
apenas que criamos as causas, a sucessão, a reciprocidade, a
relatividade, a coação, o número, a lei, a liberdade, o motivo, a
finalidade; e ao introduzir e entremesclar nas coisas esse mundo de
signos como algo ‘em si’, agimos como sempre fizemos, ou seja,
mitologicamente.
29
Através da mentira, os moralistas e sacerdotes, edificam certezas e consciências.
Nietzsche critica esta forma de mentira. Condenar isto, num primeiro momento, pode
29
NIETZSCHE, F. Além de Bem e Mal,
§21
trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
Todas as referencias a esta obra serão feitas pelas iniciais ABM, seguidas do capitulo e parágrafo.
30
parecer contraditório com relação à apologia que Nietzsche faz da aparência da
falsidade. Para enfrentar a dificuldade, cabe colocar uma distinção feita por ele entre
“mentira sagrada” e “mentira de artistas”. A “mentira sagrada” afirma o além e propõe o
ideal ascético, a rejeição do mundo e a negação da vida e dos instintos, o que serve de
alimento para os tipos fracos e doentes. A “mentira de artista” celebra o jogo dos
impulsos vitais,
“é uma ficção exuberante, sintoma de força e saúde,
afirmadora do mundo e das pulsões vitais. A ficção
artística celebra o jogo pulsional, exprime a
contradição, a tragicidade de um mundo que se
esfacela sem cessar”
30
.
Em resumo, pode-se entender como verdadeiro em Nietzsche aquilo que afirma
a vida e, como falso, aquilo que a deprecia.
A “mentira de artista” é preferível, pois tem capacidade de propiciar a vida. a
“mentira sagrada” é questionável por negar e desprezar a vida. A partir desta
interpretação de verdadeiro e falso, Nietzsche apresenta a liberdade como
pseudoconceito uma mentira, uma imaginação tomada como instrumento pelos
“melhoradores da humanidade” para conduzi-la. Pode-se associar a mentira promovida
por tais “melhoradores da humanidade” a uma tendência presente em toda a tradição,
uma forte tendência dos filósofos, segundo Nietzsche: a reverência à verdade. Nietzsche
denomina essa tendência de “vontade de verdade”, que é a grande força motriz do
pensamento filosófico e científico tradicional. A “vontade de verdade impede que
aceitemos correr riscos, limita o alcance da investigação filosófica e científica. Para
Nietzsche, nesta etapa, cabe questionar o valor desta vontade. Para tanto, questiona-se
sobre a possibilidade desta ‘vontade de verdade’ nascer da vontade de engano, assim
como a ação desinteressada do egoísmo. Para explicitar o sentido desta pergunta,
recorremos a Além de Bem e Mal. Nesta obra, Nietzsche inaugura o capítulo primeiro
Dos Preconceitos dos Filósofos — com a seguinte afirmação:
“A vontade de verdade, que ainda nos fará correr não
poucos riscos, a célebre veracidade que até agora todos
os filósofos reverenciaram: que questões essa vontade de
verdade o nos colocou!(...) Que surpresa, se por fim
nos tornamos desconfiados, perdemos a paciência, e
impacientes nos afastamos? Se, com essa esfinge,
também nós aprendemos a questionar? Quem, realmente,
nos coloca questões? O que, em nós, aspira realmente ‘à
30
Barrenechea, M. Nietzsche e a Liberdade, p. 24
31
verdade’? – De fato, por longo tempo nos detivemos ante
a questão da origem dessa vontade – até afinal parar
completamente ante uma questão ainda mais
fundamental. Nos questionamos o valor dessa vontade.
Certo, ainda queremos a verdade: mas porque não, de
preferência, a inverdade? Ou a incerteza? Ou a
insciência? O problema do valor da verdade
apresentou-se a nossa frente ou fomos nós a nos
apresentar diante dele? Quem é Édipo no caso? Quem é a
esfinge?”
31
Por tal raciocínio, se a falsidade de um juízo não se mostra como objeção a ele,
percebe-se a utilidade deste juízo à conservação, como conceito de fachada e sem
qualquer traço de universalidade e veracidade absoluta. Acatar juízos falsos como
indispensáveis serve à inclinação básica de preservação da vida.
Com isto, abjurar os juízos falsos seria negar a vida. No entanto, arrostar-se a
perceber a inverdade como condição da própria existência é atirar-se na filosofia além
de bem e mal.
Com este mesmo mecanismo de disfarce da inverdade em verdade, a moral
também opera a fim de conservar um tipo de organismo, um tipo de homem presente na
espécie. Toda moral, é, então, ao mesmo tempo, forma de conservação de um
determinado tipo e aniquilamento de outro
32
. Disso, conclui-se que não pode haver uma
configuração de moral comum a todos os indivíduos, épocas e povos, que, assim
como a crença na verdade, a moral opera por uma função reguladora a partir do tipo que
domina e de seus interesses. Seja o tipo forte ou fraco, ele impõe sua valoração acerca
da moral, de forma nobre ou ressentida, seja por um impulso guerreiro, ativo de
dominação, seja por puro sentimento de vingança. Se tal modo de valoração não se
esclarece com honestidade, a tarefa da suspeita deixada pela modernidade ainda se
estende ao âmbito da verdade e, portanto, da moral, como foi esboçado anteriormente.
1.3 Genealogia da Moral. Primeira Dissertação: bem e mal como resultado de
avaliações particulares.
Pretende-se, como um próximo passo, restituir a análise dos valores dos
conceitos de bem e mal, a partir da leitura atenta de Genealogia da Moral.
31
ABM, § 1
32
Sobre a tipologia em Nietzsche, devidos esclarecimentos serão feitos ao longo de nossa dissertação.
32
Nesta obra podemos perceber a remontagem de um processo de aprisionamento
dos instintos humanos mais poderosos. Instintos estes que devem se manifestar, mesmo
que na crueldade contra si próprio, o que acaba por gerar a má-consciência, ou uma
consciência de culpa, convencendo o homem a atuar no mundo com base nos quatro
grandes erros. Então, cabe investigar em que organismos e solos seriam originados os
valores de bem e mal, tão caros a todo tipo de moral até então constituída, além de
esclarecer se são sinais de vitalidade e força ou de miséria e empobrecimento da vida.
Isto porque, segundo Nietzsche, mais importante do que “revolver hipóteses” é pensar o
próprio valor da moral, inclusive abordando as noções de “não egoísmo”, “compaixão”,
abnegação e sacrifício, tão idealizados ao longo da história a ponto de serem
reconhecidos como “valores em si”
33
. Acatando tais valores como se existissem em si
mesmos, promove-se a vida, tal como explicitada no Crepúsculo dos Ídolos:
Segunda tese. As características dadas ao ‘verdadeiro ser’ das coisas
são as características do não-ser, do nada constitui-se o mundo
verdadeiro a partir da contradição ao mundo real: um mundo
aparente, e, fato, na medida em que é apenas uma ilusão ótico-
moral.
34
Pensando a moral e seu valor enquanto sintomas de determinadas opções vitais,
é plausível concluir que se trata de doença e mal- entendido. Em seu caráter causal, a
moral aparece como veneno.
É para estes aspectos da moral que Nietzsche nos direciona. Reavaliando as
circunstâncias de seu surgimento e a atribuição de valores, questiona-se a respeito do
surgimento do conceito de ‘bom’. Conforme indicado anteriormente, Nietzsche
pretende pensar a moral a partir do exercício do sentido histórico. E, assim, denuncia a
forma precária de investigação operada até agora. O ponto de partida da Primeira
Dissertação de Genealogia da Moral, intitulada “‘Bom e mau’, ‘bom e ruim’”, é a
identificação de uma dupla origem dos juízos de bom e mau, e bom e ruim. Estas duas
origens estariam vinculadas à diferença nos modos de avaliação de dois tipos de homem
o nobre e o vulgar. Após notar a existência de dois modos de valoração divergentes,
percebemos duas tendências morais opostas.
Os procedimentos anteriores para investigar os juízos de valor morais, os
encaram sempre de maneira a - histórica, pois, de antemão, submeterem-se à
necessidade de simples justificação do que está posto. Nietzsche critica a
33
cf. GM, Prólogo § 5
34
CI, A Razão na Filosofia, § 6
33
superficialidade da avaliação utilitarista e propõe que a investigação genealógica se
encarregue de substituí-la. Ao tomar o que está estabelecido como objeto de confronto,
Nietzsche contesta a condição de criação da perspectiva utilitarista, restringindo seu
alcance. O filósofo pretende, de forma pontual, transpor as formulações morais adotadas
pelos ingleses que referem o juízo de bom às ações altruístas. Tais ações foram louvadas
e tornadas boas por aqueles a quem tais ações eram úteis. E, desta forma, as ações
altruístas cristalizaram-se como boas e tornaram-se hábito, mas a origem da avaliação se
perdera no esquecimento.
Pela percepção nietzschiana, se a origem do valor do juízo bom estivesse
vinculada à utilidade, não teria caído no esquecimento. Ao contrário, ter-se-ia fixado
ainda mais na memória, que, como motivo de cada ação cotidiana, agiria o impulso
de utilidade.
Todas as hipóteses, até então, são historicamente insustentáveis e se apresentam
como um contrassenso psicológico
35
. Sobre tal contrassenso, Azeredo diz:
“De fato, é um contrassenso supor que uma ação não egoísta e que,
portanto, vincula sua apreciação à utilidade para outrem possa
perder a utilidade e tornar-se boa em si pela transposição da análise
de benefícios para um sentimento do que é bom em si.”
36
Como alternativa de tematização do ponto, Nietzsche propõe que o juízo de bom
derivaria dos que se sentiam bons, em equivalência aos sentimentos de superioridade,
distinção, poder. O sentimento que brota em um tipo de homens que julgavam suas
ações como boas sem levar em conta sua utilidade, mas utilizando-as como ferramenta
de diferenciação de si em relação aos outros.
O juízo de bom, ademais, não vale em si. Vale apenas como postulado, e como
predicado do ser e do fazer nobres. Estes mesmos homens tinham o ruim para designar
o homem baixo, vulgar, como o contrário de si mesmos. O deslocamento do ruim para o
homem comum só ocorre pela oposição no modo de valorar.
Notamos claramente que uma vinculação entre o sentimento daquele que
avalia e o valor que este produz. O sentimento de poder do nobre origina-se de um
impulso interno, de um sentimento de diferença, que produz um lugar para a criação.
Nietzsche denomina este lugar como “pathos de distância”. A criação parte da
35
GM, Primeira Dissertação, § 3
36
Azeredo, Nietzsche e a dissolução da moral, 2 ed. – São Paulo: discurso editorial: Ijuí: editora Unijuí,
2003.p 58
34
interioridade que sente e produz. A exterioridade, em oposição, sofre e se modifica com
a ação produtora do impulso interior.
Em Azeredo, lemos que:
“Ora, caso se afirme que a avaliação se configura como expressão
de um sentimento interior de distância e superioridade, enfim, da
diferença com relação ao outro, ou aos outros, então,
consequentemente, não pode haver relação entre a ação e a
utilidade. Inclusive o estabelecimento dessa implicação, em
Nietzsche, fica determinado somente pelo instinto de rebanho, cuja
oposição diametral ao senhor se estabelece pela afirmação de um
sentimento de identidade e igualdade entre os homens. Sentimento
esse que, de um lado, cria uma distância intransponível com relação
ao senhor, e de outro, justifica a ligação do bom a ações não
egoístas favorecedoras da coletividade”.
37
O problema, identificado nas concepções inglesas, é valorar a partir da
coletividade. O tipo superior atribui valor de forma diferente. A moral de prescrições
igualitárias dissolve a singularidade na coletividade, conforme procede o modo vulgar
de avaliar, uma vez que não pondera com base no sentimento de diferença em relação
aos demais.
Nietzsche exemplifica o sentimento de superioridade do tipo nobre com a
origem da linguagem. Existe um sentimento de potência que gera, no senhor, o direito
de dar nomes aos acontecimentos. A posse do nome, de certa maneira, estende-se àquilo
que é nomeado. “Desse pathos de distância é que eles criaram para si o direito de criar
valores, cunhar nomes para valores”
38
Investigando etimologicamente, Nietzsche constata que a palavra “bom”, em
diversas línguas, deriva da palavra nobre. Designa o poder e o traço típico de caráter
que indicam o modo de valorar daqueles que avaliam a partir de si mesmos, do alto. É
para este traço de caráter que Nietzsche pretende chamar a atenção: a palavra que
designa nobre relaciona-se com o bom, o elevado, o verdadeiro, e, em contraposição a
esta conotação, está o mau, o escravo, o baixo, o mentiroso, o covarde. Nietzsche
demonstra-nos como uma preeminência política converte-se em preeminência espiritual,
e que se ocorre um desvio do modo de valorar, o responsável por esta transvaloração
negativa deve ser identificado. A mudança na via de interpretação interfere, pois, na
atribuição da qualidade às coisas.
37
Idem, Ibidem, p. 60.
38
GM, Primeira Dissertação, §2
35
Para uma explicação mais precisa do que seja o nobre e o escravo na obra
nietzschiana, parte-se da idéia de que nobre significa o ‘destacado’. Segundo Paschoal
39
,
duas características para o tipo nobre ‘genérico’ devem ser ressaltadas. Em primeiro
lugar, o sentimento de diferença em relação ao grupo, por seu “pathos de distância”. Em
segundo lugar, em decorrência deste “pathos de distância”, está o sentimento de ser o
sentido, a própria justificativa, a partir de que brota o sentimento do direito de dar
nomes as coisas, valores aos valores. Ainda por tal hierarquia, que confere ao nobre o
seu reconhecimento enquanto destacado acima dos demais, ocorre o reconhecimento
dos raros iguais e dos muitos que lhe são estranhos. Quanto a isso, nas palavras de
Paschoal:
“ele reconhece também seus iguais, tanto por sua ‘efetiva
semelhança em quantidade de força e medida de valor’ quanto pelo
fato de ‘pertencerem a um corpo’ (ABM,
§ 265). E estes
semelhantes movem-se entre si ‘com a mesma segurança de pudor
e delicado respeito que tem no trato consigo’. Neste grupo a própria
igualdade na convivência com a tensão, na ‘luta prolongada com
condições desfavoráveis essencialmente iguais’ (ABM § 262), que
torna este tipo duro cultivador de si, reservado e educador, é o que
possibilita a condição de igualdade e o respeito entre os pares”
40
Nobreza é sinônimo de vida dedicada, sempre disposta a superar a si mesma,
passar do que é para o que pode ser. Dessa forma, a vida nobre contrapõe-se à vida
vulgar, a qual se restringe a si mesma. A vida, quando condenada à imanência, torna a
qualquer ato daquele que vive apenas reação desesperada a fatores externos. Por isso
chamamos massa a esse modo de ser homem - não tanto por ser plebe, mas por ser
passivo. São os homens especiais, os nobres, os únicos ativos e não apenas reativos,
para os quais, viver é uma tensão permanente, um treinamento constante.
41
Contrário ao senso comum de toda a modernidade, a excelência nobre
caracteriza-se por um chamamento íntimo de ultrapassar uma norma que está além de si.
Constitui o servir com prazer a este poder, com a intenção de que as
consequências de seus atos sejam pessoalmente satisfatórias e que proporcionem uma
39
Paschoal, A., Nietzsche e a auto supressão da moral, Ijuí: Ed, Unijuí, 2009.
40
Idem, Ibidem, p. 132).
41
Ortega Y Gasset, José, Da Natureza Nobre e Da Natureza Vulgar in A Rebelião das Massas. Optamos
por tal pensador, para comprovar a plausibilidade do argumento nietzschiano, já que, no caso especifico
da obra citada, o autor não faz alusão aos conceitos nietzschianos. Acaba, a nosso ver, por patentear a
proposta nietzschiana, ao passo que a torna eficaz em qualquer contexto, em que se faça necessária a
investigação dos sentidos de nobreza e seus opostos. Defrontamo-nos com o autor, durante o processo da
pesquisa, tanto em leituras acadêmicas de teses e dissertações, quando em leituras despreocupadas das
obras de Julio Cortázar, de modo que, nos pareceu desnecessária a omissão de tal confronto.
36
repercussão exemplar e benéfica, em termos genéricos, para toda a comunidade. Porém,
tal benefício não possui um caráter utilitário, pois, diversamente, sua dimensão
primordial é ética. O nobre obedece a si mesmo ao passo que não se deixa tiranizar pela
fraqueza interior, ou seja, ainda que possa os comportar, a consciência e o
ressentimento não são pressupostos de sua ação.
Nos povos em que prevaleceu a visão aristocrática de mundo, havia uma relação
não conflituosa entre aristocracia e massa, pois predominava a noção de exemplaridade
entre as duas posições sociais. A capacidade de entusiasmar-se, de deixar-se arrebatar
por uma “perfeição” e de anuir a um paradigma ou modelo que derivasse de atos de
coragem física, moral ou de sagacidade intelectual, eram o cerne dos povos que
pertenciam a comunidades aristocráticas. O direito ao comando não se dava pela força
nem pela coação, mas pelo poder atrativo daquilo que estimulava eticamente os
indivíduos. Os direitos superiores são inerentes às qualidades da pessoa. O que, por
vezes, não se leva em conta, é que o verdadeiro nobre sabe e deve obedecer. Obedece,
sobretudo, a algo ou alguém além dele. Tem a intuição para pressentir que, neste caso,
obedecer é aproveitar a oportunidade para superar a si mesmo, na medida em que
compele a confrontar obstáculos e resistências. Sua força será posta à prova e,
independentemente de seu sucesso ou não, a própria experiência de uma vontade
radical, testada até os extremos de sua capacidade, é seu traço característico. É isto que
significa então vontade de potência
42
, vontade de ir além. Contrária à vontade de
potência” que se põe a serviço das forças reativas do tipo “escravo” -, para o nobre
significa ser magnânimo, esbanjar sua vitalidade. A partir disso, Nietzsche nos diz que a
própria vida, como combate, é motivo de contentamento. Destila um tipo de alegria -
a alegria do forte - que os antigos de uma forma geral consideravam como ideal de
beleza, ou seja, a beleza é sentida, é um afeto que provém de uma excelência que torna
fundamental o sentimento de plenitude. Mas esta plenitude é sentida com a sabedoria da
humildade - a humildade dos fortes isto é, ao mesmo tempo em que a alma nobre
nunca é complacente consigo mesma, nota-se que esta complacência provém de uma
fraqueza de espírito e não dos limites que devem ser respeitados, a complacência do
forte não exige nada além do que é humano.
42
Quanto a este conceito, temos em Paschoal que não se trata de algo provido de ser. “A vontade de
poder, entendida como ‘o fato mais elementar a partir do qual se produz um tornar, em atuar’, não remete
a qualquer ‘ser’ ou ‘tornar-se’. Ela ‘não é um ser, não é um tornar-se, mas um pathos’ (NIETSZCHE, F.
Fragmentos Póstumos, de 1887 e 1889, p.259)”. (Paschoal, A. Nietzsche e a autossupressão da moral, p.
48).
37
Com a afirmação anterior, temos que o “bom” remete a uma transformação
conceitual que deriva das idéias sociais nobres. Tem-se, então, outra sentença: nobre
opõe-se a mentiroso; e plebeu opõe-se a bom. Este raciocínio segue uma regra, e, por
esta regra, o conceito de dominação política resulta em um conceito de dominação
espiritual – puro opõe-se a impuro; bom opõe-se a ruim.
No entanto, puro, originalmente, seria apenas aquele que se lava. Ganha, porém,
outra conotação através da metafísica antissensualista sacerdotal, que procura por Nada
ou por Deus ou Nirvana, conforme sugere a terceira das quatro teses:
Terceira tese. Não há sentido em fabular acerca de um ‘outro’
mundo, a menos que um instinto de calúnia, apequenamento e
suspeição da vida seja poderoso em nós: neste caso, vingamo-nos
da vida com a fantasmagoria de uma ‘outra’ vida ‘melhor’
43
Nota-se, portanto, que os conceitos de “utilidade”, “esquecimento”, “hábito” e
por fim, “o erro”
44
são tomados como medidas de valor para conceitos morais, após a
imposição da moral ressentida. A utilidade, o esquecimento da causa da aprovação da
ação não egoísta, continua a valer e afirmar-se nas consciências do tipo escravo.
Tendem a crer numa equação composta pelos conceitos bom, útil e conveniente, para
equivaler tais conceitos. Deste modo, o bom e o ruim também se relacionam com a
utilidade: útil equivale a conveniente; e nocivo, a inconveniente.
Percebe-se que o modo de valoração nobre foi apropriado pela ótica sacerdotal,
e, com esta apropriação, tal modo de valoração foi invertido.
Para caracterizar o modo de valoração descrito até aqui, como a ação do senhor,
Nietzsche aponta:
“constituição física poderosa, saúde florescente, rica, a mesmo
transbordante, juntamente com aquilo que serve à sua conservação:
a guerra, a aventura, a caça, a dança, torneios e tudo o que envolve
uma atividade robusta, livre e contente.”
45
No entanto, desenvolve-se, posteriormente, em seu oposto, no modo de
valoração sacerdotal para o qual, movido por um impulso de fraqueza, os valores
sacerdotais ou seu ódio tornam-se a coisa mais venenosa, e ainda a mais espiritual. Este
é o espírito da vingança promovido por tal modo de valoração.
43
CI, A Razão na Filosofia, §6
44
Cf. GM, Primeira Dissertação,§ 2
45
Id., Ibid.,Primeira Dissertação, §7
38
Assim, por um lado, o modo de valoração nobre busca seu oposto apenas para
dizer sim a si mesmo, tendo os conceitos “negativos” como ruim, baixo, comum,
somente como contraste, posteriores ao conceito positivo e básico. Por outro lado, a
moral escrava necessita de algo que se oponha a si mesma, mas, mesmo esta ação não
passa de reação.
Tal sentimento de vingança, reativo, que perdura tempo suficiente para ser
gerador de uma moral de rebanho, não poderia ser sustentado por naturezas fortes. Tais
naturezas não podem levar a sério por muito tempo seus malfeitos e inimigos, pois têm
“um excesso de força plástica, moderadora regeneradora, propiciadora do
esquecimento”.
46
Tal como explicitado em passagens anteriores de nossa dissertação.
Para o nobre, a criação de uma noção básica do bom surge dentro de si
primeiramente, de modo que apenas cria para si uma representação do ruim. Este
“ruim” e aquele “mau” diferenciam-se, o “ruim” nobre é apenas cor complementar,
criação secundária. Já o escravo diz: ele é mau, logo sou bom; a idéia de bom, portanto,
surge de alienação. Pela mesma ótica ressentida, as ferramentas da cultura se articulam,
a fim de transformar o homem, animal de rapina, em animal de rebanho, para que deixe
de ser livre e passe a ser “livre” no sentido deles.
A liberdade cristã prega a falácia da interpretação de fraqueza como liberdade, a
purificação da mentira no instinto de autoconservação, necessidade da crença no sujeito,
ou na alma. A baixeza medrosa e a impotência tornam-se bondade — é o movimento de
criação de ideais.
Se interpretar é sempre doar sentido, o que não esgota jamais todo sentido em si,
nenhuma interpretação pode reivindicar para si um caráter absoluto e completo. Está
implícito na palavra interpretação o reconhecimento da inexistência de um sentido
original. Sua única relação com a verdade dá-se, enquanto se aceita como apenas mais
uma verdade, que se determina e se deriva de determinada vontade de poder.
Através de uma disposição hierárquica, percebe-se que há sempre uma tensão de
forças por trás de dos sentidos, promovendo sempre a reorganização destes.
Retornando à questão mais fecunda para Nietzsche a questão dos valores
somos impelidos a indagar a respeito do valor da interpretação que encontra sua
resposta na própria idéia de interpretação no seguinte sentido: de que a vontade de
poder, intensificação da vida é o único critério de valor aceitável. Que tipo de vontade,
46
Id., Ibid.,Primeira Dissertação, §10
39
portanto, afirmou-se sobre outras é o que cabe investigar. Sendo este um critério
hierárquico moral por excelência, afasta-se drasticamente da moral que se define por
utilidade, em função da conservação de um determinado tipo da espécie, de uma forma
de comunidade que impõe o critério da coletividade para valorar as ações morais. É um
tipo de moral vulgar, que pretende igualar os homens pela conciliação e a harmonia.
“O que aqui se julga saber, o que aqui se glorifica com seu louvor e
seu reproche, e se qualifica de bom, é o instinto do animal de
rebanho homem: o qual irrompeu e adquiriu prevalência e
predominância sobre os demais instintos, fazendo-o cada vez mais,
conforme a crescente aproximação e assimilação fisiológica de que
é sintoma. Moral é hoje, na Europa, moral de animal de rebanho”.
47
1.4 Moral de senhores e moral de escravos, os tipos ativo e reativo.
Percebemos, até aqui, inclusive na remontagem do processo de avaliação e
criação dos valores de bem e de mal, que a diversidade de interpretações morais é quase
tão vasta quanto a quantidade de forças que exercem pressão, que emergem, como
impulso para a valoração. Notamos que alguns modos de disposição destas forças
podem favorecer o surgimento de uma oposição entre duas configurações da moral, bem
como dois tipos de agentes com valorações distintas. Oposição que se efetiva com a
análise tipológica concernente a cada tipo de moral. Diferencia-se, portanto, a valoração
moral dos senhores como um “triunfante sim a si mesmo”
48
, da valoração moral
escrava que tem como primeiro momento um olhar pra fora e determina a existência de
uma moral de senhores e uma moral escrava,
uma moral dos senhores e uma moral dos escravos;
acrescento de imediato que em todas as culturas superiores e mais
misturadas aparecem também tentativas de mediação entre as
duas morais, e, com ainda maior freqüência, confusão das
mesmas e mesmo incompreensão mútua, por vezes inclusive dura
coexistência até mesmo num homem, no interior de uma
alma.
49
Pode-se diferenciar neste ponto, uma moral afirmativa de uma moral negativa,
que corresponderiam aos tipos senhor e escravo. A moral afirmativa, correlata ao tipo
47
ABM, §202
48
GM, Primeira Dissertação, § 10
49
ABM § 260
40
senhor, é condicionante da possibilidade de criação cultural de indivíduos soberanos,
criadores de valores. Nestas condições, a utilidade não se coloca como instância
originária dos valores morais, como prescrições para a ação do homem, tampouco se
pensa a moral como algo a priori na natureza, em vez de produto de um longo processo
formativo. Confirma-se a afirmação do filósofo, de que ocorre um erro de interpretação
através da leitura tosca da moralidade que se baseia na autonomia da vontade, ou na
utilidade dos valores morais. Nietzsche cita a pré-história da humanidade como sendo a
pré-história da moralidade. A forma desmedida instintual ganha certa fixidez através de
forças espontâneas agressivas. É a vontade de potência “que conduz o processo de
formação do animal-homem expresso na relação entre tradição e moralidade”
50
. Não é
imprescindível o que está prescrito e sim a própria prescrição.
No tipo nobre, a avaliação se dá a partir da afirmação, que parte de si, da
diferença em relação ao outro e não da utilidade para a coletividade. Portanto, se a
avaliação se configura como expressão de um sentimento interior, caracterizado pela
distância e pela superioridade, isto é, da diferença em relação aos outros,
consequentemente não pode haver relação deste tipo de avaliação com a utilidade. Tal
implicação da utilidade ficaria a cargo apenas de um instinto de rebanho, que se opõe ao
senhor, ao passo que se estabelecem valores a partir da coletividade, da identidade e da
igualdade entre os homens. Este sentimento de igualdade cria uma distância
determinante e intransponível entre o escravo e o senhor, que justifica a relação entre
o bom e as ações não egoístas em nome da coletividade.
Se existem duas condições de surgimento dos valores morais, pode-se encontrar
um indicativo do valor desses valores, com a questão referente à procedência da
avaliação. A questão é: o que quer aquele que estabelece tal valor?
As diferenças mais marcantes entre as duas morais, segundo Nietzsche, está em
relação à afirmação da diferença. Conforme vimos anteriormente, a moral de senhores
está marcada pelo sentimento de superioridade e diferença para cunhar valores. Já a
moral de escravos faz da igualdade a força que move suas ações, mostrando sua
fraqueza em relação ao outro, ao diferente de si. O senhor, em relação ao escravo, sente
desprezo, justamente por perceber um abismo intransponível entre eles. Isto é, o senhor
tem a certeza de que o escravo é incapaz de se igualar a ele. O escravo, contudo, tem um
50
Azeredo, Vânia. A eticidade do costume: a inscrição do social no homem, in 120 anos de para a
genealogia da moral. Orgs. Pascoal, Antonio Edmilson e Frezzatti, Antonio. IJuí: Ed Unijuí, 2008. p.249
41
olhar de desconfiança dirigida ao nobre, enxergando, de modo pejorativo, o poder e a
vontade dos poderosos. O escravo sente rancor, ressente-se em relação ao senhor.
A moral de escravos baseia-se na utilidade e estimula a indistinção dos
indivíduos, e, com isso, também a fraqueza. Por este motivo, o escravo é o precursor da
moral de rebanho, pois tenta suprimir a diferença, ação que se caracteriza como
necessária para a manutenção do vulgar, do popular. Percebe-se, porém, que o medo é o
principal fundamento da moral escrava, e, por conseguinte, da moral de rebanho, pois,
nos dois casos, existe o temor pela diferença. Os escravos sentem-se assustados pela
existência de tipos que deles se diferenciam. Por este motivo, criam a moral que se põe
em defesa da coletividade, do rebanho. A generalização apresenta-se como reação,
provocada pelo medo frente ao que lhe parece estranho, ou diferente. Mostra-se,
portanto, como moral de reação, de autodefesa, e tal característica reflete-se nas
avaliações promovidas por esta reação. O bom favorece o que é coletivo, e o mau , o
que favorece a individualidade, ou aquilo que ameaça a coletividade.
Pelo viés nietzschiano, a moral de senhores, por outro lado, eleva um tipo de
homem, ao passo que o torna apto a criar valores. A afirmação nobre, partindo da
diferença, faz com que os valores que edifica sejam afirmadores da existência, mbolo
de potência, por ser também criação.
Inclusive a relação de dever, segundo Azeredo, mostra- se como particularidade
da moral nobre:
“A moral dos senhores tem como peculiaridade a demarcação da
vigência do seu respectivo dever, pois para com os inferiores não
deveres: ‘(...) somente para com seu igual se tem deveres; de
que, para com seres de categoria inferior, para com tudo que é
alheio, se pode agir ao bel-prazer ou como o coração quiser’ e um
respeito pela idade, pela tradição. ‘A profunda veneração pela idade
e pela tradição o direito inteiro está contido nessa veneração —,
a crença e o preconceito em favor dos antepassados e em desfavor
dos vindouros são típicos da moral dos poderosos’( ABM § 26)”
51
51
Idem, Ibidem, pp 78, 79.
42
1.5 Moral aristocrática, moral sacerdotal e rebelião escrava na moral
Em nome da primazia, as duas formas de avaliação descritas travam uma luta.
De um lado, a moral aristocrática e, de outro, a moral sacerdotal. Mesmo que as duas
formas de moral sejam oriundas da mesma classe dominante, diferenciavam-se, pois se
baseavam em princípios opostos. Embora derivada da aristocracia guerreira, a moral
sacerdotal desenvolve-se de modo inverso à moral aristocrática. Enquanto nesta última
desenvolve-se o corpo, o instinto da guerra, da aventura e da saúde, na moral sacerdotal
exacerba-se a negação, e, portanto, a decadência. Nietzsche demonstra, com sua
investigação, que a casta sacerdotal agrega os fracos para operar a transformação da
moral aristocrática. Movidos por ódio em relação ao nobre, transmutam a moral dos
senhores em moral de escravos. Nietzsche direciona sua crítica ao conjunto dos valores
e princípios da moral sacerdotal, que pretendiam a destruição dos senhores e sua moral.
Acabam por tornar decadente o homem que acata a moral sacerdotal.
Para Nietzsche, a aristocracia guerreira tinha como princípio a força, e a
sacerdotal, a impotência. Para explicar melhor a questão, opõe a aristocracia romana à
Judéia, tendo os judeus como o povo sacerdotal por excelência.
Em Roma, o valor aparece centrado no desempenho das forças que conferem
supremacia. Assim, como todo modo de valoração nobre, a autoglorificação é o
movente da ação. É essa vontade de potência, em seu caráter nobre, que estabelece
valor.
Os judeus, de modo distinto, representantes e propagadores da doença, definem-
se pelo ressentimento. Uma interioridade fraca, tal como apresentam os judeus,
necessita de uma representação externa para manter um impulso vital, mesmo que
doente. A vontade volta- se contra a vida, como única possibilidade de sua continuidade
enquanto vontade Os valores nobres, exuberantes de força e plenitude, o derrubados
pelas prescrições morais sacerdotais.
Israel promove o triunfo desses ideais de vingança sobre os ideais mais nobres.
Tal triunfo ocorre quando a geração e a criação de valores se dão a partir do
ressentimento, a partir da negação de si, pela afirmação do outro, do não-eu este
“desvio do olhar para fora e não para si, é próprio do ressentimento.”
52
52
GM, Primeira Dissertação, § 10.
43
De acordo com Nietzsche, os judeus triunfaram em sua vingança, fazendo com
que a nobreza e o poder se tornassem símbolos de vilania, tomando-os como maus, em
si mesmos. A moral sacerdotal acatada pelos judeus coloca a bondade nos fracos, e
solapa, deste modo, a moral aristocrática.
No caso dos judeus, portanto, não são os sentimentos de distância e de
superioridade que criam valores, e sim um sentimento de ódio e vingança. Criam assim,
em vez de valores, ideais de bem- aventurança para os fracos, de salvação divina, de
igualdade num além- mundo. A crença nesses ideais, porém, pressupõe uma negação do
homem e da vida, se tomamos o homem como o ser que avalia a partir de sua própria
atividade e potência. Desta forma, o homem deixa de ser criador, ativo, e passa a ser
ressentido, reativo, passivo. A necessidade de tornar fortes os fracos exige que todos
sejam tomados como iguais. Para isto, edificam ideais sedutores e persuasivos. Para
Azeredo:
“Na argumentação de Nietzsche, sob o signo do ideal da morte de
Deus para a salvação dos homens, Israel triunfou. Os sacerdotes
tiveram êxito na sua vingança imaginária. A vingança é imaginaria,
mas a vitória do sacerdote sobre a aristocracia guerreira é um dado,
cuja efetivação se mediante a inversão dos valores do senhor.
Para Nietzsche, o escravo almejava a inversão e para efetuá-la
utilizou-se do ideal fazendo com que sua vingança promovesse uma
transformação no modo de avaliar.
53
Os judeus promovem, então, um novo tipo de amor, um amor que surge na
dimensão do ódio. O móvel do procedimento da proposta judaica de amor é a
transformação dos fracos em fortes, igualando, deste modo, todos os tipos de homem.
Percebemos, então, a inversão promovida pelos fracos, do modo de valoração nobre.
Mudar o valor, contudo, não significa criar. Pela interpretação deleuziana
54
, o escravo
apresenta-se como doente. Demonstra que existe uma anomalia na relação de forças,
que proporciona ao escravo uma visão de mundo diferente da do senhor. Tal anomalia
faz dele um sujeito incapaz de criar, pois, define-se pela inversão dos valores
postulados. É capaz apenas de negar o que difere. Deleuze distingue as forças como
ativas e reativas, quanto à sua qualidade, e distingue, da mesma forma, qualidades de
vontade de potência, afirmativas e negativas. Diferencia, assim, o senhor, como
53
AZEREDO, V. Nietzsche e a dissolução da moral, pp 86,87
54
DELEUZE,G. Nietzsche. São Paulo: Edições 70, 1985.
44
portador de uma força ativa, uma vontade de potência afirmativa, do escravo como
possuidor de força reativa, e vontade de potência negativa.
Pela inversão dos valores morais dos senhores, o escravo estabelece sua moral
como algo dado, como efetiva, livrando-a de qualquer questionamento. Esta tentativa de
tornar a moral absoluta tem como base a autodefesa, que pretende mascarar o medo
operando a universalização de seus princípios.
A esta derivação da moral aristocrática em moral sacerdotal, e, posteriormente, à
apropriação vulgar desta última, Nietzsche chamou rebelião escrava na moral.
Em Além De Bem e Mal esclarece:
“Os judeus, um povo ‘nascido para a escravidão’, como diz Tácito,
e com ele todo o mundo antigo, ‘o povo eleito entre as nações’,
como eles mesmos dizem e creem – os judeus realizaram este
milagre da inversão dos valores, graças ao qual a vida na Terra
adquiriu um novo e perigoso atrativo por alguns milênios os seus
profetas fundiram ‘rico’, ‘ateu’, mau’, violento’ e ‘sensual’ numa
definição, e pela primeira vez deram cunho vergonhoso à
palavra ‘mundo’. Nessa inversão dos valores (onde cabe utilizar a
palavra ‘pobre’ como sinônimo de ‘santo’ e ‘amigo’) reside a
importância do povo judeu: com ele começa a rebelião escrava na
moral.”
55
Com isto, temos que pathos de distânciadenominou valores. O bom e o ruim
assinalam as distinções no modo de ser, e, consequentemente, o modo de valorar. Entre
os nobres, o bom é a distinção de uma excelência espiritual, a diferença destes em
relação à massa, oposta a eles. Para Nietzsche, o bom inspira medo, pois quando se é
forte impõe- se aos demais e torna-se digno de ser temido. o tipo vil ou escravo,
desprezível por seu próprio modo de ser, torna-se incapaz de sentir orgulho de si, de se
impor aos demais e de reconhecer em si uma alma elevada. Torna-se patente, então, a
distinção de um lado indivíduos fortes e, por isso, temidos e venerados; de outro
lado, há indivíduos fracos e desprezíveis devido a sua própria constituição.
No entanto, pode-se notar uma transformação desse modo de valorar, dadas as
condições que proporcionaram a contradição existente no fato dos tipos vis e escravos
passarem a dominar os modos de valoração. Neste ponto da investigação, faz-se mister
o recurso ao método genealógico, para a verificação da gênese mesma dos valores. Fica
então, um indicativo de uma possível dualidade para a valoração dos juízos de bom e
mau, bom e ruim. O que significa dizer que aquilo que é o bom para o nobre, é o oposto
55
ABM §195
45
do bom para o escravo. E ainda, cada uma das significações desses valores expressa
modos de ser incompatíveis e opostos. Para tanto, seguindo a interpretação deleuziana,
é preciso conferir nas forças e nas vontades de potência que se expressam e se
estabelecem sua qualidade de dominação, de atividade, ou sua qualidade de dominada e
de reatividade. É, em certos tipos, certos organismos, que a reatividade promove o
ressentimento, que se torna a força motriz das ações e avaliações, conforme sugere a
segunda dissertação da Genealogia da Moral.
46
Capítulo II memória e cultura: o refinamento das exigências morais e seus
produtos.
Pecado, rifa e revista, o pobre
paga a vista. A felicidade, o
conforto, a alegria e a sorte,
vendeu fiado pra Deus, vai
receber depois da morte.”
Tom Zé.
De acordo com as elucidações do capítulo anterior, podemos afirmar agora, que
o homem é o ser que avalia, que tudo mede e tenta equivaler e calcular. Levando em
conta estas idéias, para uma leitura da segunda dissertação de Genealogia da Moral,
pretende-se tocar nos pontos referentes à criação de valores. Analisando as hipóteses de
origem e desenvolvimento da cultura, da consciência e da razão, postas por Nietzsche,
aliadas ao entendimento da relação da qualidade das forças com a criação dos valores,
será possível desembaraçar a trama de erros tecida pela moral. E, deste modo, se desfaz
também a crença no absolutismo dos valores, podendo então surgir um tipo de homem
que promova a vida a partir de seu modo de valorar e agir. Percorreremos o itinerário
proposto por Nietzsche. Partindo das idéias de compensação, do surgimento da
memória, da cultura, Nietzsche analisa o papel desses conceitos na emergência da
necessidade da promessa e seu desenvolvimento posterior em responsabilidade moral.
Como esta idéia de responsabilidade chega a dar lugar à noção de culpa, propiciando o
desenvolvimento da má consciência, descortina-se um processo de interiorização da
crueldade, antes permitida e celebrada. Isto faz com que os instintos poderosos e
recuados encontrem a saída menos habitual, torturando a própria consciência.
Reconstruindo os movimentos que fazem surgir e se desenvolverem os valores
morais, e percebendo os deslocamentos de sentido, Giacóia afirma que conseguimos
uma compreensão histórica, que, por si só, desmistifica a condição de dado natural,
desqualifica os valores morais enquanto valores absolutos, ao mesmo tempo em que
legitima a análise perspectivista. Isto porque, como todo acontecer orgânico, a moral é
sintoma de constante reinterpretação, oposição e alianças de vontades de potência. A
moral que pretende se instaurar como em si pode ser facilmente desacreditada, eis o que
47
se comprova com a genealogia. O tipo de moral a que Nietzsche dirige sua investigação
instaura-se como em si a partir de vínculos que estabelece com a racionalidade e a
verdade. Portanto, pretende-se analisar como se patenteia essa relação da moral com a
verdade e a interpretação racional.
Para Giacóia, o esquecimento, detido pela promessa, mostra-se como o primeiro
lineamento do pensamento causal, que inaugura a distinção entre fortuito e necessário,
relacionando, assim, vontade e ação. Pois o homem antes desprovido de lembrança não
reconhecia de forma linear seus atos e acontecimentos decorridos deles, de modo que
pode perceber, a partir da promessa como primeira forma de imposição da memória, a
diferença entre aquilo em que interfere diretamente e os acontecimentos independentes
de sua ação ou de sua vontade. As interpretações da relação entre vontade e ação se
tornam mais sofisticadas e complexas, configurando-se como o erro da crença em uma
falsa causalidade, que postula a vontade como causa, denunciado nos quatro grandes
erros. Nietzsche aponta de que forma este erro se torna parte importante dos discursos
enganadores da moral e de sua concepção de liberdade.
Disso, pode-se afirmar que dominar a si mesmo, em nome da coletividade, é a
base psicológica do primeiro sentimento de liberdade, após a instituição do Estado, pois,
mostra-se como consciência de poder e responsabilidade.
Notemos que, a autoformação da memória no homem, coincide com a memória
da crueldade e com a pré-história da sociabilidade. Os rudimentos do Estado se erigem,
assim como a criação de uma instância psíquica para a responsabilidade, a partir da
crueldade. O Estado corresponde à camisa de força da sociedade e da paz”
56
. Este é o
Estado da paz armada, que pela violência, transforma a barbárie primordial em
sociedade. A instituição da memória e da cultura é uma espécie de violência contra a
natureza arisca e fugaz do animal homem. Com o intuito de melhor explicitar estas
questões, ateremo-nos às investigações sobre as idéias de crueldade, memória e
esquecimento, para analisar a criação da cultura e os mecanismos empregados para
tanto. Retomaremos a afirmação do homem como animal avaliador, que a tudo quer
mensurar, e do castigo e da crueldade como armas importantes para o homem e para sua
socialização.
56
GIOCÓIA, Oswaldo. Moralidade e Memória: Dramas do destino da Alma, in 120 de para a Genealogia
da Moral. p. 209.
48
Conforme a hipótese nietzschiana, em épocas remotas, funcionou a equivalência
na imposição do castigo, que é aplicado a fim de reaver uma dívida não paga. Para
tanto, o homem o mesmo peso para o dano sofrido pelo não cumprimento de uma
promessa, e para o castigo aplicado ao devedor. A par disso, nas sociedades guerreiras a
crueldade mostra-se com uma celebração, uma exuberância de vitalidade, tendo como
função expiar um sofrimento causado pela dívida não saldada.
O homem, então, antes caracterizado por sua natureza fugidia e a-histórica, sente
a necessidade, imposta pela natureza, de impor a si mesmo uma memória, inclusive para
tentar fugir da pena. Segundo Nietzsche, esta é a tarefa paradoxal que a natureza lhe
impõe, a capacidade de fazer promessas e cumpri-las. A este tipo de homem se atribuiu
a capacidade de promoter, antes criticada, como um ato de valoração, que só pode surgir
a partir de uma autonomia, de uma autorreferência, como parâmetro para agir.
“O homem “livre”, o possuidor de uma duradoura e
inquebrantável vontade, tem nesta posse a sua medida de valor:
olhando para os outros a partir de si, ele honra ou despreza; e tão
necessariamente quanto honra os seus iguais, os fortes e
confiáveis (os que podem prometer) ou seja, todo aquele que
promete como um soberano, de modo raro, com peso e lentidão, e
que é avaro com sua confiança, que distingue quando confia, que
dá sua palavra como algo seguro, porque sabe que é forte o
bastante para mantê-la contra o que for adverso, mesmo “contra o
destino”-: do mesmo modo ele reservará seu pontapé para os
débeis doidivanas que prometem quando não podiam fazê-lo, e o
seu chicote para o mentiroso que quebra a palavra no instante
em que a pronuncia.”
57
O esquecimento e a memória são forças importantes na relação do homem
enquanto pura natureza e instinto com o homem tornado social. A grande estima pela
memória, em detrimento da consciência saudável, fecunda o terreno para a crença
irrestrita na oposição de valores e seu absolutismo. O esquecimento por sua vez, tem
uma viabilidade de primeira ordem, segundo nosso filósofo. Garante que o homem
mantenha uma consciência sadia, que os acontecimentos não penetrem de maneira
desenfreada na consciência. Aquele que vive sem o esquecimento, para Nietzsche, não
consegue dar conta de nada – torna-se como que dispéptico.
Com a exigência da criação da memória, surge a necessidade de pensar
conforme a causalidade, a necessidade de antecipação dos fins e meios. O homem passa
57
GM, Segunda Dissertação § 2
49
agora a contar, a calcular, a confiar, e, para tal tarefa, precisa tornar-se confiável,
constante e necessário também para si mesmo, para responder por si como porvir, como
acontecer. Segundo Giacóia, a história da moral inicia-se pela pré-história da memória,
“o grau zero de hominização”, e acrescenta:
“Na reconstituição da gênese da consciência moral, não se tratará
apenas de impugnar a pretensa naturalidade dessa figura,
devolvendo-a às peripécias e contingências da história, mas
também de multiplicar essa gênese, dissolvendo a pseudo
unidade do fenômeno, sua ipseidade infensa a toda transformação
acidental, fazendo aparecer não somente múltiplas significações
de uma mesma identidade essencial, mas sobretudo os
deslocamentos de sentido, engendramentos de figuras
radicalmente heterogêneas, nas quais se inscrevem tais
significações.”
58
A criação da memória, no entanto, não ocorre de modo gradual e brando, e sim,
sob muito sacrifício, sob mutilações e rituais tremendamente violentos. Daí a afirmação
nietzschiana de que, quanto pior a memória de um povo, tanto mais terríveis seus
costumes e suas penalidades. Através do castigo é que o homem pode manter na
memória “uns cinco ou seis ‘não quero’”.
59
A promessa é feita com o intuito de viver
com os benefícios oferecidos pela comunidade. Da vontade de usufruir o que a
sociedade pode oferecer surge o que se configura posteriormente como razão, isto é,
começa a necessidade de se operar a partir do domínio calculado dos afetos.
Para investigar hipóteses de surgimento do que se configura mais tarde como
consciência, Nietzsche utiliza-se de sua “segunda visão”. Seu senso histórico, mais uma
vez, aparece como o mote de sua crítica às tentativas de explicação acerca de assuntos
morais existentes na sua época.
Com tal tarefa em mente, Nietzsche apresenta a idéia de que a origem da noção
moral de culpa encontra-se na relação material de credor e devedor, conforme ventilado
acima.
A partir de sua inclinação para equivaler valores e conceitos, o homem
estabelece a relação contratual entre credor e devedor, colocando como garantia a
58
Giacóia, moralidade e memória: dramas do destino da alma, p 197.
59
GM,Segunda Dissertação §3
50
equivalência de um dano a uma dor. Esta idéia de compensação é o convite ao direito à
crueldade – sempre latente no homem.
Assim, pode-se perceber que a origem dos conceitos morais de culpa,
consciência e dever originam-se nas esferas das obrigações contratuais mais remotas,
em que a crueldade ainda era direito do credor. Havia também o entrelaçamento entre
culpa e sofrimento, e entre dano e dor, de modo que qualquer dívida podia ser paga,
com mais ou menos sofrimento, ou despojamento de bens.
Nietzsche alerta-nos, antes que nos soe demasiado estranho, que é muito
complicado para nós, hoje, homens socializados, imaginar até que ponto a crueldade
constituía o grande prazer festivo da humanidade, e como era parte essencial de quase
todas as suas alegrias. Afirma ainda que não havia qualquer acanhamento em relação à
crueldade, pelo menos não antes da tentativa de divinização e espiritualização de tal
instinto.
“O ensombrecimento do céu acima do homem aumentou à
medida que cresceu a vergonha do homem diante do homem. O
olhar pessimista, enfastiado, a desconfiança diante do enigma da
vida, o gélido Não do nojo da vida estas não são características
das épocas de maior maldade do gênero humano: como plantas
pantanosas que são, elas surgem apenas quando o pântano de
que necessitam – refiro-me à moralização e ao amolecimento
doentio, em virtude dos quais o bicho ‘homem’ aprende afinal a
se envergonhar de seus instintos.”
60
No processo histórico, na tentativa de tornar o homem um ser social, confiável,
os dominadores utilizam-se da moralidade do costume também como manobra para a
interiorização da dor sentida pelo homem, privado de seus instintos. Em nome dos
costumes, inclusive a individualidade é sacrificada. Segundo Azeredo:
“Nada obstante o indivíduo soberano ser o marco terminal do
processo de adestramento do homem, interpôs-se entre a fase
inicial e final desta formação do homem domesticado.
Contrapõem-se ao individuo soberano, ao homem de
inquebrantável vontade, indivíduos que diferentemente não têm
em si a medida de valor.
61
60
GM, Segunda Dissertação §7
61
Azeredo, Nietzsche a dissolução da Moral, pp 125, 126
51
Nietzsche desvenda um processo de inversão, no qual apenas um tipo de homem
pode superar estes estados de igualdade e constância necessários para a socialização do
indivíduo. Para Nietzsche, de certa maneira, o vigor da crueldade como traço importante
da humanidade reprimido, determina um novo tipo de homem, o qual carrega, de
antemão, um desprezo pela vida, prova da vergonha do homem diante de si mesmo, o
que, na verdade, não passa de vergonha por querer e sentir os próprios instintos. Nas
palavras irônicas de Nietzsche, o que o homem gostaria era de tornar-se anjo.
A inscrição do social no homem ocorre quando o animal de instinto desenfreado
transforma-se em homem capaz de dominar seus desejos. Em relação ao animal homem,
o que se impõe é a natureza. Portanto, a disjunção memória/ esquecimento possibilita a
perspectiva da produção de uma possível humanidade nesse animal.
Sob certos aspectos, temos a faculdade do esquecimento “guardiã da ordem
psíquica”
62
esquecer liga-se ao criar, ao permitir que haja espaço para o novo. É,
conforme citado anteriormente, uma força ativa inibidora, que torna contida a
assimilação psíquica. Contraditoriamente, impõe-se ao homem uma necessidade de
fazê-lo capaz de prometer e cumprir suas promessas. Segundo Azeredo, esta tarefa
configura-se como um paradoxo:
“Ora, o paradoxo está justamente em querer que aquele cuja
plenitude foi definida pela fugacidade da lembrança tenha, ao
mesmo tempo, que desenvolver em si uma memória.
63
Prometer significa, então, fixar ao menos a promessa. Tal tipo de memória, por
sua vez, não corresponde à marca indelével, não é uma memória de traços. É, sim,
memória da vontade. É o querer a própria memória, mesmo que isso não implique, neste
caso, em deliberação.
A fixação de uma promessa requer o não querer deixar de cumprir, e também o
não poder deixar de cumprir. E tal tipo de memória vincula-se à afirmação, pois, é
imprescindível que se passe pelo sim diante do prometido para que seja fixada a
promessa. Dito de outro modo, o próprio querer deve querer a memória, a vontade deve
impor-se o que foi prometido. Tal imposição é peculiar, pois, advém de um impulso
62
Idem, Ibidem, II § 1
63
Azeredo, Eticidade do Costume: A inscrição do social no homem. p.74
52
interno, ativo, que fixa para si uma regulamentação, distinguindo, assim, a memória
requerida aqui, da memória de traços.
A origem da responsabilidade diante do próprio agir ocorre, então, em relação à
eticidade do costume criadora de condições necessárias ao desenvolvimento da
responsabilidade no homem, o que pode torná-lo “até certo ponto confiável, uniforme,
igual entre os iguais.”
64
A ação da comunidade sobre o indivíduo torna-o confiável.
Ocorre uma moldagem da consciência, pois, ao caráter fugidio do esquecimento,
contrapõe-se a consistência da introdução da memória da vontade. Neste tipo de
memória encontra-se a possibilidade de passagem à cultura, mediante a assimilação do
costume enquanto incondicionalidade da obediência.
A memória da vontade é instituída através de um percurso histórico demarcado
pela disciplina e pelo método, responsáveis por desenvolver nos homens um modo
tipicamente sistemático de pensar e agir. De acordo com as relações causais, é exigida a
distinção entre necessidade e acaso. Quando se atribui a tudo um fim relacionado com
os meios necessários para obtê-lo, a memória torna-se a origem que estabelece a
hierarquia dos valores sociais, nos quais se garantem os tipos dominantes.
A memória é a produtora da capacidade e da condição necessárias para a
obediência às leis. Não se tratando, no entanto, de obediência a prescrições
incondicionais, mas de obediência incondicional. A memória da vontade atinge
abrangência bem mais ampla, na moralidade do costume, sendo também entendida
como movimento da cultura, tendo por objetivos adestramento e obediência aos
costumes. Como o próprio conceito transmite: “(...) Eticidade do costume não é nada
outro, (portanto nada especial, nada mais!) do que obediência a costumes.”
65
Trata-se então de incondicionalidade da obediência e não de uma obediência às
prescrições incondicionais. Nesta etapa de adestramento dos instintos, o que se quer
produzir é a soberania, enquanto forma de ser para o homem.
A interpretação dos valores morais em nome da utilidade efetiva-se, no entanto,
no século XIX, que seria o século da decadência, justamente por mascarar a diferença
através das doutrinas igualitárias. A ilusão de que se podem calcular exatamente as
relações causais se torna mais refinada e desemboca nos quatro grandes erros, expostos
no capítulo anterior, como o modo de proceder, com a finalidade de tornar o homem um
animal de rebanho.
64
Idem, Ibidem, II, §2
65
A, I, §9
53
Através do estudo etimológico, Nietzsche nos permite compreender os arranjos e
rearranjos nas relações de potência que se expressam nas transformações dos juízos de
valor, o que nos remete novamente e necessariamente a questão ‘quem?’, ou seja, o que
quer aquele que cunhou tal ou tal valor. Novamente a questão da criação dos valores se
refere à vontade potência como o principal afeto de comando nas interpretações e
avaliações. A promessa é, por sua vez, também, um ativo ‘não querer livrar-se’ e não
um simples não poder mais livrar-se. É a capacidade de continuar querendo o que uma
vez se quis. O homem que promete a si mesmo como dotado de permanência,
porque é capaz de continuar a dizer sim àquilo que uma vez prometeu, de avaliar que
tipo de promessa pode de cumprir e, por isso, pode prometer.
Mas é pela moral do costume e pela prisão social que o homem foi tornado
confiável. Vejamos bem a diferença entre tornar-se confiável e ter sido tornado
confiável. Para que se possam inscrever no homem noções de negligência, intenção,
causalidade, responsabilidade, passa-se a levá-las em conta na aplicação do castigo, o
que desemboca na afirmação de que o criminoso merece o castigo pelo fato de ter
podido agir de outro modo. Pelo castigo, porém, não se responsabiliza o desagregado
por seu ato, e sim, procura- se compensar a raiva que se sente pelos danos causados,
tentando equivaler a dor do culpado ao dano sofrido. Nota-se, então, que se torna
evidente o grau de afinidade entre a relação material de credor e devedor e a culpa. Nos
contratos sociais em que se fazem promessas, a memória precisa ser construída. Ao
impor-se ao devedor um contrato, reforça-se a consciência na promessa feita. E, caso
não a cumpra, aquele que prometeu deve empenhar algo que possua ou disponha. Esta
idéia de compensação consiste, por si só, no convite ao direito à crueldade. Ver fazer
sofrer faz bem. Fazer sofrer — mais bem ainda.
Segundo Nietzsche, o homem cria em si uma memória à custa de muito
sofrimento. Aponta, para tanto, os rituais e sacrifícios empregados em civilizações
remotas, com requintes de crueldades oferecidos aos deuses em nome da comunidade.
Percebemos também que, quanto mais duras as leis e punições de uma comunidade,
menos memória têm seus indivíduos. E, ao passo que a memória de prescrições da ação
é assimilada, as penas e punições se afrouxam.
De modo distinto ao operado pelos genealogistas da moral que o precederam,
Nietzsche pretende apontar que o castigo não encontra sua origem na reatividade. Pelo
contrário, aponta o homem ativo como o mais justo. Este último aparece como o
54
homem que julga a partir da distância, da imparcialidade, com o olho mais livre e a
consciência melhor”.
66
Na segunda dissertação da Genealogia da Moral, Nietsche aponta para dois
aspectos que devem ser considerados no caso do castigo, um fluido que é o sentido e,
por conseguinte, sua finalidade; e outro, relativamente duradouro seu procedimento,
o fato de sempre ter ocorrido e ocorrer, independente do fim a que se emprega. O
castigo foi então introduzido no procedimento que antes era utilizado para outros fins.
Nietzsche enumera, desta feita, uma série de aplicações do castigo: castigo como forma
de compensação, como exemplo, como instrumento de fixação de memória, entre
outros. E afirma que, além destas utilizações, existem inúmeras outras. que podemos
enumerar uma série de finalidades diferentes aplicadas ao castigo, é fácil notar o quanto
tais finalidades são acidentais e casuais, tornando claro, mais uma vez, quão irrelevante
é a utilidade para a investigação a que Nietzsche se propõe. Mesmo subtraindo este
aspecto fluido, pode-se notar que o castigo aparece como tentativa de produzir culpa.
Por isso, Nietzsche afirma ser possível, no castigo, ver o verdadeiro instrumento da
“reação psíquica chamada ‘má consciência’, remorso”
67
. O castigo, porém,
originalmente, torna frio e endurece, aumenta o sentimento de distância, aguçando a
força de resistência do indivíduo. O próprio castigado não enxerga seu ato como
reprovável em si, pois, para outros fins, estes mesmos atos se justificam, desde que “por
princípios”. A ‘má consciência’ não nasce neste terreno, mas nele se encontram as
condições essenciais para surgir posteriormente. Tendo em vista que, durante muito
tempo não parecia haver culpados, tem-se que o infrator não passa de “irresponsável
fragmento do destino”
68
um simples causador de danos, sobre o qual o castigo, como
parte do destino se abatia. O erro trata-se apenas de um imprevisto e não de qualquer
“aflição interior”.
69
Os homens; durante algum tempo, diante do mal feito, não inferiam
a expressão “eu não devia ter feito isso” e sim, “algo saiu errado”.
70
A submissão ao castigo é um fatalismo sem revolta, como a submissão à morte
ou a uma doença. Trata-se antes de um contrato com a vida, pois, se uma crítica ao
ato, esta só pode ser feita pela prudência. Deste modo, vê-se o genuíno efeito do castigo,
66
GM, Segunda Dissertação §11
67
GM, Segunda Dissertação, §14
68
Idem, Ibidem.
69
Como na compreensão de Spinoza, que segundo Nietzsche, já chegou a afirmar os valores de bem e
mal como ficções humanas, afirmando ainda seu deus ‘livre’, contrário à noção de que deus age por pura
razão (já que deus não pode estar submetido ao destino). GM, II § 14.
70
GM, II §15
55
sobretudo no alargamento da memória, numa vontade de agir de outro modo,
melhorando a faculdade de julgar a si próprio, como consequência da intensificação da
prudência. Nota-se ainda, que, tanto em homens quanto em animais, o castigo
acrescenta medo e torna-os mais cautelosos.
Indicou-se, até aqui, como a inscrição do social no homem, através da
moralidade do costume, fixada a partir da instituição dolorosa de uma memória, prepara
o terreno para o surgimento do tipo de consciência, tardio e específico, a que Nietzsche
pretende voltar sua crítica. Percebemos, no entanto, na exposição da Segunda
Dissertação da Genealogia da Moral, que o castigo e a crueldade, originalmente, não
possuíam o caráter que a eles atribuímos atualmente. O castigado não comportava em si
o sentimento de culpa, típico de organismos e homens reativos.
Com a instituição da moralidade do costume, a crueldade passa a ser
interiorizada. Proíbe-se que os indivíduos expiem tal instinto de maneira natural,
festiva, conforme ocorria anteriormente.
Tratando-se, no entanto, de um instinto poderoso em nós, a crueldade precisa, de
qualquer forma, ter uma vazão. Deste modo, os instintos humanos, outrora postos para
fora, passam a agir no próprio indivíduo, que se torna o culpado do próprio sofrimento.
Isto ocorre quando a necessidade de equidades e de causalidade se efetivam como parte
integrante do conhecimento humano.
Assim, este tipo de homem exige para si uma explicação. Ocorre também uma
extensão da relação entre credor e devedor aos antepassados. Quanto maior a
prosperidade de uma comunidade ou estirpe, tanto mais aumenta a dívida desses
indivíduos com seus antepassados. Do mesmo modo, esta dívida diminui na mesma
medida em que o poder de tal estirpe torna-se menor. Portanto, para a falta de
explicação do sofrimento, para este sentimento de culpa em relação à falta de porquês,
criam-se os deuses. A idéia de um deus onipotente e onipresente aparece como
desenvolvimento da dívida em relação aos antepassados, que se transforma na
necessidade da criação de um ancestral originário, desenvolvendo-se em um Deus
único, tal como no cristianismo Adão como ancestral original, e como a primeira
criatura de um Deus onipotente.
Percebemos, então, na reorganização do processo de socialização do homem
através da moralidade do costume e da instituição do Estado, a necessidade de
separação deste novo homem, de seu passado animal, através da criação de uma
consciência. No Estado antigo, ocorre a impressão de uma forma à massa nômade,
56
através da tirania e da violência em atos e gestos do senhor, o qual se sente no direito de
dar ordens. Estes senhores, que imprimem à força uma forma social para o convívio
humano, são movidos por um egoísmo de artistas. Não conhecem o sentimento de
culpa, de consideração, ou responsabilidade. Portanto, não exatamente nos organismos
desses artistas involuntários nasce a consciência, mas estes fornecem as condições
necessárias para seu posterior desenvolvimento. Isto porque, o instinto de liberdade
recuado e reprimido é o começo remoto da má consciência.
A partir de tais afirmações, temos que a consciência, enquanto doença
origina-se na idéia de relação entre credor e devedor e no vínculo estabelecido entre os
vivos e os mortos. Desta relação surge o medo, como uma consciência de dívida para
com os antepassados. Deste medo, surge a necessidade de criar deuses e,
posteriormente, atribui-se a piedade aos deuses.
Ressaltando que, nem sempre os deuses surgiram a partir da reatividade, ou
serviram para aumentar o sentimento de culpa, Nietzsche aponta-nos outra relação com
a divindade presente na cultura grega. Na sociedade grega, a presença dos deuses
aparece como uma afirmação de tudo o que existe de humano na terra, e cabem a eles, a
culpa, e a inveja dos instintos humanos, e não o contrário, como ocorre com o Deus
cristão. Disso, Nietzsche afirma ser o ateísmo uma espécie de segunda inocência, já que
tornou clara a forma de articulação existente entre a consciência e o deus credor,
juiz e carrasco.
2.1 Culpa, castigo e ressentimento como terreno de surgimento da má consciência.
E é justamente com este ressentimento que a metafísica e a religião pretenderam
transpor o limite da vontade, ao postular um além- mundo em que a eternidade parece
resolver o problema da restrição do querer, promovida pela irreversibilidade do tempo.
Segundo Barrenechea, esta é uma interpretação escatológica do tempo que se relaciona
com o pensamento vigente na metafísica ocidental.
O ressentimento é um domínio das forças reativas sobre as forças ativas
estado em que o homem livre e regulado pelos instintos transforma-se em animal de
rebanho. O predomínio de tais forças produz a consciência, que tem dupla
genealogia, conforme assinalado na segunda dissertação de Genealogia da Moral: uma
57
na criação do Estado, na tirania que faz com que este conquiste populações selvagens,
nas quais os reguladores da vida são os instintos de liberdade; e outra no ideal ascético,
na prática do sacerdote ascético que transforma o ressentido em culpado. Cria-se, deste
modo, o pecado, e os homens são induzidos a acreditar serem os próprios culpados de
seu sofrimento.
Com o ressentimento, surge uma visão pejorativa da crueldade. A condenação da
crueldade aparece como sintoma pessimista da vergonha que o homem sente dos
próprios instintos. Mas este instinto não morre. Apenas é sutilizado e sublimado, como
“eufemismos para a consciência hipócrita”
71
. Isto significa que a crueldade não se
extingue,mas que apenas se mascara, e se extravasa em direção oposta à mais natural,
ferindo a própria consciência, causando com isso uma dor.
Não é, portanto, o sofrimento em si que causa revolta, mas a falta de sentido no
sofrimento. Mas, para um cristão, por exemplo, o sofrimento pode ser um instrumento
de salvação, o que parece justificar a dor, e estancar os motivos que poderiam provocar
uma revolta.
O sofrimento, em eras antigas e mais ingênuas, se dava em consideração aos
seus espectadores e causadores. Na tentativa de abolir este sofrimento oculto que o
homem inventou deuses, que, por seu lado, não dispensavam um bom espetáculo de
crueldade, sendo então, uma forma de celebração da crueldade, que se efetiva, mais uma
vez, de forma mascarada e amenizada. O sentimento de culpa, portanto, é uma
resignificação da relação comprador- vendedor, exercida pelo homem enquanto animal
avaliador. Quando se passa a medir uma pessoa com outra, pode-se forjar um
compromisso entre os homens, decorrente da crença na equivalência, e na certeza de
que tudo pode ser pago, comparado e igualado. Por analogia, podemos remeter- nos ao
criminoso como devedor, que, além de deixar de pagar, ainda se volta contra o credor.
Este criminoso acaba por ser privado de benefícios e vantagens da vida em comunidade
para ver “o quanto valem estes benefícios”.
72
A comunidade, na posição de credor, pretende devolver o devedor, culpado, ao
estado selvagem e natural, fora da lei, do qual antes estava, por ela, protegido. Em
relação aos costumes, o castigo é apenas um comportamento normal que se reproduz
71
Idem, ibidem, Segunda Dissertação, §7
72
Idem, ibidem, Segunda Dissertação §9
58
perante o inimigo que perdeu inclusive seu direito de guerra, “o ai dos vencidos em toda
sua dureza e crueldade”
73
Com o poder da comunidade aumentado não se mais tanta importância aos
indivíduos que se desviam da conduta exigida. Isto porque, tem a vontade mais firme de
resgatar e tornar resgatável toda conduta, exaltando o poder de tal comunidade e
diminuindo o impacto da ação que excede a prescrição moral na comunidade. Quanto
maiores o poder e a consciência de si da comunidade, mais leves as leis do direito penal.
A indulgência perante o criminoso torna o credor mais poderoso, pois sinais de sua
capacidade de suportar ofensas, de sua graça. Aquilo que antes deveria ser pago, agora
pode passar despercebido. Ocorre a supressão da comunidade de si mesma por si
mesma, quando há equivalência entre graça e privilégio de poderosos.
O ressentimento é, contudo, muitas vezes, o terreno onde tentam encontrar a
origem da justiça, enquanto a própria justiça sacralizada não passa de ressentimento,
pois promove os afetos reativos a fim de vingança, propiciando uma consciência que se
configura como ressentida.
Uma das hipóteses de surgimento da ‘má consciência’, conforme indicado
anteriormente, encontra-se na tentativa de imprimir forma ao homem de natureza forte e
nômade pelo Estado. Em tais condições de aprisionamento de seus mais fortes instintos,
a vontade de poder, dentre estes instintos, volta- se contra o próprio homem, para
efetivar o mecanismo de desenvolvimento da alma que aparece como o espelho da ‘má
consciência’. Nietzsche utiliza-se da imagem do homem como “o animal que se fere nas
barras de sua própria jaula”
74
. A perpetuação das forças reativas de instituições e
organizações próprias do estado tende a negar o que difere, não hierarquizando com
base na diferença. Deste modo, o homem é obrigado a universalizar para si um sentido e
não apenas eleger um. Deve agora acatar valores e, de modo algum, criar os próprios.
A tirania acaba por imprimir forma ao homem. Mudanças que não são vistas
como motivo de revolta ou ressentimento, de modo que não é neles que nasce a ‘má
consciência’, mas ocorre a eliminação de um enorme quantum
75
de liberdade.
76
É este
quantum “que foi, em germe, a ‘má consciência’”.
77
73
Idem, ibidem
74
Idem, Ibidem, Segunda Dissertação, § 16
75
Da mesma forma que o conceito de Vontade de Potencia, quantum também não é remetido, na obra de
Nietzsche, à idéia de ser, mas, configura-se simplesmente quantidade de ação, e ao conjunto delas
associa-se a aproximação da idéia nietzschiana de mundo como vontade de potência.
76
Cf. Paschoal, A. Nietzsche e a auto-supressão da moral, pp. 46,47
77
Cf. GM, Segunda Dissertação § 17
59
Vale notar que a força ativa que age nos organizadores do estado, estes a quem
Nietzsche denomina “artistas da violência”, é a mesma que, em escala mais baixa,
dirige- se interiormente ao homem e que cria a ‘má consciência’. É a mesma vontade de
potência que constrói os ideais negativos; a mesma vontade de potência ou instinto de
liberdade que apenas se extravasa em si mesmo de modo violento. Diferem-se apenas
pela maneira como se dirigem, ou para fora, ou para dentro do próprio organismo de
forma cruel.
A crueldade humana é reprimida pela interiorização, pelo aprisionamento
promovido pelo Estado. Proibido de ser “besta na ação”, tendo obstruída a saída mais
natural para a sua crueldade, o homem cria para si as “bestialidades das idéias”,
inventando a má consciência para poder fazer mal a si próprio.
Este autossacrifício do homem de consciência, levado às últimas
consequências, aumenta sua dívida com Deus. Diante Dele, os próprios instintos viram
culpa. Culpa pela rebelião contra seu ancestral originário, o pai do mundo. Este homem
necessita ainda de contradições como Deus e o Diabo, pois todo Não que diz a si
mesmo, ecoa como um Sim a tudo o que lhe é externo. Como se fossem a própria
realidade, as noções de divindade, Deus juiz, Além, Inferno, bem como a
“incomensurabilidade do castigo e da culpa”
78
Com a sublimação da crueldade, através de um desvio desta para um plano
imaginário, têm-se criadas as condições ideais para a reinterpretação da relação entre
responsabilidade-dívida como sendo responsabilidade-culpa. Esta re-apropriação do
conceito de responsabilidade condições também para o surgimento de um tipo de
mal-estar no homem. O advento do cristianismo assinala a interpretação de
responsabilidade como uma falta, uma culpa, fazendo da própria responsabilidade algo
culpável. A dívida, porém, anteriormente, podia ser paga, mesmo que com a dor. De um
modo ou de outro, a dor permanecia exteriorizada e podia liberar-nos da dívida, o que
é possível no homem que entende a própria dívida como uma atividade que o impele
a ser responsável pelas forças ativas as quais aciona. Segundo Deleuze
79
:
78
Idem, Ibidem, Segunda Dissertação, § 22
79
Sobre as noções de força em Nietzsche, recorre-se a Deleuze, em suas próprias palavras: “Toda a
interpretação é determinação do sentido de um fenômeno. O sentido consiste precisamente numa relação
de forças, segundo a qual algumas agem e outras reagem num conjunto complexo e hierarquizado”.
Diante de um fenômeno, pode-se distinguir forças primárias ativas, de conquista e subjugação, e forças
reativas, secundárias, de adaptação e de regulação. Deleuze opera por uma distinção não apenas
quantitativamas qualitativa e tipológica das forças. “Porque a essência da força é estar em relação com
outras forças: e, nesta relação, ela recebe a sua essência ou qualidade. A relação da força com a força
chama-se ‘vontade’. É por isso, antes de mais nada, que é preciso evitar os contra-sensos sobre o
60
Quando as forças reativas assim se enxertam na atividade
genérica, não lhe interrompem a ‘linhagem’. Mesmo uma
projeção intervém: é a dívida, é a relação credor-devedor que é
projetada, e que muda de natureza nesta projeção. Do ponto de
vista da atividade genérica, o homem era tido por responsável
pelas suas forças reativas; as suas próprias forças reativas eram
consideradas como responsáveis perante um tribunal ativo.
Agora, as forças reativas aproveitam com o seu adestramento
para formar uma associação complexa com outras forças, essas
forças sentem-se juízes e senhores das primeiras. A associação
das forças reativas acompanha-se assim de uma transformação da
dívida: esta se torna dívida para com ‘a divindade’, para com ‘a
sociedade’ para com ‘o Estado’, para com instâncias reativas (...)
não se trata de modo algum de uma libertação da dívida, mas de
um aprofundamento da dívida. Não se trata de modo algum de
uma dor pela qual nos sentimos devedores para sempre. A dor
apenas paga os juros da dívida, a dor é interiorizada, a
responsabilidade-dívida se torna responsabilidade-culpa.
80
O envenenamento das idéias promove o aprisionamento de uma vontade de
dominação, que recua contra o próprio indivíduo. Isto porque, a força que antes se
projetava para fora, agora se dirige ao homem, introduzindo, nele mesmo, a culpa. Em
outras palavras, o homem passa a ser responsável por sua própria dor porque
desenvolveu uma consciência de culpa. Para Barrenechea,
princípio nietzschiano de vontade de poder. Este primeiro não significa (pelo menos não significa em
primeiro lugar) que a vontade queira o poder ou o desejo de dominar’. Enquanto interpretarmos a
vontade de poder no sentido de ‘desejo de dominar’, fazêmo-la forçosamente depender de valores
estabelecidos, os únicos capazes de determinar quem deve ser ‘reconhecido’ como o mais poderoso neste
ou naquele caso, neste ou naquele conflito. Desse modo ficamos sem conhecer a natureza da vontade de
poder como princípio plástico de todas as nossas avaliações, como princípio escondido para a criação de
novos valores não reconhecidos. A vontade de poder, diz Nietzsche, não consiste em cobiçar nem sequer
em tomar, mas em criar e em dar”. Para Deleuze, “o poder como vontade de poder, não é o que a
vontade quer, mas aquilo que quer na vontade (Dioniso em pessoa). A vontade de uma força obedece.
Aos dois tipos ou qualidades de forças em presença e a sua qualidade respectiva num complexo”. A
vontade de poder é também um elemento móvel, pluralista. É por vontade de poder que uma força ativa
comanda, mas é também por vontade de poder que uma força reativa obedece. Aos dois tipos ou
qualidades de forças, correspondem, respectivamente, duas faces, dois qualia da vontade de poder.
Porque a vontade de poder designa a afirmação para as forças ativas. A vontade de poder exige a
afirmação da diferença, nestas forças, a afirmação está primeiro, a negação não passa de uma
conseqüência como um acréscimo. nas forças reativas, pelo contrário, sua função está em opor-se
primeiro ao que elas não são, em limitar o outro: nelas a negação está primeiro, é só pela negação que elas
se revestem de uma aparente de afirmação. Afirmação e negação são, portanto, os qualia da vontade de
poder, como ativo e reativo são qualidades das forças. “Da mesma maneira que a interpretação encontra
os princípios do sentido nas forças, a avaliação encontra os princípios dos valores na vontade de poder”.
Gilles Deleuze, Nietzsche, pp.21, 22, 23.
80
DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. Trad. de António M. Magalhães. Rio de Janeiro: Editora Rio,
1976. pp. 211, 212.
61
“No tripé conceitual sujeito-substância-causalidade encontramos
o fundamento de toda e qualquer atribuição de responsabilidade.
um sujeito livre poderia agir sobre o mundo sobre as
substâncias – e sobre os seus semelhantes. Toda imputação moral
nasce desta interpretação dinâmica dos atos.”
81
Nota-se, portanto, uma inversão da noção de responsabilidade quando tal
conceito atrela- se à noção de culpa, com a prerrogativa da crença na causalidade da
vontade.
Percebemos a enorme importância com que a disjunção memória/esquecimento
se impõe no processo genealógico de investigação acerca da responsabilidade, da vida
social do homem e sua possibilidade; inclusive como estas duas forças se relacionam a
fim de proporcionar uma moral afirmativa, ou negativa, que visa à criação de novos
horizontes ou apenas gera ressentimento.
A vontade de encontrar culpados se mostra, então, como um motor das ações
humanas. Neste sentido que Nietzsche afirma que o que faz sofrer à maioria não são os
aspectos dolorosos da vida, em si mesmos, e sim a ausência de explicação, portanto a
falta de culpados para este sofrimento. Para tanto, os homens voltaram suas queixas e
sua raiva para si mesmos, tendo, neles mesmos, os culpados pelo sofrimento diante de
tudo o que de trágico na vida humana. Daí, surge um tipo de homem capaz de
acreditar em pecado original, em causa e efeito totalmente determináveis, pois,
existia previamente um tipo de consciência capaz de acolher todos os conceitos morais
e religiosos de forma inquestionável. Tais conceitos que se querem universais e
irrefutáveis aparecem como o remédio que pedem os doentes de consciência para
manutenção da própria enfermidade.
Segundo Azeredo: “(...) a atividade genérica da cultura, que deveria suprimir-se
no seu produto, o individuo soberano, muda de rumo, inverte a direção e forma o
indivíduo dependente.”.
82
O homem, promessa de soberania, é tornado expressão de reação, ao adquirir a
doença da consciência. O impedimento da realização do homem soberano liga-se à
universalização de um único sentido para si e para a vida, não mais cria seus próprios
valores, apenas cultua os valores impostos. Ocorre, então, a perpetuação das
associações de forças reativas, não hierarquizadas com base na diferença, a partir do
que conclui-se que a degeneração do homem se efetiva nas ficções geradas pelo
81
Barrenechea, Nietzsche e a Liberdade, p.72
82
AZEREDO, Nietzsche e a dissolução da moral, pp 152, 153
62
ressentimento e pela consciência enferma. O homem se pauta, com este doença, por
uma vontade em sentido negativo. Isto é, se antes desenvolvia plenamente seus
instintos, com a mudança da condição de animal para ser social/cultural, com a sua
inserção na comunidade, deteriora-se o valor de seus instintos. Por este motivo, se vêem
obrigados a desenvolver atributos e habilidades “espirituais”, identificando sua essência
com sua consciência, que conforme afirma Nietzsche, seria a parcela mais tardia e frágil
das transformações orgânicas que ocorreram no homem, para poderem a partir dela,
medir e calcular as relações de causa e efeito.
“O curso dos pensamentos e inferências lógicas, em nosso
cérebro atual, corresponde a um processo e uma luta entre
impulsos que, tomados separadamente, são todos muito ilógicos
e injustos; habitualmente experimentamos apenas o resultado da
luta: tão rápido e tão oculto opera hoje em nós esse antigo
mecanismos.”
83
Mas, o conjunto de instintos que operam no homem continua em seu interior, e
tais instintos ainda precisam ser liberados, de modo que, voltam-se contra o próprio
homem dirigindo-se para dentre dele. “Todos os instintos que não se descarregam para
fora voltam-se para dentro isto é o chamo de interiorização do homem: é assim que
no homem cresce o que depois se denomina sua ‘alma’”.
84
Notemos ainda que, segundo a interpretação deleuziana, existe um aspecto
tipológico e outro topológico para a investigação do ressentimento e da má consciência.
O primeiro deles mostra-se na multiplicação da dor pela interiorização da força, e, o
segundo, dá-se pela noção de falta, de pecado, que acaba por introduzir a culpa. É
importante também verificar a relação existente entre senhores e escravos, no que diz
respeito à má consciência e à relação de forças nos dois tipos de homem.
A interiorização da culpa e a criação da consciência desdobram-se em dois
momentos, conforme propõe Azeredo: num primeiro momento, ocorre uma ruptura,
uma fatalidade, com a criação da consciência; em um segundo momento, ocorre
uma ação violenta sobre uma população a fim de submetê-la a novas condições de
existência, através da imposição de normas. Dá-se forma ao homem com o surgimento
do Estado, com a imposição de força. Deste modo, a supressão da diferença pelas
organizações políticas e religiosas faz com que a potência nestes homens dominados,
antes criadora de valores, transforme-se em expressão da reação. O Deus cristão, por
83
GC
§111.
84
GM, Segunda Dissertação §16
63
sua vez, expressão máxima do monoteísmo, promove, a partir da reação, a idéia de
responsabilidade moralizada. Se antes a culpa e o dever ainda não eram moralizados, a
responsabilidade, por conseguinte, não se ligava à culpa. A responsabilidade se
relacionava com a dívida, e a dor ainda valia como moeda. Pela interpretação do
cristianismo, a responsabilidade torna-se culpável, pois nasce de uma falta. O homem
responsável, então, tornou-se culpado, inclusive pelo próprio sofrimento.
Retomando a interpretação tipológica e topológica acerca da consciência,
percebemos que, em seu caráter tipológico, a consciência desenvolve-se em consciência
da culpa e torna-se mais sofisticada.
Em um primeiro momento, então, a força interiorizada produz e multiplica a dor,
e num segundo momento, a dor interiorizada produz a culpa. A passagem de um
momento ao outro se efetua pela prática sacerdotal, que projeta o Deus cristão para
promover a sublimação da crueldade. Deus, ao moralizar a culpa e o dever, torna a
dívida impagável. E ainda toma para si o castigo, que seria a única forma de expiação
da culpa.
Em resumo, temos que a culpa antes correlata da dívida, agora ganha significado
de falta. Pela análise filológica, percebe-se que tal relação de culpa e dívida é a
predominância das forças reativas sobre as forças ativas. Desta relação entre os tipos de
força é que Nietzsche avalia uma qualidade afirmativa da vontade e outra negativa.
Aniquila-se a interpretação unilateral com a ressignificação e avaliação
remetidas às forças e vontades de potência
85
. Em Azeredo, temos que, falar em vontade
de potência é resgatar a pergunta ‘quem?’:
“Falar em vontade de potência é retomar a pergunta ‘Quem?
aplicando-a às análises nietzschianas. O desenvolvimento da
responsabilidade remete necessariamente às forças e às vontades
de potência, tornando imprescindível verificar as relações de
85
Em Barrenechea, sobre este conceito podemos ler: “A vontade de potência é um mar de forças, em
constante contradição, em permanente confronto, perfilando indistintamente todas as configurações de
forças do mundo, seja o macaco, a pedra, o vegetal, ou o homem.” E mais adiante acrescenta: “A vontade
de potência exprime uma unidade-plural de forças que configuram o jogo do mundo; é unitária porque
não vários tipos de acontecimento (humanos e naturais, causas finais e causas eficientes, sujeitos e
coisas), pois tudo segue a mesma dinâmica do devir, e plural porque as forças são inúmeras e em contínua
mudança.” Cita ainda o fragmento póstumo em que podemos encontrar uma clara definição do conceito,
posta por Nietzsche: “E sabeis o que é para mim o mundo? Devo mostrá-lo em meu espelho? Este
mundo: uma monstruosidade de força, sem início, que não se torna maior, nem menor, que não se
consome, mas apenas se transmuta (...) mas antes como força por toda parte, como jogos de forças e
ondas de forças, ao mesmo tempo um e múltiplo. (...) esse mundo é vontade de potencia e nada além
disso! E vós próprios sois essa vontade de potência e nada além disso! ( fragmento Póstumo junho-
julho 1885 [12]) (Barrenechea,M. Nietzsche e a liberdade, p. 73)
64
potência, em termos de aumento ou decréscimo de potência,
manifestas na diferença presente na responsabilidade ligada à
dívida e ligada à culpa. Isso permite detectar o que se processa
com a vontade num e noutro caso e, a partir disso, perguntar:
quem quer a responsabilidade como dívida? O que quer aquele
que associa dívida com responsabilidade? Quem quer a
responsabilidade como culpa? O que quer aquele que associa
culpa à responsabilidade? Em ambos os casos, é a vontade de
potência, que contudo, não quer o mesmo em ambos.”
86
Relacionado esta idéia às duas qualidades possíveis para a vontade de potência,
podemos compreender melhor a ressalva que Nietzsche faz a respeito das formas de
divindade que os homens criam para si. Temos de um lado o Deus cristão, que instaura
a culpa e a dívida impagáveis, e inexpiáveis, e de outro os deuses gregos, conforme
indicado anteriormente. As funções de cada uma das criações e formulações de Deus
aqui investigadas tornam claras as diferenças no próprio sentimento dos homens que
criam os deuses gregos e o Deus cristão.
Os Deuses gregos têm afinidades com uma vontade de potência afirmativa, e
nisso servem para enaltecer o que de humano sobre a terra. O Deus cristão promove
a vergonha do homem diante do homem, sendo, então, a expressão máxima da vontade
de potência em seu modo negativo. Fica claro com estas afirmações que, as forças que
se perpetuam para a criação das duas formas de divindade pesquisadas por Nietzsche se
diferenciam quanto a sua qualidade. Há, portanto, dois tipos de homens, dada sua
relação com a qualidade das forças que os fazem emergir.
O Deus cristão anuncia-se como o remédio para a falta de sentido que aflige o
homem de consciência já doente, e passa a ser o principal veneno para a degeneração da
humanidade.
Deus, neste formato, é a compensação do sentimento de falta e também seu
produtor. No entanto, a vida pautada pelos quatro grandes erros, necessita de um Deus
onipotente e único, pois se apresenta como o amparo que o homem necessita para
suportar a vida. Todas as formas de compreensão a respeito do homem, com a
efetivação da consciência e com a cristalização do ressentimento no organismo
daquele que vive, relacionam-se diretamente com a crença na existência de um Deus
todo poderoso. O horizonte metafísico criado pela religião é a resposta que pedem os
crentes e desamparados, que necessitam de justificação para a vida. Sabe-se, no entanto,
que o desenvolvimento das ciências, com base nas ilusões de cálculos precisos de
86
AZEREDO, Nietzsche e a dissolução da moral, p.132
65
causas e efeitos e da suposição de causas para tudo o que existe, acaba por substituir a
crença em Deus e nos valores metafísicos que ela implica. Tem-se desta forma, uma
fórmula vastamente explorada pela filosofia e por Nietzsche, denominado a “Morte de
Deus”, que se configura como uma tentativa de superação do campo metafísico de
investigação e configuração do mundo.
2.2 Niilismo e liberdade
Em Gaia Ciência, Nietzsche, em seu famoso aforismo, afirma que foi o homem
quem matou Deus:
“Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã
acendeu uma lanterna e correu ao mercado e pôs-se a gritar
incessantemente: ‘procuro Deus! Procuro Deus? E como se
encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele
despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está
perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança?
Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós?
Embarcou num navio? Emigrou? Gritavam e riam uns para os
outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-
os com seu olhar. ‘Para onde foi Deus?’, gritou ele, ‘já lhes direi!
Nós o matamos vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas
como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o
mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que
fizemos nós, ao desatar a terra de seu sol? Para onde se move ela
agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis?
Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a
frente, em todas as direções? ... Não vagamos como que através
de um nada infinito?... Não ouvimos o barulho dos coveiros a
enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina?
também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua
morto! Nós o matamos”
87
O anúncio da “Morte de Deus” significa o fim de um modo tipicamente
metafísico de pensar. O cristianismo, para Nietzsche, ainda está baseado na oposição
aparência e realidade, verdade e falsidade, bem e mal. A “Morte de Deus”, então, é um
símbolo da superação do horizonte metafísico. É a hipertrofia do desencantamento ou a
afirmação de um mundo cujo pathos se destitui da outra-mundanidade para postular o
mundo como causa de si.
A “Morte de Deus” que se efetua pela confiança na ciência ainda não é
suficiente para libertar o homem, pois, essa vontade de verdade ainda carrega uma
87
GC §125
66
bagagem com o peso da divindade da verdade e se estende à confiança cega na ciência.
Se nos livramos até certo ponto de Deus, transportamos a morada da verdade divina do
céu para a terra, mas não temos a questão resolvida, acabam criando-se problemas ainda
não superados.
Ainda em Gaia Ciência ironicamente podemos ler:
“Novas lutas Depois que Buda morreu, sua sombra ainda foi
mostrada numa caverna durante séculos uma sombra imensa e
terrível. Deus esta morto; mas , tal como o os homens, durante
séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada.
Quanto a nós nós teremos que vencer também a sua
sombra!”
88
Após determinar a necessidade humana de acreditar como sendo verdade suas
próprias edificações intelectuais, Nietzsche avalia na filosofia qual a qualidade do
impulso que move o conhecimento na direção da verdade. Pretende encontrar o porquê
do amálgama verdade e moral, pois a verdade é usada como o argumento central da
moral. Recusando-se a aceitar a busca pela verdade como o motor principal de seu
pensamento, Nietzsche denuncia o uso da filosofia como justificação da moral. Pois, se
pergunta sobre o valor da verdade, o que nos leva necessariamente a questionar qual
afeto gera a necessidade da busca e da crença na verdade. Nietzsche tem em mente a
idéia de que o olhar perspectivista serve de base para desmistificar o conhecimento,
pois, o que se pode perceber com clareza é a parcialidade de tudo aquilo que
acreditamos conhecer. Contudo, a grande estima pela verdade, sendo ela o parâmetro
para a imposição de valores metafísicos, morais e religiosos, acaba por estender sua
crítica ao próprio sentido da verdade. Quando esta crítica alcança a idéia da existência
de Deus, a moral atinge a si mesma, isto porque sua justificação e sua validade estão
atreladas a existência perfeita e absoluta de um Deus. Deste modo, a “vontade de
verdade” transfigura-se em vontade de engano. A “Morte de Deus”, portanto, é
conseqüência do mesmo impulso que anteriormente o criou. A verdade religiosa ou
metafísica deixa de ter seus créditos, e não pode mais servir como pilar das prescrições
morais de certo e errado, bem e mal. No entanto, a conseqüência da decepção em
relação às verdades com as quais o homem se consolava é a perda na crença dos valores
tidos como superiores, tal desmistificação da verdade acarreta num sentimento de vazio,
o niilismo. O vazio é gerado, pois mesmo que de forma ressentida, por milênios, o
cristianismo serviu de consolo ao animal de rebanho para suportar a existência com
88
Idem, Ibidem, §108
67
sentidos postulados, do mesmo modo, os preceitos morais serviam de base para a ação
do homem, pois determinavam o que era certo e errado. Desamparado de valores
superiores, o homem sente desespero por não saber exercer o papel de criador de
valores. O sintoma da falta de sentido para a existência, o niilismo, é a negação da vida,
um desejo íntimo de que ela fosse diferente, desejo de quem se sente impotente, sem o
consolo da existência e da piedade divinas. Em várias passagens, Nietzsche afirma que a
humanidade está doente, o que significa dizer que a modernidade está em profunda
crise. Esta crise no pensamento europeu moderno, para Nietzsche ocorre
concomitantemente à crise das instituições que garantiam e se embasavam em valores
antigos. Tendo os valores questionados, e esvaziados, as instituições que deles se valiam
perdem sua força. A consequência desta decadência traz consigo o questionamento
profundo a respeito de sentido da existência. Nietzsche pretende derrubar ídolos, e
demonstra que existe, na realidade, um sem número de ídolos, e não de verdades.
Mesmo que empregado de forma dispersa e em vários sentidos ao longo de sua obra,
podemos eleger um significado do termo niilismo para Nietzsche, em qualquer dos
casos, niilismo que dizer desvalorização, esvaziamento de sentido dos valores. O
primeiro momento em que Nietzsche aponta para esse estado de desengano em relação
aos valores, se encontra na filosofia socrático-platônica. A grande estima pela
racionalidade, pelo ‘em si’, aparece como sintoma de doença, e de decadência dos
instintos que deveriam operar a favor da vida. Com a proposta dialética, inaugura-se o
ideal de vida eterna e feliz, com a superação desta vida. Junto com a negação da vida,
conforme dito anteriormente, deve ser edificado um mundo para o qual se projetam
como um ‘sim’ todo o ‘não’ que se diz a esse mundo. Como se sabe, também o
cristianismo valeu-se desta estima pela racionalidade, por virtudes platônicas, utilizando
ainda a dicotomia de dois mundos, elabora de forma mais arrasadora o “ideal ascético”.
Tal ideal se mostra como saída, como substituto da ausência de explicação para o
sofrimento humano. Esta é a receita de vida feliz, é sob o peso deste ideal que se
balizam as atitudes e a vida humana, sempre tendo como alvo último a vida eterna,
garantida a todos os que conseguirem negar e dominar seus instintos mais básicos, em
nome de uma “santidade”, do merecimento da vida feliz, livre de sofrimentos e aflições.
Com a “Morte de Deus”, no entanto, ocorre a auto-superação da metafísica, ela não
pode mais garantir sentido a vida, pois como vimos anteriormente, a vontade e verdade
que a motivava, estende sua crítica à possibilidade de verdade que poderia conter a
metafísica ocidental, sabe-se, no entanto, que a explicação que a metafísica e a religião
68
utilizavam para dar sentido ao mundo, mostra-se como insuficiente, e improvável. É o
mesmo ideal de racionalidade a qualquer custo o criador e o destruidor dos ideais de
verdade que conferiam o caráter inquestionável da existência de Deus. O homem
moderno enxerga agora, os ideais supramundanos, a existência divina também como
valores humanos, enquanto desdobramento da própria vontade de verdade, que antes
guiou a criação de “verdades” úteis aos carentes de explicações. Sobre o ideal ascético,
em Nietzsche, percebemos que surge a partir da necessidade de explicações para a vida,
que leva o homem a preferir “querer o nada a nada querer”
89
, pois ele carece de
objetivos que pareçam estar acima dele. Ainda sobre este conceito, temos que é a
expressão da própria reatividade, pois retira da vida a noção de atividade, de vontade de
potência, e coloca a reatividade como a parte mais importante para a vida, como ponto
de partida para a investigação acerca do sentido da existência
90
, é esta a configuração do
niilismo como expressão de reatividade.
Segundo
Vilas Boas:
“Ao contrário do que se possa pensar, a morte de Deus não é um
evento repentino, mas antes é entendida por Nietzsche como o
necessário ponto de culminância do percurso da moral no ocidente.
No capítulo intitulado “Como o mundo verdadeiro’ se tornou
finalmente fábula”, da obra Crepúsculo dos Ídolos, o pensador
lança um olhar para a trajetória intelectual das idéias ao longo da
civilização ocidental e mostra que este evento da derrocada dos
valores cristãos deu-se na forma de um processo gradual de perda
de força — no qual a hipótese moral cristã passa de uma explicação
necessária e suficiente para o mundo e para o homem a “uma idéia
tornada inútil, logo refutada”25 — que culmina no reconhecimento
de que aquilo que antes se pensava verdadeiro, eterno e indelével
nunca passou de uma fábula “humana, demasiado humana”“.
91
Ainda segundo Vilas Boas, a “Morte de Deus” não aparece como um evento que
atinge de modo singular os homens, e sim, que esta derrocada dos valores metafísicos
ecoa na sociedade ocidental como um todo. No entanto, a “Morte de Deus” parece não
ser percebida igualmente por todos os homens, a este respeito, Vilas Boas diz que é
necessário atentar para a diferenciação proposta por Nietzsche sobre o termo
“destacado”, em contraponto ao “homem comum”. Tal filósofo artista, ou espírito livre,
destacado da massa, possuiria maior astúcia, percepção mais refinada, constatando, por
isso, o evento de esvaziamento de valores transcendentes garantidos pelo ideal ascético.
89
GM, Terceira Dissertação §1
90
Cf , GM Segunda Dissertação §12
91
Vilas Boas, J. P., Niilismo e vontade de verdade, Revista Trágica - 1º semestre de 2009 - nº3 pp.71-90
ISSN 1982-5870)
69
O homem comum, por sua vez, não acata as conseqüências da “Morte de Deus”, pois
como mostra o aforismo de Gaia Ciência
92
, o mundo ainda não está liberado do peso da
sombra de Deus. Trata-se ainda de um niilismo incompleto, que ainda necessita de
vinculações entre a existência e explicações que justifiquem a vida. Percebemos então,
que inclusive para a postura niilista, podemos apreciar diferenças radicais quanto a
qualidade da constatação da falta de sentido no mundo, temos então, um niilismo
passivo, e outro ativo. O niilismo passivo é representado pelo cansaço, pelo sentimento
de fracasso, que a derrubada dos ídolos provoca nos espíritos debilitados.
A interpretação escatológica do tempo teve uma grande
influência em diversas correntes da metafísica ocidental. As
religiões, por sua vez, têm na figura do Apocalipse, uma imagem
arquetípica da função salvadora do futuro, associada à missão
purificadora do presente. Não obstante, Nietzsche assinala, em
Da Redençãoque, após a queda dos idealismos, a vontade não
pode mais sonhar com uma futura redenção num mundo ideal.
Após a morte de Deus a crença em ideais transcendentes não tem
mais efetividade, deixou de ser promessa e alvo da vida humana
(...)
93
A expressão “Morte de Deus”, portanto, é o desaparecimento do fundamento
divino, espiritual antes presente e atuante na cultura. Que acarreta duas atitudes
distintas, quanto à qualidade de forças que emergem do desencantamento do mundo, ou
em outras palavras, da verificação de que o mundo, posto como em si, é na realidade,
“humano, demasiado humano”. Desta forma, a constatação que tem como conseqüência
o niilismo em suas várias formas, abre espaço para a libertação do homem, para a
compreensão de que, destruídos os ídolos, expande-se seu campo de ação. Para tal idéia
de associação entre niilismo e libertação, recorremos à interpretação de Barrenechea,
sobre as formas e etapas do processo de libertação. Aponta, para tanto, para os
momentos que antecedem uma libertação profunda, que exige a relação com o processo
artístico para o exercício da liberdade do homem que se coloca como o artista da própria
existência, que aceita a função de provedor de sentido para o mundo, e para a existência,
como um todo.
Barrenechea propõe uma investigação que parte da determinação de três
momentos descritos na obra de Nietzsche. Um momento da liberdade servil, ou seja, de
pseudoliberdade, onde a moral coercitiva aparece como prerrogativa das ações
92
Cf , GC §108, supra citado.
93
BARRENECHEA, M. Nietzsche e a Liberdade, p.100
70
humanas. Neste estágio, os ideais transcendentes de além mundo, sujeito, espírito e
alma ainda são os balizadores da conduta humana. Estes ideais são acatados, pois o
homem padece de uma doença, de um sofrimento físico, que exige a criação de ideais
que o afastem do sentimento de vazio promovido pela tragicidade da existência. Este
primeiro momento tem como imperativo um “tu deves”. No entanto, com a “Morte de
Deus”, ocorre também o ocaso dos valores divinizados e transcendentes. Para
Barrenechea, este segundo momento efetua-se com a negação da transcendência, mas se
caracteriza como uma liberdade negativa, que passa apenas a criticar e rejeitar os
valores morais coercitivos aplicados para difundir a pseudoliberdade. É este o momento
de dizer Não a tudo aquilo que afasta o homem da terra e de seus instintos, configura-se
como a “liberdade de”. Mas, ainda é tarefa do homem abrir um espaço para a criação e
afirmação de sua existência, tal como se configura, propiciando o exercício de sua
liberdade em termos estéticos, ou seja, a criação como apanágio da liberdade plena para
o homem. Somos, ainda neste estágio, niilistas. O caminho que se pretende abrir dará
espaço para o novo, para uma nova significação dos conceitos tornados transcendentes
pela tradição a que Nietzsche dirige seu martelo. Como um terceiro momento, temos,
finalmente a necessidade do retorno à terra e à criação, como exercício, a plenos
pulmões da atividade que caracteriza, em Nietzsche, todo o fazer humano, em termos
essenciais e mais naturais.
Tem-se, deste modo, dadas as condições para o vislumbre de uma nova condição
para a vida humana, enxergando a vida não mais como o lugar do sofrimento, que
antecede a felicidade que se experimentaria após a passagem deste mundo para um
mundo melhor.
Nietzsche, com a desmitificação do absolutismo dos valores, e ao redesenhar a
criação e o acatamento dos valores com o método genealógico e filológico, deixa para a
humanidade um terreno preparado. A terra aparece como o lugar da realização de um
tipo de homem que, para nosso filósofo, são os que têm ouvidos para tais novidades,
que pode apropriar-se do niilismo como uma herança de forma ativa.
Percebe-se uma perversão do gosto, uma inversão na compreensão das
necessidades e faltas sentidas pelo homem persistentes milênios. É necessário
destruir ideais, pois neles residem a impossibilidade de atribuição de novos valores e a
reatividade diante dos valores impostos para o nivelamento do homem, que são as bases
de garantias de uma vida decadente. Para tanto, Nietzsche pretende inserir no mundo a
psicologia da vontade de potência que possa determinar suas condições. A partir da
71
identificação de uma repressão de uma vontade de potência que surge na
consciência e que recua para si, torturando-se, é possível que Nietzsche possa apresentar
sua nova perspectiva para a falta, a da interpretação. Lança- se, do mesmo modo, a
investigar a ligação entre as espécies de interação dos homens com deuses e sua
analogia com as relações contratuais. Desmitifica-se assim o valor do plano
transcendente com vistas em afirmar a imanência, que decorreria em desconfiança
perante toda a universalidade de valores e qualquer valor absoluto como os valores
morais.
Em Genealogia da Moral, Nietzsche problematiza inclusive esta mesma relação
invertida na noção de desinteresse com o egoísmo. Revelando que nas questões morais,
o que se coloca são interpretações de uma classe dominante de algum modo, sendo
tomadas como modos de valoração absolutos. Denuncia-se, assim, a crença irrestrita nos
valores de bem e mal. A crença neste tipo de valoração absoluto caracteriza-se como o
conceito que servirá de alicerce para a edificação dos ideais de liberdade enganadores.
Com as bases da crença irrestrita na universalidade dos valores abaladas, temos um
caminho para a superação da forma de vida até então posta como única possibilidade
para o homem. Se acatarmos o modo perspectivista de avaliar o mundo, tornamos
insipientes toda e qualquer formulação absoluta sobre os valores e a vida. A descrição
dos processos sociais que se desenvolvem pelas mãos do homem, avaliados
historicamente, demonstram o fato da verdade servir como forma de legitimação da
moral. Para o discurso moral, esta seria uma forma de conhecimento da verdade. Para
Nietzsche, ao contrário, a moral é apenas representação, interpretação. Pelo método
genealógico e pelo senso histórico, desmonta-se a hipótese de que a moral seja algo em
si, já que é possível analisar a gênese de seus valores. A moral pela perspectiva
nietzschiana é apenas criação e reapropriação constantes de significações, não podendo
responder, portanto, como um conhecimento absoluto, verdadeiro em última instância.
Denunciando o caráter ficcional, ou a parcialidade das interpretações que geram
tais valores e com a desconfiança na objetividade de um conhecimento que queira de
superar a particularidade de nossos afetos, abrimos caminho para a exposição de uma
compreensão de liberdade que supera o campo moral. Pela inserção deste conceito em
questionamentos e possibilidades estéticas somos estimulados para seu exercício em
plena vitalidade e exuberância.
O homem “livre” é aquele que avalia, honra e despreza, a partir de si,
percebendo seus iguais, distinguindo enquanto confia. A responsabilidade aqui, seria
72
então, a consciência de um tipo de liberdade de quem tem poder sobre si mesmo e até
sobre o destino. É através deste tipo de consciência que se pode dizer sim a si mesmo,
que o homem torna-se capaz de fazer e cumprir promessas. Nestes termos, autônomo e
moral são necessariamente excludentes entre si. Isto porque, o indivíduo soberano,
autônomo e, portanto, supramoral, tem vontade própria. É independente e duradouro, ao
passo que só é igual a si mesmo.
73
Capítulo III A liberdade Artística e a Moral Afirmativa
“Somos fiéis ao mundo não
quando admitimos que tudo
deve ser como é, mas quando
nos aliamos à necessidade para
criar galinhas, livros, filhos,
instituições desdobrando a
necessidade em seu par
perfeito, a liberdade”. Olimpio
Pimenta.
Tentamos até aqui, pontuar os procedimentos e associações utilizados pela
moral tradicional, para posteriormente avaliar a articulação dos valores morais como
prescrições para a ação humana com o sentimento de vingança. Podemos agora
investigar mais precisamente o sentimento de desamparo produzido pelo niilismo. E
ainda apresentar uma proposta de saída para o desencantamento do homem em relação
ao mundo, uma saída que transforme, de forma artística, o desespero em criação.
Pretendemos, neste ponto, lançar-nos a identificar um modo saudável de
proceder diante da criação de valores, e da função de legisladores. Função cabível ao
homem capaz de superar o niilismo e aceitar a tragicidade da existência de forma
plástica, artística.
3. Morte de Deus: um legado.
Pretende-se esclarecer a seguir, a proposta de um novo tipo de moralidade que
mantém grandes afinidades com o domínio da estética. Conforme adiantamos, é uma
perspectiva da vida que leva em conta a existência enquanto exigência de força
transformadora.
Isto porque, neste ponto, Nietzsche abre terreno para a exposição de
considerações éticas capazes de promover a afirmação da vida, a partir do
reconhecimento da existência e de seus mecanismos ou valores para ela criados como
não sendo incondicionais, mas apenas postulados, podendo e devendo então ser
questionados e reavaliados, respeitando a necessidade como as regras do jogo. Essa
74
ética só pode se realizar fora do nível do ressentimento, da culpa e da reatividade. Deve,
acima de tudo, recriar seus ideais.
Temos, agora, desmascarado o caráter de parcialidade que encontramos em
todos os valores para a ação do homem postos como parâmetros absolutos pela moral.
Tal constatação, como dito no capítulo anterior, promove um sentimento de vazio no
homem. A vida não está mais pautada em valores transcendentes, pois a mesma vontade
de verdade que guiou os filósofos em suas atividades, acaba por invalidar seu
pressuposto. Com a tendência, demasiadamente humana, de equivaler dano e dor, e o
sentimento de poder avaliar a quantidade de dor a que se deve submeter um culpado, o
sofrimento humano impulsiona a transportar a culpa para a própria existência.
Contaminamos o mundo, e o vir-a-ser, com a culpa originária. Identificada a questão,
em Nietzsche, podemos nos lançar a esclarecer como o filósofo opera com a tentativa de
recuperar a inocência do “vir-a-ser”, anulando a culpa e o olhar pessimista em relação à
vida.
No Crepúsculo dos Ídolos, sobre o erro do livre arbítrio temos uma idéia muito
pertinente a respeito da inocência do vir-a-ser:
“o vir-a-ser é despojado de sua inocência, quando se faz remontar
esse ou aquele modo de ser à vontade, a intenções, a atos de
responsabilidade: a doutrina da vontade foi essencialmente
inventada com o objetivo da punição, isto é, de querer achar
culpado”.
94
Para Nietzsche, a tendência a encontrar culpados, motivada pela necessidade de
dar vazão ao instinto de “querer punir”, “querer julgar”, acaba por aplicar a noção de
culpa ao vir-a-ser. Para certos tipos de consciência, o mundo estaria impregnado de
culpa, e nesta constatação a fonte do sentido do discurso dos sacerdotes e moralistas.
Sem a noção de culpa deslocada para o próprio mundo, não caberia a certeza da vida
como o lugar do castigo. Por estes argumentos, Nietzsche finaliza o parágrafo com a
seguinte afirmação: “o cristianismo é uma metafísica do carrasco”.
95
Numa tentativa de devolver ao mundo a inocência, tirando-lhe o caráter de
dívida e de culpa originários, Nietzsche detecta, em nossa formulação a respeito do real,
um processo de antropomorfização dos objetos que nos cercam. O mundo, natural,
94
CI, os quatro grandes erros §7
95
Idem, Ibidem
75
independente do homem, não é bom ou ruim, pois tais conceitos são tipicamente
humanos. Nós não conhecemos valores não humanos, que todos eles são frutos de
uma tendência típica do homem a valorar, e, portanto, toda avaliação limita-se à
capacidade e ao aparato racional de que somos dotados. É na ação do homem que o
mundo se torna colorido ou se torna nublado, a partir de uma adaptação aos limites da
razão. Estende-se esta tendência a todo agir humano, que pressupõe sempre novas
significações do real. Para nosso filósofo, a interpretação e a ressignificação do real
sustentam-se por um impulso de conservação da espécie. E, como esta repousa sobre o
jogo dos instintos, não possui, em última instância, qualquer fundamento absoluto.
Representa nada mais que o resultado de lutas entre forças e impulsos. A razão, os
motivos, a ordem, a racionalidade, o fundamento, a finalidade, a moralidade, e também
o sentido, são puramente humanos, tal como desvendado pelo método genealógico. O
sentido que postulamos para as coisas do mundo torna a própria racionalidade ingênua,
sem sentido. A noção de sentido é apenas o pano de fundo para a atuação de tudo aquilo
que é tomado como dotado de sentido. O sentido, portanto, é antropormofização do
mundo. Os diferentes sentidos que podemos perceber em determinados conceitos, não
passam, então, de padronizações humanas, inexistentes no mundo por si só. O homem é
doador e cultivador de valores para o mundo.
Aquilo que motiva a metafísica, e a ciência, mesmo após a “Morte de Deus”, é a
vontade de verdade, que termina por produzir fórmulas, condicionando os
acontecimentos através de acomodações, de acordo com as exigências utilitárias.
Coloca-se o conhecimento na estaticidade, na regularidade e igualdade, muito longe do
vir-a-ser. Portanto, somente acreditamos em coisas totalmente delimitáveis, pois a
atitude de tornar palpável o absurdo da existência descaracteriza a própria vida enquanto
algo incondicionado e caótico. A atribuição de sentido, que se baliza pelo horizonte da
busca pela verdade, define-se como tentativa de criar um mundo transcendente, no qual,
a verdade se encontraria perfeitamente cognoscível, estática.
De acordo com tal constatação, percebemos que o conhecimento humano se
por interpretação, por uma constante ressignificação, ou seja, por incessantes processos
de produção de sentido
.
O conhecimento do real é uma atividade humana, que não
recebe passivamente impressões externas, como também trabalha e reformula essas
informações contidas no mundo que nos cerca. A racionalidade humana organiza essas
informações através de diversos modos de significação.
O mundo, tal como o vemos e
pensamos conhecer, possui sentidos e valores que o delimitam, com referências à nossa
76
capacidades lingüística e simbólica
.
Os sentidos e valores, contudo, não existem por si
mesmos, como pertencentes a uma realidade separada do mundo aparente e nem mesmo
independentes do homem, mas, ao contrário, são formulados à sua imagem.
Com esta
afeição às explicações e significações do real e da existência emerge a vinculação feita
pelos ideais cristãos entre Deus e a criação. Deus apresenta-se aos homens como o
criador absoluto, que cria, em conseqüência da grande estima pela verdade, valores
absolutos
.
Nietzsche pretende desfazer a confusão que se opera entre um pretenso
mundo em si e o mundo para os homens. Desvenda também um processo de divinização
do mundo:
O caráter geral do mundo, no entanto, é caos por toda a eternidade,
não no sentido de ausência de necessidade, mas de ausência de
ordem, divisão, forma, beleza, sabedoria e como quer que se
chamem nossos antropomorfismos estéticos. Julgados a partir de
nossa razão, os lances infelizes são a regra geral, as exceções o
são o objetivo secreto e todo o aparelho repete sempre a sua toada,
que não pode ser chamada de melodia e, afinal, mesmo a
expressão ‘lance infeliz’ é uma antroporfização que implica uma
censura. Mas como poderíamos nós censurar ou louvar o universo?
Guardemo-nos de atribuir-lhe insensibilidade ou falta de razão, ou
o oposto disso; ele não é perfeito nem belo, nem nobre, e não quer
tornar-se nada disso, ele absolutamente não procura imitar o
homem! Ele não é absolutamente tocado por nenhum de nossos
juízos estéticos e morais! [...] Quando vocês souberem que não
propósitos, saberão também que não há acaso: pois apenas em
relação a um mundo de propósitos tem sentido a palavra ‘acaso’.
[...] Quando é que todas essas sombras de Deus não nos
obscurecerão mais a vista? Quando teremos desdivinizado
completamente a natureza? Quando poderemos começar a
naturalizar os seres humanos com uma pura natureza, de nova
maneira descoberta e redimida?
96
Aprender a encarar a criação e a redenção do sofrimento, como a alegria da
afirmação da existência, significa afirmar a vida, mesmo em seu caráter absurdo,
mesmo que nesta aceitação estejam contidas as dores típicas de toda criação. Tal
afirmação é propiciada pela “Morte de Deus”, que conforme exposto anteriormente,
deixa de ocupar a função de criador, exigindo que sejam acolhidas as prerrogativas do
niilismo ativo, que abre novamente o espaço para a criação de tábuas valorativas e
atribuições de sentido, sem que estes, no entanto, devam permanecer absolutos e se
tornem novamente ídolos acatados de maneira incondicional. Tal função, agora, se
96
GC, §109
77
apresenta para o homem, como forma de se situar em meio ao devir, operando no
sentido de restaurar a inocência.
Colocar-se com disponibilidade na posição de artista da própria existência é
afirmar a vida em suas especificidades, que a vida, para Nietzsche, é precisamente
esse movimento incessante de interpretação, valoração ou criação de sentido
.
Conforme
citado, para Nietzsche a própria vida, como enfrentamento entre forças, como teatro
de possibilidades infinitas, já é motivo de contentamento.
Nietzsche cultiva, deste
modo, o terreno onde pode se operar a inversão do pessimismo. Tal inversão só é
possível pelo prazer em assumir a condição de criador.
Propicia-se, assim, o
surgimento de uma nova ciência, produtora de um saber alegre, expresso pela Gaia
Ciência. É preciso descartar a vontade de verdade, pois se mostrou como poderoso
instrumento de deterioração da existência. Acatar o caráter parcial dos valores, a
humanidade de que se revestem, significa, por conseguinte, assumir a condição trágica a
que estão submetidas todas as coisas que existem, acatar o devir, e a necessidade. Agora
podemos e precisamos, em vez de tentar justificar e embasar a vida em conceitos
racionalmente aceitáveis, afirmá-la com alegria. É esta a tarefa pertinente ao filósofo
trágico:
“De fato, nós, filósofos e ‘espíritos livres’, ante a notícia de que o
‘velho Deus morreu’ nos sentimos como iluminados por uma nova
aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto,
pressentimento, expectativa enfim o horizonte nos aparece
novamente livre, embora não esteja totalmente limpo, enfim nossos
barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo,
novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o
conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e
provavelmente nunca houve tanto “mar aberto’”
97
Nota-se, contudo, que a lacuna deixada pela “Morte de Deus” pode ser encarada
de maneira ainda niilista ou, ao contrário, afirmadora. Nos momentos anteriores à
constatação da insuficiência de Deus a negação aparecia como peça essencial. Os
valores aplicados ao real, ao mundo e as ações do homem, ao serem destituídos do
caráter metafísico absoluto, inauguram, contudo, uma nova etapa da provocação
nietzschiana. É necessário que se preencha a lacuna que encontramos na função de
criadores. Em outras palavras, a constatação de que todos os conceitos até então
tomados como independentes do homem não passam de criações humanas, pertencentes
97
Idem, Ibidem,
§343
78
a nossa necessidade de criar conceitos razoáveis, exige uma nova postura do homem em
relação à vida. Inclusive o Deus, todo poderoso e criador de todas as coisas, não passa
de mais uma invenção do homem para justificar sua dor. Portanto, o que cabe agora
investigar, é a disponibilidade que o homem deve apresentar ao mundo, e à função de
criador. Cabe perguntar: que tipo de homem é capaz de suportar com alegria a função de
artista das próprias idéias e dos próprios valores? Isto porque, conforme se sabe,
nosso filósofo condena um tipo de moral, mas não pára por aí, após desvelar os falsos
valores morais, ou sua imoralidade,
deixa-nos a tarefa de agir e viver sob uma nova
moral. Para uma moral afirmativa, não deixa de lado a preocupação de reconhecer que
tipos de moral favorecem ou depreciam a vida. Após delimitar as formas de depreciação
da vida, operadas pela moral até então, Nietzsche tem o solo preparado para propor a
moral que se coloca a favor da vida, em seu caráter trágico, desmistificado. É pertinente,
nesta etapa, avaliar e ponderar, quais as características e atitudes que determinam um
tipo de homem, do qual se pode esperar uma atitude criadora, que suporta o mundo
desidealizado, com suas mazelas e alegrias.
A moral afirmativa, aquela para qual abrimos espaço, corresponde a uma moral
do futuro, que em Nietzsche pode ser entendida como aquela que se coloca além de bem
e mal, que acolhe a idéia de interpretação na relação entre o homem e o mundo, o que
pode nos colocar em uma situação confortável, no que se refere às possibilidades de
criação.
Para Paschoal, o tipo de homem ao qual Nietzsche dirige suas indicações para
uma moral do futuro, é o tipo elevado e apresenta-se como a exceção, e, tal tipo de
homem, certamente, não é um sem lei, está acima dela. Acrescenta a esta idéia, a citação
de Genealogia da Moral, em que Nietzsche nos diz que a “história efetiva da moral” é a
história dos homens elevados
98
, corroborando a proposta de uma moral além de bem e
mal, consciente de sua condição antropomórfica.
99
Com esta aceitação, podemos
instaurar a moral que beneficie o homem e promova a vida perigosa, e aventureira,
própria dos espíritos livres.
A moral negada por Nietzsche, portanto, é a moral de rebanho, a moral do medo
diante do acaso, que rotula certos homens e atitudes como ‘bons’; a moral que se coloca
acima da existência humana, que parece tão útil e cara aos doentes, pois é a própria
manutenção da doença.
98
GM,Primeira Dissertação, §7
99
Paschoal, A. Nietzsche e a auto supressão da moral, p.124
79
Com esta desmotivação, que aparece como conseqüência do niilismo, abriu-se
espaço para a emergência de um espírito livre, que seria o homem capaz de suportar e
encarar de maneira alegre a condição de criador deixada como tarefa pelos homens e
para os homens após a “Morte de Deus”. Tais espíritos livres, são a via de acesso à
elevação do homem.
Mas quem seriam estes espíritos livres? Na segunda dissertação de genealogia
da moral, encontramos uma indicação de que ele seja uma espécie de “redentor”, um
“antiniilista”
“Teríamos contra nós precisamente os homens bons; e também, é
claro, os cômodos, os conciliados, os vãos, os sentimentais, os
cansados... O que ofende mais fundo, o que separa mais
radicalmente, do que deixar perceber o rigor e a elevação com que
se trata a si mesmo? Por outro lado como se mostra afável, como
se mostra afetuoso o mundo, tão logo fazemos como todo mundo e
nos ‘deixamos levar’ como todo mundo!... Para aquele fim seria
necessário uma outra espécie de espíritos, diferentes daqueles
prováveis nesse tempo: espíritos fortalecidos por guerras e vitórias,
para os quais a conquista, o perigo e a dor se tornaram até mesmo
necessidade; seria preciso estar acostumado ao ar cortante da
alturas, a caminhadas invernais, ao gelo e aos cumes, em todo
sentido; seria preciso mesmo uma espécie de sublime maldade,
uma última, securíssima petulância do conhecimento própria da
grande saúde, seria preciso em suma e infelizmente, essa mesma
grande saúde !... Seria ela sequer possível agora? ... Algum dia,
porém, num tempo mais forte do que esse presente murcho,
inseguro de si mesmo, ele virá, o homem redentor, o homem do
grande amor e do grande desprezo, o espírito criador, cuja força
impulsora afastará sempre de toda transcendência e toda
insignificância, cuja solidão será mal compreendida pelo povo,
como se fosse fuga da realidade quando será apenas a sua
imersão, absorção, penetração na realidade, para que, ao retornar à
luz do dia, ele possa trazer a redenção dessa realidade: sua
redenção da maldição que o ideal existente sobre ela lançou. Esse
homem do futuro, que nos salvará não do ideal vigente, como
daquilo que dele forçosamente nasceria, do grande nojo, da
vontade de nada, do niilismo, esse toque de sino do meio-dia e da
grande decisão, que torna novamente livre a vontade, que devolve
à terra sua finalidade e ao homem sua esperança, esse anticristão e
antiniilista, esse vencedor de Deus e do nada ele tem que vir um
dia.”
100
100
GM, Segunda Dissertação, §24
80
Trata-se, portanto, de um tipo elevado, que exercita uma vontade de potência
ativa. Este tipo elevado a que se alude, é aquele que se situa fora de bem e mal, no qual
opera a grande saúde. Isto porque, Nietzsche afirma que o pessimismo em que estamos
mergulhados, pode afluir em afirmação dionisíaca do mundo. Nestes termos, temos a
grande suspeita como mote. Em Gaia Ciência, por exemplo, essa suspeita, corresponde
à tarefa do filósofo que encara de maneira honesta a criação de conceitos.
Paschoal propõe que a crítica de Nietzsche à moral, nesse aspecto, divide-se em
duas questões. Em primeiro lugar, trata-se de uma crítica à própria cultura, e ao seu
tempo, com sentido histórico, que investiga a moral de modo genealógico. Tal crítica
estende-se ao fazer filosófico impulsionado pela verdade, que pretende descobrir o
mundo, a contrapartida é a filosofia experimental, na qual opera o pathos de distância
como garantia para filosofar sem pretender descobrir verdades absolutas. Em segundo
lugar, a crítica se apresenta como a forma de superação da interpretação que possui o
termo “moral”, desvendando, através da transvaloração dos valores, que a moral é
interpretação, e que, com esta constatação, não se pode mais tomar como absoluta
apenas uma moral, e, portanto uma interpretação em particular.
A crítica à moral desvela a possibilidade de fazer as perguntas certas. Nietzsche
não pretende aniquilar a moral de forma absoluta, pois acredita que a coerção que
exerce em relação à natureza pode ser produtiva. Portanto, a coerção não é o problema,
não está a objeção de Nietzsche em relação à moral. Para ele, nada de elevado seria
produzido caso não houvesse qualquer coerção nesta relação entre homem e mundo,
nem mesmo a arte. Acrescenta ainda que o homem elevado também precisa de certa
dose de ordenação, reordenação e disposição de elementos. A contraposição entre moral
e natureza, para Nietzsche existe, mas é trágica e não absoluta. Nas palavras de
Paschoal:
“E, mesmo quando ele admite a contraposição que dispõe a
moral, por um lado, e natureza e vida, por outro, não pode tomar
esta contraposição em termos absolutos, mas trágicos, como
máscaras necessárias em determinados jogos, como resistências
necessárias ao próprio desdobramento da vontade de poder”
101
Nietzsche direciona sua crítica à destruição da moral da compaixão, e além de
estabelecer o pathos de distância como parâmetro, o acatamento dos fundamentos da
crítica se torna necessário para superar o niilismo passivo que se apresenta como
101
Paschoal, A. Nietzsche e a auto supressão da moral, p 113
81
desdobramento da moral de rebanho e seus preceitos. A moral da compaixão pretende
aniquilar os tipos capazes de afirmar o mundo, pois pretende tornar o homem dócil,
mole, diferente do tipo elevado, que pode dar outra forma ao homem.
Para Paschoal, pode-se contrapor o espírito livre ao espírito acorrentado, o
primeiro associa-se aos experimentadores, aos possuidores de uma vontade livre, pois
mantêm uma relação honesta com a verdade, em contrapartida, no segundo caso, temos
o filósofo da verdade, o fanático, o doente.
Afirma-se com isto, que a transvaloração dos valores ocorre nos espíritos livres,
e não apenas a partir deles, com a conclusão do processo da décadence, do
determinismo da moral, que foi responsável pela associação da vida ao castigo e à
culpa.
Ainda segundo Paschoal, o engajamento do espírito livre pode ser esboçado em
dois aspectos fundamentais: em primeiro lugar, o ponto de partida, que é a “empresa
que se associa ao cultivo do homem e não a alguma finalidade separada deste mundo de
bem e mal”. Em segundo lugar, tal engajamento se “pelo amor fati, que corresponde
a um abrir os olhos” no homem redentor.
102
Dizer espírito livre significa dizer que tal espírito deve estar liberto dos padrões
lógicos de investigar dentro dos moldes da filosofia tradicional.
A compreensão do termo pode ser associada às idéias de saúde e doença, pelo
viés nietzschiano, a doença é também condição da saúde, do mesmo modo, o filósofo
fanático, é levado ao niilismo, a partir de que, pode emergir o espírito livre. Da mesma
forma, a grande saúde pressupõe a doença, a este respeito, nas palavras de nosso
filósofo em Além de Bem e Mal, temos esclarecida a questão de como algo pode surgir
de seu oposto:
“Como poderia algo nascer de seu oposto? Por exemplo, a verdade
do erro? Ou a açao desinteressada do egoísmo? Ou a pura e
radiante contemplação do sábio da concupiscência? Semelhante
gênese é impossível; quem com ela sonha é um tolo, ou algo pior;
as coisas de valor mais elevado devem ter uma origem que seja
outra, própria não podem derivar desse fugaz, enganador,
mesquinho mundo, desse turbilhão de insana cobiça! Devem vir do
seio do ser, do intransitório, do deus oculto, da ‘coisa em si’ – nisto
e em nada mais deve estar sua causa!”— este modo de julgar
constitui o pico preconceito pelo qual podem ser reconhecidos os
metafísicos de todos os tempos; tal espécie de valoração está por
trás de todos os seus procedimentos lógicos; é a partir desta sua
crença que eles procuram alcançar o seu saber, alcançar algo que
no fim é batizado solenemente de ‘verdade’. (...) É até mesmo
102
Idem,Ibidem, p 171
82
possível que aquilo que constitui o valor dessas coisas boas e
honradas consista exatamente no fato de serem insidiosamente
aparentadas, atadas, unidas, e talvez até essencialmente iguais, a
essas coisas ruins e aparentemente opostas. Talvez! – Mas quem se
mostra disposto a ocupar-se de tais perigosos ‘talvezes’? Para isto
será preciso esperar o advento de uma ova espécie de filósofos, que
tenham gosto e pendor diversos, contrários aos daqueles que até
agora existiram – filósofos do perigoso talvez a todo custo.
103
E em outra passagem, sobre a grande saúde:
Aquele cuja alma anseia haver experimentado o inteiro compasso
dos valores e desejos até hoje existentes e haver navegado as praias
todas desse “mediterrâneo” ideal, aquele que quer, mediante as
aventuras da vivência mais sua, saber como se sente um
descobridor e conquistador do ideal, e também um artista, um
santo, um legislador, um bio, um erudito, um devoto, um
adivinho, um divino excêntrico de outrora: para isso necessita mais
e antes de tudo uma coisa, a grande saúde – uma tal que não apenas
se tem, mas constantemente se adquire e se abandona e é preciso
adquirir, pois sempre de novo se abandona e é preciso
abandonar...
104
Percebemos por estes fragmentos, que a grande saúde também representa um
movimento de aquisição e destruição de estados fisiológicos, constantes e que devem
ser acatadas, caso se queira colocar como um legislador, um artista. É indispensável ao
tipo que, transbordante de alegria e potência, brinca com os ideais que se colocam como
divinos, que coloque a verdadeira interrogação, para que “o destino da alma a volta,
o ponteiro avance, a tragédia comece...”
105
Espírito livre não se opõe à verdade de forma absoluta, ressalta-nos Paschoal.
Opõe-se aos movimentos que conferem limites dogmáticos à verdade. Em Além de Bem
e Mal, Nietzsche demonstra, de que forma a vontade de verdade pode transforma-se em
vontade de potência, insistindo que se diferenciem os “filósofos”, livres-pensadores, dos
“trabalhadores filosóficos” e dos “homens de ciência”. Encara a empresa desses
trabalhadores filosóficos como precondição da tarefa do filósofo. Os trabalhadores
filosóficos, colecionadores de fórmulas gicas, morais e artísticas, criaram também
valores que se tornaram dominantes, acatados como verdades. Deste modo, segundo
Nietzsche:
103
ABM,§ 2
104
GC,§ 382
105
Idem, Ibidem
83
A esses pesquisadores compete tornar visível, apreensível,
pensável, manuseável, tudo até hoje acontecido e avaliado, (...) e
subjugar o passado inteiro: imensa e maravilhosa tarefa, a serviço
da qual todo orgulho sutil, toda vontade tenaz pode encontrar
satisfação. Mas os autênticos filósofos são comandantes e
legisladores: eles dizem assim deve ser! ’, eles determinam o para
onde? E para quê? Do ser humano, e nisso tem a seu dispor o
trabalho prévio de todos os trabalhadores filosóficos, de todos os
subjugadores do passado estendem a mão criadora para o futuro,
e tudo que é e foi torna-se para eles um meio, um instrumento, um
martelo. Seu ‘conhecer’ é criar, seu criar é legislar, sua vontade de
verdade é vontade de poder. Existem hoje tais filósofos? o
tem que existir tais filósofos?...
106
Fica claro, aqui, que o tipo exceção, modelar, possui a capacidade e o impulso
de transvalorar os valores postos pela vontade de verdade como guia da investigação
filosófica. Inclusive, com tais indicações, podem-se entrever os aspectos fisiológicos de
que são dotados tais tipos livres. Percebe-se aqui, de que forma as condições adversas
podem ser interpretadas como favoráveis para um estado de harmonia com as forças que
se impõem umas sobre as outras em todas as esferas da existência, sejam em questões
fisiológicas, psicológicas ou sociais; ou seja, para a manutenção da saúde em sentido
amplo. Com isto, a tarefa exigida agora, é a de combinar certas disposições fisiológicas
a certas formas de encarar a existência, e, portanto de agir e avaliar, com a perspectiva
de liberdade artística. Torna-se insípida, com essa perspectiva, toda visão pejorativa do
movimento, da não conformidade, da guerra, pois tais coisas são partes essenciais da
realização do homem, de sua elevação e plenitude, uma vez que estimula com isso a
vontade de ter responsabilidade consigo.
Em Crepúsculo dos Ídolos, ao seu conceito de liberdade, Nietzsche associa a
idéia de resistência, de esforço, que diverge amplamente dos ideais liberais. Coloca
como primeiro princípio a “necessidade forte”, para que o homem possua também tal
qualidade. Apresenta-nos a idéia de liberdade, em certos aspectos, tal como em algumas
sociedades aristocráticas: “como algo que se tem e não se tem, que se quer, que se
conquista”.
107
106
ABM, §211
107
CI, Incursões de um extemporâneo, § 38
84
3.1 Liberdade e Necessidade: oposição no ressentimento ou equivalência no amor
fati
Percebemos, então, a herança que Nietzsche deixa para os filósofos a procura
de uma forma diferente de filosofar. Esta forma expressa, por um lado, uma recusa total,
que nega o conceito de ‘ser’ assim como nega toda a predileção pela permanência, que
conforme foi visto, é expectativa característica do tipo vulgar, de massa, reativo. Por
outro lado, exige que se manifeste um ‘sim’ à vida, com seus conflitos e com as
mudanças que estes conflitos propiciam. A este respeito, nas palavras de Nietzsche:
“O que a humanidade até agora considerou seriamente não são
sequer realidades, apenas construções, expresso com mais rigor,
mentiras oriundas dos instintos ruins de natureza doentes, nocivas
no sentido mais profundo todos os conceitos: ‘Deus’, ‘alma’,
‘virtude’, ‘além’, ‘verdade’, ‘vida eterna’... Mas procurou-se neles
a grandeza da natureza humana, sua ‘divindade’... Todas as
questões da política, da ordenação social, da educação foram por
eles falseadas até a medula, por haver-se tomado os homens mais
nocivos por grandes por ter-se ensinado a desprezar as coisas
‘pequenas’, ou seja, os assuntos fundamentais da vida mesma... (...)
Quero ser o oposto disso: meu privilegio está em possuir a finura
suprema para os sinais de instinto são. (...) Não conheço outro
modo de lidar com grandes tarefas senão o jogo: este é, como
indício de grandeza, um pressuposto essencial. (...) Minha fórmula
para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja
para trás, seja para a frente, seja em toda a eternidade. Não apenas
suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo todo idealismo é
mendacidade ante o necessário – mas amá-lo”.
108
Tal moral afirmadora pretende se desenvolver a partir da ultrapassagem da idéia
de moral até agora predominante. Uma vez que é necessária a existência de uma moral,
trata-se de propor uma moral que se associa à grande saúde, e também ao amor fati.
Mas esta tentativa de uma nova moral, não corresponde a uma revolta, seja escrava ou
nobre, na moral, é sim, transvaloração, que pretende reconsiderar tudo aquilo que a
velha moral até então negou. Se a moral criticada, com seu intuito depreciativo em
relação à vida, manteve como prerrogativa de sua continuidade a manutenção das
doenças e da consciência, a moral afirmadora do devir, pretende restaurar a saúde
em termos psicológicos e orgânicos. Esta saúde plena, firme, que Nietzsche inspira, é:
“o ideal de um espírito que ingenuamente, ou seja, sem o ter querido, e por
108
. EH, Porque sou tão inteligente, §10.
85
transbordante abundância e potência, brinca com tudo o que até aqui se chamou santo,
bom, intocável, divino; (...)”
109
Se a vida é vontade de potência, o lugar do combate das
forças é o próprio corpo, onde atuam as escolhas por alimentação, clima, hábitos em
geral, comportamento, ou seja, por determinadas atitudes individuais e sociais. Por estas
afirmações, percebemos que as forças agem, então, tanto na esfera física, orgânica,
quanto na esfera social, na própria vida em suas diversas instâncias. Do mesmo modo
que o mundo, o corpo traz consigo uma hierarquia entre forças, é pela luta que a vida se
expande e se supera, sempre reorganizando hierarquias postas. O jogo entre as forças é
o elemento essencial para a saúde em questão, e a condição da plenitude da existência.
É negação da própria condição de existência a tentativa de estagnar o movimento, a
guerra, a luta. O esquecimento, em sua qualidade ativa, aparece como a condição da
grande saúde, pois que existir o momento de destruir combinações, e o de acatar
novas reformulações, e neste movimento, é o esquecimento que garante o espaço para o
novo.
A moral, tomada como caminho para a elevação de um tipo de homem, precisa
novamente inserir a filosofia na dinâmica da vontade de potência. Vemos também que,
toda moral pretende, portanto, operar uma mudança qualquer no homem, lembrando o
mecanismo de instauração da cultura, pela moralidade do costume, que aperfeiçoou o
homem, pelo menos no tocante à questão da memória e da promessa.
Neste momento, aquilo que pode ser transformado no homem é a relação com o
seu entorno, e com a sua vida, é a postura diante da necessidade, que pela moral vigente,
produziu ressentimento. O que se pretende é encarar a necessidade de forma
totalmente diferente daquela ensinada pelas idéias de liberdade e de responsabilidade
moral. Negado o caráter estático do real, podemos acatar a necessidade de forma mais
amena, ou mais alegre.
A oposição entre a existência individual e a realidade social, pode ser dissolvida,
ou até transmutada em equivalência, a partir da adoção de determinadas perspectivas. A
perspectiva que se sugere aqui, para abrir o caminho para o exercício de liberdade em
sentido estético, é usar a arte como modelo para a experimentação, pois, é através do
processo artístico que o homem consegue expressar forças profundas que agem nele.
Para este ponto de vista, a libertação ocorre na criação de novas perspectivas, na
aceitação da condição colocada pelo mundo de ser o criador e destruidor de formas. O
109
GC,§382
86
homem capaz de gerar valores coloca-se acima de bem e mal, portanto não é tocado,
neste sentido, por imposições morais ou religiosas. Temos com isso que a relação do
homem livre, para Nietzsche, com o passado é de suspensão, no sentido de que o
passado, a tradição não lhe dita as regras, conforme já sugerido nas investigações acerca
do uso da história a favor da vida, e da projeção saudável de futuro. Este tipo de homem
reconhece sua condição de legislador, pois entende que toda regra é também produto de
um processo lúdico em que o homem tem papel central.
Tanto a arte de criação de formas concretas, como as artes plásticas, cênicas, a
poesia ou a música, quanto o que podemos chamar de arte de viver, vinculam-se à
“capacidade de impor estilo próprio a cada ato”.
110
O que significa dizer, que sobre esta
última forma de arte, o que se opera é a capacidade de se apropriar dos acontecimentos
para imprimir uma vontade. Deste modo, o artista destitui de seriedade ou peso
excessivo tudo aquilo que produz, pelo fato de reconhecer sua obra como uma produção
que pode e será destruída e recriada conforme as exigências da vida em seu fluxo.
Em Nietzsche, então, liberdade é celebrar a ação daquele que legisla, ou seja,
compõe-se também de liberdade para avaliar, é sentimento de poder. E é justamente
nesse ponto que a linguagem artística se coloca como adequada para expressar o jogo do
processo de criação.
Segundo Barrenechea, a “Morte de Deus” é também guiada por um desejo de
libertação. Nietzsche, desde seus primeiros escritos, tenta devolver ao homem seu lugar,
tentando mostrar como sem a moral, a metafísica e a religião tradicionais, podemos
encarar a responsabilidade de criadores, de engendradores do mundo, de forma alegre.
A “Morte de Deus” possibilita e exige que se decida entre reassumir a autonomia
ou permanecer passivamente “adorando ídolos esgotados”.
111
Ainda em Nietzsche e a Liberdade, Barrenechea coloca que a fórmula suprema
do arbítrio é o amor fati, que nos instiga a acatar livremente a necessidade. O amor fati
corrobora a tese do eterno retorno, relacionando de maneira peculiar a necessidade e a
liberdade artística, superando de forma inteligente o niilismo passivo. Se o niilismo lida
com a face absurda da existência, sua superação pode trazer de volta a inocência do
homem perante o mundo, mediante uma apreciação positiva desse absurdo. Superar, ou
ultrapassar o niilismo exige uma nova forma de existência, aquela que afirma a vida
justamente pela aceitação da necessidade, tomada como inocência. Significa “aprender a
110
BARRENECHEA, Nietzsche e a Liberdade, p 82
111
Idem, Ibidem, p.86
87
ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: assim me tornarei um daqueles que
fazem belas coisas. Amor fati (amor ao destino): seja este, doravante o meu amor!
112
A mudança na perspectiva desvia o olhar pessimista, afirma tudo aquilo que
inevitavelmente existe a despeito da vontade humana. É a forma mais plena de aceitação
do mundo. Pelo exercício do amor fati, superamos inclusive um possível fatalismo, pois
ao passo que este amor ao destino relaciona-se intimamente com a aceitação do devir,
pressupõe atividade, transformação e movimento e não passividade e resignação.
A atitude de agir em favor da vida e da afirmação da inocência do devir, exige
também a afirmação do eterno retorno. O amor fati contém em si o acatamento da
tragicidade da existência, que se caracteriza principalmente pela idéia da efemeridade
como fundo. Aceita-se com amor a irreversibilidade do tempo, que primeiramente pode
se colocar como o limite para o exercício da liberdade artística, pois o homem depara-se
com a impotência de agir sobre o passado. Para Barrenechea, esta é uma interpretação
escatológica do tempo, que pode acarretar o sentimento de impotência, de não
liberdade.
Mas, pelo eterno retorno, acata-se a impossibilidade de lutar contra o que
passou, e pode libertar-nos do desejo de vingança que resulta do ressentimento pela
impotência em relação ao que já foi.
“Esta vida, como você está vivendo e viveu, você terá de viver
mais uma vez e por incontáveis vezes; [...] se este pensamento
tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o
esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, ‘você quer
isso mais uma vez e por incontáveis vezes? ’, pensaria sobre os
seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar
bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além desta
última, eterna confirmação e chancela?”
113
Desejando o eterno retorno enquanto perspectiva que se adota para manutenção
de uma atitude afirmadora da vida, igualam-se necessidade, enquanto realidade, e
liberdade, em seu caráter individual, particular, uma vez que tudo esteja submetido ao
fluxo do devir.
Quanto à liberdade, submetida ao eterno retorno, o que se requer é uma
configuração de existência para a qual seja querida a chancela da eternidade.
112
GC, §276
113
GC, §341
88
O sentimento de vazio e a vontade de nada se dissolvem gerando a leveza
necessária para promover a renovação dos valores e objetivos. Isto significa, no limite,
assumir a própria existência, e o eterno retorno dos atos, o que, neste caso, implica não
em resignação, mas sim em vida plena. Esta configuração de liberdade não reflete a
idéia de responsabilidade última pelas ações, pois, isto significaria afirmar a vontade do
sujeito como causa absoluta, e, consequentemente, a razão estaria posta acima da
vontade. A liberdade artística, portanto, não significa vontade absolutamente livre, mas
significa que a ão está liberta do peso da responsabilidade última, pois se age em
acordo com a necessidade, o que não contamina a existência com a culpa, nem a coloca
como o lugar do castigo.
3.2 A Liberdade Artística: a soberania da criação
Ressaltamos que Nietzsche, ao destruir as velhas tábuas da lei moral, não
pretende aniquilar, qualquer forma de moralidade. Afinal, podem-se entrever em sua
crítica, algumas referências a formas superiores e desejáveis de valoração.
Segundo Paschoal, o próprio Nietzsche, em sua desconfiança em relação à moral
vigente, requer para sua empresa certas virtudes, que permeiam seu trabalho crítico.
Desta forma, podemos estender a requisição de tais virtudes às exigências de um tipo de
moral que surgiria desta forma nietzschiana de avaliação. Temos, então, a veracidade, a
probidade e a responsabilidade como virtudes básicas que garantem outra espécie de
moral, diferente da tradicional.
Para comentarista, a veracidade, num primeiro momento, está associada a uma
exigência indispensável também para moral inaugurada com Sócrates. Para explicar esta
relação, Paschoal sugere o prólogo de Aurora, obra em que Nietzsche afirma que
também nele, age um “tu deves”, pois, como vimos, nosso filósofo não descarta certa
dose de dominação de si, de coerção e refinamento. É importante ressaltar, que, mesmo
que identifique a ausência de uma moral intrínseca à natureza, à vida, e à história, ele
não se torna imediatamente um imoralista, pois entende a necessidade de estar
envolvido em uma teia de deveres, desde que ligue-se a ela como a um destino. A
estima, na moral afirmadora, é pela veracidade, e não pela verdade. Esta desconfiança
em relação à verdade, inclusive, leva à auto-supressão da moral. Por esta virtude,
89
Nietzsche encara sua empresa até as últimas consequências, mesmo que isso acarrete o
niilismo como parte do caminho.
A seriedade, ou a honradez, a que Paschoal se refere como probidade, é a virtude
que permite o exercício do niilismo de forma ativa, experimental, sem implicar em
ausência de moral. Associa-se tal virtude à exigência de veracidade, pois significa a
dureza consigo mesmo, necessária para a responsabilidade em termos totalmente
diversos da responsabilidade moral tradicional. Em Além de Bem e Mal, temos a
probidade como condição de refinamento do homem, por extensão da vontade de
potência.
“A honestidade supondo que esta seja nossa virtude, da qual não
podemos escapar, nós, espíritos livres bem, então vamos esmerá-
la com toda malícia e amor, e não cansar de nos perfeccionarmos’
em nossa virtude, a única que nos resta: que o seu brilho possa um
dia pairar, como uma dourada, azul, sarcástica luz de entardecer,
sobre essa cultura minguante e sua seriedade opaca e sombria.”
114
A responsabilidade, como a terceira das virtudes enunciadas por Paschoal, afasta
a idéia de relativismo na construção da moral de Nietzsche. Essa responsabilidade difere
da responsabilidade moral, pois não se atrela a idéia de falta, de culpa, tampouco às
idéias de causalidade da vontade, de sujeito livre que responde por seus atos e por
acontecimentos de maneira total. A responsabilidade do sujeito livre pode ser
compreendida como uma forma de “engajamento, de engrandecimento, de ação e não de
enrijecimento, diante da lei moral, e punição.”
115
Em conjunto a essas três virtudes, podemos aliar a leitura que nos apresenta
Leiter
116
, a respeito da crítica de Nietsche à moral. Em seu trabalho intitulado
Nietzsche’s Moral and Political Philosophy propõe que a investigação que Nietzsche
faz da moral aparece dividida em três partes principais. A primeira das tarefas, então, é
a crítica a noção de livre arbítrio, por representar a base da possibilidade de
responsabilidade moral tradicional. Ataca também a transparência das motivações
morais, para a própria consciência e para os outros, dado que, com este discurso, abre-se
o espaço para delimitar e julgar as ações. Esta segunda crítica leva-nos à terceira, que é
a crença na igualdade entre todas as pessoas; a crença na inteligibilidade dos afetos que
114
ABM § 227
115
Paschoal, A. Nietzsche e a auto supressão da moral, p 119
116
Leiter, Brian. Nietzsche’s moral and political philosophy. The Stanford encyclopedie of philosophy
(fall 2004).Edward N. Zalta Ed.
90
geram as ações pressupõe pouca variação de tais afetos de pessoa para pessoa, deste
modo, cria-se a idéia de uma única moral, comum a todos os sujeitos, bem como de
juízos morais universais.
Tendo em mente a proposta de Paschoal, da proposição de uma nova moral que
podemos entrever na obra de Nietzsche, acatamos a saída enunciada por Leiter, para as
três tarefas descritas anteriormente. Contra a idéia de livre arbítrio, e a liberdade da
vontade, temos o ‘atavismo’. Tal idéia alia-se ao amor fati e supera a crença na
responsabilidade moral, na qual seriamos os grandes responsáveis por todas as mazelas
da existência, e cujos efeitos reconhecemos. Em contrapartida à transparência das
motivações, que leva a colocar na consciência o direito de ter acesso claro e total aos
impulsos mais íntimos, Nietzsche opera a genealogia das consciências. Demonstrando
como a consciência aparece como a porção mais frágil e recente no homem, torna
ingênuo e insuficiente todo tipo de racionalização que pretende tornar todas as coisas
cognoscíveis de forma plena e absoluta. A crença em uma essência comum da qual
participaríamos sustentaria a igualdade tanto dos sujeitos quanto de suas ações. No
entanto, ao avaliar as variações dos tipos humanos, percebemos a dificuldade de
enquadrá-los em um único tipo bastando, para tanto, notar as divergências existentes
nos hábitos das pessoas. Contra essa idéia, o pathos de distância garante o espaço
necessário, a diferença entre os homens, que desacredita qualquer moral de
massificação.
Percebemos então, como as três atitudes, diante das constatações de
insuficiência das proposições básicas da moral tradicional, relacionam-se diretamente
com as virtudes sugeridas por Paschoal, como sendo caras ao tipo de moral que
Nietzsche nos propõe. A partir de tais esclarecimentos, pode-se agora remontar um
processo de libertação, que pretende operar a partir das virtudes básicas, para que o
homem seja capaz de superar o niilismo de forma artística. Retomando as indicações de
Gaia Ciência podemos investigar as relações entre cultivo das virtudes indicadas por
Nietzsche, exemplificando o papel de tais virtudes na manutenção de uma grande
saúde, e a necessidade de se assumir a responsabilidade de forma alegre, sem criar
ressentimentos, mesmo em momentos de dor. Em nome da afirmação, temos a idéia de
providência pessoal como aliada. Nas palavras de nosso filósofo:
“Existe na vida, um certo ponto alto: ao atingi-lo corremos
novamente, com toda a nossa liberdade, e por mais que tenhamos
91
negado ao belo caos da existência toda razão boa e solícita, o
grande perigo da servidão espiritual, e temos ainda a nossa mais
dura prova a prestar. Pois é então que para nós se apresenta como a
mais insistente energia da terra, a idéia de uma providência pessoal,
tendo a seu favor o melhor advogado, a evidência, é então que
vemos com nossos olhos que todas, todas as coisas que nos
sucedem resultam constantemente no melhor possível. A vida de
cada dia e cada hora parece não querer mais do que demonstrar
sempre essa tese; seja o que for, tempo bom ou tempo ruim, a perda
de um amigo, uma doença, uma calúnia, a carta que não chegou, a
torção de um pé, a olhada numa loja, um argumento contrário, o ato
de abrir um livro, um sonho, uma trapaça: imediatamente ou pouco
depois tudo se revela como algo que ‘tinha que acontecer’ é algo
de profundo sentido e utilidade justamente para nós!(...) Ora quero
dizer, apesar de tudo isso! vamos deixar em paz os deuses e
também os prestativos gênios e satisfazer-nos com a suposição de
que nossa própria habilidade prática e teórica em interpretar e
arrumar os fatos tenha atingido seu ponto alto. Tampouco vamos
ter em bem alta conta essa destreza de nossa sabedoria, se por vezes
nos surpreender muito a maravilhosa harmonia que surge de nosso
instrumento: uma harmonia que soa bem demais para que ousemos
atribuí-la a nós mesmos. De fato, aqui e ali alguém toca conosco
o querido acaso: ele eventualmente guia a nossa mão, e a mais
sábia providência não poderia conceber música mais bela do que
então consegue nossa tola mão.”
117
Portanto, a liberdade, por esta interpretação, nada tem a ver com a vontade ou
com uma faculdade qualquer. É simplesmente um pathos do aumento de forças que se
experimenta a partir das possibilidades e tendências corporais, em concordância com o
devir.
Para o tipo modelar que Nietzsche pretende encontrar entre os homens precisa-se
aliar a providência pessoal com alguns aspectos distintivos dos tipos excepcionais, que
segundo Leiter aparecem elencados da seguinte forma: em primeiro lugar, a estima pela
solidão; o uso de suas capacidades a favor da vivificação; uma busca pela coerência
entre o que se é e o que se faz e se diz; uma disposição sadia frente a vida; inclinação
dionisíaca à afirmação, aceitação do destino, que coexiste com a auto reverência. A
autodisciplina em relação a tais aspectos, aliada às virtudes básicas enumeradas segundo
a interpretação de Paschoal, formam o conjunto de indicações para a moral do futuro.
Para efeito da consolidação de tais indicações na presente dissertação, alguns
aspectos importantes da crítica e da proposta nietzschiana devem ser retomados. Por
exemplo, cabe investigar o que significa aqui, uma moral além de bem e mal.
Obviamente, ela não se refere ao além mundo, a um mundo transcendente. Pretende,
117
GC, §277
92
com isso, dizer que o horizonte de uma proposta para uma perspectiva saudável em
relação à vida se encontra em lugar totalmente distinto do horizonte no qual se colocou
a moral tradicional, baseada na oposição entre bem e mal. “Além”, neste caso, significa
uma moral que se afirma a fim de promover outro tipo, diverso do tipo ressentido que
operou a rebelião escrava na moral. Nietzsche indica, para tanto, características
fisiológicas inerentes ao tipo elevado. Aquilo que cabe aos espíritos livres, relaciona-se
de maneira muito próxima, ao refinamento do homem, pelo cultivo de virtudes tais
como a veracidade, a responsabilidade e a probidade. É este tipo de homem que clama
pelo eterno retorno, celebra e promove sua condição de criador, e com isto eleva-se,
pois, aumenta seu poder diante da vida e dos outros homens.
118
Tal indicação leva-nos a mais uma direção acerca do significado da palavra
além, no vocabulário nietzschiano. A moral proposta aqui como saída propicia o
engrandecimento do homem, a promoção do tipo além do homem, que aparece como
capaz de superar o niilismo.
Esta figura, do homem além do homem nos remete à idéia de nobreza, de
elevação em Nietzsche. Para o esclarecimento da idéia geral de nobreza, retomamos as
indicações de Paschoal. Em primeiro lugar, aquilo que caracteriza o tipo nobre,
aristocrático, é sua posição de destaque, o fato de estar separado dos demais. É a
consciência, por assim dizer, do pathos de distância, que se efetiva pela fé em si
mesmo, que confirma a tese nietzschiana de Genealogia da Moral a respeito do
sentimento que existe no senhor, que lhe confere o direito de se apropriar das coisas,
inclusive cunhando nomes a elas. A segunda das características enunciadas é a posição
de justificativa, não de função, em que se o nobre em geral, deste modo ele
reconhece seus iguais e da mesma forma se sente diferente dos que não se assemelham a
ele. Em terceiro lugar, um tipo nobre seria o homem da solidão, em Além de Bem e Mal,
temos que o sentimento de distância, que provoca isolamento, significa inclusive não
querer compartilhar dos deveres com todos, nem querer igualá-los, e com isso dividir o
peso e o privilégio de exercer a responsabilidade. Pois, a solidão, para Nietzsche é a
virtude que garante a limpeza, em relação aos modos de valoração de massa, para a
consciência do homem destacado vivendo em sociedade.
119
Em resumo, tais virtudes se manifestam como a em si mesmo, como um
“sim” incondicional a si mesmo, possível apenas àquele que não se como meio, que
118
Idem, Ibidem, p 173
119
Cf., ABM, §265, 287,§ 272, § 284
93
tem coragem e disposição para manutenção da tensão em alta, a simpatia e a polidez, a
solidão, que garantem o pathos de distância.
É possível perceber, então, em Genealogia da Moral, uma espécie de
exemplificação para a teoria dos quatro grandes erros, e como a inversão na
investigação das causas, a confusão entre causas e consequências gerou a crença em
certos tipos de liberdade. A partir de tais argumentos, podemos investigar como a
mudança de foco das questões humanas pode tornar o homem um animal reativo, de
rebanho. Em outras palavras, com certos ideais edificados na cultura, a filosofia passa a
se dedicar à metafísica, afastando-se da investigação no âmbito da fisiologia. Em
Nietzsche, no entanto, as questões do corpo não são deixadas de lado em nome dos
conceitos criados como elevados e acima da corporeidade, como alma, vida eterna e
verdade. Para o nosso filósofo, as questões de limpeza e fisiologia têm lugar de
destaque, podendo-se afirmar que, em Nietzsche, um corpo são é qualidade necessária
para uma mente sã.
Neste sentido, os conceitos de Ser e Substância acabam por aparecer como
fantasmas que tentam fazer com que deixemos de lado o cuidado na escolha de hábitos
e preferências. Tal escolha não se assemelha à procura de um justo meio, mas
diversamente, repousa sobre a especificidade de cada indivíduo e sua comunidade.
Assim, entrevemos o relativismo como um caminho para outro tipo de verdade que
pode ser pensada longe da idéia de universalidade, trivialidade e igualdade. A intenção é
promover um refinamento do gosto, uma tentativa de dizer não o mínimo possível, a
manutenção de um pathos de distância que nos afasta da tentativa de equivalência de
um indivíduo com o outro. A proposta implica a oposição a qualquer idéia de igualdade
entre os homens, afastando as questões práticas das idéias cristãs de amor ao próximo.
Há, antes de tudo, que se cultivar a si mesmo, que desenvolver a toda potência o amor
próprio.
Por esta acepção, cristão é tudo aquilo que diz respeito a um ódio ao que lhe é
próprio, uma perversão do gosto que promove o ódio de si. Nas propostas cristãs de
tentar extrair de si as paixões, encontram-se as bases para a negação do próprio corpo e
da própria existência. O cultivo de si, ao contrário, exige a vivificação das paixões,
tornando possível discipliná-las e usá-las a favor da vida. O conhecimento de si mesmo
exige a geração de um amor por si, um amor próprio que se projeta a partir do que há de
bom em si mesmo. De maneira contrária a toda pregação de um tipo de consciência que
se sustenta na crueldade para consigo.
94
Tal cuidado de si, não pode, no entanto, equivaler a uma preservação de si, pois,
assim encarar-se seria uma atitude defensiva. Neste sentido, a própria preservação não
passa de uma reação a uma série de erros já cometidos. Tal argumento remete- nos mais
uma vez aos erros descritos em Crepúsculo dos Ídolos e à condenação que Nietzsche faz
do uso deste instinto em Gaia Ciência:
Ainda a origem dos sábios. A vontade de conservação é a
expressão de uma situação desesperada, uma restrição do
verdadeiro instinto vital, instinto que visa à extensão do poder e,
por isso, põe muitas vezes em jogo e sacrifica a “autoconservação”.
(...) A luta pela vida e, neste quadro, exceção, restrição
momentânea de querer viver: o interesse das lutas, grandes e
pequenas, continua a ser a preponderância, o aumento, a
extensão, a força conformemente a essa “vontade de poder” que é
precisamente o querer viver.
120
Por conseguinte, em Ecce Homo, vemos outro uso deste instinto de
autoconservação, uma atividade a favor do cultivo de si, que mesmo que as duas idéias
não se equivalham, tornam-se aliadas por certa perspectiva:
Em tudo isso na escolha da alimentação, de lugar e clima, de
distração – reina um instinto de autoconservação que se expressa de
maneira mais inequívoca como instinto de autodefesa. Não ver
muitas coisas, não ouvi-las, não deixar que se acerquem primeira
prudência, primeira prova de que não se é um acaso, mas uma
necessidade. A palavra corrente para este instinto de autodefesa é
gosto. Seu imperativo obriga não a dizer Não onde o Sim seria
um “altruísmo”, mas também a dizer Não o mínimo possível.
Separar-se, afastar-se daquilo que tornaria o Não sempre
necessário.
121
Sendo assim, liberdade é uma forma de conhecimento, que cabe apenas ao
pastor de si. O que significa dizer que este sujeito sabe viver relativamente a toda
necessidade, acaso, ou sorte, em vez de acatar qualquer espécie de lei geral, nem mesmo
a da total liberdade das paixões, o que se caracterizaria uma tirania e uma perversão do
gosto. Essa concepção de liberdade propõe sutileza, cuidado, que faz desconfiar de
qualquer imperativo ou categorização. Trata-se antes de uma hierarquia de faculdades,
uma manutenção da distância, que acata a multiplicidade sem tentativa de conciliar ou
120
GC,§349
121
EH, Por que sou tão inteligente, §8
95
misturar. Consiste ainda em montar e remontar valores e hierarquias, tal como sugere o
método genealógico, o qual demonstra que o movimento não é o caos em sentido
pejorativo, a necessidade é a manifestação da possibilidade de uma interação lúdica com
o próprio movimento. É o jogo de opor força a força. A liberdade, nestes termos, é
propiciada por uma capacidade de entender a pluralidade e usá-la a seu favor, sendo
apto e feliz em se expressar de vários modos. Porém, o conceito de liberdade em
Nietzsche consiste, não na simples aceitação da necessidade, na adesão às forças
terrestres, mas também na afirmação dessas potências por meio da entrega espontânea
ao sensível, requisitada pela disponibilidade da criação artística. O homem livre é
aquele que afirma a totalidade do mundo ao celebrar, inclusive, as vicissitudes da vida,
é aquele que se liberta das forças reativas e que, assim pode afirmar o que passou
como sendo obra de sua vontade. Deste ponto de vista, vemos surgir o caráter
estético do conceito de eterno retorno na filosofia nietzschiana, já que a disponibilidade
da criação artística exigida na produção de uma obra é também o estado em que deve se
colocar o homem para realizar a liberdade estética daquele que acata e celebra a
necessidade. A esteticidade está também no cuidado de si. Na compreensão de Giacóia,
a respeito do Eterno Retorno:
Não se trata de mera aceitação resignada dos acontecimentos do
destino, mas de afirmação incondicional, que aceita e bendiz cada
instante vivido. Por meio desse ensinamento o homem deve
aprender a agir como se a mais ínfima de suas ações devesse se
repetir eternamente, de maneira a dar a sua própria existência a bela
forma da obra de arte.
122
As possibilidades expressivas da arte, por sua vez, também exigem uma
diversidade, como por exemplo, diversidade de interpretações e consequentemente de
imagens. A arte pode aproximar-se do vir-a-ser e do múltiplo, uma vez que sugere
sempre novas perspectivas.
A criação artística é o espelho da perpétua luta de forças no processo de
repetição da transformação essencial da vida em seu curso. E devido a essa infinitude de
possibilidades, a criação parece nunca poder atingir uma forma definitiva, se pensarmos
que a criação é a constante construção e destruição de formas. Podemos, então, afirmar
que o âmbito da vida humana no qual se manifesta o processo lúdico de instaurar e
122
GIACOIA JUNIOR, O. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000. p. 60.
96
reavaliar valores a partir da liberdade, tal como proposta por Nietzsche, é o âmbito da
expressão artística.
Sobre a idéia de criação, em Barrenechea, temos a imagem de maternidade e/ou
paternidade do criador
123
. Em seu livro, Nietzsche e a Liberdade, Barrenechea, leva ao
limite, a idéia de criação afirmando que a criação associa-se a geração e ao parto.
Tal imagem é pertinente, em um primeiro aspecto, pois toda criação é
engendrada no interior, e ao ser liberta, dada à luz, vem acompanhada das dores típicas
da criação e da maternidade. Isto porque, ao darmos uma obra por acabada, o que se
opera é também um sentimento de dor, de ter-se livrado de certos valores e imagens.
Torna-se, então, imprescindível, que aquele que pretende criar, seja capaz de
uma entrega espontânea, ao mundo, ao sensível, para engendrar uma obra e para
concebê-la plenamente. Pois toda criação pressupõe abandono e rearranjo constantes.
Para entregar-se espontaneamente ao processo de criação, é necessário que a condição
de abandono seja acatada. Assim como em questões de saúde e da grande saúde. Dizer,
no entanto, que o homem criador se submete ao devir vital, não significa colocá-lo
como escravo de tal devir. Ao contrário da idéia de servidão, o que assinala com isso, é
o sentimento de liberdade que se efetiva com a obediência, em um sentido de
disponibilidade às forças que operam no mundo e nos homens. Se num primeiro
momento esta idéia de liberdade parece contraditória, pois pretende conciliar a
obediência e a libertação, olhada mais de perto, a liberdade em termos nietzschianos
exprime, de forma ampla, o ato de criar.
Com a atividade de interação entre as forças que operam na criação de novos
valores, podemos concluir que criar é gerar, procriar, e, de certa forma, concretizar
idéias e sentimentos no mundo. Barrenechea atenta-nos a uma imagem sexuada da
criação artística, devido à ação de pelo menos duas forças, contrárias, ou
complementares em todo ato criativo. Sendo assim, a criação não ocorre de forma
unilateral, não se produz algo a partir do nada, ocorre sim, a partir de forças interiores
que se dirigem à terra, portanto, a criação nasce na escuta de instintos viscerais, de
123
Tal autor utiliza-se do Zaratustra de Nietzsche. No presente trabalho, no entanto, optou-se por não
utilizar esta obra. Pretendemos, acima de tudo, avaliar o percurso da crítica nietzschiana, e apontar de
forma clara e, até certo ponto, sistematizada como as conseqüências de tal crítica exigem proposições a
respeito de uma nova moral, e do cultivo de virtudes específicas para sua realização, e plenitude da vida
humana. Para tal determinação, pretendemos percorrer a vasta obra do filósofo, para determinar os
indícios de uma proposta de moral correlata à idéia de liberdade em seu caráter artístico, tal como procede
Paschoal para pensar a moral, em Nietzsche e a auto supressão da moral.
97
impulsos fisiológicos que permeiam a presença no mundo no que de mais íntimo.
Assim, criar é dar à luz, abrindo as profundezas, ‘grávidas’ pela pulsões terrestres”
124
.
O aspecto sexual se completa com a noção de conjunção entre pathos e ação,
que significa dizer que a autonomia também exige obediência a si mesma no que diz
respeito à criação de novas tábuas e de novos valores. Isso porque, se em todo ato da
criação exigem-se ao menos dois princípios em relação, no caso da liberdade artística,
relacionam-se homem e mundo de forma íntima, representando um misto de ação e
paixão, que engendra toda avaliação. Deste modo, o artista pode ser representado como
a mãe e como o pai da criação. Assim como todo amor, toda relação sexuada, quer
também gerar filhos, ou dito de outro modo, criar obras. Quando a atividade criadora
aparenta-se à maternidade, Nietzsche pretende referir-se à receptividade, enquanto
pathos daquele que gera valores em seu interior. Sobre a gravidez” do criador, em
Aurora, temos que:
“Há estado mais consagrado do que a gravidez? Tudo o que se faz,
fazer na tranqüila de que beneficiará de algum modo o que em
nós esta vindo a ser! De que aumenta seu misterioso valor, no
qual pensamos com deleite! Então se evita muito coisa sem precisar
coagir duramente a si mesmo! Então se suprime uma palavra forte,
oferece-se conciliadoramente a mão : a criança deve nascer do que
de melhor e mais brando.(...) Nesta consagração deve-se viver!
Pode-se viver! Seja o aguardado um pensamento, um ato com
toda realização essencial não temos outro vínculo senão o da
gravidez, e deveríamos lançar ao vento a presunçosa conversa de
‘querer’ e ‘fazer’!”
125
Existe, portanto, um aspecto doloroso e lento no processo de criação, correlato
ao processo do parto. No entanto, Barrenechea ressalta o artista como a mãe grávida e
também o filho que se à luz. Tal analogia não representa contradição, pois o artista
sofre para trazer ao mundo sua obra, e sempre que sua obra esta concretizada, ele nasce
novamente com ela, pois representa reorganização, rearranjo de formas e imagens,
outrora íntimas, tornadas plenas com a exteriorização. O que se pretende exaltar aqui,
portanto, é a idéia de maternidade-paternidade como correlata ao processo de fusão
entre o pessoal e o universal, como citado anteriormente, entre a liberdade, enquanto
atributo pessoal e a necessidade enquanto universalidade. Deste modo, diferenciam-se
ainda mais as idéias de liberdade atreladas à responsabilidade moral e de liberdade em
124
Barrenechea, M. Nietzsche e a liberdade, p. 95.
125
A, §552
98
termos artísticos. Isto porque, esta última não se efetiva em esfera solipsista, nem
pressupõe isolamento ou separação do mundo, é antes de tudo, entrega às pulsões
terrestres que atuam, inclusive em nosso corpo.
126
Barrenechea enfatiza a relação entre
vontade de potência e terra, para a melhor compreensão da idéia de maternidade
associada à criação: “Há uma convergência significativa entre as noções de terra,
mundo, vida e vontade de potência. Todas elas aludem ao jogo de forças, às pulsões
intramundanas que permeiam os movimentos do universo.”
127
Desta forma, evidencia-
se a crítica de Nietzsche à metafísica, pois liberdade para Nietzsche não pode aliar-se ao
isolamento de forças, é antes e acima de tudo, fusão, adesão às forças da terra. A figura
do ventre completa a idéia de liberdade enquanto correlata à maternidade, pois refere à
digestão e procriação, onde se acolhem e se processam os frutos da terra. Do mesmo
modo que a digestão, a criação não parte do nada, mas de elementos que se extraem da
terra. Assim, relaciona-se também a idéia de ventre, entranhas, com a noção de vontade
em Nietzsche. A noção de vontade é também algo orgânico, não um atributo espiritual,
é também o “meio terrestre que o homem possui para concretizar suas pulsões
viscerais”.
128
Ocorre, no entanto, que a vontade esbarra no limite de sua ação, pois o
agir direciona-se sempre para frente, de forma unilateral, não pode, portanto, agir no
passado. Precisamos então, de uma perspectiva que se mostre como saída para a barreira
do tempo, colocada no caminho da vontade criadora. Com isso, da mesma forma com
que se manifesta o ressentimento, a partir do sentimento de vingança em questões
morais e religiosas, pode brotar um sentimento de rejeição e de rancor pela necessidade
do passar do tempo, que pode novamente conduzir o homem à rejeição total do mundo.
É com a mesma “visão escatológica do tempo”, conforme apontado anteriormente, que
se efetivaram todas as vertentes metafísicas ocidentais. Esta maneira de encarar o
passado está presente, por exemplo, na idéia de eternidade como redentora do futuro e
justificativa para o presente. Tal visão a respeito do tempo, para Barrenechea
desvaloriza o presente de tal forma que tudo o que acontece agora é apenas pagamento
pelo ontem, e nova dívida com o que virá. É necessário, então, que uma saída para tal
interpretação seja colocada, sem que isto signifique a suspensão total da vontade, como
pode parecer mais fácil. Caso a suspensão total da vontade fosse adotada, atentaríamos
126
Cf. Idem, Ibidem. p. 97.
127
Idem, Ibidem.
128
Idem, Ibidem, p.100
99
contra a essência da própria vida, enquanto intensificação e vivificação de impulsos.
129
A saída mais uma vez, encontra-se na idéia de adesão e não de supressão em relação à
necessidade. O caráter estético do eterno retorno se coloca como garantia da
possibilidade de liberdade enquanto afeição à condição de criadores. Por um lado, o
eterno retorno pode aparecer como algo arrebatador, se considerarmos a idéia de que
tudo aquilo que existe ou que se realiza repete-se infinitamente e aconteceu
incontáveis vezes. Isso parece significar que a vontade é anulada e com isso o novo
também é eliminado. Somos novamente impelidos a acatar e utilizar a idéia da
necessidade arrebatadora a favor de uma decisão igualmente forte, afeiçoada à
afirmação e disponibilidade para a adesão as forças, e acontecimentos.
Necessita-se, no entanto, de coragem e saúde forte, para compreender com
alegria que as facetas da existência podem ser afirmadas sem reservas. Tal atitude
representa a forma mais completa de conformidade com o universo e as forças que
coexistem para a continuação da vida. O eterno retorno e sua aceitação acolhem de
forma alegre inclusive os acontecimentos e estados mais terríveis, mesmo porque, de
nada valeria rejeitar aquilo que não se pode mudar, o que foi feito ou aconteceu.
Acatar o jogo e suas regras é portar-se como jogador que se regala com a possibilidade
de utilizar as regras a partir de seu próprio modo de valoração. Mesmo que
aparentemente, até esse ponto, a capacidade de ação se limita, pois toda reação externa,
factual, do que já foi, é inexorável, encontramos a saída na idéia de reapreciação da
lembrança. Novamente, incorremos nas idéias a respeito das funções ativas e reativas do
esquecimento e da lembrança, da utilização do passado a favor do futuro e da
continuidade da existência, pois mesmo que não possamos mudar o passado, podemos
perfeitamente inverter ou transformar a avaliação que fazemos dele. Neste sentido, o
homem volta a protagonizar, a agir, a se relacionar de forma ativa com o próprio
condicionante de sua existência. Deste modo, a proposição do eterno retorno, elimina a
idéia de além, onde reside o infinito, fora do tempo, como uma espécie de “meta
existência”. O eterno retorno inclui a eternidade no interior do tempo, neste mundo.
Deste modo, é abolida a falta de saída para a oposição entre liberdade e necessidade,
uma vez que impele a acolher os eventos de forma leve, e que cada ato desejado, torna-
se uma forma de libertação. Assim, aceitamos o jogo e exercemos o amor fati, pois se
acolhem os momentos felizes ou não, tornando todos eles dignos de celebração. Com
129
Cf., Barrenechea, M. Nietzsche e a liberdade, pp 102 – 106.
100
esta possibilidade de liberdade avistada, afastam-se as crenças em sujeito autônomo,
negador da necessidade; na vontade como causa primeira, e consequentemente no
sujeito capaz de acolher a liberdade servil, acompanhada de culpa, de castigo impagável
e ressentimento. A liberdade, em sua configuração artística, criadora, torna tudo leve,
retira o peso excessivo das coisas, pois compreende que tudo esta submetido da mesma
forma ao mesmo princípio básico, o devir. Amando esta condição, cria-se a necessidade
da afirmação trágica, dionisíaca, que diz ‘Sim’ sem limites à existência, no exercício de
uma força plástica, para saber lidar como o passado, no presente em nome de um futuro
tão frutífero quanto possível.
101
4. Considerações finais
Diante do que foi trabalhado até agora, podemos começar definindo a liberdade
como o sentimento da extensão de potência experimentada quando se age de acordo
com os instintos e impulsos próprios.
A liberdade, nestes termos, revela-se estética e não apenas moral, que
compreende não a capacidade de escolha no cumprimento de regras e imperativos, e
sim, o sentimento daquele que cria. Pode situar-se para além de toda norma para compor
e impor os próprios valores, para inscrever sua participação no mundo pautando-se na
pontualidade de cada ato presente, lidando com aspectos sensíveis, inclusive na escolha
de nossos hábitos alimentares, no clima que nos agrada, em nossa distração, ou seja, em
toda tentativa de refinamento do gosto. Trata-se, ainda, de reorganizar o próprio
organismo e as funções de cada parte, pois com o esquecimento uma faculdade
ativa — são possíveis a felicidade, e a jovialidade. A falta de esquecimento compromete
necessariamente o organismo, pois o sujeito, que de tudo se recorda e de tudo quer dar
conta, acaba por não dar conta de nada. Portanto, o esquecimento nada mais é do que
um recurso da saúde forte, que pode suspender a memória quando for conveniente. E o
será sempre que se trata de dar lugar ao novo.
Descartam-se, por esta proposta, as idéias de além mundo, de que a vida seja o
pagamento da dívida que se adquire ao nascer, de acordo com os ideais cristãos de
pecado original. Para o exercício da liberdade, em termos estéticos, é necessário, antes
de tudo, que sejam derrubados os ídolos, nos quais se apóiam todo fundamento moral e
religioso a partir dos quais se difundiram as idéias de moral e liberdade durante toda a
tradição filosófica.
Percebemos, então, pela investigação nietzschiana, o que há de fabuloso nos
valores morais, religiosos e metafísicos, desmontando com isso, o arsenal da filosofia
moral, até Nietzsche. Colocando as questões pertinentes a uma espécie de condição
humana, a saber, a inclinação a dar valor às coisas, e de equivalê-las, notamos como os
valores, inclusive a verdade atribuída e exigida deles são criações humanas. A criação
dos valores, no entanto, não se mostra em toda a tradição como tal. Nietzsche investiga
o processo de criação de tais valores, os refinamentos da consciência e a criação do
espaço onde devem ser acatados de forma irrestrita os critérios e parâmetros relativos à
criação. Promovendo, então, uma inversão, tanto na direção da criação de valores,
102
quanto em sua utilização, Nietzsche remonta os processos pelos quais se operam as
confusões.
Demonstra que os impulsos geradores dos ideais metafísicos, que por fim
torturam a própria existência, surgem, na verdade, de impulsos que poderiam se colocar
a favor da vida, e não para depreciá-la. Contudo, com a falta de vazão, de exteriorização
do instinto de crueldade, tal força volta-se de maneira prejudicial ao próprio organismo,
criando, para as consciências, uma imagem de homem culpado e responsável pela dor
adquirida com a constatação do caráter trágico da existência.
Reconhecemos a questão da construção da memória, como importante fio
condutor do pensamento nietzschiano. Em seus primeiros escritos
130
, percebemos a
importância com que a memória e com ela, a promessa, se apresentam no processo de
socialização do homem. Desmitificamos aqui, partindo do itinerário pensado por
Nietzsche, toda idéia que atribui ao sujeito a possibilidade de ser culpado, ou
responsável, em última instância, pelos acontecimentos de modo geral: isso tortura a
consciência e por conseguinte, debilita o corpo. Deste modo, retornamos à terra como
portadora da fecundidade necessária para toda criação, e somos impelidos, de forma
mais branda, a encarar a existência como o lugar da criação. O resultado decisivo aqui,
contra o que sugere a tradição, é o descarte da idéia de existência como castigo.
Libertos dos ideais ligados à culpa, e ao sofrimento decorrentes da constatação
da impossibilidade de sua expiação, nos entregamos à idéia de liberdade correlata à
expressão artística. No limite dessa perspectiva da liberdade, encontramos novamente,
mesmo que de outro ponto de vista, a impossibilidade de reverter o passar do tempo, e
os acontecimentos anteriores. Em outras palavras, a proposta da liberdade em sua forma
artística, disponível à criação, parece encontrar seu limite na impossibilidade de mudar
o que passou. Da mesma forma que nas propostas de utilização da história, Nietzsche
indica que a garantia de liberdade, sob este aspecto, encontra-se na infinidade de
possibilidades de apreciação das lembranças de acontecimentos decorridos. Assim,
mesmo que não possamos voltar ao passado, podemos ressignificar as imagens que dele
temos, e com isso, podemos também utilizá-las a favor da promoção de uma vida que,
se não totalmente despojada de culpa e sofrimento, pelo menos se liberte desses
impulsos na fundamentação de nossas ações; ou seja; mesmo que tais estados reativos
estejam presentes nos organismos, eles podem o ser guias exclusivos das ações e das
130
Por exemplo Segunda extemporânea.
103
interpretações a respeito da vida, e da existência. Com isso, não temos o sentimento de
vingança como o motor de nossas ações. Temos, em contrapartida, a vontade de
potência, de forma ativa, como o impulso de expansão e plenitude da existência
individual.
As virtudes realmente compatíveis com a vida dedicada à criação, enumeradas
no ultimo capítulo do trabalho, indicam-nos a saída do niilismo, e a continuidade do
caminho para a formação de um tipo de homem que vive plenamente suas
possibilidades e necessidades vitais. Quanto ao problema da moral, Nietzsche
diferencia, em certo ponto de sua filosofia, a “moral da compaixão” da moral em geral,
colocando-se a combater aquela. Retomamos aqui a idéia que Marton nos coloca a
respeito do caráter extemporâneo do pensamento nietzschiano, referida no primeiro
capítulo desta dissertação
131
, a saber, o combate e a distância como partes importantes
da crítica nietzschiana. Por isso, a respeito da moral, Nietzsche utiliza-se da crítica a
todo tipo de moral, pois lhe parecia uma exigência da própria desconfiança em relação à
“moral da compaixão”. Vemos, então, como a idéia de combate em Nietzsche alia-se ao
pathos de distância, que aparece com a primeira das questões ao lidar com a moral.
Distanciando-se de qualquer espécie de moral é possível criticá-la. Em segundo lugar,
faz-se necessário colocar as distinções pertinentes para investigar a moral de sua época,
e assim criticar a “moral da compaixão” e tudo aquilo que se impregnou de seus valores.
Na crítica nietzschiana à moral é possível perceber certos aspectos de seu próprio
procedimento crítico, da mesma forma, percebemos que não se trata de uma rejeição
sistemática de qualquer espécie de moralidade. Conforme citado, Nietzsche acredita
que a relação da moral com a natureza pode configurar-se como uma exigência de
aprimoramento a partir de certa dose de coerção, de resistência. Em seu trabalho crítico
percebemos indicações das virtudes que se fazem desejáveis para a conduta em
harmonia com a necessidade, liberta de ídolos.
A veracidade aparece, nitidamente, como aliada ao procedimento crítico, sempre
que encara sua tarefa como um destino, de forma que se diferencia dos demais filósofos
é que não se torna submisso das crenças na verdade, em vez disso, para ele, a
veracidade se apresenta como uma exigência moral em sentido amplo. Muito próxima
da veracidade, temos a dureza consigo, a probidade, que aparece como a virtude que
131
Tal referência encontra-se na página 12 do presente trabalho.
104
propicia o crescimento da “planta homem”, trata-se então de uma espécie de imperativo
que se coloca a si mesmo como a garantia da própria possibilidade de tal crescimento.
Afastando-se completamente das idéias de “moral da compaixão”, a
responsabilidade possibilitada e exigida pela veracidade e pela probidade aparece como
sinônimo de engajamento, no sentido de que não é apenas a natureza responsável pelo
crescimento do homem, a ação do homem sobre si mesmo também é determinante.
A disciplina do sofrer, do grande sofrer não sabem vocês que
ate agora foi essa disciplina que criou toda excelência
humana?(...) No homem estão unidos criador e criatura: no
homem matéria, fragmento, abundância, lodo, argila, absurdo,
caos, mas no homem há também criador, escultor, dureza de
martelo, deus-espectador e sétimo dia – vocês entendem essa
oposição?
132
.
Tais virtudes aproximam-nos de um tipo de liberdade que se pode experimentar
de forma única, como a perspectiva criadora da própria existência, e também como a
celebração das vontades em combate. A responsabilidade guiada pela veracidade e por
uma vontade forte torna-se a forma de contentamento de afirmação do combate como
engajamento e, portanto como possibilidade de manutenção de expansão da vida
exuberante e aventureira digna de ser celebrada. O homem livre em termos estéticos é
responsável no sentido de se saber o criador dos próprios valores.
Explorando os instintos próprios do ser humano, Nietzsche coloca a liberdade na
disponibilidade em relação à vida. Tornando a necessidade a regra que permite que nos
alegremos em jogar o jogo de existir, desmontamos a contradição, entre liberdade e
necessidade. Por uma perspectiva também livre de preconceitos lógicos, a liberdade é
antes e acima de tudo, a garantia do campo de atuação do homem livre, criador. Por tal
visão, a responsabilidade moral é descartada, e toma outro sentido. As questões
pertinentes à verdade a todo custo perdem força, e podemos nos mostrar disponíveis à
necessidade, já que é a prerrogativa da criação, não seu limite.
A liberdade artística liga-se intimamente às forças essenciais do mundo, e não
tenta, de forma vingativa suprimi-las. A entrega à necessidade ameniza a dor e patenteia
a ação livre, cabe ao homem que supera o niilismo de forma ativa. Percebemos que, o
intervalo entre o nascimento ou surgimento e a morte ou deterioração das coisas que
existem pode ser o limite ou o próprio estímulo para pensar, criar, pois, antes de ser um
problema, é a satisfação de quem vive, e o intervalo para a criação é a própria vida.
132
ABM, § 225
105
Em Nietzsche, na perspectiva artística da liberdade, a própria, vida, ou seja, a
lacuna entre o surgimento e o desaparecimento, é digna de celebração e não de
desprezo. Exercer a liberdade de forma artística, e assumir de forma alegre a escolha
dos atos, como se escolhem as investidas ou recuos em um jogo, é encarar-se de forma
única. Enaltecer a existência tal como ela é, promove um sentimento de satisfação, que
devolve às escolhas simples e cotidianas sua função de instrumento para cada homem
imprimir algo de seu no mundo. Celebra-se a adesão à necessidade com a alegria de que
ela seja a condição a que tudo está submetido. Possibilitando necessariamente o
surgimento do novo. Estimulado, ao lidar com a novidade, o homem livre se comporta
como a criança alegre na invenção e na imersão voluntária e disponível ao jogo da
criação. A liberdade artística devolve a infinitude de possibilidades, é então uma
perspectiva que garante a felicidade, em termos únicos, e não absolutos. É também a
perspectiva mais fecunda que se pode adotar para retirar da vida o que de mais
interessante, e imprimir nela o que há de mais original. Talvez Nietzsche
compreendesse as palavras do poeta marginal: “pense e te pareça ou eu te invento por
toda eternidade”.
133
Encarando o destino com amor, o eterno retorno como a chance de fertilizar a
vida, o que se exige de nós é a honestidade, a alegria diante da responsabilidade de
escolha de nossos hábitos e de nossas ações. Com isso, queremos estampar nossas
próprias cores e figuras nesse mundo, a partir da fecundação, da relação íntima e
criadora do homem com a vida, da ação com o mundo. Equivalem-se a necessidade e a
liberdade artística, pois o fato inevitável do passar do tempo garante o momento e o
lugar para reavaliar e recriar valores, motivando cada vez mais o acatamento alegre da
existência. Tiramos da filosofia nietzschiana o aval que precisávamos para a realização
plena de nossa capacidade criativa, e ainda somos desafiados a encarar a idéia de
criação como forma de ser. Esta perspectiva se mostra como desafio, pois estamos
agora, de volta aos nossos próprios cuidados, de forma que não existe nada acima da
vontade, e nem da nossa responsabilidade pela escolha daquilo que fazemos emergir,
dos afetos e ações que escolhemos mostrar e legar ao mundo.
133
Enchantagem. Paulo Leminski.
106
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