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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA APLICADA
ALDO MARCOZZI EVANGELISTA MONTEIRO
CINEMA E MISTICISMO ORIENTAL: a representação do Zen Budismo na obra
de Akira Kurosawa
FORTALEZA, CEARÁ
2010
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ALDO MARCOZZI EVANGELISTA MONTEIRO
CINEMA E MISTICISMO ORIENTAL: a representação do Zen Budismo na obra
de Akira Kurosawa
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Lingüística Aplicada do
Centro de Humanidades da Universidade
Estadual do Ceará, como requisito parcial
para a obtenção do título de mestre em
Lingüística Aplicada. Área de
concentração: Estudos da linguagem.
Linha de pesquisa: tradução, lexicologia e
Processos cognitivos.
FORTALEZA – CEARÁ
2010
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA APLICADA
FOLHA DE APROVAÇÃO
Título da Dissertação: “CINEMA E MISTICISMO ORIENTAL: A
REPRESENTAÇÃO DO ZEN BUDISMO NA OBRA DE AKIRA KUROSAWA”
Autor: ALDO MARCOZZI EVANGELISTA MONTEIRO
Orientador: Prof. Dr. Raimundo Ruberval Ferreira
BANCA EXAMINADORA:
Orientador: Prof. Dr. Raimundo Ruberval Ferreira - UECE
Presidente
Prof. Dr. Carlos Augusto Viana da Silva - UFC
Primeiro examinador
Profa. Dra. Laura Tey Iwakami - UECE
Segunda examinadora
DATA DA DEFESA: 20.01.2010
3
Não corras atrás do passado, não busques o futuro. Ambos são ilusões. Vê,
claramente, diante de ti o Agora. Quando o tiveres encontrado viverás o tranqüilo e
imperturbável estado mental.”
(Buda Gautama)
4
A meu pai
5
AGRADCIMENTOS
Pelas contribuições e incentivo gostaria de agradecer ao meu orientador e
amigo Prof. Dr. Raimundo Ruberval Ferreira. Por me auxiliar a encontrar o caminho do
aqui agora através da prática do Yoga, meu muito obrigado a Jimena Marques.
Agradeço também à colega Gleyda Cordeiro pela colaboração na elaboração
do resumo em francês, e a meus familiares pelo apoio, em especial minha sobrinha
Mariana.
Por fim devo agradecer (de mãos postas diante do peito) àqueles homens que
se dedicaram à propagação da sabedoria do Buda Sakyamuni e do Zen, em especial
Bodidharma, primeiro patriarca Zen, D. T. Suzuki e Allan Watts.
6
RESUMO
O Zen budismo é uma forma de misticismo que influenciou a cultura do Extremo
Oriente, não apenas por ser uma espécie de religião, mas porque suas concepções sobre
a existência influenciaram um grande número de representações sociais, estéticas e
militares. O cinema japonês acaba por ser influenciado pelo referido misticismo a ponto
de aparecer representado na obra de Akira Kurosawa, um de seus mais importantes
diretores. Partindo deste pressuposto, analiso de que maneira o Zen budismo está
representado em três filmes do referido diretor: Trono Manchado de Sangue (1957),
Sonhos (1990), e Viver (1952). Considero que os três filmes, apesar de o fazerem por
vias peculiares, performatizam o Zen fazendo com que tais filmes acabem por assumir a
responsabilidade por um discurso contra hegemônico, na medida em que exaltam
concepções de existência baseadas na vida simples e contemplativa, alguns dos
princípios fundamentais do Zen. Trono Manchado de Sangue, adaptação da Peça
“Macbeth” de William Shakespeare, traz uma representação do Zen calcada, sobretudo
em alguns preceitos morais do budismo, o que é realizado em função da opção narrativa
de Kurosawa, baseada nas estratégias da tragédia clássica. No filme Sonhos, vemos
representada a questão fundamental, não apenas do Zen, mas do budismo em geral: a
Iluminação, ou Satori. Na referida película tais representações sugerem refletir sobre a
necessidade de aquisição de um novo ponto de vista sobre a existência que seja capaz de
ajudar a salvar o planeta de uma hecatombe geral. Em Viver, Kurosawa aborda a
questão da Ignorância, representada através da saga de um personagem que tenta
reformar sua existência depois de saber que está com câncer. Esta obra sugere refletir
sobre a importância da capacidade de contemplação para a saúde mental e física.
Palavras-chave: Representação, cinema, Kurosawa, Zen budismo.
7
RÉSUMÉ
Le zen bhouddisme est une conception de mysticisme qui a une forte influence sur la
culture de l´Extrême-Orient, surtout puisqu´il ne s´agit pas tout simplement d´un type de
religion. Ses concepts sur l´existence ont influencié un grand nombre de représentations
sociales, esthétiques et militaires. Le cinéma japonais a subi aussi cette influence qui est
nettement présente dans l´oeuvre d´un des plus importants réalisateurs japonais, Akira
Kurosawa. A partir de cette afirmation, j´analyse de quelle manière le zen-bouddhisme
est représenté dans trois films de cet auteur: Kumonosu-jo (1957), Rêves (1990) e Ikiru
(1952). Je considère que ces trois films montrent cette influence d´une façon tout à fait
particulière puisque ils emploient un discours contre-hégémonique et exaltent les
conceptions de l´existence basées sur la vie simple et contemplative, quelques principes
du zen-bouddhisme. Kumonosu-jo, une adaptation de la pièce de théâtre Macbeth” de
Shakespeare, nous apporte une représentation du zen basée sur quelques conceptions
morales du bouddhisme au même temps qu´il emploie aussi les éléments de la tragédie
classique. Dans le film Rêves, nous observons la représentation du zen et
principalement du bouddhisme en général: le concept de l´illumination, ou Satori, en
japonais. Dans le film ces représentations nous poussent à la réflexion sur le besoin de l
´acquisition d´un nouveau point de vie sur l´existence qui soit capable de nous aider à
sauver la planète d´une hécatombe mondiale. Dans le film Ikiru, Kurosawa exploite la
question de l´ignorance, représentée a partir de l´histoire d´un personnage qui essaie de
transformer son existence après la décourverte d´un cancer. Cette oeuvre motive à la
discussion sur l´importance de la capacité de contemplation da la santé mentale et
physique.
Mots-clés: représentation, cinéma, Kurosawa, zen.
8
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Prólogo---------------------------------------------------------------------------------91
Figura 2: A assinatura de Kurosawa-----------------------------------------------------------94
Figura 3: O Título do filme---------------------------------------------------------------------95
Figura 4: A feiticeira----------------------------------------------------------------------------99
Figura 5: Os samurais e os esqueleto --------------------------------------------------------100
Figura 6: Samurais perdidos em busca do castelo------------------------------------------100
Fugura7: A reflexão dos samurais------------------------------------------------------------101
Figura 8: O ponto de vista dos subalternos--------------------------------------------------103
Figura 9: A advertência da mãe --------------------------------------------------------------106
Figura 10: A mãe entrega opunha deixado pelas raposas---------------------------------106
Figura 11: A dança dos espíritos da natureza-----------------------------------------------108
Figura 12: O menino---------------------------------------------------------------------------108
Figura 13: A reticência do Satori------------------------------------------------------------ 109
Figura 14: Os alpinista na nevasca-----------------------------------------------------------110
Figura 15: O Túnel-----------------------------------------------------------------------------113
Figura 16: O soldado que clama pela iluminação------------------------------------------114
Figura 17: Os ogros autofágicos -------------------------------------------------------------116
Figura 18: A aldeia dos moinhos de vento--------------------------------------------------117
Figura 19: Quando o Herói reflete-----------------------------------------------------------119
Figura 20: O cortejo fúnebre -----------------------------------------------------------------121
Figura 21: O estômago de Watanabe--------------------------------------------------------122
Figura 22: Watanabe entre os processos----------------------------------------------------123
Figura 23: A avalanche burocrática---------------------------------------------------------124
Figura 24: Watanabe retorna para casa-----------------------------------------------------125
Figura 25: Watanabe diante do oratório----------------------------------------------------126
Figura 26 Watanabe e o escritor-------------------------------------------------------------128
Figura 27: O Chapéu como símbolo do novo pensamento ------------------------------128
Figura 28: O encontro com a jovem --------------------------------------------------------129
Figura 29: Watanabe saindo para a vistoria------------------------------------------------130
Figura 30: Watanabe contempla o por do sol----------------------------------------------130
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO-----------------------------------------------------------------------------------12
1. ALGUMAS FALAS SOBRE REPRESENTAÇÃO--------------------------------16
1.1 . Hall e as representações --------------------------------------------------------------19
1.1.1 . Hall e os sistemas de representação-----------------------------------------20
1.1.2 .Hall e as teorias da representação--------------------------------------------23
1.1.3 .Linguagem e performatividade ----------------------------------------------24
1.1.4 .As representações Sociais ----------------------------------------------------26
1.2 . Cinema e Pensamento -----------------------------------------------------------------30
2. SOBRE KUROSAWA E SUA OBRA----------------------------------------------------41
2.1.Primeira fase------------------------------------------------------------------------------41
2.2. Segunda fase – congruências com o cinema neo-realista e com o cinema
Noir------------------------------------------------------------------------------------------------
-----42
2.3. Terceira fase-----------------------------------------------------------------------------45
2.4. A terceira fase e os Jidai-Geki --------------------------------------------------------47
2.5. A quarta fase ou o refinamento final -------------------------------------------------49
2.5. Kurosawa visto por ele mesmo -------------------------------------------------------52
2.5.1. Kurosawa e construção de um roteiro-----------------------------------------52
2.5.2. Kurosawa e a censura------------------------------------------------------------55
2.5.3. Kurosawa, suas referências literárias e sua adaptações ---------------------55
2.5.4. Kurosawa e sua técnica de filmar ----------------------------------------------56
2.5.5 Kurosawa e os atores -------------------------------------------------------------58
2.5.6. Kurosawa e o teatro tradicional japonês --------------------------------------60
3. CINEMA E MISTICISMO ORIENTAL------------------------------------------------62
3.1. Metodologia -----------------------------------------------------------------------------62
3.1.1. Constituição do corpus ----------------------------------------------------------62
10
3.1.1.1. Trono Manchado de Sangue-----------------------------------------------62
3.1.1.2. Sonhos------------------------------------------------------------------------64
3.1.1.3 Viver --------------------------------------------------------------------------66
3.1.2. Procedimentos metodológicos-------------------------------------------------67
3.2 . Cinema e Misticismo Oriental: a representação do Zen Budismo na Obra de
Akira Kurosawa-----------------------------------------------------------------------69
3.2.1. Os primórdios do budismo----------------------------------------------------------70
3.2.2. Um criança especial------------------------------------------------------------------71
3.2.3. Um adulto especial-------------------------------------------------------------------73
3.2.4. A descoberta da verdade ------------------------------------------------------------74
3.2.5. A despedida final---------------------------------------------------------------------77
3.2.6. Iluminação ou Sambodhi------------------------------------------------------------78
3.2.7. Ignorância -----------------------------------------------------------------------------80
3.2.8. Os caminhos do budismo------------------------------------------------------------81
3.2.9. O Zen-----------------------------------------------------------------------------------84
3.2.10. A disciplina Zen --------------------------------------------------------------------85
3.2.11. Satori, Koan e a prática do Zazen ------------------------------------------------87
3.2.12. O budismo Zen e a cultura do Extremo Oriente--------------------------------88
3.2.13. Trono Manchado de Sangue, ou o “Bem” pelo “Mal” ------------------------91
3.2.13.1. O sermão da flor -----------------------------------------------------------96
3.2.14. Sonhos ou a investigação sobre o Satori e a Iluminação---------------------104
3.2.15. Viver – a representação da ignorância ou Avidya-----------------------------121
CONSIDERAÇÔES FINAIS-------------------------------------------------------------132
BIBLIOGRAFIA CITADA---------------------------------------------------------------136
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA------------------------------------------------------137
FILMOGRAFIA----------------------------------------------------------------------------138
11
INTRODUÇÃO
O Budismo teve sua origem no norte da Índia, durante o século V a.C.
quando o Buda Histórico, Sidhartha Gotama atingiu o estado de suprema introspecção
nos mistérios da vida, conhecido como iluminação. A partir deste momento Buda
iniciou a transmissão de seus ensinamentos através de uma linhagem de 28 patriarcas,
até finalmente chegar a Bodhidharma, que levou o Budismo para a China, no século VI
d.C. Segundo a tradição a suprema introspecção de Buda foi transmitida de um
indivíduo para outro, sem o intermédio de escrituras ou de qualquer ensinamento
baseado em doutrinas. Por isso se diz de sua transmissão que se deu diretamente, como
uma espécie de comunicação feita de espírito para espírito. No entanto, ao mesmo
tempo em que a referida mensagem de Buda era assim propagada, alguns seguidores
iam se organizando em diferentes seitas, que podem ser reduzidas em duas divisões
principais: o ramo Mahayana, ou grande veículo, e o ramo Hinayana, ou pequeno
veículo.
A diferença principal entre as duas correntes é o fato de que, enquanto ramo
Mahayanico estabelece e admite a propagação do Budismo por escritos e tratados
metafísicos variados, o ramo Hinayanico o faz por intermédio do Cânone de Páli, ou
Tripitaka, que é um conjunto de ensinamentos éticos atribuídos ao próprio Buda
Histórico. Assim, o budismo Hinayanico, ou Theravada ficou restrito ao sul da Ásia,
notadamente Ceilão, Burma e Sião, enquanto que o ramo Mahayanico penetrou o Norte
chegando à China, Tibete, Mongólia, Coréia e Japão, onde se sedimentou fortemente
como o Zen budismo.
A principal característica do Zen é o fato de ser uma disciplina mística que
se aproxima muito do budismo primitivo, uma vez que propõe a chegada ao estado de
profunda introspecção sem nenhum tipo de ritual ou escritura e que enfatiza a
naturalidade e a espontaneidade como sendo a principal via para se atingir o
conhecimento supremo da Iluminação, chamada, no âmbito do Zen, de Satori. Mas o
que é principalmente importante ressaltar é que a referida disciplina mística vai
influenciar fortemente, não apenas o Japão, mas toda a civilização do Extremo Oriente.
E a esta influencia se fez sentir tanto na estética como nas artes militares.
12
Em termos estéticos a influencia do Zen vai chegar à arquitetura, à literatura
e à pintura e em termos das artes militares vai influenciar o código cavalheiresco dos
samurais, bem como as técnicas do Jiu-Jitsu e do Kenjutsu (esgrima). Logo o que era
uma concepção sobre a existência, segundo um ponto de vista transcendentalista, acaba
por se converter em um variado número de representações capazes de marcar os
diversos fazeres de uma civilização, cuja cultura é singular no mundo inteiro.
O cinema, sendo uma forma de representação capaz de performatizar
maneiras de pensar e modos de ser no mundo, vai também sofrer a influência do Zen,
ainda que de forma indireta, o que pode ser atestado nas obras de vários diretores
japoneses tais Como Ozo ou Mizoguchi e notadamente Kurosawa. Este último é
conhecido no mundo por sua obra altamente comprometido com o universo do Extremo
Oriente e em seus filmes, que também dialogam com a linguagem cinematográfica do
ocidente, o referido diretor costuma trazer personagens, narrativas e temas, que por sua
peculiaridade refletem fortemente o imaginário japonês, além de serem profundamente
comprometidos com a história política do Japão.
Partindo do pressuposto de que o Zen está presente na obra de Kurosawa
como uma influência importante, a presente pesquisa se debruça sobre três de seus
filmes, a saber Trono Manchado de Sangue (1957), Sonhos (1990) e Viver (1952) com o
objetivo principal de analisar, através de que recursos fílmicos o Zen budismo está
sendo representado, buscando compreender que compromissos tais representações
assumem dentro de uma perspectiva da política de representação. Nosso interesse em
realizar um estudo desta natureza surge da possibilidade de podermos articular
diferentes áreas do conhecimento que partem dos estudos de representação, e cinema e
vão até as especulações sobre o misticismo oriental. Outro foco principal de nosso
interesse é a própria obra de Akira Kurosawa, que apesar de tão importante para a
história do cinema mundial, carece de estudos mais aprofundados, sobretudo em língua
portuguesa.
Esta pesquisa está dividida em três capítulos. No primeiro deles são
abordadas questões relacionadas à representação e a uma visão performativa da
linguagem, bem como à linguagem cinematográfica e suas relações com o pensamento e
a chamada política de representação. Procuramos na primeira parte discutir as
representações e seus modos de articulação, dando relevo à sua importância para a
formação dos circuitos culturais, bem como refletindo sobre elas à luz da dimensão
performativa da linguagem. Por outro lado discutirmos as representações sociais pondo
13
em relevo o seu aspecto de construto sócio-histórico, não deixando de fazer referências
ao seu papel primordial na condução dos comportamentos. Para tanto nos valemos dos
estudos de Hall (2002), Rajagopalan (2002), Ferreira (2007) e Shoah e Stam (2006),
Alexandre (2004), Austin (1990), Fiori (2008) e Soares (2007). É importante ressaltar
que assim como os referido autores, consideramos o fenômeno da representação como
sendo múltiplo e variado, não deixando de ser da mesma forma atravessado por
questões éticas e estéticas.
Na segunda parte do primeiro capítulo nos dedicamos a averiguar algumas
questões relacionadas à linguagem do cinema, pondo em relevo as diversas formas com
que esta arte pode instigar o pensamento, construindo conceitos e representando estados
de mundo. No mesmo capítulo damos destaque à potencialidade do cinema para ser
utilizado como veículo de propaganda ideológica, sem deixar de mencionar que sua
utilização como linguagem pode ser empreendida tanto pra a construção de
determinadas ideologias, comprometidas com uma indústria cinematográfica, como
para a construção de outras representações que apontem para uma possibilidade contra
hegemônica da existência. Neste parte do segundo capítulo nos apoiamos em estudos de
Deleuze (2007), Shoat e Stam (2006), Rajagopalan (2002) e Zizek (2004).
O segundo capítulo é dedicado à construção de um panorama da obra do
diretor Akira Kurosawa. Num primeiro momento nossa intenção é a de tecer
considerações sobre as quatro fases principais do referido diretor, tentando observar em
cada uma delas não apenas as influências formais, mas também as peculiaridades
temáticas e narrativas. Na ocasião tecemos também considerações sobre o estilo de
Kurosawa, buscando destacar os seus filmes históricos, ponto alto de sua obra. No
segundo momento nossa intenção é de traçar um perfil de Kurosawa como artista, na
tentativa de tentar compreender melhor suas influências literárias, sua relação com o
teatro e com o fazer cinematográfico de um modo geral. Este capítulo nos parece de
grande relevância na medida em que, em língua portuguesa, não encontramos escritos
que incumbidos de traçar um panorama da obra de Kurosawa. Os poucos escritos que
existem sobre o diretor estão disponíveis apenas no mercado editorial estrangeiro. Para
a construção deste capítulo recorremos a uma observação acurada da obra do diretor
bem como a entrevistas suas, dadas em diferentes épocas. Recorremos também ao
importante estudo de Estévez (2005)
O terceiro capítulo é iniciado por uma apresentação do corpus bem como da
metodologia. Em seguida fazemos um delineamento sobre o Zen Budismo buscando
14
esclarecer as peculiaridades desta disciplina mística, e estabelecer suas influências na
cultura do extremo Oriente. Para isto nos baseamos nos estudo de Suzuki (1969 e 1995),
Watts (2002 e 2008), Coehn (2008), Mastrangelo (1994) Nukariya (2006), bem como
em publicação da Bukio Dendo Kiokai (fundação para propagação do budismo). Em
seguida realizamos a análise do corpus, buscado analisar como o Zen está nele
representado, buscando observar que compromissos estabelecem no jogo de luta por
representação.
15
1- ALGUMAMAS FALAS SOBRE REPRESENTAÇÂO
O conceito de representação, conforme tem sido amplamente referido em
inúmeros estudos, como os de Hall (2002) por exemplo, não é tão simples que se possa
abarcar apenas com uma definição. Além de amplo ele tem sido utilizado desde a
antiguidade até os dias atuais com as mais diversas acepções e sua evolução tem
garantido inúmeros avanços no âmbito dos estudos culturais, além de contribuir para a
ampliação dos estudos lingüísticos.
E é justamente por ser tão ampla que a noção de representação dificilmente
pode ser delimitada. Tendo em vista a multiplicidade de acepções do termo, apresento
algumas dessas acepções, mostrando quais delas são úteis para pensarmos as questões
deste trabalho. Nesse sentido, articulo as discussões sobre representação social com as
discussões que entendem a representação enquanto uma atividade eminentemente
discursiva, portanto sócio-histórica ideológica, que envolve, sobretudo lutas por
representações. Sendo portanto a representação, uma atividade discursiva podemos
afirmar que encontra uma dimensão ética, política e ideológica. Nesta linha de
pensamento tomo como referência as discussões feitas por autores tais como Hall
(2002), Rajagopalan (2002), Deleuze (2007), Ferreira (2007) e Shoah e Stam (2006),
Alexandre (2009) e Austin (1990).
No presente especificamente tentaremos realizar um percurso por algumas
discussões que tomaram o conceito como mote de sua reflexão, para depois fazermos
uso de algumas dessas discussões nas análises dos três filmes do diretor Akira
Kurosawa, que compõem o nosso corpus, a saber Trono Manchado de Sangue (1957),
Sonhos (1990) e Viver (1954)
Para iniciarmos nossas discussões partamos de uma afirmação de Soares
(2007) segunda a qual o termo representação seria oriundo do latim, mais
especificamente do termo representationis, que designa uma imagem capaz de
reproduzir alguma coisa. Neste caso podemos entender que se trata de um termo que
remonta à idade média e que, na filosofia escolástica servia para indicar “uma imagem,
idéia ou ambas as coisas” (Soares op. cit. p. 02). O importante é compreendermos que
no contexto medieval, o termos representação era utilizado para estabelecer relações de
16
semelhanças entre objetos, embora, segundo o mesmo autor mais tarde, tenha passado a
se referir ao significado das palavras.
Fiorin (2008), por sua vez também afirma que a noção clássica da
representação está ligada a uma idéia de que quando algo é posto no lugar de outra coisa
para representá-la em sua ausência é uma realidade extra-lingüística. Conforme
podemos constatar em suas palavras, no âmbito do pensamento clássico, a representação
é vista da seguinte forma:
“A representação não é entendida como uma produção do homem, como um
sentido gerado por ele, mas é vista como algo inscrito na própria natureza da
relação entre linguagem e mundo. Não tem ela um estatuto semântico, mas um
estatuto ontológico” (fiorin op. cit. p. 199)
Como podemos perceber o conceito de representação utilizado com o
sentido “de estar no lugar de”, conforme a abordagem clássica adota uma concepção
literal do termo, que por sua vez está ligada à idéia de analogia, ou ainda está fortemente
ancorada no sentido de representação como mimese.
Segundo Soares (op. cit) esta também é a definição dada por Peirce para
representação, bem como para o ato de representar, senão vejamos:
Estar no lugar de, isto é, estar numa tal relação com um outro que, para certos
propósitos, é considerado por alguma mente como se fosse esse outro. Assim, um
porta voz, um deputado, um advogado, um agente, um vigário, um diagrama, um
sintoma, uma descrição, um conceito, uma premissa, um testemunho, todos
representam alguma coisa, de diferentes modos, para mentes que os consideram
sob esse aspecto” (Peirce 2008 – 11, p. 61).
Ainda segundo Soares, em sua origem o conceito de representação
servia para designar algum tipo de imitação sendo ligado a processos cujas finalidades
consistiam em retratar algo, tendo, portanto um sentido de analogia. Outros autores que
se referem à dimensão mimética da representação são Shohat e Stam (2006). Em seu
texto em que abordam a questão do estereótipo, realismo e luta por representação os
referidos autores destacam que, em sua dimensão estética, a representação é uma forma
de mimese, assim como concebem Aristóteles e Platão. Nas palavras de Shohat e Stam:
“A representação também tem uma dimensão estética, pois a arte é uma forma de
representação, uma mimese, em termos platônicos e aristotélicos. A representação
17
é teatral, e em muitas línguas “representar” significa atuar ou fazer um papel. (...) O
que todos esses exemplos têm em comum é o princípio semiótico de que algo “está
no lugar” de uma outra coisa, ou de que alguém ou um grupo está falando em nome
de outras pessoas ou grupos” (Stam op. cit. P. 268)
Para Hall (2002), no entanto, o enfoque semiótico, bem como o clássico,
apresentam-se dotados de certa limitação, pois suas compreensões do fenômeno
necessitam de unidades maiores de análise (op. cit. p. 25), como os discursos, por
exemplo. Para Hall a semiótica parece confinar os processos de representação
demasiadamente à linguagem e se ocupa em tratá-los feito sistemas estáticos como se
fossem encerrados em si mesmos. Outra restrição de Hall com relação às concepções de
representação oriundos da semiótica é o fato de neste âmbito teórico o sujeito ser
destronado do centro da linguagem
Seguindo na tentativa de estabelecer uma evolução do conceito de
representação, Soares destaca o uso freqüente que o conceito passou a ter na filosofia,
sobretudo depois do século XVIII, com Kant. Este filósofo deu uma das maiores
contribuições para o uso do termo na medida em que passou a considerá-lo como
oriundo do processo humano de cognição. Para Kant o mundo é construído em função
das limitações dos nossos sentidos, sendo as representações formas condicionadas.
Schopenhauer mais tarde amplia os horizontes da filosofia Kantiana, na medida em que
afirma que o mundo é representação para um sujeito, o qual não pode percebê-lo fora
daquilo que chamou de princípio da razão suficiente. Segundo Schopenhauer o mundo é
representação para um sujeito, que não consegue percebê-lo sem a concorrência dos
fatores de tempo espaço e causalidade.
Como podemos observar, partindo de Kant, o conceito de representação
passa a ser ampliado, pois passa a ser tomado como o resultado de toda a ação mental
humana. O Próprio Soares (op. cit. p. 4) destaca que, com as contribuições de Kant, até
mesmo as ciências, antes tomadas como as responsáveis por estarem acima de toda e
qualquer possibilidade de falseamento, são agora vistas como representações, ou seja
como idéia criadas do mundo em função da cognição humana. Segundo o referido autor,
temos o seguinte:
“Mesmo as ciências baseadas na observação do mundo empírico se constituem de
conceitos, modelos, diagramas, esquemas, teorias, sistemas, hipóteses, leis,
explicações interpretações, ou seja de representações simbólicas do mundo,
construídas”. (Soares op. cit. p. 04)
18
Ferreira (2007) por outro lado afirma que, após a virada lingüística
ocorrida no interior da filosofia, o conceito passou a ser também abordado no campo
dos estudos culturais. Como conseqüência o termo deixa de ser exclusividade apenas da
filosofia e passa a ser alvo de interesse tanto das ciências sociais como da história, bem
como dos estudos culturais, entre outros campos. Em função do referido percurso o
conceito de representação se redimensiona e passa a servir também para orientar a
compreensão dos processos de construção do mundo social.
1.1- HALL E AS REPRESENTAÇÕES
Algumas das mais importantes reflexões sobre representação acerca do
fenômeno da representação na formação dos circuitos culturais são tributadas à Hall
(op. cit.). Segundo o referido autor, as práticas de representação constituem uma chave
fundamental para compreender como se processa e se organiza o mundo da cultura. Hall
defende que as representações chegam hoje a ocupar um decisivo e inovador lugar no
âmbito dos estudos culturais, pois para ele, representar tem a ver com os usos da
linguagem investida do intuito de dizer alguma coisa para o mundo, sendo esta coisa
constituída de sentido. Assim, para Hall, ao usar a linguagem alguém o está fazendo
para representar o mundo de maneira significativa para outra pessoa. Nas palavras de
Hall, temos:
“Representacíón es la produición de sentido e de los conceitos em nossas mentes
mediante el linguaje. Es el vínculo entre los conceptos y el linguaje que nos
capacita para referirnos, sea al mondo “real” de los objetos, gentes o evento, o aun
a los mondos imaginários de los objetos, gente o evento” (op. cit. p. 04).
No contexto da presente pesquisa tais horizontes teóricos se mostram como
fundamentalmente úteis na medida em que, através de nossas análises buscaremos
averiguar até que ponto Kurosawa, estabelece uma fala para o mundo sobre uma
realidade de pensamento que geralmente está circunscrita não apenas à escrituras ditas
sagradas, mas que faz parte do modus vivendi do povo japonês. Nossa hipótese é de que
esta fala a que nos referimos é estabelecida, no cinema de Kurosawa, a partir de um
conjunto de representações, que por sua vez podem ser melhor divisadas, caso se lace
para elas um olhar mais específico. E este olhar mais específico a que nos referimos é
19
pontualmente aquele que é também atravessados pela visões de mundo provenientes do
Extremo Oriente. Em relação ao que acabamos de afirmar, é importante deixarmos
esclarecido que o interesse de realizar a presente pesquisa surgiu quando, em 2002, ao
tomarmos contato com o budismo, nos vimos diante de uma película de Kuroawa que
parecia fazer uma nítida referência ao Zen.
Se por sua vez o cinema é uma forma de representação que historicamente
esteve sempre comprometida com as visões de mundo dos contextos em que são
geradas, o cinema de Kurosawa, fortemente comprometido com a cultura Japonesa, não
podia deixar de ser uma exceção. A referida relação entre a representação
cinematográfica e os contextos culturais é ainda mais clara, em nossa opinião, na
medida em que, o ato de representar, segundo fica explícito na passagem acima é
constituído de uma dupla articulação. Isto porque, se de um lado possibilidade da
mente em formar conceitos, de outro o apelo simbólico da linguagem que capacita o
indivíduo a fazer referências ao mundo, seja ele real ou fictício, tal como é possível ao
cinema. Neste sentido, será relevante para nossa discussão aquilo que Hall chama de
sistemas de representação.
1.1.1- HALL E OS SISTEMAS DE REPRESENTAÇÃO
Para Stuart Hal (op. cit.) o fenômeno da representação pode ser
compreendido como ocorrendo dentro da lógica daquilo que ele chama de sistemas de
representação. O primeiro sistema de representação que Hall coloca em relevo é aquele
que es relacionado com a capacidade humana para o processamento mental da
linguagem. Segundo o referido auotr, o primeiro sistema diz respeito aos processos
pelos quais todo tipo de “objetos, gente e eventos” (op. cit. p. 4) entram em correlação
com um variado conjunto de conceitos ou representações mentais, conforme cada
indivíduo leva em sua cabeça. Para Hall o sentido radica e depende dos sistemas de
conceitos e imagens que se formam no pensamento individual, os quais por sua vez
podem intentar representar o mundo a ponto de nos capacitar a fazer determinadas
referências a coisas que estão, não apenas dentro, mas também fora de nossas mentes.
Nas palavras de Hall:
20
“Podemos formar conceitos de coisas que percebemos gente e objetos materiais,
como cadeira, mesas e escritório. Mas também formamos conceitos de coisas mais
obscuras e abstratas, que não podemos ver, nem sentir ou tocar de maneira simples.
Pense, por exemplo, em nosso conceito de guerra, ou morte, ou amizade, ou amor. E
como podemos observar, também formamos conceitos sobre coisas que nunca vimos,
e possivelmente nunca veremos, e sobre gentes e lugares que simplesmente
inventamos.”(Hall, op. cit. p. 4)
Hall esclarece que chama a este processo de primeiro sistema de
representação uma vez que não se trata da formação de conceitos individuais, mas de
diferentes formas de organizar, agrupar, regular e classificar conceitos, estabelecendo
relações entre eles. Como exemplo Hall cita nossa capacidade de estabelecer princípios
de semelhança e diferença, que nos habilita a realizar comparações entre conceitos,
destacando que, esta capacidade para formular idéias mais complexas, a partir de
conceitos e pensamentos, é possível porque os conceitos estão organizados dentro de
diferentes sistemas classificatórios. Mas Hall destaca que há outros princípios
semelhantes em todos os sistemas conceituais e exemplifica:
“por exemplo, classificar de acordo com seqüências (...) causalidade e assim
sucessivamente. O ponto de que estamos falando não é de uma coleção aleatória
de conceitos, mas de conceitos organizados e classificados dentro de relações
complexas entre elas” (Hall op. cit. p. 5).
Por outro lado, o mesmo autor destaca que pode acontecer, como é o geral,
de que determinado mapa conceitual que um indivíduo traz em sua cabeça seja diferente
do mapa conceitual que outro indivíduo porta. Sendo assim as interpretações do mundo
podem ser dadas de maneira completamente distintas, a depender do indivíduo. No
entanto, ainda segundo Hall, existe na esfera humana uma capacidade para o
compartilhamento de conceitos ou de mapas culturais o que nos permite ter a sensação
de pertencimento a uma mesma cultura. Nas palavras de Hall temos o seguinte:
“Porque interpretamos o mundo de maneira aproximadamente igual, podemos
construir uma cultura compartilhada de sentidos e portanto construir um mundo
social que habitamos conjuntamente” (Holl op. cit. p. 5).
Hall chama a atenção, no entanto, para o fato de que, além do mapa
conceitual compartilhado é necessário que possamos representar e fazer o intercâmbio
de sentidos e conceitos, o que por sua vez é possível quando temos acesso à
21
linguagem. A Linguagem portanto aparece no âmbito das digressões de Hall como
sendo o segundo sistema de representações,estando portanto envolvida no processo
global da construção de sentido. Hall afirma que os mapas conceituais devem poder ser
compartilhados e ser traduzidos numa linguagem comum, de forma que seja possível
estabelecer a relação de determinados conceitos e idéias em palavras, sons, ou imagens,
em suma, em signos. Neste ponto o que Hall faz é colocar em destaque a dimensão
simbólica da linguagem que consegue, através de sua dinâmica, congregar os sentidos e
os conceitos. Em suas palavras:
“O termo geral que usamos para palavras, sons ou imagens é signo. Estes signos
estão, ou representam os conceitos e as relações conceituais. Estes portamos em
nossas cabeças e seu conjunto constitui o que chamamos de sistema de sentidos de
nossa cultura”(Hall, op. cit. p. 5).
De acordo com Hall os signos estão organizados na linguagem sendo
assim, sua existência comum é o que permite a tradução dos pensamentos em palavras,
sons o imagens. Dessa forma é possível que o indivíduo use o signo para expressar
sentido e estabelecer comunicação de pensamentos a outras pessoas. Vale ressaltar que
existe uma ação nesse trabalho discursivo, o que envolve como dissemos antes, uma
dimensão ético política. Para nossa pesquisa esta discussão é relevante uma vez que
estamos lidando com um fazer, como o cinema, que é capaz de estabelecer um tipo de
comunicação em que, idéias e comportamentos sobre o mundo aparecem como pedra
angular de sua configuração enquanto linguagem.
Finalizado suas digressões, Hall afirma que o coração do processo de
criação de sentido no seio da cultura é formado pelos sistemas relacionados de
representação. No que diz respeito ao primeiro sua importância reside no fato de que é
ele que permite dar sentido ao mundo, mediante a elaboração de um conjunto de
correspondências ou cadeia de equivalências. Para Hall, como acreditamos ter ficado
claro, o primeiro sistema de representações é composto pelas coisas, gente objeto,
eventos e idéias abstratas, bem como sistemas de conceitos e mapas conceituais.
No que diz respeito ao segundo sistema de representações Hall destaca que
este é formado pela dimensão simbólica da linguagem que permite a correspondência
dos diversos mapas conceituais, bem como do conjunto de signos. Por fim Hall destaca
que o processo que vincula conceitos, signos e linguagem é o que se entende por
representação, que por sua vez se aplica inteiramente à linguagem cenematográfica.
22
1.1.2 – HALL E AS TEORIAS DA REPRESENTAÇÃO
Além de abordar a questão da representação em sua importância para a
configuração dos circuitos culturais, Hall também buscou refletir sobre as teorias que,
ao longo do tempo, se ocuparam em refletir sobre o mesmo tema, e que abordaram o
fenômeno da representação procurando construir um arcabouço teórico capaz de abarcá-
las. Ao realizar tal empreendimento Hall então revela encontrar três enfoques básicos
que procuram explicar de que maneira a representação do sentido trabalha através da
linguagem. Tais enfoques são o reflexivo, o intencional e o construcionista. A
importância de abordar, tais enfoques em sua teoria reside no fato de que, através de tal
empresa, segundo o próprio Hall, é possível saber de onde vem o sentido.
O primeiro enfoque, em relação às teorias da representação foi nomeado
por Hall de reflexivo. Isto porque, de acordo com o referido autor, este enfoque pensa a
questão do sentido como que funcionando feito uma espécie de espelho, capaz de
refletir o que seria o verdadeiro sentido, tal como ele existe no mundo. Para Hall, está
albergada neste enfoque a idéia de representação como mimese segundo a qual “a
linguagem atua como um simples reflexo ou imitação da verdade que está fixada no
mundo” (Hall, op. cit. p. 9). Sendo assim, para o referido autor, as teorias miméticas,
mencionadas por nós anteriormente, carregam uma certa verdade óbvia da
representação e da linguagem.
O segundo enfoque, prossegue o Hall, se constrói em direção oposta ao
primeiro, pois sustenta que o sentido e a representação são construídos pelo falante, ou
pelo autor, que é capaz de impor um sentido único sobre o mundo através da linguagem.
Para este enfoque as palavras têm o valor e significam de acordo com o desejo do autor,
sendo este o motivo pelo qual Hall nomeia tal enfoque de intencional. Para Hall, o
referido enfoque sustenta que todos nós como indivíduos, somos capazes de usar a
linguagem para “levar ou comunicar coisas que são especiais para nós, ou para nosso
mundo” (Hall, op. cit. p. 10). Sendo assim, como uma teoria geral que se ocupa de
refletir sobre a representação através da linguagem, tal enfoque não acredita que o
indivíduo seja a única fonte de sentido, uma vez que a essência da linguagem é a
comunicação, o que por sua vez depende de convenções e de códigos compartilhados. E
neste aspecto que Hall encontra suas falhas, senão vejamos:
23
A linguagem nunca pode ser um jogo privado. Nossos sentidos privados, por mais
pessoais que sejam, devem entrar nas regras, códigos e convenções da linguagem a
fim de que sejam compartilhados e compreendidos. A língua é um sistema social.
Isto significa que nossos pensamentos privados foram guardados através da
linguagem e é através da linguagem que podem ser postos em ação” (Hall, op. cit.
p 10)
O terceiro enfoque refletido por Hall é aquele que reconhece o caráter
social da linguagem, reconhecendo que nem são necessariamente as coisas mesmas,
tampouco os usuários individuais que podem construir o sentido de uma língua. Para
este terceiro enfoque, como frisa Hall, “as coisas não significam: nós construímos o
sentido usando sistemas de representação, conceitos e signos” (Hall, op.cit. p 10). É em
função deste caráter de sentido como algo construído, que Hall chama aos enfoques das
teorias que se desenvolveram neste caminho de construcionistas.
Para o referido autor, este enfoque esclarece que não é possível confundir
o mundo material com as “práticas simbólicas e os processos mediante os quais a
representação, o sentido e a linguagem atuam” (Hall op. cit p. 10). Segundo Hall para os
teóricos construcionistas não é possível negar a existência do mundo material, mas
também não se pode conceber que seja este mundo material o portador do sentido. De
acordo com os construcionistas, segundo reitera Hall, é pelo sistema da linguagem que
podemos representar nossos conceitos.
São os atores sociais que usam os sistemas conceituais de sua cultura, os sistemas
lingüísticos e os demais sistemas representacionais para construir sentido, para
fazer do mundo algo significativo e para se comunicar com os outros sobre este
mundo” (Hall, op. cit. p. 10)
Por fim Hall estabelece que a representação é uma prática, ou uma espécie
de classe de trabalho, que se utiliza de objetos materiais e que o sentido depende não da
qualidade material do signo, tampouco de sua função simbólica. O signo é produto de
um ato performativo que deve ser entendido em função de um conjunto de convenções e
lutas por representações. No presente trabalho é dentro desta perspectiva que olhamos o
fazer cinematográfico.
1.1.3- LINGUAGEM E PEFORATIVIDADE
24
A noção de linguagem como algo de natureza performativa entra em cena,
sobretudo pela contribuição de Austin em suas conferências publicadas sob o título de
How to do things with words, em que elabora a teoria dos atos de fala. Segundo Ferreira
(2007) a referida teoria integra um projeto filosófico surgido na contramão de outras
correntes dominantes da reflexão filosófica que imperavam no final do século XIX. Tais
correntes dominantes estavam focadas na problemática da consciência. Para Ferreira, na
referida tradição o conceito de representação aparecia como elemento central. É quando
surge a filosofia analítica que vai voltar seu foco de interesse para a questão da
linguagem.
Assim analisar a linguagem passa ser visto como uma tarefa que oferece as
principais ferramentas com as quais se pode resolver alguns problemas filosóficos.
Segundo Ferreira, temos o seguinte:
“Esse voltar-se da filosofia para a questão da linguagem, ficou conhecido como
“virada lingüística”, que marcou a filosofia no século XX. Essa “virada lingüística”
tem em Frege a suas primeiras sementes. Mas somente com a radicalização da
filosofia analítica, mais precisamente com Wittgenstein e Austin, que essa “virada”
ganhou as forma de uma reviravolta no pensamento lingüístico-filosófico
ocidental” (Ferreira op. cit. p. 38)
No entanto, segundo o mesmo autor, divergências vão surgir no seio da
filosofia analítica, no que diz respeito ao valor da linguagem. Isto se deve ao fato de
que, para alguns filósofos dessa corrente a linguagem aparece como algo inconsistente e
que carece de depuração. Dessa forma, nesse primeiro momento da filosofia analítica, a
linguagem cotidiana vai ser substituída por uma linguagem artificializada, ou como
afirma Ferreira, “purgada dos defeitos da linguagem natural” (op. cit. p. 39)
No entanto a corrente dominante da filosofia analítica é aquela que propõe
como questão principal saber de que maneira a linguagem é utilizada pelos filósofos.
Esta corrente é conhecida como escola de Oxford, ou filosofia da linguagem ordinária,
sendo Austin o seu mais importante representante. De acordo com Ferreira (op. cit.) a
referida corrente da filosofia analítica tem como verdadeiro lema a noção de que o
“sentido é o uso”. Nas palavras do referido autor, no âmbito da referida tendência as
coisas são vista do seguinte ponto de vista:
25
“A descrição do sentido de uma palavra é a descrição do seu modo de uso, é a
indicação dos atos de linguagem que ela permite realizar. A linguagem não deve
ser vista como ilógica. Ela tem uma lógica particular que estaria mais próxima da
lógica da ação e não da lógica da matemática, como queriam os filósofos do
primeiro momento, que tinham em Frege sua grande inspiração(Ferreira, op. cit
p. 40)
Nesta perspectiva a análise da linguagem não pode ser tomada por si
mesma, mas levando-se em conta os contextos sociais e culturais de seu uso, na
dimensão da prática social. Com isso a noção de “verdade” passa ser concebida
levando-se em conta a dimensão de eficácia do ato de fala, bem como compromisso
que é assumido na realização do ato” (Ferreira, op. cit. p 41)
Para Austin (1990) a natureza da linguagem é colocada como forma de
ação. Em sua obra angular supracitada, o referido autor propõe a visão da linguagem em
sua dimensão performativa o que traz implicações, tais como o desaparecimento dos
limites que consolidam a separação do campo lingüístico do filosófico. Nas palavras de
Austin:
“proferir uma dessas sentenças (nas circunstâncias apropriadas, evidentemente) não
é descrever o ato que estaria praticando ao dizer o que disse, nem declarar que o
estou praticando: é faze-lo” (Austin, op. cit. p 24)
Ferreira (op. cit) assevera que outra implicação importante que traz a visão
performativa da linguagem está relacionada à criação de uma impossibilidade de
abordá-la apenas pelo viés cientificista, pautado na separação entre sujeito e objeto,
sendo a performatividade não apenas um privilégio de certo tipo de enunciados, mas
uma marca da linguagem. Levando-se em conta que o cinema é uma linguagem que
possui suas especificidades, podemos entender que ele também seja afetado pela noção
de performatividade, o que significa que um filme, antes tudo é uma forma de ação, a
qual, por sua vez acaba por integrar as fileiras das lutas por representação. No âmbito da
presente pesquisa tal noção encontra relevância na medida em que ela nos permite olhar
para o cinema como uma forma de representação que age sobre o mundo, ação esta que
redundará em implicações ético políticas inevitáveis. Partindo deste princípio, ao longo
da análise de nosso corpus tentaremos observar que possíveis implicações éticas e
políticas algumas representações do Zen podem eventualmente suscitar ou sugerir.
1.1.4- AS REPRESENTAÇÔES SOCIAIS
26
Segundo Moscovici (apud Alexandre, 2004) o conceito de representação
social é oriundo da sociologia e da antropologia, tendo sido fomentado pelos estudos de
Durkheim e Lévi-Bruhl. No entanto, segundo o mesmo autor, outros estudos
contribuíram para a criação de uma teoria das representações sociais, tendo sido os
principais e mais contundentes os estudos sobre a linguagem de Saussure, bem como a
teoria das representações infantis de Piaget, e as teorias do desenvolvimento cultural
que tem em Vigotsky seu principal expoente. Assim, segundo afirma Alexandre (op.cit.
p. 124) a teoria das representações sociais podem perfeitamente ser consideradas como
uma modalidade sociológica de psicologia social.
De acordo com Alexandre, embora tenha sido uma elaboração teórica de
Durkheim, que ganhou o reforço de outros estudiosos, as representações sociais irão
ganhar expressão pela primeira vez quando o já citado Moscovici publica sua obra
intitulada Psychanalyse: son image et son public. Conforme ressalta Alexandre:
O que motivou Moscovici a desenvolver seu estudo das representações sociais
dentro de uma metodologia científica foi sua crítica aos pressupostos positivistas e
funcionalistas das demais teorias que não explicavam a realidade em outras
dimensões. Como é o caso da dimensão histórico-crítica” (Alexandre op. cit. p.
124)
Ainda segundo Alexandre, na referida obra, Moscovici faz uma tentativa
de compreender como a psicanálise, fora dos grupos fechados e especializados, podia
vir a adquirir outras significações, pelos grupos populares. Segundo Alexandre, com seu
trabalho, Moscovici trata de retirar da confusão de conceitos sociológicos e psicológicos
a definição do que vêm a ser as representações sociais, pois considera que elas sejam
um tipo de conhecimento, cuja função é elaborar comportamentos e comunicações entre
os indivíduos. (Alexandre, op. cit. p. 126)
Assim, as representações sociais aparecem, depois dos estudos de
Moscovici, como um verdadeiro instrumento da Psicologia social, por permitirem a
realização de uma articulação entre o social e o psicológico, articulação esta entendida
como um processo que ocorre dentro de uma dinâmica própria. As representações
sociais, portanto permitem a compreensão das maneiras como se forma o pensamento
social de modo a antecipar as condutas humanas. Para Alexandre, elas “favorecem o
desvendar dos mecanismos de funcionamento da elaboração social do real” (Alexandre,
27
op. cit. p. 130) de maneira que se tornam fundamentais nos estudos das idéias e das
condutas sociais.
É importante ainda destacar que as representações do mundo social sofrem
a determinação dos interesses dos grupos que as engendram, sendo que, de acordo com
que ressalta Alexandre (op. cit.) as lutas pela representação são tão importantes quanto
as lutas econômicas quando se pretende compreender “os mecanismos pelos quais o
grupo se impõe” (Alexandre op. cit. p. 130) juntamente com seus valores e suas
concepções do que vem a ser o mundo social.
Um outro aspecto fundamental das representações sociais, posto em
destaque por Alexandre (op. cit.) é o seu papel na formação de condutas. Segundo o
referido autor são tais representações que modelam os comportamentos, justificando
suas expressões. Alexandre ainda destaca aquilo que o próprio Moscovici afirma
quando diz que as representações sociais são uma “preparação para a ação”, não apenas
por conduzirem os comportamentos que conseguem modificar, mas porque também
reconstroem “os elementos do meio ambiente que o comportamento deve ter lugar”
(Alexandre op. cit. p. 132).
Por outro lado Alexandre ainda nos lembra que para Moscovici o
indivíduo humano é um ser que pensa a fim de formular questões e encontrar respostas,
sendo impelido sempre a compartilhar as concepções de mundo por ele representadas.
Com esta visão Moscovici assinala sua concepção do social; uma coletividade
racional que não pode ser concebida apenas como um conjunto de cérebros
processadores de informações que as transforma em movimentos, atribuições e
julgamentos sob força de condicionamentos externos” (Alexandre op. cit.p. 132)
Assim, para Moscovici não é possível admitir que os indivíduos estejam
sempre à mercê do domínio ideológico das instituições Isto porque sua verdadeira
dimensão é de ser pensador capaz de produzir constantemente suas próprias
representações. Ainda para Moscovici, tais indivíduos consideram as ciências e as
ideologias apenas como alimentos para o seu pensamento.
Outra importante contribuição de Moscovici, no que diz respeito ao estudo
das representações sociais, é explicitado nas palavras de Alexandre:
“Explicitar como as cognições, no nível social, permitem a uma coletividade
processar um dado conhecimento, veiculado pela linguagem, transformando-o
28
numa propriedade impessoal, pública, permitindo a cada indivíduo seu manuseio e
utilização de forma coerente com valores e as motivações sociais da sociedade à
qual pertence, foi mais um trabalho realizado por Moscovici” (Alexandre op.cit. p.
133)
Ao concluir suas considerações sobre a obra de Moscovici Alexandre
ressalta ainda que para o referido autor, dois universos distintos de conhecimentos
que a sociedade consegue reconhecer. De um lado uma sociedade que se
representada pelo discurso dos especialistas e de determinadas áreas do saber, que se
restringe aos supostos saberes, tais como físicos, psicólogos, médicos, e outros. De
outro também reconhece a existência de liberdades individuais de seus membros que
podem se expressar em outras áreas do conhecimento tais como na religião, na política e
na arte, que permitem por sua vez uma aglutinação por idéias comuns. Por último é
importante apenas remarcar que o interesse de Moscovici recai justamente por este
último foco, no qual estuda as representações sociais.
No âmbito da presente pesquisa, as teorias de representação social se
mostram como um suporte teórico importante, pois nos auxilia a compreender o cinema
como uma prática que pode permitir a construção de determinadas representações
capazes de influenciar consideravelmente a dinâmica social. Este aspecto é
especialmente relevante, na medida em que o cinema de Kurosawa é bastante
comprometido com os mais diversos momentos de tensão política e social do Japão,
conforme veremos no capítulo dois. Além disso, se pensarmos que o Zen Budismo
exerceu forte influencia na estética e na cultura do Extremo Oriente e do Japão
especificamente, podemos pensar que se converteu numa espécie de representação
social apesar do forte influxo de ocidentalização ocorrido no período Meiji
1
.
1
Meiji é o período histórico que vai de 1868 a 1912 sobre o reinado do Imperador meiji. Este nome é
dado aos começos da Idade Moderna no Japão. (ESTÉVES, 2005)
29
1.2- CENEMA E PENSAMENTO
Segundo Deleuze (2007), os pioneiros do cinema, aqueles que primeiro
pensaram e fizeram dessa prática algo efetivo, partiram inicialmente da idéia de que se
tratava de uma arte industrial, a qual atingira o auto-movimento, fazendo dele o dado
imediato da imagem” (op. cit. p. 189). Sendo assim, no cinema, continua Deleuze, o
movimento não dependia mais de um objeto capaz de executá-lo nem de um sujeito
capaz de reconstituí-lo no espírito. Para o referido autor, a novidade que o cinema
instaura é de que nele “é a própria imagem que se move em si. Portanto, nesse sentido,
“ela não é figurativa nem abstrata” (Deleuze op. cit. p. 189). E nisto está sua diferença
das demais artes pictóricas, na medida em que nestas, quem promove o movimento é o
espírito do observador. Para Deleuze até mesmo as imagens cênicas, dramáticas, ou
coreográficas são ainda ligadas a um móvel do espírito. E frisa:
“É somente quando o movimento se torna automático que a essência da imagem
artística se efetua: produzir um choque no pensamento, comunicar vibrações ao
córtex, tocar diretamente o sistema nervoso e cerebral. Porque a própria imagem
cinematográfica “faz” o movimento, porque ela faz o que as outras artes se
contentam em exigir (ou em dizer), ela recolhe o essencial das outras artes, herda o
essencial, é como o manual de uso das outras imagens, converte em potência o que
ainda era possibilidade. O movimento automático faz surgir em nós um
autômato espiritual, que, por sua vez reage sobre ele” (Deleuze op. cit p. 189)
Como podemos perceber, Deleuze defende que o cinema surge como um
autômato espiritual, ou seja, uma arte que não mais designa a possibilidade lógica ou
abstrata de dedução formal de pensamentos uns nos outros. Para o referido autor o
circuito no qual entram os pensamentos, com a imagem-movimento, produz um choque
que “força a pensar” (op. cit. p 190). Relativamente a isto, Deleuze lembra que a
possibilidade de poder pensar pode não garantir ao homem que ele efetivamente pense.
Segundo o referido autor, o cinema nos oferece essa potência e essa capacidade de
pensar. Senão vejamos:
30
“Tudo se passa como se o cinema nos dissesse: comigo, com a imagem-
movimento, vocês não podem escapar do choque que desperta o pensador em
vocês” (Deleuze, op. cit., p. 190)
No entanto, Deleuze se encarrega de lembrar que as pretensões do cinema,
ao menos do ponto de vista de seus grandes pioneiros, é hoje no mínimo risível. E
continua afirmando que, mesmo acreditando que o cinema poderia operar o referido
choque, seus pioneiros pressentiam o contrário. Isto significa que, até mesmo para os
grandes pioneiros, o cinema poderia encontrar todas as ambigüidades das demais artes,
pois, assim como elas, corria o risco de se ver revestido das abstrações experimentais, e
“palhaçadas formalistas”, muitas vezes degenerando em apelos comerciais, sexo ou
sangue. Conforme o próprio Deleuze:
O choque ia se confundir, no cinema ruim, com a violência figurativa do
representado, ao invés de atingir essa outra violência de uma imagem-movimento
desenvolvendo suas vibrações numa seqüência móvel que se aprofunda em nós”
(Deleuze, op. cit. p. 190)
Segundo Deleuze, desde sua inauguração como arte o cinema correu o
risco de se tornar o suporte para todas as propagandas, como se já mostrasse, desde seus
primórdios “um rosto inquietante” (op. cit. p. 190). Assim, aquela potência do cinema
para a promoção do choque poderia não passar de pura e simples possibilidade lógica.
Mas, Deleuze prossegue defendendo que, embora com todas as possibilidades de
degeneração o cinema preservava sua concepção sublime:
“Com efeito, o que constitui o sublime é que a imaginação sofre um choque que a
leva para o seu limite, e força o pensamento a pensar o todo enquanto totalidade
que ultrapassa a imaginação” (Deleuze op. cit.p. 191)
No que se refere a este caráter sublime do cinema Deleuze toma como
exemplo o trabalho do diretor Eisenstein, para quem, no cinema, o primeiro movimento
vai da imagem para o pensamento. Para Deleuze a imagem-movimento, é múltipla e
divisível, sendo composta não apenas por um núcleo, mas por vários, através dos quais
a imagem-movimento se estabelece. Na perspectiva do choque a partir de uma imagem
dominante, ocorrem choques das imagens entre si ou um choque na própria imagem, de
acordo com todos os seus elementos. Assim o choque aparece como a forma de
comunicação do movimento das imagens. Deleuze ainda reitera que a oposição é o
31
elemento que vai definir a fórmula geral do choque, o qual opera um efeito sobre o
espírito forçando-o a pensar o Todo. Vejamos o que ele diz sobre isto:
O todo precisamente pode ser pensado, pois é a representação indireta do
tempo que decorre do movimento. Ele não decorre deste como um efeito lógico,
analiticamente, mas sinteticamente, como o efeito dinâmico das imagens “sobre o
córtex inteiro”. Por isso depende da montagem, embora resulte da imagem: ele não
é uma soma, mas um “produto”, uma unidade de ordem superior. O todo é a
totalidade orgânica que se afirma opondo e sobrepujando suas próprias partes, e
que se constrói como a grande Espiral, seguindo as leis da dialética. O todo é
conceito” (Deleuze, op. cit. p. 191)
No cinema de Kurosawa, segundo podemos adiantar, o choque, ou as
oposições parecem fundamentais para entendermos o todo de seu pensamento. No caso
específico do filme Sonhos, os choques provocados pelo jogo de antíteses é que vão nos
levar ao pensamento do referido diretor, e só podemos entender efeitos de sentido de
maneira catafórica, ou seja, nos instantes finais da película. Sobre isso discorreremos
mais no capítulo dedicado à análise.
Votando às ponderações de Deleuze, este considera que, para a construção
dos choques, que resultam na elaboração de conceitos ou do todo, a montagem é
fundamental, sendo por isso denominada por ele de “montagem pensamento”. Isto, a
rigor significa que a montagem é responsável por colocar os elementos sonoros em
harmonia com os demais, a ponto de o expectador não poder mais diferenciar se ou
se ouve, porque sente “sensações totalmente fisiológicas” (Op. cit. p. 193). Deleuse
continua:
“E é o conjunto dos harmônicos agindo sobre o córtex que faz nascer o
pensamento. o PENSO cinematográfico: o todo como sujeito. Se Eisenstein é
dialético, é porque concebe a violência do choque sob a figura da oposição, e o
pensamento do todo sob forma de oposição superada ou das transformações dos
opostos: “do choque de dois fatores nasce um conceito (...) A imagem
cinematográfica deve ter um efeito de choque para o pensamento e forçar o
pensamento a pensar tanto em si mesmo quanto no todo. É esta a definição precisa
do sublime.” (Deleuze op. cit. p. 192)
Por outro lado, Deleuze assevera que no cinema um segundo momento
que não se apenas da imagem ao conceito, mas do conceito ao afeto, ou que retorna
do pensamento à imagem. Neste caso trata-se de conferir ao processo intelectual, certa
plenitude e paixão. Para Deleuze este segundo momento não é inseparável do primeiro,
nem se pode assegurar qual dos dois vem primeiro. Para ele o cinema intelectual tem
por correlato o pensamento sensorial ou o pensamento emocional, pois de outro modo,
32
ressalta o filosofo, a experiência cinematográfica perde todo o seu valor. Neste segundo
momento não se vai da imagem-movimento ao pensamento do todo, que é expresso por
ela. Ao contrário, nele vai-se do pensamento do todo para um lado obscuro,
pressuposto, pleno de imagens agitadas, como se o logos que unisse as partes se
perdesse em uma espécie de embriaguez. De acordo com as palavras do próprio
Deleuze:
“É desse ponto de vista que as imagens constituem uma massa plástica, uma
matéria sinalética, carregada de traços de expressões visuais, sonoras,
sincronizados ou não, ziguezagues de formas, elementos de ação, gestos silhuetas,
seqüências assintáticas. É uma língua ou pensamento primitivo, ou melhor, um
monólogo interior, um monólogo ébrio, operando por figuras, metonímias,
sinédoques, metáforas, inversões, atrações...” (Deleuze, op. cit. p. 193)
No trecho acima Deleuze põe em destaque o termo monólogo interior para
designar este segundo momento em que, no cinema, promove-se um retorno do
pensamento para a imagem. Com isso ele está se referindo à capacidade que o cinema
tem, enquanto autômato, “de ir além do sonho, que é individual demais”. O monólogo
interior seria então o segmento de um pensamento coletivo, pois pode revelar uma força
imaginativa fundamental ao filme. Como podemos perceber, o cinema não é apenas um
autômato capaz de produzir apenas conceitos. Ele também é capaz de mobilizar o
pensamento primitivo, tendo a ambição de trazer às consciências, os mecanismos
inconscientes, tanto através da metáfora como da metonímia. Para análise dos filmes de
Akira Kurosawa este aspecto parece de suma importância se considerarmos que, em seu
cinema, parece haver momentos de alternância entre a criação de conceitos e a
elaboração de figuras outras que não remetem necessariamente ao pensamento
consciente.
Além dos dois momentos aludidos anteriormente, ou seja, além de, como
um autômato, o cinema ir da imagem-movimento ao conceito, bem como retornar do
conceito ao afeto, ou à imagem, estabelecendo uma fala aos pensamentos inconscientes,
ele também pode operar numa terceira via. Esta é marcada pelo fato de que nela o
conceito está presente na própria imagem, ou ainda da imagem ser para si no
conceito”. Deleuze chama este terceiro momento de pensamento-ação. De acordo com
suas palavras temos:
33
“Esse pensamento-ação designa a relação do homem e do mundo, do homem e da
natureza, a unidade sensório-motora, mas elevando-a a uma potência suprema. Isto
parece ser uma verdadeira vocação do cinema. Como dirá Bazin, a imagem
cinematográfica se opõe à imagem teatral no fato de ir de fora para dentro, do
cenário à personagem, da natureza ao homem (e mesmo quando parte da ação
humana, ela parte como de fora; e, mesmo quando parte do rosto humano, parte de
uma natureza ou de uma paisagem)” (Deleuze op. cit. p. 196)
Como podemos perceber, com este terceiro movimento Deleuze faz
referência à importância do ambiente no cinema, para mostrar a reação do homem sobre
a natureza, ou à sua exteriorização. Neste terceiro movimento a figura humana adquire
uma qualidade de sujeito coletivo de sua própria reação, ao passo que a natureza (ou
ambiente) se torna a relação objetiva humana. Para Deleuze, o terceiro momento, do
pensamento-ação é capaz de conferir uma unidade ao ambiente e ao homem, ou ao
indivíduo e às massas. Nas palavras do próprio Deleuze o que acabamos de referir é
assim explicitado:
O cinema não tem por sujeito o indivíduo, nem por objeto uma intriga ou uma
história; tem por objeto a Natureza e por sujeito as massas, a individualização das
massas e não de uma pessoa. O que o teatro, e sobretudo, a ópera, haviam tentado
sem êxito, o cinema alcança.: chegar ao Dividual, quer dizer individuar uma massa
enquanto tal, ao invés de relegá-la a uma homogeneidade qualitativa ou reduzi-la a
uma divisibilidade qualitativa” (Deleuze op. cit. p. 196)
Por fim Deleuze encerra dizendo que os três momentos da relação do
cinema com o pensamento são encontrados em toda parte, no âmbito da imagem-
movimento. Para Deleuze os referido três momentos, que foram aspirações e tentativas
de seus pioneiros, chegaram a influenciar toda a prática do cinema, chegando inclusive
ao cinema americano. No entanto, para o referido filósofo, dentre as muitas maneiras,
através das quais o cinema pode efetuar suas relações com o pensamento, as três, sobre
as quais discorremos acima são aquelas que melhor parecem definidas no plano da
imagem movimento.
Complementando suas considerações sobre as potencialidades do cinema e
suas relações com o pensamento, conforme os pontos de vista de seus pioneiros,
Deleuze chega à constatação, antes já aventada pelos próprios pioneiros, que o autômato
espiritual chegou a um ponto de degeneração, pois se afogou na nulidade de suas
produções. Para Deleuze, quando a violência no cinema não é mais da imagem e de suas
vibrações, mas do representado, o cinema cai em um esquema “arbitrário sangrento”
34
(op. cit. p. 192). Quando isto ocorre a grandeza não é mais da composição, mas trata-
se de um mero inchaço daquilo que é representado, não havendo mais excitação cerebral
ou nascimento do pensamento. Mais diretamente, Deleuze considera que
“a mediocridade corrente nunca impediu a grande pintura; mas não é a mesma
coisa nas condições de uma arte industrial, na qual a proporção das obras
execráveis põe diretamente em questão os objetivos e as capacidades mais
essenciais. O cinema morre, pois, de sua mediocridade quantitativa” (Deleuze, op.
cit.p. 199)
O mais grave do referido processo, para Deleuze é que o cinema, cuja
linguagem poderia garantir a ascensão dos grandes pensamentos e das massas, ao título
de verdadeiro sujeito, deixou-se levar pela propaganda e pela manipulação do estado,
“numa espécie de fascismo que alia Hitler a Hollywood” (op. cit. p. 199). O resultado
deste processo torna fascista o autômato espiritual, pondo em questão todo o projeto dos
pioneiros da imagem-movimento, que agora foi colocada a serviço das grandes
encenações políticas, promovendo a manipulação das grandes massas. Para Deleuze é
este fato que decreta o fim das ambições do antigo cinema.
Na história da produção cinematográfica contemporânea, o que o filósofo
francês denuncia tornou-se uma prática constante e bastante reiterada, na medida em
que, de acordo com Shohat e Stam (2006) hoje, o cinema é um veículo que está, muitas
vezes, a serviço das ideologias dominantes. De acordo com os referidos autores, os
filmes americanos, por exemplo, veiculam para outros públicos determinados valores,
díspares com estas culturas em que chegam. Nas palavras dos referidos pensadores,
temos:
(...) na medida em que o sistema de Hollywood favorece grandes produções
caríssimas, ele não é apenas classista, mas também eurocêntrico, quer a intenção
seja explícita ou não: para participar desse jogo, é preciso ter grande poder
econômico. Pede-se aos cineastas do Terceiro Mundo que eles persigam um nível
de “civilidade” cinematográfica inalcançável. Ainda por cima, muito países de
terceiro mundo reforçam a hegemonia ao discriminar sua próprias produções
culturais” (Shohat e Stam, op. cit. p. 27)
Diante disso é importante ressaltar que o cinema tem uma dupla
possibilidade de articulação, pois, se de um lado pode servir para promover um choque,
levando ao pensamento, de outro, como linguagem, pode servir à construção de
determinadas maneiras de pensar que forjam identidades ou modos de ser no mundo.
Assim não parece difícil percebermos que o cinema é uma linguagem que pode
35
perfeitamente servir à chamada política de representação, à qual fizemos alusão
anteriormente, no início deste capítulo.
Este fato aliás, é amplamente discutido por Shohat e Stam quando estes
fazem uma crítica ao tratamento da produção cinematográfica pela indústria americana.
Em seus estudos, os referidos autores apontam como um dos problemas graves da
produção industrial o fato de que as corporações cinematográficas acabam ditando as
regras da produção ao resto do mundo, gerando um efeito de intimidação aos cineastas e
espectadores dos países de “Terceiro Mundo”
2
. Shohat e Stam também apontam que o
neocolonialismo econômico e a dependência tecnológica acabam por elevar
demasiadamente os custos, o que inviabiliza a produção cinematográfica de países fora
da América do norte, com exceção da Europa. Em função deste processo, os refridos
autores asseveram que, muitas vezes, até mesmo diretores, cujas produções são
reputadas por sua ruptura estética, acabam por ter de se curvar ao ritmo das grandes
indústrias cinematográficas, a fim de conseguirem obter apoio e equipamento necessário
para realizar seus trabalhos.
Além do mais Shohat e Stam também denunciam o eurocentrismo das
platéias como sendo um forte influenciador das produções cinematográficas, pois de
seus valores passa a depender o sucesso ou o fracasso de uma película. Para Shohat e
Stam a ditadura das grandes corporações cinematográficas se estende inclusive para a
escolha dos elencos, senão vejamos:
“Como forma imediata de representação, a escolha do elenco no cinema e no
teatro constitui um tipo de delegação de voz com tons políticos. Também nesse
campo os europeus e os euro-americanos têm desempenhado o papel dominante,
relegando os não-europeus a papéis secundários e extras” (Shohat e Stam, op. cit.
p. 177)
Os referidos autores ainda reiteram que esta é uma realidade que remonta
ainda à época do cinema mudo, o que demonstra que desde os pioneiros da imagem-
movimento uma sua degeneração em arte capaz de estabelecer manipulações, era
ensaiada. Isto inclusive é algo que o próprio Deleuze aponta em sua discussão sobre a
imagem-movimento, quando diz que desde seu início, ela “esteve ligada à organização
2
Embora consideremos a expressão Terceiro Mundo bastante gasta em função da chamada nova ordem
mundial - contexto em que foi substituída pela expressão Países em Desenvolvimento – ela será aqui
utilizada uma vez que foi assim, que à época de seus estudos Shohat e Stam, se referiram aos países cujas
economias ainda estavam em crescimento.
36
de guerra, à propaganda de estado, ao fascismo comum, histórica e essencialmente”
(Deleuze, op. cit. p. 199).
Shohat e Stam ressaltam ainda a política norte-americana de transformar
certas etnias, provenientes de países de Terceiro Mundo, em um “outro”, como se os
elementos étnicos, não eurocêntricos pudessem ser intercambiáveis uns pelos outros.
Segundo os referidos autores, essas práticas não foram como m sido
aplicadas, mesmo ao nível mais básico da questão da representação, que aparece quando
esta está relacionada à necessidade de trabalho. Isto porque representações ditas
eurocêntricas quase sempre disseminam a idéia de que, para um filme ser
economicamente viável necessita de em seu elenco composto de atores ou astros ditos
“universais”, o que vincula ainda mais questões econômicas a questões racistas. Shohat
e Stam prosseguem afirmando que a limitação imposta a atores negros, que devem
desempenhar papais marcadores de etnias, acaba por ter desastrosas conseqüências para
os artistas das chamadas comunidades minoritárias. Conforme também asseveram
Shohat Stam, em termos Hollywoodianos, esta é uma situação que apenas recentemente
começa a mudar, quando um ator como Denzel Washington, um negro, ganha papéis
que normalmente seriam confiados a atores brancos. No mesmo estudo Shohat e Stam
chegam a apontar que a escolha de atores negros para determinados papéis, no âmbito
do cinema industrial americano, pode também ser baseada em ações afirmativas,
servindo apenas para evitar que a produção seja acusada de racista. Para tanto os
referidos autores citam o caso da escolha de Morgam Freeman, outro ator negro, para o
desempenho de um juiz no filme A fogueira das Vaidades, apenas para que o diretor
Brian de Palma não fosse acusado de racismo.
Por outro lado Shohat e Stam advertem que, mesmo uma representação
própria não garante ao ator de determinada etnia, uma representação não-eurocêntrica,
uma vez que o sistema pode se utilizar dos atores para ver ativados determinados
sistemas de códigos dominantes. Como exemplo, cita o caso de Josephne Baker e
Carmem Miranda, a quem nunca se garantiu poder significativo além do estereótipo.
Ainda que a tônica do estudo de Shohat e Stam recaia sobre a denúncia e o
reconhecimento de que uma imagem eurocêntrica domina o mercado cinematográfico,
ele afirma que nos últimos tempos Hollywood tem iniciado uma política de escolha
mais adequada de seus elencos e reconhece que afro-americanos, índios e latinos têm
conquistado o direito de representar suas próprias comunidades. Mesmo assim ainda
reconhece que tais políticas não são suficientes se as estruturas e as estratégias
37
narrativas continuarem a ser construídas numa perspectiva eurocêntrica. Em relação a
isto, suas palavras são bastante incisivas, senão vejamos:
Um rosto epidermicamente correto o garante a representação de uma
comunidade” (Shohat e Stam op. cit. p. 280)
Como podemos observar o autômato espiritual, referido assim por
Deleuze, este que, de acordo com as aspirações de seus pioneiros deveria estar propício
a ser o veículo catalisador do pensamento das grandes massas, acaba sendo utilizado por
uma economia dominante para a construção de representações, cujos interesses dizem
respeito a uma minoria economicamente privilegiada.
Para deixar mais clara a questão da dominação do cinema por
determinados interesses da indústria, é importante destacar que, na questão das
representações eurocêntricas no cinema, as línguas entram como uma componente
muito importante, pois estas ocupam uma posição central nas hierarquias de poder, bem
como estão inscritas no jogo do poder do eurocentrismo. Shohat e Stam destacam muito
singularmente o inglês que tem servido para a projeção tanto do poder tecnológico
como financeiro anglo-americano. Os mesmo autores ainda ressaltam que em
Hollywood utilização de um híbrido lingüístico, engendrado pelo próprio império
industrial cinematográfico americano que serve de suporte para que este conte, não
apenas as suas histórias, mas as de outras nações, quase tudo sempre em inglês. E
destaca:
“Ao ventriloquizar o mundo, Hollywood, indiretamente diminuiu as possibilidades
de auto-representação lingüística para outras nações. Hollywood promoveu e
lucrou com a disseminação mundial do inglês, e ao mesmo tempo contribuiu
indiretamente para a erosão sutil da autonomia lingüística de outras culturas”
(Shohat e Stam op. cit. p. 281)
Diante do exposto é possível admitirmos que o cinema, como
mencionamos anteriormente, possa ser utilizado para a implementação da chamada
política de representação, a que se refere Rajagopalan (2002). Para o referido autor é
necessário “o reconhecimento do papel da representação na criação de identidades” (op.
cit. p. 83) Neste caso, cabe lembrarmos, por exemplo, o exercício da prática
cinematográfica por Leni Reisfenstahl. A referida diretora é célebre por sua obra que,
segundo destaca Zizek (2004) articula uma visão fascista da vida. Nas palavras do
referido autor:
38
“Seus filmes pré-nazis e pós-nazis, articulam a visão fascista da vida: o fascismo de
Leni seria a sua celebração direta da política nazi, pois se manifesta na sua
estética pré-política da vida, no seu fascínio por aqueles belos corpos exibindo
movimentos disciplinados” (Zizek, op. cit. p. 122)
Por outro lado Zizek nos permite pensar que, assim como o cinema pode
ser usado para a implementação de construções de identidades calcadas em ideologias
dominantes, pode também servir para a construção de outras atitudes e modos de pensar
que se dirijam à contramão dos processos hegemônicos. Como exemplo ele nos cita
casos como os da trilogia Matrix, que se abre para um número significativo de
possibilidades. Para o referido autor a trilogia supra citada pode nos remeter ao mito da
caverna de Platão. De acordo com suas palavras:
“Não repetirá a Matriz exatamente o dispositivo da Caverna imaginada por Platão,
onde os homens comuns estão acorrentados, prisioneiros, contemplando apenas a
sombra do que consideram, erroneamente, como a realidade? A diferença
obviamente bastante considerável é que, quando saem da caverna para a
superfície terrestre, o que encontram não é a terra luminosa banhada pelos raios
solares, O Deus supremo, mas um espetáculo de desolação, o “deserto do real”
(Zizek, op. cit. p. 78)
O Referido autor aponta também para uma nova postura do cinema
americano que têm mostrado grande interesse em apoiar produções que colocam em
questão as construções simbólicas do mundo. A isto Zizek chama de o “último fantasma
da paranóia americana” uma vez que tais produções quase sempre se encarregam de
delata a crise simbólica do mundo contemporâneo, que avilta o homem, colocando-o na
posição de refém de um universo construído à revelia de sua vontade. Como exemplo
Zizek destaca o filme The Truman Show, no qual um personagem descobre pouco a
pouco ser a vítima de um sistema aprisionador, que parece confiná-lo a uma rotina
diária construída dentro de um esquema arquitetado.
Como podemos observar, o autômato espiritual, inaugurado pela imagem-
movimento, não tem apenas servido para a construção de um universo cinematográfico
preocupado com o delineamento de estereótipos e posturas ligadas a condutas
dominantes. Relativamente a este ponto, é oportuno lembrar a existências de diretores
como Felline e Kubrick, por exemplo, cujas obras são profundamente comprometidos
com outras maneiras de pensar, opostas aos discursos oficiais. O próprio Akira
39
Kurosawa aparece como um dos diretores de cinema que construíram sua obra em
sintonia com um projeto inicial de seus pioneiros. Por isso acreditamos ser possível
afirmar que, no cenário mundial, a imagem-movimento, ou o autômato espiritual, tem
servido a um número significativo de diretores que dele se utilizaram para apontar o
caminho que leva às diversidades do mundo, chamando a atenção para que as diferenças
são o fio com que se tece a grande teia da linguagem e portanto, da cultura.
40
2- SOBRE KUROSAWA E SUA OBRA
No presente capítulo, procuraremos traçar um panorama sobre a obra do
diretor japonês Akira Kurosawa, bem como tentaremos delinear o seu perfil como
artista e como realizador de cinema. Uma tarefa como esta é de suma importância para a
presente pesquisa, na medida em que nos permite enxergar de maneira mais geral uma
obra que é tão vasta em temas como quantitativamente significativa. No entanto,
realizar um delineamento sobre a obra de um dos mais profícuos diretores da história do
cinema mundial não é uma tarefa das mais fáceis uma vez que sobre a referida obra não
são muitos os escritos, sobretudo em língua portuguesa, que neste caso inexistem.
Portanto as generalizações delineadas aqui são baseadas tanto numa paixão pessoal
como também naquilo que Estévez (2005) tentou delinear em sua obra dedicada ao
referido diretor. Um complemento de nossas considerações será dado também, tendo
como base inúmeras entrevistas dadas pelo próprio Kurosawa ao longo de sua carreira.
2.1.- KUROSAWA – PRIMEIRA FASE.
Kurosawa inicia sua carreira como diretor de cinema em 1943, ano que
marca o início de sua primeira fase. Esta, segundo Estévez (op. cit.), é seguida de mais
três, divididas assim para efeito didático. A primeira fase é considerada de aprendizado
em que Kurosawa realiza filmes de propaganda nacionalista, dando sua contribuição
cinematográfica aos esforços bélicos de seu país. Na referida primeira fase, o tema
principal a ser abordado nas películas gira em torno de personagens envoltos em
processos de aprendizagem e iniciação, frente às responsabilidades da vida. Os
personagens são jovens aprendizes que aparecem nos filmes postos à prova ante suas
próprias limitações e mediante os desafios do mundo. Em tais filmes o protagonista
acaba por superar suas dificuldades no autodomínio, para finalmente reconhecer as
exigências impostas pela existência. Deste modo os personagens envolvidos nesta
primeira fase se aplicam ao esmero da sua individualidade e geralmente são auxiliados
por um mestre que os guia ou lhes orientação no caminho de auto-conhecimento.
Aqui podemos perceber uma influência do Zen budismo na medida em que os ideais
41
do referido misticismo também influenciaram de maneira muito significativa a arte
cavalheiresca dos Samurais durante o período da idade média, conforme podemos
constatar no trabalho dedicado ao assunto, desenvolvido por Nukariya (2006)
O exemplo mais notável desta referida primeira fase de Kurosawa é o filme
Sugata Sanshiro o qual narra um processo de instrução no judô, tendo como base
histórica a implantação desta arte marcial no Japão do século XIX. Segundo Esteves:
O filme imbrica, com habilidade, dois discursos complementares
extraordinariamente sintomáticos não da época em que transcorre a ação, período
Meiji conhecido como o período de ocidentalização - mas também do momento
concreto no qual se roda o filme, o ano de 43, caracterizado por grande
nacionalismo” [Tradução minha (Esteves op. cit. p. 37)]
Além do mais, na referida primeira fase da filmografia de Kurosawa estão
implícitas, em compasso com o discurso nacionalista, alguns princípios da educação
tradicional japonesa, tais como a e a autodisciplina, pontos fundamentais da
disciplina Zen. Ainda segundo Estévez na referida primeira fase de sua produção,
Kurosawa parece ter tentado se situar numa polaridade intermediária a fim de evitar a
censura da época, bem como também para ser reconhecido como artista com tendências
à abertura, a qual se anunciava. Podemos dizer enfim que, em sua primeira fase
Kurosawa parece apontar para sua capacidade de sugerir idéias sem arriscar sua
continuidade profissional, pois a partir desde primeiro momento, exibe um notável
saber técnico e um grande afã por criar imagens vigorosas e expressivas (op. cit. p. 38)
2.2 A SEGUNDA FASE COGRUÊNCIA COM O CINEMA NEO REALISTA
E O CINEMA NOIR
Sobre a segunda fase de Kurosawa podemos afirmar que se trata de um
período muito mais de tomada de consciência que necessariamente de um processo de
formação e o filme que mais marca este período é Waga Seishiro ni Kui Nashi, de 1946,
sem título em português. Este filme, segundo Estévez narra uma história claramente
política, ambientada nos ano 30, pouco depois da invasão da Manchúria pelo exército
japonês em 1931. Tal invasão foi motivada pelo crescente espírito ultranacionalista que
impregnava o Japão a ponto de conduzi-lo a segunda guerra mundial, como aliado do
42
fascismo. Assim a evolução do referido contexto repressivo é descrito no filme Waga
Seishiro ni Kui Nashi por meio da personagem Yukie, uma jovem romântica que
assume as idéias do pai e do noivo, as quais se opõem à guerra e ao processo de
militarização do país.
Para Estévez, trata-se de uma obra das mais veementes de Kurosawa não
apenas porque é uma das mais idealistas, mas porque representa a facilidade com que
Kurosawa assume as circunstâncias do liberalismo. Nas palavras de Esteves:
“Kurosawa realiza uma película sobre os dois grandes temas do momento: “a
oposição à guerra e o rechaço dos resíduos feudalistas ainda latentes no país”.
[tradução minha (Estévez op.cit. p. 41)]
A partir deste momento, portanto Kurosawa se consolidará como um diretor
que tem um universo próprio. São deste período os filmes que têm como denominador
comum a marca do presente, portanto, são todos filmes da fase gendai-geki ou filmes
cujos temas são contemporâneos e cujo objetivo principal é testemunhar o momento
social decorrente da derrota na guerra. A Referida segunda fase está centrada, portanto,
sobretudo, no íntimo dos personagens, mas também em questões sociais e políticas em
função do momento histórico que está em jogo. Para Estévez, na referida fase,
Kurosawa se mostra uma espécie de militante, que filma a favor das ideais liberais e
democráticas, muito vivos no Japão, em função de sua derrota na contenda mundial.
(op. cit. p. 40). De acordo com as palavras do referido estudioso da obra kurosawriana
temos o seguinte:
A recuperação dos efeitos devastadores da guerra, a necessidade de otimismo frente à
desgraça, a recuperação do orgulho nacionalista ante à derrota, o compromisso com a
solidariedade, a urgência por recobrar a ilusão na vida junto ao estabelecimento de
uma ética; e também a abnegação e a onda de aperfeiçoamento pessoal são alguns
dos temas que palpitam e transbordam de todas as histórias que Kurosawa nos narra
com sua força habitual durante esses anos ([tradução minha] Estévez, op. cit. p 42).
Um outro aspecto que marca a segunda fase da produção de Kurosawa é a
confirmação de um tema recorrente em sua obra, a saber, o estabelecimento de dois
protagonistas masculinos envolvidos em questões opostas a representar para o público
dois aspectos de uma mesma questão. Isto, de certa forma é a confirmação de um
aspecto que saltava aos olhos do espectador na primeira fase, sendo por isso uma
43
variação de um mesmo tema, antes proposto, ou seja, o de um mestre e um discípulo,
envolvidos num processo de aprendizado. O filme deste período que reconstitui bem o
referido tema é O anjo embriagado (1948). No referido filme as relações entre um
médico alcoólatra, o doutor Sanada e um gangster fracassado, Matsunaga, servem para
Kurosawa refletir sobre a responsabilidade profissional e a necessidade da própria
vontade não estar condicionada a injunções externas. De acordo com a opinião de
Estévez, os protagonistas de Kurosawa, a partir desta fase, somente sairão com vida de
sue empenho quando controlam todos os dados da situação que vivenciam, do contrário
morrerão tragicamente como conseqüência do seu descontrole. Aqui também
podemos vislumbrar certa congruência com os ideais do Zen budismo, na medida em
que, para os ideais do referido misticismo o controle da mente é um dos objetivos
principais da prática.
Além do que dissemos sobre o filme O anjo Embriagado, importante
exemplar desta segunda fase da produção de Kurosawa, cabe ainda afirmarmos o
importante diálogo que a referida película estabelece com o chamado gênero noir,
embora devamos admitir, de acordo com Estévez, que tal diálogo é ainda rudimentar e
balbuciante, sendo muito mais claro em outro filme, produzido um ano mais tarde,
intitulado O cão raivoso (1949). Este filme sintetiza magistralmente o projeto
cinematográfico de Kurosawa durante o referido período, pois o fundo neo-realista,
comum a todas as películas desta fase é transcendido mediante uma intriga típica de
cinema noir, bem como do retrato de uma vontade obstinada em cumprimento de seu
dever. Nas palavras de Estévez temos o seguinte:
(...) “em O cão raivoso a veemente busca do ladrão que alimenta a trama propõe a
perseverança como a única saída frente à diversidade. Domesticar os sentimentos
auto destrutivos e ressurgir das cinzas é o discurso que Kurosawa estabelece sobre
um presente miserável y desolador ([tradução minha] Estévez op. cit. p. 47).
O importante a ressaltar ainda sobre esta segunda fase do cinema de
Kurosawa é que, com seu discurso de autodeterminação o diretor japonês não deixa de
vislumbrar um dos ideais principais das disciplinas místicas orientais, embora, os
críticos não estejam dispostos a reconhecer tal aspecto, como sendo um componente
essencial de sua obra. Mas o fato de o discurso da autodeterminação estar presente na
obra de Kurosawa, nos permite asseverar que ainda inconscientemente, na segunda fase
de sua obra, já posemos entrever forte traços do misticismo oriental.
44
2.3 – A TERCEIRA FASE
Após um período de aprendizagem e depois de ter consolidado sua
linguagem cinematográfica, a partir de 1950, Kurosawa entra na sua terceira e uma das
mais profícuas fases. É neste período que irão aparecer as obras pelas quais Kurosawa é
mais festejado e admirado pela crítica e que são consideradas algumas de suas melhores
realizações, tais como Rashomon (1950), O Idiota (1951), Viver (1952), Os sete
Samurais (1954), Trono Manchado de Sangue (1957) e A fortaleza Escondida (1958),
dentre outros. Segundo o próprio Kurosawa após ter feito tantos filmes modernos estava
na hora de buscar temas históricos e por isso a terceira fase é marcada por essa dupla
articulação, na medida em que seus filmes m agora uma linguagem moderna, ao
mesmo tempo em que tratam de temas de mais fôlego e inspiração histórica. A partir do
ano de 1950, Kurosawa vai, ora se dedicar a rodar filmes com temáticas
contemporâneas alternando com temáticas mais profundas e históricas, culminado na
realização dos seus tão famosos Jidai Gedki, filmes com temática histórica, sobre o qual
teceremos algumas considerações mais adiante.
Por hora cabe dizermos que este terceiro período da obra de Kurosawa
também marca a consolidação de seu diálogo com a literatura ocidental, na medida em
que nele irão aparecer duas de suas mais famosas adaptações de clássicos da literatura
ocidental para o cinema, a saber, O Idiota, adaptado de Dostoievski, bem como Trono
Manchado de Sangue”, adaptação da peça “Macbeth” de William Shakespeare e que faz
parte do corpus da presente pesquisa. Segundo Estévez a dupla via entre o moderno e o
que tende ao histórico será estável até o final dos anos de 1960. Nesta terceira fase da
obra de Kurosawa o que está em jogo, em termos temáticos, são as reflexões sobre a
condição humana e seu estar no mundo, bem como a construção de narrativas
deliberadamente artificializadas, cujo exemplo mais clássico é Rashumon. Nesta
produção de Kurosawa as coisas que atormentam o homem são tratadas de maneira
mais aprofundada, dando a elas mais complicação do que parecem ter. No referido
período os personagens são urdidos de modo a confessarem suas necessidades em
função dos papéis que cada um representa “no enorme teatro do mundo” (Estévez op.
cit. p. 52). Nas palavras de Estévez, ao se referir a Rashumon, temos o seguinte: para
Kurosawa cada qual não é o que a entender que é, mas o contrário”. (op. cit. p. 52)
Por este motivo é imputado à terceira fase de Kurosawa também uma certa tendência ao
45
niilismo, influência que o autor vai receber talvez muito diretamente da perspectiva
metafísica da literatura de Dostoievski, autor ocidental por quem Kurosawa tinha
verdadeira admiração.
Sobre a terceira fase de Kurosawa podemos dizer ainda que é por assim
dizer, aquela em que seu trabalho ganha maturidade e permite ao diretor alçar vôos
formais mais ambiciosos. Nesta fase Kurosawa busca manter o equilíbrio entre aquilo
que conta e o conteúdo do que é contado. Aqui seu cinema adquire grande força e,
segundo Estévez não é apenas um cinema de um delicado estilista. Ao contrário, na
terceira fase, a força das imagens tem suas raízes na energia veemente preocupada
sempre em transmitir idéias visuais e sempre com a maior contundência possível.
Ainda segundo Estévez a partir da terceira fase inaugurada por Rashumon,
Kurosawa constrói seus filmes baseados em histórias fortes, cheias de situações
carregadas de sentido e estruturadas de forma sólida, sempre com o objetivo exaustivo e
maneiras significantes completamente livres.
Por isto que, no afã de conseguir aquilo que pretende, Kurosawa, a partir da
terceira fase, não se poupa em lançar mão de todos os recursos que lhe convém. Isto faz
com que algumas de suas películas adquiram inclusive um aspecto aparentemente
invertebrado, como se fossem desprovidas de uma visão de conjunto, mas que nunca
menospreza seu rigor estrutural. Um bom exemplo do que acabamos de afirmar é o
filme Viver (1952), que também compõe nosso corpus. Acerca dele Estévez comenta:
“Viver é singularmente produtivo por sua estrutura. Com este filme Kurosawa
encontra plena cristalização de seu discurso. Se sua dimensão comunicativa é
parecida com a de outros filmes precedentes (...) sua riqueza textual permanece como
a mais inovadora de toda a produção do autor. A heterogeneidade dos recursos que
mobiliza, junto com a multiplicidade de pontos de vista que incluem configuram um
exemplo textual único na história do cinema” ([tradução nossa] Estévez op. cit. p 57)
Nesta fase de maturidade, a modernidade de Kurosawa é configurada, uma
vez que, a partir da linearidade de um relato, ele é capaz de se distanciar e atingir a mais
absoluta pluralidade, abrindo-se assim para uma eventual fragmentação e variedade
discursiva. E o mais impressionante é que o diretor Japonês consegue realizar tal feito,
segundo Estévez com filmes cujos modelos vão deste o melodrama, passando por filmes
de aventura, até chegar em thriller e filmes de apelo social.
46
Um outro aspecto importante que irá se solidificar na terceira fase da
produção é a dimensão humanista de sua obra. Aqui mais uma vez a pedra angular de
tal aspecto é o filme Viver o qual conta a história de um homem que, após saber que tem
um câncer, procura transformar um terreno baldio da periferia, após anos de embargo,
em um parque para crianças. Segundo Sato (apud. Estévez) temos o seguinte:
Em minha opinião creio que foi durante os anos 40 e 50 que Kurosawa mais nos
influenciou. O Japão naquela época era um país gerido pela guerra, um país
derrotado. Ao ser um povo vencido, os japoneses não tinham muita confiança em si
mesmos. A pesar de que nós não duvidávamos de que éramos um povo com uma
vontade muito firme, estávamos afundados moralmente e acreditávamos que nunca
teríamos razão nem força para algo novo. Neste contexto desolador surgiu o cinema
de Kurosawa. Neles o diretor tentava demosntrar a de um espírito alto e nobre, como
de um samurai, em qualquer pessoa, por mais derrotada que estivesse. Seus filmes
emocionaram a todos e colaboraram para o resurgimento do país ([Tradução minha
(Sato apud Estévez, op. cit. p. 59)
Entre os ocidentais, no entanto, o escasso conhecimento que se tem do
restante dos filmes de Kurosawa faz com que recaia sobre ele a peja de cineasta
“humanista, politicamente conservador e atravessado por uma moral assimilável
inclusive pelo catolicismo” (Estévez, op. cit. p 60). Para Estévez, tais etiquetas
conferidas à obra de Kurosawa contribuíram em grande medida para fazer com que sua
obra caia em descrédito quando comparada a de outros diretores japoneses, o que é, no
mínimo, uma injustiça histórica. Para Estévez o que Kurosawa faz em cada película é
constatar que existem obstáculos sociais e individuais, os quais devem ser superados
para que se consiga o que se deseja.
2.3.1- A TERCEIRA FASE E OS JIDAI-GEKI
Como afirmamos anteriormente, a terceira fase da produção cinematográfica
de Kurosawa é marcada fortemente pela realização dos chamados Jidai-Geki, os quais
são definidos como filmes de época ou filmes históricos. Tais produções são assim
classificadas se seus enredos transcorrem antes de 1868, ou melhor, antes do início da
era Meiji, conhecida como a era em que se iniciou o período de ocidentalização.
Segundo Estévez (op. cit p. 227) Os filmes que pertencem ao referido gênero costumam
abordar temas da Idade Média japonesa com seus samurais e sua cultura guerreira. De
Kurosawa, os dois mais célebres exemplo são as película Os Sete Samurais (1954) e
47
Trono Manchado de Sangue (1957) o qual integra o corpus da presente pesquisa. Por
serem produções importantes da obra de Kurosawa acreditamos ser conveniente
tecermos algumas considerações sobre ambas.
Começando pelo célebre Os sete Samurais (1957) podemos, de acordo com
Estévez, afirmar que, com este filme é possível observarmos como se estabelece a
singular relação que Kurosawa consegue realizar entre “as suas propostas argumentais e
seus desenvolvimentos narrativos” (Estévez, op. cit. p. 64).
Conforme destaca Estévez, ao final desta singular película, o público é
surpreendido, no último instante com uma frase dita pelo chefe dos samurais. A referida
frase se refere aos camponeses, e afirma o seguinte: “Eles são os vencedores, não nós”.
Para Estévez trata-se de uma afirmação completamente inesperada para o espectador
que, nesta altura, tem seu ponto de vista ampliado, fazendo com que o sentido do todo
se redimensione. Estévez assevera o seguinte:
“Se até este momento, o filme era uma história na qual se estava contando os
esforços empregados para defender a aldeia, agora se pode ter a impressão de que
se intentou falar sobre algo mais” ([tradução minha] Estévez op. cit. p. 64)
Este é um recurso utilizado em outros filmes tais como O Cão Raivoso
(1949) e Os Canalhas não Dormem em Paz (1960). Trata-se, pois de uma espécie de
recurso catafórico, em que o sentido do todo é dado apenas subsequentemente, no
último instante do filme. No caso de Os Sete Samurais, a frase final eleva o filme a
âmbitos menos convencionais, podendo ser vista não apenas como um filme de
aventura, mas como uma narrativa sobre o papel dos Samurais como lutadores
abnegados que se dedicam ao estabelecimento e manutenção da paz. Se pensarmos que
o cultivo da vida de um Samurai é radicado na tradição do Zen, podemos perceber a
enorme dimensão que a última frase do filme possui e agrega ao todo.
Outro importante exemplar dos chamados Jidai-Geki é o filme Trono
Manchado de Sangue (1957), adaptação para o cinema da obra Macbeth” de William
Shakespeare. A grande importância do referido filme para a obra de Kurosawa reside no
fato de que nele, segundo Estévez é “onde brilha com mais eloqüência o desejo de
mestiçagem” (op. cit. p. 68)
Partindo da obra de Shakespeare, e inspirado no filme homônimo,
realizado por Orson Welles, bem como em enquadres eisenteinianos, Kurosawa,
48
segundo, não apenas realiza uma de suas mais depuradas e deslumbrantes películas, mas
também constrói um exemplar exercício de adaptação para o cinema de uma obra
teatral. Nas palavras de Estévez podemos ter o seguinte:
Nenhum antagonismo exclusivista entre o teatro e o cinema se deduz da obra de
Kurosawa. Ao contrário: a suposta artificialidade teatral e a característica realista
do cinema se abismam entre si para gerar uma proveitosa síntese seletiva.”
([tradução minha] Estévez, op. cit. p. 68)
Além do exposto, em Trono Manchado de Sangue o teatro clássico
ocidental e o teatro clássico do oriente, conhecido como Nô, se imbricam
cinematograficamente com muito refinamento e com eficiência, poucas vezes
constatadas no cinema.
2.4 – A QUARTA FASE, OU O REFINAMENTO FINAL.
A quarta e última fase da produção cinematográfica de Kurosawa tem
início no ano de 1970, é marcada pela adoção das películas em cores e tem como marco
inicial o filme Dodescaden (1970). Este filme, segundo Estévez, representa um novo e
significativo impulso na obra de Kurosawa, pois é a partir dele que sua obra irá evoluir,
sem falar que é sem dúvida um de seus filmes mais audaciosos. Podemos afirmar
inclusive que a audácia é a marca mais significativa desta quarta e última fase da
cinematografia kurosawriana.
O filme Dodescaden, baseado no livro O bairro sem Sol de Shugoro
Yamamoto, retoma o interesse de Kurosawa por trazer como tema a pobreza, ou seres
cujas vidas estão imersas na miséria, sem meios ou qualquer expectativas, estando
entregues aos seus sofrimentos e desencantos; a seus dramas e marginalizações. Ocorre
que com a referida película a miséria não é posta na perspectiva da criação de uma ação,
mas, segundo Estévez é uma miséria épica, posta para ser contemplada. Em outros
momentos de sua obra o mesmo tema havia sido abraçado por Kurosawa, sobretudo
na terceira fase de sua produção. Ocorre que neste caso a pobreza era vista ainda
recuada no tempo e nunca no Japão contemporâneo. Exemplos de tais filmes são
Donzoko (1957) e O Barba Ruiva (1965). Com Dodescaden Kurosawa aborda a miséria
no presente, aludindo direta e explicitamente ao Japão contemporâneo o qual, em sua
49
obra, tinha sido abordado em dois filmes, ambos centrados em personagens da
burguesia dona do dinheiro. Assim, para dar conta da outra face do desenvolvimento
econômico, Kurosawa unifica os diferentes relatos de Yamamoto, cuja ação transcorre
em diferentes anos, desde a época Meiji até a época do pós-guerra, e translada toda a
ação para o presente. Com isso o diretor consegue perfilar a descrição da vida e do
cotidiano de um determinado grupo humano em um bairro da periferia de Tókio.
O filme gira em torno de Rokuchan, um adolescente louco, que imagina
ser um condutor de um trem fictício. O referido personagem passa seus dias a percorrer
o bairro repetindo sem se cansar a onomatopéia do-des-ca-den, que traduzido significa
nada me importa, ou tudo é igual. É a referida onomatopéia que título ao filme,
dando coesão e unidade aos diferentes episódios que compõem o conjunto da película,
abrindo cada um deles e conseqüentemente encerrando-os.
Ao lado do referido personagem desfilam outros tantos que não
necessariamente têm relação entre si. Em primeiro lugar um destaque para mãe do
personagem louco, que também desenvolve certa loucura, repetindo sem parar um
mantra budista. Ao redor dos dois se desenvolve o restante do conjunto dos
personagens, os quais não têm, em relação ao louco e sua mãe, uma relação de
causalidade. Tais personagens são: um amável e gentil funcionário acompanhado de sua
esposa autoritária; uma jovem que se dedica incansável e compulsivamente a fabricar
flores de papel colorido, sem falar com ninguém, nem com sua mãe, tampouco com seu
tio, que lhe estupra antes de abandonar a casa. também o curioso personagem de um
vagabundo cheio de fantasias, que vive com seu filho no curioso cenário de uma
carroceria de um veículo utilitário abandonado, mas que sonha com luxuosas casas dos
mais diversos estilos. Outro personagem curioso é o de um homem de negócios que caiu
na mendicância por ter sido abandonado pela mulher e agora vive no mais absoluto
mutismo. Por último um velho com ar sábio e comportamento estóico, bem como
dois casais de amigos que estão dispostos a tudo para se divertirem junto com outro
bando de amigos. Tais personagens dão ao filme um ar mais anedótico. Ao se referir à
película, que ilustra muito bem esta quarta fase da produção de Kurosawa Estévez assim
se refere:
“O desenvolvimento narrativo de Dodescaden não depende de nenhuma das
possíveis convenções do relato tradicional. Tampouco reitera nenhuma das
modalidades estruturais usada anteriormente por Kurosawa. Pela primeira vez em
sua filmografia o diretor prescinde de propor ao espectador uma expectativa, uma
50
instância enunciadora através da qual possa seguir o fluir narrativo. Dodescaden
não propõe hipóteses como: conseguirão os camponeses vencer os bandidos? Ou
ainda: conseguirá o inspetor de polícia descobrir o ladrão? (...) ou qualquer outra
das interrogações das quais Kurosawa se serviu para sujeitar o expectador; o final
remete a outras perguntas mais insondáveis” ([tradução minha] Estévez op. cit. p.
96)
Ainda segundo Estévez em Dodescaden descortina-se um novo horizonte
formal para obra de Kurosawa, na medida em que, a partir deste momento de sua
carreira seus filmes não mais serão portadores de regras ou formulações gerais que
facilitem um seguimento narrativo. Agora Kurosawa se preocupa em sacudir o
espectador sem informá-lo o motivo pelo qual pede sua atenção. Nunca, até
Dodescaden o diretor japonês havia proposto uma relação com o público baseada em
tais pressupostos formais. O que de singular no referido filme em relação aos
anteriores, como já frisamos é a utilização da cor com a qual Kurosawa alcança uma
modo de escritura cinematográfica cheia de autonomia, sem se sujeitar às imposições
das regras do cinema a cores. Segundo Estévez:
“O sofisticado uso de cores que exibe Dodescaden, delata pertinentemente um afã de
irrealidade. Sua índole pictórica, muito rigorosa, e não caprichosamente
experimentalista ressalta suas intenções expressionistas” ([tradução minha] Estévez
op. cit. p. 97)
Cabe ainda dizer que com a referida película Kurosawa chega a um
momento de sua carreira em que deixou de se interrogar acerca dos motivos da pobreza
e da miséria. Em seus filmes, a partir de agora, contenta-se apenas em contemplá-la e
assim chega nesta quarta fase a um período de sua produção mais contemplativa, sendo
que tudo é atravessado de certo ar de melancolia, e certo pessimismo. Tanto é assim que
com Dodescaden o diretor chega a ser comparado ao dramaturgo irlandês Samuel
Beckett, pelo ponto de vista com que trata a miséria humana.
Mas apesar da excelência formal e da nova proposta que traz para a
filmografia de Kurosawa, Dodescaden é pessimamente acolhido pelo público e pela
crítica o que irá desencadear no cineasta japonês um processo de profunda depressão
que o leva a tentar o suicídio. Ainda assim, depois de um período de silencio, Kurosawa
volta a produzir e agora retoma sua última fase realizando filmes com muito mais êxito,
embora continue, durante todo este período, suas experimentações formais. Suas
produções agora são de altíssimo orçamento o que lhe fez sair em busca do capital
51
estrangeiro. Curiosamente esta é uma fase em que consegue inúmeros êxitos de
bilheteria e crítica chegando a ganhar um Oscar de melhor filme estrangeiro com
Dersou Ouzala (1975). Seus filmes desta fase, além dos mencionado são:
Kagemusha, A sombra de um Guerreiro (1980), Ran (1985), Sonhos (1990) e Rapsódia
em Agosto (1991) sua última realização.
2.5- KUROSAWA VISTO POR ELE MESMO
2.5.1- KUROSAWA E A CONSTRUÇÃO DE UM ROTEIRO
Segundo o próprio Kurosawa revela em entrevista revista Cinema
d’aujourd’hui, número 77, ele chegou ao cinema completamente por uma questão de
azar, pois o que queria mesmo era ser pintor, no entanto era pobre e o que conseguiu
fazer para ganhar a vida foi arranjar um emprego na PLC que depois se transformou na
empresa de filmes Toho. A chegada de Kurosawa a esta empresa se deu por intermédio
de uma propaganda que solicitava a interessados, que escrevessem um artigo dando
conta de delinear os meios mais eficazes de erradicar os erros do cinema japonês.
Segundo Kurosawa conta na mesma entrevista, ele escreveu um artigo e enviou. A
gente da produtora leu e o convidou a fazer um estágio. Com isso Kurosawa foi
solicitado a dirigir uma breve cena a partir de um artigo de um jornal. Ele cumpriu a
tarefa o melhor que pode e assim, dentre quinhentos candidatos, cinco foram eleitos
para serem ajudantes de um diretor. Quatro deles tinham experiência como diretor,
menos o quinto que era Kurosawa, o qual, segundo ele mesmo nos narra não sabia de
absolutamente nada. Mas acabou ficando, sobretudo por incentivo do pai. O ano era
1936 e Kurosawa trabalhou de início com diretores medíocres e por várias vezes quis
desistir sendo demovido da idéia pela promessa de que outros diretores melhores iriam
surgir, foi quando por fim Kurosawa encontrou o diretor Kajiro Yamamoto com quem
trabalhou como ajudante durante cinco anos.
Além do aprendizado com o referido diretor, Kurosawa também recebeu
calorosos ânimos do diretor Itami Mansaku (1900-1946) e ainda grandes ensinamentos
do grande produtor Morita Nobuyoshi. Além dessas pessoas destacam-se como grandes
mestres de Kurosawa outros diretores tais como Sasujiro Shimazu (1897-1945), Sadao
Yamanaka (1909-1938) Kenji Mizoguchi (1898-1956), Yasujiro Ozu (1903-1963) e
52
Mikio Naruse (1905-1969). Estes foram seus mais importantes mestres segundo
declarou em entrevista ao Cahier du Cinema (1985).
Kurosawa começou a escrever roteiros quando ainda era ajudante e ainda
não podia fazer filmes. Segundo conta em entrevista à revista Cahier du Cinema,
número 182 de 1966, era assim que satisfazia seu desejo de dirigir. De acordo com sua
própria opinião, seus primeiros roteiros eram mais ricos em imagens vivas do que
aqueles que escreveu quando era um diretor experiente, pois escrevia tal e qual se
rodava o filme. Para Kurosawa o roteiro é o segredo do filme. Segundo ele, com um
mau roteiro será inútil ocultar as falhas das cenas e o conjunto será sempre medíocre.
Por outro lado Kurosawa faz questão de ressaltar que não se pode fazer do roteiro um
tabu, pois se nas filmagens aparecem outras boas idéias seria um erro não aproveitá-las.
Mas Kurosawa faz questão de afirmar que na montagem deve suceder de modo
contrário, ou seja, se boas cenas com boas idéias, mas que não estão em harmonia
com o resto, é necessário que o diretor tenha coragem de eliminá-las rapidamente.
Ainda falando sobre roteiros Kurosawa afirma que para escrevê-los é
necessário que o roteirista seja um leitor dos grandes romances e das grandes obras de
teatro do mundo e além de lê-las é necessário refletir sobre o motivo de suas grandezas,
fazendo-se as seguintes questões: em que momento surge a emoção que se sente ao ler
tais obras? Que tipo de paixão deve ter sentido o autor e que grau de exigência deve ter
tido que se impor para representá-las da maneira como representou? Para Kurosawa as
grandes obras devem ser lidas meticulosamente para que se possa captar seu todo. Por
outro lado o diretor japonês afirma que todo roteirista e diretor de cinema deve se
obrigar a ver as grandes películas que já foram antes realizadas, ler os grandes roteiros e
estudar a teoria cinematográfica dos grandes diretores. Daí a importância e a
contribuição de um capítulo como este, que tenta reproduzir, ainda que sumariamente a
experiência de um grande diretor. Para Kurosawa se alguém deseja ser diretor de
cinema deve dominar a criação de roteiros.
Kurosawa, segundo ele mesmo declara, começou a escrever roteiros com
dois colaboradores apenas no ano de 1940. Até então, havia escrito e não parecia ter
muitas dificuldades. Para ele escrever sozinho oferece apenas o risco de que a
interpretação de um determinado personagem seja demasiadamente unilateral.
Kurosawa acredita que, com a ajuda de colaboradores o roteirista tem a oportunidade de
obter outros pontos de vista sobre o personagem e pode discutir aspectos sobre os quais
há algum desacordo.
53
Ainda insistindo sobre a criação de roteiros Kurosawa é da opinião de que
com um bom roteiro, um bom diretor pode realizar uma obra prima, mas afirma que
com o mesmo bom roteiro um diretor medíocre pode fazer um filme apenas passável.
Mas ao contrário, com um roteiro ruim, um bom diretor pode fazer uma boa película.
Segundo afirma Kurosawa para conseguir uma expressão verdadeiramente
cinematográfica a câmera e o microfone devem ser capazes de atravessar a “água e o
fogo”, pois para ele é isto que faz um bom filme. Para tanto, assevera, o roteiro deve ser
algo que contenha o poder de obter tal resultado. Ao aconselhar alguém sobre um bom
roteiro Kurosawa assevera que uma coisa muito perniciosa para um roteiro é conter
muitos parágrafos explicativos. Na opinião do importante diretor japonês, acrescentar
explicações às descrições de um roteiro é uma armadilha muito perigoso em que o
roteirista pode cair. Para Kurosawa é fácil explicar com palavras o estado psicológico de
um personagem em determinado momento, mas é muito difícil descrevê-lo mediante
delicadas matizes de ações e no diálogo. Para conseguir dominar esta técnica, conforme
afirmamos, Kurosawa aconselha o estudo das grandes obras de teatro bem como os
romances policiais conhecidos como romances noir.
2.5.2 – KUROSAWA E A CENSURA
Em uma de suas entrevista ao Cahier du Cinerma (número 182, 1966) o
diretor japonês afirma que quando, em fim, realizou seu primeiro filme se sentia tão à
vontade que conseguia se divertir com o trabalho, mesmo tendo sua liberdade de
expressão tolhida pela censura. Até Waga Seishun Ni Kui Nashi (1946), dada a situação
política do Japão Kurosawa não podia dizer muita coisa além do trivial e do aceitável.
Sendo assim, a pesar de sua sede de liberdade, nos conta que se contentava jogando
apenas com a técnica.
É somente depois da segunda guerra que Kurosawa vai descobrir pela
primeira vez certa liberdade de expressão e nesse momento seu desejo como artista
recaía mais sobre temas de reflexão. Segundo o julgamento do próprio cineasta esta é a
marca que diferencia suas primeiras películas daquelas mais atuais. Para Kurosawa ele
vai conseguir se sentir completamente seguro, em Viver (1952), em que pode deixar
surgir toda sua força criativa. Segundo o próprio diretor este filme reflete certa
maturidade, pois é a culminância de todas as suas buscas anteriores desde o período da
54
guerra. Mas apesar de tal reconhecimento Kurosawa prefere não reconhecer a referida
película como sua obra prima, pois se trata de um filme que ainda apresenta muitos
defeitos de natureza técnica.
2.5.3- KUROSAWA, SUAS REFERÊNCIAS LITERÁRIAS E SUAS
ADAPTAÇÕES.
Quanto às suas referências em termos literários Kurosawa diz ter especial
predileção, em primeiro lugar pelos romances policiais de Georges Simenon e confessa
ter tido a idéia, depois descartada, de adaptar algumas delas. Por outro lado, suas
grandes referências literárias são Dostoievski e Tolstoi, sendo Guerra e Paz um livro
que relia com freqüência. Para Kurosawa Tolstoi foi o único escritor que conseguiu,
sobretudo em Guerra e Paz, produzir uma literatura extraordinariamente visual, de uma
visão quase cósmica. Kurosawa também afirmava que filmar Tolstoi era, portanto uma
aposta perdida uma vez que para o diretor japonês nada supera o livro em força visual.
No que diz respeito à influência de Dostoievski, Kurosawa achava difícil
falar por tratar-se de um escritor singular, sendo mais psicológico que visual. Kurosawa
considerava que, ao aprofundar a ação através dos personagens, mediante a psicologia,
Dostoievski se esforçava por conseguir uma descrição rigorosamente objetiva, mas de
uma objetividade total, inclusive mortal, o que, em sua opinião, parecia muito instigante
em termos cinematográficos. Ao se referir ao O Idiota, romance que adaptou, Kurosawa
chega a qualificá-lo como arrebatador, sendo uma das obras primas do autor. Seu único
problema para o cinema, segundo seu juízo, era a maneira como poderia ser interpretada
e compreendida. Quanto à adaptação que fez, Kurosawa diz que deu sua própria
interpretação, tentando traduzir em imagens a verdade que lhe interessou.
Ainda falando sobre Dostoievski, Kurosawa revela que o que mais lhe
interessa no autor russo é sua amplitude e densidade, que consegue, em três linhas,
estabelecer uma história completa o que também se pode perceber em Guerra e Paz de
Tolstoi. E é importante insistir na opinião que Kurosawa tem a respeito de Dostoievski,
pois, para ele é o autor que mais exerceu influências sobre sua obra. Segundo suas
próprias palavras:
55
Acho que Dostoievski é o autor que fala mais honestamente da condição humana.
Nenhum outro escritor exerce sobre mim uma atração tão grande e tão terna. Quando
digo terna me refiro a essa ternura que nos impulsiona a desviar o olhar do que é
verdadeiramente horrível, verdadeiramente trágico. Dostoievski tem essa capacidade
de compaixão. Nele algo mais que humano, melhor que o humano. Parece que é
terrivelmente subjetivo, mas ao terminar qualquer de seus livros, nos damos conta de
que não existe autor mais objetivo. (Cahiers du Cinema, n 182. p. 122)
Ao falar ainda da adaptação que fez para o cinema da novela O Idiota
Kurosawa acredita ter se esforçado por dar conta do espírito do autor russo, ao menos
até certo ponto. Para o cineasta japonês seu filme, embora careça de equilíbrio, lhe
satisfaz a ponto de ser seu trabalho preferido.
2.5.4 – KUROSAWA E SUA TÉCNICA DE FILMAR
Para Kurosawa um diretor de cinema é alguém que deve persoadir a um
grande número de pessoas para que estas lhe sigam e trabalhem com ele. No entanto ele
mesmo reconhece que não é afeito a adotar posturas muito militaristas no sete de
filmagem, embora, com freqüência diga que, se é que se pode comparar uma rodagem a
um exercito ele prefere a seguinte configuração: o roteiro equivale ao estandarte para a
batalha e o diretor é uma espécie de capitão que tem a máxima responsabilidade à sua
frente. Mesmo assim, para Kurosawa o processo de feitura de um filme é sempre algo
envolto em certa obscuridade pois, revela, quando se começa a filmar, quase nunca se
pode saber como ou se irá terminar. Para Kurosawa, o diretor deve ser capaz de
controlar todas a situações, bem como deve ter certa capacidade de liderança para fazer
que toda a equipe lhe siga.
Ainda ao se referir ao papel do diretor de cinema, Kurosawa revela que este
deve abarcar múltiplas funções. Para o ele o diretor deve cuidar da direção dos atores,
dos enquadramentos das câmeras, do registro de som, da direção artística, da música, da
montagem, dos efeitos especiais e das misturas adicionais. Kurosawa chega a alegar
que, mesmo sendo as referidas tarefas de natureza tão diferentes umas das outras, o
diretor não pode considerá-las independentes, pois todas devem se combinar de acordo
com a batuta do diretor. Diante do exposto, podemos observar que Kurosawa é um
diretor que tem perfeito domínio de suas função para com isso garantir a seus filmes os
efeitos desejados.
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Ao falar de sua técnica de filmagem, Kurosawa nos revela ainda que roda
sempre com várias câmeras, técnica que começa a experimentar pela primeira vez nas
filmagens de batalha do filme Os sete Samurais (1954). Segundo ele, tal necessidade
surgiu, na ocasião, por ser impossível prever com exatidão o que se passaria na cena em
que os bandidos atacam os camponeses durante a chuva, uma das mais antológicas da
película. Kurosawa revela então que com o recurso das várias câmeras lhe foi possível
obter o recurso de continuidade desejado e captar de forma mais íntegra os melhores
momentos dos atores. Aliás este é um motivo pelo qual, segundo ele, de frequentemente
utilizar ficais largas, uma vez que a distância da câmera proporcionada por tal recurso,
permitir aos atores esquecerem mais facilmente do equipamento de filmagem, o que
resulta em maior espontaneidade.
Mas, mesmo a pesar de obter bons resultados formais com o uso de várias
câmeras, Kurosawa reconhece que este não é um recurso tão fácil de ser utilizado
quanto parece, uma vez que é muito mais difícil determinar a melhor posição de cada
uma delas e tornar concreto seus movimentos. Para Kurosawa, se uma cena inclui três
atores falando e se movimentando livre e naturalmente, a dificuldade é ainda maior.
Segundo o diretor japonês, a grande dificuldade de filmar com três câmeras é
determinar quais serão os respectivos movimentos das câmeras A, B e C, técnica para a
qual, segundo reconhece, é necessária muita perícia, sendo impossível a um operador
mediano realizá-la. Por fim, ainda aludindo à sua técnica, Kurosawa completa
afirmando que os posicionamentos das três câmeras são completamente distintos a
princípio, e ao final de cada plano sofrem diferentes modificações. Para ele a câmera A
deve ocupar as posições mais ortodoxas e elementares, a câmera B deve servir para os
planos mais rápidos e decisivos e a câmera C deve ser utilizado como uma espécie de
destacamento em intervenções mais rápidas.
2.5.5 – KUROSAWA E OS ATORES
Em uma entrevista concedida à revista Positiv, número 132, do ano de 1971,
Kurosawa nega a “fama” segundo a qual é um diretor dado a trabalhar apenas com
atores extremamente profissionais. Segundo o diretor japonês, é sempre interessante, do
ponto de vista expressivo mesclar atores profissionais com atores amadores, ou que
estão em inicio de carreira. Dessa forma acredita que se pode equilibrar as energias de
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atuação. Como exemplo Kurosawa cita o menino que atua no filme Tsubaki Sanjuro
(1962). Outro exemplo é o da atriz Misa Uhera que interpreta a princesa Yukihime, no
filme A Fortaleza Escondida (1958). Conforme constata Kurosawa a referida atriz não
era propriamente uma profissional, mas uma estudante, que depois de trabalhar em duas
ou três películas, se retirou do ofício para casar.
O que acabamos de constatar, comprova que Kurosawa é um tipo de diretor
que, no tangente à relação com atores, prima por tirar proveito deles naquilo que podem
render em termos expressivos e não apenas como partes complementares do processo
cinematográfico em geral. Ademais, como parece claro, Kurosawa também não
muita importância ao estrelato. A ele, como diretor o que importa é a qualidade do ator
e aquilo que estes podem render para o efeito final do filme.
Um dos atores com quem o diretor japonês mais buscou colaboração foi o
também japonês Toshiro Mifune, o qual desempenha os principais papéis em alguns de
seus mais importantes filmes. Em Trono Manchado de Sangue (1957), é Mifune que
desempenha o papel Principal (Washisu), assim como em O Barba Ruiva (1965), é ele
quem faz o papel do médico Kyoijio, isto apenas para citar duas de sua obras mais
importantes. Segundo revela, em uma entrevista ao Cahier du Cinema, número 182, de
1966 Kurosawa conheceu Mifune durante as filmagens de uma película de outro
importante diretor japonês chamado Senkichi Taniguchi. No entanto, de acordo com as
palavras do próprio Kurosawa, foi descobrir as qualidades intrínsecas do trabalho de
Mifune quano passou a trabalhar com ele em seus filmes.
Para Kurosawa nenhum outro ator consegue como Mifune, compor um
interpretação tão matizada, viva e dinâmica. Segundo o diretor japonês, tais
características são uma grande virtude, que considera que os atores japoneses são
lentos, lhes faltando espontaneidade e ritmo. Em Mifune Kurosawa acredita ter
encontrado as raras qualidades que, como diretor, sempre quis explorar.
Ainda falando sobre a questão do ator, em sua autobiografia de 1989,
Kurosawa revela que a pior coisa que um ator pode fazer no cinema é mostrar que sabe
onde es a câmera. Segundo o diretor japonês, com freqüência, quando um ator recebe
ordem de ação, se coloca tenso e muda seu ponto de vista, mostrando-se pouco natural.
Para Kurosawa, isto, que ele chama de consciência de si mesmo” é algo que a câmera
capta com grande claridade, por isso, a primeira advertência que costuma fazer a um
ator é esclarecê-lo de que o set não é um cenário posto frente ao público e de que, ao
filmar, nunca, em hipótese alguma, o ator deve olhar para a câmera. Ressalta ainda que,
58
se o ator tem consciência de qual das câmeras está lhe filmando, automaticamente, e de
maneira involuntária, gira o corpo, pondo-se em três quartos ou pouco menos na direção
do equipamento de filmagem. E complementa:
Ao rodar com três câmeras, o ator jamais pode saber exatamente qual delas está
rodando” (Kurosawa op cit. p. 118)
Por outro lado, em outra entrevista à revista Positiv número 225, de 1979,
Kurosawa também nos revela que não acha conveniente trabalhar com atores muito
habituados a desempenhos na televisão, pois seus modos de atuar são, de certa maneira,
deformados. Na visão de Kurosawa, tais atores, por trabalhares sem serem dirigidos por
um diretor meticuloso, acabam por desenvolver uma forma de exagerada e
demasiadamente artificial de atuar, o que acaba por ser, no caso de tais atores,
automatizado. Kurosawa ainda é da opinião de que isto é mais grave no caso dos atores
japoneses, que tendem a uma interpretação pouco naturalista, ao contrário do que
acontece no restante do mundo.
Na mesma entrevista, Kurosawa revela que trabalhar com atores como os
citados acima, corrigindo seus gestos e tentando reorientar suas técnicas é algo
contraproducente no cinema, uma vez que é algo que exige tempo e um grande esforço.
Para Kurosawa, no cinema é preferível modelar atores desconhecidos, partindo do zero,
que tentar reformular velhos hábitos arraigados. Nas palavra de Kurosawa temos o
seguinte:
“Em meus filmes, trabalhei, ás vezes com iniciantes e tenho a impressão de ter
obtido relativo êxito (Kurosawa op. cit. p.128 )
Quanto ao processo de filmagem propriamente dito, Kurosawa nos revela
em sua autobiografia que, no que tange aos atores começa por ensaiar ainda no camarim
e lá mesmo, pouco a pouco vai lhes marcando gestos e movimentos, sendo que tudo isto
é feito com os atores maquiados e vestidos com seus figurinos. Ao chegar no set de
filmagem, Kurosawa volta a repetir todo o ensaio anterior, o que demonstra sua enorme
preocupação com o desempenho dos atores em seus filmes.
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2.5.6 – KUROSAWA E O TEATRO TRADICONAL JAPONÊS
Surpreendentemente, em um entrevista dada à revista Ecran, número 3,
Kurosawa declara não ser um apreciador do chamado teatro Kabuki, na sua
configuração moderna, pois o considera uma espécie de degeneração do Kabuki
clássico. Para Kurosawa, a autêntica origem do teatro é reside na forma conhecida como
Nô. O cineasta japonês considera que o Kabuki nada mais é do que uma derivação do
teatro , o qual considera uma forma teatral completamente original.
Ao falar da influência do teatro tradicional japonês em sua obra, Kurosawa
reconhece que, de todos os seus filmes, aquele que é mais fiel ao espírito do teatro é
a película Trono Manchado de Sangue (1957). O qual faz parte do corpus da presente
pesquisa. Além do mais, em termos de influência do teatro tradicional em sua obra,
Kurosawa reconhece que no filme Didescaden (1970) o qual inaugura a chamada quarta
fase de sua obra, se deixou influenciar, mesmo que indiretamente por outra forma
tradicional de teatro japonês conhecida como Kyogen.
Em outra entrevista concedida à revista Cahier du Cinema, número 182, de
1966 Kurosawa considera realmente difícil definir o teatro ,mas tendo que se referir
ao assunto revela que o que mais lhe chama atenção nessa forma de teatro é o seu
caráter hierático que compele aos pequenos movimentos. Para Kurosawa, é por este
motivo que no teatro , o menor gesto, o menor deslocamento produz realmente
intenso e violento. O cineasta japonês considera que os atores do são verdadeiros
acrobatas, pois se encarregam de se treinar como se fossem atletas, a fim de manter a
flexibilidade e a expressividade. Kurosawa destaca seus repertórios de movimentos em
que se requer saltar ou correr retendo a energia e evitando gestos inúteis. Na opinião de
Kurosawa é neste rigor de treinamento que está o segredo do nô. Além disso também
destaca a forma especial com que, no referido teatro, os atores empregam efeitos
sonoros para amplificar a ação. Um declaração do diretor japonês sobre o , merece
destaque.
“Algo muito notável do Nô, que não consigo adaptar para meus filmes é a
expressão física da divindade” (Kurosawa op. cit. p. 125)
Para Kurosawa somente o teatro consegue expressar o divino de uma
maneira grave e imediata. Em sua opinião, no teatro a imagem dos deuses tomam
60
forma mediante o Omote, a máscara que proporciona a estilização exterior da
interpretação. Kurosawa reconhece que, como diretor de cinema, gostaria de encontrar a
fórmula cinematográfica para expressar este segredo.
61
3. CINEMA E MISTICISMO ORIENTAL
3.1- METODOLOGIA
3.1.1 CONSTITUIÇÃO DO CORPUS
O corpus da presente pesquisa é constituído de três filmes do diretor japonês
Akira Kurosawa, escolhidos desta forma por representarem três períodos distintos de
sua produção cinematográfica. Os filmes são respectivamente: Trono Manchado de
Sangue (Kumonosu-jo, 1957), Sonhos (Konna yume wo mita, 1990) e Viver (Ikiru,
1952).
3.1.1.1- TRONO MANCHADO DE SANGUE
Conforme já deixamos claro no segundo capítulo, o filme Trono
Manchado de Sangue de 1957, adaptação para as telas da peça de William Shakespeare,
é um dos mais célebres trabalhos de Kurosawa e é classificado pela tradição
cinematográfica japonesa como um Jidai-Geki, filmes de época cuja ação transcorra
antes do período em que se inicia o processo de ocidentalização no Japão, ou seja, antes
da era Meiji.
O filme transcorre precisamente no século XVI, período de guerras civis
no Japão. Nele os valentes samurais Washizu e Miki regressam ao Castelo das Teias de
Aranha, pertencente a seu senhor Tsuzuki, depois de terem saído vitoriosos em seus
últimos combates. No caminho são surpreendidos por uma forte chuva e se perdem num
grande e exuberante bosque. Por estarem desorientados os samurais chegam até uma
cabana na qual se deparam com uma anciã a fiar e recitar tranquilamente um poema
Zen. Assustados os guerreiros se aproximam e são surpreendidos pela mesma anciã que
lhes revela uma profecia.
Ao samurai Washizu diz que chegará a ser soberano do Castelo do Norte,
para depois ser chefe do Castelo das Teias de Aranha. Ao samurai Miki assegura que
governará o castelo com uma sorte trágica, mas que depois seu filho chegará a ser
senhor do Castelo da Teias de Aranha. Após pronunciar tais palavras a velha desaparece
como se fosse um espírito. Intrigados, os samurais prosseguem seu caminho e se
perdem entre as brumas.
62
Ao chegar ao Castelo das teias de Aranha, os samurais constatam que a
primeira parte da profecia se cumpre, pois Washizu é designado como senhor da
Mansão do Norte.
Uma vez instalado na Mansão e estando gozando de paz o samurai
Washizu é atormentado por sua mulher, Asaji que tenta influenciá-lo a matar o senhor
Tsuzuki a fim de se apropriar do Castelo das Teias de Aranha. Asaji argumenta que
caso Washizu não o faça Miki poderá contar ao senhor sobre a profecia e então será
Tsuzuki quem matará Washizu. Com isso o samurai mergulha em incertezas, temor e
ansiedade.
No mesmo instante um mensageiro anuncia a chegada do senhor Tsuzuki à
casa de Washizu afirmando que vem para participar de uma caçada, mas o verdadeiro
motivo de sua visita, depois revelado, é a preparação de um ataque surpresa a Inui,
um de seus grandes inimigos. Com isso, Washizu é designado a assumir o comando do
combate, enquanto que Miki é encarregado de proteger o Castelo das Teias de Aranha.
Diante das designações, Asaji, a mulher de Washizu, acredita que tal
divisão de funções é uma pressagio a seus temores e passa a insistir que Washizu mate
Tsuzuki durante a noite. Washizu, inseguro, concorda e depois do assassinato a própria
Asaji incrimina os guardiões do quarto de Tsuzuki, colocando as lanças mortais em suas
mãos, enquanto eles dormem embriagado pelo sonífero que, antes, ela mesma se
encarregou de colocar em suas bebidas.
Uma vez no Castelo das Teias de Aranha, Miki se nega a abrir as portas
para quem quer que seja, inclusive para o próprio Washizu. Este consegue demover
Miki da sua decisão de proteger o Castelo e abrir as portas, quando vem até ele trazendo
consigo o cortejo com o corpo do Senhor Tsuzuki, o que faz também por influência da
mulher.
Ao entrar no Castelo, Miki concede que Washizu assuma o trono pois
espera que a profecia se cumpra e seu próprio filho venha a restituir-lhe depois. Mas
Asaji revela que está grávida e as coisas mudam. Outra vez influenciado pela mulher
Washizu manda matar Miki, mas o filho deste consegue escapar e se reúne em um feudo
vizinho com o filho de Tsuzuki e outro aliado, o general Noriyasu.
Depois de tudo Washizu se impressionado por fortes pesadelos que
acabam por aniquilar seu ânimo. Ele então busca refúgio na bebida o que lhe faz ter
visões do espírito de Miki.
63
O tempo passa e numa noite de chuva, Asaji a luz a um filho morto.
Além disso, as notícias acerca dos inimigos de Washizu ficam ainda piores: as tropas de
Inui se uniram à do general Noriyasu e o filho de Miki, junto com o filho do falecido
Tsuzuki conseguiram conquistar outros castelos e avançam para o Castelo das Teias de
Aranha.
Desconcertado e batido, Washizu volta ao bosque em busca da anciã que
lhe fez as predições. Esta lhe diz que ele não perderá nenhuma batalha até que o bosque
se mova na direção do castelo. Ao retornar ao Castelo Washizu encontra a mulher
completamente louca tentando, alucinada, limpar as mãos de um sangue imaginário.
Os homens comandados por Washizu esperam suas ordens para o combate
enquanto o inimigo vai se cercando do castelo. Sem ter argumentos para encorajar suas
tropas, Washizu acaba por contar a eles o que a anciã lhe revelou e com isso consegue
tranqüilizar momentaneamente seus homens. Mas ao fim de alguns dias, as tropas
inimigas, camufladas atrás das plantas arrancadas do bosque, de fato avançam contra o
castelo e vencem a batalha. Sendo assim o filho de Miki, tal como disse a profecia acaba
chagando ao trono do Castelo das Teias de Aranha.
3.1.1.2- SONHOS
No filme Sonhos do ano de 1990, Kurosawa explora os meandros da mente
humana (ou da sua própria) através de seis episódios que jogam com aspectos
simbólicos e oníricos. A película é composta de oito episódios todos eles independentes
entre si do ponto de vista narrativos, mas integrados no que diz respeito a seus aspectos
temáticos.
No primeiro sonho um menino vê, do portão de sua casa a chuva caindo
num dia de sol. Sua mãe lhe adverte que em dias assim as raposas celebram suas festas
de núpcias e não querem que ninguém lhes incomode. O menino sente curiosidade de
ver os animais em seus ritos secretos e, desobedecendo a ordem da mãe entra na
floresta. contempla com admiração uma comitiva alegórica de raposas, que evoluem
numa dança de apelo simbólico. Como acha que foi descoberto pelos animais, o menino
foge. Ao voltar para casa sua mãe reprova sua atitude e lhe entrega um punhal, segundo
ela deixado pelas próprias raposas. Diz também que, ou ele se mata ou vai pedir
desculpas aos animais, ande ele estão e onde o arco-íris se encontra com a terra.
64
O segundo sonho traz um menino, mais crescido que o do sonho anterior,
que, no dia em que sua irmã e suas amigas celebram a festa das bonecas, se sente
atraído por uma menina que somente ele consegue ver. Esta visão conduz o garoto a um
jardim repleto de pessegueiros cortados. Chegando lá a menina some e o garoto se vê na
presença do tribunal dos espíritos dos pessegueiros que discutem com o garoto pelo fato
de a família dele ter cortado as árvores. O menino então começa a chorar e um outro
espírito feminino o defende. De repente os pessegueiros voltam a florescer. Mas em
seguida tornam a sumir, tendo sido apenas uma ilusão. O menino termina lamentando a
perda de tanta beleza.
No terceiro sonho quatro homens se esforçam por se salvar de uma terrível
tempestade de neve. Três deles parecem cansados, mas o quarto, provável responsável
pelo grupo incentiva a caminhada, pois acredita que o acampamento está próximo. A
neve está cada vez mais densa e avalanches ocorrem o tempo inteiro. Em sua luta os
homens têm de enfrentar a tempestade e o cansaço além da morte que aparece
disfarçada em uma fada das neves. A sorte dos quatro é que uma lufada de vento
afugenta a morte e os alpinistas podem enfim seguir viagem. Quando menos percebem
chegam ao acampamento.
no quarto sonho um capitão regressa a sua casa, no interior das
montanhas, depois de ter perdido uma guerra. No caminho deve atravessar um túnel
guardado por um terrível cão. Mesmo com medo atravessa, mas ao sair escuta atrás de
si sons de passos. Ao se voltar para verificar do que se trata, verifica ser um de seus
soldados, que morreu na batalha. Este implora para ir com o capitão, mas o capitão lhe
ordena que retorne ao reino das sombras. O soldado resiste, mas enfim retorna. Em
seguida uma corporação inteira aparece para seguir o capitão, que sofre para tentar
convencê-los a voltar, mas enfim consegue através da disciplina e da ordem. Finalmente
o cachorro não deixa de amedrontar o pesaroso capitão.
O quinto sonho traz um jovem pintor que visita uma exposição de Van
Gogh. Ele penetra no interior de seus quadros e se encontra com o próprio pintor
trabalhando loucamente, sem tempo para o visitante. Depois de percorrer os quadros do
artista o jovem pintor se vê outra vez na sala de exposição.
O sexto sonho versa sobre a explosão de uma central nuclear que faz com
que o Mote Fuji queime como uma grande tocha. um pavor generalizado sem ajuda
possível. Apenas um jovem não sabe o que se passa e interroga algumas pessoas à beira
65
de um mar furioso. Uma dessas pessoas é um engenheiro envolvido na construção da
central nuclear.
No sétimo sonho vemos os resultados de uma hecatombe nuclear. Tudo é
dominado pela visão de paisagens devastadas em que não mais vestígios de vida
abundante, nem vegetal, nem animal. Na terra vivem apenas flores monstruosas e seres
horripilantes, deformados que se devoram entre si. Um único sobrevivente
(provavelmente a representação do próprio Kurosawa) entra neste terrível cenário e
consegue conversar com um dos seres em mutação, uma espécie de ogro. Através do
terrível personagem o sobrevivente toma conhecimento de todas as terríveis coisas que
ocorrem naquela terra devastadas. Sem suportar as terríveis visões o sobrevivente tenta
fugir desesperadamente.
O oitavo e último sonho trata sobre a chegada de um jovem a uma aldeia
que fica às margens de um caudaloso rio. não eletricidade, nem tratores ou
qualquer suporte que retire os moradores de viverem uma vida completamente natural.
Segundo alguns críticos é uma espécie de Arcádia onde reina a alegria e se vive aos
ritmo da estações, em harmonia e respirando ar puro. O jovem então se encontra com
um homem velho que se ocupa em concertar uma roda de moinho de água. Com o velho
homem fica sabendo de vida na aldeia e da paz que ali se desfruta. O último sonho é
coroado com um alegre e festivo funeral de uma mulher que morreu de causas naturais
depois de viver 99 anos.
3.1.1.3- VIVER
O filme Viver de 1952 conta a história de Watanabe, um funcionário
público que trabalha como chefe em uma repartição responsável por resolver problemas
estruturais na cidade. Depois de anos de trabalho repetitivo, que consiste em caribar
processos embargando solicitações da população Watanabe descobre estar doente de
câncer e por este motivo resolve dar um novo rumo para o resto de vida que tem.
De início procura estes motivos em diversões noturnas, jogos, bebidas e
mulheres, o que faz acompanhado por um escritor boêmio que encontra em um dos
bares de periferia a que recorre. Mas a maratona noturna porque passa Watanabe acaba
por lhe desgastar mais ainda sem, no entanto lhe devolver qualquer prazer ou laivo de
esperanças de felicidade nos poucos dias que ainda lhe restam.
66
Ao voltar pra casa da noitada de suntuosas farras, ele encontra uma jovem
do mesmo escritório que está se dirigindo à casa do próprio Watanabe a fim de colher
sua assinatura para formalizar a demissão. Segundo ela não suportaria passar toda sua
vida trabalhando num serviço repetitivo que consiste em examinar petições e carimbá-
las. Ao conversar com a jovem, cheia de alegria e vivacidade Watanabe vai descobrindo
que é no trabalho onde ele pode encontrar uma nova forma de viver e um novo sentido
para sua vida.
A partir deste momento o personagem passa a agir de maneira diferente no
trabalho e resolve, em vez de embargar, concretizar pessoalmente os pedidos de
construção de um parque de diversão para crianças. Após fazer seus últimos trabalhos
dando exemplos de mudanças de conduta que contribuem para p crescimento da
comunidade, Watanabe morre.
3.1.2 – PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Sendo esta pesquisa de natureza analítico-descritiva, para realizá-la foi
necessário antes de tudo empreender um percurso bibliográfico para servir de
referencial teórico. Nesta pesquisa o material teórico é constituído por estudos da
representação, da visão performativa da linguagem, bem como de questões que
discutem o cinema enquanto uma linguagem capaz de agir no interior das políticas de
representação e de formação das identidades. Integram também o arcabouço teórico
deste trabalho, bibliografias que tratam da obra de Akira Kurosawa, bem como de
material versando sobre o misticismo oriental, e principalmente sobre o Zen budismo.
No que diz respeito às teorias da representação fomos buscar subsídios,
primeiramente, no âmbito das obras de Hall (2002), Rajagopalan (2002), Ferreira
(2007) e Shoah e Stam (2006), Alexandre (2004), Austin (1990), Fiori (2008) e Soares
(2007). Para nós este instrumental teórico foi útil, uma vêz que nos proporcionou uma
percepção mais panorâmica da questão da representação e seu papel na formação dos
circuitos culturais. Dos estudos de representação de Hall (2002) nos beneficiamos na
medida em que, neles, a abordagem do fenômeno da representação é feita tendo em
vista não apenas os circuitos culturais, mas também os sistemas de representação, em
que um destaque para a dimensão simbólica das representações. Outro importante
apoio teórico, fomos encontrar nos estudos de Moscovici (apud. Alexandre, 2004) que
67
tratam da representações sociais. Em tais referenciais teóricos as representações são
vistas como sendo de natureza multidimensional o que nos possibilita o questionamento
da própria natureza do conhecimento e a relação deste com o indivíduo e a sociedade.
Nos referidos estudos o cinema pode ser considerado como emergindo das liberdades
individuais que permitem a expressão do mundo fora dos horizontes dos saberes
especializados. Em Estévez (2005) fomos buscar material teórico para compreender
melhor a estrutura formal da obra de Kurosawa. No referido autor encontramos as
principais referências de Akira Kurosawa bem como nos foi possível compreender o
quando o diretor japonês e sua obra são comprometidos com a cultura, a política e a
economia do Japão.
Para compreendermos mais a cultura mística do Extremo Oriente nossa
pesquisa tomou como base especulações teóricas de estudiosos tais como D.T. Suzuki
(1985 e 1969), que em suas obras faz uma aprofundada especulação sobre o Zen
budismo, relacionando-o com a cultura do extremo Oriente. Nos estudos do referido
erudito podemos encontrar aprofundadas questões fundamentais sobre a disciplina Zen
tais como Zazen, Dhyana, Koan, Iluminação e Avidya, bem como podemos constatar as
profundas relações que o Zen mantém, ainda na contemporaneidade, com a cultura e a
arte do Japão. Ainda para nos aprofundarmos nas questões do Zen recorremos aos
estudos de Watt (2002 e 2008) nos quais, não apenas nos foi possível uma introdução à
referida disciplina mística, mas também podemos constatar sua influencia nas artes
plásticas, na arquitetura e na literatura do extremo Oriente. Sobre o budismo ainda
recorremos às fontes do ramo Hinayanico, plasmadas na antologia do cânone Páli
-organizada por Cohen (2008) bem como em outras traduções das escrituras sagradas,
também realizadas por Cohen, com destaque para o Dhammapada, a Senda da Virtude.
A obra de Capra (2006) também se constituiu como excelente apoio na compreensão do
misticismo oriental, embora o referido autor não seja citada diretamente no corpo do
trabalho. Por último é importante mencionarmos as importantes contribuições, para a
compreensão do budismo, que encontramos na publicação sobre a doutrina de Buda,
atribuída à Bukkyo Dendo Kyokai (fundação para a propagação do budismo)
Uma vez que compreensão do budismo para a cultura japonesa se mostrou
como uma questão com a qual teríamos que lidar para a execução de nossas pesquisas,
resolvemos inicia-la pela realização de um apanhado geral sobre o budismo desde o seu
surgimento no século V a. C., com o Buda histórico, até o aparecimento do Zen
budismo pelas mão de Bodhidharma no século VI d. C. Para tanto, nos ocupamos em
68
fazer uma discussão sobre as disciplina Zen a fim de compreendermos, não apenas os
princípios filosóficos que ela encerra mas também para tentar refletir sobre as influência
que tais princípios acarretam para a cultura, a arte, a arquitetura e a literatura do Japão.
Em nosso ponto de vista tal procedimento se constituiu como fundamental para a
implementação das análises, na medida em partimos da convicção de que, sem a
compreensão do que vem a ser o Zen dificilmente se poderia perceber a sua
representação na obra de Akira Kurosawa.
Como nos três filmes que compõem o corpus o Zen é representado levando
em conta diferentes aspectos, optamos por analisar cada filme separadamente e sempre
de maneira linear, isolando para tanto ora cenas, ora seqüências inteiras de cada uma das
películas. No entanto, de cada item do corpus, os elementos analisados não dizem
respeito aos filmes na íntegra, uma vez que procuramos levar em conta apenas os
trechos que poderiam comprovar a nossa hipótese inicial de que o Zen budismo estava
representado na obra de Kurosawa.
No filme Trono Manchado de Sangue buscamos averiguar a representação
do bem e do mal, bem como das concepções de vaidade, buscando evidenciar as
evidentes alusões ao sermão da flor, proferido pelo Buda histórico. Nesta análise
procuramos destacar também o teor moralizante da película, através do recurso da
tragicização No filme Sonhos, buscamos explorar a representação do estado mental
denominado Satori, bem como tentamos observar como um dos conceitos
fundamentais, do budismo, a Iluminação, está nele representado. Aqui as reflexões
sobre o autômato-espiritual, realizadas no primeiro capítulo se mostraram fundamentais
para compreendermos algumas questões do cinema de Kurosawa. Por fim, no filme
Viver nossa intenção foi a de sondar de que maneira o conceito budista de Avidya
(ignorância) ganhou representação, levando em conta a saga do personagem, pondo em
destaque partes de algumas seqüências, necessárias para demonstrar o que objetivamos
afirmar.
3.2- CINEMA E MISTICISMO ORIENTAL: A REPRESENTAÇÃO DO ZEN
BUDISMO NO CINEMA DE AKIRA KUROSAWA
Uma das afirmações mais significativas de Estévez, ao se referir à obra de
Kurosawa, assevera que um dos fatores que a torna estranha ao olhar do espectador
69
ocidental é o desconhecimento por este das normas de comportamento, bem como dos
princípios éticos e religiosos orientais que, conforme assegura Jung (1991) são tão
radicalmente opostos aos dos acidentais. Portanto, o objetivo central deste trabalho é
observar através de quais elementos formais, aspectos importantes do misticismo
oriental, notadamente do Zen Budismo estão presentes na obra cinematográfica do
Diretor Japonês Akira Kurosawa, de modo que, toda a sua inquestionável beleza e
profundidade se tornem mais acessíveis ao expectador ocidental. Assim, nossa análise,
inevitavelmente, fará inúmeras referências ao universo místico oriental, o que nos
impõe como tarefa primeira esclarecer, ainda que sumariamente, alguns importantes
aspectos das referidas doutrinas místicas que influenciaram a cultura e os costumes das
civilizações do Extremo Oriente, notadamente do Japão. Iste procedimento é ainda mais
justificável se levarmos em conta a enorme influência que o Zen exerceu sobre a cultura
do Extremo Oriente, principalmente na estética e nas artes militares (Watts, 2008,
p.109). Assim, nosso trabalho antes da análise propriamente dita é dedicado a delinear
um breve histórico do budismo a fim de observar como surge a disciplina mística
chamada Zen.
3.2.1- OS PRIMÒRDIOS DO BUDISMO
O Budismo, por assim dizer, e conforme deixaremos mais claro
posteriormente, ainda no presente capítulo, é dividido em dois ramos principais, a saber,
o ramo Hinayanico (ou pequeno ciclo) e o ramo Mahayanico ou grande ciclo, ao qual o
Zen Budismo está ligado. Ambos, no entanto têm em comum a experiência mística,
conhecida como Iluminação, vivenciada pelo Buda Sidhartha Gotama, também
conhecido como o Buda histórico. A referida Iluminação é tida como o marco inicial do
budismo e também a culminância do longo processo de busca espiritual iniciado pelo
Príncipe Gotama que, aos 29 anos de idade “renunciou ao mundo indo da vida de casa
para a vida sem lar” (Cohen, 2008 p. 35).
Assim, para que possamos entender o Budismo como doutrina mística,
é fundamental que recorramos inicialmente à trajetória do seu fundador, pois como
afirma Cohen (2008) “na sua própria vida, a pessoa e a mensagem fundem-se numa
união indissolúvel” (p.34)
70
De acordo com Watts (2008) a história do budismo tem início com “o
momento de suprema introspecção” - também chamado de Iluminação - vivenciado por
Siddhartha Gautama, filho único do rei Shuddodana Gotama e da rainha Maya, que
governavam o clã Sakya, na Índia, durante o século V a.C. O palácio onde residiam
ficava na cidade de Kapilavastu, situada na encosta sul do Himalaia, ao longo do rio
Rohini.
Sobre a vida de Sidhartha Gotama não se pode referir, senão pela licença
poética das lendas, uma vez que faltam dados históricos precisos, embora, como
dissemos, ele seja considerado o Buda Histórico. Isto se deve ao fato de, por longo
tempo, Gotama ter sido tomado por um simples eremita, igual a tantos outros existentes
na Índia no período referido. Sua distinção dos demais ermitões e, portanto as
especulações acerca de sua biografia, foram crescentes após sua morte e isto por ter
sido o primeiro a ter conquistado o estado pleno de Iluminação e atingido o Nirvana
(que em sânscrito significa liberdade espiritual absoluta), passando assim a ser
considerado um Buddha - ou o “perfeitamente desperto”. (Cohen, 2008, p. 509)
A trajetória do Buda Gotama, que vai de seu nascimento até o momento da
Iluminação, tem sido recontada de maneira fantástica, o que torna a narrativa canônica
do iniciador do budismo uma espécie de narrativa fabulosa, atravessada por vários
momentos de construções mitológicas, tal como a vida de Jesus e Maomé. No entanto é
importante ressaltar que, malgrado o invólucro da lenda, que apareça como necessário
para o delineamento da vida do Buda Gotama, em seus aspectos mais substanciais, tara-
se de sua biografia.
Conforme já afirmamos, a vida de Siddhartha Gotama, antes da Iluminação,
é envolta em muitos mistérios, sendo o seu enredo mais ou menos o mesmo em todas as
principais publicações. É assim ao menos na obra “O Pequeno Buda”, atribuída a
Mastrangelo (1994), a qual serve de base para o filme homônimo de Bertolucci, lançado
na década de noventa, bem como no volume contendo a doutrina de Buda, atribuído ao
Bukyo Dendo Kyokai. O comentário à narrativa de Buda delineado a seguir toma como
referência as duas publicações supracitadas, bem como a introdução escrita por Cohen
(op. cit.) para a sua importante tradução da antologia do Cânone Páli.
3.2.2- UMA CRIANÇA ESPECIAL
71
Segundo a lenda, numa noite do vigésimo ano de matrimônio com o rei
Shuddodana, a rainha Maya tivera um estranho sonho em que era visitada no palácio
por um elefante branco. Segundo ela teria contado ao acordar, o magnífico animal teria
entrado em seu ventre através de sua axila direita. Ao despertar, a rainha afirmara estar
grávida o que foi motivo de enorme contentamento em todo o palácio, pois ter um
herdeiro era sonho antigo acalentado pelo casal.
Como rezava a tradição da época, ao completar os nove meses a rainha teria
deixado o palácio do marido para dar a luz na casa paterna e durante o percurso, quando
a caravana que a acompanhava apeou para descansar no bosque de Lumbini, segundo
Cohen “situado à pouca distância da atual fronteira da Índia, ao sul do Nepal” (op. cit.
p. 34), a rainha Maya - ao estender o braço direito para apanhar um fruto numa árvore -
dera a luz a um menino forte e de feições saudáveis.
Segundo Mastrângelo o nascimento do jovem príncipe foi motivo de muita
festa pois como era o primeiro filho e do sexo masculino, haveria de ser sucessor do pai,
que o batizou com o nome de Siddhartha, significando “aquele que traz o bem”.
(Mastrângelo, op. cit. p. 13)
De acordo com a lenda, um dia, ainda em meio ao período dedicado às
comemorações pelo nascimento do príncipe, Asita, o ermitão, um homem santo e sábio
que vivia solitário e em silêncio nas montanhas, teria deixado sua reclusão e se
aproximado do palácio. Ao adentrar na sala real, e vendo o menino tranquilamente
deitado no colo da mãe, adiantara-se dizendo que a luz vislumbrada por ele em torno do
palácio era a mesma que envolvia o bebê, o que não deixava dúvida de que a criança
estava predestinada a ser um grande sábio. Conforme a publicação da Bukyo Dendo
Kyokai, foram estas as palavras de Asita:
Este príncipe, se permanecer no palácio após a juventude, tornar-se-á um grande rei e
governará o mundo todo. Porém se abandonar a vida palaciana e abraçar a vida espiritual
tornar-se-á um Buddha. O Salvador do mundo” (op. vit. p. 18)
Após proferir tais palavras, de acordo com a lenda, Asita deixara o palácio,
jamais sendo visto novamente. Na manhã seguinte a rainha Maya teria caído
gravemente doente vindo a falecer em poucos dias. O menino ficara aos cuidados da tia
Pajapati (irmã caçula da rainha), posterior segunda esposa do rei Suddhodana e, de
acordo com Cohen (op. cit.) a líder da primeira comunidade de monjas budistas.
72
Conta a lenda que, devido ao infortunado destino da esposa, o rei
Shuddodana, o qual a princípio não estranhara as previsões do ermitão Asita, decidiu
cuidar para que elas jamais se cumprissem, de modo que o príncipe Siddhartha
permanecesse no palácio pelo resto de seus dias e viesse a ser o futuro herdeiro do trono
Sakya.
Assim, por volta dos sete anos, o jovem príncipe foi iniciado na sua
educação formal, notadamente em letras e nas artes militares. Mas, para surpresa de
todos, e do próprio rei, sua atenção sempre se desviava para questões de natureza
filosófica, o que teve sua expressão clara num fato ocorrido durante um passeio de
Siddhartha com o pai durante a primavera. Sobre esse episódio conta-se que o jovem
príncipe quedou-se deveras entristecido ao ver um pássaro, descendo à terra a fim de
comer um pequeno verme. Ao presenciar tal cena Siddhartha teria indagado a si mesmo,
e em seguida ao pai “porque todos os seres vivos se matam uns aos outros?” (Bukyo
Dendo Kyokai, p. 18)
Diante de tal atitude do filho, o rei teria recordado as palavras do ermitão
Asita tratando, a partir de então, de tomar os devidos cuidados para que o príncipe
permanecesse constantemente distraído, tendo a mente sempre desviada de questões de
natureza filosófica ou metafísica.
3.2.3- UM ADULTO ESPECIAL
Tão logo completou dezenove anos, Siddhartha casou-se, por intervenção do
pai, com a princesa “Yashodhara, filha do senhor do castelo Devadaha e irmão da
falecida rainha Maya” (Bukyo Dendo Kyokai op. cit. p. 18)
Por ocasião de suas bodas, Siddhartha recebera de presente do pai um
magnífico palácio, no qual havia um pavilhão para cada estação do ano. Pelo período de
dez anos, o príncipe e a princesa Yashodhara teriam vivido ali, envolvidos nas mais
alegres distrações, não necessitando saírem do palácio por qualquer motivo. Segundo
consta, fosse qual fosse o desejo do filho, o rei Shuddodana estaria disposto a satisfazer,
sem que para isto o príncipe precisasse transpor os muros do palácio. A intenção do rei,
segundo consta, era a de que Siddhartha jamais se defrontasse com qualquer tipo de
degradação, doença, ou sofrimento.
73
Segundo Mastrângelo, por ordem do rei Shuddodana as flores do jardim do
palácio eram cortadas, antes de murcharem, para evitar que o príncipe se visse diante da
morte. Até os empregados e outros que necessitassem adentrar nas dependências do
palácio - deveriam ser jovens e ostentar beleza, sendo instruídos a, jamais, fazerem
referências a sofrimento, velhice, doença e morte. Aqui é importante pontuarmos que a
lenda em torno de Buda parece bastante coerente com a posterior doutrina budista, uma
vez que a superação do sofrimento da velhice, da doença e da morte são os principais
aspectos da chamada Iluminação.
Como dizíamos, a própria princesa Yashodhara, de acordo com Mastrângelo
era sabedora das restrições impostas e as seguia rigorosamente. Ao cabo de dez anos de
casamento, dera a luz a um menino, que recebeu o nome de Hahula.
Mastrângelo nos conta que, numa manhã de verão, Siddhartha e a esposa
descansavam em um dos muitos e suntuosos jardins do palácio quando o príncipe
escutou, vindo de outro pavilhão, o maravilhoso som de um instrumento, para ele
desconhecido, tocado com surpreendente maestria. Por considerá-lo exótico,
Siddhartha, como que num transe, teria saído pelo palácio em busca da fonte daquele
som que jamais ouvira. Sem indagar a ninguém, consta que percorreu os corredores da
majestosa edificação, até que se deparou com uma linda jovem, a dedilhar
delicadamente, uma cítara feita de “cordas cintilantes e madeira nacarada” (Mastrângelo
op. cit. p. 24). Aproximando-se da moça, Siddhartha teria esperado que ela concluísse
seu desempenho para, em seguida lhe perguntar o que era e de onde provinha aquele
fascinante instrumento, capaz de produzir um som de beleza tão inusitada. Sem hesitar
ela teria lhe respondido que se tratava de uma cítara e que provinha dali mesmo, da
cidade de Kapilavastu, mas para além dos muros do palácio.
3.2.4- A DESCOBERTA DA VERDADE
De acordo com Mastrângelo, a partir deste momento, o príncipe passara a
nutrir enorme curiosidade em saber mais a respeito de quem seria este povo, capaz de
criar instrumento tão magnífico. Sendo assim, teria recorrido ao pai a fim de lhe pedir
permissão para sair do palácio. A princípio o rei Shuddodana teria relutado, mas como
Siddhartha insistisse, o pai aquiescera, impondo a condição de que a visita ocorresse
74
num dia por ele determinado. Com isso o rei ganharia tempo para organizar a tal
aventura pelas ruas da cidade.
Assim procedendo, teria ordenado que as ruas fossem enfeitadas com
“bandeiras de seda e ouro e das janelas caíssem chuvas de pétalas” (Mastrangelo, op.
cit. p.37). Shuddodana também teria tratado de arranjar para que os velhos, coxos, ou
doentes fossem proibidos de sair à rua, de modo que apenas jovens e belas pessoas
pudessem saudar o também jovem e belo príncipe Siddhartha. Finalmente, ordens
expressas do rei obrigavam toda a gente a estar sorridente e envergar belas roupas. Para
conduzir a carruagem de Siddhartha teria sido designado Channa, seu fiel amigo.
No dia tão esperado, e ao cruzar o pórtico do palácio, Siddhartha teria ficado
maravilhado pela chuva de pétalas, pela beleza das ruas ricamente enfeitadas, e pela
harmonia da multidão, disposta ordenadamente ao longo das calçadas. Toda a gente
sorria, não apenas por determinação real, mas também pela clara satisfação em conhecer
o príncipe herdeiro (nunca antes saído do palácio) o qual irradiava beleza e um
semblante sereno, pleno de contentamento.
Mas, ainda segundo Mastrângelo a perfeição daquele momento teria sido
dissolvida num átimo de segundo com a aparição inesperada de um ingênuo ancião que,
burlando a segurança montada pelo rei, sorria com sua boca desdentada, acenando na
direção do príncipe. Ao perceber a presença indesejada do pobre velho, a guarda real
tratou imediatamente de retirá-lo dali, embora este fosse recurso tardio. Antes de sumir
na multidão, carregado nos braços por um soldado, aquela figura esquálida teria sido
vista pelo príncipe Siddhartha, que não pode esconder o espanto, pois era a primeira vez
que se defrontava com alguém de aparência tão diversa de tudo o que ele
experimentara enxergar (Mastrângelo, op. cit. p. 42).
Atordoado, o príncipe teria se dirigido a Channa indagando a respeito do que
era aquela figura de feições tão diferentes, rosto tão enrugado e cabelos tão brancos,
sendo por isso tão diferente dos demais presentes à rua naquele instante solene. Sem
hesitar o companheiro afirmou tratar-se de um velho. Siddhartha continuou admirado,
pois nunca havia tomado conhecimento do que pensou ser uma raça de homens
diferentes. A esta indagação ingênua do príncipe, Channa respondeu não se tratar de
uma raça, mas sim de uma condição a qual todo ser vivente chega com o passar do
tempo, até mesmo ele, a princesa Yashodhara e o menino Hahula. Foi assim que,
segundo a lenda o príncipe Siddhartha teria tomado conhecimento da velhice, passando
75
a indagar a si mesmo como pode alguém ser feliz sabendo que um dia envelhecerá
(Mastrângelo op. cit. p. 42)
Ao regressar a sua residência, o príncipe Siddhartha teria se dirigido ao
Terraço do Vento, onde permaneceu por longo tempo, meditando sobre a velhice, que
acabara de conhecer e, ao cabo de alguns dias pediu ao pai para, novamente, sair do
palácio, a fim de visitar as ruas de Kapilavastu. Como quisesse debelar as perturbadoras
expectativas do filho, o rei novamente aquiesceu, não deixando de tomar todos os
cuidados para que, dessa vez, o príncipe nada presenciasse que pudesse lhe causar
qualquer tipo de inquietação.
Ao sair do palácio pela segunda vez, embora tenha avistado as ruas
enfeitadas com as mesmas bandeiras de seda e ouro, e o povo sorrisse maravilhado em
meio à chuva de pétalas que caía ao longo de sua passagem, o príncipe não estava
contente e, dirigindo seu olhar para outro recanto da cidade, ignorado pela atenção da
maioria, teria visto, ainda que muito distante, uma mulher magra e alquebrada,
tremendo de febre, caminhando com enorme dificuldade, amparada por um jovem
(Mastrângelo, op. cit. p 43). Curioso, Siddhartha teria perguntado ao amigo Channa -
que novamente lhe acompanhava - o que tinha aquela mulher para ter de caminhar com
tanta dificuldade, a ponto de necessitar ser amparada por alguém. Foi quando o amigo
lhe respondeu se tratar de alguém acometido por alguma doença.
Sem saber o que significava, Siddhartha prosseguiu indagando a respeito do
que seria tal coisa, ao que o amigo lhe respondeu prontamente dizendo ser a doença algo
que cresce em nosso interior provocando dores físicas, febres e perturbações. Disse
ainda que todos os homens, mulheres e animais estavam sujeitos a adoecer algum dia
em suas vidas, independentemente de serem reis, príncipes, mendigos, soldados ou
crianças (Mastrângelo op. cit p. 45). Ouvindo aquilo Siddhartha teria olhado para a
multidão sorridente, sem conseguir entender como alguém poderia ser feliz sabendo da
existência da velhice e de doença, capaz de causar dor e sofrimento, tornando uma
pessoa dependente do apoio e do amparo de outra.
De volta ao palácio, o príncipe teria se dirigido novamente ao Terraço do
Vento a fim de meditar sobre o que vira, e tentar aplacar a enorme angustia que se
avolumava em seu peito. Depois de tanto refletir Siddhartha indagou a si mesmo se
envelhecer e adoecer seria o destino de todas as criaturas vivas. (Mastrangelo op. cit. p.
46)
76
Segundo Mastrângelo, o rei Shuddodana, preocupado com o estado do filho
e, sobretudo, com o que aqueles pensamentos poderiam trazer a seu futuro teria tentado,
em vão, distrair o filho de todas as maneiras possíveis com festas, banquetes, jogos,
concertos de música, performances de bailarinos e poetas, torneios de tiro com arco,
mas nada podia desviar da mente de Siddhartha as idéias da velhice e do adoecimento,
até que este, finalmente, teria pedido novamente ao pai para, outra vez, sair em visita às
ruas de Kapilavastu. Como não podia negar nenhum pedido ao filho, o rei novamente
concedeu que ele saísse, mas dessa vez tratou pessoalmente de tomar todas as
providências para que não houvesse risco de qualquer imprevisto, o que novamente foi
inútil.
Quando a carruagem do príncipe atravessava uma das praças da cidade, ele
avistou, ainda que de certa distância, um cortejo seguindo seguir dois homens que
carregavam um corpo humano inerte sobre uma espécie de padiola.
Ao ver aquela cena, imediatamente Siddhartha teria perguntado a Channa do
que se tratava ao que o amigo respondera tratar-se de um cortejo fúnebre, pois o corpo
inerte sobre a padiola estava irremediavelmente morto. Por não saber o que significava
estar morto, o príncipe Siddhartha teria prosseguido pedindo a Channa que lhe
explicasse. Ao tomar conhecimento da morte, Siddhartha teria tratado de descer do
carro e dirigir-se ao cortejo, acompanhando-o até a beira de um rio, onde outros corpos
estavam sendo cremados. Ali teria presenciado a aflição dos parentes que choravam
seus entes queridos. Em seguida conta-se que o príncipe percorreu toda a cidade, a fim
de conhecer de perto a velhice, a doença e toda sorte de sofrimento humano.
Finalmente, depois de um dia inteiro de peregrinação por Kapilavastu, Siddhartha
finalmente retornou exausto ao palácio, dirigindo-se diretamente para o Terraço do
Vento a fim de meditar sobre tudo que presenciara ao longo daquele dia.
3.2.5 – A DESPEDIDA FINAL
Segundo a lenda, ao cabo de alguns dias meditando, o príncipe teria
resolvido abandonar o palácio a fim de se juntar a um grupo de ascetas que viviam num
bosque afastado da cidade. Nesta altura dos acontecimentos, segundo Coeh (op. cit.)
Sidhartha contava 29 anos e ao sair deixou para trás, além da esposa e do filho, todos os
77
seus pertences levando consigo apenas a roupa do corpo e uma tigela para mendigar
alimento.
Ainda segundo Cohen ao deixar o palácio, o príncipe foi buscar os
ensinamentos dos mais “eminentes preceptores, Alara Kamala e Uddaka Ramaputrtta,
que lhe ensinaram a atingir elevados estados meditativos” (p. 36). No entanto,
percebendo que tais métodos não seriam adequados para que pudesse obter as resposta
que desejava, Sidhartha rumou para Magadha a fim de praticar o ascetismo à beira do
Rio Nairanjana, com outro grupo de ermitões.
Um dia, após o sexto ano de severas práticas ascéticas, quando meditava à
sombra de uma árvore asvattha (fícus religiosus) e tendo o corpo combalido pelos
intensos jejuns, Siddhartha pode ouvir as seguintes palavras, proferidas por um
professor de cítara a um aprendiz, que procurava afinar seu o instrumento:
Se apertas muito as cordas se rompem e se deixá-las frouxas, não soarão...” [tradução
minha (Mastrangelo, op. cit. p. 81)]
Segundo Mastrângelo, ao ouvir tais palavras, Siddhartha intuíra o primeiro
passo para a iluminação, que é a descoberta do caminho do meio, ou do equilíbrio. A
partir daí teria se banhado no rio e comido do arroz que uma moça caridosa lhe
oferecera, para o espanto dos demais ascetas que o acompanhavam. Três deles
chegaram a dizer que Siddhartha havia perdido a batalha, mas a isto consta que ele não
redargüiu e simplesmente se dirigiu a um lugar chamado Bogdhaya, onde uma
enorme figueira, ainda hoje existente na Índia (Mastrângelo op. cit. p. 83).
Siddhartha sentou-se e penetrou em seu próprio interior, atingindo a Iluminação,
entrando no Nirvana, palavra sânscrita que designa a liberdade espiritual, ou perfeita
tranqüilidade. (Watts op. cit. p. 138)
Essa é, portanto a mitologia em torno do primeiro homem a ter atingido o
estado de Iluminação, inaugurando assim uma religião que, genericamente é
denominada por Budismo, a qual se proliferou, transformando-se numa das mais
populares em todo mundo, extrapolando os limites do Extremo Oriente.
3.2.6 A ILUMINAÇÂO OU SAMBODHI
78
Segundo Suzuki (1995), para que se possa compreender o budismo na sua
mais profunda essência é necessário indagar fundamentalmente sobre “a natureza da
experiência pessoal de Buda que se apresentou a sua consciência mais íntima no
instante da Iluminação” (Suzuki, 1995, p. 57). Conforme acreditamos ser possível
depreender da breve narrativa realizada acima, os motivos das indagações de Sidhartha,
quando ainda era um Bodhisattva (aprendiz) giravam em torno de questões sobre o
sofrimento, a velhice, a doença e a morte. Assim, segundo Suzuki, ao meditar sobre tais
questões, Sidhartha considerava o seguinte:
Em verdade, este mundo caiu em perturbação (Kiccha); um nasce, envelhece e morre, e
cai de um estado y surge em outro. Além disso, nada conhece o modo de escapar deeste
sofrimento, nem sequer da decadência e da morte. Quando se poderá conhecer o modo de
escapar deste sofrimento, da decadência e da morte? (Suzuki, op. cit. p. 57)
Segundo afirma Suzuki, em concordância com os fartos documentos do
cânone Páli, o Buda, pensando assim, teria raciocinado que a decadência e a morte
surgem do nascimento, o nascimento do devir (bhava), o devir do apego, o apego por
sua vez do anelo (tanha), até que chegou ao condicionamento mutuo de nome-e-forma
(nama-rúpa) y cognição (viññána). Em suma, o que o ainda Bodhisattva Sidhartha
Gotama teria atingido, seria um pensamento capaz de considerar as coisas deste mundo
antes de todo e qualquer conhecimento ou razão, chegando assim, à luz. Com isto teria
exclamando:
“Penetrei este Dharma, profundo e difícil de entender, calmo sublime, não mera
dialética, sutil, inteligível, digno somente para os que cultivam a sabedoria” [tradução
minha (Gautama, In Suzuki op. cit. p. 58)]
Vista de tal maneira tão rigorosa, ao sabor dos estudos do budismo
Hynahiânico, baseados no cânone de Páli, a idéia da Iluminação nos parece difícil de ser
apreendida. No entanto, falando de maneira mais simplificada, o estado da mente
iluminada é aquele caracterizado por uma experiência imediata da vida, sem o anteparo
de simbolismos nem a primazia dos conceitos e da linguagem. Parafraseando Suzuki
podemos afirmar que a mente iluminada nos revela um estado de liberdade perfeito, em
que não há espaço para qualquer tipo de discriminação.
79
Dito de outra forma a mente iluminada, que não encontra nenhuma
concordância com esforços intelectuais, tende a transcender a consciência relativa, tão
acostumada e apegada à multiplicidade e não à unidade de todas as coisas.
A Iluminação pode ainda ser descrita em termos metafísicos, sendo
definida como a capacidade de ultrapassar os parâmetros conceituais, impostos pela
consciência de tempo e espaço, sendo, portanto uma relação intuitiva com o mundo,
“livre de todos os condicionamentos cognitivos” (Suzuki, op. cit. p. 61)
3.2.7 - IGNORÂNCIA
De acordo com o que nos afirma Suzuki (1995) a Ignorância é outra
importante noção que aparece no seio do budismo, pois constitui a verdadeira antítese
da Iluminação. Sendo assim, por contraste, ao se ter uma perfeita compreensão do que
venha a ser a ignorância, conforme é tomada no budismo, será possível obtermos uma
clara noção, ao menos em termos intelectuais, do que venha a ser a Iluminação.
Mas o que, em termos budistas se entende por Ignorância é
completamente divergente do que se compreende por ignorância em termos ocidentais,
senão vejamos.
Para o dicionário Mirador (1979), por exemplo, a palavra ignorância é
definida como um estado de desconhecimento próprio de quem não possui instrução, ou
ainda a quem falta algum saber necessário à vida. Por outro lado é também definida
como imperícia ou algum tipo de incapacidade. De acordo com outro importante
dicionário da língua portuguesa, o Aurélio eletrônico, ignorância se define por condição
de quem não é instruído, própria daquele a quem falta saber, ou onde ausência de
conhecimentos. Por último a palavra ignorância é ainda definida como o estado de
quem ignora ou desconhece alguma coisa, ou não tem conhecimento dela. Em termos
budistas o conceito de ignorância aparece como sendo bastante diferente destes aferidos
pela lógica ocidental.
Conforme nos afirma Suzuki (op. cit.), para o Budismo Ignorância é a
antítese da Iluminação. Ou seja, de acordo com a lógica budista, ser ignorante não é
simplesmente desconhecer ou não estar familiarizado com uma teoria ou conjunto de
leis. Para o budismo a ignorância se caracteriza pela separação de ação e saber. Melhor
dizendo quando o conhecedor está separado do que conhece.
80
Na Ignorância conforme a entende o budismo, o mundo se afirma para o
indivíduo como estando separado e distinto do eu o que, por sua vez torna possível a
formação das dualidades e dos opostos, como formas autônomas e não complementares.
Um outro aspecto que chama a atenção na concepção budista de ignorância é que ela é
possível graças à cognição, “o que significa que tão logo tenha lugar a cognição existe a
ignorância que se apega ao próprio ato cognitivo” (Suzuki op. cit. p. 62) Suzuki ainda
destaca:
“Quando pensamos saber algo, algo que não sabermos. O desconhecido está sempre
detrás do conhecido, e não chegamos até este conhecedor desconhecido, que é
certamente, a companhia inevitável e necessária de todo ato de cognição.” [tradução
minha (Suzuki, Op. Cit. p. 62)]
Como podemos perceber o conceito de ignorância no budismo estabelece
uma verdadeira ruptura com a lógica ocidentalizante, na medida em que estabelece que,
ser ignorante é tomar o mundo apenas do ponto de vista da racionalidade espaço
temporal, ou da cognição, a qual tende a discriminar as realidades, colocando-as em
pólos opostos não complementares.
Mas, como ainda destaca Suzuki (op. cit.) a ignorância não é em si algo
pernicioso ou causa de infortúnios. Para o referido estudioso do budismo, de acordo
com a lógica desta mística oriental, a fonte de infortúnios está ligada ao fato de que os
humanos ignoram a Ignorância. De acordo com suas próprias palavras, temos o
seguinte:
“quando ignoramos a ignorância, o que ela significa em nossa vida, então tem lugar
uma interminável concatenação de males” [tradução minha (Suzuki op. cit. p 62)
3.2.8- OS CAMINHOS DO BUDISMO
Conforme a tradição aponta, depois de ter atingido a Iluminação e se
tornado um Buda (o desperto, em sânscrito) Sakyamuni passou a transmitir tal
experiência sem que para isto tenha escrito uma única palavra. Seus ensinamentos
posteriores seguiram o mesmo procedimento utilizado no primeiro de todos os sermões,
conhecido como “O Sermão da Flor”.
81
Este sermão teria sido uma espécie de comunicação sem palavras pois
Gotama teria reunido seus companheiros a fim de transmitir o novo ponto de vista,
adquirido pela Iluminação, mas em vez de se pronunciar apresentou uma flor e sorriu
aos estudantes presentes. Segundo conta a tradição, de todos os presentes apenas
Mahakashyapa retribuiu o sorriso, demonstrando haver compreendido o ensinamento.
Por isso recebeu a flor das mãos do próprio Buda Gotama e assim, historicamente,
passou a ser considerado o primeiro patriarca do budismo.
A partir daí, a transmissão dos ensinamentos sobre os mistérios da mente
iluminada se deu diretamente de espírito a espírito, ao longo de uma linhagem de vinte
oito patriarcas, cujo último foi Bodhidharma. Foi ele que, no século VI d.C. se
encarregou de levar o budismo para a china, quando era denominado Zen. No
entanto, enquanto ocorria o processo de transmissão do novo pensamento entre os
patriarcas, alguns monges se encarregavam de fundar seitas e erigir escrituras capazes
de transmiti-lo.
Estas seitas estão divididas em duas vertentes principais, a saber: o ramo
Mahayânico (grande veículo) e o ramo Hinayânico (pequeno veículo) conforme
destacamos no início deste capítulo. Esta divisão por sua vez se deve à “disputa pela
autoridade atribuída a certo conjunto de escrituras” (Watts, op. cit. p. 20). Grosso modo
o ramo Hinayana ou Theravada é constituído daqueles que admitem apenas o cânone
Páli ou Tripitaka. Por isso seus adeptos não parecem dispostos a aceitar qualquer outra
escritura como norteadora de suas crenças. o Budismo Mahayana não se assenta em
escrituras específicas, mas sobrevive dos vários “discursos metafísicos, que foram
continuamente elaborados e sujeitos a novas interpretações” (Watts, op. cit. p 21)
Por este motivo e por vislumbrar o alcance da Iluminação na vida cotidiana,
o ramo Mahayana, sendo o menos ortodoxo, penetrou o Norte da Ásia (China, Tibet,
Mongólia, Coréia e Japão), enquanto o Hinayana limitou-se ao sul, alcançando apenas
Burma, Sião e Ceilão. (Watts, op. cit. p. 21) Mesmos assim, apesar das diferentes
formas de abordar o mesmo assunto, os dois caminhos têm por fundamento comum os
principais elementos da doutrina de Buda, resumida por Watts (2008) da seguinte
maneira:
“essa doutrina prega que o homem sofre devido a seu apego por possuir e
manter para sempre coisas que, por essência, são impermanentes. Dentre
essas coisas, a principal delas é a sua própria pessoa, pois ela é o meio de que
82
se serve para se isolar do resto da vida, o seu castelo para onde pode se
retirar e de onde pode lutar contra as forças exteriores” (Watts op. cit. p. 21)
Através desta afirmação podemos observar que o budismo, de um modo
geral, atribui o sofrimento humano às propensões reativas e generalizantes da mente.
Isto porque, aquilo o que denomina Avidya (ignorância ou auto-ilusão, em sânscrito)
impediria o homem de ultrapassar a crença na dualidade do “eu”, fazendo com que ele
tenda a se ver como uma realidade distinta do todo cósmico. A ignorância por sua vez,
conforme já destacamos, seria a responsável pela tendência ao apego, tão peculiar à raça
humana. Assim, diferentemente do budismo Theravada, muito aferrado às escrituras, o
Zen afirma que a conseqüência desta ignorância é uma verdadeira pilhagem do mundo,
o qual é submetido pelas mãos humanas a uma dinâmica generalizante e reativa.
Para o Zen, o senso de apego - recurso através do qual o homem se protege
de si mesmo (Watts, 2002, p. 58) - é observado tanto no indivíduo frente a sua
identidade (ou noção do ego) como nas construções simbólicas. O resultado é a
tendência humana para a negação do princípio da impermanência (Anicca em Páli,
Anytia em sânscrito) segundo o qual todos os fenômenos do mundo mental e material
estão sujeitos a mudanças, sendo por isso, instáveis e transitórios.
Portanto, no contexto do Zen, atingir a Iluminação é ser capaz de
ultrapassar as dualidades de bem/mal, certo/errado, cheio/vazio e vivenciar a
experiência da vida de maneira predominantemente intuitiva. Sendo assim, nem o Zen,
tampouco o Budismo Theravada entendem a mente iluminada como exclusividade do
Buda, que esta pode ser conquistada por qualquer sujeito, desde que este se livre da
“ignorância, abandonando o conceito dualista da vida e do mundo” (Suzuki, op. cit. 28).
É importante ressaltar ainda que, no âmbito do Zen os conceitos dualistas são aqueles
plasmados em simbolismos, no apego ao ego, bem como em hábitos arraigados do
cotidiano, os quais provocam as ações formadoras do Karma (em Páli) ou Kamma (em
Sânscrito).
Este último, por sua vez, é um aspecto do misticismo oriental, cuja
assimilação constitui uma importante chave paro a compreensão, não apenas do
budismo, mas de todo o pensamento religioso do Extremo Oriente. No entanto para
mente ocidental talvez seja tarefa difícil abarcar o total esclarecimento sobre a noção de
Karma.
83
Como afirma Jung (1996) no prefácio à “Introdução ao Zen Budismo” de
Suzuki (1996) os escritos originais budistas contém pontos de vistas e ideais mais ou
menos inassimiláveis à compreensão ocidental média” (op. cit. p. 12). Esta afirmação
ganha contornos mais precisos no que diz respeito à noção de Karma, que pode ser
definido satisfatoriamente num contexto mais amplo do misticismo oriental. Assim
podemos dizer que atingir a Iluminação significa transcender os dualismos e chegar ao
Nirvana, pelo abandono definitivo do ciclo de nascimento e morte (Samsara, em
sânscrito) o qual, uma vez eliminado livra o indivíduo de qualquer forma de ação e
reação (Karma).
3.2.9 – O ZEN
O budismo Zen, diferentemente do Budismo Theravada - mais aferrado às
escrituras e simbolismos - propõe um rompimento com todo e qualquer automatismo
que empeça o homem de enxergar o mundo de maneira direta. Por isso, abomina
abstrações, representações e figuras de retóricas” (Suzuki, op. cit. p. 100). Neste sentido
o Budismo Zen não pode ser apenas visto como uma religião, nos moldes do
cristianismo, islamismo ou hinduísmo. Para o Zen, uma mente iluminada é aquela capaz
de compreender a vida e a existência do todo cósmico, sem a intermediação de qualquer
simbolismo ou ritual, inclusive sem o auxílio da escrituras. Daí a insistência na
transmissão direta dos ensinamentos, sem livros sagrados ou mitologias. Vários
exemplos desta prática são relatados por Nukariya (2006) no seu “A religião dos
Samurais”. Um deles impressiona pela precisão com que o método de transmissão direta
é demonstrado.
O referido autor relata que certa vez um samurai chegou para o mestre
Dogén - da escola Soto Zen japonesa a fim de saber se de fato existiam os inferno e
demônios, descritos nas escrituras. Antes de responder, o mestre teria indagado ao
samurai acerca do motivo da pergunta, nos seguintes termos:
“Por que um samurai quer saber isso? Por que te preocupas com uma questão
tão estúpida? Vejo que deves estar desconsiderando teus deveres ao te
dedicares a conseguir averiguar algo tão inútil. Teu senhor te está pagando
um salário anual por nada.” (Nukariya op. cit. p. 48)
84
Nukariya prossegue relatando que, ao ouvir tais palavras, o samurai ficou
altamente ofendido e se preparou para desembainhar a espada, a fim de desferir um
golpe mortal contra o mestre, caso ele proferisse mais algum insulto como aquele. Neste
momento o mestre Dogén teria sorrido, dizendo:
“Agora estás num inferno. Compreendes o que ele significa?” (idem)
A atitude do mestre Dogén, acima descrita, é um exemplo bastante claro do
caráter iconoclasta da disciplina Zen, quando esta pretende colocar em questão todos os
automatismos, conceitos e simbolismos condicionados por velhos hábitos arraigados na
cultura da humanidade. Neste ponto adentramos nos aspectos práticos do Budismo Zen,
uma vez que chegamos à noção de Koan, bastante clara na atitude do referido mestre da
escola Soto do Japão. Sobre isso discorreremos a seguir.
3.2.10- A DISCIPLINA ZEN
Como dissemos, ao contrário das religiões teístas, que sustentam a por
meio de mitologias e práticas rituais, o Zen propõe a contemplação do vazio, mas não
numa perspectiva niilista, como querem alguns críticos e sim numa abordagem
afirmativa da vida cósmica. Melhor dizendo, o Zen propõe uma prática capaz de livrar a
mente de concepções tais como “a neve é branca e o corvo é negro”, (Suzuki, 1969 p.
43) pois acredita que “se quisermos alcançar a verdade das coisas temos de vê-las de um
ponto de vista ainda não criado neste mundo” (idem)
Assim, o vazio proposto como perspectiva pelo Zen diz respeito a uma
ênfase no movimento cósmico, por assim dizer, em detrimento da cultura humana de
pilhagem do mundo, ou do chamado antropocentrismo.
No âmbito do Zen, portanto, para que um indivíduo possa atingir tal
compreensão necessita adentrar em estado de profunda introspecção, possível de ser
conseguido mediante decisão deliberada. Uma vez que penetre em tal estado, o
indivíduo poderá penetrar nos mistérios da vida e compreender a verdade do Zen pela
adoção de um novo ponto de vista, conhecido como Satori. Portanto, o objetivo da
85
disciplina desta vertente do budismo Mahayana “consiste na aquisição deste novo ponto
de vista para olhar a essência das coisas” (Suzuki op. cit. p. 112).
3.2.11 – SATORI, KOAN E A PRÁTICA DO ZAZEN
O Satori é um estado mental transcendente, que conduz à Iluminação e que,
segundo Suzuki (idem), necessita de amadurecimento por meio do exercício de Zazen,
auxiliado pela prática do Koan.
Antes de prosseguirmos, é necessário compreender que a palavra zen
aparece como uma abreviação de zazen. Esta é, por sua vez, uma tradução do termo
sânscrito Dhyana, que significa “manter o pensamento unido em um ponto, não o
deixando peregrinar para longe do seu caminho” (Suzuki op. cit, p.125). Em outras
palavras Dhyana significa meditação. Assim podemos afirmar que o Zen aparece
seguindo uma das três raízes do budismo Mahayana, ou seja Dhyana (contemplação),
sendo os demais ramos Sila (preceitos morais), e Prajna (sabedoria).
Mas até neste ponto o Zen se apresenta como um iconoclasma, na medida
em que o Zazen proposto por ele não guarda semelhanças com a prática da meditação
(Dhyana), conforme é levada em outras religiões. Praticar Zazen é, a rigor, meditar
sobre um Koan e não sobre conceitos ou imagens simbólicas como é o caso de Dhyana.
Voltando à questão do Satori e sua relação com a prática do Zazen e do
Koan aspectos centrais da disciplina Zen - acreditamos ser mais produtivo lançar mão
de um exemplo, a fim de torná-lo mais claro. Para tanto podemos levar em conta o
mesmo caso acima aludido a respeito do encontro entre o samurai e o mestre Dogén.
Nele temos um perfeito exemplo do que vem a ser um Koan, que ali uma verdade do
Zen é transmitida ao samurai, não por meio de uma escritura, mas através de uma
experiência direta.
O efeito Koan daquela situação aparece na maneira com que o mestre
responde ao samurai. Isto é, em vez de uma digressão sobre a constituição simbólica de
inferno e dos demônios, o mestre faz o aprendiz observá-los operando por si mesmos no
âmbito da mente. Sendo assim evita o trabalho de tecer considerações conceituais, tão
distantes de uma realidade, quanto os próprios simbolismos que pretende deitar por
terra. Dessa forma podemos observar a maneira como a disciplina Zen busca mostrar
86
aos seus discípulos praticantes, o quanto noções tais como as de inferno, demônios, ou
quaisquer outras, são meras representações.
A tarefa do samurai, caso quisesse debelar toda e qualquer confusão mental
seria praticar Zazen sobre o ocorrido, de preferência num lugar tranqüilo, onde nada, a
não ser um canto de pássaro, ou o murmúrio de um arroio pudesse se interpor ao
pensamento. Com isto teria condições de experimentar a vida despida e vazia de
entraves reativos, de natureza simbólica ou conceitual.
A partir deste ponto acreditamos ser possível observarmos que, em última
instância, a pretensão do Zen é despertar a mente do praticante para um estado
predominantemente intuitivo, através do qual o mundo é visto para além das
representações e artificialismos. É este ponto de vista que é denominado de Satori.
Sendo assim é possível percebermos que a disciplina Zen enfatiza as relações do
homem com o mundo por um processo intuitivo, podendo por isto ser considerado não
apenas como uma religião, mas também como uma epistemologia.
É importante ressaltar ainda que a percepção intuitiva, ou uma mente em
estado de Satori é também o que marca a visão de mundo daqueles homens
considerados como santos, ou grandes gênios das ciências. E para que estas observações
não pareçam de todo absurdas, que nos seja permitido lançar mão do que Nukariya
(2006) comenta a respeito. Após asseverar que as grandes personalidades, sejam poetas,
cientistas, religiosos ou filósofos não são meros leitores de livros, mas leitores da
natureza, o referido autor comenta:
os gênios lêem nas entrelinhas das páginas da vida. Kant, uma pessoa não
excessivamente erudita, inventou na teoria do conhecimento o mesmo que
Copérnico descobriu na astronomia. Newton descobriu a lei da gravidade
não nas páginas escritas, mas ao ver cair uma maçã de uma árvore. Jesus, um
iletrado, alcançou a verdade que estava além de muitas pessoas doutas.
Charles Darwin, cuja teoria mudou por completo a corrente de pensamento
do mundo, não era um assíduo leitor de livros. Shakespeare, o mais excelso
dos poetas, foi o melhor leitor da natureza e da vida. Podia escutar a música
inclusive em corpos celestes”. (Nukariya op. cit. p. 50)
Diante de tudo que acabamos de ver podemos asseverar que a percepção
intuitiva da mente em estado de Satori, é seguramente a tônica, não apenas do Zen, mas
da mística oriental como um todo que, por sua vez influenciou fortemente a cultura do
Extremo Oriente.
87
3.2.12 O BUDISMO ZEN E A CULTURA DO EXTREMO ORIENTE
Após termos passado em revista a trajetória do Buda, bem como termos
observado seus desdobramentos, cabe ressaltar que o budismo não redunda numa
religião teísta uma vez que a Iluminação vivenciada pelo Buda Histórico não é atribuída
à graça de um suposto deus, mas a uma conquista da mente daquele que se dedica a
buscá-la. Sendo assim, podemos afirmar de acordo com Watts (op. cit) que o budismo
não é uma religião como a cristã, voltada para as grandes massas, isto porque a
sabedoria que encerra não é considerada como algo que pode ser referido
“indiscriminadamente a todos, mas como um direito conquistado pelos poucos que se
mostrarem capazes de compreendê-la e aplicá-la na forma correta” (Watts, op. cit. p
103).
Esta é a razão pela qual, muitos críticos se ocupam em acusar as tradições
espirituais do oriente de egoístas, imputando-lhes a falsa idéia de ocultarem das grandes
massas a sabedoria amealhada ao longo de milhares de anos. Ocorre que o segredo e
zelo dos místicos orientais é devido ao imenso “respeito e reverência” que os adeptos
dos misticismos orientais têm em relação a sabedoria de seus grandes mestres o que,
segundo Watts não é usual em termos ocidentais.
Para qualquer adepto do budismo, ou taoísmo, por exemplo, a sabedoria é
tida como um enorme tesouro, que deve ser guardado e cuidado, devendo ser revelado
apenas para aqueles que se vêm dispostos a fazer sacrifícios, inclusive do próprio ego.
Em relação a isto, Watts (2008) se refere da seguinte forma:
“A fim de obtê-la (a sabedoria) o homem tem de sacrificar tudo o que possui;
tem de estar disposto a ir até o limite para mostrar que realmente deseja
aprender e fazer bom uso desse conhecimento; em resumotem de provar que
valoriza a sabedoria acima de todas as outras coisas, que a considera como
uma verdade sagrada que nunca deverá ser usada para fins inconfessáveis”
(Watts, op. cit.p. 105)
Assim os efeitos do Zen e do budismo em geral não podem ser buscados na
vida das grandes massas, mas no trabalho e na ação de determinados indivíduos ou
grupo de pessoas tais como artistas, “samurais e classes guerreiras do Japão feudal”
(Watts, op.cit. p 106). Além disso, os frutos do Zen no Extremo Oriente, como um todo,
podem ser visto na conduta e no trabalho de uma centena de personalidades que dentre
88
outras coisas são responsáveis por conquistas artísticas de enorme valor, sem falarmos
nas técnicas cavalheirescas de insuperável maestria e de sólido alicerce. Nas palavras de
Watts:
“Enquanto muitos deles foram artistas ou guerreiros de incrível coragem, suas
qualidades eram como o próprio Zen, inconfundíveis, mas completamente
indefiníveis” (Watts: op cit. p. 106)
A partir daí podemos falar numa espécie de ética dos adeptos do Zen que
consiste em não dispersar palavras ou evitar todas as formas de pedantismo, o que os
leva a sempre falarem direto, sem abstrações ou simbolismos vãos, na tentativa de
tocarem profundamente o coração de quem quer que a ele se dirija. Podemos afirmar
então que toda a arte influenciada pelo Zen, seja ela cavalheiresca ou mesmo literária,
bem como na pintura é impregnada de um superior idealismo bem como de um realismo
inflexível.
Watts também nos afirma que o “Extremo Oriente foi influenciado pelo
Zen em duas direções: na estética e na arte cavalheiresca” (Watts op cit. p.109). Em
termos de estética podemos sentir tal influencia na poesia de Bushô, por exemplo, na
cerimônia do chá, na arte paisagística e na jardinagem, bem como no trabalho de
pintores tais como Sung, Sumiye e kano. Nesta técnica a vida é mostrada pelo artista
não pela criação de um ponto de vista “narrativo” mas como se corresse livremente sem
julgamentos ou efeitos morais daí a ausência de ação no sentido aristotélico. Por outro
lado podemos averiguar a influência do Zen chegar também à arquitetura japonesa.
Foi também sob a influência do Zen que nasceram o jiu-jitsu e uma técnica
de esgrima conhecida como kenjutsu, bem como os rígidos códigos cavalheirescos dos
samurais como o bushido. Como afirma Watts:
“o paradoxo do zen é que ele podia combinar a paz do Nirvana com a
intensa atividade da batalha e as tarefas da vida diárias” (Watts op. cit.
p.110)
No que diz respeito aos lideres políticos, no âmbito do Oriente feudal, estes
tiveram importante papel na propagação da referida religião, não porque a impuseram
ao povo, mas por terem oferecido aos monges e ascetas condições para a construção de
mosteiros onde fosse possível a prática da introspecção e da vida simples. Neste aspecto
89
o que chama a atenção é a arquitetura e a decoração de tais edificações, via de regra,
“dotadas de frágil estrutura que, de imediato, sugere a impermanência e o vazio de todas
as coisas” (Watts, op. cit. p. 118)
Além disso, Watts também afirma que nos mosteiros Zen foi produzido o
melhor da pintura e da literatura do Oriente feudal. Segundo ele é onde está guardada
a maioria do mais importante tesouro da arte oriental, e se estes não são ostentados e
expostos todos a um tempo é na intenção de que cada um deles seja contemplado no
que tem de mais profundo e revelador da verdade Zen.
A referida produção artística por sua vez, é influenciada pelo espírito do
Zen na medida em que é fortemente marcada pela presença do yugen. Este é um recurso
artístico ou método de composição que permite ao artista “demonstrar uma verdade não
pela descrição, mas apontando para ela a fim de que as pessoas possam ter contato
imediato com a vida” ( Watts op. cit. p 120) em vez de ter dela uma mera descrição. A
referida técnica está presente não apenas na pintura, mas na arte literária.
É também importante frisar que a arte Japonesa se mostra fortemente
influenciada pelos grandes pintores Zen da dinastia Sung, cujos trabalhos também têm a
finalidade de “dar uma sugestão para que cada um veja por si mesmo” (Watts op. cit. p.
114). Ainda segundo Watts a tradição Sung foi importante para a cultura do Japão pois,
ao ser adotada pelas escolas Sumiye e Kano, “estendeu-se da pintura para a arquitetura,
a jardinagem e, especialmente para a estética da cerimônia do chá e para tudo o que se
relacionava com ela” (Watts op. cit. p.115) conforme já declaramos anteriormente
Não é demais asseverarmos que os processos intuitivos, proporcionados
pelas práticas do Zen foram fundamentais para a elaboração da arte do oriente e
certamente influenciaram fortemente a maneira como outros artistas orientais
construíram suas obras. De acordo com o que pretendemos demonstrar, o diretor
japonês Akira Kurosawa parece não ter ignorado a tradição japonesa uma vez que sua
obra parece revelar aspectos importantes da dimensão espiritual do misticismo Zen
budista.
3.2.13 TRONO MANCHADO DE SANGUE OU O “BEM” PELO “MAL”.
O filme Trono Manchado de Sangue, de 1957, é a quarta produção de
Kurosawa e é a transposição para as telas da peça “Macbeth” de William Shakespeare,
90
obra em que o dramaturgo inglês, segundo seus críticos mais balizados faz uma análise
do mal e de sua arquitetura tanto psicológica, como social e até mesmo arquetípica. Por
isso se poderia indagar o porquê de Kurosawa tomar uma peça que tem o mal como
tema para ser base de construção de um filme, cuja moral vem a ser fortemente baseada
nas idéias do Budismo Zen. A resposta para esta indagação pode estar na concepção de
que o mal, para o imaginário do Zen e do budismo em geral é a intervenção humana nos
fenômenos do mundo.
Neste sentido, no referido filme, Kurosawa não se exime de realizar um
julgamento, isto porque inicia a película justamente com uma legenda na qual expõe, de
saída, não apenas um juízo moral, mas também pistas sobre a narrativa, fazendo
alusão aos personagens e ao ambiente no qual a narrativa ocorrerá. Tal escolha formal
confere a seu filme uma nuance trágica, inserindo-o em um horizonte ideológico,
especificamente moral e religioso, além de situar o expectador na trama, fazendo a
referida legenda funcionar como uma espécie de prólogo, que oferece ao expectador,
inclusive, o desfecho da obra.
Assim, ao adentrar no filme o espectador pode entrever o que
inexoravelmente irá ocorrer ao personagem principal Washizu (correspondente a
“Macbeth”), ou seja, a derrota e a morte. A legenda também se encarrega de informar
sobre os motivos da derrota, neste caso, a vulnerabilidade do samurai Washizu frente
aos apelos nocivos de sua esposa, vejamos:
Figura 1: Prólogo
a) “Olhe esse lugar desolado” b) “onde existiu um majestoso castelo”
91
c) “Cujo destino caiu na rede” d) “da luxúria e do poder
e) “onde vivia um guerreiro forte na luta” f) “mas fraco diante de sua mulher”
g) “que o induziu a chegar ao trono” h)“com traição e derramamento de sangue”
92
i) “o caminho mal é o caminho da perdição” j) “e seu rumo nunca muda”
Nas legendas anteriores, além de uma moral aparecer nitidamente
configurada, é possível observarmos uma reflexão de Kurosawa em relação aos
preceitos da Samgha (fraternidade budista). De acordo com tais preceitos a vida leiga
em família deve buscar o equilíbrio entre o masculino e o feminino, devendo a mulher
saber qual o papel que lhe cabe na vida familiar, independente da profissão que abrace.
Em última instância o que Kurosawa parece querer suscitar com a referida legenda é
que o desequilíbrio entre o masculino e o feminino pode trazer para o casal prejuízos
incomensuráveis o que vai de encontro aos preceitos da vida em família constituídos nas
escrituras da seguinte maneira:
“O relacionamento marido/mulher não foi destinado apenas para o atendimento da mútua
conveniência. Ele tem um significado mais profundo que a mera associação entre dois
corpos físicos numa casa. Marido e mulher devem tirar proveito das intimidades de sua
associação, para ajudarem um ao outro em treinar suas mentes no sagrado ensinamento”
(Bukio Dendo Kiokai, p. 145)
O mais interessante de se observar é que a seqüência de legendas
supracitada é assinada pelo próprio Kurosawa o que reforça a idéia de que seu conteúdo
faz parte dos horizontes ideológicos do próprio artista.
Figura 2: A assinatura de Kurosawa
93
a) Assinatura de Akira Kurosawa
Após a legenda assinada pelo próprio Kurosawa o público é remetido a
imagem de uma paisagem tomada por um denso nevoeiro que, com o tempo, vai se
dissipado e permitindo que o expectador visualize um vale entre duas colinas. Como
que emergindo de um sonho, aos poucos, uma grande angular vai mostrando, ao longe,
o que parece ser uma coluna ou uma espécie de obelisco. A confusão para o expectador
é eliminada quando Kurosawa aproxima a câmera através de cortes sucessivos e logo
após, em um travelling horizontal começa a descrever, da direita para a esquerda, o que
podem ser as ruínas de uma edificação.
Até então, no corpo da película, nenhum credito havia dado conta do
título do filme. Este vai surgir para o espectador justamente na estaca de madeira que
aparece ao fim do travelling descritivo em horizontal. A referida estaca pode ser tanto
um túmulo ou um simples obelisco em memória dos mortos. De qualquer forma aqui
podemos observar que este recurso, de colocar o título do filme num mausoléu, es
apto a fazer operar o choque a que se refere Deleuze, pois podemos ver o castelo
reduzido a nada. É quando Kurosawa realiza um corte e nos mostra pela primeira vez o
título do filme, num travelling vertical. O interessante de se observar é que a montagem
de Kurosawa funciona cumulativamente, ou seja, o diretor vai fornecendo
paulatinamente as informações visuais ao expectador e com isso reforçando o efeito
trágico. O lugar desolado antes mencionado na legenda vai, portanto, sendo mostrado
aos pouco até que, finalmente o expectador chega ao título do filme. Dessa forma, aqui
podemos observar que este recurso, de colocar o título do filme num mausoléu, es
apto a fazer operar o choque a que se refere Deleuze, pois podemos ver o castelo
reduzido a nada. Tal recurso também parece estar coadunado com a estética Yugen,
própria da tradição Zen, a qual consiste em fazer com que o expectador se defronte
94
diretamente com a narrativa que irá vivenciar, tomando-a como um ensinamento. Isto é
reforçado pelo que é dito ainda na legenda, ou seja: veja este lugar desolado”. E não é
à toa que o lugar desolado, referido na legenda, é um obelisco, erguido no centro do
vale onde antes estava erguido o “castelo das teias de aranha”, ou “Kumonosu-jo”, título
original do filme, em japonês. É também curioso observar que o referido título vem
impresso naquela que seria a última pilastra de madeira do castelo, ladeada por cinzas,
névoa, silêncio e esquecimento, e sem sinais recentes da ação humana.
Finalmente não pode deixar de ser interessante observarmos que o
efeito trágico se realiza plenamente quando, depois de mostrar o desolamento do lugar e
a ruína do “Castelo das teias de Aranha”, Kurosawa mais uma vez enche o écran de
brumas para em seguida fazer emergir delas o “Castelo das teias de aranha”, agora forte
e imponente. Com isto se define a opção de Kurosawa pelo efeito trágico, que em
última instância é marcado pela adoção do ponto de vista da morte, assim como ocorre
nas tragédias gregas mais clássicas, haja vista que Édipo Rei é antecedida pela morte de
Laio, Antígona pela morte dos irmãos Etéocles e Polinices e Medéia pela morte do amor
de Jasão em relação a ela. Aqui também, mais uma vez a configuração do choque
deleuziano, na medida em que o expectador sai da morte para a vida num único corte
levando ao noção conceitual do trágico, marcada por um nuance fortemente
moralizante.
É importante remarcar que a opção moralizante, retirada do viés
trágico, não acarreta em demérito para a película. Tal didatismo, portador de uma moral,
está perfeitamente coadunado com um dos pilares do budismo, uma vez que este se
estrutura, conforme destacamos em “Dhyana (contemplação), Prajna (sabedoria) e
Sila (preceitos morais)” (Suzuki, Op. Cit. p. 124).
Figura 3: O título do filme.
a) obelisco com título do filme b) travaling com título do filme I
95
c) travaling com título do filme II d) travaling com título do filme III
e) travaling com título do filme IV f) travaling com título do filme V
3.2.13.1 - O SERMÃO DA FLOR
Na peça “Macbeth”, texto de partida para a realização do filme “Trono
Manchado de Sangue”, William Shakespeare insere o expectador em um universo de
profunda fantasmagoria, reforçado pela introdução da peça a partir do diálogo insólito
das três bruxas que planejam encontrar “Macbeth” a fim de instigar-lhe a imaginação
para o assassinato e a carnificina. Segundo Bloom (2001) em Macbeth” “a bruxaria,
não é capaz de alterar os fatos”, mas de inserir algo da ordem da alucinação de que o
próprio “Macbeth” passa a ser motor e ao mesmo tempo vítima. Mas em Shakespeare as
bruxas são a representação do mal, ou ainda do mundo agnóstico e maledicente dos
alquimistas. em Kurosawa as bruxas são literalmente substituídas por uma entidade,
do sexo feminino, que não tende ao mal, tampouco para o bem, tendendo nitidamente
para o caminho do meio. Tal sugestão ganha reforço quando sua aparição se
juntamente com seu canto, o qual pode ser comparado a qualquer um dos aforismos
encontrados no Cânone Páli. Vejamos:
96
Todos os homens são mortais
Todos os homens são vaidosos
E a vida não é mais que uma cadeia efêmera.
Uma amarra de que os homens tentam se libertar
para demonstrar aos fracos que são os mortais.
Porque a vida é como uma flor que floresce
e logo murcha no túmulo.
A carne, com palavras e atos reflete a luxúria e a avareza dos mortais
E os homens acumulam o pecado
Até chegar ao implacável Juízo,
Quando o orgulho do vencedor não salvará nem o santo nem o
pecador
E a carne sã ao vil abençoará e logo em nada se reduzirá.
O trecho acima, se analisado com mais acuidade pode nos revelar uma
vinculação com os preceitos do budismo em vários pontos. Em primeiro lugar uma
alusão muito direta à transitoriedade ou impermanência da vida, chamado nas escrituras
de Anitya. A rigor tal expressão diz respeito a um ponto fundamental no budismo,
segundo o qual toda existência e fenômenos neste mundo estão em constante mutação e
não permanecem iguais, nem sequer por um instante. Para os budistas do ramo
Mahayanico todas as coisas que vêm a ser no mundo estão fadadas a morrer ou a se
extinguirem. No entanto, como advertem muito precisamente as escrituras, tal ponto de
vista não deve ser interpretado apenas niilistamente, uma vez que para um budista todo
o progresso e toda espécie de reprodução são manifestações de Anitya, ou seja da
impermanência e da constante mudança.
No Filme Trono Manchado de Sangue, através do cântico da feiticeira,
que mais parece um sutra, ou tratado budista, podemos observar que Kurosawa remete o
expectador a outra importante noção ou conceito próprio do budismo Hinayanico.
Estamos nos referindo ao que no budismo é conhecido por Samsara, ou ciclo de
nascimento e morte. Ao afirmar, através de um personagem, que a vida é efêmera,
Kurosawa faz uma alusão bastante significativa ao ciclo de nascimento e morte. Para os
budistas, a não ser que se adquira a perfeita sabedoria através da iluminação, o
indivíduo jamais poderá escapar do Samsara, considerado o ciclo de transmigrações.
Tanto para os Mahayanista como Hinayanistas, os indivíduos que conseguem se livrar
de Samsara são considerados Budas.
97
Em seguida, ainda no texto da feiticeira aludido acima, podemos
perceber uma contundente alusão ao famoso sermão da flor, proferido pelo próprio
Buda histórico. A este episódio Suzuki (1995) se refere da seguinte maneira.
“em uma ocasião Sákyamune se encontrava ante uma congregação de discípulos no
monte do Santo Buite, mas não recorreu a nenhum discurso verbal prolongado para
explicar seu tema, senão simplesmente mostrou um ramo de flores ante a assembléia”
(Suzuki op. cit. p. 82)
Finalizando sua clara alusão ao budismo, Kurosawa remete o
expectador mais uma vez a uma seqüência de texto em que demonstra clara filiação ao
ramo budista dos preceitos morais, que como remarcamos é um dos pilares do
budismo, conhecido como Sila.
No entanto o elemento textual é apenas, por assim dizer a alusão mais
óbvia ao budismo que podemos encontrar na seqüência referida. No nosso entendimento
o ponto alto da referida seqüência é a composição da feiticeira que manipula uma
espécie de roda de fiar, com dois novelos, e cuja linha que o alimenta não tem um ponto
de partida nem sequer o girar da roda perece ter um fim. A referida composição é uma
clara alusão ao simbolismo budista da Roda de Nascimento e Morte que por sua vez tem
uma estreita relação com a noção de Samsara conceito budista por nós delineada
anteriormente. Esta imagem traz em si só um conceito e de acordo com Deleuze trata-se
de uma imagem que é para si o conceito.
Figura 4 A feiticeira
a) feiticeira entre Washizu e Miki B) plano aproximado da feiticeira
98
d) feiticeira de costas entre Washizu e Miki
Um outro aspecto nos chama atenção em relação à figura 3 c) que
corresponde ao fotograma 17’’59’’’. Estamos nos referindo ao fato de que no trecho
citado a feiticeira aparece de costas para a câmera, ou seja, não é o ponto de vista dos
personagens que é reforçado por Kurosawa. De forma magistral o diretor coloca a
câmera de modo que o ponto de vista seja o do próprio espectador, o que por sua vez
corrobora o que vimos defendendo, quando afirmamos que Kurosawa parece imbuído
da intenção de utilizar, na construção de seu filme, a técnica do Yugen por nós definida
de acordo com Watts (2008) no início do presente capítulo. A referida técnica, por sua
vez, conforme remarcamos, consiste em construir a cena como se o autor apontasse o
dedo para ela. O mesmo acontece também no fotograma que corresponde à figura 3 a).
Na seqüência seguinte, após o desaparecimento da feiticeira, Kurosawa
irá reforçar ainda mais a construção da atmosfera fantasmagórica bem como reiterar o
que parece ser a sua intenção de conduzir o filme pelo ponto de vista da morte. Isto
porque montanhas de esqueletos invadem a tela fazendo com que os personagens
Washizu e Miki fiquem cada vez mais confusos e enredados na dúvida. A partir daí
Kurosawa vai reforçar sempre mais o clima fúnebre, o qual irá dominar todas as
seqüências seguintes. Aqui, mais uma vez um choque que sugere suscitar o ponto de
vista da morte é flagrantemente usado pelo diretor, o que demonstra que o projeto
cinematográfico de Kurosawa está em profunda congruência com o dos pioneiros da
imagem-movimento. A impressão que fica para o expectador é que se trata de um filme
de extrema densidade e insuspeitada fantasmagoria
Figura 5: Os samurais e os esqueletos
99
a) Washizu e Miki entre os esqueletos b) A montanha dos esqueletos
Após tais imagens, até certo ponto aterradoras, Kurosawa, reforçando ainda
mais a atmosfera densa das primeiras seqüências, cria outra que dura por volta de três
minutos (de 19’’.51’’’ a 22’’32’’’). Na referida seqüência os samurais buscam encontrar
o caminho que os conduza ao “Castelo das teias de Aranha”. A atmosfera fúnebre é
reforçada por uma música executada apenas por violoncelos em escalas baixas, a qual
evolui, criando para a seqüência uma tensão digna de um filme de suspense. Tudo isto é
reforçado pelas brumas que envolvem os dois samurais perdidos no descampado em
busca de um ponto fixo. Além de criar um efeito flagrante de tensão, a seqüência dos
samurais perdidos em busca do caminho sugere estar em congruência com a tentava de
estabelecer uma seqüência que vai do conceito em retorno a imagem, o que faz com que
a referida seqüência esteja apta a sugerir falas endereçadas não à formação de conceitos,
mas de imagens que falam tão somente ao inconsciente do público.
Figura 6: Samurais perdidos em busca do castelo
a) b)
Ao fim da seqüência, Kurosawa alivia a tensão, uma vez que os dois
samurais finalmente encontram o caminho e se sentam para meditar sobre a visão da
100
feiticeira. Neste ponto o diretor realiza, por meio de uma simples tomada, uma
magnífica reflexão sobre a vaidade, outra “chaga moral” hostil ao misticismo budista.
Aqui podemos entrever o que parecem ser as sugestões de Kurosawa em inscrever a sua
obra na perspectiva da criação de um posicionamento eticamente contrario a vaidade
humana. O interessante de se perceber é que a opção de Kurosawa não é de realizar tal
feito pelo caminho mais óbvio, mas sim por um recurso que permite ao espectador
entrever suas intenções apenas obtusamente (no sentido barthiano do termo).
Figura 7- A reflexão do samurais
a) os samurais refletindo
A sugestão a que nos referimos pode ser vista no fotograma
correspondente à figura 6 a), no qual a câmera é colocada de modo a focar os dois
samurais, tendo como pano de fundo o “Castelo das teias de Aranha” acima de suas
cabeças. A sugestão obtusamente oferecida ao público é de que, embora os samurais
façam galhofa da visão que acabaram de presenciar, têm suas ambições pelo castelo
como algo que ocorre no silêncio de suas consciências. Tal imagem es em perfeita
consonância com as palavras da feiticeira, quando esta diz, no trecho 16’’50’’’ a 17’’, o
seguinte:
“Feiticeira: Mortais, vosso comportamento é muito desconcertante.
Desejais uma coisa, mas se comportais como se não quisésseis”.
Em seguida Kurosawa retoma o tom grave delineado no começo do
filme e realiza um corte para a cerimônia na qual Washizu e Miki irão receber o prêmio
101
por terem vencido a batalha, premiação esta que é correspondente às profecias da
feiticeira. A seqüência é finalizada numa reticência tendo como som de fundo a
percussão de tambores remetendo o espectador às pulsações do coração. Logo em
seguida, como que realizando uma verdadeira antítese, e mais uma vez o choque,
Kurosawa remete o espectador para a imagem de um enorme campo de arroz, banhado
pela clara luz de uma manhã ensolarada. O contraponto é dado também pela música
agora suave e doce. Assim, tanto a imagem como a música reforçam a antítese ao tom
grave que até o momento vinha sendo construído no filme. Tal recurso não pode deixar
de nos lembrar aquilo que no âmbito da disciplina Zen é chamado de Koan, uma vez
que a suavidade da nova seqüência, em contraponto à gravidade das imagens anteriores,
sugerem ao espectador uma vida livre de conflitos e plenamente realizada. Portanto o
pensamento que o filme Trono Manchado de Sangue sugere, enquanto um autômato
espiritual, é de que a vida livre de conflitos pode eventualmente ser mais compensadora
que uma vida mergulhada na guerra e nas batalhas por conquistas de domínios.
Uma remissão à vida livre de conflitos, um dos ideais mais profícuos
da disciplina Zen, é um fala” de Kurosawa, que no filme é veiculada por algumas
seqüências intercaladas entre as seqüências de ação, o que lembra fortemente o coro no
contexto da tragédia grega. Este paralelo com o coro grego é perfeitamente possível
uma vez que as referida seqüências não colaboram para a progressão dramática, mas
têm a função apenas de ser um comentário distanciado da ação. Como é o caso, por
exemplo, da inserção da seqüência em que os empregados comentam sobre a vida
tranqüila na mansão do norte, em contraposição à vida atribulada do forte e dos campos
de batalha. Vejamos:
Figura 8: O ponto de vista dos subalternos
a) os empregados conversam b) idem
102
c) idem d) idem
e) idem f) idem
A inserção da opinião dos empregados do forte, que desconhecem as
preocupações dos seus senhores, é um indício muito significativo das sugestões de
Kurosawa em apontar para uma concepção de mal” em contraposição ao que seria o
“bem”. Em outras palavras, o mal” no filme “Trono Manchado de Sangue” é tomado
como sendo proveniente da ambição, e o bem, da visão tranqüila e até ingênua dos
empregados do forte. Este mesmo jogo entre o “bem” e o “mal” é explorado em toda a
película, mudando apenas a situação, bem como os motivos da reflexão.
Portanto, de um modo geral podemos afirmar que a congruência das
idéias veiculadas no filme com as idéias próprias do imaginário Zen Budista estão
veiculadas em função do modelo narrativo escolhido por Kurosawa. Este modelo é
notadamente influenciado pelo paradigma narrativo da tragédia grega e podemos
inclusive afirmar que, aos transpor a peça “Macbeth” para as telas, o diretor Japonês
Akira Kurosawa promove uma tragicização da narrativa shakepereana, a fim de tornar
mais claros os elementos moralizantes do texto de partida, os quais não são tão
evidentes como no filme.
103
3.2.14 SONHOS OU A INVESTIGAÇÃO SOBRE “SATORI” E A
“LUMINAÇÃO”.
O Zen Budismo se diferencia das demais correntes do budismo
Mahayanico por ter como norteadores determinados conceitos que, em nenhuma outra
corrente se pode encontrar. Por exemplo, apenas no Zen é que podemos encontrar a
noção de Satori, tanto é assim que, para os Zen budistas, sem Satori não Zen. O
Satori por sua vez é a adoção de um novo ponto de vista sobre a vida, o qual implica no
abandono das demais posturas e opiniões acerca da existência, baseadas em
conceituações dualistas e simbolismos arraigados na vida cultural, seja de uma família
seja de uma nação. O termo também pode ser usado com o mesmo valor de Iluminação,
mas isto apenas no âmbito do Zen
Em termos da filmografia de Akira Kurosawa, uma investigação sobre
tal ponto de vista é muito flagrantemente observada em um de seus mais contundentes e
importantes filmes intitulado Sonhos o qual é composto de oito episódios independentes
entre si, mas interligados, segundo observaremos, pela temática e pela ocorrência de um
personagem masculino, representação simbólica do próprio Kurosawa.
No primeiro “sonho” vemos um garoto que sai de casa, à revelia dos
apelos da mãe, a fim de observar o céu se encontrando com a terra através da chuva com
sol. Portanto esta, que é a primeira seqüência do filme, faz uma alusão ao abandono das
idéias de vida em família e das convenções sobre a existência baseadas no amor filial.
Por meio da referida seqüência Kurosawa parece reafirmar a idéia de que todo indivíduo
pode observar a vida de acordo com um novo ponto de vista capaz de libertá-lo de
antigas idéias arraigadas e assim sair da infância da vida, o que por sua vez é a própria
definição de Satori.
Sem nenhum esforço, de saída, podemos encontrar uma congruência
entre o primeiro “sonho” do filme que traz como tema a desobediência de um menino
em relação às advertências da mãe com o abandono da casa paterna pelo Buda
Histórico Sidhartha Gotama. A seqüência referida representa simbolicamente o galgar
inicial de um indivíduo que busca ver o mundo com seus próprios olhos, em outras
palavras, representa o abandono de uma mente infantil, habituada a convencionalismos,
para a adoção de uma outra, mais autônoma e que observa a vida no seu desenrolar, sem
104
o auxílio do anteparo dos simbolismos. Ao fazer isso, Kurosawa não penas estabelece
uma alusão ao abandono de convencionalismos, mas se considerarmos o caráter
performativo da linguagem, Kurosawa está agindo no sentido de abandonar antigos
convencionalismo. Quem sabe os de natureza narrativa,uma vez que o filme Sonhos,
nem longe intenta fazer uma remissão às narrativas cássicas.
Desta maneira, além de representar simbolicamente o despertar para o
Satori, Kurosawa fornece as pistas narrativas para que o expectador possa penetrar no
referido filme o qual, por sua vez é destituído de uma trama com intrigas, como ocorre
em outros filmes, inclusive no já aludido Trono Manchado de Sangue. A referida opção,
por compor um filme que não esteja baseado do paradigma aristotélico de causa e efeito
nos revela a intenção de que, através dele, Kurosawa sugere refletir sobre a
construção de um novo ponto de vista e de uma particular visão de mundo. Portanto, no
filme Sonhos a narrativa clássica é substituída pela construção de quadros autônomos
que têm em comum apenas o herói, o qual, a partir do terceiro “sonho” é desempenhado
pelo mesmo ator.
Figura 9: A advertência da mãe
a) “Você vai ficar na chuva!” B) “As raposas se casam com o tempo assim”
Segundo Suzuki (1969) o despertar da mente de um indivíduo para o
Satori é uma experiência irrevogável. Isto a rigor significa que uma vez conquistado, o
indivíduo tende a amadurecê-lo, mas nunca a retroceder para estágios mentais
habituados a simbolismos e ao próprio ego. Por este motivo, ainda no primeiro “sonho”,
quando o garoto retorna a sua casa após ver o acasalamento simbólico das raposas, a
mãe lhe entrega um punhal, afirmando que, após um indivíduo ter passado pela
105
experiência de ver a vida sendo gerada, deve se matar (uma simbologia para a extinção
do ego) ou buscar o perdão da natureza e das raposas que moram no fim do arco-íris.
Figura 10: A mãe entrega o punhal deixado pelas raposas
a) o menino recebe o punhal
Todo este simbolismo sugere uma reflexão sobre o abalo significante
que sofre o ego com a adoção do Satori. O primeiro sonho” então é finalizado de
maneira reticente, mas sublime, com o menino (representação simbólica de Kurosawa)
buscando o arco-íris e por sua vez o perdão da natureza, mas sem poder entrar em casa
novamente ou, simbolicamente falando, sem poder retornar ao estado inicial. Mesmo
assim o primeirosonho” ainda é composto com a utilização de muitas cores e de uma
atmosfera de alegre e sublime tranqüilidade. No entanto a noção de Satori, que
afirmamos aparecer no primeiro sonho é estabelecido sem que grande choques ou
oposições sejam estabelecidos. O movimento inicial do filme se dá, sobretudo de forma
ainda obscura, na medida em que o espectador comum está adentrando num universo
nada acessível para aqueles que desconheçam algo sobre as noções do Zen. |Para tais
espectadores portanto o que salta aos olhos são imagens que remetem a um mundo
inconsciente, e que num primeiro momento carecem de uma logicidade bem demarcada.
No segundo “sonho” podemos observar uma progressão do primeiro
que o personagem principal é vivido por um ator mais crescido e de olhar mais arguto,
embora ainda uma criança. Nesse segundo “sonho” o garoto não es envolto em
confusões com a mãe, nem desobedece a nenhuma imposição paterna, mas ao entrar no
quarto das irmãs consegue ver em suas bonecas a representação dos espíritos da
natureza. Na cena, ao entrar no quarto e observar as bonecas dispostas nas prateleiras, o
garoto se dirige a irmã afirmando sentir falta de uma outra menina que, segundo ele,
estaria no quarto. A irmã, zangada, diz não haver nenhuma garota, mas o menino (talvez
106
por estar desperto para o Satori) consegue ver o espectro de uma garota no canto da sala
e mesmo que tente mostrá-lo para a irmã esta não consegue visualizar nada além de um
vaso onde está plantado um pessegueiro. É neste momento que o espectro corre em
direção à floresta atraindo o garoto.
Outra vez, a exemplo do primeiro “sonho”, o herói mirim é levado a
penetrar numa densa floresta, perseguindo algo que lhe atiça a curiosidade. Desta vez é
o espectro de uma garota, não visto pelos demais personagens, o que evidencia a
sugestão de Kurosawa em conferir ao herói mirim a capacidade de ver além das
evidências pela adoção do chamado Satori. Neste caso, por parte do expectador,
nenhuma exigência é feita quanto à verossimilhança uma vez que nos é informado,
desde o título, que se trata da representação de um sonho.
Numa evidência de que o garoto do segundo “sonho” é uma
continuação do garoto apresentado no primeiro, Kurosawa o coloca em diálogo com os
espíritos da natureza os quais se dirigem ao menino para reclamar, não das atitudes dele,
mas de seus parentes, que trataram de ceifar todos os pessegueiros do pomar. Outra
evidência de que o menino mostrado na referida seqüência representa um herói cuja
mente atingiu o estado de Satori é o fato de este ser merecedor da dança dos espíritos e
também porque o próprio garoto afirma ter amado os pessegueiros e ter tentado impedir
que eles fossem cortados. Com isso, Kurosawa mostra ao público um garoto em perfeita
união com os espíritos da natureza, logo em estado de Satori. Aqui fica já sugerido uma
espécie de posicionamento do diretor a favor da preservação da natureza em seu estado
primitivo, o que é um posicionamento próprio do Zen budismo.
Figura 11: A dança do espíritos da natureza
a) os espíritos debatem entre si sobre o garoto b) idem
107
b) idem
Outra evidência de que através do personagem do garoto Kurosawa faz
uma alusão ao estado de Satori pode ser averiguada quando este se impõe frente aos
espíritos, interrompendo sua gargalhada, e afirmando ter chorado pelos pessegueiros e
não pelos pêssegos, uma vez que estes podem ser comprados, enquanto que um pomar
inteiro não.
Figura 12- O menino
a) o garoto mostra sua sabedoria b) idem
Assim, o segundo sonho é finalizado, com a mesma reticência do
primeiro, numa alusão de que o herói não sabe o que fazer com sua nova percepção do
mundo. É importante ressaltar que ainda no segundo sonho Kurosawa usa
abundantemente das cores numa sugestão de que o estado de Satori inicial ainda é
atravessado por fantasias e ilusões simbólicas.
Figura 13: A reticência do Satori
108
a) o menino com olhar reticente b) idem
O terceiro “sonho” de Kurosawa, de saída, marca um contraponto
visual, um choque, em relação aos dois primeiros, isto porque enche a tela de tons
monótonos de cinza, em contraste ao colorido dos sonhos anteriores. A sonoplastia da
cena por sua vez é dada apenas pelo tilintar das ferragens que os personagens (quatro ao
todo) carregam, bem como por suas respirações difíceis e ofegantes. Em cena, portanto,
Kurosawa nos mostra quatro homens enfrentando as dificuldades de uma terrível
nevasca, estando eles quase imóveis em função do volume exacerbado de neve que se
acumula. Os personagens estão vestidos em pesadas roupas de alpinistas e cobertos de
neve. Seus rostos estão igualmente barbados e encobertos por uma espécie de fuligem, e
a idéia inicial do sonho é de estagnação. Esta, portanto é a primeira grande sugestão de
Kurosawa em relação às conseqüências do estado inicial de Satori, isto porque os
personagens (assim como um iniciado no Zen) encontram eventualmente enorme
dificuldade para a aquisição do estado de libertação espiritual completo, o que pode se
confundir com um estado de estagnação. Podemos então afirmar que com o terceiro
“sonho” Kurosawa sugere uma reflexão sobre um eventual estado de estagnação no
caminho espiritual, mesmo depois da aquisição do Satori.
Outro ponto em relação à construção imagética da cena a ser colocado
em relevo é o fato de o diretor construí-la pondo em cena os quatro personagens ligados
uns aos outros pela mesma corda, numa alusão muito clara à noção de Karma. No
entanto este é um ponto que, no referido “sonho” adquire relevância menor. Aqui o que
de fato parece es sendo veiculado para o público é uma representação simbólica da
estagnação.
Figura 14: Os alpinistas na nevasca..
109
A) os alpinistas atados pela mesma corda
Um outro ponto bastante sugestivo para a cena é o fato de os
personagens não serem portadores de uma identidade definida, uma vez que não
distinção entre os alpinistas, assim como não havia distinção entre o Buda Gotama,
antes da iluminação, em relação aos demais ascetas com quem ele partilhava a solidão
do bosque. A única distinção que pode ser estabelecida entre os quatros personagens é o
fato de estarem enquadrados numa espécie de fila indiana, sendo o primeiro da fila o
líder da expedição.
Um outro fator importante para a cena, e que nos abre ainda mais a
percepção de que o diretor sugere, pelo choque com as imagens do sonho anterior,
refletir sobre a estagnação no correr do caminho espiritual, é sua parte verbal.
Diferentemente dos “sonhos” anteriores, no terceiro a parte verbal é um referencial
bastante preciso, sendo de extrema relevância para a construção do sentido pretendido.
Se não vejamos:
Personagem 2: Estamos no rumo certo?
(...)
Personagem 1: Claro que estamos. Logo vamos sair deste desfiladeiro.
Nosso acampamento não está longe. Logo chegaremos.
(...)
Personagem 2: estou farto.
Personagem 1: Como? Levantem-se. De pé e andem. Somos homens
das montanhas. Não podemos permitir que a nevasca nos derrote.
110
(...)
Personagem 1: Não adormeçam, se adormecerem vão morrer.
Acordem, fiquem acordados, acordem. Não durmam, acordem,
Acordem.
Como podemos observar um dos personagens, notadamente aquele que
parece mais aguerrido na caminhada, e que sempre ocupa a posição frontal no
enquadramento, chama os outros, solicitando que os demais não desistam de caminhar,
apesar das dificuldades. Tais palavras no contexto em que são colocadas passam a soar
conotativamente como se o referente não fosse a nevasca em si, mas o próprio caminho
(espiritual, talvez) ou quem sabe até a vida como um todo.
Finalmente, nem o próprio personagem que personifica a liderança
suporta a violência da nevasca e sucumbe à estagnação. É quando o nevoeiro se dissipa
e a câmera fecha um close em seu rosto. Com isso Kurosawa parece querer nos remeter
à vitória da estagnação. Em cena aparecem as mãos de uma fada supostamente
benevolente, cujo rosto é ocultado do expectador. A referida aparição cobre o
personagem do líder com um manto prateado numa alusão ao conforto da estagnação.
No entanto os afagos da fada, em relação ao personagem vão aos poucos se
transformando em um ato de sufocamento, o que é sublinhado pela música que vai
adquirindo um tom mais grave. Com isto Kurosawa parece querer sugerir que a
estagnação provoca a morte do estado de Satori. Mas assim como um herói exemplar ou
o próprio Buda o personagem desperta a tempo, afugenta a aparição e, quase ato
contínuo, visualiza o acampamento que é amarelo como os mantos dos monges budistas
e tem uma bandeira a tremular cuja cor é de um vermelho vivo. A cena é então
subitamente iluminada, numa primeira alusão ao estado de Iluminação budista que
surge após a superação de um estado de estagnação. Neste momento os personagens
acordam e o sonho finda com a mesma reticência com que findaram os outros. É
importante apenas ressaltar que ao fim do terceiro sonho as cores voltam a aparecer
numa alusão de que a Iluminação pode trazer colorido a quem a encontra. Cabe ainda
reconhecermos que, de todos os anteriores este é o primeiro que nos fornece uma
sucessão de choques e antíteses sempre constante, no interior do próprio sonho o que
111
nos lembra aquilo que Deleuze declara quando diz que as imagens podem operar
choques das imagens entre si partindo de um mesmo núcleo.
No quarto “sonho” a temática abordada é a do retorno, quase em
contradição com a impossibilidade da volta, que fica muito clara no primeiro sonho.
Mas aqui o retorno tem outra significação, pois a estagnação foi vencida, como fica
claro no terceiro “sonho” e o caminho da realização espiritual, paradoxalmente é o
caminho de volta. Suzuki(1969) se refere ao retorno da seguinte maneira:
“Todas as causas, todas as condições do Satori se acham presentes na mente. Elas
esperam apenas a maturação. Quando a mente está pronta, por uma razão ou outra,
um pássaro voa, uma campainha toca, e retornarás a tua casa primitiva. Isto é,
reencontrarás o teu ser real” (Suzuki op. cit. 117)
Assim, no quarto sonho” Kurosawa nos mostra um capitão que, após
a batalha, retorna a sua casa tranqüilo e confiante. No entanto ao chegar em determinado
ponto da estrada o capitão se diante de um túnel escuro e longo. Ao chegar diante
dele o capitão pára incerto de, se irá ou não atravessá-lo. É quando ouvimos o grunhido
de um estranho cão que sai do túnel e impele ferozmente o capitão a cruzá-lo. Temeroso
de que o bizarro cão lhe ataque, o capitão adentra no túnel e os espectadores
acompanham seus passos, agora já firmes e destemidos.
Figura 15: O Túnel
a) o capitão antes de cruzar o tínel b) a escuridão do túnel I
112
c) a escuridão do túnel II d) o bizarro cão que impele ao túnel
e) a luz no fim do túnel
Ao final da seqüência em que o capitão cruza o túnel vemos que
Kurosawa explicitamente cita, pela segunda vez, o tema da Iluminação. A primeira
citação foi ainda tímida, ao final do sonho” sobre a estagnação, mas agora, na
seqüência do túnel, a Iluminação é uma citação absolutamente explicita, e em nossa
impressão só não pode ser depreendida por um expectador que desconheça o imaginário
do Zen, ou que não saiba algo sobre o budismo, de um modo geral. Tanto é assim que
nenhum crítico, dentre os que tivemos acesso, reconhece que Kurosawa reflete sobre
questões relativas à Iluminação, o que parece um contra senso, a julgar pelo que
podemos ver no fotograma que corresponde à figura 12 e), em que uma luz é
representada ao fim do túnel.
Ainda no quarto sonho Kurosawa insere também, e claramente, o tema
do Karma quando mostra o capitão sendo perseguido pelos fantasmas dos soldados de
seu batalhão que foram mortos nas batalhas. Aqui Kurosawa parece enfatizar que no
processo de aquisição do Satori e da Iluminação o contato com os mortos deve ser
esquecido para a plena aquisição de uma mente iluminada. Além disso, o diretor
enfatiza também que a disciplina é o melhor caminho para romper com as cadeias do
Karma. Porém, na presente análise não enfatizaremos as citações de Kurosawa sobre o
Karma uma vez que o tema é bastante específico e exigiria uma explanação mais
aprofundada acerca do que significa o Karma no imaginário do misticismo oriental.
Nossa intenção em chamar atenção sobre este ponto é apenas para podermos chegar à
segunda citação sobre a Iluminação que Kurosawa faz ainda no quarto “sonho”.
A referida citação é feita pelo espectro do soldado que persegue o
capitão. O personagem do soldado parece lamentar por não mais poder ver seus pais e
aponta uma luz que brilha no meio da floresta dizendo que é a sua casa. A palavra
113
casa no contexto da imagem em que é proferida pode adquire outras conotações tais
como origem ou querência. Sendo assim a casa do soldado é a Iluminação e estando
morto já não pode chegar até ela.
Figura 16 : O soldado que clama pela iluminação
a) o soldado olha para sua casa b) o soldado aponta para sua casa
Reafirmando a idéia de que a disciplina é uma das principais maneiras
de romper as cadeias do Karma, após as lamúrias do soldado, Kurosawa nos mostra o
capitão fazendo continência ao espectro, ordenando que ele retorne de onde veio. Diante
disso o espectro do soldado interrompe as lamúrias e retorna, entrando novamente no
túnel e passando a marchar. A próxima seqüência do mesmo quarto “sonho” mostrará
uma repetição da primeira, quando um batalhão inteiro de soldados mortos marcha
perseguindo o capitão. Mais uma vez o capitão ordena que eles voltem e assumam que
morreram. Obedientes os soldados retornam e o capitão se livra de seus fantasmas
podendo seguir caminho em paz. No entanto, assim com os anteriores o quarto sonho
termina reticentemente desta vez com o cão bizarro do início atormentando o capitão.
Esta talvez seja a sugestão de Kurosawa que, para afastar “os fantasmas” o indivíduo
deve permanecer vigilante.
No quinto sonho a temática também está relacionada à tomada de um
novo ponto de vista sobre a vida, porém não sob a forma de Satori. No referido sonho o
que é problematizado por Kurosawa é o ponto de vista do gênio criador, e para tanto
toma a obra do artista plástico Van Gogh como mote de criação. No entanto, como no
referido quinto “sonho” as relações com o conceito de satori são tênues iremos passar
adiante indo retomar a análise da representação do Satori no sexto e no sétimo
“sonhos”. Em ambos o que está sendo sugerido por Kurosawa são os resultados para a
mente humana conseqüentes da aquisição do Satori.
114
Grosso modo podemos dizer que, o que no Zen budismo é chamando
de Satori se confunde com a adoção de uma visão em relação às coisas do mundo
baseada na pura apreensão contemplativa, muito flagrantemente regida pela intuição.
Como assegura Suzuki (1969) “o Satori pode ser definido como um olhar intuitivo no
âmago das coisas, em contraposição à sua compreensão intelectual ou lógica” (p.113).
Daí se explica porque um monge tenha uma percepção puramente contemplativa do
mundo, dando relevo aos fenômenos da natureza como um todo.
No sexto e no sétimo sonhos” Kurosawa, portanto não nos fala de
religião ou de Satori, mas das conseqüências para o mundo da falta de religiosidade ou
de um olhar mais contemplativo. Assim, o que está em pauta nos dois sonhos referidos
são desastres nucleares, degradação da vida humana e natural, bem como fome,
desespero e catástrofes. Neste sentido tanto o sexto como o sétimo “sonhos” podem ser
considerados quase que interligados, de modo que o projeto do diretor de sugerir uma
fala endereçada a uma política de representação, que contemple uma observância dos
destinos do planeta. Em ambos Kurosawa cria um mundo em destruição assumindo uma
mensagem humanitária e até mesmo ecológica algo já presente em filmes anteriores
como “Derzu Urzala” ganhador de Oscar e “O Barba Ruiva” ganhador de prêmio por
melhor filme com mensagem humanitária, no festival de Vallodollid em 1967.
Mas o que vai coroar “Sonhos” como um filme em que os valores
próprios do Zen são representados é o oitavo e último sonho que traz como tema dois
dos principais pilares do budismo, a saber, a Iluminação e o Samsara ou Roda do
Nascimento e da Morte. Neste caso os dois temas estão imbricados e quase não se pode
dizer que estejam representados de maneira separada.
O referido oitavo sonho” inicia com o mesmo ator que desempenhou
o personagem principal nos “sonhos” anteriores, vestido em roupas leves de viajante.
Ele chega a uma aldeia construída às margens de um caudaloso rio. Sonoramente o que
nos chama atenção de inicio é a ênfase que Kurosawa ao canto dos pássaros e ao
murmúrio do rio que corre sereno e lentamente. Este rio movimenta enormes rodas dos
moinhos de água as quais estão presentes em todo o quinto “sonho” numa demonstração
que o diretor não as coloca como mero adorno, mas sim chamando atenção para o
aspecto da circularidade numa alusão clara à Roda de nascimento e morte.
de início também o espectador é remetido a um universo imagético
brando, e até mesmo ingênuo que faz um contraponto com os “sonho” seis e sete, nos
quais vemos seres humanos e flores em processo de metamorfose. Como podemos
115
observar nos fotogramas abaixo, Kurosawa, entre o sétimo e o oitavo “sonho” realiza
um verdadeiro jogo de antíteses, senão vejamos:
Figura 17: Os ogros autofágicos
a) os ogros I(sonho 7) b) Os ogros II (sonho 7)
c) O ogro e o herói d) o herói foge da degradação
Figura 18 A aldeia de moinhos de água
a) a chegada à aldeia c) criança colhendo flores
116
c) o herói percorre a aldeia d) o herói encontra o ancião
Como podemos observar o choque operado principalmente entre o
sétimo “sonho” e o oitavo sugere um pensamento sobre a necessidade de criação de uma
nova postura diante dos destinos do planeta. A primeira parte inteira do oitavo “sonho”
é dedicada a um diálogo entre o herói e um ancião, morador da aldeia que concerta,
durante todo o diálogo, uma roda de moinho de água. O referido diálogo é iniciado pelo
herói que se aproxima do ancião a fim de saber mais a respeito daquele lugar idílico.
Primeiramente o herói pergunta o nome da aldeia ao que o ancião responde tratar-se de
uma aldeia sem nome. Esta é uma outra evidência da influência do pensamento do Zen
budismo no oitavo “sonho”, pois o fato da aldeia não ter nome indica a indiferença de
seus moradores em relação à criação de simbolismos, o que é próprio da disciplina Zen,
a qual, conforme afirmamos anteriormente é avessa a simbolismos e convenções.
Prosseguindo no diálogo o herói procura saber sobre a energia elétrica, ao que o ancião
reponde não haver. Diante de tal resposta o herói volta a perguntar sobre a iluminação.
E aqui se constrói uma espécie de Koan, pois quando se espera uma resposta metafísica
ou poética do ancião este responde simplesmente:
Ancião: temos velas e óleo de linhaça
Prosseguindo no diálogo o herói procura saber como os moradores da
aldeia fazem para debelar a escuridão da noite, ao que o ancião responde que a noite
tem de ser escura, pois do contrário não seria possível ver as estrelas. Importante
ressaltar que enquanto a conversa se desenrola o ancião continua concertando a roda de
moinho de água.
O que nos chama a atenção neste primeiro trecho são as considerações
do ancião sobre a vida, todas elas revestidas de uma simplicidade tão elementar como o
117
pensamento Zen budista, que preconiza a busca da Iluminação não em tratados
metafísicos ou grandes rituais iniciáticos, mas na vida simples e corriqueira do dia-a-
dia, bem como na abolição das conveniências que o homem cria para subjugar a
natureza à seus desejos. Assim, o ancião prossegue falando da necessidade de preservar
florestas e viver do que a natureza oferece. Após a fala do ancião o herói olha para a
uma roda de moinho de água e em seguida para a copa das árvores: é um indicio de que
Kurosawa chama a atenção do público para a reflexão que pretende provocar com o
filme, ou seja, de que o homem precisa voltar o seu olhar para valores tais como a
preservação da vida natural, como forma de evitar as destruições e mutações,
denunciadas nos “sonhos” seis e sete.
Figura 19: Quando o herói reflete
a) O herói olha a roda de moinho de água b) Idem
d) o herói olha as árvores c) idem
Encerrando a primeira parte do oitavo sonho e, como que para
confirmar suas sugestões de provocar uma reflexão sobre os destinos do planeta,
Kurosawa finaliza com um longo e claro discurso ecológico que está coadunado com o
118
pensamento Zen budista, conforme nos atesta os escritos de Watts (2002) quando este
discorre sobre o que chama de ecozen. A fala do ancião é a seguinte:
Ansião: Hoje em dia as pessoas se esquecem de que elas são uma
parte da natureza. Destroem a natureza da qual nossa vida depende.
Acham que sempre podem criar algo melhor, sobretudo os estudiosos.
Eles podem ser inteligentes, mas a maioria não entende o coração da
natureza. Eles criam coisas que acabam tornado as pessoas infelizes.
Mesmo assim, orgulham-se tanto de suas invenções. E, o que é pior, a
maioria das pessoas também se orgulha. Elas vêem como milagres.
Idolatram-nas. Elas não sabem, mas estão perdendo a natureza. As
coisas mais importantes para os seres humanos são ar limpo e água
limpa. As árvores e plantas nos dão isso. Tudo está sendo sujado e
poluído para sempre. Ar sujo, água suja, sujando o coração dos
homens.
Após o discurso ecológico do ancião Kurosawa nos introduz no
segundo e importante tema do último sonho que é a impermanência, simbolizada no
budismo pela Roda de Nascimento e Morte. O assunto é introduzido quando o herói
pergunta por que as crianças depositavam flores numa pedra, fato que ele testemunhou
ao chegar na aldeia. A isto o ancião responde contando que ainda no tempo de seu pai
um viajante ali morrera, tendo virado um costume de todos depositarem flores no local.
Como dissemos, esta é apenas a introdução ao tema da morte. A partir desse instante
Kurosawa irá desenvolver o referido tema de acordo com o pensamento budista.
De início o herói pergunta ao ancião se es havendo uma festa na
aldeia, ao que ele responde tratar-se não de festa, mas do funeral de uma mulher que
morreu de velhice, naturalmente, aos noventa e nove anos. O ancião continua sua fala
afirmando que em vez de tristeza a morte de uma pessoa que viveu tanto tempo é
motivo de alegria, pois se deve lamentar a morte prematura, enquanto que a morte
natural deve ser motivo de festa. Dizendo isso, completa que na aldeia não templos
ou sacerdotes (mais uma alusão ao Zen), ficando a cargo dos próprios moradores a
realização do funeral.
A seqüência do cortejo fúnebre é talvez uma das mais elaboradas de
todo o filme, pois reproduz a idéia de circularidade própria da Roda de Nascimento e
Morte. Kurosawa então tira proveito do curso do rio, postando a mera em um ângulo
que permite o expectador visualizar o rio correndo de fora para dentro do
119
enquadramento, enquanto que o cortejo se de dentro para fora da tela. Nos
fotogramas abaixo podemos verificar esta afirmativa.
Figura 20: O cortejo fúnebre
a) o cortejo contra o curso do rio b) idem
3.2.15 – VIVER – A REPRESENTAÇÃO DA IGONORÂNICA OU AVIDYA.
O filme Viver (Ikiru), realização do ano de 1952 não está na lista
oficial como sendo uma das mais populares realizações de Kurosawa, mas é sem dúvida
uma de seus trabalhos mais importantes do ponto de vista estético e é um dos poucos
em que a questão da crença nas dualidades do “eu” e do mundo exterior (Avidya) é
representado de forma mais contundente. Na referida película, Kurosawa não expõe
diretamente o que é Avidya, tal como esta é desenvolvida em um tratado budista. O
mérito do diretor é o de construir uma narrativa e, com muita perícia técnica, mostrar ao
expectador exemplos de homens vivendo em Avidya, mostrando também as
conseqüências de tal modo de vida para a saúde física e mental dos indivíduos. O filme
conta a história de um homem que, após saber que tem um câncer, esforça-se para dar
um novo sentido à sua vida tentando, depois de uma série de novas descobertas,
contribuir para a construção de um parque de lazer para crianças. A Avidya, doravante
também chamada de ignorância, é representada no filme não somente por imagens, mas
principalmente pela saga de Watanabe, personagem principal que vive mergulhado no
mundo estéreo de uma gigantesca máquina burocrática. Aqui, como em Trono
Manchado de Sangue, Kurosawa filma como que para mostrar as conseqüências do mal,
mas no caso específico de Viver este mal está relacionado às conseqüências de uma vida
120
estagnada pela burocracia das instituições administrativas das grandes cidades,
símbolos, no filme, da ignorância.
É importante remarcar ainda que a alusão de Kurosawa à Avidya não
se restringe a apontar para a burocracia como a única representação da ignorância.
Conforme iremos observar, o diretor também reconhece a ignorância na promiscuidade
da vida noturna, nas mesas de jogos, no turbilhão do trânsito das grandes cidades e na
poluição sonora e visual das metrópoles.
O filme inicia por um prólogo que nos mostra a imagem da radiografia
do estômago do protagonista, apresentada por uma voz em off que, de início, sugere
ao espectador as conseqüências de uma vida na ignorância. Assim como no filme Trono
manchado de Sangue aqui, a referida imagem, seguida do prenúncio de que se trata de
um câncer, do qual o protagonista é vítima e não sabe, dão ao filme uma nuance trágica,
na medida em que o espectador adentra no universo da película tendo conhecimento
de algo sobre o personagem que este mesmo desconhece.
Figura 21 : O estômago de Watanabe
a) o raio x do câncer
Em seguida o expectador é confrontado com a imagem do
protagonista Kenji Watanabe, sentado atrás de um bureau, em torno do qual se avoluma
a soma incalculável de processos com que este lida. Sobre sua mesa uma plaqueta de
identificação em forma de pirâmide que o identifica como o chefe da seção dos
negócios públicos. Ao abrir-se a imagem sobre o protagonista o público pode vê-lo em
plena atividade, a qual consiste em carimbar mecanicamente uma pilha de processos
que sobre a mesa. Em seguida o protagonista olha mecanicamente o relógio, gesto
que repetirá sempre que for mostrado em atividade.
121
O que mais chama atenção na primeira imagem do protagonista, em
sua mesa de trabalho, é o caráter irrisório do corpo do personagem em relação ao
amontoado de papeis e processos a sua volta, que parecem sufocá-lo e diminuí-lo o que,
talvez, seja uma alusão de Kurosawa ao apoucamento do corpo em relação à máquina
burocrática. Se não vejamos:
Figura 22: Watanabe entre os processos
Um outro aspecto inicial da narrativa, que sugere uma alusão à
ignorância, é a maneira como o diretor aproxima o público do personagem principal,
dando informações sobre ele, não apenas pela evidencia do câncer no início do filme,
mas também posteriormente. Assim, o jogo estabelecido entre o filme e o público é de
que o expectador sabe mais sobre o personagem principal e suas vicissitudes, que o
próprio personagem. Aqui podemos afirmar de acordo com Deleuze que a imagem em
si mesmo porta o conceito. Sendo assim, a visão de Watanabe em seu ambiente confere
ao personagem o caráter de sujeito coletivo de sua própria ação, sendo o ambiente que o
circunda a relação objetiva humana. Trata-se, portanto da construção do pensamento-
ação, um dos três recursos dos pioneiros da imagem-movimento a que se refere
Deleuze.
Além de apresentar Watanabe de forma trágica Kurosawa ainda se
encarrega de inserir uma voz em off, cujas palavras reforçam ainda mais a construção de
um filme que tem a ignorância como tema. A referida voz diz o seguinte:
Voz Off: Aqui está nosso personagem. Seria inútil apresentá-lo já.
Além do mais ele está passando o tempo sem viver sua vida. Em outras
palavras, ele não está realmente vivo.
122
Por outro lado não é apenas o personagem principal que es na
referida situação de viver na ignorância. Todos que estão a sua volta, segundo
Kurosawa, são vítima da burocracia que apequena o indivíduo, tornado-o escravo de um
sistema que, em última instância, é tão estagnado quanto os problemas que procura
resolver. Senão, vejamos:
Figura 23: A avalanche burocrática
a) sala de trabalho com Watanabe ao fundo b) sala com Watanabe em primeiro plano
Prosseguindo a narrativa, Kurosawa vai nos mostrar Watanabe na sala
de espera do hospital público para ser atendido por um médico. Lá ele é defrontado com
um outro paciente, de aspecto meio lunático, o qual, assim como a feiticeira em Trono
Manchado de Sangue, prenuncia a Watanabe o futuro, sendo que neste caso não a
opção por elementos oníricos. O referido personagem anônimo antecipa aquilo que o
médico não revelará, ou seja, a verdade, quando dirá apenas que a doença de Watanabe
não passa de uma pequena úlcera, talvez uma alusão de Kurosawa à contenção de
despesas do serviço de saúde japonês da época, que não dispensa dividendos com
alguém cuja morte está anunciada. O que importa ressaltar é que a referida cena
ocorre numa progressão que vai dando ao personagem principal um ar ainda mais
angustiado que no início do filme. Ao entrar no consultório do médico, Watanabe tem
confirmadas, pelo médico, todas as suspeitas levantadas por meio do personagem
anônimo e assim,confirmado seu câncer. Depois deste episódio Watanabe volta para
casa com uma expressão cada vez mais aterradora.
Na seqüência que mostra o personagem principal voltando para casa
vindo do consultório, Kurosawa trata de remeter o público a uma cena em que o
indivíduo é sufocado pela máquina das grandes cidades. Desta vez o som ganha relevo
123
especial na medida em que as imagens de trânsito nas ruas sujas são preenchidas por
buzinas estridentes que sufocam todo e qualquer som humano. Aqui, a julgar por sua
expressão, Watanabe já está em pleno processo de despertar da ignorância. É importante
ressaltar que a passagem súbita da seqüência do consultório para a da rua movimentada
opera um verdadeiro choque portador de um conceito, o que por sua vez encerra o todo
do pensamento inicial que o filme veicula, a saber, a degradação da vida humana em
função da vida mecânica das grandes cidades. Com tal recurso podemos perfeitamente
perceber a sugestão de que a condução do mundo e de seus recursos pelo homem está
levando à uma degeneração da vida natural. Este também é um discurso assumido no
filme sonhos e que está em perfeita congruência com os ideais do Zen, que por sua vez
exalta a vida natural, em detrimento do mundo mecanizado e urbanizado.
Figura 24: Watanabe retorna para casa
a) Watanabe retorna para casa b) Idem
c) Watanabe na confusão da cidade d) Idem
Na seguinte seqüência podemos perceber a sugestão de Kurosawa no sentido
de revelar que o protagonista um passo a mais da ignorância para uma percepção
mais contemplativa, pois vai mostrá-lo diante do oratório onde está guardada a
fotografia de sua falecida esposa. Na referida seqüência podemos afirmar que, pela
124
primeira vez o personagem principal assume o ponto de vista da morte. Em outras
palavras podemos asseverar que na referida seqüência Kurosawa nos mostra o
personagem saindo, de fato, de um estado de completa ignorância para em seguida
inseri-lo em contextos em que, claramente, tenta buscar alguma saída para sua vida, até
então estagnada. Em suma, a seqüência de Watanabe diante do oratório, embora não
marque seu despertas definitivo da ignorância para uma visão mais contemplativa, no
contexto do filme, serve de referência a partir da qual ele começa a evocar algumas
lembranças do passado e com isso passa a não enxergar, mas buscar outras
possibilidades para seu cotidiano, até então não ousadas.
Figura 25: Watanabe diante do oratório
a) Watanabe no oratório b) o retrato da falecida esposa
c) Watanabe contemplando a foto da falecida esposa
A referida seqüência do oratório, como dissemos, marca o início das
evocações do passado e neste ponto Kurosawa constrói um imenso flesh back, recurso
que irá se repetir no filme reiteradas vezes. No caso do primeiro flesh back podemos
perceber que ele serve para fazer contraponto com o momento atual do personagem que
vive, que é envolto em angústia e inquietação. No referido flesh back Watanabe evoca
nãoa apenas o funeral de sua esposa, mas também os anos de vida escolar de seu único
125
filho. Ao vermos o passado alegre de Watanabe em contraste com o seu presente
doloroso podemos perceber mais uma vez a força das oposições para criar um terceiro
conceito, ou a impressão do todo, que neste caso sugere, não apenas o arrependimento
do personagem principal, pela forma como conduziu a sua vida até aqui, mas também
pode sugerir que uma existência mergulhada na ignorância pode acarretar em danos
para a saúde mental e física. Se assim podermos admitir podemos igualmente afirmar
que neste momento do filme uma forte alusão aos ideais do Zen que preconizam um
vida baseada na intuição e na espontaneidade.
Os recursos de retorno ao passado servem também como molas propulsoras
para que Watanabe busque ainda mais uma percepção contemplativa da existência, a
qual é conquistada em cenas do presente do personagem, mas em função dos referidos
flesh Backs. Importa ressaltarmos ainda que após a seqüência do oratório o personagem
principal resolve sair de casa pela primeira vez sem ser para ir ao trabalho. É quando
vamos encontrá-lo em um bar qualquer da cidade, no qual se encontra com o primeiro
personagem que irá lhe ajudar a buscar novas possibilidades de vida: o escritor boêmio.
Aqui é importante chamar atenção para o que Kurosawa parece sugerir em relação aos
escritores, logo aos artistas de um modo geral. No filme o escritor que intenta dar uma
nova vida para Watanabe é também doente e atormentado por fantasmas que escapam à
existência cotidiana, ou seja, para Kurosawa, o escritor também vive na ignorância.
Com isso Kurosawa sugere que os artistas (e nisso ele pode se incluir) também não
vivem o melhor de suas vidas por estarem sempre sob a injunção de produzir.
Com o personagem do escritor Watanabe irá conhecer um universo
para ele antes completamente desconhecido, que é o da vida noturna, com suas boates,
belas mulheres, bebidas, jogos, danças e diversões. No entanto é clara a sugestão de
Kurosawa em inscrever tal universo no horizonte da ignorância, uma vez que este
parece remeter o homem para um mundo de ilusões e fantasias vãs.
Figura 26: Watanabe e o escritor
126
a) As máquinas da ilusão b) Idem
Embora o universo das diversões noturnas não seja o que no filme demarcará
ainda a grande saída de Watanabe da ignorância para a contemplação, nele o
personagem irá perceber coisas da vida para as quais antes era cego, ainda que isto não
chegue a embevecê-lo e tirá-lo da profunda angústia em que se encontra. Como marca
de que, através das diversões noturnas, Watanabe adquire outra forma de pensar,
Kurosawa irá criar uma seqüência em que o personagem perderá seu velho chapéu
escuro tendo de adquirir um novo, mais bonito e mais claro. E são muitas as tomadas
em que Kurosawa chama atenção para o chapéu como símbolo de uma nova maneira de
pensar, embora ainda não signifique a saída total da ignorância para a vida
contemplativa. Vejamos dois fotogramas que exemplificam o que acabamos de afirmar:
Figura 27: O Chapéu como símbolo do novo pensamento
a) Watanabe perde o chapéu velho b) O escritor ajusta o novo chapéu
Uma evidência de que o chapéu não é colocado aleatoriamente pode ser
constatada na seqüência em que Watanabe retorna para casa e cruza, na rua, com uma
antiga funcionária do escritório onde ele trabalha, a qual acaba de pedir demissão. Esta
lhe reconhece, mas remarca que quase não o reconhecia por causa do novo chapéu. Este
127
encontro é o segundo mais importante do filme para o personagem principal, pois é com
a antiga funcionária jovial e alegre que Watanabe vai estabelecer laços de amizade,
descobrindo aos poucos outras diversões mais ingênuas e infantis, tais como ir ao
parque de diversão ou simplesmente olhar o por sol.
Figura 28: O encontro com a jovem
Como dissemos, no contexto do filme, será o convívio com a jovem do
escritório, não dada a trabalhos ou uma existência rotineira, que Watanabe sairá de fato
de sua ignorância para uma existência mais cheia de sentido e mais contemplativa. O
que acabamos de afirmar fica claro em todas as seqüências em que Watanabe está com a
ex-funcionária, com destaque para uma, no quarto dele, quando esta assevera que jamais
conseguiria imaginar passar trinta anos fazendo a mesma coisa repetitivamente.
Ao retornar ao escritório, depois de boa convivência com a jovem, que
passa a trabalhar numa fábrica de brinquedos, Watanabe não está curado do câncer, mas
parece outro homem, tanto que surpreende a todos por não mais aceitar ficar apenas
atrás do bureau embargando pedidos. Ao contrário, debelada a ignorância conquistada
pelos exemplos da jovem, Watanabe passa a atender a todos os pedidos, principalmente
aqueles que dizem respeito à construção de parque para as crianças. Além do mais o
personagem principal passa a inspecionar pessoalmente as obras cujas seqüências criam
outra dinâmica para o filme.
Figura 29: Watanabe saindo para vistoriar
128
a) Watanabe se preparando para a vistoria b) Watanabe saindo alegre para a vistoria
A partir deste ponto da narrativa uma voz anuncia que cinco meses depois
o personagem principal morre. É quando o público é remetido à segunda metade do
filme situada nos funerais de Watanabe. Aqui Kurosawa estabelece com o público um
relação digna de nota, na medida em que vamos ver Watanabe em plena atividade
apenas em Flashs Backs, dando conta daquilo que os vivos dizem dele. Nos flashs
Backs, portanto é que o expectador pode ver Watanabe saído da condição de ignorante
para a de contemplador, capaz de olhar o por do sol com suave e verdadeiro
contentamento.
Figura 30: Watanabe contemplando o pôr do sol
a) “como é bonito” b) “É realmente bonito”
129
c) “E nos últimos 30 anos, esqueci como era bonito o pôr do sol
Assim, o filme Viver, embora seja um Gendai- Geki, ou seja, um filme de
temática contemporânea, traz uma sutil representação da Avidya, o que sugere que
Kurosawa sugere inseri-lo em seu projeto de geral de construção de uma obra que seja
capaz de suscitar outras questões sobre a existência, calcadas nos ideais humanitários,
tão sintonizados com os pontos de vista do Zen budismo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Zen budismo, sendo uma forma de misticismo ligado ao ramo
Mahayanico, por suas peculiaridades e formas de propagação, acabaram por influenciar
consideravelmente a cultura não apenas do Extremo Oriente, bem como do Japão, de
maneira muito específica. A pesar de ser uma forma de misticismo, o Zen acabou por se
converter em formas de representação as mais diversas, indo desde representações
sociais, que implicaram na elaboração dos sistemas educacionais e códigos éticos da
sociedade japonesa, até outras modalidades de representação, ditas estéticas tais como a
arquitetura, passado pela literatura e pintura. O Zen também exerceu forte influência na
elaboração das artes marciais japonesas, bem como das artes cavalheirescas dos
samurais, cujos códigos de conduta primam por disciplina, moderação dos impulsos, e
130
cultivo de uma mente intuitiva. A influencia do Zen também pode ser sentida na
jardinagem, bem como na cerimônia do chá, duas manifestações singulares da cultura
japonesa. De um modo geral, portanto podemos afirmar que a disciplina mística do Zen
influenciou a cultura do Extremo Oriente e do Japão em duas direções: na estética e nas
artes marciais.
O cinema Japonês também vai refletir esta influência e a obra do diretor
Akira Kurosawa, cuja linguagem es em congruência com os ideais estéticos dos
pioneiros da imagem-movimento, reflete tais influências do Zen, embora de maneiras
diferentes, bem como com intenções diferentes.
Na sua primeira fase a influência do zen parece mais sedimentada e está
ligada a um desejo do cineasta em contribuir com os esforços bélicos de seu país, o que
nos permite afirmar que neste período a influência do Zen chega à obra de Kurosawa
através dos códigos cavalheirescos dos samurais. Tal atitude é concebível uma vez que
esta é uma fase de aprendizado, em que Kurosawa ainda não mostrou toda sua força
criativa. Outro motivo que justifica esta influência dos códigos cavalheirescos dos
samurais, por sua vez baseados no Zen, é que através de tal influência podemos
perceber uma maior facilidade para o desenvolvimento de películas de ação mais
intensa.
Na segunda fase da filmografia de Kurosawa a influência do zen aparece,
mas neste período o que podemos constatar como mais foco de interesse é a tentativa do
diretor em se firmar como cineasta. Aqui podemos vê-lo tentando estabelecer um
cinema mais sintonizado com projetos estéticos europeus, o que não impede que seus
temas, calcados no Zen, sejam ainda mencionados. Nesta fase Kurosawa investe mais
nos chamados Gendai-Geki, ou filmes com temáticas contemporâneas, na tentativa de
estabelecer uma fala contra os violentos processos de militarização que assolavam o
Japão no referido período. É nesta fase também que podemos perceber o diálogo de
Kurosawa com a estética do chamado cinema noir.
A terceira fase do cinema de Kurosawa é marcada por uma dupla
articulação, pois, ao mesmo tempo em que o cineasta continua a desenvolver películas
de temática contemporânea vai também realizar seu principais Jidai-Geki, ou filmes
cujas narrativas remontam a um período anterior ao chamado período Meiji, marcado
pelo inicio da ocidentalização. A terceira fase de sua obra é aquela em que Kurosawa
realiza suas principais adaptações de obras literárias do cânone ocidental, consideradas
algumas de suas maiores contribuições para a história do cinema mundial. É a fase em
131
que o diretor também inicia um discurso mais niilista da existência, não deixando de
fazer referências ao Zen, o que pode ser atestado em filmes tais como trono Manchado
de sangue.
A quarta e última fase da obra de Kurosawa é marcada por sua ruptura
formal definitiva em relação à narrativas tradicionais. Este período é marcado pela
introdução do uso das cores em seu cinema e suas obras agora parecem mais reflexivas
e menos preocupadas com as narrativas que adotam a tração do paradigma de causa e
efeito. Tais obras são marcadas por serem realizadas com grandes orçamentos e têm
como ponto fundamental a marca da maturidade do diretor que não mais se preocupa
com os eventuais compromissos com a crítica. Paradoxalmente é a fase em que
Kurosawa recebe reconhecimento internacional, sendo nela em que o diretor recebe os
prêmios mais significativos de sua carreira.
As três obras analisadas no presente trabalho pertencem a diferentes
períodos da produção de Kurosawa, e embora adotem posturas estéticas distintas umas
das outras, têm em comum o fato de representarem muito significativamente aspectos
do Zen budismo, o qual, de uma forma ou de outra e ainda que mesmo indiretamente,
esteve presente ao longo da obra do diretor durante quase toda sua carreira.
Em Trono Manchado de Sangue, adaptação para o cinema da peça
“Macbeth” de William Shakespeare, podemos observar que o que estão sendo
representados são o bem, o mal, bem como a questão da vaidade, pontos caros aos
ideais do Zen. O que esta película tem em especial, ao representar pontos importantes
dos ideais Zen budistas, é sua clara opção por estabelecer um ponto de vista moralizante
em relação ao que pretende discutir. E esta intenção moralizante está ligada à opção
narrativa de Kurosawa que remonta ao paradigma da tragédia grega, fato que não está
presente no texto de partida, a peça “Macbeth”. Neste sentido o filme se filia muito
fortemente ao ramo do budismo baseado nos preceitos morais, chamado Sila. Assim,
embora este não tenha sido foco de nossas especulações, podemos afirmar que, ao
adaptar para o cinema a peça “Macbeth”, Kurosawa potencializa seus eventuais
discursos moralistas, que em Shakespeare são apenas uma possibilidade remota de
interpretação. Isto se deve certamente à influência do Zen, que acredita que o mal é a
intervenção humana nos eventos do mundo. Para o Zen é importante lembrar, a
existência natural e isenta de conflitos é aquela considerada ideal. A questão da vaidade
aparece no filme através do poema Zen entoado pela feiticeira. Com tal recurso
Kurosawa reconstitui o conhecido sermão da flor e faz uma alusão nítida ao budismo, o
132
que nos permite afirmar que, com esta película, Kurosawa sugere realizar uma reflexão
sobre as ações humanas de condução da existência. Assim se formos falar em termos de
política de representação podemos afirmar que Kurosawa sugere um novo tipo de
homem, mais espontâneo e menos preocupado com a afirmação de seus próprios egos.
No filme Sonhos, podemos perceber que, apesar de pertencer à última fase
de produções do diretor, uma forte representação dos ideais do Zen é aqui realizada.
Com a referida película Kurosawa realiza uma fala sobre um dos temas mais caros ao
Zen budismo, a saber, a Iluminação ou Satori. As referidas representações, no entanto
são realizadas de forma paulatina e até mesmo, em alguns momentos, hermética e
podemos perceber mais claramente uma referência à Iluminação, sobretudo no último
sonho em que o tema adquire configuração textual. Neste caso Kurosawa exalta um
ideal de existência bucólico, baseado em hábitos e condutas coadunadas com o ritmo da
natureza fazendo uma sugestão clara para o fato de que o homem não necessita de
aparatos tecnológicos e conveniências mecânicas. Tais ideais são perfeitamente
coadunados com ideais do Zen budismo, o qual prega que a Iluminação, ou Satori
podem ser conquistados até mesmo, e principalmente, por uma existência baseada em
hábitos simples, baseados no trabalho e no cultivo da vida cotidiana mais corriqueira,
em que não haja o privilégio de simbolismos nem a imitação de condutas heróicas.
Neste filme, mais uma vez, Kurosawa parece sugerir ao público um pensamento
contrário ao pensamento hegemônico que costuma exaltar as grandes tecnologias e as
grandes elucubrações intelectuais. Neste sentido podemos afirmar que o cineasta pode
ter sua obra inserida numa política de representação contra hegemônica, por não exaltar
a existência baseada na competição nem em formação de estereótipos do modus vivendi
eurocêntrico.
Viver, quarto e último filme por nós analisado traz a representação de outro
dos grandes pilares do budismo Zen que é a Avidya, ou ignorância. O referido filme, um
Gendai-Geki, ou película de temática contemporânea, nos traz uma reflexão sobre as
conseqüências para o indivíduo cuja existência é destituída da capacidade de
contemplação dos fenômenos do mundo pelo viés intuitivo. Aqui, a opção narrativa de
Kurosawa lembra, em alguns pontos, sobretudo no início da película, outras, feitas para
compor o filme Trono Manchado de Sangue. Estamos nos referindo ao fato de que o
cineasta extrai do efeito trágico uma possibilidade de sugerir que uma existência
confinada apenas em atividade mecânicas e sem apelos à intuição pode levar à ruína
física e psíquica. Neste filme a posição de Kurosawa parece clara a favor de uma
133
existência menos burocrática, uma vez que esta se utiliza da capacidade criativa humana
para alimentar um sistema que, em seu projeto inicial está fadado à promoção do mal
estar e da estagnação. O filme também exalta valores tais como a solidariedade e a vida
baseada no trabalho para a promoção do bem estar coletivo, o que, em última instância é
um ideal Zen Budista. O importante a ser posto aqui em relevo é que as sugestões do
diretor são dadas mediante uma condução primorosa dos recursos fílmicos o que mostra
que Kurosawa se utilizava da linguagem cinematográfica com grande maestria e
profunda consciência de suas possibilidades expressivas.
Por último é importante ainda ressaltar que o diretor japonês Akira
Kurosawa pode perfeitamente ser inscrito no rol de diretores que usaram a imagem-
movimento, o autômato espiritual, para implementação não apenas de uma obra
exuberante, do ponto de vista estético e importante no que diz respeito à quantidade de
suas produções. Para o referido diretor o cinema parece ter sido um suporte lingüístico
de extrema importância para a construção de um projeto cinematográfico maior, capaz
de estabelecer para o mundo algumas falas divergentes com aquelas do discurso
hegemônico, o que faz com que seu trabalho se inscreva numa política de representação
das diferenças.
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